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A atualidade de Lukács: Polêmica contra a apologética da irracionalidade em Nietzsche Por Antônio Câmara O texto visa revisitar a discussão de Lukács acerca da emergência do pensamento irracionalista de Nietzsche, por se entender que este encontra espaço hoje, particularmente na formulação do pós-modernismo, que combate o pensamento de origem iluminista e a racionalidade presente no conjunto do pensamento científico e filosófico da modernidade.(1) As reflexões de Lukács podem ser retomadas como ferramentas para a discussão do declínio da racionalidade científica, com o surgimento de tendências teóricas de estetização do cotidiano e da ciência, silenciando sobre questões cruciais postas pela exploração capitalista. A propósito da decadência do pensamento burguês A questão da decadência do pensamento burguês, a partir de meados do século XIX, é abordada por Lukács, de modo enfático, em várias de suas obras. A apologética do capitalismo, segundo ele, passa a ocupar, a partir deste período, um lugar central nas formulações filosóficas e científicas, particularmente nas ciências humanas. Mas, nestas obras, além destes modos de pensar e apreender a realidade, o referido autor enquadra, no esquema de suas reflexões a respeito da decadência ideológica, outras formas, inclusas no campo da arte.(2) A nosso ver, o procedimento de Lukács, ao investigar o progressivo abandono da razão e o surgimento de uma apologética capitalista encontram-se na linha de desenvolvimento do pensamento de Marx.(3) Além de Lukács, foi a Escola de Frankfurt que se debruçou, de modo cuidadoso, sobre a questão da razão, seja na versão hegeliana-marxista de Adorno e Horkheimer,(4) que observaram a progressiva deterioração da razão iluminista (que se teria tornado a razão instrumental do nosso tempo); seja na versão mais contemporânea de Habermas que, ao passo que critica a razão instrumental do nosso tempo, propõe a construção de uma nova razão: a razão comunicativa. Horkheimer verifica que tanto a teoria da razão objetiva "segundo a qual a razão é um princípio inerente da realidade"; quanto a teoria da razão subjetiva, que entende "que a razão é uma faculdade da mente", postulando que "apenas o sujeito pode ter verdadeiramente razão", estariam contemporaneamente em crise, pois o pensamento ou se tornou incapaz de conceber tal objetividade em si ou começou a negá-la. Esse processo ampliou-se gradativamente até incluir o conteúdo objetivo de todo conceito racional. No fim, nenhuma realidade particular pode ser vista como racional per se; todo os

Lukács e Nietzcche

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A atualidade de Lukács:Polêmica contra a apologética da irracionalidade em Nietzsche.

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A atualidade de Lukcs:

A atualidade de Lukcs:Polmica contra a apologtica da irracionalidade em NietzschePor Antnio CmaraO texto visa revisitar a discusso de Lukcs acerca da emergncia do pensamento irracionalista de Nietzsche, por se entender que este encontra espao hoje, particularmente na formulao do ps-modernismo, que combate o pensamento de origem iluminista e a racionalidade presente no conjunto do pensamento cientfico e filosfico da modernidade.(1) As reflexes de Lukcs podem ser retomadas como ferramentas para a discusso do declnio da racionalidade cientfica, com o surgimento de tendncias tericas de estetizao do cotidiano e da cincia, silenciando sobre questes cruciais postas pela explorao capitalista.

A propsito da decadncia do pensamento burgusA questo da decadncia do pensamento burgus, a partir de meados do sculo XIX, abordada por Lukcs, de modo enftico, em vrias de suas obras. A apologtica do capitalismo, segundo ele, passa a ocupar, a partir deste perodo, um lugar central nas formulaes filosficas e cientficas, particularmente nas cincias humanas. Mas, nestas obras, alm destes modos de pensar e apreender a realidade, o referido autor enquadra, no esquema de suas reflexes a respeito da decadncia ideolgica, outras formas, inclusas no campo da arte.(2) A nosso ver, o procedimento de Lukcs, ao investigar o progressivo abandono da razo e o surgimento de uma apologtica capitalista encontram-se na linha de desenvolvimento do pensamento de Marx.(3)

Alm de Lukcs, foi a Escola de Frankfurt que se debruou, de modo cuidadoso, sobre a questo da razo, seja na verso hegeliana-marxista de Adorno e Horkheimer,(4) que observaram a progressiva deteriorao da razo iluminista (que se teria tornado a razo instrumental do nosso tempo); seja na verso mais contempornea de Habermas que, ao passo que critica a razo instrumental do nosso tempo, prope a construo de uma nova razo: a razo comunicativa.

