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Lula na Literatura Popular: A Ficcionalização
De Um Personagem Real no Imaginário Nordestino
Oliveira, J. A.
Encontro de Ensino Pesquisa e Extensão da FAFICA,
XIV Edição, 2015. p. 372-385 - ISSN 2447-7478
http://eepe.tmp.br/publicacoes/
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LULA NA LITERATURA POPULAR:
A FICCIONALIZAÇÃO DE UM PERSONAGEM
REAL NO IMAGINÁRIO NORDESTINO
Jénerson Alves de Oliveira1
Licenciatura em Letras/Espanhol
Resumo A literatura popular possui um importante papel na construção do imaginário do nordestino.
Os ícones culturais da região desempenham uma função peculiar nestas produções,
transformando-se em construtores da identidade do povo. A figura do ex-presidente Luís
Inácio Lula da Silva desponta neste cenário como uma liderança carismática diante das
camadas menos favorecidas da população. O presente artigo explora o processo de
ficcionalização do personagem por meio da teoria dos atos de fingir, do alemão Wolfgang
Iser, em diálogo com a folkcomunicação do brasileiro Luiz Beltrão.
Palavras-chave: Wolfgang Iser, imaginário, Luiz Beltrão, folkcomunicação, Lula, poesia
popular.
Abstract Popular literature is important helping to develop imagination of who was born in
northeastern Brazil. The cultural icons of that region are so peculiar in these productions
and they work as identity builders to those people. By the way, brazilian former President
Luiz Inacio Lula da Silva arose in this context as a charismatic leadership to the poorest
sections of the population. This article explores the fictionalization process of the character
through the theory of pretending acts, said by Wolfgang Iser, in dialogue with the folk
communication of Luiz Beltrão.
Keywords: Wolfgang Iser, imaginary, Luiz Beltrão, folk communication, Lula, popular
poetry.
Introdução
É como diz o velho e conhecido ditado: “O povo brasileiro adora um salvador da
pátria”. E o presidente Luís Inácio Lula da Silva se encaixa perfeitamente nesse perfil,
1 Estudante do 4º Período do Curso de Letras/Espanhol da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras
de Caruaru (FAFICA). Membro do Grupo de Estudos Literários da Teoria do Imaginário, orientado pelo
Professor Mestre Adriano Ricardo da Silva.
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Oliveira, J. A.
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principalmente quando da sua primeira vitória, nas eleições de 2012. Com o arquétipo de
nordestino vencedor, Lula encarna em si mesmo a esperança que vence o medo e pretende
colocar o Brasil em novos rumos. Essa ótica é captada e reacesa pelos poetas populares,
responsáveis por uma imensa produção literária de cordéis abordando a chegada do
pernambucano ao Palácio do Planalto. Além disso, temas para cantadores repentistas e
faixas de CDs e DVDs com registros de produções orais sobre essa temática também
entraram em ebulição.
De certa forma, pode-se afirmar que a vitória de Lula trouxe à tona as questões
políticas para a poesia popular. Essa temática havia sido deixada de lado no cordel
principalmente após a morte do ex-presidente Getúlio Vargas e na cantoria no ano 2000,
quando da passagem dos 500 anos de conquista do Brasil. Em ambos os casos, percebe-se
um interregno apolítico, no qual os poetas populares se debruçam em outros assuntos,
inclusive temas jocosos e/ou sentimentais.
Esta pesquisa pretende analisar a representação de Lula para o povo nordestino na
poesia popular conforme está no poema ‘Já que Lula ganhou as eleições’, de autoria do
poeta norte-riograndense Apolônio Cardoso (1938-2014). Mesmo se tratando de um poema
escrito, o autor – por ter sido cantador de viola – imprime na obra as marcas de oralidade
inerentes ao improviso, tornando-se uma espécie de ponto de intersecção entre o repente e o
cordel. O poema, escrito no gênero Martelo agalopado (estrofes de dez versos
decassilábicos), é composto por oito estrofes, e foi publicado no livro ‘Lula na Literatura de
Cordel’, de Crispiniano Neto (IMEPH, 2009). Apesar das poucas estrofes, a obra mantém e,
de certa forma, sintetiza traços da essência de Lula expressa na literatura popular: a do
herói do povo, construindo a imagem de luta por dias melhores. É como se o petista se
revestisse de um poder de efetiva representação, fazendo com que a história do ex-
sindicalista se imiscuísse na trajetória de vida dos integrantes da classe trabalhadora,
inclusive os próprios poetas.
