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Lygia Pape: gravuras ou antigravuras?€¦ · gravuras a partir de 1956, Lygia realizou experiências com poesia que incluíram a parceria com a gravura: são seus Poemas xilogravuras

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Lygia Pape: gravuras ou antigravuras? Deslocamentos possíveis da tradição

Maria Luisa Luz Tavora

Trata-se da experiência de Lygia Pape com xilogravuras, nos anos 50. Foi uma passagem como a própria artista afirmou. Passagem que operou deslocamentos do

caráter multiplicador desse meio em Tecelares e da vocaçõo tradicional para a ilustraçõo nos Poemas-Xilogravuras; daí Oiticica chamá-Ias de "antigra vuras".

Xllo grovura. grav ura brasileiro. arte con temporô nea.

Eu pensei o gravura como uma possibilidade de pesquiso (.. .)

Tratar da obra de Lygia Pape foi sempre um

exercício enriquecedor do possível, um esforço

prazeroso de encontros, vivência de

deslumbramentos a perseguirem

incessantemente o ritmo intenso de sua

capacidade criativa.

Fechado o ciclo de sua vida, 50 anos de arte

pelo menos, ampliam-se as possibilidades

poéticas de sua obra, oportunidades e liberdade

de diluir cronologias, de sugerir aproximações,

de confundir começo e fim.

O legado está aí. Obras pontuais atravessam-se

encontrando em suas espessuras artísticas

presenças comuns. Como não aproximar, no

fluxo de sua diversificada produção, as xilos

realizadas na década de 1950 e obras como Toys

(99), expansão modular inicialmente com

matrizes e posteriormente com sólidos, .

permanente Jogo de linhas-espaço/espaços­

linha, frestas em pulsão. Frestas de luz que

migram da superfície para o espaço como em

Verde (99); os sulcos, o embate com a matéria,

o corte criativo e t ransformador do Livro do

tempo (60) e do Livro do criação (59/60) ou as

esculturas Kvid (95).

Nessas obras anima-se o sopro vital ao qual se

refere Mário Pedrosa, reve lado num circuito que

Acho que o xilo foi para mim uma passagem. I

"mantém sempre aberta a brecha, onde a idéia

rebrota, e faz tudo recomeçar, desde o viço

para as sensações, o calor para a forma e a

vitalidade por onde a vida se engalana (...?

Lygia, como disse, passou pe la xilogravura. De

1954 a 1961, rompeu esquemas e mecanismos

até então dominantes, num idealismo

especulativo, que bem explica, em sua trajetória,

sua participação ou, melhor, sua também

passagem pelo movimento neoconcreto. Entre

outras propostas, esse movimento firmou um

questionamento das formas artísticas pintura,

escultura e gravura enquanto campos

conceituados; daí seus participantes centrarem

suas propostas na experiência. Na experiência, a

preocupação com a matéria. Essa e outras

preocupações, relacionadas posteriormente ao

movimento, já mobilizavam Lygia desde 1954,

com suas primeiras xilogravuras]

Artista de múltiplas facetas e atividades no

campo da criação, Lygia explorou as textu ras da

madeira, imantando o espaço de organização

construtiva. Hospedou sua imagínação nas

entranhas da madeira, resolvendo problemas de

espaço, numa busca concertual em um meio

conciso como a xilogravura, até então muito

mais explorado pela tradição que aqui se

c o l A B o R A ç A o • M A R I A l U I S AL U Z T A V o R A 59

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a/e REVISTA DO P ROGRAMA DE PÓS·GRADUAÇÃO EM ARTES VISUAIS EBA • UFR J 2004

implantara, para comunicar interiores torturados

pela dor, pelo desespero ou pela solidão. Nos

anos 50, o peso da tradição expressionista da

gravura fazia-se sentir por meio da obra ímpar

de Oswald Goeldi. Voh:ado para a subjetivação

da realidade, Goeldi fundamentava-se na

vivência cotidiana com sensibilidade. Artista

modemo, manteve-se fiei à especificidade da

xilogravura como meio preferencial de

expressão e à figuração como instrumento de

seu profundo humanismo.

O expressionismo, em termos formais, abrira as

possibilidades para a libertação da figuração

tradicional, facuh:ando ao artista a livre

subjetivação do mundo. A imagem gravada é

energia, é registro da força da mão laboriosa.

