508
Luz Adriana Sánchez Segura MEMORIAL DE AIRES, SOBREVIVÊNCIAS EM TRADUÇÃO Tese apresentada como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor, pelo Programa de Pós- Graduação em Estudos da Tradução da Universidade Federal de Santa Catarina. Orientadora: Profa. Dra. Luana Ferreira de Freitas Coorientador: Prof. Dr. Walter Carlos Costa Florianópolis 2015

Luz Adriana Sánchez Segura - core.ac.uk · A minha orientadora, a professora Luana Ferreira de Freitas, e meu coorientador, o professor Walter Costa, por seu apoio constante. Aos

  • Upload
    lamlien

  • View
    316

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

  • Luz Adriana Snchez Segura

    MEMORIAL DE AIRES, SOBREVIVNCIAS EM TRADUO

    Tese apresentada como requisito

    parcial para a obteno do ttulo de

    Doutor, pelo Programa de Ps-

    Graduao em Estudos da Traduo da

    Universidade Federal de Santa

    Catarina.

    Orientadora: Profa. Dra. Luana

    Ferreira de Freitas

    Coorientador: Prof. Dr. Walter Carlos

    Costa

    Florianpolis

    2015

  • Ficha de identificao da obra elaborada pelo autor, atravs do Programa de Gerao Automtica da Biblioteca Universitria da UFSC.

    SNCHEZ SEGURA, LUZ ADRIANA

    Memorial de Aires, sobrevivncias em traduo / LUZ

    ADRIANA SNCHEZ SEGURA ; orientadora, LUANA FERREIRA DE

    FREITAS ; coorientador, WALTER CARLOS COSTA. -

    Florianpolis, SC, 2015.

    508 p.

    Tese (doutorado) - Universidade Federal de Santa

    Catarina, Centro de Comunicao e Expresso. Programa de Ps-

    Graduao em Estudos da Traduo.

    Inclui referncias

    1. Estudos da Traduo. 2. MEMORIAL DE AIRES. 3.

    TRADUO . 4. CRTICA LITERRIA. I. FERREIRA DE FREITAS,

    LUANA . II. COSTA, WALTER CARLOS. III. Universidade

    Federal de Santa Catarina. Programa de Ps-Graduao em

    Estudos da Traduo. IV. Ttulo.

  • Luz Adriana Snchez Segura

    MEMORIAL DE AIRES: SOBREVIVNCIAS EM TRADUO

    EstaTese foi julgada adequada para obteno do Ttulo de

    Doutor,e aprovada em sua forma final pelo Programa de Ps-

    graduao em Estudos da Traduo

    Florianpolis, 21 de maio de 2015.

    Profa. Dra. Andria Guerini

    Coordenadora do Curso

    Banca Examinadora: ________________________

    Prof. Dr. Luana Ferreira de Freitas

    Orientadora

    Universidade Federal de Cear

    ________________________

    Prof. Dr. Graciela Ravetti

    Universidade Federal de Minas Gerais

    ________________________

    Prof. Dr. Hlio de Seixas Guimares

    Universidade de So Paulo

    ________________________

    Prof. Dr. Marie-Hlne Catherine Torres

    Universidade Federal de Santa Catarina

    ________________________

    Prof. Dr. Andria Guerini

    Universidade Federal de Santa Catarina

    ________________________

    Prof. Dr. Berthold Zilly

    Universidade Federal de Santa Catarina

  • A Byron

  • AGRADECIMENTOS

    Ao longo do processo de escrita desta tese contei com o apoio,

    em diferentes modalidades, de muitas pessoas e entidades, aproveito

    este breve espao para expressar-lhes meu agradecimento:

    A Byron Vlez, meu companheiro sempre presente, pelo amor, a

    fora e a interlocuo.

    A minha famlia, minha me Luz Marina, meu pai Juan e minha

    irm Carolina, por seu imenso amor.

    A minha orientadora, a professora Luana Ferreira de Freitas, e

    meu coorientador, o professor Walter Costa, por seu apoio constante.

    Aos professores Marie-Hlne Catherine Torres, Alckmar Luiz

    dos Santos e Berthold Zilly, integrantes da Banca de Qualificao da

    primeira verso deste trabalho, por suas contribuies.

    Aos professores Graciela Ravetti, Tereza Virgnia Ribeiro e

    Marcos Rogrio Cordeiro, por suas orientaes e sua clida acolhida no

    estgio PROCAD na Universidade Federal de Minas Gerais.

    Ao professor Hlio Seixas Guimares, orientador do doutorado

    sanduche nacional cursado na Universidade de So Paulo, pela

    interlocuo e por suas valiosas sugestes.

    A minha querida amiga Rosrio Lzaro Igoa pelo carinho e a

    interlocuo constante.

    A todos os amigos, minha famlia no Brasil.

    CAPES, pela bolsa que me concedeu desde o segundo semestre

    do curso.

    Ao CNPq, pela bolsa de doutorado sanduche.

  • Entonces empezamos a comprender que cada cosa

    por ver, por ms quieta, por ms neutra que sea

    sua apariencia, se vuelve ineluctable cuando la

    sostiene una prdida aunque sea por medio de

    una simple pero apremiante asociacin de ideas o

    de un juego de lenguaje y, desde all, nos mira,

    nos concierne, nos asedia.

    (Georges Didi-Huberman, 1992)

  • RESUMO

    Memorial de Aires (1908), ltimo romance de Machado de Assis, passou inadvertido por dcadas como obra traduzvel em vrias lnguas.

    Durante anos foi lido como sintoma da reconciliao de seu autor com a

    vida, sendo identificados em seu protagonista os traos mais

    caractersticos de sua maturidade. Posteriormente, foi objeto de uma

    leitura concentrada na relao entre fico e histria, caracterizada pela

    identificao e corroborao de fatos acontecidos no Brasil, na transio

    do Segundo Imprio Repblica. Sob essas duas vertentes de leitura, o

    romance foi valorizado em suas possibilidades de representao de uma

    determinada realidade, isto , como testemunho, sendo assim

    desconsiderada sua potncia como texto ficcional.

    No universo hispanofalante, o romance permaneceu ausente at 2001,

    ano em que saram luz trs tradues, realizadas no Mxico, na

    Espanha e na Argentina, respectivamente. Elas, ainda que elaboradas

    sob diferentes iniciativas e polticas de traduo, revelam-se, de

    maneiras diversas, herdeiras da leitura de corroborao que caracterizou

    a interpretao do romance.

    Esta tese, cujo objetivo fundamental a apresentao de uma nova

    traduo do romance em formato bilngue, prope uma reflexo acerca

    da sobrevivncia de Memorial de Aires, por meio da anlise de sua

    fortuna crtica e das trs tradues para o espanhol publicadas em 2001.

    Inclui, alm dessa reflexo, que constitui um estgio fundamental para a

    anlise das circunstncias particulares da traduo aqui apresentada,

    uma abordagem do romance que se concentra nas caractersticas da

    escrita do protagonista-narrador e nas implicaes da escolha do dirio

    como tipo textual, como indcios de Memorial de Aires ser a realizao

    mais sofisticada do artifcio ficcional ensaiado antes por Machado de

    Assis em Memrias Pstumas de Brs Cubas (1880) e Dom Casmurro

    (1899).

    Palavras-chave: Memorial de Aires; crtica literria; traduo; sobrevivncia.

  • ABSTRACT

    Memorial Aires (1908) last novel by Machado de Assis, went unnoticed for decades as a translatable work into any languages. For years, it was

    read as a symptom of reconciliation of its author with life, identifying in

    its main character the most characteristic features of Machados

    maturity. Later on, it was the subject of a reading focusing on the

    relationship between fiction and history, aiming at identifying and

    corroborating in the text with the events that took place in Brazil in the

    transition from the Second Empire to the Republic. Under these two

    trends in its reading, the novel was appreciated in its possibilities of

    representation of a given reality, that is, as a witness, so disregarded its

    power as fictional text.

    In Spanish-speaking universe, the novel remained inexistent until 2001,

    when three translations appeared in Mexico, Spain and Argentina,

    respectively. Developed under different initiatives and translation

    politics, these three translations seem to inherit, although in various

    ways, the corroborating reading that has characterized the interpretation

    of the novel.

    This thesis, whose main purpose is the presentation of a new translation

    of the novel in a bilingual format, proposes a reflection on the Memorial de Airess survival, through the analysis of its literary criticism and of

    the three translations into Spanish published in 2001. This reflection is a

    fundamental stage for the analysis of the particular circumstances of the

    translation proposed. Furthermore, this thesis offers an approach of the

    novel that focuses on the writing features of the protagonist-narrator and

    the implications of the choice of the diary as textual type. As a result,

    Memorial de Aires proves to be the most sophisticated realization of a

    fictional device developed by Machado de Assis, a mechanism already

    experimented in Memrias Pstumas de Brs Cubas (1880) and Dom

    Casmurro (1899)

    Keywords: Memorial de Aires; literary criticism; translation; survival.

  • SUMRIO

    APRESENTAO................................................................... 17

    CAPTULO I

    A leitura crtica de Memorial de Aires no sculo XX............

    23

    Os contemporneos.................................................................... 24

    Repercusses dos contemporneos na dcada de 30.................. 26

    Machado de Assis, escritor brasileiro?....................................... 34

    Antonio Candido........................................................................ 48

    John Gledson, a interpretao correta... ................................... 53

    Traos dominantes da leitura de Memorial de Aires no sculo XX..............................................................................................

    66

    CAPTULO II

    Resonncias crticas nas tradues de Memorial de Aires

    para o espanhol.........................................................................

    71

    I. Memorial de Aires, sobrevivncia........................................ 74 Machado de Assis l fora: da apropriao ao encontro.............. 75

    Novos aires....... 85

    2001: a odisseia de Memorial de Aires... 89 II. As tradues.......... 91 A traduo mexicana................................................................. 92

    A traduo espanhola................................................................ 99

    A traduo argentina................................................................... 123

    III. Acontecimentos.................................................................. 140 A metfora suspensa................................................................... 145

    CAPTULO III

    Memorial de Aires, mal-estares................................................

    147

    I. Memorial de Aires... sobrevivncias no sculo XXI............. 147 II. O mal-estar em Memorial de Aires: da escrita do morto

    do diplomata...

    155

    Memrias pstumas de Brs Cubas, a escrita do morto 158

    Dom Casmurro, a escrita isenta.. 173 Memorial de Aires, a escrita do diplomata. 189

    A lei da equivalncia das janelas 208

    Do morto ao diplomata... 209

    CAPTULO IV

    Esta Traduo...........................................................................

    Esta traduo..............................................................................

