Upload
dodien
View
230
Download
2
Embed Size (px)
Citation preview
CENTRO UNIVERSITÁRIO DE BELO HORIZONTE – UNIBH
LYVIA RENATA RODRIGUES
ORISHAS: Ideologia transformada em produto da Indústria Cultural
Belo Horizonte 2008
Monografia apresentada ao Centro Universitário de Belo Horizonte como requisito parcial à obtenção do título de bacharel em Relações Internacionais. Área de concentração: Ciências Sociais Orientadora: Professora Alexandra Nascimento
LYVIA RENATA RODRIGUES
ORISHAS: Ideologia transformada em produto da Indústria Cultural
Belo Horizonte
2008
LYVIA RENATA RODRIGUES
ORISHAS: Ideologia transformada em produto da Indústria Cultural
Monografia apresentada e aprovada em:
Banca examinadora:
__________________________________________________ Prof. Alexanda Nascimento, Uni-BH
__________________________________________________
Prof. Dawisson Belém Lopes, Uni-BH
__________________________________________________ Prof. Leandro Rangel, Uni-BH
Monografia apresentada ao Centro Universitário de Belo Horizonte como requisito parcial à obtenção do título de bacharel em Relações Internacionais. Área de concentração: Ciências Sociais Orientadora: Professora Alexandra Nascimento
Dedico à minha querida mãe, por ser minha maior incentivadora na busca pelo conhecimento. Ao meu pai, mestre no estrito sentido do termo, cujo exemplo de ser humano eu procuro seguir. Ao meu namorado e aos meus irmãos, pela fonte inesgotável de apoio, amor e compreensão.
Sinceros agradecimentos a minha orientadora por confiar em mim e por me orientar, no verdadeiro sentido do termo, permitindo-me finalizar este trabalho. Aos professores, pela convivência e inteligência cativantes, que guiaram e direcionaram meus interesses acadêmicos.
RESUMO
Este projeto tem por objetivo analisar o trabalho de uma banda de rap originária de
Cuba, muito popular na Europa e América Latina, chamada Orishas, que tem como foco
principal retratar os problemas sociais vividos em Cuba, principalmente na periferia de
Havana. O grupo mistura a música tradicional cubana, com o rap de origem americana,
transformando assim os sons e os textos. Depois de passar por muitas dificuldades, o
grupo se fortaleceu e foi adquirindo gradualmente, reconhecimento internacional,
primeiramente na Europa e posteriormente Estados Unidos. Este estudo busca
compreender a influência de um ritmo de raízes norte-americanas sobre a cultura
musical cubana.
Discussões acerca da identidade, identidade nacional e híbrida se fazem fundamentais
neste estudo, pois, por meio destes será possível compreender as relações entre culturas
distintas em tempos de globalização. Estes conceitos revelam diversas versões de
cunho psicológico, filosófico, antropológico e ou sociológico. A relação existente entre
os países em questão – Estados Unidos e Cuba – e a influência de um sobre o outro se
dá por meio do hibridismo cultural, que pode ser entendido como decorrência da
necessidade de armistício entre grupos étnicos antagônicos ou pela adoção de um estilo
que tem por finalidade apenas o questionamento de problemas sociais. Neste contexto
surgem identidades culturais em transição, resultantes do diálogo entre diferentes
tradições culturais e misturas do mundo globalizado que são as novas identidades ou
identidades híbridas.
Palavras-chave: Cuba, Estados Unidos, identidade, identidade nacional e identidade híbrida.
ABSTRACT This project’s objective is to analyse a rap group from Cuba, called Orishas, which is
very popular in Europe and Latin America, and its mais goal, that is to relate the social
problems that are found in Cuba, specially in Havana. The group mixes the traditional
cuban music with the north american rap, tranforming, in this way, the sounds and texts.
After passing trhough many problems, the group strengthed itself and gradually
acquired international recognition, first in Europe, then in United States. This research
tries to show how can a group from United States of America exert influence above the
cutural cuban music.
Discussions about identity, national and hibrid identity are fundamental in this study,
because, through them it's possible to comprehend the relatioship between different
cultures at globalization time. These concepts reveal many versions of psycoloogic,
phylosophyc, anthropologic and sociologic meanings. The relationship between these
counties – United States and Cuba – and the influence exerted by one above the other is
possible through the cultural hibridism, that can be understood as the consequence os
the need of armistice between different etnic groups or through the adoption of a style
that has as an objective, just call into question the social problems. In this context
cultural identities that are moving through, appear, and the are the result of the dialogue
of different cultural traditions and the mingle of the globalizated world, so these are the
new identities or hibrid ones.
Key words: Cuba, United States, identity, national identity, hybrid identity.
SUMÁRIO INTRODUÇÃO...........................................................................................................p. 09
1. CAPÍTULO 1: A QUESTÃO DA IDENTIDADE
1.1 Identidade cultural e globalização...................................................................p. 11
1.2 Notas sobre a sociedade de consumo..............................................................p 17
1.3 As culturas híbridas em tempos de globalização............................................ p. 20
1.4 Rap: Origem e mensagem............................................................................... p. 22
1.5 Origem do grupo Orishas................................................................................p. 24
2. CAPÍTULO 2: BREVE HISTÓRICO DE CUBA
2.1 A formação do povo cubano............................................................................p. 29
2.2 Cuba e a emergência de seu processo revolucionário.......................................p.30
3. CAPÍTULO 3: ANÁLISE
3.1 Orishas e os relatos sobre a sociedade cubana - Análise da realidade vivida em
Cuba através das músicas .....................................................................................p. 37
3.2 Orishas como produto da cultura de massa.....................................................p. 42
4. CONCLUSÃO........................................................................................................p. 44
5. REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS ................................................................p. 46
INTRODUÇÃO
Este projeto tem por objetivo analisar o trabalho de uma banda de rap originária de
Cuba, chamada Orishas, que tem como tema principal de suas músicas os problemas das
periferias de Havana. Este grupo é muito popular na Europa e América Latina. Segundo
a biografia disponível no site da banda, os integrantes, apesar de serem cubanos, se
conheceram na Europa, mais precisamente em Paris, e formaram a primeira banda de
rap cubano. O projeto inicial era de misturar a música tradicional cubana com o rap de
origem americana, transformando assim os sons e os textos. A responsável por este
intercâmbio cultural foi a presidente de uma associação francesa de solidariedade ao
povo cubano, que gostou do trabalho do grupo e decidiu então apoiá-lo. Depois de
passar por muitas dificuldades, o grupo se fortaleceu e foi adquirindo, gradualmente,
reconhecimento internacional, primeiramente na Europa e posteriormente nos Estados
Unidos (http://www.orishasthebest.com).
Este estudo busca compreender a influência de um ritmo de raízes norte-americanas
sobre a cultura musical cubana. Sendo assim, discussões acerca da identidade,
identidade nacional e identidade híbrida se fazem fundamentais, pois, por meio destes,
será possível compreender as relações e interações entre culturas distintas em tempos de
globalização. Estes conceitos revelam diversas versões de cunho psicológico, filosófico,
antropológico e sociológico. Segundo Canclini (2004), “os discursos e os novos
movimentos sociais indicavam uma apologia da sociedade multicultural: a justaposição
e convivência de etnias ou grupos em determinados espaços urbanos” (CANCLINI,
2004, p.85).
A hipótese que norteia este estudo é a de que tal estilo musical, originado em uma
cultura não somente distinta, mas entendida pelo Estado cubano como um mal a ser
combatido, obteve em Cuba uma grande ressonância, pelo fato de denunciar problemas
sociais que não conhecem distinções de fronteiras geográficas, ideológicas ou culturais.
Cabe ressaltar que, mesmo que o grupo não tenha sido formado em Cuba, o estilo
musical estadunidense é também largamente difundido no país. Após o surgimento do
grupo Orishas, muitos outros se disseminaram pelo país, ainda que não alcançando a
mesma repercussão em âmbito mundial. Este trabalho se torna relevante por tratar de
temas discutidos atualmente no campo das ciências sociais e humanas – mestiçagens,
trânsito cultural, hibridações culturais – buscando compreender tais processos por meio
da análise da produção musical.
A relação existente entre os países em questão – Estados Unidos e Cuba – e a influência
de um sobre o outro pode ser compreendida por meio do hibridismo cultural, entendido
como decorrência da necessidade de armistício entre grupos étnicos distintos. Neste
contexto, surgem identidades culturais em transição, resultantes do diálogo entre
diferentes tradições culturais e misturas do mundo globalizado, que são as novas
identidades ou identidades híbridas (HALL, 2003). Assim, podem ser consideradas três
diferentes situações nacionais nas Américas (SADER, 2000), definidas por um projeto
cultural, pelo poder do Estado e pelas ações públicas voltadas para a construção da
etnicidade como categoria política. Os traços que definem uma nação devem ser
simplificadores e estereotipados, para que, com clareza, possam marcar identidades,
diferenças entre os povos e similaridades entre os membros de um povo. O peso de cada
traço varia. A escolha de um ou outro traço definidor de uma nação trabalha no sentido
de que seus povos imaginem uma comunidade maior do que aquela que os cerca de
forma imediata.
