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LUIZ GUSTAVO GAVIÃO
RELAÇÕES COMPLEXAS:
Pintores fluminenses e seus encomendantes 1763-1821
Tese de Doutorado em História e Teoria da Arte apresentada ao Programa de Pós-Graduação Escola de Belas Artes, UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em História e Crítica de Arte.
Orientadora: Cybele Vidal Neto Fernandes
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Centro de Letras e Artes
Escola de Belas Artes
Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais
Rio de Janeiro
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
2
GAVIÃO, Luiz Gustavo
Relações Complexas: pintores fluminenses e seus encomendantes
1763-1821. Rio de Janeiro, UFRJ, EBA, 2010.
312f.
Tese: Doutor em História e Crítica da Arte
1 . Escola Fluminense de Pintura 2 . Relações de encomenda
3 . Sociologia da Arte
I . Universidade Federal do Rio de Janeiro
II . Título
3
Para Norma Miranda Lavado Em memória
4
AGRADECIMENTOS
A Carmen Lúcia Lavado Gavião e Adaltro Magalhães Gavião, pelo apoio neste caminho fascinante da História da Arte, mesmo na época em que revelei a verdade sobre minha aprovação no vestibular. É, meus pais, não era Engenharia... A Norma Miranda Lavado, minha avó que sabia desde o início o meu pequeno segredo e que hoje torce por mim lá do alto. A Cybele Vidal Neto Fernandes, pela orientação preciosa, apesar dos meus problemas com o tempo. A Marco Aurélio Cardoso, pela amizade infinita, paciência e confiança na qualidade de meu trabalho. A Carla Santoro, Rodrigo Becker, Rogério Vasconcelos, Sonia Passos e Cristina Melo, pela amizade e carinho. A Marcia Miranda, Ulício Junior, Luiz Fernando de Moraes, Luiza Silveira, Elisabete Rovari e Rafael Paiva, pela formação de um grupo amigo de professores que tanto colaborou para a renovação das minhas fontes de inspiração e reflexão. A Inês Senra e Alzira Batalha, pela contribuição nos assuntos relacionados à Aula Régia em particular, e à Educação em geral. A Gustavo Schnoor, por ter percebido, no início de minha formação, certa vocação para estudar o passado colonial. A Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira, professora responsável pela confirmação da vocação descrita acima. A Daniela Chindler, por ter me mostrado como ampliar meus limites como pesquisador e teórico. A Claudia Fadel, Diretora da Escola SESC de Ensino Médio, pelo interesse em compor um quadro de professores pesquisadores e pelo apoio aos que estão em formação. A Tathyane Ferreira Höfke e Reginaldo da Rocha Leite, parceiros queridos nos ambientes da Escola de Belas Artes e fora deles também. A Irmandade de São José, pela confiança em disponibilizar o material necessário à pesquisa. As Instituições IPHAN, IHGB, Biblioteca Nacional, Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, Museu Histórico Nacional e Museu de Arte Antiga de Lisboa, pela acessibilidade e respeito ao pesquisador.
5
Os físicos às vezes dizem medir o tempo. Servem-se de fórmulas matemáticas nas quais o tempo desempenha o papel de um quantum específico. Mas o tempo não se deixa ver, tocar, ouvir, saborear nem respirar como um odor. Há uma pergunta que continua à espera de resposta: como medir uma coisa que não se pode perceber pelos sentidos? Uma hora é algo invisível.
Norbet Elias
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RESUMO
Relações Complexas: Pintores fluminenses e seus clientes 1763-1821
GAVIÃO, Luiz Gustavo. Relações complexas: pintores fluminenses e seus clientes. Rio de
Janeiro, 2010. Tese (Doutorado em História e Crítica da Arte) – Escola de Belas Artes,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.
Estudo da pintura colonial fluminense, do período entre 1763 a 1821, na concepção da
sociologia da arte através da análise da relação entre o encomendante, a obra e o profissional.
A partir da percepção de que a figura do cliente participa de maneira decisiva na produção
local, é elaborado um roteiro de investigação que perpassa as funções dos objetos através de
suas origens, simbólicas e utilitárias. Para tanto, as funções são pensadas por filiação temática,
considerando a mensagem da pintura como elemento diretamente associado ao espaço
específico a que foi destinada. A análise presencial das obras selecionadas e a consulta aos
documentos sobreviventes e disponíveis são as bases para a identificação do perfil do
encomendante e de sua atuação na transformação estilística e iconográfica da época. Inclusão
da burguesia comerciante como consumidora potencialmente ativa nos oitocentos,
protagonista de mudanças significativas no cenário artístico fluminense, como a abertura da
Aula Régia de Desenho e Figura. Discussão sobre a complexidade do período e de sua
importância para a construção de uma história positivamente valorativa, eliminando os
vestígios ainda presentes do tom pejorativo em torno da pintura colonial.
Palavras-chave: Pintura colonial, encomendantes, século XVIII, Sociologia da Arte.
7
ABSTRACT
Complex Relations: Fluminense painters and their clients 1763-1821
GAVIÃO, Luiz Gustavo. Relações complexas: pintores fluminenses e seus clientes. Rio de
Janeiro, 2010. Tese (Doutorado em História e Crítica da Arte) – Escola de Belas Artes,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.
The study of the fluminense colonial painting in the period from 1763 to 1821, by the
art sociology theory that analyses the relation among clients, works of art and artists. Starting
with the perception of the client as a participative agent in the local production of art, this
research investigates the symbolic and utility functions of the objects since their origins.
These functions are studied by the paintings´ themes that consider the message as an essential
element deeply linked to the work of art´s specific location. The direct contact with the
selected paintings and the investigation of the preserved documents are the bases to identify
the clients’ profile and their contribution to transform the style and the iconography of the
period. The bourgeois is included as an important client in the eighteenth century, an actor
who promotes significant changes on the colonial artistic production, like the opening of the
Aula Régia de Desenho e Figura. This research discusses the colonial period´s complexity
and its importance to compose a positive history, trying to eliminate still surveying prejudices
over this subject.
Key Words: Colonial painting, clients, eighteenth century, art sociology.
8
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1 Luis Michel van Loo. Retrato do 1o Marquês de Pombal, Sebastião José de
Carvalho e Melo. 1766. Óleo sobre tela. 2230 x 3040 cm. Museu Nacional de
Arte Antiga, Lisboa.
Figura 2 André Gonçalves. Assunção da Virgem. C. 1730. Óleo sobre tela. 3570 x 2520.
Mafra, Lisboa.
Figura 3 José de Oliveira Rosa. Santa Bárbara. 1769. Óleo sobre tela. Igreja de Nossa
Senhora de Monteserrate, Rio de Janeiro.
Figura 4 Vieira Lusitano. Santo Agostinho pisando na heresia. 1736. Óleo sobre tela.
MNAA, Lisboa.
Figura 5 Linhas de força.
Figura 6 Pedro Alexandrino de Carvalho. Salvador do Mundo. 1778. Óleo sobre tela. Sé
de Lisboa.
Figura 7 Vieira Portuense. Juramento de Viriato. 1799. Gravura de Francesco
Bartolozzi. 42 x 28.9 cm. Biblioteca Geral da Faculdade de Ciências do Porto.
Figura 8 Vieira Portuense. Dona Filipa de Vilhena arma os filhos cavaleiros. 1800-1801.
Óleo sobre tela. 152 x 213 cm. Coleção particular.
Figura 9 Domingos Antonio de Sequeira. Alegoria à Casa Pia. Óleo sobre tela. MNAA,
Lisboa.
Figura 10 Domingos Antonio de Sequeira. Estudo para Alegoria à Casa Pia. Desenho.
MNAA, Lisboa.
Figura 11 Domingos Antonio de Sequeira. Retrato do Conde de Farrobo. 1813. 110 x 68
cm. MNAA, Lisboa.
Figura 12 Cirilo Wolkmar Machado. Estudos anatômicos. 1823. Folha 141.
Figura 13 Peter Paul Rubens. A Descida da Cruz. Óleo sobre madeira. 462 x 341 cm.
9
Catedral de Antuérpia.
Figura 14 Manoel da Cunha e Silva. A Descida da Cruz. Óleo sobre madeira. Igreja de
Nossa Senhora do Bonsucesso, Rio de Janeiro.
Figura 15 Forro da capela-mor da Igreja de Nossa Senhora do Carmo, Rio de Janeiro.
Figura 16 Manoel da Cunha e Silva. Nossa Senhora das Vitórias. Século XVIII. Óleo
sobre madeira. Igreja de São Francisco de Paula, Rio de Janeiro.
Figura 17 Leandro Joaquim. Nossa Senhora da Boa Morte. Século XVIII. Óleo sobre
tela. Igreja de Nossa Senhora da Boa Morte dos Homens Pardos, Rio de
Janeiro.
Figura 18 Leandro Joaquim. São Januário. Óleo sobre tela. Século XVIII. 185 x 90 cm.
Igreja de São Sebastião, Rio de Janeiro.
Figura 19 Raimundo da Costa e Silva. Nossa Senhora do Carmo. Século XVIII. Óleo
sobre tela. Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro.
Figura 20 Raimundo da Costa e Silva. A Sagrada Família. Início do século XIX. Óleo
sobre tela. Igreja de São José, Rio de Janeiro.
Figura 21 Oficina de Francisco Manuel. Jesus, Maria, José. Século XVIII. Gravura.
Biblioteca Nacional de Lisboa.
Figura 22 Manoel Dias de Oliveira. Nossa Senhora da Conceição. 1817. Óleo sobre tela.
MNBA, Rio de Janeiro.
Figura 23 Linhas de composição.
Figura 24 José Leandro de Carvalho. São Pedro. 1817. Óleo sobre tela. Igreja de Nossa
Senhora do Carmo da Antiga Sé, Rio de Janeiro.
Figura 25 José Leandro de Carvalho. São João Evangelista. 1817. Óleo sobre tela. Igreja
de Nossa Senhora do Carmo da Antiga Sé, Rio de Janeiro.
Figura 26 José Leandro de Carvalho. São Mateus. 1817. Óleo sobre tela. Igreja de Nossa
Senhora do Carmo da Antiga Sé, Rio de Janeiro.
Figura 27 José Leandro de Carvalho. São André. 1817. Óleo sobre tela. Igreja de Nossa
Senhora do Carmo da Antiga Sé, Rio de Janeiro.
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Figura 28 José Leandro de Carvalho. São Tiago Maior. 1817. Óleo sobre tela. Igreja de
Nossa Senhora do Carmo da Antiga Sé, Rio de Janeiro.
Figura 29 José Leandro de Carvalho. São Matias. 1817. Óleo sobre tela. Igreja de Nossa
Senhora do Carmo da Antiga Sé, Rio de Janeiro.
Figura 30 José Leandro de Carvalho. São Bartolomeu. 1817. Óleo sobre tela. Igreja de
Nossa Senhora do Carmo da Antiga Sé, Rio de Janeiro.
Figura 31 José Leandro de Carvalho. São Tiago Menor. 1817. Óleo sobre tela. Igreja de
Nossa Senhora do Carmo da Antiga Sé, Rio de Janeiro.
Figura 32 José Leandro de Carvalho. São Tomé. 1817. Óleo sobre tela. Igreja de Nossa
Senhora do Carmo da Antiga Sé, Rio de Janeiro.
Figura 33 José Leandro de Carvalho. São Felipe. 1817. Óleo sobre tela. Igreja de Nossa
Senhora do Carmo da Antiga Sé, Rio de Janeiro.
Figura 34 José Leandro de Carvalho. São Judas Tadeu. 1817. Óleo sobre tela. Igreja de
Nossa Senhora do Carmo da Antiga Sé, Rio de Janeiro.
Figura 35 José Leandro de Carvalho. São Simão. 1817. Óleo sobre tela. Igreja de Nossa
Senhora do Carmo da Antiga Sé, Rio de Janeiro.
Figura 36 Hyacinthe Rigaud. Retrato de Luís XIV. 1701. Óleo sobre tela. 277 x 194 cm.
Museu do Louvre, Paris.
Figura 37 Autor desconhecido. Retrato de D. João I. Século XV. Óleo sobre tela. MNAA,
Lisboa.
Figura 38 Autor desconhecido. Retrato de um jovem Cavaleiro. Século XVI. Óleo sobre
tela. MNAA, Lisboa.
Figura 39 Domenico Duprá. Retrato de D. João V. c. 1725. Palácio Ducal, Vila Viçosa.
Figura 40 Vieira Portuense. Retrato do Bispo Adeodato Turchi. c. 1794-1795. Óleo sobre
tela. MNAA, Lisboa.
Figura 41 Leandro Joaquim. Nossa Senhora da Conceição. c. 1790. Óleo sobre tela.
Igreja de Nossa Senhora da Conceição e Boa Morte dos Homens Pardos, Rio
de Janeiro.
11
Figura 42 Leandro Joaquim. Retrato de Luís de Vasconcelos. c. 1790. Óleo sobre tela.
Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
Figura 43 Leandro Joaquim. Lagoa do Boqueirão. c. 1790. Óleo sobre tela. MHN, Rio de
Janeiro.
Figura 44
Divisão entre duas partes: a do poder e a do povo.
Figura 45
Manoel da Cunha e Silva. Retrato do Conde de Bobadela. 1791. Óleo sobre
tela. Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro.
Figura 46
Olivarius Cor. Retrato de Gomes Freire de Andrada. 1747. Sociedade Martins
Sarmento, Porto.
Figura 47 Consistório da Ordem Terceira do Carmo. Igreja da Ordem Terceira de Nossa
Senhora do Carmo, Rio de Janeiro.
Figura 48 Francesco Bartolozzi. Retrato de D. João. 1804. Gravura. BNL, Lisboa.
Figura 49 Francesco Bartolozzi. Retrato de D. João. 1809. Gravura. BNL, Lisboa.
Figura 50 João Cardini. Retrato de D. João VI. 1807. Gravura. BNL, Lisboa.
Figura 51 João de Mesquita. Retrato de D. João VI. 1816. Gravura. BNL, Lisboa.
Figura 52 Manuel Marques de Aguiar. Retrato de D. João. 1799. Gravura. BNL, Lisboa.
Figura 53 Camoin. Retrato de D. João VI. c. 1817. Gravura. BNL, Lisboa.
Figura 54 Domingos Antonio de Sequeira. Retrato de D. João. 1802. Óleo sobre tela.
MNAA, Lisboa.
Figura 55 Jean Baptiste Debret. Retrato de D. João VI. 1816. Óleo sobre tela. MNBA,
Rio de Janeiro.
Figura 56 Jean Baptiste Debret. Retrato de D. João VI. 1816. Óleo sobre tela.
Figura 57 José Leandro de Carvalho. Retrato de D. João VI. c. 1818. Óleo sobre tela.
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro.
12
Figura 58 José Leandro de Carvalho. Retrato de D. João VI. c. 1818. Óleo sobre tela.
Figura 59 José Leandro de Carvalho. Retrato de D. Maria I. c. 1818. Óleo sobre tela.
MHN, Rio de Janeiro.
Figura 60 Vieira Lusitano. Retrato de Francisca Maria, Princesa do Brasil. 1753. Óleo
sobre tela. 1520 x 1070 cm. Palácio Nacional de Queluz, Queluz.
Figura 61 Manoel Dias de Oliveira. Retrato de D. João VI e D. Carlota Joaquina. 1819.
Óleo sobre tela. MHN, Rio de Janeiro.
Figura 62 Anton Raphael Mengs. Parnaso. 1761. Óleo sobre tela. Villa Albani, Roma.
Figura 63 Pompeo Batoni. Retrato de Thomas Dundas. 1763. Óleo sobre tela. 298 x
196.8 cm. Coleção Marquesa de Zetland, Yorkshore.
Figura 64 Joseph-Marie Vien. Vendedora de Cupidos. 1763. Óleo sobre tela. Museu
Nacional do Chateau de Fontainebleau, Fontainebleau.
Figura 65 Domingos Antonio de Sequeira. Ismael expulsando Agar. 1786. Desenho a
sanguínea. 592 x 495 cm. MNAA, Lisboa.
Figura 66 Manoel Dias de Oliveira. Fato milagroso de Santa Isabel, Rainha de Portugal.
1798. Gravura. 42 x 34 cm. Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro.
Figura 67 Clemente Magalhães de Bastos. Estudo de cabeça masculina. 1810. FBN, Rio
de Janeiro.
Figura 68 Clemente Magalhães de Bastos. Estudo de cabeça masculina. 1810. FBN, Rio
de Janeiro.
Figura 69 Clemente Magalhães de Bastos. Estudo de cabeça masculina. 1812. FBN, Rio
de Janeiro.
Figura 70 Francisco Pedro do Amaral. Estudo de cabeça feminina. 1805. FBN, Rio de
Janeiro.
Figura 71 Clemente Magalhães de Bastos. Estudo de friso com rosáceas. 1812. FBN, Rio
de Janeiro.
13
Figura 72 Clemente Magalhães de Bastos. Estudo de osso. 1815. FBN, Rio de Janeiro.
Figura 73 Francisco Pedro do Amaral. Projeto de monumento à memória do dia 26 de
fevereiro de 1821, a ser erigido na Praça da Constituição. 1822. FBN, Rio de
Janeiro.
Figura 74 Manoel Dias de Oliveira. Alegoria do Nascimento de Dona Maria da Glória.
1819. Óleo sobre tela. 95 x 171 cm. IHGB, Rio de Janeiro.
14
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 16
1 O PINTOR PORTUGUÊS NO SÉCULO XVIII 33
1.1 O PERÍODO JOANINO: A ASCENSÃO SOCIAL DO PINTOR 42
1.2 O PERÍODO POMBALINO: ANTECEDENTES DAS NOVAS RELAÇÕES DE TRABALHO 58
1.3 VIEIRA PORTUENSE E DOMINGOS ANTONIO DE SEQUEIRA: ARTE E BURGUESIA 67
1.4 OS TRATADOS DE CIRILO WOLKMAR MACHADO: O PINTOR COMO TEÓRICO DA
ARTE 82
2 O CAMPO RELIGIOSO: ENCOMENDAS A SERVIÇO DA FÉ 91
2.1 O PINTOR SETECENTISTA FLUMINENSE E AS IRMANDADES RELIGIOSAS 111
2.2 A PINTURA RELIGIOSA OITOCENTISTA: A CORTE COMO ENCOMENDANTE 132
3 A PINTURA DE RETRATO E SEUS ENCOMENDANTES 153
3.1 O RETRATO EM PORTUGAL: AS RELAÇÕES DE ENCOMENDA 167
3.2 O CASO COLONIAL: O RETRATO E AS IDENTIDADES EM CONSTRUÇÃO 186
3.3 A CORTE COMO CLIENTE: D. JOÃO VI E OS PINTORES RETRATISTAS 206
15
4 A AULA RÉGIA DE DESENHO E FIGURA: DISCUSSÕES PRELIMINARES 238
4.1 A AULA RÉGIA DE DESENHO E FIGURA DE LISBOA: A CONCEPÇÃO BURGUESA DE
MERCADO DE ARTE 255
4.2 A AULA RÉGIA DE DESENHO E FIGURA DO RIO DE JANEIRO: PARADOXOS E
CONTRADIÇÕES 262
4.3 ARTES E OFÍCIOS A SERVIÇO DA CORTE 286
CONSIDERAÇÕES FINAIS 297
FONTES E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 304
ANEXOS 314
16
INTRODUÇÃO
O despertar da consciência sobre o valor do patrimônio artístico como parte
constituinte da identidade de uma nação ocorreu, essencialmente, durante processo de
formação do novo império, após a proclamação da Independência. No calor do Romantismo e
da necessidade de se construir uma imagem particular frente às demais culturas estrangeiras,
uma notável movimentação intelectual em torno dos assuntos específicos do Brasil começou a
gerar frutos. A fundação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro1 foi, sem dúvida, o
resultado maior do desejo de discutir questões nacionais e divulgá-las a partir de suas
publicações. Reduto de pesquisadores dispostos a vasculhar arquivos em busca de
informações sobre personalidades, monumentos, lugares e costumes, o Instituto ofereceu
oportunidade a Manoel de Araujo Porto Alegre2 de realizar o estudo inaugural de História da
Arte no país: a sua Memória sobre a antiga escola de pintura fluminense. (PORTO
ALEGRE, 1841).
O artigo reuniu pequenos trechos sobre a vida de nove pintores, com menções ao
aprendizado inicial, às obras sobreviventes e, em alguns casos, à aparência física do artista.
Não havia a intenção de analisar forma ou conteúdo, mas o objetivo de informar, como um
inventário, a existência do autor e a localização de cada objeto. O pioneirismo da pesquisa
1 A criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro aconteceu em 1838, dentro da premissa de construção
de um passado para o Brasil, preferencialmente distanciado das referências a Portugal. 2 Manoel de Araujo Porto Alegre foi poeta, historiador e pintor acadêmico, discípulo de Debret. Assumiu a
direção da Academia Imperial das Belas-Artes no período entre 1854 e 1857.
17
encontra-se, justamente, no entendimento de Porto Alegre da necessidade de procurar a
documentação pertencente às ordens e irmandades religiosas e mesclar os dados com a
tradição oral. O passado, então, consistia em um emaranhado de informações que o
historiador deveria organizar em uma narrativa coerente.
Muitos autores seguiram o caminho aberto por Manoel de Araujo Porto Alegre,
repetindo a predominância do teor biográfico introduzido pelo mesmo. Moreira de Azevedo,
na volumosa obra O Rio de Janeiro (AZEVEDO, 1969), dedicou algumas páginas aos
principais pintores, acrescentando, em vários casos, detalhes não observados pelo primeiro.
Ainda no século XIX, Antonio da Cunha Barbosa, no artigo Aspecto da arte brasileira
colonial (BARBOSA, 1898), repetiu a fórmula descritiva da vida dos artistas, consagrando o
modelo de historiografia que avançaria ao longo do século seguinte. Das primeiras décadas
dos novecentos, destacamos o trabalho de Argeu Guimarães, intitulado História das artes
plásticas no Brasil (GUIMARÃES, 1920), e o de Ernesto da Cunha de Araújo Viana,
chamado Das artes plásticas no Brasil em geral e na cidade do Rio de Janeiro em particular
(VIANA, 1916), ambos herdeiros dos escritos de Porto Alegre.
A valorização da biografia enquadrava-se no projeto de construção da brasilidade
orquestrado ao longo da segunda metade dos oitocentos, com o claro objetivo de fincar o
jovem e independente país em uma base memorial sustentável. Esta base seria o passado,
evocado não por suas raízes lusitanas, mas realçados por ações edificantes dos homens da
terra. As palavras de Porto Alegre são reveladoras neste sentido, quando, por exemplo, nos
diz que:
A Colônia, o Reino e o Império formam três divisões salientes de nossas fases
progressivas, é do seio da primeira, Senhores, que venho arrancar do
esquecimento alguns nomes ilustres nas artes, nomes de artistas, que honram a
terra em que nasceram, e que fundaram a primitiva Escola Fluminense, que de
certo merece uma menção honrosa em nossos anais, não somente por serem os
primeiros nesta terra, como também pela valentia de suas obras. (PORTO
ALEGRE, 1841, p. 452)
18
O tratamento quase heroico dispensado a estes profissionais, que honram a terra que
nasceram, floresce em narrativa nitidamente romântica. Porto Alegre chegou a desconsiderar
um documento com o intuito de favorecer o pintor fluminense José de Oliveira Rosa pelo fato
de ter sido o português Caetano da Costa Coelho o artista citado no contrato. Isto porque
desejava, a partir de informações que julgava suficientes, deslocar a autoria para um artista
nascido no Brasil. Trata-se da dúvida sobre a autoria do único exemplar de forro em
perspectiva sobrevivente no Rio de Janeiro, localizado na Igreja da Venerável Ordem Terceira
de São Francisco da Penitência. No texto, Porto Alegre descreve a sua curiosa conclusão,
conforme a seguinte passagem:
Uma escritura de contrato entre a Confraria e Caetano da Costa Coelho, em
que a Ordem se obriga a pagar-lhe 6:100$000 pela pintura do teto e dourado
da igreja, podia excitar grandes dúvidas sobre o ser ou não de José de Oliveira
aquela obra: a tradição constante das testemunhas oculares e dos discípulos
que sobreviveram a este mestre desmentem o documento. (PORTO ALEGRE,
op.cit., p. 454)
Não duvidamos da participação de José de Oliveira Rosa na feitura do forro, pois o
próprio documento cita a permissão ao contratado de levar para o canteiro de obra todos os
oficiais necessários3. Um empreendimento de tamanho porte, em ambiente ainda precário para
a produção artística, exigiria quantidade razoável de profissionais sob a orientação de um
mestre. Assim, as testemunhas oculares de Porto Alegre poderiam ter realmente visto o pintor
fluminense em ação, o que não significa que ele estivesse na posição principal durante a
condução da obra.
Visivelmente hostil ao passado português, mas sem o tom enaltecedor em relação aos
artistas fluminenses, A arte brasileira, de Gozaga-Duque, aparece como um notável ensaio
crítico, diferente dos autores supracitados (GONZAGA-DUQUE, 1995). Escrito em 1888, o
texto não apenas situa o profissional no seu espaço, mas também desenvolve análise sobre a
3 Arquivo da Venerável Ordem Terceira da Penitência. Livro 2
o de Escrituras, 1725 a 1746. Ano 1732.
19
técnica, com raros elogios a algum pintor ou painel. Logo no início, ele deixa alguns indícios
do que o leitor encontrará na parte dedicada à época colonial, como observamos a seguir:
O gosto do povo não fora alentado e cultivado pela magnificência dos
trabalhos arquitetônicos, pelo desenvolvimento da arte torêutica, pelo
aperfeiçoamento da ourivesaria e da arte de lavrar, proibidas na colônia por
carta régia de 30 de agosto de 1766. A igreja dos jesuítas é uma flagrante
prova do mau gosto e da falta de inteligência que presidiram a formação das
suas obras. Os mosteiros e os conventos foram edificados durante o domínio
do estilo barroco, essa brutalidade inventada pelos fundadores da Inquisição.
Nem palácios, nem templos suntuosos possuía a colônia. Tudo era acanhado
diante dessa natureza. Onde inspirar-se? (...). (GONZAGA-DUQUE, 1995,
p.74)
Mais adiante, complementa:
Diante, pois, desses barracões acachapados, desses mosteiros frios, acanhados,
inúteis; diante dessas casas mal construídas, no meio dessa existência sem
horizonte, dessa vida sem aspirações, como formar-se uma arte superior?
Impossível. A manifestação artística deveria forçosamente participar dessas
influências, partindo do convento e amoldando-se ao convento. (GONZAGA-
DUQUE, op. cit., p. 74)
Os pontos negativos são exageros esperados de quem participava do círculo
acadêmico de fim de século. Como poderia Gonzaga-Duque, acostumado a analisar as obras
resultantes de anos de intensa formação expostas nos Salões, enxergar qualidade em trabalhos
barrocos executados por artistas considerados por ele como autodidatas? O mérito deste
ensaio, no entanto, reside na observância das características das obras, somando à biografia a
atenção dispensada ao objeto.
O interesse pela arte colonial ganhou novo impulso na década de 1940, sob a
influência do recém-criado Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Hannah
Levy e Nair Batista foram as pesquisadoras diretamente ligadas à pintura, trazendo, pela
primeira vez no campo das discussões, a concepção formalista de análise. Os artigos Modelos
europeus na pintura colonial (LEVY, 1944a) e Retratos coloniais (LEVY, 1944b), ambos de
20
Hannah Levy, buscaram traçar as tipologias através da identificação das fontes que serviram
aos artistas para a cópia. A autora chegou a publicar o pequeno ensaio Três teorias sobre o
barroco (LEVY, 1944c) como um suporte teórico para as suas abordagens. Vale mencionar
que os estudos sobre o Maneirismo e o Rococó estavam começando a despontar nos espaços
acadêmicos europeus, ficando o Brasil com entendimento sobre a arte colonial restrita a um
período sob a expressão da estética barroca.
Do IHGB, dois importantes contributos foram lançados em seus periódicos: a
minuciosa pesquisa documental de Francisco Marques dos Santos, intitulada Os artistas do
Rio de Janeiro colonial (SANTOS, 1942), e a análise de Adolfo Morales de los Rios Filho
sobre os sistemas de aprendizado, chamada O ensino artístico: subsídios para a sua história,
um capítulo: 1816-1889 (MORALES DE LOS RIOS FILHO, 1942). Ambos são da década de
1940, evidenciando o renovado olhar para questões da arte colonial.
Pela primeira vez, houve uma investigação sobre o processo de ensino. Mesmo que a
parte referente às oficinas setecentistas apareça como uma breve menção, percebemos a sua
presença ali como forma de se criar uma sequência evolutiva, mas com o cuidado de deixar
claro que este modelo continuou ativo ao longo do século XIX. Morales de los Rios Filho cita
o caso de Raimundo da Costa e Silva, pintor de origem colonial que teria continuado com o
mesmo sistema de aulas de oficina até a década de 1850 (MORALES DE LOS RIOS FILHO,
op. cit. p. 262).
Após o silêncio de quase quarenta anos, alguns artigos esporádicos resgataram
assuntos referentes ao colonial a partir dos anos oitenta. Sua abordagem, entretanto, seria a de
reedição de obras já escritas no passado. As biografias ressurgiram como informativos sobre
dados gerais da vida do pintor seguidos de relações de obras atribuídas a ele. As poucas
21
análises enfocavam as descrições formalistas, encaixando esta ou aquela peça no domínio da
estética barroca ou rococó.
Creditamos aos colóquios luso-brasileiros4, organizados pelas instituições de ensino
superior, a penetração mais sistemática de abordagens de maior abrangência, somando à linha
formalista as discussões sobre iconografia e sociologia. As parcerias acadêmicas com
estudiosos portugueses, habituados com a interdisciplinaridade em suas pesquisas, têm
contribuído para a percepção dos vários fatores que envolvem o entendimento sobre o objeto
artístico, sobretudo em relação àquele oriundo de um passado distante. Fechado em si mesmo,
como preconiza o modelo de descrição de estilos ou somente de conteúdos, o objeto perde o
seu contexto gerador em discurso isolado e limitante.
Sobre a pintura colonial em particular, nos faltam estudos aprofundados referentes ao
estatuto social do artista e as características dos encomendantes, assim como as relações de
consumo. Acreditamos ser este o ponto nodal para a investigação de como os estilos se
acomodaram em um ambiente tão acanhado, sufocado pelo isolamento imposto pela política
mercantilista. Os temas também funcionam como indicadores de gostos e de mudanças de
rumo e, assim como os estilos, apontariam para perfis diferenciados de clientes. Eles
deveriam movimentar, como supostos protagonistas, boa parte do mecanismo de produção,
em uma época dependente de sua vontade para que houvesse trabalho. Sobre a valorização do
tema, seguimos os passos de Erwin Panofsky, que, ao explicar o sentido do significado
intrínseco ou conteúdo, nos diz que:
Percebemo-lo analisando os pressupostos que revelam a atitude básica de uma
nação, uma época, uma classe, uma crença religiosa ou filosófica – assumidos
inconscientemente por um indivíduo e condensados numa obra.
Desnecessário se torna dizer que essas normas de conduta se exprimem e
portanto se esclarecem pelos métodos de composição e pelo significado
iconográfico. (PANOFSKY, 1982, p. 22)
4 O Colóquio Luso-Brasileiro de História da Arte constitui um exemplo da iniciativa do Comitê Brasileiro de
História da Arte e envolve a parceria entre algumas universidades, como a UFRJ, UERJ e PUC Rio.
22
Panofsky somou à análise da forma, a qual chamou de motivo, o estudo da iconografia,
criando uma metodologia possível apenas quando a obra é pensada em seu contexto gerador.
Neste sentido, a identificação de todos aqueles envolvidos na produção dos bens artísticos –
artista, encomendante, espectador –, e a investigação sobre o tempo e o local social de
destinação da obra são ações imprescindíveis ao estudioso da arte. Para Panofsky não basta
apenas a consulta às fontes literárias e documentais, mas a reunião de todos os elementos
capazes de conferir sentido ao objeto em uma leitura simbólica coerente.
Este trabalho, seguindo uma abordagem baseada na contextualização, se refere ao
estudo das relações entre as oficinas e os seus clientes e as funções dos objetos no período
compreendido entre a transferência da capital para o Rio de Janeiro, em 1763, ao retorno de
D. João VI a Portugal, em 18215. A escolha do período seguiu as seguintes premissas: 1) esta
fase corresponde ao florescimento e desenvolvimento da chamada Escola Fluminense de
Pintura em sua maior expressividade; 2) a cidade como capital permitiu a composição de uma
dinâmica econômica que acreditamos ser elemento fundamental para a atividade artística,
além dela própria, enquanto centro administrativo da Colônia, configurar-se como espaço
simbólico privilegiado; 3) a abertura da Aula Régia de Desenho e Figura, em 1800, seria um
sintoma de mudanças mais aparente; 4) o impacto da Corte instalada no Rio de Janeiro
poderia conferir indícios de uma nova consciência sobre o ofício de pintor; 5) a chegada dos
artistas franceses, em 1816, trouxe outra realidade referente ao estatuto social do artista e,
possivelmente, teria influenciado os artistas locais na percepção de si mesmos.
Os pontos referidos acima esbarram em uma questão-chave: como definir o perfil do
encomendante no complexo sistema colonial de produções de bens simbólicos? Sobre esta
pergunta básica, outras aparecem correlacionadas, pois a predominância de um determinado
5 A despeito da importância das datas em questão, o recorte selecionado não funcionará como um limite rígido,
pois há a necessidade constante de extrapolar as datas para a menção de fatos importantes e, obviamente, para a
construção mais coerente dos fatos.
23
setor social sobre o outro poderia, como aconteceu em várias capitais europeias, colaborar
para a alteração de gosto do momento. Assim foi com a associação entre a burguesia e o
sucesso do Neoclassicismo no final do Setecentos em Roma e em Paris ou, quase um século
antes, da aristocracia parisiense com o florescimento do Rococó. No caso colonial, uma classe
específica teria condições suficientes para deslocar o gosto dominante, em ambiente carente
de discussões estéticas? Quais os interesses específicos destes clientes em uma época sem
colecionadores e sem mercado significativo de arte? Quais as funções da pintura na relação
entre encomenda e mão de obra?
Partimos da hipótese de que a burguesia comercial, classe em lento crescimento desde
meados do século XVIII, seria uma das protagonistas das mudanças ocorridas no período em
questão. Esbarramos, aqui, com as várias colocações de historiadores de que a economia
colonial impediria o florescimento de negócios mais elaborados. No entanto, nos escoramos
nos indícios de que o mercado interno tenha fomentado lucros interessantes para a parte mais
abastada desta classe. O historiador Afonso Carlos Marques dos Santos, na obra A invenção
do Brasil: ensaios de história e cultura, destaca o seguinte:
Porém, se nos dois primeiros séculos da colonização a dimensão rural da
propriedade propicia certa autonomia e ilimitado prestígio aos senhores de
terras, o século XVIII verá ocorrer uma mudança em relação ao prestígio
destes aristocratas – em especial, na cidade que a partir de 1763 torna-se a
capital da Colônia e sede do vice-reino, São Sebastião do Rio de Janeiro. O
marquês do Lavradio (vice-rei de 1769 a 1779) em seu relatório de 19 de
junho de 1779, apresentado ao seu sucessor Luís de Vasconcelos e Sousa, já
indicava que: Escolhiam-se para vereadores os homens que tinham mais
alguma distinção no seu nascimento, e para procuradores alguns homens que
tivessem sido comerciantes e a quem o menos bom sucesso de sua ocupação
os tinha reduzido a curtas possibilidades. (SANTOS, 2007, p. 25)
O autor segue com sua análise na seguinte afirmação:
Esse crescimento da importância do comerciante, que aparece como o colono
dos novos tempos, com quem a administração poderia então contar, verifica-se
no Rio de Janeiro em particular, desde que a cidade se transforma em centro
de confluência comercial e rota obrigatória de acesso às Minas Gerais. A
24
fisionomia da Colônia muda em muitos aspectos. A Metrópole fomenta novas
atividades, ao mesmo tempo em que estabelece maior rigor fiscal e maior
número de proibições. (SANTOS, op. cit., p. 25)
A historiografia moderna vem questionando a tradicional abordagem responsável por
diminuir o valor do desenvolvimento econômico na Colônia e, portanto, a ausência de uma
burguesia com força suficiente para crescer. O motivo para tal conclusão encontra-se na
lógica do regime escravista, essencialmente contrário ao progresso tecnológico e ao
incremento das relações de negócios. Paradoxalmente, seria a própria escravidão que
colaboraria para a abertura de brechas necessárias ao estabelecimento, sobretudo no Rio de
Janeiro, de uma forma mais complexa e heterogênica de movimentação econômica. De um
lado, o modelo de trabalho compulsório seria o meio mais corrente de acumulação de capital;
do outro, a intensa atividade portuária da cidade proporcionaria condições favoráveis à
composição de um mercado local dinâmico e em vias de prosperar.
Objetivamos, portanto, investigar o perfil do cliente de pintura nesta época de
profundas mudanças e até que ponto a participação da burguesia, como parcela relativamente
nova no mundo colonial, colaborou para as transformações artísticas verificadas no período.
O fato de concordarmos com a corrente histórica que defende a existência de uma burguesia
comercial influente desde o início do século XVIII não significa dizer que esta classe seja
consumidora de arte. Necessitamos de informações acerca da natureza e dos costumes desta
gente de negócios e se houve algum interesse por objetos artísticos.
Inicialmente, buscaremos na história da pintura portuguesa as pistas para as análises
preliminares a respeito dos modelos e filiações estilísticas. Afinal, a Colônia era uma extensão
de sua Metrópole, consumidora daquilo que era passado exclusivamente por ela. As gravuras
de tradução desembarcaram no Rio de Janeiro como fontes indispensáveis à produção local.
Estas referências imagéticas revelariam o gosto então em voga nas principais oficinas
25
portuguesas, apresentando as escolas europeias que serviram de base para a formação do
estilo daquele país.
Outra questão concernente ao mundo lusitano interessa-nos diretamente, pois versa
sobre o desenvolvimento da burguesia comercial a partir do ministério do Marquês de
Pombal. Os ventos da Ilustração penetraram em Portugal como variante adaptada ao zelo pela
manutenção do poder absolutista. O comportamento desta classe enriquecida em relação às
artes em geral poderia nos fornecer pistas sobre a nossa própria condição colonial. Neste
ponto, as obras A época pombalina (FALCON, 2002a) e Iluminismo (FALCON, 2009b) do
historiador Francisco José Calazans Falcon são providenciais para a discussão, pois o autor
defende que, paralelamente ao Iluminismo de teor mais radical e revolucionário de origem
francesa, houve uma série de versões concordantes com as realidades particulares de cada
país.
No campo das artes, buscaremos o embasamento teórico em autores visivelmente
filiados à corrente sociológica, pois pontuaremos nossa pesquisa na abordagem de âmbito
civilizacional. Nesta perspectiva, a arte é verificada em toda a sua extensão como objeto ao
mesmo tempo receptor de condições externas a ela e agente direta nos processos de
transformações sociais nos quais está inserida. Aqui, as reflexões de José-Augusto França,
presentes principalmente na obra A arte em Portugal no século XIX (FRANÇA, 1990, vol. 1),
são fundamentais pela sua proposta de tratar a arte em sua forma globalizante. Muito
influenciado pelo pensamento de Pierre Francastel, o qual escreveu o prefácio da sua tese de
doutoramento quando estudou na Universidade de Paris, José-Augusto França inaugurou em
Portugal esta nova possibilidade de discorrer sobre o objeto artístico sob o ponto de vista
plural.
26
Outro representante desta linha sociológica e especialista nos assuntos sobre o Barroco
é o historiador Vítor Serrão. Os títulos O Maneirismo e o estatuto social dos pintores
portugueses (SERRÃO, 1983a) e Estudos de pintura maneirista e barroca (SERRÃO, 1989b)
apresentam minucioso estudo documental sobre as relações de trabalho desde a época
renascentista. Vítor Serrão desenvolve seu pensamento considerando a História da Arte como
disciplina que desvenda a ideologia imagética por traz de cada obra. Assim, seu método
engloba tudo o que possa dialogar com o objeto, a fim de compor um discurso que extrapola a
simples compreensão das sucessões de estilos. Ele nos diz que:
O historiador da arte terá de buscar, assente em dados devidamente tratados, o
ensaio das grandes linhas geradoras das situações artísticas, num espaço
geográfico e num tempo histórico precisos, de todas as cambiantes
sociológicas que geraram e produziram tais situações. (SERRÃO, op. cit., p.
281)
Serrão entende ideologia imagética como a produção simbólica de objetos, estes
condizentes com as classes sociais referenciais de tempo e espaço específicos. A proliferação
de um determinado tema ou estilo, neste sentido, está diretamente associada a todos os fatores
circundantes ao fazer artístico, como a economia, a política e a religião, entre outros. Integrar
estes elementos à análise do objeto significa atribuir à arte o seu real valor na composição da
sociedade, como parte determinante e determinada, capaz de influenciar e de ser influenciada
no complexo jogo de relações entre os setores.
No mesmo sentido, as referências a Pierre Bourdieu dialogam com os escritos dos
autores acima mencionados, pois o sociólogo estuda justamente o período em que a arte inicia
o seu processo de autonomia em relação aos outros campos sociais. Ele nos diz que:
Destarte, o processo de autonomização da produção intelectual e artística é
correlato à constituição de uma categoria socialmente distinta de artistas ou de
intelectuais profissionais, cada vez mais inclinados a levar em conta
exclusivamente as regras firmadas pela tradição propriamente intelectual ou
artística herdada de seus predecessores, e que lhes fornece um ponto de
partida ou um ponto de ruptura, e cada vez mais propensos a liberar sua
27
produção e seus produtos de toda e qualquer dependência social, seja das
censuras morais e programas estéticos de uma Igreja empenhada em
proselitismo, seja dos controles acadêmicos e das encomendas de um poder
político propenso a tomar a arte como um instrumento de propaganda.
(BOURDIEU, 2007, p. 101)
Certamente Bourdieu, nesta passagem, acusa o desenvolvimento do artista como um
ser consciente da importância de sua produção em capitais onde as divisões de classes nos
moldes capitalistas se firmaram, sobretudo nos centros de intenso crescimento industrial. No
entanto, ele revela o caminho de transição que aparece aos poucos impregnando o pensamento
dos pintores ainda no século XVIII nos domínios portugueses e que influencia diretamente na
relação entre o artista e o encomendante. Os tratados de artistas lusitanos de fins dos
Setecentos confirmam as transformações dos sistemas de produção simbólica em rumo ao
estabelecimento de um campo específico e com preceitos próprios.
Na mesma linha interdisciplinar dos autores citados, buscamos também em Giulio
Carlo Argan contributos para pensar a arte como agente fundamental de decodificação do
passado. Na sua obra Imagem e persuasão: ensaios sobre o barroco (ARGAN, 2004), Argan
permanece fiel ao seu conjunto de escritos que valoriza a cidade como o lugar privilegiado de
desenvolvimento artístico. Considera o Barroco como estilo das capitais e realiza descrição
aprofundada dos fenômenos urbanos característicos de uma política persuasiva e imagética.
Este comportamento seria comum ao Rio de Janeiro durante o período que pesquisamos.
De formação inicial ligada ao círculo de Panofsky, Argan traz em seu discurso peso
considerável ao fator simbólico, descrevendo a iconografia inteiramente filiada ao seu
momento histórico. Não submete o objeto à descrição puramente decodificadora de atributos e
personagens, mas o inclui, considerando as suas mensagens, no contexto social que o gerou.
O seu método de análise torna-se essencial para pensarmos a realidade colonial, pois a
28
dependência da encomenda é reveladora de desejos por determinados símbolos, quase sempre
denunciando funções específicas.
A obra de Argan oferece interessante diálogo com o trabalho de outro historiador, o
espanhol José Antonio Maravall. Também impregnado de reflexões sociológicas, a obra A
cultura do Barroco (MARAVALL, 1997) confere ao período uma dimensão maior que as
definições estéticas de estilo. Maravall considera o Barroco como um conceito de época,
capaz de abarcar todas as esferas do fazer humano em características perceptíveis de um
momento histórico. Deste modo, a arte se enquadraria em uma junção de atividades culturais
comuns ao século XVII, estendíveis ao século seguinte no caso luso-brasileiro. O valor da
conferência de Maravall consiste na composição da cultura barroca a partir de quatro pilares
estruturantes, ou seja, dela ser ao mesmo tempo dirigida, massiva, urbana e conservadora.
Maravall tece uma narrativa baseada na formulação da cultura barroca como aquela
pontuada pelo uso da persuasão. Este instrumento, essencialmente propagandístico, daria aos
poderes civil e religioso os elementos necessários para atrair a massa e dirigi-la conforme os
desejos conservadores de manutenção das antigas estruturas de estratificação social. Ainda
sob os efeitos das profundas crises políticas, religiosas e econômicas do século XVI, a época
barroca assistiria aos vários experimentos voltados para amenizar a crise e reorganizar a
sociedade em um formato governável. Como Argan, Maravall credita às capitais um papel
preponderante na circulação de ideias e costumes concordantes com o poder vigente.
As discussões sobre o Barroco, na sua dimensão social, serão essenciais para o
desenvolvimento do capítulo correspondente à temática religiosa. Após o levantamento de
informações necessárias ao entendimento da produção portuguesa setecentista, procuramos
dividir a colonial a partir de temas verificáveis com maior frequência. Uma observação
preliminar ao conjunto de obras sobreviventes revela, de imediato, a predominância de peças
29
destinadas ao culto religioso cristão. Desde o início da colonização, a urgência em fincar no
solo do Novo Mundo as orientações contrarreformistas encerradas no Concílio de Trento
fomentou a construção de conventos e mosteiros, recheados de informações visuais
direcionadas à manutenção da fé católica.
Assim, no caminho de identificação dos encomendantes, optamos por investigar os
casos a partir de grupos temáticos, pois notamos que as funções dos painéis poderiam indicar
também desejos específicos de cada parcela consumidora. Seguindo uma ordem por grau de
importância, iniciaremos os estudos com a iconografia cristã, parte majoritária de toda a
produção colonial. Em seguida, pesquisaremos a ascensão do retrato como gênero segundo
das preferências locais. Aqui, analisaremos a questão sobre o despertar da consciência do
indivíduo em um mundo pautado nas relações coletivas, e qual seria a percepção de si mesmo
quando o cliente solicita a sua própria efígie. Finalmente, tendo a Aula Régia de Desenho e
Figura como suporte, veremos a junção das temáticas acima sob os direcionamentos de um
novo sistema de ensino. Além disso, o despontar das cenas alegóricas e mitológicas
apontariam para um novo gosto, o qual aparece absorvido na formulação de todo o aparato
associado à Família Real.
No interior de cada abordagem, verificaremos as transformações do perfil dos clientes,
pois acreditamos que cada fase histórica poderia interferir no complexo jogo simbólico ali
engendrado. Crer em uma suposta uniformidade, que a divisão por temas parece sugerir, seria
negar a dinâmica caracterizadora da própria cultura. Portanto, consideraremos o objeto
artístico como portador de funções múltiplas, mesmo que se trate da representação de um
santo católico. Cada período traz consigo novos comportamentos diante de suas linguagens
simbólicas, fornecendo leituras diferenciadas conforme se apresentam todos os aspectos
componentes da sociedade. Daí a importância em seguir os passos dos autores acima citados,
filiados ao modelo de História da Arte fundamentado na pesquisa sociológica.
30
Acrescentando ao corpo teórico de nossa pesquisa, os trabalhos de Pierre e Galienne
Francastel e de Enrico Castelnuovo, respectivamente intitulados de El retrato
(FRANCASTEL, 1995) e Retrato e sociedade na arte italiana (CASTELNUOVO, 2006),
oferecem questões mais específicas ao estudo do retrato colonial. O pensamento dos autores é
compatível com as obras gerais de referência, contribuindo para a composição de um discurso
harmônico e objetivo. Aqui, a natureza do gênero nos convida à reflexão sobre o estatuto de
quem busca sua própria imagem, a razão desta busca e o valor simbólico do objeto para o
outro que o vê. Importante mencionar também outro fator relevante: a consciência de quem
produz uma peça dependente, por definição, da presença física do modelo a ser representado.
Qual seria a relação entre o pintor e o cliente retratado, em um ambiente sem a tradição do
modelo vivo?
O capítulo final discutirá a função da Aula Régia de Desenho e Figura no seio de uma
cultura de formação condicionada à cópia de gravuras europeias. O valor do ensino do
desenho como base formativa traria mudanças muito maiores do que o mero resultado
qualitativo. Qual seria o interesse da elite colonial em manter uma instituição desta natureza?
Para entendermos a essência das aulas régias no bojo das transformações orquestradas pela
atuação do Marquês de Pombal, identificaremos na obra de Nikolaus Pevsner, Academias de
arte: passado e presente (PEVSNER, 2005), elementos denunciadores das demandas sociais
do período em questão. Pevsner compreende as transformações nas organizações profissionais
diretamente concordantes com as alterações gerais de cada época, mantendo sua análise
balizada nos assuntos sociais.
A visível orientação neoclássica de Manoel Dias de Oliveira, professor nomeado para
encabeçar a Aula Régia de Desenho e Figura, faria desta instituição um polo difusor do estilo
no Rio de Janeiro. Conforme o estudo de Albert Boime, intitulado Historia social del arte
moderno (BOIME, 1994, vol. 1), o retorno aos valores da Antiguidade greco-romana estaria
31
vinculado à crescente interferência da burguesia no mercado de arte setecentista. O autor
procura demonstrar que esta classe conscientemente se afastara da imagem então em voga da
aristocracia régia, afeita ao gosto rococó. Este afastamento voluntário estaria na base da
valorização do classicismo como a composição de uma identidade pautada nos preceitos de
moralidade, dignidade e ética, algo que a burguesia desejava propagar como suas qualidades.
Com base na teoria de Boime, estudaremos o sentido da Aula Régia de Desenho e Figura no
contexto colonial e, logicamente, se a burguesia local se apropriou, como na Europa, da
estética neoclássica ensinada por Manoel Dias de Oliveira.
Com o objetivo de responder a tantas questões, ou pelo menos apontar caminhos para
novas pesquisas, fomentaremos o diálogo entre os autores e as publicações específicas sobre a
história do Brasil em geral, e do Rio de Janeiro em particular. A escassez documental típica
do período colonial, seja pela sua má conservação ou por perdas acidentais ao longo da
vivência nem sempre sadia dos arquivos da cidade, é compensada, em parte, pela seleção de
obras representativas dos artistas que serão tratados nas discussões. Consideramos a obra o
monumento vivo, o núcleo fundamental de onde partem todas as indagações e todos os
desdobramentos teóricos.
No intuito de identificação dos clientes e de sua possível participação na introdução e
consolidação de estilos e temas na pintura colonial, partiremos sempre da contextualização da
obra no espaço e no tempo. As análises formais e iconográficas estarão integradas a uma rede
de informações oriundas de disciplinas diversas, aquelas que mais costumam dialogar com a
História da Arte. Assim, importa menos saber se uma pintura religiosa é barroca ou rococó
por este ou aquele elemento, mas como o estilo, dentro de um todo comunicante, se impõe
como peça constituinte do bem social e cultural.
32
Julgamos relevante apresentar a Escola Fluminense de Pintura sob o ângulo da
sociologia da arte, vertente que procura se apropriar das várias ciências para o estudo do
homem e de suas produções simbólicas. O conhecimento integral, dentro da perspectiva do
pensamento complexo que filósofos como Edgar Morin defendem (MORIN, 2007), questiona
a fragmentação do saber quando encerradas em suas zonas particulares. Fechadas em si
mesmas, as disciplinas oferecem discursos de mão única, expositivos em sua essência e pouco
afeitos ao diálogo. Quando, por outro lado, concebemos o saber como interdisciplinar, o
objeto de pesquisa se abre ao mundo com leituras múltiplas e intercomunicantes.
Sob esta perspectiva interdisciplinar, sentimos uma grande lacuna quando o assunto
refere-se à Escola Fluminense de Pintura. Das primeiras biografias dos pintores aos estudos
formalistas, nos faltam ainda dados essenciais para a organização do período colonial em sua
dimensão maior, na qual incluiria a arte como parte integrante do todo social. Sabemos que o
peso da Academia Imperial das Belas-Artes sobre os olhares dos estudiosos em muito
contribuiu para a superficialidade dos trabalhos até agora publicados sobre a pintura colonial.
O tom preconceituoso de alguns escritos do passado colaborou também para reduzir a
importância deste patrimônio do passado que, como reconheceu Manoel de Araujo Porto
Alegre, constitui um bem memorial indispensável à composição da identidade nacional.
33
1 O PINTOR PORTUGUÊS NO SÉCULO XVIII
Os antigos estudos sobre a pintura portuguesa do século XVIII foram tecidos como
discursos comparadores entre os grandes centros de produção, como Paris e Roma, o que
colaborou para situar as obras do período em patamar de inferioridade. Os argumentos básicos
orbitavam em torno da ausência de uma tradição acadêmica capaz de fomentar um ambiente
propício para o surgimento de grandes nomes nacionais. A dependência inevitável de
estrangeiros contratados denunciava a situação de submissão a modelos importados, criando
uma fragilidade em relação à formação de uma identidade artística6.
As últimas décadas do século XX viram surgir uma abordagem diferenciada, pautada
na consideração sobre as particularidades locais, o que trouxe à tona reflexões sobre os
valores específicos de cada sociedade. Portugal reaparece não mais como um apêndice da
Europa, mas se impõe como centro capaz de absorver os conteúdos das diferentes áreas do
conhecimento, adaptando-os às realidades locais. Estudos como os realizados por José-
Augusto França e Vítor Serrão7 contribuíram para a revalorização do fazer artístico português,
injetando novos ânimos às pesquisas e discussões sobre o assunto. Sobre a metodologia, Vítor
Serrão nos diz que:
6 Destacamos aqui a obra referencial de Reynaldo dos Santos, intitulada “Oito séculos de arte portuguesa,
história e espírito”. 7 A contribuição de Vitor Serrão encontra-se nos escritos sobre o período compreendido entre o Renascimento e
o Barroco, enquanto José-Augusto França ocupa-se, preferencialmente, do século XVIII em diante. Os dois
autores valorizam a inserção do fazer artístico nas discussões sobre a sociedade como um todo, considerando a
arte como agente ativo na dinâmica social.
34
O historiador da arte, no âmbito da estrutura preconizada, tem
necessariamente de alinhar por uma metodologia científica de âmbito
interdisciplinar e polivalente, que passe pela utilização do documento escrito
(pesquisa de arquivo e análise heurística), pela análise iconológica, formal e
estética do documento plástico (leitura artística propriamente dita) e pelo
enquadramento histórico, cultural e sociológico da obra analisada no seu
espaço e tempo específicos (abordagem sociológica). Temos assim, em termos
muito genéricos, três fases distintas por que se deve nortear um racional
método de pesquisa em História da Arte, tarefa fecunda, ainda que árdua e
aturada, a exigir esforços polivalentes. (SERRÃO, 1989, p. 281)
Pensar o trabalho do historiador da arte como um fazer interdisciplinar significa
enxergar os vetores que ultrapassam a os limites das análises formal e iconográfica. Fechada
em si mesma, a disciplina corre o risco do reducionismo gerador de comparações puramente
formais. Entender os motivos, as funções dos objetos, a relação entre o cliente e o pintor, a
recepção dos gostos estrangeiros e sua adaptação local, além das questões relacionadas à
economia, política e cultura em geral, abre possibilidades enriquecedoras e esclarecedoras
sobre variadas lacunas. Apontar as diferenças entre escolas no sentido de elencar aspectos de
inferioridade ou superioridade importa menos do que investigar as razões de determinadas
escolhas e soluções para a execução de uma obra.
José-Augusto França não poupa críticas duras em relação à situação de Portugal no
século XVIII, mas sua análise permanece integrada ao todo social. Considera a realidade
portuguesa pouco afeita à arte da pintura, algo que mudaria lentamente a partir da década final
dos Setecentos (FRANÇA, 1999, vol. 1, P. 200). Não encontramos em seu discurso a
referência de modelos estrangeiros para justificar o que chama de mecenas de gosto
insuficiente, construções medíocres, colecções sem propósito, artes menores desfazendo-se na
inércia da Nação vencida pelo tempo e por si própria (...) (FRANÇA, op. cit., p. 198).
Articula seu pensamento no interior da estrutura social na qual aparece acumulada uma série
de vícios desde a época da Restauração, ainda sob os traumas da União Ibérica. Quando
35
menciona a arte internacional, o faz para localizar as filiações de gosto e forma, estas
devidamente contextualizadas.
À luz dos movimentos interdisciplinares, a História da Arte portuguesa apresentada
pelos autores citados favorece a melhor compreensão do fenômeno colonial, sobretudo do
período imediatamente anterior ao desembarque da Família Real no Rio de Janeiro. Se houve
preconceito no passado referente aos pintores metropolitanos, os nativos da Colônia
receberam uma quota ligeiramente maior de escritos com teor depreciativo. O fato não
surpreende, pois a situação no Brasil abarca elementos peculiares agravados pelo isolamento
imposto pela política mercantilista. Mesmo assim, transformações relevantes ocorreram como
a abertura da Aula Régia de Desenho e Figura, em 1800.
Consideramos essencial buscarmos no espaço europeu as pistas para a nossa
indagação primeira, ou seja, a elucidação sobre as forças que determinaram as transformações
na pintura colonial fluminense na virada do século XVIII para o XIX. Não significa apenas
relacionar mudanças estilísticas, em muitos casos claramente visíveis. Em se tratando de
Neoclassicismo e em tudo o que implica a retomada dos valores da Antiguidade e do
Renascimento, própria do movimento, como explicá-la no ambiente pouco propício ao
desenvolvimento das reais funções atribuídas a esta nova direção? Ética e moral entrariam na
consciência de artistas como Manoel Dias de Oliveira e José Leandro de Carvalho? Quais
intenções reais e quais personagens estiveram por trás das mudanças de gosto e de forma de
ensinar o ofício da pintura?
O primeiro ponto a ser discutido no caso português vem da sua filiação, na era
pombalina, aos ideais da Ilustração em voga nos principais centros europeus. Muito se tem
falado sobre o atraso cultural do país quando comparado ao fervilhante cenário das potências
econômicas da época, como Inglaterra e França. Portugal estaria mergulhado em uma
36
desolada situação de estagnação, governado por monarquias absolutistas e supersticiosas,
estacionadas nos modelos seiscentistas. Mais uma vez, a antiga historiografia modelou-se na
comparação entre sociedades distintas, com valores particulares e que não são totalmente
cambiáveis.
O problema inicial parece estar na percepção ainda presente do Iluminismo como uma
corrente filosófica uniforme e homogênea, a qual cobriria toda a Europa com seu manto
unificador. Sob esta perspectiva, as reformas pombalinas seriam apenas um pálido reflexo do
que estaria em marcha em outros locais com visões e ações mais libertárias. Se pensarmos o
Iluminismo, por outro lado, como um movimento heterogêneo e dependente das
peculiaridades de cada região que o absorve, Portugal passa a ser visto como participante
ativo desta corrente. Jonathan I. Israel, no seu livro intitulado Iluminismo radical, estuda as
raízes ainda seiscentistas do movimento e destaca subdivisões com diretrizes muitas vezes
opostas entre si. Ele ressalta que:
Das duas alas rivais do Iluminismo europeu, a corrente principal moderada,
apoiada por numerosos governos e facções influentes das principais Igrejas,
pareceu ser, ao menos na superfície, a tendência muito mais poderosa. (...)
Esse era o Iluminismo que aspirava conquistar a ignorância e a superstição,
estabelecer a tolerância e revolucionar idéias, educação e atitudes por meio da
Filosofia, mas de forma a preservar e salvaguardar o que se julgava serem os
elementos essenciais das velhas estruturas, efetuando uma síntese viável do
velho e do novo, da razão e da fé. (ISRAEL, 2009, p. 39)
O Iluminismo chamado de radical seria o corrente na França e tornar-se-ia o
fundamento teórico da Revolução de 1789. Os questionamentos sobre a origem quase mística
da realeza e o poder eclesiástico, indubitável por sua natureza divina, pontuavam as reuniões
mais ferrenhas desde a época de Luís XIV. Daí a preocupação do Marquês de Pombal sobre
os males franceses, fruto de intensa fiscalização por parte da alfândega a respeito dos escritos
daquele país, sobretudo os de Voltaire, Jean-Jacques Rousseau e Denis Diderot. Daí também a
37
crença de que o Iluminismo, como ideologia homogênea, não se enquadraria na realidade de
Portugal do século XVIII.
A interpretação, sob a referência iluminista francesa, do racionalismo como
necessariamente anticlerical ajudou a polarizar ainda mais a ala considerada moderna da
Europa de um lado e a Península Ibérica do outro, esta última calcada no catolicismo
extremado da Companhia de Jesus. A dicotomia radical entre razão e religião não funcionava
em todas as regiões e a Itália nos serve como exemplo. Se pensarmos na pluralidade de
situações, a própria secularização pode ser vista como heterogênea, como bem diz Francisco
José Calazans Falcon na seguinte passagem:
O anticlericalismo, típico das Luzes francesas, não é a regra no restante da
Europa. O reconhecimento da diferença como raiz da autonomia do homem e
do mundo faz parte também de um processo interior à própria Igreja. Com
freqüência, a iluminação racional, longe de ser encarada como oposta à
iluminação religiosa, foi entendida como uma espécie de expansão ou
ampliação desta última. O caminho do racionalismo moderno, historicamente,
não é o da rejeição ao cristianismo, mas, muito pelo contrário, o de seu
alargamento. (FALCON, 2009, p. 34)
O mesmo autor, na obra intitulada A época pombalina, ressalta o fato de que o
discurso ilustrado penetrou em Portugal como uma releitura, sobretudo na vigência do
ministério de Pombal (FALCON, 2002, p. 197). Importante, ainda, no mesmo estudo, a
menção a antecedentes que remontam ao final do século XVII, quando críticas ao regime
monárquico já apareciam nos escritos de alguns eruditos. Mesmo a atitude antijesuítica do
marquês possui uma referência pertencente à fase joanina, como o embate entre os oratorianos
(FALCON, op. cit., p. 205) e jesuítas sobre o modelo pedagógico empregado pelos últimos.
Flávio Rey de Carvalho, na obra Um iluminismo português? (CARVALHO, 2008, p.
31), considera, na tentativa de responder a questão que dá nome ao livro, o Iluminismo como
uma rede de informações espalhadas em diferentes contextos culturais. A sua manifestação
38
seria um processo reflexivo e complexo, característico de um pensamento desenvolvido na
pluralidade. A ausência de regras prontas, por ser fruto de núcleos de discussão distintos, traz
como tópicos comuns a secularização do Estado, a racionalização e, no caso da arte, a
revalorização dos modelos classicistas.
Relevante mencionar o fortalecimento do setor comercial como uma das diretrizes
norteadoras dos planos de Pombal e este será o porta-voz de uma burguesia em plena
ascensão. Esta classe, em centros como Londres, Roma e Paris, é uma das grandes
patrocinadoras e consumidoras da arte que redescobre a estética greco-romana. Interessa-nos
investigar a atuação dos ricos comerciantes no processo de circulação da arte portuguesa e,
em que medida esta atuação penetra no ambiente colonial.
Poderíamos, então, dizer que o Iluminismo português, posto em prática nas ações
pombalinas, se apropriou de muitos aspectos interessantes ao momento e descartou aquilo que
se julgou nocivo aos valores que buscavam dar continuidade. Muitas vezes paradoxal, a época
de D. José I pode ser entendida como um período de transição, o qual se relaciona muito mais
com os futuros acontecimentos do país do que com o passado imediatamente anterior. A
época conhecida como Viradeira, do reinado de D. Maria I, apresenta mais permanências,
sobretudo no plano das reformas educacionais e econômicas, do que propriamente rupturas.
O racionalismo aparece bem acentuado nas transformações profundas realizadas na
segunda metade do século XVIII, sobretudo após o terremoto que devastou parte de Lisboa,
em 1755. A expulsão dos jesuítas, a reforma na Educação e os incrementos na área econômica
são aspectos afiliados ao pensamento iluminista, ao mesmo tempo em que a manutenção dos
privilégios da monarquia absolutista e a censura a livros considerados nefastos denunciam a
permanência de componentes tradicionais. Esta é a essência do despotismo esclarecido do
39
qual Pombal é o agente maior, ajudando a consolidar no país um modelo de Ilustração
bastante particular.
