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LUIZ GUSTAVO GAVIÃO RELAÇÕES COMPLEXAS: Pintores fluminenses e seus encomendantes 1763-1821 Tese de Doutorado em História e Teoria da Arte apresentada ao Programa de Pós-Graduação Escola de Belas Artes, UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em História e Crítica de Arte. Orientadora: Cybele Vidal Neto Fernandes Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de Letras e Artes Escola de Belas Artes Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais Rio de Janeiro

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LUIZ GUSTAVO GAVIÃO

RELAÇÕES COMPLEXAS:

Pintores fluminenses e seus encomendantes 1763-1821

Tese de Doutorado em História e Teoria da Arte apresentada ao Programa de Pós-Graduação Escola de Belas Artes, UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em História e Crítica de Arte.

Orientadora: Cybele Vidal Neto Fernandes

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Centro de Letras e Artes

Escola de Belas Artes

Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais

Rio de Janeiro

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GAVIÃO, Luiz Gustavo

Relações Complexas: pintores fluminenses e seus encomendantes

1763-1821. Rio de Janeiro, UFRJ, EBA, 2010.

312f.

Tese: Doutor em História e Crítica da Arte

1 . Escola Fluminense de Pintura 2 . Relações de encomenda

3 . Sociologia da Arte

I . Universidade Federal do Rio de Janeiro

II . Título

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Para Norma Miranda Lavado Em memória

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AGRADECIMENTOS

A Carmen Lúcia Lavado Gavião e Adaltro Magalhães Gavião, pelo apoio neste caminho fascinante da História da Arte, mesmo na época em que revelei a verdade sobre minha aprovação no vestibular. É, meus pais, não era Engenharia... A Norma Miranda Lavado, minha avó que sabia desde o início o meu pequeno segredo e que hoje torce por mim lá do alto. A Cybele Vidal Neto Fernandes, pela orientação preciosa, apesar dos meus problemas com o tempo. A Marco Aurélio Cardoso, pela amizade infinita, paciência e confiança na qualidade de meu trabalho. A Carla Santoro, Rodrigo Becker, Rogério Vasconcelos, Sonia Passos e Cristina Melo, pela amizade e carinho. A Marcia Miranda, Ulício Junior, Luiz Fernando de Moraes, Luiza Silveira, Elisabete Rovari e Rafael Paiva, pela formação de um grupo amigo de professores que tanto colaborou para a renovação das minhas fontes de inspiração e reflexão. A Inês Senra e Alzira Batalha, pela contribuição nos assuntos relacionados à Aula Régia em particular, e à Educação em geral. A Gustavo Schnoor, por ter percebido, no início de minha formação, certa vocação para estudar o passado colonial. A Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira, professora responsável pela confirmação da vocação descrita acima. A Daniela Chindler, por ter me mostrado como ampliar meus limites como pesquisador e teórico. A Claudia Fadel, Diretora da Escola SESC de Ensino Médio, pelo interesse em compor um quadro de professores pesquisadores e pelo apoio aos que estão em formação. A Tathyane Ferreira Höfke e Reginaldo da Rocha Leite, parceiros queridos nos ambientes da Escola de Belas Artes e fora deles também. A Irmandade de São José, pela confiança em disponibilizar o material necessário à pesquisa. As Instituições IPHAN, IHGB, Biblioteca Nacional, Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, Museu Histórico Nacional e Museu de Arte Antiga de Lisboa, pela acessibilidade e respeito ao pesquisador.

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Os físicos às vezes dizem medir o tempo. Servem-se de fórmulas matemáticas nas quais o tempo desempenha o papel de um quantum específico. Mas o tempo não se deixa ver, tocar, ouvir, saborear nem respirar como um odor. Há uma pergunta que continua à espera de resposta: como medir uma coisa que não se pode perceber pelos sentidos? Uma hora é algo invisível.

Norbet Elias

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RESUMO

Relações Complexas: Pintores fluminenses e seus clientes 1763-1821

GAVIÃO, Luiz Gustavo. Relações complexas: pintores fluminenses e seus clientes. Rio de

Janeiro, 2010. Tese (Doutorado em História e Crítica da Arte) – Escola de Belas Artes,

Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.

Estudo da pintura colonial fluminense, do período entre 1763 a 1821, na concepção da

sociologia da arte através da análise da relação entre o encomendante, a obra e o profissional.

A partir da percepção de que a figura do cliente participa de maneira decisiva na produção

local, é elaborado um roteiro de investigação que perpassa as funções dos objetos através de

suas origens, simbólicas e utilitárias. Para tanto, as funções são pensadas por filiação temática,

considerando a mensagem da pintura como elemento diretamente associado ao espaço

específico a que foi destinada. A análise presencial das obras selecionadas e a consulta aos

documentos sobreviventes e disponíveis são as bases para a identificação do perfil do

encomendante e de sua atuação na transformação estilística e iconográfica da época. Inclusão

da burguesia comerciante como consumidora potencialmente ativa nos oitocentos,

protagonista de mudanças significativas no cenário artístico fluminense, como a abertura da

Aula Régia de Desenho e Figura. Discussão sobre a complexidade do período e de sua

importância para a construção de uma história positivamente valorativa, eliminando os

vestígios ainda presentes do tom pejorativo em torno da pintura colonial.

Palavras-chave: Pintura colonial, encomendantes, século XVIII, Sociologia da Arte.

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ABSTRACT

Complex Relations: Fluminense painters and their clients 1763-1821

GAVIÃO, Luiz Gustavo. Relações complexas: pintores fluminenses e seus clientes. Rio de

Janeiro, 2010. Tese (Doutorado em História e Crítica da Arte) – Escola de Belas Artes,

Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.

The study of the fluminense colonial painting in the period from 1763 to 1821, by the

art sociology theory that analyses the relation among clients, works of art and artists. Starting

with the perception of the client as a participative agent in the local production of art, this

research investigates the symbolic and utility functions of the objects since their origins.

These functions are studied by the paintings´ themes that consider the message as an essential

element deeply linked to the work of art´s specific location. The direct contact with the

selected paintings and the investigation of the preserved documents are the bases to identify

the clients’ profile and their contribution to transform the style and the iconography of the

period. The bourgeois is included as an important client in the eighteenth century, an actor

who promotes significant changes on the colonial artistic production, like the opening of the

Aula Régia de Desenho e Figura. This research discusses the colonial period´s complexity

and its importance to compose a positive history, trying to eliminate still surveying prejudices

over this subject.

Key Words: Colonial painting, clients, eighteenth century, art sociology.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 Luis Michel van Loo. Retrato do 1o Marquês de Pombal, Sebastião José de

Carvalho e Melo. 1766. Óleo sobre tela. 2230 x 3040 cm. Museu Nacional de

Arte Antiga, Lisboa.

Figura 2 André Gonçalves. Assunção da Virgem. C. 1730. Óleo sobre tela. 3570 x 2520.

Mafra, Lisboa.

Figura 3 José de Oliveira Rosa. Santa Bárbara. 1769. Óleo sobre tela. Igreja de Nossa

Senhora de Monteserrate, Rio de Janeiro.

Figura 4 Vieira Lusitano. Santo Agostinho pisando na heresia. 1736. Óleo sobre tela.

MNAA, Lisboa.

Figura 5 Linhas de força.

Figura 6 Pedro Alexandrino de Carvalho. Salvador do Mundo. 1778. Óleo sobre tela. Sé

de Lisboa.

Figura 7 Vieira Portuense. Juramento de Viriato. 1799. Gravura de Francesco

Bartolozzi. 42 x 28.9 cm. Biblioteca Geral da Faculdade de Ciências do Porto.

Figura 8 Vieira Portuense. Dona Filipa de Vilhena arma os filhos cavaleiros. 1800-1801.

Óleo sobre tela. 152 x 213 cm. Coleção particular.

Figura 9 Domingos Antonio de Sequeira. Alegoria à Casa Pia. Óleo sobre tela. MNAA,

Lisboa.

Figura 10 Domingos Antonio de Sequeira. Estudo para Alegoria à Casa Pia. Desenho.

MNAA, Lisboa.

Figura 11 Domingos Antonio de Sequeira. Retrato do Conde de Farrobo. 1813. 110 x 68

cm. MNAA, Lisboa.

Figura 12 Cirilo Wolkmar Machado. Estudos anatômicos. 1823. Folha 141.

Figura 13 Peter Paul Rubens. A Descida da Cruz. Óleo sobre madeira. 462 x 341 cm.

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Catedral de Antuérpia.

Figura 14 Manoel da Cunha e Silva. A Descida da Cruz. Óleo sobre madeira. Igreja de

Nossa Senhora do Bonsucesso, Rio de Janeiro.

Figura 15 Forro da capela-mor da Igreja de Nossa Senhora do Carmo, Rio de Janeiro.

Figura 16 Manoel da Cunha e Silva. Nossa Senhora das Vitórias. Século XVIII. Óleo

sobre madeira. Igreja de São Francisco de Paula, Rio de Janeiro.

Figura 17 Leandro Joaquim. Nossa Senhora da Boa Morte. Século XVIII. Óleo sobre

tela. Igreja de Nossa Senhora da Boa Morte dos Homens Pardos, Rio de

Janeiro.

Figura 18 Leandro Joaquim. São Januário. Óleo sobre tela. Século XVIII. 185 x 90 cm.

Igreja de São Sebastião, Rio de Janeiro.

Figura 19 Raimundo da Costa e Silva. Nossa Senhora do Carmo. Século XVIII. Óleo

sobre tela. Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro.

Figura 20 Raimundo da Costa e Silva. A Sagrada Família. Início do século XIX. Óleo

sobre tela. Igreja de São José, Rio de Janeiro.

Figura 21 Oficina de Francisco Manuel. Jesus, Maria, José. Século XVIII. Gravura.

Biblioteca Nacional de Lisboa.

Figura 22 Manoel Dias de Oliveira. Nossa Senhora da Conceição. 1817. Óleo sobre tela.

MNBA, Rio de Janeiro.

Figura 23 Linhas de composição.

Figura 24 José Leandro de Carvalho. São Pedro. 1817. Óleo sobre tela. Igreja de Nossa

Senhora do Carmo da Antiga Sé, Rio de Janeiro.

Figura 25 José Leandro de Carvalho. São João Evangelista. 1817. Óleo sobre tela. Igreja

de Nossa Senhora do Carmo da Antiga Sé, Rio de Janeiro.

Figura 26 José Leandro de Carvalho. São Mateus. 1817. Óleo sobre tela. Igreja de Nossa

Senhora do Carmo da Antiga Sé, Rio de Janeiro.

Figura 27 José Leandro de Carvalho. São André. 1817. Óleo sobre tela. Igreja de Nossa

Senhora do Carmo da Antiga Sé, Rio de Janeiro.

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Figura 28 José Leandro de Carvalho. São Tiago Maior. 1817. Óleo sobre tela. Igreja de

Nossa Senhora do Carmo da Antiga Sé, Rio de Janeiro.

Figura 29 José Leandro de Carvalho. São Matias. 1817. Óleo sobre tela. Igreja de Nossa

Senhora do Carmo da Antiga Sé, Rio de Janeiro.

Figura 30 José Leandro de Carvalho. São Bartolomeu. 1817. Óleo sobre tela. Igreja de

Nossa Senhora do Carmo da Antiga Sé, Rio de Janeiro.

Figura 31 José Leandro de Carvalho. São Tiago Menor. 1817. Óleo sobre tela. Igreja de

Nossa Senhora do Carmo da Antiga Sé, Rio de Janeiro.

Figura 32 José Leandro de Carvalho. São Tomé. 1817. Óleo sobre tela. Igreja de Nossa

Senhora do Carmo da Antiga Sé, Rio de Janeiro.

Figura 33 José Leandro de Carvalho. São Felipe. 1817. Óleo sobre tela. Igreja de Nossa

Senhora do Carmo da Antiga Sé, Rio de Janeiro.

Figura 34 José Leandro de Carvalho. São Judas Tadeu. 1817. Óleo sobre tela. Igreja de

Nossa Senhora do Carmo da Antiga Sé, Rio de Janeiro.

Figura 35 José Leandro de Carvalho. São Simão. 1817. Óleo sobre tela. Igreja de Nossa

Senhora do Carmo da Antiga Sé, Rio de Janeiro.

Figura 36 Hyacinthe Rigaud. Retrato de Luís XIV. 1701. Óleo sobre tela. 277 x 194 cm.

Museu do Louvre, Paris.

Figura 37 Autor desconhecido. Retrato de D. João I. Século XV. Óleo sobre tela. MNAA,

Lisboa.

Figura 38 Autor desconhecido. Retrato de um jovem Cavaleiro. Século XVI. Óleo sobre

tela. MNAA, Lisboa.

Figura 39 Domenico Duprá. Retrato de D. João V. c. 1725. Palácio Ducal, Vila Viçosa.

Figura 40 Vieira Portuense. Retrato do Bispo Adeodato Turchi. c. 1794-1795. Óleo sobre

tela. MNAA, Lisboa.

Figura 41 Leandro Joaquim. Nossa Senhora da Conceição. c. 1790. Óleo sobre tela.

Igreja de Nossa Senhora da Conceição e Boa Morte dos Homens Pardos, Rio

de Janeiro.

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Figura 42 Leandro Joaquim. Retrato de Luís de Vasconcelos. c. 1790. Óleo sobre tela.

Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.

Figura 43 Leandro Joaquim. Lagoa do Boqueirão. c. 1790. Óleo sobre tela. MHN, Rio de

Janeiro.

Figura 44

Divisão entre duas partes: a do poder e a do povo.

Figura 45

Manoel da Cunha e Silva. Retrato do Conde de Bobadela. 1791. Óleo sobre

tela. Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro.

Figura 46

Olivarius Cor. Retrato de Gomes Freire de Andrada. 1747. Sociedade Martins

Sarmento, Porto.

Figura 47 Consistório da Ordem Terceira do Carmo. Igreja da Ordem Terceira de Nossa

Senhora do Carmo, Rio de Janeiro.

Figura 48 Francesco Bartolozzi. Retrato de D. João. 1804. Gravura. BNL, Lisboa.

Figura 49 Francesco Bartolozzi. Retrato de D. João. 1809. Gravura. BNL, Lisboa.

Figura 50 João Cardini. Retrato de D. João VI. 1807. Gravura. BNL, Lisboa.

Figura 51 João de Mesquita. Retrato de D. João VI. 1816. Gravura. BNL, Lisboa.

Figura 52 Manuel Marques de Aguiar. Retrato de D. João. 1799. Gravura. BNL, Lisboa.

Figura 53 Camoin. Retrato de D. João VI. c. 1817. Gravura. BNL, Lisboa.

Figura 54 Domingos Antonio de Sequeira. Retrato de D. João. 1802. Óleo sobre tela.

MNAA, Lisboa.

Figura 55 Jean Baptiste Debret. Retrato de D. João VI. 1816. Óleo sobre tela. MNBA,

Rio de Janeiro.

Figura 56 Jean Baptiste Debret. Retrato de D. João VI. 1816. Óleo sobre tela.

Figura 57 José Leandro de Carvalho. Retrato de D. João VI. c. 1818. Óleo sobre tela.

Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro.

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Figura 58 José Leandro de Carvalho. Retrato de D. João VI. c. 1818. Óleo sobre tela.

Figura 59 José Leandro de Carvalho. Retrato de D. Maria I. c. 1818. Óleo sobre tela.

MHN, Rio de Janeiro.

Figura 60 Vieira Lusitano. Retrato de Francisca Maria, Princesa do Brasil. 1753. Óleo

sobre tela. 1520 x 1070 cm. Palácio Nacional de Queluz, Queluz.

Figura 61 Manoel Dias de Oliveira. Retrato de D. João VI e D. Carlota Joaquina. 1819.

Óleo sobre tela. MHN, Rio de Janeiro.

Figura 62 Anton Raphael Mengs. Parnaso. 1761. Óleo sobre tela. Villa Albani, Roma.

Figura 63 Pompeo Batoni. Retrato de Thomas Dundas. 1763. Óleo sobre tela. 298 x

196.8 cm. Coleção Marquesa de Zetland, Yorkshore.

Figura 64 Joseph-Marie Vien. Vendedora de Cupidos. 1763. Óleo sobre tela. Museu

Nacional do Chateau de Fontainebleau, Fontainebleau.

Figura 65 Domingos Antonio de Sequeira. Ismael expulsando Agar. 1786. Desenho a

sanguínea. 592 x 495 cm. MNAA, Lisboa.

Figura 66 Manoel Dias de Oliveira. Fato milagroso de Santa Isabel, Rainha de Portugal.

1798. Gravura. 42 x 34 cm. Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro.

Figura 67 Clemente Magalhães de Bastos. Estudo de cabeça masculina. 1810. FBN, Rio

de Janeiro.

Figura 68 Clemente Magalhães de Bastos. Estudo de cabeça masculina. 1810. FBN, Rio

de Janeiro.

Figura 69 Clemente Magalhães de Bastos. Estudo de cabeça masculina. 1812. FBN, Rio

de Janeiro.

Figura 70 Francisco Pedro do Amaral. Estudo de cabeça feminina. 1805. FBN, Rio de

Janeiro.

Figura 71 Clemente Magalhães de Bastos. Estudo de friso com rosáceas. 1812. FBN, Rio

de Janeiro.

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Figura 72 Clemente Magalhães de Bastos. Estudo de osso. 1815. FBN, Rio de Janeiro.

Figura 73 Francisco Pedro do Amaral. Projeto de monumento à memória do dia 26 de

fevereiro de 1821, a ser erigido na Praça da Constituição. 1822. FBN, Rio de

Janeiro.

Figura 74 Manoel Dias de Oliveira. Alegoria do Nascimento de Dona Maria da Glória.

1819. Óleo sobre tela. 95 x 171 cm. IHGB, Rio de Janeiro.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 16

1 O PINTOR PORTUGUÊS NO SÉCULO XVIII 33

1.1 O PERÍODO JOANINO: A ASCENSÃO SOCIAL DO PINTOR 42

1.2 O PERÍODO POMBALINO: ANTECEDENTES DAS NOVAS RELAÇÕES DE TRABALHO 58

1.3 VIEIRA PORTUENSE E DOMINGOS ANTONIO DE SEQUEIRA: ARTE E BURGUESIA 67

1.4 OS TRATADOS DE CIRILO WOLKMAR MACHADO: O PINTOR COMO TEÓRICO DA

ARTE 82

2 O CAMPO RELIGIOSO: ENCOMENDAS A SERVIÇO DA FÉ 91

2.1 O PINTOR SETECENTISTA FLUMINENSE E AS IRMANDADES RELIGIOSAS 111

2.2 A PINTURA RELIGIOSA OITOCENTISTA: A CORTE COMO ENCOMENDANTE 132

3 A PINTURA DE RETRATO E SEUS ENCOMENDANTES 153

3.1 O RETRATO EM PORTUGAL: AS RELAÇÕES DE ENCOMENDA 167

3.2 O CASO COLONIAL: O RETRATO E AS IDENTIDADES EM CONSTRUÇÃO 186

3.3 A CORTE COMO CLIENTE: D. JOÃO VI E OS PINTORES RETRATISTAS 206

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4 A AULA RÉGIA DE DESENHO E FIGURA: DISCUSSÕES PRELIMINARES 238

4.1 A AULA RÉGIA DE DESENHO E FIGURA DE LISBOA: A CONCEPÇÃO BURGUESA DE

MERCADO DE ARTE 255

4.2 A AULA RÉGIA DE DESENHO E FIGURA DO RIO DE JANEIRO: PARADOXOS E

CONTRADIÇÕES 262

4.3 ARTES E OFÍCIOS A SERVIÇO DA CORTE 286

CONSIDERAÇÕES FINAIS 297

FONTES E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 304

ANEXOS 314

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INTRODUÇÃO

O despertar da consciência sobre o valor do patrimônio artístico como parte

constituinte da identidade de uma nação ocorreu, essencialmente, durante processo de

formação do novo império, após a proclamação da Independência. No calor do Romantismo e

da necessidade de se construir uma imagem particular frente às demais culturas estrangeiras,

uma notável movimentação intelectual em torno dos assuntos específicos do Brasil começou a

gerar frutos. A fundação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro1 foi, sem dúvida, o

resultado maior do desejo de discutir questões nacionais e divulgá-las a partir de suas

publicações. Reduto de pesquisadores dispostos a vasculhar arquivos em busca de

informações sobre personalidades, monumentos, lugares e costumes, o Instituto ofereceu

oportunidade a Manoel de Araujo Porto Alegre2 de realizar o estudo inaugural de História da

Arte no país: a sua Memória sobre a antiga escola de pintura fluminense. (PORTO

ALEGRE, 1841).

O artigo reuniu pequenos trechos sobre a vida de nove pintores, com menções ao

aprendizado inicial, às obras sobreviventes e, em alguns casos, à aparência física do artista.

Não havia a intenção de analisar forma ou conteúdo, mas o objetivo de informar, como um

inventário, a existência do autor e a localização de cada objeto. O pioneirismo da pesquisa

1 A criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro aconteceu em 1838, dentro da premissa de construção

de um passado para o Brasil, preferencialmente distanciado das referências a Portugal. 2 Manoel de Araujo Porto Alegre foi poeta, historiador e pintor acadêmico, discípulo de Debret. Assumiu a

direção da Academia Imperial das Belas-Artes no período entre 1854 e 1857.

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encontra-se, justamente, no entendimento de Porto Alegre da necessidade de procurar a

documentação pertencente às ordens e irmandades religiosas e mesclar os dados com a

tradição oral. O passado, então, consistia em um emaranhado de informações que o

historiador deveria organizar em uma narrativa coerente.

Muitos autores seguiram o caminho aberto por Manoel de Araujo Porto Alegre,

repetindo a predominância do teor biográfico introduzido pelo mesmo. Moreira de Azevedo,

na volumosa obra O Rio de Janeiro (AZEVEDO, 1969), dedicou algumas páginas aos

principais pintores, acrescentando, em vários casos, detalhes não observados pelo primeiro.

Ainda no século XIX, Antonio da Cunha Barbosa, no artigo Aspecto da arte brasileira

colonial (BARBOSA, 1898), repetiu a fórmula descritiva da vida dos artistas, consagrando o

modelo de historiografia que avançaria ao longo do século seguinte. Das primeiras décadas

dos novecentos, destacamos o trabalho de Argeu Guimarães, intitulado História das artes

plásticas no Brasil (GUIMARÃES, 1920), e o de Ernesto da Cunha de Araújo Viana,

chamado Das artes plásticas no Brasil em geral e na cidade do Rio de Janeiro em particular

(VIANA, 1916), ambos herdeiros dos escritos de Porto Alegre.

A valorização da biografia enquadrava-se no projeto de construção da brasilidade

orquestrado ao longo da segunda metade dos oitocentos, com o claro objetivo de fincar o

jovem e independente país em uma base memorial sustentável. Esta base seria o passado,

evocado não por suas raízes lusitanas, mas realçados por ações edificantes dos homens da

terra. As palavras de Porto Alegre são reveladoras neste sentido, quando, por exemplo, nos

diz que:

A Colônia, o Reino e o Império formam três divisões salientes de nossas fases

progressivas, é do seio da primeira, Senhores, que venho arrancar do

esquecimento alguns nomes ilustres nas artes, nomes de artistas, que honram a

terra em que nasceram, e que fundaram a primitiva Escola Fluminense, que de

certo merece uma menção honrosa em nossos anais, não somente por serem os

primeiros nesta terra, como também pela valentia de suas obras. (PORTO

ALEGRE, 1841, p. 452)

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O tratamento quase heroico dispensado a estes profissionais, que honram a terra que

nasceram, floresce em narrativa nitidamente romântica. Porto Alegre chegou a desconsiderar

um documento com o intuito de favorecer o pintor fluminense José de Oliveira Rosa pelo fato

de ter sido o português Caetano da Costa Coelho o artista citado no contrato. Isto porque

desejava, a partir de informações que julgava suficientes, deslocar a autoria para um artista

nascido no Brasil. Trata-se da dúvida sobre a autoria do único exemplar de forro em

perspectiva sobrevivente no Rio de Janeiro, localizado na Igreja da Venerável Ordem Terceira

de São Francisco da Penitência. No texto, Porto Alegre descreve a sua curiosa conclusão,

conforme a seguinte passagem:

Uma escritura de contrato entre a Confraria e Caetano da Costa Coelho, em

que a Ordem se obriga a pagar-lhe 6:100$000 pela pintura do teto e dourado

da igreja, podia excitar grandes dúvidas sobre o ser ou não de José de Oliveira

aquela obra: a tradição constante das testemunhas oculares e dos discípulos

que sobreviveram a este mestre desmentem o documento. (PORTO ALEGRE,

op.cit., p. 454)

Não duvidamos da participação de José de Oliveira Rosa na feitura do forro, pois o

próprio documento cita a permissão ao contratado de levar para o canteiro de obra todos os

oficiais necessários3. Um empreendimento de tamanho porte, em ambiente ainda precário para

a produção artística, exigiria quantidade razoável de profissionais sob a orientação de um

mestre. Assim, as testemunhas oculares de Porto Alegre poderiam ter realmente visto o pintor

fluminense em ação, o que não significa que ele estivesse na posição principal durante a

condução da obra.

Visivelmente hostil ao passado português, mas sem o tom enaltecedor em relação aos

artistas fluminenses, A arte brasileira, de Gozaga-Duque, aparece como um notável ensaio

crítico, diferente dos autores supracitados (GONZAGA-DUQUE, 1995). Escrito em 1888, o

texto não apenas situa o profissional no seu espaço, mas também desenvolve análise sobre a

3 Arquivo da Venerável Ordem Terceira da Penitência. Livro 2

o de Escrituras, 1725 a 1746. Ano 1732.

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técnica, com raros elogios a algum pintor ou painel. Logo no início, ele deixa alguns indícios

do que o leitor encontrará na parte dedicada à época colonial, como observamos a seguir:

O gosto do povo não fora alentado e cultivado pela magnificência dos

trabalhos arquitetônicos, pelo desenvolvimento da arte torêutica, pelo

aperfeiçoamento da ourivesaria e da arte de lavrar, proibidas na colônia por

carta régia de 30 de agosto de 1766. A igreja dos jesuítas é uma flagrante

prova do mau gosto e da falta de inteligência que presidiram a formação das

suas obras. Os mosteiros e os conventos foram edificados durante o domínio

do estilo barroco, essa brutalidade inventada pelos fundadores da Inquisição.

Nem palácios, nem templos suntuosos possuía a colônia. Tudo era acanhado

diante dessa natureza. Onde inspirar-se? (...). (GONZAGA-DUQUE, 1995,

p.74)

Mais adiante, complementa:

Diante, pois, desses barracões acachapados, desses mosteiros frios, acanhados,

inúteis; diante dessas casas mal construídas, no meio dessa existência sem

horizonte, dessa vida sem aspirações, como formar-se uma arte superior?

Impossível. A manifestação artística deveria forçosamente participar dessas

influências, partindo do convento e amoldando-se ao convento. (GONZAGA-

DUQUE, op. cit., p. 74)

Os pontos negativos são exageros esperados de quem participava do círculo

acadêmico de fim de século. Como poderia Gonzaga-Duque, acostumado a analisar as obras

resultantes de anos de intensa formação expostas nos Salões, enxergar qualidade em trabalhos

barrocos executados por artistas considerados por ele como autodidatas? O mérito deste

ensaio, no entanto, reside na observância das características das obras, somando à biografia a

atenção dispensada ao objeto.

O interesse pela arte colonial ganhou novo impulso na década de 1940, sob a

influência do recém-criado Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Hannah

Levy e Nair Batista foram as pesquisadoras diretamente ligadas à pintura, trazendo, pela

primeira vez no campo das discussões, a concepção formalista de análise. Os artigos Modelos

europeus na pintura colonial (LEVY, 1944a) e Retratos coloniais (LEVY, 1944b), ambos de

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Hannah Levy, buscaram traçar as tipologias através da identificação das fontes que serviram

aos artistas para a cópia. A autora chegou a publicar o pequeno ensaio Três teorias sobre o

barroco (LEVY, 1944c) como um suporte teórico para as suas abordagens. Vale mencionar

que os estudos sobre o Maneirismo e o Rococó estavam começando a despontar nos espaços

acadêmicos europeus, ficando o Brasil com entendimento sobre a arte colonial restrita a um

período sob a expressão da estética barroca.

Do IHGB, dois importantes contributos foram lançados em seus periódicos: a

minuciosa pesquisa documental de Francisco Marques dos Santos, intitulada Os artistas do

Rio de Janeiro colonial (SANTOS, 1942), e a análise de Adolfo Morales de los Rios Filho

sobre os sistemas de aprendizado, chamada O ensino artístico: subsídios para a sua história,

um capítulo: 1816-1889 (MORALES DE LOS RIOS FILHO, 1942). Ambos são da década de

1940, evidenciando o renovado olhar para questões da arte colonial.

Pela primeira vez, houve uma investigação sobre o processo de ensino. Mesmo que a

parte referente às oficinas setecentistas apareça como uma breve menção, percebemos a sua

presença ali como forma de se criar uma sequência evolutiva, mas com o cuidado de deixar

claro que este modelo continuou ativo ao longo do século XIX. Morales de los Rios Filho cita

o caso de Raimundo da Costa e Silva, pintor de origem colonial que teria continuado com o

mesmo sistema de aulas de oficina até a década de 1850 (MORALES DE LOS RIOS FILHO,

op. cit. p. 262).

Após o silêncio de quase quarenta anos, alguns artigos esporádicos resgataram

assuntos referentes ao colonial a partir dos anos oitenta. Sua abordagem, entretanto, seria a de

reedição de obras já escritas no passado. As biografias ressurgiram como informativos sobre

dados gerais da vida do pintor seguidos de relações de obras atribuídas a ele. As poucas

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análises enfocavam as descrições formalistas, encaixando esta ou aquela peça no domínio da

estética barroca ou rococó.

Creditamos aos colóquios luso-brasileiros4, organizados pelas instituições de ensino

superior, a penetração mais sistemática de abordagens de maior abrangência, somando à linha

formalista as discussões sobre iconografia e sociologia. As parcerias acadêmicas com

estudiosos portugueses, habituados com a interdisciplinaridade em suas pesquisas, têm

contribuído para a percepção dos vários fatores que envolvem o entendimento sobre o objeto

artístico, sobretudo em relação àquele oriundo de um passado distante. Fechado em si mesmo,

como preconiza o modelo de descrição de estilos ou somente de conteúdos, o objeto perde o

seu contexto gerador em discurso isolado e limitante.

Sobre a pintura colonial em particular, nos faltam estudos aprofundados referentes ao

estatuto social do artista e as características dos encomendantes, assim como as relações de

consumo. Acreditamos ser este o ponto nodal para a investigação de como os estilos se

acomodaram em um ambiente tão acanhado, sufocado pelo isolamento imposto pela política

mercantilista. Os temas também funcionam como indicadores de gostos e de mudanças de

rumo e, assim como os estilos, apontariam para perfis diferenciados de clientes. Eles

deveriam movimentar, como supostos protagonistas, boa parte do mecanismo de produção,

em uma época dependente de sua vontade para que houvesse trabalho. Sobre a valorização do

tema, seguimos os passos de Erwin Panofsky, que, ao explicar o sentido do significado

intrínseco ou conteúdo, nos diz que:

Percebemo-lo analisando os pressupostos que revelam a atitude básica de uma

nação, uma época, uma classe, uma crença religiosa ou filosófica – assumidos

inconscientemente por um indivíduo e condensados numa obra.

Desnecessário se torna dizer que essas normas de conduta se exprimem e

portanto se esclarecem pelos métodos de composição e pelo significado

iconográfico. (PANOFSKY, 1982, p. 22)

4 O Colóquio Luso-Brasileiro de História da Arte constitui um exemplo da iniciativa do Comitê Brasileiro de

História da Arte e envolve a parceria entre algumas universidades, como a UFRJ, UERJ e PUC Rio.

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Panofsky somou à análise da forma, a qual chamou de motivo, o estudo da iconografia,

criando uma metodologia possível apenas quando a obra é pensada em seu contexto gerador.

Neste sentido, a identificação de todos aqueles envolvidos na produção dos bens artísticos –

artista, encomendante, espectador –, e a investigação sobre o tempo e o local social de

destinação da obra são ações imprescindíveis ao estudioso da arte. Para Panofsky não basta

apenas a consulta às fontes literárias e documentais, mas a reunião de todos os elementos

capazes de conferir sentido ao objeto em uma leitura simbólica coerente.

Este trabalho, seguindo uma abordagem baseada na contextualização, se refere ao

estudo das relações entre as oficinas e os seus clientes e as funções dos objetos no período

compreendido entre a transferência da capital para o Rio de Janeiro, em 1763, ao retorno de

D. João VI a Portugal, em 18215. A escolha do período seguiu as seguintes premissas: 1) esta

fase corresponde ao florescimento e desenvolvimento da chamada Escola Fluminense de

Pintura em sua maior expressividade; 2) a cidade como capital permitiu a composição de uma

dinâmica econômica que acreditamos ser elemento fundamental para a atividade artística,

além dela própria, enquanto centro administrativo da Colônia, configurar-se como espaço

simbólico privilegiado; 3) a abertura da Aula Régia de Desenho e Figura, em 1800, seria um

sintoma de mudanças mais aparente; 4) o impacto da Corte instalada no Rio de Janeiro

poderia conferir indícios de uma nova consciência sobre o ofício de pintor; 5) a chegada dos

artistas franceses, em 1816, trouxe outra realidade referente ao estatuto social do artista e,

possivelmente, teria influenciado os artistas locais na percepção de si mesmos.

Os pontos referidos acima esbarram em uma questão-chave: como definir o perfil do

encomendante no complexo sistema colonial de produções de bens simbólicos? Sobre esta

pergunta básica, outras aparecem correlacionadas, pois a predominância de um determinado

5 A despeito da importância das datas em questão, o recorte selecionado não funcionará como um limite rígido,

pois há a necessidade constante de extrapolar as datas para a menção de fatos importantes e, obviamente, para a

construção mais coerente dos fatos.

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setor social sobre o outro poderia, como aconteceu em várias capitais europeias, colaborar

para a alteração de gosto do momento. Assim foi com a associação entre a burguesia e o

sucesso do Neoclassicismo no final do Setecentos em Roma e em Paris ou, quase um século

antes, da aristocracia parisiense com o florescimento do Rococó. No caso colonial, uma classe

específica teria condições suficientes para deslocar o gosto dominante, em ambiente carente

de discussões estéticas? Quais os interesses específicos destes clientes em uma época sem

colecionadores e sem mercado significativo de arte? Quais as funções da pintura na relação

entre encomenda e mão de obra?

Partimos da hipótese de que a burguesia comercial, classe em lento crescimento desde

meados do século XVIII, seria uma das protagonistas das mudanças ocorridas no período em

questão. Esbarramos, aqui, com as várias colocações de historiadores de que a economia

colonial impediria o florescimento de negócios mais elaborados. No entanto, nos escoramos

nos indícios de que o mercado interno tenha fomentado lucros interessantes para a parte mais

abastada desta classe. O historiador Afonso Carlos Marques dos Santos, na obra A invenção

do Brasil: ensaios de história e cultura, destaca o seguinte:

Porém, se nos dois primeiros séculos da colonização a dimensão rural da

propriedade propicia certa autonomia e ilimitado prestígio aos senhores de

terras, o século XVIII verá ocorrer uma mudança em relação ao prestígio

destes aristocratas – em especial, na cidade que a partir de 1763 torna-se a

capital da Colônia e sede do vice-reino, São Sebastião do Rio de Janeiro. O

marquês do Lavradio (vice-rei de 1769 a 1779) em seu relatório de 19 de

junho de 1779, apresentado ao seu sucessor Luís de Vasconcelos e Sousa, já

indicava que: Escolhiam-se para vereadores os homens que tinham mais

alguma distinção no seu nascimento, e para procuradores alguns homens que

tivessem sido comerciantes e a quem o menos bom sucesso de sua ocupação

os tinha reduzido a curtas possibilidades. (SANTOS, 2007, p. 25)

O autor segue com sua análise na seguinte afirmação:

Esse crescimento da importância do comerciante, que aparece como o colono

dos novos tempos, com quem a administração poderia então contar, verifica-se

no Rio de Janeiro em particular, desde que a cidade se transforma em centro

de confluência comercial e rota obrigatória de acesso às Minas Gerais. A

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fisionomia da Colônia muda em muitos aspectos. A Metrópole fomenta novas

atividades, ao mesmo tempo em que estabelece maior rigor fiscal e maior

número de proibições. (SANTOS, op. cit., p. 25)

A historiografia moderna vem questionando a tradicional abordagem responsável por

diminuir o valor do desenvolvimento econômico na Colônia e, portanto, a ausência de uma

burguesia com força suficiente para crescer. O motivo para tal conclusão encontra-se na

lógica do regime escravista, essencialmente contrário ao progresso tecnológico e ao

incremento das relações de negócios. Paradoxalmente, seria a própria escravidão que

colaboraria para a abertura de brechas necessárias ao estabelecimento, sobretudo no Rio de

Janeiro, de uma forma mais complexa e heterogênica de movimentação econômica. De um

lado, o modelo de trabalho compulsório seria o meio mais corrente de acumulação de capital;

do outro, a intensa atividade portuária da cidade proporcionaria condições favoráveis à

composição de um mercado local dinâmico e em vias de prosperar.

Objetivamos, portanto, investigar o perfil do cliente de pintura nesta época de

profundas mudanças e até que ponto a participação da burguesia, como parcela relativamente

nova no mundo colonial, colaborou para as transformações artísticas verificadas no período.

O fato de concordarmos com a corrente histórica que defende a existência de uma burguesia

comercial influente desde o início do século XVIII não significa dizer que esta classe seja

consumidora de arte. Necessitamos de informações acerca da natureza e dos costumes desta

gente de negócios e se houve algum interesse por objetos artísticos.

Inicialmente, buscaremos na história da pintura portuguesa as pistas para as análises

preliminares a respeito dos modelos e filiações estilísticas. Afinal, a Colônia era uma extensão

de sua Metrópole, consumidora daquilo que era passado exclusivamente por ela. As gravuras

de tradução desembarcaram no Rio de Janeiro como fontes indispensáveis à produção local.

Estas referências imagéticas revelariam o gosto então em voga nas principais oficinas

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portuguesas, apresentando as escolas europeias que serviram de base para a formação do

estilo daquele país.

Outra questão concernente ao mundo lusitano interessa-nos diretamente, pois versa

sobre o desenvolvimento da burguesia comercial a partir do ministério do Marquês de

Pombal. Os ventos da Ilustração penetraram em Portugal como variante adaptada ao zelo pela

manutenção do poder absolutista. O comportamento desta classe enriquecida em relação às

artes em geral poderia nos fornecer pistas sobre a nossa própria condição colonial. Neste

ponto, as obras A época pombalina (FALCON, 2002a) e Iluminismo (FALCON, 2009b) do

historiador Francisco José Calazans Falcon são providenciais para a discussão, pois o autor

defende que, paralelamente ao Iluminismo de teor mais radical e revolucionário de origem

francesa, houve uma série de versões concordantes com as realidades particulares de cada

país.

No campo das artes, buscaremos o embasamento teórico em autores visivelmente

filiados à corrente sociológica, pois pontuaremos nossa pesquisa na abordagem de âmbito

civilizacional. Nesta perspectiva, a arte é verificada em toda a sua extensão como objeto ao

mesmo tempo receptor de condições externas a ela e agente direta nos processos de

transformações sociais nos quais está inserida. Aqui, as reflexões de José-Augusto França,

presentes principalmente na obra A arte em Portugal no século XIX (FRANÇA, 1990, vol. 1),

são fundamentais pela sua proposta de tratar a arte em sua forma globalizante. Muito

influenciado pelo pensamento de Pierre Francastel, o qual escreveu o prefácio da sua tese de

doutoramento quando estudou na Universidade de Paris, José-Augusto França inaugurou em

Portugal esta nova possibilidade de discorrer sobre o objeto artístico sob o ponto de vista

plural.

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Outro representante desta linha sociológica e especialista nos assuntos sobre o Barroco

é o historiador Vítor Serrão. Os títulos O Maneirismo e o estatuto social dos pintores

portugueses (SERRÃO, 1983a) e Estudos de pintura maneirista e barroca (SERRÃO, 1989b)

apresentam minucioso estudo documental sobre as relações de trabalho desde a época

renascentista. Vítor Serrão desenvolve seu pensamento considerando a História da Arte como

disciplina que desvenda a ideologia imagética por traz de cada obra. Assim, seu método

engloba tudo o que possa dialogar com o objeto, a fim de compor um discurso que extrapola a

simples compreensão das sucessões de estilos. Ele nos diz que:

O historiador da arte terá de buscar, assente em dados devidamente tratados, o

ensaio das grandes linhas geradoras das situações artísticas, num espaço

geográfico e num tempo histórico precisos, de todas as cambiantes

sociológicas que geraram e produziram tais situações. (SERRÃO, op. cit., p.

281)

Serrão entende ideologia imagética como a produção simbólica de objetos, estes

condizentes com as classes sociais referenciais de tempo e espaço específicos. A proliferação

de um determinado tema ou estilo, neste sentido, está diretamente associada a todos os fatores

circundantes ao fazer artístico, como a economia, a política e a religião, entre outros. Integrar

estes elementos à análise do objeto significa atribuir à arte o seu real valor na composição da

sociedade, como parte determinante e determinada, capaz de influenciar e de ser influenciada

no complexo jogo de relações entre os setores.

No mesmo sentido, as referências a Pierre Bourdieu dialogam com os escritos dos

autores acima mencionados, pois o sociólogo estuda justamente o período em que a arte inicia

o seu processo de autonomia em relação aos outros campos sociais. Ele nos diz que:

Destarte, o processo de autonomização da produção intelectual e artística é

correlato à constituição de uma categoria socialmente distinta de artistas ou de

intelectuais profissionais, cada vez mais inclinados a levar em conta

exclusivamente as regras firmadas pela tradição propriamente intelectual ou

artística herdada de seus predecessores, e que lhes fornece um ponto de

partida ou um ponto de ruptura, e cada vez mais propensos a liberar sua

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produção e seus produtos de toda e qualquer dependência social, seja das

censuras morais e programas estéticos de uma Igreja empenhada em

proselitismo, seja dos controles acadêmicos e das encomendas de um poder

político propenso a tomar a arte como um instrumento de propaganda.

(BOURDIEU, 2007, p. 101)

Certamente Bourdieu, nesta passagem, acusa o desenvolvimento do artista como um

ser consciente da importância de sua produção em capitais onde as divisões de classes nos

moldes capitalistas se firmaram, sobretudo nos centros de intenso crescimento industrial. No

entanto, ele revela o caminho de transição que aparece aos poucos impregnando o pensamento

dos pintores ainda no século XVIII nos domínios portugueses e que influencia diretamente na

relação entre o artista e o encomendante. Os tratados de artistas lusitanos de fins dos

Setecentos confirmam as transformações dos sistemas de produção simbólica em rumo ao

estabelecimento de um campo específico e com preceitos próprios.

Na mesma linha interdisciplinar dos autores citados, buscamos também em Giulio

Carlo Argan contributos para pensar a arte como agente fundamental de decodificação do

passado. Na sua obra Imagem e persuasão: ensaios sobre o barroco (ARGAN, 2004), Argan

permanece fiel ao seu conjunto de escritos que valoriza a cidade como o lugar privilegiado de

desenvolvimento artístico. Considera o Barroco como estilo das capitais e realiza descrição

aprofundada dos fenômenos urbanos característicos de uma política persuasiva e imagética.

Este comportamento seria comum ao Rio de Janeiro durante o período que pesquisamos.

De formação inicial ligada ao círculo de Panofsky, Argan traz em seu discurso peso

considerável ao fator simbólico, descrevendo a iconografia inteiramente filiada ao seu

momento histórico. Não submete o objeto à descrição puramente decodificadora de atributos e

personagens, mas o inclui, considerando as suas mensagens, no contexto social que o gerou.

O seu método de análise torna-se essencial para pensarmos a realidade colonial, pois a

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dependência da encomenda é reveladora de desejos por determinados símbolos, quase sempre

denunciando funções específicas.

A obra de Argan oferece interessante diálogo com o trabalho de outro historiador, o

espanhol José Antonio Maravall. Também impregnado de reflexões sociológicas, a obra A

cultura do Barroco (MARAVALL, 1997) confere ao período uma dimensão maior que as

definições estéticas de estilo. Maravall considera o Barroco como um conceito de época,

capaz de abarcar todas as esferas do fazer humano em características perceptíveis de um

momento histórico. Deste modo, a arte se enquadraria em uma junção de atividades culturais

comuns ao século XVII, estendíveis ao século seguinte no caso luso-brasileiro. O valor da

conferência de Maravall consiste na composição da cultura barroca a partir de quatro pilares

estruturantes, ou seja, dela ser ao mesmo tempo dirigida, massiva, urbana e conservadora.

Maravall tece uma narrativa baseada na formulação da cultura barroca como aquela

pontuada pelo uso da persuasão. Este instrumento, essencialmente propagandístico, daria aos

poderes civil e religioso os elementos necessários para atrair a massa e dirigi-la conforme os

desejos conservadores de manutenção das antigas estruturas de estratificação social. Ainda

sob os efeitos das profundas crises políticas, religiosas e econômicas do século XVI, a época

barroca assistiria aos vários experimentos voltados para amenizar a crise e reorganizar a

sociedade em um formato governável. Como Argan, Maravall credita às capitais um papel

preponderante na circulação de ideias e costumes concordantes com o poder vigente.

As discussões sobre o Barroco, na sua dimensão social, serão essenciais para o

desenvolvimento do capítulo correspondente à temática religiosa. Após o levantamento de

informações necessárias ao entendimento da produção portuguesa setecentista, procuramos

dividir a colonial a partir de temas verificáveis com maior frequência. Uma observação

preliminar ao conjunto de obras sobreviventes revela, de imediato, a predominância de peças

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destinadas ao culto religioso cristão. Desde o início da colonização, a urgência em fincar no

solo do Novo Mundo as orientações contrarreformistas encerradas no Concílio de Trento

fomentou a construção de conventos e mosteiros, recheados de informações visuais

direcionadas à manutenção da fé católica.

Assim, no caminho de identificação dos encomendantes, optamos por investigar os

casos a partir de grupos temáticos, pois notamos que as funções dos painéis poderiam indicar

também desejos específicos de cada parcela consumidora. Seguindo uma ordem por grau de

importância, iniciaremos os estudos com a iconografia cristã, parte majoritária de toda a

produção colonial. Em seguida, pesquisaremos a ascensão do retrato como gênero segundo

das preferências locais. Aqui, analisaremos a questão sobre o despertar da consciência do

indivíduo em um mundo pautado nas relações coletivas, e qual seria a percepção de si mesmo

quando o cliente solicita a sua própria efígie. Finalmente, tendo a Aula Régia de Desenho e

Figura como suporte, veremos a junção das temáticas acima sob os direcionamentos de um

novo sistema de ensino. Além disso, o despontar das cenas alegóricas e mitológicas

apontariam para um novo gosto, o qual aparece absorvido na formulação de todo o aparato

associado à Família Real.

No interior de cada abordagem, verificaremos as transformações do perfil dos clientes,

pois acreditamos que cada fase histórica poderia interferir no complexo jogo simbólico ali

engendrado. Crer em uma suposta uniformidade, que a divisão por temas parece sugerir, seria

negar a dinâmica caracterizadora da própria cultura. Portanto, consideraremos o objeto

artístico como portador de funções múltiplas, mesmo que se trate da representação de um

santo católico. Cada período traz consigo novos comportamentos diante de suas linguagens

simbólicas, fornecendo leituras diferenciadas conforme se apresentam todos os aspectos

componentes da sociedade. Daí a importância em seguir os passos dos autores acima citados,

filiados ao modelo de História da Arte fundamentado na pesquisa sociológica.

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Acrescentando ao corpo teórico de nossa pesquisa, os trabalhos de Pierre e Galienne

Francastel e de Enrico Castelnuovo, respectivamente intitulados de El retrato

(FRANCASTEL, 1995) e Retrato e sociedade na arte italiana (CASTELNUOVO, 2006),

oferecem questões mais específicas ao estudo do retrato colonial. O pensamento dos autores é

compatível com as obras gerais de referência, contribuindo para a composição de um discurso

harmônico e objetivo. Aqui, a natureza do gênero nos convida à reflexão sobre o estatuto de

quem busca sua própria imagem, a razão desta busca e o valor simbólico do objeto para o

outro que o vê. Importante mencionar também outro fator relevante: a consciência de quem

produz uma peça dependente, por definição, da presença física do modelo a ser representado.

Qual seria a relação entre o pintor e o cliente retratado, em um ambiente sem a tradição do

modelo vivo?

O capítulo final discutirá a função da Aula Régia de Desenho e Figura no seio de uma

cultura de formação condicionada à cópia de gravuras europeias. O valor do ensino do

desenho como base formativa traria mudanças muito maiores do que o mero resultado

qualitativo. Qual seria o interesse da elite colonial em manter uma instituição desta natureza?

Para entendermos a essência das aulas régias no bojo das transformações orquestradas pela

atuação do Marquês de Pombal, identificaremos na obra de Nikolaus Pevsner, Academias de

arte: passado e presente (PEVSNER, 2005), elementos denunciadores das demandas sociais

do período em questão. Pevsner compreende as transformações nas organizações profissionais

diretamente concordantes com as alterações gerais de cada época, mantendo sua análise

balizada nos assuntos sociais.

A visível orientação neoclássica de Manoel Dias de Oliveira, professor nomeado para

encabeçar a Aula Régia de Desenho e Figura, faria desta instituição um polo difusor do estilo

no Rio de Janeiro. Conforme o estudo de Albert Boime, intitulado Historia social del arte

moderno (BOIME, 1994, vol. 1), o retorno aos valores da Antiguidade greco-romana estaria

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vinculado à crescente interferência da burguesia no mercado de arte setecentista. O autor

procura demonstrar que esta classe conscientemente se afastara da imagem então em voga da

aristocracia régia, afeita ao gosto rococó. Este afastamento voluntário estaria na base da

valorização do classicismo como a composição de uma identidade pautada nos preceitos de

moralidade, dignidade e ética, algo que a burguesia desejava propagar como suas qualidades.

Com base na teoria de Boime, estudaremos o sentido da Aula Régia de Desenho e Figura no

contexto colonial e, logicamente, se a burguesia local se apropriou, como na Europa, da

estética neoclássica ensinada por Manoel Dias de Oliveira.

Com o objetivo de responder a tantas questões, ou pelo menos apontar caminhos para

novas pesquisas, fomentaremos o diálogo entre os autores e as publicações específicas sobre a

história do Brasil em geral, e do Rio de Janeiro em particular. A escassez documental típica

do período colonial, seja pela sua má conservação ou por perdas acidentais ao longo da

vivência nem sempre sadia dos arquivos da cidade, é compensada, em parte, pela seleção de

obras representativas dos artistas que serão tratados nas discussões. Consideramos a obra o

monumento vivo, o núcleo fundamental de onde partem todas as indagações e todos os

desdobramentos teóricos.

No intuito de identificação dos clientes e de sua possível participação na introdução e

consolidação de estilos e temas na pintura colonial, partiremos sempre da contextualização da

obra no espaço e no tempo. As análises formais e iconográficas estarão integradas a uma rede

de informações oriundas de disciplinas diversas, aquelas que mais costumam dialogar com a

História da Arte. Assim, importa menos saber se uma pintura religiosa é barroca ou rococó

por este ou aquele elemento, mas como o estilo, dentro de um todo comunicante, se impõe

como peça constituinte do bem social e cultural.

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Julgamos relevante apresentar a Escola Fluminense de Pintura sob o ângulo da

sociologia da arte, vertente que procura se apropriar das várias ciências para o estudo do

homem e de suas produções simbólicas. O conhecimento integral, dentro da perspectiva do

pensamento complexo que filósofos como Edgar Morin defendem (MORIN, 2007), questiona

a fragmentação do saber quando encerradas em suas zonas particulares. Fechadas em si

mesmas, as disciplinas oferecem discursos de mão única, expositivos em sua essência e pouco

afeitos ao diálogo. Quando, por outro lado, concebemos o saber como interdisciplinar, o

objeto de pesquisa se abre ao mundo com leituras múltiplas e intercomunicantes.

Sob esta perspectiva interdisciplinar, sentimos uma grande lacuna quando o assunto

refere-se à Escola Fluminense de Pintura. Das primeiras biografias dos pintores aos estudos

formalistas, nos faltam ainda dados essenciais para a organização do período colonial em sua

dimensão maior, na qual incluiria a arte como parte integrante do todo social. Sabemos que o

peso da Academia Imperial das Belas-Artes sobre os olhares dos estudiosos em muito

contribuiu para a superficialidade dos trabalhos até agora publicados sobre a pintura colonial.

O tom preconceituoso de alguns escritos do passado colaborou também para reduzir a

importância deste patrimônio do passado que, como reconheceu Manoel de Araujo Porto

Alegre, constitui um bem memorial indispensável à composição da identidade nacional.

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1 O PINTOR PORTUGUÊS NO SÉCULO XVIII

Os antigos estudos sobre a pintura portuguesa do século XVIII foram tecidos como

discursos comparadores entre os grandes centros de produção, como Paris e Roma, o que

colaborou para situar as obras do período em patamar de inferioridade. Os argumentos básicos

orbitavam em torno da ausência de uma tradição acadêmica capaz de fomentar um ambiente

propício para o surgimento de grandes nomes nacionais. A dependência inevitável de

estrangeiros contratados denunciava a situação de submissão a modelos importados, criando

uma fragilidade em relação à formação de uma identidade artística6.

As últimas décadas do século XX viram surgir uma abordagem diferenciada, pautada

na consideração sobre as particularidades locais, o que trouxe à tona reflexões sobre os

valores específicos de cada sociedade. Portugal reaparece não mais como um apêndice da

Europa, mas se impõe como centro capaz de absorver os conteúdos das diferentes áreas do

conhecimento, adaptando-os às realidades locais. Estudos como os realizados por José-

Augusto França e Vítor Serrão7 contribuíram para a revalorização do fazer artístico português,

injetando novos ânimos às pesquisas e discussões sobre o assunto. Sobre a metodologia, Vítor

Serrão nos diz que:

6 Destacamos aqui a obra referencial de Reynaldo dos Santos, intitulada “Oito séculos de arte portuguesa,

história e espírito”. 7 A contribuição de Vitor Serrão encontra-se nos escritos sobre o período compreendido entre o Renascimento e

o Barroco, enquanto José-Augusto França ocupa-se, preferencialmente, do século XVIII em diante. Os dois

autores valorizam a inserção do fazer artístico nas discussões sobre a sociedade como um todo, considerando a

arte como agente ativo na dinâmica social.

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O historiador da arte, no âmbito da estrutura preconizada, tem

necessariamente de alinhar por uma metodologia científica de âmbito

interdisciplinar e polivalente, que passe pela utilização do documento escrito

(pesquisa de arquivo e análise heurística), pela análise iconológica, formal e

estética do documento plástico (leitura artística propriamente dita) e pelo

enquadramento histórico, cultural e sociológico da obra analisada no seu

espaço e tempo específicos (abordagem sociológica). Temos assim, em termos

muito genéricos, três fases distintas por que se deve nortear um racional

método de pesquisa em História da Arte, tarefa fecunda, ainda que árdua e

aturada, a exigir esforços polivalentes. (SERRÃO, 1989, p. 281)

Pensar o trabalho do historiador da arte como um fazer interdisciplinar significa

enxergar os vetores que ultrapassam a os limites das análises formal e iconográfica. Fechada

em si mesma, a disciplina corre o risco do reducionismo gerador de comparações puramente

formais. Entender os motivos, as funções dos objetos, a relação entre o cliente e o pintor, a

recepção dos gostos estrangeiros e sua adaptação local, além das questões relacionadas à

economia, política e cultura em geral, abre possibilidades enriquecedoras e esclarecedoras

sobre variadas lacunas. Apontar as diferenças entre escolas no sentido de elencar aspectos de

inferioridade ou superioridade importa menos do que investigar as razões de determinadas

escolhas e soluções para a execução de uma obra.

José-Augusto França não poupa críticas duras em relação à situação de Portugal no

século XVIII, mas sua análise permanece integrada ao todo social. Considera a realidade

portuguesa pouco afeita à arte da pintura, algo que mudaria lentamente a partir da década final

dos Setecentos (FRANÇA, 1999, vol. 1, P. 200). Não encontramos em seu discurso a

referência de modelos estrangeiros para justificar o que chama de mecenas de gosto

insuficiente, construções medíocres, colecções sem propósito, artes menores desfazendo-se na

inércia da Nação vencida pelo tempo e por si própria (...) (FRANÇA, op. cit., p. 198).

Articula seu pensamento no interior da estrutura social na qual aparece acumulada uma série

de vícios desde a época da Restauração, ainda sob os traumas da União Ibérica. Quando

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menciona a arte internacional, o faz para localizar as filiações de gosto e forma, estas

devidamente contextualizadas.

À luz dos movimentos interdisciplinares, a História da Arte portuguesa apresentada

pelos autores citados favorece a melhor compreensão do fenômeno colonial, sobretudo do

período imediatamente anterior ao desembarque da Família Real no Rio de Janeiro. Se houve

preconceito no passado referente aos pintores metropolitanos, os nativos da Colônia

receberam uma quota ligeiramente maior de escritos com teor depreciativo. O fato não

surpreende, pois a situação no Brasil abarca elementos peculiares agravados pelo isolamento

imposto pela política mercantilista. Mesmo assim, transformações relevantes ocorreram como

a abertura da Aula Régia de Desenho e Figura, em 1800.

Consideramos essencial buscarmos no espaço europeu as pistas para a nossa

indagação primeira, ou seja, a elucidação sobre as forças que determinaram as transformações

na pintura colonial fluminense na virada do século XVIII para o XIX. Não significa apenas

relacionar mudanças estilísticas, em muitos casos claramente visíveis. Em se tratando de

Neoclassicismo e em tudo o que implica a retomada dos valores da Antiguidade e do

Renascimento, própria do movimento, como explicá-la no ambiente pouco propício ao

desenvolvimento das reais funções atribuídas a esta nova direção? Ética e moral entrariam na

consciência de artistas como Manoel Dias de Oliveira e José Leandro de Carvalho? Quais

intenções reais e quais personagens estiveram por trás das mudanças de gosto e de forma de

ensinar o ofício da pintura?

O primeiro ponto a ser discutido no caso português vem da sua filiação, na era

pombalina, aos ideais da Ilustração em voga nos principais centros europeus. Muito se tem

falado sobre o atraso cultural do país quando comparado ao fervilhante cenário das potências

econômicas da época, como Inglaterra e França. Portugal estaria mergulhado em uma

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desolada situação de estagnação, governado por monarquias absolutistas e supersticiosas,

estacionadas nos modelos seiscentistas. Mais uma vez, a antiga historiografia modelou-se na

comparação entre sociedades distintas, com valores particulares e que não são totalmente

cambiáveis.

O problema inicial parece estar na percepção ainda presente do Iluminismo como uma

corrente filosófica uniforme e homogênea, a qual cobriria toda a Europa com seu manto

unificador. Sob esta perspectiva, as reformas pombalinas seriam apenas um pálido reflexo do

que estaria em marcha em outros locais com visões e ações mais libertárias. Se pensarmos o

Iluminismo, por outro lado, como um movimento heterogêneo e dependente das

peculiaridades de cada região que o absorve, Portugal passa a ser visto como participante

ativo desta corrente. Jonathan I. Israel, no seu livro intitulado Iluminismo radical, estuda as

raízes ainda seiscentistas do movimento e destaca subdivisões com diretrizes muitas vezes

opostas entre si. Ele ressalta que:

Das duas alas rivais do Iluminismo europeu, a corrente principal moderada,

apoiada por numerosos governos e facções influentes das principais Igrejas,

pareceu ser, ao menos na superfície, a tendência muito mais poderosa. (...)

Esse era o Iluminismo que aspirava conquistar a ignorância e a superstição,

estabelecer a tolerância e revolucionar idéias, educação e atitudes por meio da

Filosofia, mas de forma a preservar e salvaguardar o que se julgava serem os

elementos essenciais das velhas estruturas, efetuando uma síntese viável do

velho e do novo, da razão e da fé. (ISRAEL, 2009, p. 39)

O Iluminismo chamado de radical seria o corrente na França e tornar-se-ia o

fundamento teórico da Revolução de 1789. Os questionamentos sobre a origem quase mística

da realeza e o poder eclesiástico, indubitável por sua natureza divina, pontuavam as reuniões

mais ferrenhas desde a época de Luís XIV. Daí a preocupação do Marquês de Pombal sobre

os males franceses, fruto de intensa fiscalização por parte da alfândega a respeito dos escritos

daquele país, sobretudo os de Voltaire, Jean-Jacques Rousseau e Denis Diderot. Daí também a

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crença de que o Iluminismo, como ideologia homogênea, não se enquadraria na realidade de

Portugal do século XVIII.

A interpretação, sob a referência iluminista francesa, do racionalismo como

necessariamente anticlerical ajudou a polarizar ainda mais a ala considerada moderna da

Europa de um lado e a Península Ibérica do outro, esta última calcada no catolicismo

extremado da Companhia de Jesus. A dicotomia radical entre razão e religião não funcionava

em todas as regiões e a Itália nos serve como exemplo. Se pensarmos na pluralidade de

situações, a própria secularização pode ser vista como heterogênea, como bem diz Francisco

José Calazans Falcon na seguinte passagem:

O anticlericalismo, típico das Luzes francesas, não é a regra no restante da

Europa. O reconhecimento da diferença como raiz da autonomia do homem e

do mundo faz parte também de um processo interior à própria Igreja. Com

freqüência, a iluminação racional, longe de ser encarada como oposta à

iluminação religiosa, foi entendida como uma espécie de expansão ou

ampliação desta última. O caminho do racionalismo moderno, historicamente,

não é o da rejeição ao cristianismo, mas, muito pelo contrário, o de seu

alargamento. (FALCON, 2009, p. 34)

O mesmo autor, na obra intitulada A época pombalina, ressalta o fato de que o

discurso ilustrado penetrou em Portugal como uma releitura, sobretudo na vigência do

ministério de Pombal (FALCON, 2002, p. 197). Importante, ainda, no mesmo estudo, a

menção a antecedentes que remontam ao final do século XVII, quando críticas ao regime

monárquico já apareciam nos escritos de alguns eruditos. Mesmo a atitude antijesuítica do

marquês possui uma referência pertencente à fase joanina, como o embate entre os oratorianos

(FALCON, op. cit., p. 205) e jesuítas sobre o modelo pedagógico empregado pelos últimos.

Flávio Rey de Carvalho, na obra Um iluminismo português? (CARVALHO, 2008, p.

31), considera, na tentativa de responder a questão que dá nome ao livro, o Iluminismo como

uma rede de informações espalhadas em diferentes contextos culturais. A sua manifestação

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seria um processo reflexivo e complexo, característico de um pensamento desenvolvido na

pluralidade. A ausência de regras prontas, por ser fruto de núcleos de discussão distintos, traz

como tópicos comuns a secularização do Estado, a racionalização e, no caso da arte, a

revalorização dos modelos classicistas.

Relevante mencionar o fortalecimento do setor comercial como uma das diretrizes

norteadoras dos planos de Pombal e este será o porta-voz de uma burguesia em plena

ascensão. Esta classe, em centros como Londres, Roma e Paris, é uma das grandes

patrocinadoras e consumidoras da arte que redescobre a estética greco-romana. Interessa-nos

investigar a atuação dos ricos comerciantes no processo de circulação da arte portuguesa e,

em que medida esta atuação penetra no ambiente colonial.

Poderíamos, então, dizer que o Iluminismo português, posto em prática nas ações

pombalinas, se apropriou de muitos aspectos interessantes ao momento e descartou aquilo que

se julgou nocivo aos valores que buscavam dar continuidade. Muitas vezes paradoxal, a época

de D. José I pode ser entendida como um período de transição, o qual se relaciona muito mais

com os futuros acontecimentos do país do que com o passado imediatamente anterior. A

época conhecida como Viradeira, do reinado de D. Maria I, apresenta mais permanências,

sobretudo no plano das reformas educacionais e econômicas, do que propriamente rupturas.

O racionalismo aparece bem acentuado nas transformações profundas realizadas na

segunda metade do século XVIII, sobretudo após o terremoto que devastou parte de Lisboa,

em 1755. A expulsão dos jesuítas, a reforma na Educação e os incrementos na área econômica

são aspectos afiliados ao pensamento iluminista, ao mesmo tempo em que a manutenção dos

privilégios da monarquia absolutista e a censura a livros considerados nefastos denunciam a

permanência de componentes tradicionais. Esta é a essência do despotismo esclarecido do

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qual Pombal é o agente maior, ajudando a consolidar no país um modelo de Ilustração

bastante particular.