CAPÍTULO I - A QUESTÃO DA IDENTIDADE
1.1 Identidade cultural e globalização
As velhas identidades, que por muito tempo deram estabilidade ao mundo social, se
vêem em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo
moderno, antes visto como sujeito unificado. O conceito de identidade é demasiado
complexo, no que se refere à ciência social, “tornando-se uma questão apenas quando
está em crise, quando algo que se supõe como fixo, coerente e estável é deslocado pela
experiência da dúvida e da incerteza” (MERCER, 1990, p. 43).
Outro aspecto relacionado à questão da identidade está ligado ao caráter da mudança na
modernidade tardia; em especial, ao processo de mudança conhecido como
'globalização' e seu impacto sobre a identidade cultural. Segundo Ernest Laclau (1990,
p. 27);
“As sociedades da modernidade tardia são caracterizadas pela 'diferença'; elas são atravessadas por diferentes divisões e antagonismos sociais que produzem uma variedade de diferentes 'posições de sujeitos' – isto é, identidades – para os indivíduos. Se tais sociedades não se desintegram totalmente, não é porque elas são unificadas, mas porque seus diferentes elementos e identidades podem, sob certas circunstâncias, ser conjuntamente articulados. Mas essa articulação é sempre parcial: a estrutura da identidade permanece aberta” (Laclau, 1990: 27).
Portanto, através dessa concepção, pode-se afirmar que as sociedades modernas são
sociedades de mudança constante, rápida e permanente, o que faz com que esta seja a
principal distinção entre sociedades 'tradicionais' e 'modernas'. Anthony Giddens (1990)
argumenta que:
Nas sociedades tradicionais, o passado é venerado e os símbolos são valorizados porque contêm e perpetuam a experiência de gerações. A tradição é um meio de lidar com o tempo e o espaço, inserindo qualquer atividade ou experiência particular na continuidade do passado, presente e futuro, os quais, por sua vez, são estruturados por práticas sociais recorrentes (GIDDENS, 1990, p. 37).
No entanto, a modernidade, não pode ser definida apenas como a experiência de
convivência com a mudança rápida, abrangente e contínua, pois é uma forma altamente
reflexiva de vida, na qual: “As práticas sociais são constantemente examinadas e
reformadas à luz das informações recebidas, sobre aquelas próprias práticas, alterando,
assim, constitutivamente, seu caráter” (IBID, pp. 37-8). É preciso citar em particular,
assim como faz Giddens (1990), o ritmo e o alcance da mudança - “na medida em que
as áreas diferentes do globo são postas em interconexão umas com as outras, ondas de
transformação social atingem virtualmente toda a superfície da terra” – e a natureza das
instituições modernas (GIDDENS, 1990, p. 6). Um ponto que deve ser enfatizado é o
das descontinuidades:
Os modos de vida colocados em ação pela modernidade, nos livraram de uma forma bastante inédita, de todos os tipos tradicionais de ordem social. Tanto em extensão, quanto em intensidade, as transformações envolvidas na modernidade são mais profundas do que a maioria das mudanças características dos períodos anteriores. No plano da extensão, elas serviram para estabelecer formas de interconexão social que cobrem o globo; em termos de intensidade, elas alteraram algumas das características mais íntimas e pessoais de nossa existência cotidiana (GIDDENS, 1990, p. 21).
Para o autor é impossível dissociar a constituição das sociedades modernas, em sua
complexidade atual, sem levar em conta as conseqüências dramáticas que a globalização
ou os riscos sociais imprimem tanto ao indivíduo quanto à coletividade, contribuindo de
forma decisiva para afetar “os aspectos mais pessoais de nossa existência” (GIDDENS,
1990, p. 9). Sua reflexão não está centrada no “eu” fruto de uma abordagem
eminentemente psicológica, mas na importância do entendimento dos mecanismos de
auto-identidade que são constituídos pelas instituições da modernidade, influindo
também em sua constituição. Por não ser uma entidade passiva, determinada por
influências externas; ao forjar suas auto-identidades, independente de quão locais os
contextos específicos da ação, os indivíduos contribuem para as influências sociais que
são globais em suas conseqüências e implicações (GIDDENS, 1999, p.9).
Giddens (1999) procura circunscrever a modernidade considerando tanto as situações
locais quanto as globais, dando origem assim à “dialética do local e do global”. Nessa
dialética, tanto a cultura quanto a economia e as dimensões sociais têm papel
preponderante. O “eu” é analisado tanto em sua dimensão ontológica quanto em sua
trajetória na modernidade. O autor examina a modernidade frente às dinâmicas do risco
e da segurança e as conseqüências de todas essas mudanças para o “eu”. As tribulações
do “eu” são encaradas a partir de um outro lugar, onde a cultura do narcisismo e o
conceito de um “eu mínimo” perdem espaço. Nesse sentido, o global e a modernidade,
enquanto entidade estabelecida, seus riscos e sua complexidade, impõem aos indivíduos
perturbações e ansiedades generalizadas, exigindo a criação de novas formas de
identidades para se lidar com essas perspectivas. A tensão sofrida pelo “eu” e sua busca
por novas identidades na alta modernidade encontram espaço e referência no
surgimento do que o autor chama de política-vida, que pode ser entendida como uma
política das decisões da vida.
Segundo Hall (1997), aqueles que acreditam que as identidades modernas estão sendo
fragmentadas, argumentam que o que aconteceu à concepção do sujeito moderno, na
modernidade tardia, não foi somente sua separação, mas sim seu deslocamento, que
pode ser descrito através de uma série de rupturas nos discursos do conhecimento
moderno. Sendo assim, a identidade é realmente algo formado, ao longo do tempo,
através de processos inconscientes. Ela está sempre incompleta, sempre em formação –
como em um processo. “A identidade surge não tanto da plenitude da identidade que já
está dentro de nós como indivíduos, mas de uma falta de 'inteireza' que é preenchida a
partir do nosso exterior, pelas formas através das quais nós imaginamos ser vistos por
outros” (HALL, 1997, p. 42).
Um conceito importante para a compreensão das formas de identidade, é o de nação,
descrito por Hobsbawm (1998). Segundo o autor, os últimos dois séculos da história
humana do planeta Terra são incompreensíveis sem o entendimento do termo nação e
do vocabulário que dele deriva. Para Hobsbawm (1998), etimologicamente o atual
termo dado para nação, distingue quase em absoluto do conceito empregado na
Antiguidade Clássica: para os gregos o termo nação compreendia, num primeiro
momento, os clãs, altamente patriarcais, nos quais os membros das famílias se
identificavam apenas com seu grupo. Posteriormente a junção de vários clãs levou ao
surgimento das Cidades Estado, porém o sentimento de pertencimento era unicamente
voltado para os costumes comuns. Já os romanos conceituavam “bárbaros” todos
aqueles que não falavam grego ou latim. Concomitantemente, na Idade Média, a
concepção de nação, estava ligada ao feudo, ou seja, ao limite territorial onde expande o
comércio, o idioma, a família entre outros fatores.
O período no qual o termo nação mais se assemelha ao atual é o da Idade Moderna, no
qual a preocupação em defender as fronteiras das monarquias e legitimar a cobrança de
tributos, desencadeou o início embrionário do sentimento de pertencimento e proteção
de um grupo maior. Hobsbawm (1998) cita uma série de autores1 que entre várias
décadas produziram obras tendo nação como instrumento principal. Porém,
a maior parte dessa literatura centrou-se na questão: o que é uma (ou a) nação? Pois a principal característica desse modo de classificar grupo de seres humanos é que... nenhum critério satisfatório pode ser achado para decidir quais das muitas coletividades humanas deviam se rotuladas desse modo... (HOBSBAWN, 1998, p.62).
Ainda segundo o autor, as tentativas de estabelecer critérios objetivos sobre a existência
de nacionalidade, ou da tentativa de explicar por que certos grupos se tornaram nações e
outros não, repetidamente foram feitos com base em critérios simples como a língua ou
a etnia ou em uma combinação de critérios como a língua, o território comum, os traços
culturais comuns e outros mais. No século XIX a normatização do Estado levou a um
novo patamar o termo nação: atrelava-se a essa a palavra cidadania.
