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Biblos, Rio Grande, 16: 177-189, 2004. 177 A COLONIZAÇÃO AÇORIANA NO RIO GRANDE DO SUL (1752-63)* LUIZ HENRIQUE TORRES ** RESUMO Fundamentação básica da emigração açoriana para o Rio Grande do Sul, destacando as motivações, a normatização para os emigrados, a viagem marítima e o povoamento açoriano da Vila do Rio Grande de São Pedro no período de 1752-63. PALAVRAS-CHAVE: colonização açoriana; Rio Grande; Rio Grande do Sul; história colonial. 1 – INTRODUÇÃO O ano de 1752 é o referencial cronológico que assinala o desencadear da imigração açoriana para o Rio Grande do Sul, a partir de sua chegada ao porto do Rio Grande de São Pedro. 1 Em anos anteriores, açorianos já desembarcaram no cais da então Vila do Rio Grande, porém a política dos casais se configurou em 1752 com a chegada de grande número de ilhéus. Este capítulo épico no povoamento do Rio Grande do Sul acarretou o surgimento de várias cidades gaúchas e a difusão de hábitos alimentares, de linguajar, de práticas agrícolas, de adaptações arquitetônicas, etc, expressos nas singularidades da cultura luso-açoriana. Na Vila do Rio Grande de São Pedro, assim denominada administrativamente a partir de 1751, 2 os açorianos tiveram um papel colonizatório essencial para o seu desenvolvimento urbano, demográfico * Resultados parciais do projeto 250 anos da Colonização Açoriana no Rio Grande do Sul. ** Professor do Dep. de Biblioteconomia e História – FURG. 1 Pesquisadores como Vera Lucia Maciel Barroso (Açorianos no Brasil. Porto Alegre: EST, 2002, p. 11) e Maria Luiza Bertulini Queiroz (A Vila do Rio Grande de São Pedro. Rio Grande: FURG, 1987) indicam o ano de 1752 como referencial da presença açoriana no Rio Grande do Sul. Mesmo que anteriormente casais açorianos já tivessem se deslocado de Santa Catarina até a Vila do Rio Grande, é nesse ano que os indicadores demográficos mostram uma entrada maciça dos ilhéus. 2 Ver: TORRES, 2001.

Luiz Henrique Torres - A Colonização Açoriana No Rio Grande Do Sul

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Fundamentação básica da emigração açoriana para o Rio Grande do Sul, destacando as motivações, a normatização para os emigrados, a viagem marítima e o povoamento açoriano da Vila do Rio Grande de São Pedro no período de 1752-63.

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  • Biblos, Rio Grande, 16: 177-189, 2004. 177

    A COLONIZAO AORIANA NO RIO GRANDE DO SUL (1752-63)*

    LUIZ HENRIQUE TORRES**

    RESUMOFundamentao bsica da emigrao aoriana para o Rio Grande do Sul, destacando as motivaes, a normatizao para os emigrados, a viagem martima e o povoamento aoriano da Vila do Rio Grande de So Pedro no perodo de 1752-63.

    PALAVRAS-CHAVE: colonizao aoriana; Rio Grande; Rio Grande do Sul; histria colonial.

    1 INTRODUO

    O ano de 1752 o referencial cronolgico que assinala o desencadear da imigrao aoriana para o Rio Grande do Sul, a partir de sua chegada ao porto do Rio Grande de So Pedro.1 Em anos anteriores, aorianos j desembarcaram no cais da ento Vila do Rio Grande, porm a poltica dos casais se configurou em 1752 com a chegada de grande nmero de ilhus. Este captulo pico no povoamento do Rio Grande do Sul acarretou o surgimento de vrias cidades gachas e a difuso de hbitos alimentares, de linguajar, de prticas agrcolas, de adaptaes arquitetnicas, etc, expressos nas singularidades da cultura luso-aoriana.

    Na Vila do Rio Grande de So Pedro, assim denominadaadministrativamente a partir de 1751,2 os aorianos tiveram um papel colonizatrio essencial para o seu desenvolvimento urbano, demogrfico

    * Resultados parciais do projeto 250 anos da Colonizao Aoriana no Rio Grande do Sul.** Professor do Dep. de Biblioteconomia e Histria FURG.1 Pesquisadores como Vera Lucia Maciel Barroso (Aorianos no Brasil. Porto Alegre: EST, 2002, p. 11) e Maria Luiza Bertulini Queiroz (A Vila do Rio Grande de So Pedro. Rio Grande: FURG, 1987) indicam o ano de 1752 como referencial da presena aoriana no Rio Grande do Sul. Mesmo que anteriormente casais aorianos j tivessem se deslocado de Santa Catarina at a Vila do Rio Grande, nesse ano que os indicadores demogrficos mostram uma entrada macia dos ilhus. 2 Ver: TORRES, 2001.