A reconstrução da área destruída de Lisboa revelou o contraste entre o gosto

arquitetônico do barroco joanino e a sobriedade e simplicidade das novas construções. O

palácio de Mafra, símbolo da opulência da primeira metade do século XVIII, cedeu lugar ao

funcionalismo sem ornamentações das décadas finais dos Setecentos. Apesar da opção pela

sobriedade estar diretamente associada a problemas econômicos e não por filiação a

determinados gostos, a grandiosidade do programa arquitetônico da época inaugurou uma fase

de transformação estética que ficaria, inicialmente, restrito à arquitetura. O que José-Augusto

França chama de estilo pombalino, este relacionado à racionalidade vista como necessária ao

processo imediato de recomposição da capital, acabaria desencadeando o desenvolvimento de

um academismo classicista o qual o Palácio Real da Ajuda foi exemplo significativo

(FRANÇA, 1990, vol. 1, p. 96)8. A arquitetura se coloca como a expressão primeira do

governo josefino, pontuando visualmente a sua diferenciação em relação ao reinado anterior.

O retrato do Marquês de Pombal, feito sob encomenda dos comerciantes Gerard

Devisme e Purry (Figura 1), destaca o programa reformista do ministro em uma sobreposição

de realizações. A paisagem de Belém ao fundo mostra as embarcações dos jesuítas deixando o

reino, enquanto outras, ancoradas no porto, reforçam a imagem da navegação como elemento

essencial à economia. O pintor francês Louis Michel van Loo, renomado retratista de corte,

enfatiza a ligação de Pombal com a ala comerciante ao colocar a maquete da estátua equestre

destinada à Praça do Comércio em uma mesa ao lado do marquês. Juntamente à peça, aparece

uma planta que traz visível o nome da mesma praça, informando sobre a atualidade daquele

projeto.

8 Importante dizer que a retomada das obras do palácio, em 1802, seguiu estritamente o modelo neoclássico já

anunciado em construções anteriores.

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A disposição das plantas de Lisboa, espalhadas no chão e no tamborete à direita, nos

remete ao empreendimento enérgico de reconstrução da cidade, no qual Pombal foi

protagonista. A posição destas plantas contrasta com o projeto do monumento, este

cuidadosamente arrumado sobre a mesa, o que parece simbolizar o passado e o futuro. Junto

ao ministro, no lado esquerdo da composição, estão as ações a serem realizadas e é o ponto

principal de observação. Sabemos que o escultor Machado de Castro finalizou a escultura em

1775, quase dez anos após a pintura de van Loo.

Figura 1 – Louis Michel van Loo. Retrato do 1

o Marquês de Pombal, Sebastião José de Carvalho e Melo.

1766. Óleo sobre tela. 2330 x 3040. Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa.

Pombal aparece sentado, representado de corpo inteiro e a três quartos. Olha-nos com

a firmeza de um homem de ações concretas, o que a iconografia não poupa em afirmar. O

braço esquerdo aponta para os jesuítas que deixam o porto de Belém e rumam para o

Atlântico, enquanto o direito repousa sobre a planta da Praça do Comércio. A pose e a

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organização dos atributos lembram ao espectador o principal motivo que levou Pombal a

extirpar os jesuítas do reino: a posição dos últimos contra os interesses do marquês sobre

assuntos relacionados ao comércio.

Nuvens escuras parecem acompanhar os padres da Companhia de Jesus, contraste

abrupto com a clareza do primeiro plano. Se o pintor quis realmente criar a oposição entre as

trevas do tradicionalismo jesuítico e a iluminação pombalina, ele deixa, entretanto, o Mosteiro

dos Jerônimos pontuando a paisagem, confirmando a manutenção dos valores católicos em

vigor. Aqui o novo e o antigo se misturam, criando o sabor contraditório de um período

mergulhado na complexidade.

O retrato, de grandes dimensões, foi encomendado a um pintor conhecido pela

composição dramática das cenas. A tradição barroca dos retratos de pompa está bem

representada na obra de van Loo, com elementos que denunciam a aderência a componentes

rococós, como podemos observar no mobiliário do plano principal. Se a arquitetura

experimentou primeiro a sobriedade e a economia classicistas, os pintores esperariam a

geração de Vieira Portuense e Domingos Antônio de Sequeira para a absorção do

Neoclassicismo de matriz italiana.

A situação peculiar do reinado de D. José I, que desenvolve a sua própria versão

iluminista, encontra nas artes visuais um desenvolvimento lento, muitas vezes continuador do

que foi realizado na época joanina. É sintomática a presença de artistas consagrados na

primeira metade dos Setecentos como os principais representantes da pintura pombalina,

como Vieira Lusitano e Pedro Alexandrino de Carvalho. Ambos colaboraram para a extensão

do Barroco, este fortemente influenciado pela escola romana, até a década de 1780, somente

quando novas possibilidades compositivas começam a ser sistematicamente exploradas.

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1.1 O PERÍODO JOANINO: A ASCENSÃO SOCIAL DO PINTOR

A transição entre os governos de D. Pedro II e D. João V foi marcada, inicialmente,

pela continuidade dos valores do Barroco tenebrista praticados por várias gerações de pintores

desde o primeiro quartel do século XVII. A função da pintura era, basicamente, religiosa,

encomendada para a ornamentação de interiores dos templos ou compondo conjuntos

retabulares para as mesmas. Muitos profissionais acumulavam também o ofício de decoração

de azulejos, arte de desenvolvimento notável nos seiscentos e que também integrou o vasto

programa iconográfico da Igreja tridentina portuguesa. A repetição constante de fórmulas

consagradas e a lenta absorção de novos elementos formais contribuíram para que a segunda

metade do século XVII fosse considerada uma época de estagnação, conforme análise de

Vítor Serrão (SERRÃO, 2003, p. 226).

Vale salientar que a centúria seiscentista em muito afastou da memória popular a

gloriosa participação portuguesa nos eventos das grandes navegações. A União Ibérica e a

difícil fase da Restauração deixaram feridas profundas na sociedade, afastando o país, naquele

momento, dos movimentos cientificistas que viram germinar as sementes dos futuros debates

iluministas. Foi, sobretudo, a prosperidade econômica verificada na década final do século

XVII o fator principal das grandes transformações que o reinado de D. João V se beneficiou.

A descoberta do ouro brasileiro, a indústria do vinho, o comércio do açúcar, do tabaco e do

cacau, entre outros produtos, colaboraram para a reintrodução de Portugal no cenário cultural

europeu.

A veia persuasiva do Barroco internacional, a exemplo da corte de Luís XIV,

emprestou sua pompa e fausto ao jovem e próspero rei. A renovação estética pautada nos fins

de construção espetaculosa da imagem política trouxe, para as terras portuguesas, a

iconografia do aparato até então acanhada no país. Consciente do valor simbólico das artes

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visuais para a divulgação do seu poder, D. João V se preocupou desde cedo em contratar

artistas estrangeiros, encomendar obras e promover a formação de pintores nacionais. A

abertura da Academia Portuguesa de Roma, em 1720, seria a expressão maior da mudança,

pois os alunos bolsistas participariam como interlocutores do que então se praticava na Cidade

Eterna. Vítor Serrão nos diz que:

Conhecem-se diversos pintores que estagiaram em Roma como bolseiros

régios, como sejam Vieira Lusitano (o mais destacado), Inácio de Oliveira

Bernardes, o santareno Inácio Xavier e João Glama Stroberle, que assim

tiveram ocasião de se sensibilizar com a grande maneira de mestres como

Carlo Maratta, Trevisani ou Agostino Masucci. Por outro lado, todo este

ambiente de renovado desenvolvimento – que lembra, de certa maneira, o do

final do século XVI, pela dinamização imposta à propaganda pela pintura –

surge muito florescido pelo impacte das muitas pinturas romanas e genovesas

que o monarca manda adquirir em Itália para décor das iniciativas realengas,

ou de patrocínio da corte (...). (SERRÃO, 2003, p. 226)

Libertos desde 1689 da Casa dos Vinte e Quatro9, os pintores portugueses buscaram

alcançar ascensão social desde então, por não estarem mais atrelados a bandeiras de ofícios.

Este fato inaugurou um arrastado movimento de fortalecimento do papel artista na sociedade,

cujos primeiros frutos brotariam apenas nas décadas finais dos setecentos. No caso da pintura

colonial, os ecos se fariam sentir nos anos iniciais do século XIX e se consolidariam sob a

presença da corte de D. João VI no país.

A filiação à gramática barroca italiana permaneceu como no século anterior, mas com

uma nítida atualização. A arquitetura, como de costume, expressou primeiro o ar de

renovação do momento, com obras de ousada movimentação borromínica. Não é de se

estranhar que esta onda passageira de igrejas de plantas poligonais ou de retângulos com

cantos cortados, além das linhas circulares verificadas em alguns casos excepcionais,

9 As bandeiras de ofícios foram agremiações oriundas do sistema medieval de organização dos profissionais

mecânicos e artesãos, agentes regulamentadoras de todas as relações entre cliente e mão de obra. A Casa dos

Vinte e Quatro era, em Lisboa, a reunião de vinte e quatro homens representantes das corporações de ofícios,

com um membro eleito como juiz e participante do senado. Este tipo de agremiação foi criado em 1383 por D.

João I. Em algumas regiões de Portugal, a casa era composta por apenas doze membros. Toda esta organização

visava a garantia de direitos, por um lado, e a monopolização dos serviços, por outro.

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encontraria no Brasil um bom local de experimentações10

. O mesmo se pode dizer dos

empreendimentos urbanísticos observados nos dois lados do Atlântico, como a construção de

aquedutos, chafarizes e aberturas de novas ruas.

Interessante notar que a prosperidade do início do século XVIII expressou-se mais

atuante na arquitetura, sendo o palácio de Mafra o seu símbolo maior. O volume de

encomendas de talha dourada para as igrejas, comparativamente superior em relação aos

contratos de pintura, denuncia o gosto então dominante, o que explica em parte o

barateamento do trabalho pictórico. José Alberto Gomes Machado, no seu estudo intitulado

André Gonçalves, pintura do Barroco português, realiza minuciosa pesquisa documental

referente ao período e apresenta vários exemplos de preços contidos nos contratos

sobreviventes (MACHADO, 1995, p. 95). O pintor André Gonçalves, um dos principais

nomes da fase joanina, não ultrapassou a faixa mediana de pagamento, mesmo quando se

tornou renomado mestre. A talha, entretanto, gerou rendimentos maiores aos seus praticantes,

fato corriqueiro até meados do século.

Por mais que os novos tempos proporcionassem o florescimento de uma geração mais

atenta ao modelo internacional, sobretudo romano, verificamos ainda uma estrutura de

produção em muito semelhante à fase seiscentista do Barroco. José Alberto Gomes Machado

explica que:

Igualmente importante é o peso da tradição iconográfica, expressa em formas

e modelos repetidos até a exaustão e que conformavam os limites do gosto

vigente, pouco dado a inovações. Em bom número de contratos, indica-se

expressamente que a obra deve seguir ou imitar uma outra obra, anterior, que

teria merecido o apreço dos comitentes. A margem de liberdade do artista via-

se, assim, bastante reduzida e dependente de estereótipos, em torno dos quais

se fixara o gosto do reduzido público encomendador. Num mercado muito

restrito, dominado pela encomenda religiosa, o artista dificilmente se poderia

dar ao luxo de incorrer no desagrado das irmandades, dos priores ou dos

superiores conventuais, de onde lhe vinha a subsistência, por vezes difícil.

10

As igrejas fluminenses de Nossa Senhora da Glória e de São Pedro dos Clérigos são exemplos de plantas

movimentadas pertencentes à primeira metade do século XVIII. Estas construções, exceções no conjunto

colonial de tradição retangular, foram projetos de engenheiros portugueses, geralmente associados a edificações

militares.

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Com efeito, não é raro encontrar documentos que atestam dificuldades

econômicas de artistas. (MACHADO, 1995, p. 91)

Não poderíamos deixar de tecer antecipadamente algumas considerações sobre a

pintura colonial, à luz da citação acima. Sabemos que a primeira metade do século XVIII

assistiu a mudanças significativas na forma de produção, como a gradual passagem para as

oficinas leigas dos ofícios antes destinados, em sua grande maioria, aos frades artesãos. José

de Oliveira Rosa é mencionado como o mais antigo pintor conhecido desta inaugural Escola

Fluminense. A submissão aos modelos impostos pelos encomendantes, através das gravuras

importadas das lojas portuguesas, sofria com a pouca variedade de soluções iconográficas e

formais. Não nos causam espanto os inúmeros casos de confusão sobre autorias, devido a

certa homogeneidade de elementos compositivos. O próprio José de Oliveira Rosa foi

colocado equivocadamente como discípulo do beneditino Frei Ricardo do Pilar, certamente

por causa da semelhança entre as obras de narrativas de santos dos dois artistas.

A paradoxal situação social do pintor da corte de D. João V se expressa justamente na

contradição entre a consciência do valor de seu próprio trabalho e a necessidade de se sujeitar

à vontade dos clientes. Consciência que ganharia novos ingredientes no contato dos bolsistas

com os mestres italianos, após a abertura da Academia Portuguesa em Roma. Há também o

vultuoso investimento na decoração do palácio de Mafra que, segundo Vítor Serrão, fez dele o

maior e mais rico repositório de pintura (e de escultura) da escola romana que existe fora da

Itália (SERRÃO, 2003, p. 227). Este contato fomentou a circulação de novidades, quebrando

um pouco o apego aos tradicionais modelos por parte dos próprios clientes.

André Gonçalves, um dos mais atuantes artistas da geração joanina, traz na sua

carreira a marca dos tempos de mudança. Discípulo de Antônio de Oliveira Bernardes,

famoso pintor de D. Pedro II, recebeu inicialmente a carga barroca seiscentista, presente em

algumas de suas primeiras obras. Apesar de nunca ter saído de Portugal, André Gonçalves

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travou contato com a atualidade italiana ao complementar seus estudos com o mestre genovês

Giulio Cesare Teminé, este radicado em Lisboa desde 1712 (SERRÃO, op. cit., p. 232). Vale

lembrar que ele trabalhou em Mafra, local de grande concentração de obras italianas,

conforme mencionamos anteriormente.

Sua atividade voltava-se também à tentativa de promover a pintura a patamares mais

elevados. Entre as suas proposições figurava a vontade de estabelecer no reino uma academia,

algo que já aparecia manifesto em alguns pintores desde o século XVII, sobretudo na época

da Restauração. Sobre o artista, José Alberto Gomes Machado comenta que:

Mais que uma simples insatisfação quanto ao estatuto social da pintura e dos

pintores, ele revela um desejo de reengrandecimento, que é algo mais que uma

aspiração conservadora ou passadista. Através da sua própria prática pictórica,

denota-se em André Gonçalves uma preocupação de modernidade, que o

levou a escolher, muitas vezes, fontes iconográficas contemporâneas e a

moldar as peculiaridades do seu estilo, segundo o que pôde e escolheu

apreender da lição dos italianos de Setecentos, cujas obras admirou ao vivo,

ou por meio de gravuras. (MACHADO, 1995, 254)

A insatisfação de André Gonçalves denota a transformação em movimento do

processo de produção artística no século XVIII português. Sua consciência sobre o valor do

trabalho de pintor demonstra claramente o que Pierre Bourdieu considera como o gradual

caminho para a autonomia do campo artístico em relação aos demais campos. O sociólogo

afirma que:

À medida que o campo intelectual e artístico amplia a sua autonomia,

elevando-se, ao mesmo tempo, o estatuto social dos produtores de bens

simbólicos, os intelectuais e os artistas tendem progressivamente a ingressar

por sua própria conta, e não mais apenas por procuração ou por delegação, no

jogo dos conflitos entre as frações da classe dominante. (BOURDIEU, 2007,

p. 191)

A geração de André Gonçalves ainda não pode se desvencilhar das vontades impostas

pelos encomendantes, sobretudo quando o contrato referia-se ao espaço religioso. A sua

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importância reside na reflexão cada vez mais fundamentada sobre os problemas de sua

profissão, como a ausência de uma academia e também de espaços destinados às discussões

sobre o fazer artístico. Sua atuação enquanto pintor engajado nas questões sociais abriu

caminho para o fortalecimento de um ambiente crítico, o que colaborou para o resgate de

teóricos portugueses, como o seiscentista Francisco de Holanda, este bastante utilizado por

Cirilo Wolkmar Machado, no final dos Setecentos.

A iconografia religiosa sofrera poucas alterações, seguindo ainda as premissas contrar-

reformistas conservadas fortes em Portugal. As gravuras funcionaram como as fontes mais

utilizadas de divulgação temática e formal, geralmente chegando ao artista como escolha

prévia de seu cliente. As representações alegóricas e triunfais aparecem com mais frequência,

denotando a preferência setecentista por cenas de maior impacto. O fenômeno dos tetos

forrados por cenas em perspectiva, em vez dos painéis em caixotões, confirma o desejo de

monumentalidade o qual os temas da aparição de Jesus ou da Virgem são exemplos. Esta seria

a maior diferença em relação ao período anterior, considerando que as narrativas de vidas de

santos permaneceram numerosas, tal como ocorrera desde a fase do Maneirismo português.

Os contrastes entre claros e escuros, comuns no tenebrismo da geração seiscentista,

dão lugar ao colorido intenso do qual André Gonçalves é representante e atualizador.

Percebemos que as irmandades religiosas, atentas à respeitabilidade da iconografia santa,

permitiram maior liberdade em relação à forma, apesar de cláusulas dos contratos restringirem

determinados pontos11

. Na verdade, são elas que se beneficiaram do Barroco faustuoso em

maior porção, pois mantendo o controle sobre o conteúdo, a pintura, juntamente com a talha,

poderia oferecer toda uma ambientação projetada para tocar os sentidos.

11

Vale salientar que esta liberdade condicionada refere-se aos artistas mais destacados do momento, os que

realmente forçaram um alargamento de certos limites.

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Nos anos que trabalhou na decoração do palácio de Mafra, André Gonçalves realizou a

tela Assunção para a capela do Livramento (Figura 2). O modelo compositivo do painel foi

largamente difundido através de gravuras tiradas da original de Guido Reni, a qual se localiza

na Igreja de Santo Ambrósio de Gênova. Há outro bastante semelhante, de Sebastiano Ricci,

com igual tratamento dos planos terreno e celestial, chamando atenção a igual posição da

Virgem, com os braços voltados para o alto. Na obra do pintor português, São Pedro, no

contraponto abaixo, abre os braços no sentido inverso, reforçando, por oposição, a sensação

de ascensão da Virgem.

O plano inferior mostra o túmulo rodeado por apóstolos em uma mistura de espanto e

euforia. O turbilhão de nuvens do plano celestial ajuda a separar os dois mundos, além de

conferir movimentação à cena. Esta movimentação naturalista conduz o espectador ao interior

da cena. O artista dosa as cores em harmonioso contraste de azuis, vermelhos e rosas, com

iluminação uniforme e suave. Todos os espaços são ocupados por elementos vários,

mostrando a familiarização de André Gonçalves com a gramática barroca. Outro artifício

usado para movimentar a Virgem para o alto está no triângulo formado por ela, São Pedro e

São João.

A iconografia da ascensão da Virgem integrou um amplo conjunto temático de defesa

e propaganda de sua imagem, duramente questionadas na Reforma Protestante. Como um dos

aspectos do catolicismo mais atacado desde o século XVI, o culto à Virgem ganhou na

resposta contrarreformista uma profusão de invocações e soluções iconográficas, espalhadas

nas várias igrejas dedicadas a sua devoção. De André Gonçalves, conhecemos várias versões

do tema espalhadas pelas igrejas de Lisboa. Há também, do mesmo artista, numerosos painéis

que narram o ciclo mariano, incluindo abundantes referências aos quatro dogmas, temas

comuns ao Barroco.

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Figura 2 – André Gonçalves. Assunção. C. 1730. Óleo sobre tela.3570 x 2520.

Mafra, Lisboa.

Com o intuito de criarmos o diálogo entre a produção portuguesa e a colonial

fluminense do mesmo período, buscamos exemplos para identificarmos elementos de

comparação entre as duas escolas. O que observamos no Rio de Janeiro colonial, referente à

fase joanina, é a repetição das necessidades básicas do fazer artístico que organizaram as

linguagens em uma hierarquia identificável. A arquitetura ocupa o patamar mais elevado,

seguida pela escultura e pelo trabalho de talha. Os retábulos do período são a expressão mais

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abundante do novo gosto formal, deixando a pintura, conforme acontecia nas escolas

portuguesas, em papel secundário. Mesmo assim, contamos com exemplares significativos,

como atesta o monumental forro em perspectiva da Igreja da Venerável Ordem Terceira de

São Francisco da Penitência.

A História da Arte no Brasil resolveu aparentemente a antiga controvérsia em torno da

autoria do ousado projeto acima citado12

. Os principais nomes que aparecem nos escritos

desde Manoel de Araújo Porto Alegre são o fluminense José de Oliveira Rosa e o português

Caetano da Costa Coelho. A falta de tradição em compor obras ilusionistas de grandes

dimensões, fato corroborado pela ausência deste tipo de pintura no Rio de Janeiro, conta

como ponto a favor para Caetano da Costa Coelho. Acreditamos que José de Oliveira Rosa

tenha participado da equipe contratada, pois muitos traços do pintor são reconhecidos nas

figuras humanas e em outros elementos, como o colorido suave, a anatomia das personagens e

os semblantes serenos, entre outros. Vale ressaltar que o pintor se encontrava na igreja na

mesma época para a execução da pintura do forro da Sacristia. Poderíamos supor que a parte

estrutural em perspectiva seria do mestre português, cabendo aos demais envolvidos a feitura

da narrativa iconográfica.

José de Oliveira Rosa não passou por uma fase de desenvolvimento, como André

Gonçalves, de uma arte de transição do tenebrismo para o cromatismo exuberante do tempo

de D. João V, pois não houve a tradição da primeira na pintura fluminense. Os Seiscentos

foram caracterizados, no Rio de Janeiro, por uma produção conventual, muitas vezes realizada

por frades de formação precária. O caso do Frei Ricardo do Pilar constitui uma rara exceção,

pois seu aprendizado germânico trouxe para o Mosteiro de São Bento requinte não observado

12

Manoel de Araújo Porto Alegre defendeu, ainda no século XIX, a autoria do fluminense José de Oliveira Rosa,

mesmo reconhecendo que o contrato da obra estivesse em nome do português Caetano da Costa Coelho. Apesar

da referência documental, são muitos os elementos familiares aos traços do artista brasileiro. O desconhecimento

total da vida e de parte considerável da obra de Caetano da Costa Coelho, na Colônia e na Metrópole, criou

dificuldades para conferir a autoria.

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com frequência na época. O conjunto de painéis do frei exibe o modelo de narrativas de vidas

de santos e cenas de aparições, várias em tom melancólico e às vezes sofrido. José de Oliveira

Rosa, apesar de seguir seu modelo para manter a coerência formal na decoração da igreja, não

apenas passa a distribuir a luz de forma mais uniforme, como também se apropria dos valores

cromáticos em harmoniosa mistura de tons. A tela Santa Bárbara, apesar de tardia, mostra o

pleno desenvolvimento do artista no domínio do receituário mais consagrado do Barroco

(Figura 3).

A imagem do mestre Rosa revela a vida da santa mártir em tom apoteótico. Este difere

dos costumeiros recortes temporais das narrativas dispostas em sequência de painéis, pois o

tempo é condensado em uma profusão de referências iconográficas que resumem os aspectos

mais relevantes da história. Santa Bárbara teria vivido na época das perseguições romanas aos

cultos cristãos. Ela segura uma torre de três janelas, alusão ao tempo de reclusão obrigatória

forçada pelo próprio pai. O número de janelas simboliza a Trindade, o que denuncia o

fracasso do pai em evitar a conversão da filha. Ele aparece no canto inferior esquerdo,

fulminado por um raio quando partia para decapitar Santa Bárbara com uma espada. No canto

superior do mesmo lado aparece a Trindade personificada, apontando para o anjo que desce

com a coroa de flores e a palma do martírio.

Os atributos desempenham papel fundamental no reconhecimento das personagens e

das cenas narradas. São eles que, em uma obra complexa como esta, facilitam o

encadeamento dos fatos, estes associados às soluções formais orientadores do olhar. Santa

Bárbara, centralizada, forma uma linha diagonal que se encerra na imagem da Trindade,

criando o eixo principal da composição. O espectador é conduzido ao anjo imediatamente

abaixo da figura de Cristo, anjo responsável pelo raio que atinge o pai vingador. Ao retornar à

santa, observamos outro anjo no lado direito que segura o cálice e a hóstia, símbolos da

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vitória da Eucaristia que, complementada à coroação e à entrega da palma do martírio, logo

acima, fecham a narrativa em espiral da história.

Figura 3 – José de Oliveira Rosa. Santa Bárbara. 1769. Óleo sobre tela. Igreja de Nossa Senhora de

Monteserrate, Rio de Janeiro.

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A menção a José de Oliveira Rosa objetiva mostrar a similaridade do que ocorria entre

o que se fazia nos dois lados do Atlântico. Ressaltamos aqui o papel preponderante das

irmandades religiosas florescentes nos Setecentos como os agentes principais de circulação

dos bens artísticos. Como encomendantes quase exclusivas, foram elas as responsáveis pela

entrada dos modelos então em voga na Metrópole, através de encomenda de gravuras e de

pinturas de mestres portugueses e dos italianos residentes em Lisboa.

A situação da clientela lisboeta não diferia tanto do caso colonial, pois foi também a

elite eclesiástica a fomentadora da produção artística, sobretudo pictórica. A corte absolutista

de D. João V fincou a imagem de seu poder sob o manto espiritual da Igreja e o palácio de

Mafra, com a monumental basílica dedicada a Nossa Senhora e a Santo Antônio, constitui

exemplo máximo desta filiação. Não surpreende a supremacia da temática religiosa criada na

primeira metade do século XVIII, frente aos outros gêneros, como o retrato e a natureza-

morta.

As características do Barroco português estão em associação direta com a relação entre

o encomendante e o artista. Desde o século XVII as academias haviam proporcionado uma

nova modalidade de produção, alargando a clientela para indivíduos particulares ou

instituições públicas, como ocorria em centros como Paris e Roma. Esta modalidade não

ocorreu em Portugal nem mesmo na centúria posterior. Mantinha-se a velha estrutura

originária dos tempos medievais de mestres e discípulos, copistas de gravuras e repetidores de

fórmulas consagradas, algo que André Gonçalves buscara modificar. Como a religião

praticamente ditava o fazer artístico, podemos dizer que não houve sequer a hierarquização de

gêneros, comum ao Barroco desenvolvido no interior das academias.

Na ausência de uma academia em solo nacional, a instituição fundada em Roma em

1720 funcionou como beneficiária para poucos selecionados. Aos que nunca saíram de

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Portugal, como André Gonçalves, a necessidade de se atualizar era um caminho mais árduo e

poucos foram os que deixaram seus nomes registrados na história. O próprio artista citado

mantinha laços de amizade com dois viajantes, os pintores Pedro Alexandrino de Carvalho e

Vieira Lusitano. As trocas de experiências constavam como uma espécie de formação não

oficial, um adicional em ambiente que mantinha o modo medieval de ensinar o ofício.

Francisco Vieira de Matos, o Vieira Lusitano, construiu nome respeitável que

perpassou o reinado de D. João V e todo o período pombalino. Foi um caso raro de artista

com alguma fama internacional, com passagens por Londres, Sevilha e Roma (SERRÃO,

2003, p. 237). Contou com a proteção do terceiro Marquês de Fontes, D. Rodrigo Annes de

Sá, o qual patrocinou sua primeira estada em Roma, em 1712 (PEREIRA, 1999, vol. 3, p.

136). A precocidade da viagem – Vieira Lusitano tinha apenas treze anos na ocasião –

mostrou-se fecunda para o artista, pois pôde aprimorar o desenho que seria, desde cedo, a sua

assinatura plástica mais destacada.

O grande painel intitulado Santo Agostinho pisando na Heresia expõe a fase madura

do pintor, contendo as características principais de seu estilo (Figura 4). O efeito cenográfico,

meticulosamente orquestrado para conferir dinamismo à representação, destaca-se como

principal elemento formal. Aponta para o rigoroso estudo, o qual fez de Vieira Lusitano

conhecido pelos projetos que executava antes das encomendas mais suntuosas. Mesmo

submetido ao gosto do encomendante por determinadas gravuras, ele conseguia impor certas

vontades, muitas vezes para corrigir o que considerava fora de ordem. Como mencionamos

anteriormente, o respeito aos aspectos iconográficos era o mais exigido do pintor, sobretudo

na composição de temas religiosos. São vários os desenhos de projetos sobreviventes do

artista, conforme constatação de Vítor Serrão (SERRÃO, op. cit., p. 240).

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Figura 4 – Vieira Lusitano. Santo Agostinho pisando na heresia. 1736. Óleo sobre

tela. MNAA, Lisboa.

No painel, o espaço foi construído como uma sucessão escalonada de planos. Ao

fundo, mais iluminado, aparece um fragmento de templo ou palácio, o qual em muito se

assemelha à colunata da Praça de São Pedro, no Vaticano. Santo Agostinho, centralizado,

apoia um grande livro no colo e olha para uma figura, localizada no canto superior esquerdo.

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Esta figura expõe alguns objetos, símbolos da Eucaristia, da Trindade e da cruz

arquiepiscopal, uma referência ao bispado do santo em Hipona.

Santo Agostinho pisa sem grande esforço em uma cabeça feminina, sustentada por um

livro. Ela, a personificação da heresia, fita o olhar diretamente para o espectador, denunciando

derrota e agonia. Abaixo, um anjinho queima os escritos perniciosos, livrando a Igreja do

pensamento perigoso do Maniqueísmo, corrente filosófica que o próprio santo pertenceu antes

de sua conversão ao Cristianismo. Há outra versão da história que conta que a heresia seria

uma referência ao arianismo, corrente dissidente que foi prontamente combatida por Santo

Agostinho no século IV. Simbolicamente, inserida no contexto da Contrarreforma, a imagem

amplia o seu significado a qualquer corrente contrária à doutrina Católica, sobretudo a

protestante.

Santo Agostinho é considerado um dos Doutores da Igreja, principalmente pelos

escritos que deixou como fonte esclarecedora da verdade cristã. Sua referência foi cara à

época barroca, justamente no atendimento às ações de renovação tridentina, como a

divulgação dos princípios morais e alerta contra os perigos dos possíveis desvios do caminho

do bem. Nesse sentido, a obra de Vieira Lusitano enquadra-se no didatismo corrente, com

elementos de clara compreensão. Cada parte da composição se encaixa em um todo objetivo,

cujo significado revela a vitória daqueles que seguem, sem hesitação, o que a Igreja

determina.

Um dos aspectos mais notáveis do presente painel encontra-se no jogo em zigue-zague

das linhas, partindo-se do canto inferior esquerdo até o superior direito (Figura 5). Este efeito

cria intenso dinamismo à composição, direcionando o olhar em movimento de baixo, onde

observamos a presença do mal, para o alto. A posição vertical de Santo Agostinho e da

enorme coluna estriada do fundo, em contraposição à horizontalidade da base que os

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sustentam, trazem de volta a atenção para o ponto central da cena, servindo como eixo de

equilíbrio e simetria. O espaço é ampliado pela sugestão de cenas exteriores ao limite da tela,

como o anjo que, olhando para algo que não podemos ver, ordena os cães a atacarem a figura

da heresia.

Vieira Lusitano colaborou para a inclusão do projeto de estudo como parte integrante

do trabalho do pintor, principalmente na confecção de obras de maior vulto. Mesmo na

composição de retrato, gênero que gradualmente floresceu ao longo dos Setecentos, as linhas

de força e o desenho são os elementos que submetem os restantes – texturas, volumes e cores

– à sua primazia. Esta característica trouxe ao Barroco português uma roupagem classicista

que ocorria na vertente tardia italiana, absorvida pelo pintor em suas várias estadas em Roma.

Figura 5 – Linhas de força

No Brasil, faltariam ainda algumas gerações para que o desenho ganhasse importância

formativa na pintura. Os modelos compositivos chegavam prontos em estampas desprovidas

de cor, com os elementos compositivos previamente organizados. Bastava ao artista traduzi-lo

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da gravura para a pintura. Significa dizer que a consciência sobre o processo resumia-se ao

conhecimento de que as personagens principais deveriam, necessariamente, ocupar o centro

do quadro. Além disso, a habilidade era sentida pela capacidade de preencher de cores os

espaços e os volumes. Não admira a constante afirmação de Gonzaga Duque de que os artistas

coloniais eram fracos desenhistas e, muitas vezes, ótimos coloristas (GONZAGA-DUQUE,

1995, p. 80).

Vieira Lusitano pontua o momento de transição da arte portuguesa que se estendeu até

a década final do século XVIII, quando a geração de Domingos Antônio de Sequeira

emprestaria nova feição à pintura do país. São vários os nomes em atividade na fase joanina,

mas, como em qualquer período de transformações, poucos realizaram uma produção

realmente relevante e que apontasse para os novos rumos.

1.2 O PERÍODO POMBALINO: ANTECEDENTES DAS NOVAS RELAÇÕES DE

TRABALHO

Ao fundar a Academia Portuguesa em Roma, D. João V buscara criar subsídios para a

sistematização de um modelo de ensino que pudesse garantir a abertura de uma futura

academia em solo nacional. Esta ideia, contudo, não chegou a se concretizar. O envio de

bolsistas a Roma como iniciativa governamental continuou com gradual irregularidade até os

anos finais do reinado. A partir de 1760, os poucos artistas contemplados à viagem ao

estrangeiro contaram apenas com a proteção de particulares, pois a administração de Pombal

cortara os laços com a Santa Sé. Portugal ficaria por muito tempo arraigado ao sistema

medieval de ensino, confiando aos artistas mais experientes o aprendizado dos discípulos.

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Os nomes consagrados na primeira metade do século XVIII foram os ativos na época

pombalina, como o anteriormente citado Vieira Lusitano. A Igreja permanecia no papel de

cliente maior dos pintores, reservando ao período a majoritária proliferação de imagens

religiosas. A situação, sob este aspecto, não havia mudado. Enquanto Itália e Inglaterra

respiravam os novos ares classicistas, Portugal repetia o formato barroco tardio

predominantemente cristão, mantido pelos representantes da arte joanina.

As reformas de Pombal na área da Educação não contemplaram diretamente a abertura

de uma aula específica de desenho ou de qualquer outra linguagem artística. O desenho em

especial aparece em cursos voltados para setores funcionais e industriais, como o destinado à

Fundição de Artilharia do Arsenal e o de estuques da Fábrica das Sedas, entre outros

(FRANÇA, 1990, vol. 1, p. 64). Mesmo nas primeiras iniciativas de aulas independentes de

desenho, já no reinado de D. Maria I, o real interesse pelo seu ensino aparece explícito: a

formação para o comércio. José-Augusto França comenta que:

A primeira manifestação de um ensino artístico organizado de maneira

independente nasceu no Porto, em 79, quando o provedor da Junta da

Companhia das Vinhas do Alto Douro (fundação pombalina) propôs a criação

de uma aula pública de debuxo e desenho, num projeto aprovado pelo

marquês de Angeja, presidente do Real Erário, que a considerou de público

interesse para o adiantamento das fábricas mui industriosas que (no Porto) se

erigem. (FRANÇA, op. cit., p.65)

As diferenças entre o aprendizado adquirido pela bolsa destinada à Academia

Portuguesa em Roma e o projetado para as aulas designadas ao fazer industrial denotam

funções distintas, pelo menos até a abertura da Aula Régia de Desenho e Figura, em 1781.

Desta última, apesar do direcionamento técnico, formaram-se os nomes principais do final do

século XVIII, como Vieira Portuense e Domingos Antônio de Sequeira. Dos cursos

anteriores, criaram-se as condições para que profissionais nacionais fossem capazes de servir

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à indústria em trabalhos como a confecção de padronagens para tecidos, rótulos para vinhos,

projetos para ilustração de porcelanas, entre outros.

A época de Pombal não deixara uma herança pictórica particular, pois que manteve o

padrão do Barroco romano da fase anterior. Enquanto a arquitetura seguia em uma verdadeira

reforma, empurrada pela catástrofe do terremoto de 1755, a pintura reagia à falta de formação

de um gosto próprio da nova classe burguesa do período. José-Augusto França afirma que:

De resto, as gerações de artistas sucediam-se, e o seu gosto não mudava: os

cânones acadêmicos eram sempre seguidos, só as cenas históricas mereciam

figuração e a natureza e os costumes continuavam ignorados. O único quadro

que a catástrofe de Lisboa inspirou, devido a Glama Stroberle (1708-1762),

pintor que passou uma vintena de anos em Roma, não é mais que uma enorme

composição morosamente estática, desprovida de menor emoção. (FRANÇA,

1987, p. 265)

Um dos nomes mais destacados da era pombalina, continuador até certo ponto da

tradição consagrada por André Gonçalves e Vieira Lusitano, foi o pintor Pedro Alexandrino

de Carvalho. A reconstrução da área devastada de Lisboa ofereceu ao artista um leque

formidável de trabalho, sobretudo nas numerosas igrejas da cidade. A atividade incessante na

esfera religiosa tornou-o conhecido como o pintor dos frades (FRANÇA, 1990, vol. 1, p. 34).

Ele participou também do florescimento de outras temáticas, quando recebeu a incumbência

de ornamentar palácios e compor retratos de nobres e de ricos comerciantes, mas já no último

quartel do século XVIII. Pedro Alexandrino de Carvalho pode ser visto, neste período final,

como um pintor de transição, abrindo caminho para a nova geração que desfrutaria da

abertura mais significativa aos vários gêneros, além da absorção de elementos de novos

estilos.

O painel Salvador do Mundo foi realizado no limite entre a queda do Marquês de

Pombal e o início do reinado de D. Maria I (Figura 6). Selecionamos esta obra para mostrar o

quanto a forma barroca de matriz romana avançou por quase todo o Setecentos. O gosto dos

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encomendantes – as irmandades religiosas em geral – colaborava para a manutenção da

tradição, pois a ornamentação dos templos costumava ser mais conservadora em relação à

permanência de modelos consagrados e aprovados por décadas de experiência.

Figura 6 – Pedro Alexandrino de Carvalho. Salvador do Mundo. 1778. Óleo sobre tela. Sé de Lisboa.

A fórmula empregada na composição repete o modelo abundante de temática religiosa

que organiza a superfície em uma separação entre o mundo celestial e o terreno. André

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Gonçalves, um dos mestres do artista, realizou dezenas de telas com esta conformação, como

podemos ver nas várias igrejas lisboetas. No presente caso, o efeito divisório funciona em

concordância com o assunto, pois a imagem de Jesus deve aparecer no plano terreno. É ali

que toda a missão divina faz sentido. A referência da materialidade vem representada pela

arquitetura, disposta no canto esquerdo. A cruz realiza um contraponto espiritual e avança do

chão ao plano celestial.

A imagem de Jesus aparece centralizada, ponto organizador de todas as outras figuras

que preenchem a tela. Com o braço direito erguido, exibe para o espectador, no caso o fiel, o

sinal da bênção. Do outro lado, segura uma enorme cruz. As massas são uniformemente

distribuídas com a colocação de anjos de ambos os lados. No alto, exatamente acima de Jesus,

surge a figura de Deus Pai, representado com uma auréola triangular, um cetro e uma taça.

Também o acompanha um cortejo de anjos, dando à composição um aspecto fortemente

espiritual.

Se observarmos as composições religiosas do período pombalino, veremos que a

preferência por cenas alegóricas ou triunfais ditam o gosto, tal como ocorrera no reinado de

D. João V e em boa parte da Europa setecentista. Mesmo com todos os espaços preenchidos

por uma sorte de elementos, comum à gramática barroca, a especificidade portuguesa dos

Setecentos encontra-se fiel ao modelo romano, no que diz respeito à busca por uma roupagem

classicista. Vários painéis são organizados em espaços que desenham triângulos, com massas

distribuídas de forma equilibrada e com figuras sem tanta dramaticidade. Em Pedro

Alexandrino de Carvalho, percebemos narrativas com movimentação e gestos contidos, tal

como acontecia nas obras mais famosas de Vieira Lusitano.

A crítica à estagnação do fazer artístico português foi sentida desde a época áurea de

André Gonçalves, permanecendo como uma queixa por parte dos pintores e escultores em

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toda a fase pombalina. O problema maior refere-se ao corpo consumidor, que no país não

havia desenvolvido um gosto atualizado, além de manter-se alheio às discussões estéticas. A

sociedade burguesa de Pombal, a qual iria realmente contribuir para as transformações do

final do século, voltava-se, neste momento, para interesses imediatos de seus negócios. Ao

mundo religioso cabiam as encomendas mais significativas, amarrando os artistas menos

habilidosos à cópia de gravuras consagradas.

À época pombalina, no dizer de José-Augusto França, faltavam amadores, aqueles que

movimentam a cultura artística de forma integral (FRANÇA, 1987, p. 300). Os preços

relativamente baixos de seus trabalhos acusam o tipo de percepção que a sociedade tinha

sobre o valor da pintura ou da escultura. A relação entre a produção e a clientela é sintomática

e atua diretamente no conjunto de fatores geradores da obra de arte.

No Rio de Janeiro pombalino, livre dos jesuítas e transformado em capital do vice-

reinado, a situação assemelha-se ao quadro metropolitano. Soma-se ao espaço colonial a falta

de recursos para o desenvolvimento mais efetivo da pintura, além da defasagem do estatuto

social do pintor em relação ao português. Se na Metrópole o artista, mesmo com toda a

dificuldade, possuía a consciência de sua situação a ponto de externá-la em manifestação

literária, como o fez André Gonçalves e Vieira Lusitano, o pintor colonial vivia em outra

realidade. A sociedade, dividida em camadas rigidamente hierarquizadas, reservava à pintura

o mesmo patamar dos demais afazeres manuais. Assim, não admira identificar que a grande

maioria de pintores era de descendência escrava ou oriunda de famílias das classes menos

favorecidas.

Um ponto em comum refere-se ao tipo de cliente predominante: as irmandades. A

expulsão dos jesuítas e a decadência das ordens primeiras não impediram o movimento de

ascensão destas instituições leigas, agentes quase exclusivos da produção das oficinas de

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pintura setecentista. São elas as responsáveis pelo intercâmbio formal entre a Metrópole e a

Colônia, efetivado na importação de gravuras das lojas lisboetas. Elas colaboraram também

para garantir a longevidade do Barroco romano, o qual lentamente foi recebendo alguns

elementos rococós nas décadas finais do século XVIII.

O entendimento sobre a dinâmica das relações sociais, nas quais as irmandades

religiosas desempenharam papel preponderante, em muito esclarecem dados diretamente

associados à produção artística. Tanto em Portugal como no Brasil, elas funcionaram como

elos entre o espiritual e o material, ou seja, entre a manutenção e exercício da fé católica e os

afazeres comuns, como, por exemplo, o registro de documentos. Em um reino de extremada

religiosidade, a Igreja penetrava em todas as áreas da vida, colaborando para a organização da

estrutura social concordante com o modelo de moral e virtude desejado pela Corte. Mônica de

Souza Martins, no livro Entre a cruz e o capital, estuda o papel dessas associações e diz que:

As irmandades se constituíram como parte da vida cotidiana dos indivíduos,

participando de todos os aspectos ligados a ela. Isso significa dizer que todas

as esferas da vida social pertenciam também à vida religiosa e que o não

pertencimento a uma irmandade poderia constituir motivo de vergonha ou

fator de desprestígio social. Nas relações de trabalho isso não acontecia de

forma diferente: aqueles que não pertencessem ao universo cativo também

deveriam estabelecer seus elos de trabalho a partir de uma irmandade,

tornando-se membros e irmãos de uma associação profissional, a partir de

onde eram estabelecidos compromissos em comum. (MARINS, 2008, p. 59)

Este fato nos ajuda a compreender a complexidade das relações entre o cliente e o

pintor, ambos necessariamente associados a alguma irmandade. Colabora também para o

esclarecimento sobre os motivos da encomenda e o perfil do encomendante, ponto nodal de

nossa análise. Até o último quartel do século XVIII, os casos se assemelham no sentido da

quase exclusividade da função religiosa da pintura e do caráter coletivo de sua produção. Não

são indivíduos com objetivos particulares os consumidores, mas representantes de entidades

com fins sociais e, consequentemente, de natureza pública. A transformação deste quadro

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encontra-se justamente no período de nosso estudo, quando as relações caminham para a

diversidade e, por conseguinte, para uma visível individualização das transações.

O intercâmbio entre as irmandades oscilava entre trabalhos que envolviam ações

mútuas, competições veladas ou explícitas pela organização das melhores festividades,

concorrência pela ornamentação mais suntuosa de seus templos e assuntos relativos aos

ofícios. Esta comunicação interligada agia diretamente na manutenção da ordem tanto

religiosa quanto régia, fazendo das irmandades os nós aglutinantes entre Estado e Igreja.

Como organizações diversificadas quanto à origem social e à natureza das bandeiras

de ofícios a elas ligadas, elas serviam como espaço de debate e de promoção dos interesses de

grupos identitários. A especificidade das demandas de cada associação conferia, no conjunto,

uma multiplicidade cada vez maior de discussões. O ponto unificador vinha da autoridade do

Estado, buscando regrar as relações em crescente complexidade, como é de se esperar de uma

cidade em expansão. Afinal, as irmandades são agremiações tipicamente urbanas.

O perfil do cliente setecentista é representado, na sua grande maioria, pelos priores das

irmandades. Geralmente eram os responsáveis pela autorização e muitas vezes pela

composição dos contratos de serviço, além de estarem a frente das negociações, fiscalizações

e avaliação dos resultados. Suas identidades variavam conforme o estatuto social do grupo a

que pertenciam. As ordens terceiras, por exemplo, foram lideradas por funcionários da alta

burocracia, como ouvidores, juízes e priores de províncias. As menos abastadas elegiam

aqueles indivíduos de maior destaque, como a figura representante do comércio de uma

determinada área, por exemplo.

Em Portugal, os pintores não pertenciam mais a qualquer tipo de corporação de ofício,

como mencionamos anteriormente. A Sociedade de São Lucas, existente desde 1602, passou a

funcionar como referência da profissão após a libertação das regras rígidas e monopolizadoras

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da corporação. Apesar de não atuar diretamente nos negócios de seus membros, serviu como

núcleo de contato entre os nomes mais relevantes do período.

O Rio de Janeiro contaria com a criação da Sociedade de São Lucas somente em 1827,

poucos anos depois da extinção de todas as corporações de ofícios por ordem imperial. Não

há registros de corporação específica para os pintores fluminenses, pelo menos ao longo da

segunda metade do século XVIII. Sem ligação com alguma sociedade reguladora, a sua

atividade seria livre e, ao mesmo tempo, problemática. Livre por não precisar de autorização

governamental para exercer sua profissão. Problemática porque os pintores não contavam

com a proteção de uma instituição especializada no ofício, nenhum órgão para mediar

contratos, garantir direitos ou atuar como reclamantes em questões trabalhistas. Cabia à

irmandade a proteção de uma forma geral, sem o compromisso particular ou conhecimento de

causa que uma corporação ofereceria.

Há a hipótese de que o número reduzido de pintores no Rio de Janeiro em um mercado

extremamente limitado seria um dos motivos da provável ausência de uma organização de

classe. Outra razão identificada encontra-se na condição social dos pintores, sempre ocupantes

dos patamares baixos da rígida hierarquia. Bastante diferente dos numerosos artistas da

Metrópole, os coloniais não foram afiliados às irmandades por uma bandeira de ofício, mas a

partir do lugar que ocupava na sociedade. Leandro Joaquim, pintor descendente de escravos e

ativo no último quartel do século XVIII, esteve associado à Irmandade de Nossa Senhora da

Conceição e Boa Morte dos Homens Pardos. Raimundo da Costa e Silva, seu contemporâneo,

pertencia a de São José.

Esta fragilidade atingia diretamente o despertar da consciência sobre o próprio fazer,

algo que se manifestaria timidamente apenas no último quartel do século XVIII. A situação do

Rio de Janeiro como capital, a atuação de vice-reis tomados pelas ideias iluministas, o notável

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crescimento da malha urbana e o incremento das relações comerciais fomentaram novas

possibilidades de trabalho. Entretanto, no período de atuação do Marquês de Pombal, a

pintura colonial permanecia sujeita a um tipo de encomendante calcado na tradição da arte

religiosa realizada desde a primeira metade dos Setecentos.

O período pombalino não representou uma época de mudanças perceptíveis para a

pintura, ao contrário do que ocorreu com a arquitetura. Foi um tempo preparatório, criador de

condições favoráveis para a composição de um novo tipo de mecenato e do futuro

florescimento de artistas com amplo horizonte de atuação. O maior legado do Marquês de

Pombal advém do fortalecimento da burguesia comercial, classe que conferiu um formato

diferenciado na relação entre cliente e pintor. A fase áurea que se desenvolveu no reinado de

D. Maria I teve curta duração, interrompida prematuramente pela conjuntura política do início

do século XIX. Mesmo assim, os pintores aí formados deixaram uma marca de qualidade

reconhecida e admirada internacionalmente.

1.3 VIEIRA PORTUENSE E DOMINGOS ANTÔNIO DE SEQUEIRA: ARTE E

BURGUESIA

A morte de D. José significou o afastamento do Marquês de Pombal da vida pública e

o retorno de seus antigos inimigos ao centro administrativo da Coroa. Entretanto, as

mudanças foram drásticas somente no campo político, pois as ações antes implementadas nas

áreas da educação e da economia continuaram em marcha no reinado de D. Maria I. A época,

batizada de Viradeira, ou, como bem diz José-Augusto França, de ressurreição dos mortos

(FRANÇA, 1990, vol. 1, p. 24), não impediu o fortalecimento da classe que Pombal ajudou a

formar, a burguesia comercial. Esta, agora misturada com a nobreza cortesã, firmou sua

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presença como promotora das artes, como atesta, por exemplo, o financiamento da construção

do Teatro de São Carlos de Lisboa pela elite do tabaco (FRANÇA, op. cit., p. 27).

A histórica aliança entre Portugal e Inglaterra, consolidada através de vários tratados

que pontuaram os séculos XVII e XVIII, colaborou para que as relações sociais extrapolassem

a esfera comercial. Os ingleses residentes no Porto e em Lisboa levaram consigo um modelo

cultural que envolvia o consumo de bens artísticos. A circulação de peças e de impressos e o

apadrinhamento de artistas foram alguns dos costumes que serviram como parâmetro para a

burguesia portuguesa. Não admira o fato de terem sido comerciantes ingleses os patronos do

pintor Francisco Vieira Portuense no início de sua carreira. Foram eles, inclusive, os

financiadores da primeira viagem do artista a Roma.

O mecenato burguês trazia para a arte portuguesa um novo comportamento diante da

obra. A função original do objeto continuava como principal direcionadora do fazer, mas o

valor de mercadoria era agora um novo e relevante aspecto a ser considerado. A colônia

inglesa no grand tour italiano13

era a mais numerosa e ativa na segunda metade do século

XVIII, transformando a arte em interessante negócio. Diferente do aspecto religioso e

devocional da tradição pictórica portuguesa, o mecenato burguês percebia na arte um produto

capaz de gerar lucros, e esta percepção alavancava o consumo e conferia um novo formato ao

ato de colecionar.

A carreira de Francisco Vieira Portuense anuncia mais de perto a nova posição do

artista no mundo dos negócios. Aprendeu a profissão de pintor com o pai, como de costume

na antiga tradição hereditária dos ofícios. Recebeu ajuda financeira dos mesmos comerciantes

ingleses que o mandariam futuramente a Roma para matricular-se na Aula Régia de Desenho

e Figura, em Lisboa (GOMES, sd., p. 16). Ficaria ali um ano e meio, viajando para a Itália em

1789. Sabemos que Roma era uma espécie de caldeirão de culturas misturadas com interesses

13

O Grand Tour era uma espécie de turismo cultural, um complemento à formação nobre e criador de

verdadeiras colônias estrangeiras na Itália. Era um fenômeno de intensa troca comercial de bens artísticos,

antigos ou contemporâneos aos visitantes.

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comuns, ou seja, de conhecer o patrimônio da arte ocidental por ali espalhado e, se possível,

de lucrar com o fervilhante comércio de obras de arte.

Hábil desenhista, Vieira Portuense destacou-se na aula de Domenico Corvi, renomado

pintor italiano, seu primeiro mestre em Roma. Beneficiado com maior liberdade em relação

aos bolsistas da Aula Régia de Desenho e Figura, Vieira Portuense pôde realizar diversas

viagens pela Itália. O contato com as diferentes escolas e a percepção de que havia outra fonte

de renda além da pintura estimularam a sua entrada no mundo dos marchands, algo inovador

para um artista português. Paulo Varela Gomes, em importante estudo biográfico do pintor,

relata que:

Vivendo apenas de magras pensões, Vieira equilibrava as suas finanças

integrando-se neste ativíssimo mercado. Já em Roma, e depois, durante toda a

sua carreira européia, visitava igrejas, conventos e coleções tomando nota

cuidadosa de autorias, técnicas, períodos... e preços. Comprava quadros e

desenhos no intuito de os revender, ou aconselhava a sua compra a

negociantes ingleses e italianos.(GOMES, op. cit., p.20)

Suas amizades incluíam especialistas famosos, editores e gravadores, círculo em

constante procura por negócios lucrativos. A publicação de livros ilustrados rendia bons frutos

e a associação entre um desenhista copista de grandes mestres e um gravador renomado era a

combinação desejada para esta atividade. Após bem-sucedida estada em Parma, onde foi

nomeado Acadêmico de Honra, partiu para a Inglaterra, empurrado pelas forças napoleônicas

que ameaçavam a Itália em 1796. Em Londres, se afiliou a Francesco Bartolozzi, gravador de

grande fama que viveria futuramente em Lisboa. A parceria resultou em diversificados

trabalhos, além da assimilação mais sistemática do gosto neoclássico ao qual Vieira Portuense

ainda mesclava com elementos rococós.

A gravura era o principal meio de circulação de imagens do século XVIII e servia

como alternativa para uma classe intermediária consumir cópias de obras de todas as épocas

por preços acessíveis. Apresentava também composições inéditas de temas conhecidos,

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muitas vezes compondo ilustrações de clássicos, como Eneida, de Virgílio, e, no caso

português, Os Lusíadas, de Camões. Os vendedores de estampas eram conhecidos nas

principais capitais e sua presença anunciava uma era de reprodução e consumo de imagens

que seria potencializada mais tarde com o advento da fotografia.

A gravura Juramento de Viriato corresponde à tela que Vieira Portuense enviou para o

salão da academia inglesa, em 1799 (Figura 7). A imagem, gravada por Francesco Bartolozzi,

exemplifica a aplicação do receituário neoclássico, tanto na forma como no conteúdo. A

referência a um antigo herói português faz menção simbólica à situação delicada daquele

momento, resgatando do passado um tema de resistência apropriado diante da ameaça

napoleônica que se configurava. O ideal de virtude e o tom patriótico são o testemunho visual

da atualidade de Vieira Portuense em relação ao que se fazia no mundo artístico em Portugal

na mesma época. A mentalidade ao mesmo tempo comercial e revolucionária que ditava a arte

de final de século foi prontamente absorvida pelo pintor.

A história de Viriato remonta ao segundo século antes da Era Cristã. O expansionismo

romano chega à Península Ibérica e encontra forte resistência das tribos lusitanas comandadas

por Viriato. Depois de investidas fracassadas, Roma reconhece a força dos inimigos e propõe

um pacto de paz. O acordo é feito, mas Galba, comandante do exército romano, quebra o

combinado e realiza um ataque não esperado, resultando no massacre de milhares de

lusitanos. Vieira Portuense representou o momento da narrativa em que Viriato percebe a

dimensão da tragédia, incitando os guerreiros a vingar o ato traidor.

A simplicidade da cena e a ênfase na resolução dos corpos trazem referências claras ao

gosto classicista da época. As personagens parecem saídas das escavações arqueológicas,

figuras escultóricas de um passado próximo à própria história de Viriato. O jovem herói exibe

uma força que mistura aparência musculosa com gesto firme e determinado e expressão de

indignação. A perícia do pintor no desenho anatômico ressalta o contraste entre o poder

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guerreiro masculino e a fragilidade feminina, representada pelo corpo da mulher que jaz no

colo de outra delicada figura. Não é mais a fragilidade sensual do Rococó, mas a reposição do

feminino em um mundo de virtude e heroísmo.

Figura 7 – Vieira Portuense. Juramento de Viriato. 1799. Gravura de F. Bartolozzi.

42 x 28.9 cm. Biblioteca Geral da Faculdade de Ciências do Porto.

Outra obra de tom patriótico e contemporânea à anterior conta a história de luta contra

o rei espanhol Felipe IV, na ocasião em que a União Ibérica é dissolvida. Intitulada Dona

Filipa de Vilhena arma os filhos cavaleiros, a tela consiste em mais um jogo simbólico com

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clara intenção de associar a iconografia de outro tempo à posição atual de Portugal nos

conflitos com a França (Figura 8). Misto de realidade e mito, a cena exalta a virtude guerreira

masculina e a dignidade feminina na defesa da liberdade, uma alusão ao crescimento do

sentido de identidade nacional que a Revolução Francesa havia ajudado a fortalecer na

Europa.

Dona Filipa de Vilhena era de família nobre seiscentista, casada com o Conde de

Atouguia. O brasão da família aparece estampado na cortina que separa os aposentos, no

canto esquerdo da composição. Centralizada, a mãe demonstra firmeza ao entregar a espada

ao filho, apesar de demonstrar sofrimento em seu semblante ao apontar o destino visível na

paisagem, o porto de Lisboa. Vieira Portuense destacou a figura principal com um vestido de

um intenso branco, com nítido valor simbólico de pureza e virtude, alusão clara ao seu ato de

coragem.

Figura 8 – Vieira Portuense. Dona Filipa de Vilhena arma os filhos cavaleiros. 1800-1801. Óleo sobre tela.

152 x 213 cm. Coleção particular.

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Mais uma vez, Vieira Portuense organizou a composição de forma clara, com

iluminação uniforme e notável domínio das texturas. A horizontalidade e separação de grupos

em módulos, como um grande friso, contempla o gosto neoclássico praticado por artistas

como Joseph-Marie Vien, Anton Raphael Mengs e Jacques-Louis David. Muitas personagens

parecem apropriadas de artistas ingleses da época, como Gavin Hamilton e Angelica

Kauffman. Paulo Varela Gomes considera a tela pertencente ao estilo internacional, o qual o

pintor soube absorver em sua formação europeia (GOMES, sd., p.74). Juntamente com o

Juramento de Viriato, a presente obra foi confeccionada para a elite portuguesa residente em

Londres, razão da seleção de temas tão específicos da cultura de seu país. Lembramos o

quanto poderia soar estranho à Academia inglesa a iconografia particular e desconhecida de

um lugar periférico em relação à produção artística setecentista.

Os dois exemplos que selecionamos para a análise mostram uma abordagem

diferenciada dos valores neoclássicos então em voga na Itália. Em Vieira Portuense

encontramos o tom politizado característico do Neoclassicismo francês, diferente das buscas

puramente estéticas da versão romana. Em suas viagens, o pintor teve a oportunidade de

entrar em contato com diferentes escolas e sua observação atenta, típica do trabalho como

marchand, colaborou para que sua produção assumisse um caráter heterogêneo. O contato

com obras francesas do período ofereceu ao pintor o repertório formal e iconográfico que

usaria como instrumento político naquele tempo de ameaça à soberania portuguesa.

O ciclo de formação estrangeira se fecha em 1800, quando Vieira Portuense retorna à

pátria como pintor renomado. Sua passagem por diversos locais e o exercício contínuo do

olhar contribuíram para que ele se apropriasse de estilos e formasse o seu misturado, rico em

referências formais e internacional em sua essência. Segundo Paulo Varela Gomes, o

Neoclassicismo tem justamente o caráter da mistura, um melting pot de influências e

tendências (GOMES, op. cit., p. 125). É com este modelo que o pintor voltou a Portugal,

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atualizado e admirado. Sua situação em muito se afastou dos tantos bolsistas que retornaram

após a formação romana e se apagaram diante de um ambiente pouco fértil para as artes. Com

Vieira Portuense foi diferente; sua clientela também estava em vias de transformação,

preparada agora para absorver o que a Europa há muito consumia. Não fosse a morte

prematura, em 1804, sua vocação para a experimentação poderia ter levado a pintura

portuguesa a outros patamares.

Contemporâneo e rival de Francisco Vieira Portuense foi o lisboeta Domingos

Antonio de Sequeira14

. Pertenceu à primeira turma da Aula Régia de Desenho e Figura,

ministrada na ocasião pelo pintor Joaquim Manuel da Rocha, quando tinha então treze anos.

Sua partida para Roma ocorreu por bolsa concedida pela rainha D. Maria I e lá permaneceu de

1788 a 1795, passando por formação nos ateliês de Antonio Cavallucci e Domenico Corvi.

Apesar de também ter viajado por várias escolas italianas, Sequeira permaneceu inicialmente

romano no gosto, conforme atestam as obras deste período (FRANÇA, 1990, vol. 1, p. 143).

Sua primeira viagem formativa a Roma foi por intermédio particular da rainha e não

como bolsista da Aula Régia de Desenho e Figura, como seria a via mais comum naquele

momento. O ponto favorável deste patrocínio encontrava-se na maior liberdade que esta

condição proporcionava ao pintor, dispensado da necessidade de seguir fielmente as

orientações de uma instituição oficial. O preço da liberdade vinha impresso no valor da

pensão, inferior a dos bolsistas e um dos motivos que pesaram na decisão de Sequeira de

retornar à pátria em 1795, no auge de sua carreira internacional.

O pintor viveu as conturbadas três primeiras décadas oitocentistas da história de

Portugal, algo que se expressa nitidamente no confronto entre sua formação inicial

neoclássica e a absorção de uma espiritualidade angustiada de sua fase romântica. Foi,

14

Falamos aqui de rivalidade no sentido competitivo, pois os dois pintores estiveram na mesma época em Roma

e participaram dos concursos da Academia.

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entretanto, a fama adquirida na primeira formação na Academia de São Luca, em Roma,

admitido em 1793 após ganhar alguns prêmios, que contribuiu para o seu acolhimento mais

tarde, quando retornou àquele país na condição de exilado voluntário (FRANÇA, op. cit., p.

142). Da formação inicial destaca-se a obra “Alegoria à Casa Pia”, encomenda feita pelo

Intendente de Polícia Pina Manique antes da partida do pintor (Figura 9).

Figura 9 – Domingos Antonio de Sequeira. Alegoria à Casa Pia. Óleo sobre tela. MNAA. Lisboa.

Começada em Roma e terminada após seu regresso a Lisboa, a pintura apresenta os

indícios de seu aprendizado neoclássico, como a organização espacial triangular, a equilibrada

distribuição das massas e as personagens tratadas como esculturas. Na composição, Pina

Manique aparece apresentando um monumento à D. Maria I, cercado por figuras alegóricas

que dão o aspecto monumental à representação. A obra tem um detalhe peculiar, caro à nossa

pesquisa, pois, dispostos no lado direito, estão o autorretrato de Sequeira e o que seria o

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retrato do pintor fluminense Manoel Dias de Oliveira. O pesquisador português Armando de

Lucena menciona o fato da seguinte forma:

Mas, aconteceu que outras luzes melhor iluminam a meia treva

envolvente do quadro naquele canto direito, onde duas figuras

espreitam o observador: uma, a do próprio Sequeira; a outra, muito

provavelmente será a efígie de Manoel Dias de Oliveira, segundo as

judiciosas palavras do Dr. Xavier da Costa, que, acerca deste pintor

brasileiro, vindo para Lisboa, e acolhido na Casa Pia, onde estudava

na Aula de Desenho, cuja preparação artística e bom aproveitamento

levaram o Intendente a enviá-lo para Roma, onde continuaria a estudar

sob a orientação de Lambruzzi e de Batoni. Sabe-se que em 1796, já

ali, se encontrava nestas condições. (LUCENA, 1969, p. 20)

Mais adiante, Armando de Lucena faz a transcrição da citação de Xavier da Costa:

No grande quadro alegórico da instituição da Casa Pia (...) feito em

Roma, como incumbência de Pina Manique, por Domingos Antonio

de Sequeira, e principiado em 1793, acha-se o retrato de Manoel Dias

de Oliveira junto ao do autor, o qual a efígie do companheiro fez,

previamente, em desenho, também existente no Museu Nacional de

Arte Antiga, esse que é classificado como pintor de história.