A formação de uma cultura nacional contribuiu para criar padrões de universais e
funciona como um sistema de representações. A cultura nacional é composta por
instituições culturais, símbolos e representações. Segundo Hall (1997), uma cultura
nacional é um discurso – um modo de construir sentidos, que influencia e organiza
nossas ações assim como a concepção que temos de nós mesmos. Sendo assim, as
culturas nacionais, ao produzirem sentidos sobre a nação, sentidos estes que nos
identificamos, constroem identidades. Esses sentidos podem ser percebidos nas estórias
que são contadas sobre a nação, capazes de conectar o presente com o passado às
1 Hobsbawn cita Christopher Hill, Rodney Hilton e E.P. Thompson, que juntamente com ele, faziam parte do grupo de historiadores marxistas britânicos, que buscavam entender a história da organização das classes populares e das nações, em termos de suas lutas e ideologias, através da chamada “História Social”.
imagens que dela são construídas. Segundo Anderson (1983), a identidade nacional é
uma “comunidade imaginada”. Nesta comunidade imaginada, os indivíduos não
conhecem todos aqueles que integram o grupo mais extenso. Os membros da sociedade
se sentem unidos por experiências, símbolos e referências comuns, mesmo sem ter
contato direto uns com os outros. É um sentimento de comunhão privilegiando a
imaginação, ao invés da interação pessoal. Para ele, as diferenças entre as nações
residem nas formas distintas pelas quais elas são imaginadas.
As identidades nacionais não subordinam todas as outras formas de diferença e não estão livres do jogo de poder, de divisões e contradições internas, de lealdades e de diferenças sobrepostas. Assim, quando vamos discutir se as identidades nacionais estão sendo deslocadas, devemos ter em mente a forma pela qual as culturas nacionais contribuem para 'costurar' as diferenças numa única identidade (ANDERSON, 1983 p.45).
Na história moderna, as culturas nacionais exercem domínio sobre a modernidade e as
identidades nacionais tendem a se sobrepor a outras fontes, mas peculiares, de
identificação cultural. Portanto, o que está deslocando as identidades culturais nacionais
é um complexo de processos e forças de mudança, que pode ser chamado de
globalização, que não é um fenômeno recente. Segundo Giddens (1990), “a
modernidade é inerentemente globalizante” (GIDDENS, 1990, p. 63). Dessa forma,
pode-se afirmar que tanto a tendência à autonomia nacional quanto à globalização têm
suas raízes na modernidade.
A globalização se refere àqueles processos, atuantes numa escala global, que atravessam fronteiras nacionais, integrando e conectando comunidades e organizações em novas combinações de espaço-tempo, tornando o mundo, em realidade e em experiência, mais interconectado. A globalização implica um movimento de distanciamento da idéia sociológica clássica da sociedade como um sistema bem delimitado e sua substituição por uma perspectiva que se concentra na forma como a vida social está ordenada ao longo do tempo e do espaço (GIDDENS, 1990, p.64).
A principal conseqüência proveniente da globalização sobre as identidades culturais é a
de que as identidades nacionais estão em declínio, fazendo surgir novas identidades –
híbridas – característica de quase todas as nações contemporâneas. Dentre os impactos
da globalização sobre as identidades nacionais verifica-se a aceleração dos processos
globais, de forma que se tem a sensação de que o mundo é menor e as distâncias mais
curtas, que os eventos em um determinado lugar têm um impacto imediato sobre
pessoas e lugares situados a uma grande distância, facilitando assim a influência entre
as nações. Segundo Hall (1997) é importante ressaltar que os fatores, em relação ao
impacto da globalização sobre a identidade são também coordenadas básicas de todos
os sistemas de representação, pois todo meio de representação, sendo ela escrita,
pintura, desenho, fotografia, simbolização através da arte ou dos sistemas de
telecomunicação – deve traduzir seu objeto em dimensões espaciais e temporais. A
identidade está profundamente envolvida no processo de representação. Sendo assim, a
moldagem de relações espaço-tempo no interior de diferentes sistemas de representação
tem efeitos profundos sobre a maneira de localização e representação das identidades.
Na separação de espaço e lugar de Giddens (1990), 'o lugar' é específico, concreto,
conhecido, familiar, delimitado: o ponto de práticas sociais específicas que nos
moldaram e os formaram e com as quais nossas identidades estão estreitamente ligadas:
Nas sociedades pré-modernas, o espaço e o lugar eram amplamente coincidentes, uma vez que as dimensões espaciais da vida social eram, para a maioria da população, dominadas pela presença – por uma atividade localizada... A modernidade separa, cada vez mais, o espaço do lugar, ao reforçar relações entre outros que estão ausentes, distantes (em termos de local), de qualquer interação face-a-face. Nas condições da modernidade..., os locais são inteiramente penetrados e moldados por influências sociais bastante distantes deles. O que estrutura o local não é simplesmente aquilo que está presente na cena; a forma visível do local oculta as relações distanciadas que determinam sua natureza (GIDDENS, 1990, p. 18).
Os lugares permanecem fixos, é neles que nos enraizamos. Porém, o espaço não; ele
pode ser cruzado muito rapidamente, (por exemplo, através de avião, fax, satélite, etc.)
o que faz com ele não seja específico ou delimitado, podendo essa característica ser
chamada de “destruição do espaço através do tempo” (HARVEY, 1989, p.205). As
distâncias já não importam mais, pois o que está sendo apresentado é o fim da geografia
em termos de espaço, sendo as fronteiras meras formas simbólicas e sociais. “a distância
é um produto social; sua extensão varia dependendo da velocidade com a qual pode ser
vencida” (BAUMAN, 1999 p. 19).
Outro fator importante sobre a globalização e suas conseqüências, pode ser percebido
através do autor Zigmund Bauman (1999), tanto no que se refere às suas transformações
assim como as mudanças trazidas para as vidas das pessoas nelas inseridas. O autor
trabalha os mais diferentes enfoques dados a este tema. Para alguns, a globalização é o
objetivo a ser almejado e desejado, já para uma outra tendência, ela é responsável por
todos os males da sociedade. Mas, independente da posição, todos vislumbram a
globalização como uma processo irremediável e irreversível. O objetivo desta discussão
é enfatizar fenômenos da globalização como, por exemplo, o espaço e tempo, a noção
de local e global.
Segundo Bauman (1999), o encurtamento das distâncias e término da geografia são
efeitos da velocidade das informações e dos meios de comunicação, assim como o
crescente desenvolvimento de novas tecnologias que ao invés de diminuir os espaços
das diferenças homogeneizando-as, ele as tornou polarizadas. Para alguns, assegura uma
liberdade sem precedentes para se locomover, adaptar e agir à distância, podendo assim
se locomover para fora da localidade. Mas para outros esta distância continua muito
abrangente, cabendo a estes somente o caminho da observação e da constante inépcia
para a utilização das informações adquiridas. “Diz-se com freqüência e com mais
freqüência ainda é tido como certo que a idéia de espaço social nasce na cabeça dos
sociólogos” (BAUMAN, 1999, p. 34), mas o que é visto e comprovado é o oposto. O
homem desde os primórdios da sociedade sempre se utilizou de padrões de comparação
e medidas, de limites e fronteiras.
De acordo com Robbins (1991), “a globalização, à medida que dissolve as barreiras de
distância, torna o encontro entre o centro e a periferia, imediato e intenso” (ROBBINS,
1991, p.25). Na globalização, são as imagens, os artefatos e as identidades da
modernidade ocidental, produzidos pelas indústrias culturais das sociedades ocidentais
que dominam as redes globais. Os padrões de troca cultural desigual, familiar desde as
primeiras fases da globalização, continuam a existir na modernidade tardia.
Um dos aspectos que podem explicar a influência de um ritmo estadunidense (rap)
sobre o ritmo cubano interpretado pelo grupo Orishas, que retrata tanto os problemas da
capital Havana, como prostituição, drogas e miséria é o fato de as sociedades da
periferia estarem sempre abertas às influências culturais ocidentais, e neste caso,
especialmente dos EUA. A idéia de que esses lugares são fechados – etnicamente puros,
culturalmente tradicionais e intocados pelas rupturas da modernidade – é uma fantasia
ocidental sobre a alteridade, ou seja, é uma fantasia mantida pelo país, que tende a
gostar de seus nativos apenas como 'puros' e de seus lugares exóticos como intocados.
Tanto nos Estados Unidos quanto em Cuba existem problemas sociais que são
retratados através da música. Dessa forma essas mazelas sociais servem de inspiração
para o desenvolvimento das melodias e letras, para que estas possam, posteriormente,
serem transformadas em objetos de consumo. Entretanto, a realidade mostra que a
globalização tem efeitos em todos os lugares, fazendo com que a periferia viva também
esse efeito pluralizador, em um ritmo mais lento.
Segundo Hall (1997, p.63), a influência da globalização sobre as identidades pode ser
percebida segundo três possibilidades: a globalização caminha em paralelo com um
reforçamento das identidades locais; a globalização é um processo desigual que tem sua
própria geometria do poder e, por último, o fato de que a globalização retém alguns
aspectos da dominação global ocidental, mas as identidades culturais estão, em toda
parte, sendo relativizadas pelo impacto da compressão espaço-tempo.