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    e econmico. Sero analisados, de forma preliminar, as motivaes, esperanas e decepes do movimento colonizador aoriano especialmente na atual cidade do Rio Grande no perodo de cerca de uma dcada, entre 1752 e 1763. Portanto so os primrdios de um povoamento que se difundiu e marcou a formao e povoamento de muitas localidades do Rio Grande do Sul a partir do perodo colonial.

    2 O ARQUIPLAGO DOS AORES

    Portugal est dividido geogrfica e administrativamente em parte Insular (arquiplago da Madeira e dos Aores no Oceano Atlntico) e parte Continental, situada em territrio europeu. O arquiplago dos Aores localiza-se no Atlntico Norte, estando dividido em trs grupos de ilhas: grupo Oriental, constituda por Santa Maria e So Miguel; grupo Central, constitudo pelas ilhas Terceira, So Jorge, Pico, Faial e Graciosa; e o grupo Ocidental, formado pelas ilhas Flores e Corvo. Atualmente, o territrio possuiu uma rea de aproximadamente 2.333km. A Ilha de So Miguel a de maior rea, com 750km, seguida da terceira, com 500km; a menor a do Corvo, com 15km.

    Os Aores esto distantes 800 milhas da costa de Portugal, estando sob o domnio portugus desde 1432. O arquiplago foi historicamente povoado por descendentes de portugueses e flamengos (Flandres e Blgica). O clima dos Aores temperado martimo e com intensa umidade relativa do ar. A situao geogrfica do arquiplago,isolado no Oceano Atlntico e com fenmenos vulcnicos, fez com que os ilhus estivessem voltados para o mar; ao mesmo tempo que imps a solido, despertou a criatividade para a sobrevivncia nas limitaes do espao atravs da expresso cultural. O Oceano acabou sendo a fronteira da expanso agrcola que instigou a expectativa de dias melhores e de fartura em terras que o homem tornaria produtivas pelo trabalho.3

    3 ANTECEDENTES DA COLONIZAO

    O Rio Grande do Sul luso-brasileiro da primeira metade do sculo XVIII se restringia a poucos ncleos populacionais, cujo centro estava na Comandncia do Presdio do Rio Grande de So Pedro, centro administrativo e militar que demarcava efetivamente a orientao da diplomacia portuguesa em garantir o domnio sobre o atual Rio Grande do Sul. Grande parte do espao almejado, o centro e o noroeste, estava

    3 VIEIRA; RANGEL, 1988, p. 184.

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    sob o controle da Coroa Espanhola com o projeto civilizatrio jesutico-guarani das Misses, constituda por sete cidades e amplas estncias missioneiras para a criao do gado. Os portugueses buscavam o controle do litoral e sul, com as fortificaes em Rio Grande e tambm na direo da atual fronteira com o Uruguai (Forte de So Miguel), buscando a ligao com a Colnia do Sacramento do Rio da Prata. Nos quadros do uti possidetis, a legitimao do direito de posse atravs do efetivo povoamento dos territrios almejados, os aorianos foram vistos como os potenciais desbravadores a ocuparem os espaos deixados pelas aes diplomticas e blicas lusitana. Com o Tratado de Madri de 1750, a necessidade de povoamento da regio missioneira a ser abandonada pelos guaranis intensificou a busca de um efetivo povoamento pelos aorianos nesta regio litigiosa. Por uma srie de fatores histricos, isto no acabou se efetivando, porm, a participao populacional aoriana fez surgir vrios povoamentos e odesenvolvimento de atividades econmicas essenciais ao longo do sculo XVIII. O Tratado de Madri estabelecera, como condio para a vigncia de uma paz definitiva entre Portugal e Espanha, que a Colnia do Sacramento passasse Coroa castelhana, e que, em troca, entregava soberania portuguesa o territrio ao Norte do Ibicu, onde estavam as Misses Jesutico-guaranis. Para demarcar a linha de fronteiras, regressou ao Rio Grande o Governador e Capito General do Rio de Janeiro e Minas, Gomes Freire de Andrade; na qualidade de embaixador e representante de Portugal e chefe supremo da Comisso Demarcadora, sendo, com iguais ttulos, representante de Espanha, o Marqus de Val de Lyrios.

    J em consulta datada de 26 de agosto de 1738, o Conselho Ultramarino portugus dirigiu-se ao rei, sugerindo que casais das ilhas fossem enviados ao Presdio do Rio Grande de So Pedro: (...) visto se achar estabelecida a fortificao do Rio Grande de So Pedro que V. Majestade se sirva querer tomar a ltima resoluo nas consultas que o Conselho tem posto na real presena de V. Majestade para os transportes dos casais das Ilhas para o mesmo estabelecimento, porque s por este meio se poder evitar a grande despesa que precisamente se h de fazer com os transportes dos mantimentos do Rio de Janeiro por falta de cultivadores que naquelas vastssimas terras os fabriquem, alm de ficarem, estes, tambm igualmente servindo para a sua necessria defesa, e ser do interesse do Estado acrescentarem-se o nmero de povoadores, o que para crescer consideravelmente as rendas reais do mesmo Estado, assim nos dzimos das terras que cultivarem como tambm nos direitos das alfndegas dos gneros a que precisamente ho de dar consumo, matria esta que se faz digna da

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    alta e grande compreenso de V. Majestade."4

    Apesar de migrarem para promoverem o desenvolvimento de atividades agrcolas, as quais, por exemplo, foram implementadas inclusive com o plantio do trigo, os aorianos foram, ao longo das dcadas, transformando-se de colonos agricultores em fazendeiros-criadores. Os primeiros estancieiros do Rio Grande do Sul, cuja distribuio de sesmarias teve incio oficial em 1732, procediam de Laguna e tambm da Colnia do Sacramento e, a partir da dcada de 1750, os aorianos passam a ocupar estes espaos.