    213

    213

    EPLOGO................................................................................. 493

    REFERNCIAS....................................................................... 497

  • 17

    APRESENTAO

    Memorial de Aires, ltimo romance publicado por Machado de Assis, alguns meses antes de sua morte, em 1908, foi traduzido por

    primeira vez para o espanhol em 2001, ano em que saram luz, de

    maneira quase simultnea, trs tradues do romance nessa lngua,

    realizadas no Mxico, na Espanha e na Argentina. A grande distncia

    temporal que houve entre a publicao do livro e sua traduo para o

    espanhol, assim como a coincidncia da apario de trs edies em

    2001, resultam aspectos de interesse para pensar seu processo de difuso

    internacional, em contraste com o de outros dos romances do autor,

    particularmente de Memrias Pstumas de Brs Cubas (1880), Dom

    Casmurro (1899) e Esa e Jac (1904), traduzidos para essa lngua j

    nos primeiros anos do sculo XX: em 1902, 1910 e 1905,

    respectivamente.

    O presente trabalho, inscrito no campo dos Estudos da Traduo,

    tem como objetivo a reflexo quanto sobrevivncia de Memorial de

    Aires, por meio da anlise de sua fortuna crtica e das trs tradues para

    o espanhol publicadas em 2001, na perspectiva da elaborao de uma

    quarta traduo. Esse estudo prvio ao exerccio tradutrio, que pode

    parecer excessivo ou mesmo desnecessrio, tornou-se um imperativo

    para o desenvolvimento deste trabalho uma vez que foram observadas as

    singularidades do processo de recepo crtica e de difuso internacional

    do romance.

    Uma aproximao inicial fortuna crtica de Memorial de Aires

    deixou em evidncia a marcada diferena que houve entre sua recepo

    e a de outros romances do autor, fundamentalmente dos publicados a

    partir de 1880, que integram a segunda fase machadiana, ou fase

    realista, segundo a classificao proposta por Jos Verssimo. A

    pesquisa bibliogrfica mostrou que o nmero de abordagens do romance

    resenhas, artigos de revistas, captulos de livros e livros completos

    era reduzido se comparado com o de estudos dedicados a obras como

    Memrias Pstumas de Brs Cubas, Quincas Borba ou Dom Casmurro,

    por exemplo. Mas no se tratava apenas de uma diferena quantitativa.

    A leitura do romance proposta por Lcia Miguel Pereira em

    Machado de Assis (estudo crtico e biogrfico) (1936) livro em que

    analisada toda a produo literria do autor luz de sua biografia,

    seguindo seu processo criativo desde a juventude at a morte foi o

    primeiro sinal de que Memorial de Aires tinha sido lido de um modo

    diferente aos romances precedentes, como se fosse uma exceo dentro

  • 18

    do grupo de obras que consagraram o autor. Nesse estudo de carter

    predominantemente biogrfico, as observaes sobre o romance esto

    sempre acompanhadas de comentrios sobre as experincias vividas por

    Machado de Assis nos ltimos anos de sua vida, marcadas pela solido

    que sofreu depois da morte da mulher e pelo agravamento da epilepsia

    de que padecia. A leitura de outros textos crticos mostrou que a identificao de

    correspondncias entre a vida do autor e seu ltimo romance, justificada

    no livro de Lcia Miguel Pereira pelo carter biogrfico de sua pesquisa,

    constitua uma constante na leitura do romance. Exemplos disso so os

    textos introdutrios das edies do romance publicadas pela Cultrix, em

    1961, e pelo Instituto Nacional do Livro, em 1975, preparados por

    Massaud Moiss e Jos Brito Broca (representante da Comisso

    Machado de Assis), respectivamente.

    Uma interpretao mais recente do romance, a leitura proposta

    por John Gledson, foi outro momento revelador no que tange ao tipo de

    recepo de que o Memorial foi objeto. Em Machado de Assis: fico e

    histria (1986) livro dedicado a algumas obras que foram

    relativamente esquecidas pela crtica, de importncia fundamental para a

    anlise do processo de formao literria do autor: Casa Velha (1885),

    Quincas Borba (1891), Bons dias! (1888-1889), Esa e Jac (1904) e Memorial de Aires (1908) , Gledson faz uma leitura do romance que

    procura distanci-lo da tendncia biogrfica comum a outras abordagens

    e que se concentra na reconstruo da viso machadiana da histria

    brasileira presente nesse e nos outros textos que analisa. Essa leitura,

    que representou uma atualizao do panorama interpretativo do

    romance, encontrou na relao estabelecida entre a fico e a histria o

    meio de reconhecer seu valor no conjunto da produo machadiana.

    As duas tendncias de leitura, identificadas na reviso inicial da

    fortuna crtica, mostraram a necessidade de associar determinados

    contedos ao romance, fossem biogrficos ou histricos, como forma de

    determinar seu valor. Mostraram, em outras palavras, que a importncia

    do livro era associada, com frequncia, possibilidade de corroborao

    de contedos externos e no ao modo com que eles se articulavam no

    jogo proposto pela fico: na escrita ntima de um diplomata que chega

    aos leitores de maneira fragmentada, por meio de um editor que no

    outro que o prprio Machado de Assis.

    Buscando aprofundar no papel da crtica na consolidao do

    cnone e, portanto, na sua funo na projeo da literatura em contextos

    estrangeiros, surgiu um questionamento quanto aos possveis efeitos da

    necessidade de corroborao, identificada em vrias abordagens do

  • 19

    romance, nas leituras produzidas fora do Brasil, especialmente nas trs

    tradues para o espanhol, publicadas em 2001. Tal questionamento

    tornou-se uma hiptese que, em linhas gerais, considerava a repercusso

    dessas tendncias de leitura na recepo do romance dentro e fora do

    pas; isto , a relao que poderia existir entre o reconhecimento de

    Memorial de Aires como um livro excepcional dentro da produo machadiana cujo valor consistia na possibilidade de identificao de

    determinados contedos, biogrficos ou histricos , o nmero reduzido

    de abordagens que constituem sua fortuna crtica, em comparao a

    outros romances, e a escassa promoo internacional que teve e da qual

    uma evidncia a distncia temporal que h entre a publicao do

    romance e sua apario no universo hispanofalante, que compreende um

    perodo de mais de noventa anos.

    O estudo da fortuna crtica, como estgio anterior anlise das

    trs tradues do romance para o espanhol e a apresentao de uma

    nova verso, tornou-se o meio de reconstruir, tentativamente, a histria

    de leitura do romance, de perceber sua sobrevivncia por meio das

    abordagens a ele dedicadas e, at mesmo, mediante sua ausncia em

    reflexes sobre a obra machadiana. O primeiro captulo desta tese,

    intitulado A leitura crtica de Memorial de Aires no sculo XX,

    ocupa-se, portanto, dessa tentativa de reconstruo do panorama crtico

    do romance, concentrando-se em abordagens elaboradas ao longo do

    sculo XX e em momentos especficos de sua recepo: partindo da

    leitura imediata dos contemporneos e passando pelas consideraes de

    Lcia Miguel Pereira na dcada de 1930; as reflexes de Mrio de

    Andrade publicadas em Dirio de Notcias, em ocasio do aniversrio

    de nascimento de Machado de Assis em 1939; as consideraes de

    Antonio Candido a propsito da obra machadiana, recolhidas na palestra

    intitulada Esquema de Machado de Assis (1968); e, a interpretao de

    John Gledson na dcada de 1980, includa em Machado de Assis: fico

    e histria (1986).

    A partir da reviso da fortuna crtica, procura-se identificar as

    circunstncias que projetaram o romance do Brasil para o pblico

    hispanofalante, especificamente as que motivaram a elaborao das trs

    tradues at hoje publicadas. Para tanto, o segundo captulo, intitulado

    Ressonncias crticas nas tradues de Memorial de Aires para o

    espanhol, dedica-se considerao de alguns aspectos associados

    difuso da obra machadiana na dcada de 1990 e anlise das trs

    tradues, partindo do perfil de seus tradutores e das particularidades

    dos projetos editoriais aos quais se associam, e aprofundando em

  • 20

    algumas das escolhas de cada um deles, na perspectiva de identificar

    possveis ressonncias das leituras crticas antes analisadas. As

    tradues para a lngua espanhola de Memorial de Aires so de Antelma Cisneros, Danilo Albero e Jos Dias Sousa, publicadas no Mxico, na

    Espanha e na Argentina, respectivamente, ao longo de 2001. A

    aproximao aqui ensaiada das tradues sustenta-se na reflexo sobre

    as categorias Traduzibilidade, vida e sobrevivncia, estudadas por

    Walter Benjamin em A tarefa do tradutor (1923).

    O estudo das tradues constitui um passo fundamental para

    situar a nova verso do romance em espanhol que esta tese apresenta,

    posto que permite a observao e anlise de algumas das circunstncias

    singulares de seu processo de elaborao, como o fato de ser realizada

    no mbito acadmico, especificamente no campo dos Estudos da

    Traduo e da Literatura Brasileira. Observadas nas trs tradues para

    o espanhol algumas ressonncias das tendncias da leitura crtica de

    Memorial de Aires identificadas no primeiro captulo, isto , da valorao do romance como um texto excepcional na produo

    machadiana, cujo valor consistiria na corroborao de determinados

    contedos, fez-se necessrio, como um passo precedente traduo,

    tentar aqui uma leitura do romance, uma abordagem de seus modos de

    enunciao, partindo da hiptese de que o artifcio ficcional da escrita

    em primeira pessoa, ensaiado em Memrias Pstumas de Brs Cubas e

    Dom Casmurro, na escrita escancarada das memrias do morto e na

    escrita dissimulada do advogado, atinge em Memorial de Aires o grau mais alto de sofisticao por meio da escolha do dirio como tipo

    textual e do carter diplomtico de seu protagonista. A essa leitura est

    dedicado o terceiro captulo desta tese, intitulado Memorial de Aires, mal-estares, que pretende mostrar a ntima relao que h entre os

    protagonistas-narradores desses romances Brs Cubas, Bento Santiago

    e o Conselheiro Aires , assim como problematizar o jogo que a fico

    cria com a realidade, para alm da representao. Essa leitura pretende,

    fundamentalmente, uma aproximao singularidade da escrita do

    protagonista com o objetivo de tentar sua recriao no exerccio

    tradutrio.

    O quarto captulo compreende a traduo do romance, o

    momento em que confluem as consideraes no que toca

    sobrevivncia do livro em suas leituras crticas e tradues, e a

    aproximao a seus modos de enunciao aqui proposta. Esta traduo,

    elaborada a partir de um conceito diferente do livro em relao s

    tradues precedentes, guarda em suas opes as particularidades de

    uma experincia situada com o texto e, portanto, suas limitaes.

  • 21

    apenas o testemunho de um contato com o romance e,

    consequentemente, mais um indcio de sua sobrevivncia.

