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LUIZA MAHIN: estudo sobre a construção de um mito libertário Dulcilei da Conceição Lima * Resumo Em 1880, Luiz Gama escreveu e encaminhou uma carta autobiográfica ao jornalista carioca Lúcio de Mendonça. Nessa carta descreveu aquela que teria sido sua mãe, Luiza Mahin, uma africana nagô, livre e pagã. A partir disso, surgiram publicações, poemas e romances que, durante mais de um século alimentaram o desenvolvimento de um mito. Na década de 1980, as ativistas do MNU buscaram em suas ancestrais exemplos de luta e resistência que pudessem erigir como símbolo, entre tantas, encontraram através de Arthur Ramos, Luiza Mahin. Pelas mãos das mulheres ligadas ao movimento negro, o mito foi reelaborado e, como produto da imaginação simbólica, apropriado pela memória social. Palavras chave: Imaginação simbólica, mito, memória social. Abstract In 1880, Luiz Gama wrote and sent a letter to the autobiographic carioca journalist Lúcio de Mendonça. This letter describes what would have been his mother, Luiza Mahin, an African Nago, free and paid. From this, there were * Universidade Presbiteriana Mackenzie. Mestranda do Programa de Pós-graduação em Educação, Arte e História da Cultura. Trabalho apoiado pelo fundo Mackpesquisa.

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LUIZA MAHIN: estudo sobre a construção de um mito libertárioDulcilei da Conceição Lima*

Resumo

Em 1880, Luiz Gama escreveu e encaminhou uma carta autobiográfica ao jornalista

carioca Lúcio de Mendonça. Nessa carta descreveu aquela que teria sido sua mãe, Luiza

Mahin, uma africana nagô, livre e pagã. A partir disso, surgiram publicações, poemas e

romances que, durante mais de um século alimentaram o desenvolvimento de um mito.

Na década de 1980, as ativistas do MNU buscaram em suas ancestrais exemplos de

luta e resistência que pudessem erigir como símbolo, entre tantas, encontraram através de

Arthur Ramos, Luiza Mahin.

Pelas mãos das mulheres ligadas ao movimento negro, o mito foi reelaborado e, como

produto da imaginação simbólica, apropriado pela memória social.

Palavras chave: Imaginação simbólica, mito, memória social.

Abstract

In 1880, Luiz Gama wrote and sent a letter to the autobiographic carioca journalist

Lúcio de Mendonça. This letter describes what would have been his mother, Luiza Mahin, an

African Nago, free and paid. From this, there were publications, poems and novels that, for

over a century fueled the development of a myth.

In the 1980s, the activists sought to MNU in their ancestral examples of struggle and

resistance that could build a symbol, among many, found by Arthur Ramos, Luiza Mahin.

The hands of women linked to the black movement, the myth has been revised and, as

a symbolic product of the imagination, suitable for social memory.

Keywords: Symbolic imagination, myth, social memory.

* Universidade Presbiteriana Mackenzie.Mestranda do Programa de Pós-graduação em Educação, Arte e História da Cultura. Trabalho apoiado

pelo fundo Mackpesquisa.

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Luiz Gama foi um ex-escravo que se tornou importante escritor, jornalista e

abolicionista. Ele viveu e atuou em São Paulo, de 1840 a 1882, quando morreu. Dois anos

antes de seu falecimento, escreveu e encaminhou uma carta autobiográfica ao jornalista

carioca Lúcio de Mendonça, que havia solicitado ao abolicionista, informações para

elaboração de um artigo. Nessa carta, Luiz Gama descreveu aquela que teria sido sua mãe,

Luiza Mahin, uma africana nagô, livre e pagã1.