(LUCENA, op. cit., p. 20)

O referido desenho encontra-se realmente na coleção do Museu Nacional de Arte

Antiga, juntamente com uma série de cinco estudos de Sequeira para este painel (Figura 10).

Constitui um raro registro iconográfico sobre a fisionomia do pintor fluminense, além de

sugerir a proximidade deste com o colega português. A trajetória dos dois artistas possui

pontos em comum, como a formação inicial na Aula Régia de Desenho e Figura de Lisboa e a

possibilidade de estudar em Roma por patrocínios particulares. Se Sequeira pôde, ao longo de

sua carreira, experimentar mais rapidamente a mudança de gosto que movimentava o cenário

europeu, Manoel Dias de Oliveira, por sua vez, ao regressar ao Brasil, encontrou um ambiente

ainda precário em relação ao ensino artístico, permanecendo fiel ao Neoclassicismo.

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Figura 10 – Domingos Antonio de Sequeira. Estudo para Alegoria à Casa Pia.

Desenho. MNAA. Lisboa.

Domingos Antonio de Sequeira retornou a Portugal antes da saída de Manoel Dias de

Oliveira e o primeiro impacto que sofreu ao se restabelecer em Lisboa foi a percepção de que

o mercado de arte local, mesmo em transformação, ainda era extremamente acanhado. Esta

situação afetava, inclusive, a estipulação do preço de suas obras. A rejeição da elite local

pelos valores pedidos inicialmente por seus quadros o fez desanimar, depois de ter tentado em

vão convencer outros pintores a mudarem o comportamento diante das negociações. Cirilo

Wolkmar Machado relata que:

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Chegado a Lisboa visitou Pedro Alexandrino e Cirilo e lastimou-se do

abatimento da Arte, propondo que se unissem todos para a exaltar,

dando-lhe mais estimação e maior valor às obras. Tinha toda a razão,

mas quem pode fazer mudar de repente um antigo costume? Ele

mesmo o experimentou. O Conde de Val de Reis recusou dar-lhe

1.000 moedas que exigia por 10 batalhas para uma de suas ante-

câmaras. Todos pretendiam ter alguma obra do novo Artista, mas

admiravam-se dos preços (...). (MACHADO, 1823, 119)15

A importância deste fato reside justamente de Sequeira, antes mesmo do retorno de

Vieira Portuense, ter travado discussões sobre o estatuto social do pintor português,

aproveitando-se da fama obtida internacionalmente. Em uma época de mudanças, estas

estariam incutidas tanto na ciência dos artistas de experiência formativa externa a Portugal

quanto na percepção dos clientes de que uma nova postura diante da pintura começava a ser

exigida. Lembrando que os pintores estavam habituados aos preços mais baixos que os

trabalhos de talha, desde os fins dos Seiscentos, não surpreende o fato de Sequeira ter

fracassado inicialmente ao tentar convencer nomes consagrados, como Pedro Alexandrino de

Carvalho e Cirilo Wolkmar Machado sobre o problema. Diferentemente das angústias de

André Gonçalves, em meados do século XVIII, a época agora trazia de novo a ascensão de

uma elite com valores em construção, mesmo que ainda soasse como um mecenato amador

(MACHADO, op. cit., 210).

A adaptação de Domingos Antonio de Sequeira à realidade portuguesa foi

inicialmente dolorosa, mas a participação no cenário artístico continuava em pleno

crescimento, sobretudo quando dividiu com Vieira Portuense a direção dos trabalhos de

ornamentação do Palácio da Ajuda, em 1802, além da nomeação como Primeiro Pintor da

Corte. Sua função, apesar do prestígio reconhecido para tal cargo, foi mínima, conforme os

relatos de Cirilo Wolkmar Machado. Importante dizer que a retomada das obras no Palácio da

15

Cirilo Wolkmar Machado foi pintor contemporâneo de Domingos Antonio de Sequeira e autor de reflexões

teóricas sobre arte, além deste importante registro biográfico dos pintores de seu tempo e dos mais antigos.

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Ajuda consolidou o Neoclassicismo em solo português nas três linguagens principais: a

arquitetura, a escultura e a pintura.

O estilo inicial de Sequeira revela o apreço pelo acabamento, a ênfase na figura

humana e a simplicidade dos fundos da composição. O retrato do Conde de Farrobo,

executado em 1813, mostra o artista no auge de sua atividade, quando recupera sua fama após

os incidentes políticos nos quais se envolvera na época da invasão francesa16

. A visível

dedicação de Sequeira ao modelo, traço marcante nas suas pinturas de retrato, aparece

acentuado na figura do jovem Joaquim Pedro Quintella, barão de Quintella, e, posteriormente,

Conde de Farrobo (Figura 11).

O rapaz, representado de corpo inteiro, fita o espectador em pose descontraída, o que

não chega a interferir no tom aristocrático percebido no seu olhar, na roupa elegante e no livro

que segura com a mão direita. Os atributos são referenciais de uma família abastada, aqui, de

negociantes em plena prosperidade e herdeira da política favorável ao comércio iniciada na

gestão pombalina. A relação de amizade de Sequeira com a família Quintella aponta para uma

realidade diferenciada daquela vivida pelos pintores setecentistas, envolvidos ora com as

irmandades religiosas, ora com os trabalhos de corte. Sequeira foi, no panorama artístico

português, o introdutor do retrato burguês.

O cenário é reduzido ao que parece um pátio, com um muro pálido e geométrico no

qual o conde se apoia. As linhas dos blocos de pedra colaboram para a meticulosa

organização espacial que parece convergir para a personagem. O olho direito do rapaz está

exatamente na linha vertical que parte o quadro em duas metades iguais, efeito muito utilizado

no retrato para conferir certa movimentação do olhar do espectador. O plano de fundo

16

Sequeira, diferente de Vieira Portuense, mostrou-se plenamente favorável às ideias revolucionárias francesas,

vendo nas tropas de Junot a possibilidade de renovação de Portugal, que considerava atrasado culturalmente.

Após a saída do exército francês de Lisboa, Sequeira foi processado e preso por nove meses por associação ao

jacobismo.

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mantém a economia de elementos com intuito de não distrair a atenção em nenhum instante,

reforçada pela escolha por tons frios e pálidos.

Figura 11 – Domingos Antonio de Sequeira. Retrato do Conde de Farrobo. 1813

110 X 68 cm. MNAA, Lisboa.

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Além da precisa composição matemática do espaço, a qual confere sensação de

solidez, percebemos a primazia do desenho na obra de Sequeira, com contornos bem

definidos e domínio das proporções anatômicas. O apuro técnico e racional do uso dos

elementos formais não esconde a intensidade psicológica que consegue transmitir com

tamanha simplicidade, algo que encontramos na obra de Pompeo Batoni e de outros artistas

neoclássicos com que travou contato em Roma. Certamente aplicou aqui todo o aprendizado

acadêmico que recebeu desde os tempos da Aula Régia de Desenho e Figura, agora com sabor

notadamente romano.

O período que engloba os anos de 1808 e 1823 foram os mais fecundos para Sequeira.

Como pintor da Corte, realizou inúmeros retratos de D. João VI, ironicamente na ausência do

monarca. São imagens que exaltam a figura do rei com sobriedade, através de poses

idealizadas, gestos contidos e poucos elementos cenográficos. Esta fórmula, vista no retrato

do Conde de Farrobo, se tornaria exemplo para os outros pintores portugueses do início dos

Oitocentos, gosto que Sequeira ajudou a consolidar nas principais escolas nacionais. Foi

também o modelo que Manoel Dias de Oliveira levou para o Brasil, quando sua carreira

esbarrou positivamente no desembarque da Família Real no Rio de Janeiro. Diferente de

Sequeira, o artista fluminense foi retratista de uma Corte presente, fato que não afetou

diretamente na forma de representação, mas que influenciou no processo de mudança de

estatuto do pintor.

A transição do século XVIII para o XIX foi marcada pela transformação lenta, mais

em curso, da relação entre artista e cliente. A rica burguesia comerciante injetava novas

possibilidades de trabalho, como também a aposta em alguns nomes de destaque que

poderiam render bons frutos. Assim foi com Vieira Portuense e Domingos Antonio de

Sequeira, artistas apadrinhados que puderam desfrutar de uma formação acadêmica

tipicamente internacional e não mais calcada em regionalismos. A morte interrompeu

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prematuramente a jornada de Vieira Portuense e a transferência da Família Real para o Brasil

retirou Sequeira de uma vivência de corte, mas ambos deixaram uma porta aberta à

experimentação, à inclusão mais sistemática e direta do que se fazia nos principais centros

culturais europeus. Sobre a clientela da época, Benedicta Maria Duque Vieira nos diz que:

Os salões, os das nobrezas de corte e da província e os da burguesia

mais endinheirada, são os espaços de sociabilidade e de animação

cultural onde se trocam pontos de vista, se debatem ideias e livros, se

discute a política do dia a dia. Deste, de Arroios, ficou-nos um álbum

que é a prova disso. (VIEIRA, 1996, p. 54)

De forma mais limitada, mas não menos significativa, a passagem de Manoel Dias de

Oliveira por Lisboa e Roma também gerou frutos positivos, pois incluiu o artista na campanha

orquestrada pela classe comercial sobre a necessidade de mudança no sistema de ensino no

Brasil. A abertura da Aula Régia de Desenho e Figura constitui o seu contributo maior como

profissional, o compromisso, assim como o fez Domingos Antonio de Sequeira em 1795, de

devolver aos seus conterrâneos aquilo que lhe foi ofertado.

1.4 OS TRATADOS DE CIRILO WOLKMAR MACHADO: O PINTOR COMO TEÓRICO

DA ARTE

O desenho é a alma da pintura, e o primeiro

dos conhecimentos que deve possuir aquele

que se destina a esta nobre profissão. Ele não

é somente o traço de todos os corpos, mas

ainda, ele exprime a diferença das superfícies,

e as aparências visíveis da matéria de que são

compostos.

Cirilo Wolkmar Machado

A epígrafe acima vem do que seria um tratado de arquitetura, escultura e pintura de

Cirilo Wolkmar Machado. Na verdade, a obra assume a característica de um projeto, muito

mais um esboço em forma de caderno de anotações do que um trabalho teórico finalizado.

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Mesmo com o formato de inacabado, ou melhor, de gênese de uma profunda discussão ainda

por vir, o manuscrito expõe o pensamento de uma época sobre o gosto e uma reflexão

consciente sobre a primazia do desenho, a imperfeição barroca sob o signo de Borromini e a

necessidade premente de retorno aos valores clássicos da Antiguidade. Como pintor em

atividade e contemporâneo de Francisco Vieira Portuense e Domingos Antonio de Sequeira,

Cirilo Wolkmar Machado deixou como registro escrito aquilo que não apenas se discutia nos

canteiros de obras, mas que também se aplicava nas várias linguagens artísticas que tomou

para si como matéria de estudo e teorização.

As anotações teriam ocorrido entre os anos de 1796 e 1808, conforme ele mesmo

deixou como pista ao escrever na sua coleção de memórias que intentava compor um tratado

para servir de guia a artistas principiantes (MACHADO, 1823a, p. 249). Estas memórias

mencionam a sua permanência no Convênio de Mafra, quando consultou na biblioteca local

obras de diversas procedências, como o Da Arte da Pintura, de Gerardo Lairess e o Reflexões

sobre a beleza e sobre o gosto da pintura, de Anton Raphael Mengs (MACHADO, 2002b, p.

8) 17

. Sua atitude revela a essência do erudito setecentista, o qual buscava na observação direta

do passado e na consulta meticulosa das publicações antigas e contemporâneas as fontes para

a argumentação sobre a necessidade de retorno ao classicismo.

Cirilo Wolkmar Machado nasceu em Lisboa em 1748 e formou-se como pintor nos

moldes tradicionais das oficinas, inicialmente com o seu tio João Pedro Wolkmar. Sua breve

passagem por Roma, entre 1776 e 1777, foi suficiente para absorver as transformações

estéticas então em curso, registrando em forma de desenhos e medidas tudo aquilo que o

passado clássico lhe apresentava. Como ele mesmo diz, elegi os mestres dos maiores mestres,

isto é, Rafael, o antigo, a Natureza e as Ruínas da Antiga Roma (MACHADO, op. cit., p.

246). Estes registros foram utilizados posteriormente no referido manuscrito, sobretudo os

17

A menção sobre Lairess aparece na folha 83 e a de Mengs, na folha 100. Para todas as citações desta obra,

colocaremos o número da página, conforme a publicação da Fundação Calouste Gulbenkian, e a folha

correspondente do manuscrito de Cirilo Wolkmar Machado.

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relacionados à arquitetura e à pintura (Figura 12). Em uma Lisboa sem academia e sem

circulação de tratados teóricos sobre o fazer artístico, as ideias de Cirilo esperariam quase

duas décadas para começar a ganhar o papel.

O trabalho possui 165 folhas com vários exemplos iconográficos, com boa parte

dedicada à pintura e à escultura, como a imagem abaixo. Em toda a sua extensão, a beleza é

expressa nos princípios do Neoclassicismo, conforme podemos notar na seguinte passagem:

Na beleza a arte pode exceder a natureza. Ainda que a pintura seja imitação da

natureza ela não lhe é inferior em tudo, é mais fraca na luz e na sombra, mas

pode excedê-la na beleza. A natureza produz com sujeição aos acidentes, a

arte obra livremente (...). (MACHADO, op. cit., p. 226)

Em outra parte, Cirilo continua:

Por que as coisas humanas são imperfeitas e do bom só nos ficou o arbítrio de

escolher, a perfeição consiste na escolha, e é grande o que sabe conhecer qual

coisa é mais ou menos grande, e estimável a fim de estudar só o bem e não o

mau. Isto fez distinguir todos os homens grandes estudando só o mais digno

da natureza; os quais se aplicavam as coisas medíocres ou mínimas, passaram

do pequeno ao inútil, ao feio, ao falso e às quimeras. Os gregos do bom tempo

foram os primeiros que elevaram a arte à beleza e bom gosto; como nada ama

o homem tanto como a si mesmo, era o homem o primeiro objeto da arte e dos

seus estudos e preferiram o nu às roupas. (MACHADO, op. cit., p. 228)

É notória a filiação de Cirilo ao pensamento de Mengs e, através deste, dos escritos de

Winckelmann. A correção das imperfeições da natureza, a matemática organização do espaço,

o uso adequado das cores e a submissão dos claros e escuros à ordenação do desenho são

elementos que pontuam toda a obra. A ênfase na figura humana pode ser exemplificada

através das obras que analisamos de Francisco Vieira Portuense e de Domingos Antonio de

Sequeira, tanto pela concepção do espaço que exalta os personagens principais, como no

protagonismo dos mesmos em relação aos demais tratamentos formais, como iluminação e

uso de cores e de texturas.

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Figura 12 – Cirilo Wolkmar Machado. Estudos anatômicos. 1823. Folha 141.

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Cada parte de seus escritos vem acompanhada de explicação concisa sobre as técnicas,

várias vezes utilizando os grandes nomes do Renascimento como exemplos a serem não

apenas imitados, mas estudados e apreciados. A Rafael, Corregio e Ticiano são dedicadas

várias folhas, com extensa análise dos métodos usados por estes artistas. Sobre os mesmos

pintores renascentistas, Cirilo dedica uma parte sobre como os principiantes devem proceder

para reconhecer a qualidade dos grandes mestres. Ele diz que:

Para se conhecer o mérito de um artista é preciso conhecer a fundo a arte. A

Pintura tem partes indispensáveis, outras que só fazem o pintor maior ou

menor. Das primeiras, é a primeira a imitação das coisas que se podem

conceber e representar, a segunda é a ideia, ou imitação das coisas não vistas,

mas só conhecidas no entendimento. (MACHADO, op. cit., 238)

Não apenas a presente obra de Cirilo revela a dupla qualidade do pintor como a

capacidade de imitar e a habilidade de imaginar, ou inventar, como os princípios básicos a

serem exercitados. Este ponto se repete em outras publicações, como a obra Nova academia

de pintura, e norteia todo o pensamento do autor, mesmo quando se refere à arquitetura. Ele

expressou esta dupla qualidade em sua própria autobiografia, conforme a passagem abaixo:

Passei a colorir e quando me pareceu que tinha copiado bastante quadros,

desejei inventar; esse desejo era intempestivo, mas eu não o podia conter; fiz

diversas tentativas, que só serviram para dar-me a entender as dificuldades da

empresa. Elas, contudo, não me desanimaram inteiramente, antes fizeram

aumentar a vontade que já tinha de ir a Roma. (MACHADO, 1823, p. 244)

Não bastaria ser um bom imitador, como os holandeses, os quais considerava

grosseiros imitadores do natural (MACHADO, op. cit., p. 238). O bom artista saberia unir a

ciência da técnica e a imaginação criadora. Isto se daria, primordialmente, pelo domínio

absoluto do desenho como a base para todas as outras linguagens, sobretudo para a pintura. E

é pela abordagem desta necessidade essencial do bom profissional que Cirilo tece a sua crítica

sobre os artistas barrocos. Este fato é fundamental para entendermos as transformações de fim

de século, pois a permanência de pintores da geração joanina e a vida longa da gramática

barroca em Portugal estariam em choque nesta fase de transição. Em uma passagem

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importante, assim Cirilo se refere a grandes nomes do século XVII em tom comparativo e

explícita preferência pelo Renascimento:

Da graça ao contorno – consiste na elegância, que é a faculdade unida à

variedade das formas; pode havê-las até nas incorreções porque a correção

corresponde à beleza. Caravaggio não tinha nem variedade nem correção, e

por isso seu desenho não vale nada. Rubens não tinha correção nem beleza,

mas tinha alguma graça. Corregio tinha tal graça que faz esquecer alguma

descorreção. (MACHADO, op. cit., p. 238)

A crítica a Caravaggio não constituía uma novidade no campo teórico. Panofsky

menciona o tratado seiscentista de Giovani Pietro Bellori, quando este último considerou o

pintor condenável por obedecer exclusivamente ao modelo, sem nenhuma correção ou ideia

própria (PANOFSKY, 1994, p. 103). Bellori também condenava os excessos maneiristas

como o outro lado perigoso, também responsável pela decadência da pintura no século XVII.

Percebemos que Cirilo Wolkmar Machado seguiu os mesmos princípios de Bellori,

indiretamente através do trabalho de Winckelmann, principalmente quanto à noção de artista

como aquele capaz de extrair da natureza as coisas belas, sempre com o compromisso de

corrigir as possíveis imperfeições. Bellori, na obra A ideia do pintor, do escultor e do

arquiteto, obtida das belezas naturais e superior à natureza, avisa que:

A arte era então combatida por dois extremos contrários: um inteiramente

submisso ao natural, outro inteiramente submisso à fantasia. Em Roma, os

autores desse ataque foral Michelangelo da Caravaggio e Giuseppe de Arpino:

o primeiro copiava simplesmente os corpos, tais como aparecem aos nossos

olhos, sem nenhum tipo de eleição, e o segundo afastava-se completamente do

natural para seguir apenas a liberdade de seu instinto. (...) Assim, quando a

Pintura vivia seus derradeiros instantes, os astros mais favoráveis voltaram-se

para a Itália, e prouve a Deus que na cidade de Bolonha, rainha das ciências e

dos estudos, surgisse um grande espírito e que com ele renascesse a Arte

decaída e quase morta. Foi ele Aníbal Carracci... (BELLORI, apud

PANOFSKY, p. 158)

A consciência lúcida com que desenvolve seus estudos e o senso de atualização sobre

o gosto internacional fazem de Cirilo Wolkmar Machado o principal teórico do

Neoclassicismo português nos Oitocentos. O apreço pela herança clássica da Antiguidade e de

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sua revalorização no século XIV sob os pincéis de Giotto são as diretrizes de sua abordagem

sobre a beleza, agora mencionada a partir de estudos sobre tratados do seu tempo, como os

mencionados acima.

Um dos pontos interessantes dos escritos de Cirilo encontra-se na menção sobre os

tratados de Francisco de Holanda, realizados no século XVI (MACHADO, op. cit., p. 50).

Este pintor e escritor do passado renascentista português defendia na ocasião a excelência da

arte antiga, antes mesmo de ter ido à Roma por patrocínio régio. Esta citação de Cirilo é

fundamental pela indicação sobre a circulação de impressos desta natureza na época. Revela

também o reconhecimento do autor sobre a tradição literária portuguesa, mesmo que limitada

sobre o assunto.

Podemos imaginar as discussões travadas quando vários artistas eram convocados para

um mesmo empreendimento, como a retomada das obras no Palácio da Ajuda a partir de

1802. Nesta ocasião, estavam juntos Domingos Antonio de Sequeira, Francisco Vieira

Portuense, Joaquim Machado de Castro e o próprio Cirilo, além de vários outros pintores,

escultores e arquitetos.

A presença de Cirilo Wolkmar Machado como intelectual semelhante à figura do

connaisseur do século XVIII expressa um alargamento do meio acanhado português de seu

tempo. Juntamente a ele, deparamos com outros personagens que também escreveram suas

impressões, um grupo de eruditos memorialistas preocupados em manter viva a herança

artística portuguesa para as gerações futuras. O escultor Joaquim Machado de Castro deixou

registrados fatos biográficos de cento e cinquenta artistas, publicação que circulou, mesmo

que incompleta, a partir de 179418

. O pintor José da Cunha Taborda, como Cirilo, preocupou-

se mais com a formação dos aprendizes, publicando a obra Regras da arte da pintura, de

1815.

18

A edição definitiva passou a circular em 1823, ano da morte do artista.

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A atividade intelectual no meio artístico português consiste em sintoma maior das

transformações de virada de século, acompanhada de uma reflexão prático-teórica mais

amadurecida sobre os parâmetros estéticos então em voga. Certamente houve um período

antecedente, o qual lançou as sementes que germinariam no final dos Setecentos, como foi o

caso de André Gonçalves e sua preocupação verbalizada sobre o estatuto social do pintor.

Parece que o Iluminismo havia penetrado finalmente no campo artístico, após dominar o

território das transações econômicas e dos complexos jogos políticos, incitando os envolvidos

a registrarem os frutos das análises e do conhecimento adquiridos e torná-los públicos.

Pierre Bourdieu considera a participação de artistas intelectuais como sintoma do

processo crescente de autonomia do campo simbólico, característico de um período de maior

complexidade. O autor explica que a heterogeneidade cada vez mais notável do público

consumidor, além da ampliação da atuação burguesa no mercado de arte, alguns dos fatores

essenciais para a organização mais sistemática dos produtores de bens simbólicos em torno de

ideias afins, tanto estéticas, como foi o caso do Neoclassicismo, como sociais (BOURDIEU,

2007, p. 100). Ele nos diz que:

(...) o movimento do campo artístico em direção à autonomia que se realizou

em ritmos diferentes segundo as sociedades e as esferas da vida artística,

acelera-se brutalmente com a Revolução Industrial e com a reação romântica

ligada, de maneira mais ou menos direta conforme as nações, a uma secessão

dos intelectuais e artistas que não passa do reverso de uma exclusão e até

mesmo de uma relegação. (BOURDIEU, op. cit., p. 102)

A nova situação exigiu também a adaptação do cliente na relação com a encomenda,

pois o objeto de seu interesse estava no seio de discussões que envolviam referências à

Antiguidade e aos grandes mestres renascentistas. Não era somente a habilidade do pintor a

principal razão da contratação, como acontecia no passado, mas o somatório de fatores que

incluíam a ciência de referenciais teóricos, no caso, neoclássicos. Os tratados não eram

publicações lançadas exclusivamente para a formação artística, mas literatura indispensável

para a burguesia culta e a aristocracia reinol desejosas de esclarecimentos sobre estética.

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Assim podemos dizer sobre a relação entre Domingos Antonio de Sequeira e a família

Quintella, anteriormente citada.

Foi este o ambiente que Manoel Dias de Oliveira vivenciou em sua breve passagem

por Lisboa. Da Aula Régia de Desenho e Figura aos anos que passou em Roma, experimentou

uma formação semelhante à dos protagonistas portugueses aqui analisados, desde Cirilo

Wolkmar Machado, o mais velho da geração neoclássica. Diferente das estampas classicistas

que começavam a chegar a solo brasileiro, o pintor fluminense presenciou o estilo no local de

sua formação e teorização, algo que o contaminaria a ponto de buscar soluções para modificar

o insipiente sistema de aprendizado de seu ofício na Colônia a partir do interesse de uma

classe específica por este tipo de instituição. Se a arte ainda era majoritariamente religiosa,

esta ganharia uma roupagem neoclássica, meticulosamente direcionada pelo desenho. O êxito

de Manoel Dias de Oliveira deveu-se, sobretudo, pela ação de uma aristocracia de formação

europeia que sabia exatamente o que poderia aproveitar deste artista local. Seria esta

aristocracia a principal cliente antes da chegada da Família Real ao Brasil.

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2 O CAMPO RELIGIOSO: ENCOMENDAS A SERVIÇO DA FÉ

(...) Como é manifesto, por si e pelas referidas razões,

que as imagens são muito importantes na instrução do

povo, não nos estenderíamos muito mais sobre esse

assunto e evitaríamos o supérfluo, se a isso não

fôssemos levados pela arrogante inconveniência dos

hereges, que apesar de tudo ousam censurá-las e se

esforçam para bani-las de todos os lugares por

considerá-las nocivas à salvação dos homens.

Cardeal Gabriele Paleotti, 1582

A investigação sobre as causas impulsionadoras das mudanças de gosto na virada do

século XVIII para o XIX deve passar primeiro pela pintura de temática cristã, pois foi o

gênero mais importante e numeroso em todo o período colonial. Transplantada para o Brasil

sob o âmbito contextual do Concílio de Trento, a pintura religiosa desenvolveu pouca afeição

a experimentalismos, mantendo na forma um radical barroco que agregou em sua essência

uma mescla com outras fontes, como o Maneirismo, o Rococó e, mais tarde, o

Neoclassicismo. O resultado, que poderia a primeira vista parecer homogêneo, guarda

interessante diferenciação de escolas que valorizam mais ou menos alguns elementos, como

as cores acentuadas na pintura baiana ou as contidas na fluminense. No geral, a harmoniosa

combinação de estilos sob a base barroca ocorre principalmente pela filiação de todos à

origem comum, a Antiguidade greco-romana. Com a sistematização das regras e sua difusão

pelas academias, desde o Renascimento, as mudanças estilísticas circularam em torno de uma

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concepção de espaço que somente seria quebrado nas experimentações modernistas do século

XIX.

O estudo da temática religiosa na pintura colonial do Rio de Janeiro compõe parte

inarredável da mesma situação de formação e desenvolvimento da Igreja na região, momento

histórico em que arte e religião estão inseridas em um complexo sistema de valores. A

organização da doutrina católica ao longo do século XVI, marcada pelos cismas travados pelo

protestantismo, integrou a imagem a um jogo baseado no misto de didatismo e persuasão. A

pintura aparece como aliada indispensável à transmissão de mensagens que procuraram

reforçar tudo aquilo que era questionado pelos protestantes, como as devoções à Virgem e à

numerosa legião de santos canonizados desde o Cristianismo primitivo (MÂLE, 1982, p.

168).

A arte no Brasil se desenvolveu sob a tutoria europeia, cristã. A ausência de uma

produção voltada para o consumo civil, sobretudo no que se refere à pintura, resumiu, nos

dois primeiros séculos de colonização, as criações inicialmente monásticas e conventuais de

peças dedicadas ao divino. Assim, as Ordens Religiosas, sobretudo as Primeiras, inauguraram

um lento processo de formação de profissionais que culminaria, mesmo que indiretamente, na

ascensão das oficinas de leigos dos Setecentos.

As novas devoções pós-tridentinas, as variadas invocações da Virgem e os temas mais

abundantes, como o êxtase, as visões, a penitência e o martírio, estão presentes nos templos

fluminenses, colocando a Colônia no mesmo programa imagético encontrado nas capitais

católicas da Europa. Contra a iconoclastia protestante, a época barroca acentuou nas imagens

a função propagandística, com mensagens de forte apelo aos sentidos. Esta função seria cara

ao ambiente colonial, devido a fatores que poderiam concorrer como possível fracasso da

missão cristã: o desafio de converter nativos considerados pagãos e a difícil manutenção da fé

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católica em um lugar de dimensões continentais com graves problemas de comunicação entre

os principais núcleos urbanos.

Compreender o Barroco como fenômeno social é essencial para a identificarmos os

aspectos que começaram a mudar na transição do século XVIII para o XIX. A gradual

absorção do Neoclassicismo nos leva a supor que o papel do encomendante neste instante foi

fundamental para percepção dos novos rumos, pois um estilo traz consigo concepções de

mundo que estão presente nas relações entre os produtores de bens simbólicos e a função

destes bens junto à sociedade. Do mesmo modo que o Rococó foi mais que uma mudança

estilística, pois afetou a postura do fiel diante do sagrado, o Neoclassicismo seria um

indicador de uma mentalidade também em transformação.

Apesar de contar com certa manutenção de alguns elementos do amplo programa que

citamos acima, o início dos Oitocentos assistiu a uma inovação iconográfica ao ter obras com

figuras santas em cenas que misturam personagens civis e, em alguns casos, mitológicas. De

resto, a temática religiosa atravessou o período colonial com um conservadorismo peculiar,

ligada a funções bem determinadas. Enquanto Portugal absorvia a sua maneira a Ilustração, da

qual se beneficiaram Portuense e Sequeira, o Brasil era mantido em um sistema relativamente

fechado, resultado da política mercantilista a qual estava atrelado, sob o chamado pacto

colonial19

. Lembramos, ainda, que o conservadorismo não impediu certas experimentações,

seja pela necessidade de compensar a total falta de recursos com iniciativas criativas, seja pela

presença da cultura negra e indígena no fazer artístico colonial20

.

O papel das cortes ibéricas no desenvolvimento da iconografia barroca teve seu eco

nas colônias americanas, reverberando a retórica de uma arte essencialmente persuasiva

19

Na prática, uma colônia existia para servir aos interesses metropolitanos e isto implicava o isolamento, pois

não era permitido o comércio com outros países. 20

Em alguns casos, o fator cultural emprestou soluções originais a certas composições, muito pela formação

precária dos artistas coloniais.

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através da ação missioneira das ordens religiosas, sobretudo a jesuíta. O naturalismo ressurgiu

aliado ao drama importado do teatro, linguagem popular que ganhou forma peculiar ainda na

época dos experimentalismos intelectualistas da geração maneirista de El Greco. O povo,

distante das discussões sobre a forma artística travadas nos círculos de elite, seguiu o seu

caminho criativo com a predominância da comunicação fácil e direta, como as crônicas e

paródias da vida cotidiana e os dramas carregados de emotividade. E é justamente esta clareza

de comunicação o ponto nodal da arte barroca, nascida na massa e transformada pelos poderes

monárquico e eclesiástico para tocar a própria massa (MARAVALL, 1997, p. 152). Giulio

Carlo Argan, na obra Imagem e persuasão, nos diz que:

(...) a imagem não age nem sobre a ação nem sobre a decisão, mas atua sobre

as intenções: não fornece esquemas ou modelos, mas solicitações.

Evidentemente estas serão tanto mais eficazes quanto melhor corresponderem

às atitudes, aos interesses e ao costume dos vários estratos sociais. É claro que

há uma estrutura hierárquica que transmite a solicitação de cima para baixo,

mas há também a tendência oposta, que emerge da base da pirâmide

hierárquica e conquista uma influência cada vez maior no tratamento de

questões de interesse geral. (ARGAN, 2004, p. 58)

Argan revela o caminho de mão dupla da formação de uma cultura essencialmente

barroca, quando a linguagem tipicamente popular é absorvida pela elite e devolvida à massa

com elementos familiares a ela. O papel dos jesuítas na conformação de um modelo capaz de

atrair através da persuasão extrapola a esfera do religioso e penetra em todas as esferas de

poder. No mesmo sentido, Pierre Bourdieu explica a noção política inerente à produção dos

objetos religiosos, perfeitamente aplicáveis à concepção barroca de transmissão da mensagem

cristã. Ele comenta que:

Tendo em vista que uma prática (ou uma ideologia religiosa), por definição,

só pode exercer o efeito propriamente religioso de mobilização (correlato ao

efeito de consagração) na medida em que o interesse político que a determina

e a sustenta subsiste dissimulado em face tanto daqueles que a produzem

como daqueles que a recebem, a crença na eficácia simbólica das práticas e

representações religiosas faz parte das condições da eficácia simbólica das

práticas e das representações religiosas. (BOURDIEU, 2007, p. 54)

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O contexto da doutrina católica no século XVII considerava a imagem uma parte

integrante de um sistema complexo de propagação da fé. Isto implicava a associação direta

aos demais instrumentos de comunicação, como os sermões, a leitura dos Evangelhos, as

festas litúrgicas e populares e o contato íntimo entre os fiéis e os frades das diversas ordens.

Assim, a essência polissêmica da imagem ganhava um direcionamento específico, uma

ancoragem que estabelecia o vínculo entre os atributos identificadores de cenas e personagens

e a sua correta leitura. A Virgem da Conceição, figura de destaque no mundo português,

exemplifica a bem-sucedida rede de comunicação entre as linguagens. A aparente

complexidade de sua iconografia, a qual abarca uma mistura variada de elementos simbólicos,

não parecia obstáculo para os devotos, mesmo os mais humildes habitantes das pequenas vilas

coloniais.

A assimilação das mensagens icônicas devia-se, sobretudo, à ação dos religiosos. A

consciência da majoritária parcela analfabeta da população, situação verificada tanto nas

capitais católicas europeias quanto nos centros principais das colônias americanas, africanas e

asiáticas, contribuiu para criação de uma face imagética para o programa da Igreja. Investir

em imagens e no ensino de seus códigos significou a garantia de transmissão da palavra

divina, algo que o Cristianismo sempre soube lidar desde a época das perseguições romanas.

Não surpreende a valorização das cenas de narrativas, feitas para provocar um comportamento

puramente devocional. Segundo Argan:

A imagem devocional já aparece na pintura maneirista tardia, com a função de

dar à prece um objeto sensível. No século XVII ela se torna um instrumento

da prática devota e um “gênero” da figuração histórico-religiosa; está sempre

ligada a uma prática específica de devoção, às vezes a preces específicas; tem

uma função mais exortativa que representativa ou de celebração; e é

simplificada a fim de prestar-se mais facilmente à repetição e a uma maior

divulgação. (ARGAN, 2004, p. 102)

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Tamanho investimento na imagem vem revestido da ideia da primazia da visão em

relação aos outros sentidos. Preconizado desde o Renascimento, o conhecimento adquirido

através do olhar ganha na época barroca importância capital, por ser direto e agir com eficácia

na experiência psicológica. Atrair pelo afeto, direcionar no fiel ou súdito a entrega do corpo e

da alma, fazer de sua adesão uma força multiplicadora são alguns dos aspectos

impulsionadores da produção de imagens. Daí a iconografia dramática receber uma forma

naturalista, que atua no reconhecimento das partes através do sentido do tato visual, o qual

mistura a matéria aparentemente palpável em representação espiritual que parece possível

alcançar. José Antonio Maravall, na obra A cultura do Barroco, nos diz que:

O valor da eficácia dos recursos visuais é incontestado na época. Vinha do

fundo medieval a disputa sobre a superioridade do olho ou do ouvido para a

comunicação do saber a outros. Enquanto no mundo medieval se optou pela

segunda via, o homem moderno torna-se adepto da primeira, ou seja, da via do

olho. No Renascimento, isto que acabamos de sustentar se confirma

plenamente, e, em algum momento, mencionamos a defesa que do olho faz

um Galileu, entre outros. Essa disputa se reproduziu, e até mesmo se

intensificou, durante o Barroco. Difundiu-se muito entre os escritores

franceses do momento e, em relação aos espanhóis, acrescentemos aos

testemunhos que registramos em outras partes o de Suárez de Figueroa, que

faz uma declaração perfeitamente ajustada a nosso ponto de vista, reforçando-

o consideravelmente: ambos, segundo ele, olhos e ouvidos, são portas de

acesso válidas para o conhecimento das coisas, mas em suma, são os olhos,

entre os sentidos que servem à alma, por onde entram e saem muitos afetos.

(MARAVALL, 1997, p. 391)

Os novos tempos foram de afirmação, continuidade e renovação. Afirmar a verdade da

Igreja na figura principal do Papa e continuar com a sua doutrina evangelizadora constituíram

as ações básicas de resposta às contestações protestantes. Renovar as estratégias de

transmissão dos conteúdos que explicassem os porquês desta continuidade, frente aos apelos

oriundos de outra forma de exercitar a fé cristã, foi a especificidade do período barroco. Aqui,

nesta particularidade, as artes emprestaram toda a sua força persuasiva para reorganizar a

sociedade em profunda crise.

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Os ecos do Concílio de Trento invadiram o século XVII, mas seria simplificador

caracterizar a arte religiosa da época apenas como uma servidora dos ideais contrar-

reformistas. Percebemos que a arte barroca participou de uma situação mais ampla que

envolvia a tentativa de manutenção dos interesses das classes que mantinham

tradicionalmente o poder. A crise iniciada no século anterior trouxe consigo o aprimoramento

da consciência individual, o que implicou o entendimento crítico sobre a situação caótica

vivenciada no momento. Esta consciência, perigosa por abrir portas para a dispersão social,

exigiu das cortes absolutistas seiscentistas a elaboração de complexas estratégias de controle,

como a divulgação do poder central como o único meio competente para a restauração da

ordem e do equilíbrio. Assim, a religião, também em crise, esteve contida em um conjunto de

fatores que interligaram as esferas da economia, da política e do social.

A urgência em conservar os agentes tradicionais do poder, inseridos em uma

turbulência causada por múltiplos vetores, explica em parte o gosto pelo drama. A arte

gesticulada e intensamente emocional do barroco religioso, longe de conter sentimentalismos

exagerados de quem a produz – considerando aqui a parceria entre o cliente e o artista –

evidencia uma clara intenção de agir no plano psicológico. É uma arte projetada e funcional, a

serviço do poder que a Igreja constituiu um dos pilares. Titus Burckhardt a diferencia da

produção medieval, esta última, segundo o autor, essencialmente religiosa por ser toda ela

símbolo e instrumento do divino (BURCKHARDT, 2004, p. 251).

Werner Waisbach, em sua análise sobre a plástica barroca, diz que:

Os esforços naturalistas do barroco, comparados com qualquer período

anterior da arte cristã, aspiram a dominar a realidade, enquanto a mímica e a

expressão fisionômica tratam de reforçar ali o caráter real do assunto,

mediante significativos e apurados traços expressivos. Cabeças de rostos

inacabados, bocas abertas, olhos em branco, para caracterizar dor, angústia,

morte e êxtase, segundo pede cada situação, são representados atendendo a

observação da realidade. As figuras santas e os seres sobrenaturais aparecem

individualizados e subjetivados como homens vulgares. Este gênero de

caracterização naturalista era familiar à arte cristã desde o gótico, mas o grau

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de concepção subjetivista se acentuou poderosamente no barroco. Nela influiu

o desenvolvimento e o enriquecimento da experiência e dos conhecimentos

psicológicos e antropológicos. (WAISBACH, 1948, p. 323)

Heinrich Wölfflin, na sua célebre comparação entre o Renascimento e o Barroco,

analisou o par antitético que intitulou como linear versus pictórico (WÖLFFLIN, 2000, p. 27).

Por desvalorizar os contornos a favor dos contrastes cromáticos e luminosos, os artistas

barrocos buscaram aprimorar as pesquisas naturalistas anteriores, objetivando a representação

de espaços novos, dramáticos e sensualistas. O colorismo dos Carracci ou o tenebrismo de

Caravaggio e a valorização das expressões teatrais carregadas de dinamismo encobriam a

pintura de forte carga passional, escondendo a sua real face racionalista, não notada por

Wölfflin e por muitos teóricos posteriores a ele. O desenho, símbolo do intelecto na arte,

permaneceu como porto seguro da época barroca. Os estudos preliminares a cada composição,

a proliferação das gravuras a partir de técnicas mais apuradas e a abertura de academias,

sobretudo a do reinado de Luís XIV, deram o testemunho de que toda emoção era ensaiada,

como uma peça de Shakespeare.

Como mencionamos anteriormente, a forma barroca por excelência foi pensada a

partir de linguagens visuais para sensibilizar o olho. Nesta função primordial, a pintura

adquiriu vantagens quando comparada as outras linguagens, justamente pelos artifícios que

emprega. A capacidade do pintor de recriar a realidade através de minuciosa pesquisa de

texturas, de sugerir volumes e espaços em plano bidimensional e de conferir movimento e

dramaticidade em um meio estático por natureza fez dele um personagem central na difusão

da fé católica. Maravall afirma que:

Com muito menos meios que a escultura e a arquitetura, já que não pode

contar com a terceira dimensão do mundo natural, ou seja, não pode servir-se

fisicamente do volume, a pintura, no entanto, demonstra melhor até onde vai a

grande força criadora do homem: por encontrar-se mais distante da natureza

do que as outras artes, imita-a melhor que qualquer uma. Esta consideração

nos revela o sentido da preferência que, por sua vez, os homens de

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mentalidade barroca tiveram pela arte pictórica, na medida em que é este um

modo de operar humano capaz de refazer seus modelos naturais.

(MARAVALL, 1997, p. 402)

O racionalismo sob a máscara do teatro levanta questões que serão relevantes para o

caso colonial, como a necessidade do governante compreender quem se governa. A Igreja

teve nos jesuítas os arautos do conhecimento do outro que, conforme mencionamos acima,

fornecia os ingredientes necessários à formulação do tipo de direcionamento que o mesmo

receberia. O estudo do comportamento e da psicologia que diferenciava indivíduos e povos

compunha a base do pensamento político no qual a Igreja estava inserida. Pensamento capaz

de prever que a opção ideológica, nem sempre controlada pela elite, podia deslocar indivíduos

para outras formas de exercício da fé. Os protestantes haviam deixado clara a abertura de

outro caminho para se chegar a Cristo. Segundo Argan:

Como o problema do comportamento parece bem mais importante que o da

própria natureza humana, e já que o comportamento se exprime na esfera

social, a questão da sociedade e de sua organização funcional logo se

apresenta como essencial. Não só a divergência religiosa, que divide a

humanidade cristã em dois grupos distintos e opostos, implica a possibilidade

de uma salvação ou de uma danação coletivas, dependendo unicamente da

escolha inicial, mas tanto a doutrina reformada quanto a ortodoxa colocam a

questão da fé e de um comportamento sociais: os reformistas limitam a

autonomia individual revogando o princípio do livre-arbítrio, os católicos

indicam a fé e o culto de massa como as melhores defesas contra a tentação da

heresia. De qualquer modo, em ambos os casos a religião se preocupa mais em

dirigir as escolhas e os comportamentos humanos do que em contemplar e

descrever a lógica providencial do universo. E, já que há controvérsia, ambas

as partes buscam argumentos que possam orientar a escolha e impedir as

dissidências. Em suma, persuadir agora é bem mais importante que

demonstrar. (ARGAN, 2004, p. 49)

A arte dramática do Barroco católico traduz o paradoxo do sistema das monarquias

absolutistas que transitaram entre a força militar de repressão e a atração por seus próprios

ideais, através da persuasão. O exército e a Inquisição foram, muitas vezes, a mesma coisa,

pois representavam a voz dos soberanos através da violência física. As festas oficiais, o teatro

e as artes em geral eram, por outro lado, os instrumentos persuasivos utilizados para manter o

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indivíduo parceiro daquele que o dirigia. Parceria que levanta um ponto crucial para o sucesso

de todo o programa barroco: a consideração do público como participante ativo da obra.

A fisiologia das paixões foi distanciada do caráter empírico da geração de Leonardo da

Vinci para mergulhar no campo das emoções orquestradas. A gramática corporal dos santos

barrocos não apenas diziam, mas comoviam e atraíam pela afetividade. Como bem diz José

Antônio Maravall:

É preciso aceitar a presença das forças irracionais dos homens, seus

movimentos afetivos, conhecê-los, dominar seus recursos e aplicá-los

convenientemente, canalizando sua energia para os fins pretendidos. É preciso

operar com os homens do modo como se opera com os elementos da natureza,

só governáveis a partir de suas próprias forças. (MARAVALL, 1997, p. 148)

O autor complementa:

Comover o homem, não o convencendo de forma demonstrativa, mas

afetando-o, de modo que sua vontade seja acionada: esta é a questão. Só assim

se consegue arrastar o indivíduo, suscitando sua adesão a uma atitude

determinada, e somente por essa via se logra mantê-lo solidário. Para a mente

barroca, é a única maneira de atrair para si uma massa cuja opinião leva em

conta, de modo a impor-se a ela, canalizando sua força na direção desejada.

(MARAVALL, op. cit., p. 149)

Como podemos perceber, o pensamento de Maravall se afina perfeitamente com as

análises de Argan sobre a filiação do Barroco à Retórica de Aristóteles (ARGAN, 2004, p.

37). O artista devia refletir em sua obra o sentimento de religiosidade do outro, espelhada em

imagens cuidadosamente estudadas com a intenção de capturar a atenção, de tocar a emoção e

de atrair forças favoráveis à manutenção de um sistema que se desejava conservado.

Persuadir, neste sentido, não seria uma ação em si, mas justamente a pesquisa de como atingir

os fins pretendidos. A arte barroca foi uma arte de meios, de artifícios controlados e

teorizados para se alcançar o irracional. Assim, as narrativas não deviam demonstrar fatos,

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mas fazê-los acontecer a partir da adesão do espectador. Não era ao intelecto que a pintura se

dirigia e sim às paixões.

Por visar o irracional, muitos teóricos insistiram em contrapor o aparente caldeirão de

sentimentalismos barrocos ao cientificismo matemático do Renascimento. Vale salientar que

este período histórico foi inicialmente abordado no século XVIII sob olhares preconceituosos,

tanto no que diz respeito à forma, quanto aos temas. Relevante dizer que a associação do

Barroco aos valores eclesiásticos e monárquicos, alvos de ferrenhas críticas no Século das

Luzes, colaborou para a tardia percepção de sua real natureza racional.

Insistir no caráter funcional da arte barroca torna-se imprescindível ao entendimento

do processo de estabelecimento da Igreja na América Latina. A heterogeneidade de

civilizações nativas do imenso continente, a grande diferença entre estas culturas e os

europeus e a variedade notável da geografia da região são alguns dos fatores que exigiram

uma sistematização aprimorada do projeto evangelizador. Unificar a terra através da língua

sob conteúdo catequético conferiu o tom prático do programa, enquanto as artes, sobretudo a

arquitetura, impregnaram a visão e os demais sentidos de todo o aparato simbólico

correspondente.

A essência da arte barroca europeia penetrou nas colônias americanas transplantada,

mantendo-se fiel aos seus princípios ideológicos básicos e alterando, conforme a absorção de

particularidades culturais locais, os elementos da forma. A diversidade de escolas regionais

afirma a internacionalidade do Barroco, estilo flexível e orientado por eficaz e rígido

programa iconográfico. A unidade deste estilo encontra-se também na repetição do modelo

persuasivo de apresentação de conteúdos, os quais receberam novas diretrizes após o Concílio

de Trento. O produto final é discursivo, diferente do formalismo renascentista.

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O pintor colonial deve ser visto como um instrumento eficaz na política persuasiva da

Corte e da Igreja. Sua atividade, entretanto, o diferia do artista da Metrópole pela ausência em

seu trabalho de um projeto consciente e participativo na conjuntura geral do poder. Quando

observamos um André Gonçalves questionador e ativo, mesmo sem grandes sucessos em suas

reivindicações, vemos alguém articulando estratégias para o incremento de sua própria

profissão, integrado à rede de interesses que movia a sociedade barroca. O artista colonial

seguia o fluxo da massa como produtor de peças para o divino, em uma estrutura social que o

via como artesão.

Sabemos que em Portugal a pintura se liberta das artes mecânicas ainda no século

XVII. Porém, tal conquista não poderia atravessar o Atlântico para um lugar onde a classe

mais baixa se distribuía nas diversas funções artísticas, incluindo, a partir da segunda metade

dos Setecentos, negros, pardos e mulatos. É sintomática a ausência da assinatura nos painéis

coloniais, salvo em raríssimos casos. O anonimato que tanto dificulta o pesquisador nas

atribuições das obras, indica a pouca consciência de um fazer que na Europa incitava o artista

a conquistar posições de destaque, como, por exemplo, ser nomeado pintor real ou participar

dos salões das academias.

A circulação de impressos, no qual a gravura teve papel fundamental de divulgação

dos conteúdos, complementou a rede de informações iconográficas de todo o período

colonial. Aqui, a figura do cliente aparece como peça-chave no processo de criação local,

funcionando como elo entre as oficinas europeias de produção de impressos e o artista. Ao

longo do século XVII e parte do XVIII, o pintor do mundo ibero-americano esteve

diretamente filiado ao projeto de seu cliente, época de ascensão das gravuras de tradução. A

prática da cópia de obras consideradas consagradas através de estampas acontecia nos dois

lados do Atlântico, não sendo exclusivo ao mundo colonial, como se costuma apontar com

certa negatividade. A cópia representava, entre outros fatores, uma escolha que, na maioria

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dos casos, independia da vontade do pintor. Alfonso Sánchez, exemplificando o caso espanhol

na obra Pintura barroca em España, nos diz que:

Geralmente, o pintor espanhol do barroco sempre trabalha para alguém. Por

não existir uma sociedade aberta de tipo burguês que solicita uma demanda de

pintura de uso doméstico, como a holandesa, o pintor se vê freqüentemente

obrigado a trabalhar por encomenda e não é comum que pinte por sua própria

iniciativa para vender livremente o produto de seu trabalho. (SÁNCHEZ,

2005, p. 29)

O problema da cópia gira inevitavelmente em torno da função da pintura em uma

sociedade essencialmente imagética. A associação entre o símbolo e a realidade, a ponto de

não haver, em muitos casos, a distinção entre estas concepções, consiste em um dos pontos

nodais do pensamento seiscentista. O santo pintado era o próprio santo, em uma aplicação da

imagem como apresentação e não como representação. A recorrência a modelos conhecidos e

sua ampla circulação também concordavam com o espírito propagandístico que entendia a

repetição como estratégia de transmissão eficaz das mensagens. Entre a cópia e a invenção,

em um sistema de produção ainda dominado pelo gosto do cliente, a primeira prática

aconteceu com maior frequência.

O aprimoramento técnico da gravura no final do século XVII contribuiu para a maior

difusão da imagem e da ampliação do público consumidor. As funções tornaram-se, por

conseguinte, mais variadas, aumentando também as fontes de consulta para a execução da

pintura. No mundo colonial latino-americano, as gravuras de tradução e os registros de santos

foram os modelos mais comuns à disposição do artista, ambos trazidos, principalmente, por

membros das ordens e irmandades religiosas.

Os registros de santos são uma variante medieval do costume de adquirir objetos nos

locais de peregrinação, como uma espécie de prova do cumprimento de uma jornada

espiritual. As romarias são tão antigas quanto o próprio Cristianismo, constituindo parte do

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receituário litúrgico desta religião. As primeiras ocorreram em Roma (daí o nome romaria),

logo após o martírio e sepultamento do apóstolo Pedro. O auge das peregrinações aconteceu

no período românico, época das Cruzadas e, somando-se no caso ibérico, às viagens a

Santiago de Compostela. A tradição das longas jornadas a locais santos ingressou na Idade

Moderna simplificada, transformando-se em deslocamentos a templos que possuíam relíquias

de santos ou em ocasiões previstas no calendário, como festas e dias especiais. Os objetos de

registro de estada do fiel continuaram, mas com o sentido mais próximo de uma lembrança

daquela prática devocional. Neste contexto, a gravura com a figura do santo desempenhava a

função de registro.

O cunho popular das gravuras de santos não esconde a produção de tipos mais

eruditos, com elegantes desenhos de molduras e medalhões com as insígnias dos santos ali

representados. Estas, geralmente a buril, diferenciavam-se das mais rústicas feitas na técnica

da xilogravura, reservadas a gente mais simples. Os dois modelos apareceram com certa

constância nas colônias latino-americanas e estiveram diretamente atreladas à condição

financeira da irmandade que realizava a sua importação. As igrejas consumiam variedade

considerável de objetos para suprir as demandas devocionais de seus fiéis, espalhando notável

quantidade de figuras que serviram como modelos a artistas de diversas procedências. Este

fato colabora para a análise da heterogeneidade de estilos encontrados, muitas vezes, no

conjunto de obras de um mesmo artista.

A história da gravura em Portugal remonta ao século XV, época em que a imagem era

diretamente associada à tipografia. A técnica da xilogravura avançou até os princípios dos

Seiscentos como prática dominante, sendo raros os exemplos feitos em metal até então

(CHAVES, 1927, p. 12). O cobre foi difundido com maior frequência como matriz no período

da União Ibérica, introduzindo um repertório formal típico das escolas hispânicas e

flamengas. Mesmo com a absorção de novas técnicas e a apresentação de notável crescimento

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qualitativo, a gravura produzida em Portugal continuava vinculada ao livro, muitas vezes

resumida unicamente à ilustração da capa. As imagens avulsas, geralmente registros de

santos, eram provenientes das oficinas de escolas internacionais do período, como Antuérpia e

Roma.

A fase de ouro da gravura portuguesa ocorreu no reinado de D. João V, quando, em

1720, a Academia Real de História foi inaugurada. Distinguia-se a instituição de recuperar e

proteger documentos antigos, além de promover o desenvolvimento da literatura através da

composição e publicação de livros. Na esteira deste notável crescimento das letras em

Portugal, gravadores estrangeiros foram contratados para a ilustração, responsáveis pela

proliferação da gravura em metal no país. Estes artistas também contribuíram para o ensino de

técnicas consideradas modernas a novas gerações de gravadores portugueses. A gravura

avulsa não apenas alcançou extraordinária difusão, mas também exibiu as marcas de um

refinamento somente encontrado, em épocas anteriores, nas peças provenientes de outros

países21

.

A gravura de tradução, corrente em lugares de forte tradição gráfica desde o século

XVII, despontou em Portugal no período joanino como material também produzido por

artistas locais. Os exemplares encontrados nas principais escolas portuguesas dos Seiscentos

eram comumente fruto de importação, o que evidencia a majoritária interferência do gosto do

cliente na escolha do repertório iconográfico e formal a ser executado. A mudança

proporcionada pela abertura da Academia Real de História não diminuiu a figura do

encomendante no processo, mas apontou para uma nova realidade no que se refere à absorção

e transmissão de modelos: os pintores da geração joanina continuaram a mercê do gosto

21

A coleção de gravuras da Biblioteca Nacional de Lisboa mostra a proliferação da gravura em Portugal no

século XVIII. Quando comparada ao número relativamente pequeno de exemplares do século anterior, a coleção

da época joanina revela a vasta circulação de impressos a partir de então, o que interfere diretamente na difusão

de modelos iconográficos que serão utilizados tanto em Portugal quanto no Brasil.

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alheio, com a novidade de se tornarem também referência para as gravuras de tradução

através de obras de sua autoria. Isto demonstra a maior maturidade do meio artístico

português, revelando nomes de destaque como André Gonçalves e Vieira Lusitano.

A universalidade do Barroco não teria alcançado esta abrangência sem o

aprimoramento dos meios de comunicação. No caso da imagem, a gravura de tradução foi,

sem dúvida, a grande protagonista da difusão dos modelos iconográficos consagrados,

reconhecidos, sobretudo, pelos líderes da Igreja. Como exemplo de sua extensão, destacamos

o caso de Manoel da Cunha e Silva, pintor fluminense de meados do século XVIII que

executou uma bandeira de procissão cuja fonte remete a importante obra de Peter Paul

Rubens, a Descida da Cruz (figuras 13 e 14). A disposição dos elementos segue

criteriosamente o seu modelo, com exceção da distribuição das cores e intensidade da luz. Por

tratar-se de tradução de um meio gráfico geralmente destituído de cores, o resultado mostra

algumas inversões, como observado na troca do vermelho original da túnica de São João pelo

azul, na obra do pintor fluminense.

Alguns aspectos da obra de Cunha e Silva trazem subsídios para entendermos

características formais da pintura colonial setecentista em geral. O primeiro ponto refere-se à

preferência, verificada em todas as escolas regionais, por compor a partir do jogo de cores,

sem contrastes entre zonas claras e escuras. A pintura portuguesa havia, desde as décadas

iniciais do século XVIII, abandonado o tenebrismo da fase anterior. Esta tendência nem

chegou a formar escola no Brasil, mesmo no século XVII. A transposição da gravura para o

painel muitas vezes exigia uma percepção de nuances de luz que vários profissionais não

eram capazes de executar. Vale salientar que a pintura seiscentista colonial foi fruto de artistas

com pouca experiência, em ambiente ainda inóspito para a formação de uma produção de

qualidade, salvo os pincéis de poucos frades e monges de origem europeia.

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Figura 13 – Peter Paul Rubens. A Descida da Cruz. 1612. Óleo sobre madeira. 462 x 341 cm. Catedral de Antuérpia.

Figura 14 – Manoel da Cunha e Silva. A Descida da Cruz. Óleo sobre madeira. Igreja de N.Sra. do Bonsucesso, Rio de Janeiro.

Bom lembrar que o Setecentos português seguiu as diretrizes do Barroco tardio

romano, este mais afeito à herança colorista dos Carracci22

. As características principais são a

claridade como elemento fundamental, a releitura dos modelos classicistas de Rafael e de

Correggio e a minuciosa pesquisa de atitudes e movimentos das personagens

(PACCIAROTTI, 2000, p. 29). Os pintores bolsistas da geração de D. João V receberam

diretamente de Roma as lições dos mestres seguidores dos Carracci e, certamente,

contribuíram para que o gosto colorista se espalhasse pela América portuguesa.

A geração de Manoel da Cunha e Silva foi, por conseguinte, colorista. Os exemplares

sobreviventes de João de Sousa, Leandro Joaquim e Raimundo da Costa e Silva, pintores

contemporâneos, atestam tal filiação formal. A imagem que ora analisamos, apesar de

escurecida pelo tempo, revela a distribuição uniforme da luz em toda a composição, diferente

22

São eles os bolonheses Ludovico, Agostinho e Annibale, ativos desde o final do século XVI.

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da pintura original do mestre flamengo. Toda a dramaticidade do jogo entre claros e escuros

cedeu lugar aos tons azulados sem grandes contrastes. O destaque se dá pela centralização de

Cristo em área embranquecida pelo tecido.

A cópia mostra ainda a pouca familiaridade do pintor com a representação anatômica

do nu. As várias deformidades do abdome e de outros músculos do corpo de Cristo

denunciam a ausência de uma escola capaz de fornecer os exercícios necessários para a

correta definição das partes, ou seja, do desenho como estudo preliminar. Submetido à

qualidade nem sempre admirável da gravura, o pintor colonial mediano sucumbia ao erro

muitas vezes inocente e foram raros os que desenvolveram a habilidade para superar as

dificuldades básicas da profissão.

A interpretação de Manuel da Cunha e Silva a partir da gravura correspondente à obra

de Rubens manteve, no entanto, a movimentação dramática da cena comum ao Barroco. A

profusão de elementos faz com que os detalhes desapareçam a um primeiro olhar,

direcionando o foco para a figura central, a imagem do corpo sem vida de Cristo. Neste

sentido, o artista foi bem-sucedido em sua transposição da linguagem gráfica para a pictórica,

pois a mensagem, passada através do conjunto teatralizado de personagens, convida o

espectador a participar da ação ali orquestrada. O sentido fundamental da obra barroca, ou

seja, a de provocar comoção, aparece na pintura do fluminense.

A grande variedade de gravuras de tradução e a sua múltipla referência ao passado

artístico europeu promoveram na produção colonial uma verdadeira mistura de estilos. Se

buscarmos no conjunto de obras do mesmo Manoel da Cunha e Silva, encontraremos,

juntamente ao Barroco flamengo de Rubens, elementos renascentistas, maneiristas e rococós.

Daí a sensação de heterogeneidade no trabalho de um pintor e a dificuldade do pesquisador

em reunir tamanha diversidade na atribuição a uma mesma pessoa. Lembramos do papel

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preponderante do encomendante, representado na sua grande maioria pelas irmandades, no

processo de crescente diversificação de temas e respectivas fontes. Myriam Andrade Ribeiro

de Oliveira, na pesquisa intitulada O Rococó Religioso no Brasil e seus antecedentes

europeus, nos diz que:

Em que se pesem fatores de cunho negativo como a influência anticlerical do

Iluminismo, a expulsão dos jesuítas em 1759 e a crise generalizada das demais

ordens religiosas gerada, em parte, pelo excesso de interferências do poder

civil, o século XVIII brasileiro foi um grande século religioso. A principal

prova está no imenso número de novas construções religiosas nesse período,

devidas na maior parte à iniciativa das associações laicas conhecidas pelos

nomes de confrarias, irmandades e ordens terceiras. (OLIVEIRA, 2003, p.

167)

Mais adiante afirma que:

A proliferação dessas associações religiosas atingiu em fins do século

proporções julgadas alarmantes pela Coroa portuguesa, motivando o Marquês

de Pombal a sugerir a sua supressão, excetuando da pretendida medida apenas

as do Santíssimo Sacramento, Ordem Terceira do Carmo e Misericórdia. Tal

projeto não chegou, entretanto, a se concretizar, continuando a instituição das

irmandades a atuar no Brasil nas eras monárquica e republicana, tal a força de

sua identificação com a alma popular. (OLIVEIRA, op. cit., p.168)

O notável florescimento das irmandades de leigos no Rio de Janeiro setecentista e suas

particularidades em relação ao social, à devoção e aos interesses de seus membros

colaboraram para criar um mercado cada vez mais heterogêneo de arte. Se, em Minas Gerais,

houve uma proliferação de oficinas concordantes com a quantidade de irmandades existentes,

local onde a proibição régia impediu a instalação de Ordens Primeiras, irmandades e oficinas

laicas também encontraram no Rio de Janeiro local favorável ao seu desenvolvimento. Esta

integração do leigo na vida religiosa e na ordem social cotidiana imprimiu ao século XVIII

dinamismo não observado no sistema de oficinas conventuais dos Seiscentos.

As estampas religiosas de origem europeia transitavam com maior liberdade nos

portos brasileiros, sem a pressão da censura que os demais impressos estavam sujeitos.

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Entravam em forma de gravuras avulsas, bíblias e missais, compondo um vasto acervo tanto

para o exercício da fé quanto para alimentação do farto manancial de modelos que serviram

aos pintores coloniais. Hannah Levy, no pioneiro estudo sobre as estampas que circularam no

Brasil, realizou um levantamento de dezenas de fontes à disposição dos artistas da época

(LEVY, 1944, p. 143)23

.

A crescente diversificação na pintura colonial, seja pela atuação de um público

consumidor com interesses cada vez mais específicos, seja pela consequente circulação de

impressos que alimentavam estes interesses, aparece como realidade nas décadas finais dos

Setecentos. As escolas regionais continuaram em plena produção de imagens religiosas,

enchendo os templos brasileiros de uma arte de estilos misturados, atribuída a indivíduos que

foram gradualmente imprimindo em seu trabalho, uma assinatura plástica identificável.

A segunda metade do século XVIII proporcionou condições favoráveis à assimilação

de novos estilos e atitudes em relação ao fazer artístico. A transferência da capital de Salvador

para o Rio de Janeiro foi um dos fatores, mas não o único. A consciência de uma pequena

parcela consumidora de arte sobre as vantagens de se ter artistas bem formados aconteceu não

apenas na nova capital. Sabemos que o baiano José Teófilo de Jesus foi enviado a Portugal na

mesma época em que o fluminense Manoel Dias de Oliveira partiu para o mesmo destino,

ambos patrocinados por ricos comerciantes. Intentaremos, então, investigar a essência destes

interesses, em um ambiente acanhado para certas inovações.

23

Interessante notar a quantidade de exemplares oriundos das oficinas flamengas, o que revela a preferência por

esta escola no que diz respeito à temática religiosa.