Entre nós, o caminho da figuração expressionista

contribuiu para a sedimentação das conquistas

do modemismo, pondo o dedo nas feridas do

espaço urbano. Becos, ruas, favelas, crianças,

mães, trabalhadores, subúrbios povoam as obras

de artistas como Segall, Lívio Abramo e Goeldi .

Com a xilogravura, Lygia Pape mobilizou-se pela

pesquisa espacial, conferindo-lhe contomos

específicos. Não buscou a gravura como um

sagrado ofício. Deslocou-se dessa questão. Ao

contráno, deu as costas ao altar da tradição

gráfica, tal como afirmou: "procurei eliminar

todo o "ranço" da coisa expressionista".4 Buscou

a precisão do traçado, o limite controlado da

forma. Autodidata, abordou a madeira com a

liberdade da experiência pura, primitiva. Nas

gravuras iniciais, matrizes de madeiras diferentes

formulavam espaços a partir de justaposição ou

superposição de uma multiplicidade de veios

que emprestavam uma vibração às superfícies

limitadas pelo traço rigoroso.

O envolvimento da artista com a gravura

revelou sua preocupação de considerar a arte

forma de expressão e não de produção, como

queriam os artistas concretistas. A revitalização

(seria esse o termo próprio1) da gravura, em

Lygia Pape, passa pelo esqueci mento de seu

caráter multiplicador, caráter também presente

na serialidade industrial, que neutraliza o frescor

da criação. A ação sobre a madeira e a

estam pagem sobre o papel funcionaram, de

acordo com sua observação, mais como um

registro da dupla natureza do ser e do não-ser.

Tratava-se do registro de uma ausência - da

ação da matriz/materialização da idéia -,

momento no qual as forças imaginantes moldam

a matéria.

A questão da reprodutibilidade da gravura,

rejeitada como condição de seu trabalho, esteve

em pauta nos debates que se sucederam sobre

a obra de vários artistas. Discutia-se a

legitimidade da tradição gráfica frente às

inovações técnicas, buscava-se a própria

reconceitualização da gravura para sua inserção

nas pesquisas contemporâneas.

Um dos momentos de peso dessa discussão

deu-se nos finais de 1957, quando Ferre ira

Gullar organizou uma "mesa-redonda pública",

no Suplemento Dominical do jornal do Brasil , ampliando o debate que tivera lugar no âmbito

de especialistas por ocasião de exposição

retrospectiva de Lívio Abramo, no MAM-Rio,

em novembro daquele ano. Por meio dos

depoimentos, tomados por Gullar, buscou-se

dimensionar a importância da gravura para a arte

brasileira, indagar sobre a natureza do "fazer" da

gravura (o métier orgulhava a gravura modema

aqui produzida) e a conseqüente discussão

sobre os valores pertinentes à formação do

artista-gravador. 5

Participante desse debate, Lygia tinha clareza dos

limites de sua aproximação com a gravura ao

afirmar: '/'\ gravura só me interessa como meio

de expressão para objetivar uma idéia"6 A nova

geração que se envolvia com a gravura

enfatizava seu caráter experimental, possibilidade

que facuh:ava, aliás, tratamento diferenciado no

processo de estampagem. Acentuar esse

aspecto atenuaria as obrigações impostas pela

tradição gráfica da exploração desse meio tendo

em vista seu caráter multiplicador. Todavia, o

caráter experimental a que chegara a gravura, na

tendência abstrata informal, era visto por muitos

com preocupação? Goeldi, por exemplo,

60

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L

avesso a qualquer tendência abstrata, alertava,

em seu depoimento, para o perigo de se burlar

o limite da gravura na confusão das

experimentações.

No caso de Lygia Pape, a artista esteve mais

voltada para o processo de exploração da

madeira, privilegiando o momento da criação:

"Eu utilizava a madeira porque curtia trabalhar

com ela e com aquela tinta negra, viscosa e de

cheiro suportável"8 Muitas vezes, ela se limitou

a fazer tiragem de, no máximo, duas cópias,

subvertendo toda uma postura em relação à gravura. Importava-lhe o fascínio pelo material e

pela energia que ele desprendia. Para Lygia, a

repetição da experiência, em si, não

acrescentava nada a seu processo criador.