A metodologia empregada para a construção do artigo será eminentemente a pesquisa
bibliográfica, valendo-se de pesquisas desenvolvidas por estudiosos na área do imaginário e
também dos aspectos correlatos aos do estudo em baila. Assim sendo, livros, artigos e
ensaios produzidos tanto acerca do imaginário ficcional quanto da análise do discurso e da
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folkcomunicação serão válidos, levando-se em consideração ainda outras produções, as
quais serão devidamente creditadas após a conclusão do trabalho.
No entanto, para compreender esses elementos intrínsecos na literatura popular, será
de ímpar relevância estudar as peculiaridades desse tipo de construção, inclusive a partir da
bibliografia que aborda a temática – a despeito de a mesma ainda ser insuficiente e, por
vezes, anacrônica.
1. Lula: do político ao ‘mito’
“Esse é o cara”. Entrou para a história o comentário do presidente dos Estados
Unidos, Barack Obama, sobre o então presidente do Brasil, Luís Inácio “Lula” da Silva, em
reunião do G-20 ocorrida no dia 02 de abril de 2009 em Londres, Inglaterra. A trajetória de
vida do garoto “criado como num rebanho” (PARANÁ, 2009) em Pernambuco e se tornou
um dos homens mais influentes do planeta é marcada por significados que se espraiam em
diversos ambientes, indo do contexto político ao imaginário popular, sobretudo mediante as
representações do personagem através de obras literárias.
Luís Inácio da Silva nasceu no município de Caetés, semiárido pernambucano, no dia
27 de outubro de 1945. Sétimo filho de “Dona Lindu” e “Seu Aristides”, o garoto veio ao
mundo em uma casa com apenas dois cômodos, cujo chão era de terra batida e não havia
água encanada nem energia elétrica. Do alto dos 07 anos de idade, embarca com a família
em um ‘pau-de-arara’ (caminhão improvisado para transporte de passageiros) para a Região
Sudeste, seguindo um trajeto traçado por milhares de sertanejos que serviram de inspiração
para obras como ‘Vidas Secas’ (Graciliano Ramos) e ‘Morte e Vida Severina (João Cabral
de Melo Neto).
Chegando ao litoral paulista, a biografia de Lula ganha contornos de lutas e vitórias.
Ainda criança, trabalhou como engraxate nas ruas de Santos. Com 14 anos de idade,
conclui o Ginásio (correspondente ao atual Ensino Médio) e ingressa no curso de torneiro
mecânico no Senai.
Esse cenário corresponde ao desenvolvimentismo promovido pelo então presidente
Juscelino Kubistcheck de Oliveira. Montadoras como Scania e Volkswagen se instalam no
ABC Paulista. Como tantos outros nordestinos radicados em São Paulo, Lula transforma a
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metalurgia em seu ganha-pão. Em 1963, com apenas 17 anos de idade, o pernambucano
perde o dedo mínimo da mão esquerda devido a um acidente de trabalho. Foi neste mesmo
ano que recebeu o diploma de torneiro mecânico.
Seu envolvimento com a classe sindical deu-se em 1966. A partir de então, seu
processo de politização vai adquirindo maior evidência. Em 1972 foi eleito primeiro-
secretário do grupo. De 1975 a 1978, foi eleito presidente do Sindicato por duas vezes.
Fundou o Partido dos Trabalhadores em 1980 e, três anos depois, estava presente na criação
da Central Única dos Trabalhadores (CUT).
A primeira repercussão midiática de maior abrangência foi em 1980, quando Lula foi
preso por comandar greves. Sua mãe faleceu no dia 12 de maio daquele ano, enquanto o
filho estava na prisão – só sendo solto oito dias após perder a genitora. Esses episódios,
veiculados pela imprensa, servem para salientar sua presença no ambiente político
brasileiro.