A reconstrução da área destruída de Lisboa revelou o contraste entre o gosto
arquitetônico do barroco joanino e a sobriedade e simplicidade das novas construções. O
palácio de Mafra, símbolo da opulência da primeira metade do século XVIII, cedeu lugar ao
funcionalismo sem ornamentações das décadas finais dos Setecentos. Apesar da opção pela
sobriedade estar diretamente associada a problemas econômicos e não por filiação a
determinados gostos, a grandiosidade do programa arquitetônico da época inaugurou uma fase
de transformação estética que ficaria, inicialmente, restrito à arquitetura. O que José-Augusto
França chama de estilo pombalino, este relacionado à racionalidade vista como necessária ao
processo imediato de recomposição da capital, acabaria desencadeando o desenvolvimento de
um academismo classicista o qual o Palácio Real da Ajuda foi exemplo significativo
(FRANÇA, 1990, vol. 1, p. 96)8. A arquitetura se coloca como a expressão primeira do
governo josefino, pontuando visualmente a sua diferenciação em relação ao reinado anterior.
O retrato do Marquês de Pombal, feito sob encomenda dos comerciantes Gerard
Devisme e Purry (Figura 1), destaca o programa reformista do ministro em uma sobreposição
de realizações. A paisagem de Belém ao fundo mostra as embarcações dos jesuítas deixando o
reino, enquanto outras, ancoradas no porto, reforçam a imagem da navegação como elemento
essencial à economia. O pintor francês Louis Michel van Loo, renomado retratista de corte,
enfatiza a ligação de Pombal com a ala comerciante ao colocar a maquete da estátua equestre
destinada à Praça do Comércio em uma mesa ao lado do marquês. Juntamente à peça, aparece
uma planta que traz visível o nome da mesma praça, informando sobre a atualidade daquele
projeto.
8 Importante dizer que a retomada das obras do palácio, em 1802, seguiu estritamente o modelo neoclássico já
anunciado em construções anteriores.
40
A disposição das plantas de Lisboa, espalhadas no chão e no tamborete à direita, nos
remete ao empreendimento enérgico de reconstrução da cidade, no qual Pombal foi
protagonista. A posição destas plantas contrasta com o projeto do monumento, este
cuidadosamente arrumado sobre a mesa, o que parece simbolizar o passado e o futuro. Junto
ao ministro, no lado esquerdo da composição, estão as ações a serem realizadas e é o ponto
principal de observação. Sabemos que o escultor Machado de Castro finalizou a escultura em
1775, quase dez anos após a pintura de van Loo.
Figura 1 – Louis Michel van Loo. Retrato do 1
o Marquês de Pombal, Sebastião José de Carvalho e Melo.
1766. Óleo sobre tela. 2330 x 3040. Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa.
Pombal aparece sentado, representado de corpo inteiro e a três quartos. Olha-nos com
a firmeza de um homem de ações concretas, o que a iconografia não poupa em afirmar. O
braço esquerdo aponta para os jesuítas que deixam o porto de Belém e rumam para o
Atlântico, enquanto o direito repousa sobre a planta da Praça do Comércio. A pose e a
41
organização dos atributos lembram ao espectador o principal motivo que levou Pombal a
extirpar os jesuítas do reino: a posição dos últimos contra os interesses do marquês sobre
assuntos relacionados ao comércio.
Nuvens escuras parecem acompanhar os padres da Companhia de Jesus, contraste
abrupto com a clareza do primeiro plano. Se o pintor quis realmente criar a oposição entre as
trevas do tradicionalismo jesuítico e a iluminação pombalina, ele deixa, entretanto, o Mosteiro
dos Jerônimos pontuando a paisagem, confirmando a manutenção dos valores católicos em
vigor. Aqui o novo e o antigo se misturam, criando o sabor contraditório de um período
mergulhado na complexidade.
O retrato, de grandes dimensões, foi encomendado a um pintor conhecido pela
composição dramática das cenas. A tradição barroca dos retratos de pompa está bem
representada na obra de van Loo, com elementos que denunciam a aderência a componentes
rococós, como podemos observar no mobiliário do plano principal. Se a arquitetura
experimentou primeiro a sobriedade e a economia classicistas, os pintores esperariam a
geração de Vieira Portuense e Domingos Antônio de Sequeira para a absorção do
Neoclassicismo de matriz italiana.
A situação peculiar do reinado de D. José I, que desenvolve a sua própria versão
iluminista, encontra nas artes visuais um desenvolvimento lento, muitas vezes continuador do
que foi realizado na época joanina. É sintomática a presença de artistas consagrados na
primeira metade dos Setecentos como os principais representantes da pintura pombalina,
como Vieira Lusitano e Pedro Alexandrino de Carvalho. Ambos colaboraram para a extensão
do Barroco, este fortemente influenciado pela escola romana, até a década de 1780, somente
quando novas possibilidades compositivas começam a ser sistematicamente exploradas.
42
1.1 O PERÍODO JOANINO: A ASCENSÃO SOCIAL DO PINTOR
A transição entre os governos de D. Pedro II e D. João V foi marcada, inicialmente,
pela continuidade dos valores do Barroco tenebrista praticados por várias gerações de pintores
desde o primeiro quartel do século XVII. A função da pintura era, basicamente, religiosa,
encomendada para a ornamentação de interiores dos templos ou compondo conjuntos
retabulares para as mesmas. Muitos profissionais acumulavam também o ofício de decoração
de azulejos, arte de desenvolvimento notável nos seiscentos e que também integrou o vasto
programa iconográfico da Igreja tridentina portuguesa. A repetição constante de fórmulas
consagradas e a lenta absorção de novos elementos formais contribuíram para que a segunda
metade do século XVII fosse considerada uma época de estagnação, conforme análise de
Vítor Serrão (SERRÃO, 2003, p. 226).
Vale salientar que a centúria seiscentista em muito afastou da memória popular a
gloriosa participação portuguesa nos eventos das grandes navegações. A União Ibérica e a
difícil fase da Restauração deixaram feridas profundas na sociedade, afastando o país, naquele
momento, dos movimentos cientificistas que viram germinar as sementes dos futuros debates
iluministas. Foi, sobretudo, a prosperidade econômica verificada na década final do século
XVII o fator principal das grandes transformações que o reinado de D. João V se beneficiou.
A descoberta do ouro brasileiro, a indústria do vinho, o comércio do açúcar, do tabaco e do
cacau, entre outros produtos, colaboraram para a reintrodução de Portugal no cenário cultural
europeu.
A veia persuasiva do Barroco internacional, a exemplo da corte de Luís XIV,
emprestou sua pompa e fausto ao jovem e próspero rei. A renovação estética pautada nos fins
de construção espetaculosa da imagem política trouxe, para as terras portuguesas, a
iconografia do aparato até então acanhada no país. Consciente do valor simbólico das artes
43
visuais para a divulgação do seu poder, D. João V se preocupou desde cedo em contratar
artistas estrangeiros, encomendar obras e promover a formação de pintores nacionais. A
abertura da Academia Portuguesa de Roma, em 1720, seria a expressão maior da mudança,
pois os alunos bolsistas participariam como interlocutores do que então se praticava na Cidade
Eterna. Vítor Serrão nos diz que:
Conhecem-se diversos pintores que estagiaram em Roma como bolseiros
régios, como sejam Vieira Lusitano (o mais destacado), Inácio de Oliveira
Bernardes, o santareno Inácio Xavier e João Glama Stroberle, que assim
tiveram ocasião de se sensibilizar com a grande maneira de mestres como
Carlo Maratta, Trevisani ou Agostino Masucci. Por outro lado, todo este
ambiente de renovado desenvolvimento – que lembra, de certa maneira, o do
final do século XVI, pela dinamização imposta à propaganda pela pintura –
surge muito florescido pelo impacte das muitas pinturas romanas e genovesas
que o monarca manda adquirir em Itália para décor das iniciativas realengas,
ou de patrocínio da corte (...). (SERRÃO, 2003, p. 226)
Libertos desde 1689 da Casa dos Vinte e Quatro9, os pintores portugueses buscaram
alcançar ascensão social desde então, por não estarem mais atrelados a bandeiras de ofícios.
Este fato inaugurou um arrastado movimento de fortalecimento do papel artista na sociedade,
cujos primeiros frutos brotariam apenas nas décadas finais dos setecentos. No caso da pintura
colonial, os ecos se fariam sentir nos anos iniciais do século XIX e se consolidariam sob a
presença da corte de D. João VI no país.
A filiação à gramática barroca italiana permaneceu como no século anterior, mas com
uma nítida atualização. A arquitetura, como de costume, expressou primeiro o ar de
renovação do momento, com obras de ousada movimentação borromínica. Não é de se
estranhar que esta onda passageira de igrejas de plantas poligonais ou de retângulos com
cantos cortados, além das linhas circulares verificadas em alguns casos excepcionais,
9 As bandeiras de ofícios foram agremiações oriundas do sistema medieval de organização dos profissionais
mecânicos e artesãos, agentes regulamentadoras de todas as relações entre cliente e mão de obra. A Casa dos
Vinte e Quatro era, em Lisboa, a reunião de vinte e quatro homens representantes das corporações de ofícios,
com um membro eleito como juiz e participante do senado. Este tipo de agremiação foi criado em 1383 por D.
João I. Em algumas regiões de Portugal, a casa era composta por apenas doze membros. Toda esta organização
visava a garantia de direitos, por um lado, e a monopolização dos serviços, por outro.
44
encontraria no Brasil um bom local de experimentações10
. O mesmo se pode dizer dos
empreendimentos urbanísticos observados nos dois lados do Atlântico, como a construção de
aquedutos, chafarizes e aberturas de novas ruas.
Interessante notar que a prosperidade do início do século XVIII expressou-se mais
atuante na arquitetura, sendo o palácio de Mafra o seu símbolo maior. O volume de
encomendas de talha dourada para as igrejas, comparativamente superior em relação aos
contratos de pintura, denuncia o gosto então dominante, o que explica em parte o
barateamento do trabalho pictórico. José Alberto Gomes Machado, no seu estudo intitulado
André Gonçalves, pintura do Barroco português, realiza minuciosa pesquisa documental
referente ao período e apresenta vários exemplos de preços contidos nos contratos
sobreviventes (MACHADO, 1995, p. 95). O pintor André Gonçalves, um dos principais
nomes da fase joanina, não ultrapassou a faixa mediana de pagamento, mesmo quando se
tornou renomado mestre. A talha, entretanto, gerou rendimentos maiores aos seus praticantes,
fato corriqueiro até meados do século.
Por mais que os novos tempos proporcionassem o florescimento de uma geração mais
atenta ao modelo internacional, sobretudo romano, verificamos ainda uma estrutura de
produção em muito semelhante à fase seiscentista do Barroco. José Alberto Gomes Machado
explica que:
Igualmente importante é o peso da tradição iconográfica, expressa em formas
e modelos repetidos até a exaustão e que conformavam os limites do gosto
vigente, pouco dado a inovações. Em bom número de contratos, indica-se
expressamente que a obra deve seguir ou imitar uma outra obra, anterior, que
teria merecido o apreço dos comitentes. A margem de liberdade do artista via-
se, assim, bastante reduzida e dependente de estereótipos, em torno dos quais
se fixara o gosto do reduzido público encomendador. Num mercado muito
restrito, dominado pela encomenda religiosa, o artista dificilmente se poderia
dar ao luxo de incorrer no desagrado das irmandades, dos priores ou dos
superiores conventuais, de onde lhe vinha a subsistência, por vezes difícil.
10
As igrejas fluminenses de Nossa Senhora da Glória e de São Pedro dos Clérigos são exemplos de plantas
movimentadas pertencentes à primeira metade do século XVIII. Estas construções, exceções no conjunto
colonial de tradição retangular, foram projetos de engenheiros portugueses, geralmente associados a edificações
militares.
45
Com efeito, não é raro encontrar documentos que atestam dificuldades
econômicas de artistas. (MACHADO, 1995, p. 91)
Não poderíamos deixar de tecer antecipadamente algumas considerações sobre a
pintura colonial, à luz da citação acima. Sabemos que a primeira metade do século XVIII
assistiu a mudanças significativas na forma de produção, como a gradual passagem para as
oficinas leigas dos ofícios antes destinados, em sua grande maioria, aos frades artesãos. José
de Oliveira Rosa é mencionado como o mais antigo pintor conhecido desta inaugural Escola
Fluminense. A submissão aos modelos impostos pelos encomendantes, através das gravuras
importadas das lojas portuguesas, sofria com a pouca variedade de soluções iconográficas e
formais. Não nos causam espanto os inúmeros casos de confusão sobre autorias, devido a
certa homogeneidade de elementos compositivos. O próprio José de Oliveira Rosa foi
colocado equivocadamente como discípulo do beneditino Frei Ricardo do Pilar, certamente
por causa da semelhança entre as obras de narrativas de santos dos dois artistas.
A paradoxal situação social do pintor da corte de D. João V se expressa justamente na
contradição entre a consciência do valor de seu próprio trabalho e a necessidade de se sujeitar
à vontade dos clientes. Consciência que ganharia novos ingredientes no contato dos bolsistas
com os mestres italianos, após a abertura da Academia Portuguesa em Roma. Há também o
vultuoso investimento na decoração do palácio de Mafra que, segundo Vítor Serrão, fez dele o
maior e mais rico repositório de pintura (e de escultura) da escola romana que existe fora da
Itália (SERRÃO, 2003, p. 227). Este contato fomentou a circulação de novidades, quebrando
um pouco o apego aos tradicionais modelos por parte dos próprios clientes.
André Gonçalves, um dos mais atuantes artistas da geração joanina, traz na sua
carreira a marca dos tempos de mudança. Discípulo de Antônio de Oliveira Bernardes,
famoso pintor de D. Pedro II, recebeu inicialmente a carga barroca seiscentista, presente em
algumas de suas primeiras obras. Apesar de nunca ter saído de Portugal, André Gonçalves
46
travou contato com a atualidade italiana ao complementar seus estudos com o mestre genovês
Giulio Cesare Teminé, este radicado em Lisboa desde 1712 (SERRÃO, op. cit., p. 232). Vale
lembrar que ele trabalhou em Mafra, local de grande concentração de obras italianas,
conforme mencionamos anteriormente.
Sua atividade voltava-se também à tentativa de promover a pintura a patamares mais
elevados. Entre as suas proposições figurava a vontade de estabelecer no reino uma academia,
algo que já aparecia manifesto em alguns pintores desde o século XVII, sobretudo na época
da Restauração. Sobre o artista, José Alberto Gomes Machado comenta que:
Mais que uma simples insatisfação quanto ao estatuto social da pintura e dos
pintores, ele revela um desejo de reengrandecimento, que é algo mais que uma
aspiração conservadora ou passadista. Através da sua própria prática pictórica,
denota-se em André Gonçalves uma preocupação de modernidade, que o
levou a escolher, muitas vezes, fontes iconográficas contemporâneas e a
moldar as peculiaridades do seu estilo, segundo o que pôde e escolheu
apreender da lição dos italianos de Setecentos, cujas obras admirou ao vivo,
ou por meio de gravuras. (MACHADO, 1995, 254)
A insatisfação de André Gonçalves denota a transformação em movimento do
processo de produção artística no século XVIII português. Sua consciência sobre o valor do
trabalho de pintor demonstra claramente o que Pierre Bourdieu considera como o gradual
caminho para a autonomia do campo artístico em relação aos demais campos. O sociólogo
afirma que:
À medida que o campo intelectual e artístico amplia a sua autonomia,
elevando-se, ao mesmo tempo, o estatuto social dos produtores de bens
simbólicos, os intelectuais e os artistas tendem progressivamente a ingressar
por sua própria conta, e não mais apenas por procuração ou por delegação, no
jogo dos conflitos entre as frações da classe dominante. (BOURDIEU, 2007,
p. 191)
A geração de André Gonçalves ainda não pode se desvencilhar das vontades impostas
pelos encomendantes, sobretudo quando o contrato referia-se ao espaço religioso. A sua
47
importância reside na reflexão cada vez mais fundamentada sobre os problemas de sua
profissão, como a ausência de uma academia e também de espaços destinados às discussões
sobre o fazer artístico. Sua atuação enquanto pintor engajado nas questões sociais abriu
caminho para o fortalecimento de um ambiente crítico, o que colaborou para o resgate de
teóricos portugueses, como o seiscentista Francisco de Holanda, este bastante utilizado por
Cirilo Wolkmar Machado, no final dos Setecentos.
A iconografia religiosa sofrera poucas alterações, seguindo ainda as premissas contrar-
reformistas conservadas fortes em Portugal. As gravuras funcionaram como as fontes mais
utilizadas de divulgação temática e formal, geralmente chegando ao artista como escolha
prévia de seu cliente. As representações alegóricas e triunfais aparecem com mais frequência,
denotando a preferência setecentista por cenas de maior impacto. O fenômeno dos tetos
forrados por cenas em perspectiva, em vez dos painéis em caixotões, confirma o desejo de
monumentalidade o qual os temas da aparição de Jesus ou da Virgem são exemplos. Esta seria
a maior diferença em relação ao período anterior, considerando que as narrativas de vidas de
santos permaneceram numerosas, tal como ocorrera desde a fase do Maneirismo português.
Os contrastes entre claros e escuros, comuns no tenebrismo da geração seiscentista,
dão lugar ao colorido intenso do qual André Gonçalves é representante e atualizador.
Percebemos que as irmandades religiosas, atentas à respeitabilidade da iconografia santa,
permitiram maior liberdade em relação à forma, apesar de cláusulas dos contratos restringirem
determinados pontos11
. Na verdade, são elas que se beneficiaram do Barroco faustuoso em
maior porção, pois mantendo o controle sobre o conteúdo, a pintura, juntamente com a talha,
poderia oferecer toda uma ambientação projetada para tocar os sentidos.
11
Vale salientar que esta liberdade condicionada refere-se aos artistas mais destacados do momento, os que
realmente forçaram um alargamento de certos limites.
48
Nos anos que trabalhou na decoração do palácio de Mafra, André Gonçalves realizou a
tela Assunção para a capela do Livramento (Figura 2). O modelo compositivo do painel foi
largamente difundido através de gravuras tiradas da original de Guido Reni, a qual se localiza
na Igreja de Santo Ambrósio de Gênova. Há outro bastante semelhante, de Sebastiano Ricci,
com igual tratamento dos planos terreno e celestial, chamando atenção a igual posição da
Virgem, com os braços voltados para o alto. Na obra do pintor português, São Pedro, no
contraponto abaixo, abre os braços no sentido inverso, reforçando, por oposição, a sensação
de ascensão da Virgem.
O plano inferior mostra o túmulo rodeado por apóstolos em uma mistura de espanto e
euforia. O turbilhão de nuvens do plano celestial ajuda a separar os dois mundos, além de
conferir movimentação à cena. Esta movimentação naturalista conduz o espectador ao interior
da cena. O artista dosa as cores em harmonioso contraste de azuis, vermelhos e rosas, com
iluminação uniforme e suave. Todos os espaços são ocupados por elementos vários,
mostrando a familiarização de André Gonçalves com a gramática barroca. Outro artifício
usado para movimentar a Virgem para o alto está no triângulo formado por ela, São Pedro e
São João.
A iconografia da ascensão da Virgem integrou um amplo conjunto temático de defesa
e propaganda de sua imagem, duramente questionadas na Reforma Protestante. Como um dos
aspectos do catolicismo mais atacado desde o século XVI, o culto à Virgem ganhou na
resposta contrarreformista uma profusão de invocações e soluções iconográficas, espalhadas
nas várias igrejas dedicadas a sua devoção. De André Gonçalves, conhecemos várias versões
do tema espalhadas pelas igrejas de Lisboa. Há também, do mesmo artista, numerosos painéis
que narram o ciclo mariano, incluindo abundantes referências aos quatro dogmas, temas
comuns ao Barroco.
49
Figura 2 – André Gonçalves. Assunção. C. 1730. Óleo sobre tela.3570 x 2520.
Mafra, Lisboa.
Com o intuito de criarmos o diálogo entre a produção portuguesa e a colonial
fluminense do mesmo período, buscamos exemplos para identificarmos elementos de
comparação entre as duas escolas. O que observamos no Rio de Janeiro colonial, referente à
fase joanina, é a repetição das necessidades básicas do fazer artístico que organizaram as
linguagens em uma hierarquia identificável. A arquitetura ocupa o patamar mais elevado,
seguida pela escultura e pelo trabalho de talha. Os retábulos do período são a expressão mais
50
abundante do novo gosto formal, deixando a pintura, conforme acontecia nas escolas
portuguesas, em papel secundário. Mesmo assim, contamos com exemplares significativos,
como atesta o monumental forro em perspectiva da Igreja da Venerável Ordem Terceira de
São Francisco da Penitência.
A História da Arte no Brasil resolveu aparentemente a antiga controvérsia em torno da
autoria do ousado projeto acima citado12
. Os principais nomes que aparecem nos escritos
desde Manoel de Araújo Porto Alegre são o fluminense José de Oliveira Rosa e o português
Caetano da Costa Coelho. A falta de tradição em compor obras ilusionistas de grandes
dimensões, fato corroborado pela ausência deste tipo de pintura no Rio de Janeiro, conta
como ponto a favor para Caetano da Costa Coelho. Acreditamos que José de Oliveira Rosa
tenha participado da equipe contratada, pois muitos traços do pintor são reconhecidos nas
figuras humanas e em outros elementos, como o colorido suave, a anatomia das personagens e
os semblantes serenos, entre outros. Vale ressaltar que o pintor se encontrava na igreja na
mesma época para a execução da pintura do forro da Sacristia. Poderíamos supor que a parte
estrutural em perspectiva seria do mestre português, cabendo aos demais envolvidos a feitura
da narrativa iconográfica.
José de Oliveira Rosa não passou por uma fase de desenvolvimento, como André
Gonçalves, de uma arte de transição do tenebrismo para o cromatismo exuberante do tempo
de D. João V, pois não houve a tradição da primeira na pintura fluminense. Os Seiscentos
foram caracterizados, no Rio de Janeiro, por uma produção conventual, muitas vezes realizada
por frades de formação precária. O caso do Frei Ricardo do Pilar constitui uma rara exceção,
pois seu aprendizado germânico trouxe para o Mosteiro de São Bento requinte não observado
12
Manoel de Araújo Porto Alegre defendeu, ainda no século XIX, a autoria do fluminense José de Oliveira Rosa,
mesmo reconhecendo que o contrato da obra estivesse em nome do português Caetano da Costa Coelho. Apesar
da referência documental, são muitos os elementos familiares aos traços do artista brasileiro. O desconhecimento
total da vida e de parte considerável da obra de Caetano da Costa Coelho, na Colônia e na Metrópole, criou
dificuldades para conferir a autoria.
51
com frequência na época. O conjunto de painéis do frei exibe o modelo de narrativas de vidas
de santos e cenas de aparições, várias em tom melancólico e às vezes sofrido. José de Oliveira
Rosa, apesar de seguir seu modelo para manter a coerência formal na decoração da igreja, não
apenas passa a distribuir a luz de forma mais uniforme, como também se apropria dos valores
cromáticos em harmoniosa mistura de tons. A tela Santa Bárbara, apesar de tardia, mostra o
pleno desenvolvimento do artista no domínio do receituário mais consagrado do Barroco
(Figura 3).
A imagem do mestre Rosa revela a vida da santa mártir em tom apoteótico. Este difere
dos costumeiros recortes temporais das narrativas dispostas em sequência de painéis, pois o
tempo é condensado em uma profusão de referências iconográficas que resumem os aspectos
mais relevantes da história. Santa Bárbara teria vivido na época das perseguições romanas aos
cultos cristãos. Ela segura uma torre de três janelas, alusão ao tempo de reclusão obrigatória
forçada pelo próprio pai. O número de janelas simboliza a Trindade, o que denuncia o
fracasso do pai em evitar a conversão da filha. Ele aparece no canto inferior esquerdo,
fulminado por um raio quando partia para decapitar Santa Bárbara com uma espada. No canto
superior do mesmo lado aparece a Trindade personificada, apontando para o anjo que desce
com a coroa de flores e a palma do martírio.
Os atributos desempenham papel fundamental no reconhecimento das personagens e
das cenas narradas. São eles que, em uma obra complexa como esta, facilitam o
encadeamento dos fatos, estes associados às soluções formais orientadores do olhar. Santa
Bárbara, centralizada, forma uma linha diagonal que se encerra na imagem da Trindade,
criando o eixo principal da composição. O espectador é conduzido ao anjo imediatamente
abaixo da figura de Cristo, anjo responsável pelo raio que atinge o pai vingador. Ao retornar à
santa, observamos outro anjo no lado direito que segura o cálice e a hóstia, símbolos da
52
vitória da Eucaristia que, complementada à coroação e à entrega da palma do martírio, logo
acima, fecham a narrativa em espiral da história.
Figura 3 – José de Oliveira Rosa. Santa Bárbara. 1769. Óleo sobre tela. Igreja de Nossa Senhora de
Monteserrate, Rio de Janeiro.
53
A menção a José de Oliveira Rosa objetiva mostrar a similaridade do que ocorria entre
o que se fazia nos dois lados do Atlântico. Ressaltamos aqui o papel preponderante das
irmandades religiosas florescentes nos Setecentos como os agentes principais de circulação
dos bens artísticos. Como encomendantes quase exclusivas, foram elas as responsáveis pela
entrada dos modelos então em voga na Metrópole, através de encomenda de gravuras e de
pinturas de mestres portugueses e dos italianos residentes em Lisboa.
A situação da clientela lisboeta não diferia tanto do caso colonial, pois foi também a
elite eclesiástica a fomentadora da produção artística, sobretudo pictórica. A corte absolutista
de D. João V fincou a imagem de seu poder sob o manto espiritual da Igreja e o palácio de
Mafra, com a monumental basílica dedicada a Nossa Senhora e a Santo Antônio, constitui
exemplo máximo desta filiação. Não surpreende a supremacia da temática religiosa criada na
primeira metade do século XVIII, frente aos outros gêneros, como o retrato e a natureza-
morta.
As características do Barroco português estão em associação direta com a relação entre
o encomendante e o artista. Desde o século XVII as academias haviam proporcionado uma
nova modalidade de produção, alargando a clientela para indivíduos particulares ou
instituições públicas, como ocorria em centros como Paris e Roma. Esta modalidade não
ocorreu em Portugal nem mesmo na centúria posterior. Mantinha-se a velha estrutura
originária dos tempos medievais de mestres e discípulos, copistas de gravuras e repetidores de
fórmulas consagradas, algo que André Gonçalves buscara modificar. Como a religião
praticamente ditava o fazer artístico, podemos dizer que não houve sequer a hierarquização de
gêneros, comum ao Barroco desenvolvido no interior das academias.
Na ausência de uma academia em solo nacional, a instituição fundada em Roma em
1720 funcionou como beneficiária para poucos selecionados. Aos que nunca saíram de
54
Portugal, como André Gonçalves, a necessidade de se atualizar era um caminho mais árduo e
poucos foram os que deixaram seus nomes registrados na história. O próprio artista citado
mantinha laços de amizade com dois viajantes, os pintores Pedro Alexandrino de Carvalho e
Vieira Lusitano. As trocas de experiências constavam como uma espécie de formação não
oficial, um adicional em ambiente que mantinha o modo medieval de ensinar o ofício.
Francisco Vieira de Matos, o Vieira Lusitano, construiu nome respeitável que
perpassou o reinado de D. João V e todo o período pombalino. Foi um caso raro de artista
com alguma fama internacional, com passagens por Londres, Sevilha e Roma (SERRÃO,
2003, p. 237). Contou com a proteção do terceiro Marquês de Fontes, D. Rodrigo Annes de
Sá, o qual patrocinou sua primeira estada em Roma, em 1712 (PEREIRA, 1999, vol. 3, p.
136). A precocidade da viagem – Vieira Lusitano tinha apenas treze anos na ocasião –
mostrou-se fecunda para o artista, pois pôde aprimorar o desenho que seria, desde cedo, a sua
assinatura plástica mais destacada.
O grande painel intitulado Santo Agostinho pisando na Heresia expõe a fase madura
do pintor, contendo as características principais de seu estilo (Figura 4). O efeito cenográfico,
meticulosamente orquestrado para conferir dinamismo à representação, destaca-se como
principal elemento formal. Aponta para o rigoroso estudo, o qual fez de Vieira Lusitano
conhecido pelos projetos que executava antes das encomendas mais suntuosas. Mesmo
submetido ao gosto do encomendante por determinadas gravuras, ele conseguia impor certas
vontades, muitas vezes para corrigir o que considerava fora de ordem. Como mencionamos
anteriormente, o respeito aos aspectos iconográficos era o mais exigido do pintor, sobretudo
na composição de temas religiosos. São vários os desenhos de projetos sobreviventes do
artista, conforme constatação de Vítor Serrão (SERRÃO, op. cit., p. 240).
55
Figura 4 – Vieira Lusitano. Santo Agostinho pisando na heresia. 1736. Óleo sobre
tela. MNAA, Lisboa.
No painel, o espaço foi construído como uma sucessão escalonada de planos. Ao
fundo, mais iluminado, aparece um fragmento de templo ou palácio, o qual em muito se
assemelha à colunata da Praça de São Pedro, no Vaticano. Santo Agostinho, centralizado,
apoia um grande livro no colo e olha para uma figura, localizada no canto superior esquerdo.
56
Esta figura expõe alguns objetos, símbolos da Eucaristia, da Trindade e da cruz
arquiepiscopal, uma referência ao bispado do santo em Hipona.
Santo Agostinho pisa sem grande esforço em uma cabeça feminina, sustentada por um
livro. Ela, a personificação da heresia, fita o olhar diretamente para o espectador, denunciando
derrota e agonia. Abaixo, um anjinho queima os escritos perniciosos, livrando a Igreja do
pensamento perigoso do Maniqueísmo, corrente filosófica que o próprio santo pertenceu antes
de sua conversão ao Cristianismo. Há outra versão da história que conta que a heresia seria
uma referência ao arianismo, corrente dissidente que foi prontamente combatida por Santo
Agostinho no século IV. Simbolicamente, inserida no contexto da Contrarreforma, a imagem
amplia o seu significado a qualquer corrente contrária à doutrina Católica, sobretudo a
protestante.
Santo Agostinho é considerado um dos Doutores da Igreja, principalmente pelos
escritos que deixou como fonte esclarecedora da verdade cristã. Sua referência foi cara à
época barroca, justamente no atendimento às ações de renovação tridentina, como a
divulgação dos princípios morais e alerta contra os perigos dos possíveis desvios do caminho
do bem. Nesse sentido, a obra de Vieira Lusitano enquadra-se no didatismo corrente, com
elementos de clara compreensão. Cada parte da composição se encaixa em um todo objetivo,
cujo significado revela a vitória daqueles que seguem, sem hesitação, o que a Igreja
determina.
Um dos aspectos mais notáveis do presente painel encontra-se no jogo em zigue-zague
das linhas, partindo-se do canto inferior esquerdo até o superior direito (Figura 5). Este efeito
cria intenso dinamismo à composição, direcionando o olhar em movimento de baixo, onde
observamos a presença do mal, para o alto. A posição vertical de Santo Agostinho e da
enorme coluna estriada do fundo, em contraposição à horizontalidade da base que os
57
sustentam, trazem de volta a atenção para o ponto central da cena, servindo como eixo de
equilíbrio e simetria. O espaço é ampliado pela sugestão de cenas exteriores ao limite da tela,
como o anjo que, olhando para algo que não podemos ver, ordena os cães a atacarem a figura
da heresia.
Vieira Lusitano colaborou para a inclusão do projeto de estudo como parte integrante
do trabalho do pintor, principalmente na confecção de obras de maior vulto. Mesmo na
composição de retrato, gênero que gradualmente floresceu ao longo dos Setecentos, as linhas
de força e o desenho são os elementos que submetem os restantes – texturas, volumes e cores
– à sua primazia. Esta característica trouxe ao Barroco português uma roupagem classicista
que ocorria na vertente tardia italiana, absorvida pelo pintor em suas várias estadas em Roma.
Figura 5 – Linhas de força
No Brasil, faltariam ainda algumas gerações para que o desenho ganhasse importância
formativa na pintura. Os modelos compositivos chegavam prontos em estampas desprovidas
de cor, com os elementos compositivos previamente organizados. Bastava ao artista traduzi-lo
58
da gravura para a pintura. Significa dizer que a consciência sobre o processo resumia-se ao
conhecimento de que as personagens principais deveriam, necessariamente, ocupar o centro
do quadro. Além disso, a habilidade era sentida pela capacidade de preencher de cores os
espaços e os volumes. Não admira a constante afirmação de Gonzaga Duque de que os artistas
coloniais eram fracos desenhistas e, muitas vezes, ótimos coloristas (GONZAGA-DUQUE,
1995, p. 80).
Vieira Lusitano pontua o momento de transição da arte portuguesa que se estendeu até
a década final do século XVIII, quando a geração de Domingos Antônio de Sequeira
emprestaria nova feição à pintura do país. São vários os nomes em atividade na fase joanina,
mas, como em qualquer período de transformações, poucos realizaram uma produção
realmente relevante e que apontasse para os novos rumos.
1.2 O PERÍODO POMBALINO: ANTECEDENTES DAS NOVAS RELAÇÕES DE
TRABALHO
Ao fundar a Academia Portuguesa em Roma, D. João V buscara criar subsídios para a
sistematização de um modelo de ensino que pudesse garantir a abertura de uma futura
academia em solo nacional. Esta ideia, contudo, não chegou a se concretizar. O envio de
bolsistas a Roma como iniciativa governamental continuou com gradual irregularidade até os
anos finais do reinado. A partir de 1760, os poucos artistas contemplados à viagem ao
estrangeiro contaram apenas com a proteção de particulares, pois a administração de Pombal
cortara os laços com a Santa Sé. Portugal ficaria por muito tempo arraigado ao sistema
medieval de ensino, confiando aos artistas mais experientes o aprendizado dos discípulos.
59
Os nomes consagrados na primeira metade do século XVIII foram os ativos na época
pombalina, como o anteriormente citado Vieira Lusitano. A Igreja permanecia no papel de
cliente maior dos pintores, reservando ao período a majoritária proliferação de imagens
religiosas. A situação, sob este aspecto, não havia mudado. Enquanto Itália e Inglaterra
respiravam os novos ares classicistas, Portugal repetia o formato barroco tardio
predominantemente cristão, mantido pelos representantes da arte joanina.
As reformas de Pombal na área da Educação não contemplaram diretamente a abertura
de uma aula específica de desenho ou de qualquer outra linguagem artística. O desenho em
especial aparece em cursos voltados para setores funcionais e industriais, como o destinado à
Fundição de Artilharia do Arsenal e o de estuques da Fábrica das Sedas, entre outros
(FRANÇA, 1990, vol. 1, p. 64). Mesmo nas primeiras iniciativas de aulas independentes de
desenho, já no reinado de D. Maria I, o real interesse pelo seu ensino aparece explícito: a
formação para o comércio. José-Augusto França comenta que:
A primeira manifestação de um ensino artístico organizado de maneira
independente nasceu no Porto, em 79, quando o provedor da Junta da
Companhia das Vinhas do Alto Douro (fundação pombalina) propôs a criação
de uma aula pública de debuxo e desenho, num projeto aprovado pelo
marquês de Angeja, presidente do Real Erário, que a considerou de público
interesse para o adiantamento das fábricas mui industriosas que (no Porto) se
erigem. (FRANÇA, op. cit., p.65)
As diferenças entre o aprendizado adquirido pela bolsa destinada à Academia
Portuguesa em Roma e o projetado para as aulas designadas ao fazer industrial denotam
funções distintas, pelo menos até a abertura da Aula Régia de Desenho e Figura, em 1781.
Desta última, apesar do direcionamento técnico, formaram-se os nomes principais do final do
século XVIII, como Vieira Portuense e Domingos Antônio de Sequeira. Dos cursos
anteriores, criaram-se as condições para que profissionais nacionais fossem capazes de servir
60
à indústria em trabalhos como a confecção de padronagens para tecidos, rótulos para vinhos,
projetos para ilustração de porcelanas, entre outros.
A época de Pombal não deixara uma herança pictórica particular, pois que manteve o
padrão do Barroco romano da fase anterior. Enquanto a arquitetura seguia em uma verdadeira
reforma, empurrada pela catástrofe do terremoto de 1755, a pintura reagia à falta de formação
de um gosto próprio da nova classe burguesa do período. José-Augusto França afirma que:
De resto, as gerações de artistas sucediam-se, e o seu gosto não mudava: os
cânones acadêmicos eram sempre seguidos, só as cenas históricas mereciam
figuração e a natureza e os costumes continuavam ignorados. O único quadro
que a catástrofe de Lisboa inspirou, devido a Glama Stroberle (1708-1762),
pintor que passou uma vintena de anos em Roma, não é mais que uma enorme
composição morosamente estática, desprovida de menor emoção. (FRANÇA,
1987, p. 265)
Um dos nomes mais destacados da era pombalina, continuador até certo ponto da
tradição consagrada por André Gonçalves e Vieira Lusitano, foi o pintor Pedro Alexandrino
de Carvalho. A reconstrução da área devastada de Lisboa ofereceu ao artista um leque
formidável de trabalho, sobretudo nas numerosas igrejas da cidade. A atividade incessante na
esfera religiosa tornou-o conhecido como o pintor dos frades (FRANÇA, 1990, vol. 1, p. 34).
Ele participou também do florescimento de outras temáticas, quando recebeu a incumbência
de ornamentar palácios e compor retratos de nobres e de ricos comerciantes, mas já no último
quartel do século XVIII. Pedro Alexandrino de Carvalho pode ser visto, neste período final,
como um pintor de transição, abrindo caminho para a nova geração que desfrutaria da
abertura mais significativa aos vários gêneros, além da absorção de elementos de novos
estilos.
O painel Salvador do Mundo foi realizado no limite entre a queda do Marquês de
Pombal e o início do reinado de D. Maria I (Figura 6). Selecionamos esta obra para mostrar o
quanto a forma barroca de matriz romana avançou por quase todo o Setecentos. O gosto dos
61
encomendantes – as irmandades religiosas em geral – colaborava para a manutenção da
tradição, pois a ornamentação dos templos costumava ser mais conservadora em relação à
permanência de modelos consagrados e aprovados por décadas de experiência.
Figura 6 – Pedro Alexandrino de Carvalho. Salvador do Mundo. 1778. Óleo sobre tela. Sé de Lisboa.
A fórmula empregada na composição repete o modelo abundante de temática religiosa
que organiza a superfície em uma separação entre o mundo celestial e o terreno. André
62
Gonçalves, um dos mestres do artista, realizou dezenas de telas com esta conformação, como
podemos ver nas várias igrejas lisboetas. No presente caso, o efeito divisório funciona em
concordância com o assunto, pois a imagem de Jesus deve aparecer no plano terreno. É ali
que toda a missão divina faz sentido. A referência da materialidade vem representada pela
arquitetura, disposta no canto esquerdo. A cruz realiza um contraponto espiritual e avança do
chão ao plano celestial.
A imagem de Jesus aparece centralizada, ponto organizador de todas as outras figuras
que preenchem a tela. Com o braço direito erguido, exibe para o espectador, no caso o fiel, o
sinal da bênção. Do outro lado, segura uma enorme cruz. As massas são uniformemente
distribuídas com a colocação de anjos de ambos os lados. No alto, exatamente acima de Jesus,
surge a figura de Deus Pai, representado com uma auréola triangular, um cetro e uma taça.
Também o acompanha um cortejo de anjos, dando à composição um aspecto fortemente
espiritual.
Se observarmos as composições religiosas do período pombalino, veremos que a
preferência por cenas alegóricas ou triunfais ditam o gosto, tal como ocorrera no reinado de
D. João V e em boa parte da Europa setecentista. Mesmo com todos os espaços preenchidos
por uma sorte de elementos, comum à gramática barroca, a especificidade portuguesa dos
Setecentos encontra-se fiel ao modelo romano, no que diz respeito à busca por uma roupagem
classicista. Vários painéis são organizados em espaços que desenham triângulos, com massas
distribuídas de forma equilibrada e com figuras sem tanta dramaticidade. Em Pedro
Alexandrino de Carvalho, percebemos narrativas com movimentação e gestos contidos, tal
como acontecia nas obras mais famosas de Vieira Lusitano.
A crítica à estagnação do fazer artístico português foi sentida desde a época áurea de
André Gonçalves, permanecendo como uma queixa por parte dos pintores e escultores em
63
toda a fase pombalina. O problema maior refere-se ao corpo consumidor, que no país não
havia desenvolvido um gosto atualizado, além de manter-se alheio às discussões estéticas. A
sociedade burguesa de Pombal, a qual iria realmente contribuir para as transformações do
final do século, voltava-se, neste momento, para interesses imediatos de seus negócios. Ao
mundo religioso cabiam as encomendas mais significativas, amarrando os artistas menos
habilidosos à cópia de gravuras consagradas.
À época pombalina, no dizer de José-Augusto França, faltavam amadores, aqueles que
movimentam a cultura artística de forma integral (FRANÇA, 1987, p. 300). Os preços
relativamente baixos de seus trabalhos acusam o tipo de percepção que a sociedade tinha
sobre o valor da pintura ou da escultura. A relação entre a produção e a clientela é sintomática
e atua diretamente no conjunto de fatores geradores da obra de arte.
No Rio de Janeiro pombalino, livre dos jesuítas e transformado em capital do vice-
reinado, a situação assemelha-se ao quadro metropolitano. Soma-se ao espaço colonial a falta
de recursos para o desenvolvimento mais efetivo da pintura, além da defasagem do estatuto
social do pintor em relação ao português. Se na Metrópole o artista, mesmo com toda a
dificuldade, possuía a consciência de sua situação a ponto de externá-la em manifestação
literária, como o fez André Gonçalves e Vieira Lusitano, o pintor colonial vivia em outra
realidade. A sociedade, dividida em camadas rigidamente hierarquizadas, reservava à pintura
o mesmo patamar dos demais afazeres manuais. Assim, não admira identificar que a grande
maioria de pintores era de descendência escrava ou oriunda de famílias das classes menos
favorecidas.
Um ponto em comum refere-se ao tipo de cliente predominante: as irmandades. A
expulsão dos jesuítas e a decadência das ordens primeiras não impediram o movimento de
ascensão destas instituições leigas, agentes quase exclusivos da produção das oficinas de
64
pintura setecentista. São elas as responsáveis pelo intercâmbio formal entre a Metrópole e a
Colônia, efetivado na importação de gravuras das lojas lisboetas. Elas colaboraram também
para garantir a longevidade do Barroco romano, o qual lentamente foi recebendo alguns
elementos rococós nas décadas finais do século XVIII.
O entendimento sobre a dinâmica das relações sociais, nas quais as irmandades
religiosas desempenharam papel preponderante, em muito esclarecem dados diretamente
associados à produção artística. Tanto em Portugal como no Brasil, elas funcionaram como
elos entre o espiritual e o material, ou seja, entre a manutenção e exercício da fé católica e os
afazeres comuns, como, por exemplo, o registro de documentos. Em um reino de extremada
religiosidade, a Igreja penetrava em todas as áreas da vida, colaborando para a organização da
estrutura social concordante com o modelo de moral e virtude desejado pela Corte. Mônica de
Souza Martins, no livro Entre a cruz e o capital, estuda o papel dessas associações e diz que:
As irmandades se constituíram como parte da vida cotidiana dos indivíduos,
participando de todos os aspectos ligados a ela. Isso significa dizer que todas
as esferas da vida social pertenciam também à vida religiosa e que o não
pertencimento a uma irmandade poderia constituir motivo de vergonha ou
fator de desprestígio social. Nas relações de trabalho isso não acontecia de
forma diferente: aqueles que não pertencessem ao universo cativo também
deveriam estabelecer seus elos de trabalho a partir de uma irmandade,
tornando-se membros e irmãos de uma associação profissional, a partir de
onde eram estabelecidos compromissos em comum. (MARINS, 2008, p. 59)
Este fato nos ajuda a compreender a complexidade das relações entre o cliente e o
pintor, ambos necessariamente associados a alguma irmandade. Colabora também para o
esclarecimento sobre os motivos da encomenda e o perfil do encomendante, ponto nodal de
nossa análise. Até o último quartel do século XVIII, os casos se assemelham no sentido da
quase exclusividade da função religiosa da pintura e do caráter coletivo de sua produção. Não
são indivíduos com objetivos particulares os consumidores, mas representantes de entidades
com fins sociais e, consequentemente, de natureza pública. A transformação deste quadro
65
encontra-se justamente no período de nosso estudo, quando as relações caminham para a
diversidade e, por conseguinte, para uma visível individualização das transações.
O intercâmbio entre as irmandades oscilava entre trabalhos que envolviam ações
mútuas, competições veladas ou explícitas pela organização das melhores festividades,
concorrência pela ornamentação mais suntuosa de seus templos e assuntos relativos aos
ofícios. Esta comunicação interligada agia diretamente na manutenção da ordem tanto
religiosa quanto régia, fazendo das irmandades os nós aglutinantes entre Estado e Igreja.
Como organizações diversificadas quanto à origem social e à natureza das bandeiras
de ofícios a elas ligadas, elas serviam como espaço de debate e de promoção dos interesses de
grupos identitários. A especificidade das demandas de cada associação conferia, no conjunto,
uma multiplicidade cada vez maior de discussões. O ponto unificador vinha da autoridade do
Estado, buscando regrar as relações em crescente complexidade, como é de se esperar de uma
cidade em expansão. Afinal, as irmandades são agremiações tipicamente urbanas.
O perfil do cliente setecentista é representado, na sua grande maioria, pelos priores das
irmandades. Geralmente eram os responsáveis pela autorização e muitas vezes pela
composição dos contratos de serviço, além de estarem a frente das negociações, fiscalizações
e avaliação dos resultados. Suas identidades variavam conforme o estatuto social do grupo a
que pertenciam. As ordens terceiras, por exemplo, foram lideradas por funcionários da alta
burocracia, como ouvidores, juízes e priores de províncias. As menos abastadas elegiam
aqueles indivíduos de maior destaque, como a figura representante do comércio de uma
determinada área, por exemplo.
Em Portugal, os pintores não pertenciam mais a qualquer tipo de corporação de ofício,
como mencionamos anteriormente. A Sociedade de São Lucas, existente desde 1602, passou a
funcionar como referência da profissão após a libertação das regras rígidas e monopolizadoras
66
da corporação. Apesar de não atuar diretamente nos negócios de seus membros, serviu como
núcleo de contato entre os nomes mais relevantes do período.
O Rio de Janeiro contaria com a criação da Sociedade de São Lucas somente em 1827,
poucos anos depois da extinção de todas as corporações de ofícios por ordem imperial. Não
há registros de corporação específica para os pintores fluminenses, pelo menos ao longo da
segunda metade do século XVIII. Sem ligação com alguma sociedade reguladora, a sua
atividade seria livre e, ao mesmo tempo, problemática. Livre por não precisar de autorização
governamental para exercer sua profissão. Problemática porque os pintores não contavam
com a proteção de uma instituição especializada no ofício, nenhum órgão para mediar
contratos, garantir direitos ou atuar como reclamantes em questões trabalhistas. Cabia à
irmandade a proteção de uma forma geral, sem o compromisso particular ou conhecimento de
causa que uma corporação ofereceria.
Há a hipótese de que o número reduzido de pintores no Rio de Janeiro em um mercado
extremamente limitado seria um dos motivos da provável ausência de uma organização de
classe. Outra razão identificada encontra-se na condição social dos pintores, sempre ocupantes
dos patamares baixos da rígida hierarquia. Bastante diferente dos numerosos artistas da
Metrópole, os coloniais não foram afiliados às irmandades por uma bandeira de ofício, mas a
partir do lugar que ocupava na sociedade. Leandro Joaquim, pintor descendente de escravos e
ativo no último quartel do século XVIII, esteve associado à Irmandade de Nossa Senhora da
Conceição e Boa Morte dos Homens Pardos. Raimundo da Costa e Silva, seu contemporâneo,
pertencia a de São José.
Esta fragilidade atingia diretamente o despertar da consciência sobre o próprio fazer,
algo que se manifestaria timidamente apenas no último quartel do século XVIII. A situação do
Rio de Janeiro como capital, a atuação de vice-reis tomados pelas ideias iluministas, o notável
67
crescimento da malha urbana e o incremento das relações comerciais fomentaram novas
possibilidades de trabalho. Entretanto, no período de atuação do Marquês de Pombal, a
pintura colonial permanecia sujeita a um tipo de encomendante calcado na tradição da arte
religiosa realizada desde a primeira metade dos Setecentos.
O período pombalino não representou uma época de mudanças perceptíveis para a
pintura, ao contrário do que ocorreu com a arquitetura. Foi um tempo preparatório, criador de
condições favoráveis para a composição de um novo tipo de mecenato e do futuro
florescimento de artistas com amplo horizonte de atuação. O maior legado do Marquês de
Pombal advém do fortalecimento da burguesia comercial, classe que conferiu um formato
diferenciado na relação entre cliente e pintor. A fase áurea que se desenvolveu no reinado de
D. Maria I teve curta duração, interrompida prematuramente pela conjuntura política do início
do século XIX. Mesmo assim, os pintores aí formados deixaram uma marca de qualidade
reconhecida e admirada internacionalmente.
1.3 VIEIRA PORTUENSE E DOMINGOS ANTÔNIO DE SEQUEIRA: ARTE E
BURGUESIA
A morte de D. José significou o afastamento do Marquês de Pombal da vida pública e
o retorno de seus antigos inimigos ao centro administrativo da Coroa. Entretanto, as
mudanças foram drásticas somente no campo político, pois as ações antes implementadas nas
áreas da educação e da economia continuaram em marcha no reinado de D. Maria I. A época,
batizada de Viradeira, ou, como bem diz José-Augusto França, de ressurreição dos mortos
(FRANÇA, 1990, vol. 1, p. 24), não impediu o fortalecimento da classe que Pombal ajudou a
formar, a burguesia comercial. Esta, agora misturada com a nobreza cortesã, firmou sua
68
presença como promotora das artes, como atesta, por exemplo, o financiamento da construção
do Teatro de São Carlos de Lisboa pela elite do tabaco (FRANÇA, op. cit., p. 27).
A histórica aliança entre Portugal e Inglaterra, consolidada através de vários tratados
que pontuaram os séculos XVII e XVIII, colaborou para que as relações sociais extrapolassem
a esfera comercial. Os ingleses residentes no Porto e em Lisboa levaram consigo um modelo
cultural que envolvia o consumo de bens artísticos. A circulação de peças e de impressos e o
apadrinhamento de artistas foram alguns dos costumes que serviram como parâmetro para a
burguesia portuguesa. Não admira o fato de terem sido comerciantes ingleses os patronos do
pintor Francisco Vieira Portuense no início de sua carreira. Foram eles, inclusive, os
financiadores da primeira viagem do artista a Roma.
O mecenato burguês trazia para a arte portuguesa um novo comportamento diante da
obra. A função original do objeto continuava como principal direcionadora do fazer, mas o
valor de mercadoria era agora um novo e relevante aspecto a ser considerado. A colônia
inglesa no grand tour italiano13
era a mais numerosa e ativa na segunda metade do século
XVIII, transformando a arte em interessante negócio. Diferente do aspecto religioso e
devocional da tradição pictórica portuguesa, o mecenato burguês percebia na arte um produto
capaz de gerar lucros, e esta percepção alavancava o consumo e conferia um novo formato ao
ato de colecionar.
A carreira de Francisco Vieira Portuense anuncia mais de perto a nova posição do
artista no mundo dos negócios. Aprendeu a profissão de pintor com o pai, como de costume
na antiga tradição hereditária dos ofícios. Recebeu ajuda financeira dos mesmos comerciantes
ingleses que o mandariam futuramente a Roma para matricular-se na Aula Régia de Desenho
e Figura, em Lisboa (GOMES, sd., p. 16). Ficaria ali um ano e meio, viajando para a Itália em
1789. Sabemos que Roma era uma espécie de caldeirão de culturas misturadas com interesses
13
O Grand Tour era uma espécie de turismo cultural, um complemento à formação nobre e criador de
verdadeiras colônias estrangeiras na Itália. Era um fenômeno de intensa troca comercial de bens artísticos,
antigos ou contemporâneos aos visitantes.
69
comuns, ou seja, de conhecer o patrimônio da arte ocidental por ali espalhado e, se possível,
de lucrar com o fervilhante comércio de obras de arte.
Hábil desenhista, Vieira Portuense destacou-se na aula de Domenico Corvi, renomado
pintor italiano, seu primeiro mestre em Roma. Beneficiado com maior liberdade em relação
aos bolsistas da Aula Régia de Desenho e Figura, Vieira Portuense pôde realizar diversas
viagens pela Itália. O contato com as diferentes escolas e a percepção de que havia outra fonte
de renda além da pintura estimularam a sua entrada no mundo dos marchands, algo inovador
para um artista português. Paulo Varela Gomes, em importante estudo biográfico do pintor,
relata que:
Vivendo apenas de magras pensões, Vieira equilibrava as suas finanças
integrando-se neste ativíssimo mercado. Já em Roma, e depois, durante toda a
sua carreira européia, visitava igrejas, conventos e coleções tomando nota
cuidadosa de autorias, técnicas, períodos... e preços. Comprava quadros e
desenhos no intuito de os revender, ou aconselhava a sua compra a
negociantes ingleses e italianos.(GOMES, op. cit., p.20)
Suas amizades incluíam especialistas famosos, editores e gravadores, círculo em
constante procura por negócios lucrativos. A publicação de livros ilustrados rendia bons frutos
e a associação entre um desenhista copista de grandes mestres e um gravador renomado era a
combinação desejada para esta atividade. Após bem-sucedida estada em Parma, onde foi
nomeado Acadêmico de Honra, partiu para a Inglaterra, empurrado pelas forças napoleônicas
que ameaçavam a Itália em 1796. Em Londres, se afiliou a Francesco Bartolozzi, gravador de
grande fama que viveria futuramente em Lisboa. A parceria resultou em diversificados
trabalhos, além da assimilação mais sistemática do gosto neoclássico ao qual Vieira Portuense
ainda mesclava com elementos rococós.
A gravura era o principal meio de circulação de imagens do século XVIII e servia
como alternativa para uma classe intermediária consumir cópias de obras de todas as épocas
por preços acessíveis. Apresentava também composições inéditas de temas conhecidos,
70
muitas vezes compondo ilustrações de clássicos, como Eneida, de Virgílio, e, no caso
português, Os Lusíadas, de Camões. Os vendedores de estampas eram conhecidos nas
principais capitais e sua presença anunciava uma era de reprodução e consumo de imagens
que seria potencializada mais tarde com o advento da fotografia.
A gravura Juramento de Viriato corresponde à tela que Vieira Portuense enviou para o
salão da academia inglesa, em 1799 (Figura 7). A imagem, gravada por Francesco Bartolozzi,
exemplifica a aplicação do receituário neoclássico, tanto na forma como no conteúdo. A
referência a um antigo herói português faz menção simbólica à situação delicada daquele
momento, resgatando do passado um tema de resistência apropriado diante da ameaça
napoleônica que se configurava. O ideal de virtude e o tom patriótico são o testemunho visual
da atualidade de Vieira Portuense em relação ao que se fazia no mundo artístico em Portugal
na mesma época. A mentalidade ao mesmo tempo comercial e revolucionária que ditava a arte
de final de século foi prontamente absorvida pelo pintor.
A história de Viriato remonta ao segundo século antes da Era Cristã. O expansionismo
romano chega à Península Ibérica e encontra forte resistência das tribos lusitanas comandadas
por Viriato. Depois de investidas fracassadas, Roma reconhece a força dos inimigos e propõe
um pacto de paz. O acordo é feito, mas Galba, comandante do exército romano, quebra o
combinado e realiza um ataque não esperado, resultando no massacre de milhares de
lusitanos. Vieira Portuense representou o momento da narrativa em que Viriato percebe a
dimensão da tragédia, incitando os guerreiros a vingar o ato traidor.
A simplicidade da cena e a ênfase na resolução dos corpos trazem referências claras ao
gosto classicista da época. As personagens parecem saídas das escavações arqueológicas,
figuras escultóricas de um passado próximo à própria história de Viriato. O jovem herói exibe
uma força que mistura aparência musculosa com gesto firme e determinado e expressão de
indignação. A perícia do pintor no desenho anatômico ressalta o contraste entre o poder
71
guerreiro masculino e a fragilidade feminina, representada pelo corpo da mulher que jaz no
colo de outra delicada figura. Não é mais a fragilidade sensual do Rococó, mas a reposição do
feminino em um mundo de virtude e heroísmo.
Figura 7 – Vieira Portuense. Juramento de Viriato. 1799. Gravura de F. Bartolozzi.
42 x 28.9 cm. Biblioteca Geral da Faculdade de Ciências do Porto.
Outra obra de tom patriótico e contemporânea à anterior conta a história de luta contra
o rei espanhol Felipe IV, na ocasião em que a União Ibérica é dissolvida. Intitulada Dona
Filipa de Vilhena arma os filhos cavaleiros, a tela consiste em mais um jogo simbólico com
72
clara intenção de associar a iconografia de outro tempo à posição atual de Portugal nos
conflitos com a França (Figura 8). Misto de realidade e mito, a cena exalta a virtude guerreira
masculina e a dignidade feminina na defesa da liberdade, uma alusão ao crescimento do
sentido de identidade nacional que a Revolução Francesa havia ajudado a fortalecer na
Europa.
Dona Filipa de Vilhena era de família nobre seiscentista, casada com o Conde de
Atouguia. O brasão da família aparece estampado na cortina que separa os aposentos, no
canto esquerdo da composição. Centralizada, a mãe demonstra firmeza ao entregar a espada
ao filho, apesar de demonstrar sofrimento em seu semblante ao apontar o destino visível na
paisagem, o porto de Lisboa. Vieira Portuense destacou a figura principal com um vestido de
um intenso branco, com nítido valor simbólico de pureza e virtude, alusão clara ao seu ato de
coragem.
Figura 8 – Vieira Portuense. Dona Filipa de Vilhena arma os filhos cavaleiros. 1800-1801. Óleo sobre tela.
152 x 213 cm. Coleção particular.
73
Mais uma vez, Vieira Portuense organizou a composição de forma clara, com
iluminação uniforme e notável domínio das texturas. A horizontalidade e separação de grupos
em módulos, como um grande friso, contempla o gosto neoclássico praticado por artistas
como Joseph-Marie Vien, Anton Raphael Mengs e Jacques-Louis David. Muitas personagens
parecem apropriadas de artistas ingleses da época, como Gavin Hamilton e Angelica
Kauffman. Paulo Varela Gomes considera a tela pertencente ao estilo internacional, o qual o
pintor soube absorver em sua formação europeia (GOMES, sd., p.74). Juntamente com o
Juramento de Viriato, a presente obra foi confeccionada para a elite portuguesa residente em
Londres, razão da seleção de temas tão específicos da cultura de seu país. Lembramos o
quanto poderia soar estranho à Academia inglesa a iconografia particular e desconhecida de
um lugar periférico em relação à produção artística setecentista.
Os dois exemplos que selecionamos para a análise mostram uma abordagem
diferenciada dos valores neoclássicos então em voga na Itália. Em Vieira Portuense
encontramos o tom politizado característico do Neoclassicismo francês, diferente das buscas
puramente estéticas da versão romana. Em suas viagens, o pintor teve a oportunidade de
entrar em contato com diferentes escolas e sua observação atenta, típica do trabalho como
marchand, colaborou para que sua produção assumisse um caráter heterogêneo. O contato
com obras francesas do período ofereceu ao pintor o repertório formal e iconográfico que
usaria como instrumento político naquele tempo de ameaça à soberania portuguesa.
O ciclo de formação estrangeira se fecha em 1800, quando Vieira Portuense retorna à
pátria como pintor renomado. Sua passagem por diversos locais e o exercício contínuo do
olhar contribuíram para que ele se apropriasse de estilos e formasse o seu misturado, rico em
referências formais e internacional em sua essência. Segundo Paulo Varela Gomes, o
Neoclassicismo tem justamente o caráter da mistura, um melting pot de influências e
tendências (GOMES, op. cit., p. 125). É com este modelo que o pintor voltou a Portugal,
74
atualizado e admirado. Sua situação em muito se afastou dos tantos bolsistas que retornaram
após a formação romana e se apagaram diante de um ambiente pouco fértil para as artes. Com
Vieira Portuense foi diferente; sua clientela também estava em vias de transformação,
preparada agora para absorver o que a Europa há muito consumia. Não fosse a morte
prematura, em 1804, sua vocação para a experimentação poderia ter levado a pintura
portuguesa a outros patamares.
Contemporâneo e rival de Francisco Vieira Portuense foi o lisboeta Domingos
Antonio de Sequeira14
. Pertenceu à primeira turma da Aula Régia de Desenho e Figura,
ministrada na ocasião pelo pintor Joaquim Manuel da Rocha, quando tinha então treze anos.
Sua partida para Roma ocorreu por bolsa concedida pela rainha D. Maria I e lá permaneceu de
1788 a 1795, passando por formação nos ateliês de Antonio Cavallucci e Domenico Corvi.
Apesar de também ter viajado por várias escolas italianas, Sequeira permaneceu inicialmente
romano no gosto, conforme atestam as obras deste período (FRANÇA, 1990, vol. 1, p. 143).
Sua primeira viagem formativa a Roma foi por intermédio particular da rainha e não
como bolsista da Aula Régia de Desenho e Figura, como seria a via mais comum naquele
momento. O ponto favorável deste patrocínio encontrava-se na maior liberdade que esta
condição proporcionava ao pintor, dispensado da necessidade de seguir fielmente as
orientações de uma instituição oficial. O preço da liberdade vinha impresso no valor da
pensão, inferior a dos bolsistas e um dos motivos que pesaram na decisão de Sequeira de
retornar à pátria em 1795, no auge de sua carreira internacional.
O pintor viveu as conturbadas três primeiras décadas oitocentistas da história de
Portugal, algo que se expressa nitidamente no confronto entre sua formação inicial
neoclássica e a absorção de uma espiritualidade angustiada de sua fase romântica. Foi,
14
Falamos aqui de rivalidade no sentido competitivo, pois os dois pintores estiveram na mesma época em Roma
e participaram dos concursos da Academia.
75
entretanto, a fama adquirida na primeira formação na Academia de São Luca, em Roma,
admitido em 1793 após ganhar alguns prêmios, que contribuiu para o seu acolhimento mais
tarde, quando retornou àquele país na condição de exilado voluntário (FRANÇA, op. cit., p.
142). Da formação inicial destaca-se a obra “Alegoria à Casa Pia”, encomenda feita pelo
Intendente de Polícia Pina Manique antes da partida do pintor (Figura 9).
Figura 9 – Domingos Antonio de Sequeira. Alegoria à Casa Pia. Óleo sobre tela. MNAA. Lisboa.
Começada em Roma e terminada após seu regresso a Lisboa, a pintura apresenta os
indícios de seu aprendizado neoclássico, como a organização espacial triangular, a equilibrada
distribuição das massas e as personagens tratadas como esculturas. Na composição, Pina
Manique aparece apresentando um monumento à D. Maria I, cercado por figuras alegóricas
que dão o aspecto monumental à representação. A obra tem um detalhe peculiar, caro à nossa
pesquisa, pois, dispostos no lado direito, estão o autorretrato de Sequeira e o que seria o
76
retrato do pintor fluminense Manoel Dias de Oliveira. O pesquisador português Armando de
Lucena menciona o fato da seguinte forma:
Mas, aconteceu que outras luzes melhor iluminam a meia treva
envolvente do quadro naquele canto direito, onde duas figuras
espreitam o observador: uma, a do próprio Sequeira; a outra, muito
provavelmente será a efígie de Manoel Dias de Oliveira, segundo as
judiciosas palavras do Dr. Xavier da Costa, que, acerca deste pintor
brasileiro, vindo para Lisboa, e acolhido na Casa Pia, onde estudava
na Aula de Desenho, cuja preparação artística e bom aproveitamento
levaram o Intendente a enviá-lo para Roma, onde continuaria a estudar
sob a orientação de Lambruzzi e de Batoni. Sabe-se que em 1796, já
ali, se encontrava nestas condições. (LUCENA, 1969, p. 20)
Mais adiante, Armando de Lucena faz a transcrição da citação de Xavier da Costa:
No grande quadro alegórico da instituição da Casa Pia (...) feito em
Roma, como incumbência de Pina Manique, por Domingos Antonio
de Sequeira, e principiado em 1793, acha-se o retrato de Manoel Dias
de Oliveira junto ao do autor, o qual a efígie do companheiro fez,
previamente, em desenho, também existente no Museu Nacional de
Arte Antiga, esse que é classificado como pintor de história.