Preocupada com a qualidade orgânica da

madeira, preferiu poupá- Ia de sucessivas

reproduções, a fim de poder obter a

luminosidade de seus poros, elemento

fundamental em suas composições. Os veios

caraderísticos de cada madeira interessavam

para seu trabalho: os desenhos do pinho perto

dos nós (pinho europeu, das caixas de bacalhau

do armazém próximo de seu ateliê), a

sinuosidade dos veios do pinho-de-riga, a

textura fina e porosa da peroba foram utilizados

como valores gravados preexistentes,

controláveis e que, segundo a artista, permitiam

uma gama enorme de "negros desenhados".

Seu depoimento é revelador de uma parceria

com a matéria: "Sempre trabalhei no fio da

madeira, e procuro deixar o material falar por si

mesmo, independente, expressivo por si SÓ".9

As fibras pulsam, vibram, levando à manifestação

ambivalente dos espaços interior e exterior, e a

percepção-vivência da obra atravessa essa

distinção. Pelos veios dá-se a permanência

orgânica da matéria. Os veios envolvem os

segredos da vida que corre, lugar de trânsito,

passagens da seiva que se transforma em folhas

e frutos.

Importa acrescentar que essa presença tão

expressiva da madeira passava por um processo

de controle acentuado do resultado da

impressão: "Eu tinha uma habilidade muito

grande, me lembro que uma vez fiZ um álbum

com 20 xilos coloridas . Eu conseguia pela

pressão da mão o mesmo tom de cinza em

todas as chapas, eram umas coisas assim que eu

curtia fazer, umas experimentações .. .". 10 Lygia

fazia vários estudos da mesma idéia, de uma

mesma composição, selecionando a madeira em

função dos negros mais ou menos intensos que

perseguia.

A vibração desses veios interessava-lhe tanto, a

ponto de usar o bloco de madeira como matriz,

sem incisão, isto é, fragmentos

C O L A B O R A Ç AO • MA RI A L UI SA L UZ T AVO R A 61

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a/e R E V I S TA DO P R o G R A M A D E PÓS - G R A D U A ç Ã o E M A R T E S VIS U AIS E B A • U f R J 2 o o ,

geometricamente concebidos para imprim'lr

sobre o papel suas respectivas texturas, Além de

deslocar seu trabalho da tradição gráfica no

aspecto da reprodutibilidade, Lygia atingia ainda

a natureza mesma da matriz como lugar da

intervenção expressiva, A matriz-módulo passou

a integrar a estrutura espacial ambivalente,

submetida a procedimentos de justaposição,

inversão ou superposição, Projeta-se como

forma no espaço gravado, rompendo com a sua

natureza de espaço-superfície, suporte da força

e da grafia do artista, II

Ao trabalhar com os blocos de madeira,

justapondo-os, a artista obtinha a linha não mais

por meio das incisões, mas como intervalos

entre os referidos blocos: "", uso bloco pois

uma chapa grande não me oferece a mesma

possibilidade de precisão e a precisão, em meu

trabalho, é elemento de grande importância", 12

A linha emerge não do

controle reqUintado da faca,

seu instrumento, mas como

fnuto do deslocamento da

idéia de incisão para a de

intervalo entre os blocos de

madeira, Na pintura, Lygia

Clark com estratégia similar

chegou à linha orgânica,

A posição crítica/criativa de

Lygia, em relação à tradição

da gravura, faz parte

certamente do exercício de

uma vontade negativo, 13

identificada pelo crítico

Ronaldo Brito como própria no

Neoconcretismo. Para ele, o rompimento com

os esquemas formais dominantes e a abertura

da obra à participação do espectador, proposta

comum em muitos trabalhos do grupo, levaram

esse movimento a uma situação paradoxal em

relação à experiência originai da arte construtiva

européia; daí caracterizá-lo como uma filiação

maldita,

Nesse sentido, e por extensão, Hélio Oiticica

chamou a gravura de Lygia Pape de

"antigravu ras " , e poderíamos completar, gravuras

malditas ?A ousadia da artista não a desviou '