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2.1 O PINTOR SETECENTISTA FLUMINENSE E AS IRMANDADES RELIGIOSAS

O Rio de Janeiro, antes mesmo de se tornar o centro político da Corte na América,

atravessou o século XVII como um dos núcleos econômicos mais atuantes, destacando-se na

produção de açúcar, fumo e couro. Com a descoberta do ouro em Minas Gerais, sua

importância cresceu como porto de escoação do minério, o que proporcionou à cidade maior

circulação de capital e maior investimento urbano. De vilarejo rural dos engenhos açucareiros

e de feição semelhante a uma vila medieval portuguesa, o Rio de Janeiro se transformou em

ponto privilegiado de defesa dos interesses reinóis no século XVIII. Os limites formados entre

os morros do Castelo, Santo Antônio, Conceição e São Bento, um quadrilátero que tomou

forma na segunda metade do século XVII, sofreram alargamento considerável para abrigar

uma população que triplicaria no decorrer de seis décadas.

Acompanhando a ampliação da cidade, as construções religiosas impulsionadas pelas

irmandades começaram a pontuar todo o território, cada qual ocupando os locais adequados a

sua condição social. O caráter urbano e complexo que se desenhava cada vez mais no aspecto

do Rio de Janeiro trazia consigo alterações relevantes no comportamento dos colonos, pois

significava novas formas de relações em todos os sentidos. As oficinas várias foram

tipicamente urbanas, criadas para atender necessidades cada vez mais diversificadas, exigindo

especializações em mercado de trabalho que cresceria com certa intensidade nos Setecentos.

Assim, a vida citadina quebrava o ritmo cíclico e constante do mundo rural, mudando, na

verdade, a percepção do tempo e o valor das coisas.

As origens das irmandades religiosas remontam aos séculos finais da Idade Média,

época da revolução comercial e declínio gradual do sistema feudal. Foram associações em

estreita ligação com as corporações de ofícios, muitas vezes confundindo-se com elas. Estas

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agremiações colaboraram ativamente do renascimento das cidades, incutindo nelas um novo

direcionamento do fazer artesanal, mais autônomo, intenso e atraente quando comparado aos

ofícios tipicamente rurais. Eram essencialmente urbanas e somente faziam sentido no mundo

do comércio, pois o agrupamento por profissões ocorria justamente para salvaguardar

interesses próprios de cada ofício, em relações mais sofisticadas entre cliente e mão de obra.

Sobre esta configuração do campo religioso, Bourdieu afirma que:

O conjunto das transformações tecnológicas, econômicas e sociais, correlatas

ao nascimento e ao desenvolvimento das cidades e, em particular, aos

progressos da divisão do trabalho e à aparição da separação do trabalho

intelectual e do trabalho material, constituem a condição comum de dois

processos que só podem realizar-se no âmbito de uma relação de

interdependência e de reforço recíproco, a saber, a constituição de um campo

religioso relativamente autônomo e o desenvolvimento de uma necessidade de

moralização e de sistematização das crenças e práticas religiosas.

(BOURDIEU, 2007, p. 34)

Quando comparamos a formação das irmandades medievais ao seu desenvolvimento

no Rio de Janeiro setecentista, percebemos pontos concordantes, como o estabelecimento de

uma organização própria de cidade e a acentuação do caráter comercial ali encontrado. A

prosperidade do período beneficiou alguns centros importantes da Colônia, multiplicando em

sua estrutura econômica as oficinas com seus mestres e aprendizes. A clientela se diversificou

a partir de necessidades cotidianas mais específicas, fomentando, inclusive, a criação de

trabalhos relacionados às linguagens hoje consideradas artísticas, como a escultura, a talha e a

pintura. As irmandades também proliferaram, organizando-se em camadas bem marcadas da

sociedade, constituindo uma formação benéfica para os interesses da Coroa em manter a

ordem e a submissão de sua possessão americana.

A construção de um novo templo, quando a irmandade recebia algum terreno como

doação ou utilizava os proventos oriundos e suas receitas, toda a área do entorno reagia ao

empreendimento. Assim, as irmandades eram ao mesmo tempo sintomas da urbanização e

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uma de suas maiores impulsionadoras. No Rio de Janeiro, por exemplo, os logradouros mais

distantes do centro administrativo foram geralmente fortalecidos pela presença das

irmandades de negros, como a de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens

Pretos. Esta igreja foi erguida em 1737, na antiga Rua da Vala24

, fora do limite máximo que

era estabelecido por um muro de proteção. Junto à nova igreja, casas e pequeno núcleo

comercial se estabeleceram, colaborando para a expansão da cidade para além muros.

Nireu Cavalcanti, no trabalho intitulado O Rio de Janeiro setecentista, chama de

muralha colonial as restrições metropolitanas ao desenvolvimento da economia no Brasil

(CAVALCANTI, 2004, p. 75). Dentre as restrições, que revelam certa correlação com a

configuração do público consumidor da arte do período, estão a manutenção de capitanias

distanciadas propositalmente entre si, um dos pontos favoráveis à consolidação das escolas

regionais de pintura25

; a nomeação de um vice-rei como representante da Coroa, criando uma

arte de entorno semelhante ao mecenato de corte, e a liberação de um comércio local, mesmo

que restrito. Este comércio, variado na forma e controlado na essência, colaborou para a

embrionária atividade cada vez mais notória de uma burguesia colonial mais atuante nas

décadas finais do século XVIII. Sobre os tipos de comerciantes, Nireu Cavalcanti elucida que:

Podemos alinhar os homens de negócios que atuavam na praça comercial do

Rio de Janeiro em três grandes conjuntos: os comerciantes miúdos, chamados

retalhistas, ou homens de vara, ou ainda mercadores de loja; o grupo de

negociantes de grosso trato ou de sobrado, formado de destacados

importadores e exportadores, senhores de grande cabedal; os capitalistas,

aqueles que viviam de seus bens ou rendas, participando eventualmente da

compra e arremate de mercadorias e da sua revenda, sem contudo se

organizarem formalmente por meio de firma estabelecida. (CAVALCANTI,

op. cit., p. 75)

24

Atual Rua Uruguaiana. 25

As Escolas Baiana e Pernambucana, por exemplo, diferem-se, principalmente, pelo uso da cor, mais intensa e

contrastante na primeira. A Escola Pernambucana se destaca pelo excesso de detalhes e pelo requinte das

soluções formais, provavelmente devido à herança dos holandeses na região.

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Ao agrupar a população pela condição econômica, pelo ofício e pela cor26

, as

irmandades contribuíram para manter acesa a diferenciação entre cada parte do todo social,

exibindo as marcas mais visíveis de uma rigorosa hierarquia. Com seu ponto comum calcado

na religiosidade, era previsível que a manutenção da fé girasse em torno da devoção, exigindo

a construção de altares, capelas ou mesmo igrejas de grande porte. Cada devoção solicitava

um tipo particular de iconografia, de soluções formais, de decoração dos espaços e de

profissionais responsáveis por cada tarefa, o que fomentou a maior diversificação no fazer

artístico colonial. As escolas regionais de pintura, de escultura e de talha são a expressão

maior do movimento de especialização das oficinas, caminho que levaria também ao lento,

mas notável, despontar da individualização dos artistas, com seus traços, estilos e técnicas

próprias.

Do mesmo modo que o período faustuoso do reinado de D. João V promoveu notável

desenvolvimento da arquitetura e da talha nas principais capitais portuguesas, o Brasil contou,

guardadas as devidas proporções, com o mesmo movimento de expansão da arte religiosa. As

igrejas de planta movimentada, fruto de experimentações mais ousadas, foram manifestações

deste período e podemos destacar a Igreja de Nossa Senhora da Glória e a Igreja de São Pedro

dos Clérigos27

como os representantes mais expressivos. A talha dourada dos seus interiores e

os retábulos luxuosos, chamados de Joaninos, são alguns dos traços de riqueza verificados em

muitos templos coloniais, como os exemplares pertencentes à Igreja de São Francisco da

Penitência. O crescente domínio das irmandades laicas no cenário construtivo dinamizou o

fazer artístico que só faria aumentar no decorrer do século.

26

No século XVIII existiam quatro irmandades de negros, uma de pardos e todo o restante de brancos. Estas

últimas abrigavam a maioria das Bandeiras de Ofícios, além dos vários ramos de comerciantes coloniais. Havia

ainda, três Ordens Terceiras, agrupando em cada uma delas a elite fluminense. 27

A igreja de São Pedro dos Clérigos foi demolida em 1944, para a abertura da Avenida Presidente Vargas.

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O processo de assimilação da gramática formal da pintura joanina foi mais lento e

modesto quando comparada ao desenvolvimento das outras linguagens. O modelo plástico da

fase seiscentista monástica e conventual permaneceu como diretriz para os primeiros

representantes das oficinas laicas. Isto porque eram as Ordens Primeiras os principais clientes

antes da ascensão das irmandades religiosas, nas décadas inaugurais do século XVIII.

Fechada em si mesma, a arte dos conventos expressava o conservadorismo na representação

de seus santos e de suas respectivas histórias. Os artistas leigos seguiam, muitas vezes, o

exemplo deixado por frades, como foi o caso de José de Oliveira Rosa. Considerado o mais

antigo pintor leigo fluminense, trabalhou para os beneditinos sob a forte presença das obras de

Frei Ricardo do Pilar representadas pelos vários painéis que integravam o conjunto da capela-

mor. Rosa se libertaria aos poucos da severidade conventual, muito pelo contato com as

irmandades religiosas, mais heterogêneas em relação às suas encomendas.

O pouco que conhecemos da vida e da obra de José de Oliveira Rosa sugere uma nova

configuração na formação profissional na Colônia: a organização da oficina de pintura com

mestre, ajudantes e aprendizes. Não há informações sobre os primeiros anos de sua formação,

nem menção sobre seus possíveis mestres. O silêncio dos documentos no período entre a

provável data de nascimento, em torno de 1690, até as primeiras indicações sobre suas

atividades na cidade, por volta de 1730, deixa um vazio significante sobre boa parte de sua

vida profissional, pois seria a época de início da aprendizagem do ofício. Poderia Oliveira

Rosa ter recebido treinamento em canteiros de obra espalhados pela cidade ou passado por

uma formação mais sistemática, tutorada por algum pintor português residente no Rio de

Janeiro.

Gonzaga-Duque menciona, em sua obra A arte brasileira, a hipótese de que Oliveira

Rosa poderia ter sido enviado à Metrópole para iniciar seus estudos (GONZAGA-DUQUE,

1995, p. 77), o que explicaria tamanha ausência de atribuições nas décadas de sua juventude.

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É certo que o autor lança esta possibilidade por considerar o forro em perspectiva da igreja de

São Francisco da Penitência como obra de sua autoria, o que seria de improvável execução

sem uma formação de qualidade, como mencionamos anteriormente. Certamente o Brasil não

ofereceria condições de ensino para este tipo de empreendimento tão monumental e

complexo, a não ser pela presença de algum artista europeu experiente como mestre.

A realidade de um artista leigo diferia dos frades pintores, dentre outras razões, pela

possibilidade de formar uma clientela heterogênea, situação observável em uma cidade em

expansão. Sua oficina poderia contar com a colaboração de ajudantes e de discípulos,

continuadores de uma tradição e responsáveis para o nascimento e consolidação de uma

escola estilística regional. José de Oliveira Rosa teve dois discípulos, João Francisco Muzzi e

João de Sousa. Do primeiro, Nireu Cavalcanti forneceu novas luzes em um dos mais obscuros

artistas coloniais, inclusive o recolocando na condição social de pardo, antes ignorada

(CAVALCANTI, 2004, p. 305)28

. Suas obras mais famosas são os painéis que narram o

episódio do incêndio e reconstrução da Igreja do Parto, tragédia ocorrida na segunda metade

do século XVIII.

A João de Sousa são atribuídos os painéis pertencentes ao Convento do Carmo, uma

série hagiográfica específica da Ordem. Analisando o conjunto espalhado pela sacristia da

igreja, percebemos a filiação colorista do mestre Rosa, também presente no modelado das

figuras e no desenho levemente deficiente, principalmente na resolução das vestimentas e das

figuras humanas. A formação que provavelmente foi posta em prática em todo o século XVIII

não aplicaria o exercício do desenho, muito menos de composição. Gonzaga-Duque não

poupa críticas a esta deficiência, não apenas a João de Sousa, mas a quase todos os pintores

coloniais (GONZAGA-DUQUE, 1995, p. 80). O discípulo aprendia a preparar o suporte, a

28

Nireu Cavalcanti, no diz que João Francisco Muzzi, realizou aquarelas ilustrativas para a obra de Frei

Conceição Veloso.

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fabricar as tintas e a copiar figuras a partir de gravuras diversas. O que podemos dizer sobre

João de Sousa é a notável delicadeza na distribuição cromática, característica que seria

desenvolvida mais tarde por seu discípulo Manoel da Cunha e Silva.

Como mencionamos anteriormente, as Ordens Primeiras foram as encomendantes de

pintura predominantes nas décadas iniciais dos Setecentos. Boa parte dos painéis

sobreviventes de José de Oliveira Rosa e de João de Sousa deste período está espalhada pelo

complexo do Mosteiro de São Bento e do Convento do Carmo, respectivamente. As

irmandades em plena multiplicação estavam preocupadas em erguer seus templos, como

atestam as datas de construção das principais igrejas do Rio de Janeiro colonial. Como

exemplos, podemos citar a de Nossa Senhora da Glória do Outeiro, terminada em 1739, a de

Santa Rita de Cássia, construída em 1721, e a de Nossa Senhora da Conceição e Boa Morte,

de 1735.

Passo fundamental para o assentamento da irmandade estava no desejo, muitas vezes

frustrado, de possuir igreja própria. A arquitetura, então, ocupou lugar predominante no

pensamento dos membros, na medida em que o projeto indicava possibilidades concretas para

a sua realização. A construção, quando iniciada, consumia parte considerável de suas receitas,

seguida da escultura de imagens e de retábulos para a composição dos espaços devocionais.

A decoração de talha acompanhava o trabalho dos escultores, deixando a pintura como

elemento final, muitas vezes adaptada a espaços predeterminados pelas molduras de talha.

Na ocasião da reforma na Igreja de Nossa Senhora do Carmo, o painel do forro da

capela-mor (Figura 15), atribuído a José de Oliveira Rosa, sofreu uma modificação do seu

tamanho original para dialogar com a nova talha rococó, conforme observou Myrian Andrade

Ribeiro de Oliveira (OLIVEIRA, 2008, p. 109). A historiadora da arte nos informa que:

Prospecções recentes em alguns pontos da abóbada da capela-mor

demonstraram que a pintura original extrapolava os limites do quadro atual,

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estendendo-se talvez por toda a abóbada, como nas igrejas pombalinas de

Lisboa do mesmo período. A conclusão que se impõe é que a pintura original

já estava concluída quando Inácio Ferreira Pinto foi contratado pelos

carmelitas para as obras de talha da igreja, devendo-se, sem dúvida, a este

mestre entalhador a atual composição ornamental, com redução do espaço

pictórico a um quadro longitudinal, emoldurado por três filetes decrescentes

de talha dourada. Com a redução da pintura e a simulação de arcadas laterais

com relevos ornamentais em talha, a decoração da capela-mor integra-se

harmoniosamente à da nave, cuja abóbada é também seccionada em arcadas

com talha dourada, segundo o modelo difundido no rococó carioca.

(OLIVEIRA, op. cit., p. 109)

Em uma igreja, a ornamentação pictórica da nave e da capela-mor foram menos

numerosas no século XVIII do que os painéis avulsos, geralmente colocados nas sacristias e

demais dependências29

. Acreditamos que os primeiros eram mais dispendiosos, devido à

função de destaque na ornamentação do corpo litúrgico da arquitetura, espaço público de

exercício da fé. O refinamento maior exigia experiência e habilidade, pois integrava um todo

constituído por outras linguagens, sobretudo a talha dourada.

Os discípulos de João de Sousa integram o grupo de pintores que se beneficiaram da

febre construtiva que assolou a cidade na segunda metade dos Setecentos. São eles Manuel da

Cunha e Silva e Leandro Joaquim. Esta geração deu feição mais sólida à Escola Fluminense,

momento em que o barroco joanino passou a se mesclar a elementos do Rococó, estilo sentido

primeiramente nas obras de talha, conforme observamos acima. Interessante o fato de serem

os dois discípulos pardos, evidenciando uma mudança em relação ao início do século XVIII,

quando as oficinas não aceitavam homens de cor.

29

Muitos painéis de forros ainda sobreviventes são criações oitocentistas, como os da Igreja de Nossa Senhora

Mãe dos Homens e os da Nossa Senhora do Carmo da Lapa, entre outras.

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Figura 15 – Forro da capela-mor da Igreja de Nossa Senhora do Carmo, Rio de Janeiro.

Manoel da Cunha e Silva, anteriormente citado, nasceu escravo e pagou por sua

alforria quando tinha 35 anos, em 1779 (CAVALCANTI, 2004, p. 307)30

. A sua formação

inicial com o mestre João de Sousa foi decisiva para que alcançasse certo prestígio como

pintor, trabalho que garantiu o montante necessário para comprar sua liberdade. Nireu

30

Foi o autor que primeiro introduziu o sobrenome Silva a Manoel da Cunha, após consulta à documentação da

Irmandade de Nossa Senhora dos Homens Pardos.

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Cavalcanti questiona a menção de Manoel de Araujo Porto Alegre e amplamente repetida por

historiadores oitocentistas de que o artista teria sido enviado a Lisboa para complementar a

sua formação (CAVALCANTI, op. cit., p. 307). Ao checar a documentação referente ao

pintor, elucida, através de comparações entre datas, que a sua condição de escravo até os 35

anos não daria a ele a chance de estudar fora da Colônia, sendo a sua formação exclusiva da

oficina de João de Sousa. Uma análise do conjunto de sua obra mostra claramente algumas

das deficiências mais comuns do período, repetidas, muitas vezes, dos problemas

compositivos observados na obra de seu mestre.

Importante na vida de Manoel da Cunha e Silva foi a presença do comerciante de

grosso trato José Dias da Cruz, o qual completou a quantia que faltava para que o pintor

comprasse a sua liberdade (CAVALCANTI, op. cit., 305). Não há registro sobre o real

interesse desta figura em ajudar um artista já formado na ocasião, mas parece que este tipo de

relação entre negociantes e artistas tornar-se-ia uma prática cada vez mais comum. Manoel

Dias de Oliveira, tempos mais tarde, foi apadrinhado por um rico comerciante que patrocinou

a sua ida a Lisboa, conforme veremos adiante.

Manoel da Cunha e Silva exemplifica claramente o tipo de artista bem posicionado no

mundo das encomendas, pois a quantidade e diversidade de clientes a quem prestou serviço

revela uma atividade intensa até o ano de seu falecimento, em 1807. Seu trabalho mais

vultoso foi o realizado para a Ordem Terceira de São Francisco de Paula, igreja que reúne

painéis de grandes dimensões na Capela do Noviciado que tratam de cenas relativas à vida do

santo. No forro, existe uma representação de Nossa Senhora das Vitórias, uma de suas

melhores obras no tocante à solução formal em geral (Figura 16).

A Virgem aparece de corpo inteiro, vestindo túnica branca e manto azul, deslocada

ligeiramente do centro para o lado esquerdo da composição. Segura o Menino Jesus em seu

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colo e ambos exibem as coroas da realeza. Formando um círculo, há um cortejo musical de

anjos e dois deles carregam estandartes com a palavra Victoria em vermelho. Abaixo,

reduzida a uma pequena parcela do painel, aparece uma cidade de feições medievais, com um

aparente conflito. A Virgem estaria a caminho para decidir a batalha, como sugere este tipo de

representação.

Apesar de todo o jogo teatralizado, as expressões são serenas, contrastantes com a

temática da aparição. Esta seria uma das marcas essenciais não apenas de Manoel da Cunha e

Silva, mas também de quase todos os demais pintores contemporâneos seus. Atribuímos a

esta característica a provável falta de habilidade em reproduzir as paixões através das

expressões faciais, algo que necessitaria de exercícios acadêmicos sistematizados até a

obtenção de resultados satisfatórios, o que não acontecia na formação de oficina daquele

tempo. Verificamos a mesma problemática nas pinturas de retratos, os quais costumam exibir

semblantes sérios, congelados, com a ausência daquele olhar que muito diz sem palavras e

daquele leve movimento de sobrancelhas repleto de significados. Cirilo Wolkmar Machado já

dizia, referenciando Leonardo da Vinci, que:

É muito difícil exprimir bem as paixões da alma; nem elas podem ser naturais

senão nas pessoas verdadeiramente apaixonadas: é onde os artistas devem

estudar. (...) Depois de conheceres bem as partes de cada membro, e a

totalidade dos corpos inteiros, nota, e observa com diligência os seus

particulares movimentos; mas de modo que as gentes não entendam que as

observas, para que não mudem seus afetos: assim podes estudar a cólera, a ira,

a dor, a admiração; e tudo apontarás no livro de memória, feito de papel

gessado. (MACHADO, 1817, p. 6)

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Figura 16 – Manoel da Cunha e Silva. Nossa Senhora das Vitórias. Século XVIII. Óleo sobre madeira.

Igreja de São Francisco de Paula, Rio de Janeiro.

A ausência de academias em Portugal não impediu a circulação de tratados e de

constantes discussões sobre arte nos campos de trabalho que pontuaram a segunda metade do

século XVIII. Desde que D. João V fundou a Academia Portuguesa em Roma, os artistas

bolsistas passaram a investir na maior profissionalização do seu ofício, contribuindo para a

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divulgação de tratados e de regras básicas de pintura, nas quais o exercício do desenho

figurava como ponto essencial. No Brasil, entretanto, não houve estes fatores estimuladores

de reflexões e práticas, resumindo o fazer à cópia de gravuras muitas vezes carentes de

detalhes preciosos. Para a igreja da Ordem Terceira de São Francisco de Paula, bastava a

composição correta com a observância da qualidade no tocante à mensagem iconográfica ali

respeitada.

A Capela do Noviciado consiste em um dos exemplos marcantes da decoração rococó

fluminense, onde os painéis barrocos de Manoel da Cunha e Silva conferem uma mistura

interessante ao ambiente. Toda a suavidade da talha pontual em fundo branco contrasta com o

tratamento dramático dispensado ao conjunto pictórico, sobretudo ao referido painel da

Virgem das Vitórias. Este local demonstra o quanto a pintura colonial foi mais lenta na

recepção dos novos gostos, iniciados quase sempre nos trabalhos de arquitetura e de talha.

Com o Rococó não foi diferente; entrou primeiro nas igrejas, na sua forma decorativa, para

algumas décadas depois começar a aparecer em alguns painéis. No Rio de Janeiro, por

exemplo, verificamos traços deste estilo na década de 1750, na igreja de Santa Rita. Somente

na década de 1790 encontraríamos obras de pintura com a claridade, a sinuosidade e a alegria

rococós, com os nomes de Leandro Joaquim e Raimundo da Costa e Silva.

Como Manoel da Cunha e Silva, Leandro Joaquim foi um dos pintores mais prolixos

da segunda metade do século XVIII. Sua atividade direta com o vice-rei Luís de Vasconcelos

pode ser vista como um anúncio do que aconteceria anos mais tarde, quando os pintores

fluminenses trabalharam a serviço da corte portuguesa. Sua clientela principal foi, no entanto,

as irmandades religiosas, como podemos observar na quantidade e na variedade de sua

produção. Seu traço marcante acha-se, como nos demais pintores aqui analisados, no uso das

cores. A claridade dos tons rococós emprestou à iconografia herdeira do Barroco suavidade

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mais acentuada, diferente do cromatismo mais carregado do painel estudado de Manoel da

Cunha e Silva.

A tela Nossa Senhora da Boa Morte, pertencente à Irmandade de Nossa Senhora da

Conceição e Boa Morte dos Homens Pardos, traz em sua concepção valores formais que se

misturam em curiosa harmonia (Figura 17). O espaço é completamente povoado por

personagens que integram esta passagem da história de Maria, ou seja, os doze apóstolos

cercando o leito de morte da Virgem. O horror ao vazio permanece como gramática

compositiva característica do Barroco, mesclada agora com a serenidade que espanta toda a

tristeza que esta cena deveria conter.

Leandro Joaquim foi, ao longo de sua trajetória, desenvolvendo um desenho cada vez

mais refinado, como a imagem da Virgem da Boa Morte apresenta, assim como outras do

mesmo período. São obras do final de sua carreira, ou seja, no último quartel dos Setecentos,

justamente quando Raimundo da Costa e Silva e José Leandro de Carvalho começaram a

ostentar esta mesma qualidade. O visível progresso na técnica destes artistas não descarta a

tradição da cópia de estampas, mas sugere a interferência de outros fatores ainda pouco

estudados, como a presença de artistas portugueses no Rio de Janeiro naquela ocasião e a

importação cada vez mais constante de pinturas prontas da Metrópole. São aspectos

significativos, tanto no que se refere à divulgação de novas tendências formais como na

exposição de exemplos importantes de desenho e composição. Podemos citar as igrejas de

São José e da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo como algumas que possuem em

seus acervos obras europeias adquiridas ainda no século XVIII.

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Figura 17 – Leandro Joaquim. Nossa Senhora da Boa Morte. Século XVIII. Óleo sobre tela.

Igreja de Nossa Senhora da Conceição e Boa Morte dos Homens Pardos, Rio de Janeiro.

Integrados à tradição religiosa, os pintores não apenas trabalhavam para as

irmandades, como também exercitavam a sua fé no seio de uma comunidade cuja

espiritualidade estava difundida em quase todas as ações cotidianas. Leandro Joaquim

executou o painel acima analisado como ex-voto após uma promessa feita por motivo de

doença. Gonzaga-Duque comenta o episódio na seguinte passagem:

Uma febre epidêmica, conhecida pelo nome de zamparine, levou o pintor ao

leito durante longo tempo. O melancólico D. José de Castro, segundo conde de

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Rezende, estava no governo; ao contrário do antecessor este não queria saber

de artes. (...) Leandro Joaquim viu-se abandonado. Fez então uma promessa:

se ficasse bom, a primeira vez que tomasse dos pincéis seria para pintar os

derradeiros momentos da Senhora da Boa Morte. (GONZAGA-DUQUE,

1995, p. 82)

É um caso raro de produção de um objeto realizado para desempenhar esta função com

a qualidade comparável a de uma encomenda, pois os ex-votos pictóricos eram geralmente

feitos com feição popular, dotados de simplicidade e de dimensões reduzidas. A imagem

como ferramenta de mediação entre o fiel e o divino foi um dos elementos mais importantes

da cultura barroca, e a Colônia portuguesa manteve viva esta função, dentre as outras que a

pintura se destacou.

Três painéis executados para a Igreja de São Sebastião do Castelo dão testemunho da

perícia técnica de Leandro Joaquim na fase final de sua vida. A igreja, então Sé da capital da

Colônia, foi demolida juntamente ao arrasamento do Morro do Castelo, em 1922, mas as

pinturas foram preservadas sob a proteção dos frades capuchinhos, hoje no convento situado à

Rua Haddock Lobbo. No antigo templo, os painéis de grandes dimensões estavam localizados

nas paredes da capela-mor, conforme registro fotográfico de Augusto Malta31

. O tamanho e a

localização original das pinturas, no espaço mais importante da igreja, sugerem o grau de

reconhecimento de Leandro Joaquim no ambiente colonial.

A imagem de São Januário nos revela aspectos interessantes, como a paisagem da

entrada da Baía de Guanabara ao fundo (Figura 18). Santo querido no mundo português, ele

emprestou seu nome ao morro, e a fortaleza do núcleo que se chamaria mais tarde de Morro

do Castelo32

. São Januário aparece frontalmente e de corpo inteiro, com vestes episcopais da

31

Na ocasião do desmonte do Morro do Castelo, o fotógrafo Augusto Malta realizou extensa documentação

visual daquele ponto primitivo da cidade, incluindo aspectos diversos dos interiores das igrejas de São Sebastião

e de Santo Inácio. Os frades capuchinhos possuem um interessante álbum com imagens de sua antiga igreja,

incluindo valiosas vistas de detalhes do interior daquela que foi a primeira Sé do Rio de Janeiro. 32

O Morro do Castelo foi inicialmente conhecido como Morro do Descanso, depois de São Januário, renomeado

novamente para São Sebastião até receber o definitivo, até a data de seu desmonte, em 1922.

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sua condição de bispo. A cabeça em três quartos foi disposta para que o olho esquerdo divida

a composição em duas metades verticais iguais, conferindo equilíbrio à composição.

Figura 18 – Leandro Joaquim. São Januário. Século XVIII Óleo sobre tela. 185 x 90 cm.

Igreja de São Sebastião, Rio de Janeiro.

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O fundo de céu azulado colabora para destacar o vermelho do manto, dando

interessante contraste entre as partes. Abaixo, reconhecemos o Pão de Açúcar pontuando a

entrada da Baía de Guanabara, com várias embarcações deixando a cidade. Há aqui uma

referência às invasões francesas de 1710 e 1711, época em que a bateria da Fortaleza de São

Januário desempenhou importante papel de defesa do território. O santo, de costas para os

corsários inimigos, se volta para o Rio de Janeiro com o sinal da bênção, com os três dedos

que simbolizam a Trindade. Importante citar a semelhança entre este fragmento de paisagem

com as vistas da cidade que o artista compôs a pedido do vice- rei Luís de Vasconcelos.

Leandro Joaquim exibe neste painel toda a sua habilidade em criar os efeitos de

textura. O manto, ricamente decorado com estampas douradas, desce pesado e contrasta com

a delicadeza e leveza dos bordados que encerram o manto branco do santo junto aos seus pés.

A sensação de volumetria acontece com delicados jogos de claros e escuros, com gradações

sutis entre as zonas iluminadas e escurecidas. O artista repete aqui o mesmo efeito conferido

ao painel de Nossa Senhora de Boa Morte, inclusive na carnadura suave e levemente rosada

do santo.

No mesmo ambiente de extrema religiosidade que encontramos boa parte da obra de

Leandro Joaquim, destaca-se outro representante desta fase de mudanças na pintura colonial,

o fluminense Raimundo da Costa e Silva. Este artista ficou conhecido na época pela devoção

a Nossa Senhora do Carmo, e três painéis sobreviventes atribuídos a ele são dedicados a esta

invocação.

Selecionamos o exemplar pertencente ao Museu Nacional de Belas-Artes por trazer

alguns elementos particulares do estilo do pintor, como a exuberância decorativa, a filiação ao

gosto rococó e a humanização da figura santa (Figura 19). A Virgem aparece de corpo inteiro,

sentada em um trono com o Menino Jesus em seu colo. Veste o hábito castanho carmelita,

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com o escapulário que desce por dentro do rico manto ornamentado de brocados dourados e

pedrarias coloridas. A obra parece ser uma versão de outra, feita também por Raimundo da

Costa e Silva, integrada ao conjunto imagético da igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora

do Carmo.

Figura 19 – Raimundo da Costa e Silva. Nossa Senhora do Carmo. Século XVIII. Óleo sobre tela.

Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro.

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O destaque maior desta pintura de dimensões reduzidas está na feição alegre das

personagens, as quais exibem sorrisos abertos como se mostrassem ao mundo a felicidade do

reino divino. A Virgem possui algo de humanizado, com cabelos soltos, crespos e mais curtos

do que normalmente aparece representada. São detalhes geralmente associados ao hedonismo

rococó que, na versão cristã, transformou-se na demonstração do prazer imediato de se fazer

parte da comunidade católica. Como mencionamos anteriormente, o tratamento dos

semblantes na pintura colonial fluminense são geralmente apáticos e não costumam denotar

paixões aparentes. Raimundo da Costa e Silva expôs algo raro para a época, compondo

figuras de forte apelo expressivo e que convidam a uma relação mais jovial com a Igreja.

As dimensões reduzidas, a aparência terrena e despojada da Virgem e o fato da obra

ser tão semelhante a outra mais sóbria nos levam a supor que esta peça tenha sido uma

encomenda particular. Os documentos sobre a pintura se perderam e há apenas menção sobre

a sua aquisição pelo Museu Nacional de Belas-Artes na década de 1980. No final dos

Setecentos, foi cada vez mais frequente a encomenda de painéis de temática religiosa para

compor o espaço de devoção privada dos mais abastados, lembrando que a gente simples

consumia gravuras, os santinhos, com a mesma finalidade.

Raimundo da Costa e Silva transitou por boa parte do século XIX como um dos

principais representantes do modelo colonial de aprendizagem e ensino do ofício. Foi

contemporâneo à Aula Régia de Desenho e Figura e à Academia Imperial das Belas-Artes,

continuador, como professor de pintura, do mesmo sistema que o formou nos Setecentos.

Sabemos pouco de sua obra oitocentista, mas, conforme seus biógrafos, ele trabalhou até a

morte, algo em torno da década de 1850 (MORALES DE LOS RIOS FILHO, 1942, p. 262).

Sua figura, assim como a de José Leandro de Carvalho e de Manoel Dias de Oliveira, põe em

cheque as constantes citações de que a chegada dos artistas franceses chefiados por Lebreton

significou o fim de uma era e início de outra. A menção de Gonzaga-Duque é emblemática

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sobre o assunto e, de certa maneira, funciona como porta-voz de um pensamento que se

tornou corrente em nossa história, quando diz que a pintura brasileira abrange três períodos

distintos, correspondentes aos progressos moral e material da nação. O primeiro período

excede a um século; parte de 1695 e termina em 1816, com a fundação da Academia de

Belas- Artes (GONZAGA-DUQUE, 1995, p. 73). A presença dos artistas supracitados aponta,

no entanto, para uma outra realidade.

O paralelismo entre as produções provenientes de oficinas de tradição colonial e o

ensino acadêmico nos parece incontestável por várias razões. Inicialmente podemos apontar

as dificuldades enfrentadas pelos franceses, o que resultou no atraso de dez anos para a

abertura da Academia, o principal motivo de sua contratação. Por conseguinte, os primeiros

pintores formados pela nova instituição foram lançados no mercado somente no final da

década de 1820. Outra questão refere-se à participação de Manoel Dias de Oliveira,

Raimundo da Costa e Silva e José Leandro de Carvalho em várias atividades ligadas à

decoração de festas oficiais até 1821, como atestam as obras sobreviventes do período.

Finalmente, devemos citar a ampliação do público consumidor nos Oitocentos, sobretudo as

irmandades religiosas, as quais continuaram a fomentar a produção artística. É válida a

suposição de que havia trabalhos distintos para clientes com diferentes propósitos e que a

inauguração de uma instituição não seria razão para extinguir outras formas de produção.

Assim, o fato de termos Raimundo da Costa e Silva ativo até meados do século XIX não nos

soa estranho, mas coerente.

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2.2 A PINTURA RELIGIOSA OITOCENTISTA: A CORTE COMO ENCOMENDANTE

Em um meio tão desprovido de recursos como o vivido pelos pintores fluminenses, a

viagem de Manoel Dias de Oliveira a Lisboa deve ter soado como uma notícia instigante.

Seria mais um fator a somar no lento processo de consciência sobre a importância do ofício e

do papel social de seu representante no rigoroso sistema hierárquico colonial. O retorno do

artista, em 1798, após pouco mais de uma década de formação que contou com a estada em

Roma, trouxe consigo energias novas para a reflexão sobre o estatuto social do pintor. A

abertura da Aula Régia de Desenho e Figura, instituição que na Metrópole estava

aparentemente afiliada aos interesses comerciais de uma classe burguesa em expansão,

conferiu um ponto positivo no entendimento cada vez mais acentuado sobre as funções

desempenhadas por essa arte na construção simbólica do poder. O governo do vice-rei Luís de

Vasconcelos havia anunciado esta relação em versão mais tímida, com a participação de

Leandro Joaquim e Mestre Valentim nas obras de melhorias da cidade.

As ações de Manoel Dias de Oliveira afetaram diretamente a percepção sobre as

práticas de ensino e aprendizagem, introduzindo o exercício do desenho na base fundamental

a qual deveria se assentar a arte da pintura. Além disso, a sua vivência em um dos principais

centros difusores do Neoclassicismo colaborou para a introdução mais sistemática do estilo

em uma realidade ainda calcada na essência barroca, tanto na forma como no conteúdo. A

Aula Régia de Desenho e Figura formou uma nova geração33

e influenciou também aqueles

artistas atuantes e oriundos do tradicional sistema colonial de cópia de estampas, como

Raimundo da Costa e Silva.

33

Conhecemos os nomes de Francisco Pedro do Amaral e de Clemente Magalhães de Bastos, cujos exercícios de

desenhos aparecem no capítulo destinado à Aula Régia de Desenho e Figura.

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Com base nesta argumentação, podemos comparar a imagem de Nossa Senhora do

Carmo analisada anteriormente à obra oitocentista A Sagrada Família, também atribuída a

Raimundo da Costa e Silva. Veremos que a década que separa as duas composições revela

muito mais que o simples espaço temporal (Figura 20). É notória, apesar da procedência do

modelo compositivo vir de uma gravura portuguesa, a assimilação de novas orientações por

parte do artista.

As três personagens ocupam todo o primeiro plano, em organização simples do

espaço em formato elíptico. A Virgem Maria aparece no lado esquerdo, vestindo túnica

branca e manto azul. São José, no lado oposto, exibe a sua túnica carmim e manto mostarda,

cores relativas ao ofício de carpinteiro, conforme iconografia consagrada desde o período

Gótico. Calça sandálias com tiras que sobem pelo tornozelo. O Menino Jesus ocupa o centro

da composição, carinhosamente amparado pelos pais. Em uma abertura entre as nuvens,

aparece a pomba do Espírito Santo.

As linhas sinuosas que conferiam sabor rococó às imagens de Nossa Senhora do

Carmo, obras anteriores de Raimundo da Costa e Silva, cedem lugar a uma forte tendência à

verticalização, com personagens semelhantes a esculturas clássicas.O tratamento dos tecidos

sugere o despojamento de toda a ornamentação, com o uso das cores em extrema sintonia com

o básico, oriundo das referências iconográficas. Os semblantes são serenos e não demonstram

grandes emoções, outro ponto contrastante com as imagens sorridentes da fase rococó

anterior. Vale mencionar que o painel foi encomendado pela irmandade de São José,

tradicional reduto de uma elite colonial e conhecida por ter um gosto mais sóbrio, o que

podemos ver nas obras de decoração da igreja e das linhas de sua arquitetura.34

34

São José integra o grupo de novas devoções incentivadas pela Igreja tridentina como resposta aos ataques

protestantes contra o culto aos santos. A seriedade e sobriedade são elementos concordantes com a figura de São

José, diferente da delicadeza comumente encontrada nas igrejas e representações marianas.

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Figura 20 – Raimundo da Costa e Silva. A Sagrada Família. Óleo sobre tela. Igreja de São José, Rio de Janeiro.

Raimundo da Costa e Silva retirou o modelo da imagem da Sagrada Família de uma

gravura portuguesa e observamos que ele conserva a sua simplicidade aparente (Figura 21). O

fundo escuro presente no original foi substituido por céu mais claro, para combinar com a

distribuição de luz uniforme que o pintor coferiu a toda a composição. Este artifício realça o

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desenho do pintor, que, comparado à geração fluminense anterior, demonstra certa habilidade

que encontraremos também no traço de José Leandro de Carvalho.

Figura 21 – Oficina de Francisco Manuel. Jesus Maria José. Século XVIII. Gravura.

Biblioteca Nacional de Lisboa.

A iconografia da Sagrada Família vem de referências bíblicas, e a mais detalhada

encontra-se no Evangelho de São Mateus (Mt, 2:19). Um anjo avisa a José sobre a ameaça de

Herodes, que deseja eliminar todas as crianças nascidas em Belém por causa da professia que

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anunciava a chegada de um messias. Antes da consumação da tragédia, a família segue em

fuga para o Egito, onde se estabelece até a morte do tirano. Este episódio foi amplamente

difundido na pintura desde a Idade Média, dividido entre a fase da partida, reconhecida pela

representação de Jesus ainda bebê e o retorno da famíia a Nazaré, tema da imagem acima,

com o Menino já crescido.

Os simbolismos são dispostos claramente, como o lírio que Jesus e São José seguram,

e a bênção divina representada pelo Espírito Santo. A flor, quando colocada em imagens

cristãs, traz o significado que extrapola o sentido de pureza, como normamalmente a

atribuímos em outras temáticas. Ela indica a resignação de quem a segura após ser eleito para

uma tarefa árdua, escolha de origem divina. O lírio é o atributo maior das cenas da

Anunciação, pois menciona a escolha do povo de Israel entre tantos outros e a de Maria entre

as demais mulheres. No caso de José, o lírio refere-se à paternidade não biológica assumida

ao se unir à Maria, tarefa que desempenha ao longo de sua vida.

A representação da Sagrada Família no ambiente colonial tem, juntamente à função

devocional, conotação educativa de incentivo à formação de núcleos familiares fundados na

base cristã. Em um ambiente propício à promiscuidade, seja na relação entre escravos e seus

senhores, seja na conhecida atividade profissional no ramo sexual em toda a Colônia, a

propagação de imagens de exemplo moral tinha a sua importância. Os sermões

complementavam a ação de instrução e comoção, muitas vezes ásperos nas suas mensagens

com a intenção de mover as consciências pesadas em direção à correção dos atos e

pensamentos.

Raimundo da Costa e Silva encarnou o modelo do artista colonial que vivenciou em

suas obras as próprias crenças religiosas, como o culto à Nossa Senhora do Carmo. Se houve

mudanças marcantes de gosto entre o decorativismo rococó e a sobriedade neoclássica, essas

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transformações permaneceram no campo da forma, pois a iconografia manteve-se filiada ao

tradicional modelo orquestrado desde a Contrarreforma. A ligação do pintor à irmandade de

São José remonta à sua formação primeira de escultor, ofício que aprendeu com o pai. Nas

poucas obras sobreviventes de Raimundo da Costa e Silva, todas de cunho religioso,

percebemos o contato íntimo entre o pintor e o objeto, como se cada encomenda desenhasse

uma trajetória profissional calcada nas relações espirituais travadas com cada irmandade

encomendante.

Quando observamos a obra Nossa Senhora da Conceição, de Manoel Dias de Oliveira,

percebemos imediatamente a sua diferença quando a comparamos às pinturas dos artistas

acima comentados (Figura 22). Vindo de uma formação europeia que afrouxara os cânones da

época barroca, a temática religiosa resgatou aquele toque de secularidade que o Renascimento

havia inaugurado, ao misturar em uma mesma cena figuras santas e profanas. Esta

característica humanística se prolongou na fase maneirista, mas foi abolida quando a Igreja

defendeu o uso de imagens limpas, ou seja, com mensagens diretas sobre os assuntos sacros.

Segundo Argan, para alcançar os objetivos persuasivos, o Barroco valia-se das imagens

simples, como o autor explicita na seguinte passagem:

(...) A imagem é assim concebida para exercer uma função puramente auxiliar

ou instrumental; a simplicidade da fatura torna-a rapidamente familiar, e a

comunicação não exige nenhum esforço de inteligência, ocorrendo, como se

diria hoje, em um nível subliminar. Ao contrário das grandes figurações

histórico religiosas, que tendem a suscitar uma condição de encantamento

excitado, as figurações devocionais tendem a determinar no devoto uma

condição de humildade, a única atitude possível a quem se dirige a Deus;

como acontece na prece, o tom da comunicação visual é submisso, fervoroso,

insistente.(ARGAN, 2004, p. 103)

No presente caso, a imagem não assume a função devocional, como as obras religiosas

de Raimundo da Costa e Silva e de Leandro Joaquim o fazem. Apesar da referência sacra

estar em posição de destaque na composição, sua mensagem vincula-se ao poder monárquico,

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em uma longa tradição que associa a figura do rei ao divino, como se ele ocupasse no mundo

um cargo de designação espiritual. Nesta função alegórica, a presença de seres terrenos e

mitológicos combinados ao sagrado funciona como uma narrativa simbólica, na qual cada

parte contribui com o seu significado específico para dar sentido ao todo, ou seja, o tema da

submissão do Reino de Portugal à Nossa Senhora da Conceição.

Figura 22 – Manoel Dias de Oliveira. Nossa Senhora da Conceição. 1817. Óleo sobre tela.

MNBA, Rio de Janeiro.

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A Virgem ocupa o ponto central do painel e está em posição mais elevada em relação

às outras personagens. Veste túnica de um intenso branco e manto azul que escorre

suavemente até os seus pés. Olha para baixo, em direção ao lado esquerdo, onde aparece um

escudo que exibe o brasão de Portugal, apresentado por uma figura feminina que personifica o

poder. Ligeiramente abaixo do escudo, encontram-se a coroa e o cetro, guardados por um

anjinho. Atrás da personagem feminina, observamos o retrato de D. João em pose bastante

difundida nos vários painéis do período. Um anjo desce segurando uma faixa com os dizeres

Protectam EVM. No lado direito, o Arcebispo segura um livro aberto com a mensagem

Monstra te esse mavrem. Outras personalidades da cúpula da Igreja aparecem no fundo,

todos, como o Arcebispo, em posição de reverência à Virgem. Juntos, os poderes eclesiástico

e monárquico se curvam diante do divino, reforçando a essência religiosa do reino de

Portugal.

O forte amarelo do ambiente celestial e as tonalidades castanhas da área terrena, além

do vermelho do manto do arcebispo, colaboram para realçar a brancura da túnica e do azul do

manto da Virgem. O resultado aponta para uma organização cromática bem articulada, com o

visível propósito de manter a personagem principal em destaque. Manoel Dias de Oliveira

distribuiu a luz uniformemente, evitando contrastes brutos de claros e escuros. A

luminosidade do amarelo celestial perde gradativamente a sua intensidade, na medida em que

avança para a parte inferior do painel. As regiões são separadas suavemente, pois não é a luz o

elemento fundamental da composição e sim a linha.

A composição é dividida em duas partes verticais iguais, a partir de uma linha que

parte do olho direito da Virgem, passa pelas suas mãos postas em oração, desce até o pé que

esmaga a serpente e encerra na figura do anjo que guarda os símbolos da realeza (Figura 23).

As massas são distribuídas equilibradamente, representadas, em cada lado, pelo poder

monárquico e pela presença da Igreja. A mesma simetria acontece quando dividimos a

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superfície pela metade horizontalmente, separando os planos celestial e terreno em duas

metades iguais. Se buscarmos no rosto de Nossa Senhora o ponto de partida do olhar do

espectador, veremos uma linha circular que abrange todos os elementos simbólicos que dão

sentido ao tema.

O esquema compositivo realça as linhas horizontais e verticais, conferindo um aspecto

estático à cena. São os gestos de algumas personagens, apesar de contidos, que dão certa

movimentação, como a figura que aponta para o escudo e o arcebispo que apresenta o livro.

Manoel Dias de Oliveira concentra toda a força da obra na mensagem simbólica da entrega do

reino de Portugal à proteção de Nossa Senhora da Conceição. D. João seguiu a tradição que

remonta ao século XVII, quando a Virgem recebeu oficialmente a incumbência de proteger o

povo português de todos os seus inimigos, sobretudo a Espanha.

Figura 23– Linhas de composição.

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Os jogos de linhas construtivas, a referência maior ao desenho que se sobrepõe às

cores, a discrição dos gestos e movimentos e a correta representação anatômica são elementos

que não apenas situam Manoel Dias de Oliveira ao gosto neoclássico, mas também revelam

muito de sua formação técnica estrangeira. A Virgem aparece como uma escultura, com

panejamentos que escorrem em linhas retas. Cada parte está matematicamente posicionada em

relação às forças que orientam a composição, criando a sensação de ordem e harmonia. As

texturas diversas, os modelados das carnaduras, os efeitos de volume e profundidade somam-

se ao apurado controle do artista em relação aos seus materiais.

Outro ponto fundamental na obra de Manoel Dias de Oliveira é a novidade para o

ambiente colonial de um pintor compositor, diferente do copiador de gravuras. A fase final da

formação europeia consistia na capacidade do artista em usar a experiência primeira da cópia

de grandes mestres a favor do desafio de se tornar um inventor, algo que já aparecia nos

tratados portugueses de pintura, como o de Cirilo Wolkmar Machado.

A instalação da Família Real no Rio de Janeiro a partir de 1808 acarretou mudanças

em vários setores da vida cotidiana da cidade e a arte participou positivamente desta nova

fase. A formação europeia de Manoel Dias de Oliveira e sua condição de professor régio

colaboraram para que ele se tornasse um pintor a serviço do rei. Esta nova espécie de cliente,

comum na Metrópole desde o século XVI, beneficiou também aqueles artistas oriundos do

sistema colonial de ensino, como Raimundo da Costa e Silva e José Leandro de Carvalho. Se

no Brasil não houve o cargo de pintor de corte, com todos os privilégios que o título conferia

àqueles mais destacados da Europa, a presença do monarca e de toda a nobreza que o cercou

proporcionou maiores oportunidades para os profissionais da terra, mesmo depois da chegada

do grupo de franceses que fundariam mais tarde a Academia Imperial das Belas-Artes.

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A atuação de José Leandro de Carvalho como retratista de D. João VI foi notória, mas

seu envolvimento com a corte abrangeu também assuntos religiosos, como os doze painéis

executados para a Capela Real em 1817. De feição mais classicista, o conjunto emprestou à

decoração um ar solene, tanto na forma quanto no significado que os apóstolos evocam. Este

trabalho vultoso, por estar diretamente relacionado à construção simbólica do poder, confirma

as referências de vários autores de que José Leandro de Carvalho era o pintor favorito de D.

João VI (AZEVEDO, 1969, p. 97).

O artista nasceu em Muriqui, no seio de uma família de lavradores, e nos faltam

informações de como ou quando ele seguiu para o Rio de Janeiro com o intuito de aprender a

pintura. Na capital, formou-se, provavelmente, na oficina de Raimundo da Costa e Silva, o

que poderia explicar a suavidade de sua palheta, o bom emprego de texturas e volumes e o

desenho que exibe qualidade superior quando comparado aos trabalhos dos pintores mais

antigos (AZEVEDO, op. cit., p. 86)36

.

D. João, com o Alvará de 15 de junho de 1808, elevou a antiga igreja dos carmelitas à

condição de Capela Real, forçando os frades a se transferirem para a Igreja de Nossa Senhora

da Lapa. A escolha deveu-se por uma série de razões concomitantes: 1) o fato da Sé estar por

71 anos dividindo o espaço da Igreja de Nossa Senhora do Rosário de São Benedito dos

Homens Pretos com a irmandade local, o que gerou inúmeras rixas entre o Cabido e os irmãos

negros; 2) a distância entre a referida igreja e o centro administrativo no Largo do Paço; 3) a

localização privilegiada da Igreja de Nossa Senhora do Monte Carmelo, no coração da cidade

e diante do porto e do Paço; e 4) a beleza decorativa do interior e as dimensões avantajadas do

templo. Destacamos um trecho do Alvará que nos revela pontos interessantes para análise:

36

O autor menciona a passagem do artista pelo ateliê de Leandro Joaquim, o que é possível. O colorido de José

Leandro pertence ao mesmo estilo de Leandro Joaquim e de Raimundo da Costa e Silva, chamados pela geração

de Gonzaga-Duque de coloristas.

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143

Eu o Príncipe Regente faço saber aos que este Alvará com força de lei virem,

que sendo-me presente a situação precária, e incômmoda , em que se acham o

Cabido e mais Ministros da Cathedral desta minha Corte no Rio de Janeiro,

em uma Igreja alheia e pouco decente para os Offícios Divinos e desejando

estabelecer-lhes um local, em que com o devido decoro possam exercer o

Ministério das suas funções sagradas, não só por seguir o exemplo dos meus

augustos predecessores, mas principalmente, por serem os Senhores Reis de

Portugal os Primitivos Fundadores, e Perpétuos Padroeiros de todas as Igrejas

do Estado do Brazil, concorrendo por esta razão com tudo o que era necessário

para a conservação e fabrica das mesmas Igrejas; e considerando por huma

parte as necessidades actuais, e urgentes do Estado, a que cumpre acudir sem

demora, e que Me não permittem continuar as obras da nova Cathedral, a que

dera principio Meu Augusto Avô, o Senhor Rei D. João V, de Gloriosa

Memoria; e por outra parte não querendo perder nunca o antiquíssimo

costume de manter junto do Meu Real Palacio uma Capella Real, não só para

maior comodidade, e edificação de Minha Real Família, mas, sobretudo, para

maior decência, e esplendor do Culto Divino, e Gloria de Deus, em cuja

Omnipotente Providencia confio, que abençoará os Meus cuidados, e os

desvelos, co que procuro melhorar a sorte dos Meus Vassalos na geral

calamidade da Europa (...).37

A Capela Real significava uma das mais importantes instituições da complexa trama

de elementos configuradores da imagem do monarca. Como soberano da Igreja em Portugal,

através do sistema de padroado, o rei era responsável pelas festas religiosas mais luxuosas,

além de responder pelas despesas de todos os funcionários envolvidos. Lilia Moritz Shwarcz

nos diz que:

A construção simbólica da figura pública de um soberano, a representação de

seus palácios suntuosos e das igrejas e catedrais imponentes, sempre

associadas ao seu reino, é uma constante. (...) O soberano marca seu

calendário e a própria eficácia de seu poder também a partir das grandes

arquiteturas que constrói, reforma ou amplia, e que de uma maneira ou de

outra parecem lembrar o seu império e as suas possessões. (SCHWARCZ,

2008, p. 63)

O antiquíssimo costume da monarquia portuguesa em edificar uma Capela Real

remonta ao século XII, tendo a sua expressão máxima no reinado de D. João V. Não

surpreende o fato do Príncipe Regente, logo no ano de seu estabelecimento no Rio de Janeiro,

procurar resolver definitivamente o velho problema da instalação da Sé. Desde que o Cabido

37

Alvará de 15 de julho de 1808. FBN, Manuscritos e Obras Raras.

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desceu do Morro do Castelo, devido à decadência do templo e do próprio sítio inaugurador da

cidade, ele passou pelas igrejas de São José, Santa Cruz dos Militares e, finalmente, se fixou

na Igreja de Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito dos Homens Pretos. Foi uma longa

jornada que custou aos carmelitas o despejo de onde estavam desde o século XVI.

A ornamentação da talha rococó, do Mestre Inácio Ferreira Pinto, data do final do

século XVIII e recebeu novo douramento nas obras de reforma ordenadas por D. João,

reforma que incluiu, posteriormente, a encomenda dos doze apóstolos de José Leandro de

Carvalho. O artista também pintou o painel do altar-mor que representava a Família Real sob

a proteção da Virgem, imagem desaparecida ainda no século XIX. Tamanho investimento na

melhoria da Capela Real objetivava prepará-la para o casamento de D. Pedro e para a

coroação do próprio D. João, além dos motivos citados acima. A importância simbólica do

empreendimento nos mostra o quanto José Leandro de Carvalho se destacava neste período

em que os mestres franceses já se misturavam aos fluminenses nos principais pontos de

produção artística.

As imagens dos Apóstolos estão distribuídas na nave e na capela-mor, compondo um

grupo de oito e outro de quatro painéis, respectivamente. O Quadro 1 a seguir ajuda a

visualizar a disposição dos santos no interior da igreja. A ordem em que eles se encontram

organizados segue o sentido da entrada da igreja em direção ao altar-mor.

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145

Quadro 1 – Disposição dos Apóstolos na Nave e na Capela-Mor

Nave

Lado da Epístola São Simão São Judas Tadeu São Felipe São Tomé

Lado do

Evangelho

São Tiago Menor São Bartolomeu São Matias São Tiago Maior

Capela-mor

Lado da Epístola Santo André São Mateus

Lado do Evangelho São João São Pedro

Consideramos relevante apresentar os doze painéis, pois funcionam como uma

unidade simbólica relativa à condição do monarca como perpétuo padroeiro de todas as

igrejas do Brasil. Como os Apóstolos são considerados os primeiros santos, herdeiros diretos

dos ensinamentos de Cristo, a Capela Real reforça o sentido espiritual da monarquia

portuguesa, apresentando o rei como um representante do divino.

Em relação aos aspectos formais, todos exibem elementos comuns, como o formato

elíptico da tela, o ambiente celestial representado pelas nuvens na parte inferior, o céu com

partes amareladas e a posição dos Apóstolos a meio corpo (Figuras 24 a 35). Alguns estão a

três quartos e outros colocados frontalmente diante do espectador. As cores são suaves e estão

diretamente associadas à iconografia específica de cada personagem. São cores que

combinam com a claridade da igreja e com o dourado da talha pontual rococó de Inácio

Ferreira Pinto.

Os semblantes são serenos, sem expressividade acentuada, repetindo a fórmula

consagrada do modelo colonial. Os gestos são postos como poses ensaiadas, sem nenhum

indício de espontaneidade, conferindo um ar grave e sério para as mensagens que estão ali

contidas. Em algumas imagens, os santos apenas seguram seus atributos, sem movimentação

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aparente. Interessante destacar a força expressiva do grupo, pois as pequenas diferenças entre

poses, olhares e fisionomias acabam gerando, no conjunto, a sensação de heterogeneidade. A

isto se deve também à capacidade de José Leandro de Carvalho em criar seres

individualizados, cada qual com características físicas diferenciadas.

O desenho de José Leandro de Carvalho exibe o máximo de sua qualidade nestes

trabalhos, superando, inclusive, os retratos realizados para D. João. Isto se deve,

principalmente, à continuidade de uma longa tradição de compor figuras santas em

contraponto à recente ampliação profissional do momento. A crescente busca pelo retrato por

parte da nobreza e da burguesia após a chegada da Família Real incentivou o aprimoramento

dos artistas, mas o repertório religioso já estava impregnado desde a sua formação. Os corpos

são bem definidos pela correta aplicação dos sombreados, o que sugere não apenas o

desenvolvimento técnico do artista, mas também a qualidade da fonte que provavelmente

usou para copiar as figuras. Em se tratando de uma encomenda Real, as gravuras de tradução,

pertencentes à Real Biblioteca, poderiam ter servido ao pintor como exigência de seu

encomendante.

Cada Apóstolo traz consigo os seus atributos identificadores, como, por exemplo, o

livro dos evangelistas São João e São Mateus, as chaves e o galo de São Pedro, e a cruz em

forma de X de Santo André, entre outros. As idades também colaboram com o

reconhecimento, sendo os mais velhos geralmente representados com a barba grisalha,

símbolo de sabedoria adquirida com tempo. No lado do Evangelho, no interior da capela-mor,

duas gerações fundamentais da composição da Igreja estão lado a lado: a juventude de São

João, autor de um Evangelho inflamado e emotivo, e a sobriedade do tempo que deixou as

suas marcas na figura de São Pedro. Simbolicamente, eles representam juntos a capacidade da

Igreja em renovar os seus princípios e a adaptação às novas circunstâncias.

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Figura 24 – São Pedro Figura 25 – São João Evangelista

Figura 26 – São Mateus Figura 27 – Santo André

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Figura 28 – São Tiago Maior Figura 29 – São Matias

Figura 30 – São Bartolomeu Figura 31 – São Tiago Menor

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Figura 32 – São Tomé Figura 33 – São Felipe

Figura 34 – São Judas Tadeu Figura 35 – São Simão

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Apresentamos, no Quadro 2 abaixo, os principais elementos iconográficos de cada

Apóstolo, com o objetivo de acentuar a necessidade das imagens religioss em mostrar

claramente a identidade dos seus santos. Esta característica, amplamente empregada no

Barroco, permanece nas representações rococós e neoclássicas mais tradicionais, sobretudo

nas obras destinadas aos templos de culto e devoção.

Quadro 2 – Iconografia dos Apóstolos

APÓSTOLO Biografia resumida Principais atributos

São Pedro Nasceu na Galileia com o nome de

Simão. Ao receber o chamado de Jesus,

seu nome mudou para Pedro, pois seria a

pedra fundadora da Igreja.

Barba grisalha como alusão a sua

condição de primeiro bispo, as chaves do

céu que Jesus teria lhe dado, o galo que

simboliza o fato de ter negado Cristo três

vezes antes de amanhecer, entre outros.

São João Irmão do Apóstolo Tiago Maior. Segue

de perto toda a vida de Jesus e é o único

a ser representado no Calvário. Foi salvo

das perseguições romanas e escreve o

seu Evangelho após o período em que foi

prisioneiro, o livro considerado mais

emotivo dos quatro Evangelhos.

Jovem, geralmente veste manto ou túnica

vermelha, a águia que segura o tinteiro

enquanto escreve o Evangelho. O animal

simboliza a inspiração que vem do alto.

O livro e a pena enfatizam a sua

característica maior de evangelista.

São Tiago Maior Irmão mais velho de São João. Teria

evangelizado a Espanha, onde estariam

seus restos mortais. A peregrinação a

Santiago de Compostela remonta ao

tempo das Cruzadas.

Objetos simbólicos dos peregrinos, como

a concha, a cabaça e a sacola.

São Matias Substitui Judas Iscariotes após a traição e

posterior suicídio. É considerado o 13o,

escolhido após a Ressurreição de Cristo.

Jovem, geralmente portando uma acha,

ou seja, um pedaço de madeira que seria

o seu instrumento de martírio.

São Bartolomeu Ele foi, como vários outros Apóstolos,

martirizado e o seu castigo foi o

esfolamento.

O principal atributo é a faca, instrumento

de seu martírio.

São Tiago Menor A tradição nos diz que Tiago foi o

primeiro bispo de Jerusalém. Foi

martirizado pelo exército romano.

Jovem, é apresentado geralmente com

um bastão, com pedras ou um livro.

São Mateus Foi um dos Evangelistas. Chamava-se

Levi e trabalhava como cobrador de

impostos. Abandona a sua vida anterior

quando Jesus o chama para segui-lo.

O livro de seu Evangelho, considerado o

mais antigo. Geralmente aparece um anjo

em suas representações, uma alusão ao

início de seu escrito.

Santo André Irmão de Pedro e inauguram o grupo de

apóstolos. Foi também pescador. Morreu

crucificado em uma cruz em forma de X.

A cruz em forma de X, que geralmente

segura nas representações.

São Tomé Foi pescador na Galileia. Tinha natureza

cética e duvidou da Ressurreição de

Cristo. Foi martirizado a golpes de lança.

O atributo principal é a lança, arma usada

em seu martírio.

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São Felipe Apóstolo pouco mencionado na Bíblia.

Morreu martirizado, crucificado de

cabeça para baixo e depois apedrejado.

O bastão com a cruz e o livro aberto,

uma referência à sua ação

evangelizadora.

São Judas Tadeu Irmão de São Tiago Menor. Teria

morrido martirizado diante da imagem de

Diana.

A machadinha, atributo mais conhecido

por ser o provável instrumento de seu

martírio.

São Simão São poucas as referências sobre o

Apóstolo, sendo a principal o fato de ter

sido martirizado serrado ao meio.

A serra, instrumento de seu martírio.

Analisando as obras religiosas de cunho mais classicista de José Leandro de Carvalho

e de Raimundo da Costa e Silva, percebemos que os valores plásticos do Neoclassicismo

ocorreram do mesmo modo como os demais estilos, ou seja, misturados a uma tradição

iconográfica barroca. Foram encomendas realizadas por clientes pertencentes a um círculo

mais conservador, pois eram obras destinadas ao espaço sagrado, de culto popular. A Capela

Real, como sede do Cabido, seria a expressão máxima do conservadorismo cristão, o exemplo

para todas as igrejas do Rio de Janeiro e do Brasil. Os clientes de obras religiosas, geralmente

as irmandades e ordens terceiras, foram os que mantiveram a vida religiosa tal como ela era

no século XVIII e que continuaria sem grandes alterações por boa parte do período imperial.

O caso de Manoel Dias de Oliveira consiste em rara exceção no que concerne à

temática cristã. A sua Virgem da Conceição não foi criada para integrar o espaço religioso de

uma igreja e sim para compor um cenário alegórico, provavelmente a Varanda da Aclamação

de D. João VI. As funções são diversas e apontam para outra possibilidade, inédita no Brasil,

de absorção de referências santas, mesmo que elas fossem as protagonistas, para a indução de

significados distantes do que seria um instrumento devocional. Como mencionamos

anteriormente, as funções principais da imagem santa em todo o período colonial giraram em

torno da decoração, do culto, da procissão e da devoção doméstica, todas unidas à finalidade

principal de ensinar pelo olhar o melhor caminho a ser trilhado.

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A alegoria de Manoel Dias de Oliveira não constitui um caso isolado. O pintor baiano

José Teófilo de Jesus seguiu um caminho semelhante ao do pintor fluminense e foi enviado

por um rico comerciante para Lisboa, com o objetivo de aprimorar a sua formação. Retorna ao

Brasil também tocado pelo novo gosto classicista, com um olhar ampliado em relação à

composição de figuras. Realiza vários painéis de personificações dos continentes, mas o que

reúne os quatro sob a proteção de Cristo tem o mesmo teor alegórico da imagem da Virgem

da Conceição. Aqui, o uso de personificações colabora para assegurar a correta leitura

simbólica da obra, ou seja, a menção de que o reino de Deus abarca os quatro cantos do

mundo.