Ligia Fonseca Ferreira, com base na análise que fez da carta à Lúcio de Mendonça e

do poema Minha Mãe de 1861 (enviado anexo à carta ao jornalista), afirma que Luiza Mahin

foi uma criação do escritor. Em sua tese de doutorado, defendida em 2001, sobre a vida e a

obra de Luiz Gama, a autora aponta as contradições presentes nesses documentos, que

equivaleriam à confirmação de que se trata de uma personagem fictícia. Exemplo disso é a

condição religiosa de Luiza: no poema, Gama atribui à mãe a religiosidade cristã e, mais

tarde, na carta enviada ao jornalista, afirma categoricamente que a mãe manteve-se pagã, pois

sempre recusou o batismo e a doutrina cristã (GAMA, 1880).

As informações fornecidas na carta foram utilizadas em publicações, poemas e

romances que, durante todo o século XX e ainda no início do século XXI, alimentaram o

desenvolvimento de um mito. Segundo Ligia Ferreira, “Déformation des propôs de son fils,

une certaine fabulation s´est donc créée autour du personage de Luiza Mahin, qui, enlevéé au

<<discours>> de Luiz Gama, gagnera, em tant que mythe, une certaine autonomie”2

(FERREIRA, 2001:67).

Em 1933, Pedro Calmon publicou Malês: a insurreição das senzalas. O romance, que

trata do Levante dos Malês, ocorrido em 1835 em Salvador, é protagonizado por Luiza

Mahin. Embora Calmon tenha atribuído à Luiza o fracasso do levante (teria sido ela quem 1 Trecho da carta de Luiz Gama à Lúcio de Mendonça, para efeito de comparação das características criadas pelo autor e aquelas atribuídas à personagem posteriormente: “Sou filho natural de uma negra, africana livre, da Costa Mina (Nagô de Nação) de nome Luiza Mahin, pagã, que sempre recusou o batismo e a doutrina cristã. Minha mãe era baixa de estatura, magra, bonita, a cor era de um preto retinto e sem lustro, tinha os dentes alvíssimos como a neve, era muito altiva, insofrida e vingativa. Dava-se ao comércio – era quitandeira, muito laboriosa, e mais de uma vez, na Bahia, foi presa como suspeita de envolver-se em planos de insurreições de escravos, que não tiveram efeito. Era dotada de atividade. Em 1837, depois da Revolução do dr. Sabino, na Bahia, veio ela ao Rio de Janeiro e nunca mais voltou. Procurei-a em 1847, em 1856 e em 1861, na Corte, sem que a pudesse encontrar. Em 1862, soube, por uns pretos minas que conheciam-na e que deram-me sinais certos, que ela, acompanhada de malungos desordeiros, em uma “casa de dar fortuna”, em 1838, fora posta em prisão; e que tanto ela como os seus companheiros desapareceram. Era opinião dos meus informantes que esses ‘amotinados’ fossem mandados pôr fora pelo governo, que, nesse tempo, tratava rigorosamente os africanos livres, tidos como provocadores. Nada mais pude alcançar a respeito dela”. 2 Tradução livre: Deformação da proposta de seu filho, uma certa fabulação foi então criada em torno da personagem Luiza Mahin, que, removida do discurso de Luiz Gama, ganhará como mito, uma certa autonomia.

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denunciou os planos dos revoltosos às autoridades), foi sua suposta participação na revolta

que perpetuaria sua imagem. Segundo João José Reis, em Rebelião Escrava no Brasil, (...) à revelia de Pedro Calmon, Luiza Mahin se tornaria “símbolo do valor da

mulher negra no Brasil”, conforme escreveu Arthur Ramos. Para confirmá-lo, em

anos recentes ela tem recebido repetidas homenagens do movimento negro

brasileiro, sobretudo da ala feminina, por sua suposta atuação destacada na revolta

dos malês (REIS, 2003: 303).