todavia da preocupação de realizar uma obra

gráfica, Na gravura, como em qualquer outro

meio artístico, o binômio criação - técnica

procura sintonia com o processo de busca do

artista, Lygia não se intimidou, perseguiu idéias

e, encontrando para os problemas de espaço

que se colocou, estruturas ambivalentes,

respostas singulares, soluções originais, Os veios

e sua luminosidade, a linha precisa, a

estruturação atravessada pela geometria

rebrotam nos fiOS de cobre e dourados das mais

recentes e poéticas Tteias,

Além do conjunto Tecelares, nome dado a suas

gravuras a partir de 1956, Lygia realizou

experiências com poesia que incluíram a

parceria com a gravura: são seus Poemas­xilogravuras ,14

fo,

Neles, o diálogo com a tradição da ilustração é

retomado para mais um deslocamemnto: "Cada

gravura surge do poema correspondente, não

como uma ilustração mas como a configuração

plástica da disposição gráfiCO espacial das

palavras na página", 15 Lygia reinventa a

integração gravura/texto, Aqui também é criada

uma situação de ambivalência, No Brasil, a

vocação da gravura para a ilustração fora

reforçada pela atividade crescente de nossos

gravadores, como Goeldi e Lívio Abramo, nos

anos 40, período no qual a presença no Rio de

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I

r Axl Leskoschek, grande ilustrador europeu, das categorias tradicionais da arte: a pintura­

contribui para consolidar o gênero. O curso de escultura-objeto, a escultura-pintura-construção,

Artes Gráficas da Fundação Getúlio Vargas, em o poema-gravura, a gravura-poema, o poema­I I 1946, organizado por Santa Rosa, outro grande escultura. Os limites são subvertidos e

ilustrador, aproximou nossos artistas desse expandidos.

gravador, um dos orientadores do ensino ali

ministrado. O folheto de divulgação desse curso

garantia "o domínio seguro do desenho de

propaganda e artes gráficas, especialização que,

dia a dia se toma mais necessária, em face do

avanço da técnica de publicidade e da expansão

que , mesmo no nosso meio, estão tendo os

livros, as revistas e os jornais" .'6 Em sua

programação, a ilustração deveria ser abordada

em sua história e natureza plural no livro, na

revista, na prosa, na poesia e na caricatura. A

inserção do gravador no mercado fazia-se via a

ilustração, em periódicos, revistas e suplementos

dominicais.

Lygia sempre escreveu, interessando-se pela

poesia; daí Juntar-se a Ferreira Gullar, Reynaldo

Jardim e Theon Spanudis, que organizaram a

Coleção Espaço, voltada justamente para a

poesia. Embora publicados nesta coleção em

1960, os Poemas-xilogravuras são obras de 1957

e constituem uma etapa singular da produção

dos Livros-poemas que a artista realizou nesse

mesmo ano, feitos em cartolina, com letraset.

Nos Livros-poemas, Lygia operou recortes e

t

t colagens com formas e palavras. Essas duas

experiências com poemas inserem-se no

caminho aberto pelo poeta francês Stéphane

Mallarmé (1842-1898), de rompimento com as

estruturas tradicionais da poesia, levando a sua

exploração visual. Concorrem para adensar

imagens e dar sentido ao poema tanto a

sonoridade das palavras quanto sua flsicalidade

tipográfica, sua dimensão, sua relação com o

espaço do papel, intervalos , vazios. Os poetas

neoconcretos cariocas, com os quais Lygia

trabalhou, acolheram essa formulação de uma

nova poesia, 17 na qual o espaço branco da

página integra-se à estrutura da poesia,

conferindo-lhe significação, compondo o poema

como forma visual. Confirma-se a poética das

obras neoconcretas que se revela pela quebra

Nos Poemas-xilogravuras, as páginas, duas a

duas, uma em branco sempre com duas

palavras espacialmente distribuídas e outra com

a gravação, compõem o poema. (Há,

excepcionalmente, um poema com três

palavras). À luz das estratégias de ilustração, o

processo se inverte. A forma problematiza a

palavra e sua significação, que se impõem em

termos visuais, ao contrário da tradição da

ilustração, na qual as palavras constituem a

narrativa e instruem e fundamentam a

organização de imagens. Não é possível separar

as duas partes, que, embora tendo cada uma

sua lógica, nesse confronto, ampliam sua

significação: "É um livro formado por duas partes

distintas: poema e gravura. As duas, lado a lado,

perdem sua independência expressiva por uma

outra catalisadora, que abrange as duas partes,

fundindo-as num todo de conteúdo novo". 18

No conjunto desses poemas, a linha-incisão é

reabilitada. Ela dinamiza a superfície , criando

ritmos e desvios do olhar, que busca no jogo

palavra-formas a resposta para suas indagações.