  • 22

  • 23

    CAPTULO I

    A LEITURA CRTICA DE MEMORIAL DE AIRES NO SCULO

    XX

    "A literatura se instaura em uma deciso de

    no verdade: ela se d explicitamente como

    artifcio, mas engajando-se a produzir efeitos

    de verdade que so reconhecveis como tais."

    (Foucault, A vida dos homens infames)

    A posio que um livro ocupa dentro da obra do seu autor ou em

    um determinado mbito literrio a literatura brasileira, por exemplo

    pode no ser sempre um aspecto problemtico para uma reflexo sobre

    sua traduo. No entanto, no caso da traduo de Memorial de Aires

    para o espanhol lngua para a qual foram feitas trs tradues desde

    sua apario em 1908, todas publicadas em 2001, considerar fatores

    como o nmero reduzido de abordagens crticas dedicadas

    exclusivamente ao romance, o escasso volume de tradues para outras

    lnguas em comparao a outros textos do escritor e as particularidades

    de sua difuso dentro e fora do pas parece pertinente.

    Ao longo deste captulo, tentarei caracterizar as tendncias mais

    frequentes das abordagens crticas do romance elaboradas ao longo do

    sculo XX, com o propsito de analisar, no captulo seguinte, suas

    ressonncias nas trs tradues para o espanhol publicadas at hoje.

    ***

    Caberia supor que Memorial de Aires, como ltimo livro de

    Machado de Assis e como obra que fecharia o ciclo dos romances de

    maturidade de que fazem parte Memrias Pstumas de Brs Cubas

    (1880), Quincas Borba (1891), Dom Casmurro (1899) e Esa e Jac (1904) , seria amplamente frequentado pela crtica machadiana. No

    entanto, tal suposio seria inexata. Comparada quantitativamente a

    fortuna crtica sobre Memorial de Aires com a de outros romances da fase madura do autor a diferena surpreende, pois durante dcadas o

    livro passou quase despercebido e apenas h alguns anos vem

    constituindo um objeto de interesse entre os leitores machadianos.

    Tal invisibilidade parece ter uma estreita relao com o modo em

    que a situao vivida pelo autor no perodo de escrita do romance

    fundamentalmente a morte recente de sua mulher, a doena e a velhice

    se tornou um filtro para o pblico contemporneo do Memorial. Uma

  • 24

    identificao entre vida e obra que no difcil de compreender entre

    seus leitores mais prximos, amigos e colegas, mais do que apenas

    leitores desconhecidos, sensibilizados por seu envelhecimento e sua

    solido. Amigos como Joaquim Nabuco, que teve notcia do Memorial,

    por meio de uma carta de Machado, de 7 de fevereiro de 1907 (cinco

    meses antes de terminar o livro), nos seguintes termos: No sei se terei

    tempo de dar forma e termo a um livro que medito e esboo; se puder,

    ser certamente o ltimo (MACHADO, 2003, p. 285).

    Os contemporneos

    O romance foi lido a partir dessa perspectiva como testemunho da

    situao do autor, como uma obra que abria espao no apenas para

    personagens de ndole similar aos de romances anteriores, mas tambm,

    e principalmente, para almas boas. Mrio de Alencar, no artigo

    intitulado Memorial de Aires, publicado no Jornal do Comrcio em

    24 de julho de 1908, identifica nas particularidades do narrador um

    homem sexagenrio que escreve um dirio a partir de suas observaes

    sem preconceito (MACHADO, 2003, p. 286) a explicao da

    presena desse outro tipo de personagens:

    Em Memorial de Aires ainda aparecem figuras ao

    jeito ou da famlia daquelas que o romancista

    criou e perpetuou nos seus outros livros. Cesria e

    o marido, os pais de Fidlia e Noronha bastam

    para que Aires no se espante de ainda estar no

    mundo. Mas no romance aparece ainda o bom e o

    timo, do carter e corao humanos, e a

    novidade, a que me referi, da expresso moral

    desse livro. No mudou nem diminuiu a

    observao do romancista; mudou apenas o seu

    ponto de vista, e ainda bem para a sua obra, que

    assim se completa admiravelmente como quadro

    humano, do qual no h dizer que houve propsito

    de excluso nem deficincia de desenho. (p. 289)

    Jos Verssimo, por sua parte, publica uma resenha do romance,

    sob o pseudnimo Candido, no Correio da Manh, em 3 de agosto de

    1908. Nela, o tambm amigo de Machado, faz uma valorao elogiosa

    do texto que convida leitura, por meio da considerao da

    simplicidade do estilo e do carter e os sentimentos dos personagens que

    dividem a cena com Aires. Sua resenha comea com o reconhecimento

    da simplicidade do enredo:

  • 25

    o registro, na apparencia insignificante, das

    magoas de alguns velhos, urdidas pelas

    desilluses da vida, frechando cruel e friamente

    sobre a requintada sensibilidade de almas to

    simples e boas, que chegam a parecer arrancadas a

    poca remotissima. (1908, p. 1)

    Para passar, em seguida, a referir-se naturalidade do estilo:

    Sem urdidura complicada, apresentando essa

    simplicidade extrema que parece natural e

    expontanea, sendo entretanto o resultado de um

    esforo que s os mestres desenvolvem com

    efficacia, o livro encantador e ao chegar

    derradeira pgina, tem se derramada pelo espirito

    uma tristeza nobre e serena, muito serena e

    humana. (p. 1)

    Posteriormente, concentra-se na reconstruo do enredo do

    romance, no sem observar a relao de identidade que parece encontrar

    entre o protagonista e seu criador diplomata aposentado, profundo

    psychologo servido por 30 annos de diplomacia, atraz de cuja figura

    parece que se esconde a personalidade do autor e dedicar uma

    considerao especial ao casal Aguiar, atravs da seguinte descrio: O

    casal Aguiar, almas de eleio profundamente amorosas, enleiadas e

    fortalecidas pelo mutuo affecto inquebrantvel, formam o centro da

    narrativa, tla de magoas fidalgas, [...] um completa o outro, numa

    comunho absoluta de sentimentos e de pensamentos.. E, finalmente, o

    crtico pe em questo a intencionalidade de certas construes

    sintticas que poderiam ser consideradas errneas e que, no entanto,

    analisa como operaes intencionais do autor.

    Analisados apenas esses dois textos contemporneos publicao

    do romance, podem ser percebidos pontos de consenso nas leituras,

    especialmente no que se refere natureza aparentemente afvel dos

    personagens e identificao entre o protagonista e seu criador. Dentre

    esses pontos de contato, cabe dar destaque apreciao extremamente

    positiva do casal Aguiar; isso porque o amor conjugal representado por

    ele um dos elementos do romance que parecem contribuir de uma

    maneira mais efetiva com a valorao positiva do protagonista-narrador

    de suas observaes e sua escrita e com a hiptese de uma relao

    autobiogrfica entre Machado e Aires.

  • 26

    So vrias as leituras que coincidem em afirmar que no casal o

    autor projetou sua prpria felicidade conjugal, ou melhor, a ausncia

    dela trs a morte de sua mulher. Esse um dos aspectos em que pode ser

    percebido o modo em que a proximidade dos leitores com o autor

    permeou a interpretao, pois uma anlise detalhada da imagem que

    Aires projeta do casal Aguiar mostrar um olhar muito crtico do

    narrador, sobre o que aprofundaremos no terceiro captulo.

    Cabe anotar que nas leituras contemporneas, alm de

    interpretaes baseadas em aspectos biogrficos, h observaes sobre

    aspectos especficos do romance, algumas referidas linguagem, s

    caractersticas prprias do tipo textual recriado na fico, por exemplo,

    e, outras, sobre sua afinidade com a realidade brasileira e seus traos de

    universalidade. (Cfr. MACHADO, 2003, p. 285-301; GUIMARES,

    2012, p. 406-438). Diga-se, em outras palavras, que o romance foi

    valorizado por seus contemporneos no apenas por ser o ltimo livro

    de Machado de Assis ou por ser aparentemente autobiogrfico, e que

    no foi objeto de uma leitura como obra marginal, como o seria algumas

    dcadas mais tarde.

    Os traos iniciais da histria de leitura do Memorial, caracterizados como vimos por uma relao de empatia com o autor,

    contriburam, de certo modo, para a perpetuao de uma interpretao

    luz de aspectos biogrficos, que foi dominante durante dcadas e que

    repercutiu posteriormente na marginalizao do romance dentro do

    conjunto da obra machadiana. Isso devido a que prevalecendo a

    corroborao de aspectos biogrficos no Memorial reconhecendo em

    Aires um retrato de Machado e no casal Aguiar uma projeo de sua

    felicidade conjugal operou-se uma neutralizao do tom do romance,

    aparentemente afvel, mas dissimuladamente carregado do humor, o

    cinismo e a ironia caractersticos dos narradores machadianos, que o

    colocou progressivamente margem do projeto literrio do autor, mais

    especificamente de seus romances de maturidade: Memrias Pstumas

    de Brs Cubas (1880), Quincas Borba (1891), Dom Casmurro (1899) e Esa e Jac (1904).

    Repercusses dos contemporneos na dcada de 1930

    Para perceber o movimento da colocao de Memorial de Aires

    margem desse conjunto de romances, cabe convocar a leitura proposta

    por Lcia Miguel Pereira em uma das abordagens pioneiras da obra de

    machadiana, inscrita em um segundo momento de recepo crtica

    associado comemorao do centenrio de nascimento do autor. Para

    comear, preciso levar em conta que o projeto de leitura da

  • 27

    pesquisadora compreendeu a formao completa de Machado como

    escritor, dos primeiros textos at o ltimo romance, vista sempre luz

    de detalhes minuciosos de sua histria pessoal. Lcia Miguel Pereira

    publicou, em 1936, Machado de Assis (estudo crtico e biogrfico), em

    que ao longo de 295 pginas, acompanha a carreira do escritor,

    dedicando aproximadamente quarenta delas ao perodo compreendido

    entre a criao do protagonista do Memorial, o Conselheiro Aires, que

    aparecera previamente em Esa e Jac e a escrita e a publicao do

    romance, em trs captulos intitulados "O Conselheiro Aires", "Ao p do

    leito derradeiro" e "Pensamentos de vida formulados". Tambm

    publicou em 1950, Prosa de fico (1870 a 1920), dcimo segundo volume da Histria da Literatura Brasileira, dirigida por lvaro Lins.