A globalização tem o efeito de contestar e deslocar as identidades centradas e fechadas
de uma cultura nacional. Ela tem um efeito multiplicador sobre as identidades,
produzindo uma gama de possibilidades e novas posições de identificação, fazendo com
que as identidades se tornem mais posicionadas, políticas e diversas, sendo assim menos
fixas e ou unificadas.
A cultura nacional atua como uma fonte de significados culturais, um foco de
identificação e um sistema de representação. Primeiramente, há uma descrição da nação,
narrada tal como é contada nas histórias e nas literaturas nacionais, na mídia e na
cultura popular. Essa descrição fornece cenários, eventos históricos, símbolos e rituais
nacionais que simbolizam ou representam as experiências partilhadas, as perdas os
triunfos e os desastres, que dão origem as canções, retratando o que é vivenciado. Há
uma ênfase nas origens, fazendo com que a identidade nacional seja representada como
essencial – estando presente na essência de todo esse processo de criação. Os elementos
essenciais do caráter nacional permanecem imutáveis, mesmo com todos os
acontecimentos que se dão no decorrer da história da nação.
1.2 Notas sobre a sociedade de consumo
Os efeitos do processo da globalização causam enfraquecimento de formas nacionais de
identidade cultural, através da diminuição da identificação com a cultura nacional e um
reforço de outros laços culturais, como com as identidades locais, regionais e
comunitárias, que vêm se tornando cada vez mais importantes, fazendo com que as
identidades globais comecem a se deslocar e substituir as identidades nacionais. Este
fator leva a uma interdependência global que traz como principal conseqüência o
colapso de todas as identidades culturais e a fragmentação de códigos culturais, como a
multiplicidade de estilos em uma mesma região com ênfase na diferença e no
pluralismo cultural. Esse aspecto nos remete ao que acontece em Cuba: os fluxos
culturais entre esta nação e as outras (especialmente os EUA) e o consumismo global,
criam possibilidades de identidades partilhadas – como consumidores para os mesmos
bens, públicos para as mesmas mensagens e imagens – entre pessoas que estão distantes
umas das outras no espaço e no tempo.
É preciso entender a globalização como um processo de fracionamento articulado do
mundo e a recomposição de suas partes. Este processo não é apenas de
homogeneização, mas sim de reordenamento das diferenças e desigualdades, portanto,
indissociável da multiculturalidade (Canclini, 1999). É possível pensar essa reação
tomando como referência as cidades e as indústrias culturais da América Latina, mais
especificamente, Havana. A globalização é uma tendência irreversível e um fator que
está diretamente ligado a esse processo, é o consumo. Segundo Canclini (1999),
“consumo é o conjunto de processos socioculturais em que se realizam a apropriação e
o uso dos produtos” (CANCLINI, 1999, p. 76). Através dessa caracterização, é possível
enxergar os atos pelos quais as pessoas consomem, como algo mais do que simples
exercícios de gostos e compras irrefletidas, mas sobretudo como um momento de ciclo
de produção e reprodução social: é o lugar em que completa o processo iniciado com a
geração de produtos, em que se realiza a expansão do capital e se reproduz a força do
trabalho.
Para vincular o consumo com a cidadania, e vice-versa, é preciso desconstruir as
concepções que julgam o comportamento dos consumidores predominantemente
irracionais e as que somente vêem os cidadãos atuando em função da racionalidade dos
princípios ideológicos. Com efeito, costuma-se pensar o consumo como algo suntuoso e
supérfluo, onde os impulsos primários dos indivíduos poderiam alinhar-se com estudos
de mercado e táticas publicitárias. Porém, alguns consumidores querem ser cidadãos,
porém somente através da reconquista criativa dos espaços públicos, do interesse pelo
público, o consumo poderá ser um lugar de valor cognitivo, útil para pensar e agir
significativamente na vida social. Para vincular o consumo com a cidadania, é preciso
reposicionar o mercado na sociedade (Canclini, 1999).
Através de ações políticas pelas quais os consumidores ascendem à condição de
cidadãos, há uma concepção do mercado não apenas como um simples lugar de trocas
de mercadorias, mas sim como parte de interações socioculturais mais complexas. Desta
maneira, o consumo é visto não apenas como a possessão individual de objetos isolados,
mas sim como a apropriação coletiva, em relações de solidariedade e distinção com os
outros, de bens que proporcionam satisfações simbólicas, que servem para enviar e
receber mensagens. O valor mercantil não é alguma coisa contida naturalmente nos
objetos, mas é resultante das interações socioculturais em que os homens os usam
(Canclini, 1999).
Os objetos são intercambiados pelas sociedades por diversas razões, entre elas, para
satisfazer as necessidades que são fixadas culturalmente, para que haja uma integração
de uns com os outros, para haver uma distinção que possa ser percebida a distância, para
realizar desejos e pensar a situação de cada um no mundo. O diálogo existente entre o
pensamento latino-americano e o norte-americano traz a tona preocupações relativas ao
futuro da cultura latina, em um processo de globalização protagonizado, mas não
governado, pela cultura norte-americana, que modificou não só as sociedades latino-
americanas, mas também as ciências sociais, as artes e as referências de autoridade e
prestígio na cultura de massa.
Ao se pensar na cidadania em relação ao consumo e como estratégia política, é preciso
conectar esses conceitos de maneira que seja possível considerar, de uma forma
conjunta, as atividades do consumo cultural que configuram uma dimensão da
cidadania, e transcendem a abordagem que conduz a uma defesa da existência de uma
cidadania cultural, de gênero ou até mesmo racial. Atualmente, o mercado estabelece
um regime convergente para estas formas de participação através do consumo, e para
tal, é preciso que exista uma concepção estratégica do Estado e do mercado que
articules estas diferentes modalidades de cidadania.
Segundo Canclini (1999), na segunda metade do século XX, as modalidades
audiovisuais e massivas de organização da cultura foram subordinadas a critérios
empresariais de lucro, assim como a um ordenamento global que desterritorializa seus
conteúdos e suas formas de consumo. A distribuição global de bens e da informação
permite que o consumo dos países centrais e periféricos se aproxime, fazendo com que,
mesmo que países latino-americanos sejam considerados subdesenvolvidos na produção
endógena para os meios eletrônicos, eles não o são no que se refere ao consumo.
Quando se reconhece que ao consumir também se pensa, se escolhe e reelabora o
sentido social, é preciso analisar como esta área de apropriação de bens e signos
intervém em formas mais ativas de participação do que aquelas que habitualmente
recebem o nome de consumo. É preciso pensar que, ao consumir, algo que sustenta e até
constitui uma nova forma de ser cidadão, é criado. A aproximação da cidadania, da
comunicação de massa e do consumo, cria novos cenários de constituição do público e
mostram que para se viver em sociedades democráticas é importante admitir que o
mercado de opiniões cidadãs inclua variedades relativas aos mercados: remete a pensar
que cidadãos também são consumidores e que a diversificação dos gostos leva a
justificar a concepção democrática de cidadania.
1.3 As culturas híbridas em tempos de globalização
As culturas híbridas formam um dos diversos tipos de identidade distintivamente
produzidos na era da modernidade tardia. O hibridismo, juntamente com o sincretismo –
fusão entre diferentes tradições culturais – formam uma fonte criativa muito poderosa,
produzindo novas formas de cultura que melhor se relacionam com a modernidade
tardia. Há uma tentativa por parte dos grupos que querem manter uma identidade pura,
de ir contra esse hibridismo, essa mistura, tentando forjar e manter uma identidade
cultural homogênea. Nesse sentido, a despeito da identidade socialista cubana, dentro
das fronteiras do Estado-nação, há grupos que se identificam com culturas diferentes.
O hibridismo influencia e transforma a forma de falar sobre identidade, cultura,
diferença, desigualdade, multiculturalismo e os conflitos nas ciências sociais, como as
questões de tradição-modernidade, norte-sul, local-global. Segundo Canclini (2003),
pode-se dizer que o momento em que mais se estende a análise da hibridação e os
diversos processos culturais se deram no final do século XX. O conceito de hibridismo é
usado para descrever processos interétnicos e de descolonização, globalizadores,
viagens e cruzamentos de fronteiras, fusões artísticas, literárias e comunicacionais.
O conceito de hibridação, segundo Canclini (2003), pode ser tratado por processos
socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma
separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas. Essas estruturas
resultam de hibridações, razão pela qual não podem ser consideradas fontes puras:
Nesse sentido, é possível tomar como referência a influência do rap de origem
estadunidense sobre a música cubana, propagado por todo o mundo, principalmente
pelos continentes americano e europeu.
A construção lingüística e social do conceito de hibridação serviu para que este deixasse
de ser apenas um discurso biologístico e essencialista da identidade, da autenticidade e
da pureza cultural, para contribuir na identificação e explicação de múltiplas alianças
fecundas, como as das culturas étnicas nacionais com as das metrópoles e instituições
globais (HARVEY, 1989).