A temática cristã continuou em voga ao longo do século XIX, com a gradual

integração de artistas acadêmicos nos canteiros de obras das igrejas. Irmandades ricas e

pobres acionaram, sempre que necessário, artistas de formações e preços distintos, mantendo

o antigo sistema de ensino e aprendizagem paralelo ao modelo mais recente praticado na

Academia Imperial das Belas-Artes. Os templos ainda dependiam de seus benfeitores e estes,

quando clientes de temáticas religiosas destinadas ao coletivo, mantinham a preferência pelo

conservadorismo. Serão os retratos os objetos mais consumidos ao longo dos Oitocentos,

responsáveis, em parte, pela atividade em pleno movimento de artistas herdeiros da tradição

colonial.

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3 A PINTURA DE RETRATO E OS SEUS ENCOMENDANTES

O bom pintor tem de pintar duas coisas principais, isto é, o

homem e o estado de sua mente. O primeiro é fácil, o segundo

é difícil, porque se deve representar com gestos e movimentos

dos membros; e isto pode ser aprendido com os mudos, que o

fazem melhor que qualquer outra espécie de homem (...).

Leonardo da Vinci

Na era fotográfica, a noção de retrato trouxe indubitavelmente o sentido de fidelidade

ao modelo, um naturalismo explícito que julgava a imagem como prova existencial de seu

referente. Desde a apresentação do daguerreótipo ao mundo, em 1839, o gênero foi

imediatamente o mais procurado, fama que faria muitos pintores retratistas adotarem a nova

linguagem como meio de sobrevivência. Os primeiros resultados exibiam, entretanto, parte da

concepção plástica desenvolvida na tradição pictórica desde o Renascimento, seja na postura,

na organização espacial ou na escolha sobre a adoção de fundo neutro ou cenográfico. A

máquina procurava repetir soluções acadêmicas de composição e partia com a vantagem de

oferecer o naturalismo realista como produto de sua especificidade técnica.

O ponto nodal para entendermos o retrato colonial e, particularmente, a face do

encomendante da virada dos séculos XVIII para o XIX, vem do sentido de fidelidade

mencionado acima. Perguntamos, então, a que o retrato deveria ser fiel em uma época que

assistia o despontar de uma nova classe ainda sem identidade própria? Como o cliente via a si

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mesmo no ato da encomenda e como o artista o percebia em um gênero que necessitava da

troca para ser concebido? Quais as tipologias comuns e o que realmente muda no período de

nosso estudo?

No intuito de responder tais indagações, consideramos favorável o resgate de certas

teorias que discutiram o assunto para que possamos elencar alguns elementos aplicáveis no

caso colonial. Em se tratando de um gênero tão antigo quanto o próprio ato de pintar –

modelar e esculpir – figuras (GIL, 2000, p. 12), não nos admira a quantidade formidável de

funções a que ele se destinou ao representar o humano ao longo da História. Galienne e Pierre

Francastel, no importante estudo sobre o retrato, afirmam que:

O desejo que tem os seres humanos de contemplar-se por meio da

interpretação de sua própria imagem parece tomar parte dos mais antigos

impulsos da humanidade e a arte do retrato individual é uma das atividades

artísticas mais universalmente presente em todos os tempos. Sem dúvida, sua

evolução não é contínua; apesar da faculdade que possui de reaparecer sempre

de muitas formas, é eclipsado algumas vezes, por obstáculos de caráter extra-

artístico ou extra-técnico. (FRANCASTEL, 1995, p. 11)

Os obstáculos referidos pelos autores poderiam vir da Alta Idade Média, quando as

imagens sofreram todo o tipo de restrições, sobretudo por negar conscientemente muito do

que a arte imperial romana produzira enquanto peças do paganismo ou mesmo do

egocentrismo. Houve também o advento do Islã, religião totalmente iconoclasta que

desenvolveu um decorativismo abstrato em muito distante de quaisquer menções à figuração.

O fato é que os momentos de crise do retrato, pelo menos no conjunto da produção ocidental,

são períodos de exceção, pois o humano, seja ele personificando seres etéreos ou narrando

histórias e fatos cotidianos, sempre ocupou lugar destacado. Basta saber em qual instante, sob

quais razões teóricas, podemos considerar parte destas representações como propriamente

retratos.

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Desde a Antiguidade encontramos imagens realizadas em técnicas diversas que

mostram cenas religiosas ou narrativas de contextos culturais próprios. São afazeres

cotidianos, poses votivas ou deuses antropomórficos que variam conforme a região e a época.

Ao que nos parece, estas não são identificações pessoais deste ou daquele indivíduo, mas

ideias gerais sobre situações comuns do coletivo. Falta ainda a intenção que dirige a vontade

daquele que se deseja ver representado e daquele que executa esta vontade, em uma relação

de maior proximidade.

Ainda no campo das ideias, mas dotadas de maior individualização do ser, estão as

imagens dos faraós do antigo Egito. Apesar de desprovidas de traços fisionômicos

particulares, estas representações de um poder combinado entre o material e o espiritual

indicam a referência a um soberano que o nome esculpido ou pintado confirma. Podemos

dizer o mesmo das estátuas kA da arte funerária, peças que funcionavam como representantes

do defunto, orientadoras das almas no instante de seu retorno ao corpo para a nova vida.

Será na Grécia clássica de Péricles38

que a individualização caminhará para a

unicidade que combina a ideia aos traços fisionômicos da pessoa representada. São figuras de

gente notável na sociedade, homenageadas por estátuas colocadas em espaços públicos para

servirem de exemplo aos demais cidadãos. As poses são heroicas e seguem certo

convencionalismo. O período helenista, por outro lado, desenvolve o gosto por maior apuro

na captação de detalhes, como os traços de idade, os gestos significantes e os sinais de caráter

humano. Este realismo nascente é absorvido por Roma e será a base do retrato dos exemplos

da fase imperial. Esta herança greco-romana ganhará novo impulso no final da Idade Média,

coincidindo com o brotar do Humanismo.

38

Péricles governou Atenas no século V a. C., durante as três últimas décadas de sua vida. Reconstruiu Atenas

após os longos períodos de guerras, inaugurando uma época de paz e prosperidade.

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O retrato na Idade Moderna pode ser considerado como o estudo fisionômico do rosto

de uma pessoa e portador de uma singularidade (CASTELNUOVO, 2006, p. 17). Os traços

exteriores e a personalidade, o seu interior, configuram a unicidade do ser e estão diretamente

associados ao triunfo do individualismo que ressurgiu lentamente no final da Idade Média.

Foi justamente o período de maior percepção e investigação sobre o mundo natural e o

próprio homem, concorrente ainda com o princípio sobrenatural da religião cristã.

A concepção de vida rural e conservadora da sociedade medieval e feudal

gradativamente se transformou a partir da revitalização dos centros urbanos, em algumas

localidades espalhadas pela Europa. O incremento de novos sistemas de trocas simbólicas

atendeu às necessidades atreladas ao desenvolvimento e aperfeiçoamento do comércio,

dinamizando e alterando as relações sociais, como vimos nos capítulos anteriores. As cidades

tornaram-se polos de intensa atividade cultural e artística, e é nesse ambiente que o retrato

renasceu.

A sociologia da arte procura explicar a revitalização do retrato na Idade Moderna

como parte de complexo estudo da personalidade (CASTELNUOVO, op. cit., p. 29). Antes o

indivíduo perdia-se na coletividade cristã, seguindo, quase anônimo, os padrões culturais e

religiosos de sua comunidade. Os retratos medievais, concordando com esses padrões,

valorizavam o símbolo em detrimento do indivíduo. Os atributos dirigiam o significado do

retratado em direção à sua função na sociedade, propiciando uma leitura iconográfica a partir

de elementos externos. Eram figuras estilizadas e padronizadas, postas frontalmente e de

pouca expressividade. A imagem de Cristo foi o modelo por excelência, o qual aparecia

sugerida nas representações de papas e senhores feudais. O retrato como detentor de

qualidades fisionômicas particulares não encontra, na estrutura da sociedade medieval, espaço

para desenvolver-se livremente.

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O colapso do sistema feudal em algumas localidades da Europa, ao longo do século

XIII, e a consolidação gradual do poder monárquico com maior centralização, além do

crescimento da burguesia, acompanharam a difusão do retrato e suas novas funções. As

peculiaridades do indivíduo despontaram junto ao naturalismo crescente. O olhar

investigativo para o mundo significou também uma percepção mais apurada das diferenças

entre as pessoas e essas diferenças passaram a ser objeto de estudo. Como bem diz John Pope-

Hennessy, em seu estudo sobre o assunto:

O retrato no Renascimento não é mais que uma linha divisória entre o retrato

medieval e o retrato como o conhecemos na atualidade. É a representação da

história de como os olhos deixam de ser símbolos lineares e se convertem em

nossos órgãos refletores e perceptores da luz; de como os lábios deixam de ser

um segmento da textura indiferenciada do rosto e se converte em uma zona

sensível cujo relaxamento ou concentração pode expressar uma gama de

respostas; de como o nariz deixa de ser uma separação entre os dois lados do

rosto e se converte em delicado instrumento mediante o qual cheiramos e

respiramos, e como os ouvidos deixam de ser pólipos góticos repulsivos que

surgem da cabeça e se convertem em uma espécie de aparato receptor cujas

divinas funções compensam sua forma pouco atrativa. (POPE-HENNESSY,

1985)

A análise da identidade e da fisiologia das paixões abrangia os interesses das camadas

dominantes, como monarcas, papas e membros da nobreza e das transações comerciais

burguesas. Houve a necessidade de identificar traços interiores do caráter na linguagem

gestual nos intercâmbios comerciais, assim como definir a postura dos chefes de estado nas

manobras políticas. Essas atividades envolviam constantes contatos com o desconhecido. O

olhar, as dobras das rugas de expressão, o jeito de articular os membros e a postura seriam

códigos, indícios do comportamento, denunciando defeitos ou exaltando virtudes. Houve, na

verdade, a necessidade e o desejo de se conhecer o outro.

Formou-se elaborada regulamentação no cerimonial das cortes. Personalidades ligadas

ao círculo cortesão se empenharam na definição e investigação das melhores estratégias para a

correta conduta do governante, visando, acima de tudo, a manutenção do poder. Percebemos,

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na Idade Moderna, que os interesses de Estado dependeram não apenas da força militar e da

política, mas também da capacidade de articular todo um jogo imagético que abarcava as

artes, a indumentária, os gestos e o correto comportamento em cada situação. As cortes

barrocas do século XVII, sobretudo a francesa de Luís XIV, absorveram com sucesso o que a

época de Nicolau Maquiavel estava ainda experimentando39

.

É sintomática a proliferação de tratados de humanistas no Renascimento sobre

educação e decoro. Partindo da nobreza como exemplo, os escritos regulamentavam a conduta

correta à mesa, a forma de olhar, os trejeitos e a adequada maneira de se vestir. A obra De

civilitate morum puerilium (Da civilidade em crianças), de Erasmo de Rotterdan, lançado a

público em 1530, foi amplamente difundida, contando, ainda no século XVI, com numerosas

reedições (ELIAS, 1994, vol. 1., p. 69). O autor tratou do comportamento em público e

trabalhou, entre outras definições, com a ideia da linguagem corporal. Sobre Erasmo, Norbert

Elias menciona que a postura, os gestos, as expressões faciais – esse comportamento de que

cuida o tratado é a manifestação do homem interior, inteiro (ELIAS, op. cit., p. 69).

Um dos pontos interessantes na obra de Erasmo, conforme análise de Elias, reside na

descrição dos tipos de olhar (ELIAS, op. cit., p. 69). Diretamente relacionado ao retrato, ele

indicaria o estado interior do indivíduo, preocupação cada vez mais visível nas obras dos

pintores quinhentistas. O autor explica o aspecto físico do olhar associando um valor

correspondente, como o arregalado que denota sinal de estupidez, ou distante, indício de

divagações do pensamento, entre outros. Complementando o olhar, o restante da gramática

corporal externa traduz a personalidade, o que se esconde no íntimo.

Certamente os artistas do período estavam sensíveis às mudanças sociais. A gradual

substituição da plástica linear pelos efeitos de claro e escuro, como se observa na geração de

39

O florentino Nicolau Maquiavel (1469-1527) foi filósofo, poeta e diplomata, autor de O Príncipe. Viveu sob o

domínio dos Médici, na época em que nomes como Sandro Botticelli e Leonardo da Vinci estavam em plena

atividade.

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Leonardo da Vinci, mostra que a representação naturalista daquele momento trouxe embutida

a pesquisa das sensações e das emoções. O próprio Leonardo registrou que o retrato deveria

representar os mecanismos do pensamento, explicando o uso correto da iluminação para

ressaltar o relevo e despertar o sentido de unidade entre cabeça e corpo. A acentuação

corpórea no uso de manchas cromáticas submetidas às variadas gradações de luz consistia

artifício propício na evocação de aspectos psicológicos, ao contrário da artificialidade dos

contornos lineares. Assim, pequenos detalhes se combinavam no todo mais verídico e

evocativo, fixando na superfície pictórica pedacinhos da particularidade do retratado.

O humanismo renascentista valorizou o particular, o individual, e as biografias

surgiram, no mesmo contexto do retrato, com algumas funções parecidas. Às vezes se

complementavam quando, ao lado do texto escrito, aparecia a ilustração com o rosto do

biografado. Atendiam ao desejo de conhecer personalidades, vasculhar a vida do outro,

agrupar as semelhanças e reconhecer os defeitos. Biografia e retrato funcionaram também

como agentes da memória, assegurando o nome para a posteridade. São testemunhas que

mantêm a presença, mesmo após a morte do indivíduo.

A obra Vidas dos pintores, escultores e arquitetos, de Giorgio Vasari, nasceu no

contexto das biografias e da consolidação dos retratos como gênero variado e autônomo

(VASARI, 2003). O autor somou à História da Arte um conceito diferente das anteriores

publicações, valorizando a análise técnica acompanhada da vida de cada indivíduo,

contextualizando a obra a partir de seu criador. Antes, os escritos costumavam apresentar

tratados sobre métodos de manipulação de materiais e construção da imagem. Detalhes da

vida do artista assumiram posição de destaque, como as vias de sua formação e as

circunstâncias factuais no tempo da execução das obras.

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Importante salientar que Vasari estruturou uma academia, visando, principalmente, a

elevação do estatuto social do artista e a sua independência dos rigores do sistema das guildas

(PEVSNER, 2005, p. 105). Leonardo da Vinci havia defendido a posição honrosa do pintor

décadas anteriores, o que caracteriza um momento de consciência individual sobre a

importância do seu trabalho no seio da sociedade. Os autorretratos são fenômenos do período,

posicionando o artista como alguém digno de ser representado.

O século XV italiano experimentou variadas fórmulas de retrato, saindo

definitivamente do modelo medieval de postura orante dos doadores. Os fundos neutros

buscavam enfatizar os valores psicológicos e o culto a si mesmo, sem nenhuma interferência

de objetos ou referências ambientais. O uso de cenografias, por outro lado, procurava situar a

pessoa no seu entorno, com seus símbolos e funções na sociedade. As paisagens integravam o

homem na natureza física a qual pertencia e estudava por meio da Ciência. As poses

acompanhavam estas pesquisas mais livres: rosto frontal, de perfil ou a três quartos; corpo

representado inteiro, a meio corpo ou em formato de busto. A herança de tamanha

experimentação pode ser vista no século seguinte, conforme nos diz Galienne e Pierre

Francastel:

Os sucessores do século XV puderam eleger agora, dentro de uma gama

diversificada de tipos de retrato que é um legado dos iniciadores do gênero.

Podem dispor o retratado sobre fundo neutro, sobre fundo imaginário que

admite paisagem, arquitetura e decoração ao estilo antigo, interiores, ou,

graças ao estratagema da janela aberta sobre uma veduta, a combinação de

vários destes elementos. (FRANCASTEL, 1995, p. 107)

Vale salientar que o ressurgimento do retrato não significou a especialização de

artistas especialmente para este gênero. Os mais destacados pintores recebiam,

ocasionalmente, encomendas e, na relação direta com o cliente, selecionavam a estrutura mais

adequada da composição. O mais importante era a noção de beleza naturalista da época e

como este fator influenciava na feitura mais idealizada ou realista da figura. A citação de

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Leonardo da Vinci que abre o presente capítulo sugere a via da semelhança, concordante com

sua preocupação em extrair do retratado o seu interior. Este princípio deixava em aberto a

possibilidade de interferir sutilmente na realidade40

.

Para a representação da imagem de um monarca, Giovanni Paolo Lomazzo advertia

que o pintor precisava conferir majestade e nobreza, afins com a sua condição de governante,

mesmo que tais valores não estivessem na aparência do rei ou imperador (CASTELNUOVO,

2006, p. 67). Em seu tratado, datado de 1584, Lomazzo defendia a beleza ideal, beleza

pautada na obtenção da ordem entre as partes. Ele escolhia papas, imperadores, príncipes e

demais personagens do poder como retratados exemplares.

A gravura de tradução colaborou, na virada do século XVI para o XVII, para a

circulação dos modelos experimentados nas principais escolas. Ticiano havia, pela primeira

vez, elevado o prestígio do retrato a níveis até então inéditos e os ecos se fariam sentir até

mesmo em Portugal. Suas poses diversificadas, os olhares distantes e expressivos e a

intensidade com que captava os graus mais sutis de personalidade influenciaram o nascente e

dramático Barroco. Mesmo em fins dos Setecentos, sua herança apareceria em artistas como

Vieira Portuense, como será analisado adiante.

Outra questão sobre o desenvolvimento do gênero encontra-se na atuação das

academias, principalmente a francesa do século XVII. Ao organizar todo um receituário

formal pautado nos modelos greco-romanos, a partir de rígidas regras compositivas, as

academias buscaram organizar a pintura em cânones bem definidos. Os grupos temáticos

foram agrupados em uma ordem hierárquica e os retratos, apesar de ocuparem o mesmo

patamar das pinturas chamadas de gênero, como paisagem e natureza-morta, tinham maior

prestígio.

40

O pensamento neoplatônico abriu espaço para a combinação entre ideia e realidade, propondo que a

representação da última adquira um caráter simbólico.

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Como instituições geralmente financiadas pelo rei, as academias funcionavam como

parte integrante do mecanismo de produção simbólica, a serviço do intricado jogo persuasivo,

característico das sociedades de corte. Trabalhar como pintor do rei significava estar no topo

do patamar almejado por um acadêmico na busca de realização pessoal. O retrato, neste

contexto, ocupou posição de destaque, pois foi a figura do monarca a representação máxima a

ser propagada. Situação paradoxal, pois o retrato encontrava-se abaixo da pintura histórica na

hierarquia dos gêneros, causando, em algumas ocasiões, desconforto por parte dos artistas. É

conhecida a queixa de Rubens ao ser convocado para pintar os membros da monarquia

francesa, na primeira metade do século XVII.

O retrato de Luís XIV, de Hyacinthe Rigaud (Figura 36), consiste em exemplo

culminante na criação de um protótipo que foi adotado por várias gerações posteriores a ele.

Fruto da arte acadêmica, a imagem apresenta o rei de corpo inteiro, com dimensões

ligeiramente maiores que o natural41

. A grandeza e a pompa despertam o sentido de respeito e

anunciam uma das funções do retrato: a de substituição. Na ausência do rei, a imagem

garantia a sua presença, exigindo, inclusive, reverência dos súditos.

Os atributos de poder áulico estão distribuídos por toda a composição. O exuberante

manto, aberto no lado do espectador, mostra o forro de arminho e um pedaço da espada,

cravejada de pedras preciosas. Na parte exterior, a flor de lis, símbolo da dinastia Bourbon,

decora o tecido azul, motivo que se repete no trono e na mesa que guarda a coroa. O cortinado

vermelho na parte superior confere equilíbrio tonal com o azul predominante na parte inferior.

A coluna, situada no fundo da composição, simboliza a constância e traz na base a

personificação da justiça.

41

Os antecedentes renascentistas do retrato ostentatório ganham maior expressão com a geração de Van Dyck, já

na época barroca. Serão as fontes formais e iconográficas para Rigaud e outros pintores de corte, a partir do final

do século XVII.

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A opção por uma composição de plano aberto, diferente dos retratos de busto, mais

intimistas, revela a ostentação característica da imagética oficial de Versalhes. Há espaço

suficiente para a distribuição dos atributos que acompanham a simbologia do rei, revelando,

neste caso, a necessária junção entre a essência do retrato, ao mostrar a singularidade do

indivíduo e os signos que contribuem para a sua identidade. Além disso, as dimensões da tela

colocarão sempre o espectador em posição de inferioridade em relação aos olhos do rei,

artifício que acentua a posição de autoridade da figura.

A pose de Luís XIV repercutiu nas demais cortes, a partir da hegemonia cultural

francesa nos Setecentos. O olhar direcionado para o observador, a representação de corpo

inteiro, o tratamento pomposo e exuberante das texturas, o uso dos elementos iconográficos

de poder e as grandes dimensões serão os parâmetros para o retrato de corte, destinado à

exposição pública. Esta tipologia assumiu o topo da hierarquia de pintura de retrato.

Enquanto as iconografias religiosas e mitológicas gozavam de amplo receituário

formal, as tipologias do retrato foram articuladas em gradual limitação de derivações, salvo

em casos de artistas com maior liberdade. As imagens de corpo inteiro serviram geralmente à

solenidade e ostentavam poder e majestade. Os bustos, mais comuns, podiam suscitar a

reverência e até mesmo a substituição. Porém, é comum que os retratos de busto

funcionassem como agentes da memória ou como imagens comemorativas. Os retratos de

perfil, abundantes no Renascimento, provêm da influência da numismática, assemelhando-se

às moedas e medalhas.

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Figura 36– Hyacinthe Rigaud. Retrato de Luís XIV. 1701. Óleo sobre tela. 277 x 194 cm. Museu do Louvre,

Paris.

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Para o iconógrafo, o retrato integra a categoria dos temas de observação do mundo.

Não carece obrigatoriamente de consulta a fontes literárias, históricas ou religiosas, como

ocorre nos casos de representação de cenas bíblicas ou de reconstituição de fatos do passado.

O modelo comumente posa para o artista e, no caso de retratos póstumos, há os relatos dos

que conviveram com a pessoa em vida, se, porventura, o artista não a tenha conhecido. Como

tema de observação do mundo, o retrato e a sua retórica pertencem ao seu tempo. Por isso a

grande dificuldade na apreensão do significado de pequenos detalhes, do porquê de sorrisos

que parecem enigmáticos e da razão de certos olhares misteriosos.

A leitura de um retrato requer o conhecimento de elementos culturais da época em que

foi feito, pois os padrões gestuais e comportamentais são dinâmicos. Não exige apenas o

estudo sobre dados superficiais, como o vestuário de um tempo e local; deve-se considerar

que códigos sociais atendem aos propósitos específicos do meio em que foi realizado. Assim,

o estudioso de hoje precisa de cautela na análise de retratos do passado, pois olhares e gestos,

inclusive posições de dedos, são geradores de significados nem sempre disponíveis fora de

seu tempo. Giulio Carlo Argan, no seu Guia de História da Arte, avisa que:

Na cultura da imagem, os processos de associação e transmissão surgem de

fato muito mais complexos e estruturalmente diversos dos da cultura da forma,

que requerem a relação direta e consciente: muitas vezes, é certo, um tema

icônico é ligado a culturas e tradições remotas, fora de qualquer continuidade

verificável, como aconteceu precisamente no Renascimento, quando se

estabeleceu uma relação, à distância de séculos, com a cultura de imagem do

mundo clássico. (ARGAN, 1992, p. 39)

O método que Argan apresenta como Iconológico, referenciando os autores que se

dedicaram ao estudo, como A. Warburg e E. Panofsky, exige a compreensão de fatores

associados ao próprio objeto artístico, como o comportamento social diante de certas

produções imagéticas. A citação nos serve, por exemplo, para identificar a filiação do retrato

de perfil quatrocentista à numismática do antigo Império Romano. Os símbolos se

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movimentam no tempo e no espaço e adquirem novas significações, mesmo que

aparentemente mantenham semelhanças formais.

O olhar cumpre papel essencial em um bom retrato. Consiste em elemento de

iconografia e acompanha a função a que se destina a obra. Traduz estados psicológicos

concordantes com a natureza e o estatuto social do retratado. Os incisivos e diretos, que

encaram o espectador; os graves e pesados, que lembram os santos penitentes; os distantes e

pensativos, que denotam atividades mentais. São reis, poetas, intelectuais, músicos, clérigos e

demais personagens dignos de fincarem sua imagem na posteridade, requerendo poses e

posturas específicas.

O retrato é, por excelência, estático. Apresenta a face da pessoa com os atributos que

lhe conferem significado. Para compreendê-lo profundamente, deve-se recorrer à história do

indivíduo e, em alguns casos, analisá-lo sob a luz da iconologia. O retrato permanece quase

sempre restrito ao seu conjunto de fórmulas, experimentadas no humanismo renascentista e

consagradas nas cortes absolutistas dos Seiscentos. Os estilos de época conferem o gosto

formal do momento, alterando pouco os modelos compositivos tradicionais.

Em resumo, o desenvolvimento do retrato, como gênero autônomo na Idade Moderna,

portador de valores e funções próprios, seguiu a tendência do conservadorismo em algumas

regiões mais modestas, como Portugal. Manteve, nestas regiões, pouca variação na sua

tipologia e serviu, geralmente, às figuras de destaque da sociedade. Funcionou como emblema

de poder, de posse, de espiritualidade, de vaidade, de consciência do valor individual, de

homenagem póstuma e, principalmente, de presença. Presença que durante a Idade Média era

relativa às imagens santas, destinadas ao culto e à devoção e passou por um processo de

secularização crescente da sociedade ocidental e burguesa.

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167

3.1 O RETRATO EM PORTUGAL: AS RELAÇÕES DE ENCOMENDA

A historiografia da arte portuguesa conta com número crescente de publicações sobre

a pintura realizada até o século XIX, conforme mencionamos no primeiro capítulo. José-

Augusto França e Vítor Serrão dedicaram boa parte de seus estudos na tentativa de preencher

uma lacuna, sentida até meados do século XX. A pintura, vista historicamente e

materialmente como linguagem menos expressiva que a escultura e o azulejo, aparece

superficialmente analisada em trabalhos gerais sobre arte portuguesa, em obras de

pesquisadores mais antigos. A referencial e pioneira pesquisa de Reynaldo dos Santos,

chamada Oito séculos de arte portuguesa (SANTOS, sd.), destaca biograficamente os

principais nomes e discute pouco as características de suas obras. Basta observar, na mesma

publicação, o capítulo dedicado ao azulejo, e percebe-se que o volume e a qualidade das

informações diferem sensivelmente.

No que se refere ao retrato, França compôs um estudo que, apesar da natureza

sintética, consiste em precioso material para o presente trabalho: O retrato na arte portuguesa

(FRANÇA, 1981). O autor discorre sobre o desenvolvimento do gênero ao longo dos tempos,

desde as imagens tumulares medievais até os exemplares da Arte Moderna. Explica a

predominância do gosto italiano e do tom conservador do retrato português dos Setecentos,

discorrendo sobre características formais e iconográficas que serão observadas no caso

colonial do mesmo período.

Vitor Serrão compôs numeroso conjunto de artigos sobre o Maneirismo e o Barroco,

reunidos nas obras O Maneirismo e o estatuto social do pintor (SERRÃO, 1983a) e Estudos

de pintura maneirista e barroca (SERRÃO, 1989b). Seu estilo envolve a preocupação com o

social, tratando a pintura como pertencente a uma complexa rede de relações. Serrão explica

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as interconexões entre arte e o conjunto de fatores contemporâneos a ela, evidenciando a troca

de valores na constituição de uma identidade cultural, onde a arte participa ativa e diretamente

de todo o processo. O autor nos diz que:

O historiador de arte que deseja operar, em termos de cientificidade e rigor

analítico, sobre uma dada obra de arte particular ou situação artística (estilo

global), tem de analisar antes de mais vários processos sociais que lhe são

referentes, na base da totalidade que constituem (modos de produção) e da

dinâmica que os informa (lutas de classes), visionando em seguida as

circunstâncias históricas precisas em que se verificou a encomenda e a

produção da obra em estudo, com as suas significações determinadas por esse

processo de produção e nele determinantes, e envolvendo-se, depois, na

decodificação dos valores intrínsecos que a peça ou a obra artística veicula.

(SERRÃO, op. cit., p. 302)

Em seguida completa:

A História, assim articulada, não numa mera sucessão de fatos, mas num

sistema multiforme em que a produção material desempenha um papel

essencial, determina efetivamente aquilo que o homem é, a maneira como age,

como produz, como sonha. (SERRÃO, op. cit., p. 303)

Tanto Serrão quanto França lançam mão dos recursos de diversas disciplinas, como

História e Sociologia, para criar uma rede de relações, método que garante maior intimidade

com os objetos de pesquisa. Aqui, a complexidade assume a sua significação original, ou seja,

a abrangência de variadas partes em torno de um bem comum. Assim, a História da Arte é

vista como disciplina essencialmente dialógica e rizomática42

, não encerrada em suas

premissas particulares.

Sobre a pintura portuguesa em geral, baseando-se nos autores supracitados, nota-se

que o seu florescimento ocorreu nos Quatrocentos, quando a organização estatal promoveu a

centralização mais efetiva do poder monárquico. Na sua maioria religiosa, a pintura local não

42

O conceito de rizoma, inicialmente aplicado na biologia para explicar a estrutura de determinadas raízes, foi

adaptado na Filosofia nos escritos de Gilles Deleuze e Félix Guattari. Segundo os autores, o conhecimento

humano se dá a partir de uma rede de informações sem um núcleo preciso, onde cada parte assume o mesmo

grau de importância em relação às outras partes. Esta concepção é corrente nas ciências interdisciplinares.

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revela nomes portugueses proeminentes, mas aponta para a presença de artistas flamengos a

serviço do rei. Foram obras voltadas para os interiores dos templos, especialmente para a

ornamentação dos retábulos.

A influência estrangeira na produção do retrato português vem de longa data. No

século XV, momento em que a corte se empenhava em consumir arte e artistas, o intenso

intercâmbio comercial e cultural com os Países Baixos resultou na importação do colorido

típico flamengo que inundou as igrejas portuguesas. Ainda raro, o retrato da época se

assemelhava às figuras religiosas, com os resquícios do brilho e do dourado do gótico

nórdico.

O retrato de D. João I, fundador da dinastia de Avis e aclamado rei em 1385, transmite

as características acima citadas (Figura 37). É representado em busto e a três quartos. A pose,

com as mãos postas em oração, refere-se à atitude devocional que invoca a tipologia de

retratos votivos, comuns no século XV em Portugal. Esta tipologia associa a iconografia

religiosa ao retratado, funcionando ora como homenagem póstuma, ora como agradecimento

por graças alcançadas. Há também a necessária associação das personalidades ilustres da

sociedade com a hierarquia celestial, sugerindo o desejo de intimidade entre os poderes divino

e secular.

Este tipo de cena pode figurar em um único painel ou estar distribuída separadamente,

disposta comumente em trípticos. No entanto, apesar da imagem seguir o modelo votivo de

representação, este parece ser um retrato autônomo, pois não existem referências sobre

painéis formadores de um conjunto narrativo. Outro indicativo de sua autonomia encontra-se

na legenda em latim que circunda parte da moldura: Esta é a vera imagem do defunto Senhor

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João, de digna e venerável memória, até há pouco mui nobre e mui ilustre rei de Portugal,

que em sua vida se tornou muito poderoso pela vitória de Aljubarrota43

.

Figura 37 – Autor desconhecido. Retrato de D. João I. Século XV. Óleo sobre tela MNAA, Lisboa.

43

Hec est vera digne ac venerabilis memorie Domini Joannis defucti quond Portugalie nobilissimi ET

illustrissimi Regis ymago quippe Du viveret de Juberot victoria potitus ET potentíssima.

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A inscrição nos informa sobre a função memorial do retrato, feito provavelmente há

algum tempo após a morte do rei, ocorrida em 1433. A imagem revela pouco da

individualidade do soberano, mostrando semblante apático e pouco expressivo. A qualidade

dos detalhes ornamentais do tecido brocado do fundo e do tratamento cromático e de claros e

escuros aproxima a obra à escola flamenga do mesmo período. O decorativismo ainda gótico

e o naturalismo no tratamento das texturas, dos volumes e da profundidade são marcantes na

produção artística desta escola. Verificamos, entretanto, que a técnica sozinha não garante a

transmissão dos valores interiores ou psicológicos do referente, mantendo a aparência fechada

em regras compositivas de um determinado gosto. Importa mais a manutenção da memória

através de uma representação simbólica.

O século seguinte revelaria Portugal como potência náutica, quando as soluções

plásticas em voga na Itália foram absorvidas e os elementos formais de tendência medieval e

renascentista foram mesclados aos novos valores. O pintor e teórico Francisco de Holanda,

por exemplo, viajou para Roma e conheceu Michelangelo e Federico Zuccari, este último

importante pensador de conceitos tipicamente maneiristas. Holanda compartilhou com as

ideias de Zuccari a respeito de uma criação com regras mais frouxas em relação à matemática

exercitada na geração de Leonardo. Sua obra Do tirar polo natural, um pequeno tratado sobre

a arte do retrato, composto em forma de diálogo entre um mestre e um discípulo, expressava

bem as suas concepções. No trecho que selecionamos, o mestre Fernando, que seria o próprio

Holanda, passa os ensinamentos finais ao seu discípulo:

Fernando: (...) E é um, que em tudo o que tiver descoberto a pessoa ínclita,

que ao natural pintardes o retrato, ou da carne, ou do vestido, se não pareça em

nenhum modo com outra pessoa alguma, e antes se não pareça com ninguém,

que parecer a pessoa que não é; e se for pessoa alegre, não se pareça com

triste, e se for pessoa triste e recolhida, não pareça com as alegres e fáceis; se

for pessoa sobre o gordo, não se pareça com o magro; nem o magro com o

gordo; se for desairosa a pessoa, não pareça com grande ar de despejo44

. Mas

tendo ela o ar e graça e bom despejo ou no rosto ou nas mãos, ou nos braços,

44

Despejo no sentido de desembaraço, desenvoltura.

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não se lhe perca uma onça dele; e se for pessoa de pouca idade, pareça ainda

de menos idade.

Braz Pereira: E se for de muita idade?

Fernando: Pareça ainda, se quiserdes, de menos idade.

Braz Pereira: E se for feia?

Fernando: Pareça que não é tão feia. (HOLANDA, 1984a)

Os tratados de Francisco de Holanda logo se espalhariam por Portugal, atraindo

artistas locais que aderiram aos novos gostos, como os pintores Antônio de Campelo e Gaspar

Dias. De sua autoria destacam-se ainda os escritos Da pintura antiga (HOLANDA, 1983b) e

Diálogos em Roma (HOLANDA, 1984c), mantendo as referências greco romanas como as

fontes primeiras de discussão sobre o fazer artístico. Importante lembrar que a época

maneirista foi uma fase de intensa atividade intelectual, não mais pensando a arte como um

ofício apenas regrado ou pautado em valores externos, mas refletindo sobre a sua essência no

conjunto dos vários fazeres humanos. Em sua passagem por Roma, Holanda respirou toda a

atmosfera de mudanças de atitude, considerando o artista como um criador original levado

pela inspiração.

Dentro desta noção, Holanda dedicou parte de seus conceitos ao retrato, explicando os

pontos fundamentais para uma boa composição. Deixava claro que este tipo de produção era

extremamente restrito às pessoas abastadas, algo que se manteve do passado renascentista.

Sobre o assunto, ele era bem claro, conforme a seguinte passagem:

O primeiro preceito que eu no tirar ao natural poria é que o pintor excelente

que pinte muito poucas pessoas. Digo que estimo somente os ilustres príncipes

e reis ou imperadores merecem ser pintados, e ficarem suas imagens e figuras

e sua memória dos futuros tempos e idades. (...) E também tem entre estes

lugar qualquer homem famoso em armas, ou em desenho, ou em letras, ou em

singular liberalidade ou virtude, e não algum outro qualquer homem.

(HOLANDA, 1984a, p. 14).

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Fenômeno observado nesta época, concordante com a citação acima, é a eminência do

pintor retratista de corte. São várias as razões para a escolha de um artista entre tantos, mas

esta preferência apontava para um tratamento especial em relação aos demais. Notamos

patente deslocamento de estatuto social, pois este profissional, juntamente com os membros

de sua oficina, passava a responder pela circulação das imagens de poder, travando contato

direto com a nobreza cortesã. Outro fator diferencial encontra-se na disposição de uma pensão

fixa que garantia maior segurança no exercício de seu ofício. Remontando ao Renascimento

para entender esta diferenciação, Martin Warnke no diz que:

Foram os humanistas das cortes italianas, na verdade os responsáveis pela

redação dos documentos nas cortes, que pela primeira vez notaram que a partir

da posição do artista da corte surgia uma nova concepção da profissão, que

podia ser expressa conceitualmente com o auxílio de analogias e transposições

teóricas. Eles remontam às tentativas de Petrarca nesse sentido. Essas

tentativas dos humanistas, que frequentemente talvez não passassem de mero

exercício intelectual ou simples gentileza, foram assumidas pelos artistas e

logo eram também elaboradas de modo sistemático. (WARNKE, 2001, p. 66)

Em Portugal, verificamos o movimento do pintor da corte a partir do reinado de Filipe

IV, na ocasião da União Ibérica. Nomes como Domingos Vieira e Bento Coelho Silveira

foram ativos, justamente quando o retrato português assumiu um caráter internacional

(FRANÇA, 1981, p. 32). Vale salientar que a circulação do conhecimento atingiu proporções

inéditas na história, impulsionada pela tipografia móvel e pelo aperfeiçoamento da técnica da

gravura45

. Os tratados de arte e as cópias de obras consagradas disponibilizavam as fórmulas e

os modelos, universalizando cada vez mais os gostos e padrões em voga nos grandes centros

culturais. Outro fator significativo para o intercâmbio de saberes foi a intensa movimentação

dos artistas nas cortes europeias, seja por contrato ou por busca de aprendizado. Assim, não

surpreende o fato de que, a partir do final do século XVI, ocorresse maior internacionalização

dos estilos, com matriz visivelmente italiana.

45

Tanto a tipografia móvel quanto o aprimoramento da gravura acontecem ainda no século XV, tendo no

seguinte a explosão da circulação de livros e de imagens.

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A análise do retrato de um jovem cavaleiro, de autoria não identificada, declara a forte

ligação com os modelos em circulação no momento, quando a obra de Ticiano exercia

fascínio nas escolas portuguesa e flamenga (Figura 38)46

. O fundo neutro e negro colabora

para que o olhar do espectador recaia diretamente no rosto do rapaz, parte investida de

iluminação contrastante. As feições são sutis e delicadas, o que causa interessante conflito

com a armadura metálica, aparato de poder militar.

A gola rendada branca, a armadura e a faixa vermelha que cruza o peito do rapaz

simbolizam o seu estatuto elevado, faltando, no caso de iconografia desta natureza, o bastão

de comando. Caso a pintura trate da figuração de um rei, o que parece plausível,

provavelmente esta obra seria uma versão reduzida de outra que exibiria, com maior

visibilidade, todos os atributos que acompanham o personagem.

A organização da figura no espaço repete uma fórmula consagrada na época de Rafael

e, posteriormente, aplicada muitas vezes por Ticiano: equilibrar a composição centralizando

um dos olhos, de forma que uma linha vertical possa dividir o quadro em duas partes iguais.

A porção mais importante do rosto é levemente deslocada para o lado esquerdo, o que cria no

espectador uma movimentação que se inicia no olho centralizado da personagem. Este

recurso, associado à representação a três quartos, confere certo dinamismo, como se um

instante da vida do retratado tivesse sido capturado pelo pintor.

A despeito da falta de referências sobre a identidade da personagem, o pintor

conseguiu transmitir algo de singularidade ao retratado. O olhar frágil, o leve sorriso e a

opção por um plano fechado colaboram, juntamente com as características expostas acima,

para uma sensação de intimidade e individualidade. Entretanto, mesmo com a visível

46

Em Do tirar polo natural, Holanda se refere a Ticiano como o mais famoso pintor de retratos (...) a flor deste

mundo. (HOLANDA, 1984, p. 41).

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transformação em relação ao século anterior, a época aponta para uma situação ainda

delicada, notada pela dificuldade de encontrar as autorias de diversos retratos portugueses.

Figura 38 – Autor desconhecido. Retrato de um Jovem Cavaleiro. Século XVI. Óleo sobre tela.

MNAA, Lisboa.

Alguns fatores colaboram para a complexidade observada na produção artística dos

Seiscentos. A União Ibérica (1580-1640) e as posteriores guerras da Restauração marcaram

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uma fase de crise caracterizada pelas vias contraditórias de busca de identidade, ferida pela

humilhação da ocupação espanhola. A absorção de gostos externos, principalmente italianos,

aconteceu por contato direto ou através da corte de Felipe III. Apesar da turbulência do

período de dominação e de guerras, a pintura floresceu em Portugal, mantendo o programa da

Contrarreforma de decoração das igrejas e construção (e reconstrução) de novos mosteiros e

conventos.

A relação entre o pintor e o indivíduo a ser retratado reflete uma troca de

conhecimentos, um elo entre as partes. A representação do singular requer uma aproximação

íntima na busca dos caracteres pessoais. O autor do retrato precisava respeitar a forma como

seu modelo desejava ser apresentado e se movimentava na frágil fronteira entre a criatividade

e a convenção47

. O risco de rejeição, que acarretaria na perda de contrato, influenciava

consideravelmente as escolhas das fontes iconográficas e o manejo dos elementos formais.

Outro fator a considerar, para a discussão do caso português, consiste nas diferenças culturais

e como elas se comportavam na forma de ver a si mesmo e ao outro.

França alerta para a preponderância de retratistas estrangeiros na corte portuguesa e

questiona o quanto isso interferia na percepção da própria identidade:

Do retrato português seria maneira simplificada de dizer: na realidade, o

retrato que ao longo do século XVIII se praticou em Portugal, ou para clientes

portugueses, nos seus exemplos de maior qualidade é obra de artistas

estrangeiros, escultores, pintores ou gravadores. (...) Não deixa isso de ter

significado, no seio da cultura nacional que, num domínio tão sintomático

como o do retrato, especialmente se enquadra no viver social e na consciência

que a sociedade tem de si própria, e dos seus deveres imagéticos. O papel

atribuído a artistas estranhos constitui assim uma referência crítica de maior

importância histórica. (FRANÇA, 1981, p. 38)

É notória a dificuldade de encontrar traços de originalidade na produção dos pintores

lusitanos, fato referenciado desde os antigos estudos sobre o assunto, como a mencionada

47

O texto refere-se aos retratos encomendados, sobretudo quando os clientes pertenciam à família real.

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obra de Reynaldo dos Santos. As explicações mais comuns sustentam que a cultura

portuguesa se afinou mais com a escultura, por seu apelo tridimensional. A expressão maior

da pintura estaria nos azulejos, arte que alcançou desenvolvimento significativo em várias

escolas regionais, inclusive coloniais, como atestam os exemplares de São Luís no Maranhão.

Vale salientar, entretanto, que a falta de traços originais não significa falta de

qualidade. Como os demais reinos europeus, Portugal abriga quantidade considerável de

artistas habilidosos, como Josefa D’Óbidos, André Gonçalves e Vieira Lusitano, entre tantos.

As igrejas são testemunhas vivas do apreço às imagens narrativas pictóricas, sendo

numerosas, muito mais que na Colônia, as paredes e os tetos forrados de iconografia bíblica e

hagiográfica. Os palácios exibem verdadeiras galerias de retratos dos seus proprietários e de

seus antepassados. Ocorre, no entanto, que o intenso intercâmbio com os centros culturais

dominantes, sobretudo italianos, contribuiu para uma aceitação dos modelos sem grandes

alterações, fato que poderia abrigar uma série de razões. Uma plausível é a interferência do

encomendante no ato da negociação do contrato de trabalho e das seleções das fontes

iconográficas, quando conhecedor das escolas internacionais.

Assim, os retratos portugueses oscilaram formalmente de acordo com a maior

proximidade de uma ou de outra escola, como o Barroco tardio do italiano Domenico Duprá

e o Rococó do francês P.A. Quillard, ambos prestando serviços à corte de D. João V.

Conservaram, no entanto, certo convencionalismo como característica predominante. Na falta

de intimidade entre o pintor estrangeiro e o seu modelo, a opção por utilizar padrões de

representação consagrados seria a garantia da satisfação entre as partes.

Observamos caso semelhante na corte francesa de Maria de Médici, na primeira

metade do século XVII. A carência de pintores expressivos regionais na época, pois Claude

Lorrain e Nicolas Poussin estavam em Roma, resultou na contratação de Rubens, afamado

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artista flamengo da época. O conjunto de obras que representam as fases da vida da rainha

evidencia a opção pela idealização, diferente dos retratos que o pintor realizou em seu círculo

íntimo, estes dotados de maior personalidade.

O próspero reinado de D. João V avançou no século XVIII com certa preocupação a

respeito da formação medíocre de seus artistas. A tradicional contratação de pintores

estrangeiros, no qual Domenico Duprá foi, sem dúvida, exemplo maior, o levou a criar uma

escola portuguesa de arte em Roma, a Accademia della Sacra Corona di Portogallo, na

década de 1720. A estreita ligação com os programas compositivos romanos foi a tônica do

reinado joanino, o qual encontra, na construção do palácio de Mafra, sua expressão maior. A

inicial aquisição de escultura e pintura da escola romana e o investimento nos pintores

bolsistas, em formação e regressos da academia, fizeram com que Mafra se tornasse um

centro de referência do Barroco italiano em Portugal (SERRÃO, 2003, p. 182). Nesta

conjuntura de prosperidade, o retrato cortesão adquiriu importância até então inédita em

Portugal.

Como exemplar máximo do Absolutismo, o modelo de Luís XIV contaminou outras

cortes europeias, chegando, por via italiana, em solo português. A imagem de Dom João V, de

Duprá (Figura 39) interessa ao nosso trabalho, pois parece ser a fonte para o retrato de Gomes

Freire de Andrada, o conde de Bobadela, atribuído a Manoel da Cunha e Silva. A informação

visual provavelmente chegou ao artista através da profusão de gravuras que circularam com as

efígies das personalidades de poder portuguesas.

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Figura 39– Domenico Duprá. Retrato de D. João V. c. 1725. Palácio Ducal, Vila Viçosa.

Duprá, contratado em Roma pelo Marquês de Fontes e Arantes, em 1718, permaneceu

na corte portuguesa durante doze anos. Nomeado pintor oficial de Dom João V, compôs

numerosos retratos da Família Real. A reforma do Palácio dos Duques de Bragança, em Vila

Viçosa, oferece uma extraordinária amostra da atuação de Duprá na formação do retrato

lusitano. Sem dúvida, proporcionou uma verdadeira fonte iconográfica e formal do retrato

barroco para outros artistas, portugueses e estrangeiros. O forro do Salão dos Duques conta

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com uma série de representações de membros da dinastia dos Bragança, pintados pelo

italiano.

O retrato de Dom João V segue os parâmetros de Rigaud na organização dos

elementos. O rei, vestindo armadura típica dos monarcas, símbolo de sua liderança militar,

exibe os demais atributos de poder: o cetro, a coroa e o manto. A postura repete a de Luís

XIV, com a opulência característica do retrato oficial de corte. A ambientação, com

cortinados e parte visível de uma pilastra, complementa a atmosfera atemporal característica

dos cenários criados neste tipo de composição.

O reinado de D. João V marcou uma nova fase para a pintura portuguesa, sobretudo

para o retrato de corte. A notável permanência de artistas estrangeiros no país a serviço do rei

revela um ambiente fecundo para a produção artística. Logo as primeiras gerações de bolsistas

portugueses transmitiriam seus ensinamentos acadêmicos aos novos discípulos, abrindo

caminho para a época que divulgaria nomes como Domingos Antônio de Sequeira e Vieira

Portuense.

As melhorias no panorama artístico orquestradas no período joanino viriam a se

consolidar somente nos quartéis finais dos Setecentos, com a atuação notável do Intendente

Geral de Polícia Diogo Inácio de Pina Manique, sob o reinado de Dona Maria I. Aulas régias

foram abertas e bolsas concedidas com regularidade para a complementação dos estudos na

Academia Real de Portugal em Roma.

Braço direito do Marquês de Pombal, Pina Manique assumiu o cargo endurecendo o

tom conservador peculiar da era pombalina, afastando os ventos revolucionários franceses,

mas continuando com a absorção de um Iluminismo particular. Aperfeiçoou os mecanismos

para o controle da circulação de impressos, evitando que parte das ideias iluministas

contrárias à ordem e aos bons costumes lusitanos contaminasse as mentes mais liberais.

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Apesar de conservador, Pombal havia posto em prática muito do que o Iluminismo

preconizava: reformulou o sistema educacional, modernizou a área legislativa, reformou a

Universidade de Coimbra, aboliu a escravatura em Portugal, além de reconstruir, de forma

racionalista, a parte baixa de Lisboa, duramente atingida com o terremoto de 1755. O aparente

paradoxo de sua atuação como homem de ferro de D. José vem do seu cuidado seletivo em

articular as ideias iluministas com a manutenção do poder e das regalias comuns ao Antigo

Regime, ou seja, de agir conforme um déspota esclarecido. A morte do rei precipitou a queda

de Pombal, trazendo para o governo de D. Maria I muitas das inimizades do Marquês. Apesar

da manutenção de muito do que o programa de Pombal havia defendido, um clima de

superstição e de religiosidade extremada ascendeu novamente. A catástrofe natural passa a ser

vista como um castigo divino pelas atitudes do ministro de D. José I, sobretudo no que se

refere ao episódio da expulsão dos jesuítas. José Augusto-França tece a seguinte crítica:

À beira duma Europa feliz, vivendo então no prazer de descobrir novos

objetos que acrescentavam a sua comodidade, aguçando-lhe o espírito curioso,

e no gosto de se debruçar sobre novas idéias, que despertavam o seu interesse

e a sua crítica, Portugal fechava-se numa interminável e deleitosa penitência,

marcada por touradas e gozos mais seráficos, entre procissões, óperas de

castratti e representações de fantoches em que uma Virgem Maria, coberta de

jóias, podia bater o fandando com um Jesus de imensa cabeleira empoada.

(FRANÇA, 1981, p. 25)

A despeito do parcial fechamento cultural de Portugal, as bolsas para o estudo em

Roma, que aconteciam de maneira esparsa desde o tempo de Dom João V, passaram a contar

com alguma regularidade a partir da abertura da aula de desenho de Pina Manique, na Casa

Pia. A escolha dos futuros bolsistas ficou, nesta instituição, a cargo do próprio intendente, que

direcionava meticulosamente os alunos aos mestres tradicionais, como Pompeu Batoni,

Domenico Corvi e Antonio Cavallucci. O primeiro foi várias vezes mencionado como

professor do fluminense Manoel Dias de Oliveira, o qual, quando agraciado pela bolsa, seguiu

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para Roma para aperfeiçoar sua formação. Se desde o século XVI a arte portuguesa foi

impregnada pelo gosto italiano, percebe-se agora o seu predomínio, especialmente romano.

O que se pode destacar dos retratos portugueses do século XVIII é a manutenção do

tradicionalismo a partir dos modelos italianos. Vieira Portuense e Domingos Antônio de

Sequeira, os expoentes pintores da corte, viveram a transição do Barroco (e do Rococó) para o

gosto neoclássico romano e foram os artistas que contribuíram para a diversificação maior do

gênero. Praticam o Neoclassicismo de fonte romana, diferente do francês pela ausência do

tom moralizante difundido por David a temas e personagens contemporâneos ao artista48

. Os

portugueses seguiram o princípio básico de retratar o indivíduo com os seus atributos, sem

aquela retórica recheada de heroísmo que aparece, por exemplo, nas obras Marat assassinado

e Napoleão entregando as condecorações49

.

O retrato do Bispo Adeodato Turchi, de Vieira Portuense, revela o artista ainda

associado ao tradicionalismo referido acima (Figura 40). Feito em sua passagem por Parma,

Portuense traduziu a vivacidade reconhecida do bispo na tela, com o olhar arguto, sorriso

aparente e sobrancelha franzida. A luz incide diretamente no rosto, a três quartos, destacado

do fundo enegrecido. O hábito franciscano e a cruz são os únicos atributos do religioso, uma

economia de meios comum em retratos de busto.

48

Há, contudo, os exemplares de Vieira Portuense claramente influenciados pela vertente francesa, mais

engajada nos assuntos da atualidade, conforme analisamos anteriormente. Contudo, são exceções no conjunto de

sua obra. 49

As duas obras são de Jacques-Louis David. A primeira refere-se ao heroísmo do período revolucionário e a

última à pompa da era napoleônica.

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Figura 40 – Vieira Portuense. Retrato do Bispo Adeodato Turchi. Óleo sobre tela. c. 1794-1795

MNAA, Lisboa.

O que se verifica neste exemplo é a continuidade na aplicação de elementos formais

cristalizados desde a época de Ticiano, principalmente o artifício amplamente usado pelo

veneziano em modelar traços do caráter no tratamento da boca. A simplicidade trabalha em

conjunto com a captação da essência do retratado, criando um diálogo objetivo entre

espectador e obra. O modelo, assim composto, encontra na época neoclássica motivo para a

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sua continuidade, pois os ideais estilísticos do momento prezam por representações diretas,

com simbologia clara e de fácil compreensão.

O fundo neutro e enegrecido originou-se das experimentações da geração de Leonardo

da Vinci, quando se buscava acentuar a personalidade do retratado sem interferências de

elementos externos a ele próprio. Todo o olhar do espectador é condensado no semblante da

personagem, criando um poderoso vínculo perceptivo. Ticiano realizou vários retratos com

esta abordagem psicológica, potencializando ainda mais toda pesquisa de fisiologia das

paixões iniciada anteriormente.

A valorização das ideias de Johann Joachim Winckelmann e de Anton Raphael Mengs

nas duas últimas décadas do século XVIII denota a mudança de gosto. Winckelmann,

traduzido para o francês em 1784, podia ser lido nos círculos artísticos portugueses ou

apresentados sob as interpretações e teorias de Machado de Castro e de Cirilo Wolkmar

Machado (FRANÇA, 1981, p.88). Além disso, os bolsistas de Roma estavam impregnados

com as discussões em torno da beleza dos gregos antigos e os ideais da formação de uma arte

maior, no centro de maior difusão dessas ideias. Cirilo, no início do século XIX, escreveu o

seguinte:

Os que estudarão a Arte devem, primeiro que tudo, adquirir a prática da

verdade simples, costumando-se a imitar perfeitamente tudo quanto se

apresentar diante de seus olhos; mas podem, e devem fazê-lo de sorte que em

virtude da boa escolha dos objetos, achem também nos seus exemplares a

verdade composta. As pinturas de Carracci no palácio Farnesi, e as de Rafael

no Vaticano são as duas grandes escolas de Desenho. A terceira, e não menos

importante para os que estão mais adiantados, é a das boas estátuas antigas: os

que não puderem estudar pelos originais, basta que estudem por exatíssimas

cópias. (MACHADO, 1817. p. 8)

Cirilo chama aqui de verdade simples a imitação fiel da natureza, com todas as suas

virtudes e defeitos. O estudante deveria primeiro praticar o desenho para este fim, com o

objetivo de adquirir habilidade necessária para o passo seguinte: a pintura idealizada. Esta

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incluiria a imaginação na obtenção de possíveis correções na própria natureza, sendo Rafael o

expoente maior desta forma de representar o mundo. Juntos, desenho e composição, norteiam

a prática do pintor, seguidos da invenção e da disposição. A todo o instante, Cirilo chama a

atenção para a boa ordem das coisas, a fim de compor com magistério a cena de um painel

(MACHADO, op. cit., p. 8).

Assim, verificamos um período de transição marcado em Portugal pela escolha

consciente do Neoclassicismo romano, em relação ao estilo revolucionário francês. A

retomada das obras do Palácio Real da Ajuda, em 1802, marcou simbolicamente este

momento de transição, quando elementos do Rococó e do Barroco tardio receberam novas

informações classicistas que gradualmente foram se impondo como gosto predominante.

O que parece fundamental ao presente trabalho, após a breve exposição de conceitos

gerais sobre o retrato, é o conservadorismo relacionado ao gênero nas produções portuguesas

desde o século XVI. Conservadorismo verificado nas poses, nas correções de defeitos, na

manutenção de certas regras, estas registradas em formas de tratados de composição. No caso

português, somente com a ascensão de nomes como Vieira Portuense e Domingos Antônio de

Sequeira, ambos protegidos de Pina Manique, o retrato quebraria a sua estrutura convencional

de tantas gerações.

O Rio de Janeiro colonial desenvolveu, a sua maneira, um retrato calcado nas fórmulas

mais convencionais observadas em Portugal, modelos adquiridos através de gravuras de

tradução. O problema maior do ambiente colonial reside na essência que define o retrato, ou

seja, a noção de identidade do encomendante frente ao outro e a si mesmo. Se em Portugal os

artistas contavam com uma corte acompanhada por seus nobres, clientes em potencial, a

Colônia carecia deste tipo de consumidores, pelo menos até a transferência da Família Real

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para o Rio de Janeiro, em 1808. Quem, então, movimentou a produção deste gênero ao longo

do século XVIII e quais as funções do retrato neste contexto?

3.2 O CASO COLONIAL: O RETRATO E AS IDENTIDADES EM CONSTRUÇÃO

O desempenho da Igreja Católica no desenvolvimento das artes nos dois primeiros

séculos de colonização resultou, conforme visto no segundo capítulo, em uma grande maioria

de obras voltadas para a devoção. A ascensão das irmandades laicas no século XVIII,

sobretudo nos grandes centros, manteve a predominância do teor religioso e colaborou para a

criação de uma visível diversificação regional. A produção conventual de outrora, na qual Frei

Ricardo do Pilar fora expoente no Rio de Janeiro, gradualmente cedeu lugar às oficinas

urbanas, de caráter dinâmico e heterogêneo. Estas oficinas preencheram um vazio que

começou a ser notado quando as irmandades passaram a procurar, com maior frequência,

profissionais capacitados a produzir a imagética da liturgia católica. Os artistas conventuais,

não formavam uma rede de encomendantes, reservando o seu fazer aos interesses específicos

de sua ordem religiosa.

Ao longo do século XVII, a atividade de artistas leigos se restringiu a poucas obras, as

quais a História da Arte desconhece os nomes de seus autores. Por falta de registros sobre a

existência de oficinas de pintura neste período, acredita-se que eram homens vindos da

Metrópole com alguma formação ou, conforme atesta a qualidade de painéis existentes,

autodidatas movidos pela fé50

. O século seguinte assistiria uma significativa transformação

com a organização de um novo sistema de ensino e aprendizado que revelaria nomes como

50

Os retábulos maneiristas da antiga igreja dos jesuítas, demolida na ocasião da derrubada do Morro do Castelo,

encontram-se na Igreja de Nossa Senhora da Misericórdia e possuem painéis que exemplificam a qualidade

mediana da pintura da época. São obras do final do século XVI ou início do XVII.

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José de Oliveira Rosa, o mais antigo pintor conhecido, conforme estudamos anteriormente.

As irmandades foram as grandes impulsionadoras de um novo mercado e de uma nova

dinâmica na reação entre cliente e mão de obra. A habilidade se converteu em valor, pois a

heterogeneidade de gosto e de estilo, observada na variedade de tipos de encomendantes, fez

do artista um profissional em constante especialização.

A igreja foi o espaço específico de desenvolvimento da iconografia religiosa e também

o lugar onde os primeiros retratos coloniais foram expostos. Representavam os membros

destacados das irmandades e ordens religiosas, personalidades dignas de conservar a sua

imagem para a posteridade. Eles integraram, junto a sua própria história, a memória das

instituições as quais pertenceram. O alcance de certa notoriedade a partir das décadas finais

do século XVIII fez com que o retrato penetrasse, ainda que timidamente, nos interiores de

poucas casas domésticas, nas propriedades dos mais abastados da sociedade.

O primeiro ponto a ser analisado na confecção de um retrato, no seio de um sistema de

produção que se baseava na cópia de gravuras, é a frágil relação entre a natureza deste gênero,

que comporta a íntima interação entre artista e modelo, e a utilização de referências visuais

prontas. As cenas religiosas lidavam com figuras idealizadas, rostos criados a partir da

imaginação e consolidados pelas convenções de sistemas simbólicos próprios, como os

atributos designadores da fé, do martírio e da caridade, por exemplo. A aparência física de

Jesus não constava em nenhum dos escritos sagrados, assim como várias personagens que

povoavam as histórias bíblicas e hagiográficas. A invenção dessas imagens se baseou nas

descrições das cenas narradas e na introdução de elementos que funcionaram como atributos

de significações. O retrato, no entanto, pressupõe a presença, a existência fisionômica de um

rosto, mesmo que o artista modificasse algum detalhe a favor da beleza idealizada.

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Na época em que o Rio de Janeiro se transformou em capital do vice-reinado,

observamos nomes que exibem, em seus trabalhos, as marcas da dificuldade em compor

retratos. Leandro Joaquim e Manoel da Cunha e Silva foram pintores, como os demais de sua

época, especializados na transposição da gravura religiosa para a tela. Apesar das orientações

firmadas em contrato sobre elementos de composição, os dois pintores dominavam em certa

medida a tradução do preto e branco da gravura em cores e formas, a ponto de impregnarem a

obra com as suas marcas pessoais, verdadeiras assinaturas plásticas. Uma mesma figura santa

poderia ter lábios mais carnosos ou finos, rosto afinado ou arredondado, olhos castanhos ou

azuis, desde que estas pequenas liberdades concordassem com as convenções e os atributos

principais, os identificadores do conteúdo narrativo da imagem. No caso do retrato,

entretanto, alguns desvios comprometeriam a essência deste tipo de representação, ou seja, a

sua indispensável singularidade.

Ao compararmos a imagem de Nossa Senhora da Conceição (Figura 41) com o retrato

do vice-rei Luís de Vasconcelos (Figura 42), ambas atribuídas a Leandro Joaquim, revelamos

a aparente diferença de qualidade no conjunto da produção de um mesmo artista. Feitas em

torno de 1790, a primeira apresenta maior segurança do pintor com os assuntos religiosos,

quando posta ao lado do retrato. Na representação da Virgem, Leandro Joaquim serviu-se de

toda habilidade na articulação dos elementos formais e técnicos, como a carnadura como

porcelana, os tecidos esvoaçantes e a composição do ambiente celestial como cenografia.

As cores claras e suaves, a jovialidade e a expressão feliz estampadas no rosto e as

linhas sinuosas do corpo e do ondulado do manto revelam a inclinação para o gosto rococó. O

espaço é bem resolvido, destacando com clareza a personagem principal no primeiro plano.

Esta aparece centralizada, de frente para o espectador, e ocupa boa parte da superfície. O

preenchimento total do espaço, com uma profusão de querubins, traz resquícios do horror ao

vazio, uma permanência da gramática barroca. A ambientação celestial obedece ao programa

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iconográfico da imagem da Imaculada Conceição, apresentando a Virgem como a ideia divina

de pureza e bondade, no instante de sua concepção.

Figura 41 – Leandro Joaquim. Imaculada Conceição. Óleo sobre tela. C. 1790. Igreja de Nossa

Senhora da Conceição e Boa Morte dos Homens Pardos, Rio de Janeiro.

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A separação dos planos ocorre através de elaborado e sutil jogo de sombras e luzes,

conferindo efeito tridimensional às figuras. Sem grandes contrastes entre claros e escuros,

Leandro Joaquim preferiu iluminar uniformemente todas as partes. A obra confirma, apesar

dos parcos recursos da época, autoridade na obtenção das texturas, como as carnaduras e os

tecidos. O resultado surpreende, considerando a provável fonte: gravura em preto e branco.

Gonzaga-Duque reconhece no artista, nas obras deste período, um certo aprimoramento,

conforme aparece na seguinte passagem:

O seu desenho é fraco e tímido, quase sempre defeituoso, porém o colorido é

suave. Nos primeiros tempos desconhecia o valor dos tons e não sabia

iluminar os quadros; nas últimas obras mostrou-se mais cuidadoso,

procurando corrigir-se desses erros, o que conseguiu com admirável engenho.