    Machado de Assis (estudo crtico e biogrfico) uma leitura que,

    embora mais prxima da biografia do que da anlise literria, evidencia

    uma tendncia de aproximao das obras do autor essencialmente do

    romance de que se ocupa esta tese com traos ainda presentes em

    leituras contemporneas. Herdeira da interpretao do romance que Jos

    Verssimo incluiu na Historia da literatura brasileira (1915)1, privilegia

    uma abordagem do romance que comprova similitudes entre o autor e

    sua personagem, que no considera a apario prvia do Conselheiro

    Aires em Esa e Jac, nem analisa as caractersticas do seu estilo ou as implicaes da fico memorialstica, por exemplo. Trata-se de uma

    1 A referncia feita por Jos Verssimo sobre o Memorial se resume nos

    seguintes termos: J velho, com sessenta e oito anos, e no foi jamais robusto,

    escreveu ainda um livro admirvel, o Memorial de Aires, inspirado na saudade

    da esposa e companheira muito amada, j chorada no sublime soneto que

    antepusera Relquias de casa velha, o primeiro que deu luz depois da morte

    dela. Memorial de Aires talvez o nico livro comovido, de uma comoo que

    se no procura esconder ou disfarar e de emoo cordial e no somente

    esttica, que escreveu Machado de Assis. Com a peregrina arte de transposio

    que possua e que s revelaria plenamente a histria de seus livros, mas que

    podemos avaliar pelo pouco que dela sabemos, idealizou Machado de Assis,

    num suave romance contado por terceiro, um velho diplomata espirituoso e

    desenganado, o Conselheiro Aires, o seu palcio e feliz viver domstico. No

    que o indicasse ou sequer o insinuasse. Descobriram-no os que lhe conheceram

    a vida, e eram bem poucos, pois nunca se derramou e odiava os derramados,

    na emoo nova que discretamente, sobriamente, recatadamente, como que

    receosa de profanar na publicidade cousas ntimas e sagradas, aparecia nesse

    delicioso livro, um dos mais tocantes da nossa literatura. (VERSSIMO, s/d, p.

    189 -190)

  • 28

    leitura afirmativa e resolvida, isto , uma leitura de comprovao,

    baseada numa verdade e no num problema crtico.

    O assunto que predomina nas consideraes sobre a fase da

    criao do Conselheiro Aires e da publicao do Memorial de Aires a

    velhice do autor: a doena, a morte de sua esposa e sua prpria morte,

    poder-se-ia dizer, a queda do grande mestre: o fim, a fase da perda, do

    "apaziguamento" e da "reconciliao com a vida". A abordagem dessa

    etapa concentra-se na relao de Machado com o Conselheiro Aires e

    em suas implicaes dentro e fora da fico. Apesar de os limites entre o

    ficcional e o no-ficcional, nessa leitura, parecerem indeterminados,

    tentaremos descrever a influncia que, segundo a crtica, Aires opera

    tanto na vida quanto na obra do autor.

    Para comear cabe observar que, segundo a crtica, dita fase se

    caracteriza, tanto no mbito pessoal como no literrio, como um perodo

    de conformismo e declnio. Nessa altura da vida, Machado j tinha

    alcanado uma posio social estvel e privilegiada e, apesar da doena,

    levava uma vida tranquila ao lado de sua mulher2; como escritor

    tambm era reconhecido, especialmente aps a publicao de Memrias

    Pstumas de Brs Cubas e Dom Casmurro. Seria nesse momento de estabilidade que Machado inventaria o Conselheiro Aires e que

    pareceria ser possudo pelo carter do "diplomata aposentado, homem

    polido e medido, que se punha margem da existncia e apreciava,

    entre interessado e entediado, o espetculo da vida humana" (PEREIRA,

    1955, p. 243). Diferente de personagens problemticos como Brs

    Cubas ou Bentinho3, o Conselheiro representava um refgio para o

    velho Machado, pois "no era muito mulato nem doente [e] podia sorrir

    de tudo, livre dos dramas interiores" e atravs dele o escritor "saa de si,

    sem sair inteiramente, confundindo-se com o ssia, escondendo a todos

    os olhares os seus padecimentos, literato na Garnier, burocrata no

    ministrio, homem de sociedade na Academia" (p. 270).

    A suposta encarnao do Conselheiro em Machado tem, segundo

    Pereira, implicaes negativas sobre a escrita. Observe-se a propsito a

    seguinte colocao:

    2 "O comeo da velhice se anunciava tranqilo; entre Carolina, a Garnier e a

    Academia, entrava serenamente nessa fase da vida que lhe foi uma antecmara

    da glria. Sem a doena, seria um homem completamente feliz." (PEREIRA,

    1955, p. 248). 3 "Para que continuar a debater-se? Era melhor fechar os olhos, embalar-se na

    cantinela montona de Aires, mais confortvel do que a lucidez do Brs Cubas."

    (p. 248)

  • 29

    Aires aumentou o enfastiamento de Machado de

    Assis, porque o arrancou "voluptuosidade do

    nada", ao prazer satnico de sondar as fontes da

    vida e ach-las vazias, divina tortura do

    mistrio.

    Aquietou-o, infundiu-lhe a prpria "alma de

    sexagenrio desenganado e guloso", f-lo

    resignar-se ao agnosticismo risonho, cortou-lhe as

    asas imaginao.

    [...] E assim aconteceu. O fermento da inquietao

    neutralizou-se, seno no seu esprito, ao menos

    nos seus escritos, pela ao calmante do velho

    Aires. A curiosidade continua, forrada de

    simpatia, pela vida humana; mas no o leva a

    esquadrinhar-lhe o sentido; era curiosidade pura,

    vontade de se distrair. (p. 247)

    Assim, acompanhado, possudo ou encarnado por Aires como

    Machado escreve Memorial de Aires: "livro de velho [em] que no h a

    'contrao cadavrica' do Brs Cubas, h, ao contrrio, a serenidade de

    quem se despede da vida com pena." (p. 277). A pena produzida pela

    perda da esposa um dos aspectos que tm maior destaque nessa

    abordagem, pois refora a interpretao biogrfica do romance. O fato

    de ter sido escrito em 1907, aps a morte de Carolina, somado

    afirmao do prprio autor de criar Dona Carmo a partir dela4,

    corroborou a tese da transposio da vida na fico e, em consequncia,

    a apreciao do romance como "poema do amor conjugal" (p. 277). Na

    obra, diz Pereira, Carolina desdobra-se em Dona Carmo e Machado em

    Aires e em Aguiar: No somente no carinho com que evoca, sob as

    feies de D. Carmo, a figura de Carolina, que

    Machado torna patente o encanto que achara na

    existncia; no somente na velhice sadia e

    serena do Conselheiro Aires que aparece o prazer

    de existir, de ter ainda algum tempo o gozo de ver,

    de observar, de sentir a vida em si e nos outros.

    H mais e melhor.

    4 Pereira refere a existncia de uma carta em que Machado confessara a estreita

    relao entre D. Carmo e Carolina: Oficialmente, o autor amava D. Carmo, que

    confessou em carta a Mrio de Alencar ser modelada por Carolina (p. 272).

    No h informaes detalhadas sobre tal documento.

  • 30

    [...] O Memorial nos d a melhor prova de que o

    Aires foi mesmo uma projeo de Machado. No

    s fcil reconhec-lo no livro, onde se repartiu

    ente o narrador e Aguiar, o marido de D. Carmo,

    pondo neste o eu domstico, e naquele o eu

    interior... (p. 272)

    Interessante notar como essa abordagem baseada na afirmao da

    estreita ligao da obra com a vida pessoal do autor, no supe a

    considerao do Memorial como um romance, isto , como uma obra de

    fico. Assim, enxergado atravs das imagens idealizadas de Machado

    (da sua doena e velhice e do seu casamento), o romance neutraliza-se, a

    sua potncia criativa some, perdendo-se, por exemplo, qualquer

    possibilidade de perceber na aparente harmonia das relaes dos

    personagens especialmente no casal Aguiar o to celebrado esprito

    crtico do escritor. Em resumo, para Pereira, o valor do Memorial

    restringe-se ao de um testemunho dos dias derradeiros do autor, sendo,

    desse modo, o fecho perfeito de sua obra: "Sem essas pginas de

    saudades, de uma pureza cristalina, no estaria completa a obra de

    Machado de Assis." (p. 271)

    Alguns anos mais tarde, e com outras pretenses, no livro Prosa

    de fico, Pereira inclui Machado no segundo captulo intitulado Pesquisas psicolgicas, junto com Raul Pompia. O texto concentra-

    se nas obras da segunda fase5, especialmente nas implicaes que trouxe

    para a literatura brasileira a apario de Memrias pstumas de Brs Cubas em 1880, ano em que tambm foi publicado O Mulato de Alusio

    Azevedo. A abordagem comea justamente com a aluso recepo

    dessas duas obras, concretamente sobre como foi despercebido o

    esprito de inovao e de rebeldia (1957, p. 54) de Memrias

    Pstumas, diante da novidade que pareceu representar a tendncia naturalista de O Mulato. A propsito a crtica afirma:

    No momento, impressionou muito mais a

    novidade do Mulato sob muitos aspectos ainda

    to preso s deformaes romnticas do que a

    5 Uso aqui as categorias "primeira e segunda fase" propostas por Jos

    Verssimo, para classificar os romances de Machado de Assis. O crtico inclui

    na "primeira fase" os romances de juventude do autor, dentre os que destaca A

    mo e a luva (1874), Helena (1876) e Iai Garcia (1878). Ora, sob a

    denominao "segunda fase", inclui as obras escritas a partir de Memrias

    Pstumas de Brs Cubas (1881).

  • 31

    do Brs Cubas, muito mais completa e audaciosa.

    que aquele no s trazia um rtulo em moda,

    como, parecendo revolucionrio e de fato o sendo

    pelo tema, continuava a velha linha nacional de

    romances que encontravam na descrio de

    costumes o seu centro de gravidade; foi por isso

    mais facilmente entendido e admirado. Pelos

    livros de Zola e Ea de Queirs, estavam o meio

    intelectual e o pblico que lia preparados para

    receber afinal uma obra naturalista brasileira, que

    na verdade se fazia esperar, ao passo que nada os

    habituara de antemo nova maneira de Machado

    de Assis, j que nenhum crtico vislumbrara as

    sondagens psicolgicas escondidas sob os casos

    sentimentais que at ento de preferncia contara.

    Toda a gente se deslumbrou ou se escandalizou

    com O Mulato, sem perceber que o esprito de

    inovao e rebeldia estava mais nas Memrias

    Pstumas de Brs Cubas. Aqui, ousadamente,

    varriam-se de um golpe o sentimentalismo, o

    moralismo superficial, a fictcia unidade da pessoa

    humana, as frases piegas, o receio de chocar

    preconceitos, a concepo do predomnio do amor

    sobre todas as paixes; afirmava-se a

    possibilidade de construir um grande livro sem

    recorrer natureza, desdenhava-se a cor local,

    colocava-se um autor pela primeira vez dentro das

    personagens; surgiam afinal homens e mulheres e

    no brasileiros, ou gachos, ou nortistas, e last

    but not least patenteava-se a influncia inglesa

    em lugar da francesa, introduzia-se entre ns o

    humorismo. (p. 53-54)

    Nesse pargrafo introdutrio, a autora anuncia os principais

    aspectos que analisar no captulo, entre os quais se destacam o

    posicionamento de Machado diante do que deveria ser uma literatura

    nacional6, as particularidades das personagens e os enredos dos

    romances e contos, a introduo do humor na literatura brasileira, assim

    como alguns gestos da recepo crtica. A relao estabelecida entre

    6 Cabe lembrar a propsito as consideraes de Machado de Assis sobre a

    literatura brasileira, registradas em seu clebre Notcia da atual literatura

    brasileira. Instinto de Nacionalidade, publicado na revista Novo Mundo, em

    1873.