(LUCENA, op. cit., p. 20)
O referido desenho encontra-se realmente na coleção do Museu Nacional de Arte
Antiga, juntamente com uma série de cinco estudos de Sequeira para este painel (Figura 10).
Constitui um raro registro iconográfico sobre a fisionomia do pintor fluminense, além de
sugerir a proximidade deste com o colega português. A trajetória dos dois artistas possui
pontos em comum, como a formação inicial na Aula Régia de Desenho e Figura de Lisboa e a
possibilidade de estudar em Roma por patrocínios particulares. Se Sequeira pôde, ao longo de
sua carreira, experimentar mais rapidamente a mudança de gosto que movimentava o cenário
europeu, Manoel Dias de Oliveira, por sua vez, ao regressar ao Brasil, encontrou um ambiente
ainda precário em relação ao ensino artístico, permanecendo fiel ao Neoclassicismo.
77
Figura 10 – Domingos Antonio de Sequeira. Estudo para Alegoria à Casa Pia.
Desenho. MNAA. Lisboa.
Domingos Antonio de Sequeira retornou a Portugal antes da saída de Manoel Dias de
Oliveira e o primeiro impacto que sofreu ao se restabelecer em Lisboa foi a percepção de que
o mercado de arte local, mesmo em transformação, ainda era extremamente acanhado. Esta
situação afetava, inclusive, a estipulação do preço de suas obras. A rejeição da elite local
pelos valores pedidos inicialmente por seus quadros o fez desanimar, depois de ter tentado em
vão convencer outros pintores a mudarem o comportamento diante das negociações. Cirilo
Wolkmar Machado relata que:
78
Chegado a Lisboa visitou Pedro Alexandrino e Cirilo e lastimou-se do
abatimento da Arte, propondo que se unissem todos para a exaltar,
dando-lhe mais estimação e maior valor às obras. Tinha toda a razão,
mas quem pode fazer mudar de repente um antigo costume? Ele
mesmo o experimentou. O Conde de Val de Reis recusou dar-lhe
1.000 moedas que exigia por 10 batalhas para uma de suas ante-
câmaras. Todos pretendiam ter alguma obra do novo Artista, mas
admiravam-se dos preços (...). (MACHADO, 1823, 119)15
A importância deste fato reside justamente de Sequeira, antes mesmo do retorno de
Vieira Portuense, ter travado discussões sobre o estatuto social do pintor português,
aproveitando-se da fama obtida internacionalmente. Em uma época de mudanças, estas
estariam incutidas tanto na ciência dos artistas de experiência formativa externa a Portugal
quanto na percepção dos clientes de que uma nova postura diante da pintura começava a ser
exigida. Lembrando que os pintores estavam habituados aos preços mais baixos que os
trabalhos de talha, desde os fins dos Seiscentos, não surpreende o fato de Sequeira ter
fracassado inicialmente ao tentar convencer nomes consagrados, como Pedro Alexandrino de
Carvalho e Cirilo Wolkmar Machado sobre o problema. Diferentemente das angústias de
André Gonçalves, em meados do século XVIII, a época agora trazia de novo a ascensão de
uma elite com valores em construção, mesmo que ainda soasse como um mecenato amador
(MACHADO, op. cit., 210).
A adaptação de Domingos Antonio de Sequeira à realidade portuguesa foi
inicialmente dolorosa, mas a participação no cenário artístico continuava em pleno
crescimento, sobretudo quando dividiu com Vieira Portuense a direção dos trabalhos de
ornamentação do Palácio da Ajuda, em 1802, além da nomeação como Primeiro Pintor da
Corte. Sua função, apesar do prestígio reconhecido para tal cargo, foi mínima, conforme os
relatos de Cirilo Wolkmar Machado. Importante dizer que a retomada das obras no Palácio da
15
Cirilo Wolkmar Machado foi pintor contemporâneo de Domingos Antonio de Sequeira e autor de reflexões
teóricas sobre arte, além deste importante registro biográfico dos pintores de seu tempo e dos mais antigos.
79
Ajuda consolidou o Neoclassicismo em solo português nas três linguagens principais: a
arquitetura, a escultura e a pintura.
O estilo inicial de Sequeira revela o apreço pelo acabamento, a ênfase na figura
humana e a simplicidade dos fundos da composição. O retrato do Conde de Farrobo,
executado em 1813, mostra o artista no auge de sua atividade, quando recupera sua fama após
os incidentes políticos nos quais se envolvera na época da invasão francesa16
. A visível
dedicação de Sequeira ao modelo, traço marcante nas suas pinturas de retrato, aparece
acentuado na figura do jovem Joaquim Pedro Quintella, barão de Quintella, e, posteriormente,
Conde de Farrobo (Figura 11).
O rapaz, representado de corpo inteiro, fita o espectador em pose descontraída, o que
não chega a interferir no tom aristocrático percebido no seu olhar, na roupa elegante e no livro
que segura com a mão direita. Os atributos são referenciais de uma família abastada, aqui, de
negociantes em plena prosperidade e herdeira da política favorável ao comércio iniciada na
gestão pombalina. A relação de amizade de Sequeira com a família Quintella aponta para uma
realidade diferenciada daquela vivida pelos pintores setecentistas, envolvidos ora com as
irmandades religiosas, ora com os trabalhos de corte. Sequeira foi, no panorama artístico
português, o introdutor do retrato burguês.
O cenário é reduzido ao que parece um pátio, com um muro pálido e geométrico no
qual o conde se apoia. As linhas dos blocos de pedra colaboram para a meticulosa
organização espacial que parece convergir para a personagem. O olho direito do rapaz está
exatamente na linha vertical que parte o quadro em duas metades iguais, efeito muito utilizado
no retrato para conferir certa movimentação do olhar do espectador. O plano de fundo
16
Sequeira, diferente de Vieira Portuense, mostrou-se plenamente favorável às ideias revolucionárias francesas,
vendo nas tropas de Junot a possibilidade de renovação de Portugal, que considerava atrasado culturalmente.
Após a saída do exército francês de Lisboa, Sequeira foi processado e preso por nove meses por associação ao
jacobismo.
80
mantém a economia de elementos com intuito de não distrair a atenção em nenhum instante,
reforçada pela escolha por tons frios e pálidos.
Figura 11 – Domingos Antonio de Sequeira. Retrato do Conde de Farrobo. 1813
110 X 68 cm. MNAA, Lisboa.
81
Além da precisa composição matemática do espaço, a qual confere sensação de
solidez, percebemos a primazia do desenho na obra de Sequeira, com contornos bem
definidos e domínio das proporções anatômicas. O apuro técnico e racional do uso dos
elementos formais não esconde a intensidade psicológica que consegue transmitir com
tamanha simplicidade, algo que encontramos na obra de Pompeo Batoni e de outros artistas
neoclássicos com que travou contato em Roma. Certamente aplicou aqui todo o aprendizado
acadêmico que recebeu desde os tempos da Aula Régia de Desenho e Figura, agora com sabor
notadamente romano.
O período que engloba os anos de 1808 e 1823 foram os mais fecundos para Sequeira.
Como pintor da Corte, realizou inúmeros retratos de D. João VI, ironicamente na ausência do
monarca. São imagens que exaltam a figura do rei com sobriedade, através de poses
idealizadas, gestos contidos e poucos elementos cenográficos. Esta fórmula, vista no retrato
do Conde de Farrobo, se tornaria exemplo para os outros pintores portugueses do início dos
Oitocentos, gosto que Sequeira ajudou a consolidar nas principais escolas nacionais. Foi
também o modelo que Manoel Dias de Oliveira levou para o Brasil, quando sua carreira
esbarrou positivamente no desembarque da Família Real no Rio de Janeiro. Diferente de
Sequeira, o artista fluminense foi retratista de uma Corte presente, fato que não afetou
diretamente na forma de representação, mas que influenciou no processo de mudança de
estatuto do pintor.
A transição do século XVIII para o XIX foi marcada pela transformação lenta, mais
em curso, da relação entre artista e cliente. A rica burguesia comerciante injetava novas
possibilidades de trabalho, como também a aposta em alguns nomes de destaque que
poderiam render bons frutos. Assim foi com Vieira Portuense e Domingos Antonio de
Sequeira, artistas apadrinhados que puderam desfrutar de uma formação acadêmica
tipicamente internacional e não mais calcada em regionalismos. A morte interrompeu
82
prematuramente a jornada de Vieira Portuense e a transferência da Família Real para o Brasil
retirou Sequeira de uma vivência de corte, mas ambos deixaram uma porta aberta à
experimentação, à inclusão mais sistemática e direta do que se fazia nos principais centros
culturais europeus. Sobre a clientela da época, Benedicta Maria Duque Vieira nos diz que:
Os salões, os das nobrezas de corte e da província e os da burguesia
mais endinheirada, são os espaços de sociabilidade e de animação
cultural onde se trocam pontos de vista, se debatem ideias e livros, se
discute a política do dia a dia. Deste, de Arroios, ficou-nos um álbum
que é a prova disso. (VIEIRA, 1996, p. 54)
De forma mais limitada, mas não menos significativa, a passagem de Manoel Dias de
Oliveira por Lisboa e Roma também gerou frutos positivos, pois incluiu o artista na campanha
orquestrada pela classe comercial sobre a necessidade de mudança no sistema de ensino no
Brasil. A abertura da Aula Régia de Desenho e Figura constitui o seu contributo maior como
profissional, o compromisso, assim como o fez Domingos Antonio de Sequeira em 1795, de
devolver aos seus conterrâneos aquilo que lhe foi ofertado.
1.4 OS TRATADOS DE CIRILO WOLKMAR MACHADO: O PINTOR COMO TEÓRICO
DA ARTE
O desenho é a alma da pintura, e o primeiro
dos conhecimentos que deve possuir aquele
que se destina a esta nobre profissão. Ele não
é somente o traço de todos os corpos, mas
ainda, ele exprime a diferença das superfícies,
e as aparências visíveis da matéria de que são
compostos.
Cirilo Wolkmar Machado
A epígrafe acima vem do que seria um tratado de arquitetura, escultura e pintura de
Cirilo Wolkmar Machado. Na verdade, a obra assume a característica de um projeto, muito
mais um esboço em forma de caderno de anotações do que um trabalho teórico finalizado.
83
Mesmo com o formato de inacabado, ou melhor, de gênese de uma profunda discussão ainda
por vir, o manuscrito expõe o pensamento de uma época sobre o gosto e uma reflexão
consciente sobre a primazia do desenho, a imperfeição barroca sob o signo de Borromini e a
necessidade premente de retorno aos valores clássicos da Antiguidade. Como pintor em
atividade e contemporâneo de Francisco Vieira Portuense e Domingos Antonio de Sequeira,
Cirilo Wolkmar Machado deixou como registro escrito aquilo que não apenas se discutia nos
canteiros de obras, mas que também se aplicava nas várias linguagens artísticas que tomou
para si como matéria de estudo e teorização.
As anotações teriam ocorrido entre os anos de 1796 e 1808, conforme ele mesmo
deixou como pista ao escrever na sua coleção de memórias que intentava compor um tratado
para servir de guia a artistas principiantes (MACHADO, 1823a, p. 249). Estas memórias
mencionam a sua permanência no Convênio de Mafra, quando consultou na biblioteca local
obras de diversas procedências, como o Da Arte da Pintura, de Gerardo Lairess e o Reflexões
sobre a beleza e sobre o gosto da pintura, de Anton Raphael Mengs (MACHADO, 2002b, p.
8) 17
. Sua atitude revela a essência do erudito setecentista, o qual buscava na observação direta
do passado e na consulta meticulosa das publicações antigas e contemporâneas as fontes para
a argumentação sobre a necessidade de retorno ao classicismo.
Cirilo Wolkmar Machado nasceu em Lisboa em 1748 e formou-se como pintor nos
moldes tradicionais das oficinas, inicialmente com o seu tio João Pedro Wolkmar. Sua breve
passagem por Roma, entre 1776 e 1777, foi suficiente para absorver as transformações
estéticas então em curso, registrando em forma de desenhos e medidas tudo aquilo que o
passado clássico lhe apresentava. Como ele mesmo diz, elegi os mestres dos maiores mestres,
isto é, Rafael, o antigo, a Natureza e as Ruínas da Antiga Roma (MACHADO, op. cit., p.
246). Estes registros foram utilizados posteriormente no referido manuscrito, sobretudo os
17
A menção sobre Lairess aparece na folha 83 e a de Mengs, na folha 100. Para todas as citações desta obra,
colocaremos o número da página, conforme a publicação da Fundação Calouste Gulbenkian, e a folha
correspondente do manuscrito de Cirilo Wolkmar Machado.
84
relacionados à arquitetura e à pintura (Figura 12). Em uma Lisboa sem academia e sem
circulação de tratados teóricos sobre o fazer artístico, as ideias de Cirilo esperariam quase
duas décadas para começar a ganhar o papel.
O trabalho possui 165 folhas com vários exemplos iconográficos, com boa parte
dedicada à pintura e à escultura, como a imagem abaixo. Em toda a sua extensão, a beleza é
expressa nos princípios do Neoclassicismo, conforme podemos notar na seguinte passagem:
Na beleza a arte pode exceder a natureza. Ainda que a pintura seja imitação da
natureza ela não lhe é inferior em tudo, é mais fraca na luz e na sombra, mas
pode excedê-la na beleza. A natureza produz com sujeição aos acidentes, a
arte obra livremente (...). (MACHADO, op. cit., p. 226)
Em outra parte, Cirilo continua:
Por que as coisas humanas são imperfeitas e do bom só nos ficou o arbítrio de
escolher, a perfeição consiste na escolha, e é grande o que sabe conhecer qual
coisa é mais ou menos grande, e estimável a fim de estudar só o bem e não o
mau. Isto fez distinguir todos os homens grandes estudando só o mais digno
da natureza; os quais se aplicavam as coisas medíocres ou mínimas, passaram
do pequeno ao inútil, ao feio, ao falso e às quimeras. Os gregos do bom tempo
foram os primeiros que elevaram a arte à beleza e bom gosto; como nada ama
o homem tanto como a si mesmo, era o homem o primeiro objeto da arte e dos
seus estudos e preferiram o nu às roupas. (MACHADO, op. cit., p. 228)
É notória a filiação de Cirilo ao pensamento de Mengs e, através deste, dos escritos de
Winckelmann. A correção das imperfeições da natureza, a matemática organização do espaço,
o uso adequado das cores e a submissão dos claros e escuros à ordenação do desenho são
elementos que pontuam toda a obra. A ênfase na figura humana pode ser exemplificada
através das obras que analisamos de Francisco Vieira Portuense e de Domingos Antonio de
Sequeira, tanto pela concepção do espaço que exalta os personagens principais, como no
protagonismo dos mesmos em relação aos demais tratamentos formais, como iluminação e
uso de cores e de texturas.
85
Figura 12 – Cirilo Wolkmar Machado. Estudos anatômicos. 1823. Folha 141.
86
Cada parte de seus escritos vem acompanhada de explicação concisa sobre as técnicas,
várias vezes utilizando os grandes nomes do Renascimento como exemplos a serem não
apenas imitados, mas estudados e apreciados. A Rafael, Corregio e Ticiano são dedicadas
várias folhas, com extensa análise dos métodos usados por estes artistas. Sobre os mesmos
pintores renascentistas, Cirilo dedica uma parte sobre como os principiantes devem proceder
para reconhecer a qualidade dos grandes mestres. Ele diz que:
Para se conhecer o mérito de um artista é preciso conhecer a fundo a arte. A
Pintura tem partes indispensáveis, outras que só fazem o pintor maior ou
menor. Das primeiras, é a primeira a imitação das coisas que se podem
conceber e representar, a segunda é a ideia, ou imitação das coisas não vistas,
mas só conhecidas no entendimento. (MACHADO, op. cit., 238)
Não apenas a presente obra de Cirilo revela a dupla qualidade do pintor como a
capacidade de imitar e a habilidade de imaginar, ou inventar, como os princípios básicos a
serem exercitados. Este ponto se repete em outras publicações, como a obra Nova academia
de pintura, e norteia todo o pensamento do autor, mesmo quando se refere à arquitetura. Ele
expressou esta dupla qualidade em sua própria autobiografia, conforme a passagem abaixo:
Passei a colorir e quando me pareceu que tinha copiado bastante quadros,
desejei inventar; esse desejo era intempestivo, mas eu não o podia conter; fiz
diversas tentativas, que só serviram para dar-me a entender as dificuldades da
empresa. Elas, contudo, não me desanimaram inteiramente, antes fizeram
aumentar a vontade que já tinha de ir a Roma. (MACHADO, 1823, p. 244)
Não bastaria ser um bom imitador, como os holandeses, os quais considerava
grosseiros imitadores do natural (MACHADO, op. cit., p. 238). O bom artista saberia unir a
ciência da técnica e a imaginação criadora. Isto se daria, primordialmente, pelo domínio
absoluto do desenho como a base para todas as outras linguagens, sobretudo para a pintura. E
é pela abordagem desta necessidade essencial do bom profissional que Cirilo tece a sua crítica
sobre os artistas barrocos. Este fato é fundamental para entendermos as transformações de fim
de século, pois a permanência de pintores da geração joanina e a vida longa da gramática
barroca em Portugal estariam em choque nesta fase de transição. Em uma passagem
87
importante, assim Cirilo se refere a grandes nomes do século XVII em tom comparativo e
explícita preferência pelo Renascimento:
Da graça ao contorno – consiste na elegância, que é a faculdade unida à
variedade das formas; pode havê-las até nas incorreções porque a correção
corresponde à beleza. Caravaggio não tinha nem variedade nem correção, e
por isso seu desenho não vale nada. Rubens não tinha correção nem beleza,
mas tinha alguma graça. Corregio tinha tal graça que faz esquecer alguma
descorreção. (MACHADO, op. cit., p. 238)
A crítica a Caravaggio não constituía uma novidade no campo teórico. Panofsky
menciona o tratado seiscentista de Giovani Pietro Bellori, quando este último considerou o
pintor condenável por obedecer exclusivamente ao modelo, sem nenhuma correção ou ideia
própria (PANOFSKY, 1994, p. 103). Bellori também condenava os excessos maneiristas
como o outro lado perigoso, também responsável pela decadência da pintura no século XVII.
Percebemos que Cirilo Wolkmar Machado seguiu os mesmos princípios de Bellori,
indiretamente através do trabalho de Winckelmann, principalmente quanto à noção de artista
como aquele capaz de extrair da natureza as coisas belas, sempre com o compromisso de
corrigir as possíveis imperfeições. Bellori, na obra A ideia do pintor, do escultor e do
arquiteto, obtida das belezas naturais e superior à natureza, avisa que:
A arte era então combatida por dois extremos contrários: um inteiramente
submisso ao natural, outro inteiramente submisso à fantasia. Em Roma, os
autores desse ataque foral Michelangelo da Caravaggio e Giuseppe de Arpino:
o primeiro copiava simplesmente os corpos, tais como aparecem aos nossos
olhos, sem nenhum tipo de eleição, e o segundo afastava-se completamente do
natural para seguir apenas a liberdade de seu instinto. (...) Assim, quando a
Pintura vivia seus derradeiros instantes, os astros mais favoráveis voltaram-se
para a Itália, e prouve a Deus que na cidade de Bolonha, rainha das ciências e
dos estudos, surgisse um grande espírito e que com ele renascesse a Arte
decaída e quase morta. Foi ele Aníbal Carracci... (BELLORI, apud
PANOFSKY, p. 158)
A consciência lúcida com que desenvolve seus estudos e o senso de atualização sobre
o gosto internacional fazem de Cirilo Wolkmar Machado o principal teórico do
Neoclassicismo português nos Oitocentos. O apreço pela herança clássica da Antiguidade e de
88
sua revalorização no século XIV sob os pincéis de Giotto são as diretrizes de sua abordagem
sobre a beleza, agora mencionada a partir de estudos sobre tratados do seu tempo, como os
mencionados acima.
Um dos pontos interessantes dos escritos de Cirilo encontra-se na menção sobre os
tratados de Francisco de Holanda, realizados no século XVI (MACHADO, op. cit., p. 50).
Este pintor e escritor do passado renascentista português defendia na ocasião a excelência da
arte antiga, antes mesmo de ter ido à Roma por patrocínio régio. Esta citação de Cirilo é
fundamental pela indicação sobre a circulação de impressos desta natureza na época. Revela
também o reconhecimento do autor sobre a tradição literária portuguesa, mesmo que limitada
sobre o assunto.
Podemos imaginar as discussões travadas quando vários artistas eram convocados para
um mesmo empreendimento, como a retomada das obras no Palácio da Ajuda a partir de
1802. Nesta ocasião, estavam juntos Domingos Antonio de Sequeira, Francisco Vieira
Portuense, Joaquim Machado de Castro e o próprio Cirilo, além de vários outros pintores,
escultores e arquitetos.
A presença de Cirilo Wolkmar Machado como intelectual semelhante à figura do
connaisseur do século XVIII expressa um alargamento do meio acanhado português de seu
tempo. Juntamente a ele, deparamos com outros personagens que também escreveram suas
impressões, um grupo de eruditos memorialistas preocupados em manter viva a herança
artística portuguesa para as gerações futuras. O escultor Joaquim Machado de Castro deixou
registrados fatos biográficos de cento e cinquenta artistas, publicação que circulou, mesmo
que incompleta, a partir de 179418
. O pintor José da Cunha Taborda, como Cirilo, preocupou-
se mais com a formação dos aprendizes, publicando a obra Regras da arte da pintura, de
1815.
18
A edição definitiva passou a circular em 1823, ano da morte do artista.
89
A atividade intelectual no meio artístico português consiste em sintoma maior das
transformações de virada de século, acompanhada de uma reflexão prático-teórica mais
amadurecida sobre os parâmetros estéticos então em voga. Certamente houve um período
antecedente, o qual lançou as sementes que germinariam no final dos Setecentos, como foi o
caso de André Gonçalves e sua preocupação verbalizada sobre o estatuto social do pintor.
Parece que o Iluminismo havia penetrado finalmente no campo artístico, após dominar o
território das transações econômicas e dos complexos jogos políticos, incitando os envolvidos
a registrarem os frutos das análises e do conhecimento adquiridos e torná-los públicos.
Pierre Bourdieu considera a participação de artistas intelectuais como sintoma do
processo crescente de autonomia do campo simbólico, característico de um período de maior
complexidade. O autor explica que a heterogeneidade cada vez mais notável do público
consumidor, além da ampliação da atuação burguesa no mercado de arte, alguns dos fatores
essenciais para a organização mais sistemática dos produtores de bens simbólicos em torno de
ideias afins, tanto estéticas, como foi o caso do Neoclassicismo, como sociais (BOURDIEU,
2007, p. 100). Ele nos diz que:
(...) o movimento do campo artístico em direção à autonomia que se realizou
em ritmos diferentes segundo as sociedades e as esferas da vida artística,
acelera-se brutalmente com a Revolução Industrial e com a reação romântica
ligada, de maneira mais ou menos direta conforme as nações, a uma secessão
dos intelectuais e artistas que não passa do reverso de uma exclusão e até
mesmo de uma relegação. (BOURDIEU, op. cit., p. 102)
A nova situação exigiu também a adaptação do cliente na relação com a encomenda,
pois o objeto de seu interesse estava no seio de discussões que envolviam referências à
Antiguidade e aos grandes mestres renascentistas. Não era somente a habilidade do pintor a
principal razão da contratação, como acontecia no passado, mas o somatório de fatores que
incluíam a ciência de referenciais teóricos, no caso, neoclássicos. Os tratados não eram
publicações lançadas exclusivamente para a formação artística, mas literatura indispensável
para a burguesia culta e a aristocracia reinol desejosas de esclarecimentos sobre estética.
90
Assim podemos dizer sobre a relação entre Domingos Antonio de Sequeira e a família
Quintella, anteriormente citada.
Foi este o ambiente que Manoel Dias de Oliveira vivenciou em sua breve passagem
por Lisboa. Da Aula Régia de Desenho e Figura aos anos que passou em Roma, experimentou
uma formação semelhante à dos protagonistas portugueses aqui analisados, desde Cirilo
Wolkmar Machado, o mais velho da geração neoclássica. Diferente das estampas classicistas
que começavam a chegar a solo brasileiro, o pintor fluminense presenciou o estilo no local de
sua formação e teorização, algo que o contaminaria a ponto de buscar soluções para modificar
o insipiente sistema de aprendizado de seu ofício na Colônia a partir do interesse de uma
classe específica por este tipo de instituição. Se a arte ainda era majoritariamente religiosa,
esta ganharia uma roupagem neoclássica, meticulosamente direcionada pelo desenho. O êxito
de Manoel Dias de Oliveira deveu-se, sobretudo, pela ação de uma aristocracia de formação
europeia que sabia exatamente o que poderia aproveitar deste artista local. Seria esta
aristocracia a principal cliente antes da chegada da Família Real ao Brasil.
91
2 O CAMPO RELIGIOSO: ENCOMENDAS A SERVIÇO DA FÉ
(...) Como é manifesto, por si e pelas referidas razões,
que as imagens são muito importantes na instrução do
povo, não nos estenderíamos muito mais sobre esse
assunto e evitaríamos o supérfluo, se a isso não
fôssemos levados pela arrogante inconveniência dos
hereges, que apesar de tudo ousam censurá-las e se
esforçam para bani-las de todos os lugares por
considerá-las nocivas à salvação dos homens.
Cardeal Gabriele Paleotti, 1582
A investigação sobre as causas impulsionadoras das mudanças de gosto na virada do
século XVIII para o XIX deve passar primeiro pela pintura de temática cristã, pois foi o
gênero mais importante e numeroso em todo o período colonial. Transplantada para o Brasil
sob o âmbito contextual do Concílio de Trento, a pintura religiosa desenvolveu pouca afeição
a experimentalismos, mantendo na forma um radical barroco que agregou em sua essência
uma mescla com outras fontes, como o Maneirismo, o Rococó e, mais tarde, o
Neoclassicismo. O resultado, que poderia a primeira vista parecer homogêneo, guarda
interessante diferenciação de escolas que valorizam mais ou menos alguns elementos, como
as cores acentuadas na pintura baiana ou as contidas na fluminense. No geral, a harmoniosa
combinação de estilos sob a base barroca ocorre principalmente pela filiação de todos à
origem comum, a Antiguidade greco-romana. Com a sistematização das regras e sua difusão
pelas academias, desde o Renascimento, as mudanças estilísticas circularam em torno de uma
92
concepção de espaço que somente seria quebrado nas experimentações modernistas do século
XIX.
O estudo da temática religiosa na pintura colonial do Rio de Janeiro compõe parte
inarredável da mesma situação de formação e desenvolvimento da Igreja na região, momento
histórico em que arte e religião estão inseridas em um complexo sistema de valores. A
organização da doutrina católica ao longo do século XVI, marcada pelos cismas travados pelo
protestantismo, integrou a imagem a um jogo baseado no misto de didatismo e persuasão. A
pintura aparece como aliada indispensável à transmissão de mensagens que procuraram
reforçar tudo aquilo que era questionado pelos protestantes, como as devoções à Virgem e à
numerosa legião de santos canonizados desde o Cristianismo primitivo (MÂLE, 1982, p.
168).
A arte no Brasil se desenvolveu sob a tutoria europeia, cristã. A ausência de uma
produção voltada para o consumo civil, sobretudo no que se refere à pintura, resumiu, nos
dois primeiros séculos de colonização, as criações inicialmente monásticas e conventuais de
peças dedicadas ao divino. Assim, as Ordens Religiosas, sobretudo as Primeiras, inauguraram
um lento processo de formação de profissionais que culminaria, mesmo que indiretamente, na
ascensão das oficinas de leigos dos Setecentos.
As novas devoções pós-tridentinas, as variadas invocações da Virgem e os temas mais
abundantes, como o êxtase, as visões, a penitência e o martírio, estão presentes nos templos
fluminenses, colocando a Colônia no mesmo programa imagético encontrado nas capitais
católicas da Europa. Contra a iconoclastia protestante, a época barroca acentuou nas imagens
a função propagandística, com mensagens de forte apelo aos sentidos. Esta função seria cara
ao ambiente colonial, devido a fatores que poderiam concorrer como possível fracasso da
missão cristã: o desafio de converter nativos considerados pagãos e a difícil manutenção da fé
93
católica em um lugar de dimensões continentais com graves problemas de comunicação entre
os principais núcleos urbanos.
Compreender o Barroco como fenômeno social é essencial para a identificarmos os
aspectos que começaram a mudar na transição do século XVIII para o XIX. A gradual
absorção do Neoclassicismo nos leva a supor que o papel do encomendante neste instante foi
fundamental para percepção dos novos rumos, pois um estilo traz consigo concepções de
mundo que estão presente nas relações entre os produtores de bens simbólicos e a função
destes bens junto à sociedade. Do mesmo modo que o Rococó foi mais que uma mudança
estilística, pois afetou a postura do fiel diante do sagrado, o Neoclassicismo seria um
indicador de uma mentalidade também em transformação.
Apesar de contar com certa manutenção de alguns elementos do amplo programa que
citamos acima, o início dos Oitocentos assistiu a uma inovação iconográfica ao ter obras com
figuras santas em cenas que misturam personagens civis e, em alguns casos, mitológicas. De
resto, a temática religiosa atravessou o período colonial com um conservadorismo peculiar,
ligada a funções bem determinadas. Enquanto Portugal absorvia a sua maneira a Ilustração, da
qual se beneficiaram Portuense e Sequeira, o Brasil era mantido em um sistema relativamente
fechado, resultado da política mercantilista a qual estava atrelado, sob o chamado pacto
colonial19
. Lembramos, ainda, que o conservadorismo não impediu certas experimentações,
seja pela necessidade de compensar a total falta de recursos com iniciativas criativas, seja pela
presença da cultura negra e indígena no fazer artístico colonial20
.
O papel das cortes ibéricas no desenvolvimento da iconografia barroca teve seu eco
nas colônias americanas, reverberando a retórica de uma arte essencialmente persuasiva
19
Na prática, uma colônia existia para servir aos interesses metropolitanos e isto implicava o isolamento, pois
não era permitido o comércio com outros países. 20
Em alguns casos, o fator cultural emprestou soluções originais a certas composições, muito pela formação
precária dos artistas coloniais.
94
através da ação missioneira das ordens religiosas, sobretudo a jesuíta. O naturalismo ressurgiu
aliado ao drama importado do teatro, linguagem popular que ganhou forma peculiar ainda na
época dos experimentalismos intelectualistas da geração maneirista de El Greco. O povo,
distante das discussões sobre a forma artística travadas nos círculos de elite, seguiu o seu
caminho criativo com a predominância da comunicação fácil e direta, como as crônicas e
paródias da vida cotidiana e os dramas carregados de emotividade. E é justamente esta clareza
de comunicação o ponto nodal da arte barroca, nascida na massa e transformada pelos poderes
monárquico e eclesiástico para tocar a própria massa (MARAVALL, 1997, p. 152). Giulio
Carlo Argan, na obra Imagem e persuasão, nos diz que:
(...) a imagem não age nem sobre a ação nem sobre a decisão, mas atua sobre
as intenções: não fornece esquemas ou modelos, mas solicitações.
Evidentemente estas serão tanto mais eficazes quanto melhor corresponderem
às atitudes, aos interesses e ao costume dos vários estratos sociais. É claro que
há uma estrutura hierárquica que transmite a solicitação de cima para baixo,
mas há também a tendência oposta, que emerge da base da pirâmide
hierárquica e conquista uma influência cada vez maior no tratamento de
questões de interesse geral. (ARGAN, 2004, p. 58)
Argan revela o caminho de mão dupla da formação de uma cultura essencialmente
barroca, quando a linguagem tipicamente popular é absorvida pela elite e devolvida à massa
com elementos familiares a ela. O papel dos jesuítas na conformação de um modelo capaz de
atrair através da persuasão extrapola a esfera do religioso e penetra em todas as esferas de
poder. No mesmo sentido, Pierre Bourdieu explica a noção política inerente à produção dos
objetos religiosos, perfeitamente aplicáveis à concepção barroca de transmissão da mensagem
cristã. Ele comenta que:
Tendo em vista que uma prática (ou uma ideologia religiosa), por definição,
só pode exercer o efeito propriamente religioso de mobilização (correlato ao
efeito de consagração) na medida em que o interesse político que a determina
e a sustenta subsiste dissimulado em face tanto daqueles que a produzem
como daqueles que a recebem, a crença na eficácia simbólica das práticas e
representações religiosas faz parte das condições da eficácia simbólica das
práticas e das representações religiosas. (BOURDIEU, 2007, p. 54)
95
O contexto da doutrina católica no século XVII considerava a imagem uma parte
integrante de um sistema complexo de propagação da fé. Isto implicava a associação direta
aos demais instrumentos de comunicação, como os sermões, a leitura dos Evangelhos, as
festas litúrgicas e populares e o contato íntimo entre os fiéis e os frades das diversas ordens.
Assim, a essência polissêmica da imagem ganhava um direcionamento específico, uma
ancoragem que estabelecia o vínculo entre os atributos identificadores de cenas e personagens
e a sua correta leitura. A Virgem da Conceição, figura de destaque no mundo português,
exemplifica a bem-sucedida rede de comunicação entre as linguagens. A aparente
complexidade de sua iconografia, a qual abarca uma mistura variada de elementos simbólicos,
não parecia obstáculo para os devotos, mesmo os mais humildes habitantes das pequenas vilas
coloniais.
A assimilação das mensagens icônicas devia-se, sobretudo, à ação dos religiosos. A
consciência da majoritária parcela analfabeta da população, situação verificada tanto nas
capitais católicas europeias quanto nos centros principais das colônias americanas, africanas e
asiáticas, contribuiu para criação de uma face imagética para o programa da Igreja. Investir
em imagens e no ensino de seus códigos significou a garantia de transmissão da palavra
divina, algo que o Cristianismo sempre soube lidar desde a época das perseguições romanas.
Não surpreende a valorização das cenas de narrativas, feitas para provocar um comportamento
puramente devocional. Segundo Argan:
A imagem devocional já aparece na pintura maneirista tardia, com a função de
dar à prece um objeto sensível. No século XVII ela se torna um instrumento
da prática devota e um “gênero” da figuração histórico-religiosa; está sempre
ligada a uma prática específica de devoção, às vezes a preces específicas; tem
uma função mais exortativa que representativa ou de celebração; e é
simplificada a fim de prestar-se mais facilmente à repetição e a uma maior
divulgação. (ARGAN, 2004, p. 102)
96
Tamanho investimento na imagem vem revestido da ideia da primazia da visão em
relação aos outros sentidos. Preconizado desde o Renascimento, o conhecimento adquirido
através do olhar ganha na época barroca importância capital, por ser direto e agir com eficácia
na experiência psicológica. Atrair pelo afeto, direcionar no fiel ou súdito a entrega do corpo e
da alma, fazer de sua adesão uma força multiplicadora são alguns dos aspectos
impulsionadores da produção de imagens. Daí a iconografia dramática receber uma forma
naturalista, que atua no reconhecimento das partes através do sentido do tato visual, o qual
mistura a matéria aparentemente palpável em representação espiritual que parece possível
alcançar. José Antonio Maravall, na obra A cultura do Barroco, nos diz que:
O valor da eficácia dos recursos visuais é incontestado na época. Vinha do
fundo medieval a disputa sobre a superioridade do olho ou do ouvido para a
comunicação do saber a outros. Enquanto no mundo medieval se optou pela
segunda via, o homem moderno torna-se adepto da primeira, ou seja, da via do
olho. No Renascimento, isto que acabamos de sustentar se confirma
plenamente, e, em algum momento, mencionamos a defesa que do olho faz
um Galileu, entre outros. Essa disputa se reproduziu, e até mesmo se
intensificou, durante o Barroco. Difundiu-se muito entre os escritores
franceses do momento e, em relação aos espanhóis, acrescentemos aos
testemunhos que registramos em outras partes o de Suárez de Figueroa, que
faz uma declaração perfeitamente ajustada a nosso ponto de vista, reforçando-
o consideravelmente: ambos, segundo ele, olhos e ouvidos, são portas de
acesso válidas para o conhecimento das coisas, mas em suma, são os olhos,
entre os sentidos que servem à alma, por onde entram e saem muitos afetos.
(MARAVALL, 1997, p. 391)
Os novos tempos foram de afirmação, continuidade e renovação. Afirmar a verdade da
Igreja na figura principal do Papa e continuar com a sua doutrina evangelizadora constituíram
as ações básicas de resposta às contestações protestantes. Renovar as estratégias de
transmissão dos conteúdos que explicassem os porquês desta continuidade, frente aos apelos
oriundos de outra forma de exercitar a fé cristã, foi a especificidade do período barroco. Aqui,
nesta particularidade, as artes emprestaram toda a sua força persuasiva para reorganizar a
sociedade em profunda crise.
97
Os ecos do Concílio de Trento invadiram o século XVII, mas seria simplificador
caracterizar a arte religiosa da época apenas como uma servidora dos ideais contrar-
reformistas. Percebemos que a arte barroca participou de uma situação mais ampla que
envolvia a tentativa de manutenção dos interesses das classes que mantinham
tradicionalmente o poder. A crise iniciada no século anterior trouxe consigo o aprimoramento
da consciência individual, o que implicou o entendimento crítico sobre a situação caótica
vivenciada no momento. Esta consciência, perigosa por abrir portas para a dispersão social,
exigiu das cortes absolutistas seiscentistas a elaboração de complexas estratégias de controle,
como a divulgação do poder central como o único meio competente para a restauração da
ordem e do equilíbrio. Assim, a religião, também em crise, esteve contida em um conjunto de
fatores que interligaram as esferas da economia, da política e do social.
A urgência em conservar os agentes tradicionais do poder, inseridos em uma
turbulência causada por múltiplos vetores, explica em parte o gosto pelo drama. A arte
gesticulada e intensamente emocional do barroco religioso, longe de conter sentimentalismos
exagerados de quem a produz – considerando aqui a parceria entre o cliente e o artista –
evidencia uma clara intenção de agir no plano psicológico. É uma arte projetada e funcional, a
serviço do poder que a Igreja constituiu um dos pilares. Titus Burckhardt a diferencia da
produção medieval, esta última, segundo o autor, essencialmente religiosa por ser toda ela
símbolo e instrumento do divino (BURCKHARDT, 2004, p. 251).
Werner Waisbach, em sua análise sobre a plástica barroca, diz que:
Os esforços naturalistas do barroco, comparados com qualquer período
anterior da arte cristã, aspiram a dominar a realidade, enquanto a mímica e a
expressão fisionômica tratam de reforçar ali o caráter real do assunto,
mediante significativos e apurados traços expressivos. Cabeças de rostos
inacabados, bocas abertas, olhos em branco, para caracterizar dor, angústia,
morte e êxtase, segundo pede cada situação, são representados atendendo a
observação da realidade. As figuras santas e os seres sobrenaturais aparecem
individualizados e subjetivados como homens vulgares. Este gênero de
caracterização naturalista era familiar à arte cristã desde o gótico, mas o grau
98
de concepção subjetivista se acentuou poderosamente no barroco. Nela influiu
o desenvolvimento e o enriquecimento da experiência e dos conhecimentos
psicológicos e antropológicos. (WAISBACH, 1948, p. 323)
Heinrich Wölfflin, na sua célebre comparação entre o Renascimento e o Barroco,
analisou o par antitético que intitulou como linear versus pictórico (WÖLFFLIN, 2000, p. 27).
Por desvalorizar os contornos a favor dos contrastes cromáticos e luminosos, os artistas
barrocos buscaram aprimorar as pesquisas naturalistas anteriores, objetivando a representação
de espaços novos, dramáticos e sensualistas. O colorismo dos Carracci ou o tenebrismo de
Caravaggio e a valorização das expressões teatrais carregadas de dinamismo encobriam a
pintura de forte carga passional, escondendo a sua real face racionalista, não notada por
Wölfflin e por muitos teóricos posteriores a ele. O desenho, símbolo do intelecto na arte,
permaneceu como porto seguro da época barroca. Os estudos preliminares a cada composição,
a proliferação das gravuras a partir de técnicas mais apuradas e a abertura de academias,
sobretudo a do reinado de Luís XIV, deram o testemunho de que toda emoção era ensaiada,
como uma peça de Shakespeare.
Como mencionamos anteriormente, a forma barroca por excelência foi pensada a
partir de linguagens visuais para sensibilizar o olho. Nesta função primordial, a pintura
adquiriu vantagens quando comparada as outras linguagens, justamente pelos artifícios que
emprega. A capacidade do pintor de recriar a realidade através de minuciosa pesquisa de
texturas, de sugerir volumes e espaços em plano bidimensional e de conferir movimento e
dramaticidade em um meio estático por natureza fez dele um personagem central na difusão
da fé católica. Maravall afirma que:
Com muito menos meios que a escultura e a arquitetura, já que não pode
contar com a terceira dimensão do mundo natural, ou seja, não pode servir-se
fisicamente do volume, a pintura, no entanto, demonstra melhor até onde vai a
grande força criadora do homem: por encontrar-se mais distante da natureza
do que as outras artes, imita-a melhor que qualquer uma. Esta consideração
nos revela o sentido da preferência que, por sua vez, os homens de
99
mentalidade barroca tiveram pela arte pictórica, na medida em que é este um
modo de operar humano capaz de refazer seus modelos naturais.
(MARAVALL, 1997, p. 402)
O racionalismo sob a máscara do teatro levanta questões que serão relevantes para o
caso colonial, como a necessidade do governante compreender quem se governa. A Igreja
teve nos jesuítas os arautos do conhecimento do outro que, conforme mencionamos acima,
fornecia os ingredientes necessários à formulação do tipo de direcionamento que o mesmo
receberia. O estudo do comportamento e da psicologia que diferenciava indivíduos e povos
compunha a base do pensamento político no qual a Igreja estava inserida. Pensamento capaz
de prever que a opção ideológica, nem sempre controlada pela elite, podia deslocar indivíduos
para outras formas de exercício da fé. Os protestantes haviam deixado clara a abertura de
outro caminho para se chegar a Cristo. Segundo Argan:
Como o problema do comportamento parece bem mais importante que o da
própria natureza humana, e já que o comportamento se exprime na esfera
social, a questão da sociedade e de sua organização funcional logo se
apresenta como essencial. Não só a divergência religiosa, que divide a
humanidade cristã em dois grupos distintos e opostos, implica a possibilidade
de uma salvação ou de uma danação coletivas, dependendo unicamente da
escolha inicial, mas tanto a doutrina reformada quanto a ortodoxa colocam a
questão da fé e de um comportamento sociais: os reformistas limitam a
autonomia individual revogando o princípio do livre-arbítrio, os católicos
indicam a fé e o culto de massa como as melhores defesas contra a tentação da
heresia. De qualquer modo, em ambos os casos a religião se preocupa mais em
dirigir as escolhas e os comportamentos humanos do que em contemplar e
descrever a lógica providencial do universo. E, já que há controvérsia, ambas
as partes buscam argumentos que possam orientar a escolha e impedir as
dissidências. Em suma, persuadir agora é bem mais importante que
demonstrar. (ARGAN, 2004, p. 49)
A arte dramática do Barroco católico traduz o paradoxo do sistema das monarquias
absolutistas que transitaram entre a força militar de repressão e a atração por seus próprios
ideais, através da persuasão. O exército e a Inquisição foram, muitas vezes, a mesma coisa,
pois representavam a voz dos soberanos através da violência física. As festas oficiais, o teatro
e as artes em geral eram, por outro lado, os instrumentos persuasivos utilizados para manter o
100
indivíduo parceiro daquele que o dirigia. Parceria que levanta um ponto crucial para o sucesso
de todo o programa barroco: a consideração do público como participante ativo da obra.
A fisiologia das paixões foi distanciada do caráter empírico da geração de Leonardo da
Vinci para mergulhar no campo das emoções orquestradas. A gramática corporal dos santos
barrocos não apenas diziam, mas comoviam e atraíam pela afetividade. Como bem diz José
Antônio Maravall:
É preciso aceitar a presença das forças irracionais dos homens, seus
movimentos afetivos, conhecê-los, dominar seus recursos e aplicá-los
convenientemente, canalizando sua energia para os fins pretendidos. É preciso
operar com os homens do modo como se opera com os elementos da natureza,
só governáveis a partir de suas próprias forças. (MARAVALL, 1997, p. 148)
O autor complementa:
Comover o homem, não o convencendo de forma demonstrativa, mas
afetando-o, de modo que sua vontade seja acionada: esta é a questão. Só assim
se consegue arrastar o indivíduo, suscitando sua adesão a uma atitude
determinada, e somente por essa via se logra mantê-lo solidário. Para a mente
barroca, é a única maneira de atrair para si uma massa cuja opinião leva em
conta, de modo a impor-se a ela, canalizando sua força na direção desejada.
(MARAVALL, op. cit., p. 149)
Como podemos perceber, o pensamento de Maravall se afina perfeitamente com as
análises de Argan sobre a filiação do Barroco à Retórica de Aristóteles (ARGAN, 2004, p.
37). O artista devia refletir em sua obra o sentimento de religiosidade do outro, espelhada em
imagens cuidadosamente estudadas com a intenção de capturar a atenção, de tocar a emoção e
de atrair forças favoráveis à manutenção de um sistema que se desejava conservado.
Persuadir, neste sentido, não seria uma ação em si, mas justamente a pesquisa de como atingir
os fins pretendidos. A arte barroca foi uma arte de meios, de artifícios controlados e
teorizados para se alcançar o irracional. Assim, as narrativas não deviam demonstrar fatos,
101
mas fazê-los acontecer a partir da adesão do espectador. Não era ao intelecto que a pintura se
dirigia e sim às paixões.
Por visar o irracional, muitos teóricos insistiram em contrapor o aparente caldeirão de
sentimentalismos barrocos ao cientificismo matemático do Renascimento. Vale salientar que
este período histórico foi inicialmente abordado no século XVIII sob olhares preconceituosos,
tanto no que diz respeito à forma, quanto aos temas. Relevante dizer que a associação do
Barroco aos valores eclesiásticos e monárquicos, alvos de ferrenhas críticas no Século das
Luzes, colaborou para a tardia percepção de sua real natureza racional.
Insistir no caráter funcional da arte barroca torna-se imprescindível ao entendimento
do processo de estabelecimento da Igreja na América Latina. A heterogeneidade de
civilizações nativas do imenso continente, a grande diferença entre estas culturas e os
europeus e a variedade notável da geografia da região são alguns dos fatores que exigiram
uma sistematização aprimorada do projeto evangelizador. Unificar a terra através da língua
sob conteúdo catequético conferiu o tom prático do programa, enquanto as artes, sobretudo a
arquitetura, impregnaram a visão e os demais sentidos de todo o aparato simbólico
correspondente.
A essência da arte barroca europeia penetrou nas colônias americanas transplantada,
mantendo-se fiel aos seus princípios ideológicos básicos e alterando, conforme a absorção de
particularidades culturais locais, os elementos da forma. A diversidade de escolas regionais
afirma a internacionalidade do Barroco, estilo flexível e orientado por eficaz e rígido
programa iconográfico. A unidade deste estilo encontra-se também na repetição do modelo
persuasivo de apresentação de conteúdos, os quais receberam novas diretrizes após o Concílio
de Trento. O produto final é discursivo, diferente do formalismo renascentista.
102
O pintor colonial deve ser visto como um instrumento eficaz na política persuasiva da
Corte e da Igreja. Sua atividade, entretanto, o diferia do artista da Metrópole pela ausência em
seu trabalho de um projeto consciente e participativo na conjuntura geral do poder. Quando
observamos um André Gonçalves questionador e ativo, mesmo sem grandes sucessos em suas
reivindicações, vemos alguém articulando estratégias para o incremento de sua própria
profissão, integrado à rede de interesses que movia a sociedade barroca. O artista colonial
seguia o fluxo da massa como produtor de peças para o divino, em uma estrutura social que o
via como artesão.
Sabemos que em Portugal a pintura se liberta das artes mecânicas ainda no século
XVII. Porém, tal conquista não poderia atravessar o Atlântico para um lugar onde a classe
mais baixa se distribuía nas diversas funções artísticas, incluindo, a partir da segunda metade
dos Setecentos, negros, pardos e mulatos. É sintomática a ausência da assinatura nos painéis
coloniais, salvo em raríssimos casos. O anonimato que tanto dificulta o pesquisador nas
atribuições das obras, indica a pouca consciência de um fazer que na Europa incitava o artista
a conquistar posições de destaque, como, por exemplo, ser nomeado pintor real ou participar
dos salões das academias.
A circulação de impressos, no qual a gravura teve papel fundamental de divulgação
dos conteúdos, complementou a rede de informações iconográficas de todo o período
colonial. Aqui, a figura do cliente aparece como peça-chave no processo de criação local,
funcionando como elo entre as oficinas europeias de produção de impressos e o artista. Ao
longo do século XVII e parte do XVIII, o pintor do mundo ibero-americano esteve
diretamente filiado ao projeto de seu cliente, época de ascensão das gravuras de tradução. A
prática da cópia de obras consideradas consagradas através de estampas acontecia nos dois
lados do Atlântico, não sendo exclusivo ao mundo colonial, como se costuma apontar com
certa negatividade. A cópia representava, entre outros fatores, uma escolha que, na maioria
103
dos casos, independia da vontade do pintor. Alfonso Sánchez, exemplificando o caso espanhol
na obra Pintura barroca em España, nos diz que:
Geralmente, o pintor espanhol do barroco sempre trabalha para alguém. Por
não existir uma sociedade aberta de tipo burguês que solicita uma demanda de
pintura de uso doméstico, como a holandesa, o pintor se vê freqüentemente
obrigado a trabalhar por encomenda e não é comum que pinte por sua própria
iniciativa para vender livremente o produto de seu trabalho. (SÁNCHEZ,
2005, p. 29)
O problema da cópia gira inevitavelmente em torno da função da pintura em uma
sociedade essencialmente imagética. A associação entre o símbolo e a realidade, a ponto de
não haver, em muitos casos, a distinção entre estas concepções, consiste em um dos pontos
nodais do pensamento seiscentista. O santo pintado era o próprio santo, em uma aplicação da
imagem como apresentação e não como representação. A recorrência a modelos conhecidos e
sua ampla circulação também concordavam com o espírito propagandístico que entendia a
repetição como estratégia de transmissão eficaz das mensagens. Entre a cópia e a invenção,
em um sistema de produção ainda dominado pelo gosto do cliente, a primeira prática
aconteceu com maior frequência.
O aprimoramento técnico da gravura no final do século XVII contribuiu para a maior
difusão da imagem e da ampliação do público consumidor. As funções tornaram-se, por
conseguinte, mais variadas, aumentando também as fontes de consulta para a execução da
pintura. No mundo colonial latino-americano, as gravuras de tradução e os registros de santos
foram os modelos mais comuns à disposição do artista, ambos trazidos, principalmente, por
membros das ordens e irmandades religiosas.
Os registros de santos são uma variante medieval do costume de adquirir objetos nos
locais de peregrinação, como uma espécie de prova do cumprimento de uma jornada
espiritual. As romarias são tão antigas quanto o próprio Cristianismo, constituindo parte do
104
receituário litúrgico desta religião. As primeiras ocorreram em Roma (daí o nome romaria),
logo após o martírio e sepultamento do apóstolo Pedro. O auge das peregrinações aconteceu
no período românico, época das Cruzadas e, somando-se no caso ibérico, às viagens a
Santiago de Compostela. A tradição das longas jornadas a locais santos ingressou na Idade
Moderna simplificada, transformando-se em deslocamentos a templos que possuíam relíquias
de santos ou em ocasiões previstas no calendário, como festas e dias especiais. Os objetos de
registro de estada do fiel continuaram, mas com o sentido mais próximo de uma lembrança
daquela prática devocional. Neste contexto, a gravura com a figura do santo desempenhava a
função de registro.
O cunho popular das gravuras de santos não esconde a produção de tipos mais
eruditos, com elegantes desenhos de molduras e medalhões com as insígnias dos santos ali
representados. Estas, geralmente a buril, diferenciavam-se das mais rústicas feitas na técnica
da xilogravura, reservadas a gente mais simples. Os dois modelos apareceram com certa
constância nas colônias latino-americanas e estiveram diretamente atreladas à condição
financeira da irmandade que realizava a sua importação. As igrejas consumiam variedade
considerável de objetos para suprir as demandas devocionais de seus fiéis, espalhando notável
quantidade de figuras que serviram como modelos a artistas de diversas procedências. Este
fato colabora para a análise da heterogeneidade de estilos encontrados, muitas vezes, no
conjunto de obras de um mesmo artista.
A história da gravura em Portugal remonta ao século XV, época em que a imagem era
diretamente associada à tipografia. A técnica da xilogravura avançou até os princípios dos
Seiscentos como prática dominante, sendo raros os exemplos feitos em metal até então
(CHAVES, 1927, p. 12). O cobre foi difundido com maior frequência como matriz no período
da União Ibérica, introduzindo um repertório formal típico das escolas hispânicas e
flamengas. Mesmo com a absorção de novas técnicas e a apresentação de notável crescimento
105
qualitativo, a gravura produzida em Portugal continuava vinculada ao livro, muitas vezes
resumida unicamente à ilustração da capa. As imagens avulsas, geralmente registros de
santos, eram provenientes das oficinas de escolas internacionais do período, como Antuérpia e
Roma.
A fase de ouro da gravura portuguesa ocorreu no reinado de D. João V, quando, em
1720, a Academia Real de História foi inaugurada. Distinguia-se a instituição de recuperar e
proteger documentos antigos, além de promover o desenvolvimento da literatura através da
composição e publicação de livros. Na esteira deste notável crescimento das letras em
Portugal, gravadores estrangeiros foram contratados para a ilustração, responsáveis pela
proliferação da gravura em metal no país. Estes artistas também contribuíram para o ensino de
técnicas consideradas modernas a novas gerações de gravadores portugueses. A gravura
avulsa não apenas alcançou extraordinária difusão, mas também exibiu as marcas de um
refinamento somente encontrado, em épocas anteriores, nas peças provenientes de outros
países21
.
A gravura de tradução, corrente em lugares de forte tradição gráfica desde o século
XVII, despontou em Portugal no período joanino como material também produzido por
artistas locais. Os exemplares encontrados nas principais escolas portuguesas dos Seiscentos
eram comumente fruto de importação, o que evidencia a majoritária interferência do gosto do
cliente na escolha do repertório iconográfico e formal a ser executado. A mudança
proporcionada pela abertura da Academia Real de História não diminuiu a figura do
encomendante no processo, mas apontou para uma nova realidade no que se refere à absorção
e transmissão de modelos: os pintores da geração joanina continuaram a mercê do gosto
21
A coleção de gravuras da Biblioteca Nacional de Lisboa mostra a proliferação da gravura em Portugal no
século XVIII. Quando comparada ao número relativamente pequeno de exemplares do século anterior, a coleção
da época joanina revela a vasta circulação de impressos a partir de então, o que interfere diretamente na difusão
de modelos iconográficos que serão utilizados tanto em Portugal quanto no Brasil.
106
alheio, com a novidade de se tornarem também referência para as gravuras de tradução
através de obras de sua autoria. Isto demonstra a maior maturidade do meio artístico
português, revelando nomes de destaque como André Gonçalves e Vieira Lusitano.
A universalidade do Barroco não teria alcançado esta abrangência sem o
aprimoramento dos meios de comunicação. No caso da imagem, a gravura de tradução foi,
sem dúvida, a grande protagonista da difusão dos modelos iconográficos consagrados,
reconhecidos, sobretudo, pelos líderes da Igreja. Como exemplo de sua extensão, destacamos
o caso de Manoel da Cunha e Silva, pintor fluminense de meados do século XVIII que
executou uma bandeira de procissão cuja fonte remete a importante obra de Peter Paul
Rubens, a Descida da Cruz (figuras 13 e 14). A disposição dos elementos segue
criteriosamente o seu modelo, com exceção da distribuição das cores e intensidade da luz. Por
tratar-se de tradução de um meio gráfico geralmente destituído de cores, o resultado mostra
algumas inversões, como observado na troca do vermelho original da túnica de São João pelo
azul, na obra do pintor fluminense.
Alguns aspectos da obra de Cunha e Silva trazem subsídios para entendermos
características formais da pintura colonial setecentista em geral. O primeiro ponto refere-se à
preferência, verificada em todas as escolas regionais, por compor a partir do jogo de cores,
sem contrastes entre zonas claras e escuras. A pintura portuguesa havia, desde as décadas
iniciais do século XVIII, abandonado o tenebrismo da fase anterior. Esta tendência nem
chegou a formar escola no Brasil, mesmo no século XVII. A transposição da gravura para o
painel muitas vezes exigia uma percepção de nuances de luz que vários profissionais não
eram capazes de executar. Vale salientar que a pintura seiscentista colonial foi fruto de artistas
com pouca experiência, em ambiente ainda inóspito para a formação de uma produção de
qualidade, salvo os pincéis de poucos frades e monges de origem europeia.
107
Figura 13 – Peter Paul Rubens. A Descida da Cruz. 1612. Óleo sobre madeira. 462 x 341 cm. Catedral de Antuérpia.
Figura 14 – Manoel da Cunha e Silva. A Descida da Cruz. Óleo sobre madeira. Igreja de N.Sra. do Bonsucesso, Rio de Janeiro.
Bom lembrar que o Setecentos português seguiu as diretrizes do Barroco tardio
romano, este mais afeito à herança colorista dos Carracci22
. As características principais são a
claridade como elemento fundamental, a releitura dos modelos classicistas de Rafael e de
Correggio e a minuciosa pesquisa de atitudes e movimentos das personagens
(PACCIAROTTI, 2000, p. 29). Os pintores bolsistas da geração de D. João V receberam
diretamente de Roma as lições dos mestres seguidores dos Carracci e, certamente,
contribuíram para que o gosto colorista se espalhasse pela América portuguesa.
A geração de Manoel da Cunha e Silva foi, por conseguinte, colorista. Os exemplares
sobreviventes de João de Sousa, Leandro Joaquim e Raimundo da Costa e Silva, pintores
contemporâneos, atestam tal filiação formal. A imagem que ora analisamos, apesar de
escurecida pelo tempo, revela a distribuição uniforme da luz em toda a composição, diferente
22
São eles os bolonheses Ludovico, Agostinho e Annibale, ativos desde o final do século XVI.
108
da pintura original do mestre flamengo. Toda a dramaticidade do jogo entre claros e escuros
cedeu lugar aos tons azulados sem grandes contrastes. O destaque se dá pela centralização de
Cristo em área embranquecida pelo tecido.
A cópia mostra ainda a pouca familiaridade do pintor com a representação anatômica
do nu. As várias deformidades do abdome e de outros músculos do corpo de Cristo
denunciam a ausência de uma escola capaz de fornecer os exercícios necessários para a
correta definição das partes, ou seja, do desenho como estudo preliminar. Submetido à
qualidade nem sempre admirável da gravura, o pintor colonial mediano sucumbia ao erro
muitas vezes inocente e foram raros os que desenvolveram a habilidade para superar as
dificuldades básicas da profissão.
A interpretação de Manuel da Cunha e Silva a partir da gravura correspondente à obra
de Rubens manteve, no entanto, a movimentação dramática da cena comum ao Barroco. A
profusão de elementos faz com que os detalhes desapareçam a um primeiro olhar,
direcionando o foco para a figura central, a imagem do corpo sem vida de Cristo. Neste
sentido, o artista foi bem-sucedido em sua transposição da linguagem gráfica para a pictórica,
pois a mensagem, passada através do conjunto teatralizado de personagens, convida o
espectador a participar da ação ali orquestrada. O sentido fundamental da obra barroca, ou
seja, a de provocar comoção, aparece na pintura do fluminense.
A grande variedade de gravuras de tradução e a sua múltipla referência ao passado
artístico europeu promoveram na produção colonial uma verdadeira mistura de estilos. Se
buscarmos no conjunto de obras do mesmo Manoel da Cunha e Silva, encontraremos,
juntamente ao Barroco flamengo de Rubens, elementos renascentistas, maneiristas e rococós.
Daí a sensação de heterogeneidade no trabalho de um pintor e a dificuldade do pesquisador
em reunir tamanha diversidade na atribuição a uma mesma pessoa. Lembramos do papel
109
preponderante do encomendante, representado na sua grande maioria pelas irmandades, no
processo de crescente diversificação de temas e respectivas fontes. Myriam Andrade Ribeiro
de Oliveira, na pesquisa intitulada O Rococó Religioso no Brasil e seus antecedentes
europeus, nos diz que:
Em que se pesem fatores de cunho negativo como a influência anticlerical do
Iluminismo, a expulsão dos jesuítas em 1759 e a crise generalizada das demais
ordens religiosas gerada, em parte, pelo excesso de interferências do poder
civil, o século XVIII brasileiro foi um grande século religioso. A principal
prova está no imenso número de novas construções religiosas nesse período,
devidas na maior parte à iniciativa das associações laicas conhecidas pelos
nomes de confrarias, irmandades e ordens terceiras. (OLIVEIRA, 2003, p.
167)
Mais adiante afirma que:
A proliferação dessas associações religiosas atingiu em fins do século
proporções julgadas alarmantes pela Coroa portuguesa, motivando o Marquês
de Pombal a sugerir a sua supressão, excetuando da pretendida medida apenas
as do Santíssimo Sacramento, Ordem Terceira do Carmo e Misericórdia. Tal
projeto não chegou, entretanto, a se concretizar, continuando a instituição das
irmandades a atuar no Brasil nas eras monárquica e republicana, tal a força de
sua identificação com a alma popular. (OLIVEIRA, op. cit., p.168)
O notável florescimento das irmandades de leigos no Rio de Janeiro setecentista e suas
particularidades em relação ao social, à devoção e aos interesses de seus membros
colaboraram para criar um mercado cada vez mais heterogêneo de arte. Se, em Minas Gerais,
houve uma proliferação de oficinas concordantes com a quantidade de irmandades existentes,
local onde a proibição régia impediu a instalação de Ordens Primeiras, irmandades e oficinas
laicas também encontraram no Rio de Janeiro local favorável ao seu desenvolvimento. Esta
integração do leigo na vida religiosa e na ordem social cotidiana imprimiu ao século XVIII
dinamismo não observado no sistema de oficinas conventuais dos Seiscentos.
As estampas religiosas de origem europeia transitavam com maior liberdade nos
portos brasileiros, sem a pressão da censura que os demais impressos estavam sujeitos.
110
Entravam em forma de gravuras avulsas, bíblias e missais, compondo um vasto acervo tanto
para o exercício da fé quanto para alimentação do farto manancial de modelos que serviram
aos pintores coloniais. Hannah Levy, no pioneiro estudo sobre as estampas que circularam no
Brasil, realizou um levantamento de dezenas de fontes à disposição dos artistas da época
(LEVY, 1944, p. 143)23
.
A crescente diversificação na pintura colonial, seja pela atuação de um público
consumidor com interesses cada vez mais específicos, seja pela consequente circulação de
impressos que alimentavam estes interesses, aparece como realidade nas décadas finais dos
Setecentos. As escolas regionais continuaram em plena produção de imagens religiosas,
enchendo os templos brasileiros de uma arte de estilos misturados, atribuída a indivíduos que
foram gradualmente imprimindo em seu trabalho, uma assinatura plástica identificável.
A segunda metade do século XVIII proporcionou condições favoráveis à assimilação
de novos estilos e atitudes em relação ao fazer artístico. A transferência da capital de Salvador
para o Rio de Janeiro foi um dos fatores, mas não o único. A consciência de uma pequena
parcela consumidora de arte sobre as vantagens de se ter artistas bem formados aconteceu não
apenas na nova capital. Sabemos que o baiano José Teófilo de Jesus foi enviado a Portugal na
mesma época em que o fluminense Manoel Dias de Oliveira partiu para o mesmo destino,
ambos patrocinados por ricos comerciantes. Intentaremos, então, investigar a essência destes
interesses, em um ambiente acanhado para certas inovações.