    O aspecto mais destacado que impulsionou a colonizao aoriana no Sul do Brasil deveu-se presso demogrfica e concentrao territorial, associada a um fraco crescimento econmico das ilhas. Alm disso, o arquiplago foi assolado por vulcanismo, abalos ssmicos e cataclismas que deixaram apreensiva a populao.

    4 NORMAS PARA OS EMIGRANTES

    O governo de Portugal acompanhava as aspiraes dos ilhus e,atravs do Conselho Ultramarino, definia as estratgias geopolticas para a expanso territorial e populacional do Imprio ultramarino lusitano. Em 31 de agosto de 1746, foi publicado, nas Ilhas dos Aores,um edital5 que abria inscries para os casais que almejassem transferir-se para o Brasil. Por esse documento, o Rei acenava com uma srie de privilgios e regalias aos que quisessem lanar-se na aventura da imigrao. Entre esses privilgios, inclua-se o transporte at o local de origem por conta da Fazenda Real. O critrio bsico para inscrio era uma idade limite de 40 anos para os homens, e de 30, para as mulheres.

    Quando desembarcassem no Brasil, as mulheres que tivessem idade superior a 12 anos e inferior a 20, casadas ou solteiras, receberiam uma ajuda de custo individual de 2$400 ris. Os casais receberiam 1$000 por cada filho. Os artfices receberiam 7$200 de ajuda. Ao chegarem ao local de povoamento, receberiam "uma espingarda, duas enxadas, um machado, uma enx, um martelo, um faco, duas facas, duas tesouras, duas verrumas, uma serra com uma lima e travadoura, dois alqueires de sementes, duas vacas e uma gua".

    4 Ver coleo de documentos de Jos da Silva Paes (1949).5 Registro do edital que Sua Majestade mandou imprimir para os moradores das Ilhas dos Aores e casais, e todos os mais que se quisessem alistar para povoadores deste estabelecimento e Santa Catarina. In: Revista do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro. Rio de Janeiro: IHGB, 1877, t. 40, I, p. 217.

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    Enquanto preparavam as terras para o cultivo agrcola, esperando as primeiras colheitas, seriam sustentados pela Fazenda Real. No primeiro ano, conforme o edital: "se lhes dar a farinha que se entende basta para o sustento, que so trs quartas de alqueire de terra por ms para cada pessoa, assim dos homens, como das mulheres, mas no s crianas que no tiverem sete anos; e, aos que tiverem at quatorze, se lhes dar quarta e meia para cada ms". O edital prometia iseno do servio militar para os homens. Cada casal deveria receber uma data de terra de um quarto de lgua quadrado, ou seja, 272 hectares. No caso de uma famlia ser muito numerosa e necessitar de maior quantidade de terras para cultivar, poderiam fazer a solicitao. O edital ainda previa a vinda de casais de estrangeiros, desde que no pertencessem a outras naes que tivessem domnios na Amrica. Para melhor disciplinar o assunto, a Coroa resolveu estabelecer em 4.000 o nmero mximo de casais que deviam ser transportados; e para facilitar, bem como ordenar o referido transporte, arrematou-se a Feliciano Velho Oldenberg, que noano seguinte desembarcava no Rio de Janeiro os primeiros contingentes. O nico critrio de seleo era o limite de idade e a prtica da religio catlica. Dadas estas providncias, outro documento disciplinou o seu estabelecimento no Brasil. Por este documento, se v que os casais deveriam ser fixados em nmero de 60 nas terras devolutas de cada localidade, onde se faria a distribuio das datas. Entre as datas assim distribudas, deveria destinar-se uma lgua quadrada para logradouro pblico. Nele, deveria ser assinalado o quadrado da praa, que seria de quinhentos palmos de face, e num dos lados deveria edificar a Igreja. Como se v, trata-se do planejamento de ncleos habitacionais que seriam as futuras vilas ou cidades do Brasil Colonial.