  • 32

    vida e obra menos pontual, menos colada a detalhes, do que a

    apresentada no livro anterior; nesse texto o que se destaca so as

    habilidades de observao do autor como condio que favorece a

    criao de seus personagens, e que o situa como um autor realista:

    Por isso que a Machado de Assis se pode

    chamar de realista. Sem preocupao de escola

    literria, desde que se libertou do romantismo, ele

    observou, como ningum entre ns, as criaturas

    em toda a sua realidade, dando a cada aspecto o

    justo valor, isto , apreciando a todos com um

    critrio relativo. (p. 76)

    Embora a anlise se concentre, fundamentalmente, em Memrias pstumas de Brs Cubas, so muitas as referncias que Pereira faz a

    personagens de outros romances tanto da primeira como da segunda

    fase e de vrios contos do autor. Dos romances da primeira fase

    ressalta o que poderamos chamar de germe dos trabalhos posteriores,

    sobretudo a propsito da mencionada capacidade de observao que lhe

    teria permitido analisar a sociedade nas suas distintas camadas ao longo

    da sua escalada social7. Percebe-se que dentro das consideraes dos

    romances da segunda fase, a apario de Memorial de Aires marginal e

    restringida correspondncia entre o seu tema e a velhice do autor:

    Da em diante, at a velhice, at a morte, no

    transigir mais, s dir o que sente. Se seu ltimo

    livro, o Memorial de Aires, patenteia

    apaziguamento, que de fato traduz uma

    reconciliao do artista com sua velha e cara

    inimiga, a vida. Nesse romance, evocao da sua

    perfeita felicidade conjugal, iluminado pela

    saudade da companheira perdida poucos anos

    antes, adivinha-se que, nas vsperas de deix-la,

    Machado de Assis descobrira um novo caminho

    para a compreenso da existncia: a ternura, j

    no escondida no humorismo, j no eivada de

    ironia, mas expandindo-se livremente, envolvendo

    7 A propsito dos romances da primeira fase, Pereira afirma: Com efeito, A

    mo e a luva, Helena, Iai Garcia e Casa Velha so, embora muito

    disfaradamente, livros autobiogrficos. Com mil cautelas e rodeios, discutiu

    neles Machado de Assis uma questo que na mocidade muito o preocupou: a

    luta entre a sociedade e o indivduo que se quer elevar. (1957, p. 65)

  • 33

    e suavizando todas as coisas. O contacto de umas

    poucas criaturas generosas tambm paga a pena

    de viver: de divertido, o espetculo passa a ser

    comovente; a voz humana j no se perde na

    vastido de um universo indiferente, mas ao

    contrrio, ecoa no aconchego de uma sala bem

    abrigada, fechada s dvidas como s intempries.

    Talvez nesse ambiente duloroso se hajam

    dissolvido as melhores caractersticas

    machadianas, e o livro saiu inferior aos que mais

    de perto o precederam. (p. 72).

    A imagem que Pereira projeta do romance nessas poucas linhas

    pode ser questionada por meio do que ela mesma escreveu ao se referir

    recepo imediata de Memrias pstumas. Talvez, como no caso desse

    romance em 1891, no fosse esperado que depois de personagens to

    complexos como Brs Cubas e Dom Casmurro, aparecesse em cena um

    velho diplomata aposentado que usava o seu tempo de lazer para

    escrever um dirio. E, talvez por isso mesmo, na leitura da crtica no

    fossem problematizados a ironia e o sarcasmo que se agitam sob a

    aparncia conformista do Conselheiro Aires aparncia dissimulada

    que bem poderia ser compreendida como o artifcio da mxima sutileza

    da segunda fase do escritor.

    Note-se tambm, como se evidencia nessa leitura a repercusso

    da interpretao de Verssimo, especialmente na escolha das palavras

    com que se descreve a dor da viuvez como motor da escrita do romance,

    pois enquanto na Histria da literatura brasileira se aponta que foi "inspirado na saudade da esposa, Pereira afirma que foi iluminado

    pela saudade da companheira perdida poucos anos antes. Alm disso,

    cabe observar que o Memorial, considerado um romance inferior aos que mais de perto o precederam, no mereceu mais comentrios ao

    longo do captulo e que nas ocasies em que a autora se refere a Aires o

    faz sempre como personagem de Esa e Jac. Pode-se dizer, para concluir a abordagem de Pereira, que a

    presena de Memorial de Aires em Machado de Assis (estudo crtico e biogrfico) estava garantida sob a inteno de acompanhar todo o

    processo criativo do autor, enquanto no caso de um dos volumes da

    Histria da Literatura sua presena no era obrigatria, pois um projeto dessa ndole se associa formao de um cnone, com o destaque das

    obras decisivas para uma determinada tradio. Assim, excludo da

    reflexo sobre a prosa de fico de 1870 a 1920, o romance foi

    marginalizado e assentado em uma posio de desvantagem, como obra

  • 34

    inferior dentro da produo de Machado, como obra de velhice e de

    reconciliao.

    Machado de Assis, escritor brasileiro?...

    Em 1939, Mrio de Andrade publicou no Dirio de Notcias,

    entre 11 e 25 de junho, trs textos sobre Machado de Assis reunidos

    posteriormente em Aspectos da literatura brasileira (1943) e Vida

    literria (1993) em que questiona a posio do autor no mbito da

    literatura brasileira. E, alguns meses mais tarde, no dia 24 de dezembro,

    publicou outra nota sobre os estudos crticos machadianos,

    especialmente os publicados a propsito do centenrio de nascimento do

    autor, naquele ano. preciso levar em conta que, embora as

    consideraes sobre Memorial de Aires sejam marginais nesses textos,

    relevante fazer uma leitura detalhada deles, pois contribuem para a

    identificao de algumas tendncias interpretativas frequentes da obra

    de Machado, especialmente as associadas formao de uma literatura

    brasileira, herdeiras de certo modo das observaes de Sylvio Romero8.

    O primeiro desses textos, Machado de Assis [I], composto de

    oito fragmentos, comea com um questionamento para o leitor: "Eu

    pergunto, leitor, para que respondas ao segredo da tua conscincia, se

    amas Machado de Assis? E esta inquietao me melancoliza." (1993, p.

    53). Ainda que parea estranha e at fora do lugar, a pergunta sobre o

    sentimento despertado pelo autor o eixo desse primeiro comentrio e

    se associa diretamente ao que, sob o olhar do crtico, deveria ter sido

    e/ou feito Machado como escritor brasileiro, e principalmente como

    escritor mulato. Num dos primeiros pargrafos aponta-se o que seria o

    motivo dessa impossibilidade de amar o autor:

    8 Refiro-me especificamente s observaes feitas pelo crtico sobre o

    descompasso que haveria entre a produo de Machado de Assis e suas

    condies de origem (sua situao socioeconmica e sua natureza mestia),

    concentradas, fundamentalmente, no humour (Cfr. ROMERO, 1897). Uma

    desarmonia produzida pela macaqueao que Machado fizera de autores

    como Sterne, que se revelaria na dificuldade de articular sua obra a um projeto

    nacional, isto, por no manifestar, atravs do estilo, dos assuntos, dos modelos,

    um estado de conscincia sobre as necessidades da literatura brasileira em

    formao. Em palavras de Romero: Para tudo dizer sem mais rodeios:

    Machado de Assis bom quando faz a narrativa sbria, elegante, lyrica dos

    factos que inventou ou copiou da realidade; quasi mo quando se mette a

    philosopho pessimista e a sujeito caprichosamente engraado. (p. 347)

  • 35

    Porque certos artistas, pela vida e pelas obras que

    deixaram, perpassam os dons humanos mais

    generosos em que o nosso indivduo se reconforta,

    se perdoa, se fortalece. A prpria infelicidade, a

    prpria desgraa amarradas existncia de um

    artista, no podem, ao meu sentir, serem motivos

    de amor. Todos os seres somos fundamentalmente

    infelizes, e preciso no esquecer que

    psicologicamente, em oitenta por cento dos

    artistas verdadeiros, o prprio fato de serem eles

    artistas, uma definio de infelicidade. Amor

    que nasa de piedade, nem amor e nem exalta,

    deprime. E sobra ainda lembrar que certas

    desgraas, no o so exatamente. Nascem do

    nosso orgulho; nascem de uma certa espcie de

    pudor muito confundvel com ambies falsas e

    com o respeito humano. Estou me referindo, por

    exemplo, a preconceitos de raa ou de classe. (p.

    53) [grifo meu]

    Nesse trecho, Mrio de Andrade se concentra na imagem de

    Machado como mulato branqueado e na identificao de sua maior

    falha: sua infelicidade voluntria ligada doena e, sobretudo, raa.

    Isto sem fazer nenhum tipo de aluso s particularidades de sua obra.

    Nos quatro fragmentos seguintes, o assunto muda, dando espao

    a comentrios sobre a genialidade artstica do autor, as inmeras

    possibilidades interpretativas de sua obra e os estudos de Peregrino

    Jnior a propsito das marcas da epilepsia no ritmo da prosa

    machadiana e da obsesso do autor pelos olhos e os braos femininos. J

    no sexto excerto, o crtico dedica umas linhas ao amor na obra

    machadiana, insistindo na fora dominadora do feminino, sem

    aprofundar muito nos argumentos de sua exposio. E, de forma

    imediata, d, no seguinte trecho, um salto direto para a vida pessoal do

    autor, aludindo ao seu casamento, para afirmar a legitimao do amor

    burgus tanto com sua vida como com sua obra:

    J como lio de vida, o que mais sobra da

    biografia de Machado de Assis o golpe total que

    ele d na disponibilidade amorosa dos nossos

    romnticos. Casou, viveu com uma s mulher.

    Maranon diria dele que foi a expresso do varo

    perfeito, sem nenhuma inquietao sexual, o que

    no parece ser a verdade verdadeira. O sr. Almir

  • 36

    de Andrade chega a dizer de Machado de Assis

    que "no teve amores". Que no tenha tido

    paixes possvel, mas Carolina sempre uma

    exceo de amor, e das mais belas na biografia

    dos nossos artistas. Mais uma grande vitria de

    Machado de Assis, e aquilo em que ele se tornou

    perfeitamente expressivo da sociedade burguesa

    do Segundo Reinado e imagem reflexa do nosso

    acomodado Imperador. A escravaria, por culpa do

    branco e dos seus interesses, ficou entre ns como

    expresso do amor legtimo. No s relativamente

    casa grande, mas dentro da prpria senzala.