A forma com que a hibridação funde estruturas ou práticas sociais discretas para gerar
novas estruturas e práticas muitas vezes acontece de forma não planejada, sendo assim
resultado imprevisto de processos migratórios, turísticos e de intercâmbio econômico ou
comunicacional. Mas a hibridação pode surgir também a partir da criatividade
individual e coletiva. Esses processos variados de hibridação levam a relativização da
noção de identidade. A ênfase neste conceito não enclausura a pretensão de estabelecer
identidades “puras” ou “autênticas”, ao contrário, o conceito evidencia o risco de se
delimitar identidades locais autocontidas o que tentem se afirmar como opostas à
sociedade nacional ou à globalização. Quando se define uma identidade através de um
processo de abstração de traços, como língua, tradições e condutas estereotipadas,
geralmente se tende a separar essas práticas das misturas que se formaram. Como
conseqüência, o modo de se entender a identidade é absolutizado, sendo assim, as
maneiras heterodoxas de se falar a língua, fazer música ou interpretar tradições, são
rejeitadas, tornando a possibilidade de modificar a cultura e a política quase inexistente.
Os estudos sobre narrativas identitárias com enfoques teóricos que levam em conta os processos de hibridação mostram que não é possível falar das identidades como se tratasse apenas de um conjunto de traços fixos, nem afirmá-los como a essência de uma etnia ou de uma nação. A história dos movimentos identitários revela uma série de operações de seleção de elementos de diferentes épocas articulados pelos grupos hegemônicos com um relato que lhes dá coerência, dramaticidade e eloqüência (CANCLINI, 2004, p.23).
Em um mundo tão interconectado, as sedimentações identitárias organizadas em
conjuntos históricos mais ou menos estáveis, como etnias, nações e classes, se
reestruturam em meio a conjuntos interétnicos, transclassistas e transnacionais. As
diversas formas em que os membros de cada grupo se apropriam dos repertórios
heterogêneos de bens e mensagens disponíveis nos circuitos transnacionais geram novos
modos de segmentação.
Quando se estuda o processo de hibridação, não se deve apenas descrever misturas
interculturais: é preciso aprofundar, estudando os processos de hibridação situando-os
em relações estruturais de causalidade, dando-lhe capacidade hermenêutica, ou seja, é
preciso torna-lo útil para interpretar as relações de sentido que se reconstroem nas
misturas (CANCLINI, 2003). Se a intenção é a de ir além de liberar a análise cultural de
seus tropismos fundamentalistas identitários, deve-se então situar a hibridação em uma
rede de conceitos diferente, como contradição, mestiçagem, sincretismo e
transculturação. Além disso, devem ser vista em meio às diferenças da industrialização
e da massificação globalizada dos processos simbólicos e dos conflitos que possam
surgir.
Ainda é possível que o conceito de hibridação sugira fácil integração e fusão de
culturas, sem dar importância suficiente às contradições e aquilo que não se deixar
misturar ou hibridar. É possível que ao passar do caráter descritivo da noção de
hibridação – como fusão de estruturas discretas – a utilizá-la como recurso explicativo,
as misturas podem ser produtivas ou podem gerar conflitos e serem incompatíveis ou
inconciliáveis nas práticas reunidas. A hibridação é um processo ao qual é possível se
ter acesso e que se pode abandonar, que se pode ser excluído, ou se subordinar,
compreendendo assim as posições dos sujeitos a respeito das relações interculturais.
Dessa forma, é possível trabalhar os processos de hibridação em relação à desigualdade
entre as culturas, com as possibilidades de apropriar-se de várias delas, no que diz
respeito a classes e grupos diferentes (CANCLINI, 2003).
Atualmente, no que diz respeito à globalização, é possível encontrar várias razões para
se empregar os conceitos de mestiçagem e hibridação, encontrando nelas a confrontação
e o diálogo. A hibridação, como um processo de interseção e transações, é o que torna
possível que a multiculturalidade se converta em interculturalidade. As fronteiras
rígidas estabelecidas pelos Estados modernos se tornaram permeáveis, fazendo com
que, atualmente, poucas culturas possam ser descritas como unidades estáveis, limitadas
a ocupação de um território delimitado. Mas essa multiplicação de oportunidades para
tornar-se híbrido não implica em uma indeterminação, nem a uma liberdade irrestrita. A
hibridação ocorre em condições históricas e sociais específicas, em meio a sistemas de
produção e consumo que às vezes operam como coações (CANCLINI, 1999).
Os processos globalizadores acentuam a interculturalidade moderna quando criam
mercados mundiais de bens materiais e dinheiro, mensagens e migrantes. Os fluxos e as
interações que ocorrem nesses processos diminuem fronteiras, assim como a autonomia
das tradições locais, propiciam mais formas de hibridação produtiva, comunicacional e
de consumo. As formas clássicas de fusão, derivadas de migrações, intercâmbios
comerciais e das políticas de integração educacional impulsionadas por Estados
nacionais, somam-se às misturas geradas pelas indústrias culturais (CANCLINI, 1999.)
A globalização do consumo é a responsável por afirmar e expandir particularidades
étnicas ou regiões culturais. Alguns setores sociais encontram, nesses processos,
recursos para resistir à globalização ou modificá-la e propor as condições de
intercâmbio entre culturas.
1.4 O rap2
2 Parte desse texto foi extraída do site: www.movimentohiphop.com.br. Acesso em 20/09/2008.
Criado nos Estados Unidos, o rap – uma abreviação para rhythm and poetry (ritmo e
poesia) – é um gênero musical nascido entre negros e caracterizado pelo ritmo acelerado
e pela melodia bastante singular. As longas letras são quase recitadas e geralmente
tratam de questões cotidianas da comunidade, especialmente a negra, dos problemas
vividos na sociedade, e no caso, do grupo Orishas, as músicas retratam as mazelas do
país, principalmente da capital Havana, servindo-se muitas vezes das gírias correntes
nos guetos das grandes cidades. Chegou a Cuba no fim da década de 90, mas somente
na década seguinte ganhou espaço na indústria fonográfica.
Diz-se que o rap surgiu na Jamaica mais ou menos na década de 60, quando surgiram os
“sound systems”, que eram colocados nas ruas dos guetos jamaicanos para animar
bailes. Esses bailes serviam de fundo para o discurso dos "toasters", autênticos mestres
de cerimônia que comentavam, nas suas intervenções, assuntos como a violência das
favelas de Kingston e a situação política da Ilha, sem deixar de falar, é claro, de temas
mais prosaicos, como sexo e drogas.
No início da década de 1970, muitos jovens jamaicanos foram obrigados a emigrar para
os EUA, devido a uma crise econômica e social que se abateu sobre a ilha. E um em
especial, o DJ jamaicano Kool Herc introduziu em Nova Iorque a tradição dos sound
systems e do canto falado, que se sofisticou com a invenção do scratch.
O primeiro disco de rap que se tem notícia foi registrado em vinil e dirigido ao grande
mercado (as gravações anteriores eram piratas), por volta de 1978, contendo a célebre
"King Tim III" da banda Fatback.
O rap, a principio chamado de "tagarela", ascende, e os breakers formam grupos de rap.
Em 1988 foi lançado o primeiro registro fonográfico de rap brasileiro, a coletânea "Hip-
Hop Cultura de Rua", pela gravadora Eldorado. Desta coletânea participaram Thaide &
DJ Hum, MC/DJ Jack, Código 13 e outros grupos então iniciantes.
Desde seu surgimento, nos anos 70, numa Nova Iorque violenta como nunca, o rap
impôs a discussão de questão negra. Os Estados Unidos viviam então a ressaca de
conflitos raciais que incluíram desde o pacífico movimento pelos direitos civis de
Martin Luther King até a militância armada dos Panteras Negras.
O cotidiano nas periferias das cidades cubanas é hostil, porém de suas vielas
esburacadas, uma cultura visceral força ganha na sua rebeldia. A cultura funk, rap,
espalha-se. A cultura da periferia e dos morros está no subúrbio e nas favelas, onde se
espalha em músicas, bandas, bailes, códigos de comportamento, gírias e sinais;
recebendo assim um nome de sonoridade elétrica: Hip-Hop.
Para os rappers, esse mundo é invisível a maior parte do tempo, e só chama a atenção
no momento em que deixa de ser dança e música e se torna violência. Essa revolta é
traduzida através das músicas. Elas contam a história de dezenas de pessoas, entre
jovens, negros e pobres, que habitam o país e sofrem com miséria, prostituição e perdas.
A música e a dança estão mobiliza os corações e mentes dos jovens desses jovens. É um
movimento jamais visto, talvez, podendo ser até comparado aos primórdios do samba
no Brasil, tempo em que, antes de o Carnaval virar um grande espetáculo, bancadas e
gafieiras provocavam desconfiança e até temor.