A presença de Lula em campanhas eleitorais tem como marco inicial o ano de 1982,
quando do pleito para o Governo do Estado de São Paulo. Na ocasião, ele perde o cargo
para Franco Motoro (PMDB). Em 1986, foi eleito deputado constituinte. A partir de 1989,
ocorre uma maratona de candidaturas a presidente da República, nas quais ele amarga três
grandes derrotas consecutivas, a saber, para os candidatos Fernando Collor e Fernando
Henrique Cardoso (em 1993 e 1997). Mesmo sem ser vitorioso, ele polarizou todos esses
pleitos, fator que consistiu em elemento preponderante na construção da popularidade
daquele que passou a ser considerado por especialistas como o maior presidente da história
do Brasil Republicano. Isso porque desde 2002 Lula passou a ser sinônimo de sucesso nas
urnas, com uma vitória esmagadora de 53 milhões de votos sobre o adversário José Serra,
sendo reeleito em 2005 na disputa com Geraldo Alckmin e tornando-se peça decisiva na
eleição e reeleição da presidenta Dilma Rousseff, em 2010 e 2014.
Aproveitando-se de uma conjuntura econômica mundial favorável vivenciada entre os
anos 2003 e 2009, o presidente Lula implementou medidas de distribuição de renda que
provocaram mudanças na sociedade brasileira, mesmo mantendo a orientação
macroeconômica do governo anterior, de caráter neoliberal. Essas políticas possibilitaram a
redução da pobreza sem confronto com o capital (SINGER, 2012, 13). Com essa trajetória,
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o Lula ‘si-mesmo’ recebeu uma aura mítica, traduzida no jargão político ‘Lulismo’, que
indica o fascínio exercido pelo líder diante das bases sociais.
“Aos esforços despendidos para entender o lulismo, vale acrescentar a sugestão de
que ele é, sobretudo, representação de uma fração de classe que, embora majoritária,
não consegue construir desde baixo as próprias formas de organização. Por isso, só
podia aparecer na política depois da chegada de Lula ao poder. A combinação de
elementos que empolga o subproletariado é a de expectativa de um Estado
suficientemente forte para diminuir a desigualdade sem ameaça à ordem
estabelecida” (SINGER, 2012, 41).
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2. A ficcionalização do político no poema ‘Já que Lula ganhou as eleições’
A literatura de cordel (aqui compreendida em igualdade com o repentismo)
configura-se como uma ferramenta importante na construção da identidade nordestina.
Desta feita, as temáticas que fazem parte do cotidiano popular bailam nessa construção
literária, estruturadas em textos que mediam a oralidade e a escrita, com estreita ligação
com a construção da memória e da identidade. Ao longo das décadas, desde a consolidação
de Lula como eminente liderança sindical, a presença dessa personagem é constante nos
livretos de literatura de cordel e obras correlatas dos poetas populares.
Entre essas produções, o poema ‘Já que Lula ganhou as eleições’ reveste-se de valor
peculiar. O texto, escrito pelo advogado e poeta Apolônio Cardoso (1938-2014), no estilo
martelo agalopado (estrofes decassilábicas de dez versos), apresenta-se como elemento
mediador da literatura e do imaginário popular, inclusive transformando o personagem
principal em uma espécie de projeção dos indivíduos que pertencem às classes menos
abastadas, de certa forma sendo compreendido como uma comparação dos próprios
cantadores. Neste aspecto, é perceptível até mesmo o critério de noticiabilidade do
Jornalismo da proximidade geográfica, por meio do qual a plateia se sente retratada em
outras pessoas (ERBOLATO, 1991).
Os conceitos de real, imaginário e ficcional defendidos por Wolfgang Iser e por Luiz
Costa Lima ancoram a discussão em pauta, dialogando com outras apreciações teóricas, a
exemplo da folkcomunicação, sobretudo por intermédio dos estudos de Luiz Beltrão e José
Marques de Mello.
Convém ressaltar que, para LUIZ COSTA LIMA (2000), a mimese é uma atividade
dialógica. Em outras palavras, a representação existente não representa algo anterior, mas é
resultado de uma troca, ou seja, de um efeito de ir e vir. Essa perspectiva entra em
consonância com as ideias de ISER (1979), o qual compreende a ficção mediante a
articulação ao “imaginário, aos atos de fingir e ao jogo”.
No poema ‘Já que Lula ganhou as eleições’, o autor faz referência direta ao
presidente apenas no primeiro verso (que coincide com o título) e complementa o sentido
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da oração no verso seguinte – “o Brasil vai mudar para melhor”. A partir de então, a figura
de Lula não é mais citada, mas aparecem personagens do povo, principalmente anônimos,
como o “operário”, o “índio botocudo” e a “criança”, mas também personagens famosos, a
exemplo de Frei Damião e Padre Cícero, ícones de extrema grandeza na literatura de
cordel. Ademais, o autor emprega a primeira pessoa, tanto no singular quanto no plural.