Horkheimer verifica que tanto a teoria da razo objetiva "segundo a qual a razo um princpio inerente da realidade"; quanto a teoria da razo subjetiva, que entende "que a razo uma faculdade da mente", postulando que "apenas o sujeito pode ter verdadeiramente razo", estariam contemporaneamente em crise, pois o pensamento

ou se tornou incapaz de conceber tal objetividade em si ou comeou a neg-la. Esse processo ampliou-se gradativamente at incluir o contedo objetivo de todo conceito racional. No fim, nenhuma realidade particular pode ser vista como racional per se; todo os conceitos bsicos, esvaziados de seu contedo, vm a ser invlucros formais. Na medida em que a razo subjetividade, a razo se torna tambm formalizada.(5)

O mrito de Lukcs reside no fato de ter analisado, com propriedade, os pressupostos e a emergncia de formulaes filosficas justificadoras da prevalncia do irracional sobre a razo e, sobretudo, de ter percebido que a sofisticao do pensamento de Nietzsche devia-se ao seu duplo carter de combate razo e ao socialismo, sendo uma apologia burguesia, na medida em que defendia a supremacia natural do homem dominador sobre o homem explorado.

Nas pginas a seguir tentaremos acompanhar essa discusso em Lukcs, tomando como referncia o seu livro Declnio da razo.

Das caractersticas externas: a apologtica do capitalismo e o combate ao socialismoSegundo Lukcs, presente nos textos de Nietzsche, desde a sua juventude, o combate sistemtico ao socialismo, derivando de tal posicionamento uma feroz oposio razo iluminista. Progressivamente, Nietzsche teria passado por trs fases: patriota prussiano na juventude (perodo anterior a 1875); democrata anti-socialista (1875-1880); e anti-democrata e anti-socialista (perodo posterior a 1880).

Na juventude, Nietzsche defende o Estado prussiano e a luta contra o liberalismo e o socialismo. Em oposio ao liberalismo, Nietzsche posiciona-se contra a laicizao e publicizao da educao, considerando a instruo para todos "uma barbrie", "uma premissa comunista"; pois teriam, por conseqncia, uma compreenso grosseira da felicidade terrestre; pois que as associaes de trabalhadores tenderiam a generalizar a cultura. A isto, acrescentava a defesa do escravismo, a oposio entre o dionisaco e o socrtico (inicialmente esboada em termos estticos e posteriormente como oposio entre razo e instinto), tomando como padro a sociedade grega.

No segundo perodo, o combate ao socialismo leva Nietzsche a aderir, episodicamente, democracia burguesa.(6) Analisando a filosofia iluminista, ele escolhe Voltaire, por considerar que o mesmo teria se afastado das paixes e das meias verdades expressas de Rousseau. neste perodo que emerge a perspectiva terica da vontade de poder, que Nietzsche teria encontrado em Voltaire; marcado por pseudoposicionamentos democrticos e evolucionistas, pois "eram os melhores instrumentos contra o socialismo". No entanto, a sua converso democracia caminha lado a lado com as convices de carter aristocrtico: defesa de castas distintas, "a casta de trabalhadores forados e a casta livre"; esta ltima, podendo dar origem cultura superior; defesa do Estado como defensor do egosmo humano, devendo ser substitudo por outra forma mais aprimorada de defesa deste egosmo. Logo, a democracia de Nietzsche no perderia as caractersticas do autoritarismo, da justificativa da sociedade de classes e do combate ao socialismo.

Esse anti-socialismo tambm estaria presente no profundo desprezo pelo povo, considerado como plebe. Lukcs cita Genealogia da moral como documento expressivo da postura antiproletria de Nietzsche.(7) Sua postura pseudo-romntica e aristocrtica, na conjuntura da Alemanha do fim do sculo XIX, na verdade, apenas indicaria a sua profunda averso aos trabalhadores e o seu fascnio pelo autoritarismo. Lukcs no hesita em concluir que Nietzsche elabora a ideologia que mais tarde ser utilizada pelos nazistas. Logo, o "profeta" do sculo XX pregou o nazismo antecipadamente.