Mais de quarenta anos separam Malês: a insurreição das senzalas de novas

publicações que tratam de Luiza Mahin. Na década de 70, Pedro Calmon e Arthur Ramos

escreveram artigos sobre sua atuação nos eventos de 1835. A visão de Ramos, situando Luiza

Mahin como símbolo da luta da mulher negra (por ter, segundo ele, feito de sua casa um dos

principais espaços das reuniões malês para a preparação da revolta e estando ela mesma entre

as lideranças da rebelião), foi incorporada pelo segmento feminino do movimento negro,

responsável pela produção de textos, poemas e atribuição de seu nome à escola, rua e praça e

ainda a um grupo de mulheres negras do Rio de Janeiro na década de 80. Em 2006, Ana

Maria Gonçalves publicou Um defeito de cor, uma biografia de Luiza que contempla, desde

sua saída da África como escrava para o Brasil, com cinco anos de idade, até sua vida no

continente após seu retorno.

Não se pretende discutir aqui as razões pelas quais Luiz Gama teria supostamente

inventado a personagem, mas analisar sua apropriação pelo seguimento feminino do

movimento negro e tratar das reelaborações que garantiram a manutenção de Luiza Mahin no

imaginário e na memória afro-brasileira. Desse modo, entende-se a personagem como

construção mítica, de acordo com estudos desenvolvidos por Ernst Cassirer, Gilbert Durand,

Pierre Bordieu e Maurice Halbwachs acerca da imaginação simbólica e da memória coletiva

(além de outros teóricos que produziram estudos semelhantes).

No final da década de 1970 com o processo de redemocratização em andamento, o

movimento negro se reorganizou. Nesse momento foi fundado o Movimento Negro

Unificado, que entre outras medidas, optou por celebrar a memória de Zumbi dos Palmares

como principal referencial histórico na luta do negro brasileiro. Desse modo, o dia 20 de

novembro (data da morte de Zumbi) passou a ser celebrado como Dia da Consciência Negra

em contraposição ao dia 13 de maio, tratado como o dia em que a monarquia brasileira

concedeu a liberdade aos escravizados.

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As ativistas do MNU, sentindo-se insatisfeitas com a limitação dos discursos raciais e

feministas que não davam conta da realidade da mulher negra brasileira, decidiram fundar

grupos independentes que abordassem essa especificidade. Tal como o MNU, buscaram em

suas ancestrais exemplos de luta e resistência que pudessem erigir como símbolo, entre tantas,

encontraram através de Arthur Ramos, Luiza Mahin.

Alzira Rufino, Ilza Araci e Maria Rosa Pereira, do Coletivo de Mulheres Negras da

Baixada Santista, escreveram “Mulher negra tem história”, o livro traz uma pequena biografia

de Luiza e se tornou referência para outras publicações.

De acordo com esse texto, Luiza Mahin teria nascido na África, sob etnia jeje, sendo transportada para

o Brasil como escrava. Para outros (...) ela nasceu livre, em Salvador, BA,

por volta de 1812. Inteligente e rebelde, participou de todas as revoltas (sic)

desencadeadas na cidade de Salvador e arredores contra o regime da

escravidão. No levante de 1830 está grávida. (...) Juntamente com escravos

de todas etnias (sic), lidera o plano (sic) para a Grande Insurreição – a

Revolta dos Malês (...) O levante não chegou a se concretizar. (...) Luiza

consegue escapar e parte para o Rio de Janeiro, onde continua sua luta pela

liberdade (sic), sendo por essa razão presa, e possivelmente deportada para

a África.

Dessa forma, as escritoras recorrem à versão que atribui à Luiza Mahin características

como, inteligência, rebeldia, liderança e determinação aliadas à maternidade. Trata ainda da

origem africana ou afro-descendente de Luiza. Esses elementos constituem um importante

referencial simbólico e força agregadora, pois identificam na personagem características

valorizadas pelas militantes negras e, portanto o modo pelo qual elas querem ser

reconhecidas.

Segundo Cassirer (1994:48), o homem vive em um universo simbólico criado através

da linguagem, do mito, da arte e da religião. Cada um desses elementos gera e partilha seu

próprio mundo significativo. O sentir e o atuar humanos dependem das representações. Desse

modo, o símbolo é criação resultante das condições psíquicas, culturais e sociais em que

surge. É agente fundamental de organização do real, de ligação entre elementos antagônicos,

pois o símbolo não é, apenas representa, remete a algo. Sendo assim, não é elemento estático: O equilíbrio sócio-histórico de uma determinada sociedade nada mais seria

do que uma constante realização simbólica, e a vida de uma cultura seria

feita dessas diástoles e sístoles, mais ou menos lentas, mais ou menos

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rápidas, conforme a própria concepção que essas sociedades têm da história

(DURAND, 1988:104).