    Machado de Assis nem por sombra quer evocar

    tais imagens do sangue que tambm tinha. Ele

    simboliza o conceito do amor burgus, do amor

    familiar, e o sagra magnificamente. E desautoriza

    por completo a inquietao sexual, e mesmo a

    inquietao moral do artista, pela vida

    honestssima que viveu. (pp. 56-57)

    Desta vez a aluso raa mais evidente, e enftico o tom com

    que Andrade julga a omisso de Machado de "nem por sombra evocar

    tais imagens do sangue que tambm tinha". Cada vez fica mais claro que

    o desconforto do crtico surge da "inadequao" entre o que o autor

    pelo fato de ser mulato teria que considerar em suas obras e teria

    tambm que projetar na sua forma de vida. A biografia ganha

    novamente uma posio de destaque na leitura da obra de Machado,

    pois o seu casamento o que se traz tona para falar de uma suposta

    legalizao do "amor burgus" legalizao, alis, relacionada de forma

    direta com a escravido. Observe-se o modo em que o peso da vida

    pessoal consegue anular ou neutralizar qualquer posicionamento crtico

    do autor diante da instituio do matrimnio ao longo da sua obra at

    mesmo nos romances da chamada primeira fase em que as protagonistas

    ascendem na escala social a partir do casamento com homens ricos.

    Aqui no s cabe questionar as afirmaes do crtico a respeito da vida

    pessoal do autor, cabe perguntar, por exemplo, qual seria o tipo de

    relaes afetivas que seriam consoantes com a sua natureza mulata, e,

    principalmente, reconsiderar se possvel afirmar que, em romances

    como Memrias Pstumas de Brs Cubas, Dom Casmurro e Memorial de Aires, Machado projeta uma imagem idealizada e positiva do

    casamento que justifique a perpetuao da escravido, considerando as

    particularidades dos trs protagonistas-narradores, assim como os

    artifcios ficcionais propostos pelos romances.

  • 37

    No seguinte trecho, Andrade refuta a designao de Machado

    como romancista do Rio de Janeiro.

    Para meticuloso, meticuloso e meio. opinio passada em julgado que Machado de Assis o

    romancista da Cidade do Rio de Janeiro. S-lo-,

    de alguma forma, desde que nos entendamos. Me

    parece indiscutvel que Machado de Assis, nos

    seus livros, no sentiu o Rio de Janeiro, no nos

    deu o sentimento da cidade, o seu carter, a sua

    psicologia, o seu drama irreconcilivel e pessoal.

    Ser que a cidade e o seu carioca no tinham

    ainda se caracterizado suficientemente ento?

    impossvel. (1993, p. 57)

    O juzo de valor do crtico sobre o autor introduz novamente a

    problemtica. O valor do adjetivo "meticuloso" com que caracteriza

    Machado, apesar de fazer referncia minuciosidade, parece conter

    certa negatividade associada possivelmente ao significado da raiz

    latina meticulsus ('medroso, tmido, meticuloso') e assim aludir mais

    a um defeito do que a uma excessiva dedicao.

    A questo central desse trecho o significado daquilo que

    Andrade denomina "sentimento" da cidade, aquilo que Machado "no

    'sentiu'". Para nos aproximarmos desse "sentimento", cabe retomar o

    ensaio "O Aleijadinho", includo em Aspectos das artes plsticas no Brasil. Nesse texto h uma preocupao constante com a construo de

    uma identidade nacional, e, em consequncia, com o compromisso que

    os artistas brasileiros teriam que assumir nesse projeto.

    Analisando as opes artsticas do Aleijadinho, o artista barroco

    Antnio Francisco de Lisboa (1730(?)-1814), Andrade percebe certa

    "alienao" com respeito sua mulatice e, em consequncia, ao seu

    papel na construo da cultura brasileira, que estaria diretamente

    relacionada com um aspecto generalizado e determinante na poca: o

    sentimento de desclassificao racial do mulato.

    Considerando a produo artstica no Brasil do sculo XVIII,

    Andrade afirma o posicionamento do mulato como representante racial

    do pas: "Mas a prova mais importante de que havia um surto coletivo

    de racialidade brasileira, est na imposio do mulato" (1984, p. 13), e

    descreve, posteriormente, as particularidades de sua situao na

    sociedade:

  • 38

    Os mulatos no eram nem milhores nem piores

    que brancos portugueses ou negros africanos. O

    que eles estavam era numa situao particular,

    desclassificados por no terem raa mais. Nem

    eram negros sob o bacalhau escravocrata, nem

    brancos mandes e donos. Livres, dotados duma

    liberdade muito vazia, que no tinha nenhuma

    espcie de educao, nem meios para se ocupar

    permanentemente. No eram escravos mais, no

    chegavam a ser proletariado, nem nada. [...]

    Porque carece lembrar principalmente essa

    verdade tnica: os mulatos eram ento uns

    desraados. Raas aqui tinha os portugueses e os

    negros. (p. 15-16)

    Ora, na perspectiva da considerao da brasilidade, Andrade

    observa esse carter de "sem-raa" do mulato em relao a certo "mal-

    estar", caracterizado, justamente, pela "inconscincia nacional" (p. 18):

    No fundo, j aquela molstia to dos brasileiros e

    que Nabuco simbolizou: uma timidez acaipirada,

    envergonhada da terra sem tradies porque

    ignoravam a ptria e a terra. Em verdade, na

    conscincia daquela gente inda no tinha se

    geografado o mapa do imenso Brasil. (p. 21).

    A partir dessas colocaes, Mrio de Andrade pe em questo o

    carter nacional que fora atribudo obra do Aleijadinho, sublinhando o

    fato de ele ser presa dessa "inconscincia nacional" prpria do seu

    tempo. Assim, apesar de observar detalhadamente alguns aspectos da

    obra do artista e destacar o seu valor, conclui definindo-o como "o maior

    boato-falso da nacionalidade"9. Note-se que, por trs dessa

    9 "O Brasil deu nele o seu maior engenho artstico, eu creio. Uma grande

    manifestao humana. A funo histrica dele vasta e curiosa. No meio

    daquele enxame de valores plsticos e musicais do tempo, de muito superior a

    todos como genialidade, ele coroava uma vida de trs sculos coloniais. Era de

    todos, o nico que se poder dizer nacional, pela originalidade das suas

    solues. Era j um produto da terra, e do homem vivendo nela, e era um

    inconsciente de outras existncias melhores de alm-mar: um aclimado, na

    extenso psicolgica do termo. Mas engenho j nacional, era o maior boato-

    falso da nacionalidade, ao mesmo tempo que caracterizava toda a falsificao da

    nossa entidade civilizada, feita no de desenvolvimento interno, natural, que vai

  • 39

    caracterizao, se revela um conceito do artista ao que, semelhante ao

    caso de Machado, se associa certa obrigatoriedade do dever-ser,

    intimamente ligado s questes de raa e nacionalidade. Portanto, cabe

    afirmar que aquilo que o Aleijadinho, assim como outros mulatos de sua

    poca, no conseguira fazer conscientemente no sculo XVIII, se

    relaciona diretamente com aquilo que Machado "no 'sentiu', e que

    provocou a pergunta retrica do crtico: "Ser que a cidade e o seu

    carioca no tinham se caracterizado suficientemente ento?" (1993, p.

    57).

    De volta ao texto sobre Machado, vemos que Andrade, depois de

    afirmar a possibilidade do "carioca" no estar suficientemente

    caracterizado e de referir sua apario em Sargento de Milcias,

    retoma o adjetivo com que qualificara Machado no comeo do

    fragmento para se referir ao extremo cuidado que o autor demonstrou ao

    construir os itinerrios de suas personagens pelas ruas do Rio:

    Machado de Assis, temperamento francamente

    gozador e ainda menos amoroso da vida objetiva,

    tinha a meticulosidade freirtica dos

    memorialistas; e no ser toa que a dois de seus

    principais personagens fez memorialistas10

    . s

    vezes chega a ser pueril a pacincia topogrfica

    com que descreve as caminhadas dos seus

    personagens. Porque tomou pela rua Fulana,

    seguindo por esta at a esquina da rua Tal, que

    desceu at chegar no largo do Sicrano, etc. Esta

    necessidade absoluta de nomear ruas e bairros,

    casas de modas ou de pasto, datar com exatido os

    acontecimentos da fico, misturando-os com

    figuras reais e fatos histricos do tempo, se

    agarrando verdade para poder andar na

    imaginao, me faz supor nele o memorialista. (p.

    57)

    Essa qualidade meticulosa com que Machado cria a imagem da

    cidade, referida com termos elogiosos no , no entanto, suficiente para

    passar para os leitores o "sentido" da cidade: "Machado ancorou fundo

    do centro para a periferia e se torna excntrica por expanso, mas de

    importaes acomodatcias e irregulares, artificial, vinda do exterior."

    (ANDRADE, 1984, p. 41) 10

    Cabe aqui destacar que um dos personagens aqui evocados o protagonista e

    narrador do romance que nos ocupa: o Conselheiro Aires.

  • 40

    as suas obras no Rio de Janeiro histrico que viveu, mas no se

    preocupou de nos dar o sentido da cidade." (p. 57). possvel perceber

    que o que se pe em questo no o minucioso das descries da

    paisagem urbana, mas o que se poderia denominar "paisagem social" do

    Rio. Isto , que Machado poderia ter criado uma imagem detalhada do

    Rio mais coerente com a sua prpria natureza, desde que o ponto de

    vista no fosse o de personagens provindos das altas camadas da

    sociedade brasileira do Segundo Reinado, mas de personagens que

    representassem a identidade do homem brasileiro, homens mestios que

    dessem conta da irreconciliabilidade da sua classe.

    Depois de questionar a caracterizao de Machado como

    romancista do Rio, Andrade fecha o texto, abordando de novo a figura

    do autor desta vez considerando suas intenes: "Mas haver alguma

    utilidade em procurar no genial inventor de Brs Cubas, o que ele no

    teve a menor inteno de nos dar!" (p. 58) ressaltando a genialidade da

    sua tcnica narrativa.