O cenário é humilde e violento. Os rappers, com suas letras querem mostrar que na
periferia há jovens que não se drogam, não trabalham para o tráfico e ganham dinheiro
honestamente. Há também na periferia jovens que se drogam, trabalham para o tráfico e
ganham dinheiro desonestamente, só que são minoria, como em todos grupos sociais.
Essa gente se amontoa num beco social sem saída, mas, terra á vista, nos últimos anos
vislumbrou uma alternativa. Sua rebeldia com causa parece que se canaliza. Destila
veneno sob fórmulas definidas: os versos longos e insubordinados do rap, a dança
robótica do break, o grafite nos muros e a união em galeras para se defender – ou atacar
– em grupo. Nas letras do grupo Orishas, são encontradas mensagens de cunho político
e social, denunciando as injustiças e as dificuldades das populações menos favorecidas
da sociedade cubana. É a música servindo de protesto social e falando a voz do povo
mais pobre.
Nos dias de hoje o rap está incorporado no cenário musical cubano, saindo da periferia
para ganhar o grande público, principalmente nos países da Europa e nos EUA. Dezenas
de cds de rap são lançados anualmente, porém o rap não perdeu sua essência de
denunciar as injustiças, vividas nas grandes cidades, especialmente em Cuba. Para o
grupo, filosofia hip hop e música hip hop são coisas diferentes. O grupo segue uma
filosofia rap. Não se fala de armas, drogas, violência, de matar. A música criada pelo
grupo não trata somente de violência, mas da realidade que acontece em Cuba. Fala-se
da vida, e não somente de problemas sociais. O grupo é produto de tudo o que acontece
ao redor.
1.5 Origem do grupo Orishas3
O nome Orishas faz referência à crença largamente difundida no país: a Santería.
Diversas religiões coexistem em Cuba, resultado de sua história. Sobreviveram tanto o
catolicismo dos conquistadores espanhóis como o culto dos escravos africanos. A
crença africana mais difundida é a santería, também chamada de Regla de Ocha. Para
poder exercer suas crenças e cultuar suas divindades apesar da perseguição dos
espanhóis, os escravos iorubas, originários da Nigéria, mesclaram a identidade de seus
deuses com alguns santos católicos. Ortiz (1994) classifica tal fenômeno como
sincretismo religioso:
O sincretismo se dá quando existe um sistema-partida (memória coletiva) que comanda a escolha e depois ordena, dentro de seu quadro, o objeto escolhido. Um exemplo. Santa Bárbara é Iansã na medida em que existe uma memória africana que escolhe, entre as santas católicas, aquela que possui um elemento analógico à divindade africana: a chuva. Isto não significa, porém, que o sistema africano de classificações se confunda com o sistema católico; a memória coletiva africana conserva sua autonomia mesmo que o elemento sincretizado provenha de uma fonte exterior a ela. (ORTIZ, 1994, p.32).
Com o tempo, as duas religiões se fundiram. Desse modo, hoje o catolicismo puro não é
uma religião difundida em cuba, enquanto a santería tem presença tão forte que pode
ser entendida como parte integrante da identidade nacional cubana. O principal deus da
santería é Olofi, a divindade criadora, similar ao Deus do cristianismo, mas sem contato
com a terra. Os deuses que intermedeiam os fiéis são os orixás, que ouvem suas preces.
Cada orixá tem sua cor e símbolos, bem como um ritual caracterizado por um tipo de
dança, música e vestimenta: Oxum usa roupas amarelas e adora mel, bebidas leves e
violino; Obatalá, deus hermafrodita, é o protetor da cabeça e também o principal
intermediário entre Olofi e a humanidade. Como expressão do sincretismo, tem-se
3 Parte do texto extraída do site: www.orishasthebest.com. (Acesso em 20/09/2008).
Oxum, a deusa do amor, que mora nos rios e que corresponde à Virgem Del Cobre4.
O Grupo “franco-cubano” tem três integrantes, e é uma das primeiras bandas de rap não
americanas a conseguir projeção mundial. Ao conquistar o reconhecimento do hip hop
cubano, o grupo mudou, inclusive, a postura do governo da Ilha sobre o gênero,
tipicamente americano, transformado de vilão em aliado na exportação cultural do país.
O primeiro CD, gravado na França, “A Lo Cubano”, reuniu uma série de influências e
agradou tanto a crítica quanto ao público, e levou o grupo a se apresentar em todo o
mundo.
O grupo Orishas, inicialmente chamado de Amenaza, é uma das bandas pioneiras no
precário cenário do hip hop cubano. O grupo surgiu com a idéia de se mesclar a música
tradicional cubana com o hip hop de origem norte americana, elaborando novas formas
de misturar os sons e os textos. A grande incentivadora desse projeto foi a Preta
Morales, presidente de uma associação de solidariedade ao povo cubano, que gostou do
projeto e foi a responsável por este intercâmbio cultural entre Cuba e França. Após se
apresentarem algumas vezes pelo país, começaram a elaborar os textos e as bases
musicais no intuito de criar um conceito, algo coerente. Deste trabalho surgiu uma
“maquete” daquilo que era o projeto original. Adepto de um estilo conhecido pelas
músicas engajadas e vindo de um país marcado pela injustiça social, o grupo gosta de
destacar, no entanto, que não faz apenas denúncia, mas trata também da vida, das
pessoas, das mulheres, enfim, do cotidiano vivido no país.
Mesmo afastados (Roldan mora em Paris, Yotuel, em Madri e Ruzzo, em Milão), o
processo de composição é feito em estúdio. O trio escuta a base, preparada pelos
produtores do disco, e, a partir dela, cada um deles escreve 8 compassos. Juntos, eles
finalizam a letra e tiram o que não serve. Eles escrevem mais do que precisam e depois
tiram o que não vão usar. E isso tem funcionado bem, deixando que a música brote, sem
censura. Mesmo não vivendo mais em Cuba, eles sabem o que se passa neste sociedade 4 Segundo a lenda, em 1606 três escravos que trabalhavam nas minas de El Cobre foram salvos na baía
de Nipe, num ponto afastado da costa norte de Cuba, pela estátua de uma Virgem Maria negra tendo nos braços o Menino Jesus. Seu barco havia sido arrastado por uma tempestade e eles teriam se afogado se não fosse pela Virgem. Em 1611 foi construído para a Virgen de la Caridad um santuário que se transformou em local de veneração para o povo local, que passou a atribuir-lhe milagres. A devoção à santa se tornou cada vez mais forte mesmo entre católicos não praticantes. Atualmente, a imagem sagrada da Virgen del Cobre e a imagem profana e sensual de Oxum, a deusa africana, costumam ser combinadas em orações, colocadas lado a lado em altares domésticos.
e suas canções continuam retratando, principalmente, as mazelas sociais, vividas neste
país.
Quanto aos longos anos na Europa, longe dos sons e das cores das ruas calçadas de
Cuba, os músicos acreditam que seja mais benéfico, pois dessa forma podem ter mais
acesso ao que realmente acontece em Cuba. O projeto Orishas começou em Paris, e isto
facilitou a criação, pois o grupo esteve em mais de 25 países, sem precisar lidar com a
burocracia de Cuba, onde um visto demora meses para ser conseguido. Segundo um dos
componentes do grupo, Roldan (Entrevista concedida à revista VEJA em outubro de
2001), o fato de estar fora da ilha de Fidel, é um fator importante, pois assim o grupo
consegue expandir a criatividade. Porém, para os componentes do grupo, a Europa é um
continente frio, onde as pessoas se tratam de uma maneira muito fria, e este fator é
relatado em seu trabalho, no qual o primeiro e segundo discos falam mais da questão
social, e o terceiro trabalho tem uma forte influência da Europa, pois trata mais do calor
humano e das coisas que não são encontradas lá. Esse sentimento de pertencimento e
nostalgia, pelo qual o grupo passa, pode ser entendido através dos conceitos de Tradição
e Tradução. No que diz respeito à Tradição pode-se afirmar que as identidades culturais
não-fixas surgem em toda parte, suspensas, portanto em transição, entre diferentes
posições; que obtêm seus recursos através de diferentes tradições culturais, e que são
produto dessas complicadas misturas que são cada vez mais comuns em um mundo
globalizado. Já no que diz respeito à Tradução, pode-se afirmar que é aquilo que se
refere as formações de identidade que atravessam as fronteiras naturais, compostas por
pessoas que foram dispersadas de sua terra natal (HALL, 1997, p. 96).