23
Interessante notar a quantidade de exemplares oriundos das oficinas flamengas, o que revela a preferência por
esta escola no que diz respeito à temática religiosa.
111
2.1 O PINTOR SETECENTISTA FLUMINENSE E AS IRMANDADES RELIGIOSAS
O Rio de Janeiro, antes mesmo de se tornar o centro político da Corte na América,
atravessou o século XVII como um dos núcleos econômicos mais atuantes, destacando-se na
produção de açúcar, fumo e couro. Com a descoberta do ouro em Minas Gerais, sua
importância cresceu como porto de escoação do minério, o que proporcionou à cidade maior
circulação de capital e maior investimento urbano. De vilarejo rural dos engenhos açucareiros
e de feição semelhante a uma vila medieval portuguesa, o Rio de Janeiro se transformou em
ponto privilegiado de defesa dos interesses reinóis no século XVIII. Os limites formados entre
os morros do Castelo, Santo Antônio, Conceição e São Bento, um quadrilátero que tomou
forma na segunda metade do século XVII, sofreram alargamento considerável para abrigar
uma população que triplicaria no decorrer de seis décadas.
Acompanhando a ampliação da cidade, as construções religiosas impulsionadas pelas
irmandades começaram a pontuar todo o território, cada qual ocupando os locais adequados a
sua condição social. O caráter urbano e complexo que se desenhava cada vez mais no aspecto
do Rio de Janeiro trazia consigo alterações relevantes no comportamento dos colonos, pois
significava novas formas de relações em todos os sentidos. As oficinas várias foram
tipicamente urbanas, criadas para atender necessidades cada vez mais diversificadas, exigindo
especializações em mercado de trabalho que cresceria com certa intensidade nos Setecentos.
Assim, a vida citadina quebrava o ritmo cíclico e constante do mundo rural, mudando, na
verdade, a percepção do tempo e o valor das coisas.
As origens das irmandades religiosas remontam aos séculos finais da Idade Média,
época da revolução comercial e declínio gradual do sistema feudal. Foram associações em
estreita ligação com as corporações de ofícios, muitas vezes confundindo-se com elas. Estas
112
agremiações colaboraram ativamente do renascimento das cidades, incutindo nelas um novo
direcionamento do fazer artesanal, mais autônomo, intenso e atraente quando comparado aos
ofícios tipicamente rurais. Eram essencialmente urbanas e somente faziam sentido no mundo
do comércio, pois o agrupamento por profissões ocorria justamente para salvaguardar
interesses próprios de cada ofício, em relações mais sofisticadas entre cliente e mão de obra.
Sobre esta configuração do campo religioso, Bourdieu afirma que:
O conjunto das transformações tecnológicas, econômicas e sociais, correlatas
ao nascimento e ao desenvolvimento das cidades e, em particular, aos
progressos da divisão do trabalho e à aparição da separação do trabalho
intelectual e do trabalho material, constituem a condição comum de dois
processos que só podem realizar-se no âmbito de uma relação de
interdependência e de reforço recíproco, a saber, a constituição de um campo
religioso relativamente autônomo e o desenvolvimento de uma necessidade de
moralização e de sistematização das crenças e práticas religiosas.
(BOURDIEU, 2007, p. 34)
Quando comparamos a formação das irmandades medievais ao seu desenvolvimento
no Rio de Janeiro setecentista, percebemos pontos concordantes, como o estabelecimento de
uma organização própria de cidade e a acentuação do caráter comercial ali encontrado. A
prosperidade do período beneficiou alguns centros importantes da Colônia, multiplicando em
sua estrutura econômica as oficinas com seus mestres e aprendizes. A clientela se diversificou
a partir de necessidades cotidianas mais específicas, fomentando, inclusive, a criação de
trabalhos relacionados às linguagens hoje consideradas artísticas, como a escultura, a talha e a
pintura. As irmandades também proliferaram, organizando-se em camadas bem marcadas da
sociedade, constituindo uma formação benéfica para os interesses da Coroa em manter a
ordem e a submissão de sua possessão americana.
A construção de um novo templo, quando a irmandade recebia algum terreno como
doação ou utilizava os proventos oriundos e suas receitas, toda a área do entorno reagia ao
empreendimento. Assim, as irmandades eram ao mesmo tempo sintomas da urbanização e
113
uma de suas maiores impulsionadoras. No Rio de Janeiro, por exemplo, os logradouros mais
distantes do centro administrativo foram geralmente fortalecidos pela presença das
irmandades de negros, como a de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens
Pretos. Esta igreja foi erguida em 1737, na antiga Rua da Vala24
, fora do limite máximo que
era estabelecido por um muro de proteção. Junto à nova igreja, casas e pequeno núcleo
comercial se estabeleceram, colaborando para a expansão da cidade para além muros.
Nireu Cavalcanti, no trabalho intitulado O Rio de Janeiro setecentista, chama de
muralha colonial as restrições metropolitanas ao desenvolvimento da economia no Brasil
(CAVALCANTI, 2004, p. 75). Dentre as restrições, que revelam certa correlação com a
configuração do público consumidor da arte do período, estão a manutenção de capitanias
distanciadas propositalmente entre si, um dos pontos favoráveis à consolidação das escolas
regionais de pintura25
; a nomeação de um vice-rei como representante da Coroa, criando uma
arte de entorno semelhante ao mecenato de corte, e a liberação de um comércio local, mesmo
que restrito. Este comércio, variado na forma e controlado na essência, colaborou para a
embrionária atividade cada vez mais notória de uma burguesia colonial mais atuante nas
décadas finais do século XVIII. Sobre os tipos de comerciantes, Nireu Cavalcanti elucida que:
Podemos alinhar os homens de negócios que atuavam na praça comercial do
Rio de Janeiro em três grandes conjuntos: os comerciantes miúdos, chamados
retalhistas, ou homens de vara, ou ainda mercadores de loja; o grupo de
negociantes de grosso trato ou de sobrado, formado de destacados
importadores e exportadores, senhores de grande cabedal; os capitalistas,
aqueles que viviam de seus bens ou rendas, participando eventualmente da
compra e arremate de mercadorias e da sua revenda, sem contudo se
organizarem formalmente por meio de firma estabelecida. (CAVALCANTI,
op. cit., p. 75)
24
Atual Rua Uruguaiana. 25
As Escolas Baiana e Pernambucana, por exemplo, diferem-se, principalmente, pelo uso da cor, mais intensa e
contrastante na primeira. A Escola Pernambucana se destaca pelo excesso de detalhes e pelo requinte das
soluções formais, provavelmente devido à herança dos holandeses na região.
114
Ao agrupar a população pela condição econômica, pelo ofício e pela cor26
, as
irmandades contribuíram para manter acesa a diferenciação entre cada parte do todo social,
exibindo as marcas mais visíveis de uma rigorosa hierarquia. Com seu ponto comum calcado
na religiosidade, era previsível que a manutenção da fé girasse em torno da devoção, exigindo
a construção de altares, capelas ou mesmo igrejas de grande porte. Cada devoção solicitava
um tipo particular de iconografia, de soluções formais, de decoração dos espaços e de
profissionais responsáveis por cada tarefa, o que fomentou a maior diversificação no fazer
artístico colonial. As escolas regionais de pintura, de escultura e de talha são a expressão
maior do movimento de especialização das oficinas, caminho que levaria também ao lento,
mas notável, despontar da individualização dos artistas, com seus traços, estilos e técnicas
próprias.
Do mesmo modo que o período faustuoso do reinado de D. João V promoveu notável
desenvolvimento da arquitetura e da talha nas principais capitais portuguesas, o Brasil contou,
guardadas as devidas proporções, com o mesmo movimento de expansão da arte religiosa. As
igrejas de planta movimentada, fruto de experimentações mais ousadas, foram manifestações
deste período e podemos destacar a Igreja de Nossa Senhora da Glória e a Igreja de São Pedro
dos Clérigos27
como os representantes mais expressivos. A talha dourada dos seus interiores e
os retábulos luxuosos, chamados de Joaninos, são alguns dos traços de riqueza verificados em
muitos templos coloniais, como os exemplares pertencentes à Igreja de São Francisco da
Penitência. O crescente domínio das irmandades laicas no cenário construtivo dinamizou o
fazer artístico que só faria aumentar no decorrer do século.
26
No século XVIII existiam quatro irmandades de negros, uma de pardos e todo o restante de brancos. Estas
últimas abrigavam a maioria das Bandeiras de Ofícios, além dos vários ramos de comerciantes coloniais. Havia
ainda, três Ordens Terceiras, agrupando em cada uma delas a elite fluminense. 27
A igreja de São Pedro dos Clérigos foi demolida em 1944, para a abertura da Avenida Presidente Vargas.
115
O processo de assimilação da gramática formal da pintura joanina foi mais lento e
modesto quando comparada ao desenvolvimento das outras linguagens. O modelo plástico da
fase seiscentista monástica e conventual permaneceu como diretriz para os primeiros
representantes das oficinas laicas. Isto porque eram as Ordens Primeiras os principais clientes
antes da ascensão das irmandades religiosas, nas décadas inaugurais do século XVIII.
Fechada em si mesma, a arte dos conventos expressava o conservadorismo na representação
de seus santos e de suas respectivas histórias. Os artistas leigos seguiam, muitas vezes, o
exemplo deixado por frades, como foi o caso de José de Oliveira Rosa. Considerado o mais
antigo pintor leigo fluminense, trabalhou para os beneditinos sob a forte presença das obras de
Frei Ricardo do Pilar representadas pelos vários painéis que integravam o conjunto da capela-
mor. Rosa se libertaria aos poucos da severidade conventual, muito pelo contato com as
irmandades religiosas, mais heterogêneas em relação às suas encomendas.
O pouco que conhecemos da vida e da obra de José de Oliveira Rosa sugere uma nova
configuração na formação profissional na Colônia: a organização da oficina de pintura com
mestre, ajudantes e aprendizes. Não há informações sobre os primeiros anos de sua formação,
nem menção sobre seus possíveis mestres. O silêncio dos documentos no período entre a
provável data de nascimento, em torno de 1690, até as primeiras indicações sobre suas
atividades na cidade, por volta de 1730, deixa um vazio significante sobre boa parte de sua
vida profissional, pois seria a época de início da aprendizagem do ofício. Poderia Oliveira
Rosa ter recebido treinamento em canteiros de obra espalhados pela cidade ou passado por
uma formação mais sistemática, tutorada por algum pintor português residente no Rio de
Janeiro.
Gonzaga-Duque menciona, em sua obra A arte brasileira, a hipótese de que Oliveira
Rosa poderia ter sido enviado à Metrópole para iniciar seus estudos (GONZAGA-DUQUE,
1995, p. 77), o que explicaria tamanha ausência de atribuições nas décadas de sua juventude.
116
É certo que o autor lança esta possibilidade por considerar o forro em perspectiva da igreja de
São Francisco da Penitência como obra de sua autoria, o que seria de improvável execução
sem uma formação de qualidade, como mencionamos anteriormente. Certamente o Brasil não
ofereceria condições de ensino para este tipo de empreendimento tão monumental e
complexo, a não ser pela presença de algum artista europeu experiente como mestre.
A realidade de um artista leigo diferia dos frades pintores, dentre outras razões, pela
possibilidade de formar uma clientela heterogênea, situação observável em uma cidade em
expansão. Sua oficina poderia contar com a colaboração de ajudantes e de discípulos,
continuadores de uma tradição e responsáveis para o nascimento e consolidação de uma
escola estilística regional. José de Oliveira Rosa teve dois discípulos, João Francisco Muzzi e
João de Sousa. Do primeiro, Nireu Cavalcanti forneceu novas luzes em um dos mais obscuros
artistas coloniais, inclusive o recolocando na condição social de pardo, antes ignorada
(CAVALCANTI, 2004, p. 305)28
. Suas obras mais famosas são os painéis que narram o
episódio do incêndio e reconstrução da Igreja do Parto, tragédia ocorrida na segunda metade
do século XVIII.
A João de Sousa são atribuídos os painéis pertencentes ao Convento do Carmo, uma
série hagiográfica específica da Ordem. Analisando o conjunto espalhado pela sacristia da
igreja, percebemos a filiação colorista do mestre Rosa, também presente no modelado das
figuras e no desenho levemente deficiente, principalmente na resolução das vestimentas e das
figuras humanas. A formação que provavelmente foi posta em prática em todo o século XVIII
não aplicaria o exercício do desenho, muito menos de composição. Gonzaga-Duque não
poupa críticas a esta deficiência, não apenas a João de Sousa, mas a quase todos os pintores
coloniais (GONZAGA-DUQUE, 1995, p. 80). O discípulo aprendia a preparar o suporte, a
28
Nireu Cavalcanti, no diz que João Francisco Muzzi, realizou aquarelas ilustrativas para a obra de Frei
Conceição Veloso.
117
fabricar as tintas e a copiar figuras a partir de gravuras diversas. O que podemos dizer sobre
João de Sousa é a notável delicadeza na distribuição cromática, característica que seria
desenvolvida mais tarde por seu discípulo Manoel da Cunha e Silva.
Como mencionamos anteriormente, as Ordens Primeiras foram as encomendantes de
pintura predominantes nas décadas iniciais dos Setecentos. Boa parte dos painéis
sobreviventes de José de Oliveira Rosa e de João de Sousa deste período está espalhada pelo
complexo do Mosteiro de São Bento e do Convento do Carmo, respectivamente. As
irmandades em plena multiplicação estavam preocupadas em erguer seus templos, como
atestam as datas de construção das principais igrejas do Rio de Janeiro colonial. Como
exemplos, podemos citar a de Nossa Senhora da Glória do Outeiro, terminada em 1739, a de
Santa Rita de Cássia, construída em 1721, e a de Nossa Senhora da Conceição e Boa Morte,
de 1735.
Passo fundamental para o assentamento da irmandade estava no desejo, muitas vezes
frustrado, de possuir igreja própria. A arquitetura, então, ocupou lugar predominante no
pensamento dos membros, na medida em que o projeto indicava possibilidades concretas para
a sua realização. A construção, quando iniciada, consumia parte considerável de suas receitas,
seguida da escultura de imagens e de retábulos para a composição dos espaços devocionais.
A decoração de talha acompanhava o trabalho dos escultores, deixando a pintura como
elemento final, muitas vezes adaptada a espaços predeterminados pelas molduras de talha.
Na ocasião da reforma na Igreja de Nossa Senhora do Carmo, o painel do forro da
capela-mor (Figura 15), atribuído a José de Oliveira Rosa, sofreu uma modificação do seu
tamanho original para dialogar com a nova talha rococó, conforme observou Myrian Andrade
Ribeiro de Oliveira (OLIVEIRA, 2008, p. 109). A historiadora da arte nos informa que:
Prospecções recentes em alguns pontos da abóbada da capela-mor
demonstraram que a pintura original extrapolava os limites do quadro atual,
118
estendendo-se talvez por toda a abóbada, como nas igrejas pombalinas de
Lisboa do mesmo período. A conclusão que se impõe é que a pintura original
já estava concluída quando Inácio Ferreira Pinto foi contratado pelos
carmelitas para as obras de talha da igreja, devendo-se, sem dúvida, a este
mestre entalhador a atual composição ornamental, com redução do espaço
pictórico a um quadro longitudinal, emoldurado por três filetes decrescentes
de talha dourada. Com a redução da pintura e a simulação de arcadas laterais
com relevos ornamentais em talha, a decoração da capela-mor integra-se
harmoniosamente à da nave, cuja abóbada é também seccionada em arcadas
com talha dourada, segundo o modelo difundido no rococó carioca.
(OLIVEIRA, op. cit., p. 109)
Em uma igreja, a ornamentação pictórica da nave e da capela-mor foram menos
numerosas no século XVIII do que os painéis avulsos, geralmente colocados nas sacristias e
demais dependências29
. Acreditamos que os primeiros eram mais dispendiosos, devido à
função de destaque na ornamentação do corpo litúrgico da arquitetura, espaço público de
exercício da fé. O refinamento maior exigia experiência e habilidade, pois integrava um todo
constituído por outras linguagens, sobretudo a talha dourada.
Os discípulos de João de Sousa integram o grupo de pintores que se beneficiaram da
febre construtiva que assolou a cidade na segunda metade dos Setecentos. São eles Manuel da
Cunha e Silva e Leandro Joaquim. Esta geração deu feição mais sólida à Escola Fluminense,
momento em que o barroco joanino passou a se mesclar a elementos do Rococó, estilo sentido
primeiramente nas obras de talha, conforme observamos acima. Interessante o fato de serem
os dois discípulos pardos, evidenciando uma mudança em relação ao início do século XVIII,
quando as oficinas não aceitavam homens de cor.
29
Muitos painéis de forros ainda sobreviventes são criações oitocentistas, como os da Igreja de Nossa Senhora
Mãe dos Homens e os da Nossa Senhora do Carmo da Lapa, entre outras.
119
Figura 15 – Forro da capela-mor da Igreja de Nossa Senhora do Carmo, Rio de Janeiro.
Manoel da Cunha e Silva, anteriormente citado, nasceu escravo e pagou por sua
alforria quando tinha 35 anos, em 1779 (CAVALCANTI, 2004, p. 307)30
. A sua formação
inicial com o mestre João de Sousa foi decisiva para que alcançasse certo prestígio como
pintor, trabalho que garantiu o montante necessário para comprar sua liberdade. Nireu
30
Foi o autor que primeiro introduziu o sobrenome Silva a Manoel da Cunha, após consulta à documentação da
Irmandade de Nossa Senhora dos Homens Pardos.
120
Cavalcanti questiona a menção de Manoel de Araujo Porto Alegre e amplamente repetida por
historiadores oitocentistas de que o artista teria sido enviado a Lisboa para complementar a
sua formação (CAVALCANTI, op. cit., p. 307). Ao checar a documentação referente ao
pintor, elucida, através de comparações entre datas, que a sua condição de escravo até os 35
anos não daria a ele a chance de estudar fora da Colônia, sendo a sua formação exclusiva da
oficina de João de Sousa. Uma análise do conjunto de sua obra mostra claramente algumas
das deficiências mais comuns do período, repetidas, muitas vezes, dos problemas
compositivos observados na obra de seu mestre.
Importante na vida de Manoel da Cunha e Silva foi a presença do comerciante de
grosso trato José Dias da Cruz, o qual completou a quantia que faltava para que o pintor
comprasse a sua liberdade (CAVALCANTI, op. cit., 305). Não há registro sobre o real
interesse desta figura em ajudar um artista já formado na ocasião, mas parece que este tipo de
relação entre negociantes e artistas tornar-se-ia uma prática cada vez mais comum. Manoel
Dias de Oliveira, tempos mais tarde, foi apadrinhado por um rico comerciante que patrocinou
a sua ida a Lisboa, conforme veremos adiante.
Manoel da Cunha e Silva exemplifica claramente o tipo de artista bem posicionado no
mundo das encomendas, pois a quantidade e diversidade de clientes a quem prestou serviço
revela uma atividade intensa até o ano de seu falecimento, em 1807. Seu trabalho mais
vultoso foi o realizado para a Ordem Terceira de São Francisco de Paula, igreja que reúne
painéis de grandes dimensões na Capela do Noviciado que tratam de cenas relativas à vida do
santo. No forro, existe uma representação de Nossa Senhora das Vitórias, uma de suas
melhores obras no tocante à solução formal em geral (Figura 16).
A Virgem aparece de corpo inteiro, vestindo túnica branca e manto azul, deslocada
ligeiramente do centro para o lado esquerdo da composição. Segura o Menino Jesus em seu
121
colo e ambos exibem as coroas da realeza. Formando um círculo, há um cortejo musical de
anjos e dois deles carregam estandartes com a palavra Victoria em vermelho. Abaixo,
reduzida a uma pequena parcela do painel, aparece uma cidade de feições medievais, com um
aparente conflito. A Virgem estaria a caminho para decidir a batalha, como sugere este tipo de
representação.
Apesar de todo o jogo teatralizado, as expressões são serenas, contrastantes com a
temática da aparição. Esta seria uma das marcas essenciais não apenas de Manoel da Cunha e
Silva, mas também de quase todos os demais pintores contemporâneos seus. Atribuímos a
esta característica a provável falta de habilidade em reproduzir as paixões através das
expressões faciais, algo que necessitaria de exercícios acadêmicos sistematizados até a
obtenção de resultados satisfatórios, o que não acontecia na formação de oficina daquele
tempo. Verificamos a mesma problemática nas pinturas de retratos, os quais costumam exibir
semblantes sérios, congelados, com a ausência daquele olhar que muito diz sem palavras e
daquele leve movimento de sobrancelhas repleto de significados. Cirilo Wolkmar Machado já
dizia, referenciando Leonardo da Vinci, que:
É muito difícil exprimir bem as paixões da alma; nem elas podem ser naturais
senão nas pessoas verdadeiramente apaixonadas: é onde os artistas devem
estudar. (...) Depois de conheceres bem as partes de cada membro, e a
totalidade dos corpos inteiros, nota, e observa com diligência os seus
particulares movimentos; mas de modo que as gentes não entendam que as
observas, para que não mudem seus afetos: assim podes estudar a cólera, a ira,
a dor, a admiração; e tudo apontarás no livro de memória, feito de papel
gessado. (MACHADO, 1817, p. 6)
122
Figura 16 – Manoel da Cunha e Silva. Nossa Senhora das Vitórias. Século XVIII. Óleo sobre madeira.
Igreja de São Francisco de Paula, Rio de Janeiro.
A ausência de academias em Portugal não impediu a circulação de tratados e de
constantes discussões sobre arte nos campos de trabalho que pontuaram a segunda metade do
século XVIII. Desde que D. João V fundou a Academia Portuguesa em Roma, os artistas
bolsistas passaram a investir na maior profissionalização do seu ofício, contribuindo para a
123
divulgação de tratados e de regras básicas de pintura, nas quais o exercício do desenho
figurava como ponto essencial. No Brasil, entretanto, não houve estes fatores estimuladores
de reflexões e práticas, resumindo o fazer à cópia de gravuras muitas vezes carentes de
detalhes preciosos. Para a igreja da Ordem Terceira de São Francisco de Paula, bastava a
composição correta com a observância da qualidade no tocante à mensagem iconográfica ali
respeitada.
A Capela do Noviciado consiste em um dos exemplos marcantes da decoração rococó
fluminense, onde os painéis barrocos de Manoel da Cunha e Silva conferem uma mistura
interessante ao ambiente. Toda a suavidade da talha pontual em fundo branco contrasta com o
tratamento dramático dispensado ao conjunto pictórico, sobretudo ao referido painel da
Virgem das Vitórias. Este local demonstra o quanto a pintura colonial foi mais lenta na
recepção dos novos gostos, iniciados quase sempre nos trabalhos de arquitetura e de talha.
Com o Rococó não foi diferente; entrou primeiro nas igrejas, na sua forma decorativa, para
algumas décadas depois começar a aparecer em alguns painéis. No Rio de Janeiro, por
exemplo, verificamos traços deste estilo na década de 1750, na igreja de Santa Rita. Somente
na década de 1790 encontraríamos obras de pintura com a claridade, a sinuosidade e a alegria
rococós, com os nomes de Leandro Joaquim e Raimundo da Costa e Silva.
Como Manoel da Cunha e Silva, Leandro Joaquim foi um dos pintores mais prolixos
da segunda metade do século XVIII. Sua atividade direta com o vice-rei Luís de Vasconcelos
pode ser vista como um anúncio do que aconteceria anos mais tarde, quando os pintores
fluminenses trabalharam a serviço da corte portuguesa. Sua clientela principal foi, no entanto,
as irmandades religiosas, como podemos observar na quantidade e na variedade de sua
produção. Seu traço marcante acha-se, como nos demais pintores aqui analisados, no uso das
cores. A claridade dos tons rococós emprestou à iconografia herdeira do Barroco suavidade
124
mais acentuada, diferente do cromatismo mais carregado do painel estudado de Manoel da
Cunha e Silva.
A tela Nossa Senhora da Boa Morte, pertencente à Irmandade de Nossa Senhora da
Conceição e Boa Morte dos Homens Pardos, traz em sua concepção valores formais que se
misturam em curiosa harmonia (Figura 17). O espaço é completamente povoado por
personagens que integram esta passagem da história de Maria, ou seja, os doze apóstolos
cercando o leito de morte da Virgem. O horror ao vazio permanece como gramática
compositiva característica do Barroco, mesclada agora com a serenidade que espanta toda a
tristeza que esta cena deveria conter.
Leandro Joaquim foi, ao longo de sua trajetória, desenvolvendo um desenho cada vez
mais refinado, como a imagem da Virgem da Boa Morte apresenta, assim como outras do
mesmo período. São obras do final de sua carreira, ou seja, no último quartel dos Setecentos,
justamente quando Raimundo da Costa e Silva e José Leandro de Carvalho começaram a
ostentar esta mesma qualidade. O visível progresso na técnica destes artistas não descarta a
tradição da cópia de estampas, mas sugere a interferência de outros fatores ainda pouco
estudados, como a presença de artistas portugueses no Rio de Janeiro naquela ocasião e a
importação cada vez mais constante de pinturas prontas da Metrópole. São aspectos
significativos, tanto no que se refere à divulgação de novas tendências formais como na
exposição de exemplos importantes de desenho e composição. Podemos citar as igrejas de
São José e da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo como algumas que possuem em
seus acervos obras europeias adquiridas ainda no século XVIII.
125
Figura 17 – Leandro Joaquim. Nossa Senhora da Boa Morte. Século XVIII. Óleo sobre tela.
Igreja de Nossa Senhora da Conceição e Boa Morte dos Homens Pardos, Rio de Janeiro.
Integrados à tradição religiosa, os pintores não apenas trabalhavam para as
irmandades, como também exercitavam a sua fé no seio de uma comunidade cuja
espiritualidade estava difundida em quase todas as ações cotidianas. Leandro Joaquim
executou o painel acima analisado como ex-voto após uma promessa feita por motivo de
doença. Gonzaga-Duque comenta o episódio na seguinte passagem:
Uma febre epidêmica, conhecida pelo nome de zamparine, levou o pintor ao
leito durante longo tempo. O melancólico D. José de Castro, segundo conde de
126
Rezende, estava no governo; ao contrário do antecessor este não queria saber
de artes. (...) Leandro Joaquim viu-se abandonado. Fez então uma promessa:
se ficasse bom, a primeira vez que tomasse dos pincéis seria para pintar os
derradeiros momentos da Senhora da Boa Morte. (GONZAGA-DUQUE,
1995, p. 82)
É um caso raro de produção de um objeto realizado para desempenhar esta função com
a qualidade comparável a de uma encomenda, pois os ex-votos pictóricos eram geralmente
feitos com feição popular, dotados de simplicidade e de dimensões reduzidas. A imagem
como ferramenta de mediação entre o fiel e o divino foi um dos elementos mais importantes
da cultura barroca, e a Colônia portuguesa manteve viva esta função, dentre as outras que a
pintura se destacou.
Três painéis executados para a Igreja de São Sebastião do Castelo dão testemunho da
perícia técnica de Leandro Joaquim na fase final de sua vida. A igreja, então Sé da capital da
Colônia, foi demolida juntamente ao arrasamento do Morro do Castelo, em 1922, mas as
pinturas foram preservadas sob a proteção dos frades capuchinhos, hoje no convento situado à
Rua Haddock Lobbo. No antigo templo, os painéis de grandes dimensões estavam localizados
nas paredes da capela-mor, conforme registro fotográfico de Augusto Malta31
. O tamanho e a
localização original das pinturas, no espaço mais importante da igreja, sugerem o grau de
reconhecimento de Leandro Joaquim no ambiente colonial.
A imagem de São Januário nos revela aspectos interessantes, como a paisagem da
entrada da Baía de Guanabara ao fundo (Figura 18). Santo querido no mundo português, ele
emprestou seu nome ao morro, e a fortaleza do núcleo que se chamaria mais tarde de Morro
do Castelo32
. São Januário aparece frontalmente e de corpo inteiro, com vestes episcopais da
31
Na ocasião do desmonte do Morro do Castelo, o fotógrafo Augusto Malta realizou extensa documentação
visual daquele ponto primitivo da cidade, incluindo aspectos diversos dos interiores das igrejas de São Sebastião
e de Santo Inácio. Os frades capuchinhos possuem um interessante álbum com imagens de sua antiga igreja,
incluindo valiosas vistas de detalhes do interior daquela que foi a primeira Sé do Rio de Janeiro. 32
O Morro do Castelo foi inicialmente conhecido como Morro do Descanso, depois de São Januário, renomeado
novamente para São Sebastião até receber o definitivo, até a data de seu desmonte, em 1922.
127
sua condição de bispo. A cabeça em três quartos foi disposta para que o olho esquerdo divida
a composição em duas metades verticais iguais, conferindo equilíbrio à composição.
Figura 18 – Leandro Joaquim. São Januário. Século XVIII Óleo sobre tela. 185 x 90 cm.
Igreja de São Sebastião, Rio de Janeiro.
128
O fundo de céu azulado colabora para destacar o vermelho do manto, dando
interessante contraste entre as partes. Abaixo, reconhecemos o Pão de Açúcar pontuando a
entrada da Baía de Guanabara, com várias embarcações deixando a cidade. Há aqui uma
referência às invasões francesas de 1710 e 1711, época em que a bateria da Fortaleza de São
Januário desempenhou importante papel de defesa do território. O santo, de costas para os
corsários inimigos, se volta para o Rio de Janeiro com o sinal da bênção, com os três dedos
que simbolizam a Trindade. Importante citar a semelhança entre este fragmento de paisagem
com as vistas da cidade que o artista compôs a pedido do vice- rei Luís de Vasconcelos.
Leandro Joaquim exibe neste painel toda a sua habilidade em criar os efeitos de
textura. O manto, ricamente decorado com estampas douradas, desce pesado e contrasta com
a delicadeza e leveza dos bordados que encerram o manto branco do santo junto aos seus pés.
A sensação de volumetria acontece com delicados jogos de claros e escuros, com gradações
sutis entre as zonas iluminadas e escurecidas. O artista repete aqui o mesmo efeito conferido
ao painel de Nossa Senhora de Boa Morte, inclusive na carnadura suave e levemente rosada
do santo.
No mesmo ambiente de extrema religiosidade que encontramos boa parte da obra de
Leandro Joaquim, destaca-se outro representante desta fase de mudanças na pintura colonial,
o fluminense Raimundo da Costa e Silva. Este artista ficou conhecido na época pela devoção
a Nossa Senhora do Carmo, e três painéis sobreviventes atribuídos a ele são dedicados a esta
invocação.
Selecionamos o exemplar pertencente ao Museu Nacional de Belas-Artes por trazer
alguns elementos particulares do estilo do pintor, como a exuberância decorativa, a filiação ao
gosto rococó e a humanização da figura santa (Figura 19). A Virgem aparece de corpo inteiro,
sentada em um trono com o Menino Jesus em seu colo. Veste o hábito castanho carmelita,
129
com o escapulário que desce por dentro do rico manto ornamentado de brocados dourados e
pedrarias coloridas. A obra parece ser uma versão de outra, feita também por Raimundo da
Costa e Silva, integrada ao conjunto imagético da igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora
do Carmo.
Figura 19 – Raimundo da Costa e Silva. Nossa Senhora do Carmo. Século XVIII. Óleo sobre tela.
Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro.
130
O destaque maior desta pintura de dimensões reduzidas está na feição alegre das
personagens, as quais exibem sorrisos abertos como se mostrassem ao mundo a felicidade do
reino divino. A Virgem possui algo de humanizado, com cabelos soltos, crespos e mais curtos
do que normalmente aparece representada. São detalhes geralmente associados ao hedonismo
rococó que, na versão cristã, transformou-se na demonstração do prazer imediato de se fazer
parte da comunidade católica. Como mencionamos anteriormente, o tratamento dos
semblantes na pintura colonial fluminense são geralmente apáticos e não costumam denotar
paixões aparentes. Raimundo da Costa e Silva expôs algo raro para a época, compondo
figuras de forte apelo expressivo e que convidam a uma relação mais jovial com a Igreja.
As dimensões reduzidas, a aparência terrena e despojada da Virgem e o fato da obra
ser tão semelhante a outra mais sóbria nos levam a supor que esta peça tenha sido uma
encomenda particular. Os documentos sobre a pintura se perderam e há apenas menção sobre
a sua aquisição pelo Museu Nacional de Belas-Artes na década de 1980. No final dos
Setecentos, foi cada vez mais frequente a encomenda de painéis de temática religiosa para
compor o espaço de devoção privada dos mais abastados, lembrando que a gente simples
consumia gravuras, os santinhos, com a mesma finalidade.
Raimundo da Costa e Silva transitou por boa parte do século XIX como um dos
principais representantes do modelo colonial de aprendizagem e ensino do ofício. Foi
contemporâneo à Aula Régia de Desenho e Figura e à Academia Imperial das Belas-Artes,
continuador, como professor de pintura, do mesmo sistema que o formou nos Setecentos.
Sabemos pouco de sua obra oitocentista, mas, conforme seus biógrafos, ele trabalhou até a
morte, algo em torno da década de 1850 (MORALES DE LOS RIOS FILHO, 1942, p. 262).
Sua figura, assim como a de José Leandro de Carvalho e de Manoel Dias de Oliveira, põe em
cheque as constantes citações de que a chegada dos artistas franceses chefiados por Lebreton
significou o fim de uma era e início de outra. A menção de Gonzaga-Duque é emblemática
131
sobre o assunto e, de certa maneira, funciona como porta-voz de um pensamento que se
tornou corrente em nossa história, quando diz que a pintura brasileira abrange três períodos
distintos, correspondentes aos progressos moral e material da nação. O primeiro período
excede a um século; parte de 1695 e termina em 1816, com a fundação da Academia de
Belas- Artes (GONZAGA-DUQUE, 1995, p. 73). A presença dos artistas supracitados aponta,
no entanto, para uma outra realidade.
O paralelismo entre as produções provenientes de oficinas de tradição colonial e o
ensino acadêmico nos parece incontestável por várias razões. Inicialmente podemos apontar
as dificuldades enfrentadas pelos franceses, o que resultou no atraso de dez anos para a
abertura da Academia, o principal motivo de sua contratação. Por conseguinte, os primeiros
pintores formados pela nova instituição foram lançados no mercado somente no final da
década de 1820. Outra questão refere-se à participação de Manoel Dias de Oliveira,
Raimundo da Costa e Silva e José Leandro de Carvalho em várias atividades ligadas à
decoração de festas oficiais até 1821, como atestam as obras sobreviventes do período.
Finalmente, devemos citar a ampliação do público consumidor nos Oitocentos, sobretudo as
irmandades religiosas, as quais continuaram a fomentar a produção artística. É válida a
suposição de que havia trabalhos distintos para clientes com diferentes propósitos e que a
inauguração de uma instituição não seria razão para extinguir outras formas de produção.
Assim, o fato de termos Raimundo da Costa e Silva ativo até meados do século XIX não nos
soa estranho, mas coerente.
132
2.2 A PINTURA RELIGIOSA OITOCENTISTA: A CORTE COMO ENCOMENDANTE
Em um meio tão desprovido de recursos como o vivido pelos pintores fluminenses, a
viagem de Manoel Dias de Oliveira a Lisboa deve ter soado como uma notícia instigante.
Seria mais um fator a somar no lento processo de consciência sobre a importância do ofício e
do papel social de seu representante no rigoroso sistema hierárquico colonial. O retorno do
artista, em 1798, após pouco mais de uma década de formação que contou com a estada em
Roma, trouxe consigo energias novas para a reflexão sobre o estatuto social do pintor. A
abertura da Aula Régia de Desenho e Figura, instituição que na Metrópole estava
aparentemente afiliada aos interesses comerciais de uma classe burguesa em expansão,
conferiu um ponto positivo no entendimento cada vez mais acentuado sobre as funções
desempenhadas por essa arte na construção simbólica do poder. O governo do vice-rei Luís de
Vasconcelos havia anunciado esta relação em versão mais tímida, com a participação de
Leandro Joaquim e Mestre Valentim nas obras de melhorias da cidade.
As ações de Manoel Dias de Oliveira afetaram diretamente a percepção sobre as
práticas de ensino e aprendizagem, introduzindo o exercício do desenho na base fundamental
a qual deveria se assentar a arte da pintura. Além disso, a sua vivência em um dos principais
centros difusores do Neoclassicismo colaborou para a introdução mais sistemática do estilo
em uma realidade ainda calcada na essência barroca, tanto na forma como no conteúdo. A
Aula Régia de Desenho e Figura formou uma nova geração33
e influenciou também aqueles
artistas atuantes e oriundos do tradicional sistema colonial de cópia de estampas, como
Raimundo da Costa e Silva.
33
Conhecemos os nomes de Francisco Pedro do Amaral e de Clemente Magalhães de Bastos, cujos exercícios de
desenhos aparecem no capítulo destinado à Aula Régia de Desenho e Figura.
133
Com base nesta argumentação, podemos comparar a imagem de Nossa Senhora do
Carmo analisada anteriormente à obra oitocentista A Sagrada Família, também atribuída a
Raimundo da Costa e Silva. Veremos que a década que separa as duas composições revela
muito mais que o simples espaço temporal (Figura 20). É notória, apesar da procedência do
modelo compositivo vir de uma gravura portuguesa, a assimilação de novas orientações por
parte do artista.
As três personagens ocupam todo o primeiro plano, em organização simples do
espaço em formato elíptico. A Virgem Maria aparece no lado esquerdo, vestindo túnica
branca e manto azul. São José, no lado oposto, exibe a sua túnica carmim e manto mostarda,
cores relativas ao ofício de carpinteiro, conforme iconografia consagrada desde o período
Gótico. Calça sandálias com tiras que sobem pelo tornozelo. O Menino Jesus ocupa o centro
da composição, carinhosamente amparado pelos pais. Em uma abertura entre as nuvens,
aparece a pomba do Espírito Santo.
As linhas sinuosas que conferiam sabor rococó às imagens de Nossa Senhora do
Carmo, obras anteriores de Raimundo da Costa e Silva, cedem lugar a uma forte tendência à
verticalização, com personagens semelhantes a esculturas clássicas.O tratamento dos tecidos
sugere o despojamento de toda a ornamentação, com o uso das cores em extrema sintonia com
o básico, oriundo das referências iconográficas. Os semblantes são serenos e não demonstram
grandes emoções, outro ponto contrastante com as imagens sorridentes da fase rococó
anterior. Vale mencionar que o painel foi encomendado pela irmandade de São José,
tradicional reduto de uma elite colonial e conhecida por ter um gosto mais sóbrio, o que
podemos ver nas obras de decoração da igreja e das linhas de sua arquitetura.34
34
São José integra o grupo de novas devoções incentivadas pela Igreja tridentina como resposta aos ataques
protestantes contra o culto aos santos. A seriedade e sobriedade são elementos concordantes com a figura de São
José, diferente da delicadeza comumente encontrada nas igrejas e representações marianas.
134
Figura 20 – Raimundo da Costa e Silva. A Sagrada Família. Óleo sobre tela. Igreja de São José, Rio de Janeiro.
Raimundo da Costa e Silva retirou o modelo da imagem da Sagrada Família de uma
gravura portuguesa e observamos que ele conserva a sua simplicidade aparente (Figura 21). O
fundo escuro presente no original foi substituido por céu mais claro, para combinar com a
distribuição de luz uniforme que o pintor coferiu a toda a composição. Este artifício realça o
135
desenho do pintor, que, comparado à geração fluminense anterior, demonstra certa habilidade
que encontraremos também no traço de José Leandro de Carvalho.
Figura 21 – Oficina de Francisco Manuel. Jesus Maria José. Século XVIII. Gravura.
Biblioteca Nacional de Lisboa.
A iconografia da Sagrada Família vem de referências bíblicas, e a mais detalhada
encontra-se no Evangelho de São Mateus (Mt, 2:19). Um anjo avisa a José sobre a ameaça de
Herodes, que deseja eliminar todas as crianças nascidas em Belém por causa da professia que
136
anunciava a chegada de um messias. Antes da consumação da tragédia, a família segue em
fuga para o Egito, onde se estabelece até a morte do tirano. Este episódio foi amplamente
difundido na pintura desde a Idade Média, dividido entre a fase da partida, reconhecida pela
representação de Jesus ainda bebê e o retorno da famíia a Nazaré, tema da imagem acima,
com o Menino já crescido.
Os simbolismos são dispostos claramente, como o lírio que Jesus e São José seguram,
e a bênção divina representada pelo Espírito Santo. A flor, quando colocada em imagens
cristãs, traz o significado que extrapola o sentido de pureza, como normamalmente a
atribuímos em outras temáticas. Ela indica a resignação de quem a segura após ser eleito para
uma tarefa árdua, escolha de origem divina. O lírio é o atributo maior das cenas da
Anunciação, pois menciona a escolha do povo de Israel entre tantos outros e a de Maria entre
as demais mulheres. No caso de José, o lírio refere-se à paternidade não biológica assumida
ao se unir à Maria, tarefa que desempenha ao longo de sua vida.
A representação da Sagrada Família no ambiente colonial tem, juntamente à função
devocional, conotação educativa de incentivo à formação de núcleos familiares fundados na
base cristã. Em um ambiente propício à promiscuidade, seja na relação entre escravos e seus
senhores, seja na conhecida atividade profissional no ramo sexual em toda a Colônia, a
propagação de imagens de exemplo moral tinha a sua importância. Os sermões
complementavam a ação de instrução e comoção, muitas vezes ásperos nas suas mensagens
com a intenção de mover as consciências pesadas em direção à correção dos atos e
pensamentos.
Raimundo da Costa e Silva encarnou o modelo do artista colonial que vivenciou em
suas obras as próprias crenças religiosas, como o culto à Nossa Senhora do Carmo. Se houve
mudanças marcantes de gosto entre o decorativismo rococó e a sobriedade neoclássica, essas
137
transformações permaneceram no campo da forma, pois a iconografia manteve-se filiada ao
tradicional modelo orquestrado desde a Contrarreforma. A ligação do pintor à irmandade de
São José remonta à sua formação primeira de escultor, ofício que aprendeu com o pai. Nas
poucas obras sobreviventes de Raimundo da Costa e Silva, todas de cunho religioso,
percebemos o contato íntimo entre o pintor e o objeto, como se cada encomenda desenhasse
uma trajetória profissional calcada nas relações espirituais travadas com cada irmandade
encomendante.
Quando observamos a obra Nossa Senhora da Conceição, de Manoel Dias de Oliveira,
percebemos imediatamente a sua diferença quando a comparamos às pinturas dos artistas
acima comentados (Figura 22). Vindo de uma formação europeia que afrouxara os cânones da
época barroca, a temática religiosa resgatou aquele toque de secularidade que o Renascimento
havia inaugurado, ao misturar em uma mesma cena figuras santas e profanas. Esta
característica humanística se prolongou na fase maneirista, mas foi abolida quando a Igreja
defendeu o uso de imagens limpas, ou seja, com mensagens diretas sobre os assuntos sacros.
Segundo Argan, para alcançar os objetivos persuasivos, o Barroco valia-se das imagens
simples, como o autor explicita na seguinte passagem:
(...) A imagem é assim concebida para exercer uma função puramente auxiliar
ou instrumental; a simplicidade da fatura torna-a rapidamente familiar, e a
comunicação não exige nenhum esforço de inteligência, ocorrendo, como se
diria hoje, em um nível subliminar. Ao contrário das grandes figurações
histórico religiosas, que tendem a suscitar uma condição de encantamento
excitado, as figurações devocionais tendem a determinar no devoto uma
condição de humildade, a única atitude possível a quem se dirige a Deus;
como acontece na prece, o tom da comunicação visual é submisso, fervoroso,
insistente.(ARGAN, 2004, p. 103)
No presente caso, a imagem não assume a função devocional, como as obras religiosas
de Raimundo da Costa e Silva e de Leandro Joaquim o fazem. Apesar da referência sacra
estar em posição de destaque na composição, sua mensagem vincula-se ao poder monárquico,
138
em uma longa tradição que associa a figura do rei ao divino, como se ele ocupasse no mundo
um cargo de designação espiritual. Nesta função alegórica, a presença de seres terrenos e
mitológicos combinados ao sagrado funciona como uma narrativa simbólica, na qual cada
parte contribui com o seu significado específico para dar sentido ao todo, ou seja, o tema da
submissão do Reino de Portugal à Nossa Senhora da Conceição.
Figura 22 – Manoel Dias de Oliveira. Nossa Senhora da Conceição. 1817. Óleo sobre tela.
MNBA, Rio de Janeiro.
139
A Virgem ocupa o ponto central do painel e está em posição mais elevada em relação
às outras personagens. Veste túnica de um intenso branco e manto azul que escorre
suavemente até os seus pés. Olha para baixo, em direção ao lado esquerdo, onde aparece um
escudo que exibe o brasão de Portugal, apresentado por uma figura feminina que personifica o
poder. Ligeiramente abaixo do escudo, encontram-se a coroa e o cetro, guardados por um
anjinho. Atrás da personagem feminina, observamos o retrato de D. João em pose bastante
difundida nos vários painéis do período. Um anjo desce segurando uma faixa com os dizeres
Protectam EVM. No lado direito, o Arcebispo segura um livro aberto com a mensagem
Monstra te esse mavrem. Outras personalidades da cúpula da Igreja aparecem no fundo,
todos, como o Arcebispo, em posição de reverência à Virgem. Juntos, os poderes eclesiástico
e monárquico se curvam diante do divino, reforçando a essência religiosa do reino de
Portugal.
O forte amarelo do ambiente celestial e as tonalidades castanhas da área terrena, além
do vermelho do manto do arcebispo, colaboram para realçar a brancura da túnica e do azul do
manto da Virgem. O resultado aponta para uma organização cromática bem articulada, com o
visível propósito de manter a personagem principal em destaque. Manoel Dias de Oliveira
distribuiu a luz uniformemente, evitando contrastes brutos de claros e escuros. A
luminosidade do amarelo celestial perde gradativamente a sua intensidade, na medida em que
avança para a parte inferior do painel. As regiões são separadas suavemente, pois não é a luz o
elemento fundamental da composição e sim a linha.
A composição é dividida em duas partes verticais iguais, a partir de uma linha que
parte do olho direito da Virgem, passa pelas suas mãos postas em oração, desce até o pé que
esmaga a serpente e encerra na figura do anjo que guarda os símbolos da realeza (Figura 23).
As massas são distribuídas equilibradamente, representadas, em cada lado, pelo poder
monárquico e pela presença da Igreja. A mesma simetria acontece quando dividimos a
140
superfície pela metade horizontalmente, separando os planos celestial e terreno em duas
metades iguais. Se buscarmos no rosto de Nossa Senhora o ponto de partida do olhar do
espectador, veremos uma linha circular que abrange todos os elementos simbólicos que dão
sentido ao tema.
O esquema compositivo realça as linhas horizontais e verticais, conferindo um aspecto
estático à cena. São os gestos de algumas personagens, apesar de contidos, que dão certa
movimentação, como a figura que aponta para o escudo e o arcebispo que apresenta o livro.
Manoel Dias de Oliveira concentra toda a força da obra na mensagem simbólica da entrega do
reino de Portugal à proteção de Nossa Senhora da Conceição. D. João seguiu a tradição que
remonta ao século XVII, quando a Virgem recebeu oficialmente a incumbência de proteger o
povo português de todos os seus inimigos, sobretudo a Espanha.
Figura 23– Linhas de composição.
141
Os jogos de linhas construtivas, a referência maior ao desenho que se sobrepõe às
cores, a discrição dos gestos e movimentos e a correta representação anatômica são elementos
que não apenas situam Manoel Dias de Oliveira ao gosto neoclássico, mas também revelam
muito de sua formação técnica estrangeira. A Virgem aparece como uma escultura, com
panejamentos que escorrem em linhas retas. Cada parte está matematicamente posicionada em
relação às forças que orientam a composição, criando a sensação de ordem e harmonia. As
texturas diversas, os modelados das carnaduras, os efeitos de volume e profundidade somam-
se ao apurado controle do artista em relação aos seus materiais.
Outro ponto fundamental na obra de Manoel Dias de Oliveira é a novidade para o
ambiente colonial de um pintor compositor, diferente do copiador de gravuras. A fase final da
formação europeia consistia na capacidade do artista em usar a experiência primeira da cópia
de grandes mestres a favor do desafio de se tornar um inventor, algo que já aparecia nos
tratados portugueses de pintura, como o de Cirilo Wolkmar Machado.
A instalação da Família Real no Rio de Janeiro a partir de 1808 acarretou mudanças
em vários setores da vida cotidiana da cidade e a arte participou positivamente desta nova
fase. A formação europeia de Manoel Dias de Oliveira e sua condição de professor régio
colaboraram para que ele se tornasse um pintor a serviço do rei. Esta nova espécie de cliente,
comum na Metrópole desde o século XVI, beneficiou também aqueles artistas oriundos do
sistema colonial de ensino, como Raimundo da Costa e Silva e José Leandro de Carvalho. Se
no Brasil não houve o cargo de pintor de corte, com todos os privilégios que o título conferia
àqueles mais destacados da Europa, a presença do monarca e de toda a nobreza que o cercou
proporcionou maiores oportunidades para os profissionais da terra, mesmo depois da chegada
do grupo de franceses que fundariam mais tarde a Academia Imperial das Belas-Artes.
142
A atuação de José Leandro de Carvalho como retratista de D. João VI foi notória, mas
seu envolvimento com a corte abrangeu também assuntos religiosos, como os doze painéis
executados para a Capela Real em 1817. De feição mais classicista, o conjunto emprestou à
decoração um ar solene, tanto na forma quanto no significado que os apóstolos evocam. Este
trabalho vultoso, por estar diretamente relacionado à construção simbólica do poder, confirma
as referências de vários autores de que José Leandro de Carvalho era o pintor favorito de D.
João VI (AZEVEDO, 1969, p. 97).
O artista nasceu em Muriqui, no seio de uma família de lavradores, e nos faltam
informações de como ou quando ele seguiu para o Rio de Janeiro com o intuito de aprender a
pintura. Na capital, formou-se, provavelmente, na oficina de Raimundo da Costa e Silva, o
que poderia explicar a suavidade de sua palheta, o bom emprego de texturas e volumes e o
desenho que exibe qualidade superior quando comparado aos trabalhos dos pintores mais
antigos (AZEVEDO, op. cit., p. 86)36
.
D. João, com o Alvará de 15 de junho de 1808, elevou a antiga igreja dos carmelitas à
condição de Capela Real, forçando os frades a se transferirem para a Igreja de Nossa Senhora
da Lapa. A escolha deveu-se por uma série de razões concomitantes: 1) o fato da Sé estar por
71 anos dividindo o espaço da Igreja de Nossa Senhora do Rosário de São Benedito dos
Homens Pretos com a irmandade local, o que gerou inúmeras rixas entre o Cabido e os irmãos
negros; 2) a distância entre a referida igreja e o centro administrativo no Largo do Paço; 3) a
localização privilegiada da Igreja de Nossa Senhora do Monte Carmelo, no coração da cidade
e diante do porto e do Paço; e 4) a beleza decorativa do interior e as dimensões avantajadas do
templo. Destacamos um trecho do Alvará que nos revela pontos interessantes para análise:
36
O autor menciona a passagem do artista pelo ateliê de Leandro Joaquim, o que é possível. O colorido de José
Leandro pertence ao mesmo estilo de Leandro Joaquim e de Raimundo da Costa e Silva, chamados pela geração
de Gonzaga-Duque de coloristas.
143
Eu o Príncipe Regente faço saber aos que este Alvará com força de lei virem,
que sendo-me presente a situação precária, e incômmoda , em que se acham o
Cabido e mais Ministros da Cathedral desta minha Corte no Rio de Janeiro,
em uma Igreja alheia e pouco decente para os Offícios Divinos e desejando
estabelecer-lhes um local, em que com o devido decoro possam exercer o
Ministério das suas funções sagradas, não só por seguir o exemplo dos meus
augustos predecessores, mas principalmente, por serem os Senhores Reis de
Portugal os Primitivos Fundadores, e Perpétuos Padroeiros de todas as Igrejas
do Estado do Brazil, concorrendo por esta razão com tudo o que era necessário
para a conservação e fabrica das mesmas Igrejas; e considerando por huma
parte as necessidades actuais, e urgentes do Estado, a que cumpre acudir sem
demora, e que Me não permittem continuar as obras da nova Cathedral, a que
dera principio Meu Augusto Avô, o Senhor Rei D. João V, de Gloriosa
Memoria; e por outra parte não querendo perder nunca o antiquíssimo
costume de manter junto do Meu Real Palacio uma Capella Real, não só para
maior comodidade, e edificação de Minha Real Família, mas, sobretudo, para
maior decência, e esplendor do Culto Divino, e Gloria de Deus, em cuja
Omnipotente Providencia confio, que abençoará os Meus cuidados, e os
desvelos, co que procuro melhorar a sorte dos Meus Vassalos na geral
calamidade da Europa (...).37
A Capela Real significava uma das mais importantes instituições da complexa trama
de elementos configuradores da imagem do monarca. Como soberano da Igreja em Portugal,
através do sistema de padroado, o rei era responsável pelas festas religiosas mais luxuosas,
além de responder pelas despesas de todos os funcionários envolvidos. Lilia Moritz Shwarcz
nos diz que:
A construção simbólica da figura pública de um soberano, a representação de
seus palácios suntuosos e das igrejas e catedrais imponentes, sempre
associadas ao seu reino, é uma constante. (...) O soberano marca seu
calendário e a própria eficácia de seu poder também a partir das grandes
arquiteturas que constrói, reforma ou amplia, e que de uma maneira ou de
outra parecem lembrar o seu império e as suas possessões. (SCHWARCZ,
2008, p. 63)
O antiquíssimo costume da monarquia portuguesa em edificar uma Capela Real
remonta ao século XII, tendo a sua expressão máxima no reinado de D. João V. Não
surpreende o fato do Príncipe Regente, logo no ano de seu estabelecimento no Rio de Janeiro,
procurar resolver definitivamente o velho problema da instalação da Sé. Desde que o Cabido
37
Alvará de 15 de julho de 1808. FBN, Manuscritos e Obras Raras.
144
desceu do Morro do Castelo, devido à decadência do templo e do próprio sítio inaugurador da
cidade, ele passou pelas igrejas de São José, Santa Cruz dos Militares e, finalmente, se fixou
na Igreja de Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito dos Homens Pretos. Foi uma longa
jornada que custou aos carmelitas o despejo de onde estavam desde o século XVI.
A ornamentação da talha rococó, do Mestre Inácio Ferreira Pinto, data do final do
século XVIII e recebeu novo douramento nas obras de reforma ordenadas por D. João,
reforma que incluiu, posteriormente, a encomenda dos doze apóstolos de José Leandro de
Carvalho. O artista também pintou o painel do altar-mor que representava a Família Real sob
a proteção da Virgem, imagem desaparecida ainda no século XIX. Tamanho investimento na
melhoria da Capela Real objetivava prepará-la para o casamento de D. Pedro e para a
coroação do próprio D. João, além dos motivos citados acima. A importância simbólica do
empreendimento nos mostra o quanto José Leandro de Carvalho se destacava neste período
em que os mestres franceses já se misturavam aos fluminenses nos principais pontos de
produção artística.
As imagens dos Apóstolos estão distribuídas na nave e na capela-mor, compondo um
grupo de oito e outro de quatro painéis, respectivamente. O Quadro 1 a seguir ajuda a
visualizar a disposição dos santos no interior da igreja. A ordem em que eles se encontram
organizados segue o sentido da entrada da igreja em direção ao altar-mor.
145
Quadro 1 – Disposição dos Apóstolos na Nave e na Capela-Mor
Nave
Lado da Epístola São Simão São Judas Tadeu São Felipe São Tomé
Lado do
Evangelho
São Tiago Menor São Bartolomeu São Matias São Tiago Maior
Capela-mor
Lado da Epístola Santo André São Mateus
Lado do Evangelho São João São Pedro
Consideramos relevante apresentar os doze painéis, pois funcionam como uma
unidade simbólica relativa à condição do monarca como perpétuo padroeiro de todas as
igrejas do Brasil. Como os Apóstolos são considerados os primeiros santos, herdeiros diretos
dos ensinamentos de Cristo, a Capela Real reforça o sentido espiritual da monarquia
portuguesa, apresentando o rei como um representante do divino.
Em relação aos aspectos formais, todos exibem elementos comuns, como o formato
elíptico da tela, o ambiente celestial representado pelas nuvens na parte inferior, o céu com
partes amareladas e a posição dos Apóstolos a meio corpo (Figuras 24 a 35). Alguns estão a
três quartos e outros colocados frontalmente diante do espectador. As cores são suaves e estão
diretamente associadas à iconografia específica de cada personagem. São cores que
combinam com a claridade da igreja e com o dourado da talha pontual rococó de Inácio
Ferreira Pinto.
Os semblantes são serenos, sem expressividade acentuada, repetindo a fórmula
consagrada do modelo colonial. Os gestos são postos como poses ensaiadas, sem nenhum
indício de espontaneidade, conferindo um ar grave e sério para as mensagens que estão ali
contidas. Em algumas imagens, os santos apenas seguram seus atributos, sem movimentação
146
aparente. Interessante destacar a força expressiva do grupo, pois as pequenas diferenças entre
poses, olhares e fisionomias acabam gerando, no conjunto, a sensação de heterogeneidade. A
isto se deve também à capacidade de José Leandro de Carvalho em criar seres
individualizados, cada qual com características físicas diferenciadas.
O desenho de José Leandro de Carvalho exibe o máximo de sua qualidade nestes
trabalhos, superando, inclusive, os retratos realizados para D. João. Isto se deve,
principalmente, à continuidade de uma longa tradição de compor figuras santas em
contraponto à recente ampliação profissional do momento. A crescente busca pelo retrato por
parte da nobreza e da burguesia após a chegada da Família Real incentivou o aprimoramento
dos artistas, mas o repertório religioso já estava impregnado desde a sua formação. Os corpos
são bem definidos pela correta aplicação dos sombreados, o que sugere não apenas o
desenvolvimento técnico do artista, mas também a qualidade da fonte que provavelmente
usou para copiar as figuras. Em se tratando de uma encomenda Real, as gravuras de tradução,
pertencentes à Real Biblioteca, poderiam ter servido ao pintor como exigência de seu
encomendante.
Cada Apóstolo traz consigo os seus atributos identificadores, como, por exemplo, o
livro dos evangelistas São João e São Mateus, as chaves e o galo de São Pedro, e a cruz em
forma de X de Santo André, entre outros. As idades também colaboram com o
reconhecimento, sendo os mais velhos geralmente representados com a barba grisalha,
símbolo de sabedoria adquirida com tempo. No lado do Evangelho, no interior da capela-mor,
duas gerações fundamentais da composição da Igreja estão lado a lado: a juventude de São
João, autor de um Evangelho inflamado e emotivo, e a sobriedade do tempo que deixou as
suas marcas na figura de São Pedro. Simbolicamente, eles representam juntos a capacidade da
Igreja em renovar os seus princípios e a adaptação às novas circunstâncias.
147
Figura 24 – São Pedro Figura 25 – São João Evangelista
Figura 26 – São Mateus Figura 27 – Santo André
148
Figura 28 – São Tiago Maior Figura 29 – São Matias
Figura 30 – São Bartolomeu Figura 31 – São Tiago Menor
149
Figura 32 – São Tomé Figura 33 – São Felipe
Figura 34 – São Judas Tadeu Figura 35 – São Simão
150
Apresentamos, no Quadro 2 abaixo, os principais elementos iconográficos de cada
Apóstolo, com o objetivo de acentuar a necessidade das imagens religioss em mostrar
claramente a identidade dos seus santos. Esta característica, amplamente empregada no
Barroco, permanece nas representações rococós e neoclássicas mais tradicionais, sobretudo
nas obras destinadas aos templos de culto e devoção.
Quadro 2 – Iconografia dos Apóstolos
APÓSTOLO Biografia resumida Principais atributos
São Pedro Nasceu na Galileia com o nome de
Simão. Ao receber o chamado de Jesus,
seu nome mudou para Pedro, pois seria a
pedra fundadora da Igreja.
Barba grisalha como alusão a sua
condição de primeiro bispo, as chaves do
céu que Jesus teria lhe dado, o galo que
simboliza o fato de ter negado Cristo três
vezes antes de amanhecer, entre outros.
São João Irmão do Apóstolo Tiago Maior. Segue
de perto toda a vida de Jesus e é o único
a ser representado no Calvário. Foi salvo
das perseguições romanas e escreve o
seu Evangelho após o período em que foi
prisioneiro, o livro considerado mais
emotivo dos quatro Evangelhos.
Jovem, geralmente veste manto ou túnica
vermelha, a águia que segura o tinteiro
enquanto escreve o Evangelho. O animal
simboliza a inspiração que vem do alto.
O livro e a pena enfatizam a sua
característica maior de evangelista.
São Tiago Maior Irmão mais velho de São João. Teria
evangelizado a Espanha, onde estariam
seus restos mortais. A peregrinação a
Santiago de Compostela remonta ao
tempo das Cruzadas.
Objetos simbólicos dos peregrinos, como
a concha, a cabaça e a sacola.
São Matias Substitui Judas Iscariotes após a traição e
posterior suicídio. É considerado o 13o,
escolhido após a Ressurreição de Cristo.
Jovem, geralmente portando uma acha,
ou seja, um pedaço de madeira que seria
o seu instrumento de martírio.
São Bartolomeu Ele foi, como vários outros Apóstolos,
martirizado e o seu castigo foi o
esfolamento.
O principal atributo é a faca, instrumento
de seu martírio.
São Tiago Menor A tradição nos diz que Tiago foi o
primeiro bispo de Jerusalém. Foi
martirizado pelo exército romano.
Jovem, é apresentado geralmente com
um bastão, com pedras ou um livro.
São Mateus Foi um dos Evangelistas. Chamava-se
Levi e trabalhava como cobrador de
impostos. Abandona a sua vida anterior
quando Jesus o chama para segui-lo.
O livro de seu Evangelho, considerado o
mais antigo. Geralmente aparece um anjo
em suas representações, uma alusão ao
início de seu escrito.
Santo André Irmão de Pedro e inauguram o grupo de
apóstolos. Foi também pescador. Morreu
crucificado em uma cruz em forma de X.
A cruz em forma de X, que geralmente
segura nas representações.
São Tomé Foi pescador na Galileia. Tinha natureza
cética e duvidou da Ressurreição de
Cristo. Foi martirizado a golpes de lança.
O atributo principal é a lança, arma usada
em seu martírio.
151
São Felipe Apóstolo pouco mencionado na Bíblia.
Morreu martirizado, crucificado de
cabeça para baixo e depois apedrejado.
O bastão com a cruz e o livro aberto,
uma referência à sua ação
evangelizadora.
São Judas Tadeu Irmão de São Tiago Menor. Teria
morrido martirizado diante da imagem de
Diana.
A machadinha, atributo mais conhecido
por ser o provável instrumento de seu
martírio.
São Simão São poucas as referências sobre o
Apóstolo, sendo a principal o fato de ter
sido martirizado serrado ao meio.
A serra, instrumento de seu martírio.
Analisando as obras religiosas de cunho mais classicista de José Leandro de Carvalho
e de Raimundo da Costa e Silva, percebemos que os valores plásticos do Neoclassicismo
ocorreram do mesmo modo como os demais estilos, ou seja, misturados a uma tradição
iconográfica barroca. Foram encomendas realizadas por clientes pertencentes a um círculo
mais conservador, pois eram obras destinadas ao espaço sagrado, de culto popular. A Capela
Real, como sede do Cabido, seria a expressão máxima do conservadorismo cristão, o exemplo
para todas as igrejas do Rio de Janeiro e do Brasil. Os clientes de obras religiosas, geralmente
as irmandades e ordens terceiras, foram os que mantiveram a vida religiosa tal como ela era
no século XVIII e que continuaria sem grandes alterações por boa parte do período imperial.