    Cultivadores de trigo, de cevada, de legumes, de vinho, de frutas, de hortalias, criadores de ovelhas e de gado, agricultores, os aorianos eram pequenos agricultores ou pequenos proprietrios. Agricultores de tradio, entre eles, os homens se distinguiam quase que exclusivamente pela sua maior ou menor riqueza agrcola. A opulncia era avaliada pela quantidade de trigo que recebiam dos seus rendeiros. No Sul do Brasil, a formao pecuarista definia a riqueza num mercado fundado no gado, e que teve como referncia histrica o territrio da antiga Colnia do Sacramento do Rio da Prata, cuja economia baseava-se na criao de gado e aproveitamento e comrcio de couros. Dessa atividade econmica, participavam os portugueses da Colnia do Sacramento, espanhis de Buenos Aires, Santa F e Corrientes. Em 1695, o porto do Rio de Janeiro exportava 5.000 couros de procedncia platina e sul-rio-grandense, o que mostra a importncia deste comrcio,

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    que atrairia tambm os aorianos, alm dos lagunenses e paulistas que motivaram a valorizao econmica e a integrao do Rio Grande do Sul a partir da rota Sacramento-So Paulo.

    Os conflitos entre espanhis e portugueses pela posse da Colnia do Sacramento determinaram a ocupao do territrio Rio-grandense, cujo valor econmico foi destacado pelo brigadeiro Jos da Silva Paes: "Ainda no se sabe l dos grandes e fertilssimos campos debaixo de seus domnios desde o Rio Grande e Serra de So Miguel a Passo de Chu..." A defesa da Colnia do Sacramento tornava onerosas as aes militares lusitanas. Era necessrio ocupar a rea almejada para edificar uma barreira expanso espanhola. Neste contexto, surge a iniciativa de promover o povoamento com ilhus.6

    6 Para Jos Feliciano Pinheiro "... anuindo o soberano s representaes dos habitantes das ilhas do Aores e Madeira para alivi-las da sobeja populao que ali gorgulhava, decretou que se transportassem para este pas, custa da real fazenda, at quatro mil casais, ainda que estrangeiros fossem, contanto que professassem a religio catlica romana, principiando a introduo pela ilha de Santa Catarina, e continente imediato; arrematou o transporte Feliciano Velho de Oldemberg com vinte e quatro condies, concernentes ao cmodo e agasalho deles at os lugares do seu destino; debaixo das clusulas, que os homens no seriam de mais de quarenta anos de idade, e as mulheres de mais de trinta; que logo que desembarcassem no Brasil, a cada mulher que fosse de mais de doze anos de idade e de menos de vinte e cinco, casada ou solteira, se dariam dois mil e quatrocentos ris de ajuda de custo, e aos casais, que levassem filhos, mil ris cada um para ajudar a vesti-los; que chegando aos stios designados para sua habitao se daria a cada casal uma espingarda, duas enxadas, um machado, uma enx, um martelo, um faco, duas facas, duas tesouras, duas verrumas, uma serra, lima e travadeira, dois alqueires de sementes, duas vacas, uma gua, e no primeiro ano se lhes daria a farinha, que se entendesse bastante para o sustento, que vinha a ser trs quartas do alqueire da terra por ms para cada pessoa, assim homens como mulheres, mas no s crianas, que ainda no contassem sete anos e s que tivessem at quatorze anos, se assistiria com quarta e meia por ms; que os homens, que passassem por conta de Sua Majestade, ficariam isentos de servir na tropa paga, contanto que dentro em dois anos se estabelecessem onde se lhes destinasse, e se concederia a cada casal um quarto de lgua em quadra para principiar sua cultura, sem que pelo ttulo desta data se exijam direitos ou emolumento algum, e quando pelo tempo adiante aumentem de famlia com que possam cultivar mais terreno, o pediriam ao governador do distrito que lho conceder na forma das ordens sobre esta matria. As mesmas convenincias e vantagens se estendiam aos casais, naturais das ilhas, que quisessem vir de Portugal, por ali j se acharem, e aos casais estrangeiros, que no fossem vassalos de soberanos, que tivessem domnios na Amrica, aos quais pudessem passar-se, dando aos que fossem artfices uma ajuda de custo, segundo o grau de percia, no excedendo de 7.200 ris a cada um; que, no primeiro ano da chegada, se assistiria com medicamentos aos casais doentes; que pelos filhos dos assim transmigrados, que casassem dentro do ano, serepartiria a mesma mencionada quantidade de ferramentas, armas, sementes e terra de cultura; que aos novos povoadores destas paragens fazia Sua Majestade merc pelos primeiros cinco anos da sua chegada de isent-los de todo tributo, exceo dos dzimos;que distribudos em arranchamentos ou povoaes de sessenta casais, pouco mais ou menos, delineando a largura das ruas, praa e logradouro pblico, se prevenia para que

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    O documento oficial disciplinador dos ncleos de povoadores refere-se a povoados de 60 casais como nmero ideal para povoamento, porm, o deslocamento dependia da disponibilidade de transporte martimo para o envio, conduzindo nmeros diferenciados de casais que comeam a chegar em grande nmero ao porto do Rio Grande, a partir de 1752. Um documento enviado junto com o ofcio de 22 de setembro de 1780, do vice-rei Lus de Vasconcelos e Sousa para o governador Sebastio Xavier da Veiga Cabral da Cmara, traz o nome dos primeiros colonizadores:

    "Relao dos primeiros casais e filhos dos ditos que foram para o Rio Grande na Sumaca N. Sra. da Conceio, Santo Antnio e Almas, de que mestre Jos Joaquim de Freitas Lisboa.