Em todo caso Nietzsche profetiza, aps o desabamento de suas iluses "democrticas", uma poca futura de grandes guerras, de revolues e de contra-revolues. Aps este caos ver-se- erguer-se seu ideal: a dominao absoluta dos "senhores da terra" sobre uma "manada" perfeitamente dcil, sobre os escravos domsticos.(8)

O combate moral burguesa e a defesa do egosmo como modo de vidaA partir da anlise de diversas obras de Nietzsche, Lukcs salienta o percurso deste no combate moral burguesa dominante, at ento. Assim, atacando os fundamentos da moral, Nietzsche opta por defender uma moral naturalista. Fundamentando-se na biologia, a sociedade vista, por ele, como repressora dos instintos humanos e toda a moral desenvolvida, ao longo dos sculos, reduzida situao de uma simples teologia judaico-crist. Nietzsche teria se dedicado, na sua obra de maturidade, com especialidade, em Assim falou Zaratrusta, a erguer uma tica glorificadora do egosmo, essencial para o seu super-homem, que exerceria efetivamente a "vontade de poder", ou seja, com o homem desvencilhado de todas as religies, de todas as filosofias e de toda a moral, que tiveram por funo reprimir os instintos e cuja conseqncia seria a existncia do criminoso, para ele um "tipo de homem" forte que foi impedido de viver a vida selvagem cujas virtudes foram "excomungadas pela sociedade" e que por isso teria ficado doente, sendo o crime apenas o sintoma desta doena. A defesa da brutalidade como sintoma de sade leva Lukcs a consider-la uma apologia da barbrie e do retorno vida selvagem. O modo de vida refinado seria, portanto, restrito burguesia e aos seus pares. Na relao com as demais classes restaria: "brutalidade, crueldade e barbrie".

Nietzsche teria produzido, portanto, uma tica da classe dominante, em sua fase de decadncia, defendendo o lado "ruim" do capitalismo: o egosmo, a violncia, a brutalidade. Logo, a moral de Nietzsche no seria proposta para toda a sociedade, mas apenas para a classe dominante; pois ele

jamais desejou fundar uma moral vlida para todos os homens, como desejavam os neo-katianos ou os positivistas. A moral nietzschiena, endereada consciente e deliberadamente somente classe dirigente existindo ao lado e abaixo desta classe uma outra moral, de outra qualidade: a dos oprimidos, a qual Nietzsche combate e nega apaixonadamente.(9)

Segundo Lukcs, decorre dessa noo tica uma compreenso limitada e necessria da luta de classes:

Em Nietzsche, a luta de classes aparece em oposio entre as raas superiores e as raas inferiores. Esta, simplesmente, formula, evoca, desde j, a fascitizao da ideologia burguesa.(10)

A tica de Nietzsche comportaria a reduo, comum ao idealismo subjetivista, dos grandes problemas sociais a meras especulaes e vivncias individuais. Em seu pensamento, vigoraria sempre a ligao intuitiva e irracionalista entre os problemas psicolgicos e morais, tratados sempre dentro de uma tica individualista, em que a histria e a sociedade so percebidas apenas como portadoras de mitos. Este carter individualista e a forma de "exposio arbitrria e espirituosa", propcios aos interesses durveis do capitalismo, constituem umas das razes principais da grande e durvel influncia exercida por Nietzsche. O seu pensamento tambm serviria a uma intelectualidade individualista e parasitria. Os intelectuais desesperanados com o socialismo tambm seriam atrados por Nietzsche, sobretudo pela sua perspectiva de negao niilista.

Que significa o niilismo? Isto significa que os valores os mais elevados perdem todo valor. O que falta o objetivo, a resposta ao porque? por a que o super homem nietzchiano, e os senhores da terra, oferecem ao intelectual decadente do perodo imperialista os horizontes necessrios que lhes faltavam at aquele momento.(11)

O atesmo como nova religioLukcs mostra que o pensamento nietzchiano portador de uma falsa crtica religio, ao contrrio do atesmo materialista, negador da existncia de divindades e que no prope nenhuma outra entidade para substitu-las; o marxismo compreende que a religio e a cultura tm um carter alienador, no entanto tambm apresenta um carter civilizatrio. O niilista entende a superao da religio como morte de Deus e sua substituio por uma nova mentalidade desta, onde o Deus dos cristos seria substitudo por Dionsio, logo por um mito: o mito do prazer e do desejo: poder-se-ia dizer um retorno ao mtico, a um tempo histrico pr-civilizatrio.(12)

O darwinismo socialLukcs considera que apenas aparentemente Nietzsche teria se afastado de Darwin, pois sua teorizao apresenta-se claramente como uma espcie de darwinismo social, hispotasiado a supremacia dos mais fortes sobre os mais fracos e, alm disso, aplicando moral e sociedade leis biolgicas.