Essa construção simbólica de Luiza Mahin vem, portanto atender à necessidade de

reconhecimento do papel social da mulher negra na formação da sociedade brasileira e,

justificar a luta empreendida por essas mulheres, demonstrando a partir desse exemplo a

especificidade da condição feminina afro-descendente. Há também a intenção de romper com

o referencial simbólico herdado da escravidão que trata a mulher negra a partir de estereótipos

como o da negra trabalhadora braçal ou da mulata possuidora de uma sexualidade

exacerbada (SHUMACHER e BRAZIL, 2007:198).

Pierre Bordieu (2004:165-167) afirma que o poder simbólico possui em sua forma

essencial a capacidade para produzir ou reconhecer grupos. Através do mecanismo da

linguagem e do capital simbólico adquirido em experiências anteriores, busca-se um

reconhecimento que permitirá mudar uma visão pré-existente de um determinado grupo

social, fazê-lo existir visivelmente, mostrar sua homogeneidade e força. As representações

simbólicas, individuais ou coletivas, tornam-se, dessa forma, estratégias de luta pelo espaço

social.

A mitificação de Luiza Mahin busca ocupar no imaginário o espaço social negado à

mulher negra, ao mesmo tempo através dessa conquista do imaginário pretende-se ampliar a

ocupação do espaço social real.

A disputa pelo espaço social se dá também através da disputa pelo espaço geográfico.

Em 1985, por iniciativa do Coletivo de Mulheres Negras de São Paulo o nome de Luiza

Mahin foi dado a uma praça na Freguesia do Ó, constituindo-se assim num momento à sua

memória.

Fig. 1 Cartaz de inauguração da Praça Luiza Mahin (SCHUMACHER e BRAZIL, 2007:368-369).

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Le Goff (2003: 526) afirma que o monumento evoca o passado, perpetua a recordação

através da materialidade produzida no intuito de preservar um personagem ou uma situação.

Através dessa medida, não apenas o nome de Luiza é perpetuado na memória coletiva, mas

também realiza o mito. Dessa maneira a personagem passa a estar calcada numa realidade

possível, o que amplia sua eficácia simbólica.

A praça sendo um espaço público permite ainda, a realização pedagógica do símbolo,

responsável segundo Durand (1988:100-102), pelo restabelecimento do equilíbrio

psicossocial e sócio-histórico de um determinado grupo.

O mito3, como manifestação da representação simbólica, se insere na realidade social,

age, forma e informa sobre ela (MOLES, 1991:10). Um dos mecanismos do mito para realizar

essa função, bem como a de luta pelo espaço social é o culto ao herói4. O herói é um

importante elemento unificador, representante máximo da memória coletiva dos povos.

Segundo José Murilo de Carvalho,Heróis são símbolos poderosos, encarnações de idéias e aspirações,

fulcros de identificação coletiva. (...) tem de responder a alguma

necessidade ou aspiração coletiva, refletir algum tipo de

personalidade ou de comportamento que corresponda a um modelo

coletivamente valorizado (CARVALHO, 1990:55).

Assim, Luiza Mahin, a partir das características e ações que lhe são atribuídas, se

constitui como modelo heróico desenvolvido e utilizado pelas ativistas do movimento negro

feminino, como estratégia de mobilização, identificação e mesmo de construção de um

passado ajustado às necessidades do presente (BORDIEU, 2004:162).