Essas pessoas mantêm fortes vínculos com seus lugares de origem e suas tradições, mas sem a ilusão de um retorno ao passado. São obrigadas a negociar com as novas culturas em que vivem, sem simplesmente serem assimiladas por elas e sem perder completamente suas identidades. Elas carregam os traços das culturas, das tradições, das linguagens e das histórias particulares pelas quais foram marcadas. A diferença é que elas não são e nunca serão unificadas, porque elas são, irrevogavelmente, o produto de várias historias e culturas interconectadas, pertencem a uma e, ao mesmo tempo, a várias “casas”. (...) Essas pessoas estão irrevogavelmente traduzidas e são pertencentes às culturas híbridas.
Em maio de 1999 o grupo lançou seu primeiro álbum, “A lo Cubano”, que reuniu uma
série de influências e agradou tanto a crítica quanto o público, e levou o grupo a se
apresentar em todo o mundo. O grupo recebeu boas críticas, e a principal delas foi a de
que “sapos imigrantes, quase ilegais se tornaram os príncipes azuis do rap em
espanhol”. O grupo foi adquirindo gradualmente reconhecimento internacional e depois
de conquistar a Europa seu sucesso se expandiu para os Estados Unidos, Canadá, África
do Sul e México.
Depois de mais de 200 shows pelo mundo, e grupo decidiu recomeçar a escrever suas
próprias canções e lançaram o trabalho “Emigrante”, que tratava de temas mais
profundos e maduros. Após esse trabalho, em 2003, surgiu o álbum “El Kilo”, que é
uma mistura da energia do primeiro álbum, “A Lo Cubano”, no que diz respeito a
percussão e ritmos, e as melodias do segundo álbum “Emigrante”. É um álbum maduro,
que trazia as conseqüências de um trabalho sólido de seis anos. Este álbum foi lançado
em 2005, primeiramente na Espanha, e posteriormente nos outros países europeus e no
continente americano.
Com somente três álbuns lançados, o grupo foi consagrado como a nova música do
século XXI. A revolucionária fusão do hip hop com a música cubana foi considerada
como uma das grandes descobertas artísticas dos últimos anos, graças a um som
potente, imaginativo, enraizado, que deu origem a essa música diferente.
Em 2007, já com dez anos de formação, o grupo decidiu reunir toda a sua carreira em
um álbum chamado “Antidiótico”, a primeira regravação de seus sucessos e das músicas
mais populares e representativas. Esse álbum foi lançado também em 2007 na Europa e
posteriormente nas Américas.
Neste ano de 2008, o grupo lançou seu quarto trabalho, “Cosita Buena”, que foi
composto, produzido e trabalhado pelo emblemático trio cubano, tendo sido gravado em
fevereiro e lançado recentemente, em 10 de junho de 2008.
CAPÍTULO II – BREVE HISTÓRICO DE CUBA 2.1 A formação do povo cubano
Durante mais de quatro séculos, Cuba foi base de grupos étnicos de diferentes
procedências. Os descendentes de espanhóis e de negros africanos são os grupos raciais
predominantes, mas também há chineses, judeus, europeus e libaneses, entre outros.
Há uma estimativa de que pouco antes da chegada de Cristóvão Colombo, os taínos,
originários da península venezuelana de Paria, se fixaram não somente em Cuba, mas
em todo o resto das Antilhas e Bahamas, desenvolvendo nessas terras uma agricultura
primitiva. O povo Taíno, pertencente ao grupo aruaque, constituía por si só entre setenta
e oitenta por cento da população no início do século XVI. Negros africanos substituíram
a população indígena que havia sido reduzida, empregados principalmente nos grandes
canaviais. Na maior parte, vinham do Senegal e da costa da Guiné, podendo detectar-se
em suas origens étnicas a presença de elementos da cultura ioruba e banto. Muito depois
da abolição da escravatura, entre 1919 e 1926, cerca de 250.000 trabalhadores negros
provenientes do Haiti e da Jamaica foram contratados para trabalhar nas plantações de
açúcar e, em sua maioria, estabeleceram-se definitivamente na ilha. Sua influência
cultural, especialmente na música e na dança, tornou-se determinante na cultura cubana.
A exemplo do Brasil e de outras partes da América Latina, em Cuba ocorreu intensa
miscigenação racial, de modo que há vários séculos a população mestiça, em maior ou
menor grau, passou a ser mais numerosa que todas as raças, à exceção da branca.
A população européia, representada principalmente pelos imigrantes espanhóis, chegou
a constituir três quartos do total. Sua influência nos usos e costumes, assim como na
evolução política e econômica da sociedade, caracteriza a história cubana, seu folclore e
suas tradições culturais.
Cuba conquistou sua identidade e amadureceu guiada por patriotas como o poeta José
Martí e, em 1959, tornou-se o primeiro país socialista das Américas: por força dessa
opção, na última década do século XX, ao se esfacelar a União Soviética, que lhe dava
apoio, viveu em singular posição de isolamento continental.
2.2 Cuba e a emergência de seu processo revolucionário
Cuba foi a última colônia da América Latina a libertar-se da Espanha, em 1898,
processo este que se alongou por um longo período de 30 anos, em que tiveram duas
guerras de independência. A revolução de 1959 tem suas raízes na trajetória da história
nacional, com um histórico que refaz o período independentista. Em uma seqüência de
fatos que marcaram o processo revolucionário, três situações principais caracterizam
este processo: com o golpe de Batista, em 1953, opera-se um processo de fechamento
que explicita para setores importantes da sociedade cubana sua exclusão da vida
política. Nessa fase inicial, o poder exercido pela ditadura se afirma baseada em apoio
interno e externo, com o reconhecimento do governo dos Estados Unidos. O assalto aos
quartéis de Moncada e Bayamo, em 1954, caracteriza o processo de radicalização de um
pequeno grupo de militantes, para os quais o golpe significou a interrupção de uma
inserção na política republicana (AYERBE, 2004, p. 37).
Seu movimento busca suscitar uma rebelião popular contra o regime de Batista, com o objetivo de restaurar a normalidade institucional. A derrota impulsiona o grupo de insurrectos para uma reflexão mais profundas sobre as raízes socioeconômicas do sistema de dominação que impera no país, cujas principais idéias estão plasmadas no discurso de defesa de Fidel Castro - A história me absolverá. Com o desembarque do Granma, em dezembro de 1956, dá-se início a uma nova fase opositora, no decorrer da qual vão sendo criadas as condições da revolução: crescente ativismo dos setores populares no campo e nas cidades, que já não aceitam pacificamente a deteriorização das suas condições de vida; crise nos setores dominantes, com a divisão nas
bases de sustentação do regime, que se enfraquece politicamente ao mesmo tempo em que se multiplicam suas derrotas no campo militar. Nesse momento, a rebelião contra Batista vem acompanhada de processos de transformação mais profundos, especialmente com as mudanças implementadas pela guerrilha nas áreas conquistadas, em que são adotadas as primeiras experiências de reforma agrícola. São os passos iniciais de uma revolução social que assumirá um perfil mais nítido após a conquista do poder (AYERBE, 2004, pp. 37-8).
A Cuba pré-revolucionária apresentava sinais de modernização capitalista bem similares
a alguns casos dos países mais ricos da região, apesar dos indicadores de pobreza e
precariedade do emprego, principalmente no que se refere à zona rural. Nesse sentido,
não se pode afirmar que a revolução se deu devido a insatisfação da população com
condições de vida em rápida deteriorização, mas sim que seu desencadeamento se deu
através do resultado da ação de um grupo de insurgentes que demonstram três qualidade
excepcionais, sendo a primeira a grande capacidade de organização, s segunda a
abertura negociadora em relação aos setores descontentes da elite, especialmente os que
se concentram em Havana, valorizando as convergências da conjuntura e evitando
antecipar quaisquer controvérsias sobre Cuba pós-Batista, e em terceiro lugar, o
comprometimento com os anseios dos setores populares na realização das reformas
estruturais, antecipando medidas revolucionárias no decorrer do processo de luta. Essa
forma de agir em relação aos diferentes setores envolvidos na luta contra a ditadura
garante aos revolucionários o poder de fogo necessário para conduzir exitosamente o
combate, ao mesmo tempo em que acumula forças para evitar que a transição posterior
padeça dos constrangimentos internos e externos.
Um mundo caótico, esse mundo, ao qual nos conduz a globalização capitalista, não pode sobreviver, não pode subsistir, pois traz inevitavelmente a crise. Por isso, eu explicava que os métodos do século passado já não eram mais precisamente os aconselháveis, nem os da primeira metade deste século, nem sequer os de depois do triunfo da Revolução, porque havia um momento de equilíbrio mundial... Surgem movimentos de massa que se estão formando com tremenda força, e acredito que esses movimentos desempenharão um papel fundamental nas lutas futuras. Serão outras táticas, já não será a tática ao estilo bolchevique, nem sequer ao nosso estilo, porque pertenceram a um mundo diferente (CASTRO, 1999, p.40).