A oposio de Nietzsche a Darwin se resumiria em trs pontos:

a) haveria o surgimento de seres superiores, mas eles no seriam durveis, de modo que o nvel da espcie no se elevaria;

b) o homem, enquanto espcie, no representaria progresso em relao s outras espcies de animais: "nem o mundo vegetal, nem o mundo animal do inferior ao superior ... mas tudo muda, se cruzando, entrecruzando e se opondo";(13)

c) somente a cultura serviria para "domesticar" o homem e no para elev-lo acima das outras espcies:

Onde ela se aprofunda, ela provoca a degenerescncia ... O homem dito selvagem pelo retorno natureza, e representa, num certo sentido, o restabelecimento, a cura do homem que se libertou da "cultura".(14)

A postura de Nietzsche inclui a justificativa moral da explorao dos oprimidos. Para ele, esta seria inelutvel, fundamental e natural, isto , seria inerente "natureza humana". Esta estaria submetida lgica do "eterno retorno", de modo que os homens sempre estariam voltando ao ponto de partida. Logo, no haveria o devir, como concebido por Hegel.

Em Nietzsche, a idia do Eterno Retorno est destinada a compensar a idia do devir. Ela se torna o efeito necessrio, pois o devir no tem o direito, se ele assume a funo prescrita pelo sistema de Nietzsche, de produzir qualquer coisa de novo ...

Portanto, de acordo com o pensamento nietzchiano, torna-se impossvel o surgimento de elementos novos, pois tudo seria submetido lgica de um movimento circular, que representaria uma lei primordial do devir no "interior de uma certa quantidade de energia". A lgica da circularidade pe passado, presente e futuro apenas como conseqncia de certos arranjos e troca de energia no interior de um movimento circular. Explicitamente, Nietzsche afirma que no h como evitar os ciclos; que os homens no tm condies de, intencionalmente, mudar o rumo da histria. Resta, portanto, os objetivos individuais e a realizao da vontade de poder.

Ningum responsvel pela sua presena sobre a terra, nem do fato de ser constitudo de tal ou qual forma, nem do fato de que sua vida se desenrole sob tais ou quais circunstncias ou em tal ou qual meio.(15)

Tal posio se deveria ao fato de pertencermos a um todo que no criamos. A condenao a qualquer ato seria a condenao deste todo; logo, no poderamos "julgar, medir, comparar ou condenar nosso ser, pois isto seria o mesmo que aplicar tal comportamento ao prprio todo". Como esclarece Lukcs, tal perspectiva decorrente de uma viso naturalista da sociedade em que a categoria do todo dada como algo externo ao homem, cuja interferncia sobre a mesma nada modificaria. Dada tal situao, os homens seriam resultado de uma "fatalidade" do destino, podendo atuar apenas enquanto pedaos deste todo.

Lukcs destaca a contradio interna deste pensamento: ao mesmo tempo que hispostasia a inocncia natural do homem, prega uma revoluo em que a burguesia passaria da era do liberalismo para a era da segurana. Assim o Eterno Retorno representaria a concretizao da sociedade brbara, tirnica, ou seja, de uma aspirao histrica de acordo com o ideal nietzchiano.

A teoria do conhecimento em NietzscheDe acordo com Lukcs, na era burguesa, no perodo de transio de combate ideologia feudal, vrias teorias do conhecimento foram produzidas: o idealismo, o materialismo, o idealismo subjetivo e o idealismo objetivo.

O perodo pr-imperialista marcaria um retrocesso com o superdimensionamento do idealismo subjetivista. Esta deteriorao ampliar-se-ia na era imperialista, com a ideologia burguesa adequando-se apenas ao combate do materialismo histrico. A teoria do conhecimento de Nietzsche no teria originalidade, postulando apenas a incognoscibilidade da realidade, a partir de uma reviso da dialtica de Herclito e da crtica superficial ao pensamento de Schopenhauer para desenvolver uma teoria contra a razo e a prpria dialtica. Segundo Lukcs, ser o irracionalismo que presidir o "conceito" de "eterno retorno", concebido como a vitria do ser sobre o devir.