A linha-luz é delicada como o são as duas

palavras, num amplo vazio, espaço em branco,

mas não vazio, e, si m, manifestação transitiva,

aberta para o mundo das vivências do leitor­

espectador. Como num ideograma chinês, o

espírito de síntese defiagra e potencializa uma

experiência singular.

Trazemos um dos Poemas-xilogravuras. De um

lado as palavras fiO e foz, al inhadas numa

espécie de linha de terra, mantêm-se numa

base, propondo um exercício de horizontal idade

ao olhar, qualquer que seja a seqüência de

leitura escolhida. Frágeis, delicadas, diminutas,

numa folha branca, "cheia de vazio". Pronunciá­

las exige um suave sopro. De outro lado, a

superfície gravada se oferece numa sinuosidade

vibrante - maleabilidade das águas do rio -,

c o lA" o R A ç A o • M A R I A l U I SA L U Z T A V o R A 63

t

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a/e REVISTA DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇAO EM ARTES VISUAIS EBA • UFRJ 2004

numa cadência de sulcos que sugerem também

inumeráveis meandros. O fio, junção,

encadeamento, ligação. A foz, desaguamento,

mutação para outra água, encontro. As palavras

e a gravura constituem pontos de cruzamento

de imagens vivificadas pela experiência do

"leitor". A imaginação das águas provoca as

imagens poéticas. Imagens da mobilidade.

Tudo está dado e nada está dado; Lygia cria uma

espacialidade imaginativa. Espacialidade que

incrementa a participação do "leitor" no próprio

processo de criação da obra. Viver essa tensão,

em forma de poesia, é a proposta dos Poemos­

xilogravuras.

No debate aqui referido, respondendo sobre os

rumos que tomava a gravura, nos anos 50,

quanto à experimentação, Fayga Ostrower

respondeu: "". considero tudo pesquisa, busca

ou procura, e tudo é válido, por isto não

acredito em prescrições, nem na arte nem na

crítica de arte e muito menos em tabus. As

profecias de nada valem, a eloqüência resta

mesmo com a obra executada". 19

Gravuras ou antigravuras, qual a eloqüência das

xilogravuras de Lygia Pape?

Tecelores e os Poemas-xilogravuras propõem um

convite ao espectador por uma relação mais

comunicativa. Teias de vivências. Lygia não

trabalha presa ao mundo das imagens. Lança a

xilogravura para o mundo das vivências.

Vivências da matéria. Vivências do espaço

ampliado. Vivências do espaço-luz. Vivências da

geometria feita poema.

A xilogravura foi mesmo para Lygia uma

passagem, um laboratório de pesquisa, um

exercício de imaginação. Na verdade, sua

trajetória artística foi marcada sempre por

passagens. Produziu "obras-acontecimentos"

que criam elos, conjugam memória e profecia.

Anunciam e reafirmam o interesse pela

expressão da matéria, a sedução pela luz, a

prodigalidade dos cortes, a execução precisa da

idéia. Opera deslocamentos. Das xilogravuras

para os fios de cobre, blocos de madeira,

64

alumínio, luz néon, luz negra, pigmentos, areia,

pipoca, frutas, tecidos, borracha, ferro cromado,

vidro, náilon, etc.

A velocidade de sua imaginação poética

inscreve-se no tempo vertical, do deslocamento

do ser.

Maria Luisa Luz Tavora é professora adjunta de História da Arte

nos cursos de graduação e pós-graduação da Escola de Belas

Artes/UFRJ, doutora em História Social (Histórra e Cultura)

IFCS/UFRJ e diretora adjunta da Pós-Graduação da EBA/UFRJ.

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I

Notas

I Pape, Lygla. Dos5lê Lygia Pape, Afle&Ensaios, ano v: n. 5, Rio de janeiro: EBNUFRj , 1998: 9.

, 1 Pedrosa, Mário. Lygia Pape. RIo de janeiro: Funarte, 1983: I. Coleção Arte Brasileira Contemporânea.

3 Sobre o assunto ver Martins, Maria Clara Amado. Lygia Pape - Período Neoconcreto. Monografia do Curso de Especialização em História da Arte e da Arquitetura no BrasiL PUC-Rio de janeiro, s/d.