Diante dessas características, é possível afirmar que a imagem do presidente eleito se
‘pulveriza’ nos ícones expressos ao longo das oito estrofes que compõem o texto.
“Já que Lula ganhou as eleições,
O Brasil vai mudar para melhor,
O operário derrama o seu suor
Na história de tantas sucessões.
Trabalhamos demais para os patrões,
Mas o título e o batuque da enxada
Transformaram a vereda numa estrada
Pra podermos ganhar a liberdade,
Nossas mãos construíram a humanidade,
Mas tivemos de volta quase nada.”
O caráter de identificação do eu-lírico com o objeto do texto pode ter uma explicação
biográfica. Durante o regime militar, o poeta Apolônio Cardoso foi chamado para depor em
um quartel do exército por ter dito, em uma estrofe improvisada durante um festival de
repentistas realizado em Mossoró-RN, que “o salário do Brasil / não dá pra comprar um
ovo”. Essa postura autocrática dos militares gerou um mal estar entre uma grande
quantidade dos poetas, que deixaram de lado os temas políticos em suas apresentações
durante aquele período. “Um grave processo de auto-censura limitava o discurso dos
repentistas que se restringiam à louvação ou ao gracejo despolitizado” (CRISPINIANO
NETO, 2009, 09). No entanto, a parte dos repentistas e cordelistas que manteve-se engajada
no debate político, utilizando as produções literárias como ferramenta de conscientização
política, ficou conhecida como ‘Escola de Mossoró’, em uma nítida alusão ao fato
protagonizado por Cardoso. Essa observação, no entanto, é colocada no presente trabalho
como um elemento que se somatiza à análise, mas não a encerra, indo na direção contrária
do apregoado pelo método biográfico de crítica literária cunhado por Sainte-Beuve no
século XIX.
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Essa diferenciação é pertinente porque, para ISER (1979), o fictício é intencional,
mas o imaginário é espontâneo. Ainda segundo o teórico alemão, essas duas disposições
antropologicamente distintas articulam-se de maneira interativa e organizada no âmbito da
construção das narrativas. Essa articulação ocorre mediante uma relação tríplice dos atos de
fingir (seleção, combinação e como se). se o fingir não pode ser deduzido da realidade
repetida, nele então surge um imaginário que se relaciona com a realidade retomada pelo
texto. Assim, o autor retrata que o ato de fingir ganha a sua marca própria, que é de
provocar a repetição no texto da realidade vivencial, por esta repetição atribuindo uma
configuração ao imaginário, pela qual a realidade repetida se transforma em signo e o
imaginário em efeito do que é assim referido”.
Neste sentido, a visão do poeta popular à vitória de Lula nas urnas em 2002 imbrica-
se com elementos da história do Brasil e do mundo, bem como com fatos pueris das
populações carentes, consistindo em um elemento de duplicação do fictício, re-criando o
real e emoldurando-o com as peculiaridades da poesia popular. Neste mundo re-criado pelo
aedo, as figuras marginalizadas pela sociedade auferem voz e reconhecimento, tornando-se
protagonistas e intérpretes de um novo mundo. No quadro pintado pelo repentista, o
“coronel” é considerado “um Judas traindo a liberdade”, indigno de receber perdão da
História, enquanto o humilde – travestido pelo próprio eu lírico – é desprovido das
“riquezas da matéria”, mas mantém-se “muito feliz” com o que possui, isto é, os valores de
justiça e honra enaltecidos pelo povo.
Eis aí o ponto de intersecção com a folkcomunicação, campo de estudo pertencente à
comunicação fundado em 1967 pelo brasileiro Luiz Beltrão. O próprio fundador a
descreveu como “comunicação dos marginalizados”, situada nos limites entre “o folclore
(resgate e interpretação da cultura popular) e a comunicação de massa (difusão industrial de
símbolos, através de meios mecânicos ou eletrônicos, destinados a audiências amplas,
anônimas e heterogêneas)” (MARQUES DE MELO in GADINI; WOITOWICZ, 2007, p.
21).