"O carter do mundo como devir no-formulvel, falso, contraditrio. Conhecimento e devir se excluem um do outro". Logo, Nietzsche teria levado o combate dialtica mais longe que os filsofos irracionalistas que lhe precederam.

Destacam-se ainda mais dois aspectos importantes na perspectiva nietzchiana. O primeiro, relativo relao da teoria com a prtica. Ele preconiza a vontade de potncia como necessria para a prpria preservao da espcie. Aqui, Nietzsche coloca-se de modo explcito e decidido ao lado dos senhores contra os "escravos e a plebe"; ao lado da aristocracia contra a "massa gregria" socialmente inferior. Por fim, a mitologizao do conhecimento atravs da oposio do dionisaco contra o socrtico, de modo que se mitologiza o instinto contra a razo, aliando-se a esta perspectiva o niilismo e o agnosticismo, o que daria um certo fascnio ideologia de Nietzsche. Lukcs conclui que Nietzsche teria fornecido o mtodo que a apologtica indireta do capitalismo precisava.

Da atualidade dos prognsticos de LukcsA formulao ideolgica de Nietzsche analisada por Lukcs como se esta fosse a ltima e definitiva forma de expresso da ideologia burguesa no perodo imperialista. A ascenso do nazismo e a barbrie da Segunda Guerra Mundial pareciam confirmar estes prognsticos.

O perodo ps-guerra, no entanto, foi marcado pela reelaborao ideolgica no Ocidente e a filosofia da barbrie tornou-se apenas uma dentre outras formulaes da burguesia, com a revalorizao do positivismo cientificista e da democracia burguesa representativa. Isto s foi possvel devido ao retorno do crescimento econmico que levou iluso de que um estado de bem-estar-social teria sido construdo de modo estvel e ao abrigo das grandes crises sociais e econmicas que abalaram o mundo na primeira metade do sculo.

A nova crise de crescimento capitalista, iniciada no final da dcada de 1970, a necessidade de redirecionamento da reproduo capitalista, aliadas ao fracasso do stalinismo no mundo que abalou profundamente as convices socialistas e a prpria democracia burguesa so elementos fundamentais para se entender a revalorizao, em escala ampliada, da filosofia irracionalista. Por isso, o discurso de carter biologicista, a emergncia de ideologias neo-nazistas e a renncia razo como instrumento para a apreenso da realidade social retornam neste fim de sculo. A previso de Lukcs, ainda que de modo parcial, realiza-se atualmente. Vm, dos EUA, as teorias biologicistas que postulam a inferioridade de algumas raas e da mulher em relao ao homem, a "naturalidade" do homossexualismo etc. Naquele pas, tambm se elaboram as teorias macro-econmicas que prevem a liberdade, a mais ampla possvel, para a reproduo do capital, em detrimento do trabalho (leia-se dos trabalhadores); pratica-se a militarizao da sociedade civil e o exerccio do conservadorismo tanto a nvel do Estado quanto das relaes interpessoais cotidianas. As formulaes filosficas e sociolgicas, nesta conjuntura, adernam perigosamente para o individualismo metodolgico, para a desconstruo da teoria (ou da "meta-teoria"), para a subordinao da cincia ao presente, representado como nica possibilidade e, por fim, para o abandono de todas as utopias.

Notas1. Em texto publicado recentemente, analisamos alguns elementos do discurso ps-moderno e acentuamos que "o filsofo contemporneo abandona a exemplo dos idealistas, a pesquisa da realidade e desloca-se para o mundo subjetivo, unicamente para o discurso, explicado a partir de si mesmo, s vezes no explicado apenas exposto, apresentado, desvendado na sua diversidade. Tal mtodo, reapropriado pelos ps-modernos, que implicaria em escutar, expor a polifonia das vozes, dos sentimentos, dos comportamentos, seria o bastante para desenhar o escopo da sociedade. Do mesmo modo que um esquizofrnico, que ouve vozes com tons bastantes e diferenciados, perdendo a sua identidade, a sua personalidade assim se deveria forjar uma sociologia. Esta proposta de esquizofrenia sociolgica implica, inclusive, em mutaes mais ou menos rpidas nas nossas convices cotidianas, pois as mesmas no se fundariam sobre a natureza econmico-social do nosso mundo, mas sim sobre as mltiplas possibilidades de comunicao. Dessa forma, pode-se afirmar que os novos filsofos franceses (Deleuze, Guattari e Derrida), herdeiros de Nietzsche, de Heidegger e do anarquismo, que elaboram um pseudo discurso "anti-autoritrio", em reao ao stalinismo, equivocada e propositadamente identificado com o marxismo, esto na origem dessa esquizofrenia ps-moderna". Cf. CMARA, A. S. O ps-modernismo e o liberalismo tardio: novo projeto de uma velha ideologia. Salvador: APUB, 1996. p.19.