4 Pape, Lygia. Lygia Pape. Rio de janeiro: Funarte, 1983: 44, Coleção Arte BraSIleira Contemporânea.

s IniCiado no primeiro domingo de dezembro de 1957, estendendo-se a fevereiro de 1958, o debate contou com o~o depoimentos publicados na seguinte ordem: Oswaldo Goeldi, Fayga Ostrower, Lygia Pape, Edlth Behnng, Darei Valença, Iberê Camargo, Marcelo Grassmann e Lívio Abramo. Sobre o assunto ver: Tavora, f'1aria LUlSa Luz. Mesa-redonda pública: idéias sobre a gravura brasileira --1 957/1958. Interfaces, revista do Centro de Letras e Artes da UFRJ, 1995: 41-53.

• Depoimento de Lygia Pape , jornal do Brasil, 15/ 1211957: Suplemento Dominical: 3.

7 Na condução do debate, fica claro o desacordo pessoal de Ferreira Gullar frente às expenências rea lizadas por essa tendênCia que, por intermédio de alguns artistas, incorporava Inovações técnicas introduzidas por johnny Friedalender, mestre de alguns gravadores da nova geração que buscaram em Paris sua orientação. Nesse mesmo ano, comentava-se sobre a vinda desse gravador para o Curso inaugural do ateliê do MAM-Rio, projeto em andamento. O debate foi atravessado pelo desconforto desse convite.

8 Pape, Lygia. Op. cito 1983: 44. Lygia Pape teve que se afastar da pintura por causa de uma intoxicação com a tinta a óleo. A tinta tipográfica não lhe causava problemas,

9 DepOimento de Lygla Pape, jornal do Brasil, 1717/ 1975: Caderno B.

10 Pape, Lygia. Op. cit. 1998: 8.

I I Essa questão das matrizes-módulos, matriz-forma, vai ser também explorada na gravura em metal. por alguns artistas freqüentadores e orientadores do Ateliê livre do MAM-Rio, nos anos 60, Anna LetyCla, Theresa Miranda, entre outros. Na xllo, Fayga Ostrower vai dar tratamento singular às matrizes.

" Depoimento de Lygia Pape, jornal do Brasil, 15/12/1957: Suplemento Domintcal: 3.

t3 Brito, Ronaldo. Neoconcretísmo, vértice e ruptura do Projeto Construtivo Brastleiro. Rio de janeiro: Funartefinap, 1985: 76.

14 Esses poemas compõem a Coleção Espaço, que teve cinco números publicados, de 1958 a 1960, com apoio do Suplemento Dominical do jornal do Brasil, Dedicada à poeSIa , a publicação dependia de recursos financeiros dos artistas e foi apresentada na seguinte ordem: nO I , Ferreira Gullar, 1958; (1-°2, Theon Spanudis, 1958; nO 3, Reynaldo jardim, 1959; nO 4, Carlos Fernando Fortes de

c o L A

Alme ida, 1959; o quinto e último número coube a Lygia Pape, em 1960. Também em novembro desse ano, . foram apresentados, em painéis com vidro, na 11 Exposição Neoconcreta, realizada no MEC, no Rio de janeiro. Trata-se de 13 poemas visuais, Impressos em cartão, contidos numa capa de formato quadrangular, medindo 21 ,Scm de lado. IV; páginas dos poemas medem 21 x20.5cm e, quando abertas, 2 1 x4 lcm. Sobre Oassunto, ver Martins, Maria Clara Amado. OS [MOS de Lygia Pape. Dissertação de Mestrado em História da Arte EBNUFRj, 1996.

15 Pape, Lygia. Poemas-invenção, in jornal do Brastl, 26/1 1160: Suplemento Domnical: 6.

16 Folheto de divulgação do Curso de Desenho de Propaganda e Artes Gráficas da Fundação GetúliO Vargas, 1946.

17 Sobre as questões que envolveram a poesia concreta, ver Campos, Augusto, Campos, Haroldo, Plgnatari, Décio. Teoria da poesia concreta. São Paulo: Duas Cidades, 1975; dos mesmos autores, Mal/armê. São Paulo: Perspectiva , 1991. Coleção Signos.

18 Pape, Lygla Poemas-invenção, in jornal do Brasil, 26/ 1 111960: Suplemento Dominical: 6.

19 Depoimento de Fayga Ostrower, in jornal do Brasil, 8/12/1957: Suplemento Dominical: 3.

8 O R A ç À O • M A R I A L U I S A L U Z T A V o R A 65