(GONZAGA-DUQUE, 1995, p. 83)

O retrato de Luís de Vasconcelos, apesar de alguns méritos, traz deficiências que

denunciam a complexidade na sua confecção. O rosto, parte fundamental do retrato, parece

descolado do corpo por possuir tratamento diferenciado. Ao contrário da obra anterior,

Leandro Joaquim dispensa a gradual separação dos planos, preferindo o enegrecimento total

do fundo, gerando contraste com a clareza da cabeça da figura. Substitui o jogo de sombras e

luzes pela linearidade, conforme visto nos contornos fortes, sobretudo dos olhos. Os

sombreados são pontuais e rudes, conferindo certo ar de dureza à expressão.

A riqueza da indumentária provoca um conflito aparente à simplicidade dispensada à

face, confirmando a destreza de Leandro Joaquim no trabalho com texturas. Notamos, no caso

de partes da composição já familiares ao artista, como a roupa do governante, ele alcançou

resultados satisfatórios. Interessante mencionar que muitos retratos coloniais transmitem a

mesma sensação de partes que parecem não se encaixar. Os atributos são bem resolvidos, mas

o rosto, essência do retrato, traz algumas marcas de fragilidade do sistema de produção

colonial do final do século XVIII.

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Figura 42 – Leandro Joaquim. Retrato de Luís de Vasconcelos. Óleo sobre tela. C. 1790. Museu Histórico

Nacional, Rio de Janeiro.

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Um dado relevante para o entendimento sobre o retrato colonial reside na paradoxal

situação entre a tradição de copiar gravuras e a inexistência da prática de tomar o referencial

como primeiro esboço. Não acreditamos na hipótese de que o modelo, dentro do sistema de

formação do artista colonial, posasse para o pintor. Leandro Joaquim trabalhou um bom

período de sua carreira para Luís de Vasconcelos, conhecia a fisionomia de seu cliente, mas

teria realizado o seu retrato a partir de referências imagéticas disponíveis no momento, ou

seja, de gravuras prontas com a imagem do vice-rei. Diferente da cópia de figuras santas, as

quais deixavam margem para eventual desvio do que estava proposto no modelo, usar uma

gravura de retrato de quem era contemporâneo requeria uma estranha combinação entre a

cópia e a percepção da realidade.

Podemos dizer o mesmo a respeito das pinturas de paisagem atribuídas a Leandro

Joaquim. O artista teria realizado as vistas a partir de cópias de documentos cartográficos,

disponibilizados pelo próprio vice-rei. O gênero não era produzido por artistas coloniais por

ser, na época, considerado assunto sigiloso, pois a paisagem revelaria características

geográficas, situaria o observador no espaço e apresentaria a iconografia local, como aspectos

cotidianos dos habitantes. Eram informações valiosas para possíveis invasores que

constantemente ameaçavam os domínios portugueses desde o início da colonização do Brasil.

A relativa segurança observada no Rio de Janeiro capital proporcionou uma

transformação no modo de entender a pintura de paisagem. Esta transformação, entretanto,

aconteceu em uma realidade avessa a esse gênero, pois não havia nenhum artista local

capacitado para tal produção. A imagem da Lapa, com a Lagoa do Boqueirão no primeiro

plano, exemplifica a fragilidade do pintor ao compor vistas da cidade (Figura 43).

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Figura 43– Atribuído a Leandro Joaquim. Lagoa do Boqueirão. Óleo sobre tela. C. 1790. MHN, Rio de Janeiro.

O painel possui clara divisão em duas porções iguais, formadas a partir de uma linha

horizontal que passa no centro da pintura (Figura 44). Acima, aparecem o aqueduto da Lapa e

o monte com a igreja e convento de Santa Teresa. Abaixo, a Lagoa do Boqueirão apresenta os

seus habitantes, trabalhadores negros e afrodescendentes. A organização dos elementos sugere

a representação simbólica da hierarquia social, com os poderes civil e religioso situados no

alto, figurados pelas construções relativas a tais poderes. A população menos favorecida

ocupa toda a parte inferior. Como o retrato de Luís de Vasconcelos, a paisagem manifesta a

preferência pela carga simbólica, reduzindo o peso da apresentação fiel do ponto escolhido da

cidade. Aqui, Leandro Joaquim articulou o difícil jogo de transformação de um local que

conhecia e vivia em imagem de representação de poder.

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194

Figura 44 – Divisão entre duas partes: a do poder e a do povo.

Como o retrato de Luís de Vasconcelos, a vista do aqueduto da Lapa deve ter

acontecido a partir da cópia do modelo, associado ao comum trabalho de cenógrafo que os

pintores da época eram frequentemente contratados. A chamada vista olho de pássaro, tipo de

construção de paisagens que situa o ponto de observação ligeiramente do alto, comum na

Idade Média e bastante difundida nas cartografias setecentistas, colaboram para esta

afirmação. O pintor copiaria o conhecido a partir da imagem pronta e integraria os elementos

típicos da cenografia, como as personagens em seus afazeres cotidianos.

As deficiências observadas na obra de Leandro Joaquim fornecem dados para a

observação de sensíveis mudanças no fazer artístico no final do século XVIII. Não foram

apenas os temas novos que começaram a despontar, mas também a forma de representar os

mais antigos. Ao compor o retrato do vice-rei, o pintor produziu uma peça que integrava um

programa de propagação da imagem de poder, no qual a arte desempenhou papel crucial.

Antes havia o retrato como homenagem póstuma, quando a verossimilhança importava menos

que a exaltação simbólica da função da personagem, mesmo porque, em alguns casos, o

artista não contava com a presença física da pessoa. Seus clientes eram aqueles grupos

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desejosos de manter a lembrança de alguém importante para aquela identidade específica.

Leandro Joaquim se movia, agora, no terreno transitório entre a tradição anterior e a exaltação

de qualidades de alguém em pleno exercício de suas funções, um comanditário consciente de

sua própria encomenda. Significa dizer que passa a haver a tentativa de evocar algo de

singular da personalidade do retratado, ao contrário da visível homogeneidade dos semblantes

dos retratos feitos pelas gerações mais antigas de pintores (LEVY, 1945).

A época possibilitou a ascensão do uso de gravuras de retratos, pois elas asseguravam

a transposição de elementos individuais do modelo para a tela, elementos certamente

aprovados pelo próprio cliente. Antes, o pintor dependia, principalmente, de relatos orais de

membros ligados ao falecido ou de sua própria lembrança, caso tenha estado próximo da

pessoa. O comportamento em relação ao retrato desfrutou, neste momento histórico, de

importante deslocamento de sentido, quando o gênero assume novas funções e valores, como,

por exemplo, os retratos de chefes de família para integrar a ambientação interna das casas

aristocráticas. O terreno foi preparado, então, para a geração de José Leandro de Carvalho e

Manoel Dias de Oliveira, autores de obras de notável aprimoramento.

Outro exemplo significativo e contemporâneo à obra de Leandro Joaquim consiste na

versão de corpo inteiro do retrato do Conde de Bobadela51

, realizado por Manoel da Cunha e

Silva (Figura 45). Conforme citamos anteriormente, trata-se de provável cópia do retrato de

Dom João V, realizado pelo italiano Duprá, oportunamente analisado. A postura de Gomes

Freire de Andrada é quase idêntica à do monarca português, exibindo o mesmo desenho para

a armadura e para a disposição dos braços e pernas. O manto do conde também escorre pelo

lado da composição e, se a posição das personagens aparece invertida, deve-se pela possível

cópia de alguma gravura portuguesa.

51

Há uma outra versão, um busto pertencente ao Convento de Santa Teresa, também atribuído a Manoel da

Cunha e Silva.

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A mesma crítica relativa ao retrato do vice-rei Luís de Vasconcelos cabe ao trabalho

de Manoel da Cunha e Silva. A cabeça parece estranha ao corpo, revelando os mesmos

problemas de execução encontrados por Leandro Joaquim. Entretanto, nota-se que o efeito

das texturas da armadura e dos tecidos são louváveis para a época. A pompa barroca, apesar

da obra não possuir as dimensões características dessa tipologia de corpo inteiro, é sugerida

pela postura da personagem e pela distribuição no espaço do aparato simbólico do poder.

Sobre o artista, Gonzaga-Duque diz que a sua pintura é larga, sólida, sem pretensões. Falta-

lhe no desenho elegância, delicadeza de traço, porém é sincero, real e firme (GONZAGA-

DUQUE, 1995, p. 81).

Outra crítica interessante vem do extenso trabalho de Argeu Guimarães, intitulado

História das artes plásticas no Brasil, de 1920. O autor segue a tradição de história

inaugurada por Manoel de Araujo Porto Alegre e continuada, ainda no século XIX, por

Antonio da Cunha Barbosa e Gonzaga-Duque. No citado estudo, o autor menciona o retrato

com a seguinte crítica: no retrato do conde de Bobadella resumem as qualidades do artista, o

toque despreocupado, mas feliz, o desenho tosco, mas sincero, a composição de largo efeito,

embora tíbia nos detalhes (GUIMARÃES, 1920).

A fisionomia refere-se, provavelmente, a alguma fonte iconográfica, como, por

exemplo, a gravura de Olivarius Cor, de 1747 e amplamente difundida (Figura 46). O retrato,

a meio corpo, possui as mesmas disposições encontradas na obra de Cunha e Silva, inclusive

notadas nos pequenos detalhes, como a posição dos dedos da mão esquerda. O que parece

louvável na obra do fluminense é a inclusão da paisagem da Baía de Guanabara ao fundo,

parte importante da narrativa. O retrato foi encomendado para lembrar um momento histórico

específico: a execução da ordem do Marquês de Pombal de expulsar os jesuítas, obedecida no

Rio de Janeiro pelo conde, então governador. Ele aponta o cetro para a entrada da baía,

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direcionando o olhar do espectador para os navios que se distanciam do porto, levando os

padres da Companhia de Jesus para outras terras.

Figura 45– Manoel da Cunha e Silva. Retrato do Conde de Bobadela. 1791 sobre tela.

Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro.

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Importante mencionar o estudo de Nireu Cavalcanti sobre esta obra, quando procura

corrigir algumas datas que constantemente aparecem a ela atribuídas, como, por exemplo, o

ano de 1760. O artista teria apenas 16 anos, ainda na condição de escravo, o que descarta

qualquer possibilidade de um retrato de uma figura do poder fosse encomendado a ele. O

autor nos conta que:

O que realmente aconteceu foi que o prédio onde estava instalada a Câmara

dos Vereadores sofreu terrível incêndio em 20 de junho de 1790, destruindo

grande parte do arquivo da Câmara, os móveis e inclusive o quadro de Gomes

Freire de Andrade, pintado em 1760. Após o incêndio, realmente Manoel da

Cunha e Silva foi contratado pela Câmara dos Vereadores, em 1791, para

pintar dois grandes painéis: um de Gomes Freire de Andrade e um de São

Sebastião, além de outras encomendas. (CAVALCANTI, 2004, p. 308)

Figura 46 – Olivarius Cor. Retrato de Gomes Freire de Andrada

1747. Sociedade Martins Sarmento, Porto.

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A complexidade do retrato em questão, caso inaugural na pintura fluminense, é

sintomática dos novos rumos, das novas possibilidades e habilidades adquiridas e exercitadas

no final do século XVIII. Se a cópia do modelo de D. João V parece evidente, as soluções

encontradas para dotar a obra de elaborada retórica e de traços bem marcantes de

individualidade, tanto do retratado quanto do ambiente, evocam um estado de crescente

maturidade dos artistas fluminenses.

Fundamental registrar que a geração dos pintores que estavam ativos quando o Rio de

Janeiro ocupou o posto de sede do vice-reinado foi a geração que experimentou relativa

prosperidade. As encomendas continuaram fortemente dinamizadas pelas irmandades

religiosas, mas o retrato aparecia com valores e funções diversos dos realizados anteriormente

e só tenderia a se tornar cada vez mais numeroso.

Os períodos que antecedem esse progresso do Rio de Janeiro capital despertam

algumas questões sobre a função do retrato. Como objeto que conduz à noção do particular,

do individual, ele parece incomum em uma sociedade calcada em modelos ainda medievais,

sufocada pelo sistema mercantilista metropolitano. Essencialmente, uma colônia existe para

servir à sua metrópole, seja com o fornecimento de produtos agropecuários, ou com o envio

das riquezas extraídas da natureza. A organização social, dentro de tal modelo, se estratificava

em rígida hierarquia, criando uma rede complexa de relações entre dominantes e dominados.

No topo da hierarquia estavam os senhores rurais, os comerciantes ricos, geralmente

representantes da metrópole e os funcionários da alta burocracia. Incluíam, nos Setecentos, os

mineradores. As classes intermediárias compreendiam os artesãos, com as suas oficinas, e os

pequenos comerciantes urbanos. Na camada inferior estavam os homens pobres, os escravos e

os indígenas. A mobilidade social ocorria mais facilmente entre os representantes da base e da

classe intermediária (WEHLING, 1999, p. 234).

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O retrato colonial floresceu no primeiro grupo e, em maior número, entre os

representantes da alta burocracia. Aqui estavam os governadores, as autoridades da Igreja, os

juízes e os demais indivíduos ligados à estrutura do poder estatal. Foram os participantes de

uma elite propriamente urbana, com códigos diversos dos vivenciados por muitos senhores

rurais. Desenvolveram todo um jogo de aparências e de relações, códigos fundamentais para a

manutenção de privilégios e regalias.

O retrato estava inserido na complexa rede de interesses que caracterizou essa elite.

Pela natureza de suas funções, foi o espaço público o local por excelência de sua exibição.

Sabemos que as residências civis urbanas, pelo menos até o final do século XVIII, foram

marcadas pela simplicidade e ausência de qualquer luxo, mesmo as pertencentes aos mais

abastados (EDMUNDO, 2000, p. 55). Apesar do costume de visitação constar nos padrões

sociais, conforme indicam algumas plantas que mostram espaços para este fim, como a

varanda do senhor rural e as salas de visitas das casas urbanas, a sociabilidade mais evidente

aconteceu no domínio coletivo.

O retrato colonial traz, então, um valor de objeto público. As pessoas merecedoras de

fixar sua imagem para a posteridade foram aquelas que realizaram ações, que deixaram obras

dignificantes, que simbolizaram exemplos a serem buscados pelos demais. Foram indivíduos

celebrados, homenageados pelo significado de seus próprios feitos. Assim, o retrato colonial

funcionou, acima de tudo, como agente da memória de quem realizou um ato edificante. Em

uma sociedade estratificada, somente a elite teria condições de promover algo digno, de

marcar o nome para a posteridade. Essa parcela da sociedade descobriu, antes de qualquer

outra, a consciência e o valor da individualidade.

Como instrumentos de memória, o retrato colonial expôs mais as qualidades éticas e

morais do que as características físicas. Foram obras encomendadas, geralmente, pelas

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irmandades religiosas, para figurarem em seus consistórios. Isso porque grande parte das boas

ações esteve diretamente associada a doações e financiamentos relacionados ao mundo

religioso. Foram homenagens póstumas àqueles que colaboraram para a prosperidade da

irmandade ou que, no seio da sociedade, deixaram as suas marcas com obras dignas de serem

lembradas.

Vale lembrar que a atividade da irmandade no mundo colonial extrapolou a esfera

espiritual. Além de promover o culto, organizar festas do calendário litúrgico e providenciar o

enterro do irmão associado, entre outros afazeres ligados ao religioso, ela trabalhava como

importante agente social. Houve irmandades para todos os tipos de pessoas, do governador ao

escravo. Ser membro de uma irmandade assegurava ao indivíduo direitos mínimos, como a

aquisição de documentos, o acesso indireto aos vereadores, a proteção contra eventuais

abusos e a certeza de que seu corpo, após a morte, teria lugar digno para repousar.

Muito mais que espaços sagrados, os templos religiosos guardavam locais de intensa

atividade secular. Os consistórios e, nas igrejas menores, a própria sacristia, eram reservados

às discussões de várias ordens, entre os membros principais de cada irmandade. Eles

envolviam trocas de favores, articulações diversas dos benfeitores, debates sobre assuntos

ligados à política, escravos, comércio e uma série de outras questões cotidianas. Não

surpreende o fato de ter sido o consistório o lugar privilegiado do retrato no período.

As Ordens Terceiras e as irmandades ricas agregaram as elites coloniais e

apresentaram os consistórios mais faustuosos. Estes exibiam verdadeiras galerias de retratos

de benfeitores, colaborando para a manutenção da memória dessas pessoas ilustres e também

da memória da própria irmandade. Ao ostentar o retrato solene de um benfeitor, a irmandade

divulgava a sua identidade, mostrava à sociedade que tal indivíduo esteve ligado, permanente

ou provisoriamente, à sua ordem. O consistório da Ordem Terceira de Nossa Senhora do

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Carmo, uma das mais ricas do Rio de Janeiro colonial, exemplifica bem a disposição das

figuras eminentes neste tipo de ambiente (Figura 47).

Figura 47 – Consistório da Ordem Terceira do Carmo. Igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo,

Rio de Janeiro.

Observamos a tendência à uniformidade, fato comum nos demais exemplares

encontrados na cidade. Um tratamento diferenciado poderia sugerir graus distintos de

importância e, pelos exemplares sobreviventes, como no caso da Ordem Terceira do Carmo,

isso raramente acontecia. Se o mais antigo retrato exibia o corpo inteiro, os demais seguiam o

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modelo, criando um padrão. As molduras faziam parte da obra e também funcionavam como

elemento de ostentação, buscando-se, igualmente, o máximo de uniformidade possível.

O primeiro ponto a ser analisado consiste na provável obrigatoriedade do artista de

seguir o exemplo determinado pela irmandade. Essa obrigatoriedade resumiria o retrato a

poses convencionais, dentro de restrito receituário formal. A impressão primeira é de certa

apatia dos retratados, uma repetição que iguala expressões faciais, deixando o símbolo, ou a

função do personagem falar mais alto. Parecem seres congelados, portadores de valores que se

sobrepõem à individualidade.

A hierarquia observada na arte portuguesa em relação à tipologia do retrato encontrou

na realidade colonial, aparente afrouxamento. Os bustos e as representações de corpo inteiro

exerciam a mesma função de celebrar a memória póstuma de um benfeitor. Salvo raras

exceções, o retrato de corpo inteiro poderia suscitar um maior efeito de pompa em relação aos

demais, como visto no caso do Conde de Bobadela. Comumente, as tipologias serviam aos

mesmos propósitos, com funções e valores semelhantes.

A ausência do modelo para a confecção do retrato manifestava uma condição peculiar

no ato de sua produção. Muitas vezes o pintor sequer tinha contato com o indivíduo a ser

homenageado, contando exclusivamente com os relatos das pessoas mais próximas ao morto.

O fato parece contraditório à essência do retrato, o qual, por definição, apresenta ao

observador as qualidades físicas e morais do indivíduo representado, além da íntima relação

entre o artista e o cliente. José de Oliveira Rosa, considerado o pintor mais antigo da Escola

Fluminense, teria realizado o retrato de Madre Jacinta de São José, encomenda do Convento

de Santa Teresa, um dia após a sua morte. O breve intervalo de tempo não esconderia a

dificuldade de transpor para a tela as qualidades físicas da religiosa. Debret havia notado esta

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peculiaridade de se retratar sem a presença do modelo no seu registro sobre a Santa Casa de

Misericórdia, conforme relatou na seguinte passagem:

Coisa mais agradável de ver é a coleção dos retratos a óleo de diferentes

benfeitores da Santa Casa, desde a época de sua fundação. Esses retratos, de

tamanho uniforme, são encomendados e pagos pela irmandade; só se

executam depois da morte do indivíduo, o que parece singular à primeira vista,

mas se explica facilmente pelo fato de serem as doações em sua maioria feitas

por testamentos. Porém, os parentes e amigos apressam-se em fornecer os

documentos necessários ao pintor, como sejam um retrato ou um busto

mandados executar em vida para a circunstância prevista. (DEBRET, 1989, p.

50).

Essa característica dos primeiros retratos coloniais revela a importância maior

dispensada aos atributos simbólicos em comparação à busca da verossimilhança. O indivíduo

era visto por suas qualidades, na verdade, pelas suas ações beneficentes a alguma irmandade

da cidade ou a coletividade em geral. Assim, olhares e posturas obedeciam à estrutura icônica

e não necessariamente ao aspecto físico real da pessoa. Se fosse alguém relacionado a

atividades mentais, os livros comporiam o cenário, associado a um olhar distante, sugerindo a

atitude reflexiva. Os primeiros artistas desenvolveram fórmulas relativamente seguras e

previsíveis a partir das cópias das gravuras e as gerações seguintes deram continuidade aos

padrões então criados.

O retrato colonial foi um gênero tipicamente masculino. Foram os homens que

ocupavam os cargos burocráticos, que governavam o povo e a casa e que construíam sua

imagem a partir de atos e títulos. Eles ostentavam seu poder e influência, secular ou espiritual,

na vida coletiva. A mulher, ao contrário, se mantinha reclusa aos aposentos do lar na maior

parte do tempo. Quando surgia uma encomenda de retrato feminino, os atributos eram

geralmente relativos ao plano espiritual, com clara semelhança à iconografia da Virgem

Maria. Não surpreende o fato de que boa parte dos poucos modelos femininos virem do

ambiente sagrado, como madres e religiosas em geral.

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Conforme visto anteriormente, Leandro Joaquim e Manoel da Cunha e Silva

representam a geração que experimentou a absorção de novas possibilidades no ofício da

pintura de retratos. Se a rigidez hierática da figura permaneceu, como característica do

período, marcas da individualidade começaram a saltar da figura, graças à circulação cada vez

mais frequente de gravuras.

Podemos dizer que, se o século XVIII não produziu autorretratos, a consciência da

individualidade do artista entrou em uma fase de despontamento sensível. A assinatura de

José de Oliveira Rosa no painel Visão de São Bernardo, pertencente à fase final de sua

carreira, é um caso peculiar. A assinatura revela a noção de si mesmo e, quando posta no

próprio trabalho, autentica aquela produção a uma autoria particular. Sabemos que o

Setecentos colonial herdou a condição do pintor português liberto das corporações de ofícios,

apesar de todas as restrições impostas no Rio de Janeiro que vimos anteriormente. Eram

professores livres para exercer sua atividade e ainda não foram encontrados, e talvez nunca o

sejam, documentos relativos à solicitação de permissão para este ofício. Sem precisar de

autorização governamental para funcionar, um mestre pintor adquiria maior mobilidade para

organizar seu ambiente de trabalho.

Foi, no entanto, no período em que a cidade abrigou a Família Real que o papel do

pintor fluminense alcançou significativa mudança de estatuto social. Além da qualidade

simbólica de centro administrativo do poder, a qual interfere na vida coletiva em todas as

instâncias de relações, a presença física das figuras de comando do mundo lusitano fomentou

interessante produção artística, sobretudo a concernente à propagação da imagem de D. João.

O retrato colonial assumiu a sua plenitude, seja na quantidade de exemplares, seja na

qualidade de seus produtores.

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3.3 A CORTE COMO CLIENTE: D. JOÃO VI E OS PINTORES RETRATISTAS

Considerado desde o advento das academias como gênero secundário em relação às

pinturas históricas, o retrato seguiu uma trajetória de sutis alterações no mundo luso brasileiro

ao longo de seu desenvolvimento a partir de então. Absorveu elementos da gramática

estilística em voga de cada período, mas conservou a sua estrutura calcada em regras de

composição que limitaram as tipologias de poses em um repertório previsível, variando,

conforme a situação, a escolha por uma representação realista ou idealizada. O caráter e o

símbolo ora se complementaram, ora se chocaram, em um jogo de aparências que decidia se

os traços individuais eram mais ou menos relevantes que o significado da personagem na

sociedade.

Na realidade colonial, por diversas razões, a individualidade do retratado se perdia na

força narrativa do atributo, porção mais eficaz na retórica barroca ainda em voga. A

posteridade lia apenas o símbolo, pois o tempo se encarregava de afastar qualquer indício de

sentimentos nas marcas de expressão, vivenciadas apenas pelas pessoas coetâneas do modelo.

O nome, se aplicado à moldura ou na própria tela, ancorava a imagem à personalidade,

revivida apenas através de documentos, quando estes existiam.

A capacidade de sedução da imagem, apta a estimular outros sentidos além da visão,

foi explorada no ambiente colonial desde as primeiras produções, conforme analisamos na

discussão sobre a iconografia religiosa. A persuasão, método eficaz na condução da ordem e

manutenção do poder, encontrou na linguagem visual uma ferramenta dinâmica que transitava

por esferas múltiplas. Penetrou com sucesso no ambiente religioso, participou de todo o

calendário festivo e assumiu lugar de honra nas cerimônias oficiais do governo. Comparada à

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escrita e à oratória, a imagem assumiu liderança preferível na transmissão de mensagens,

acessíveis tanto à maioria iletrada quanto aos senhores do poder.

Sob esta concepção, o retrato criado no período compreendido entre a virada do século

XVIII para o XIX e os primeiros momentos de convívio entre artistas coloniais e os

integrantes da Missão Francesa revelam alterações mais sutis em relação aos precedentes.

Estas alterações são mais perceptíveis nas relações de produção e na apreensão de seu

significado do que na forma plástica propriamente dita, pois o gênero detém a qualidade de se

manter relativamente homogêneo desde a sua revalorização no Seiscentos português. A

diferença proeminente observada na geração de José Leandro de Carvalho é, sem dúvida, o

aumento de oferta, a ponto de transformar o artista citado em um retratista de corte e, também,

da elite em geral.

A perpetuação da imagem para a posteridade sofreu certo desvio semântico na

segunda metade do século XVIII, sobretudo após o Rio de Janeiro se tornar capital do vice-

reinado. Houve uma troca de valores entre a memória e a ostentação, entre o passado e o

presente. O ato de homenagear figuras eminentes de uma determinada instituição definia o

uso do retrato, edificando uma história pautada nos feitos dos seus membros integrantes. A

ostentação se manifestava em um segundo momento, quando o público frequentador daquele

espaço percebia a passagem do tempo, este povoado pela lembrança dos empreendimentos

realizados pelas personalidades ilustres ali representadas.

Quando o retratado se tornou o próprio comanditário, a inversão temporal e simbólica

fez do retrato um objeto do presente, um instrumento de ostentação, como no caso de Luís de

Vasconcelos. Ele despertava a lembrança, carregava todos os significados do sujeito e o

substituía nos casos de ausência. Esta substituição era aparentemente temporária, pois a

pessoa vivia contemporânea à sua imagem, diferente das representações orquestradas no

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intuito de manter a memória de alguém falecido. Neste caso, era a memória que se tornava

secundária, um efeito da própria essência da produção do retrato, que era a de eternizar não

apenas a imagem, mas toda a carga simbólica que a acompanhava.

Sob a via da ostentação, o período que ora estudamos se estabeleceu como diferencial

em relação ao que se fez no passado seiscentista e setecentista inicial. O artista se qualificou e

adquiriu habilidades específicas, diversas das que aplicava na composição de imagens santas.

Relevante mencionar o papel do cliente neste tipo de relação, pois a habilidade em questão

não estava na invenção de personagens etéreos e espirituais, nem nos relatos sobre a

fisionomia de quem faleceu, mas na presença concreta de quem encomendou a sua efígie.

Mesmo que a cópia de gravuras direcionasse o fazer, houve uma presença real da

personagem.

Da mesma forma que acontecia em Portugal, não houve no Rio de Janeiro um pintor

exclusivamente especializado em retratos. A raridade dos que conseguiam produzir este

gênero específico é notória e apenas alguns nomes foram citados pelos primeiros biógrafos ou

mencionados por viajantes estrangeiros. A escassez corrobora a dificuldade e, em certo

sentido, a novidade relativa à produção de retratos desta natureza verificada no início dos

Oitocentos. Este exigia muito mais que a capacidade de traduzir a terceira dimensão em uma

superfície bidimensional, com texturas, volumes e profundidades. Havia um sopro de

realidade mesclado ao convencionalismo que não poderia ser desprezado.

Sobre o conceito de identidade, caro ao estudo do retrato, cabe um breve relato sobre

alguns aspectos da situação social do encomendante no período compreendido entre a queda

do Marquês de Pombal e a chegada dos artistas franceses, época de intensa atividade artística

dos pintores aqui analisados. Pretendemos examinar a ascensão do retrato colonial dialogando

com os fatores sociais e entender a sua produção, forma e função interagindo com tais fatores.

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Trata-se de momento histórico peculiar, que envolve revoltas, circulação de impressos

censurados e intensa articulação do governo para impedir a veiculação de ideias perigosas à

ordem estabelecida.

Se a hipótese de um desenvolvimento de consciência nacional foi rechaçada pelos

historiadores, pois a concepção de nação aconteceria somente no século XIX, não resta dúvida

que houve, pelo menos, a reflexão mais consolidada do papel do indivíduo na sociedade. É

coerente a afirmação de que a Inconfidência Mineira e as demais revoltas do período são

manifestações regionais, cujos interesses apontavam para realidades econômicas específicas

de grupos particulares. Entretanto, tais movimentos revelam a percepção de que as vontades

metropolitanas feriam alguns valores que foram constituídos ao longo de gerações, firmados a

partir de códigos que envolviam o intricado jogo de relações sociais na Colônia.

É sintomático o Decreto do príncipe D. João, de 17 de dezembro de 1794, que versa

sobre a extraordinária e temível revolução literária e doutrinal que nestes últimos anos, e

atualmente, tem tão funestamente atentado contra as opiniões estabelecidas (...) (BASTOS,

1983, p. 151), viesse a restaurar a Inquisição e a Mesa de Desembargo do Paço. Em Portugal,

o Intendente de Polícia Pina Manique promoveu rigorosa repressão contra notícias e ideias

francesas que, desde 1789, apavoravam as monarquias absolutistas. No Brasil, a censura

imposta nas instâncias alfandegárias não impediu a penetração de obras como as de Voltaire,

apreendidas na conjuração do Rio de Janeiro, no mesmo ano do decreto de D. João52

.

O conteúdo proibido das ideias ilustradas, parte descartada do todo cuidadosamente

analisado desde a época de Pombal, encontrava brechas nos sistemas de circulação de

impressos e desencadeava discussões a respeito de temas contrários ao poder estabelecido.

52

Livros proibidos pela Real Mesa Censória foram encontrados na devassa do movimento do Rio de Janeiro,

como as obras de Voltaire e de outros autores proibidos. Mariano José Pereira da Fonseca figura entre os

participantes do movimento, em posse de publicações não autorizadas. O movimento restringiu-se ao campo das

ideias e discutia-se, principalmente, a visível diferença entre os nascidos em Portugal e os nascidos na Colônia.

Sobre o assunto, ver 1789-1808. O império luso-brasileiro e os Brasis, de Luiz Carlos Villalta.

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Questionamentos sobre algumas práticas da religião católica e a política de manutenção do

regime monárquico, além da percepção das diferenças entre a pessoa nascida em Portugal e a

nascida na Colônia apontavam para a gradual noção de cada papel desempenhado na

sociedade. Esta foi a essência do que a Coroa pôde observar na devassa de 1794 no Rio de

Janeiro.

O mecanismo comumente empregado pelo Antigo Regime para recolocar as coisas em

seus devidos lugares era o emprego da força militar repressiva em íntima colaboração com

todo o aparato simbólico disponível. Doses de violência eram ministradas em constante

diálogo com elementos de significados mais profundos. O esquartejamento de Tiradentes

exemplifica bem o estado de consciência do período, pois não era apenas o ato brutal que

repercutia na mente dos mais simples, mas também o fato de que o condenado ter sido punido

nos planos material e espiritual. Sem a possibilidade de realizar um enterro digno, a alma

estaria perdida a vagar sem rumo.

O retrato de aparato, tipologia pomposa reservada às figuras de poder, floresceu como

um dos instrumentos de veiculação da imagem do governante e participou de uma complexa

rede de divulgação dos valores da monarquia. Cortejos, celebrações, festas, construções

urbanísticas foram algumas das outras manifestações do programa persuasivo de manutenção

da ordem. O retrato não era uma simples representação, mas uma apresentação da identidade

de quem dirigia as normas de convívio social.

O estabelecimento da Corte no Rio de Janeiro não representou mudanças bruscas no

significado do retrato feito na década final do século XVIII em diante. Trouxe, contudo, a

produtividade mais acentuada, pois a imagem de D. João VI deveria se espalhar como uma

autenticação de seu posto de comandante, a despeito da situação enfrentada na sua saída

forçada de Lisboa. As gravuras com a sua efígie não circularam apenas como fontes para os

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pintores portugueses e coloniais, mas também como um programa de afirmação da posição de

liderança mantida nos domínios do Novo Mundo, principalmente para o reconhecimento nas

demais capitais europeias. Assim, a gravura abarcava um duplo sentido de modelo para a

pintura, algo secundário, e a principal função de fazer circular mensagens por meio da

imagem.

Foram vários os exemplos de artistas gravadores estabelecidos em Portugal que

realizam retratos de D. João VI, sobretudo a tipologia de busto a três quartos. Estes

exemplares circularam no Brasil antes da chegada da Missão Francesa e foram amplamente

utilizados pelos artistas coloniais, conforme atestam os painéis de José Leandro de Carvalho.

Merece destaque o gravador florentino Francesco Bartolozzi, atuante em Lisboa desde 1802.

Como diretor da Aula de Gravura daquela cidade, o artista deixou um vasto grupo de

discípulos, além de tornar conhecidas obras de pintores locais, como Domingos Antônio de

Sequeira e Vieira Portuense.

Bartolozzi foi um gravador de tradução, ou seja, participante de um grupo de artistas

que colaborou para a circulação de imagens criadas por outros pintores. O século XVIII havia

assistido à ascensão deste tipo de gravura, apreciada no mercado por divulgar obras de

renomados artistas, tanto do passado, como Rubens e Rafael, como de nomes da época, como

os pintores portugueses citados. A Igreja foi a maior consumidora e divulgadora de

iconografia religiosa composta pelos grandes mestres, disponível nas cópias gravadas, como

se observa, por exemplo, na vasta produção encontrada nos templos coloniais.

O retrato também constava no conjunto de temas que eram interpretados por

gravadores com a finalidade de divulgar modelos de representação. Diferente da gravura

religiosa que seguia todo um programa didático e devocional, o retrato gravado, quando a

serviço do governante, colaborava para comunicar pelos meios visuais, a situação política de

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comando. Quando Bartolozzi, a partir de pintura composta pelo italiano Domenico Pellegrini,

realizou uma série de imagens de D. João VI, participava do jogo imagético de construção da

figura do poder que devia se espalhar não apenas por regiões de domínio português, mas

também penetrar nos ambientes de corte das principais cidades da Europa.

O modelo mais difundido de D. João VI o coloca centralizado em uma elipse ou em

um retângulo, no formato de retrato de busto e a três quartos, como nos exemplares de

Bartolozzi (Figuras 48 e 49). Este tipo de representação foi amplamente copiada pelos artistas

coloniais, tendo como referência algumas das inúmeras gravuras que chegaram ao Brasil. A

homogeneidade observada em um número elevado de retratos deve-se a constante cópia de

modelos consagrados e autenticados pelo próprio cliente.

Figura 48 – Francesco Bartolozzi. Retrato de D. João Figura 49 – Francesco Bartolozzi. Retrato de D. João

1804. BNL, Lisboa. 1809. BNL, Lisboa.

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Os emblemas, postos abaixo da figura do monarca, complementavam a iconografia e

foram repetidos sem grandes alterações. Funcionavam como orientadores do sentido da

imagem, ou seja, reforçavam a ideia da realeza referente à personagem. Os emblemas são

geralmente compostos pela combinação de três elementos: o lema ou título, o texto e o ícone

(VAN STRATEN, 1994, p. 57). Os dois primeiros são normalmente escritos em latim e

serviam de ancoragem à imagem, esta última exibindo figuras do repertório clássico greco

romano. Muitos emblemas suprimem o texto, deixando apenas o título com a imagem a ele

relacionada.

Na primeira composição, de 1804, Bartolozzi apresentou um emblema com dois

cupidos exibindo o brasão de Portugal. Esta representação encontra-se em várias gravuras de

outros artistas, mudando, em alguns casos, somente o conteúdo da parte escrita. No presente

caso, a informação que acompanha a imagem confirma os títulos do retratado: Dom João

Príncipe do Brasil Regente de Portugal. A clareza da informação reforça a função principal

de tornar pública a imagem do monarca, promovendo uma associação imediata entre o retrato

e o título ali exposto.

A segunda figura de Bartolozzi, esta de 1809, traz a imagem de Atenas com seus

atributos, sendo o brasão de Portugal o substituto do seu escudo tradicional. No lado

esquerdo, aparece um cupido segurando a esfera armilar, alusão ao período áureo das Grandes

Navegações. Não há, como no caso anterior, a presença do texto, resumindo o emblema ao

ícone e ao título. Acompanha a composição a seguinte mensagem: Stat magni nominis umbra.

O gosto por este tipo de representação simbólica ressurgiu no Renascimento como

uma interpretação dos epigramas gregos, poemas curtos com ilustrações, muito apreciados

pelos humanistas italianos. Encontrou no século XVI o seu formato mais comum, com a

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combinação dos três elementos. O mundo neoclássico conferiu novo sabor ao emblema,

tornando-se código de identidade de famílias abastadas da alta burocracia e governantes.

É sintomático o uso do emblema em imagens de rápida veiculação, como as gravuras.

O complexo sistema de aparências, comum nas sociedades de corte, promoveu uma delicada

rede simbólica, destinando cada linguagem plástica a fins específicos. A gravura servia de

modelo à pintura, mas desempenhava papel de difusão do conhecimento, enquanto a última,

de natureza estática, fixava a mensagem em lugares predeterminados. Assim como os livros, a

gravura se movimentava e funcionava como significativo instrumento de propaganda.

Seguindo a referência de Bartolozzi, gravadores mantiveram o formato consagrado da

figura de D. João VI sem alterações relevantes. Notamos, no entanto, a inclusão de elementos

quando o título de rei lhe é conferido, como a coroa e o cetro. Tanto os atributos quanto o

título do emblema funcionavam como elementos de identificação ao retrato gravado,

conforme podemos notar nas imagens de João Cardini (Figura 50) e de João de Mesquita

(Figura 51). São duas fases históricas que mantêm a mesma pose, variando somente os postos

de Príncipe Regente e de Rei de Portugal, Brasil e Algarves.

Importante dizer que, mesmo após os quase dez anos que separaram as duas gravuras,

a fisionomia do rei se manteve a mesma, revelando que este gênero, quando posto a serviço

da corte, conservava como regra a permanência de fórmulas já cristalizadas a partir da

divulgação dos primeiros criadores e da aceitação do próprio retratado.

Os dois emblemas mostram as mesmas personagens citadas na obra de Bartolozzi.

João Cardim repete também o título, modificando apenas a disposição das palavras em torno

da elipse que envolve o retrato. Vem escrito Dom João Príncipe do Brazil Regente de

Portugal. Na imagem de João de Mesquita, os dizeres são substituídos para D. João VI Rey de

Portugal Brazil e Algarves.

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Figura 50 – João Cardini. Retrato de D. João. 1807 Figura 51– João de Mesquita. Retrato de D. João.

BNL, Lisboa. 1816. BNL, Lisboa.

Antes do estabelecimento de Francesco Bartolozzi em Lisboa, a tipologia de retrato

que o artista ajudou a difundir como a principal referência já havia sido explorada por

gravadores portugueses. Foi o caso de Manoel Marques de Aguilar, um dos primeiros a

interpretar a obra de Domenico Pellegrini (Figura 52). O espaço destinado ao emblema

oferecia maior possibilidade a novas criações, conforme observamos no caso de Aguilar. As

personificações da Fé e da Justiça foram organizadas em elegante disposição, com os

atributos do reino português acompanhando o título Joannes Brasiliae, Portugaliae et

Algarbiorum Príncipe Regens.

A propagação da imagem de monarcas europeus não se restringiu a artistas nacionais

ou estrangeiros a serviço de determinadas cortes. Houve casos diversos de divulgação destas

personalidades para o conhecimento necessário de quem é o outro, amigo ou rival no

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conturbado sistema político da virada do século XVIII para o XIX. A mesma tipologia do

retrato de D. João, que analisamos acima, apareceu também sob o risco de autores de

diferentes nacionalidades, como é o caso do francês Camoin (figura 53). É provável que o

artista tenha visto alguma gravura em Paris e, em seguida, feito a sua interpretação. Não há

emblema, somente o seguinte título em francês: Roi de Portugal, Du Brazil et des Algarves.

Figura 52 – Manuel Marques de Aguiar. Retrato de Figura 53 – Camoin. Retrato de D. João VI c. 1817.

D. João. 1799. BNL, Lisboa. BNL, Lisboa.

O papel original da gravura de transmitir conhecimento encontrou no século do

Iluminismo campo de intensa revalorização e movimentação. Não admira a busca por meios

mais rápidos e eficientes de produção e circulação de imagens, o que resultaria, na primeira

década do século XIX, na invenção de uma nova técnica que seria protagonista do nascimento

da notícia em massa: a litografia. No Brasil colonial, a gravura era a única fonte iconográfica

que permitia aos pintores aprenderem seus ofícios e iniciarem a sua vida profissional. Ser

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pintor significava a apreensão de um olhar de tradução de uma linguagem para a outra, sem

grandes interferências do mundo natural.

A partir da inegável utilização das cópias gravadas na confecção das imagens pintadas

de D. João, houve nítidas variações na observação de três realidades distintas: 1) os retratos

executados em Portugal por artistas portugueses e estrangeiros; 2) a produção dos pintores

coloniais; 3) os exemplares feitos na ocasião da presença dos artistas franceses a serviço da

Corte no Rio de Janeiro. Apesar da aparente similaridade, as obras denunciam empregos

distintos de alguns elementos que sugerem maior ou menor proximidade com as

representações idealizadas.

A análise de duas obras significativas, uma de Domingos Antônio de Sequeira e outra

de Jean Baptiste Debret, nos mostra as sutis diferenças de tratamento no sentido da

representação. Vale dizer que estas referências são relevantes para o período em questão. No

caso dos portugueses, alguns painéis foram trazidos na transferência da Corte para o Rio de

Janeiro, compondo a volumosa bagagem que desembarcou na cidade. Importante frisar a forte

presença de Henrique José da Silva, ilustrador e desenhista português que dirigiu os anos

iniciais da Academia e que também compôs retratos para a Família Real.

Os franceses, por outro lado, vivenciaram o mesmo ambiente dos artistas coloniais,

mas com ideias sobre arte muito diversas das que eram exercitadas tanto em Portugal quanto

no Brasil. A desavença entre os artistas da Missão e Henrique José da Silva consiste em

sintoma que extrapola a simples aversão do segundo pelo bonapartismo. O pintor português

vinha de um modelo de formação que direcionava o olhar para o Neoclassicismo romano,

modelo conservador para aquele momento em que o Romantismo se espalhava pelas capitais

europeias. Mesmo em Portugal, Sequeira já apresentava certo ar modernizante, apresentando

vários elementos românticos, sobretudo em suas obras religiosas.

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No retrato de Sequeira, que trabalhou como pintor régio em Portugal, houve a

tendência de transformar D. João em figura heroica. O retrato de meio corpo, a três quartos,

feito em 1802, apresenta os traços fisionômicos corrigidos, conferindo jovialidade e energia à

personagem (Figura 54). O olhar incisivo, salientado pelo desenho da sobrancelha, e a boca

entreaberta com leve sorriso passam a ideia de dinamismo, como se o rei estivesse a falar com

o súdito. O corpo esbelto acentua a sensação de força, ainda realçada pelo cetro, que é seguro

delicadamente, sem a intenção de que o objeto sirva de apoio.

A indumentária exibe as condecorações frequentes na representação de chefes de

Estado. A coroa aparece em uma mesa, seguindo a tradição de mantê-la ao lado do monarca.

As cores sóbrias do fundo realçam a figura principal com a utilização de uma fórmula de

iluminação que prefere enfatizar o assunto, artifício amplamente utilizado desde o Alto

Renascimento e apreciado na época neoclássica. O cortinado, que complementa o plano de

fundo, colabora para a cenografia típica do retrato de aparato.

É nítida a apropriação do estilo de retrato realizado por Pompeo Batoni, principal

representante do Neoclassicismo italiano. O sofisticado uso das texturas e a preferência por

uma estética de limpeza da composição aparecem no trabalho de Sequeira, herança de seus

anos de estudo em Roma, quando esteve em contato direto com a obra do mestre italiano.

Batoni havia se estabelecido como retratista renomado, criando para os seus modelos uma

atmosfera aristocrática de elegância e austeridade.

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Figura 54– Domingos Antonio de Sequeira. Retrato de D. João. Óleo sobre tela. 1802. MNAA, Lisboa.

O trabalho de Debret é bastante semelhante no tocante à pose e à cenografia, mas traz

explicitamente a sua filiação francesa (Figura 55). A obra, um esboço realizado com a visível

intenção de que o rei encomendasse um painel definitivo, de grandes dimensões, difere em

alguns aspectos da imagem de Sequeira, seguindo a tipologia consagrada por Rigaud. Apesar

de Debret recorrer a um receituário formal aceito e exercitado ao longo de mais de um século,

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o artista não poupa o seu modelo na exposição de um corpo de abdômen avantajado e de

pernas curtas e obesas. Revela a papada que desce e se esconde na gola e o olhar caído e

tímido, quase bondoso. A boca entreaberta, ao contrário de conter qualquer expressão de

comunicação, indica certo ar apatia e indiferença. Configura outra possibilidade de

representação, com certa tendência à busca da verossimilhança. A observação aguçada do

francês aparece explícita em seus escritos. Diz, sobre Dom João que:

O rei, bom cavaleiro na mocidade, tornando-se obeso no Brasil, abandonou a

equitação. Era de temperamento sanguíneo e de pequena estatura; tinha as

coxas e as pernas extremamente gordas e as mãos e os pés muito pequenos.

Parcimonioso para consigo mesmo, mostrou-se, ao contrário, generoso para

com seus servidores. A timidez de seu caráter muito prejudicou a sua bondade

e a sua afabilidade, e, no entanto, ela atingia a superstição. (DEBRET, 1989,

p. 152)

As notas de Debret favorecem a compreensão das escolhas do artista na composição

do retrato do rei. Evidencia as suas preocupações com a representação dos aspectos externos,

conforme descrição das partes do corpo, e com a captação de traços da personalidade, como a

timidez e a generosidade. O Neoclassicismo davidiano, que caracterizava sua arte na época de

Napoleão, quando pintava cenas heroicas do imperador plenamente recheadas de idealização,

sofreu modificações na corte de D. João VI. Pautada na verdade e na moralidade, a linguagem

neoclássica francesa não considerava contradição a exaltação das virtudes heroicas, mesmo

que essas solicitassem alterações físicas da figura do retratado. As virtudes existiam, portanto,

eram dignas de serem apresentadas a público.

No Brasil, todos os ideais de moralidade e justiça que nortearam a formação de Debret

não encontraram terreno fértil. Assim, o artista não conseguiu compor imagens heroicas,

cheias de virtude para um governante fugitivo, na sua concepção, e rei de uma terra salpicada

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de escravos. Manteve a verdade de sua escola neoclássica presente, contudo, sem o brilho de

seus trabalhos de outrora.53

Figura 55 – Jean Baptiste Debret. Retrato de D. João VI. Óleo sobre tela. 1816. MNBA, Rio

de Janeiro.

53

Sobre as transformações na arte de Debret no Brasil, ver a obra A forma difícil, de Rodrigo Naves.

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Os dois exemplos possuem em comum o uso do mesmo formato divulgado pelas

gravuras, na parte principal do retrato: o rosto a três quartos. Percebemos que o restante

seguiu a estratégia conhecida da recorrência ao uso de manequins vestidos, com toda a

indumentária característica da realeza54

. O próprio Debret realizou um pequeno estudo do

rosto de D. João que se aproxima dos formatos mencionados, diferindo apenas na direção do

olhar, que aponta para fora dos limites do painel (Figura 56).

Figura 56 – Jean Baptiste Debret. Retrato de D. João VI.Óleo sobre tela. 1816.

O convencionalismo estético do retrato fez do gênero o mais difícil de identificar as

especificidades do que foi produzido no período de mudanças, conforme apontado

54

Uma das primeiras aquarelas de Debret no Brasil revela o interior de seu ateliê no Catumbi, com uma tela em

fase de acabamento. À sua frente, aparece o manequim vestido com a indumentária real. Trata-se de retrato do

Príncipe D. Pedro, conforme notas do pintor.

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anteriormente. Sem dúvida, a diferença maior encontra-se na postura em relação à criação e,

com maior sutileza, na consciência do artista sobre o significado daquele tipo de obra em

particular. Quando José Leandro de Carvalho compôs os doze Apóstolos para a Capela Real,

ele estava participando de um amplo programa de construção simbólica e o retrato deveria ser

pensado como uma peça dentro dessa estrutura maior de formação da imagem.

José Leandro de Carvalho e Manoel Dias de Oliveira foram os nomes conhecidos que

serviram à corte de Dona Maria I e do Príncipe Regente Dom João. Os principais pintores

portugueses da época continuaram ativos em Portugal e não acompanharam o deslocamento

de seus patronos, permanecendo nas suas atividades normais. No caso de Vieira Portuense, a

morte prematura interrompeu sua carreira em ascensão, antes mesmo da saída da Família Real

de Lisboa.

As mudanças drásticas ocorridas no cotidiano colonial, a partir do estabelecimento da

Corte portuguesa no Rio de Janeiro, afetaram diretamente o fazer artístico. Os pintores, em

particular, habituados aos assuntos religiosos, se depararam com a necessidade de servir ao

aparato governamental, compondo, entre as novas atribuições, projetos de carros alegóricos,

arcos de triunfo e construções efêmeras para aclamações e festas oficiais. A época do vice-

reinado havia assistido a algumas manifestações opulentas, mas nada comparado ao pouco

mais de dez anos de permanência de D. João VI no Brasil.

A formação de José Leandro de Carvalho se encaixa no tradicional sistema de

oficinas. Aprendeu o ofício com um mestre, provavelmente Raimundo da Costa e Silva, por

volta de 1790. No momento da abertura da Aula Régia de Desenho e Figura, é possível que

José Leandro estivesse em formação. Não há nenhuma referência sobre o ingresso do pintor

na escola de desenho de Manoel de Oliveira Dias. Quando a corte se instalou no Rio de

Janeiro, o seu nome já figurava entre os pintores ativos da época.

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Segundo Gonzaga-Duque, ferrenho crítico da arte colonial, José Leandro era um

pequeno Velasquez (GONZAGA-DUQUE, 1995, p. 87) da corte portuguesa nos trópicos.

Como filho do antigo sistema colonial, representava o nível de qualidade que se acentuara em

tal sistema nos anos finais dos Setecentos. Dono de elegante colorido e de texturas delicadas,

ele exercitou no retrato a combinação dos gostos disponíveis, absorvendo elementos

afrancesados em uma base tradicional italiana. Manoel de Araújo Porto Alegre diz que José

Leandro de Carvalho foi no tempo do reinado o melhor pintor histórico e o mais fiel retratista

da época: nesta última parte tinha um dom particular, pois bastava ver o indivíduo uma só

vez para conservar suas feições e pintá-lo ao vivo (PORTO ALEGRE, 1841).

Fundamental salientar que não foram apenas os artistas que sentiram as

transformações ocorridas no início do século XIX. A sociedade também vivia uma era de

transição. A arte participava de uma conjuntura geral que envolvia mudanças complexas nas

relações sociais, que envolviam a economia, os costumes e, entre outros aspectos, a forma de

perceber a arte. O estatuto social do pintor, agora como artista a serviço de uma corte,

lentamente passou da concepção comum do trabalho artesão, do passado colonial, à peça

fundamental na promoção da imagem da monarquia.

A intenção de equiparar o Rio de Janeiro a uma capital europeia abarcou indubitáveis

melhorias materiais, mas também simbólicas. Todo o aparato característico de uma corte,

ainda barroca nas atitudes, inundou as ruas modestas de rica imagética, festas opulentas,

bailados, desfiles militares com carros alegóricos e uma série de elementos oriundos dos

antigos e ainda eficazes meios de persuasão. Ao mesmo tempo em que a espiritualidade quase

supersticiosa avançava pelos Oitocentos, novos padrões culturais desembarcavam dos navios

procedentes das nações amigas.

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Sob esse prisma, a análise do conjunto de retratos atribuídos a José Leandro de

Carvalho e, mais adiante, o de Manoel Dias de Oliveira, deve considerar a figura do cliente e

qual a finalidade da obra encomendada. A quantidade de retratos de D. João VI não seguiu

apenas a um programa persuasivo, mas atendeu a jogos de interesses de grupos específicos.

As irmandades continuaram ativas e sua presença demonstrava a permanência da

estratificação social de raiz colonial. Claro que novos elementos entram nessa configuração,

mas, o que interessa no momento, é a força ainda dominante dessas organizações.

Quatro imagens bastante parecidas são atribuídas a José Leandro, todas representando

o rei. Foram retratos realizados após a sua aclamação, acontecida a 6 de fevereiro de 1818. D.

João aparece com o traje oficial, exibindo as condecorações, como de costume. A postura

combina o modelo de busto empregado nas gravuras com a tipologia a meio corpo, mostrando

o personagem até a altura do abdômen. Sabemos que pelo menos duas foram encomendadas

por ordens religiosas, uma pelo Convento de Santo Antônio e outra pela Igreja de São Pedro

dos Clérigos. Exibir a figura do rei nos consistórios proporcionava à ordem religiosa a

afirmação de sua fidelidade ao poder estabelecido.

Dois retratos, praticamente idênticos, podem ser analisados a partir do exemplar

pertencente ao IHGB (Figura 57). O segundo encontra-se no Convento de Santo Antônio. O

rei apoia-se no que aparenta ser o trono, vendo-se parte de sua espada. A ambientação de

ambas resolve-se com um cortinado, à moda barroca. José Leandro não disfarçou a obesidade

conhecida do monarca, suavizando, entretanto, outro ponto: as expressões faciais. Apesar das

interferências, o artista fluminense manteve características marcantes de sua aparência, ao

contrário da obra citada de Sequeira.

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Figura 57 – José Leandro de Carvalho. Retrato de D. João VI. Óleo sobre tela. c. 1818.

IHGB, Rio de Janeiro.

O pintor demonstrou habilidade na manipulação dos elementos formais, conforme

verificado na execução de texturas, volumes e profundidade. A iluminação é uniforme e o

contraste entre figura e fundo é obtido, nos dois casos, a partir de minuciosa gradação tonal.

As cores mais vibrantes do primeiro plano destacam o personagem do cortinado, de um azul

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saturado. Ainda no que se refere às cores, José Leandro de Carvalho buscou um equilíbrio

pautado na economia, conferindo a simplicidade apreciada na época neoclássica. Equilíbrio

que não esconde uma de suas características principais: a preferência pelo delicado brilho

encontrado em cada textura.

A iconografia repete fielmente o que as gravuras e demais artistas contemporâneos

apresentam: o traje oficial e a exibição das insígnias no lado esquerdo do peito. A primeira

insígnia que encima as outras duas traz a marca da reforma realizada por D. Maria I em 1789,

quando reuniu em um mesmo distintivo, as três Ordens Militares Portuguesas: a de Cristo, a

de São Bento de Avis e Sant’ Iago da Espada. Outro elemento referente à reforma encontra-se

na inclusão do Sagrado Coração de Jesus, acima de todos os três símbolos, indicação da

devoção pessoal da soberana.

Logo abaixo, no lado esquerdo, aparece representada a condecoração estrangeira da

Ordem de Carlos III da Espanha. Apesar de pouco comum a troca de distintivos entre chefes

de Estado, observa-se, conforme peças conservadas e documentação presente em arquivos

portugueses, considerável quantidade de condecorações recebidas por D. João desde a época

em que ainda era príncipe.

A terceira insígnia, a Placa de Grã-Cruz, foi criada na regência de D. João no Brasil,

em 1808, com a finalidade de pontuar a sua chegada à colônia. A condecoração também

serviu para homenagear personalidades do exército inglês que se destacaram na defesa do

trono português na ocasião da partida da Família Real de Lisboa. Interessante mencionar que

a emblemática portuguesa nas duas primeiras décadas do século XIX assistiu a inovações

simbólicas e formais, com a criação de novas insígnias que se somaram às mais antigas.

É plausível que José Leandro de Carvalho tenha combinado a utilização do modelo

oriundo das gravuras e a observação direta dos trajes, principalmente as condecorações. Os

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detalhes são precisos e as colorações exatas de cada elemento iconográfico, como os

diamantes e as partes douradas, por exemplo. Quando comparadas com originais pertencentes

a museus brasileiros e portugueses, as insígnias pintadas revelam semelhança também em

relação às proporções. Esta perícia é indicativa de uma nova postura em relação ao retrato,

pois o cuidado em representar cada elemento conforme sua natureza, principalmente quando

ligado à simbologia do poder, evidencia direcionamentos outros quando comparados aos

antecedentes coloniais.

O terceiro retrato sugere a mesma preocupação do artista em buscar um ponto médio

entre o que realmente vê e o que deve ser representado (Figura 58). O fundo neutro e escuro e

a presença do manto e da coroa conferem ostentação superior quando comparadas à anterior.

D. João VI apoia sua mão na coroa, uma alusão à sua recente aclamação. Os olhos são bem

marcados e não escondem seus quase cinquenta anos. Apesar das marcas do tempo e da figura

obesa, há relativa serenidade em sua fisionomia.

É provável que a encomenda da imagem tenha relação com a decoração da Varanda da

Aclamação, em 1818. José Leandro de Carvalho trabalhou ativamente na montagem da

grandiosa solenidade, junto aos artistas franceses. D. João VI, em sua permanência no Brasil,

usou seus trajes de gala apenas nessa cerimônia. Se o retrato não figurou nos corredores

internos da efêmera construção, sua iconografia indica, pela presença do manto, tratar-se

desse importante acontecimento.

A semelhança do conjunto de retratos do rei confirma o tradicionalismo do gênero, o

qual discutimos em momentos anteriores. Mostra também uma fórmula que facilita a

produção em grande número, pois foram várias as funções que esse tipo desempenhou.

Ocupou lugar de destaque nos consistórios e sacristias de irmandades e ordens religiosas;

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substituiu o rei, anunciando a sua presença; ornamentou os interiores das construções

efêmeras das festas oficiais, como a varanda de sua própria aclamação.

Figura 58 – José Leandro de Carvalho. Retrato de D. João VI. Óleo sobre tela. c. 1818.

Rio de Janeiro.

O retrato de D. Maria I, provavelmente realizado para a mesma ocasião do anterior, é

o único feminino conhecido atribuído a José Leandro de Carvalho (Figura 59). Ostenta toda a

delicadeza de colorido e de uso de texturas naturalistas característicos do pintor. Esta

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habilidade chegou a despertar a atenção de Debret, que o referencia na parte textual de sua

obra Viagem pitoresca e histórica ao Brasil (DEBRET, 1989, v.3, P. 50).

A figura da rainha aparece oblíqua, em três quartos. Enquanto o corpo parece girar

para o lado esquerdo da composição, a cabeça volta-se para o lado oposto. O olhar reto,

direcionado para o espectador, encontra o ponto de equilíbrio entre os dois vetores. José

Leandro de Carvalho aplica a técnica de centralizar um dos olhos em rosto a três quartos para

criar equilíbrio e sentido de movimentação. O segundo plano, escuro, revela um cortinado de

mesmo tom castanho que desce pelo lado esquerdo superior. Toda a iluminação recai na pele

branca e na indumentária, separando figura e fundo. As texturas revelam a destreza do artista

em trabalhar com diferentes materiais, como carnadura, rendas, veludo, madeira, metais e

pedrarias.

As gradações sutis de claros e escuros, acentuados pelas dobras em partes do

vestuário, conferem uma delicada sensação de volume. O espaço é equilibrado com

simplicidade, a partir da centralização da figura. O artista compensa o peso maior da parte

inferior com alongamento da área acima da cabeça da rainha, que exibe o cortinado peculiar

dos retratos mais pomposos.

Ricamente paramentada, a rainha mira o espectador com um olhar firme, que difere da

sua condição mental dos últimos anos de vida na colônia. Aqui, mostra atitude régia,

complementada pela fisionomia severa. Segura com a mão esquerda o cetro, que desenha uma

diagonal contrária ao corpo e que colabora para a distribuição equilibrada das forças. Repousa

a mão direita na coroa, a qual aparece disposta em uma mesa. A imagem de D. Maria I mostra

as características constantes do retrato feminino, como a seriedade, a austeridade e o poder.

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Figura 59 – José Leandro de Carvalho. Retrato de D. Maria I. Óleo sobre tela

c. 1818. MHN, Rio de Janeiro.

Não encontramos a gravura que serviu de modelo para José Leandro de Carvalho, mas

a origem da imagem parece ser a obra semelhante do artista português Vieira Lusitano (Figura

60), feito em 1753. Com a morte da rainha, é provável que D. João VI tenha providenciado

uma cópia da famosa obra lisboeta para representar D. Maria I nas cerimônias oficiais,

afirmação simbólica da continuidade da dinastia. Como retrato póstumo, José Leandro de

Carvalho não se importou com a verossimilhança, pelo menos em relação à força do tempo,

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pois a rainha aparece tal como fora captada pelo olhar de Vieira Lusitano, quando tinha

apenas 18 anos.

Apesar de modesto, o conjunto de retratos disponíveis de José Leandro de Carvalho

colabora para a percepção das transformações ocorridas nas duas primeiras décadas do século

XIX. A peculiaridade do gênero o faz um importante indicador das novas oportunidades

vivenciadas pelos pintores, sobretudo no tocante ao estatuto social do artista. Muito do que

José Leandro de Carvalho produziu foi contemporâneo aos artistas franceses, o que demonstra

a manutenção do braço nativo por D. João VI como uma de suas opções para a composição de

todo o aparato áulico.

Importante mencionar que José Leandro de Carvalho havia, em 1811, recebido o

título nobiliárquico da Ordem de Cristo, algo inédito para um pintor de raízes coloniais. Este

episódio deveu-se ao concurso vencido pelo artista para a composição do retrato da Família

Real, desaparecido no início do século XX após ser removido para restauração na Academia

de Belas-Artes. Sobre o painel, há importante menção de França Junior no Jornal O Paiz, de

05 de novembro de 1889, na qual aparece comentado o estado lamentável do painel naquela

ocasião. França nos diz que:

Bastante estragado pelo tempo, e estendido sobre uma larga mesa, em vasta

sala, onde outros quadros sombrios, com massas denegridas de betume,

pareciam dormir tranqüilos como uma necrópole o sono do esquecimento, não

pude apreciar segundo desejava todas as belezas da composição. Vi, porém,

que as figuras eram perfeitamente pintadas. (FRANÇA, 1889)

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Figura 60 – Vieira Lusitano. Retrato de Francisca Maria, Princesa do Brasil. 1753. Óleo

sobre tela. 1520 x 10170 cm. Palácio Nacional de Queluz.

Trabalhar na mesma esfera de Debret, por exemplo, conferiu ao artista colonial a

consciência de que o seu ofício possuía concepções sociais distintas, mesmo com a

condecoração da Ordem de Cristo. Portugal havia se empenhado em manter sua Colônia

americana em regime quase medieval, concretizado pelo sistema mercantilista. Enquanto o

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século XVIII assistia a ascensão de artistas portugueses, como André Gonçalves e Vieira

Lusitano, os coloniais eram resumidos a gente do povo, a classe baixa responsável pelos

serviços manuais. Debret originava-se de uma França revolucionária que abrigava pintores,

escultores e arquitetos como elite intelectualizada, politizada e atuante. O choque de valores

era evidente, principalmente por Debret realizar, nos primeiros anos de estada no Rio de

Janeiro, o mesmo tipo de pintura também executada por José Leandro de Carvalho.

Manoel Dias de Oliveira, por outro lado, experimentou as diferenças anos antes,

quando estudou em Lisboa e em Roma. O seu contato com a outra realidade o fez refletir não

apenas sobre a condição social do pintor, mas nos meios necessários para propor uma

transformação no fazer. O retorno ao Brasil desencadeou todo um processo de incentivo à

mudança e de persuasão no sentido de sensibilizar as autoridades sobre a urgência de conferir

qualidade ao trabalho do pintor, no qual o protagonismo de uma classe específica foi o motor

para as conquistas subsequentes. A abertura da Aula Régia de Desenho não pode ser

considerada uma vitória individual, mas referente a uma conjuntura econômica específica que

teve na instituição projetos de incremento na produção local. Vale salientar o título de

professor régio ficou apenas no nome, como veremos no capítulo seguinte. Não houve

nenhuma participação do governo no desenvolvimento dos cursos realizados, estes montados

na casa do próprio artista.