Em 1986, às vésperas das comemorações em torno dos cem anos da abolição, Miriam

Alves escreve o poema Mahin amanhã (ALVES, 1986:46): Ouve-se nos cantos a conspiração

Vozes baixas sussurram frases precisas

Escorre nos becos a lâmina das adagas

3 O mito é uma representação simbólica que tem como função, entre outras, fixar modelos das atividades humanas. Sendo assim, não pode ser visto a partir de uma visão reducionista que o toma apenas por lenda, mas tratado como mecanismo de compreensão das múltiplas realidades sócio-culturais dos grupos humanos. A construção do mito se dá a partir dos mecanismos da imaginação, se efetiva a partir da crença, da intuição, da fé. Dessa forma, pode inclusive se opor aos registros históricos. Ver CARVALHO, 1990:58.4 Entende-se o aqui o culto ao herói como criação simbólica, da ordem do mito e ao mesmo tempo importante elemento constituinte da memória coletiva.

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Multidão tropeça nas pedras

Revolta

Há revoada de pássaros

Sussurro, sussurro:

---- é amanhã, é amanhã.

Mahin falou, é amanhã.

A cidade toda se prepara

Malês

Bantus

Geges

Nagôs

Vestes coloridas resguardam esperanças

Aguardam a luta

Arma-se a grande derrubada branca

A luta é tramada na língua dos Orixás

---- é aminhã, é aminhã

Sussurram

Malês

Geges

Bantus

Nagôs

---- é aminhã, Luiza Mahin falô.

O poema evoca a participação de Luiza Mahin na maior revolta de escravos ocorrida

no Brasil, tal como o texto de “Mulher negra tem história”, atribuindo-lhe um papel de

liderança no levante. Será a partir da suposta participação de Luiza na rebelião que se

garantirá sua manutenção na memória coletiva.

Segundo Jacques Le Goff (2003:469) a memória social é importante constituinte da

identidade individual e coletiva, e como tal, se configura como instrumento e objeto de poder.

Sendo representação de si própria, torna-se mecanismo ideológico de legitimação, abrindo

espaço para as mais variadas reivindicações.

A memória coletiva, assim como a imaginação simbólica, está em constante processo

de adaptação, são as solicitações do presente que vão nortear a elaboração da memória de

acordo com a dinâmica social.Essa memória assegura a coesão e solidariedade do grupo e ganha

relevância nos momentos de crise e pressão. Não é espontânea: para manter-

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se precisa permanentemente ser reavivada. É, por isso, que é da ordem da

vivência, do mito e não busca coerência, unificação (MENEZES, 1992:15).

Em torno das discussões acerca do centenário da abolição e da elaboração de uma

nova constituição para o país, os mecanismos da memória foram utilizados pelos ativistas na

busca por uma revisão e reconhecimento da atuação do negro na história e na sociedade

brasileira. Nesse sentido, Luiza Mahin cumpre como mito do herói, o duplo papel de

referencial simbólico e agente de memória. Tanto o símbolo, quanto a memória já são em si

elementos unificadores, o poema de Miriam Alves reforça essa idéia, construindo uma

personagem capaz de conjugar grupos distintos em torno de um mesmo propósito. Era

importante que naquele momento, as diferenças entre os diversos grupos do feminismo negro,

e mesmo do movimento negro em sua totalidade, fossem deixadas de lado, para que se

discutisse em conjunto a situação do negro e em particular da mulher negra, visando a

ampliação do espaço para esses grupos dentro de uma nova configuração democrática do

estado brasileiro.

Fig. 2 Passeata comemorativa do dia 8 de março, São Paulo, SP, 1988.Fotografia de Marta Baião. Acervo Geledés – Instituto da Mulher Negra.

(SCHUMACHER e BRAZIL, 2007:368-369).

O caso de Luiza Mahin evidencia, portanto a reivindicação de uma memória coletiva,

baseada em referenciais desenvolvidos pela imaginação simbólica. O movimento negro

feminino buscou e construiu na personagem os atributos necessários para garantir a coesão do

grupo, elementos que permitiram identificação, reforçaram ideais, ampliaram espaços e

criaram meios em que as lutas pudessem se desenrolar posteriormente.

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FONTES E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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