O caso de Manoel Dias de Oliveira consiste em rara exceção no que concerne à
temática cristã. A sua Virgem da Conceição não foi criada para integrar o espaço religioso de
uma igreja e sim para compor um cenário alegórico, provavelmente a Varanda da Aclamação
de D. João VI. As funções são diversas e apontam para outra possibilidade, inédita no Brasil,
de absorção de referências santas, mesmo que elas fossem as protagonistas, para a indução de
significados distantes do que seria um instrumento devocional. Como mencionamos
anteriormente, as funções principais da imagem santa em todo o período colonial giraram em
torno da decoração, do culto, da procissão e da devoção doméstica, todas unidas à finalidade
principal de ensinar pelo olhar o melhor caminho a ser trilhado.
152
A alegoria de Manoel Dias de Oliveira não constitui um caso isolado. O pintor baiano
José Teófilo de Jesus seguiu um caminho semelhante ao do pintor fluminense e foi enviado
por um rico comerciante para Lisboa, com o objetivo de aprimorar a sua formação. Retorna ao
Brasil também tocado pelo novo gosto classicista, com um olhar ampliado em relação à
composição de figuras. Realiza vários painéis de personificações dos continentes, mas o que
reúne os quatro sob a proteção de Cristo tem o mesmo teor alegórico da imagem da Virgem
da Conceição. Aqui, o uso de personificações colabora para assegurar a correta leitura
simbólica da obra, ou seja, a menção de que o reino de Deus abarca os quatro cantos do
mundo.
A temática cristã continuou em voga ao longo do século XIX, com a gradual
integração de artistas acadêmicos nos canteiros de obras das igrejas. Irmandades ricas e
pobres acionaram, sempre que necessário, artistas de formações e preços distintos, mantendo
o antigo sistema de ensino e aprendizagem paralelo ao modelo mais recente praticado na
Academia Imperial das Belas-Artes. Os templos ainda dependiam de seus benfeitores e estes,
quando clientes de temáticas religiosas destinadas ao coletivo, mantinham a preferência pelo
conservadorismo. Serão os retratos os objetos mais consumidos ao longo dos Oitocentos,
responsáveis, em parte, pela atividade em pleno movimento de artistas herdeiros da tradição
colonial.
153
3 A PINTURA DE RETRATO E OS SEUS ENCOMENDANTES
O bom pintor tem de pintar duas coisas principais, isto é, o
homem e o estado de sua mente. O primeiro é fácil, o segundo
é difícil, porque se deve representar com gestos e movimentos
dos membros; e isto pode ser aprendido com os mudos, que o
fazem melhor que qualquer outra espécie de homem (...).
Leonardo da Vinci
Na era fotográfica, a noção de retrato trouxe indubitavelmente o sentido de fidelidade
ao modelo, um naturalismo explícito que julgava a imagem como prova existencial de seu
referente. Desde a apresentação do daguerreótipo ao mundo, em 1839, o gênero foi
imediatamente o mais procurado, fama que faria muitos pintores retratistas adotarem a nova
linguagem como meio de sobrevivência. Os primeiros resultados exibiam, entretanto, parte da
concepção plástica desenvolvida na tradição pictórica desde o Renascimento, seja na postura,
na organização espacial ou na escolha sobre a adoção de fundo neutro ou cenográfico. A
máquina procurava repetir soluções acadêmicas de composição e partia com a vantagem de
oferecer o naturalismo realista como produto de sua especificidade técnica.
O ponto nodal para entendermos o retrato colonial e, particularmente, a face do
encomendante da virada dos séculos XVIII para o XIX, vem do sentido de fidelidade
mencionado acima. Perguntamos, então, a que o retrato deveria ser fiel em uma época que
assistia o despontar de uma nova classe ainda sem identidade própria? Como o cliente via a si
154
mesmo no ato da encomenda e como o artista o percebia em um gênero que necessitava da
troca para ser concebido? Quais as tipologias comuns e o que realmente muda no período de
nosso estudo?
No intuito de responder tais indagações, consideramos favorável o resgate de certas
teorias que discutiram o assunto para que possamos elencar alguns elementos aplicáveis no
caso colonial. Em se tratando de um gênero tão antigo quanto o próprio ato de pintar –
modelar e esculpir – figuras (GIL, 2000, p. 12), não nos admira a quantidade formidável de
funções a que ele se destinou ao representar o humano ao longo da História. Galienne e Pierre
Francastel, no importante estudo sobre o retrato, afirmam que:
O desejo que tem os seres humanos de contemplar-se por meio da
interpretação de sua própria imagem parece tomar parte dos mais antigos
impulsos da humanidade e a arte do retrato individual é uma das atividades
artísticas mais universalmente presente em todos os tempos. Sem dúvida, sua
evolução não é contínua; apesar da faculdade que possui de reaparecer sempre
de muitas formas, é eclipsado algumas vezes, por obstáculos de caráter extra-
artístico ou extra-técnico. (FRANCASTEL, 1995, p. 11)
Os obstáculos referidos pelos autores poderiam vir da Alta Idade Média, quando as
imagens sofreram todo o tipo de restrições, sobretudo por negar conscientemente muito do
que a arte imperial romana produzira enquanto peças do paganismo ou mesmo do
egocentrismo. Houve também o advento do Islã, religião totalmente iconoclasta que
desenvolveu um decorativismo abstrato em muito distante de quaisquer menções à figuração.
O fato é que os momentos de crise do retrato, pelo menos no conjunto da produção ocidental,
são períodos de exceção, pois o humano, seja ele personificando seres etéreos ou narrando
histórias e fatos cotidianos, sempre ocupou lugar destacado. Basta saber em qual instante, sob
quais razões teóricas, podemos considerar parte destas representações como propriamente
retratos.
155
Desde a Antiguidade encontramos imagens realizadas em técnicas diversas que
mostram cenas religiosas ou narrativas de contextos culturais próprios. São afazeres
cotidianos, poses votivas ou deuses antropomórficos que variam conforme a região e a época.
Ao que nos parece, estas não são identificações pessoais deste ou daquele indivíduo, mas
ideias gerais sobre situações comuns do coletivo. Falta ainda a intenção que dirige a vontade
daquele que se deseja ver representado e daquele que executa esta vontade, em uma relação
de maior proximidade.
Ainda no campo das ideias, mas dotadas de maior individualização do ser, estão as
imagens dos faraós do antigo Egito. Apesar de desprovidas de traços fisionômicos
particulares, estas representações de um poder combinado entre o material e o espiritual
indicam a referência a um soberano que o nome esculpido ou pintado confirma. Podemos
dizer o mesmo das estátuas kA da arte funerária, peças que funcionavam como representantes
do defunto, orientadoras das almas no instante de seu retorno ao corpo para a nova vida.
Será na Grécia clássica de Péricles38
que a individualização caminhará para a
unicidade que combina a ideia aos traços fisionômicos da pessoa representada. São figuras de
gente notável na sociedade, homenageadas por estátuas colocadas em espaços públicos para
servirem de exemplo aos demais cidadãos. As poses são heroicas e seguem certo
convencionalismo. O período helenista, por outro lado, desenvolve o gosto por maior apuro
na captação de detalhes, como os traços de idade, os gestos significantes e os sinais de caráter
humano. Este realismo nascente é absorvido por Roma e será a base do retrato dos exemplos
da fase imperial. Esta herança greco-romana ganhará novo impulso no final da Idade Média,
coincidindo com o brotar do Humanismo.
38
Péricles governou Atenas no século V a. C., durante as três últimas décadas de sua vida. Reconstruiu Atenas
após os longos períodos de guerras, inaugurando uma época de paz e prosperidade.
156
O retrato na Idade Moderna pode ser considerado como o estudo fisionômico do rosto
de uma pessoa e portador de uma singularidade (CASTELNUOVO, 2006, p. 17). Os traços
exteriores e a personalidade, o seu interior, configuram a unicidade do ser e estão diretamente
associados ao triunfo do individualismo que ressurgiu lentamente no final da Idade Média.
Foi justamente o período de maior percepção e investigação sobre o mundo natural e o
próprio homem, concorrente ainda com o princípio sobrenatural da religião cristã.
A concepção de vida rural e conservadora da sociedade medieval e feudal
gradativamente se transformou a partir da revitalização dos centros urbanos, em algumas
localidades espalhadas pela Europa. O incremento de novos sistemas de trocas simbólicas
atendeu às necessidades atreladas ao desenvolvimento e aperfeiçoamento do comércio,
dinamizando e alterando as relações sociais, como vimos nos capítulos anteriores. As cidades
tornaram-se polos de intensa atividade cultural e artística, e é nesse ambiente que o retrato
renasceu.
A sociologia da arte procura explicar a revitalização do retrato na Idade Moderna
como parte de complexo estudo da personalidade (CASTELNUOVO, op. cit., p. 29). Antes o
indivíduo perdia-se na coletividade cristã, seguindo, quase anônimo, os padrões culturais e
religiosos de sua comunidade. Os retratos medievais, concordando com esses padrões,
valorizavam o símbolo em detrimento do indivíduo. Os atributos dirigiam o significado do
retratado em direção à sua função na sociedade, propiciando uma leitura iconográfica a partir
de elementos externos. Eram figuras estilizadas e padronizadas, postas frontalmente e de
pouca expressividade. A imagem de Cristo foi o modelo por excelência, o qual aparecia
sugerida nas representações de papas e senhores feudais. O retrato como detentor de
qualidades fisionômicas particulares não encontra, na estrutura da sociedade medieval, espaço
para desenvolver-se livremente.
157
O colapso do sistema feudal em algumas localidades da Europa, ao longo do século
XIII, e a consolidação gradual do poder monárquico com maior centralização, além do
crescimento da burguesia, acompanharam a difusão do retrato e suas novas funções. As
peculiaridades do indivíduo despontaram junto ao naturalismo crescente. O olhar
investigativo para o mundo significou também uma percepção mais apurada das diferenças
entre as pessoas e essas diferenças passaram a ser objeto de estudo. Como bem diz John Pope-
Hennessy, em seu estudo sobre o assunto:
O retrato no Renascimento não é mais que uma linha divisória entre o retrato
medieval e o retrato como o conhecemos na atualidade. É a representação da
história de como os olhos deixam de ser símbolos lineares e se convertem em
nossos órgãos refletores e perceptores da luz; de como os lábios deixam de ser
um segmento da textura indiferenciada do rosto e se converte em uma zona
sensível cujo relaxamento ou concentração pode expressar uma gama de
respostas; de como o nariz deixa de ser uma separação entre os dois lados do
rosto e se converte em delicado instrumento mediante o qual cheiramos e
respiramos, e como os ouvidos deixam de ser pólipos góticos repulsivos que
surgem da cabeça e se convertem em uma espécie de aparato receptor cujas
divinas funções compensam sua forma pouco atrativa. (POPE-HENNESSY,
1985)
A análise da identidade e da fisiologia das paixões abrangia os interesses das camadas
dominantes, como monarcas, papas e membros da nobreza e das transações comerciais
burguesas. Houve a necessidade de identificar traços interiores do caráter na linguagem
gestual nos intercâmbios comerciais, assim como definir a postura dos chefes de estado nas
manobras políticas. Essas atividades envolviam constantes contatos com o desconhecido. O
olhar, as dobras das rugas de expressão, o jeito de articular os membros e a postura seriam
códigos, indícios do comportamento, denunciando defeitos ou exaltando virtudes. Houve, na
verdade, a necessidade e o desejo de se conhecer o outro.
Formou-se elaborada regulamentação no cerimonial das cortes. Personalidades ligadas
ao círculo cortesão se empenharam na definição e investigação das melhores estratégias para a
correta conduta do governante, visando, acima de tudo, a manutenção do poder. Percebemos,
158
na Idade Moderna, que os interesses de Estado dependeram não apenas da força militar e da
política, mas também da capacidade de articular todo um jogo imagético que abarcava as
artes, a indumentária, os gestos e o correto comportamento em cada situação. As cortes
barrocas do século XVII, sobretudo a francesa de Luís XIV, absorveram com sucesso o que a
época de Nicolau Maquiavel estava ainda experimentando39
.
É sintomática a proliferação de tratados de humanistas no Renascimento sobre
educação e decoro. Partindo da nobreza como exemplo, os escritos regulamentavam a conduta
correta à mesa, a forma de olhar, os trejeitos e a adequada maneira de se vestir. A obra De
civilitate morum puerilium (Da civilidade em crianças), de Erasmo de Rotterdan, lançado a
público em 1530, foi amplamente difundida, contando, ainda no século XVI, com numerosas
reedições (ELIAS, 1994, vol. 1., p. 69). O autor tratou do comportamento em público e
trabalhou, entre outras definições, com a ideia da linguagem corporal. Sobre Erasmo, Norbert
Elias menciona que a postura, os gestos, as expressões faciais – esse comportamento de que
cuida o tratado é a manifestação do homem interior, inteiro (ELIAS, op. cit., p. 69).
Um dos pontos interessantes na obra de Erasmo, conforme análise de Elias, reside na
descrição dos tipos de olhar (ELIAS, op. cit., p. 69). Diretamente relacionado ao retrato, ele
indicaria o estado interior do indivíduo, preocupação cada vez mais visível nas obras dos
pintores quinhentistas. O autor explica o aspecto físico do olhar associando um valor
correspondente, como o arregalado que denota sinal de estupidez, ou distante, indício de
divagações do pensamento, entre outros. Complementando o olhar, o restante da gramática
corporal externa traduz a personalidade, o que se esconde no íntimo.
Certamente os artistas do período estavam sensíveis às mudanças sociais. A gradual
substituição da plástica linear pelos efeitos de claro e escuro, como se observa na geração de
39
O florentino Nicolau Maquiavel (1469-1527) foi filósofo, poeta e diplomata, autor de O Príncipe. Viveu sob o
domínio dos Médici, na época em que nomes como Sandro Botticelli e Leonardo da Vinci estavam em plena
atividade.
159
Leonardo da Vinci, mostra que a representação naturalista daquele momento trouxe embutida
a pesquisa das sensações e das emoções. O próprio Leonardo registrou que o retrato deveria
representar os mecanismos do pensamento, explicando o uso correto da iluminação para
ressaltar o relevo e despertar o sentido de unidade entre cabeça e corpo. A acentuação
corpórea no uso de manchas cromáticas submetidas às variadas gradações de luz consistia
artifício propício na evocação de aspectos psicológicos, ao contrário da artificialidade dos
contornos lineares. Assim, pequenos detalhes se combinavam no todo mais verídico e
evocativo, fixando na superfície pictórica pedacinhos da particularidade do retratado.
O humanismo renascentista valorizou o particular, o individual, e as biografias
surgiram, no mesmo contexto do retrato, com algumas funções parecidas. Às vezes se
complementavam quando, ao lado do texto escrito, aparecia a ilustração com o rosto do
biografado. Atendiam ao desejo de conhecer personalidades, vasculhar a vida do outro,
agrupar as semelhanças e reconhecer os defeitos. Biografia e retrato funcionaram também
como agentes da memória, assegurando o nome para a posteridade. São testemunhas que
mantêm a presença, mesmo após a morte do indivíduo.
A obra Vidas dos pintores, escultores e arquitetos, de Giorgio Vasari, nasceu no
contexto das biografias e da consolidação dos retratos como gênero variado e autônomo
(VASARI, 2003). O autor somou à História da Arte um conceito diferente das anteriores
publicações, valorizando a análise técnica acompanhada da vida de cada indivíduo,
contextualizando a obra a partir de seu criador. Antes, os escritos costumavam apresentar
tratados sobre métodos de manipulação de materiais e construção da imagem. Detalhes da
vida do artista assumiram posição de destaque, como as vias de sua formação e as
circunstâncias factuais no tempo da execução das obras.
160
Importante salientar que Vasari estruturou uma academia, visando, principalmente, a
elevação do estatuto social do artista e a sua independência dos rigores do sistema das guildas
(PEVSNER, 2005, p. 105). Leonardo da Vinci havia defendido a posição honrosa do pintor
décadas anteriores, o que caracteriza um momento de consciência individual sobre a
importância do seu trabalho no seio da sociedade. Os autorretratos são fenômenos do período,
posicionando o artista como alguém digno de ser representado.
O século XV italiano experimentou variadas fórmulas de retrato, saindo
definitivamente do modelo medieval de postura orante dos doadores. Os fundos neutros
buscavam enfatizar os valores psicológicos e o culto a si mesmo, sem nenhuma interferência
de objetos ou referências ambientais. O uso de cenografias, por outro lado, procurava situar a
pessoa no seu entorno, com seus símbolos e funções na sociedade. As paisagens integravam o
homem na natureza física a qual pertencia e estudava por meio da Ciência. As poses
acompanhavam estas pesquisas mais livres: rosto frontal, de perfil ou a três quartos; corpo
representado inteiro, a meio corpo ou em formato de busto. A herança de tamanha
experimentação pode ser vista no século seguinte, conforme nos diz Galienne e Pierre
Francastel:
Os sucessores do século XV puderam eleger agora, dentro de uma gama
diversificada de tipos de retrato que é um legado dos iniciadores do gênero.
Podem dispor o retratado sobre fundo neutro, sobre fundo imaginário que
admite paisagem, arquitetura e decoração ao estilo antigo, interiores, ou,
graças ao estratagema da janela aberta sobre uma veduta, a combinação de
vários destes elementos. (FRANCASTEL, 1995, p. 107)
Vale salientar que o ressurgimento do retrato não significou a especialização de
artistas especialmente para este gênero. Os mais destacados pintores recebiam,
ocasionalmente, encomendas e, na relação direta com o cliente, selecionavam a estrutura mais
adequada da composição. O mais importante era a noção de beleza naturalista da época e
como este fator influenciava na feitura mais idealizada ou realista da figura. A citação de
161
Leonardo da Vinci que abre o presente capítulo sugere a via da semelhança, concordante com
sua preocupação em extrair do retratado o seu interior. Este princípio deixava em aberto a
possibilidade de interferir sutilmente na realidade40
.
Para a representação da imagem de um monarca, Giovanni Paolo Lomazzo advertia
que o pintor precisava conferir majestade e nobreza, afins com a sua condição de governante,
mesmo que tais valores não estivessem na aparência do rei ou imperador (CASTELNUOVO,
2006, p. 67). Em seu tratado, datado de 1584, Lomazzo defendia a beleza ideal, beleza
pautada na obtenção da ordem entre as partes. Ele escolhia papas, imperadores, príncipes e
demais personagens do poder como retratados exemplares.
A gravura de tradução colaborou, na virada do século XVI para o XVII, para a
circulação dos modelos experimentados nas principais escolas. Ticiano havia, pela primeira
vez, elevado o prestígio do retrato a níveis até então inéditos e os ecos se fariam sentir até
mesmo em Portugal. Suas poses diversificadas, os olhares distantes e expressivos e a
intensidade com que captava os graus mais sutis de personalidade influenciaram o nascente e
dramático Barroco. Mesmo em fins dos Setecentos, sua herança apareceria em artistas como
Vieira Portuense, como será analisado adiante.
Outra questão sobre o desenvolvimento do gênero encontra-se na atuação das
academias, principalmente a francesa do século XVII. Ao organizar todo um receituário
formal pautado nos modelos greco-romanos, a partir de rígidas regras compositivas, as
academias buscaram organizar a pintura em cânones bem definidos. Os grupos temáticos
foram agrupados em uma ordem hierárquica e os retratos, apesar de ocuparem o mesmo
patamar das pinturas chamadas de gênero, como paisagem e natureza-morta, tinham maior
prestígio.
40
O pensamento neoplatônico abriu espaço para a combinação entre ideia e realidade, propondo que a
representação da última adquira um caráter simbólico.
162
Como instituições geralmente financiadas pelo rei, as academias funcionavam como
parte integrante do mecanismo de produção simbólica, a serviço do intricado jogo persuasivo,
característico das sociedades de corte. Trabalhar como pintor do rei significava estar no topo
do patamar almejado por um acadêmico na busca de realização pessoal. O retrato, neste
contexto, ocupou posição de destaque, pois foi a figura do monarca a representação máxima a
ser propagada. Situação paradoxal, pois o retrato encontrava-se abaixo da pintura histórica na
hierarquia dos gêneros, causando, em algumas ocasiões, desconforto por parte dos artistas. É
conhecida a queixa de Rubens ao ser convocado para pintar os membros da monarquia
francesa, na primeira metade do século XVII.
O retrato de Luís XIV, de Hyacinthe Rigaud (Figura 36), consiste em exemplo
culminante na criação de um protótipo que foi adotado por várias gerações posteriores a ele.
Fruto da arte acadêmica, a imagem apresenta o rei de corpo inteiro, com dimensões
ligeiramente maiores que o natural41
. A grandeza e a pompa despertam o sentido de respeito e
anunciam uma das funções do retrato: a de substituição. Na ausência do rei, a imagem
garantia a sua presença, exigindo, inclusive, reverência dos súditos.
Os atributos de poder áulico estão distribuídos por toda a composição. O exuberante
manto, aberto no lado do espectador, mostra o forro de arminho e um pedaço da espada,
cravejada de pedras preciosas. Na parte exterior, a flor de lis, símbolo da dinastia Bourbon,
decora o tecido azul, motivo que se repete no trono e na mesa que guarda a coroa. O cortinado
vermelho na parte superior confere equilíbrio tonal com o azul predominante na parte inferior.
A coluna, situada no fundo da composição, simboliza a constância e traz na base a
personificação da justiça.
41
Os antecedentes renascentistas do retrato ostentatório ganham maior expressão com a geração de Van Dyck, já
na época barroca. Serão as fontes formais e iconográficas para Rigaud e outros pintores de corte, a partir do final
do século XVII.
163
A opção por uma composição de plano aberto, diferente dos retratos de busto, mais
intimistas, revela a ostentação característica da imagética oficial de Versalhes. Há espaço
suficiente para a distribuição dos atributos que acompanham a simbologia do rei, revelando,
neste caso, a necessária junção entre a essência do retrato, ao mostrar a singularidade do
indivíduo e os signos que contribuem para a sua identidade. Além disso, as dimensões da tela
colocarão sempre o espectador em posição de inferioridade em relação aos olhos do rei,
artifício que acentua a posição de autoridade da figura.
A pose de Luís XIV repercutiu nas demais cortes, a partir da hegemonia cultural
francesa nos Setecentos. O olhar direcionado para o observador, a representação de corpo
inteiro, o tratamento pomposo e exuberante das texturas, o uso dos elementos iconográficos
de poder e as grandes dimensões serão os parâmetros para o retrato de corte, destinado à
exposição pública. Esta tipologia assumiu o topo da hierarquia de pintura de retrato.
Enquanto as iconografias religiosas e mitológicas gozavam de amplo receituário
formal, as tipologias do retrato foram articuladas em gradual limitação de derivações, salvo
em casos de artistas com maior liberdade. As imagens de corpo inteiro serviram geralmente à
solenidade e ostentavam poder e majestade. Os bustos, mais comuns, podiam suscitar a
reverência e até mesmo a substituição. Porém, é comum que os retratos de busto
funcionassem como agentes da memória ou como imagens comemorativas. Os retratos de
perfil, abundantes no Renascimento, provêm da influência da numismática, assemelhando-se
às moedas e medalhas.
164
Figura 36– Hyacinthe Rigaud. Retrato de Luís XIV. 1701. Óleo sobre tela. 277 x 194 cm. Museu do Louvre,
Paris.
165
Para o iconógrafo, o retrato integra a categoria dos temas de observação do mundo.
Não carece obrigatoriamente de consulta a fontes literárias, históricas ou religiosas, como
ocorre nos casos de representação de cenas bíblicas ou de reconstituição de fatos do passado.
O modelo comumente posa para o artista e, no caso de retratos póstumos, há os relatos dos
que conviveram com a pessoa em vida, se, porventura, o artista não a tenha conhecido. Como
tema de observação do mundo, o retrato e a sua retórica pertencem ao seu tempo. Por isso a
grande dificuldade na apreensão do significado de pequenos detalhes, do porquê de sorrisos
que parecem enigmáticos e da razão de certos olhares misteriosos.
A leitura de um retrato requer o conhecimento de elementos culturais da época em que
foi feito, pois os padrões gestuais e comportamentais são dinâmicos. Não exige apenas o
estudo sobre dados superficiais, como o vestuário de um tempo e local; deve-se considerar
que códigos sociais atendem aos propósitos específicos do meio em que foi realizado. Assim,
o estudioso de hoje precisa de cautela na análise de retratos do passado, pois olhares e gestos,
inclusive posições de dedos, são geradores de significados nem sempre disponíveis fora de
seu tempo. Giulio Carlo Argan, no seu Guia de História da Arte, avisa que:
Na cultura da imagem, os processos de associação e transmissão surgem de
fato muito mais complexos e estruturalmente diversos dos da cultura da forma,
que requerem a relação direta e consciente: muitas vezes, é certo, um tema
icônico é ligado a culturas e tradições remotas, fora de qualquer continuidade
verificável, como aconteceu precisamente no Renascimento, quando se
estabeleceu uma relação, à distância de séculos, com a cultura de imagem do
mundo clássico. (ARGAN, 1992, p. 39)
O método que Argan apresenta como Iconológico, referenciando os autores que se
dedicaram ao estudo, como A. Warburg e E. Panofsky, exige a compreensão de fatores
associados ao próprio objeto artístico, como o comportamento social diante de certas
produções imagéticas. A citação nos serve, por exemplo, para identificar a filiação do retrato
de perfil quatrocentista à numismática do antigo Império Romano. Os símbolos se
166
movimentam no tempo e no espaço e adquirem novas significações, mesmo que
aparentemente mantenham semelhanças formais.
O olhar cumpre papel essencial em um bom retrato. Consiste em elemento de
iconografia e acompanha a função a que se destina a obra. Traduz estados psicológicos
concordantes com a natureza e o estatuto social do retratado. Os incisivos e diretos, que
encaram o espectador; os graves e pesados, que lembram os santos penitentes; os distantes e
pensativos, que denotam atividades mentais. São reis, poetas, intelectuais, músicos, clérigos e
demais personagens dignos de fincarem sua imagem na posteridade, requerendo poses e
posturas específicas.
O retrato é, por excelência, estático. Apresenta a face da pessoa com os atributos que
lhe conferem significado. Para compreendê-lo profundamente, deve-se recorrer à história do
indivíduo e, em alguns casos, analisá-lo sob a luz da iconologia. O retrato permanece quase
sempre restrito ao seu conjunto de fórmulas, experimentadas no humanismo renascentista e
consagradas nas cortes absolutistas dos Seiscentos. Os estilos de época conferem o gosto
formal do momento, alterando pouco os modelos compositivos tradicionais.
Em resumo, o desenvolvimento do retrato, como gênero autônomo na Idade Moderna,
portador de valores e funções próprios, seguiu a tendência do conservadorismo em algumas
regiões mais modestas, como Portugal. Manteve, nestas regiões, pouca variação na sua
tipologia e serviu, geralmente, às figuras de destaque da sociedade. Funcionou como emblema
de poder, de posse, de espiritualidade, de vaidade, de consciência do valor individual, de
homenagem póstuma e, principalmente, de presença. Presença que durante a Idade Média era
relativa às imagens santas, destinadas ao culto e à devoção e passou por um processo de
secularização crescente da sociedade ocidental e burguesa.
167
3.1 O RETRATO EM PORTUGAL: AS RELAÇÕES DE ENCOMENDA
A historiografia da arte portuguesa conta com número crescente de publicações sobre
a pintura realizada até o século XIX, conforme mencionamos no primeiro capítulo. José-
Augusto França e Vítor Serrão dedicaram boa parte de seus estudos na tentativa de preencher
uma lacuna, sentida até meados do século XX. A pintura, vista historicamente e
materialmente como linguagem menos expressiva que a escultura e o azulejo, aparece
superficialmente analisada em trabalhos gerais sobre arte portuguesa, em obras de
pesquisadores mais antigos. A referencial e pioneira pesquisa de Reynaldo dos Santos,
chamada Oito séculos de arte portuguesa (SANTOS, sd.), destaca biograficamente os
principais nomes e discute pouco as características de suas obras. Basta observar, na mesma
publicação, o capítulo dedicado ao azulejo, e percebe-se que o volume e a qualidade das
informações diferem sensivelmente.
No que se refere ao retrato, França compôs um estudo que, apesar da natureza
sintética, consiste em precioso material para o presente trabalho: O retrato na arte portuguesa
(FRANÇA, 1981). O autor discorre sobre o desenvolvimento do gênero ao longo dos tempos,
desde as imagens tumulares medievais até os exemplares da Arte Moderna. Explica a
predominância do gosto italiano e do tom conservador do retrato português dos Setecentos,
discorrendo sobre características formais e iconográficas que serão observadas no caso
colonial do mesmo período.
Vitor Serrão compôs numeroso conjunto de artigos sobre o Maneirismo e o Barroco,
reunidos nas obras O Maneirismo e o estatuto social do pintor (SERRÃO, 1983a) e Estudos
de pintura maneirista e barroca (SERRÃO, 1989b). Seu estilo envolve a preocupação com o
social, tratando a pintura como pertencente a uma complexa rede de relações. Serrão explica
168
as interconexões entre arte e o conjunto de fatores contemporâneos a ela, evidenciando a troca
de valores na constituição de uma identidade cultural, onde a arte participa ativa e diretamente
de todo o processo. O autor nos diz que:
O historiador de arte que deseja operar, em termos de cientificidade e rigor
analítico, sobre uma dada obra de arte particular ou situação artística (estilo
global), tem de analisar antes de mais vários processos sociais que lhe são
referentes, na base da totalidade que constituem (modos de produção) e da
dinâmica que os informa (lutas de classes), visionando em seguida as
circunstâncias históricas precisas em que se verificou a encomenda e a
produção da obra em estudo, com as suas significações determinadas por esse
processo de produção e nele determinantes, e envolvendo-se, depois, na
decodificação dos valores intrínsecos que a peça ou a obra artística veicula.
(SERRÃO, op. cit., p. 302)
Em seguida completa:
A História, assim articulada, não numa mera sucessão de fatos, mas num
sistema multiforme em que a produção material desempenha um papel
essencial, determina efetivamente aquilo que o homem é, a maneira como age,
como produz, como sonha. (SERRÃO, op. cit., p. 303)
Tanto Serrão quanto França lançam mão dos recursos de diversas disciplinas, como
História e Sociologia, para criar uma rede de relações, método que garante maior intimidade
com os objetos de pesquisa. Aqui, a complexidade assume a sua significação original, ou seja,
a abrangência de variadas partes em torno de um bem comum. Assim, a História da Arte é
vista como disciplina essencialmente dialógica e rizomática42
, não encerrada em suas
premissas particulares.
Sobre a pintura portuguesa em geral, baseando-se nos autores supracitados, nota-se
que o seu florescimento ocorreu nos Quatrocentos, quando a organização estatal promoveu a
centralização mais efetiva do poder monárquico. Na sua maioria religiosa, a pintura local não
42
O conceito de rizoma, inicialmente aplicado na biologia para explicar a estrutura de determinadas raízes, foi
adaptado na Filosofia nos escritos de Gilles Deleuze e Félix Guattari. Segundo os autores, o conhecimento
humano se dá a partir de uma rede de informações sem um núcleo preciso, onde cada parte assume o mesmo
grau de importância em relação às outras partes. Esta concepção é corrente nas ciências interdisciplinares.
169
revela nomes portugueses proeminentes, mas aponta para a presença de artistas flamengos a
serviço do rei. Foram obras voltadas para os interiores dos templos, especialmente para a
ornamentação dos retábulos.
A influência estrangeira na produção do retrato português vem de longa data. No
século XV, momento em que a corte se empenhava em consumir arte e artistas, o intenso
intercâmbio comercial e cultural com os Países Baixos resultou na importação do colorido
típico flamengo que inundou as igrejas portuguesas. Ainda raro, o retrato da época se
assemelhava às figuras religiosas, com os resquícios do brilho e do dourado do gótico
nórdico.
O retrato de D. João I, fundador da dinastia de Avis e aclamado rei em 1385, transmite
as características acima citadas (Figura 37). É representado em busto e a três quartos. A pose,
com as mãos postas em oração, refere-se à atitude devocional que invoca a tipologia de
retratos votivos, comuns no século XV em Portugal. Esta tipologia associa a iconografia
religiosa ao retratado, funcionando ora como homenagem póstuma, ora como agradecimento
por graças alcançadas. Há também a necessária associação das personalidades ilustres da
sociedade com a hierarquia celestial, sugerindo o desejo de intimidade entre os poderes divino
e secular.
Este tipo de cena pode figurar em um único painel ou estar distribuída separadamente,
disposta comumente em trípticos. No entanto, apesar da imagem seguir o modelo votivo de
representação, este parece ser um retrato autônomo, pois não existem referências sobre
painéis formadores de um conjunto narrativo. Outro indicativo de sua autonomia encontra-se
na legenda em latim que circunda parte da moldura: Esta é a vera imagem do defunto Senhor
170
João, de digna e venerável memória, até há pouco mui nobre e mui ilustre rei de Portugal,
que em sua vida se tornou muito poderoso pela vitória de Aljubarrota43
.
Figura 37 – Autor desconhecido. Retrato de D. João I. Século XV. Óleo sobre tela MNAA, Lisboa.
43
Hec est vera digne ac venerabilis memorie Domini Joannis defucti quond Portugalie nobilissimi ET
illustrissimi Regis ymago quippe Du viveret de Juberot victoria potitus ET potentíssima.
171
A inscrição nos informa sobre a função memorial do retrato, feito provavelmente há
algum tempo após a morte do rei, ocorrida em 1433. A imagem revela pouco da
individualidade do soberano, mostrando semblante apático e pouco expressivo. A qualidade
dos detalhes ornamentais do tecido brocado do fundo e do tratamento cromático e de claros e
escuros aproxima a obra à escola flamenga do mesmo período. O decorativismo ainda gótico
e o naturalismo no tratamento das texturas, dos volumes e da profundidade são marcantes na
produção artística desta escola. Verificamos, entretanto, que a técnica sozinha não garante a
transmissão dos valores interiores ou psicológicos do referente, mantendo a aparência fechada
em regras compositivas de um determinado gosto. Importa mais a manutenção da memória
através de uma representação simbólica.
O século seguinte revelaria Portugal como potência náutica, quando as soluções
plásticas em voga na Itália foram absorvidas e os elementos formais de tendência medieval e
renascentista foram mesclados aos novos valores. O pintor e teórico Francisco de Holanda,
por exemplo, viajou para Roma e conheceu Michelangelo e Federico Zuccari, este último
importante pensador de conceitos tipicamente maneiristas. Holanda compartilhou com as
ideias de Zuccari a respeito de uma criação com regras mais frouxas em relação à matemática
exercitada na geração de Leonardo. Sua obra Do tirar polo natural, um pequeno tratado sobre
a arte do retrato, composto em forma de diálogo entre um mestre e um discípulo, expressava
bem as suas concepções. No trecho que selecionamos, o mestre Fernando, que seria o próprio
Holanda, passa os ensinamentos finais ao seu discípulo:
Fernando: (...) E é um, que em tudo o que tiver descoberto a pessoa ínclita,
que ao natural pintardes o retrato, ou da carne, ou do vestido, se não pareça em
nenhum modo com outra pessoa alguma, e antes se não pareça com ninguém,
que parecer a pessoa que não é; e se for pessoa alegre, não se pareça com
triste, e se for pessoa triste e recolhida, não pareça com as alegres e fáceis; se
for pessoa sobre o gordo, não se pareça com o magro; nem o magro com o
gordo; se for desairosa a pessoa, não pareça com grande ar de despejo44
. Mas
tendo ela o ar e graça e bom despejo ou no rosto ou nas mãos, ou nos braços,
44
Despejo no sentido de desembaraço, desenvoltura.
172
não se lhe perca uma onça dele; e se for pessoa de pouca idade, pareça ainda
de menos idade.
Braz Pereira: E se for de muita idade?
Fernando: Pareça ainda, se quiserdes, de menos idade.
Braz Pereira: E se for feia?
Fernando: Pareça que não é tão feia. (HOLANDA, 1984a)
Os tratados de Francisco de Holanda logo se espalhariam por Portugal, atraindo
artistas locais que aderiram aos novos gostos, como os pintores Antônio de Campelo e Gaspar
Dias. De sua autoria destacam-se ainda os escritos Da pintura antiga (HOLANDA, 1983b) e
Diálogos em Roma (HOLANDA, 1984c), mantendo as referências greco romanas como as
fontes primeiras de discussão sobre o fazer artístico. Importante lembrar que a época
maneirista foi uma fase de intensa atividade intelectual, não mais pensando a arte como um
ofício apenas regrado ou pautado em valores externos, mas refletindo sobre a sua essência no
conjunto dos vários fazeres humanos. Em sua passagem por Roma, Holanda respirou toda a
atmosfera de mudanças de atitude, considerando o artista como um criador original levado
pela inspiração.
Dentro desta noção, Holanda dedicou parte de seus conceitos ao retrato, explicando os
pontos fundamentais para uma boa composição. Deixava claro que este tipo de produção era
extremamente restrito às pessoas abastadas, algo que se manteve do passado renascentista.
Sobre o assunto, ele era bem claro, conforme a seguinte passagem:
O primeiro preceito que eu no tirar ao natural poria é que o pintor excelente
que pinte muito poucas pessoas. Digo que estimo somente os ilustres príncipes
e reis ou imperadores merecem ser pintados, e ficarem suas imagens e figuras
e sua memória dos futuros tempos e idades. (...) E também tem entre estes
lugar qualquer homem famoso em armas, ou em desenho, ou em letras, ou em
singular liberalidade ou virtude, e não algum outro qualquer homem.
(HOLANDA, 1984a, p. 14).
173
Fenômeno observado nesta época, concordante com a citação acima, é a eminência do
pintor retratista de corte. São várias as razões para a escolha de um artista entre tantos, mas
esta preferência apontava para um tratamento especial em relação aos demais. Notamos
patente deslocamento de estatuto social, pois este profissional, juntamente com os membros
de sua oficina, passava a responder pela circulação das imagens de poder, travando contato
direto com a nobreza cortesã. Outro fator diferencial encontra-se na disposição de uma pensão
fixa que garantia maior segurança no exercício de seu ofício. Remontando ao Renascimento
para entender esta diferenciação, Martin Warnke no diz que:
Foram os humanistas das cortes italianas, na verdade os responsáveis pela
redação dos documentos nas cortes, que pela primeira vez notaram que a partir
da posição do artista da corte surgia uma nova concepção da profissão, que
podia ser expressa conceitualmente com o auxílio de analogias e transposições
teóricas. Eles remontam às tentativas de Petrarca nesse sentido. Essas
tentativas dos humanistas, que frequentemente talvez não passassem de mero
exercício intelectual ou simples gentileza, foram assumidas pelos artistas e
logo eram também elaboradas de modo sistemático. (WARNKE, 2001, p. 66)
Em Portugal, verificamos o movimento do pintor da corte a partir do reinado de Filipe
IV, na ocasião da União Ibérica. Nomes como Domingos Vieira e Bento Coelho Silveira
foram ativos, justamente quando o retrato português assumiu um caráter internacional
(FRANÇA, 1981, p. 32). Vale salientar que a circulação do conhecimento atingiu proporções
inéditas na história, impulsionada pela tipografia móvel e pelo aperfeiçoamento da técnica da
gravura45
. Os tratados de arte e as cópias de obras consagradas disponibilizavam as fórmulas e
os modelos, universalizando cada vez mais os gostos e padrões em voga nos grandes centros
culturais. Outro fator significativo para o intercâmbio de saberes foi a intensa movimentação
dos artistas nas cortes europeias, seja por contrato ou por busca de aprendizado. Assim, não
surpreende o fato de que, a partir do final do século XVI, ocorresse maior internacionalização
dos estilos, com matriz visivelmente italiana.
45
Tanto a tipografia móvel quanto o aprimoramento da gravura acontecem ainda no século XV, tendo no
seguinte a explosão da circulação de livros e de imagens.
174
A análise do retrato de um jovem cavaleiro, de autoria não identificada, declara a forte
ligação com os modelos em circulação no momento, quando a obra de Ticiano exercia
fascínio nas escolas portuguesa e flamenga (Figura 38)46
. O fundo neutro e negro colabora
para que o olhar do espectador recaia diretamente no rosto do rapaz, parte investida de
iluminação contrastante. As feições são sutis e delicadas, o que causa interessante conflito
com a armadura metálica, aparato de poder militar.
A gola rendada branca, a armadura e a faixa vermelha que cruza o peito do rapaz
simbolizam o seu estatuto elevado, faltando, no caso de iconografia desta natureza, o bastão
de comando. Caso a pintura trate da figuração de um rei, o que parece plausível,
provavelmente esta obra seria uma versão reduzida de outra que exibiria, com maior
visibilidade, todos os atributos que acompanham o personagem.
A organização da figura no espaço repete uma fórmula consagrada na época de Rafael
e, posteriormente, aplicada muitas vezes por Ticiano: equilibrar a composição centralizando
um dos olhos, de forma que uma linha vertical possa dividir o quadro em duas partes iguais.
A porção mais importante do rosto é levemente deslocada para o lado esquerdo, o que cria no
espectador uma movimentação que se inicia no olho centralizado da personagem. Este
recurso, associado à representação a três quartos, confere certo dinamismo, como se um
instante da vida do retratado tivesse sido capturado pelo pintor.
A despeito da falta de referências sobre a identidade da personagem, o pintor
conseguiu transmitir algo de singularidade ao retratado. O olhar frágil, o leve sorriso e a
opção por um plano fechado colaboram, juntamente com as características expostas acima,
para uma sensação de intimidade e individualidade. Entretanto, mesmo com a visível
46
Em Do tirar polo natural, Holanda se refere a Ticiano como o mais famoso pintor de retratos (...) a flor deste
mundo. (HOLANDA, 1984, p. 41).
175
transformação em relação ao século anterior, a época aponta para uma situação ainda
delicada, notada pela dificuldade de encontrar as autorias de diversos retratos portugueses.
Figura 38 – Autor desconhecido. Retrato de um Jovem Cavaleiro. Século XVI. Óleo sobre tela.
MNAA, Lisboa.
Alguns fatores colaboram para a complexidade observada na produção artística dos
Seiscentos. A União Ibérica (1580-1640) e as posteriores guerras da Restauração marcaram
176
uma fase de crise caracterizada pelas vias contraditórias de busca de identidade, ferida pela
humilhação da ocupação espanhola. A absorção de gostos externos, principalmente italianos,
aconteceu por contato direto ou através da corte de Felipe III. Apesar da turbulência do
período de dominação e de guerras, a pintura floresceu em Portugal, mantendo o programa da
Contrarreforma de decoração das igrejas e construção (e reconstrução) de novos mosteiros e
conventos.
A relação entre o pintor e o indivíduo a ser retratado reflete uma troca de
conhecimentos, um elo entre as partes. A representação do singular requer uma aproximação
íntima na busca dos caracteres pessoais. O autor do retrato precisava respeitar a forma como
seu modelo desejava ser apresentado e se movimentava na frágil fronteira entre a criatividade
e a convenção47
. O risco de rejeição, que acarretaria na perda de contrato, influenciava
consideravelmente as escolhas das fontes iconográficas e o manejo dos elementos formais.
Outro fator a considerar, para a discussão do caso português, consiste nas diferenças culturais
e como elas se comportavam na forma de ver a si mesmo e ao outro.
França alerta para a preponderância de retratistas estrangeiros na corte portuguesa e
questiona o quanto isso interferia na percepção da própria identidade:
Do retrato português seria maneira simplificada de dizer: na realidade, o
retrato que ao longo do século XVIII se praticou em Portugal, ou para clientes
portugueses, nos seus exemplos de maior qualidade é obra de artistas
estrangeiros, escultores, pintores ou gravadores. (...) Não deixa isso de ter
significado, no seio da cultura nacional que, num domínio tão sintomático
como o do retrato, especialmente se enquadra no viver social e na consciência
que a sociedade tem de si própria, e dos seus deveres imagéticos. O papel
atribuído a artistas estranhos constitui assim uma referência crítica de maior
importância histórica. (FRANÇA, 1981, p. 38)
É notória a dificuldade de encontrar traços de originalidade na produção dos pintores
lusitanos, fato referenciado desde os antigos estudos sobre o assunto, como a mencionada
47
O texto refere-se aos retratos encomendados, sobretudo quando os clientes pertenciam à família real.
177
obra de Reynaldo dos Santos. As explicações mais comuns sustentam que a cultura
portuguesa se afinou mais com a escultura, por seu apelo tridimensional. A expressão maior
da pintura estaria nos azulejos, arte que alcançou desenvolvimento significativo em várias
escolas regionais, inclusive coloniais, como atestam os exemplares de São Luís no Maranhão.
Vale salientar, entretanto, que a falta de traços originais não significa falta de
qualidade. Como os demais reinos europeus, Portugal abriga quantidade considerável de
artistas habilidosos, como Josefa D’Óbidos, André Gonçalves e Vieira Lusitano, entre tantos.
As igrejas são testemunhas vivas do apreço às imagens narrativas pictóricas, sendo
numerosas, muito mais que na Colônia, as paredes e os tetos forrados de iconografia bíblica e
hagiográfica. Os palácios exibem verdadeiras galerias de retratos dos seus proprietários e de
seus antepassados. Ocorre, no entanto, que o intenso intercâmbio com os centros culturais
dominantes, sobretudo italianos, contribuiu para uma aceitação dos modelos sem grandes
alterações, fato que poderia abrigar uma série de razões. Uma plausível é a interferência do
encomendante no ato da negociação do contrato de trabalho e das seleções das fontes
iconográficas, quando conhecedor das escolas internacionais.
Assim, os retratos portugueses oscilaram formalmente de acordo com a maior
proximidade de uma ou de outra escola, como o Barroco tardio do italiano Domenico Duprá
e o Rococó do francês P.A. Quillard, ambos prestando serviços à corte de D. João V.
Conservaram, no entanto, certo convencionalismo como característica predominante. Na falta
de intimidade entre o pintor estrangeiro e o seu modelo, a opção por utilizar padrões de
representação consagrados seria a garantia da satisfação entre as partes.
Observamos caso semelhante na corte francesa de Maria de Médici, na primeira
metade do século XVII. A carência de pintores expressivos regionais na época, pois Claude
Lorrain e Nicolas Poussin estavam em Roma, resultou na contratação de Rubens, afamado
178
artista flamengo da época. O conjunto de obras que representam as fases da vida da rainha
evidencia a opção pela idealização, diferente dos retratos que o pintor realizou em seu círculo
íntimo, estes dotados de maior personalidade.
O próspero reinado de D. João V avançou no século XVIII com certa preocupação a
respeito da formação medíocre de seus artistas. A tradicional contratação de pintores
estrangeiros, no qual Domenico Duprá foi, sem dúvida, exemplo maior, o levou a criar uma
escola portuguesa de arte em Roma, a Accademia della Sacra Corona di Portogallo, na
década de 1720. A estreita ligação com os programas compositivos romanos foi a tônica do
reinado joanino, o qual encontra, na construção do palácio de Mafra, sua expressão maior. A
inicial aquisição de escultura e pintura da escola romana e o investimento nos pintores
bolsistas, em formação e regressos da academia, fizeram com que Mafra se tornasse um
centro de referência do Barroco italiano em Portugal (SERRÃO, 2003, p. 182). Nesta
conjuntura de prosperidade, o retrato cortesão adquiriu importância até então inédita em
Portugal.
Como exemplar máximo do Absolutismo, o modelo de Luís XIV contaminou outras
cortes europeias, chegando, por via italiana, em solo português. A imagem de Dom João V, de
Duprá (Figura 39) interessa ao nosso trabalho, pois parece ser a fonte para o retrato de Gomes
Freire de Andrada, o conde de Bobadela, atribuído a Manoel da Cunha e Silva. A informação
visual provavelmente chegou ao artista através da profusão de gravuras que circularam com as
efígies das personalidades de poder portuguesas.
179
Figura 39– Domenico Duprá. Retrato de D. João V. c. 1725. Palácio Ducal, Vila Viçosa.
Duprá, contratado em Roma pelo Marquês de Fontes e Arantes, em 1718, permaneceu
na corte portuguesa durante doze anos. Nomeado pintor oficial de Dom João V, compôs
numerosos retratos da Família Real. A reforma do Palácio dos Duques de Bragança, em Vila
Viçosa, oferece uma extraordinária amostra da atuação de Duprá na formação do retrato
lusitano. Sem dúvida, proporcionou uma verdadeira fonte iconográfica e formal do retrato
barroco para outros artistas, portugueses e estrangeiros. O forro do Salão dos Duques conta
180
com uma série de representações de membros da dinastia dos Bragança, pintados pelo
italiano.
O retrato de Dom João V segue os parâmetros de Rigaud na organização dos
elementos. O rei, vestindo armadura típica dos monarcas, símbolo de sua liderança militar,
exibe os demais atributos de poder: o cetro, a coroa e o manto. A postura repete a de Luís
XIV, com a opulência característica do retrato oficial de corte. A ambientação, com
cortinados e parte visível de uma pilastra, complementa a atmosfera atemporal característica
dos cenários criados neste tipo de composição.
O reinado de D. João V marcou uma nova fase para a pintura portuguesa, sobretudo
para o retrato de corte. A notável permanência de artistas estrangeiros no país a serviço do rei
revela um ambiente fecundo para a produção artística. Logo as primeiras gerações de bolsistas
portugueses transmitiriam seus ensinamentos acadêmicos aos novos discípulos, abrindo
caminho para a época que divulgaria nomes como Domingos Antônio de Sequeira e Vieira
Portuense.
As melhorias no panorama artístico orquestradas no período joanino viriam a se
consolidar somente nos quartéis finais dos Setecentos, com a atuação notável do Intendente
Geral de Polícia Diogo Inácio de Pina Manique, sob o reinado de Dona Maria I. Aulas régias
foram abertas e bolsas concedidas com regularidade para a complementação dos estudos na
Academia Real de Portugal em Roma.
Braço direito do Marquês de Pombal, Pina Manique assumiu o cargo endurecendo o
tom conservador peculiar da era pombalina, afastando os ventos revolucionários franceses,
mas continuando com a absorção de um Iluminismo particular. Aperfeiçoou os mecanismos
para o controle da circulação de impressos, evitando que parte das ideias iluministas
contrárias à ordem e aos bons costumes lusitanos contaminasse as mentes mais liberais.
181
Apesar de conservador, Pombal havia posto em prática muito do que o Iluminismo
preconizava: reformulou o sistema educacional, modernizou a área legislativa, reformou a
Universidade de Coimbra, aboliu a escravatura em Portugal, além de reconstruir, de forma
racionalista, a parte baixa de Lisboa, duramente atingida com o terremoto de 1755. O aparente
paradoxo de sua atuação como homem de ferro de D. José vem do seu cuidado seletivo em
articular as ideias iluministas com a manutenção do poder e das regalias comuns ao Antigo
Regime, ou seja, de agir conforme um déspota esclarecido. A morte do rei precipitou a queda
de Pombal, trazendo para o governo de D. Maria I muitas das inimizades do Marquês. Apesar
da manutenção de muito do que o programa de Pombal havia defendido, um clima de
superstição e de religiosidade extremada ascendeu novamente. A catástrofe natural passa a ser
vista como um castigo divino pelas atitudes do ministro de D. José I, sobretudo no que se
refere ao episódio da expulsão dos jesuítas. José Augusto-França tece a seguinte crítica:
À beira duma Europa feliz, vivendo então no prazer de descobrir novos
objetos que acrescentavam a sua comodidade, aguçando-lhe o espírito curioso,
e no gosto de se debruçar sobre novas idéias, que despertavam o seu interesse
e a sua crítica, Portugal fechava-se numa interminável e deleitosa penitência,
marcada por touradas e gozos mais seráficos, entre procissões, óperas de
castratti e representações de fantoches em que uma Virgem Maria, coberta de
jóias, podia bater o fandando com um Jesus de imensa cabeleira empoada.
(FRANÇA, 1981, p. 25)
A despeito do parcial fechamento cultural de Portugal, as bolsas para o estudo em
Roma, que aconteciam de maneira esparsa desde o tempo de Dom João V, passaram a contar
com alguma regularidade a partir da abertura da aula de desenho de Pina Manique, na Casa
Pia. A escolha dos futuros bolsistas ficou, nesta instituição, a cargo do próprio intendente, que
direcionava meticulosamente os alunos aos mestres tradicionais, como Pompeu Batoni,
Domenico Corvi e Antonio Cavallucci. O primeiro foi várias vezes mencionado como
professor do fluminense Manoel Dias de Oliveira, o qual, quando agraciado pela bolsa, seguiu
182
para Roma para aperfeiçoar sua formação. Se desde o século XVI a arte portuguesa foi
impregnada pelo gosto italiano, percebe-se agora o seu predomínio, especialmente romano.
O que se pode destacar dos retratos portugueses do século XVIII é a manutenção do
tradicionalismo a partir dos modelos italianos. Vieira Portuense e Domingos Antônio de
Sequeira, os expoentes pintores da corte, viveram a transição do Barroco (e do Rococó) para o
gosto neoclássico romano e foram os artistas que contribuíram para a diversificação maior do
gênero. Praticam o Neoclassicismo de fonte romana, diferente do francês pela ausência do
tom moralizante difundido por David a temas e personagens contemporâneos ao artista48
. Os
portugueses seguiram o princípio básico de retratar o indivíduo com os seus atributos, sem
aquela retórica recheada de heroísmo que aparece, por exemplo, nas obras Marat assassinado
e Napoleão entregando as condecorações49
.
O retrato do Bispo Adeodato Turchi, de Vieira Portuense, revela o artista ainda
associado ao tradicionalismo referido acima (Figura 40). Feito em sua passagem por Parma,
Portuense traduziu a vivacidade reconhecida do bispo na tela, com o olhar arguto, sorriso
aparente e sobrancelha franzida. A luz incide diretamente no rosto, a três quartos, destacado
do fundo enegrecido. O hábito franciscano e a cruz são os únicos atributos do religioso, uma
economia de meios comum em retratos de busto.
48
Há, contudo, os exemplares de Vieira Portuense claramente influenciados pela vertente francesa, mais
engajada nos assuntos da atualidade, conforme analisamos anteriormente. Contudo, são exceções no conjunto de
sua obra. 49
As duas obras são de Jacques-Louis David. A primeira refere-se ao heroísmo do período revolucionário e a
última à pompa da era napoleônica.
183
Figura 40 – Vieira Portuense. Retrato do Bispo Adeodato Turchi. Óleo sobre tela. c. 1794-1795
MNAA, Lisboa.
O que se verifica neste exemplo é a continuidade na aplicação de elementos formais
cristalizados desde a época de Ticiano, principalmente o artifício amplamente usado pelo
veneziano em modelar traços do caráter no tratamento da boca. A simplicidade trabalha em
conjunto com a captação da essência do retratado, criando um diálogo objetivo entre
espectador e obra. O modelo, assim composto, encontra na época neoclássica motivo para a
184
sua continuidade, pois os ideais estilísticos do momento prezam por representações diretas,
com simbologia clara e de fácil compreensão.
O fundo neutro e enegrecido originou-se das experimentações da geração de Leonardo
da Vinci, quando se buscava acentuar a personalidade do retratado sem interferências de
elementos externos a ele próprio. Todo o olhar do espectador é condensado no semblante da
personagem, criando um poderoso vínculo perceptivo. Ticiano realizou vários retratos com
esta abordagem psicológica, potencializando ainda mais toda pesquisa de fisiologia das
paixões iniciada anteriormente.
A valorização das ideias de Johann Joachim Winckelmann e de Anton Raphael Mengs
nas duas últimas décadas do século XVIII denota a mudança de gosto. Winckelmann,
traduzido para o francês em 1784, podia ser lido nos círculos artísticos portugueses ou
apresentados sob as interpretações e teorias de Machado de Castro e de Cirilo Wolkmar
Machado (FRANÇA, 1981, p.88). Além disso, os bolsistas de Roma estavam impregnados
com as discussões em torno da beleza dos gregos antigos e os ideais da formação de uma arte
maior, no centro de maior difusão dessas ideias. Cirilo, no início do século XIX, escreveu o
seguinte:
Os que estudarão a Arte devem, primeiro que tudo, adquirir a prática da
verdade simples, costumando-se a imitar perfeitamente tudo quanto se
apresentar diante de seus olhos; mas podem, e devem fazê-lo de sorte que em
virtude da boa escolha dos objetos, achem também nos seus exemplares a
verdade composta. As pinturas de Carracci no palácio Farnesi, e as de Rafael
no Vaticano são as duas grandes escolas de Desenho. A terceira, e não menos
importante para os que estão mais adiantados, é a das boas estátuas antigas: os
que não puderem estudar pelos originais, basta que estudem por exatíssimas
cópias. (MACHADO, 1817. p. 8)
Cirilo chama aqui de verdade simples a imitação fiel da natureza, com todas as suas
virtudes e defeitos. O estudante deveria primeiro praticar o desenho para este fim, com o
objetivo de adquirir habilidade necessária para o passo seguinte: a pintura idealizada. Esta
185
incluiria a imaginação na obtenção de possíveis correções na própria natureza, sendo Rafael o
expoente maior desta forma de representar o mundo. Juntos, desenho e composição, norteiam
a prática do pintor, seguidos da invenção e da disposição. A todo o instante, Cirilo chama a
atenção para a boa ordem das coisas, a fim de compor com magistério a cena de um painel
(MACHADO, op. cit., p. 8).
Assim, verificamos um período de transição marcado em Portugal pela escolha
consciente do Neoclassicismo romano, em relação ao estilo revolucionário francês. A
retomada das obras do Palácio Real da Ajuda, em 1802, marcou simbolicamente este
momento de transição, quando elementos do Rococó e do Barroco tardio receberam novas
informações classicistas que gradualmente foram se impondo como gosto predominante.
O que parece fundamental ao presente trabalho, após a breve exposição de conceitos
gerais sobre o retrato, é o conservadorismo relacionado ao gênero nas produções portuguesas
desde o século XVI. Conservadorismo verificado nas poses, nas correções de defeitos, na
manutenção de certas regras, estas registradas em formas de tratados de composição. No caso
português, somente com a ascensão de nomes como Vieira Portuense e Domingos Antônio de
Sequeira, ambos protegidos de Pina Manique, o retrato quebraria a sua estrutura convencional
de tantas gerações.
O Rio de Janeiro colonial desenvolveu, a sua maneira, um retrato calcado nas fórmulas
mais convencionais observadas em Portugal, modelos adquiridos através de gravuras de
tradução. O problema maior do ambiente colonial reside na essência que define o retrato, ou
seja, a noção de identidade do encomendante frente ao outro e a si mesmo. Se em Portugal os
artistas contavam com uma corte acompanhada por seus nobres, clientes em potencial, a
Colônia carecia deste tipo de consumidores, pelo menos até a transferência da Família Real
186
para o Rio de Janeiro, em 1808. Quem, então, movimentou a produção deste gênero ao longo
do século XVIII e quais as funções do retrato neste contexto?
3.2 O CASO COLONIAL: O RETRATO E AS IDENTIDADES EM CONSTRUÇÃO
O desempenho da Igreja Católica no desenvolvimento das artes nos dois primeiros
séculos de colonização resultou, conforme visto no segundo capítulo, em uma grande maioria
de obras voltadas para a devoção. A ascensão das irmandades laicas no século XVIII,
sobretudo nos grandes centros, manteve a predominância do teor religioso e colaborou para a
criação de uma visível diversificação regional. A produção conventual de outrora, na qual Frei
Ricardo do Pilar fora expoente no Rio de Janeiro, gradualmente cedeu lugar às oficinas
urbanas, de caráter dinâmico e heterogêneo. Estas oficinas preencheram um vazio que
começou a ser notado quando as irmandades passaram a procurar, com maior frequência,
profissionais capacitados a produzir a imagética da liturgia católica. Os artistas conventuais,
não formavam uma rede de encomendantes, reservando o seu fazer aos interesses específicos
de sua ordem religiosa.
Ao longo do século XVII, a atividade de artistas leigos se restringiu a poucas obras, as
quais a História da Arte desconhece os nomes de seus autores. Por falta de registros sobre a
existência de oficinas de pintura neste período, acredita-se que eram homens vindos da
Metrópole com alguma formação ou, conforme atesta a qualidade de painéis existentes,
autodidatas movidos pela fé50
. O século seguinte assistiria uma significativa transformação
com a organização de um novo sistema de ensino e aprendizado que revelaria nomes como
50
Os retábulos maneiristas da antiga igreja dos jesuítas, demolida na ocasião da derrubada do Morro do Castelo,
encontram-se na Igreja de Nossa Senhora da Misericórdia e possuem painéis que exemplificam a qualidade
mediana da pintura da época. São obras do final do século XVI ou início do XVII.
187
José de Oliveira Rosa, o mais antigo pintor conhecido, conforme estudamos anteriormente.
As irmandades foram as grandes impulsionadoras de um novo mercado e de uma nova
dinâmica na reação entre cliente e mão de obra. A habilidade se converteu em valor, pois a
heterogeneidade de gosto e de estilo, observada na variedade de tipos de encomendantes, fez
do artista um profissional em constante especialização.
A igreja foi o espaço específico de desenvolvimento da iconografia religiosa e também
o lugar onde os primeiros retratos coloniais foram expostos. Representavam os membros
destacados das irmandades e ordens religiosas, personalidades dignas de conservar a sua
imagem para a posteridade. Eles integraram, junto a sua própria história, a memória das
instituições as quais pertenceram. O alcance de certa notoriedade a partir das décadas finais
do século XVIII fez com que o retrato penetrasse, ainda que timidamente, nos interiores de
poucas casas domésticas, nas propriedades dos mais abastados da sociedade.
O primeiro ponto a ser analisado na confecção de um retrato, no seio de um sistema de
produção que se baseava na cópia de gravuras, é a frágil relação entre a natureza deste gênero,
que comporta a íntima interação entre artista e modelo, e a utilização de referências visuais
prontas. As cenas religiosas lidavam com figuras idealizadas, rostos criados a partir da
imaginação e consolidados pelas convenções de sistemas simbólicos próprios, como os
atributos designadores da fé, do martírio e da caridade, por exemplo. A aparência física de
Jesus não constava em nenhum dos escritos sagrados, assim como várias personagens que
povoavam as histórias bíblicas e hagiográficas. A invenção dessas imagens se baseou nas
descrições das cenas narradas e na introdução de elementos que funcionaram como atributos
de significações. O retrato, no entanto, pressupõe a presença, a existência fisionômica de um
rosto, mesmo que o artista modificasse algum detalhe a favor da beleza idealizada.
188
Na época em que o Rio de Janeiro se transformou em capital do vice-reinado,
observamos nomes que exibem, em seus trabalhos, as marcas da dificuldade em compor
retratos. Leandro Joaquim e Manoel da Cunha e Silva foram pintores, como os demais de sua
época, especializados na transposição da gravura religiosa para a tela. Apesar das orientações
firmadas em contrato sobre elementos de composição, os dois pintores dominavam em certa
medida a tradução do preto e branco da gravura em cores e formas, a ponto de impregnarem a
obra com as suas marcas pessoais, verdadeiras assinaturas plásticas. Uma mesma figura santa
poderia ter lábios mais carnosos ou finos, rosto afinado ou arredondado, olhos castanhos ou
azuis, desde que estas pequenas liberdades concordassem com as convenções e os atributos
principais, os identificadores do conteúdo narrativo da imagem. No caso do retrato,
entretanto, alguns desvios comprometeriam a essência deste tipo de representação, ou seja, a
sua indispensável singularidade.
Ao compararmos a imagem de Nossa Senhora da Conceição (Figura 41) com o retrato
do vice-rei Luís de Vasconcelos (Figura 42), ambas atribuídas a Leandro Joaquim, revelamos
a aparente diferença de qualidade no conjunto da produção de um mesmo artista. Feitas em
torno de 1790, a primeira apresenta maior segurança do pintor com os assuntos religiosos,
quando posta ao lado do retrato. Na representação da Virgem, Leandro Joaquim serviu-se de
toda habilidade na articulação dos elementos formais e técnicos, como a carnadura como
porcelana, os tecidos esvoaçantes e a composição do ambiente celestial como cenografia.
As cores claras e suaves, a jovialidade e a expressão feliz estampadas no rosto e as
linhas sinuosas do corpo e do ondulado do manto revelam a inclinação para o gosto rococó. O
espaço é bem resolvido, destacando com clareza a personagem principal no primeiro plano.
Esta aparece centralizada, de frente para o espectador, e ocupa boa parte da superfície. O
preenchimento total do espaço, com uma profusão de querubins, traz resquícios do horror ao
vazio, uma permanência da gramática barroca. A ambientação celestial obedece ao programa
189
iconográfico da imagem da Imaculada Conceição, apresentando a Virgem como a ideia divina
de pureza e bondade, no instante de sua concepção.