    1. Jos Rodrigues e sua mulher Ana Jacinta. Filhos: Manuel, Maria, Ana e Rosa.

    2. Joo Duarte e sua mulher Teresa Maria. Filhos: Manuel, Jos, Antnio, Joo, Maria, Teresa e Catarina.

    Cada um destes cabeas de casal recebeu uma enxada, uma espingarda, uma serra, uma foice, um machado, uma picareta, uma enx, uma fechadura e um martelo.

    Casais que ficaram para ir na primeira ocasio que se oferecer:1. Jorge da Serra e sua mulher Josefa Teresa. Filhos: Francisca,

    Antnia, Jos, Ana e Maria.2. Manuel Francisco e sua mulher Maria Rosa. Filhos: Jos,

    Manuel, Maria, Ana e Rosa.3. Jos Antnio e sua mulher Rosa Clara. Filhos: Francisca,

    Antnio, Catarina e Maria.4. Antnio Incio da Silveira e sua mulher Maria Jacinta. Filhos:

    Manuel, Diogo, Mariano, Antnia.5. Joo Francisco de Sousa e sua mulher Genoveva Incia.

    Filhos: Jos, Manuel, Clara, Teresa, Mariana e Mariana Rosa, cunhada dos ditos.

    lhes faltasse o pasto espiritual e sacramentos, que se erigissem igrejas com suficiente capacidade e se nomeassem para cada uma delas vigrios com a cngrua de sessenta mil ris, e um quarto de lgua em quadro para passal da sua igreja, etc. Mandou El-Rei escrever ao Provincial da Companhia de Jesus para que enviasse quelas terras dois missionrios; e ao bispo de So Paulo, a quem ento obedecia no espiritual todo aquele territrio, avisou, pela Mesa de conscincia e Ordens, que provesse cada igreja destas de um vigrio, ao qual no primeiro ano se assistiria com o sustento, e mais cmodos da vida, como aos outros colonos, que findo o contrato atual da comarca de So Paulo, no qual se incluem os dzimos daquele distrito do Sul, se faa ramo parte, pertencendo a arrecadao do rendimento provedoria do Rio de Janeiro, para dele se pagarem as cngruas dos vigrios e missionrios". PINHEIRO, 1982, p. 71-72.

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    6. Antnio Alvarns, solteiro".7

    5 A VIAGEM

    O deslocamento dos aorianos das Ilhas para o Brasil envolveu as normas oficiais da Coroa Portuguesa, o transporte martimo e as difceis condies de sobrevivncia durante a viagem. A travessia martima pelo Atlntico no sculo 18 era demorada, e com riscos considerveis sade dos passageiros. Antecedendo a migrao alem e italiana do sculo 19, os aorianos sofreram de forma ainda mais dramtica as dificuldades de deslocamento at a terra da promisso: o Brasil.

    O primeiro empresrio responsvel pelo transporte dos aorianos, o contratador de tabacos Feliciano Velho Oldenberg, recebeu do rei de Portugal a autorizao para comerciar livremente, no Brasil em troca do transporte gratuito de um casal de aorianos para cada cem toneladas de carga transportada. A participao de Oldenberg foi muito criticada, inclusive pelas autoridades, devido s pssimas condies do transporte e pelo grande nmero de mortos e doentes durante a viagem.

    Para Miguel Frederico do Esprito Santo8, a viagem, que levava de dois a trs meses, era extremamente penosa, no discrepando das viagens comuns do sculo 18. A falta de higiene tornava precria a convivncia a bordo do navio. No havia o hbito do banho, e no navio no havia gua disponvel para este fim. Como os passageiros no mudavam a roupa, o cheiro a suor e a sujeira acumulavam-se. O local onde dormiam, mesmo sendo diariamente lavado, no chegava a secar,fazendo com que a umidade aumentasse a pestilncia do ar. "O transcurso era extremamente penoso. O ambiente no barco era promscuo, os alimentos eram escassos, a higiene era deficiente, e agua apodrecia poucos dias depois de comeada a viagem. A maior parte dos passageiros adoecia: febres, infeces intestinais, pneumonias, crises de fgado, escorbuto. A mortalidade era grande. Os corpos eram jogados ao mar. O escorbuto, ou mal de Luanda, era o que mais estrago gerava, provinha da carncia de vitamina C, e era caracterizado por hemorragias".

    Conforme o historiador Henrique Wiedersphan, o Regimento Rgio de 5 de agosto de 1747 buscava garantir a ordem nos navios e promoveu o isolamento das mulheres do contato com os demais

    7 Correspondncia com o governador do Continente do Rio Grande. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. Cdice 104, v. 2. In: SANTOS, 1984, p. 25.8 ESPRITO SANTO, 1993, p. 21.