2. Ressalvamos a nossa discordncia com Lukcs em relao aplicao do seu mtodo quanto produo artstica, vista como mero reflexo da realidade material. Tal teoria mostra-se incapaz de apreender a complexidade das relaes que envolvem a criao e a produo da arte.

3. Particularmente em Problemas do realismo, Lukcs acentua a discusso de Marx sobre o deslocamento de posio da burguesia, no embate ideolgico contra as demais classes, aps a efetiva tomada do poder poltico. A burguesia, antes aliada do proletariado, pe-se em oposio a esta classe, combatendo-a fsica e ideologicamente; esta nova postura da burguesia teria implicado na elaborao de uma ideologia obscurecedora da realidade, com a apologtica do capitalismo substituindo a investigao e a reflexo dos primeiros pensadores burgueses.

4. ADORNO., HOKHEIMER. A indstria cultural: o esclarecimento como mistificao de massas. In: _______. Dialtica do esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.

5. HORKHEIMER, M. Eclipse da razo. S. l.: Editorial Labor do Brasil, 1976. p.15.

6. Em Humano, demasiado humano, Nietzsche afirma: "vitria da democracia. Tentam agora todas as potncias polticas explorar o medo ao socialismo para se fortalecer. Mas, no entanto, a longo prazo, somente a democracia tira proveito disso: pois todos os partidos so agora obrigados a lisonjear o "povo" e a conceder-lhes facilidades e liberdades de toda espcie, com que ele acaba por tornar-se onipotente. O povo est longussimo do socialismo como doutrina da alterao do modo de adquirir a propriedade ...". Cf. NIETZSCHE. Os pensadores. So Paulo: Abril Cultural, 1978. p.149.

7. O trecho a seguir, tambm trabalhado por Lukcs, ilustra bem a posio reacionria de Nietzsche, em relao ao proletariado: "Mas o que voc vem falar ainda de ideais mais nobres! Adaptemo-nos aos fatos: o povo venceu ou escravos, ou a plebe ou o rebanho, ou como queira denomin-lo ; se isso aconteceu atravs dos judeus, pois bem! Nunca um povo teve tal misso histrica. Os senhores foram abolidos; a moral do homem comum venceu. Pode-se, ao mesmo tempo, tomar essa vitria como um envenenamento de sangue (ela misturou as raas entre si) eu no contradigo, indubitavelmente, porm, essa intoxicao teve xito. A redeno do gnero humano (ou seja a redeno dos senhores) est muito bem encaminhada; tudo se judaza ou cristianiza ou pleibeiza a olhos vistos (que importam as palavras)". Cf. NIETZSCHE, F. Para a genealogia da moral. In: ______. Os pensadores. So Paulo: Abril Cultural, 1978. p.300.

8. LUKCS, G. La destruction de l raison. Paris: LArche Editeur, 1958.

9. Idem, p.308.

10. Idem, p.310.

11. Idem, p.312.

12. A rejeio do pensamento filosfico rigoroso e a oposio, to em voga no nosso tempo, entre o dionisaco e o socrtico, entre o prazer e a represso, so elementos que mostram os fundamentos da irracionalidade deste pensamento, que se distancia tanto da idealismo objetivista quanto do subjetivista, lutando contra os mecanismos da razo e o prprio desenvolvimento de instituies que permitiram o desenvolvimento material e espiritual da sociedade.

13. NIETZSCHE, citado por LUKCS, op. cit., p.326.

14. Idem, p.327.

15. Idem, p.332.

Antnio Cmara professor do Departamento de Sociologia da UFBA.