O eu-lírico presente no poema ‘Já que Lula ganhou as eleições’, de Apolônio
Cardoso, desempenha um papel de agente da folkcomunicação, sobretudo por causa de suas
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arraigadas convicções filosóficas, a qual é uma das características apontadas por
BELTRÃO (1980, p. 35) acerca desses agentes. Essas certezas filosóficas relacionam-se às
tradições do grupo ao qual pertence. Como o presidente Lula só é ovacionado
nominalmente em um dos 80 versos do poema, percebe-se que o compromisso do poeta é
de expressar o sentimento da comunidade, não tecer loas ao ex-torneiro mecânico – que,
apesar de oriundo das camadas populares, agora manifestava-se como representação do
poder instituído. Assim, o poeta potiguar traduz a contradição, um dos signos do lulismo.
“o lulismo existe sob o signo da contradição. Contradição e mudança, reprodução e
superação, decepção e esperança num mesmo movimento. É o caráter ambíguo do
fenômeno que torna difícil a sua interpretação” (SINGER, 2012, p. 9).
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3. A linguagem do cordelista
“Quase não aprendi a taboada,
Já que fui pouco tempo pra escola,
Porém, na faculdade da viola
Eu decifro até qualquer charada. (...)
Quis cantar os sertões em minhas glosas,
Mas Euclides da Cunha cantou tudo”.
Nestes versos, presentes na segunda estrofe do poema ‘Já que Lula ganhou as
eleições’, o poeta Apolônio Cardoso expressa o seu papel social de decantar as dificuldades
e agruras que fazem parte do cotidiano do nordestino. Apesar disso, ele mostra-se um tanto
desiludido, como que tendo fracassado em seu ideal, principalmente ao comparar seu
desempenho com o do jornalista Euclides da Cunha, que em 1902 publicou o livro ‘Os
Sertões’, retratando o conflito de Canudos, considerado um marco do pré-modernismo na
historiografia literária brasileira. Ora, Euclides da Cunha afirmou que “o sertanejo é, antes
de tudo, um forte”. É a esse axioma que Cardoso deseja fazer jus. Ele quer traduzir a luta
do homem nordestino, que busca melhorias para si e para o próximo baseado nos desígnios
da honestidade e da virtude e que enxerga em Lula uma reprodução de si mesmo.
Convém esclarecer alguns pontos distintivos que existem no interior da poesia
popular. É comum haver uma confusão entre o repentismo do cantador de viola e a
literatura de cordel. SAUTCHUCK (2012) diferencia essas duas vertentes:
“(...) o cordel exige a habilidade de criação de uma narrativa extensa ‘com começo,
meio e fim’, um sentido e uma moral da história. Esta capacidade não se faz presente
na habilidade do repentista para improvisar estrofes coerentes com um assunto, pois
elas constituem unidades em si mesmas, tendo caráter mais lírico e trovadoresco” (p.
17-18).
Apesar da diferenciação acadêmica, a Lei Federal 12.198/2010, que reconhece a
profissão de Repentista e foi sancionada pelo presidente Lula, dispõe o contrário. Em seu
artigo 3º, a norma considera repentistas,
“além de outros que as entidades de classe possam reconhecer, os
seguintes profissionais: I - cantadores e violeiros improvisadores; II -
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os emboladores e cantadores de Coco; III - poetas repentistas e os
contadores e declamadores de causos da cultura popular; IV -
escritores da literatura de cordel” (BRASIL, 2010).
No poema em análise, percebe-se que o autor foge de uma das prerrogativas dos
textos cordelianos, a qual é a narrativa. Essa é uma característica presente, pois,
normalmente, os cantadores “escrevem como cantam” (VITORINO, 2003, p. 40). Assim
sendo, a formação do discurso do cantador tem compromisso com o local em que está
inserido, com o contexto imediato. Essa premissa entra em sintonia com a relação existente
entre discurso e ideologia, analisada do ponto de vista semântico, sendo esta “a
representação que serve para justificar e explicar a ordem social, as condições de vida do
homem e as relações que ele mantém com os outros homens” (FIORIN, 2007, p. 28).
A fidelidade ao local de origem (ou seja, às comunidades carentes do Nordeste
brasileiro) é uma característica preponderante dos poetas populares, principalmente dos
repentistas. Mesmo com as transformações sociais ocorridas ao longo das décadas, bem
como o acesso dos violeiros a instrução oficial, o papel de porta-voz do povo sofredor que
se consolidou como principal plateia dos cantadores permanece inalterado.