Do mesmo Dias de Oliveira temos apenas um retrato régio, no qual aparece figurado

D. João VI e D. Carlota Joaquina. Diferente de José Leandro de Carvalho, ele preferiu

simplicidade absoluta no uso da cor. Não há aquele brilho característico dos retratos antes

analisados, mas um tom pálido e sóbrio que realça o fator psicológico dos personagens

(Figura 61). O fundo é escuro e monocromático. Os retratados aparecem envoltos em uma

moldura pictórica em forma de elipse. Ambos encaram o espectador de maneira simpática,

exibindo os atributos do poder. O rei, posicionado do lado esquerdo da composição, veste o

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traje oficial e exibe apenas uma condecoração. D. Carlota Joaquina, do lado oposto, segura

carinhosamente o braço do esposo e esboça um leve sorriso.

Figura 61 – Manoel Dias de Oliveira. Retrato de D. João VI e D. Carlota Joaquina. Óleo sobre tela. c. 1819.

MHN, Rio de Janeiro.

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Manoel Dias de Oliveira buscou um ponto intermediário entre a imitação e a

idealização. O interessante neste caso reside nos artifícios usados pelo artista, os quais

demonstram claramente os efeitos de sua formação italiana. O rei aparece corpulento, mas a

moldura artificial elíptica ajuda a omitir a parte que mais acentua a sua obesidade, o abdômen.

A condição física ficou apenas sugerida, não desaparecendo por inteiro. O mesmo acontece

com a imagem de Carlota Joaquina: sua estatura extremamente baixa é amenizada, mas

permanece visível ao espectador a sua fragilidade.

O retrato realizado nesta época teve na chegada da Família Real um marco para as

transformações mais acentuadas. A última década dos Setecentos e os primeiros anos de

funcionamento da aula de Manoel Dias de Oliveira foram ensaios relevantes, pois sem o

desenvolvimento crescente do gênero neste período, a Corte não encontraria a qualidade

indiscutível dos dois artistas acima analisados. Vale registrar que os mesmos artistas que

serviram à comitiva régia trabalharam para a elite mercantil, como atestam os exemplares

pertencentes à Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro. Negociantes de grosso trato

alcançaram postos de destaque em vários setores, como inclusive o cargo de prior da poderosa

irmandade que citamos acima. O comerciante Anacleto Elias da Fonseca, um dos nomes mais

atuantes da economia mercantil do final do século XVIII, assumiu tal cargo entre os anos de

1781 e 179055

.

O retrato foi o gênero que mais ocupou o tempo dos pintores ao longo do século XIX,

acadêmicos ou não. Isto porque a nova configuração da sociedade revelara uma clientela

ávida por exibir a sua imagem como forma de ostentação de prestígios alcançados. O sucesso

do retrato chegou a desanimar Manoel de Araújo Porto Alegre, em meados de 1850. O então

55

Há o retrato do comerciante na Galeria de Retratos da Santa Casa de Misericórdia, assim como outros

exemplares atribuídos a José Leandro de Carvalho. No entanto, após inúmeras solicitações, não obtivemos

autorização para acessar os espaços onde as obras se encontram, nem a possibilidade de consultarmos o arquivo

documental da irmandade.

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diretor da Academia Imperial das Belas-Artes lamentava o fato dos artistas precisarem ganhar

a vida pintando as personalidades fluminenses, tempo que poderia ser gasto com a execução

de painéis históricos.

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4 A AULA RÉGIA DE DESENHO E FIGURA: DISCUSSÕES PRELIMINARES

O bom gosto, que mais e mais se expande no

mundo, começou a se formar, em primeiro

lugar, sob o céu grego.

J. J. Winckelmann

A abertura da Aula Régia de Desenho e Figura, em novembro de 1800, ao mesmo

tempo em que situa o ponto máximo das transformações ocorridas ao longo da segunda

metade dos Setecentos, traz questões emblemáticas para sua análise. Se a comparação com a

instituição lisboeta, inaugurada em 1781 sob o reinado de Maria I, torna-se inevitável, pois a

versão fluminense seguiu as suas bases, diferenças contextuais marcantes parecem criar

nuances entre as funções originais que regeram este tipo de escola. Pontuar o caso colonial e

investigar as suas especificidades são metas indispensáveis ao entendimento do período de

forma global, incluindo aqui as discussões anteriores sobre a temática religiosa e a produção

de retratos.

A complexidade da época exige um exame que extrapola os limites da arte, pois as

Aulas Régias foram criadas em Portugal atendendo a uma urgência de reforma educacional.

Além disso, a herança pombalina continuava presente no sentido de manter a formação de

profissionais para o mundo do comércio, mesmo que o desenho, habilidade fundamental para

a execução de vários ofícios, tenha encontrado pouco espaço oficial no tempo do marquês,

pelo menos como atividade independente (FRANÇA, 1987). A educação, nesta concepção,

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relacionava-se aos movimentos ilustrados da época e servia aos interesses da elite, dividida

entre uma classe comercial em ascensão e outra ligada à esfera cortesã. Apesar de tímida,

quando comparada ao notável desenvolvimento das academias nos principais centros

europeus, a Aula Régia de Desenho e Figura, inserida na reforma da educação iniciada no

governo de D. José I e continuada na fase de D. Maria I, trouxe reflexos interessantes para o

Rio de Janeiro colonial.

Importante salientar que a comparação entre o sistema de aulas régias e o da academia

objetiva pôr em discussão a problemática da ausência da segunda no mundo artístico

português. A crítica sobre o vazio institucional da metade final do século XVIII aparece no

discurso de artistas como o escultor Machado de Castro, o qual lamentava o estado precário

do ensino em seu país (FRANÇA, op. cit. p. 67). A situação de decadência se agravou

quando, na ocasião da disputa sobre uma dispensa papal para o casamento da princesa Dona

Maria com seu tio e o consequente corte de relações com o Vaticano, a Academia Portuguesa

em Roma ficou deserta. José-Augusto França bem diz que:

A falta de um ensino artístico regular, mesmo de uma Academia, não deixou

de ter consequências sobre o escasso desenvolvimento dos pintores e dos

escultores portugueses, obrigados a copiar gravuras e gessos, constrangidos a

uma formação autodidata sem saída. (FRANÇA, 1983., p. 260)

O autor complementa em seguida:

Ninguém se ocupava de estética em Portugal. Se os textos teóricos editados

antes são duma indigência aflitiva, ou meramente curiosos, os que aparecem

no terceiro quarto do século XVIII não valem mais. Nenhum dos mentores da

época pombalina se interessou pela estética e esta disciplina falta

absolutamente no tratado, assaz completo, porém, do Verdadeiro Método de

Estudar, de Verney. (...) Ainda em 1752 se procurava provar que a pintura era

uma arte liberal, com o auxílio de argumentos assaz especiosos. (FRANÇA,

op. cit., p. 260)

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A citação denuncia a ausência de um ambiente de reflexão teórica atual e atuante,

característico do mundo acadêmico. Este fator revela a distinção funcional de uma Aula

Régia, interessada na formação de habilidades técnicas e não de artistas teóricos. Portugal

esperaria o fim do tempo de Pombal para ver brilhar as ideias de Cirilo Wolkmar Machado e

de Machado de Castro, artistas conhecedores dos novos gostos classicistas discutidos e

aplicados em Roma.

A Aula Régia de Desenho e Figura de Lisboa foi criada na esteira da reforma do

ensino inaugurada em 1759. O deslocamento do sistema educacional do religioso para o laico

não foi um caso exclusivo português, apesar deste ter sido o primeiro a fazê-lo. Os jesuítas

deixaram uma lacuna, prontamente assumida pelo Estado. Das primeiras letras à Universidade

de Coimbra, a reforma pombalina cobria toda a vida formativa do aluno e conferia uma

desejada padronização do currículo. Após a deposição do marquês, com a morte de D. José I,

houve continuidade do plano inicial, de onde nasceu a cadeira de desenho.

As reformas se inserem em amplo programa de transformações que explicam, em

parte, a pouca atenção dispensada às artes nas ações de Pombal. O objetivo central do

ministro era garantir a soberania comercial da Metrópole na conjuntura econômica européia.

Isto implicava na reorganização do sistema mercantilista, das finanças e da observância do

respeito às fronteiras das posses ultramarinas. Parte das ambições de Pombal esbarrou nos

interesses dos jesuítas, sobretudo os relativos às Missões do Sul e Norte do Brasil. A

resistência e a oposição declarada dos religiosos em relação à Coroa foram as causas

principais de sua ruína.

Sebastião José Carvalho de Melo iniciou sua carreira como diplomata em Londres.

Sobre sua estreia na vida pública, diz Azevedo que:

Seu espírito, sequioso de novas idéias, depressa se afez ao diverso ambiente

que, para ele, saído do obscurantismo e da rotina peninsular, era a sociedade

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culta, inteligente, progressiva e liberal, onde agora se encontrava. Não

assimilou, é certo, os princípios de tolerância, de respeito pelos direitos

individuais, que ali eram comuns. Mas pode dizer-se que o seu entendimento

se remodelou ao contato com as idéias correntes; que os olhos se lhe abriram

para mais largos horizontes; que foi este período da sua existência mais

fecundo para a formação da sua individualidade de estadista. (AZEVEDO, )

O tempo em que permaneceu em Londres, de 1739 a 1743, pode investigar de perto as

estratégias britânicas concernentes aos mecanismos comerciais ali desenvolvidos. Além de

buscar a defesa dos interesses portugueses, como, por exemplo, as possessões da região do

Rio da Prata, Pombal verificou a defasagem de seu país nas questões mercantilistas e a sua

posição de inferioridade nas transações com a corte inglesa. O retorno a Portugal custou ao

marquês o embate contra uma elite parasitária e pouco afeita a mudanças radicais.

Impregnado das ideias iluministas, sua atuação ganhou poder e simpatia do rei na

ocasião da reconstrução da parte devastada de Lisboa pelo terremoto de 1755. Sua ação

enérgica e emergencial deu nova feição à capital do império, o que desencadeou reações

contrárias aos membros do governo que temiam a vertiginosa ascensão do ministro. Houve,

em contrapartida, uma varredura no círculo da nobreza, substituindo opositores por membros

fiéis e afeitos aos novos rumos. Nascia então uma nova classe da qual Pombal tornou-se líder:

a alta burguesia comercial, conforme mencionamos no primeiro capítulo. A criação da Junta

do Comércio, a Companhia do Grão-Pará e Maranhão e a Companhia de Pernambuco e

Paraíba são alguns exemplos, da década de 1750, dos reais interesses do maior ministro de D.

José I.

Dentro deste contexto, um dos objetivos das Aulas Régias foi a formação de cidadãos

aptos à inserção no mercado de trabalho. A ideia de educação como investimento, concepção

progressista que ofereceria as bases de um Estado competitivo e moderno, constituiu um dos

pilares do despotismo esclarecido do governo pombalino. Ao mesmo tempo em que garantiria

a modernização, o projeto mantinha assegurada a permanência dos valores monárquicos

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absolutistas. Esta articulação, paradoxal à primeira vista, expõe a consciência do lado

perigoso da ilustração, principalmente originário das obras de alguns pensadores franceses,

prontamente barradas pela Real Mesa Censória56

.

Se a Aula Régia de Desenho e Figura integrou um pacote maior voltado para questões

econômicas, as academias europeias também estavam sensíveis a estes mesmos valores, com

certas diferenças quando comparadas à instituição portuguesa. Segundo Albert Boime, a

segunda metade do século XVIII assistiu ao conflito entre setores tradicionalistas de uma

aristocracia calcada em modelos considerados ultrapassados e novas e ascendentes parcelas da

sociedade, ambiciosas por poder e fortuna (BOIME, 1994, vol. 1, p. 79). A classe média

burguesa seguia uma corrente de prosperidade aberta pela diversificação cada vez maior do

mercado, a qual envolvia sofisticação de técnicas de produção, incremento nos meios de

distribuição de manufaturas e participação de novos setores na geração de capital.

Pevsner destaca o desenvolvimento econômico como uma das causas das reformas

acadêmicas do século XVIII (PEVSNER, 2005, p. 202). O desenho, elemento essencial do

aprendizado, seria tanto a base para a formação artística como para a aquisição de habilidades

necessárias ao nascente mundo industrial. A academia deveria difundir o bom gosto que se

espalharia nas porcelanas, nos padrões das tecelagens e dos papéis de parede, entre outros

(PEVSNER, op.cit., p. 202). E, por mais contraditório que possa parecer, se tomarmos o

Neoclassicismo francês de fim de século como referência, o retorno à Antiguidade Greco-

Romana alimentou a parte decorativa deste período mercantilista57

.

As escavações de Herculano e Pompeia despertaram um interesse renovado pelas

questões da produção clássica e fomentaram uma onda colecionista que envolvia intenso

56

O período de nove anos de rompimento com o Vaticano deu a Pombal os meios propícios à secularização do

Estado e a submissão da Igreja aos seus valores. A Inquisição também sofre com a reforma, transformando-se na

versão secular da Real Mesa Censória. 57

Enquanto o Neoclassicismo pontuava sua observância basicamente no passado greco-romano, outras

manifestações do período resgataram outras fontes, como, por exemplo, o Gótico na Inglaterra.

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mercado de objetos. Artistas, antiquários, religiosos, nobres e figuras da alta burguesia

elegeram Roma como centro de trocas e discussões sobre o novo gosto, destino quase

obrigatório dos jovens que terminavam seus estudos. Boime considera que:

O Neoclassicismo foi aprovado, estimulado e difundido pela nobreza da

Europa ocidental. Os nobres e o grupo internacional de eruditos e artistas, que

recrutados das classes médias e artesanais para levar a cabo os aspectos

práticos e materiais da difusão do novo estilo, se conheciam, mantinham

correspondência, se informavam mutuamente e competiam entre si. Tinham

consciência clara de seu papel na difusão do Neoclassicismo e criaram

deliberadamente um público para ele. Foi o primeiro movimento da história

que se formou, se anunciou e se vendeu em um mercado como invenção

rentável.(BOIME, 1994, p. 83)

O Neoclassicismo contou com um programa teórico que colaborou para conferir

seriedade, além de autenticar certas coleções particulares, como foi o caso de Winckelmann.

Trabalhando como secretário e bibliotecário do cardeal Alessandro Albani58

em Roma, seus

textos começaram a ganhar notoriedade nos círculos consumidores de arte. Sua fama

crescente e paixão pelos assuntos da Grécia antiga, não apenas atingiam com certa violência o

Rococó ainda corrente, mas ajudavam a dar respeitabilidade à coleção e às práticas comerciais

do próprio cardeal. Assim, o Neoclassicismo, como bem disse Albert Boime, desenvolveu um

programa bem fundamentado, o qual o mercado desempenhou papel essencial.

A pintura neoclássica da primeira geração expressou, plasticamente, os conceitos

discutidos em torno da Antiguidade. Sua temática emprestava à burguesia mercantil uma

aparência idealizada de ordem e virtude, contrária à frivolidade do estilo da nobreza francesa.

Figuras heroicas e cenas de histórias edificantes substituíram as narrativas de galanteios entre

jovens ou as representações das festas de uma aristocracia exuberante. O movimento como

elemento formal, tão caro ao Barroco e que emprestou sua graça à sinuosidade rococó,

58

Alessandro Albani foi sobrinho do Papa Clemente XI e dono de uma das maiores coleções de arte antiga da

época, atuando com antiquário na troca e venda de peças em um intenso e crescente mercado de objetos.

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conheceu uma retração e as figuras, antes esvoaçantes, pousaram serenas, contidas na

importância maior da mensagem.

Os pintores Anton Rafael Mengs e Pompeo Batoni representam a geração em

transformação de meados dos Setecentos. O primeiro, natural de Dresden, fixou moradia em

Roma e caiu nas graças do cardeal Albani, participando do mesmo círculo em que se

encontrava Winckelmann. O Rococó germânico ainda contido em sua obra foi logo cedendo

lugar ao vocabulário clássico, influência que recebeu diretamente de seu novo amigo e autor

dos principais textos sobre a Antiguidade. A obra Parnaso (Figura 62) é considerada uma das

primeiras a exibir o receituário formal que influenciaria mais tarde o jovem David.

Figura 62 – Anton Raphael Mengs – Parnaso. 1761. Óleo sobre tela. Villa Albani, Roma.

A pintura foi encomendada por Albani para o forro da sala principal de sua Villa, local

de grande atividade comercial de exibição, troca e venda de antiguidades. Iniciado em 1760, o

painel não oferecia novidades em relação à temática, e Mengs sabia disso. Antes de realizar o

trabalho para o cardeal, ele havia copiado a Escola de Atenas de Rafael para um patrono

inglês. Ao lado do grande afresco do pintor renascentista, na mesma sala pertencente ao

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complexo do Vaticano, outro, igualmente enorme, apresenta o tema de Parnaso. Este foi,

certamente, uma referência fundamental que Mengs aproveitou anos depois.

Consagrado a Apolo, o Monte Parnaso retorna renovado no século XVIII como a

idealização do passado Grego. A imagem idílica, com o deus cercado pelas Musas, encena a

alegoria das artes, símbolo que Albani desejava para si próprio. As feições de Apolo seriam as

do cardeal, e as Musas representariam as mulheres que passaram por sua vida, curiosidade

percebida pelos frequentadores mais íntimos da Villa. Mnemosine, mãe das nove figuras

femininas, seria o retrato da filha ilegítima de Albani, chamada Vittoria Cheroffini (BOIME,

1994, p. 92). Ela aparece do lado direito de Apolo, sentada em um trono.

A composição lembra o formato horizontal dos numerosos baixo-relevos pertencentes

a particulares, sobretudo os oriundos da tradição funerária romana. Por volta do século

segundo da Era Cristã, os romanos passaram a decorar os sarcófagos com narrativas de

inspiração grega ou com cenas da vida do morto. Albani, na ocasião da realização da pintura,

possuía em sua coleção o Sarcófago das Musas, objeto que provavelmente serviu como fonte

para Mengs.

Apolo está localizado no centro, em posição sutilmente mais elevada em relação às

dez personagens femininas que se dividem entre os dois lados do painel. O equilíbrio das

massas, a distribuição harmônica e contida das cores e o aspecto escultórico de cada figura

anunciam o tom mais sóbrio do novo gosto classicista. A clareza de todo o ambiente colabora

para a revelação de todos os atributos, formando uma leitura iconográfica acessível e de fácil

compreensão para os que dominavam tais assuntos. O desenho submete as cores à sua

primazia, lição preconizada por Winckelmann como a essência dos novos tempos. O

contorno, para ele, era o conceito mais elevado (WINCKELMANN, 1975, p. 49).

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Este seria o modelo seguido pelos artistas neoclássicos preocupados em difundir

plasticamente mensagens edificantes, seja pela evocação de cenas mitológicas ou por

narrativas históricas idealizadas de episódios passados ou contemporâneos. A arte poderia

decorar, mas, diferente do hedonismo rococó, deveria passar mensagens de honra, coragem e

heroísmo59

. Esta foi, a princípio, uma barreira para alguns artistas, pois muitos nobres não

simpatizavam com a ideia de ambientar seus lares com o rigorismo classicista. O

amadurecimento do estilo acompanhou a mudança de gosto e da forma de ver o mundo,

ocupando gradualmente os espaços ainda dominados pela tradição rococó.

Assim como Mengs, Pompeu Batoni foi sensibilizado pelas orientações formais

florescentes nos círculos romanos. Diferente do alemão, Batoni não passou por uma fase

propriamente rococó, pois boa parte da Itália havia continuado a desenvolver uma espécie de

barroco tardio, mais contido e sóbrio quando comparado ao auge do estilo nos Seiscentos. A

sua habilidade em revelar texturas naturalistas e delicadeza na forma de compor as cenas

despertou o interesse de Winckelmann, o que proporcionou ao italiano uma boa reputação. A

sua técnica, herança essencialmente barroca, contribuiu para dar ao Neoclassicismo uma

sofisticação que seria apropriada mais tarde por David e Ingres.

Batoni e todos os principais pintores residentes em Roma se beneficiaram do chamado

Grand Tour, uma espécie de turismo cultural formador de colônias60

estrangeiras na Itália em

busca de conhecimento e de peças para as suas coleções particulares. A aristocracia e a alta

burguesia realizavam verdadeiras peregrinações às principais cidades italianas, e Roma era a

mais procurada. Estas viagens movimentavam negócios relacionados aos objetos antigos,

59

Falamos aqui, no caso do didatismo, da pintura e da escultura. No caso das artes decorativas, há a gradual

substituição de personagens juvenis rococós por elementos copiados das peças encontradas das escavações ou

mesmo da cópia de obras consagradas dos neoclássicos, sem a seriedade destes últimos. As funções dos objetos

são distintas, apesar de se alimentarem da mesma fonte. O ceramista Josiah Wedgwood foi importante renovador

do gosto, competindo com a larga produção rococó e com a moda de porcelanas chinesas ainda famosas na

época. 60

Usamos a palavra colônia para designar um conjunto de pessoas reunidas por um fim em comum.

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atraindo também a vontade de consumir a arte do momento. A pintura, sobretudo o retrato,

servia como um registro daquele período especial, exibindo, como cenário, as peças mais

conhecidas dos antiquários, as ruínas que salpicavam a paisagem ou mesmo a criação de uma

cidade antiga idealizada.

A colônia inglesa foi para Batoni uma excelente fonte de renda. O retrato de Thomas

Dundas exemplifica o modelo preferido da época, repetido em sua fórmula dezenas de vezes

(Figura 63). O Barão, representado de corpo inteiro, localiza-se no interior de uma galeria

como se apresentasse as peças ali expostas. Sua pose confere uma espécie de narrativa,

colocando-o como um conhecedor fluente do passado greco-romano. Percebemos, ao fundo,

esculturas já famosas na época, como o Lacoonte e o Apolo de Belvedere.

O mérito de Batoni como um dos principais retratistas da época reside na sua

capacidade de expressar, em ambiente de extrema simplicidade, traços de personalidade

acentuados. Quando analisamos o conjunto de retratos que executou para os seus patronos

ingleses, verificamos certa repetição dos cenários, porém com a atenção recaída nas

individualidades. Geralmente ilumina, sem grandes contrastes, a personagem, espalhando uma

luz difusa e fraca, de origem indefinida, no restante da composição. Este efeito traz um sabor

de mistério e parece separar o tempo do retratado daquelas peças provenientes de um passado

longínquo.

Em comparação a Mengs, a produção neoclássica de Batoni revela mais uma

adaptação ao mercado do que a crença ideológica da beleza calcada nos modelos gregos. Não

há dúvida de que as suas telas demonstram, visualmente, o reconhecimento e o bom uso dos

elementos formais anunciados nas teorias em voga na época. Batoni vinha de uma experiente

carreira que contava algumas décadas de trabalho, o que colaborou para a sua percepção de

que o gosto sofria certo deslocamento para outras direções. A mudança estilística não exigiu

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grandes sacrifícios do artista, pois a sua formação contara com a iniciação básica do desenho,

como era de praxe nas principais academias. O maior desafio foi combinar a iconografia

solicitada com as novas preferências formais do classicismo.

Figura 63 – Pompeo Batoni. Retrato de Thomas Dundas. 1763. Óleo sobre tela

298 x 196.8 cm. Coleção Marquesa de Zetland, Yorkshore.

Mengs, ao contrário, chegou a Roma como um jovem recém-formado, ainda nos

moldes rococós de sua cidade natal. O entusiasmo pelos assuntos da Antiguidade Clássica,

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muito por influência de Winckelmann, rapidamente o fez assimilar os modelos compositivos

associados a temas em muito distantes do decorativismo do início de sua carreira. O mercado

certamente contou como fator de mudança, mas Mengs mostrava um compromisso maior com

um tipo de produção que pudesse, através de uma arte sóbria e equilibrada, difundir

mensagens edificantes.

Mengs encarna um novo modelo de artista engajado, consciente de sua contribuição

para o bem-estar maior da sociedade como um todo. Não se pode dissociar esta ciência de

mundo do pensamento iluminista em rápido processo de disseminação. A adequação do

Neoclassicismo a esta corrente de racionalidade, anticlerical e antimonárquica, fez do estilo o

preferido da classe protagonista das duas grandes revoluções do século: a Industrial inglesa e

a Francesa. Diferente de Batoni, Mengs acreditava no potencial da arte como veículo de

formação e informação.

A ação dos pintores, em grande sintonia com os tratados dos teóricos, ajudou a

consolidar uma bem-sucedida propaganda visual que faria do Neoclassicismo um estilo

internacional. Os escritos de Winckelmann foram traduzidos em algumas línguas, obra

obrigatória nos círculos acadêmicos que seguiram o ideal de nobre simplicidade e calma

grandeza (WINCKELMANN, 1975, p. 53). O Grand Tour atraía artistas de nacionalidades

diversas, desejosos de construir carreira respeitável no contato direto com o patrimônio

romano. Outros levaram consigo todo o aprendizado adquirido para centros importantes,

como foi o caso de Mengs na década de 1760, quando parte a convite da corte espanhola.

Não podemos descartar o fator político que, juntamente com o estético, ligado a

Herculano e Pompéeia, e o econômico, característico das relações mercantilistas do século

XVIII, fomentaram a propagação das ideias clássicas e sua consequente aceitação. Na mesma

época em que o fervor em torno das antigas cidades do Império Romano movimentava

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interesses de várias procedências, as duas maiores potências europeias entraram em choque. A

Guerra dos Sete Anos foi um conflito entre França e Inglaterra, a primeira tecendo aliança

com a Áustria e a segunda com a Prússia61

. Não surpreende o fato de Winckelmann, um

alemão reconhecidamente francófobo, além da sua manifesta adoração pela Grécia antiga,

tenha reagido contrariamente ao Rococó francês e à sua variante germânica.

A derrota da França de Luís XV na Guerra dos Sete Anos somou-se aos fracassos

militares do reinado deste monarca, uma das razões da gravidade da situação econômica

enfrentada pelo país nos setecentos. O abismo criado entre as classes e os impostos cada vez

mais pesados colaboraram, entre outros fatores, para ressurgirem os questionamentos sobre a

legitimidade dos valores do regime absolutista, agora presentes no pensamento de Russeau,

Voltaire e Diderot. A educação era vista como chave para o progresso e deveria conter

metodologias capazes de organizar e explicar coerentemente a realidade, longe de crenças

obscuras sobre a hereditariedade nobiliárquica ou dos misticismos oriundos da religião. A

adesão de setores progressistas da sociedade, sobretudo a classe burguesa formada por

banqueiros, advogados e homens de negócio começaram a dar feição aos que seriam, mais

tarde, patronos do Neoclassicismo naquele país.

Acompanhando as ideias iluministas em formação, os modelos clássicos penetraram

lentamente na França, ainda dominada pelo gosto rococó da nobreza cortesã. Os salões

organizados pela alta sociedade, como os famosos de Madame de Pompadour62

, mantinham

viva a arte da fantasia, do escapismo e do deleite, representada nos pincéis de François

Boucher e Jean-Honoré Fragonard. Este tipo de pintura eternizava na tela o prazer carnal que

era, na verdade, efêmero na vida real. As festas, a sensualidade, os jogos de sedução e os

61

A Guerra dos Sete Anos se iniciou em 1756 e a principal causa foi a disputa, entre a França e a Inglaterra, pelo

controle comercial e marítimo das colônias das Índias e da América do Norte. 62

Madame de Pompadour foi filha de um rico mercador e preparada, desde jovem, para ser amante do rei Luís

XV. Foi figura influente e reuniu em Versalhes salões importantes de arte e literatura.

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instantes dos encontros amorosos proibidos alimentavam os sentidos desejosos por mais

prazer.

O reinado de Luís XVI herdou não apenas a situação econômica catastrófica do seu

antecessor, mas também a paradoxal manutenção do requinte e do luxo associados à arte

cortesã. O Rococó, para os arautos do Iluminismo, simbolizava o extremismo da vida

dispendiosa e materialista da nobreza, em contraste com a miséria enfrentada pelo povo na

época. A iconografia do hedonismo soava como um desperdício, um deslocamento da real

função da arte e uma deformação dos seus valores éticos e morais.

Artistas jovens, agraciados pelo Prix de Rome, vivenciaram o contato direto com o

mercado de antiguidades e os círculos de discussão sobre os ideais de beleza, distintos da arte

oficial francesa. Joseph-Marie Vien, um dos patrocinados pela Academia, permaneceu em

Roma no período de 1743 a 1750, momento coincidente às escavações de Herculano e

Pompeia. Ao retornar a Paris, inicia um período de experimentação direcionado pelo conde

Caylus, um dos maiores colecionadores de antiguidades da França, cujo acervo contava com

peças egípcias, estruscas, gregas e romanas, entre outras. Interessante notar que o

Neoclassicismo inicial francês repetiu o mesmo sentido de renovação estética observado em

Roma, o que absorveria conotações políticas durante a fase revolucionária de David.

A influência de Caylus encontra-se na sua ação voltada a uma planejada mudança de

gosto, mesmo sendo ele um nobre formado nas antigas tradições aristocráticas que naquele

momento ainda se deliciavam com o Rococó. Sobre o conde, Albert Boime nos diz que:

Sua intensa dedicação – algo anormal em uma aristocracia de linhagem antiga

– se alimentava em parte dos contatos que mantinha com o Salão de Madame

Geoffrin e com os enciclopedistas, e em parte de seu desejo de iniciar um

Renascimento francês. Depreciava o Rococó como signo da decadência e

debilidade francesa e queria restabelecer a antiguidade dentro das residências

reais. Exerceu uma profunda influência na Academia e em meados do século,

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orientou um estudo mais profundo das formas antigas. (BOIME, 1994, vol.1,

p. 172)63

Vien se beneficiou do acervo de Caylus para executar numerosas obras, nas quais a

referência às pinturas encontradas em Herculano aparecia a partir do estudo dos álbuns de

gravuras do conde. A tela Vendedora de cupidos exemplifica com clareza as intenções de

Caylus em difundir um gosto renovado, pautado na estética classicista (Figura 64). Vien se

apropria do conceito geral do tema e inclui um cenário evocativo do novo momento, ainda

inclinado para o fim decorativo. Entretanto, as menções à gramática clássica, como podemos

observar na arquitetura com pilastras e na inclusão de peças e mobiliário pertencentes à

coleção de Caylus, apontam para outra direção. Esta ambientação em nada recorda os motivos

assimétricos das rocalhas, as linhas sinuosas e as influências orientais comuns do Rococó.

Apesar da delicadeza do tema, as figuras aparecem estáticas, rigidamente dispostas em

um espaço dominado pela horizontalidade. As expressões são contidas e o panejamento é

semelhante às esculturas gregas da fase clássica, ou seja, com caimento próximo ao corpo e

sem a movimentação esvoaçante comum das representações barrocas que foram mantidas na

fase rococó. As peças que compõem o cenário sugerem também o desejo de Caylus de exibir

a sua coleção, em uma postura propagandística que anuncia a mudança do modelo de mercado

e de consumidor de arte.

As figuras do primeiro plano se destacam de um fundo neutro, levemente iluminado.

Os contrastes cromáticos são referenciais do Renascimento, com tons vermelhos e azuis em

organização que busca principalmente o equilíbrio, valorizando o desenho dos corpos e a

textura dos elementos. Aquele efeito etéreo dos ambientes rococós, com as cores claras e

63

Madame Geoffrin foi organizadora de um importante salão literário que reunia frequentemente as grandes

figuras do Iluminismo francês.

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artificiais, desaparece para dar lugar espaço a um modelo mais sólido de composição de

figuras.

Figura 64 – Joseph-Marie Vien. Vendedoras de Cupidos. 1763. Óleo sobre tela. Musée National du Chateu de

Fontainebleau, Fontainebleau.

A iconografia é revelada com simplicidade, envolvendo apenas o essencial para o

entendimento do tema. No canto direito, a vendedora oferece um cupido a uma jovem situada

no lado oposto, a qual fita o olhar na criatura sem grande interesse. Apoiada em uma cesta

com mais dois cupidos, a vendedora mostra que há variantes desta curiosa mercadoria. Vien

substitui a jaula que aparece na gravura original pela cesta, o que sugere maior delicadeza na

representação. O tratamento neoclássico de iconografia típica do erotismo da Antiguidade

parece conciliar o hedonismo rococó com a forma que se insinuava como a nova proposta

decorativa. Albert Boime nos diz que:

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Entretanto, a obra de Vien ainda podia se encaixar perfeitamente em uma

decoração rococó, o que indica o seu papel mediador entre a frivolidade de

Boucher e o novo enfoque. Mesmo com suas claras divisões retilíneas, seu

aspecto em forma de friso e suas poses estáticas, ele ainda conserva os traços

festivos do estilo da realeza. A questão de vender deuses do amor a damas

podia satisfazer os patronos de Boucher e Fragonard que se sensibilizariam

com a mistura de estilos e fantasiariam com as possibilidades eróticas da

Antiguidade.(BOIME, 1994, vol. 1, p. 195)

O Neoclassicismo inicial francês, assim como o romano, reuniu em torno de si uma

classe média ascendente, clientela ávida em consumir, colecionar e conhecer arte. Todo

homem educado do período deveria ser um connaisseur e o grand tour era o destino de todos

aqueles abastados desejosos em possuir posição destacada na sociedade. Vale salientar a

proteção dispensada a muitos pintores nas duas cidades, como os casos mencionados do

cardeal Albani e do conde Caylus. Lilia Moritz Schwarcz, no livro O Sol do Brasil, obra em

que estuda a passagem de Nicolas-Antoine Taunay no país, nos diz que:

Assim, nesse momento, mais que a arquitetura ou os objetos de decoração,

eram as pinturas que excitavam a imaginação das classes políticas

ascendentes, à procura de símbolos de prestígio. A arte neoclássica traduziu e

transformou a paixão pelo começo em nostalgia de recomeço, e deu a esses

novos clientes um estatuto original. (SCHWARCZ, 2008, p. 62)

O Iluminismo francês foi, como mencionamos no primeiro capítulo, a vertente mais

radical desta corrente filosófica de cunho racionalista. Sua influência, decisiva como base

teórica da revolução de 1789, contribuiu para transformar o Neoclassicismo em uma arte do

Estado, visivelmente propagandístico e politizado, sobretudo na era napoleônica. A figura

dominante de Jacques-Louis David, o principal pintor da segunda geração neoclássica, deu à

arte francesa um rumo agora diferenciado daquele ainda praticado em Roma. A virtude, a

moral e o heroísmo ganharam um tom engajado que extrapolava a mera referência estética de

uma burguesia em busca de uma imagem para si. Agora, esta imagem era a do próprio poder,

pois a burguesia revolucionária havia derrotado o regime absolutista e assumido a direção do

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Estado. Neste contexto, a Académie Royale des Beaux-Arts passou a ser a instituição oficial e

propagadora do novo gosto, com um programa a serviço dos interesses governamentais.

No Brasil, a Aula Régia de Desenho e Figura trouxe do modelo italiano o exercício do

desenho como elemento fundamental do aprendizado, despojado das questões ideológicas da

vertente francesa. Somente com a chegada de Debret e Taunay, pintores formados na segunda

fase do Neoclassicismo de seu país, as diferentes concepções se esbarrariam em um ambiente

complexo, inicialmente hostil aos estrangeiros. Vale dizer que a clientela fluminense estava

habituada a consumir seus objetos a partir de contratos com artesãos, gente pertencente a uma

classe social mais baixa. Os franceses, por outro lado, eram artistas intelectuais, participantes

ativos das discussões sobre estética, além de engajados nos assuntos políticos do momento. O

choque de culturas trouxe como benefício, apesar do atraso de dez anos para a abertura da

Academia Imperial das Belas-Artes, um novo referencial social para o ofício de pintor.

4.1 A AULA RÉGIA DE DESENHO E FIGURA DE LISBOA: A CONCEPÇÃO

BURGUESA DE MERCADO DE ARTE

A Aula Régia de Desenho e Figura de Lisboa, conforme mencionado anteriormente,

foi criada no contexto das reformas educacionais iniciadas no ministério do Marquês de

Pombal e continuadas no reinado de D. Maria I. O motivo específico para a existência de uma

aula de desenho seguiu a mesma diretriz que espelhava na Europa os vários cursos destinados

à formação de artesãos voltados para o comércio. Após analisar a proliferação destas

instituições, Pevsner afirma que:

Esses exemplos são suficientes para demonstrar de modo irrefutável a enorme

importância das considerações de natureza econômica no desenvolvimento das

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academias em fins do século XVIII. Somente algumas instituições mais

antigas e com tradições arraigadas, como as de Florença e Roma, e um

número mínimo de novas instituições, como as de Londres, Madri, Turim e

Düsseldorf, puderam manter-se alheias a essa nova tendência, que era uma

decorrência natural da teoria do mercantilismo. Na visão dos economistas

mercantilistas, o principal dever do Estado era construir um sistema de

manufaturas cuja prosperidade deveria estimular a circulação de capitais e

fortalecer a exportação de mercadorias e a importação de ouro. (PEVSNER,

2005, p. 206)

Antes de 1781, ano inaugural da Aula Régia, outras iniciativas aconteceram em torno

da capacitação de profissionais para o mundo do comércio. Na década de 1760, houve no

Colégio dos Nobres uma aula de debuxo nitidamente filiada à utilidade industrial, assim como

a aula de desenho da Fábrica de Sedas, anteriormente citada. Em 1779, no Porto, foi criada a

aula de debuxo e desenho, associada à Junta da Companhia das Vinhas do Alto Douro,

instituição que contou mais tarde com Vieira Portuense como professor (FRANÇA, 1990, p.

65). Todos os projetos implementados neste período, alguns fracassados logo no início de seu

funcionamento, foram pautados na mesma necessidade de incutir o bom gosto na

industrialização de produtos nacionais.

A Aula Régia de Desenho e Figura aconteceu como uma consequência esperada após

tantas iniciativas de particulares. Tornar oficial o ensino de desenho era uma prerrogativa do

Estado que havia, desde a época de D. José I, beneficiado a classe burguesa comerciante.

Interessante mencionar que o Intendente Geral de Polícia, Pina Manique, manteve a sua aula

aberta, paralela ao projeto oficial e com os mesmos objetivos, conforme nos diz José-Augusto

França:

Idêntico espírito as animava, de resto: também, na sua Casa Pia, Pina Manique

se preocupava com o grau de perfeição das manufaturas que dependerem de

desenho e bom gosto, e, para a sua utilidade e desenvolvimento, desejava ele

ver contribuir o ensino das belas-artes. Esse mesmo espírito, vindo do

progressismo pombalino e marcado por uma certa confusão quanto às funções

artísticas, só muito depois seria satisfeito com a criação do Conservatório de

Artes e Ofícios, a par das Academias de Belas-Artes, obra revolucionária de

Passos Manuel, em 1836 (...). (FRANÇA, op. cit., p. 69)

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Do ponto de vista dos artistas, a abertura da Aula Régia de Desenho e Figura não

escondia a sofrida ausência de uma academia, injetando na discussão sobre a real natureza da

profissão de pintor a questão sobre as diferenças entre as artes aplicadas e as belas artes. José

Augusto França continua sua análise afirmando que:

No meio deste panorama, a dignidade da função artística, livre, nobilitada e

nobilitante, tal como pela Europa fora as academias a defendiam, desde o

século XVII, era apenas um secreto desejo dos artistas de que, num discurso,

em 87, Machado de Castro foi digno porta-voz. A Irmandade de São Lucas,

desde sempre inconsciente de tal problema, para nada servia – a não ser que

sofresse uma grande reforma. E essa foi a ideia que nasceu em 92, numa

reunião em casa de Pedro Alexandrino. (FRANÇA, op. cit., p. 69)

Apesar dos esforços dos pintores mais atuantes do período, os estatutos da Irmandade

de São Lucas não foram reformulados e nenhuma possibilidade aparente de se ter uma

academia portuguesa despontava no horizonte. O problema da filiação do aprendizado em

uma relação de subordinação aos interesses comerciais, essência da Aula Régia de Desenho e

Figura e de todas as outras instituições particulares com os mesmos fins, enfraquecia o outro

lado da profissão, ou seja, a concepção estética das belas-artes. Cirilo deixaria registrado, anos

mais tarde, o que se pensava no final do século XVIII sobre a pintura, como podemos ver na

seguinte passagem:

A Música é uma arte angelical e pode entreter deliciosamente qualquer

senhora, uma ou duas horas cada dia; a leitura a divertirá três ou quatro, mas a

Pintura faz parecer pequenos os maiores dias de junho e torna amável e

apetecível a mesma solidão: é uma arte não só imitadora de toda a Natureza,

mas também criadora; arte enfim, que simpatiza grandemente com a

vivacidade das pessoas espirituosas e discretas, muitas das quais desejam

saber pintar e nem sempre o conseguem; ou por viverem em terras aonde não

há quem as ensine, ou por se limitarem nas lições de uma prática muito

superficial. A prática é de absoluta necessidade e por ela se deve não só

começar, mas avançar muito, sem nunca a perder de vista; porém há uma

baliza além da qual senão podem fazer ulteriores progressos sem estudar a

fundo os preceitos teóricos. (MACHADO, 1817, p. 2)

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As críticas de Cirilo nesta breve citação sugerem o seu descontentamento com o

ensino então praticado em Portugal. Quando menciona o desejo não realizado de pessoas que

gostariam de aprender a arte da pintura, complementa apontando a falta de profissionais aptos

a ensiná-la, uma alusão clara a situação de Lisboa naquele momento. O tom mais duro

aparece justamente no tocante à prática, segundo ele superficial e sem o acompanhamento

teórico indispensável ao artista criador. O alvo parece certo: a Aula Régia de Desenho e

Figura, com seu sistema de aprendizado focado preferencialmente na técnica.

As reformas nas principais academias europeias do século XVIII e a criação de novas

escolas continham, em sua essência, dois objetivos principais e inseparáveis: a elevação das

belas-artes como difusão do bom gosto necessário à nação e a promoção de produtos

relacionados à atividade fabril, como os estuques, os vidros, as sedas e as porcelanas, entre

outros (PEVSNER, 2005, p. 202). No caso português, somente o segundo objetivo parecia

fazer sentido em um país ávido em concorrer com os demais no mundo dos negócios. Como

mencionamos acima, as várias aulas de desenho inauguradas como projetos de empresas

denunciam esta visão funcional do desenho e da pintura. Faltava, então, o ambiente reflexivo

de uma academia para dar fundamento teórico à atividade prática.

A Aula Régia de Desenho e Figura de Lisboa oferecia apenas o básico para o ingresso

do aluno no mundo dos ofícios, mesmo tendo iniciado a formação de nomes como Vieira

Portuense e Domingos Antonio de Sequeira. José-Augusto França, sobre o assunto, relata

que:

Tratava-se, porém, de um ensino elementar para a admissão ao qual se exigia

apenas saber ler e escrever e as quatro operações. No curso de desenho

copiavam-se estampas e, mais tarde, relevos; na arquitetura aprendiam-se

elementos de aritmética e de geometria, as cinco ordens vitruvianas, planeação

e noções de solidez, de construção e de ornamentação. (FRANÇA, 1990, p.

67)

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O autor complementa a seguir:

Os resultados não eram, porém, brilhantes, e raros os desenhistas competentes

para tornarem-se discípulos. De tal escassez resultava a possibilidade de

encomendas na capital, que os faziam viver numa mediania sem relevo. Em

87, Machado de Castro escrevia a frei Manuel do Cenáculo, o erudito

arcebispo de Évora, que o consultara sobre o assunto: Dificultoso é, Exmo

. Sr.,

achar um mestre de desenho; e ainda mais difícil (achando-se) querer ele

deixar a corte. (FRANÇA, op. cit., p. 67)

A rara oportunidade de completar os estudos em Roma consistia em privilégio dos

poucos agraciados por apadrinhamento particular ou pelo sistema oficial. O contato com o

modelo acadêmico, que valorizava também a reflexão teórica sobre o fazer, apresentava uma

dimensão mais intensa sobre o ofício. O pintor deveria estar inserido em um mercado

dinâmico e tecnicista do mundo do comércio, mas, ao mesmo tempo, atualizar-se sobre o seu

próprio ato criativo. Significa dizer que a profissão englobava também uma formação

intelectual que buscava dar subsídios para o conhecimento da arte do passado, o estudo dos

tratados então em voga e a capacidade de agir criticamente em seu meio. Este segundo

aspecto faltava à Aula Régia de Desenho e Figura, pelo menos de forma consistente e

sistematizada. Esta segunda via, de teor reflexivo sobre o fazer, era justamente a peça faltante,

notada pelos artistas do momento. Somente com a aquisição desta peça, o mercado português

poderia se colocar com mais solidez no panorama europeu de produção e consumo de arte.

Bourdieu, em uma interessante passagem, menciona um aspecto que nos serve para esta

análise. Ele nos diz que:

No momento em que se constitui um mercado da obra de arte, os escritores e

artistas têm a possibilidade de afirmar – por via de um paradoxo aparente – ao

mesmo tempo, em suas práticas e nas representações que possuem de sua

prática, a irredutibilidade da obra de arte ao estado de simples mercadoria e

também, a singularidade da condição intelectual e artística. (BOUDEIU, 2007,

p. 103)

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O que percebemos no ambiente português da virada do século XVIII para o XIX, é

justamente a pressão dos artistas sobre o mercado de uma capacitação prático-teórica sobre o

objeto estético. Além de seu aspecto econômico e funcional, a obra traz consigo certo grau de

autonomia já percebido naquele momento, o que Boudieu havia identificado como processo

de construção de um campo próprio de atuação. Esta percepção, em Portugal, foi possível

através do intercâmbio com escolas que alcançaram primeiramente esta autonomia do campo

artístico, muito pela ação das relações entre as academias, os encomendantes de perfil cada

vez mais heterogêneo e o sistema econômico consumidor e propagador de bens simbólicos.

A formação de Domingos Antonio de Sequeira na referida aula, onde foi aluno desde

os seus treze anos, traz aspectos que confirmam as críticas dos pintores mais velhos. Segundo

Rui Afonso Santos:

Largamente praticadas por obrigação e dever de ofício, estas incursões de

Sequeira no domínio das chamadas artes menores não deixaram, porém, de

revelar o talento, a inquietação e o engenho de um artista capaz de entender e

dar resposta às especificidades da encomenda e do quotidiano, e também

experimentar e conhecer as possibilidades da tecnologia e a natureza dos

materiais, numa pesquisa rigorosa orientada para a natureza dos objetos e sua

adequação às necessidades sociais. Tal espírito de pesquisa contínua e

metódica permite considerar Sequeira como um designer, atividade

secundarizada no âmbito do estatuto maior de pintor. (SANTOS, 1969, p. 68)

Mais adiante continua:

De fato, o próprio decreto que em 1781 instituía a Aula Régia de Desenho e

Figura, na qual o jovem Domingos Antonio se matriculara, esclarecia ela que

se fazia indispensável para a facilidade e maior perfeição de muitas artes,

nomeadamente as decorativas, numa continuidade da visão pombalina que

previra o ensino do desenho como sustentáculo do desenvolvimento das

atividades fabris (...). (SANTOS, op. cit., p. 68)

A incursão de Sequeira na chamada arte decorativa o acompanhou durante toda a sua

vida profissional e deveu-se à Aula Régia de Desenho e Figura as orientações inaugurais para

este ramo de atividades. Em relação ao ensino do desenho mais próximo do que se fazia nas

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261

academias, o curso, pelo menos na teoria, envolvia as três principais fases formativas, como a

cópia de gravuras, os exercícios com gesso para a tradução do tridimensional para a superfície

bidimensional e, finalmente, o estudo anatômico a partir do natural, ou seja, do modelo vivo.

Entretanto, vários problemas ocorreram com a última fase, desde a dificuldade de encontrar

um modelo disposto a ficar nu até as reações mais puritanas de uma parcela da sociedade

(FRANÇA, 1990, p. 66). Na prática, a aula enfatizava a cópia de estampas e é sintomático que

o desenho que valeu o primeiro prêmio a Sequeira, em 1786, tenha sido avaliado justamente

pelo grau de semelhança com a original que ele precisou copiar (Figura 65).

Figura 65 – Domingos Antonio de Sequeira. Ismael expulsando Agar. 1786. Desenho

a sanguínea. 592 x 495cm. MNAA, Lisboa.

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262

Como discutido anteriormente, o cliente burguês em Portugal estava em plena

formação como consumidor de arte desde a fase pombalina. Os exemplos dos comerciantes

estrangeiros atuantes em várias localidades do país, sobretudo ingleses, colaboravam para dar

visibilidade à arte como um bom negócio. O que percebemos na última década dos Setecentos

e nas primeiras do século seguinte é a urgência em atender a uma classe que procurava

resultados rápidos, com artistas formados na própria terra e, por isso mesmo, com serviços

mais baratos.

O despertar de uma nova consciência sobre o fazer artístico brotaria apenas ao longo

da década de 1820, com a atuação marcante de um Domingos Antonio de Sequeira mais

maduro. A abertura da Academia de Belas-Artes de Lisboa, em 1836, apesar de tardia,

aconteceu como consequência deste período de mudanças. A partir de então, Portugal

finalmente embarcou no mesmo projeto de ensino que movimentava as principais capitais

europeias e que o Brasil já experimentava há uma década.

4.2 A AULA RÉGIA DE DESENHO E FIGURA DO RIO DE JANEIRO:

PARADOXOS E CONTRADIÇÕES

As aulas régias foram instituídas a partir do programa de reformas orquestradas no

reinado de D. José I, sob a ação do Marquês de Pombal. A expulsão dos jesuítas, até então os

principais detentores das instituições de ensino do Reino, deixou um vazio que precisou ser

resolvido pelo Estado, fazendo de Portugal o primeiro a estatizar o ensino e torná-lo público.

As reformas aconteceram em duas etapas, sendo a primeira, de 1759, voltada para os

chamados Estudos Menores. Esta fase da Educação correspondia ao que hoje consideramos de

ensino fundamental e médio, em um programa que incluía as primeiras letras, as aulas de

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263

contar e as humanidades, ou seja, as aulas de Gramática Latina, Gramática Grega e Retórica

(CARDOSO, 2002, p. 114).

A segunda etapa ocorreu em 1772 e foi direcionada à reforma do ensino superior,

propriamente o da Universidade de Coimbra. Ambas complementavam o ideal ilustrado de

valorização das ciências e do pensamento racional, em contraponto ao modelo considerado

ultrapassado dos jesuítas. As demais aulas, ou disciplinas, foram criadas na medida em que se

faziam necessárias, como foi o caso da Aula Régia de Desenho e Figura de Lisboa e, mais

tarde, a do Rio de Janeiro. Estas reformas não estavam restritas à Metrópole e, desde o alvará

de 1759, ficou explícita a sua extensão a todo o reino.

A historiadora Tereza Maria Cardoso, em seu minucioso estudo sobre as aulas régias

no Rio de Janeiro, destaca, a partir da análise do alvará de 1759, o tom agressivo do rei contra

o sistema jesuítico. Ela nos diz que:

Sendo a Companhia de Jesus, portanto, a responsável pela decadência da

educação no reino português, o melhor era proibir radicalmente a sua ação. De

acordo com os estudos que abordaram o tema, a difícil situação enfrentada

pelos jesuítas em Portugal, no ano de 1758, decorria também da interferência

do Vaticano, uma vez que o Papa Benedito XIV, pelo Breve de 1o

de abril de

1758, instituiu a reforma geral da Companhia de Jesus, como ação disciplinar,

sendo então nomeado o patriarca de Lisboa, Cardeal Saldanha, como

reformador responsável para executar tal tarefa em todo o reino de Portugal.

(CARDOSO, op. cit., p. 117)

Mais adiante, complementa:

Assim, o alvará de 28 de junho de 1759 implantou, ainda que precariamente,

um sistema de ensino diferente do que existia na época dos jesuítas, tendo em

vista que se centrava no Estado o controle do processo educativo, com a

responsabilidade não apenas de escolher, por concurso, os professores

públicos, como também fiscalizá-los, de acordo com as diretrizes político-

pedagógicas traçadas pelo governo monárquico. (CARDOSO, op. cit., p. 146)

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264

Foram também os jesuítas os maiores impulsionadores das artes no início da

colonização, trazendo para o Brasil o modelo de oficinas inicialmente praticado pelos frades.

Construíram seus templos, decoraram seus interiores e serviram como parâmetro para as

outras Ordens Primeiras, contribuindo para que a arte dos Seiscentos assumisse uma feição

conventual e monástica. O sistema de mestre e discípulos migraria para além muros das

igrejas, fomentando a criação de oficinas de leigos que floresceriam ao longo do século

XVIII.

A estrutura de uma oficina de pintura oferecia uma formação empírica, a qual o

discípulo aprendia primeiro a manejar o seu material de trabalho, como a preparação do

suporte e a feitura das tintas. A habilidade maior exigida do aluno era a capacidade de copiar

gravuras, ou seja, de transpor a imagem reduzida e em preto e branco para a tela de maiores

dimensões. Os volumes, as texturas, a profundidade, as proporções anatômicas e o uso correto

das cores consistiam em desafios cotidianos, pois geralmente as gravuras que serviam de

modelo eram de qualidade muito variada.

Este tipo de processo de aprendizado era, na verdade, uma variante resumida e arcaica

do sistema europeu, ficando o artista colonial restrito à fase inicial de um programa muito

maior. Um ateliê de renome parisiense ligado ao círculo acadêmico, por exemplo, continha

alguns estágios, como degraus a serem galgados pelo aprendiz. O primeiro contato com o

ofício concentrava-se na apresentação dos materiais e na aquisição básica das técnicas

fundamentais para o seu correto manejo. Dominar os instrumentos de trabalho exigia tempo e

dedicação e não surpreende que o assunto tenha sido abordado por Cenino Cenini na parte

inicial de sua obra, O livro da arte, que consideramos inaugural da História da Arte ocidental.

A cópia de obras consagradas, fase seguinte da formação do aprendiz europeu, era a

última etapa percorrida pelo aluno da oficina colonial. A raridade de pinturas originais

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restringiu ainda mais o processo de aprendizado, cabendo à gravura a função quase exclusiva

de transmitir as informações plásticas e iconográficas ao jovem pintor. É razoável pensar que

as oficinas setecentistas não tenham praticado a aula do modelo vivo, o que apareceria mais

tarde, pelo menos supostamente, na Aula Régia de Desenho e Figura.

Se analisarmos mais a fundo o contexto colonial, veremos que não cabia naquele

momento a formação de artistas inventores, pois a Igreja tridentina não estava aberta aos

devaneios de criatividade. A cópia de modelos oriundos da arte do passado, seja de Rafael, de

Rubens e de tantos outros nomes aclamados, significava a atestação por parte dos religiosos

de imagens incorporadas às bíblias e aos missais, além das gravuras de registros de santos.

Ainda no calor do Concílio de Trento, o Cardeal Gabriele Paleotti, participante ativo deste

concílio, escreveu um tratado sobre a pintura sagrada e a passagem seguinte é reveladora

neste sentido:

Gostaríamos de dizer primeiramente ao leitor que toda novidade, ainda que

tocante a coisas profanas, deve ser mantida sob suspeita e somente por boas

razões pode ser aceita (...). Não queremos, porém, que alguém, abalado por

essa proposição, nos julgue rígidos e severos pela nossa vontade de restringir a

fantasia engenhosa dos pintores. (...) Quanto às pinturas sagradas, dever-se-á

estabelecer as que o Concílio de Trento recomenda expressamente (...) sua

matéria deve ser tal que não sofra nem alteração nem inovação por parte

daqueles que não têm autoridade legítima. (...) afirmamos que o ofício do

pintor é imitar as coisas como são na natureza, e tão só, tais como se

apresentam aos olhos dos mortais; não lhes cabe ir além desses limites, pelo

contrário: ele deve deixar aos teólogos e mestres na doutrina sagrada o

cuidado de estendê-los a sentimentos mais elevados e misteriosos.

(PALEOTTI, apud LICHTENSTEIN, 2004, vol. 2, p. 79)

Assim, parece-nos injustificável qualificar o pintor colonial como um simples copista,

no sentido depreciativo da crítica modernista que vigorou no círculo de historiadores da arte

brasileiros até a primeira metade do século XX. A cópia era desejável e, se remontarmos a sua

prática ao início da colonização, veremos que os jesuítas transplantaram para o Brasil um

modelo de formação compatível com os preceitos contrarreformistas. A habilidade do pintor

colonial estava na sua capacidade de realizar a tradução de um meio de dimensões e técnicas

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266

específicas a outro meio completamente diverso. Firmado no Brasil desde o século XVI, este

sistema de ensino e aprendizagem voltou-se para a valorização da figura do cliente como

personagem elementar na relação de trabalho, deixando remota a margem de inventividade

que se tornou problema na Itália com alguns desvios polêmicos de Caravaggio, por exemplo.

Como analisado anteriormente, as oficinas serviram basicamente às irmandades

religiosas. A heterogeneidade destas instituições no Rio de Janeiro proporcionou a criação de

oficinas de qualidades também variadas, revelando um movimento benéfico tanto para os

bons pintores quanto para aqueles de formação medíocre. A clientela religiosa solicitava o

serviço do pintor com o modelo previamente escolhido, cabendo a ele copiá-lo conforme a

vontade do encomendante.

No mundo religioso, a pintura era a linguagem que figurava abaixo na escala de

valores. Somente após a construção do templo e da composição dos espaços de culto com as

esculturas dos santos, a pintura seria requisitada, caso houvesse verba para tal. Neste sentido,

observamos que as funções principais da pintura acabavam oferecendo trabalho para artistas

de níveis variados. Havia as bandeiras de procissão, os motivos florais ou abstratos puramente

decorativos, os painéis narrativos, os retratos de nobres e os forros que complementavam a

ambientação espiritual. Os pintores também eram requisitados para aplicar a carnação e o

estofamento nas esculturas e para dourar todo o material de talha. Um dos raros contratos de

trabalho sobreviventes do Rio de Janeiro, o referente aos trabalhos realizados pelo português

Caetano da Costa Coelho para a Venerável Ordem Terceira de São Francisco da Penitência,

revela a variedade de funções destinadas a uma única oficina. Nele, o pintor se compromete a

dourar:

(...) toda a obra de talha que se acha na capela da ordem, do arco para dentro,

como também o pé do Calvário do Senhor que está na tribuna da mesma

capela, que se há de fazer, e mais a pintura de todo o teto que há de ser da

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melhor perspectiva que se assentar, e os oito painéis da mesma capela serão

pintados com os santos que se lhe mandar.64

O sistema de oficinas continuou ativo ao longo do século XIX, paralelo à Aula Régia

de Desenho e Figura e, mais tarde, à Academia Imperial das Belas Artes. Esta permanência

deve-se, sobretudo, à demanda de serviços oriundos dos espaços religiosos, pois a Igreja

manteve a sua força ao longo dos dois períodos imperiais. Conforme investigou Adolfo

Morales de los Rios Filho, o pintor Raimundo da Costa e Silva exerceu sua profissão até a

década de 1850, com sua aula de pintura localizada na Rua da Lapa, em frente ao Convento

do Carmo (MORALES DE LOS RIOS FILHO, 1942, p. 262).

Se houve um laço de continuidade do tipo de relação entre cliente e pintor no que se

refere à produção destinada aos espaços de culto religioso, uma nova necessidade, sentida

desde as últimas décadas do século XVIII, exigiu na Colônia novos direcionamentos. Desde o

governo do vice-rei Luís de Vasconcelos, as atribuições dos pintores e escultores denotavam

certa ampliação de funções e de repertório, expandindo a iconografia para além das temáticas

sacras. As paisagens de Leandro Joaquim e as figuras mitológicas de Mestre Valentim, ambos

recrutados pelo vice-rei na ocasião das obras de melhorias da cidade, demonstram este

alargamento de limites.

É certo que a história econômica do período final do Antigo Regime português vem

demonstrando que houve visível prosperidade nos dois lados do Atlântico, fruto do

pensamento ilustrado da época (NOVAIS, 2005, p. 176). A dependência do mercado externo

não escondia uma movimentação interna colonial, com acúmulo de capital e beneficiadora da

classe burguesa mercantil. Apesar da proibição de fábricas, produtos agrícolas e artesanais

circulavam em uma rede que interligava as regiões e as colônias ultramarinas, transformando

64

Arquivo da Venerável Ordem Terceira da Penitência. Livro 2o de Escrituras, 1725 a 1746. Ano 1732.

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268

o Rio de Janeiro em importante núcleo econômico da virada do século XVIII para o seguinte

(FRAGOSO, 1998, p.332).

Foram os negociantes de grosso trato os protagonistas da movimentação intensa de

capital interno, fomentando um mercado que prosperaria desde a década de 1760. No intuito

de identificar estas personagens, encomendantes de pintura em potencial, verificamos alguns

fatos que são interessantes para análise. O primeiro ponto refere-se à nomeação de D. Luis de

Almeida Portugal e Mascarenhas, o Marquês de Lavradio, para assumir o vice-reinado no Rio

de Janeiro, em 1769. O deslocamento do então governador da Bahia para a capital deveu-se,

principalmente, pela sua ligação direta com Marquês de Pombal. A política metropolitana de

aumento de rendimentos precisava de um nobre de confiança para reorganizar a economia

colonial, função maior de Lavradio.

Nos seus dez anos de governo, o vice-rei criou mecanismos para controlar a alfândega

e a movimentação do porto, combatendo a prática comum de contrabando. Incentivou a

ampliação das culturas agrárias e, principalmente, estabeleceu condições para que os

negociantes de grosso trato pudessem atuar. Estes constituíam o braço da Coroa na

complicada rede de arrecadação, pois o sistema de contratos permitia a melhor ordenação das

finanças, como a cobrança de dízimos, a responsabilidade pelo trabalho alfandegário e o

controle dos tributos sobre mercadorias, entre outros serviços. Segundo João Fragoso:

Assim, o tipo de sociedade de Antigo Regime presente no recôncavo da

Guanabara dependia, cada vez mais, dos negociantes. Sem estes, as plantações

de açúcar e as roças de alimentos dos naturais da dita cidade sumiriam, como

aliás, atestam as diversas cartas enviadas por cidadãos e camaristas do Rio a

Lisboa. Em outras palavras, era de se esperar que os cidadãos do Rio de

Janeiro, particularmente os que viviam da lavoura, enredados em dívidas para

o custeio de suas plantações e a aquisição de escravarias, fossem mais

complacentes com seus credores nas eleições camaristas. (FRAGOSO, 2007,

p. 39.

Mais adiante complementa:

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Afinal, os empresários preteridos, além de donos de uma acumulação

mercantil que alcançava o Oriente, tinham as devidas credenciais hieráticas

concedidas pelo poder Central. Por serem familiares do Santo Ofício e

cavaleiros da Ordem de Cristo, tinham insígnias de autoridade, reconhecidas

nos quatro cantos de um império ultramarino de Antigo Regime (...).

(FRAGOSO, op. cit., p. 39)

Esta classe emergente logo superaria a tradicional elite rural no que se refere a

privilégios e elevação do estatuto social. Vimos os nomes de Anacleto Elias da Fonseca e

Antonio Pinto de Miranda como representantes dos negociantes e agraciados com a Ordem de

Cristo, além de assumirem o cargo de provedores da Irmandade da Misericórdia. Como

agentes notáveis do desenvolvimento comercial, os negociantes contribuíram para a

diversificação maior da economia colonial, em especial do Rio de Janeiro. É neste contexto

que a Aula Régia de Desenho e Figura foi inaugurada em 1800.

Este tipo de instituição não tocava diretamente as irmandades no sentido da

composição do espaço religioso, pois, como mencionamos acima, elas continuaram

consumindo as suas imagens oriundas do sistema tradicional de produção. Dentro da esfera de

atuação das irmandades, as oficinas seriam as beneficiadas com a formação melhor de seus

aprendizes e a sua inserção no mercado de trabalho. A Aula Régia, por outro lado, não foi

apenas fruto do desejo de Manoel Dias de Oliveira em ter em sua terra natal um sistema de

ensino mais aprimorado do que aquele na qual aprendeu as primeiras lições. Sozinho, o pintor

não seria capaz de introduzir uma nova forma de produção sem que houvesse clientes

interessados. Em uma época na qual a arte dependia exclusivamente da encomenda, a Aula

Régia de Desenho e Figura se enquadrava nitidamente na relação entre o consumidor e a mão

de obra.