Figura 41 – Leandro Joaquim. Imaculada Conceição. Óleo sobre tela. C. 1790. Igreja de Nossa
Senhora da Conceição e Boa Morte dos Homens Pardos, Rio de Janeiro.
190
A separação dos planos ocorre através de elaborado e sutil jogo de sombras e luzes,
conferindo efeito tridimensional às figuras. Sem grandes contrastes entre claros e escuros,
Leandro Joaquim preferiu iluminar uniformemente todas as partes. A obra confirma, apesar
dos parcos recursos da época, autoridade na obtenção das texturas, como as carnaduras e os
tecidos. O resultado surpreende, considerando a provável fonte: gravura em preto e branco.
Gonzaga-Duque reconhece no artista, nas obras deste período, um certo aprimoramento,
conforme aparece na seguinte passagem:
O seu desenho é fraco e tímido, quase sempre defeituoso, porém o colorido é
suave. Nos primeiros tempos desconhecia o valor dos tons e não sabia
iluminar os quadros; nas últimas obras mostrou-se mais cuidadoso,
procurando corrigir-se desses erros, o que conseguiu com admirável engenho.
(GONZAGA-DUQUE, 1995, p. 83)
O retrato de Luís de Vasconcelos, apesar de alguns méritos, traz deficiências que
denunciam a complexidade na sua confecção. O rosto, parte fundamental do retrato, parece
descolado do corpo por possuir tratamento diferenciado. Ao contrário da obra anterior,
Leandro Joaquim dispensa a gradual separação dos planos, preferindo o enegrecimento total
do fundo, gerando contraste com a clareza da cabeça da figura. Substitui o jogo de sombras e
luzes pela linearidade, conforme visto nos contornos fortes, sobretudo dos olhos. Os
sombreados são pontuais e rudes, conferindo certo ar de dureza à expressão.
A riqueza da indumentária provoca um conflito aparente à simplicidade dispensada à
face, confirmando a destreza de Leandro Joaquim no trabalho com texturas. Notamos, no caso
de partes da composição já familiares ao artista, como a roupa do governante, ele alcançou
resultados satisfatórios. Interessante mencionar que muitos retratos coloniais transmitem a
mesma sensação de partes que parecem não se encaixar. Os atributos são bem resolvidos, mas
o rosto, essência do retrato, traz algumas marcas de fragilidade do sistema de produção
colonial do final do século XVIII.
191
Figura 42 – Leandro Joaquim. Retrato de Luís de Vasconcelos. Óleo sobre tela. C. 1790. Museu Histórico
Nacional, Rio de Janeiro.
192
Um dado relevante para o entendimento sobre o retrato colonial reside na paradoxal
situação entre a tradição de copiar gravuras e a inexistência da prática de tomar o referencial
como primeiro esboço. Não acreditamos na hipótese de que o modelo, dentro do sistema de
formação do artista colonial, posasse para o pintor. Leandro Joaquim trabalhou um bom
período de sua carreira para Luís de Vasconcelos, conhecia a fisionomia de seu cliente, mas
teria realizado o seu retrato a partir de referências imagéticas disponíveis no momento, ou
seja, de gravuras prontas com a imagem do vice-rei. Diferente da cópia de figuras santas, as
quais deixavam margem para eventual desvio do que estava proposto no modelo, usar uma
gravura de retrato de quem era contemporâneo requeria uma estranha combinação entre a
cópia e a percepção da realidade.
Podemos dizer o mesmo a respeito das pinturas de paisagem atribuídas a Leandro
Joaquim. O artista teria realizado as vistas a partir de cópias de documentos cartográficos,
disponibilizados pelo próprio vice-rei. O gênero não era produzido por artistas coloniais por
ser, na época, considerado assunto sigiloso, pois a paisagem revelaria características
geográficas, situaria o observador no espaço e apresentaria a iconografia local, como aspectos
cotidianos dos habitantes. Eram informações valiosas para possíveis invasores que
constantemente ameaçavam os domínios portugueses desde o início da colonização do Brasil.
A relativa segurança observada no Rio de Janeiro capital proporcionou uma
transformação no modo de entender a pintura de paisagem. Esta transformação, entretanto,
aconteceu em uma realidade avessa a esse gênero, pois não havia nenhum artista local
capacitado para tal produção. A imagem da Lapa, com a Lagoa do Boqueirão no primeiro
plano, exemplifica a fragilidade do pintor ao compor vistas da cidade (Figura 43).
193
Figura 43– Atribuído a Leandro Joaquim. Lagoa do Boqueirão. Óleo sobre tela. C. 1790. MHN, Rio de Janeiro.
O painel possui clara divisão em duas porções iguais, formadas a partir de uma linha
horizontal que passa no centro da pintura (Figura 44). Acima, aparecem o aqueduto da Lapa e
o monte com a igreja e convento de Santa Teresa. Abaixo, a Lagoa do Boqueirão apresenta os
seus habitantes, trabalhadores negros e afrodescendentes. A organização dos elementos sugere
a representação simbólica da hierarquia social, com os poderes civil e religioso situados no
alto, figurados pelas construções relativas a tais poderes. A população menos favorecida
ocupa toda a parte inferior. Como o retrato de Luís de Vasconcelos, a paisagem manifesta a
preferência pela carga simbólica, reduzindo o peso da apresentação fiel do ponto escolhido da
cidade. Aqui, Leandro Joaquim articulou o difícil jogo de transformação de um local que
conhecia e vivia em imagem de representação de poder.
194
Figura 44 – Divisão entre duas partes: a do poder e a do povo.
Como o retrato de Luís de Vasconcelos, a vista do aqueduto da Lapa deve ter
acontecido a partir da cópia do modelo, associado ao comum trabalho de cenógrafo que os
pintores da época eram frequentemente contratados. A chamada vista olho de pássaro, tipo de
construção de paisagens que situa o ponto de observação ligeiramente do alto, comum na
Idade Média e bastante difundida nas cartografias setecentistas, colaboram para esta
afirmação. O pintor copiaria o conhecido a partir da imagem pronta e integraria os elementos
típicos da cenografia, como as personagens em seus afazeres cotidianos.
As deficiências observadas na obra de Leandro Joaquim fornecem dados para a
observação de sensíveis mudanças no fazer artístico no final do século XVIII. Não foram
apenas os temas novos que começaram a despontar, mas também a forma de representar os
mais antigos. Ao compor o retrato do vice-rei, o pintor produziu uma peça que integrava um
programa de propagação da imagem de poder, no qual a arte desempenhou papel crucial.
Antes havia o retrato como homenagem póstuma, quando a verossimilhança importava menos
que a exaltação simbólica da função da personagem, mesmo porque, em alguns casos, o
artista não contava com a presença física da pessoa. Seus clientes eram aqueles grupos
195
desejosos de manter a lembrança de alguém importante para aquela identidade específica.
Leandro Joaquim se movia, agora, no terreno transitório entre a tradição anterior e a exaltação
de qualidades de alguém em pleno exercício de suas funções, um comanditário consciente de
sua própria encomenda. Significa dizer que passa a haver a tentativa de evocar algo de
singular da personalidade do retratado, ao contrário da visível homogeneidade dos semblantes
dos retratos feitos pelas gerações mais antigas de pintores (LEVY, 1945).
A época possibilitou a ascensão do uso de gravuras de retratos, pois elas asseguravam
a transposição de elementos individuais do modelo para a tela, elementos certamente
aprovados pelo próprio cliente. Antes, o pintor dependia, principalmente, de relatos orais de
membros ligados ao falecido ou de sua própria lembrança, caso tenha estado próximo da
pessoa. O comportamento em relação ao retrato desfrutou, neste momento histórico, de
importante deslocamento de sentido, quando o gênero assume novas funções e valores, como,
por exemplo, os retratos de chefes de família para integrar a ambientação interna das casas
aristocráticas. O terreno foi preparado, então, para a geração de José Leandro de Carvalho e
Manoel Dias de Oliveira, autores de obras de notável aprimoramento.
Outro exemplo significativo e contemporâneo à obra de Leandro Joaquim consiste na
versão de corpo inteiro do retrato do Conde de Bobadela51
, realizado por Manoel da Cunha e
Silva (Figura 45). Conforme citamos anteriormente, trata-se de provável cópia do retrato de
Dom João V, realizado pelo italiano Duprá, oportunamente analisado. A postura de Gomes
Freire de Andrada é quase idêntica à do monarca português, exibindo o mesmo desenho para
a armadura e para a disposição dos braços e pernas. O manto do conde também escorre pelo
lado da composição e, se a posição das personagens aparece invertida, deve-se pela possível
cópia de alguma gravura portuguesa.
51
Há uma outra versão, um busto pertencente ao Convento de Santa Teresa, também atribuído a Manoel da
Cunha e Silva.
196
A mesma crítica relativa ao retrato do vice-rei Luís de Vasconcelos cabe ao trabalho
de Manoel da Cunha e Silva. A cabeça parece estranha ao corpo, revelando os mesmos
problemas de execução encontrados por Leandro Joaquim. Entretanto, nota-se que o efeito
das texturas da armadura e dos tecidos são louváveis para a época. A pompa barroca, apesar
da obra não possuir as dimensões características dessa tipologia de corpo inteiro, é sugerida
pela postura da personagem e pela distribuição no espaço do aparato simbólico do poder.
Sobre o artista, Gonzaga-Duque diz que a sua pintura é larga, sólida, sem pretensões. Falta-
lhe no desenho elegância, delicadeza de traço, porém é sincero, real e firme (GONZAGA-
DUQUE, 1995, p. 81).
Outra crítica interessante vem do extenso trabalho de Argeu Guimarães, intitulado
História das artes plásticas no Brasil, de 1920. O autor segue a tradição de história
inaugurada por Manoel de Araujo Porto Alegre e continuada, ainda no século XIX, por
Antonio da Cunha Barbosa e Gonzaga-Duque. No citado estudo, o autor menciona o retrato
com a seguinte crítica: no retrato do conde de Bobadella resumem as qualidades do artista, o
toque despreocupado, mas feliz, o desenho tosco, mas sincero, a composição de largo efeito,
embora tíbia nos detalhes (GUIMARÃES, 1920).
A fisionomia refere-se, provavelmente, a alguma fonte iconográfica, como, por
exemplo, a gravura de Olivarius Cor, de 1747 e amplamente difundida (Figura 46). O retrato,
a meio corpo, possui as mesmas disposições encontradas na obra de Cunha e Silva, inclusive
notadas nos pequenos detalhes, como a posição dos dedos da mão esquerda. O que parece
louvável na obra do fluminense é a inclusão da paisagem da Baía de Guanabara ao fundo,
parte importante da narrativa. O retrato foi encomendado para lembrar um momento histórico
específico: a execução da ordem do Marquês de Pombal de expulsar os jesuítas, obedecida no
Rio de Janeiro pelo conde, então governador. Ele aponta o cetro para a entrada da baía,
197
direcionando o olhar do espectador para os navios que se distanciam do porto, levando os
padres da Companhia de Jesus para outras terras.
Figura 45– Manoel da Cunha e Silva. Retrato do Conde de Bobadela. 1791 sobre tela.
Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro.
198
Importante mencionar o estudo de Nireu Cavalcanti sobre esta obra, quando procura
corrigir algumas datas que constantemente aparecem a ela atribuídas, como, por exemplo, o
ano de 1760. O artista teria apenas 16 anos, ainda na condição de escravo, o que descarta
qualquer possibilidade de um retrato de uma figura do poder fosse encomendado a ele. O
autor nos conta que:
O que realmente aconteceu foi que o prédio onde estava instalada a Câmara
dos Vereadores sofreu terrível incêndio em 20 de junho de 1790, destruindo
grande parte do arquivo da Câmara, os móveis e inclusive o quadro de Gomes
Freire de Andrade, pintado em 1760. Após o incêndio, realmente Manoel da
Cunha e Silva foi contratado pela Câmara dos Vereadores, em 1791, para
pintar dois grandes painéis: um de Gomes Freire de Andrade e um de São
Sebastião, além de outras encomendas. (CAVALCANTI, 2004, p. 308)
Figura 46 – Olivarius Cor. Retrato de Gomes Freire de Andrada
1747. Sociedade Martins Sarmento, Porto.
199
A complexidade do retrato em questão, caso inaugural na pintura fluminense, é
sintomática dos novos rumos, das novas possibilidades e habilidades adquiridas e exercitadas
no final do século XVIII. Se a cópia do modelo de D. João V parece evidente, as soluções
encontradas para dotar a obra de elaborada retórica e de traços bem marcantes de
individualidade, tanto do retratado quanto do ambiente, evocam um estado de crescente
maturidade dos artistas fluminenses.
Fundamental registrar que a geração dos pintores que estavam ativos quando o Rio de
Janeiro ocupou o posto de sede do vice-reinado foi a geração que experimentou relativa
prosperidade. As encomendas continuaram fortemente dinamizadas pelas irmandades
religiosas, mas o retrato aparecia com valores e funções diversos dos realizados anteriormente
e só tenderia a se tornar cada vez mais numeroso.
Os períodos que antecedem esse progresso do Rio de Janeiro capital despertam
algumas questões sobre a função do retrato. Como objeto que conduz à noção do particular,
do individual, ele parece incomum em uma sociedade calcada em modelos ainda medievais,
sufocada pelo sistema mercantilista metropolitano. Essencialmente, uma colônia existe para
servir à sua metrópole, seja com o fornecimento de produtos agropecuários, ou com o envio
das riquezas extraídas da natureza. A organização social, dentro de tal modelo, se estratificava
em rígida hierarquia, criando uma rede complexa de relações entre dominantes e dominados.
No topo da hierarquia estavam os senhores rurais, os comerciantes ricos, geralmente
representantes da metrópole e os funcionários da alta burocracia. Incluíam, nos Setecentos, os
mineradores. As classes intermediárias compreendiam os artesãos, com as suas oficinas, e os
pequenos comerciantes urbanos. Na camada inferior estavam os homens pobres, os escravos e
os indígenas. A mobilidade social ocorria mais facilmente entre os representantes da base e da
classe intermediária (WEHLING, 1999, p. 234).
200
O retrato colonial floresceu no primeiro grupo e, em maior número, entre os
representantes da alta burocracia. Aqui estavam os governadores, as autoridades da Igreja, os
juízes e os demais indivíduos ligados à estrutura do poder estatal. Foram os participantes de
uma elite propriamente urbana, com códigos diversos dos vivenciados por muitos senhores
rurais. Desenvolveram todo um jogo de aparências e de relações, códigos fundamentais para a
manutenção de privilégios e regalias.
O retrato estava inserido na complexa rede de interesses que caracterizou essa elite.
Pela natureza de suas funções, foi o espaço público o local por excelência de sua exibição.
Sabemos que as residências civis urbanas, pelo menos até o final do século XVIII, foram
marcadas pela simplicidade e ausência de qualquer luxo, mesmo as pertencentes aos mais
abastados (EDMUNDO, 2000, p. 55). Apesar do costume de visitação constar nos padrões
sociais, conforme indicam algumas plantas que mostram espaços para este fim, como a
varanda do senhor rural e as salas de visitas das casas urbanas, a sociabilidade mais evidente
aconteceu no domínio coletivo.
O retrato colonial traz, então, um valor de objeto público. As pessoas merecedoras de
fixar sua imagem para a posteridade foram aquelas que realizaram ações, que deixaram obras
dignificantes, que simbolizaram exemplos a serem buscados pelos demais. Foram indivíduos
celebrados, homenageados pelo significado de seus próprios feitos. Assim, o retrato colonial
funcionou, acima de tudo, como agente da memória de quem realizou um ato edificante. Em
uma sociedade estratificada, somente a elite teria condições de promover algo digno, de
marcar o nome para a posteridade. Essa parcela da sociedade descobriu, antes de qualquer
outra, a consciência e o valor da individualidade.
Como instrumentos de memória, o retrato colonial expôs mais as qualidades éticas e
morais do que as características físicas. Foram obras encomendadas, geralmente, pelas
201
irmandades religiosas, para figurarem em seus consistórios. Isso porque grande parte das boas
ações esteve diretamente associada a doações e financiamentos relacionados ao mundo
religioso. Foram homenagens póstumas àqueles que colaboraram para a prosperidade da
irmandade ou que, no seio da sociedade, deixaram as suas marcas com obras dignas de serem
lembradas.
Vale lembrar que a atividade da irmandade no mundo colonial extrapolou a esfera
espiritual. Além de promover o culto, organizar festas do calendário litúrgico e providenciar o
enterro do irmão associado, entre outros afazeres ligados ao religioso, ela trabalhava como
importante agente social. Houve irmandades para todos os tipos de pessoas, do governador ao
escravo. Ser membro de uma irmandade assegurava ao indivíduo direitos mínimos, como a
aquisição de documentos, o acesso indireto aos vereadores, a proteção contra eventuais
abusos e a certeza de que seu corpo, após a morte, teria lugar digno para repousar.
Muito mais que espaços sagrados, os templos religiosos guardavam locais de intensa
atividade secular. Os consistórios e, nas igrejas menores, a própria sacristia, eram reservados
às discussões de várias ordens, entre os membros principais de cada irmandade. Eles
envolviam trocas de favores, articulações diversas dos benfeitores, debates sobre assuntos
ligados à política, escravos, comércio e uma série de outras questões cotidianas. Não
surpreende o fato de ter sido o consistório o lugar privilegiado do retrato no período.
As Ordens Terceiras e as irmandades ricas agregaram as elites coloniais e
apresentaram os consistórios mais faustuosos. Estes exibiam verdadeiras galerias de retratos
de benfeitores, colaborando para a manutenção da memória dessas pessoas ilustres e também
da memória da própria irmandade. Ao ostentar o retrato solene de um benfeitor, a irmandade
divulgava a sua identidade, mostrava à sociedade que tal indivíduo esteve ligado, permanente
ou provisoriamente, à sua ordem. O consistório da Ordem Terceira de Nossa Senhora do
202
Carmo, uma das mais ricas do Rio de Janeiro colonial, exemplifica bem a disposição das
figuras eminentes neste tipo de ambiente (Figura 47).
Figura 47 – Consistório da Ordem Terceira do Carmo. Igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo,
Rio de Janeiro.
Observamos a tendência à uniformidade, fato comum nos demais exemplares
encontrados na cidade. Um tratamento diferenciado poderia sugerir graus distintos de
importância e, pelos exemplares sobreviventes, como no caso da Ordem Terceira do Carmo,
isso raramente acontecia. Se o mais antigo retrato exibia o corpo inteiro, os demais seguiam o
203
modelo, criando um padrão. As molduras faziam parte da obra e também funcionavam como
elemento de ostentação, buscando-se, igualmente, o máximo de uniformidade possível.
O primeiro ponto a ser analisado consiste na provável obrigatoriedade do artista de
seguir o exemplo determinado pela irmandade. Essa obrigatoriedade resumiria o retrato a
poses convencionais, dentro de restrito receituário formal. A impressão primeira é de certa
apatia dos retratados, uma repetição que iguala expressões faciais, deixando o símbolo, ou a
função do personagem falar mais alto. Parecem seres congelados, portadores de valores que se
sobrepõem à individualidade.
A hierarquia observada na arte portuguesa em relação à tipologia do retrato encontrou
na realidade colonial, aparente afrouxamento. Os bustos e as representações de corpo inteiro
exerciam a mesma função de celebrar a memória póstuma de um benfeitor. Salvo raras
exceções, o retrato de corpo inteiro poderia suscitar um maior efeito de pompa em relação aos
demais, como visto no caso do Conde de Bobadela. Comumente, as tipologias serviam aos
mesmos propósitos, com funções e valores semelhantes.
A ausência do modelo para a confecção do retrato manifestava uma condição peculiar
no ato de sua produção. Muitas vezes o pintor sequer tinha contato com o indivíduo a ser
homenageado, contando exclusivamente com os relatos das pessoas mais próximas ao morto.
O fato parece contraditório à essência do retrato, o qual, por definição, apresenta ao
observador as qualidades físicas e morais do indivíduo representado, além da íntima relação
entre o artista e o cliente. José de Oliveira Rosa, considerado o pintor mais antigo da Escola
Fluminense, teria realizado o retrato de Madre Jacinta de São José, encomenda do Convento
de Santa Teresa, um dia após a sua morte. O breve intervalo de tempo não esconderia a
dificuldade de transpor para a tela as qualidades físicas da religiosa. Debret havia notado esta
204
peculiaridade de se retratar sem a presença do modelo no seu registro sobre a Santa Casa de
Misericórdia, conforme relatou na seguinte passagem:
Coisa mais agradável de ver é a coleção dos retratos a óleo de diferentes
benfeitores da Santa Casa, desde a época de sua fundação. Esses retratos, de
tamanho uniforme, são encomendados e pagos pela irmandade; só se
executam depois da morte do indivíduo, o que parece singular à primeira vista,
mas se explica facilmente pelo fato de serem as doações em sua maioria feitas
por testamentos. Porém, os parentes e amigos apressam-se em fornecer os
documentos necessários ao pintor, como sejam um retrato ou um busto
mandados executar em vida para a circunstância prevista. (DEBRET, 1989, p.
50).
Essa característica dos primeiros retratos coloniais revela a importância maior
dispensada aos atributos simbólicos em comparação à busca da verossimilhança. O indivíduo
era visto por suas qualidades, na verdade, pelas suas ações beneficentes a alguma irmandade
da cidade ou a coletividade em geral. Assim, olhares e posturas obedeciam à estrutura icônica
e não necessariamente ao aspecto físico real da pessoa. Se fosse alguém relacionado a
atividades mentais, os livros comporiam o cenário, associado a um olhar distante, sugerindo a
atitude reflexiva. Os primeiros artistas desenvolveram fórmulas relativamente seguras e
previsíveis a partir das cópias das gravuras e as gerações seguintes deram continuidade aos
padrões então criados.
O retrato colonial foi um gênero tipicamente masculino. Foram os homens que
ocupavam os cargos burocráticos, que governavam o povo e a casa e que construíam sua
imagem a partir de atos e títulos. Eles ostentavam seu poder e influência, secular ou espiritual,
na vida coletiva. A mulher, ao contrário, se mantinha reclusa aos aposentos do lar na maior
parte do tempo. Quando surgia uma encomenda de retrato feminino, os atributos eram
geralmente relativos ao plano espiritual, com clara semelhança à iconografia da Virgem
Maria. Não surpreende o fato de que boa parte dos poucos modelos femininos virem do
ambiente sagrado, como madres e religiosas em geral.
205
Conforme visto anteriormente, Leandro Joaquim e Manoel da Cunha e Silva
representam a geração que experimentou a absorção de novas possibilidades no ofício da
pintura de retratos. Se a rigidez hierática da figura permaneceu, como característica do
período, marcas da individualidade começaram a saltar da figura, graças à circulação cada vez
mais frequente de gravuras.
Podemos dizer que, se o século XVIII não produziu autorretratos, a consciência da
individualidade do artista entrou em uma fase de despontamento sensível. A assinatura de
José de Oliveira Rosa no painel Visão de São Bernardo, pertencente à fase final de sua
carreira, é um caso peculiar. A assinatura revela a noção de si mesmo e, quando posta no
próprio trabalho, autentica aquela produção a uma autoria particular. Sabemos que o
Setecentos colonial herdou a condição do pintor português liberto das corporações de ofícios,
apesar de todas as restrições impostas no Rio de Janeiro que vimos anteriormente. Eram
professores livres para exercer sua atividade e ainda não foram encontrados, e talvez nunca o
sejam, documentos relativos à solicitação de permissão para este ofício. Sem precisar de
autorização governamental para funcionar, um mestre pintor adquiria maior mobilidade para
organizar seu ambiente de trabalho.
Foi, no entanto, no período em que a cidade abrigou a Família Real que o papel do
pintor fluminense alcançou significativa mudança de estatuto social. Além da qualidade
simbólica de centro administrativo do poder, a qual interfere na vida coletiva em todas as
instâncias de relações, a presença física das figuras de comando do mundo lusitano fomentou
interessante produção artística, sobretudo a concernente à propagação da imagem de D. João.
O retrato colonial assumiu a sua plenitude, seja na quantidade de exemplares, seja na
qualidade de seus produtores.
206
3.3 A CORTE COMO CLIENTE: D. JOÃO VI E OS PINTORES RETRATISTAS
Considerado desde o advento das academias como gênero secundário em relação às
pinturas históricas, o retrato seguiu uma trajetória de sutis alterações no mundo luso brasileiro
ao longo de seu desenvolvimento a partir de então. Absorveu elementos da gramática
estilística em voga de cada período, mas conservou a sua estrutura calcada em regras de
composição que limitaram as tipologias de poses em um repertório previsível, variando,
conforme a situação, a escolha por uma representação realista ou idealizada. O caráter e o
símbolo ora se complementaram, ora se chocaram, em um jogo de aparências que decidia se
os traços individuais eram mais ou menos relevantes que o significado da personagem na
sociedade.
Na realidade colonial, por diversas razões, a individualidade do retratado se perdia na
força narrativa do atributo, porção mais eficaz na retórica barroca ainda em voga. A
posteridade lia apenas o símbolo, pois o tempo se encarregava de afastar qualquer indício de
sentimentos nas marcas de expressão, vivenciadas apenas pelas pessoas coetâneas do modelo.
O nome, se aplicado à moldura ou na própria tela, ancorava a imagem à personalidade,
revivida apenas através de documentos, quando estes existiam.
A capacidade de sedução da imagem, apta a estimular outros sentidos além da visão,
foi explorada no ambiente colonial desde as primeiras produções, conforme analisamos na
discussão sobre a iconografia religiosa. A persuasão, método eficaz na condução da ordem e
manutenção do poder, encontrou na linguagem visual uma ferramenta dinâmica que transitava
por esferas múltiplas. Penetrou com sucesso no ambiente religioso, participou de todo o
calendário festivo e assumiu lugar de honra nas cerimônias oficiais do governo. Comparada à
207
escrita e à oratória, a imagem assumiu liderança preferível na transmissão de mensagens,
acessíveis tanto à maioria iletrada quanto aos senhores do poder.
Sob esta concepção, o retrato criado no período compreendido entre a virada do século
XVIII para o XIX e os primeiros momentos de convívio entre artistas coloniais e os
integrantes da Missão Francesa revelam alterações mais sutis em relação aos precedentes.
Estas alterações são mais perceptíveis nas relações de produção e na apreensão de seu
significado do que na forma plástica propriamente dita, pois o gênero detém a qualidade de se
manter relativamente homogêneo desde a sua revalorização no Seiscentos português. A
diferença proeminente observada na geração de José Leandro de Carvalho é, sem dúvida, o
aumento de oferta, a ponto de transformar o artista citado em um retratista de corte e, também,
da elite em geral.
A perpetuação da imagem para a posteridade sofreu certo desvio semântico na
segunda metade do século XVIII, sobretudo após o Rio de Janeiro se tornar capital do vice-
reinado. Houve uma troca de valores entre a memória e a ostentação, entre o passado e o
presente. O ato de homenagear figuras eminentes de uma determinada instituição definia o
uso do retrato, edificando uma história pautada nos feitos dos seus membros integrantes. A
ostentação se manifestava em um segundo momento, quando o público frequentador daquele
espaço percebia a passagem do tempo, este povoado pela lembrança dos empreendimentos
realizados pelas personalidades ilustres ali representadas.
Quando o retratado se tornou o próprio comanditário, a inversão temporal e simbólica
fez do retrato um objeto do presente, um instrumento de ostentação, como no caso de Luís de
Vasconcelos. Ele despertava a lembrança, carregava todos os significados do sujeito e o
substituía nos casos de ausência. Esta substituição era aparentemente temporária, pois a
pessoa vivia contemporânea à sua imagem, diferente das representações orquestradas no
208
intuito de manter a memória de alguém falecido. Neste caso, era a memória que se tornava
secundária, um efeito da própria essência da produção do retrato, que era a de eternizar não
apenas a imagem, mas toda a carga simbólica que a acompanhava.
Sob a via da ostentação, o período que ora estudamos se estabeleceu como diferencial
em relação ao que se fez no passado seiscentista e setecentista inicial. O artista se qualificou e
adquiriu habilidades específicas, diversas das que aplicava na composição de imagens santas.
Relevante mencionar o papel do cliente neste tipo de relação, pois a habilidade em questão
não estava na invenção de personagens etéreos e espirituais, nem nos relatos sobre a
fisionomia de quem faleceu, mas na presença concreta de quem encomendou a sua efígie.
Mesmo que a cópia de gravuras direcionasse o fazer, houve uma presença real da
personagem.
Da mesma forma que acontecia em Portugal, não houve no Rio de Janeiro um pintor
exclusivamente especializado em retratos. A raridade dos que conseguiam produzir este
gênero específico é notória e apenas alguns nomes foram citados pelos primeiros biógrafos ou
mencionados por viajantes estrangeiros. A escassez corrobora a dificuldade e, em certo
sentido, a novidade relativa à produção de retratos desta natureza verificada no início dos
Oitocentos. Este exigia muito mais que a capacidade de traduzir a terceira dimensão em uma
superfície bidimensional, com texturas, volumes e profundidades. Havia um sopro de
realidade mesclado ao convencionalismo que não poderia ser desprezado.
Sobre o conceito de identidade, caro ao estudo do retrato, cabe um breve relato sobre
alguns aspectos da situação social do encomendante no período compreendido entre a queda
do Marquês de Pombal e a chegada dos artistas franceses, época de intensa atividade artística
dos pintores aqui analisados. Pretendemos examinar a ascensão do retrato colonial dialogando
com os fatores sociais e entender a sua produção, forma e função interagindo com tais fatores.
209
Trata-se de momento histórico peculiar, que envolve revoltas, circulação de impressos
censurados e intensa articulação do governo para impedir a veiculação de ideias perigosas à
ordem estabelecida.
Se a hipótese de um desenvolvimento de consciência nacional foi rechaçada pelos
historiadores, pois a concepção de nação aconteceria somente no século XIX, não resta dúvida
que houve, pelo menos, a reflexão mais consolidada do papel do indivíduo na sociedade. É
coerente a afirmação de que a Inconfidência Mineira e as demais revoltas do período são
manifestações regionais, cujos interesses apontavam para realidades econômicas específicas
de grupos particulares. Entretanto, tais movimentos revelam a percepção de que as vontades
metropolitanas feriam alguns valores que foram constituídos ao longo de gerações, firmados a
partir de códigos que envolviam o intricado jogo de relações sociais na Colônia.
É sintomático o Decreto do príncipe D. João, de 17 de dezembro de 1794, que versa
sobre a extraordinária e temível revolução literária e doutrinal que nestes últimos anos, e
atualmente, tem tão funestamente atentado contra as opiniões estabelecidas (...) (BASTOS,
1983, p. 151), viesse a restaurar a Inquisição e a Mesa de Desembargo do Paço. Em Portugal,
o Intendente de Polícia Pina Manique promoveu rigorosa repressão contra notícias e ideias
francesas que, desde 1789, apavoravam as monarquias absolutistas. No Brasil, a censura
imposta nas instâncias alfandegárias não impediu a penetração de obras como as de Voltaire,
apreendidas na conjuração do Rio de Janeiro, no mesmo ano do decreto de D. João52
.
O conteúdo proibido das ideias ilustradas, parte descartada do todo cuidadosamente
analisado desde a época de Pombal, encontrava brechas nos sistemas de circulação de
impressos e desencadeava discussões a respeito de temas contrários ao poder estabelecido.
52
Livros proibidos pela Real Mesa Censória foram encontrados na devassa do movimento do Rio de Janeiro,
como as obras de Voltaire e de outros autores proibidos. Mariano José Pereira da Fonseca figura entre os
participantes do movimento, em posse de publicações não autorizadas. O movimento restringiu-se ao campo das
ideias e discutia-se, principalmente, a visível diferença entre os nascidos em Portugal e os nascidos na Colônia.
Sobre o assunto, ver 1789-1808. O império luso-brasileiro e os Brasis, de Luiz Carlos Villalta.
210
Questionamentos sobre algumas práticas da religião católica e a política de manutenção do
regime monárquico, além da percepção das diferenças entre a pessoa nascida em Portugal e a
nascida na Colônia apontavam para a gradual noção de cada papel desempenhado na
sociedade. Esta foi a essência do que a Coroa pôde observar na devassa de 1794 no Rio de
Janeiro.
O mecanismo comumente empregado pelo Antigo Regime para recolocar as coisas em
seus devidos lugares era o emprego da força militar repressiva em íntima colaboração com
todo o aparato simbólico disponível. Doses de violência eram ministradas em constante
diálogo com elementos de significados mais profundos. O esquartejamento de Tiradentes
exemplifica bem o estado de consciência do período, pois não era apenas o ato brutal que
repercutia na mente dos mais simples, mas também o fato de que o condenado ter sido punido
nos planos material e espiritual. Sem a possibilidade de realizar um enterro digno, a alma
estaria perdida a vagar sem rumo.
O retrato de aparato, tipologia pomposa reservada às figuras de poder, floresceu como
um dos instrumentos de veiculação da imagem do governante e participou de uma complexa
rede de divulgação dos valores da monarquia. Cortejos, celebrações, festas, construções
urbanísticas foram algumas das outras manifestações do programa persuasivo de manutenção
da ordem. O retrato não era uma simples representação, mas uma apresentação da identidade
de quem dirigia as normas de convívio social.
O estabelecimento da Corte no Rio de Janeiro não representou mudanças bruscas no
significado do retrato feito na década final do século XVIII em diante. Trouxe, contudo, a
produtividade mais acentuada, pois a imagem de D. João VI deveria se espalhar como uma
autenticação de seu posto de comandante, a despeito da situação enfrentada na sua saída
forçada de Lisboa. As gravuras com a sua efígie não circularam apenas como fontes para os
211
pintores portugueses e coloniais, mas também como um programa de afirmação da posição de
liderança mantida nos domínios do Novo Mundo, principalmente para o reconhecimento nas
demais capitais europeias. Assim, a gravura abarcava um duplo sentido de modelo para a
pintura, algo secundário, e a principal função de fazer circular mensagens por meio da
imagem.
Foram vários os exemplos de artistas gravadores estabelecidos em Portugal que
realizam retratos de D. João VI, sobretudo a tipologia de busto a três quartos. Estes
exemplares circularam no Brasil antes da chegada da Missão Francesa e foram amplamente
utilizados pelos artistas coloniais, conforme atestam os painéis de José Leandro de Carvalho.
Merece destaque o gravador florentino Francesco Bartolozzi, atuante em Lisboa desde 1802.
Como diretor da Aula de Gravura daquela cidade, o artista deixou um vasto grupo de
discípulos, além de tornar conhecidas obras de pintores locais, como Domingos Antônio de
Sequeira e Vieira Portuense.
Bartolozzi foi um gravador de tradução, ou seja, participante de um grupo de artistas
que colaborou para a circulação de imagens criadas por outros pintores. O século XVIII havia
assistido à ascensão deste tipo de gravura, apreciada no mercado por divulgar obras de
renomados artistas, tanto do passado, como Rubens e Rafael, como de nomes da época, como
os pintores portugueses citados. A Igreja foi a maior consumidora e divulgadora de
iconografia religiosa composta pelos grandes mestres, disponível nas cópias gravadas, como
se observa, por exemplo, na vasta produção encontrada nos templos coloniais.
O retrato também constava no conjunto de temas que eram interpretados por
gravadores com a finalidade de divulgar modelos de representação. Diferente da gravura
religiosa que seguia todo um programa didático e devocional, o retrato gravado, quando a
serviço do governante, colaborava para comunicar pelos meios visuais, a situação política de
212
comando. Quando Bartolozzi, a partir de pintura composta pelo italiano Domenico Pellegrini,
realizou uma série de imagens de D. João VI, participava do jogo imagético de construção da
figura do poder que devia se espalhar não apenas por regiões de domínio português, mas
também penetrar nos ambientes de corte das principais cidades da Europa.
O modelo mais difundido de D. João VI o coloca centralizado em uma elipse ou em
um retângulo, no formato de retrato de busto e a três quartos, como nos exemplares de
Bartolozzi (Figuras 48 e 49). Este tipo de representação foi amplamente copiada pelos artistas
coloniais, tendo como referência algumas das inúmeras gravuras que chegaram ao Brasil. A
homogeneidade observada em um número elevado de retratos deve-se a constante cópia de
modelos consagrados e autenticados pelo próprio cliente.
Figura 48 – Francesco Bartolozzi. Retrato de D. João Figura 49 – Francesco Bartolozzi. Retrato de D. João
1804. BNL, Lisboa. 1809. BNL, Lisboa.
213
Os emblemas, postos abaixo da figura do monarca, complementavam a iconografia e
foram repetidos sem grandes alterações. Funcionavam como orientadores do sentido da
imagem, ou seja, reforçavam a ideia da realeza referente à personagem. Os emblemas são
geralmente compostos pela combinação de três elementos: o lema ou título, o texto e o ícone
(VAN STRATEN, 1994, p. 57). Os dois primeiros são normalmente escritos em latim e
serviam de ancoragem à imagem, esta última exibindo figuras do repertório clássico greco
romano. Muitos emblemas suprimem o texto, deixando apenas o título com a imagem a ele
relacionada.
Na primeira composição, de 1804, Bartolozzi apresentou um emblema com dois
cupidos exibindo o brasão de Portugal. Esta representação encontra-se em várias gravuras de
outros artistas, mudando, em alguns casos, somente o conteúdo da parte escrita. No presente
caso, a informação que acompanha a imagem confirma os títulos do retratado: Dom João
Príncipe do Brasil Regente de Portugal. A clareza da informação reforça a função principal
de tornar pública a imagem do monarca, promovendo uma associação imediata entre o retrato
e o título ali exposto.
A segunda figura de Bartolozzi, esta de 1809, traz a imagem de Atenas com seus
atributos, sendo o brasão de Portugal o substituto do seu escudo tradicional. No lado
esquerdo, aparece um cupido segurando a esfera armilar, alusão ao período áureo das Grandes
Navegações. Não há, como no caso anterior, a presença do texto, resumindo o emblema ao
ícone e ao título. Acompanha a composição a seguinte mensagem: Stat magni nominis umbra.
O gosto por este tipo de representação simbólica ressurgiu no Renascimento como
uma interpretação dos epigramas gregos, poemas curtos com ilustrações, muito apreciados
pelos humanistas italianos. Encontrou no século XVI o seu formato mais comum, com a
214
combinação dos três elementos. O mundo neoclássico conferiu novo sabor ao emblema,
tornando-se código de identidade de famílias abastadas da alta burocracia e governantes.
É sintomático o uso do emblema em imagens de rápida veiculação, como as gravuras.
O complexo sistema de aparências, comum nas sociedades de corte, promoveu uma delicada
rede simbólica, destinando cada linguagem plástica a fins específicos. A gravura servia de
modelo à pintura, mas desempenhava papel de difusão do conhecimento, enquanto a última,
de natureza estática, fixava a mensagem em lugares predeterminados. Assim como os livros, a
gravura se movimentava e funcionava como significativo instrumento de propaganda.
Seguindo a referência de Bartolozzi, gravadores mantiveram o formato consagrado da
figura de D. João VI sem alterações relevantes. Notamos, no entanto, a inclusão de elementos
quando o título de rei lhe é conferido, como a coroa e o cetro. Tanto os atributos quanto o
título do emblema funcionavam como elementos de identificação ao retrato gravado,
conforme podemos notar nas imagens de João Cardini (Figura 50) e de João de Mesquita
(Figura 51). São duas fases históricas que mantêm a mesma pose, variando somente os postos
de Príncipe Regente e de Rei de Portugal, Brasil e Algarves.
Importante dizer que, mesmo após os quase dez anos que separaram as duas gravuras,
a fisionomia do rei se manteve a mesma, revelando que este gênero, quando posto a serviço
da corte, conservava como regra a permanência de fórmulas já cristalizadas a partir da
divulgação dos primeiros criadores e da aceitação do próprio retratado.
Os dois emblemas mostram as mesmas personagens citadas na obra de Bartolozzi.
João Cardim repete também o título, modificando apenas a disposição das palavras em torno
da elipse que envolve o retrato. Vem escrito Dom João Príncipe do Brazil Regente de
Portugal. Na imagem de João de Mesquita, os dizeres são substituídos para D. João VI Rey de
Portugal Brazil e Algarves.
215
Figura 50 – João Cardini. Retrato de D. João. 1807 Figura 51– João de Mesquita. Retrato de D. João.
BNL, Lisboa. 1816. BNL, Lisboa.
Antes do estabelecimento de Francesco Bartolozzi em Lisboa, a tipologia de retrato
que o artista ajudou a difundir como a principal referência já havia sido explorada por
gravadores portugueses. Foi o caso de Manoel Marques de Aguilar, um dos primeiros a
interpretar a obra de Domenico Pellegrini (Figura 52). O espaço destinado ao emblema
oferecia maior possibilidade a novas criações, conforme observamos no caso de Aguilar. As
personificações da Fé e da Justiça foram organizadas em elegante disposição, com os
atributos do reino português acompanhando o título Joannes Brasiliae, Portugaliae et
Algarbiorum Príncipe Regens.
A propagação da imagem de monarcas europeus não se restringiu a artistas nacionais
ou estrangeiros a serviço de determinadas cortes. Houve casos diversos de divulgação destas
personalidades para o conhecimento necessário de quem é o outro, amigo ou rival no
216
conturbado sistema político da virada do século XVIII para o XIX. A mesma tipologia do
retrato de D. João, que analisamos acima, apareceu também sob o risco de autores de
diferentes nacionalidades, como é o caso do francês Camoin (figura 53). É provável que o
artista tenha visto alguma gravura em Paris e, em seguida, feito a sua interpretação. Não há
emblema, somente o seguinte título em francês: Roi de Portugal, Du Brazil et des Algarves.
Figura 52 – Manuel Marques de Aguiar. Retrato de Figura 53 – Camoin. Retrato de D. João VI c. 1817.
D. João. 1799. BNL, Lisboa. BNL, Lisboa.
O papel original da gravura de transmitir conhecimento encontrou no século do
Iluminismo campo de intensa revalorização e movimentação. Não admira a busca por meios
mais rápidos e eficientes de produção e circulação de imagens, o que resultaria, na primeira
década do século XIX, na invenção de uma nova técnica que seria protagonista do nascimento
da notícia em massa: a litografia. No Brasil colonial, a gravura era a única fonte iconográfica
que permitia aos pintores aprenderem seus ofícios e iniciarem a sua vida profissional. Ser
217
pintor significava a apreensão de um olhar de tradução de uma linguagem para a outra, sem
grandes interferências do mundo natural.
A partir da inegável utilização das cópias gravadas na confecção das imagens pintadas
de D. João, houve nítidas variações na observação de três realidades distintas: 1) os retratos
executados em Portugal por artistas portugueses e estrangeiros; 2) a produção dos pintores
coloniais; 3) os exemplares feitos na ocasião da presença dos artistas franceses a serviço da
Corte no Rio de Janeiro. Apesar da aparente similaridade, as obras denunciam empregos
distintos de alguns elementos que sugerem maior ou menor proximidade com as
representações idealizadas.
A análise de duas obras significativas, uma de Domingos Antônio de Sequeira e outra
de Jean Baptiste Debret, nos mostra as sutis diferenças de tratamento no sentido da
representação. Vale dizer que estas referências são relevantes para o período em questão. No
caso dos portugueses, alguns painéis foram trazidos na transferência da Corte para o Rio de
Janeiro, compondo a volumosa bagagem que desembarcou na cidade. Importante frisar a forte
presença de Henrique José da Silva, ilustrador e desenhista português que dirigiu os anos
iniciais da Academia e que também compôs retratos para a Família Real.
Os franceses, por outro lado, vivenciaram o mesmo ambiente dos artistas coloniais,
mas com ideias sobre arte muito diversas das que eram exercitadas tanto em Portugal quanto
no Brasil. A desavença entre os artistas da Missão e Henrique José da Silva consiste em
sintoma que extrapola a simples aversão do segundo pelo bonapartismo. O pintor português
vinha de um modelo de formação que direcionava o olhar para o Neoclassicismo romano,
modelo conservador para aquele momento em que o Romantismo se espalhava pelas capitais
europeias. Mesmo em Portugal, Sequeira já apresentava certo ar modernizante, apresentando
vários elementos românticos, sobretudo em suas obras religiosas.
218
No retrato de Sequeira, que trabalhou como pintor régio em Portugal, houve a
tendência de transformar D. João em figura heroica. O retrato de meio corpo, a três quartos,
feito em 1802, apresenta os traços fisionômicos corrigidos, conferindo jovialidade e energia à
personagem (Figura 54). O olhar incisivo, salientado pelo desenho da sobrancelha, e a boca
entreaberta com leve sorriso passam a ideia de dinamismo, como se o rei estivesse a falar com
o súdito. O corpo esbelto acentua a sensação de força, ainda realçada pelo cetro, que é seguro
delicadamente, sem a intenção de que o objeto sirva de apoio.
A indumentária exibe as condecorações frequentes na representação de chefes de
Estado. A coroa aparece em uma mesa, seguindo a tradição de mantê-la ao lado do monarca.
As cores sóbrias do fundo realçam a figura principal com a utilização de uma fórmula de
iluminação que prefere enfatizar o assunto, artifício amplamente utilizado desde o Alto
Renascimento e apreciado na época neoclássica. O cortinado, que complementa o plano de
fundo, colabora para a cenografia típica do retrato de aparato.
É nítida a apropriação do estilo de retrato realizado por Pompeo Batoni, principal
representante do Neoclassicismo italiano. O sofisticado uso das texturas e a preferência por
uma estética de limpeza da composição aparecem no trabalho de Sequeira, herança de seus
anos de estudo em Roma, quando esteve em contato direto com a obra do mestre italiano.
Batoni havia se estabelecido como retratista renomado, criando para os seus modelos uma
atmosfera aristocrática de elegância e austeridade.
219
Figura 54– Domingos Antonio de Sequeira. Retrato de D. João. Óleo sobre tela. 1802. MNAA, Lisboa.
O trabalho de Debret é bastante semelhante no tocante à pose e à cenografia, mas traz
explicitamente a sua filiação francesa (Figura 55). A obra, um esboço realizado com a visível
intenção de que o rei encomendasse um painel definitivo, de grandes dimensões, difere em
alguns aspectos da imagem de Sequeira, seguindo a tipologia consagrada por Rigaud. Apesar
de Debret recorrer a um receituário formal aceito e exercitado ao longo de mais de um século,
220
o artista não poupa o seu modelo na exposição de um corpo de abdômen avantajado e de
pernas curtas e obesas. Revela a papada que desce e se esconde na gola e o olhar caído e
tímido, quase bondoso. A boca entreaberta, ao contrário de conter qualquer expressão de
comunicação, indica certo ar apatia e indiferença. Configura outra possibilidade de
representação, com certa tendência à busca da verossimilhança. A observação aguçada do
francês aparece explícita em seus escritos. Diz, sobre Dom João que:
O rei, bom cavaleiro na mocidade, tornando-se obeso no Brasil, abandonou a
equitação. Era de temperamento sanguíneo e de pequena estatura; tinha as
coxas e as pernas extremamente gordas e as mãos e os pés muito pequenos.
Parcimonioso para consigo mesmo, mostrou-se, ao contrário, generoso para
com seus servidores. A timidez de seu caráter muito prejudicou a sua bondade
e a sua afabilidade, e, no entanto, ela atingia a superstição. (DEBRET, 1989,
p. 152)
As notas de Debret favorecem a compreensão das escolhas do artista na composição
do retrato do rei. Evidencia as suas preocupações com a representação dos aspectos externos,
conforme descrição das partes do corpo, e com a captação de traços da personalidade, como a
timidez e a generosidade. O Neoclassicismo davidiano, que caracterizava sua arte na época de
Napoleão, quando pintava cenas heroicas do imperador plenamente recheadas de idealização,
sofreu modificações na corte de D. João VI. Pautada na verdade e na moralidade, a linguagem
neoclássica francesa não considerava contradição a exaltação das virtudes heroicas, mesmo
que essas solicitassem alterações físicas da figura do retratado. As virtudes existiam, portanto,
eram dignas de serem apresentadas a público.
No Brasil, todos os ideais de moralidade e justiça que nortearam a formação de Debret
não encontraram terreno fértil. Assim, o artista não conseguiu compor imagens heroicas,
cheias de virtude para um governante fugitivo, na sua concepção, e rei de uma terra salpicada
221
de escravos. Manteve a verdade de sua escola neoclássica presente, contudo, sem o brilho de
seus trabalhos de outrora.53
Figura 55 – Jean Baptiste Debret. Retrato de D. João VI. Óleo sobre tela. 1816. MNBA, Rio
de Janeiro.
53
Sobre as transformações na arte de Debret no Brasil, ver a obra A forma difícil, de Rodrigo Naves.
222
Os dois exemplos possuem em comum o uso do mesmo formato divulgado pelas
gravuras, na parte principal do retrato: o rosto a três quartos. Percebemos que o restante
seguiu a estratégia conhecida da recorrência ao uso de manequins vestidos, com toda a
indumentária característica da realeza54
. O próprio Debret realizou um pequeno estudo do
rosto de D. João que se aproxima dos formatos mencionados, diferindo apenas na direção do
olhar, que aponta para fora dos limites do painel (Figura 56).
Figura 56 – Jean Baptiste Debret. Retrato de D. João VI.Óleo sobre tela. 1816.
O convencionalismo estético do retrato fez do gênero o mais difícil de identificar as
especificidades do que foi produzido no período de mudanças, conforme apontado
54
Uma das primeiras aquarelas de Debret no Brasil revela o interior de seu ateliê no Catumbi, com uma tela em
fase de acabamento. À sua frente, aparece o manequim vestido com a indumentária real. Trata-se de retrato do
Príncipe D. Pedro, conforme notas do pintor.
223
anteriormente. Sem dúvida, a diferença maior encontra-se na postura em relação à criação e,
com maior sutileza, na consciência do artista sobre o significado daquele tipo de obra em
particular. Quando José Leandro de Carvalho compôs os doze Apóstolos para a Capela Real,
ele estava participando de um amplo programa de construção simbólica e o retrato deveria ser
pensado como uma peça dentro dessa estrutura maior de formação da imagem.
José Leandro de Carvalho e Manoel Dias de Oliveira foram os nomes conhecidos que
serviram à corte de Dona Maria I e do Príncipe Regente Dom João. Os principais pintores
portugueses da época continuaram ativos em Portugal e não acompanharam o deslocamento
de seus patronos, permanecendo nas suas atividades normais. No caso de Vieira Portuense, a
morte prematura interrompeu sua carreira em ascensão, antes mesmo da saída da Família Real
de Lisboa.
As mudanças drásticas ocorridas no cotidiano colonial, a partir do estabelecimento da
Corte portuguesa no Rio de Janeiro, afetaram diretamente o fazer artístico. Os pintores, em
particular, habituados aos assuntos religiosos, se depararam com a necessidade de servir ao
aparato governamental, compondo, entre as novas atribuições, projetos de carros alegóricos,
arcos de triunfo e construções efêmeras para aclamações e festas oficiais. A época do vice-
reinado havia assistido a algumas manifestações opulentas, mas nada comparado ao pouco
mais de dez anos de permanência de D. João VI no Brasil.
A formação de José Leandro de Carvalho se encaixa no tradicional sistema de
oficinas. Aprendeu o ofício com um mestre, provavelmente Raimundo da Costa e Silva, por
volta de 1790. No momento da abertura da Aula Régia de Desenho e Figura, é possível que
José Leandro estivesse em formação. Não há nenhuma referência sobre o ingresso do pintor
na escola de desenho de Manoel de Oliveira Dias. Quando a corte se instalou no Rio de
Janeiro, o seu nome já figurava entre os pintores ativos da época.
224
Segundo Gonzaga-Duque, ferrenho crítico da arte colonial, José Leandro era um
pequeno Velasquez (GONZAGA-DUQUE, 1995, p. 87) da corte portuguesa nos trópicos.
Como filho do antigo sistema colonial, representava o nível de qualidade que se acentuara em
tal sistema nos anos finais dos Setecentos. Dono de elegante colorido e de texturas delicadas,
ele exercitou no retrato a combinação dos gostos disponíveis, absorvendo elementos
afrancesados em uma base tradicional italiana. Manoel de Araújo Porto Alegre diz que José
Leandro de Carvalho foi no tempo do reinado o melhor pintor histórico e o mais fiel retratista
da época: nesta última parte tinha um dom particular, pois bastava ver o indivíduo uma só
vez para conservar suas feições e pintá-lo ao vivo (PORTO ALEGRE, 1841).
Fundamental salientar que não foram apenas os artistas que sentiram as
transformações ocorridas no início do século XIX. A sociedade também vivia uma era de
transição. A arte participava de uma conjuntura geral que envolvia mudanças complexas nas
relações sociais, que envolviam a economia, os costumes e, entre outros aspectos, a forma de
perceber a arte. O estatuto social do pintor, agora como artista a serviço de uma corte,
lentamente passou da concepção comum do trabalho artesão, do passado colonial, à peça
fundamental na promoção da imagem da monarquia.
A intenção de equiparar o Rio de Janeiro a uma capital europeia abarcou indubitáveis
melhorias materiais, mas também simbólicas. Todo o aparato característico de uma corte,
ainda barroca nas atitudes, inundou as ruas modestas de rica imagética, festas opulentas,
bailados, desfiles militares com carros alegóricos e uma série de elementos oriundos dos
antigos e ainda eficazes meios de persuasão. Ao mesmo tempo em que a espiritualidade quase
supersticiosa avançava pelos Oitocentos, novos padrões culturais desembarcavam dos navios
procedentes das nações amigas.
225
Sob esse prisma, a análise do conjunto de retratos atribuídos a José Leandro de
Carvalho e, mais adiante, o de Manoel Dias de Oliveira, deve considerar a figura do cliente e
qual a finalidade da obra encomendada. A quantidade de retratos de D. João VI não seguiu
apenas a um programa persuasivo, mas atendeu a jogos de interesses de grupos específicos.
As irmandades continuaram ativas e sua presença demonstrava a permanência da
estratificação social de raiz colonial. Claro que novos elementos entram nessa configuração,
mas, o que interessa no momento, é a força ainda dominante dessas organizações.
Quatro imagens bastante parecidas são atribuídas a José Leandro, todas representando
o rei. Foram retratos realizados após a sua aclamação, acontecida a 6 de fevereiro de 1818. D.
João aparece com o traje oficial, exibindo as condecorações, como de costume. A postura
combina o modelo de busto empregado nas gravuras com a tipologia a meio corpo, mostrando
o personagem até a altura do abdômen. Sabemos que pelo menos duas foram encomendadas
por ordens religiosas, uma pelo Convento de Santo Antônio e outra pela Igreja de São Pedro
dos Clérigos. Exibir a figura do rei nos consistórios proporcionava à ordem religiosa a
afirmação de sua fidelidade ao poder estabelecido.
Dois retratos, praticamente idênticos, podem ser analisados a partir do exemplar
pertencente ao IHGB (Figura 57). O segundo encontra-se no Convento de Santo Antônio. O
rei apoia-se no que aparenta ser o trono, vendo-se parte de sua espada. A ambientação de
ambas resolve-se com um cortinado, à moda barroca. José Leandro não disfarçou a obesidade
conhecida do monarca, suavizando, entretanto, outro ponto: as expressões faciais. Apesar das
interferências, o artista fluminense manteve características marcantes de sua aparência, ao
contrário da obra citada de Sequeira.
226
Figura 57 – José Leandro de Carvalho. Retrato de D. João VI. Óleo sobre tela. c. 1818.
IHGB, Rio de Janeiro.
O pintor demonstrou habilidade na manipulação dos elementos formais, conforme
verificado na execução de texturas, volumes e profundidade. A iluminação é uniforme e o
contraste entre figura e fundo é obtido, nos dois casos, a partir de minuciosa gradação tonal.
As cores mais vibrantes do primeiro plano destacam o personagem do cortinado, de um azul
227
saturado. Ainda no que se refere às cores, José Leandro de Carvalho buscou um equilíbrio
pautado na economia, conferindo a simplicidade apreciada na época neoclássica. Equilíbrio
que não esconde uma de suas características principais: a preferência pelo delicado brilho
encontrado em cada textura.
A iconografia repete fielmente o que as gravuras e demais artistas contemporâneos
apresentam: o traje oficial e a exibição das insígnias no lado esquerdo do peito. A primeira
insígnia que encima as outras duas traz a marca da reforma realizada por D. Maria I em 1789,
quando reuniu em um mesmo distintivo, as três Ordens Militares Portuguesas: a de Cristo, a
de São Bento de Avis e Sant’ Iago da Espada. Outro elemento referente à reforma encontra-se
na inclusão do Sagrado Coração de Jesus, acima de todos os três símbolos, indicação da
devoção pessoal da soberana.
Logo abaixo, no lado esquerdo, aparece representada a condecoração estrangeira da
Ordem de Carlos III da Espanha. Apesar de pouco comum a troca de distintivos entre chefes
de Estado, observa-se, conforme peças conservadas e documentação presente em arquivos
portugueses, considerável quantidade de condecorações recebidas por D. João desde a época
em que ainda era príncipe.
A terceira insígnia, a Placa de Grã-Cruz, foi criada na regência de D. João no Brasil,
em 1808, com a finalidade de pontuar a sua chegada à colônia. A condecoração também
serviu para homenagear personalidades do exército inglês que se destacaram na defesa do
trono português na ocasião da partida da Família Real de Lisboa. Interessante mencionar que
a emblemática portuguesa nas duas primeiras décadas do século XIX assistiu a inovações
simbólicas e formais, com a criação de novas insígnias que se somaram às mais antigas.
É plausível que José Leandro de Carvalho tenha combinado a utilização do modelo
oriundo das gravuras e a observação direta dos trajes, principalmente as condecorações. Os
228
detalhes são precisos e as colorações exatas de cada elemento iconográfico, como os
diamantes e as partes douradas, por exemplo. Quando comparadas com originais pertencentes
a museus brasileiros e portugueses, as insígnias pintadas revelam semelhança também em
relação às proporções. Esta perícia é indicativa de uma nova postura em relação ao retrato,
pois o cuidado em representar cada elemento conforme sua natureza, principalmente quando
ligado à simbologia do poder, evidencia direcionamentos outros quando comparados aos
antecedentes coloniais.
O terceiro retrato sugere a mesma preocupação do artista em buscar um ponto médio
entre o que realmente vê e o que deve ser representado (Figura 58). O fundo neutro e escuro e
a presença do manto e da coroa conferem ostentação superior quando comparadas à anterior.
D. João VI apoia sua mão na coroa, uma alusão à sua recente aclamação. Os olhos são bem
marcados e não escondem seus quase cinquenta anos. Apesar das marcas do tempo e da figura
obesa, há relativa serenidade em sua fisionomia.
É provável que a encomenda da imagem tenha relação com a decoração da Varanda da
Aclamação, em 1818. José Leandro de Carvalho trabalhou ativamente na montagem da
grandiosa solenidade, junto aos artistas franceses. D. João VI, em sua permanência no Brasil,
usou seus trajes de gala apenas nessa cerimônia. Se o retrato não figurou nos corredores
internos da efêmera construção, sua iconografia indica, pela presença do manto, tratar-se
desse importante acontecimento.
A semelhança do conjunto de retratos do rei confirma o tradicionalismo do gênero, o
qual discutimos em momentos anteriores. Mostra também uma fórmula que facilita a
produção em grande número, pois foram várias as funções que esse tipo desempenhou.
Ocupou lugar de destaque nos consistórios e sacristias de irmandades e ordens religiosas;
229
substituiu o rei, anunciando a sua presença; ornamentou os interiores das construções
efêmeras das festas oficiais, como a varanda de sua própria aclamação.
Figura 58 – José Leandro de Carvalho. Retrato de D. João VI. Óleo sobre tela. c. 1818.
Rio de Janeiro.
O retrato de D. Maria I, provavelmente realizado para a mesma ocasião do anterior, é
o único feminino conhecido atribuído a José Leandro de Carvalho (Figura 59). Ostenta toda a
delicadeza de colorido e de uso de texturas naturalistas característicos do pintor. Esta
230
habilidade chegou a despertar a atenção de Debret, que o referencia na parte textual de sua
obra Viagem pitoresca e histórica ao Brasil (DEBRET, 1989, v.3, P. 50).
A figura da rainha aparece oblíqua, em três quartos. Enquanto o corpo parece girar
para o lado esquerdo da composição, a cabeça volta-se para o lado oposto. O olhar reto,
direcionado para o espectador, encontra o ponto de equilíbrio entre os dois vetores. José
Leandro de Carvalho aplica a técnica de centralizar um dos olhos em rosto a três quartos para
criar equilíbrio e sentido de movimentação. O segundo plano, escuro, revela um cortinado de
mesmo tom castanho que desce pelo lado esquerdo superior. Toda a iluminação recai na pele
branca e na indumentária, separando figura e fundo. As texturas revelam a destreza do artista
em trabalhar com diferentes materiais, como carnadura, rendas, veludo, madeira, metais e
pedrarias.
As gradações sutis de claros e escuros, acentuados pelas dobras em partes do
vestuário, conferem uma delicada sensação de volume. O espaço é equilibrado com
simplicidade, a partir da centralização da figura. O artista compensa o peso maior da parte
inferior com alongamento da área acima da cabeça da rainha, que exibe o cortinado peculiar
dos retratos mais pomposos.
Ricamente paramentada, a rainha mira o espectador com um olhar firme, que difere da
sua condição mental dos últimos anos de vida na colônia. Aqui, mostra atitude régia,
complementada pela fisionomia severa. Segura com a mão esquerda o cetro, que desenha uma
diagonal contrária ao corpo e que colabora para a distribuição equilibrada das forças. Repousa
a mão direita na coroa, a qual aparece disposta em uma mesa. A imagem de D. Maria I mostra
as características constantes do retrato feminino, como a seriedade, a austeridade e o poder.
231
Figura 59 – José Leandro de Carvalho. Retrato de D. Maria I. Óleo sobre tela
c. 1818. MHN, Rio de Janeiro.
Não encontramos a gravura que serviu de modelo para José Leandro de Carvalho, mas
a origem da imagem parece ser a obra semelhante do artista português Vieira Lusitano (Figura
60), feito em 1753. Com a morte da rainha, é provável que D. João VI tenha providenciado
uma cópia da famosa obra lisboeta para representar D. Maria I nas cerimônias oficiais,
afirmação simbólica da continuidade da dinastia. Como retrato póstumo, José Leandro de
Carvalho não se importou com a verossimilhança, pelo menos em relação à força do tempo,
232
pois a rainha aparece tal como fora captada pelo olhar de Vieira Lusitano, quando tinha
apenas 18 anos.
Apesar de modesto, o conjunto de retratos disponíveis de José Leandro de Carvalho
colabora para a percepção das transformações ocorridas nas duas primeiras décadas do século
XIX. A peculiaridade do gênero o faz um importante indicador das novas oportunidades
vivenciadas pelos pintores, sobretudo no tocante ao estatuto social do artista. Muito do que
José Leandro de Carvalho produziu foi contemporâneo aos artistas franceses, o que demonstra
a manutenção do braço nativo por D. João VI como uma de suas opções para a composição de
todo o aparato áulico.
Importante mencionar que José Leandro de Carvalho havia, em 1811, recebido o
título nobiliárquico da Ordem de Cristo, algo inédito para um pintor de raízes coloniais. Este
episódio deveu-se ao concurso vencido pelo artista para a composição do retrato da Família
Real, desaparecido no início do século XX após ser removido para restauração na Academia
de Belas-Artes. Sobre o painel, há importante menção de França Junior no Jornal O Paiz, de
05 de novembro de 1889, na qual aparece comentado o estado lamentável do painel naquela
ocasião. França nos diz que:
Bastante estragado pelo tempo, e estendido sobre uma larga mesa, em vasta
sala, onde outros quadros sombrios, com massas denegridas de betume,
pareciam dormir tranqüilos como uma necrópole o sono do esquecimento, não
pude apreciar segundo desejava todas as belezas da composição. Vi, porém,
que as figuras eram perfeitamente pintadas. (FRANÇA, 1889)
233
Figura 60 – Vieira Lusitano. Retrato de Francisca Maria, Princesa do Brasil. 1753. Óleo
sobre tela. 1520 x 10170 cm. Palácio Nacional de Queluz.