“Era pensamento de muitos que, com a difusão do ensino mais adiantado, pelas
escolas modernas do interior, a figura do cantador de viola, passaria a coisa
desprezível. Não obstante a disseminação dessas Escolas, delas até de nível superior,
não deixaram de aparecer os continuadores da poesia ligeira deles até de concluírem
cursos superiores, sem contudo deixar de, aqui acolá, bater um pedaço de repente,
sempre comunicando de acordo com seu gráu (sic) de instrução” (LEITE FILHO,
1978, p. 9).
Considerações finais
Como liderança política, o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva marcou a história
do Brasil, durante os dois mandatos nos quais esteve à frente do maior cargo do Poder
Executivo do país. Nordestino de origem humilde, milhares de brasileiros, sobretudo
moradores da região natural do político, projetaram no ex-torneiro mecânico os próprios
anseios e singularidades. Esse sentimento foi expresso por diversos meios, inclusive na
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literatura popular, através dos poetas repentistas e cordelistas. Na poesia ‘Já que Lula
ganhou as eleições’, o autor Apolônio Cardoso implicitamente compara Lula a grandes
líderes da humanidade, mas simultaneamente aos denominados ‘heróis do cotidiano’, as
pessoas que fazem parte das camadas populares e são desprezadas nos compêndios de
história. A característica de enaltecer os esquecidos faz parte do universo da cantoria de
viola, tendo em vista que existe uma vasta literatura seguindo este paradigma. Essa
peculiaridade se harmoniza com as marcas da folkcomunicação, notadamente uma forma de
expressão “marginal”. No caso específico do poema em estudo, além das características da
folk, percebe-se os métodos inerentes aos atos de fingir assinalados por Wolfgang Iser, os
quais re-criam o real, dando a ele uma nova configuração.
A teoria para embasar a pesquisa foi a do imaginário ficcional, proposta por Wofgang
Iser, que direciona a ideia de que o real está presente no fictício, mas nele não se esgota. O
capítulo ‘Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional’, de Wolfgang Iser, foi de
fundamental importância, na análise de como os processos de seleção, combinação e como
se estão presentes na construção de Lula enquanto personagem ficcional.
Nesse aspecto, também foi necessário estabelecer um diálogo com a folk, defendida
por Luiz Beltrão pioneiramente em 1967 e tendo Marques de Melo como um dos seus
representantes. Essa teoria parte do folclore, da cultura popular, do interior, colocando os
agentes mais esquecidos por parte da sociedade como atores do próprio discurso e
interventores no cenário que os rodeia.
Esse papel de condução de informações, desenvolvido pela figura do artista popular,
traduz o interacionismo simbólico das habilidades de construção de discursos, por meio de
atividades mentais do indivíduo, as quais se inserem no processo de comunicação social.
Essa característica é de extrema importância para a consolidação da imagem de Lula como
relacionada à força de luta do pobre, da coragem do nordestino, também descrita em outras
obras literárias, a exemplo de ‘Os Sertões’, de Euclides da Cunha, mencionado no próprio
texto do repentista.
Ademais, a postura do cantador ao escrever o poema revela um compromisso social,
que acentua as relações entre linguagem e ideologia, e está intrínseco à produção poética
popular. Essas peculiaridades representam elementos próprios da construção do ‘lulismo’,
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isto é, a ‘reificação’ do Lula presidente, atribuindo-lhe características semidivinas, devido
às conquistas sociais alcançadas pelas classes populares durante sua gestão, a despeito da
continuidade com os compromissos para com os setores do capital.
A partir deste estudo, é possível indicar temáticas passíveis de investigações
posteriores, a exemplo de análises de discursos do período de auto-censura dos cantadores;
a visão sobre os políticos nos poemas de cordel; o caráter dissertativo dos textos populares.
Referências bibliográficas
BELTRÃO, Luiz. Folkcomunicação: a comunicação dos marginalizados. São Paulo:
Cortez, 1980.
CRISPINIANO NETO, Joaquim. Lula na Literatura de Cordel. Fortaleza: Editora IMEPH,
2009.
ERBOLATO, Mario. Técnicas de decodificação em Jornalismo. São Paulo: 1991.
FIORIN, José Luiz. Linguagem e ideologia. São Paulo: Ática, 2007.
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Uma introdução aos principais termos, conceitos e expressões. Ponta Grossa: UEPG, 2007.
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