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    passageiros. "O Regimento chegara a impor um regime de verdadeiro enjaulamento, como se as mulheres estivessem em prises, recebendo seus alimentos atravs de postigos, etc. Somente o cirurgio e o capelo podiam penetrar nos alojamentos delas, que a viajavam com seus filhos menores, e, assim mesmo, apenas para trat-las ou para sacrament-las, tudo na presena obrigatria do comandante do navio. Permitia-se tambm falassem com elas os respectivos maridos, filhos e irmos, embora apenas a hora da refeio principal, e sem se achegarem muito delas".9

    Na interpretao do historiador catarinense Oswaldo Rodrigues Cabral, as mulheres eram as maiores penalizadas durante as viagens. Segundo ele, "quando nos dias santificados celebrasse o capelo, poderiam as mulheres sair a ouvir missa ao p do altar, passando, na ida e na volta, entre alas de guardas armados que as separavam do resto dos homens, colonos e tripulantes. Durante os ofcios, ficavam frente, separadas sempre pela dita guarda, e, acabada a cerimnia, regressavam priso, na qual se sujeitavam disciplina imposta por duas dentre todas, de maior graduao e capacidade". Os alojamentos eram mal arejados e superlotados, e os espaos destinados s mulheres eram minsculos, "no se pode permitir nem ao menos o pensamento de estas cmaras, em que as pobres mulheres faziam a travessia, com rarssimas e rapidssimas sadas, pudessem oferecer, para amenizar todo o rigor do isolamento, qualquer sombra de conforto. Os melhores cmodos eram para as pessoas de qualidade e para os capeles. Se algum homem ousasse dirigir-se a qualquer das mulheres, sem as imunidades do parentesco, arriscava-se a ter diminuda a sua rao, com priso na casa da bomba que no havia de ser muito confortvel , ou a ser metido a ferros por tempo varivel, de acordo com a gravidade da transgresso".10

    Ainda segundo Oswaldo Rodrigues Cabral, "no de admirar, com semelhantes disposies, que a viagem se transformasse num verdadeiro tormento, principalmente para as mulheres e para as crianas que lhes faziam companhia, as quais, no poucas, no puderam resistir, adoecendo e morrendo durante os meses da travessia". Infelizmente, "muitos dos que abandonaram as ilhas na esperana de melhores dias no Brasil desejado, foram sendo sepultados nas guas do Atlntico, com os seus sonhos e com as suas iluses. E os que resistiram chegaram ao seu destino como verdadeiros espectros". Com a deteriorao da gua aps poucos dias e com a

    9 WIEDERSPHAN, 1979, p. 21.10 CABRAL, 1950, p. 503 -608.

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    alimentao "exclusivamente composta de gneros em conserva, pobre de vveres frescos, comeassem j os viajantes a sofrer as conseqncias, com o aparecimento das mais variadas afeces. Na promiscuidade dos alojamentos, as afeces iam passando de uns para os outros. Surgia a parasitose. Surgiam as disenterias. E, com o decorrer dos dias, quando a viagem se adiantava, em meio do caminho entre o cu e o mar, aparecia o pior: o mal de Luanda".

    O pesquisador da temtica aoriana Joo Borges Fortes, no livro Casais, relatou que, em 1750, Francisco de Souza Fagundes substitura Feliciano Velho Oldenberg no transporte dos aorianos ao Brasil. Porm, o tratamento no melhorou. Um navio levava at trs meses de viagem at Ilha de Santa Catarina, e, quando nesta chegava, "eram doentes, mortos e moribundos no meio de um monto de estropiados que desembarcavam, num desfile ttrico ante o povo e autoridades". Manuel Escudeiro de Souza, governador da Ilha de Santa Catarina, fez um relato ao rei sobre um desembarque dos migrantes. "Trs navios haviam chegado com pouca diferena um do outro. O ltimo aportou no dia 20 de janeiro (1750), trazendo mortos 10 adultos e dezesseis crianas, outros morreram ao desembarcar, e 130 se recolheram doentes a dois hospitais, com malignas e correio escorbtica."

    Borges Fortes tambm se refere desgraa que atingiu duas outras embarcaes: "A 23 e 25 de maio desse terrvel ano de 1753, ocorreu o doloroso naufrgio de duas sumacas carregadas de famlias aorianas que se encaminhavam para o Sul. O trgico acontecimento deu-se na barra Sul de Santa Catarina, na ponta da Ilha, que desse fatal sucesso recebeu o nome sinistro de Ponta dos Naufragados. Dos infelizes nufragos, s se salvaram 77 pessoas, que tudo perderam do que lhes pertencia, tendo de recorrer bondade de seus semelhantes e do governo local, sendo todos de manifesta generosidade para com os desgraados. Desses 77 salvos, poucos foram para o Rio Grande, a maior parte preferiu estabelecer-se na Vila Nova da Laguna, hoje cidade de Imbituba. Temos portanto, positivamente, que, at o ano de 1753, a estatstica de 278 casais entrados no Rio Grande no sofreu oscilao sensvel, portanto os desastres martimos no permitiram acrescentar o saldo das remessas".11