    Em "'ltima Jornada' - II", segundo texto publicado no Dirio de

    Notcias, Andrade d destaque ao poema aludido no ttulo ("ltima

    Jornada"), do livro Americanas. Trata-se de um poema publicado pela primeira vez em 1875, e sobre o qual, embora pouco reconhecido pela

    crtica literria, Mrio de Andrade comenta: "No creio exagerar, na

    admirao enorme que tenho por esses versos, uma das mais belas

    criaes do mestre e da nossa poesia." (p. 59)11

    . Comparadas com o

    juzo de valor que predomina no texto anterior, estas palavras

    surpreendem; delas pode inferir-se que a admirao do crtico est

    ligada intimamente com a integrao do poema na "nossa poesia", isto ,

    na poesia brasileira. Mas, o que justifica esse reconhecimento? A chave

    para essa pergunta parece estar relacionada seguinte alegao:

    As Americanas, como concepo lrica, so no

    geral muito fracas. Pertencem quela fase de

    cuidadosa mediocridade, em que o gnio de

    Machado de Assis ainda no encontrara a sua

    expresso original. Alis esse perodo inicial,

    tanto da prosa como da poesia machadiana, se

    11

    Lembre-se que Sylvio Romero tinha uma opinio adversa sobre Amricanas:

    E agora veja o estimavel critico uma cousa curiosa: de todos os livros do autor

    fluminense o peior, o mais pallido, o mais insignificativo, o menos brasileiro,

    justamente, exactamente aquelle em que escolheu de preferencia assumptos

    nacionaesas suas Americanas! Livro incolor a mais no ser. (ROMERO,

    1987, p. 19)

  • 41

    caracteriza menos pela procura da personalidade

    que do instrumento e do material. (p. 59)

    Andrade insiste em afirmar que na fase da escrita do poema

    Machado ainda no era um artista maduro, e que a produo dessa etapa

    se caracterizava pela busca de temas e do domnio da tcnica; no caso

    do poema, pelo trabalho com a linguagem e a metrificao. A propsito

    coloca:

    O primeiro que ressalta, na dico do poema, a

    firme desenvoltura com que o poeta funde a

    tradio de uma linguagem castia, mesmo

    levemente arcaizante, com a metrificao

    romntica. Aos acentos de quarta e oitava, to

    preferidos pelos romnticos, se intercala mais

    discreta a acentuao herica na sexta slaba,

    dando ao poema um movimento de grande riqueza

    rtmica. Nem o tambor excessivamente "herico"

    do verso clssico, nem aquela sensaboria melosa

    que resulta da seqncia de muitos versos com

    acentuao de quarta e oitava. (p. 60)

    Note-se que o verbo que utiliza o crtico "fundir", verbo

    fortemente carregado de sentido se pensado no mbito da mestiagem e,

    sobretudo, to afim s pesquisas sobre a identidade cultural brasileira

    desenvolvidas pelos modernistas a partir da segunda dcada do sculo

    XX. Assim mesmo, no s no uso da linguagem castia e da

    metrificao que Andrade percebe a dita "fuso", pois ele identifica no

    episdio de Paolo e Francesca, da Divina Comdia, o objeto de

  • 42

    inspirao do autor, um objeto que ressoa no assunto12

    , nas imagens13

    e

    na estrutura14

    do texto.

    Chama a ateno que o crtico no ressalte explicitamente a

    natureza ndia dos amantes como um aspecto relevante na considerao

    do poema como constituinte da "nossa poesia" e que chegue inclusive a

    afirmar: De forma que esta histria no tem a menor

    preocupao de se basear na lgica da vida ou da

    moral pr-estabelecida. A origem do caso no

    deriva de nenhum confronto de interesses de

    viver, claramente definidos, e nitidamente

    deduzidos uns dos outros, mas de um sentimento-

    pensamento, de um transe lrico que consegue se

    abstrair e que cria livremente, fora de qualquer

    concatenao logicamente vital. (p. 63)

    Se considerada na srie dos textos publicados no Dirio de Notcias, essa segunda matria parece estranha, quase um parntese no

    meio da reflexo que se estende ao longo dos textos que abrem e fecham

    a trilogia, concentrados na imagem do autor como escritor brasileiro do

    Segundo Reinado. Contudo, se analisada luz de outros textos

    possvel perceber a continuidade da reflexo sobre o papel do escritor,

    fundamentalmente sobre um determinado compromisso/sacrifcio do

    artista na construo de uma determinada tradio. Em uma carta de

    1924, escrita a Carlos Drummond de Andrade, Mrio afirma:

    12

    No que se refere ao assunto, o poema expe, tal como o episdio de Paolo e

    Francesca, o desenlace trgico de dois amantes, desta vez, dois ndios. Esse

    desenlace inclui o assassinato da mulher pelo marido, as lamentaes dele e o

    seu suicdio. 13

    A imagem dos amantes mortos , como no episdio de Paolo e Francesca, a

    imagem principal do poema: "E tanto mais que a imagem principal do poema

    a mesma nas duas poesias: os dois corpos de casais amantes e desgraados

    voando pelos ares. Alm disso, o fato de Machado de Assis, em vez de se

    prender a qualquer concepo mais logicamente amerndia, fazer dos seus

    mortos recentes seres sempre dotados de corpo e esprito e adotar a diviso

    crist de cu e inferno, obedece exatamente concepo dantesca" (1993, p. 62) 14

    A propsito Andrade afirma: "Machado de Assis emprega exatamente o

    mesmo corte estrfico de Dante. a nica vez que o emprega, alm da traduo

    dantesca que nos deu. Ora o terceto muito pouco usado na potica portuguesa,

    tanto tradicional como do tempo. [...] A escolha da forma potica do terceto,

    que a qualquer um evoca irresistivelmente Dante, me parece consequncia

    natural de uma inspirao dantesca. (p. 62)

  • 43

    Ns temos que dar ao Brasil o que ele no tem e

    que por isso at agora no viveu, ns temos que

    dar uma alma ao Brasil e para isso todo sacrifcio

    grandioso, sublime. E nos d felicidade. Eu me

    sacrifiquei inteiramente e quando eu penso em

    mim nas horas de conscincia, eu mal posso

    respirar, quase gemo na pletora da minha

    felicidade. Toda a minha obra transitria e

    caduca, eu sei. E eu quero que ela seja transitria.

    Com a inteligncia no pequena que Deus me deu

    e com os meus estudos, tenho certeza de que eu

    poderia fazer uma obra mais ou menos duradoura.

    Mas que me importa a eternidade entre os homens

    da Terra e a celebridade? Mando-as merda. Eu

    no amo o Brasil espiritualmente mais que a

    Frana ou a Conchinchina. Mas no Brasil que

    me acontece viver e agora s no Brasil eu penso e

    por ele tudo sacrifiquei. A lngua que escrevo, as

    iluses que prezo, os modernismos que fao so

    pro Brasil. E isso nem sei se tem mrito porque

    me d felicidade, que a minha razo de ser da

    vida. Foi preciso coragem, confesso, porque as

    vaidades so muitas. Mas a gente tem a

    propriedade de substituir uma vaidade por outra.

    Foi o que fiz. A minha vaidade hoje de ser

    transitrio. Estraalho a minha obra. Escrevo

    lngua imbecil, penso ingnuo, s pra chamar a

    ateno dos mais fortes do que eu pra este

    monstro mole e indeciso ainda que o Brasil.

    (1982, p. 5-6)

    Essa concepo do escritor como um ser sacrificado se associa

    com a ideia do dever-ser do artista mulato, implcita tanto na primeira

    das matrias como no texto sobre o Aleijadinho, e, de certo modo, em

    "'ltima Jornada' -II". Nesse ltimo texto, o tratamento desse assunto

    muito diferente em relao primeira das matrias, provavelmente pelo

    fato de que nele Andrade se concentra na anlise de um dos poemas da

    fase inicial do escritor, fase em que "o gnio de Machado de Assis ainda

    no encontrara a sua expresso original" (1993, p. 59). Observe-se, a

    propsito, que a reflexo sobre o dever-ser do artista, parece voltada

    aparente indiferena que o escritor, nessa etapa inicial, demonstrou

    diante da construo de uma imagem de si prprio ou do desejo de criar

    uma obra "mais ou menos duradoura" (1982, p. 6).

  • 44

    Em contraste, o terceiro texto intitulado "Machado de Assis - III"

    comea com a reiterao do desconforto que Machado produz no

    crtico: "Ele foi um homem que me desagrada e que no desejaria para o

    meu convvio" (1993, p. 63), seguida do reconhecimento das qualidades

    da sua obra: "Mas produziu uma obra do mais alto valor artstico, prazer

    esttico de magnfica intensidade que me apaixona e que cultuo sem

    cessar" (p. 65). Nesse texto, predomina uma imagem de Machado como

    um autor que procurou ocultar-se na sua obra, recalcando nela suas

    origens mulatas e sua doena. Andrade caracteriza essa busca de

    Machado nos termos de uma luta, uma revolta contra si mesmo, da qual

    resulta vencedor: Eu sei que o Mestre se imaginou um desgraado.

    O seu pessimismo, o seu humorismo, a sua obra

    toda; o cuidado com que, na vida, procurou

    ocultar os seus possveis defeitos, as suas origens,

    os elementos da sua formao intelectual e a sua

    doena. Por uma espcie de pudor ofendido, ele se

    revoltou; e a lio essencial da sua vida e da sua

    obra literrias so o resultado dessa revolta. Mas

    Machado de Assis foi um vitorioso. Tudo o que

    ele quis vencer, embora na vida cerceando as suas

    vitrias a um limite que o nosso desapego dos

    racismos poderia alagar, tudo o que ele quis

    vencer, venceu. Conseguiu uma vitria intelectual

    rarssima, alcanando que o considerassem em

    vida o representante mximo da nossa inteligncia

    e o sentassem no posto ento indiscutivelmente

    mais elevado da forma intelectual do pas, a

    presidncia da Academia.

    Assim vitorioso na vida, ele ainda o foi mais

    prodigiosamente no combate que, na obra, travou

    consigo mesmo. Venceu as prprias origens,

    venceu na lngua, venceu as tendncias gerais da

    nacionalidade, venceu o mestio. (p. 65)

    Percebe-se nesta e na primeira matria um movimento de

    contraponto quase sempre que assinaladas as virtudes da obra, que d

    sempre lugar articulao entre vida e obra entre [des]amor e

    genialidade, dever-ser do escritor mulato do Segundo Reinado e querer-

    ser, por exemplo. Desta vez, aps essas linhas elogiosas sobre a

    ascenso do autor nos mbitos intelectual e literrio, Andrade emite

    fortes juzos em relao ao compromisso que Machado teve com a sua

  • 45

    realidade mais prxima, nos termos de uma traio. Leia-se a seguinte

    declarao: certo que para tantas vitrias ele traiu bastante a

    sua e a nossa realidade. Foi o anti-mulato, no

    conceito que ento se fazia de mulatismo. Foi

    intelectualmente o anti-proletrio, no sentido em

    que principalmente hoje concebemos o intelectual.