Trabalhar na mesma esfera de Debret, por exemplo, conferiu ao artista colonial a
consciência de que o seu ofício possuía concepções sociais distintas, mesmo com a
condecoração da Ordem de Cristo. Portugal havia se empenhado em manter sua Colônia
americana em regime quase medieval, concretizado pelo sistema mercantilista. Enquanto o
234
século XVIII assistia a ascensão de artistas portugueses, como André Gonçalves e Vieira
Lusitano, os coloniais eram resumidos a gente do povo, a classe baixa responsável pelos
serviços manuais. Debret originava-se de uma França revolucionária que abrigava pintores,
escultores e arquitetos como elite intelectualizada, politizada e atuante. O choque de valores
era evidente, principalmente por Debret realizar, nos primeiros anos de estada no Rio de
Janeiro, o mesmo tipo de pintura também executada por José Leandro de Carvalho.
Manoel Dias de Oliveira, por outro lado, experimentou as diferenças anos antes,
quando estudou em Lisboa e em Roma. O seu contato com a outra realidade o fez refletir não
apenas sobre a condição social do pintor, mas nos meios necessários para propor uma
transformação no fazer. O retorno ao Brasil desencadeou todo um processo de incentivo à
mudança e de persuasão no sentido de sensibilizar as autoridades sobre a urgência de conferir
qualidade ao trabalho do pintor, no qual o protagonismo de uma classe específica foi o motor
para as conquistas subsequentes. A abertura da Aula Régia de Desenho não pode ser
considerada uma vitória individual, mas referente a uma conjuntura econômica específica que
teve na instituição projetos de incremento na produção local. Vale salientar o título de
professor régio ficou apenas no nome, como veremos no capítulo seguinte. Não houve
nenhuma participação do governo no desenvolvimento dos cursos realizados, estes montados
na casa do próprio artista.
Do mesmo Dias de Oliveira temos apenas um retrato régio, no qual aparece figurado
D. João VI e D. Carlota Joaquina. Diferente de José Leandro de Carvalho, ele preferiu
simplicidade absoluta no uso da cor. Não há aquele brilho característico dos retratos antes
analisados, mas um tom pálido e sóbrio que realça o fator psicológico dos personagens
(Figura 61). O fundo é escuro e monocromático. Os retratados aparecem envoltos em uma
moldura pictórica em forma de elipse. Ambos encaram o espectador de maneira simpática,
exibindo os atributos do poder. O rei, posicionado do lado esquerdo da composição, veste o
235
traje oficial e exibe apenas uma condecoração. D. Carlota Joaquina, do lado oposto, segura
carinhosamente o braço do esposo e esboça um leve sorriso.
Figura 61 – Manoel Dias de Oliveira. Retrato de D. João VI e D. Carlota Joaquina. Óleo sobre tela. c. 1819.
MHN, Rio de Janeiro.
236
Manoel Dias de Oliveira buscou um ponto intermediário entre a imitação e a
idealização. O interessante neste caso reside nos artifícios usados pelo artista, os quais
demonstram claramente os efeitos de sua formação italiana. O rei aparece corpulento, mas a
moldura artificial elíptica ajuda a omitir a parte que mais acentua a sua obesidade, o abdômen.
A condição física ficou apenas sugerida, não desaparecendo por inteiro. O mesmo acontece
com a imagem de Carlota Joaquina: sua estatura extremamente baixa é amenizada, mas
permanece visível ao espectador a sua fragilidade.
O retrato realizado nesta época teve na chegada da Família Real um marco para as
transformações mais acentuadas. A última década dos Setecentos e os primeiros anos de
funcionamento da aula de Manoel Dias de Oliveira foram ensaios relevantes, pois sem o
desenvolvimento crescente do gênero neste período, a Corte não encontraria a qualidade
indiscutível dos dois artistas acima analisados. Vale registrar que os mesmos artistas que
serviram à comitiva régia trabalharam para a elite mercantil, como atestam os exemplares
pertencentes à Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro. Negociantes de grosso trato
alcançaram postos de destaque em vários setores, como inclusive o cargo de prior da poderosa
irmandade que citamos acima. O comerciante Anacleto Elias da Fonseca, um dos nomes mais
atuantes da economia mercantil do final do século XVIII, assumiu tal cargo entre os anos de
1781 e 179055
.
O retrato foi o gênero que mais ocupou o tempo dos pintores ao longo do século XIX,
acadêmicos ou não. Isto porque a nova configuração da sociedade revelara uma clientela
ávida por exibir a sua imagem como forma de ostentação de prestígios alcançados. O sucesso
do retrato chegou a desanimar Manoel de Araújo Porto Alegre, em meados de 1850. O então
55
Há o retrato do comerciante na Galeria de Retratos da Santa Casa de Misericórdia, assim como outros
exemplares atribuídos a José Leandro de Carvalho. No entanto, após inúmeras solicitações, não obtivemos
autorização para acessar os espaços onde as obras se encontram, nem a possibilidade de consultarmos o arquivo
documental da irmandade.
237
diretor da Academia Imperial das Belas-Artes lamentava o fato dos artistas precisarem ganhar
a vida pintando as personalidades fluminenses, tempo que poderia ser gasto com a execução
de painéis históricos.
238
4 A AULA RÉGIA DE DESENHO E FIGURA: DISCUSSÕES PRELIMINARES
O bom gosto, que mais e mais se expande no
mundo, começou a se formar, em primeiro
lugar, sob o céu grego.
J. J. Winckelmann
A abertura da Aula Régia de Desenho e Figura, em novembro de 1800, ao mesmo
tempo em que situa o ponto máximo das transformações ocorridas ao longo da segunda
metade dos Setecentos, traz questões emblemáticas para sua análise. Se a comparação com a
instituição lisboeta, inaugurada em 1781 sob o reinado de Maria I, torna-se inevitável, pois a
versão fluminense seguiu as suas bases, diferenças contextuais marcantes parecem criar
nuances entre as funções originais que regeram este tipo de escola. Pontuar o caso colonial e
investigar as suas especificidades são metas indispensáveis ao entendimento do período de
forma global, incluindo aqui as discussões anteriores sobre a temática religiosa e a produção
de retratos.
A complexidade da época exige um exame que extrapola os limites da arte, pois as
Aulas Régias foram criadas em Portugal atendendo a uma urgência de reforma educacional.
Além disso, a herança pombalina continuava presente no sentido de manter a formação de
profissionais para o mundo do comércio, mesmo que o desenho, habilidade fundamental para
a execução de vários ofícios, tenha encontrado pouco espaço oficial no tempo do marquês,
pelo menos como atividade independente (FRANÇA, 1987). A educação, nesta concepção,
239
relacionava-se aos movimentos ilustrados da época e servia aos interesses da elite, dividida
entre uma classe comercial em ascensão e outra ligada à esfera cortesã. Apesar de tímida,
quando comparada ao notável desenvolvimento das academias nos principais centros
europeus, a Aula Régia de Desenho e Figura, inserida na reforma da educação iniciada no
governo de D. José I e continuada na fase de D. Maria I, trouxe reflexos interessantes para o
Rio de Janeiro colonial.
Importante salientar que a comparação entre o sistema de aulas régias e o da academia
objetiva pôr em discussão a problemática da ausência da segunda no mundo artístico
português. A crítica sobre o vazio institucional da metade final do século XVIII aparece no
discurso de artistas como o escultor Machado de Castro, o qual lamentava o estado precário
do ensino em seu país (FRANÇA, op. cit. p. 67). A situação de decadência se agravou
quando, na ocasião da disputa sobre uma dispensa papal para o casamento da princesa Dona
Maria com seu tio e o consequente corte de relações com o Vaticano, a Academia Portuguesa
em Roma ficou deserta. José-Augusto França bem diz que:
A falta de um ensino artístico regular, mesmo de uma Academia, não deixou
de ter consequências sobre o escasso desenvolvimento dos pintores e dos
escultores portugueses, obrigados a copiar gravuras e gessos, constrangidos a
uma formação autodidata sem saída. (FRANÇA, 1983., p. 260)
O autor complementa em seguida:
Ninguém se ocupava de estética em Portugal. Se os textos teóricos editados
antes são duma indigência aflitiva, ou meramente curiosos, os que aparecem
no terceiro quarto do século XVIII não valem mais. Nenhum dos mentores da
época pombalina se interessou pela estética e esta disciplina falta
absolutamente no tratado, assaz completo, porém, do Verdadeiro Método de
Estudar, de Verney. (...) Ainda em 1752 se procurava provar que a pintura era
uma arte liberal, com o auxílio de argumentos assaz especiosos. (FRANÇA,
op. cit., p. 260)
240
A citação denuncia a ausência de um ambiente de reflexão teórica atual e atuante,
característico do mundo acadêmico. Este fator revela a distinção funcional de uma Aula
Régia, interessada na formação de habilidades técnicas e não de artistas teóricos. Portugal
esperaria o fim do tempo de Pombal para ver brilhar as ideias de Cirilo Wolkmar Machado e
de Machado de Castro, artistas conhecedores dos novos gostos classicistas discutidos e
aplicados em Roma.
A Aula Régia de Desenho e Figura de Lisboa foi criada na esteira da reforma do
ensino inaugurada em 1759. O deslocamento do sistema educacional do religioso para o laico
não foi um caso exclusivo português, apesar deste ter sido o primeiro a fazê-lo. Os jesuítas
deixaram uma lacuna, prontamente assumida pelo Estado. Das primeiras letras à Universidade
de Coimbra, a reforma pombalina cobria toda a vida formativa do aluno e conferia uma
desejada padronização do currículo. Após a deposição do marquês, com a morte de D. José I,
houve continuidade do plano inicial, de onde nasceu a cadeira de desenho.
As reformas se inserem em amplo programa de transformações que explicam, em
parte, a pouca atenção dispensada às artes nas ações de Pombal. O objetivo central do
ministro era garantir a soberania comercial da Metrópole na conjuntura econômica européia.
Isto implicava na reorganização do sistema mercantilista, das finanças e da observância do
respeito às fronteiras das posses ultramarinas. Parte das ambições de Pombal esbarrou nos
interesses dos jesuítas, sobretudo os relativos às Missões do Sul e Norte do Brasil. A
resistência e a oposição declarada dos religiosos em relação à Coroa foram as causas
principais de sua ruína.
Sebastião José Carvalho de Melo iniciou sua carreira como diplomata em Londres.
Sobre sua estreia na vida pública, diz Azevedo que:
Seu espírito, sequioso de novas idéias, depressa se afez ao diverso ambiente
que, para ele, saído do obscurantismo e da rotina peninsular, era a sociedade
241
culta, inteligente, progressiva e liberal, onde agora se encontrava. Não
assimilou, é certo, os princípios de tolerância, de respeito pelos direitos
individuais, que ali eram comuns. Mas pode dizer-se que o seu entendimento
se remodelou ao contato com as idéias correntes; que os olhos se lhe abriram
para mais largos horizontes; que foi este período da sua existência mais
fecundo para a formação da sua individualidade de estadista. (AZEVEDO, )
O tempo em que permaneceu em Londres, de 1739 a 1743, pode investigar de perto as
estratégias britânicas concernentes aos mecanismos comerciais ali desenvolvidos. Além de
buscar a defesa dos interesses portugueses, como, por exemplo, as possessões da região do
Rio da Prata, Pombal verificou a defasagem de seu país nas questões mercantilistas e a sua
posição de inferioridade nas transações com a corte inglesa. O retorno a Portugal custou ao
marquês o embate contra uma elite parasitária e pouco afeita a mudanças radicais.
Impregnado das ideias iluministas, sua atuação ganhou poder e simpatia do rei na
ocasião da reconstrução da parte devastada de Lisboa pelo terremoto de 1755. Sua ação
enérgica e emergencial deu nova feição à capital do império, o que desencadeou reações
contrárias aos membros do governo que temiam a vertiginosa ascensão do ministro. Houve,
em contrapartida, uma varredura no círculo da nobreza, substituindo opositores por membros
fiéis e afeitos aos novos rumos. Nascia então uma nova classe da qual Pombal tornou-se líder:
a alta burguesia comercial, conforme mencionamos no primeiro capítulo. A criação da Junta
do Comércio, a Companhia do Grão-Pará e Maranhão e a Companhia de Pernambuco e
Paraíba são alguns exemplos, da década de 1750, dos reais interesses do maior ministro de D.
José I.
Dentro deste contexto, um dos objetivos das Aulas Régias foi a formação de cidadãos
aptos à inserção no mercado de trabalho. A ideia de educação como investimento, concepção
progressista que ofereceria as bases de um Estado competitivo e moderno, constituiu um dos
pilares do despotismo esclarecido do governo pombalino. Ao mesmo tempo em que garantiria
a modernização, o projeto mantinha assegurada a permanência dos valores monárquicos
242
absolutistas. Esta articulação, paradoxal à primeira vista, expõe a consciência do lado
perigoso da ilustração, principalmente originário das obras de alguns pensadores franceses,
prontamente barradas pela Real Mesa Censória56
.
Se a Aula Régia de Desenho e Figura integrou um pacote maior voltado para questões
econômicas, as academias europeias também estavam sensíveis a estes mesmos valores, com
certas diferenças quando comparadas à instituição portuguesa. Segundo Albert Boime, a
segunda metade do século XVIII assistiu ao conflito entre setores tradicionalistas de uma
aristocracia calcada em modelos considerados ultrapassados e novas e ascendentes parcelas da
sociedade, ambiciosas por poder e fortuna (BOIME, 1994, vol. 1, p. 79). A classe média
burguesa seguia uma corrente de prosperidade aberta pela diversificação cada vez maior do
mercado, a qual envolvia sofisticação de técnicas de produção, incremento nos meios de
distribuição de manufaturas e participação de novos setores na geração de capital.
Pevsner destaca o desenvolvimento econômico como uma das causas das reformas
acadêmicas do século XVIII (PEVSNER, 2005, p. 202). O desenho, elemento essencial do
aprendizado, seria tanto a base para a formação artística como para a aquisição de habilidades
necessárias ao nascente mundo industrial. A academia deveria difundir o bom gosto que se
espalharia nas porcelanas, nos padrões das tecelagens e dos papéis de parede, entre outros
(PEVSNER, op.cit., p. 202). E, por mais contraditório que possa parecer, se tomarmos o
Neoclassicismo francês de fim de século como referência, o retorno à Antiguidade Greco-
Romana alimentou a parte decorativa deste período mercantilista57
.
As escavações de Herculano e Pompeia despertaram um interesse renovado pelas
questões da produção clássica e fomentaram uma onda colecionista que envolvia intenso
56
O período de nove anos de rompimento com o Vaticano deu a Pombal os meios propícios à secularização do
Estado e a submissão da Igreja aos seus valores. A Inquisição também sofre com a reforma, transformando-se na
versão secular da Real Mesa Censória. 57
Enquanto o Neoclassicismo pontuava sua observância basicamente no passado greco-romano, outras
manifestações do período resgataram outras fontes, como, por exemplo, o Gótico na Inglaterra.
243
mercado de objetos. Artistas, antiquários, religiosos, nobres e figuras da alta burguesia
elegeram Roma como centro de trocas e discussões sobre o novo gosto, destino quase
obrigatório dos jovens que terminavam seus estudos. Boime considera que:
O Neoclassicismo foi aprovado, estimulado e difundido pela nobreza da
Europa ocidental. Os nobres e o grupo internacional de eruditos e artistas, que
recrutados das classes médias e artesanais para levar a cabo os aspectos
práticos e materiais da difusão do novo estilo, se conheciam, mantinham
correspondência, se informavam mutuamente e competiam entre si. Tinham
consciência clara de seu papel na difusão do Neoclassicismo e criaram
deliberadamente um público para ele. Foi o primeiro movimento da história
que se formou, se anunciou e se vendeu em um mercado como invenção
rentável.(BOIME, 1994, p. 83)
O Neoclassicismo contou com um programa teórico que colaborou para conferir
seriedade, além de autenticar certas coleções particulares, como foi o caso de Winckelmann.
Trabalhando como secretário e bibliotecário do cardeal Alessandro Albani58
em Roma, seus
textos começaram a ganhar notoriedade nos círculos consumidores de arte. Sua fama
crescente e paixão pelos assuntos da Grécia antiga, não apenas atingiam com certa violência o
Rococó ainda corrente, mas ajudavam a dar respeitabilidade à coleção e às práticas comerciais
do próprio cardeal. Assim, o Neoclassicismo, como bem disse Albert Boime, desenvolveu um
programa bem fundamentado, o qual o mercado desempenhou papel essencial.
A pintura neoclássica da primeira geração expressou, plasticamente, os conceitos
discutidos em torno da Antiguidade. Sua temática emprestava à burguesia mercantil uma
aparência idealizada de ordem e virtude, contrária à frivolidade do estilo da nobreza francesa.
Figuras heroicas e cenas de histórias edificantes substituíram as narrativas de galanteios entre
jovens ou as representações das festas de uma aristocracia exuberante. O movimento como
elemento formal, tão caro ao Barroco e que emprestou sua graça à sinuosidade rococó,
58
Alessandro Albani foi sobrinho do Papa Clemente XI e dono de uma das maiores coleções de arte antiga da
época, atuando com antiquário na troca e venda de peças em um intenso e crescente mercado de objetos.
244
conheceu uma retração e as figuras, antes esvoaçantes, pousaram serenas, contidas na
importância maior da mensagem.
Os pintores Anton Rafael Mengs e Pompeo Batoni representam a geração em
transformação de meados dos Setecentos. O primeiro, natural de Dresden, fixou moradia em
Roma e caiu nas graças do cardeal Albani, participando do mesmo círculo em que se
encontrava Winckelmann. O Rococó germânico ainda contido em sua obra foi logo cedendo
lugar ao vocabulário clássico, influência que recebeu diretamente de seu novo amigo e autor
dos principais textos sobre a Antiguidade. A obra Parnaso (Figura 62) é considerada uma das
primeiras a exibir o receituário formal que influenciaria mais tarde o jovem David.
Figura 62 – Anton Raphael Mengs – Parnaso. 1761. Óleo sobre tela. Villa Albani, Roma.
A pintura foi encomendada por Albani para o forro da sala principal de sua Villa, local
de grande atividade comercial de exibição, troca e venda de antiguidades. Iniciado em 1760, o
painel não oferecia novidades em relação à temática, e Mengs sabia disso. Antes de realizar o
trabalho para o cardeal, ele havia copiado a Escola de Atenas de Rafael para um patrono
inglês. Ao lado do grande afresco do pintor renascentista, na mesma sala pertencente ao
245
complexo do Vaticano, outro, igualmente enorme, apresenta o tema de Parnaso. Este foi,
certamente, uma referência fundamental que Mengs aproveitou anos depois.
Consagrado a Apolo, o Monte Parnaso retorna renovado no século XVIII como a
idealização do passado Grego. A imagem idílica, com o deus cercado pelas Musas, encena a
alegoria das artes, símbolo que Albani desejava para si próprio. As feições de Apolo seriam as
do cardeal, e as Musas representariam as mulheres que passaram por sua vida, curiosidade
percebida pelos frequentadores mais íntimos da Villa. Mnemosine, mãe das nove figuras
femininas, seria o retrato da filha ilegítima de Albani, chamada Vittoria Cheroffini (BOIME,
1994, p. 92). Ela aparece do lado direito de Apolo, sentada em um trono.
A composição lembra o formato horizontal dos numerosos baixo-relevos pertencentes
a particulares, sobretudo os oriundos da tradição funerária romana. Por volta do século
segundo da Era Cristã, os romanos passaram a decorar os sarcófagos com narrativas de
inspiração grega ou com cenas da vida do morto. Albani, na ocasião da realização da pintura,
possuía em sua coleção o Sarcófago das Musas, objeto que provavelmente serviu como fonte
para Mengs.
Apolo está localizado no centro, em posição sutilmente mais elevada em relação às
dez personagens femininas que se dividem entre os dois lados do painel. O equilíbrio das
massas, a distribuição harmônica e contida das cores e o aspecto escultórico de cada figura
anunciam o tom mais sóbrio do novo gosto classicista. A clareza de todo o ambiente colabora
para a revelação de todos os atributos, formando uma leitura iconográfica acessível e de fácil
compreensão para os que dominavam tais assuntos. O desenho submete as cores à sua
primazia, lição preconizada por Winckelmann como a essência dos novos tempos. O
contorno, para ele, era o conceito mais elevado (WINCKELMANN, 1975, p. 49).
246
Este seria o modelo seguido pelos artistas neoclássicos preocupados em difundir
plasticamente mensagens edificantes, seja pela evocação de cenas mitológicas ou por
narrativas históricas idealizadas de episódios passados ou contemporâneos. A arte poderia
decorar, mas, diferente do hedonismo rococó, deveria passar mensagens de honra, coragem e
heroísmo59
. Esta foi, a princípio, uma barreira para alguns artistas, pois muitos nobres não
simpatizavam com a ideia de ambientar seus lares com o rigorismo classicista. O
amadurecimento do estilo acompanhou a mudança de gosto e da forma de ver o mundo,
ocupando gradualmente os espaços ainda dominados pela tradição rococó.
Assim como Mengs, Pompeu Batoni foi sensibilizado pelas orientações formais
florescentes nos círculos romanos. Diferente do alemão, Batoni não passou por uma fase
propriamente rococó, pois boa parte da Itália havia continuado a desenvolver uma espécie de
barroco tardio, mais contido e sóbrio quando comparado ao auge do estilo nos Seiscentos. A
sua habilidade em revelar texturas naturalistas e delicadeza na forma de compor as cenas
despertou o interesse de Winckelmann, o que proporcionou ao italiano uma boa reputação. A
sua técnica, herança essencialmente barroca, contribuiu para dar ao Neoclassicismo uma
sofisticação que seria apropriada mais tarde por David e Ingres.
Batoni e todos os principais pintores residentes em Roma se beneficiaram do chamado
Grand Tour, uma espécie de turismo cultural formador de colônias60
estrangeiras na Itália em
busca de conhecimento e de peças para as suas coleções particulares. A aristocracia e a alta
burguesia realizavam verdadeiras peregrinações às principais cidades italianas, e Roma era a
mais procurada. Estas viagens movimentavam negócios relacionados aos objetos antigos,
59
Falamos aqui, no caso do didatismo, da pintura e da escultura. No caso das artes decorativas, há a gradual
substituição de personagens juvenis rococós por elementos copiados das peças encontradas das escavações ou
mesmo da cópia de obras consagradas dos neoclássicos, sem a seriedade destes últimos. As funções dos objetos
são distintas, apesar de se alimentarem da mesma fonte. O ceramista Josiah Wedgwood foi importante renovador
do gosto, competindo com a larga produção rococó e com a moda de porcelanas chinesas ainda famosas na
época. 60
Usamos a palavra colônia para designar um conjunto de pessoas reunidas por um fim em comum.
247
atraindo também a vontade de consumir a arte do momento. A pintura, sobretudo o retrato,
servia como um registro daquele período especial, exibindo, como cenário, as peças mais
conhecidas dos antiquários, as ruínas que salpicavam a paisagem ou mesmo a criação de uma
cidade antiga idealizada.
A colônia inglesa foi para Batoni uma excelente fonte de renda. O retrato de Thomas
Dundas exemplifica o modelo preferido da época, repetido em sua fórmula dezenas de vezes
(Figura 63). O Barão, representado de corpo inteiro, localiza-se no interior de uma galeria
como se apresentasse as peças ali expostas. Sua pose confere uma espécie de narrativa,
colocando-o como um conhecedor fluente do passado greco-romano. Percebemos, ao fundo,
esculturas já famosas na época, como o Lacoonte e o Apolo de Belvedere.
O mérito de Batoni como um dos principais retratistas da época reside na sua
capacidade de expressar, em ambiente de extrema simplicidade, traços de personalidade
acentuados. Quando analisamos o conjunto de retratos que executou para os seus patronos
ingleses, verificamos certa repetição dos cenários, porém com a atenção recaída nas
individualidades. Geralmente ilumina, sem grandes contrastes, a personagem, espalhando uma
luz difusa e fraca, de origem indefinida, no restante da composição. Este efeito traz um sabor
de mistério e parece separar o tempo do retratado daquelas peças provenientes de um passado
longínquo.
Em comparação a Mengs, a produção neoclássica de Batoni revela mais uma
adaptação ao mercado do que a crença ideológica da beleza calcada nos modelos gregos. Não
há dúvida de que as suas telas demonstram, visualmente, o reconhecimento e o bom uso dos
elementos formais anunciados nas teorias em voga na época. Batoni vinha de uma experiente
carreira que contava algumas décadas de trabalho, o que colaborou para a sua percepção de
que o gosto sofria certo deslocamento para outras direções. A mudança estilística não exigiu
248
grandes sacrifícios do artista, pois a sua formação contara com a iniciação básica do desenho,
como era de praxe nas principais academias. O maior desafio foi combinar a iconografia
solicitada com as novas preferências formais do classicismo.
Figura 63 – Pompeo Batoni. Retrato de Thomas Dundas. 1763. Óleo sobre tela
298 x 196.8 cm. Coleção Marquesa de Zetland, Yorkshore.
Mengs, ao contrário, chegou a Roma como um jovem recém-formado, ainda nos
moldes rococós de sua cidade natal. O entusiasmo pelos assuntos da Antiguidade Clássica,
249
muito por influência de Winckelmann, rapidamente o fez assimilar os modelos compositivos
associados a temas em muito distantes do decorativismo do início de sua carreira. O mercado
certamente contou como fator de mudança, mas Mengs mostrava um compromisso maior com
um tipo de produção que pudesse, através de uma arte sóbria e equilibrada, difundir
mensagens edificantes.
Mengs encarna um novo modelo de artista engajado, consciente de sua contribuição
para o bem-estar maior da sociedade como um todo. Não se pode dissociar esta ciência de
mundo do pensamento iluminista em rápido processo de disseminação. A adequação do
Neoclassicismo a esta corrente de racionalidade, anticlerical e antimonárquica, fez do estilo o
preferido da classe protagonista das duas grandes revoluções do século: a Industrial inglesa e
a Francesa. Diferente de Batoni, Mengs acreditava no potencial da arte como veículo de
formação e informação.
A ação dos pintores, em grande sintonia com os tratados dos teóricos, ajudou a
consolidar uma bem-sucedida propaganda visual que faria do Neoclassicismo um estilo
internacional. Os escritos de Winckelmann foram traduzidos em algumas línguas, obra
obrigatória nos círculos acadêmicos que seguiram o ideal de nobre simplicidade e calma
grandeza (WINCKELMANN, 1975, p. 53). O Grand Tour atraía artistas de nacionalidades
diversas, desejosos de construir carreira respeitável no contato direto com o patrimônio
romano. Outros levaram consigo todo o aprendizado adquirido para centros importantes,
como foi o caso de Mengs na década de 1760, quando parte a convite da corte espanhola.
Não podemos descartar o fator político que, juntamente com o estético, ligado a
Herculano e Pompéeia, e o econômico, característico das relações mercantilistas do século
XVIII, fomentaram a propagação das ideias clássicas e sua consequente aceitação. Na mesma
época em que o fervor em torno das antigas cidades do Império Romano movimentava
250
interesses de várias procedências, as duas maiores potências europeias entraram em choque. A
Guerra dos Sete Anos foi um conflito entre França e Inglaterra, a primeira tecendo aliança
com a Áustria e a segunda com a Prússia61
. Não surpreende o fato de Winckelmann, um
alemão reconhecidamente francófobo, além da sua manifesta adoração pela Grécia antiga,
tenha reagido contrariamente ao Rococó francês e à sua variante germânica.
A derrota da França de Luís XV na Guerra dos Sete Anos somou-se aos fracassos
militares do reinado deste monarca, uma das razões da gravidade da situação econômica
enfrentada pelo país nos setecentos. O abismo criado entre as classes e os impostos cada vez
mais pesados colaboraram, entre outros fatores, para ressurgirem os questionamentos sobre a
legitimidade dos valores do regime absolutista, agora presentes no pensamento de Russeau,
Voltaire e Diderot. A educação era vista como chave para o progresso e deveria conter
metodologias capazes de organizar e explicar coerentemente a realidade, longe de crenças
obscuras sobre a hereditariedade nobiliárquica ou dos misticismos oriundos da religião. A
adesão de setores progressistas da sociedade, sobretudo a classe burguesa formada por
banqueiros, advogados e homens de negócio começaram a dar feição aos que seriam, mais
tarde, patronos do Neoclassicismo naquele país.
Acompanhando as ideias iluministas em formação, os modelos clássicos penetraram
lentamente na França, ainda dominada pelo gosto rococó da nobreza cortesã. Os salões
organizados pela alta sociedade, como os famosos de Madame de Pompadour62
, mantinham
viva a arte da fantasia, do escapismo e do deleite, representada nos pincéis de François
Boucher e Jean-Honoré Fragonard. Este tipo de pintura eternizava na tela o prazer carnal que
era, na verdade, efêmero na vida real. As festas, a sensualidade, os jogos de sedução e os
61
A Guerra dos Sete Anos se iniciou em 1756 e a principal causa foi a disputa, entre a França e a Inglaterra, pelo
controle comercial e marítimo das colônias das Índias e da América do Norte. 62
Madame de Pompadour foi filha de um rico mercador e preparada, desde jovem, para ser amante do rei Luís
XV. Foi figura influente e reuniu em Versalhes salões importantes de arte e literatura.
251
instantes dos encontros amorosos proibidos alimentavam os sentidos desejosos por mais
prazer.
O reinado de Luís XVI herdou não apenas a situação econômica catastrófica do seu
antecessor, mas também a paradoxal manutenção do requinte e do luxo associados à arte
cortesã. O Rococó, para os arautos do Iluminismo, simbolizava o extremismo da vida
dispendiosa e materialista da nobreza, em contraste com a miséria enfrentada pelo povo na
época. A iconografia do hedonismo soava como um desperdício, um deslocamento da real
função da arte e uma deformação dos seus valores éticos e morais.
Artistas jovens, agraciados pelo Prix de Rome, vivenciaram o contato direto com o
mercado de antiguidades e os círculos de discussão sobre os ideais de beleza, distintos da arte
oficial francesa. Joseph-Marie Vien, um dos patrocinados pela Academia, permaneceu em
Roma no período de 1743 a 1750, momento coincidente às escavações de Herculano e
Pompeia. Ao retornar a Paris, inicia um período de experimentação direcionado pelo conde
Caylus, um dos maiores colecionadores de antiguidades da França, cujo acervo contava com
peças egípcias, estruscas, gregas e romanas, entre outras. Interessante notar que o
Neoclassicismo inicial francês repetiu o mesmo sentido de renovação estética observado em
Roma, o que absorveria conotações políticas durante a fase revolucionária de David.
A influência de Caylus encontra-se na sua ação voltada a uma planejada mudança de
gosto, mesmo sendo ele um nobre formado nas antigas tradições aristocráticas que naquele
momento ainda se deliciavam com o Rococó. Sobre o conde, Albert Boime nos diz que:
Sua intensa dedicação – algo anormal em uma aristocracia de linhagem antiga
– se alimentava em parte dos contatos que mantinha com o Salão de Madame
Geoffrin e com os enciclopedistas, e em parte de seu desejo de iniciar um
Renascimento francês. Depreciava o Rococó como signo da decadência e
debilidade francesa e queria restabelecer a antiguidade dentro das residências
reais. Exerceu uma profunda influência na Academia e em meados do século,
252
orientou um estudo mais profundo das formas antigas. (BOIME, 1994, vol.1,
p. 172)63
Vien se beneficiou do acervo de Caylus para executar numerosas obras, nas quais a
referência às pinturas encontradas em Herculano aparecia a partir do estudo dos álbuns de
gravuras do conde. A tela Vendedora de cupidos exemplifica com clareza as intenções de
Caylus em difundir um gosto renovado, pautado na estética classicista (Figura 64). Vien se
apropria do conceito geral do tema e inclui um cenário evocativo do novo momento, ainda
inclinado para o fim decorativo. Entretanto, as menções à gramática clássica, como podemos
observar na arquitetura com pilastras e na inclusão de peças e mobiliário pertencentes à
coleção de Caylus, apontam para outra direção. Esta ambientação em nada recorda os motivos
assimétricos das rocalhas, as linhas sinuosas e as influências orientais comuns do Rococó.
Apesar da delicadeza do tema, as figuras aparecem estáticas, rigidamente dispostas em
um espaço dominado pela horizontalidade. As expressões são contidas e o panejamento é
semelhante às esculturas gregas da fase clássica, ou seja, com caimento próximo ao corpo e
sem a movimentação esvoaçante comum das representações barrocas que foram mantidas na
fase rococó. As peças que compõem o cenário sugerem também o desejo de Caylus de exibir
a sua coleção, em uma postura propagandística que anuncia a mudança do modelo de mercado
e de consumidor de arte.
As figuras do primeiro plano se destacam de um fundo neutro, levemente iluminado.
Os contrastes cromáticos são referenciais do Renascimento, com tons vermelhos e azuis em
organização que busca principalmente o equilíbrio, valorizando o desenho dos corpos e a
textura dos elementos. Aquele efeito etéreo dos ambientes rococós, com as cores claras e
63
Madame Geoffrin foi organizadora de um importante salão literário que reunia frequentemente as grandes
figuras do Iluminismo francês.
253
artificiais, desaparece para dar lugar espaço a um modelo mais sólido de composição de
figuras.
Figura 64 – Joseph-Marie Vien. Vendedoras de Cupidos. 1763. Óleo sobre tela. Musée National du Chateu de
Fontainebleau, Fontainebleau.
A iconografia é revelada com simplicidade, envolvendo apenas o essencial para o
entendimento do tema. No canto direito, a vendedora oferece um cupido a uma jovem situada
no lado oposto, a qual fita o olhar na criatura sem grande interesse. Apoiada em uma cesta
com mais dois cupidos, a vendedora mostra que há variantes desta curiosa mercadoria. Vien
substitui a jaula que aparece na gravura original pela cesta, o que sugere maior delicadeza na
representação. O tratamento neoclássico de iconografia típica do erotismo da Antiguidade
parece conciliar o hedonismo rococó com a forma que se insinuava como a nova proposta
decorativa. Albert Boime nos diz que:
254
Entretanto, a obra de Vien ainda podia se encaixar perfeitamente em uma
decoração rococó, o que indica o seu papel mediador entre a frivolidade de
Boucher e o novo enfoque. Mesmo com suas claras divisões retilíneas, seu
aspecto em forma de friso e suas poses estáticas, ele ainda conserva os traços
festivos do estilo da realeza. A questão de vender deuses do amor a damas
podia satisfazer os patronos de Boucher e Fragonard que se sensibilizariam
com a mistura de estilos e fantasiariam com as possibilidades eróticas da
Antiguidade.(BOIME, 1994, vol. 1, p. 195)
O Neoclassicismo inicial francês, assim como o romano, reuniu em torno de si uma
classe média ascendente, clientela ávida em consumir, colecionar e conhecer arte. Todo
homem educado do período deveria ser um connaisseur e o grand tour era o destino de todos
aqueles abastados desejosos em possuir posição destacada na sociedade. Vale salientar a
proteção dispensada a muitos pintores nas duas cidades, como os casos mencionados do
cardeal Albani e do conde Caylus. Lilia Moritz Schwarcz, no livro O Sol do Brasil, obra em
que estuda a passagem de Nicolas-Antoine Taunay no país, nos diz que:
Assim, nesse momento, mais que a arquitetura ou os objetos de decoração,
eram as pinturas que excitavam a imaginação das classes políticas
ascendentes, à procura de símbolos de prestígio. A arte neoclássica traduziu e
transformou a paixão pelo começo em nostalgia de recomeço, e deu a esses
novos clientes um estatuto original. (SCHWARCZ, 2008, p. 62)
O Iluminismo francês foi, como mencionamos no primeiro capítulo, a vertente mais
radical desta corrente filosófica de cunho racionalista. Sua influência, decisiva como base
teórica da revolução de 1789, contribuiu para transformar o Neoclassicismo em uma arte do
Estado, visivelmente propagandístico e politizado, sobretudo na era napoleônica. A figura
dominante de Jacques-Louis David, o principal pintor da segunda geração neoclássica, deu à
arte francesa um rumo agora diferenciado daquele ainda praticado em Roma. A virtude, a
moral e o heroísmo ganharam um tom engajado que extrapolava a mera referência estética de
uma burguesia em busca de uma imagem para si. Agora, esta imagem era a do próprio poder,
pois a burguesia revolucionária havia derrotado o regime absolutista e assumido a direção do
255
Estado. Neste contexto, a Académie Royale des Beaux-Arts passou a ser a instituição oficial e
propagadora do novo gosto, com um programa a serviço dos interesses governamentais.
No Brasil, a Aula Régia de Desenho e Figura trouxe do modelo italiano o exercício do
desenho como elemento fundamental do aprendizado, despojado das questões ideológicas da
vertente francesa. Somente com a chegada de Debret e Taunay, pintores formados na segunda
fase do Neoclassicismo de seu país, as diferentes concepções se esbarrariam em um ambiente
complexo, inicialmente hostil aos estrangeiros. Vale dizer que a clientela fluminense estava
habituada a consumir seus objetos a partir de contratos com artesãos, gente pertencente a uma
classe social mais baixa. Os franceses, por outro lado, eram artistas intelectuais, participantes
ativos das discussões sobre estética, além de engajados nos assuntos políticos do momento. O
choque de culturas trouxe como benefício, apesar do atraso de dez anos para a abertura da
Academia Imperial das Belas-Artes, um novo referencial social para o ofício de pintor.
4.1 A AULA RÉGIA DE DESENHO E FIGURA DE LISBOA: A CONCEPÇÃO
BURGUESA DE MERCADO DE ARTE
A Aula Régia de Desenho e Figura de Lisboa, conforme mencionado anteriormente,
foi criada no contexto das reformas educacionais iniciadas no ministério do Marquês de
Pombal e continuadas no reinado de D. Maria I. O motivo específico para a existência de uma
aula de desenho seguiu a mesma diretriz que espelhava na Europa os vários cursos destinados
à formação de artesãos voltados para o comércio. Após analisar a proliferação destas
instituições, Pevsner afirma que:
Esses exemplos são suficientes para demonstrar de modo irrefutável a enorme
importância das considerações de natureza econômica no desenvolvimento das
256
academias em fins do século XVIII. Somente algumas instituições mais
antigas e com tradições arraigadas, como as de Florença e Roma, e um
número mínimo de novas instituições, como as de Londres, Madri, Turim e
Düsseldorf, puderam manter-se alheias a essa nova tendência, que era uma
decorrência natural da teoria do mercantilismo. Na visão dos economistas
mercantilistas, o principal dever do Estado era construir um sistema de
manufaturas cuja prosperidade deveria estimular a circulação de capitais e
fortalecer a exportação de mercadorias e a importação de ouro. (PEVSNER,
2005, p. 206)
Antes de 1781, ano inaugural da Aula Régia, outras iniciativas aconteceram em torno
da capacitação de profissionais para o mundo do comércio. Na década de 1760, houve no
Colégio dos Nobres uma aula de debuxo nitidamente filiada à utilidade industrial, assim como
a aula de desenho da Fábrica de Sedas, anteriormente citada. Em 1779, no Porto, foi criada a
aula de debuxo e desenho, associada à Junta da Companhia das Vinhas do Alto Douro,
instituição que contou mais tarde com Vieira Portuense como professor (FRANÇA, 1990, p.
65). Todos os projetos implementados neste período, alguns fracassados logo no início de seu
funcionamento, foram pautados na mesma necessidade de incutir o bom gosto na
industrialização de produtos nacionais.
A Aula Régia de Desenho e Figura aconteceu como uma consequência esperada após
tantas iniciativas de particulares. Tornar oficial o ensino de desenho era uma prerrogativa do
Estado que havia, desde a época de D. José I, beneficiado a classe burguesa comerciante.
Interessante mencionar que o Intendente Geral de Polícia, Pina Manique, manteve a sua aula
aberta, paralela ao projeto oficial e com os mesmos objetivos, conforme nos diz José-Augusto
França:
Idêntico espírito as animava, de resto: também, na sua Casa Pia, Pina Manique
se preocupava com o grau de perfeição das manufaturas que dependerem de
desenho e bom gosto, e, para a sua utilidade e desenvolvimento, desejava ele
ver contribuir o ensino das belas-artes. Esse mesmo espírito, vindo do
progressismo pombalino e marcado por uma certa confusão quanto às funções
artísticas, só muito depois seria satisfeito com a criação do Conservatório de
Artes e Ofícios, a par das Academias de Belas-Artes, obra revolucionária de
Passos Manuel, em 1836 (...). (FRANÇA, op. cit., p. 69)
257
Do ponto de vista dos artistas, a abertura da Aula Régia de Desenho e Figura não
escondia a sofrida ausência de uma academia, injetando na discussão sobre a real natureza da
profissão de pintor a questão sobre as diferenças entre as artes aplicadas e as belas artes. José
Augusto França continua sua análise afirmando que:
No meio deste panorama, a dignidade da função artística, livre, nobilitada e
nobilitante, tal como pela Europa fora as academias a defendiam, desde o
século XVII, era apenas um secreto desejo dos artistas de que, num discurso,
em 87, Machado de Castro foi digno porta-voz. A Irmandade de São Lucas,
desde sempre inconsciente de tal problema, para nada servia – a não ser que
sofresse uma grande reforma. E essa foi a ideia que nasceu em 92, numa
reunião em casa de Pedro Alexandrino. (FRANÇA, op. cit., p. 69)
Apesar dos esforços dos pintores mais atuantes do período, os estatutos da Irmandade
de São Lucas não foram reformulados e nenhuma possibilidade aparente de se ter uma
academia portuguesa despontava no horizonte. O problema da filiação do aprendizado em
uma relação de subordinação aos interesses comerciais, essência da Aula Régia de Desenho e
Figura e de todas as outras instituições particulares com os mesmos fins, enfraquecia o outro
lado da profissão, ou seja, a concepção estética das belas-artes. Cirilo deixaria registrado, anos
mais tarde, o que se pensava no final do século XVIII sobre a pintura, como podemos ver na
seguinte passagem:
A Música é uma arte angelical e pode entreter deliciosamente qualquer
senhora, uma ou duas horas cada dia; a leitura a divertirá três ou quatro, mas a
Pintura faz parecer pequenos os maiores dias de junho e torna amável e
apetecível a mesma solidão: é uma arte não só imitadora de toda a Natureza,
mas também criadora; arte enfim, que simpatiza grandemente com a
vivacidade das pessoas espirituosas e discretas, muitas das quais desejam
saber pintar e nem sempre o conseguem; ou por viverem em terras aonde não
há quem as ensine, ou por se limitarem nas lições de uma prática muito
superficial. A prática é de absoluta necessidade e por ela se deve não só
começar, mas avançar muito, sem nunca a perder de vista; porém há uma
baliza além da qual senão podem fazer ulteriores progressos sem estudar a
fundo os preceitos teóricos. (MACHADO, 1817, p. 2)
258
As críticas de Cirilo nesta breve citação sugerem o seu descontentamento com o
ensino então praticado em Portugal. Quando menciona o desejo não realizado de pessoas que
gostariam de aprender a arte da pintura, complementa apontando a falta de profissionais aptos
a ensiná-la, uma alusão clara a situação de Lisboa naquele momento. O tom mais duro
aparece justamente no tocante à prática, segundo ele superficial e sem o acompanhamento
teórico indispensável ao artista criador. O alvo parece certo: a Aula Régia de Desenho e
Figura, com seu sistema de aprendizado focado preferencialmente na técnica.
As reformas nas principais academias europeias do século XVIII e a criação de novas
escolas continham, em sua essência, dois objetivos principais e inseparáveis: a elevação das
belas-artes como difusão do bom gosto necessário à nação e a promoção de produtos
relacionados à atividade fabril, como os estuques, os vidros, as sedas e as porcelanas, entre
outros (PEVSNER, 2005, p. 202). No caso português, somente o segundo objetivo parecia
fazer sentido em um país ávido em concorrer com os demais no mundo dos negócios. Como
mencionamos acima, as várias aulas de desenho inauguradas como projetos de empresas
denunciam esta visão funcional do desenho e da pintura. Faltava, então, o ambiente reflexivo
de uma academia para dar fundamento teórico à atividade prática.
A Aula Régia de Desenho e Figura de Lisboa oferecia apenas o básico para o ingresso
do aluno no mundo dos ofícios, mesmo tendo iniciado a formação de nomes como Vieira
Portuense e Domingos Antonio de Sequeira. José-Augusto França, sobre o assunto, relata
que:
Tratava-se, porém, de um ensino elementar para a admissão ao qual se exigia
apenas saber ler e escrever e as quatro operações. No curso de desenho
copiavam-se estampas e, mais tarde, relevos; na arquitetura aprendiam-se
elementos de aritmética e de geometria, as cinco ordens vitruvianas, planeação
e noções de solidez, de construção e de ornamentação. (FRANÇA, 1990, p.
67)
259
O autor complementa a seguir:
Os resultados não eram, porém, brilhantes, e raros os desenhistas competentes
para tornarem-se discípulos. De tal escassez resultava a possibilidade de
encomendas na capital, que os faziam viver numa mediania sem relevo. Em
87, Machado de Castro escrevia a frei Manuel do Cenáculo, o erudito
arcebispo de Évora, que o consultara sobre o assunto: Dificultoso é, Exmo
. Sr.,
achar um mestre de desenho; e ainda mais difícil (achando-se) querer ele
deixar a corte. (FRANÇA, op. cit., p. 67)
A rara oportunidade de completar os estudos em Roma consistia em privilégio dos
poucos agraciados por apadrinhamento particular ou pelo sistema oficial. O contato com o
modelo acadêmico, que valorizava também a reflexão teórica sobre o fazer, apresentava uma
dimensão mais intensa sobre o ofício. O pintor deveria estar inserido em um mercado
dinâmico e tecnicista do mundo do comércio, mas, ao mesmo tempo, atualizar-se sobre o seu
próprio ato criativo. Significa dizer que a profissão englobava também uma formação
intelectual que buscava dar subsídios para o conhecimento da arte do passado, o estudo dos
tratados então em voga e a capacidade de agir criticamente em seu meio. Este segundo
aspecto faltava à Aula Régia de Desenho e Figura, pelo menos de forma consistente e
sistematizada. Esta segunda via, de teor reflexivo sobre o fazer, era justamente a peça faltante,
notada pelos artistas do momento. Somente com a aquisição desta peça, o mercado português
poderia se colocar com mais solidez no panorama europeu de produção e consumo de arte.
Bourdieu, em uma interessante passagem, menciona um aspecto que nos serve para esta
análise. Ele nos diz que:
No momento em que se constitui um mercado da obra de arte, os escritores e
artistas têm a possibilidade de afirmar – por via de um paradoxo aparente – ao
mesmo tempo, em suas práticas e nas representações que possuem de sua
prática, a irredutibilidade da obra de arte ao estado de simples mercadoria e
também, a singularidade da condição intelectual e artística. (BOUDEIU, 2007,
p. 103)
260
O que percebemos no ambiente português da virada do século XVIII para o XIX, é
justamente a pressão dos artistas sobre o mercado de uma capacitação prático-teórica sobre o
objeto estético. Além de seu aspecto econômico e funcional, a obra traz consigo certo grau de
autonomia já percebido naquele momento, o que Boudieu havia identificado como processo
de construção de um campo próprio de atuação. Esta percepção, em Portugal, foi possível
através do intercâmbio com escolas que alcançaram primeiramente esta autonomia do campo
artístico, muito pela ação das relações entre as academias, os encomendantes de perfil cada
vez mais heterogêneo e o sistema econômico consumidor e propagador de bens simbólicos.
A formação de Domingos Antonio de Sequeira na referida aula, onde foi aluno desde
os seus treze anos, traz aspectos que confirmam as críticas dos pintores mais velhos. Segundo
Rui Afonso Santos:
Largamente praticadas por obrigação e dever de ofício, estas incursões de
Sequeira no domínio das chamadas artes menores não deixaram, porém, de
revelar o talento, a inquietação e o engenho de um artista capaz de entender e
dar resposta às especificidades da encomenda e do quotidiano, e também
experimentar e conhecer as possibilidades da tecnologia e a natureza dos
materiais, numa pesquisa rigorosa orientada para a natureza dos objetos e sua
adequação às necessidades sociais. Tal espírito de pesquisa contínua e
metódica permite considerar Sequeira como um designer, atividade
secundarizada no âmbito do estatuto maior de pintor. (SANTOS, 1969, p. 68)
Mais adiante continua:
De fato, o próprio decreto que em 1781 instituía a Aula Régia de Desenho e
Figura, na qual o jovem Domingos Antonio se matriculara, esclarecia ela que
se fazia indispensável para a facilidade e maior perfeição de muitas artes,
nomeadamente as decorativas, numa continuidade da visão pombalina que
previra o ensino do desenho como sustentáculo do desenvolvimento das
atividades fabris (...). (SANTOS, op. cit., p. 68)
A incursão de Sequeira na chamada arte decorativa o acompanhou durante toda a sua
vida profissional e deveu-se à Aula Régia de Desenho e Figura as orientações inaugurais para
este ramo de atividades. Em relação ao ensino do desenho mais próximo do que se fazia nas
261
academias, o curso, pelo menos na teoria, envolvia as três principais fases formativas, como a
cópia de gravuras, os exercícios com gesso para a tradução do tridimensional para a superfície
bidimensional e, finalmente, o estudo anatômico a partir do natural, ou seja, do modelo vivo.
Entretanto, vários problemas ocorreram com a última fase, desde a dificuldade de encontrar
um modelo disposto a ficar nu até as reações mais puritanas de uma parcela da sociedade
(FRANÇA, 1990, p. 66). Na prática, a aula enfatizava a cópia de estampas e é sintomático que
o desenho que valeu o primeiro prêmio a Sequeira, em 1786, tenha sido avaliado justamente
pelo grau de semelhança com a original que ele precisou copiar (Figura 65).
Figura 65 – Domingos Antonio de Sequeira. Ismael expulsando Agar. 1786. Desenho
a sanguínea. 592 x 495cm. MNAA, Lisboa.
262
Como discutido anteriormente, o cliente burguês em Portugal estava em plena
formação como consumidor de arte desde a fase pombalina. Os exemplos dos comerciantes
estrangeiros atuantes em várias localidades do país, sobretudo ingleses, colaboravam para dar
visibilidade à arte como um bom negócio. O que percebemos na última década dos Setecentos
e nas primeiras do século seguinte é a urgência em atender a uma classe que procurava
resultados rápidos, com artistas formados na própria terra e, por isso mesmo, com serviços
mais baratos.
O despertar de uma nova consciência sobre o fazer artístico brotaria apenas ao longo
da década de 1820, com a atuação marcante de um Domingos Antonio de Sequeira mais
maduro. A abertura da Academia de Belas-Artes de Lisboa, em 1836, apesar de tardia,
aconteceu como consequência deste período de mudanças. A partir de então, Portugal
finalmente embarcou no mesmo projeto de ensino que movimentava as principais capitais
europeias e que o Brasil já experimentava há uma década.
4.2 A AULA RÉGIA DE DESENHO E FIGURA DO RIO DE JANEIRO:
PARADOXOS E CONTRADIÇÕES
As aulas régias foram instituídas a partir do programa de reformas orquestradas no
reinado de D. José I, sob a ação do Marquês de Pombal. A expulsão dos jesuítas, até então os
principais detentores das instituições de ensino do Reino, deixou um vazio que precisou ser
resolvido pelo Estado, fazendo de Portugal o primeiro a estatizar o ensino e torná-lo público.
As reformas aconteceram em duas etapas, sendo a primeira, de 1759, voltada para os
chamados Estudos Menores. Esta fase da Educação correspondia ao que hoje consideramos de
ensino fundamental e médio, em um programa que incluía as primeiras letras, as aulas de
263
contar e as humanidades, ou seja, as aulas de Gramática Latina, Gramática Grega e Retórica
(CARDOSO, 2002, p. 114).
A segunda etapa ocorreu em 1772 e foi direcionada à reforma do ensino superior,
propriamente o da Universidade de Coimbra. Ambas complementavam o ideal ilustrado de
valorização das ciências e do pensamento racional, em contraponto ao modelo considerado
ultrapassado dos jesuítas. As demais aulas, ou disciplinas, foram criadas na medida em que se
faziam necessárias, como foi o caso da Aula Régia de Desenho e Figura de Lisboa e, mais
tarde, a do Rio de Janeiro. Estas reformas não estavam restritas à Metrópole e, desde o alvará
de 1759, ficou explícita a sua extensão a todo o reino.
A historiadora Tereza Maria Cardoso, em seu minucioso estudo sobre as aulas régias
no Rio de Janeiro, destaca, a partir da análise do alvará de 1759, o tom agressivo do rei contra
o sistema jesuítico. Ela nos diz que:
Sendo a Companhia de Jesus, portanto, a responsável pela decadência da
educação no reino português, o melhor era proibir radicalmente a sua ação. De
acordo com os estudos que abordaram o tema, a difícil situação enfrentada
pelos jesuítas em Portugal, no ano de 1758, decorria também da interferência
do Vaticano, uma vez que o Papa Benedito XIV, pelo Breve de 1o
de abril de
1758, instituiu a reforma geral da Companhia de Jesus, como ação disciplinar,
sendo então nomeado o patriarca de Lisboa, Cardeal Saldanha, como
reformador responsável para executar tal tarefa em todo o reino de Portugal.
(CARDOSO, op. cit., p. 117)
Mais adiante, complementa:
Assim, o alvará de 28 de junho de 1759 implantou, ainda que precariamente,
um sistema de ensino diferente do que existia na época dos jesuítas, tendo em
vista que se centrava no Estado o controle do processo educativo, com a
responsabilidade não apenas de escolher, por concurso, os professores
públicos, como também fiscalizá-los, de acordo com as diretrizes político-
pedagógicas traçadas pelo governo monárquico. (CARDOSO, op. cit., p. 146)
264
Foram também os jesuítas os maiores impulsionadores das artes no início da
colonização, trazendo para o Brasil o modelo de oficinas inicialmente praticado pelos frades.
Construíram seus templos, decoraram seus interiores e serviram como parâmetro para as
outras Ordens Primeiras, contribuindo para que a arte dos Seiscentos assumisse uma feição
conventual e monástica. O sistema de mestre e discípulos migraria para além muros das
igrejas, fomentando a criação de oficinas de leigos que floresceriam ao longo do século
XVIII.
A estrutura de uma oficina de pintura oferecia uma formação empírica, a qual o
discípulo aprendia primeiro a manejar o seu material de trabalho, como a preparação do
suporte e a feitura das tintas. A habilidade maior exigida do aluno era a capacidade de copiar
gravuras, ou seja, de transpor a imagem reduzida e em preto e branco para a tela de maiores
dimensões. Os volumes, as texturas, a profundidade, as proporções anatômicas e o uso correto
das cores consistiam em desafios cotidianos, pois geralmente as gravuras que serviam de
modelo eram de qualidade muito variada.
Este tipo de processo de aprendizado era, na verdade, uma variante resumida e arcaica
do sistema europeu, ficando o artista colonial restrito à fase inicial de um programa muito
maior. Um ateliê de renome parisiense ligado ao círculo acadêmico, por exemplo, continha
alguns estágios, como degraus a serem galgados pelo aprendiz. O primeiro contato com o
ofício concentrava-se na apresentação dos materiais e na aquisição básica das técnicas
fundamentais para o seu correto manejo. Dominar os instrumentos de trabalho exigia tempo e
dedicação e não surpreende que o assunto tenha sido abordado por Cenino Cenini na parte
inicial de sua obra, O livro da arte, que consideramos inaugural da História da Arte ocidental.
A cópia de obras consagradas, fase seguinte da formação do aprendiz europeu, era a
última etapa percorrida pelo aluno da oficina colonial. A raridade de pinturas originais
265
restringiu ainda mais o processo de aprendizado, cabendo à gravura a função quase exclusiva
de transmitir as informações plásticas e iconográficas ao jovem pintor. É razoável pensar que
as oficinas setecentistas não tenham praticado a aula do modelo vivo, o que apareceria mais
tarde, pelo menos supostamente, na Aula Régia de Desenho e Figura.
Se analisarmos mais a fundo o contexto colonial, veremos que não cabia naquele
momento a formação de artistas inventores, pois a Igreja tridentina não estava aberta aos
devaneios de criatividade. A cópia de modelos oriundos da arte do passado, seja de Rafael, de
Rubens e de tantos outros nomes aclamados, significava a atestação por parte dos religiosos
de imagens incorporadas às bíblias e aos missais, além das gravuras de registros de santos.
Ainda no calor do Concílio de Trento, o Cardeal Gabriele Paleotti, participante ativo deste
concílio, escreveu um tratado sobre a pintura sagrada e a passagem seguinte é reveladora
neste sentido:
Gostaríamos de dizer primeiramente ao leitor que toda novidade, ainda que
tocante a coisas profanas, deve ser mantida sob suspeita e somente por boas
razões pode ser aceita (...). Não queremos, porém, que alguém, abalado por
essa proposição, nos julgue rígidos e severos pela nossa vontade de restringir a
fantasia engenhosa dos pintores. (...) Quanto às pinturas sagradas, dever-se-á
estabelecer as que o Concílio de Trento recomenda expressamente (...) sua
matéria deve ser tal que não sofra nem alteração nem inovação por parte
daqueles que não têm autoridade legítima. (...) afirmamos que o ofício do
pintor é imitar as coisas como são na natureza, e tão só, tais como se
apresentam aos olhos dos mortais; não lhes cabe ir além desses limites, pelo
contrário: ele deve deixar aos teólogos e mestres na doutrina sagrada o
cuidado de estendê-los a sentimentos mais elevados e misteriosos.
(PALEOTTI, apud LICHTENSTEIN, 2004, vol. 2, p. 79)
Assim, parece-nos injustificável qualificar o pintor colonial como um simples copista,
no sentido depreciativo da crítica modernista que vigorou no círculo de historiadores da arte
brasileiros até a primeira metade do século XX. A cópia era desejável e, se remontarmos a sua
prática ao início da colonização, veremos que os jesuítas transplantaram para o Brasil um
modelo de formação compatível com os preceitos contrarreformistas. A habilidade do pintor
colonial estava na sua capacidade de realizar a tradução de um meio de dimensões e técnicas
266
específicas a outro meio completamente diverso. Firmado no Brasil desde o século XVI, este
sistema de ensino e aprendizagem voltou-se para a valorização da figura do cliente como
personagem elementar na relação de trabalho, deixando remota a margem de inventividade
que se tornou problema na Itália com alguns desvios polêmicos de Caravaggio, por exemplo.
Como analisado anteriormente, as oficinas serviram basicamente às irmandades
religiosas. A heterogeneidade destas instituições no Rio de Janeiro proporcionou a criação de
oficinas de qualidades também variadas, revelando um movimento benéfico tanto para os
bons pintores quanto para aqueles de formação medíocre. A clientela religiosa solicitava o
serviço do pintor com o modelo previamente escolhido, cabendo a ele copiá-lo conforme a
vontade do encomendante.
No mundo religioso, a pintura era a linguagem que figurava abaixo na escala de
valores. Somente após a construção do templo e da composição dos espaços de culto com as
esculturas dos santos, a pintura seria requisitada, caso houvesse verba para tal. Neste sentido,
observamos que as funções principais da pintura acabavam oferecendo trabalho para artistas
de níveis variados. Havia as bandeiras de procissão, os motivos florais ou abstratos puramente
decorativos, os painéis narrativos, os retratos de nobres e os forros que complementavam a
ambientação espiritual. Os pintores também eram requisitados para aplicar a carnação e o
estofamento nas esculturas e para dourar todo o material de talha. Um dos raros contratos de
trabalho sobreviventes do Rio de Janeiro, o referente aos trabalhos realizados pelo português
Caetano da Costa Coelho para a Venerável Ordem Terceira de São Francisco da Penitência,
revela a variedade de funções destinadas a uma única oficina. Nele, o pintor se compromete a
dourar:
(...) toda a obra de talha que se acha na capela da ordem, do arco para dentro,
como também o pé do Calvário do Senhor que está na tribuna da mesma
capela, que se há de fazer, e mais a pintura de todo o teto que há de ser da
267
melhor perspectiva que se assentar, e os oito painéis da mesma capela serão
pintados com os santos que se lhe mandar.64
O sistema de oficinas continuou ativo ao longo do século XIX, paralelo à Aula Régia
de Desenho e Figura e, mais tarde, à Academia Imperial das Belas Artes. Esta permanência
deve-se, sobretudo, à demanda de serviços oriundos dos espaços religiosos, pois a Igreja
manteve a sua força ao longo dos dois períodos imperiais. Conforme investigou Adolfo
Morales de los Rios Filho, o pintor Raimundo da Costa e Silva exerceu sua profissão até a
década de 1850, com sua aula de pintura localizada na Rua da Lapa, em frente ao Convento
do Carmo (MORALES DE LOS RIOS FILHO, 1942, p. 262).
Se houve um laço de continuidade do tipo de relação entre cliente e pintor no que se
refere à produção destinada aos espaços de culto religioso, uma nova necessidade, sentida
desde as últimas décadas do século XVIII, exigiu na Colônia novos direcionamentos. Desde o
governo do vice-rei Luís de Vasconcelos, as atribuições dos pintores e escultores denotavam
certa ampliação de funções e de repertório, expandindo a iconografia para além das temáticas
sacras. As paisagens de Leandro Joaquim e as figuras mitológicas de Mestre Valentim, ambos
recrutados pelo vice-rei na ocasião das obras de melhorias da cidade, demonstram este
alargamento de limites.
É certo que a história econômica do período final do Antigo Regime português vem
demonstrando que houve visível prosperidade nos dois lados do Atlântico, fruto do
pensamento ilustrado da época (NOVAIS, 2005, p. 176). A dependência do mercado externo
não escondia uma movimentação interna colonial, com acúmulo de capital e beneficiadora da
classe burguesa mercantil. Apesar da proibição de fábricas, produtos agrícolas e artesanais
circulavam em uma rede que interligava as regiões e as colônias ultramarinas, transformando
64
Arquivo da Venerável Ordem Terceira da Penitência. Livro 2o de Escrituras, 1725 a 1746. Ano 1732.
268
o Rio de Janeiro em importante núcleo econômico da virada do século XVIII para o seguinte
(FRAGOSO, 1998, p.332).
Foram os negociantes de grosso trato os protagonistas da movimentação intensa de
capital interno, fomentando um mercado que prosperaria desde a década de 1760. No intuito
de identificar estas personagens, encomendantes de pintura em potencial, verificamos alguns
fatos que são interessantes para análise. O primeiro ponto refere-se à nomeação de D. Luis de
Almeida Portugal e Mascarenhas, o Marquês de Lavradio, para assumir o vice-reinado no Rio
de Janeiro, em 1769. O deslocamento do então governador da Bahia para a capital deveu-se,
principalmente, pela sua ligação direta com Marquês de Pombal. A política metropolitana de
aumento de rendimentos precisava de um nobre de confiança para reorganizar a economia
colonial, função maior de Lavradio.
Nos seus dez anos de governo, o vice-rei criou mecanismos para controlar a alfândega
e a movimentação do porto, combatendo a prática comum de contrabando. Incentivou a
ampliação das culturas agrárias e, principalmente, estabeleceu condições para que os
negociantes de grosso trato pudessem atuar. Estes constituíam o braço da Coroa na
complicada rede de arrecadação, pois o sistema de contratos permitia a melhor ordenação das
finanças, como a cobrança de dízimos, a responsabilidade pelo trabalho alfandegário e o
controle dos tributos sobre mercadorias, entre outros serviços. Segundo João Fragoso:
Assim, o tipo de sociedade de Antigo Regime presente no recôncavo da
Guanabara dependia, cada vez mais, dos negociantes. Sem estes, as plantações
de açúcar e as roças de alimentos dos naturais da dita cidade sumiriam, como
aliás, atestam as diversas cartas enviadas por cidadãos e camaristas do Rio a
Lisboa. Em outras palavras, era de se esperar que os cidadãos do Rio de
Janeiro, particularmente os que viviam da lavoura, enredados em dívidas para
o custeio de suas plantações e a aquisição de escravarias, fossem mais
complacentes com seus credores nas eleições camaristas. (FRAGOSO, 2007,
p. 39.
Mais adiante complementa:
269
Afinal, os empresários preteridos, além de donos de uma acumulação
mercantil que alcançava o Oriente, tinham as devidas credenciais hieráticas
concedidas pelo poder Central. Por serem familiares do Santo Ofício e
cavaleiros da Ordem de Cristo, tinham insígnias de autoridade, reconhecidas
nos quatro cantos de um império ultramarino de Antigo Regime (...).