    Constata-se que a viagem era o primeiro grande desafio a ser vencido. Tanto na rota Aores-Santa Catarina quanto na viagem em embarcaes menores para Rio Grande. Desafio que seria acrescido de outros, ligados a posse da terra, produo agrcola, adaptao

    11 BORGES FORTES, 1978, p. 63 -64.

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    sociocultural e a sobrevivncia destes colonos aorianos no Brasil.12

    6 AORIANOS NA VILA DO RIO GRANDE DE SO PEDRO (1752 -1763)

    Desde janeiro de 1748, os casais aorianos comearam a desembarcar no porto do Desterro em Santa Catarina, porm, Vila do Rio Grande de So Pedro eles s chegaram na dcada seguinte. Em setembro de 1749, um espio espanhol esteve observando a Vila, e constatou que nenhuma famlia havia chegado ocupao portuguesa. A expectativa da vinda dos casais aoriana est contextualizada nas tratativas do Tratado de Madri, assinado em janeiro de 1750, quando a efetiva ocupao das terras, o uti possidetis, era o desafio que a Coroa de Portugal buscou enfrentar com um povoamento planejado com os ilhus. A consolidao dos portos do Desterro, na Ilha de Santa Catarina, e do Rio Grande, no canal do Rio Grande de So Pedro, garantia o controle do litoral meridional, propiciando a expanso colonizatria lusa em direo ao oeste, a almejada regio ocupada pelas Misses Jesutico-Guaranis.

    A vinda de casais aorianos para Rio Grande j estava ventilada em documento da Coroa portuguesa (1735), o qual permitia que "em cada navio que partisse das Ilhas dos Aores para o Brasil se enviasse cinco casais para os presdios da Ilha de Santa Catarina e Rio Grande de So Pedro". Portanto, antes da efetivao da ocupao do canal sul, a Coroa j incentivava o povoamento aoriano. A presso para efetivao de uma sistemtica migrao foi feita nas Ilhas pelos aorianos, especialmente a partir de 1746. O contrato com o empresrio responsvel pelo transporte, Feliciano Velho Oldenberg, foi assinado em

    12 "Os casais aorianos foram trazidos para povoarem a capitania, e fundaram uma agricultura intensiva, sendo arranchados em regies que determinaram quase sempre o nascimento de cidades ou foram colocados ao derredor de incipientes centros urbanos, como em Rio Pardo e Rio Grande. Vieram diretamente do arquiplago, da Colnia do Sacramento e de Santa Catarina, o que precisa ser distinguido. Mas encontram logo na pecuria uma atrao lucrativa melhor do que na agricultura, pois as safras de trigo, que eram as principais, nem sempre correspondiam ao sacrifcio que faziam. No se afirme que todo o ilhu se transformasse em fazendeiro, entretanto, lutou para o conseguir. Jernimo Machado da Silveira, da ilha do Fayal, era fazendeiro na margem do Jacu, como os aorianos Joo Pereira dgueda, Mateus Simes Pires e Manoel Gonalves Mancebo, todos com sesmarias no Rio Pardo. certo que os aorianos, como casais de nmero, quando chegaram no receberam as sesmarias, mas sim datas de terras que era, apenas, de 272 hectares quando a sesmaria tinha 13.010 hectares. Visando-se a agricultura, trataram as autoridades de organizar e dividir a propriedade, entretanto, a gente aoriana foi, com o decorrer do tempo, tambm o estancieiro da campanha gacha". LAYTANO, 1983, p. 21-22.

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    1747, na expectativa de transportar 1.000 pessoas at a Ilha de Santa Catarina. Outro empresrio foi Francisco de Souza Fagundes, que,entre 1749 e 1754, foi responsvel pelo transporte de ilhus, os quais, segundo Walter Piazza, totalizaram aproximadamente 6.071 pessoas que chegaram at a Ilha de Santa Catarina.

    O deslocamento para Rio Grande ainda dependia, segundo o governador da Ilha de Santa Catarina Manuel Escudeiro, em "selecionar aqueles que ainda estivessem em condies de poder suportar um acrscimo de vrios dias aos que j traziam de viagem", e tambm em "conseguir embarcaes de pequeno calado capazes de transpor o porto do Rio Grande". O Conselho Ultramarino instruiu para que "todas as embarcaes que se destinassem ao Rio Grande fizessem escala em Santa Catarina, para transportar os casais em condies". Esse transporte assistemtico e possivelmente em grupos reduzidos dificulta uma concluso de quantos casais vieram para Rio Grande. Conforme a historiadora Maria Luiza Queirz,13 o primeiro assentamento de casais na Vila remonta a 22 de novembro de 1750, indicando uma pequena entrada neste ano.