    Uma ausncia de si mesmo, um meticuloso

    ocultamento de tudo quanto ele podia ocultar

    conscientemente. E na vitria contra isso tudo,

    Machado de Assis se fez o mais perfeito exemplo

    de arianizao e de civilizao da nossa gente.

    Na lngua. No estilo. E na sua concepo esttico-

    filosfica, escolhendo o tipo literrio ingls, que

    s vezes rastreou por demais, principalmente

    opima de saxonismo, que Sterne. (p. 65-66)

    Note-se que o branqueamento de Machado, que implica a traio

    da realidade brasileira "a nossa realidade" e que se consegue atravs

    do ocultamento intencional do autor na sua prpria obra, o motivo

    mais evidente da incapacidade do crtico de amar o artista genial. O

    problema nesse caso no o mesmo do Aleijadinho, no se trata de um

    estado de alienao de Machado diante da sua essncia mulata, mas das

    suas escolhas conscientes: das suas fontes de inspirao, do tipo de

    personagens e situaes criadas nas suas obras. A seguir, Andrade

    questiona a escolha da tradio literria inglsa sobre a francsa,

    afirmando a afinidade que existiria entre o esprito francs e as

    necessidades do pas: A Frana seria, como vem sendo mesmo, o

    caminho natural para nos libertarmos da priso

    lusa. [...] [devido a que] na base da originalidade

    francesa, estavam exatamente o amor da

    introspeco, o senso da pesquisa realista, o gosto

    do extico, o nacionalismo acendrado e o trabalho

    cheio de precaues que seriam para ns o

    caminho certo da afirmao nacional. (p. 66)

    Assim, reconhece a afinidade existente entre as intenes

    egostas do autor e a literatura inglesa que lhe serviu de inspirao:

    Mas a Machado de Assis errou o golpe (ou

    acertou para si s...), preferindo a Inglaterra, que

    lhe fornecia melhores elementos para se ocultar, a

  • 46

    "pruderie", a beatice respeitosa das tradies e dos

    poderes constitudos, o exerccio aristocrtico da

    hipocrisia, o "humour" de camarote. (p. 66)

    Nesse ponto se repete, mais uma vez, o movimento de

    contraponto: da recriminao pela deciso caprichosa, o crtico passa

    admirao do gnio, para logo depois afirmar:

    Mas assim vitorioso, o Mestre no pode se tornar

    o ser representativo do Homo brasileiro. [...]

    Machado de Assis, vencedor de tudo, dado

    mesmo que fosse individual e socialmente

    desgraado, como o foram Beethoven ou Cames,

    uma coisa no soube vencer. No soube vencer a

    prpria infelicidade. No soube super-la, como

    esses. Vingou-se dela, mas no a esqueceu nem

    perdoou nunca. E por isso foi, como a obra conta,

    o ser amargo, sarcstico, ou apenas

    aristocraticamente humorista, ridor da vida e dos

    homens. Mas tambm por isso lhe faltam

    qualidades brasileiras, as qualidades que todos

    somos geralmente, em nossas mais perceptveis

    impulsividades. (p. 66-67)

    Observe-se que esse contraponto sempre traz implcita a

    articulao entre a vida de Machado e sua obra, articulao que embora

    no se baseie na lgica do reflexo como o caso da abordagem de Lcia

    Miguel Pereira, se levanta sobre uma noo determinista do dever-ser do

    autor.

    Na concluso, Andrade procura dar reconhecimento

    "contribuio brasileira" implcita na obra de Machado, destacando

    "uma boa coleo de almas brasileiras e uma lngua que, apesar de

    castia, no positivamente mais o portugus de Portugal" (p. 67). A

    referncia dita coleo de almas inclui uma pequena aluso ao

    Conselheiro Aires em duas linhas: "Sim, se no reconheo a Machado

    de Assis em mim, em compensao sou Brs Cubas, noutros momentos

    sou Dom Casmurro, noutros o velho Aires." (p. 67). Essas palavras no

    esclarecem nada a propsito da identificao de certa brasilidade nessas

    personagens e resulta um pouco estranha no marco da crtica que to

    energicamente levanta Andrade sobre uma suposta indiferena do autor

    diante de assuntos que Machado como artista mulato teria que

    considerar nas suas criaes.

  • 47

    A referncia sobre a lngua um pouco mais extensa e se baseia

    na caracterizao de Machado como "continuador dos velhos clssicos"

    (p. 67). Mais uma vez mantendo a lgica do contraponto, aps o elogio

    chega o julgamento: Mas, profundamente, o que ele melhor representa

    a continuao dos velhos clssicos, continuao

    tingida fortemente de Brasil, mas sem a

    fecundidade com que lvares de Azevedo, Castro

    Alves, Euclides e certos portugueses estavam...

    estragando a lngua, enriquecendo-a no

    vocabulrio, nos modismos expressionais, lhe

    dilatando a sintaxe, os coloridos, as modulaes,

    as cadncias, asselvajando-a de novo para lhe

    abrir as possibilidades de um novo e mais

    prolongado civilizar-se. (p. 67)

    Os pargrafos finais, concentrados no reconhecimento de

    Machado como "o nosso maior escritor"15

    , remetem novamente

    relao entre a vida do autor e as caractersticas da sua obra:

    Mas as obras valem mais que os homens. As obras

    contam muitas vezes mais que os homens. As

    obras dominam muitas vezes os homens e os

    vingam deles mesmos. extraordinria a vida

    independente das obras-primas que, feitas por

    estas ou aquelas pequenezas humanas, se tornam

    grandes, simblicas, exemplares. (p. 68-69)

    Mas, dessa vez, concedendo autonomia obra e, portanto,

    livrando-a da imagem de seu autor. Um gesto final de libertao em que

    pulsa a contradio das observaes feitas em torno do que teria que ter

    feito Machado para poder ser to "nosso" quanto Andrade queria. O que

    predomina ao longo da abordagem que se estende nesses trs textos

    publicados no Dirio de Notcias especialmente no primeiro e no

    terceiro a dificuldade de conciliar o agir "descomprometido" do

    autor em relao ao processo de consolidao de uma literatura

    15

    " que Machado de Assis, se no foi nosso maior romancista, nem nosso

    maior poeta, nem sequer maior contista, foi sempre, e ainda , o nosso maior

    escritor. E por isso deixou, em qualquer dos gneros em que escreveu, obras-

    primas perfeitssimas, de forma e de fundo, em que, academicamente, a

    originalidade est muito menos na inveno que na perfeio." (p. 68)

  • 48

    nacional, e, claro, com respeito sua prpria realidade, com a

    fascinao extrema que lhe produzem as suas obras. Dificuldade da que

    uma evidncia o constante ritmo de contraponto de sua exposio.

    preciso reiterar que a presena desta srie de textos de Mrio de

    Andrade obedece necessidade de analisar alguns gestos dominantes da

    crtica machadiana e suas repercusses na difuso e na histria de leitura

    das obras do autor. Sua relevncia radica em que pode ser considerado

    um ponto de inflexo entre a crtica mais contempornea a Machado de

    Assis e uma crtica posterior ainda vigente, isto , uma dobradia entre

    os postulados de Sylvio Romero e as reflexes de Antonio Candido, por

    exemplo. No caso especfico desses trs autores (Romero, Andrade e

    Candido), pode perceber-se como apesar de o conceito de literatura

    brasileira ter em suas reflexes diferentes matizes, os trs compartilham

    a ideia de um processo de formao, de uma evoluo da literatura

    nacional, que supe um estgio inicial caracterizado pela falta de

    identidade e pela imitao, e outro de maturidade, caracterizado pela

    conscincia do ser brasileiro. E como, tanto para Romero como para

    Andrade, a articulao de Machado nesse processo, denota um

    descompasso entre o que o autor fez e o que como escritor brasileiro e,

    sobretudo, mulato deveria ser.

    Antonio Candido

    Em 1968, quase seis dcadas aps a publicao de Memorial de

    Aires, Antonio Candido profere a palestra intitulada "Esquema de Machado de Assis", reunida dois anos mais tarde no volume Vrios

    escritos (1970). um texto breve em que o crtico caracteriza a situao

    da obra de Machado no panorama da literatura brasileira e da literatura

    ocidental, se refere a algumas das tendncias predominantes da sua

    fortuna crtica e revisa alguns dos elementos mais caractersticos do

    estilo do que denomina "tom machadiano" (ASSIS, 2008, p. 118).

    preciso esclarecer que no um texto dedicado a Memorial de Aires,

    contudo includo nesta reflexo porque alm de contribuir na

    atualizao do panorama crtico posterior dcada de sessenta, permite

    rastrear as ressonncias de alguns traos recorrentes na leitura crtica da

    obra machadiana.

    O texto est estruturado em trs partes, uma introdutria, em que

    so considerados alguns aspectos constantes nas leituras crticas e

    questionado o contraste entre o grande reconhecimento alcanado pela

    obra machadiana no mbito nacional e sua escassa difuso internacional;

    uma segunda parte, concentrada na anlise das perspectivas de

    interpretao das diferentes geraes de crticos; e, uma terceira; em que

  • 49

    so abordados alguns problemas fundamentais da obra, discutidos por

    tais geraes e alguns outros sugeridos pelo prprio Candido.

    A natureza romntica da tendncia de "atribuir aos grandes

    escritores uma quota pesada e ostensiva de sofrimento e drama" (p.

    112), identificada em algumas das leituras de Memorial de Aires que j

    consideramos, o aspecto que inaugura a reflexo e o lugar a partir do

    qual o crtico assume uma postura, no s diante desse tipo de

    aproximaes, mas, diante da obra literria e sua relao com o autor.

    Afirma que se trata de uma tendncia natural, quase invencvel: "Por

    isso, os crticos que estudaram Machado de Assis nunca deixaram de

    inventariar e realar as causas eventuais de tormento, social e individual:

    cor escura, origem humilde, carreira difcil, humilhaes, doena

    nervosa." (p. 113). Com isso, alm de justificar de certo modo esse gesto

    romntico, procura desmontar a imagem idealizada do escritor a partir

    da verificao das caractersticas ressaltadas nessas abordagens,

    explicando como "na verdade os seus sofrimentos no parecem ter

    excedido aos de toda gente, nem a sua vida foi particularmente rdua"

    (p. 113), e, ressaltando o carter privilegiado de sua situao no mbito

    cultural brasileiro no s como escritor mas, tambm, como presidente

    da Academia Brasileira de Letras, afirmando "o raro privilgio [que

    teve] de ser reconhecido e glorificado como escritor, com um carinho e

    um preito que foram crescendo at fazer dele um smbolo do que se

    considera mais alto na inteligncia criadora." (p. 114).

    A tentativa de desmontar a imagem idealizada de Machado

    evidencia uma mudana nos objetivos crticos, passando da

    subjetividade do autor e de sua relao com a obra, ao reconhecimento

    da independncia do texto escrito, de sua autonomia1