O próprio envio de Manoel Dias de Oliveira a Portugal sugere uma intencionalidade

que remete ao mundo comercial, pois foi a partir do apadrinhamento de um rico comerciante

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português estabelecido no Rio de Janeiro que tornou a viagem possível. Esta figura vem

mencionada em vários estudos do século XIX, mas não encontramos nenhum documento

identificador de tal personagem. Sabemos, a partir destas pioneiras biografias, que os seus

negócios giravam em torno da ourivesaria, motivo do investimento na formação do jovem

Dias de Oliveira. Sobre esta passagem, Moreira de Azevedo nos diz que:

Manoel Dias de Oliveira nasceu na Vila de Macacu no meado do século

passado; os anos da infância correram para ele no lugar de seu nascimento,

mas apenas moço, veio para o Rio de Janeiro aprender a arte de ourives, e

então entusiasmaram-no as pinturas de Leandro Joaquim e de outros artistas,

de sorte que, dedicando-se pouco a arte de ourives, procurou estudar o

desenho, e esforçou-se por ir a Lisboa para ouvir as lições de bons pintores.

Alcançando a proteção de um negociante, para o qual fizera diversas obras de

prata, dirigiu-se com ele à cidade do Porto; porém logo depois faleceu seu

protetor, e sem amparo ficou o artista, que viu-se obrigado a servir de criado

de outro negociante, que estivera no Brasil. (AZEVEDO, 1969, p. 276)

Moreira de Azevedo escreveu sua monumental obra O Rio de Janeiro em meados do

século XIX, ainda sob o calor romântico característico do período. Quando menciona que

houve a vontade de Manoel Dias de Oliveira de estudar em Lisboa, o faz sem levar em

consideração que um descendente de escravos não teria condições de almejar tal

empreendimento. A viagem ocorreu provavelmente pelo interesse do comerciante citado em

ter um hábil artesão por perto, pois o trabalho de ourives exigia bom desenho para os projetos

ainda determinados pelo gosto barroco e rococó. As circunstâncias acabaram o levando a se

matricular na Aula Régia de Desenho e Figura de Lisboa, instituição que ofereceria ao pintor

melhores condições de aprimoramento de suas aptidões ao mundo das artes decorativas e ao

da pintura em particular65

.

Sua formação inicial aconteceu ainda no Rio de Janeiro, sob as orientações de um

mestre pintor local. Acreditamos que Manoel Dias de Oliveira tenha frequentado ou a aula de

Manoel da Cunha e Silva ou a de Leandro Joaquim, pois eram as oficinas mais destacadas da

65

Apesar da proibição do exercício da ourivesaria no Brasil, por Carta Régia de 30 de junho de 1766, a atividade

seguiu na clandestinidade nas principais cidades coloniais.

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segunda metade do século XVIII. O certo é que chegou a Portugal com alguma experiência,

pois na década de 1780, época de sua viagem, o artista já estava na casa dos vinte anos66

.

A sua passagem pela Aula Régia de Desenho e Figura revela fatos interessantes para

um artista colonial. Travou amizade com Domingos Antonio de Sequeira, um dos expoentes

do Neoclassicismo português e com quem viajou para Roma sob patrocínio régio. O único

indício da estada de Manoel Dias de Oliveira na Itália provém de uma gravura realizada para

o Intendente de Polícia Pina Manique, de 1798 (Figura 66). Interessante mencionar que neste

ano a Academia Portuguesa de Roma foi fechada por causa das ameaças de invasão do

exército napoleônico, motivo que teria levado ao encerramento das atividades de Dias de

Oliveira na Europa.

Na parte inferior da gravura aparecem os seguintes dizeres:

Fatto milagrozo de Santa Izabel Rainha de Portugal, – dedicado e offerecido

ao Illmo. Sr. Diogo Ignacio de Pina Manique, Fidalgo da Casa de Sua

Majestade do seu Conselho Commendador da Commenda de Nossa Senhora

da Ora da Ordem de Christo, Sr. Donatario e de Solar da Villa Manique –

Intendente Desembargador do Passo Intendente Geral da Polícia da Corte e

Reino. Aberto do coadro original de um seu alumno da Regia Academia de

Portugal em Roma no anno de 1798. – Manoel Dias de Oliveira Brazilience

inventou e abriu em Roma no anno de 1798. (SANTOS, 1942, p. 520)

A imagem possui as características principais do Neoclassicismo, como a

horizontalidade influenciada pelos frisos, a composição linear dos corpos e dos panejamentos,

a forma escultórica das figuras e a distribuição harmônica das massas. O desenho é, sem

dúvida, o valor principal da obra, revelando a maturidade de Manoel Dias de Oliveira na

ocasião. O destaque encontra-se na variedade de poses das personagens, apresentando um

artista em pleno domínio da anatomia. Neste estágio, conforme as palavras que acompanham

a imagem, o artista havia se tornado um compositor, fase final da formação acadêmica.

66

Manoel Dias de Oliveira nasceu em dezembro de 1763, falecendo em Campos no dia 05 de abril de 1837.

Segundo a certidão de óbito, conservada no Arquivo Nacional, o artista faleceu com 73 anos. Ver Livro de

funerais e mais sufrágios da Santa Casa de Misericórdia, de 1792 a 1854, folha 22.

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Figura 66 – Manoel Dias de Oliveira. Fato milagroso de Santa Isabel, Rainha de Portugal. 1798. 42 x 34 cm.

Gravura. Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro.

O tema exalta as virtudes femininas, programa típico do Neoclassicismo que

objetivava apagar a imagem sensual e festiva das representações rococós. A cena resgata uma

personagem famosa de Portugal, a rainha Isabel de Aragão. Conhecida por sua devoção e

obras de caridade, Isabel encontra problemas com as suas ações ao se casar com o rei D.

Diniz, no final do século XIII. Ao sair com moedas para distribuir aos pobres, o rei desconfia

e pergunta à esposa o que ela estava carregando, respondendo Isabel que eram apenas rosas.

Ele pede para ver a bolsa, pois sabia que seria impossível a rainha ter estas flores no inverno.

Ao abrir a bolsa, D. Diniz se surpreende ao ver tantas rosas ainda frescas.

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As referências a Manoel Dias de Oliveira após seu retorno ao Rio de Janeiro

recomeçam em 1800, com o ofício dirigido à corte redigido pelo vice-rei, datado de 5 de

novembro. O documento traz a solicitação para a abertura da Aula Régia de Desenho e Figura

e a indicação do artista como professor67

. O curso foi estruturado em sua própria casa, na Rua

do Rosário, em frente à Igreja de Nossa Senhora da Conceição e Boa Morte dos Homens

Pardos, antiga Igreja do Hospício (GONZAGA-DUQUE, 1995, p. 86).

A historiadora Marcia Cristina Leão Bonnet, na pesquisa intitulada Entre o artifício e

a arte: pintores e entalhadores no Rio de Janeiro setecentista, encontrou um dado

interessante no testamento de Mestre Valentim: a presença de Manoel Dias de Oliveira como

uma das testemunhas (BONNET, 1995, p. 128). O pintor aparece também como avaliador dos

livros do escultor e, segundo a transcrição da pesquisadora, ele próprio declara que:

Manoel Dias de Oliveira Professor Régio de Desenho e Figura desta corte por

S. A. R. Atesto que fui convidado para avaliar sete livros pertencentes a

diversas Artes, a que o país não dá a devida estimação vão avaliados em um

preço muito módico em razão do seu merecimento.(BONNET, op. cit., 129)68

A data do inventário é de 24 de setembro de 1813. Importante destacar a crítica de

Manoel Dias de Oliveira sobre a pouca valorização da arte no Brasil e o conhecimento do

conteúdo dos livros, pois ele considera ter avaliado o preço inferior ao real valor das obras.

Aparecem na relação A perspectiva de Pozzo e O livro de arquitetura de Vinhola, obras de

grande importância para as oficinas do período.

A Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro conserva em seu acervo de iconografia

precioso conjunto de exercícios de desenho de dois alunos da Aula Régia de Desenho e

Figura, o pintor Francisco Pedro do Amaral e o desconhecido Clemente Magalhães de Bastos.

Do último, existem três estudos de cabeça, uma cópia de osso e um desenho de friso com

67

Folha 60 do Livro 10 das Publicações do Arquivo Público Nacional, volume II, página 272. 68

O inventário encontra-se no Arquivo Nacional, Março 464, Número 8870, Caixa 7148.

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rosáceas. As pranchas são datadas e revelam fatos interessantes para a análise, apesar da

escassez de exemplares. De Francisco Pedro do Amaral restou apenas um estudo de cabeça

feminina.

Todas as pranchas trazem na parte superior a indicação de quando o aluno entrou no

curso de Manoel Dias de Oliveira. Francisco Pedro do Amaral aparece como o mais antigo,

datando de 26 de dezembro de 1803 o seu ingresso69

. Clemente Magalhães de Bastos se

matriculou pouco menos de cinco anos depois, no dia 5 de setembro de 1808. A parte inferior

das pranchas indica o ano de feitura de cada exercício e o autor do desenho, conforme

podemos ver no estudo de cabeça de Clemente Magalhães de Bastos (Figura 67).

O rosto aparece de perfil, com toques de emotividade surerida pela boca levemente

aberta, a sobrancelha franzida e o olhar arregalado. Este desenho, datado de 1810, mostra

claramente se tratar de uma cópia de gravura, como parte inicial da formação do aluno. Os

dizeres que conferem a autoria trazem a seguinte mensagem: Clemente Magalhães de Bastos

copiou na Aula Régia do Rio de Janeiro 1810 Professor M. D. d Olivra. A menção à cópia

aparece como consciência real de que a proposta do curso não era a de eliminar esta prática,

tão comum e necessária nas oficinas coloniais. O que a Aula Régia de Desenho e Figura

aplicou como processo inovador foi a introdução do aprendizado do desenho como parte

essencial e básica para a profissão de pintor.

69

As frases são sempre as mesmas, no seguinte modelo: Começou o dezenho a...

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Figura 67 – Clemente Magalhães de Bastos. Estudo de cabeça masculina. 1810. FBN, Rio de Janeiro.

Os escritos mais antigos, como a pequena biografia composta por Moreira de

Azevedo, costumavam insistir na afirmação de que houve aula do nu, o que nos traz algumas

questões para reflexão (AZEVEDO, 1969, p. 276). O nu seria um sério problema na

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sociedade extremamente conservadora do Rio de Janeiro do início do século XIX, como o foi

em Lisboa, na ocasião da abertura da Aula Régia naquele país. Contudo, o afrouxamento

maior das regras sentido na Colônia poderia ter possibilitado algum exercício do tipo, tendo,

por exemplo, escravos como modelo. A ausência de documentação precisa sobre a atuação da

aula nos deixa apenas hipóteses.

Os dois outros estudos de cabeça de Clemente Magalhães de Bastos nos fornecem

indícios de que são também cópias de gravuras, como exercícios preliminares para a

composição posterior de corpo inteiro (Figuras 68 e 69). Fazem parte do mesmo estilo da

imagem anterior, com ênfase nos detalhes de expressão na área do rosto e no uso dos

sombreados para a criação de efeito de volume. São três fisionomias bem diferentes entre si e

aparentam, a partir do intervalo de dois anos entre as duas – 1810 e 1812 – ter havido

repetição de exercícios até o pleno domínio naquele assunto por parte do aluno. Interessante

notar nestas duas imagens, em comparação com a primeira citada, a parte inacabada da parte

inferior da cabeça, o que parece indicar que toda a atenção recaiu no tratamento da

expressividade das figuras.

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Figuras 68 e 69 – Clemente Magalhães de Bastos. Estudos de cabeça masculina. 1810 e 1812. FBN, Rio de

Janeiro.

A prancha de Francisco Pedro do Amaral exibe o teor da mesma atividade que

buscava desenvolver a capacidade de captar expressões, ordenar as partes de acordo com as

corretas proporções e criar a volumetria, fundamental para conferir a sensação de

tridimensionalidade (Figura 70). A figura feminina, de idade avançada, fita o espectador com

olhar de desdém. Diferente dos perfis de Clemente Magalhães de Bastos, o presente desenho

está quase frontal, favorecendo a percepção das emoções transmitidas pelos traços de

Francisco Pedro do Amaral. Pela qualidade dos contornos e sutileza das gradações de cinzas,

esta prancha, datada de 1805, desvela a sua longa jornada formativa,desde os tempos em que

iniciou os estudos com o cenógrafo português Manoel da Costa e com o pintor José Leandro

de Carvalho, antes de ingressar na Aula Régia de Desenho e Figura.

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278

Figura 70 – Francisco Pedro do Amaral. Estudo de cabeça feminina. 1805. FBN, Rio de Janeiro.

A relação íntima entre a Aula Régia de Desenho e Figura e o trabalho artesanal, este

predominante no mundo colonial até o advento das primeiras fábricas, em meados do século

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XIX, aparece bem acentuado no exercício decorativo de Clemente Magalhães de Bastos

(Figura 71). O formato de friso com três rosáceas, o qual o aluno também copiou, repete o

mesmo sistema de aprendizado de Manoel Dias de Oliveira em Portugal. Importante dizer que

a instalação da Corte no Rio de Janeiro ampliou a demanda por produções puramente

decorativas, seja para os trabalhos para as construções efêmeras das festas oficiais, seja pela

maior quantidade de nobres interessados em ornamentar suas casas.

Figura 71 – Clemente Magalhães de Bastos. Estudo de friso com rosáceas. 1812. FBN, Rio de Janeiro.

A proliferação dos trabalhos mecânicos após a abertura dos portos, medida que

permitiu o livre comércio de produtos nas ruas da cidade, colaborou para impulsionar a

movimentação das oficinas e a incrementar a economia do período. Assim como na Europa, o

pintor somava aos seus afazeres os diversos tipos de atividades artesanais, consideradas

ofícios mecânicos. Não surpreende que o projeto oficial da Academia Imperial das Belas-

Artes elaborado por Lebreton contivesse no seu conteúdo o desejo de abrir uma instituição

com dupla finalidade, a de ensinar o desenho para as chamadas belas artes e também para os

ofícios mecânicos. Há, por parte de Lebreton, a consciência de que as primeiras ocupavam um

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patamar de superioridade em relação aos trabalhos artesanais, chegando, inclusive, a separar

os alunos em duas modalidades (BARATA, 1959)70

.

O fracasso da proposta de Lebreton resultou na inauguração de uma instituição voltada

exclusivamente para as belas-artes, dez anos após a chegada dos artistas franceses ao Brasil.

Encerrado no mesmo problema, a anterior abertura do Colégio das Fábricas, em 1809,

também não vingou em uma realidade pautada na falta de estímulos para o desenvolvimento

manufatureiro. Não buscamos aprofundamentos sobre os fatores econômicos aqui envolvidos,

mas esta questão nos parece essencial para fundamentar a manutenção das oficinas coloniais

ao longo de boa parte do século XIX. Eram os mestres oriundos da tradição colonial que

forneciam a mão de obra necessária naquele tempo de crescimento econômico, mantenedores

de um sistema que se encaixava perfeitamente no modelo escravista continuado e desejado

nos dois períodos imperiais.

A Aula Régia de Desenho e Figura significou para a época uma nova possibilidade de

aprendizado, pois sua ação voltava-se mais ao processo de construção do saber através de

exercícios do olhar. No fim, o destino do aluno seria o mesmo, ou seja, o de ingressar no

mercado de trabalho. Não havia outra possibilidade em uma sociedade que via no ofício do

pintor o valor maior na funcionalidade imediata do objeto, deixando a sua característica de

agente produtor de símbolos como algo secundário.

Há indícios de que Manoel Dias de Oliveira tenha implementado a segunda fase

correspondente aos exercícios a partir de objetos tridimensionais, segundo a tradição do

ensino acadêmico. Após a etapa de cópia de gravuras e de pinturas de grandes mestres, o

aprendiz passava a traduzir o mundo dos volumes em superfícies bidimensionais, um estágio

preparatório para a composição a partir do exercício com modelo vivo. Dos desenhos

70

Vale salientar que o nome original da academia seria Real Escola de Ciências, Artes e Ofícios.

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sobreviventes da coleção da Biblioteca Nacional, há um estudo de osso ligeiramente diferente

dos outros anteriormente analisados (Figura 72).

Clemente Magalhães de Bastos realizou o exercício em 1815, sete anos após o seu

ingresso na Aula Régia de Desenho e Figura. Difícil investigar, pelo menos formalmente, o

avanço do artista a partir da comparação entre os estudos de cabeças e este em particular. São

objetos de naturezas distintas e, devido aos raros exemplares sobreviventes, dizem muito

pouco em relação à aquisição gradual de habilidades técnicas. Entretanto, as informações que

aparecem sempre na parte inferior destas pranchas apontam, neste caso específico, para um

dado diferente em relação às demais. Encontramos a seguinte mensagem: Clemente

Magalhães de Bastos copiou do natural na Aula Régia do Rio de Janeiro 1815. A referência à

cópia do natural sugere a presença real do objeto e não, como nos exercícios de 1810 e 1812,

o uso de fontes impressas.

Se houve a sistematização desta fase do aprendizado, conforme o exemplo de Bastos

indica, a Aula Régia de Desenho e Figura pode ser considerada como uma antecessora da

Academia Imperial das Belas Artes, pelo menos no que se refere à estratégia de ensino do

desenho. Copiar do natural significava traduzir todas as nuances de sombras e luzes e não se

apropriar de fontes que já haviam feito tal tradução. A relação entre o olho que apreende as

formas e a mão que as coloca no papel assume outra dimensão, pois agora a questão da

verossimilhança está diretamente associada a algo que existe fisicamente e não à imagem

criada por terceiros.

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Figura 72 – Clemente Magalhães de Bastos. Estudo de osso. 1815. FBN, Rio de

Janeiro.

Não obtivemos documentos capazes de fornecer pistas sobre a atuação de Clemente

Magalhães de Bastos após sua passagem pela a Aula Régia de Desenho e Figura, além das

pranchas citadas. Sobre Francisco Pedro do Amaral, sabemos que se tornou discípulo de

Debret logo na ocasião de sua chegada, complementando então a sua longa e variada

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formação. Há um projeto de sua autoria que certamente merece nossa atenção. Trata-se de

uma planta para a construção de um monumento comemorativo ao dia 26 de fevereiro de

1821, data em que D. Pedro I serviu como mediador entre um grupo revolucionário e o rei,

sobre a exigência de juramento do monarca à Constituição (Figura 73).

Figura 73 – Francisco Pedro do Amaral. Projeto de monumento à memória do dia 26 de fevereiro de 1821, a ser

erigido na Praça da Constituição. 1822. FBN, Rio de Janeiro.

A exaltação da figura heroica de D. Pedro I denuncia a participação indubitável do

pensamento francês, típico do Neoclassicismo de Debret. Um monumento desta natureza,

puramente simbólico, era novidade no ambiente colonial. A cidade conhecia os chafarizes que

mostravam, em alguns exemplares, elementos iconográficos, mas a funcionalidade era sempre

o fator primordial. E era justamente o benefício autenticado pela utilidade do objeto que

mencionava a presença do governo como autor daquela obra. O mesmo ocorreu com o

Passeio Público, projeto grandioso da época colonial, também atrelado ao seu valor utilitário.

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Os monumentos efêmeros eram mais comuns, geralmente representados pelos arcos de

triunfo, obeliscos e varandas de aclamação, desmontados após as cerimônias oficiais.

Demoraria algumas décadas para que a sensação de memória e de patrimônio começasse a

despontar em um Brasil independente e em busca de identidade. Vale lembrar que Manoel de

Araujo Porto Alegre criticou a falta de investimento do poder imperial para a criação de

monumentos pela cidade, na década de 1850.

Apesar do projeto de Francisco Pedro do Amaral não ter saído do papel, a sua

existência sugere novos rumos da arte no Brasil. Importante destacar no texto que acompanha

o desenho do artista o seguinte trecho: (...) inventado por Francisco Pedro do Amaral no

anno de 1822. Sobre a invenção, vários tratados correntes na época neoclássica exaltam esta

faculdade como uma das principais características do bom pintor. Encontramos em Cirilo

Wolkmar Machado a seguinte afirmação:

A invenção é a poesia da Pintura, e a parte mais própria para descobrir o

talento do artista: ela desenvolve a primeira ideia de toda a obra; e o Pintor

não a deve perder de vista até a última pincelada. Não basta que ele encha um

painel com muitas e boas figuras, se estas não servirem todas para explicar o

principal objeto; e se a totalidade da obra não declarar logo ao espectador qual

é o assunto de que se trata; preparando, e dispondo a mente de quem vê a

pintura, para ser comovida com as expressões, e afetos das figuras principais:

sem o que, de nada serviria dar-lhes expressões violentas e exageradas, como

fazem aqueles que querem afetar muito o espírito. O excesso, ou afetação é a

coisa mais nociva à boa invenção. (MACHADO, 1817, p. 7)

A simplicidade da composição de Francisco Pedro do Amaral se enquadra

perfeitamente nos dizeres de Cirilo. A figura de D. Pedro I, retilínea e austera, assume o topo

do monumento, tendo abaixo mais quatro esculturas. O monumento combina formas

geométricas ligadas à perfeição, como o círculo da escadaria e os módulos quadrangulares das

bases das esculturas. A presença de seres mitológicos acompanhando a figura do imperador

remete ao gosto clássico de apropriação dos significados de força e poder destas personagens

ao contexto do momento, criando uma leitura iconográfica clara e objetiva.

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Francisco Pedro do Amaral ocupa lugar à parte na história da arte da virada do século

XVIII para o XIX. Experimentou formações de naturezas diversas e concluiu seu aprendizado

como discípulo de Debret, quando reconheceu, como Manoel Dias de Oliveira, a brutal

diferença entre o artesão colonial e o artista intelectual europeu. Participou justamente da fase

crítica em que as realidades sociais distintas começaram a despontar no Rio de Janeiro, cidade

de feições ainda coloniais. De um lado, pintores integrantes da elite política de seu país, como

foram Debret e Taunay na França revolucionária. De outro lado, artistas oriundos das classes

baixas da população, muitos herdeiros da cultura afrodescendente, como o próprio Amaral.

Para o fluminense, o choque entre culturas pesava mais para o lado dos franceses, pois a

clientela do Rio de Janeiro acostumara-se a recorrer aos mestres de oficinas locais.

Apesar da Aula Régia de Desenho e Figura ter sido uma instituição oficial, ela não

contou com nenhum apoio por parte do governo para o seu funcionamento. Na verdade, o

sistema geral de aulas régias foi extremamente precário tanto em Lisboa quanto no Rio de

Janeiro. A substituição de séculos de ensino jesuítico por outro ainda em construção foi um

dos obstáculos enfrentados por todos os profissionais nomeados para a cadeira de ensino.

Manoel Dias de Oliveira obteve apenas a pensão para realizar seu trabalho e nada relacionado

à estrutura, como compra de materiais essencialmente didáticos. As aulas em si foram todas

em sua própria casa, como mencionamos anteriormente.

Ainda nos falta documentação que proporcione a melhor avaliação sobre o contributo

da Aula Régia de Desenho e Figura no panorama artístico fluminense. Podemos apenas supor

que o método de ensino figurou como uma mudança interessante e perceptível no complexo

período em questão, antecipando discussões sobre o fazer artístico e artesanal e sobre assuntos

relativos ao estatuto social do pintor. O fato de Manoel Dias de Oliveira ser tratado como

professor, e não mestre, como nas oficinas de pintura coloniais, revela uma mudança sensível

de tratamento.

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Sobre os encomendantes, acreditamos que os maiores interessados na abertura e

manutenção da Aula Régia de Desenho e Figura estiveram ligados ao comércio,

principalmente representados por portugueses. A qualidade era cada vez mais exigida na

feitura de objetos, principalmente quando os produtos ingleses começaram a circular após a

abertura dos portos. Não falamos apenas de competitividade dos moldes capitalistas

modernos, mas também da sobrevivência de um setor que envolvia desde professores e alunos

dos ofícios à introdução de seu trabalho no mercado interno, orquestrado por esses

comerciantes.

Foi com a oficialização do ensino de desenho, considerado a base para a pintura e para

as artes decorativas, que a figura do encomendante ganhou uma nova imagem, fora dos

espaços religiosos. Cada vez mais a temática profana, tanto a que ornamentava praças

públicas e peças utilitárias quanto a que dignificava com seus significados personagens

heroicas das pinturas e dos projetos de monumentos, indicava a mudança também de gosto. O

Neoclassicismo penetrou no Brasil a partir da via romana que enfatizava a estética e que se

chocaria com a versão engajada francesa com a presença de Debret. E foi no ambiente de

corte que os diálogos entre as duas vertentes puderam acontecer.

4.3 ARTES E OFÍCIOS A SERVIÇO DA CORTE

Enquanto algumas capitais ilustradas europeias experimentavam o distanciamento

cada vez mais notório entre a arte e os símbolos do Absolutismo no início do século XIX, o

Rio de Janeiro vivenciava exatamente o oposto. A Corte do Príncipe Regente D. João se

estabeleceu na cidade com a tradição imagética do cerimonial pomposo de raízes ainda

barrocas, fomentando uma intensa movimentação que empregou inicialmente os artistas da

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terra. Após 1816, estes fluminenses encontrariam nos representantes do grupo de franceses,

que se convencionou chamar de Missão, a nova parceria para as tarefas de decoração das

festas oficiais. O fausto característico deste período deslanchou críticas ferrenhas dos

primeiros historiadores da arte, muitos impregnados pelas questões republicanas de início dos

Novecentos. Sobre a época, Gonzaga-Duque registra que:

A chegada de D. João à colônia foi um poderoso incentivo dos progressos de

sua arte. A corte do rei queria embasbacar a multidão indígena com um

pequeno luxo de saltimbancos. Mandava-se retratar, encomendava pinturas

para o muro das habitações; mostrava-se conhecedora do bom gosto. José

Leandro era um pequeno Velasquez dessa burguesia pretensiosa e boçal.

(GONZAGA-DUQUE, 1995, p. 87)

O tom preconceituoso de Gonzaga-Duque vem de um contexto específico que não

poderia enxergar questões mais profundas, como, por exemplo, as realidades culturais

distintas entre os dois grupos de artistas. Nicolas-Antoine Taunay vinha de uma atuante

participação dos Salões da Academia, depois Instituto de França71

. Sua ligação profunda com

as figuras de poder, sobretudo quando Napoleão foi coroado, em 1804, fez dele uma figura

proeminente no mundo das artes. Sua influência colaborou para que o seu nome fosse

indicado a assumir a direção da Academia da França.

Jean-Baptiste Debret foi aluno de Jacques-Louis David a partir de 1783, ingressando

na Academia dois anos mais tarde. Sua formação contou com a proteção deste pintor, o mais

influente do Neoclassicismo francês e que o levaria à Roma logo em 1784. A carreira de

Debret contou com participação ativa nos Salões, com premiações sucessivas. Sua filiação ao

governo napoleônico foi um dos fatores decisivos para o seu crescente prestígio no círculo

artístico parisiense.

71

Em 1795 a Convenção aboliu provisoriamente todas as academias francesas, criando, no seu lugar, o Institut

de France. Anos mais tarde, a Academia da França ressurgiria renovada, sob a influência marcante do pintor

Jacques-Louis David.

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Quanto aos artistas fluminenses, conforme analisamos com maior profundidade, eles

pertenciam a uma classe social pouco privilegiada, mais próxima dos artesãos. Este fator

refletia diretamente na percepção do cliente em relação a esta parcela do mundo do trabalho,

em muito distanciada do que ocorria na França. Taunay e Debret faziam parte de uma elite

intelectual politizada e participativa, reconhecidos por sua atividade. Eram artistas inventores,

criadores da imagem do Estado. Os pintores coloniais viviam em plena concordância com as

encomendas, dependentes de modelos previamente escolhidos.

A junção dos dois estatutos sociais em um mesmo campo de trabalho suscita reflexões

ainda pouco desenvolvidas pelos historiadores da arte. De um lado, observamos artistas

franceses em um mundo estranho, muitas vezes hostil à sua presença. Apesar do crescimento

acelerado do Rio de Janeiro após a chegada da Família Real, a população ainda carregava

consigo muitas características da época colonial. O incremento do comércio e a proliferação

das modas e dos costumes franceses não alterariam, pelo menos inicialmente, a percepção da

sociedade em relação aos trabalhos considerados de classes menos favorecidas, como era a

pintura. A presença maciça do escravo nos serviços gerais, há muito enraizada na cultura

local, permanecia como um dos fatores mais problemáticos para os franceses na cidade, por

ocuparem, como profissionais, a mesma região dos ofícios das classes inferiores. Demoraria

ainda algumas décadas, muito pelo esforço de Félix Taunay, para a gradual mudança de

comportamento em relação às artes72

.

Romanceado por vários estudiosos do passado, a equipe de Lebreton no Brasil não

encontrou sinais de mercado de arte promissor, como imaginava seu líder, muito menos o

desejo da clientela local de promover mudanças bruscas no cenário arraigado à tradição.

Mencionamos, no capítulo referente à religião, que os consumidores permaneceram fiéis aos

72

Féliz Émile Taunay foi diretor da Academia Imperial das Belas-Artes no período compreendido entre os anos

1834 a 1851. Entre suas conquistas estão a instituição dos prêmios de viagem e a formação da pinacoteca,

avanços consideráveis da década de 1840.

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artistas coloniais. Como era a porção maior de um reduzido mercado local, diríamos que

Debret e Taunay, sem os serviços solicitados pelas autoridades eclesiásticas, ficaram restritos

ao círculo da Corte, onde encontramos também alguns representantes de artistas fluminenses.

A partir de minuciosa análise documental, Lilia Moritz Schwarcz rediscute pontos

nodais para o entendimento de fatos concernentes à chegada dos artistas franceses no Brasil.

Baseando-se no conteúdo das correspondências entre Lebreton, então secretário perpétuo da

quarta classe de belas-artes do Instituto de França, com representantes da corte portuguesa em

Paris, Schwarcz sugere que não houve convite oficial da Coroa, mas uma inversão, ou seja,

um oferecimento de Lebreton para implantar no Brasil ofícios ligados à indústria e à arte

(SCHWARCZ, 2008, p. 182). A historiadora, sobre as várias proposições acerca do assunto,

expõe a seguinte conclusão:

Hora de dispor as cartas: artistas desempregados ou em vias de perder o

emprego; uma moda francesa nas artes; uma monarquia européia estacionada

nas Américas; uma colônia até então fechada aos estrangeiros – sobretudo

franceses – e com imensas possibilidades de comércio, mercado e artes, e um

príncipe carente de representação oficial. É preciso, pois, combinar isso tudo e

ainda adicionar dois elementos: o papel do Brasil no imaginário francês e o

fato de nossos viajantes saberem que a língua culta da realeza e de uma parte

da elite da corte era justamente o francês. Com todos esses argumentos

reunidos, talvez o mais correto seria pensar que, juntando a fome com a

vontade de comer, os viajantes decidiram partir: alguns financiados, outros

não. Por outro lado, a Coroa só daria seu resguardo e apoio após a notícia da

chegada definitiva dos franceses; ou melhor, com o fato já consumado. Aí,

sim, pagaria pela estada dos artistas em território americano. (SCHWARCZ,

op. cit., p. 188)

Os antigos autores, promotores da ideia do estabelecimento de uma missão no Rio de

Janeiro, foram os mesmos a diminuir, ou suprimir, a importância da arte local daquele

momento. Os franceses seriam os salvadores de uma corte sem imagem, sem aparato e carente

de símbolos. É certo que Manoel Dias de Oliveira e José Leandro de Carvalho não possuíam

tanta experiência na composição histórica, essência do Neoclassicismo francês. Entretanto, os

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retratos do rei e da Família real e as cenas alegóricas, estas últimas comuns à vertente

neoclássica romana, marcaram a presença dos dois artistas no meio régio.

A construção da imagem heroica do grupo, formado por missionários dispostos a

elevar o reino português à categoria de Corte promotora das belas-artes, esconde as referidas

questões sobre o contato entre as duas realidades. Apesar de Debret praticamente não

mencionar os artistas fluminenses em sua obra Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, no

texto que insiste no pioneirismo de seu grupo (SCHWARCZ, op. cit., p. 192), juntos

produziram as decorações para as festas oficiais, principalmente a Aclamação de D. João VI.

Vale ressaltar que houve pintores viajantes no Rio de Janeiro antes de 1816, mas

nunca com a promessa de uma permanência mais longa e contando com o patrocínio régio.

Acreditamos que estes viajantes esporádicos não tenham influenciado a produção local, ainda

voltada para os espaços religiosos, na sua grande maioria. Ao contrário, morar na cidade

significava vivenciar o seu cotidiano em todos os detalhes, tomar parte de seus costumes,

dialogar com os profissionais da terra e, neste caso, sentir de perto o peso da falta de

patrocinadores regulares e de coleções particulares.

Debret investiu na composição de esboços com a finalidade de instigar D. João VI a

encomendar peças finais, projeto que não gerou frutos. Por outro lado, José Leandro de

Carvalho fora encarregado de decorar toda a Capela Imperial, obra de maior vulto na ocasião.

Debret estava habituado a participar de um ambiente artístico voltado para a construção

simbólica e perene da imagem do poder, com exibições públicas de obras com temáticas

heroicas pautadas na simplicidade formal. No Rio de Janeiro, o pintor envolveu-se na

paradoxal situação de trabalhar com decorações efêmeras das festas reais, com pompa

comparável ao Barroco. Sobre a estranha condição de Debret e de seus companheiros,

Rodrigo Naves apresenta a seguinte análise:

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Mas eram os franceses, certamente, os mais incomodados com a situação. Pela vivência acumulada, por tudo que tinham passado, dificilmente deixariam

de notar com alguma clareza os lances extravagantes a que se viam obrigados,

na tentativa de fazer resplandecer uma dinastia já sem brilho. Transformados

em atributos de uma personagem senhorial e muito pouco modelar, os

símbolos e episódios do passado perdiam todo o poder normativo que os

caracterizava no neoclassicismo. Eles agora se distribuem a esmo, compondo

uma narrativa alegórica descosida. Em comparação com a força sintética dos

relatos neoclássicos, o simbolismo empregado na aclamação de D. João VI

deveria adquirir uma feição prolixa inevitável. Como o monarca não retira seu

valor e poder de gestos exemplares, e sim de privilégios hereditários, sua

caracterização simbólica se assemelha a um receptáculo de onde se extrai o

que bem entender. (NAVES, 1996, p. 61)

Se a ocasião parecia estranha a quem passara a primeira década dos Oitocentos a

serviço de um império em ascensão, para os artistas fluminenses o resultado de tamanha

mistura de informações serviu como um grande mostruário. Certamente, Manoel Dias de

Oliveira conhecia a iconografia mitológica greco-romana e as fórmulas clássicas, mas aplicá-

las no contexto colonial acontecia apenas na versão reduzida da confecção de painéis

alegóricos. A grandiosidade do aparato simbólico feito para a aclamação de D. João VI, com

templos, colunas, arcos de triunfo, obeliscos e outros elementos típicos do Neoclassicismo,

foi, sem dúvida, a apresentação de todo aquele repertório aprendido em Roma em versão

monumental.

O contributo maior desta atribuição decorativa, que poderia ser vista como fruto de

manifestações frívolas e dispendiosas, foi autenticar o gosto neoclássico que vinha, desde os

fins do século XVIII, em passos lentos. O Passeio Público, a Aula Régia de Desenho e Figura

e a abertura do Real Teatro de São João pontuaram a entrada cada vez mais consistente do

novo estilo. A grandiosidade das cerimônias régias, entretanto, serviu para afirmar com tom

de oficialidade os novos rumos da arte para o número de consumidores em lento e contínuo

crescimento.

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A partir de 1808 verificamos três tipos principais de clientes: 1) a tradicional parcela

consumidora de imagens religiosas para o culto coletivo e doméstico; 2) a burguesia

comercial local em sucessiva ascensão desde o século XVIII; 3) a Corte, com o seu projeto de

divulgação do poder de amplo aparato simbólico. O primeiro grupo manteve-se conservador

nas suas encomendas, com a mesma proposta de contratar aqueles profissionais encarregados

de reproduzir os modelos previamente selecionados. Percebemos, ao longo dos Oitocentos, o

mesmo exemplo de prestação de serviços às igrejas conforme desenvolvido no século

anterior. O segundo grupo avançou pelo século XIX sem uma identidade própria de

consumidor, tendo o retrato como o principal objeto de encomenda. Esta fatia do parco

mercado de arte passaria também por uma gradual formação de gosto, da mesma forma que a

burguesia metropolitana fora submetida ainda no século XVIII. A Corte, como analisamos

acima, seguiu os moldes das monarquias absolutistas de construção de imagem

propagandística de si mesma, colaborando para direcionar o gosto de acordo com suas

exibições públicas.

Esta característica norteadora de modas e estilos expõe a essência da arte de corte. Sua

influência penetra nos espaços religiosos, colaborando na produção de painéis que assumem,

cada vez mais, as feições sóbrias e contidas do Neoclassicismo. Empresta também o seu

receituário formal à burguesia, ainda sem imagem, e que buscaria seguir o caminho da

nobreza diretamente associada ao rei. Quando figuras ligadas ao poder começaram a decorar

suas casas com pinturas alegóricas e decorativas, algo inovador para uma cidade sem este

costume, os comerciantes mais abastados passaram a adotar a mesma postura. Sabemos que

Francisco Pedro do Amaral realizou vários serviços desta natureza (SANTOS, 1942, p. 540).

Como professor da Aula Régia de Desenho e Figura, Manoel Dias de Oliveira era

oficialmente um artista a serviço de D. João VI. Sua atuação marcante entre 1808 e

1821confirma a sua condição de pensionista da Corte. O último trabalho conhecido, a

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Alegoria do nascimento de Dona Maria da Glória, data de 1819 e possui dimensões

consideráveis (Figura 74). A composição segue os mesmos princípios neoclássicos discutidos

anteriormente, como a disposição das personagens em forma de friso, a distribuição uniforme

da luz, a preferência por poses contidas e a ordenação harmônica das massas. O formato da

tela sugere a função decorativa para comemoração do fato representado, o nascimento da

primogênita do futuro imperador do Brasil.

A Família Real aparece em cena que mistura personagens históricas de Portugal com

várias referências mitológicas, como a deusa da sabedoria Minerva, a personificação do

Tempo e as Musas das Artes, entre outras. A narrativa alegórica funciona como uma

exaltação ao evento, criando o sentido quase místico e atemporal ao nascimento da princesa,

cujo retrato é exibido no canto superior esquerdo. Ela surge conduzida por uma figura alada,

pronta a anunciar sua chegada com uma corneta.

Este painel se insere na prática comum, a qual também Debret esteve submetido, de

consagrar a imagem régia a partir de combinações de elementos simbólicos destinados a uma

narrativa estritamente elogiosa. Interessante notar que esta prática se difundiria para além das

esferas nobiliárquicas, somando aos retratos um teor alegórico evocativo de virtudes nem

sempre verificáveis no mundo real. O século XIX se mostraria, assim, como um período

basicamente imagético, no qual a fotografia chegaria mais tarde como porta-voz desta nova

era da visualidade.

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Figura 74 – Manoel Dias de Oliveira. Alegoria do Nascimento de Dona Maria da Glória. 1819. 95 x 171 cm.

Óleo sobre tela. IHGB, Rio de Janeiro.

Manoel Dias de Oliveira foi destituído do cargo após o retorno de D. João VI a

Portugal. Não dispomos de dados explicativos sobre a decisão de D. Pedro I, mas acreditamos

tratar-se do desejo de Henrique José da Silva de centralizar o ensino da arte em uma única

instituição73

. Independentemente das reais intenções naquele momento, vemos na carreira

longa e promissora do pintor fluminense um marco das transformações ocorridas no campo

das artes da virada do século XVIII para o seguinte. Reunimos em seu nome o incremento do

ensino do desenho, a filiação do ofício à crescente atividade fabril, o reconhecimento lento,

porém gradual da importância do pintor na sociedade, muito pelo contato com a realidade de

Debret e dos demais artistas franceses, e a participação ativa da mudança de gosto no Rio de

Janeiro.

Vale acrescentar que a sua ação constante no cenário artístico das duas primeiras

décadas do século XIX colaborou, juntamente com outras personalidades, para a formação do

73

Henrique José da Silva foi ilustrador e desenhista português, nomeado diretor da Academia antes mesmo que

ela possuísse instalações próprias.

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gosto classicista mais acentuado. Se Manoel Dias de Oliveira aproveitou pouco a presença

ainda pontual da burguesia no campo das artes, ao menos contribuiu como semeador para as

gerações futuras. Esta parcela da sociedade encontraria na Academia Imperial das Belas-

Artes, décadas mais tarde, a fonte mais sistematizada para a construção de sua própria

identidade. Identidade esta pautada no dinamismo típico do mundo dos negócios e,

provavelmente, um dos fatores influenciadores para que a instituição assumisse feições

tipicamente modernas. Afinal, raras foram as academias no mundo que assimilaram correntes

como o Realismo, o Simbolismo e o Impressionismo.

As duas primeiras décadas do século XIX foram decisivas para as transformações no

campo das transações entre encomendantes e pintores. Vários fatores em conjunto

colaboraram para a crescente valorização destes artistas na comunidade, sendo a presença

física da Corte no Rio de Janeiro o marco fundamental. O fato de José Leandro de Carvalho

receber o título nobiliárquico de Cavaleiro da Ordem de Cristo, conforme mencionamos

anteriormente, denota claramente a mudança de rumo. O máximo alcançado por um pintor no

caminho da ascensão social era a nomeação para algum posto militar. Raimundo da Costa e

Silva foi Capitão do Regimento dos Pardos, ainda nos Setecentos.

José Leandro de Carvalho contribuiu ativamente na composição e consolidação da

Sociedade de São Lucas, aberta em 1827 pelo também pintor Francisco Pedro do Amaral.

Não resta dúvida de que houve intensa mobilização por parte destes profissionais na tentativa

de impor melhorias nas condições de trabalho. Uma organização desta natureza tinha como

princípios básicos a discussão sobre direitos e deveres e a conquista de garantias nas relações

com os contratantes. Podemos supor que a diversificação maior na produção, os diferentes

perfis de encomendantes e a distinção entre as formas de elaborar contratos tenham

dinamizado a concepção de uma classe em busca de unidade. Não podemos negar a

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importância de se ter um grupo de artistas franceses por perto, detentores de elevado estatuto

social conquistado há gerações.

Acompanhando as lentas, mas graduais transformações, o Neoclassicismo foi se

firmando como estilo dominante das primeiras décadas dos Oitocentos. Inicialmente

associado aos interesses da burguesia comercial, ele ampliou seu campo de atuação para

atender às necessidades imagéticas de uma corte em plena construção simbólica. O caminho

parece inverso do que ocorreu em centros como Paris e Roma. Incluído em um contexto

extremamente paradoxal, o Neoclassicismo se instaurou em um local distante de sua origem

cultural, o que foi sentido principalmente por Debret. Dissociado de suas questões primeiras,

o estilo emprestou sua forma e seu conteúdo a quem os desejasse, sem engajamentos ou

tentativas de compor identidades de classe.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Lidar com assuntos de um passado distante requer do historiador o uso de ingredientes

muitas vezes estranhos à primeira vista, pelo menos como mistura para um único fim. O

caráter científico da investigação tem nas fontes primárias e secundárias o elo de existência

física daquilo que se quer conhecer. Em alguns casos, o fato deixa tão pouco lastro que a sua

vivência se agarra a alguns fios de possibilidades, ancoradas somente em hipóteses

necessariamente bem fundamentadas. Aqui, o cientificismo cede lugar aos vários

questionamentos sobre coisas indiretas, às informações provenientes da tradição oral ou às

observações de vestígios, os quais sugerem mais do que afirmam.

No caso do historiador da arte, a partida começa justamente com a existência física do

objeto, o qual não deixa dúvidas de que ele participou de um tempo e que também

desempenhou a sua função. Ali, diante do pesquisador, ele apresenta os seus elementos da

forma e os indícios de seu conteúdo, as primeiras e tão importantes pistas para o início das

investigações. Se ele continua em seu local de origem ou se foi descontextualizado, cabe ao

profissional decifrar, pois este fato revela a sua essência, o motivo de sua feitura. Daí, o

objeto parece apontar caminhos, a falar sobre arquivos, a desvelar as mãos que o fizeram, a

mostrar o rosto de quem o encomendou. Do particular ao geral e, após a longa trajetória de

pesquisa, retornar no caminho inverso, ou seja, do geral ao particular, o historiador da arte

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percebe que no seu ofício de investigador as trilhas são raramente retilíneas. E, muitas vezes,

sem saída.

Em nosso estudo sobre a pintura colonial fluminense, escolhemos muitas trilhas que

foram proveitosas e outras que resultaram em enganos ou em impossibilidades, logo

descartadas. Poderíamos enumerar os problemas relacionados a esta época específica em uma

lista razoavelmente grande, mas destacamos unicamente o descaso com os documentos do

passado por parte de seus detentores. Mesmo que o historiador da arte conte com o seu

monumento vivo e na condição presencial, a colaboração de informações documentais

consiste em ajuda providencial em casos diversos. As lacunas que insistiram em permanecer

foram amenizadas com aquela via em que o cientificismo da metodologia de pesquisa

encontrou no bom senso e nas variáveis indiretas as possibilidades de se formar uma

discussão coerente.

O primeiro capítulo discutiu assuntos relacionados à pintura setecentista portuguesa. O

intuito foi o de absorver daquela experiência elementos substanciais na tentativa de suprir

parte das lacunas mencionadas acima. Seriam, grosso modo, as informações aparentemente

indiretas, mas que poderiam conter questões aplicáveis ao nosso estudo sobre o mesmo

período na Colônia. Para a nossa surpresa, muito do que ocorreu na Metrópole chegou,

mesmo que diluído, nas oficinas locais fluminenses. Não falamos apenas da visível filiação

estilística e iconográfica, mas também das alterações dos sistemas de ensino e aprendizagem e

no florescimento de uma nova parcela consumidora de arte. A Aula Régia de Desenho e

Figura do Rio de Janeiro seguiu a esteira de sua antecessora lisboeta, evidenciando interesses

parecidos nos dois lados do Atlântico. A burguesia comercial, apadrinhada pelo Marquês de

Pombal, se comportou de maneira análoga no Brasil, ou seja, iniciou a sua longa jornada de

formação como consumidora de arte.

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Podemos dizer o mesmo sobre o estatuto social do pintor. Se em Portugal houve

grupos atualizados quanto ao problema da falta de uma Academia, sua condição perante a

sociedade demoraria muitas décadas para alcançar o prestígio que almejavam. Vimos o

quanto André Gonçalves e Cirilo Wolkmar Machado, ao longo dos Setecentos, lutaram para o

incremento do ofício do pintor. Na Colônia, esta condição de inferioridade era agravada pela

posição social dos artistas, estes pertencentes a classes menos favorecidas da população.

Também não houve academias e, muito menos, círculos de discussão sobre os tratados ou

questões de estética.

Quanto aos modelos formais e iconográficos, a Itália ditou os padrões de quase todo o

século XVIII. E era esta a fonte importada pelas oficinas coloniais através das gravuras de

tradução e de registros de santos. A temática cristã foi majoritária nos dois universos,

colocando a Igreja como a principal encomendante da época. E foi esta arte para o divino, de

matriz italiana, o nosso estudo do segundo capítulo. Vimos o quanto a presença do cliente

proveniente das irmandades e ordens religiosas criou uma relação pautada pelo

conservadorismo. Não poderia ser diferente: os espaços sagrados não eram os melhores locais

para experimentalismos e invenções, algo que o próprio Concílio de Trento havia descartado.

Assim, as alterações maiores aconteciam na esfera do formalismo, permanecendo a

iconografia rigorosamente atrelada ao seu modelo.

Como em Portugal, a pintura religiosa colonial foi acumulando estilos sem aquele grau

de transformações verificáveis dos maiores centros culturais, como Roma e Paris. Assim,

observamos a tradição fortemente enraizada do Barroco mantendo elementos maneiristas e

assimilando, momentos depois, parte da gramática rococó. Esta mistura foi ainda mais

acentuada no Rio de Janeiro pela sua condição periférica peculiar, pois a cidade vivia sob o

isolamento do sistema mercantilista imposto pela Metrópole. Esta situação colaborou para

suavizar o sentido original do estilo e adaptá-lo a outra realidade cultural e social. Por isso a

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dificuldade em dizer se um pintor fluminense era barroco ou rococó, por exemplo. Ele era

tudo, de acordo com a vontade de seu cliente, o responsável pela escolha da gravura modelo.

Sobre a temática religiosa, destacamos o acervo da Santa Casa de Misericórdia como

um depositário de considerável número de obras ainda por pesquisar. Buscamos selecionar

inicialmente peças de fácil acesso, com a clara intenção de divulgar nossas discussões a um

público mais amplo, além da esfera acadêmica. Acreditamos que o conhecimento sobre o

patrimônio histórico e artístico seja a principal ferramenta para a sua preservação, com a

percepção de que ele compõe parte inarredável da construção de nossa identidade como

nação. Registramos apenas a crítica contra as instituições que não costumam colaborar para

pesquisas de cunho acadêmico e, consequentemente, de cunho social, contribuindo para a

manutenção de dúvidas de naturezas diversificadas.

Do mesmo acervo reside quantidade razoável de retratos do século XVIII. Sabemos,

por fontes históricas, que havia o claro desejo da burguesia mercantil de participar desta

influente irmandade e que os mais abastados conseguiram realmente ingressar nela. Como os

nobres que encomendavam seus retratos, os comerciantes também o fizeram, na tentativa de

se colocar na mesma posição social dos demais através da apropriação de seus símbolos. No

terceiro capítulo, então, realizamos reflexões teóricas sobre os retratos de figuras ligadas ao

poder, sobretudo na fase de D. João VI no Rio de Janeiro. Apontamos, no entanto, a

possibilidade de existirem exemplares ligados a comerciantes de grosso trato, conforme

sugerem as biografias dos pintores que mencionam este tipo de relação de encomenda.

Em ambiente marcado pela hierarquia social fortemente instaurada, as personalidades

dignas de possuírem seu retrato seriam originárias da elite nobiliárquica e, a partir da segunda

metade do século XVIII, da alta burguesia comercial. Vimos que estas parcelas da sociedade

teriam condições de desenvolver a consciência individual como forma de superioridade em

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relação aos demais, além da necessidade de afirmar seu prestígio através da linguagem visual.

No caso da Família Real, o retrato foi herdeiro de uma estrutura maior e mais elaborada de

construção simbólica da imagem régia, por isso a sua quantidade abundante e repetitiva na

forma.

Ainda nos faltam dados suficientes para compormos perfis mais consolidados dos

clientes de retrato. Salvo D. João VI, os demais retratáveis aparecem mencionados em estudos

de história econômica como os destacados da sociedade, mas ausentes nas encomendas deste

gênero de arte em geral. Como ocorreu em Portugal, parte da burguesia mercantil passou por

um processo de formação estética lenta e gradual, o que poderia ter se repetido na Colônia.

Outro ponto fundamental refere-se ao valor da pintura religiosa, talvez o tema mais cobiçado

e consumido através de doações às irmandades.

A relação de maior visibilidade entre o mundo dos negócios e a arte parece ter

ocorrido com a abertura da Aula Régia de Desenho e Figura, nosso capítulo final.

Romanceada pelos primeiros historiadores como antecessora da instituição fundada pelos

artistas franceses, esta aula nasceu com natureza distinta das academias, pois visava,

sobretudo, o trabalho voltado para as artes aplicadas, apesar de ter formado artistas como

Francisco Pedro do Amaral. O mercado interno em plena ascensão, principalmente após a

abertura dos portos em 1808, colaborou para a profissionalização do artesão local como mão

de obra barata e, ao mesmo tempo, com maior qualificação. Vimos que a formação de seu

professor primeiro, o pintor Manoel Dias de Oliveira, teve na figura do negociante, desde o

início de sua carreira, o papel preponderante para o seu sucesso. Este tipo de apadrinhamento

era comum em Portugal, conforme estudamos, por exemplo, no caso do pintor Viera

Portuense.

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Da temática religiosa ao funcionamento da Aula Régia de Desenho e Figura, a imagem

do encomendante assumiu diferentes fisionomias. No interior da irmandade, por exemplo, ele

se perdia no papel coletivo deste tipo de organização, criando com a arte uma parceria de

incremento ao culto ou, no caso do retrato, de afirmação de benesses feitas para a sociedade.

No entanto, acreditamos estar justamente no seio das irmandades a maior variedade de

clientes coloniais, pois a heterogeneidade característica destas instituições e a necessidade de

pertencimento a elas reuniam do escravo à nobreza em seus grupos.

Como qualquer trabalho de pesquisa sobre a pintura colonial, este se apresentou como

uma possibilidade de discussões mais aprofundadas sobre diversos aspectos e, certamente,

como um convite a novas abordagens a partir de então. As lacunas que ora permaneceram

inalteradas poderão, mais adiante, ser resolvidas se peças desaparecidas ou de documentos

ainda não conhecidos forem desvelados. Oferecemos, como base, o assentamento do pintor

fluminense em uma estrutura sociológica para darmos um contexto mais coerente ao fazer

artístico daquele período. Sem o teor romântico dos primeiros escritos e os preconceitos de

outros autores, recolocamos o pintor em sua posição intermediária entre o estatuto do artesão,

mais comum, e o do artista, conseguido, principalmente, após a instalação no Rio de Janeiro

de uma colônia de profissionais franceses.

Do mesmo modo que a História do Brasil caminha com passos firmes para repensar

muitos fatos consolidados pela repetição que se torna tradição, a História da Arte no Brasil se

impõe cada vez mais como área do saber disposta a rever seu campo de ação e sua

metodologia. Decerto não podemos dissociar a arte colonial de sua matriz portuguesa, lição

maior que as trilhas da pesquisa nos guiaram neste trabalho. Deixamos, como lembrança, a

verdade de que cada época possui sua importância e sua especificidade, mesmo que as

dificuldades do meio tenham impedido o desenvolvimento de uma arte nos moldes

acadêmicos. Manoel de Araujo Porto Alegre se referiu, em seu estudo inaugural, aos pintores

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coloniais como seres valentes. Foram, na verdade, profissionais perfeitamente adaptados à

sociedade a que serviram, pois um lado sempre impulsiona o outro no mecanismo complexo

do consumo. Eles produziram exatamente aquilo que se esperava naquela realidade,

colocando o conceito de qualidade como algo flexível e dependente de sua origem.

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SANTOS, Rui Afonso. O designer. In: Sequeira. Na arte de seu tempo. José Luís Porfírio

(org.). Lisboa: Academia Nacional de Belas-Artes, 1969.

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Nacional de Arte Antiga, 1996.

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História do Brasil e de Portugal

AZEVEDO, Moreira. O Rio de Janeiro: sua história, monumentos, homens notáveis, usos e

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AZEVEDO, João Lúcio de. O Marquês de Pombal e a sua época.

BASTOS, José Timóteo. História da Censura intelectual em Portugal. Lisboa: Moraes

Editores, 1983.

CARDOSO, Tereza Maria Rolo Fachada Levy. As luzes da educação: fundamentos, raízes

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Editora da Universidade São Francisco, 2002.

CARVALHO, Flávio Rey de. Um Iluminismo português? A reforma da Universidade de

Coimbra (1772). São Paulo: Annablume, 2008.

CAVALCANTI, Nireu. O Rio de Janeiro setecentista. A vida e a construção da cidade da

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EDMUNDO, Luís. O Rio de Janeiro no tempo dos vice-reis. 1763-1808. Brasília: Senado

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FALCON, Francisco José Calazans. Iluminismo. São Paulo: Ática, 2009.

_____________________________. A época pombalina: política econômica e monarquia

ilustrada. São Paulo: Ática, 2002.

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FRAGOSO, Jõao Luís Ribeiro. Fidalgos e parentes de pretos: notas sobre a nobreza principal

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no Antigo Regime nos trópicos. América lusa, séculos XVI a XVIII. João Luís Ribeiro

Fragoso, Carla Maria Carvalho de Almeida, Antonio Carlos Jucá de Sampaio (organizadores).

Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.

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praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.

NOVAIS, A. Fernando. Aproximações: estudos de história e historiografia. São Paulo: Cosac

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SANTOS, Afonso Carlos Marques dos. A invenção do Brasil: ensaios de história e cultura.

Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2007.

WEHLING, Arno e Maria José C. M.. Formação do Brasil colonial. Rio de Janeiro: Nova

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Monografias e Dissertações

BONNET, Marcia Cristina Leão. Entre o artifício e a arte: pintores e entalhadores no Rio de

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Periódicos, arquivos e documentos

JUNIOR, França. Arte. O Paiz. Rio de Janeiro, 05 de nov. 1889. Artes.

Arquivo da Venerável Ordem Terceira da Penitência. Livro 2o

de Escrituras. De 1725 a 1746.

Ano 1732.

Arquivo Nacional. Livro de funerais e mais sufrágios da Santa Casa de Misericórdia. De

1792 a 1854, folha 22.

Arquivo Nacional. Folha 60 do Livro 10 das Publicações do Arquivo Público Nacional.

volume II, página 272.

Arquivo Nacional. Inventário. Março 464, Número 8870, Caixa 7148.

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ANEXOS

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ANEXO 1

O Paiz, 05 de novembro de 1889

Fonte: Seção de Periódicos da Fundação Biblioteca Nacional.

ARTES - França Júnior

Na semana passada fui na Academia das Bellas Artes.

O que me levou àquela casa foi, além do prazer que sinto todas as vezes que visito a

sua pinacotheca, a curiosidade de ver um antigo painel pertencente à capela imperial, o que ali

se está restaurando.

Este painel, que representa a família do príncipe regente em adoração aos pés da

Virgem do Monte Carmelo, tem uma história importante, e recorda o período em que as artes

relativamente mais floresceram no Brazil.

Nos séculos XV, XVI, XVII e XVIII os papas, as testas-coroadas e os grandes

senhores faziam-se retratar com os santos de sua devoção.

As galerias artísticas e as sumptuosas cathedraes da velha Europa estão cheias desses

quadros nativos firmados pelos nomes os mais gloriosos do primeiro Renascimento, que

surgiu por detrás dos Apeninos como um grande pharol a illuminar o mundo, e do segundo,

que desmaiou, pode-se dizer, apenas nasceu em França, depois de um largo período de

decadência.

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O painel é considerado uma das melhores obras do notável artista José Leandro de

Carvalho.

Digno rival de seu chara Leandro Joaquim, o célebre pintor dos quadros da igreja do

Parto, reconstruído por Luiz de Vasconcellos, depois de um grande incêndio, José Leandro

deixou-nos os melhores retratos de el-rei D. João VI, que encontra nelle, para bem dizer, o seu

Apelles.

O painel, que mede 32 palmos de comprimento e 15 de largura, representa na parte

inferior os retratos em corpo inteiro da rainha D. Maria I, que conduz pela mão o príncipe D.

Pedro, e do Sr. D. João VI e da rainha D. Carlota. A parte superior é ocupada pela Senhora do

Carmo, cercada de anjos, tendo um delles uma palma e outro um escudo, onde está escripta a

seguinte legenda: Sub tuum praesidium confugimus. As pessoas reaes, que figuram do lado

direito da composição, são também guardadas por dois anjos, um dos quaes sustenta uma

esphera, onde se lê o seguinte: Nostra deprecationes ne despicias.

Bastante estragado pelo tempo, e estendido sobre uma larga mesa, em vasta sala, onde

outros quadros sombrios, com massas denegridas de betume, pareciam dormir tranquilos

como em uma necropolis o mesmo somno do esquecimento, não pude apreciar segundo

desejava todas as belezas da composição.

Vi, porém, que as figuras eram perfeitamente pintadas.

O colorido conserva ainda todo o vigor.

A technica resente-se entretanto da maneira do tempo, se bem que notam-se em alguns

pontos do quadro pinceladas de grande ousadia.

Disse que o painel tinha uma história.

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E esta história é infelizmente bem triste, porque foi ella, para bem dizer, a causa da

morte do grande pintor.

Ninguém ignora o quanto se exaltavam os ânimos e o que fez a política, que é a sujeita

mais desbragada que conheço, nos acontecimentos de 1831.

A arte, que paira em uma athmosphera límpida e serena com as aguras do antigo céo

de Thessalia, que deverá escapar pela nobreza de seu caráter e da sua missão às lutas de

pequenas misérias e ambições, soffre e bebe muitas vezes até as fezes a taça da armagura,

quando, como um leão indomável, se convulsiona a terra em que ella viu a luz e floresceu.

A mão sacrílega do Courbet, um artista e um artista de gênio, para maior vergonha

sua, deita abaixo a columna de Vendôme!

As balas de Napoleão I não pouparam o Cenacolo de Leonardo da Vinci!

A Venus de Millo, o mais bello padrão que nos legou a estatuaria romana, se não

tivessem enterrado como um thesouro precioso, na ultima guerra que ensanguentou a França e

a Allemanha, não estaria ainda hoje com a sua serenidade olympica inundando de luz a sala

do Louvre.

A política vitimou o painel de José Leandro.

Era preciso pensar uma esponja destruidora sobre aquellas figuras reaes.

Dessa missão foi incubido o pintor Debret.

Debret porém era artista, e artista de coração.

Rejeitou.

O seu pincel creava, não destruía.

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O que não fez, porém, o pincel de um pintor de raça, fe-lo a brocira do caiador.

As figuras de el-rei e de D. Maria I, do príncipe D. Pedro e de D. Carlota

desapareceram sob informes camadas de tinta e pretendendo figurar uma montanha.

O sicário que commetten tal attentado não teve felizmente a ideia de passar a

raspadeira sobre aquellas figuras antes de pintar o pretenso monte.

Leandro não pode resistir ao mutilamento de uma de suas mais bellas obras.

Tempos depois entregava a alma ao Creador.

Dezenove annos esteve occulto a parte inferior do painel.

Felizmente em 1850, se a memória não me falha, o artista João Caetano Ribeiro, um

dos mais notáveis seenographos que temos tido, encarregado de retocar a obra de José

Leandro, fez surgir, por meio de agentes chímicos, das camadas de betume da fatídica

montanha as ephigies da família real.

E a elle deve-se hoje o quadro, tal qual como saiu das mãos do pintor.

Olhando para aquelle painel e para outro que lhe estava ao lado, também pertencente à

capela imperial, o que representa a Ceia do Senhor, trabalho do artista Raymundo, via desfilar

diante de mim todo o nosso passado artístico.

O período colonial desenha-se-me na imaginação como Franz Post e Van Eckant, que

no domínio hollandez foram os primeiros que desbravaram aos europeus as fascinações da

linha e da cor da natureza tropical.

Lembrei-me de frei Ricardo do Pilar, esse pintor que se fez monge beneditino e que é

o ponto de partida donde surgiu a escola de Leandro Joaquim, José Leandro, Manoel da

Cunha, Raymundo e tantos outros.

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A figura gloriosa de Valentim da Fonseca, o qrtista daquella época que mais produziu,

passou-me pela mente com jaqueta preta, o seu calção de ganga, o seu capoto de cabeção e o

chapéu de três bicos.

Vi depois chegar às plagas guanabarenses a família Taunay, essa família abençoada, a

quem o Brazil do passado deve uma geração de artistas, e a do futuro há de dever, no actual

rebento della, ainda cheio de vigor e de crenças, a consolidação da grande obra de 13 de maio.

Ao lado de Nicolao Taunay, Augusto Taunay e Felix Taunay, via Grandjean de

Montigny, o architecto, Debret o pintor, e Ferrez o gravador.

E pergunto a mim próprio:

_ Estaremos hoje mais atrazados em artes que no período colonial e no tempo do Sr.

D. João VI?

Na próxima terça-feira, se Deus me der vida e saúde, hei de dizer o que penso a

respeito.

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ANEXO 2

Certidão de Óbito de Manoel Dias de Oliveira, 25 de abril de 1837.

Fonte: Arquivo Nacional.

Livro de funerais e mais sufrágios da Santa Casa de Misericórdia, de 1792 a 1854, folha

22.

Aos vinte e cinco de Abril de mil oitocentos e trinta e sete, faleceu com todos os Sacramentos

e sem testamento Manoel Dias de Oliveira, de idade de setenta e trez annos e quatro mezes e

trez dias, casado com Dona Maria Fiorencia de Jesus, deixou nove filhos seus universaes

herdeiros, de nomes, Luiz Manoel de Oliveira Dias, Candido Manoel de Oliveira Dias,

Joaquim Manoel de Oliveira Dias, Augusto Candido Dias, Emilia Justina Dias, Bernardina

Joaquina Dias, Candida Dias Manuel, Maria Candida Dias, e Carlota Joaquina Dias:

amortalhado em hábito franciscano, encomendado solemnemente pelo Reverendo Parocho, e

mais Sacerdotes e Sepultado de licença na Capella da Santa Casa de Misericórdia, de que fiz

este assento e assignei.

“O Coadjutor Hygino Avaro Delgado Pimenta”.

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