    Para Queirz, a Vila do Rio Grande foi a porta de entrada da corrente aoriana que se deslocou da Ilha de Santa Catarina para o continente do Rio Grande. Atendendo ao objetivo principal de sua imigrao, os casais deveriam ser deslocados em grupos para o interior,e l aguardar a ocasio para ocupar a regio das Misses. Entretanto, a resistncia indgena, j a partir de 1753, e a conseqente Guerra Guarantica, que se estendeu at 1756, tornaram impossvel a concretizao desses planos e determinaram a permanncia da quase totalidade do contingente aoriano na prpria Vila do Rio Grande. provvel que, entre 1752 e 1754, grupos de casais tenham apenas passado pela Vila, seguindo logo para o interior; nessa poca, Gomes Freire fortificava trs reas, estrategicamente, importantes para manter acesso regio a ser incorporada; Santo Amaro, onde estabeleceu os armazns de abastecimento do Exrcito, Rio Pardo, onde erguera o Forte de Jesus-Maria-Jos para garantir aquela fronteira, e o porto do Arraial de Viamo, base de manuteno dos outros dois pontos. Os historiadores Joo Borges Fortes e Oswaldo Cabral apontam o ms de abril de 1752 como a referncia para a vinda dos casais aorianos de Santa Catarina. Mesmo que esporadicamente tenham chegado desde 1750, neste ano que a presena aoriana quantitativa nos dados demogrficos da Vila do Rio Grande. O impulso da colonizao aoriana est demarcado no ano de 1752, o que pode ser constatado nos

    13 QUEIROZ, 1987, p. 91ss.

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    batizados da populao livre aoriana, que, em 1751, foi quatro registros, e, em 1752, passou para 42 registros.

    Queiroz acentua que a importncia da imigrao aoriana para a Vila do Rio Grande, em termos demogrficos, foi excepcional. Ela representou um acrscimo, em menos de cinco anos, de pelo menos 1.273 pessoas adultas brancas, a uma populao que, incluindo todos os grupos raciais, na metade da dcada anterior, teria 1.400 almas. De imediato, estabeleceu-se um predomnio numrico do grupo sobre a populao branca da vila, e, possivelmente, tambm sobre o conjunto da populao livre. A historiadora tambm destacou que a produo aoriana foi fundamental para afastar da Vila o espectro da fome, que arondava desde a sua fundao. A populao j no dependia apenas da carne e da importao de farinha para sobreviver, e podia contar com hortalias, legumes e frutas que eram produzidos para o consumo interno. Como bem salientou Borges Fortes, "s a Vila do Rio Grande tinha se beneficiado com a esplndida sementeira que ali ficara retida". Na verdade, esses eram os resultados esperados pela Coroa ao promover a imigrao aoriana para o sul do Brasil, e certamente mais amplos teriam sido se as terras, animais e implementos tivessem sido distribudos na forma proposta.

    Em relao ao lugar social dos aorianos na Vila do Rio Grande, Queiroz observa que o insignificante nmero de famlias aorianas que se tornaram proprietrias de escravos at abril de 1763 (invaso espanhola) significa claramente que, nesta fase, a mo-de-obra bsica das pequenas propriedades as chcaras ou stios , que os casais aorianos partilharam com tios, primos, sogros, e outros casais, foi essencialmente livre, branca, aoriana; os aorianos constituram a autntica classe camponesa da sociedade rio-grandina deste perodo.

    De acentuada relevncia foi o povoamento da Vila do Rio Grande de So Pedro, pelo contingente aoriano at 1763. Porm, em outras localidades do Rio Grande do Sul, os aorianos ficaram abandonados do apoio estatal prometido. O drama pico da sada das ilhas e chegada ao Brasil persistiu nas dcadas posteriores a sua chegada. O assentamento previsto na Proviso de 9 de agosto de 1747 foi protelado por dcadas. Portugal, neste perodo, estava com a balana comercial deficitria. A ocupao do territrio missioneiro, a partir do previsto no Tratado de Madrid, frustrou as expectativas dos casais, pois a rea continuou sobre controle da Coroa Espanhola. A economia mineradora no Brasil colonial apresentava queda na produo, e a cotao internacional do acar era baixa. Os custos de manuteno das tropas e a reconstruo de Lisboa, que fora destruda pelo terremoto e maremoto de 1755, deixou deficitrio o Errio Rgio lusitano. Uma situao metropolitana e ultramarina

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    complexa em que a colonizao aoriana inseriu-se e que os colonos sentiram severamente os efeitos, inclusive com a dominao espanhola na Vila do Rio Grande. Aps a retomada lusitana e expulso espanhola, durante os governos do brigadeiro Marcelino de Figueiredo (1769-1780) e do brigadeiro Sebastio da Veiga Cabral e Cmara (1780-1801), que o povoamento aoriano, que j havia difundido-se, passou a ser organizado com legalizao de terras em ncleos como Porto Alegre, Viamo, Osrio, Mostardas, Santo Amaro, Cachoeira, etc. Novas conjunturas e perspectivas abriam-se aos colonizadores dos Aores nas duas ltimas dcadas do sculo XVIII. Aps a viagem martima, o drama do abandono e do conflito com os espanhis, novos desafios aguardavam os colonizadores aorianos nos primrdios do sculo XIX.

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