(FRAGOSO, op. cit., p. 39)
Esta classe emergente logo superaria a tradicional elite rural no que se refere a
privilégios e elevação do estatuto social. Vimos os nomes de Anacleto Elias da Fonseca e
Antonio Pinto de Miranda como representantes dos negociantes e agraciados com a Ordem de
Cristo, além de assumirem o cargo de provedores da Irmandade da Misericórdia. Como
agentes notáveis do desenvolvimento comercial, os negociantes contribuíram para a
diversificação maior da economia colonial, em especial do Rio de Janeiro. É neste contexto
que a Aula Régia de Desenho e Figura foi inaugurada em 1800.
Este tipo de instituição não tocava diretamente as irmandades no sentido da
composição do espaço religioso, pois, como mencionamos acima, elas continuaram
consumindo as suas imagens oriundas do sistema tradicional de produção. Dentro da esfera de
atuação das irmandades, as oficinas seriam as beneficiadas com a formação melhor de seus
aprendizes e a sua inserção no mercado de trabalho. A Aula Régia, por outro lado, não foi
apenas fruto do desejo de Manoel Dias de Oliveira em ter em sua terra natal um sistema de
ensino mais aprimorado do que aquele na qual aprendeu as primeiras lições. Sozinho, o pintor
não seria capaz de introduzir uma nova forma de produção sem que houvesse clientes
interessados. Em uma época na qual a arte dependia exclusivamente da encomenda, a Aula
Régia de Desenho e Figura se enquadrava nitidamente na relação entre o consumidor e a mão
de obra.
O próprio envio de Manoel Dias de Oliveira a Portugal sugere uma intencionalidade
que remete ao mundo comercial, pois foi a partir do apadrinhamento de um rico comerciante
270
português estabelecido no Rio de Janeiro que tornou a viagem possível. Esta figura vem
mencionada em vários estudos do século XIX, mas não encontramos nenhum documento
identificador de tal personagem. Sabemos, a partir destas pioneiras biografias, que os seus
negócios giravam em torno da ourivesaria, motivo do investimento na formação do jovem
Dias de Oliveira. Sobre esta passagem, Moreira de Azevedo nos diz que:
Manoel Dias de Oliveira nasceu na Vila de Macacu no meado do século
passado; os anos da infância correram para ele no lugar de seu nascimento,
mas apenas moço, veio para o Rio de Janeiro aprender a arte de ourives, e
então entusiasmaram-no as pinturas de Leandro Joaquim e de outros artistas,
de sorte que, dedicando-se pouco a arte de ourives, procurou estudar o
desenho, e esforçou-se por ir a Lisboa para ouvir as lições de bons pintores.
Alcançando a proteção de um negociante, para o qual fizera diversas obras de
prata, dirigiu-se com ele à cidade do Porto; porém logo depois faleceu seu
protetor, e sem amparo ficou o artista, que viu-se obrigado a servir de criado
de outro negociante, que estivera no Brasil. (AZEVEDO, 1969, p. 276)
Moreira de Azevedo escreveu sua monumental obra O Rio de Janeiro em meados do
século XIX, ainda sob o calor romântico característico do período. Quando menciona que
houve a vontade de Manoel Dias de Oliveira de estudar em Lisboa, o faz sem levar em
consideração que um descendente de escravos não teria condições de almejar tal
empreendimento. A viagem ocorreu provavelmente pelo interesse do comerciante citado em
ter um hábil artesão por perto, pois o trabalho de ourives exigia bom desenho para os projetos
ainda determinados pelo gosto barroco e rococó. As circunstâncias acabaram o levando a se
matricular na Aula Régia de Desenho e Figura de Lisboa, instituição que ofereceria ao pintor
melhores condições de aprimoramento de suas aptidões ao mundo das artes decorativas e ao
da pintura em particular65
.
Sua formação inicial aconteceu ainda no Rio de Janeiro, sob as orientações de um
mestre pintor local. Acreditamos que Manoel Dias de Oliveira tenha frequentado ou a aula de
Manoel da Cunha e Silva ou a de Leandro Joaquim, pois eram as oficinas mais destacadas da
65
Apesar da proibição do exercício da ourivesaria no Brasil, por Carta Régia de 30 de junho de 1766, a atividade
seguiu na clandestinidade nas principais cidades coloniais.
271
segunda metade do século XVIII. O certo é que chegou a Portugal com alguma experiência,
pois na década de 1780, época de sua viagem, o artista já estava na casa dos vinte anos66
.
A sua passagem pela Aula Régia de Desenho e Figura revela fatos interessantes para
um artista colonial. Travou amizade com Domingos Antonio de Sequeira, um dos expoentes
do Neoclassicismo português e com quem viajou para Roma sob patrocínio régio. O único
indício da estada de Manoel Dias de Oliveira na Itália provém de uma gravura realizada para
o Intendente de Polícia Pina Manique, de 1798 (Figura 66). Interessante mencionar que neste
ano a Academia Portuguesa de Roma foi fechada por causa das ameaças de invasão do
exército napoleônico, motivo que teria levado ao encerramento das atividades de Dias de
Oliveira na Europa.
Na parte inferior da gravura aparecem os seguintes dizeres:
Fatto milagrozo de Santa Izabel Rainha de Portugal, – dedicado e offerecido
ao Illmo. Sr. Diogo Ignacio de Pina Manique, Fidalgo da Casa de Sua
Majestade do seu Conselho Commendador da Commenda de Nossa Senhora
da Ora da Ordem de Christo, Sr. Donatario e de Solar da Villa Manique –
Intendente Desembargador do Passo Intendente Geral da Polícia da Corte e
Reino. Aberto do coadro original de um seu alumno da Regia Academia de
Portugal em Roma no anno de 1798. – Manoel Dias de Oliveira Brazilience
inventou e abriu em Roma no anno de 1798. (SANTOS, 1942, p. 520)
A imagem possui as características principais do Neoclassicismo, como a
horizontalidade influenciada pelos frisos, a composição linear dos corpos e dos panejamentos,
a forma escultórica das figuras e a distribuição harmônica das massas. O desenho é, sem
dúvida, o valor principal da obra, revelando a maturidade de Manoel Dias de Oliveira na
ocasião. O destaque encontra-se na variedade de poses das personagens, apresentando um
artista em pleno domínio da anatomia. Neste estágio, conforme as palavras que acompanham
a imagem, o artista havia se tornado um compositor, fase final da formação acadêmica.
66
Manoel Dias de Oliveira nasceu em dezembro de 1763, falecendo em Campos no dia 05 de abril de 1837.
Segundo a certidão de óbito, conservada no Arquivo Nacional, o artista faleceu com 73 anos. Ver Livro de
funerais e mais sufrágios da Santa Casa de Misericórdia, de 1792 a 1854, folha 22.
272
Figura 66 – Manoel Dias de Oliveira. Fato milagroso de Santa Isabel, Rainha de Portugal. 1798. 42 x 34 cm.
Gravura. Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro.
O tema exalta as virtudes femininas, programa típico do Neoclassicismo que
objetivava apagar a imagem sensual e festiva das representações rococós. A cena resgata uma
personagem famosa de Portugal, a rainha Isabel de Aragão. Conhecida por sua devoção e
obras de caridade, Isabel encontra problemas com as suas ações ao se casar com o rei D.
Diniz, no final do século XIII. Ao sair com moedas para distribuir aos pobres, o rei desconfia
e pergunta à esposa o que ela estava carregando, respondendo Isabel que eram apenas rosas.
Ele pede para ver a bolsa, pois sabia que seria impossível a rainha ter estas flores no inverno.
Ao abrir a bolsa, D. Diniz se surpreende ao ver tantas rosas ainda frescas.
273
As referências a Manoel Dias de Oliveira após seu retorno ao Rio de Janeiro
recomeçam em 1800, com o ofício dirigido à corte redigido pelo vice-rei, datado de 5 de
novembro. O documento traz a solicitação para a abertura da Aula Régia de Desenho e Figura
e a indicação do artista como professor67
. O curso foi estruturado em sua própria casa, na Rua
do Rosário, em frente à Igreja de Nossa Senhora da Conceição e Boa Morte dos Homens
Pardos, antiga Igreja do Hospício (GONZAGA-DUQUE, 1995, p. 86).
A historiadora Marcia Cristina Leão Bonnet, na pesquisa intitulada Entre o artifício e
a arte: pintores e entalhadores no Rio de Janeiro setecentista, encontrou um dado
interessante no testamento de Mestre Valentim: a presença de Manoel Dias de Oliveira como
uma das testemunhas (BONNET, 1995, p. 128). O pintor aparece também como avaliador dos
livros do escultor e, segundo a transcrição da pesquisadora, ele próprio declara que:
Manoel Dias de Oliveira Professor Régio de Desenho e Figura desta corte por
S. A. R. Atesto que fui convidado para avaliar sete livros pertencentes a
diversas Artes, a que o país não dá a devida estimação vão avaliados em um
preço muito módico em razão do seu merecimento.(BONNET, op. cit., 129)68
A data do inventário é de 24 de setembro de 1813. Importante destacar a crítica de
Manoel Dias de Oliveira sobre a pouca valorização da arte no Brasil e o conhecimento do
conteúdo dos livros, pois ele considera ter avaliado o preço inferior ao real valor das obras.
Aparecem na relação A perspectiva de Pozzo e O livro de arquitetura de Vinhola, obras de
grande importância para as oficinas do período.
A Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro conserva em seu acervo de iconografia
precioso conjunto de exercícios de desenho de dois alunos da Aula Régia de Desenho e
Figura, o pintor Francisco Pedro do Amaral e o desconhecido Clemente Magalhães de Bastos.
Do último, existem três estudos de cabeça, uma cópia de osso e um desenho de friso com
67
Folha 60 do Livro 10 das Publicações do Arquivo Público Nacional, volume II, página 272. 68
O inventário encontra-se no Arquivo Nacional, Março 464, Número 8870, Caixa 7148.
274
rosáceas. As pranchas são datadas e revelam fatos interessantes para a análise, apesar da
escassez de exemplares. De Francisco Pedro do Amaral restou apenas um estudo de cabeça
feminina.
Todas as pranchas trazem na parte superior a indicação de quando o aluno entrou no
curso de Manoel Dias de Oliveira. Francisco Pedro do Amaral aparece como o mais antigo,
datando de 26 de dezembro de 1803 o seu ingresso69
. Clemente Magalhães de Bastos se
matriculou pouco menos de cinco anos depois, no dia 5 de setembro de 1808. A parte inferior
das pranchas indica o ano de feitura de cada exercício e o autor do desenho, conforme
podemos ver no estudo de cabeça de Clemente Magalhães de Bastos (Figura 67).
O rosto aparece de perfil, com toques de emotividade surerida pela boca levemente
aberta, a sobrancelha franzida e o olhar arregalado. Este desenho, datado de 1810, mostra
claramente se tratar de uma cópia de gravura, como parte inicial da formação do aluno. Os
dizeres que conferem a autoria trazem a seguinte mensagem: Clemente Magalhães de Bastos
copiou na Aula Régia do Rio de Janeiro 1810 Professor M. D. d Olivra. A menção à cópia
aparece como consciência real de que a proposta do curso não era a de eliminar esta prática,
tão comum e necessária nas oficinas coloniais. O que a Aula Régia de Desenho e Figura
aplicou como processo inovador foi a introdução do aprendizado do desenho como parte
essencial e básica para a profissão de pintor.
69
As frases são sempre as mesmas, no seguinte modelo: Começou o dezenho a...
275
Figura 67 – Clemente Magalhães de Bastos. Estudo de cabeça masculina. 1810. FBN, Rio de Janeiro.
Os escritos mais antigos, como a pequena biografia composta por Moreira de
Azevedo, costumavam insistir na afirmação de que houve aula do nu, o que nos traz algumas
questões para reflexão (AZEVEDO, 1969, p. 276). O nu seria um sério problema na
276
sociedade extremamente conservadora do Rio de Janeiro do início do século XIX, como o foi
em Lisboa, na ocasião da abertura da Aula Régia naquele país. Contudo, o afrouxamento
maior das regras sentido na Colônia poderia ter possibilitado algum exercício do tipo, tendo,
por exemplo, escravos como modelo. A ausência de documentação precisa sobre a atuação da
aula nos deixa apenas hipóteses.
Os dois outros estudos de cabeça de Clemente Magalhães de Bastos nos fornecem
indícios de que são também cópias de gravuras, como exercícios preliminares para a
composição posterior de corpo inteiro (Figuras 68 e 69). Fazem parte do mesmo estilo da
imagem anterior, com ênfase nos detalhes de expressão na área do rosto e no uso dos
sombreados para a criação de efeito de volume. São três fisionomias bem diferentes entre si e
aparentam, a partir do intervalo de dois anos entre as duas – 1810 e 1812 – ter havido
repetição de exercícios até o pleno domínio naquele assunto por parte do aluno. Interessante
notar nestas duas imagens, em comparação com a primeira citada, a parte inacabada da parte
inferior da cabeça, o que parece indicar que toda a atenção recaiu no tratamento da
expressividade das figuras.
277
Figuras 68 e 69 – Clemente Magalhães de Bastos. Estudos de cabeça masculina. 1810 e 1812. FBN, Rio de
Janeiro.
A prancha de Francisco Pedro do Amaral exibe o teor da mesma atividade que
buscava desenvolver a capacidade de captar expressões, ordenar as partes de acordo com as
corretas proporções e criar a volumetria, fundamental para conferir a sensação de
tridimensionalidade (Figura 70). A figura feminina, de idade avançada, fita o espectador com
olhar de desdém. Diferente dos perfis de Clemente Magalhães de Bastos, o presente desenho
está quase frontal, favorecendo a percepção das emoções transmitidas pelos traços de
Francisco Pedro do Amaral. Pela qualidade dos contornos e sutileza das gradações de cinzas,
esta prancha, datada de 1805, desvela a sua longa jornada formativa,desde os tempos em que
iniciou os estudos com o cenógrafo português Manoel da Costa e com o pintor José Leandro
de Carvalho, antes de ingressar na Aula Régia de Desenho e Figura.
278
Figura 70 – Francisco Pedro do Amaral. Estudo de cabeça feminina. 1805. FBN, Rio de Janeiro.
A relação íntima entre a Aula Régia de Desenho e Figura e o trabalho artesanal, este
predominante no mundo colonial até o advento das primeiras fábricas, em meados do século
279
XIX, aparece bem acentuado no exercício decorativo de Clemente Magalhães de Bastos
(Figura 71). O formato de friso com três rosáceas, o qual o aluno também copiou, repete o
mesmo sistema de aprendizado de Manoel Dias de Oliveira em Portugal. Importante dizer que
a instalação da Corte no Rio de Janeiro ampliou a demanda por produções puramente
decorativas, seja para os trabalhos para as construções efêmeras das festas oficiais, seja pela
maior quantidade de nobres interessados em ornamentar suas casas.
Figura 71 – Clemente Magalhães de Bastos. Estudo de friso com rosáceas. 1812. FBN, Rio de Janeiro.
A proliferação dos trabalhos mecânicos após a abertura dos portos, medida que
permitiu o livre comércio de produtos nas ruas da cidade, colaborou para impulsionar a
movimentação das oficinas e a incrementar a economia do período. Assim como na Europa, o
pintor somava aos seus afazeres os diversos tipos de atividades artesanais, consideradas
ofícios mecânicos. Não surpreende que o projeto oficial da Academia Imperial das Belas-
Artes elaborado por Lebreton contivesse no seu conteúdo o desejo de abrir uma instituição
com dupla finalidade, a de ensinar o desenho para as chamadas belas artes e também para os
ofícios mecânicos. Há, por parte de Lebreton, a consciência de que as primeiras ocupavam um
280
patamar de superioridade em relação aos trabalhos artesanais, chegando, inclusive, a separar
os alunos em duas modalidades (BARATA, 1959)70
.
O fracasso da proposta de Lebreton resultou na inauguração de uma instituição voltada
exclusivamente para as belas-artes, dez anos após a chegada dos artistas franceses ao Brasil.
Encerrado no mesmo problema, a anterior abertura do Colégio das Fábricas, em 1809,
também não vingou em uma realidade pautada na falta de estímulos para o desenvolvimento
manufatureiro. Não buscamos aprofundamentos sobre os fatores econômicos aqui envolvidos,
mas esta questão nos parece essencial para fundamentar a manutenção das oficinas coloniais
ao longo de boa parte do século XIX. Eram os mestres oriundos da tradição colonial que
forneciam a mão de obra necessária naquele tempo de crescimento econômico, mantenedores
de um sistema que se encaixava perfeitamente no modelo escravista continuado e desejado
nos dois períodos imperiais.
A Aula Régia de Desenho e Figura significou para a época uma nova possibilidade de
aprendizado, pois sua ação voltava-se mais ao processo de construção do saber através de
exercícios do olhar. No fim, o destino do aluno seria o mesmo, ou seja, o de ingressar no
mercado de trabalho. Não havia outra possibilidade em uma sociedade que via no ofício do
pintor o valor maior na funcionalidade imediata do objeto, deixando a sua característica de
agente produtor de símbolos como algo secundário.
Há indícios de que Manoel Dias de Oliveira tenha implementado a segunda fase
correspondente aos exercícios a partir de objetos tridimensionais, segundo a tradição do
ensino acadêmico. Após a etapa de cópia de gravuras e de pinturas de grandes mestres, o
aprendiz passava a traduzir o mundo dos volumes em superfícies bidimensionais, um estágio
preparatório para a composição a partir do exercício com modelo vivo. Dos desenhos
70
Vale salientar que o nome original da academia seria Real Escola de Ciências, Artes e Ofícios.
281
sobreviventes da coleção da Biblioteca Nacional, há um estudo de osso ligeiramente diferente
dos outros anteriormente analisados (Figura 72).
Clemente Magalhães de Bastos realizou o exercício em 1815, sete anos após o seu
ingresso na Aula Régia de Desenho e Figura. Difícil investigar, pelo menos formalmente, o
avanço do artista a partir da comparação entre os estudos de cabeças e este em particular. São
objetos de naturezas distintas e, devido aos raros exemplares sobreviventes, dizem muito
pouco em relação à aquisição gradual de habilidades técnicas. Entretanto, as informações que
aparecem sempre na parte inferior destas pranchas apontam, neste caso específico, para um
dado diferente em relação às demais. Encontramos a seguinte mensagem: Clemente
Magalhães de Bastos copiou do natural na Aula Régia do Rio de Janeiro 1815. A referência à
cópia do natural sugere a presença real do objeto e não, como nos exercícios de 1810 e 1812,
o uso de fontes impressas.
Se houve a sistematização desta fase do aprendizado, conforme o exemplo de Bastos
indica, a Aula Régia de Desenho e Figura pode ser considerada como uma antecessora da
Academia Imperial das Belas Artes, pelo menos no que se refere à estratégia de ensino do
desenho. Copiar do natural significava traduzir todas as nuances de sombras e luzes e não se
apropriar de fontes que já haviam feito tal tradução. A relação entre o olho que apreende as
formas e a mão que as coloca no papel assume outra dimensão, pois agora a questão da
verossimilhança está diretamente associada a algo que existe fisicamente e não à imagem
criada por terceiros.
282
Figura 72 – Clemente Magalhães de Bastos. Estudo de osso. 1815. FBN, Rio de
Janeiro.
Não obtivemos documentos capazes de fornecer pistas sobre a atuação de Clemente
Magalhães de Bastos após sua passagem pela a Aula Régia de Desenho e Figura, além das
pranchas citadas. Sobre Francisco Pedro do Amaral, sabemos que se tornou discípulo de
Debret logo na ocasião de sua chegada, complementando então a sua longa e variada
283
formação. Há um projeto de sua autoria que certamente merece nossa atenção. Trata-se de
uma planta para a construção de um monumento comemorativo ao dia 26 de fevereiro de
1821, data em que D. Pedro I serviu como mediador entre um grupo revolucionário e o rei,
sobre a exigência de juramento do monarca à Constituição (Figura 73).
Figura 73 – Francisco Pedro do Amaral. Projeto de monumento à memória do dia 26 de fevereiro de 1821, a ser
erigido na Praça da Constituição. 1822. FBN, Rio de Janeiro.
A exaltação da figura heroica de D. Pedro I denuncia a participação indubitável do
pensamento francês, típico do Neoclassicismo de Debret. Um monumento desta natureza,
puramente simbólico, era novidade no ambiente colonial. A cidade conhecia os chafarizes que
mostravam, em alguns exemplares, elementos iconográficos, mas a funcionalidade era sempre
o fator primordial. E era justamente o benefício autenticado pela utilidade do objeto que
mencionava a presença do governo como autor daquela obra. O mesmo ocorreu com o
Passeio Público, projeto grandioso da época colonial, também atrelado ao seu valor utilitário.
284
Os monumentos efêmeros eram mais comuns, geralmente representados pelos arcos de
triunfo, obeliscos e varandas de aclamação, desmontados após as cerimônias oficiais.
Demoraria algumas décadas para que a sensação de memória e de patrimônio começasse a
despontar em um Brasil independente e em busca de identidade. Vale lembrar que Manoel de
Araujo Porto Alegre criticou a falta de investimento do poder imperial para a criação de
monumentos pela cidade, na década de 1850.
Apesar do projeto de Francisco Pedro do Amaral não ter saído do papel, a sua
existência sugere novos rumos da arte no Brasil. Importante destacar no texto que acompanha
o desenho do artista o seguinte trecho: (...) inventado por Francisco Pedro do Amaral no
anno de 1822. Sobre a invenção, vários tratados correntes na época neoclássica exaltam esta
faculdade como uma das principais características do bom pintor. Encontramos em Cirilo
Wolkmar Machado a seguinte afirmação:
A invenção é a poesia da Pintura, e a parte mais própria para descobrir o
talento do artista: ela desenvolve a primeira ideia de toda a obra; e o Pintor
não a deve perder de vista até a última pincelada. Não basta que ele encha um
painel com muitas e boas figuras, se estas não servirem todas para explicar o
principal objeto; e se a totalidade da obra não declarar logo ao espectador qual
é o assunto de que se trata; preparando, e dispondo a mente de quem vê a
pintura, para ser comovida com as expressões, e afetos das figuras principais:
sem o que, de nada serviria dar-lhes expressões violentas e exageradas, como
fazem aqueles que querem afetar muito o espírito. O excesso, ou afetação é a
coisa mais nociva à boa invenção. (MACHADO, 1817, p. 7)
A simplicidade da composição de Francisco Pedro do Amaral se enquadra
perfeitamente nos dizeres de Cirilo. A figura de D. Pedro I, retilínea e austera, assume o topo
do monumento, tendo abaixo mais quatro esculturas. O monumento combina formas
geométricas ligadas à perfeição, como o círculo da escadaria e os módulos quadrangulares das
bases das esculturas. A presença de seres mitológicos acompanhando a figura do imperador
remete ao gosto clássico de apropriação dos significados de força e poder destas personagens
ao contexto do momento, criando uma leitura iconográfica clara e objetiva.
285
Francisco Pedro do Amaral ocupa lugar à parte na história da arte da virada do século
XVIII para o XIX. Experimentou formações de naturezas diversas e concluiu seu aprendizado
como discípulo de Debret, quando reconheceu, como Manoel Dias de Oliveira, a brutal
diferença entre o artesão colonial e o artista intelectual europeu. Participou justamente da fase
crítica em que as realidades sociais distintas começaram a despontar no Rio de Janeiro, cidade
de feições ainda coloniais. De um lado, pintores integrantes da elite política de seu país, como
foram Debret e Taunay na França revolucionária. De outro lado, artistas oriundos das classes
baixas da população, muitos herdeiros da cultura afrodescendente, como o próprio Amaral.
Para o fluminense, o choque entre culturas pesava mais para o lado dos franceses, pois a
clientela do Rio de Janeiro acostumara-se a recorrer aos mestres de oficinas locais.
Apesar da Aula Régia de Desenho e Figura ter sido uma instituição oficial, ela não
contou com nenhum apoio por parte do governo para o seu funcionamento. Na verdade, o
sistema geral de aulas régias foi extremamente precário tanto em Lisboa quanto no Rio de
Janeiro. A substituição de séculos de ensino jesuítico por outro ainda em construção foi um
dos obstáculos enfrentados por todos os profissionais nomeados para a cadeira de ensino.
Manoel Dias de Oliveira obteve apenas a pensão para realizar seu trabalho e nada relacionado
à estrutura, como compra de materiais essencialmente didáticos. As aulas em si foram todas
em sua própria casa, como mencionamos anteriormente.
Ainda nos falta documentação que proporcione a melhor avaliação sobre o contributo
da Aula Régia de Desenho e Figura no panorama artístico fluminense. Podemos apenas supor
que o método de ensino figurou como uma mudança interessante e perceptível no complexo
período em questão, antecipando discussões sobre o fazer artístico e artesanal e sobre assuntos
relativos ao estatuto social do pintor. O fato de Manoel Dias de Oliveira ser tratado como
professor, e não mestre, como nas oficinas de pintura coloniais, revela uma mudança sensível
de tratamento.
286
Sobre os encomendantes, acreditamos que os maiores interessados na abertura e
manutenção da Aula Régia de Desenho e Figura estiveram ligados ao comércio,
principalmente representados por portugueses. A qualidade era cada vez mais exigida na
feitura de objetos, principalmente quando os produtos ingleses começaram a circular após a
abertura dos portos. Não falamos apenas de competitividade dos moldes capitalistas
modernos, mas também da sobrevivência de um setor que envolvia desde professores e alunos
dos ofícios à introdução de seu trabalho no mercado interno, orquestrado por esses
comerciantes.
Foi com a oficialização do ensino de desenho, considerado a base para a pintura e para
as artes decorativas, que a figura do encomendante ganhou uma nova imagem, fora dos
espaços religiosos. Cada vez mais a temática profana, tanto a que ornamentava praças
públicas e peças utilitárias quanto a que dignificava com seus significados personagens
heroicas das pinturas e dos projetos de monumentos, indicava a mudança também de gosto. O
Neoclassicismo penetrou no Brasil a partir da via romana que enfatizava a estética e que se
chocaria com a versão engajada francesa com a presença de Debret. E foi no ambiente de
corte que os diálogos entre as duas vertentes puderam acontecer.
4.3 ARTES E OFÍCIOS A SERVIÇO DA CORTE
Enquanto algumas capitais ilustradas europeias experimentavam o distanciamento
cada vez mais notório entre a arte e os símbolos do Absolutismo no início do século XIX, o
Rio de Janeiro vivenciava exatamente o oposto. A Corte do Príncipe Regente D. João se
estabeleceu na cidade com a tradição imagética do cerimonial pomposo de raízes ainda
barrocas, fomentando uma intensa movimentação que empregou inicialmente os artistas da
287
terra. Após 1816, estes fluminenses encontrariam nos representantes do grupo de franceses,
que se convencionou chamar de Missão, a nova parceria para as tarefas de decoração das
festas oficiais. O fausto característico deste período deslanchou críticas ferrenhas dos
primeiros historiadores da arte, muitos impregnados pelas questões republicanas de início dos
Novecentos. Sobre a época, Gonzaga-Duque registra que:
A chegada de D. João à colônia foi um poderoso incentivo dos progressos de
sua arte. A corte do rei queria embasbacar a multidão indígena com um
pequeno luxo de saltimbancos. Mandava-se retratar, encomendava pinturas
para o muro das habitações; mostrava-se conhecedora do bom gosto. José
Leandro era um pequeno Velasquez dessa burguesia pretensiosa e boçal.
(GONZAGA-DUQUE, 1995, p. 87)
O tom preconceituoso de Gonzaga-Duque vem de um contexto específico que não
poderia enxergar questões mais profundas, como, por exemplo, as realidades culturais
distintas entre os dois grupos de artistas. Nicolas-Antoine Taunay vinha de uma atuante
participação dos Salões da Academia, depois Instituto de França71
. Sua ligação profunda com
as figuras de poder, sobretudo quando Napoleão foi coroado, em 1804, fez dele uma figura
proeminente no mundo das artes. Sua influência colaborou para que o seu nome fosse
indicado a assumir a direção da Academia da França.
Jean-Baptiste Debret foi aluno de Jacques-Louis David a partir de 1783, ingressando
na Academia dois anos mais tarde. Sua formação contou com a proteção deste pintor, o mais
influente do Neoclassicismo francês e que o levaria à Roma logo em 1784. A carreira de
Debret contou com participação ativa nos Salões, com premiações sucessivas. Sua filiação ao
governo napoleônico foi um dos fatores decisivos para o seu crescente prestígio no círculo
artístico parisiense.
71
Em 1795 a Convenção aboliu provisoriamente todas as academias francesas, criando, no seu lugar, o Institut
de France. Anos mais tarde, a Academia da França ressurgiria renovada, sob a influência marcante do pintor
Jacques-Louis David.
288
Quanto aos artistas fluminenses, conforme analisamos com maior profundidade, eles
pertenciam a uma classe social pouco privilegiada, mais próxima dos artesãos. Este fator
refletia diretamente na percepção do cliente em relação a esta parcela do mundo do trabalho,
em muito distanciada do que ocorria na França. Taunay e Debret faziam parte de uma elite
intelectual politizada e participativa, reconhecidos por sua atividade. Eram artistas inventores,
criadores da imagem do Estado. Os pintores coloniais viviam em plena concordância com as
encomendas, dependentes de modelos previamente escolhidos.
A junção dos dois estatutos sociais em um mesmo campo de trabalho suscita reflexões
ainda pouco desenvolvidas pelos historiadores da arte. De um lado, observamos artistas
franceses em um mundo estranho, muitas vezes hostil à sua presença. Apesar do crescimento
acelerado do Rio de Janeiro após a chegada da Família Real, a população ainda carregava
consigo muitas características da época colonial. O incremento do comércio e a proliferação
das modas e dos costumes franceses não alterariam, pelo menos inicialmente, a percepção da
sociedade em relação aos trabalhos considerados de classes menos favorecidas, como era a
pintura. A presença maciça do escravo nos serviços gerais, há muito enraizada na cultura
local, permanecia como um dos fatores mais problemáticos para os franceses na cidade, por
ocuparem, como profissionais, a mesma região dos ofícios das classes inferiores. Demoraria
ainda algumas décadas, muito pelo esforço de Félix Taunay, para a gradual mudança de
comportamento em relação às artes72
.
Romanceado por vários estudiosos do passado, a equipe de Lebreton no Brasil não
encontrou sinais de mercado de arte promissor, como imaginava seu líder, muito menos o
desejo da clientela local de promover mudanças bruscas no cenário arraigado à tradição.
Mencionamos, no capítulo referente à religião, que os consumidores permaneceram fiéis aos
72
Féliz Émile Taunay foi diretor da Academia Imperial das Belas-Artes no período compreendido entre os anos
1834 a 1851. Entre suas conquistas estão a instituição dos prêmios de viagem e a formação da pinacoteca,
avanços consideráveis da década de 1840.
289
artistas coloniais. Como era a porção maior de um reduzido mercado local, diríamos que
Debret e Taunay, sem os serviços solicitados pelas autoridades eclesiásticas, ficaram restritos
ao círculo da Corte, onde encontramos também alguns representantes de artistas fluminenses.
A partir de minuciosa análise documental, Lilia Moritz Schwarcz rediscute pontos
nodais para o entendimento de fatos concernentes à chegada dos artistas franceses no Brasil.
Baseando-se no conteúdo das correspondências entre Lebreton, então secretário perpétuo da
quarta classe de belas-artes do Instituto de França, com representantes da corte portuguesa em
Paris, Schwarcz sugere que não houve convite oficial da Coroa, mas uma inversão, ou seja,
um oferecimento de Lebreton para implantar no Brasil ofícios ligados à indústria e à arte
(SCHWARCZ, 2008, p. 182). A historiadora, sobre as várias proposições acerca do assunto,
expõe a seguinte conclusão:
Hora de dispor as cartas: artistas desempregados ou em vias de perder o
emprego; uma moda francesa nas artes; uma monarquia européia estacionada
nas Américas; uma colônia até então fechada aos estrangeiros – sobretudo
franceses – e com imensas possibilidades de comércio, mercado e artes, e um
príncipe carente de representação oficial. É preciso, pois, combinar isso tudo e
ainda adicionar dois elementos: o papel do Brasil no imaginário francês e o
fato de nossos viajantes saberem que a língua culta da realeza e de uma parte
da elite da corte era justamente o francês. Com todos esses argumentos
reunidos, talvez o mais correto seria pensar que, juntando a fome com a
vontade de comer, os viajantes decidiram partir: alguns financiados, outros
não. Por outro lado, a Coroa só daria seu resguardo e apoio após a notícia da
chegada definitiva dos franceses; ou melhor, com o fato já consumado. Aí,
sim, pagaria pela estada dos artistas em território americano. (SCHWARCZ,
op. cit., p. 188)
Os antigos autores, promotores da ideia do estabelecimento de uma missão no Rio de
Janeiro, foram os mesmos a diminuir, ou suprimir, a importância da arte local daquele
momento. Os franceses seriam os salvadores de uma corte sem imagem, sem aparato e carente
de símbolos. É certo que Manoel Dias de Oliveira e José Leandro de Carvalho não possuíam
tanta experiência na composição histórica, essência do Neoclassicismo francês. Entretanto, os
290
retratos do rei e da Família real e as cenas alegóricas, estas últimas comuns à vertente
neoclássica romana, marcaram a presença dos dois artistas no meio régio.
A construção da imagem heroica do grupo, formado por missionários dispostos a
elevar o reino português à categoria de Corte promotora das belas-artes, esconde as referidas
questões sobre o contato entre as duas realidades. Apesar de Debret praticamente não
mencionar os artistas fluminenses em sua obra Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, no
texto que insiste no pioneirismo de seu grupo (SCHWARCZ, op. cit., p. 192), juntos
produziram as decorações para as festas oficiais, principalmente a Aclamação de D. João VI.
Vale ressaltar que houve pintores viajantes no Rio de Janeiro antes de 1816, mas
nunca com a promessa de uma permanência mais longa e contando com o patrocínio régio.
Acreditamos que estes viajantes esporádicos não tenham influenciado a produção local, ainda
voltada para os espaços religiosos, na sua grande maioria. Ao contrário, morar na cidade
significava vivenciar o seu cotidiano em todos os detalhes, tomar parte de seus costumes,
dialogar com os profissionais da terra e, neste caso, sentir de perto o peso da falta de
patrocinadores regulares e de coleções particulares.
Debret investiu na composição de esboços com a finalidade de instigar D. João VI a
encomendar peças finais, projeto que não gerou frutos. Por outro lado, José Leandro de
Carvalho fora encarregado de decorar toda a Capela Imperial, obra de maior vulto na ocasião.
Debret estava habituado a participar de um ambiente artístico voltado para a construção
simbólica e perene da imagem do poder, com exibições públicas de obras com temáticas
heroicas pautadas na simplicidade formal. No Rio de Janeiro, o pintor envolveu-se na
paradoxal situação de trabalhar com decorações efêmeras das festas reais, com pompa
comparável ao Barroco. Sobre a estranha condição de Debret e de seus companheiros,
Rodrigo Naves apresenta a seguinte análise:
291
Mas eram os franceses, certamente, os mais incomodados com a situação. Pela vivência acumulada, por tudo que tinham passado, dificilmente deixariam
de notar com alguma clareza os lances extravagantes a que se viam obrigados,
na tentativa de fazer resplandecer uma dinastia já sem brilho. Transformados
em atributos de uma personagem senhorial e muito pouco modelar, os
símbolos e episódios do passado perdiam todo o poder normativo que os
caracterizava no neoclassicismo. Eles agora se distribuem a esmo, compondo
uma narrativa alegórica descosida. Em comparação com a força sintética dos
relatos neoclássicos, o simbolismo empregado na aclamação de D. João VI
deveria adquirir uma feição prolixa inevitável. Como o monarca não retira seu
valor e poder de gestos exemplares, e sim de privilégios hereditários, sua
caracterização simbólica se assemelha a um receptáculo de onde se extrai o
que bem entender. (NAVES, 1996, p. 61)
Se a ocasião parecia estranha a quem passara a primeira década dos Oitocentos a
serviço de um império em ascensão, para os artistas fluminenses o resultado de tamanha
mistura de informações serviu como um grande mostruário. Certamente, Manoel Dias de
Oliveira conhecia a iconografia mitológica greco-romana e as fórmulas clássicas, mas aplicá-
las no contexto colonial acontecia apenas na versão reduzida da confecção de painéis
alegóricos. A grandiosidade do aparato simbólico feito para a aclamação de D. João VI, com
templos, colunas, arcos de triunfo, obeliscos e outros elementos típicos do Neoclassicismo,
foi, sem dúvida, a apresentação de todo aquele repertório aprendido em Roma em versão
monumental.
O contributo maior desta atribuição decorativa, que poderia ser vista como fruto de
manifestações frívolas e dispendiosas, foi autenticar o gosto neoclássico que vinha, desde os
fins do século XVIII, em passos lentos. O Passeio Público, a Aula Régia de Desenho e Figura
e a abertura do Real Teatro de São João pontuaram a entrada cada vez mais consistente do
novo estilo. A grandiosidade das cerimônias régias, entretanto, serviu para afirmar com tom
de oficialidade os novos rumos da arte para o número de consumidores em lento e contínuo
crescimento.
292
A partir de 1808 verificamos três tipos principais de clientes: 1) a tradicional parcela
consumidora de imagens religiosas para o culto coletivo e doméstico; 2) a burguesia
comercial local em sucessiva ascensão desde o século XVIII; 3) a Corte, com o seu projeto de
divulgação do poder de amplo aparato simbólico. O primeiro grupo manteve-se conservador
nas suas encomendas, com a mesma proposta de contratar aqueles profissionais encarregados
de reproduzir os modelos previamente selecionados. Percebemos, ao longo dos Oitocentos, o
mesmo exemplo de prestação de serviços às igrejas conforme desenvolvido no século
anterior. O segundo grupo avançou pelo século XIX sem uma identidade própria de
consumidor, tendo o retrato como o principal objeto de encomenda. Esta fatia do parco
mercado de arte passaria também por uma gradual formação de gosto, da mesma forma que a
burguesia metropolitana fora submetida ainda no século XVIII. A Corte, como analisamos
acima, seguiu os moldes das monarquias absolutistas de construção de imagem
propagandística de si mesma, colaborando para direcionar o gosto de acordo com suas
exibições públicas.
Esta característica norteadora de modas e estilos expõe a essência da arte de corte. Sua
influência penetra nos espaços religiosos, colaborando na produção de painéis que assumem,
cada vez mais, as feições sóbrias e contidas do Neoclassicismo. Empresta também o seu
receituário formal à burguesia, ainda sem imagem, e que buscaria seguir o caminho da
nobreza diretamente associada ao rei. Quando figuras ligadas ao poder começaram a decorar
suas casas com pinturas alegóricas e decorativas, algo inovador para uma cidade sem este
costume, os comerciantes mais abastados passaram a adotar a mesma postura. Sabemos que
Francisco Pedro do Amaral realizou vários serviços desta natureza (SANTOS, 1942, p. 540).
Como professor da Aula Régia de Desenho e Figura, Manoel Dias de Oliveira era
oficialmente um artista a serviço de D. João VI. Sua atuação marcante entre 1808 e
1821confirma a sua condição de pensionista da Corte. O último trabalho conhecido, a
293
Alegoria do nascimento de Dona Maria da Glória, data de 1819 e possui dimensões
consideráveis (Figura 74). A composição segue os mesmos princípios neoclássicos discutidos
anteriormente, como a disposição das personagens em forma de friso, a distribuição uniforme
da luz, a preferência por poses contidas e a ordenação harmônica das massas. O formato da
tela sugere a função decorativa para comemoração do fato representado, o nascimento da
primogênita do futuro imperador do Brasil.
A Família Real aparece em cena que mistura personagens históricas de Portugal com
várias referências mitológicas, como a deusa da sabedoria Minerva, a personificação do
Tempo e as Musas das Artes, entre outras. A narrativa alegórica funciona como uma
exaltação ao evento, criando o sentido quase místico e atemporal ao nascimento da princesa,
cujo retrato é exibido no canto superior esquerdo. Ela surge conduzida por uma figura alada,
pronta a anunciar sua chegada com uma corneta.
Este painel se insere na prática comum, a qual também Debret esteve submetido, de
consagrar a imagem régia a partir de combinações de elementos simbólicos destinados a uma
narrativa estritamente elogiosa. Interessante notar que esta prática se difundiria para além das
esferas nobiliárquicas, somando aos retratos um teor alegórico evocativo de virtudes nem
sempre verificáveis no mundo real. O século XIX se mostraria, assim, como um período
basicamente imagético, no qual a fotografia chegaria mais tarde como porta-voz desta nova
era da visualidade.
294
Figura 74 – Manoel Dias de Oliveira. Alegoria do Nascimento de Dona Maria da Glória. 1819. 95 x 171 cm.
Óleo sobre tela. IHGB, Rio de Janeiro.
Manoel Dias de Oliveira foi destituído do cargo após o retorno de D. João VI a
Portugal. Não dispomos de dados explicativos sobre a decisão de D. Pedro I, mas acreditamos
tratar-se do desejo de Henrique José da Silva de centralizar o ensino da arte em uma única
instituição73
. Independentemente das reais intenções naquele momento, vemos na carreira
longa e promissora do pintor fluminense um marco das transformações ocorridas no campo
das artes da virada do século XVIII para o seguinte. Reunimos em seu nome o incremento do
ensino do desenho, a filiação do ofício à crescente atividade fabril, o reconhecimento lento,
porém gradual da importância do pintor na sociedade, muito pelo contato com a realidade de
Debret e dos demais artistas franceses, e a participação ativa da mudança de gosto no Rio de
Janeiro.
Vale acrescentar que a sua ação constante no cenário artístico das duas primeiras
décadas do século XIX colaborou, juntamente com outras personalidades, para a formação do
73
Henrique José da Silva foi ilustrador e desenhista português, nomeado diretor da Academia antes mesmo que
ela possuísse instalações próprias.
295
gosto classicista mais acentuado. Se Manoel Dias de Oliveira aproveitou pouco a presença
ainda pontual da burguesia no campo das artes, ao menos contribuiu como semeador para as
gerações futuras. Esta parcela da sociedade encontraria na Academia Imperial das Belas-
Artes, décadas mais tarde, a fonte mais sistematizada para a construção de sua própria
identidade. Identidade esta pautada no dinamismo típico do mundo dos negócios e,
provavelmente, um dos fatores influenciadores para que a instituição assumisse feições
tipicamente modernas. Afinal, raras foram as academias no mundo que assimilaram correntes
como o Realismo, o Simbolismo e o Impressionismo.
As duas primeiras décadas do século XIX foram decisivas para as transformações no
campo das transações entre encomendantes e pintores. Vários fatores em conjunto
colaboraram para a crescente valorização destes artistas na comunidade, sendo a presença
física da Corte no Rio de Janeiro o marco fundamental. O fato de José Leandro de Carvalho
receber o título nobiliárquico de Cavaleiro da Ordem de Cristo, conforme mencionamos
anteriormente, denota claramente a mudança de rumo. O máximo alcançado por um pintor no
caminho da ascensão social era a nomeação para algum posto militar. Raimundo da Costa e
Silva foi Capitão do Regimento dos Pardos, ainda nos Setecentos.
José Leandro de Carvalho contribuiu ativamente na composição e consolidação da
Sociedade de São Lucas, aberta em 1827 pelo também pintor Francisco Pedro do Amaral.
Não resta dúvida de que houve intensa mobilização por parte destes profissionais na tentativa
de impor melhorias nas condições de trabalho. Uma organização desta natureza tinha como
princípios básicos a discussão sobre direitos e deveres e a conquista de garantias nas relações
com os contratantes. Podemos supor que a diversificação maior na produção, os diferentes
perfis de encomendantes e a distinção entre as formas de elaborar contratos tenham
dinamizado a concepção de uma classe em busca de unidade. Não podemos negar a
296
importância de se ter um grupo de artistas franceses por perto, detentores de elevado estatuto
social conquistado há gerações.
Acompanhando as lentas, mas graduais transformações, o Neoclassicismo foi se
firmando como estilo dominante das primeiras décadas dos Oitocentos. Inicialmente
associado aos interesses da burguesia comercial, ele ampliou seu campo de atuação para
atender às necessidades imagéticas de uma corte em plena construção simbólica. O caminho
parece inverso do que ocorreu em centros como Paris e Roma. Incluído em um contexto
extremamente paradoxal, o Neoclassicismo se instaurou em um local distante de sua origem
cultural, o que foi sentido principalmente por Debret. Dissociado de suas questões primeiras,
o estilo emprestou sua forma e seu conteúdo a quem os desejasse, sem engajamentos ou
tentativas de compor identidades de classe.
297
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Lidar com assuntos de um passado distante requer do historiador o uso de ingredientes
muitas vezes estranhos à primeira vista, pelo menos como mistura para um único fim. O
caráter científico da investigação tem nas fontes primárias e secundárias o elo de existência
física daquilo que se quer conhecer. Em alguns casos, o fato deixa tão pouco lastro que a sua
vivência se agarra a alguns fios de possibilidades, ancoradas somente em hipóteses
necessariamente bem fundamentadas. Aqui, o cientificismo cede lugar aos vários
questionamentos sobre coisas indiretas, às informações provenientes da tradição oral ou às
observações de vestígios, os quais sugerem mais do que afirmam.
No caso do historiador da arte, a partida começa justamente com a existência física do
objeto, o qual não deixa dúvidas de que ele participou de um tempo e que também
desempenhou a sua função. Ali, diante do pesquisador, ele apresenta os seus elementos da
forma e os indícios de seu conteúdo, as primeiras e tão importantes pistas para o início das
investigações. Se ele continua em seu local de origem ou se foi descontextualizado, cabe ao
profissional decifrar, pois este fato revela a sua essência, o motivo de sua feitura. Daí, o
objeto parece apontar caminhos, a falar sobre arquivos, a desvelar as mãos que o fizeram, a
mostrar o rosto de quem o encomendou. Do particular ao geral e, após a longa trajetória de
pesquisa, retornar no caminho inverso, ou seja, do geral ao particular, o historiador da arte
298
percebe que no seu ofício de investigador as trilhas são raramente retilíneas. E, muitas vezes,
sem saída.
Em nosso estudo sobre a pintura colonial fluminense, escolhemos muitas trilhas que
foram proveitosas e outras que resultaram em enganos ou em impossibilidades, logo
descartadas. Poderíamos enumerar os problemas relacionados a esta época específica em uma
lista razoavelmente grande, mas destacamos unicamente o descaso com os documentos do
passado por parte de seus detentores. Mesmo que o historiador da arte conte com o seu
monumento vivo e na condição presencial, a colaboração de informações documentais
consiste em ajuda providencial em casos diversos. As lacunas que insistiram em permanecer
foram amenizadas com aquela via em que o cientificismo da metodologia de pesquisa
encontrou no bom senso e nas variáveis indiretas as possibilidades de se formar uma
discussão coerente.
O primeiro capítulo discutiu assuntos relacionados à pintura setecentista portuguesa. O
intuito foi o de absorver daquela experiência elementos substanciais na tentativa de suprir
parte das lacunas mencionadas acima. Seriam, grosso modo, as informações aparentemente
indiretas, mas que poderiam conter questões aplicáveis ao nosso estudo sobre o mesmo
período na Colônia. Para a nossa surpresa, muito do que ocorreu na Metrópole chegou,
mesmo que diluído, nas oficinas locais fluminenses. Não falamos apenas da visível filiação
estilística e iconográfica, mas também das alterações dos sistemas de ensino e aprendizagem e
no florescimento de uma nova parcela consumidora de arte. A Aula Régia de Desenho e
Figura do Rio de Janeiro seguiu a esteira de sua antecessora lisboeta, evidenciando interesses
parecidos nos dois lados do Atlântico. A burguesia comercial, apadrinhada pelo Marquês de
Pombal, se comportou de maneira análoga no Brasil, ou seja, iniciou a sua longa jornada de
formação como consumidora de arte.
299
Podemos dizer o mesmo sobre o estatuto social do pintor. Se em Portugal houve
grupos atualizados quanto ao problema da falta de uma Academia, sua condição perante a
sociedade demoraria muitas décadas para alcançar o prestígio que almejavam. Vimos o
quanto André Gonçalves e Cirilo Wolkmar Machado, ao longo dos Setecentos, lutaram para o
incremento do ofício do pintor. Na Colônia, esta condição de inferioridade era agravada pela
posição social dos artistas, estes pertencentes a classes menos favorecidas da população.
Também não houve academias e, muito menos, círculos de discussão sobre os tratados ou
questões de estética.
Quanto aos modelos formais e iconográficos, a Itália ditou os padrões de quase todo o
século XVIII. E era esta a fonte importada pelas oficinas coloniais através das gravuras de
tradução e de registros de santos. A temática cristã foi majoritária nos dois universos,
colocando a Igreja como a principal encomendante da época. E foi esta arte para o divino, de
matriz italiana, o nosso estudo do segundo capítulo. Vimos o quanto a presença do cliente
proveniente das irmandades e ordens religiosas criou uma relação pautada pelo
conservadorismo. Não poderia ser diferente: os espaços sagrados não eram os melhores locais
para experimentalismos e invenções, algo que o próprio Concílio de Trento havia descartado.
Assim, as alterações maiores aconteciam na esfera do formalismo, permanecendo a
iconografia rigorosamente atrelada ao seu modelo.
Como em Portugal, a pintura religiosa colonial foi acumulando estilos sem aquele grau
de transformações verificáveis dos maiores centros culturais, como Roma e Paris. Assim,
observamos a tradição fortemente enraizada do Barroco mantendo elementos maneiristas e
assimilando, momentos depois, parte da gramática rococó. Esta mistura foi ainda mais
acentuada no Rio de Janeiro pela sua condição periférica peculiar, pois a cidade vivia sob o
isolamento do sistema mercantilista imposto pela Metrópole. Esta situação colaborou para
suavizar o sentido original do estilo e adaptá-lo a outra realidade cultural e social. Por isso a
300
dificuldade em dizer se um pintor fluminense era barroco ou rococó, por exemplo. Ele era
tudo, de acordo com a vontade de seu cliente, o responsável pela escolha da gravura modelo.
Sobre a temática religiosa, destacamos o acervo da Santa Casa de Misericórdia como
um depositário de considerável número de obras ainda por pesquisar. Buscamos selecionar
inicialmente peças de fácil acesso, com a clara intenção de divulgar nossas discussões a um
público mais amplo, além da esfera acadêmica. Acreditamos que o conhecimento sobre o
patrimônio histórico e artístico seja a principal ferramenta para a sua preservação, com a
percepção de que ele compõe parte inarredável da construção de nossa identidade como
nação. Registramos apenas a crítica contra as instituições que não costumam colaborar para
pesquisas de cunho acadêmico e, consequentemente, de cunho social, contribuindo para a
manutenção de dúvidas de naturezas diversificadas.
Do mesmo acervo reside quantidade razoável de retratos do século XVIII. Sabemos,
por fontes históricas, que havia o claro desejo da burguesia mercantil de participar desta
influente irmandade e que os mais abastados conseguiram realmente ingressar nela. Como os
nobres que encomendavam seus retratos, os comerciantes também o fizeram, na tentativa de
se colocar na mesma posição social dos demais através da apropriação de seus símbolos. No
terceiro capítulo, então, realizamos reflexões teóricas sobre os retratos de figuras ligadas ao
poder, sobretudo na fase de D. João VI no Rio de Janeiro. Apontamos, no entanto, a
possibilidade de existirem exemplares ligados a comerciantes de grosso trato, conforme
sugerem as biografias dos pintores que mencionam este tipo de relação de encomenda.
Em ambiente marcado pela hierarquia social fortemente instaurada, as personalidades
dignas de possuírem seu retrato seriam originárias da elite nobiliárquica e, a partir da segunda
metade do século XVIII, da alta burguesia comercial. Vimos que estas parcelas da sociedade
teriam condições de desenvolver a consciência individual como forma de superioridade em
301
relação aos demais, além da necessidade de afirmar seu prestígio através da linguagem visual.
No caso da Família Real, o retrato foi herdeiro de uma estrutura maior e mais elaborada de
construção simbólica da imagem régia, por isso a sua quantidade abundante e repetitiva na
forma.
Ainda nos faltam dados suficientes para compormos perfis mais consolidados dos
clientes de retrato. Salvo D. João VI, os demais retratáveis aparecem mencionados em estudos
de história econômica como os destacados da sociedade, mas ausentes nas encomendas deste
gênero de arte em geral. Como ocorreu em Portugal, parte da burguesia mercantil passou por
um processo de formação estética lenta e gradual, o que poderia ter se repetido na Colônia.
Outro ponto fundamental refere-se ao valor da pintura religiosa, talvez o tema mais cobiçado
e consumido através de doações às irmandades.
A relação de maior visibilidade entre o mundo dos negócios e a arte parece ter
ocorrido com a abertura da Aula Régia de Desenho e Figura, nosso capítulo final.
Romanceada pelos primeiros historiadores como antecessora da instituição fundada pelos
artistas franceses, esta aula nasceu com natureza distinta das academias, pois visava,
sobretudo, o trabalho voltado para as artes aplicadas, apesar de ter formado artistas como
Francisco Pedro do Amaral. O mercado interno em plena ascensão, principalmente após a
abertura dos portos em 1808, colaborou para a profissionalização do artesão local como mão
de obra barata e, ao mesmo tempo, com maior qualificação. Vimos que a formação de seu
professor primeiro, o pintor Manoel Dias de Oliveira, teve na figura do negociante, desde o
início de sua carreira, o papel preponderante para o seu sucesso. Este tipo de apadrinhamento
era comum em Portugal, conforme estudamos, por exemplo, no caso do pintor Viera
Portuense.
302
Da temática religiosa ao funcionamento da Aula Régia de Desenho e Figura, a imagem
do encomendante assumiu diferentes fisionomias. No interior da irmandade, por exemplo, ele
se perdia no papel coletivo deste tipo de organização, criando com a arte uma parceria de
incremento ao culto ou, no caso do retrato, de afirmação de benesses feitas para a sociedade.
No entanto, acreditamos estar justamente no seio das irmandades a maior variedade de
clientes coloniais, pois a heterogeneidade característica destas instituições e a necessidade de
pertencimento a elas reuniam do escravo à nobreza em seus grupos.
Como qualquer trabalho de pesquisa sobre a pintura colonial, este se apresentou como
uma possibilidade de discussões mais aprofundadas sobre diversos aspectos e, certamente,
como um convite a novas abordagens a partir de então. As lacunas que ora permaneceram
inalteradas poderão, mais adiante, ser resolvidas se peças desaparecidas ou de documentos
ainda não conhecidos forem desvelados. Oferecemos, como base, o assentamento do pintor
fluminense em uma estrutura sociológica para darmos um contexto mais coerente ao fazer
artístico daquele período. Sem o teor romântico dos primeiros escritos e os preconceitos de
outros autores, recolocamos o pintor em sua posição intermediária entre o estatuto do artesão,
mais comum, e o do artista, conseguido, principalmente, após a instalação no Rio de Janeiro
de uma colônia de profissionais franceses.
Do mesmo modo que a História do Brasil caminha com passos firmes para repensar
muitos fatos consolidados pela repetição que se torna tradição, a História da Arte no Brasil se
impõe cada vez mais como área do saber disposta a rever seu campo de ação e sua
metodologia. Decerto não podemos dissociar a arte colonial de sua matriz portuguesa, lição
maior que as trilhas da pesquisa nos guiaram neste trabalho. Deixamos, como lembrança, a
verdade de que cada época possui sua importância e sua especificidade, mesmo que as
dificuldades do meio tenham impedido o desenvolvimento de uma arte nos moldes
acadêmicos. Manoel de Araujo Porto Alegre se referiu, em seu estudo inaugural, aos pintores
303
coloniais como seres valentes. Foram, na verdade, profissionais perfeitamente adaptados à
sociedade a que serviram, pois um lado sempre impulsiona o outro no mecanismo complexo
do consumo. Eles produziram exatamente aquilo que se esperava naquela realidade,
colocando o conceito de qualidade como algo flexível e dependente de sua origem.
304
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Ano 1732.
Arquivo Nacional. Livro de funerais e mais sufrágios da Santa Casa de Misericórdia. De
1792 a 1854, folha 22.
Arquivo Nacional. Folha 60 do Livro 10 das Publicações do Arquivo Público Nacional.
volume II, página 272.
Arquivo Nacional. Inventário. Março 464, Número 8870, Caixa 7148.
314
ANEXOS
315
ANEXO 1
O Paiz, 05 de novembro de 1889
Fonte: Seção de Periódicos da Fundação Biblioteca Nacional.
ARTES - França Júnior
Na semana passada fui na Academia das Bellas Artes.
O que me levou àquela casa foi, além do prazer que sinto todas as vezes que visito a
sua pinacotheca, a curiosidade de ver um antigo painel pertencente à capela imperial, o que ali
se está restaurando.
Este painel, que representa a família do príncipe regente em adoração aos pés da
Virgem do Monte Carmelo, tem uma história importante, e recorda o período em que as artes
relativamente mais floresceram no Brazil.
Nos séculos XV, XVI, XVII e XVIII os papas, as testas-coroadas e os grandes
senhores faziam-se retratar com os santos de sua devoção.
As galerias artísticas e as sumptuosas cathedraes da velha Europa estão cheias desses
quadros nativos firmados pelos nomes os mais gloriosos do primeiro Renascimento, que
surgiu por detrás dos Apeninos como um grande pharol a illuminar o mundo, e do segundo,
que desmaiou, pode-se dizer, apenas nasceu em França, depois de um largo período de
decadência.
316
O painel é considerado uma das melhores obras do notável artista José Leandro de
Carvalho.
Digno rival de seu chara Leandro Joaquim, o célebre pintor dos quadros da igreja do
Parto, reconstruído por Luiz de Vasconcellos, depois de um grande incêndio, José Leandro
deixou-nos os melhores retratos de el-rei D. João VI, que encontra nelle, para bem dizer, o seu
Apelles.
O painel, que mede 32 palmos de comprimento e 15 de largura, representa na parte
inferior os retratos em corpo inteiro da rainha D. Maria I, que conduz pela mão o príncipe D.
Pedro, e do Sr. D. João VI e da rainha D. Carlota. A parte superior é ocupada pela Senhora do
Carmo, cercada de anjos, tendo um delles uma palma e outro um escudo, onde está escripta a
seguinte legenda: Sub tuum praesidium confugimus. As pessoas reaes, que figuram do lado
direito da composição, são também guardadas por dois anjos, um dos quaes sustenta uma
esphera, onde se lê o seguinte: Nostra deprecationes ne despicias.
Bastante estragado pelo tempo, e estendido sobre uma larga mesa, em vasta sala, onde
outros quadros sombrios, com massas denegridas de betume, pareciam dormir tranquilos
como em uma necropolis o mesmo somno do esquecimento, não pude apreciar segundo
desejava todas as belezas da composição.
Vi, porém, que as figuras eram perfeitamente pintadas.
O colorido conserva ainda todo o vigor.
A technica resente-se entretanto da maneira do tempo, se bem que notam-se em alguns
pontos do quadro pinceladas de grande ousadia.
Disse que o painel tinha uma história.
317
E esta história é infelizmente bem triste, porque foi ella, para bem dizer, a causa da
morte do grande pintor.
Ninguém ignora o quanto se exaltavam os ânimos e o que fez a política, que é a sujeita
mais desbragada que conheço, nos acontecimentos de 1831.
A arte, que paira em uma athmosphera límpida e serena com as aguras do antigo céo
de Thessalia, que deverá escapar pela nobreza de seu caráter e da sua missão às lutas de
pequenas misérias e ambições, soffre e bebe muitas vezes até as fezes a taça da armagura,
quando, como um leão indomável, se convulsiona a terra em que ella viu a luz e floresceu.
A mão sacrílega do Courbet, um artista e um artista de gênio, para maior vergonha
sua, deita abaixo a columna de Vendôme!
As balas de Napoleão I não pouparam o Cenacolo de Leonardo da Vinci!
A Venus de Millo, o mais bello padrão que nos legou a estatuaria romana, se não
tivessem enterrado como um thesouro precioso, na ultima guerra que ensanguentou a França e
a Allemanha, não estaria ainda hoje com a sua serenidade olympica inundando de luz a sala
do Louvre.
A política vitimou o painel de José Leandro.
Era preciso pensar uma esponja destruidora sobre aquellas figuras reaes.
Dessa missão foi incubido o pintor Debret.
Debret porém era artista, e artista de coração.
Rejeitou.
O seu pincel creava, não destruía.
318
O que não fez, porém, o pincel de um pintor de raça, fe-lo a brocira do caiador.
As figuras de el-rei e de D. Maria I, do príncipe D. Pedro e de D. Carlota
desapareceram sob informes camadas de tinta e pretendendo figurar uma montanha.
O sicário que commetten tal attentado não teve felizmente a ideia de passar a
raspadeira sobre aquellas figuras antes de pintar o pretenso monte.
Leandro não pode resistir ao mutilamento de uma de suas mais bellas obras.
Tempos depois entregava a alma ao Creador.
Dezenove annos esteve occulto a parte inferior do painel.
Felizmente em 1850, se a memória não me falha, o artista João Caetano Ribeiro, um
dos mais notáveis seenographos que temos tido, encarregado de retocar a obra de José
Leandro, fez surgir, por meio de agentes chímicos, das camadas de betume da fatídica
montanha as ephigies da família real.
E a elle deve-se hoje o quadro, tal qual como saiu das mãos do pintor.
Olhando para aquelle painel e para outro que lhe estava ao lado, também pertencente à
capela imperial, o que representa a Ceia do Senhor, trabalho do artista Raymundo, via desfilar
diante de mim todo o nosso passado artístico.
O período colonial desenha-se-me na imaginação como Franz Post e Van Eckant, que
no domínio hollandez foram os primeiros que desbravaram aos europeus as fascinações da
linha e da cor da natureza tropical.
Lembrei-me de frei Ricardo do Pilar, esse pintor que se fez monge beneditino e que é
o ponto de partida donde surgiu a escola de Leandro Joaquim, José Leandro, Manoel da
Cunha, Raymundo e tantos outros.
319
A figura gloriosa de Valentim da Fonseca, o qrtista daquella época que mais produziu,
passou-me pela mente com jaqueta preta, o seu calção de ganga, o seu capoto de cabeção e o
chapéu de três bicos.
Vi depois chegar às plagas guanabarenses a família Taunay, essa família abençoada, a
quem o Brazil do passado deve uma geração de artistas, e a do futuro há de dever, no actual
rebento della, ainda cheio de vigor e de crenças, a consolidação da grande obra de 13 de maio.
Ao lado de Nicolao Taunay, Augusto Taunay e Felix Taunay, via Grandjean de
Montigny, o architecto, Debret o pintor, e Ferrez o gravador.
E pergunto a mim próprio:
_ Estaremos hoje mais atrazados em artes que no período colonial e no tempo do Sr.
D. João VI?
Na próxima terça-feira, se Deus me der vida e saúde, hei de dizer o que penso a
respeito.
320
ANEXO 2
Certidão de Óbito de Manoel Dias de Oliveira, 25 de abril de 1837.
Fonte: Arquivo Nacional.
Livro de funerais e mais sufrágios da Santa Casa de Misericórdia, de 1792 a 1854, folha
22.
Aos vinte e cinco de Abril de mil oitocentos e trinta e sete, faleceu com todos os Sacramentos
e sem testamento Manoel Dias de Oliveira, de idade de setenta e trez annos e quatro mezes e
trez dias, casado com Dona Maria Fiorencia de Jesus, deixou nove filhos seus universaes
herdeiros, de nomes, Luiz Manoel de Oliveira Dias, Candido Manoel de Oliveira Dias,
Joaquim Manoel de Oliveira Dias, Augusto Candido Dias, Emilia Justina Dias, Bernardina
Joaquina Dias, Candida Dias Manuel, Maria Candida Dias, e Carlota Joaquina Dias:
amortalhado em hábito franciscano, encomendado solemnemente pelo Reverendo Parocho, e
mais Sacerdotes e Sepultado de licença na Capella da Santa Casa de Misericórdia, de que fiz
este assento e assignei.
“O Coadjutor Hygino Avaro Delgado Pimenta”.
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