A Revolução Cubana, desde seu acontecimento, tem sido alvo de diversas polêmicas
sobre o verdadeiro significado das transformações ocorridas no interior do país e suas
conseqüências externas como exemplo de uma alternativa diferente em relação ao
capitalismo e à democracia representativa. Existem críticas feitas pelos opositores
quanto ao sistema adotado pela ilha, das quais podem ser destacadas três de maior
relevância. São elas:
Em primeiro lugar, a forma pela qual se chega ao poder, em que a opção pela luta armada se torna também um produto de exportação, como principal garantia de realização de transformações sociais que afetem interesses dominantes nacionais e internacionais. Em segundo, a implementação de um modelo de economia centralmente planejado 'condenado pela história', que inibe a livre iniciativa e a conseqüente geração de riqueza e prosperidade, levando a um sistema cujas realizações se resumem à distribuição da pobreza. Finalmente, a adoção de um regime político de partido único, incompatível com o pluralismo e a liberdade de escolha que caracterizariam a democracia liberal. (GOTT, 2006, p. 152).
Essas questões, se analisadas sob a perspectiva comparada das vantagens e
desvantagens de se viver nas diferentes sociedades existentes, certamente trariam como
conseqüência, um tratamento diferenciado e polêmico, sendo esta conseqüência, a
expressão das diferentes formas de valorizar os sistemas econômicos e políticos que
garantem as melhores possibilidades de realização humana de uma forma coletiva e
individualmente melhor. Sendo assim, “os questionamentos ganham legitimidade
proporcional à abertura intelectual do debate. No entanto, quando vinculados à agenda
da política externa de uma potência hegemônica, perdem sua legitimidade” (AYERBE,
2004, p. 108).
No que diz respeito à opção pela violência política, os revolucionários cubanos
estiveram presentes em uma época marcada pela instabilidade política na América
Latina e no Caribe, em que vivenciaram o desrespeito pela democracia e soberania
nacionais, originários dos setores dominantes da região e do governo dos Estados
Unidos, o que acabava por não deixar muitas opções para aqueles que defendiam
reformas profundas na economia, assim como na sociedade. O grupo de jovens
exilados, liderado por Fidel Castro, que se encontrava no México em 1954 estava
fortemente marcado experiências frustrantes, principalmente, no que diz respeito a
experiência de reformas através de vias institucionais, como o golpe de Batista em
1952, que interrompeu a carreira política desta geração de jovens – entre eles o futuro
líder da revolução – que passaram então a investir em outras vias de ação
transformadora. Durante as décadas de 1960 e 70, o cenário latino americano sofre uma
grande deteriorização em relação ao período anterior, aumentando a percepção de que
reformas pacíficas não seriam viáveis. “Com exceção da experiência cubana, todas as
tentativas de transformação que buscaram caminhos de desenvolvimento alternativos à
ordem dominantes são interrompidas por ações de força” (AYERBE, 2004, p.110),
podendo ser citada uma sucessão de golpes militares ocorridos na América Latina, que
representaram o desrespeito pela democracia e soberania nacional.
Já nos seus primeiros anos, a revolução enveredou num programa de reformas radical:
reforma agrária que acabou com o latifúndio em menos de um ano, rompendo de vez
com a propriedade privada no campo; confisco de propriedades; nacionalização de
bancos e empresas estrangeiras; reforma educacional e na saúde tornando-as nacionais e
gratuitas; e redução das tarifas nas áreas de moradia, telefonia e energia. Um programa
que, de 1959 a 1961, foi se radicalizando até ser declarado o caráter socialista da
revolução. Ao longo desse processo, as decisões foram centralizadas nas mãos do
Estado e este, por sua vez, foi burocratizado e a censura foi estabelecida (GOTT, 2006).
Em resposta às medidas do governo revolucionário e à declaração de Fidel, ocorreu a
invasão da Baía dos Porcos, em 1961. Uma ação financiada e organizada pelos Estados
Unidos que, apesar de fracassada, fez com que o país vivesse sob a ameaça de outra
possível invasão. Além disso, ela acabou fortalecendo a revolução e ajudou a empurrá-
la para o campo soviético. Desta forma, a partir de 1962, os dirigentes cubanos
entendem a dificuldade de se construir uma experiência autônoma, principalmente
depois da invasão da Guatemala, da invasão da Baía dos Porcos e do seu próprio
isolamento político-econômico no continente.
Esse entendimento, somado às limitações econômicas do país, acabou por conformar a
construção da relação entre Cuba e União Soviética e desembocou no episódio da Crise
dos Mísseis em outubro deste ano. Isso posto, a partir de 1963, Cuba estreitou laços
com a União Soviética, se beneficiando não apenas financeira e comercialmente, mas
também rompendo com o isolamento no continente e podendo contar com o apoio de
uma potência contra possíveis ataques dos Estados Unidos. Nesse primeiro momento, o
país ainda não tinha abandonado o seu projeto de diversificação econômica –
desenvolvimento das indústrias, substituição de importações e ampliação das
exportações para além dos produtos primários. No entanto, o fracasso desse projeto e a
entrada de Cuba em 1972 no Conselho Econômico de Ajuda Mútua (CAME) - o qual
reunia o bloco dos países liderados pela ex-União Soviética – tiveram conseqüências
nos rumos político-econômicos do país (GOTT, 2006). Por um lado, trouxe crescimento
econômico, com a elevação do Produto Social Global, do número das indústrias e dos
indicadores sociais. Mas, por outro, a autonomia da revolução e a busca de um caminho
próprio foram perdidos.
A entrada no CAME marcou uma forte dependência do país com relação à União
Soviética, mas é preciso considerar o contexto no qual ela se insere. Cuba convive até
hoje com o bloqueio econômico imposto pelos Estados Unidos desde 1961, com o
conseqüente isolamento político-econômico no continente, com as várias operações de
sabotagem financiadas também pelos EUA, com a falta de recursos internos e com a
estagnação da economia. Frente a essa conjunção de fatores, o CAME era a
oportunidade para o país superar alguns dos seus problemas e dar uma guinada no
fortalecimento interno da revolução.
Por parte da esquerda, pode-se verificar um refluxo das estratégias que descartam a via
institucional, com foco na valorização da democracia representativa, sendo ela o
principal marco regulador da diversidade política e ideológica, sendo que nos países
governados por comunistas, como China, Cuba e Vietnã, a postura internacional
pautada pela negociação das diferenças e pelo respeito à legalidade. Já por parte dos
países capitalistas, há também uma predominância de uma postura de diferenciação
entre a política externa e a imposição de determinados modos de vida, porém, há uma
grande diferença de atitude por parte dos Estados Unidos, que mantêm o seu discurso
missionário, porém de maneira seletiva. Sua postura em relação a países comunistas
depende de um cálculo de perdas e danos, o que justifica o aprofundamento do bloqueio
a Cuba, desrespeitando leis internacionais.
Todo este contexto demonstra a situação de poucas opções de mudança por vias
democráticas representativas do cenário latino-americano. O que mais inspira um
processo de radicalização à esquerda é o exemplo da revolução cubana, que é resposta a
um outro processo de radicalização comandado por setores conservadores da região e
pelo governo dos Estados Unidos. Instaura-se então um período de conflito entre
oposições, cujo desfecho, é a derrota pela violência de todas as tentativas de mudança
progressista implementadas durante as décadas de 1950, 60 e 70, exceto por parte de
Cuba. É preciso perceber que na América Latina se vivia um momento importante de
luta entre dois sistemas divergentes, o que justificava a adoção de medidas extremas,
assim como acontecia na época da formulação da política externa dos Estados Unidos.
Nos primeiros lugares da lista de países mais ricos do mundo estão aqueles que
adotaram a economia de mercado, promovida pelo capitalismo liberal. Na maioria dos
casos, os planos ambiciosos de crescimento econômico se chocaram com uma realidade
adversa que não se restringia às pressões externas decorrentes dos conflitos leste-oeste,
acrescentando grandes déficits internos subestimados pelos novos setores dirigentes.
No caso de Cuba, as opções do país a partir da decisão de se manter fiel aos objetivos
que trouxeram como conseqüência à revolução, não foram muitas. No que diz respeito
ao âmbito interamericano, as oportunidades não existiam, mas não por parte de Cuba. A
dependência da exportação de açúcar, desvantagem explorada pelos EUA, faz com que
a procura por novos parceiros comerciais torne-se urgente, e os países socialistas
oferecem uma garantia de mercado e abastecimento dos produtos necessários. A
desestabilização interna e externa encontra aliados no empresariado, tornando acelerada
a política de nacionalizações, o que implica em uma dinâmica de transformações
centrada no Estado. A partir dos anos 1990, Cuba busca uma maior interação com a
economia global, seguindo assim a tendência internacional de abertura dos mercados,
abrindo alguns setores à participação do capital estrangeiro. Essa transformação não
implica em um abandono da coordenação estatal do processo de desenvolvimento, mas
sim a busca de novos mercados e opções de investimento que foram positivas para o
crescimento e a modernidade da economia nacional, além de ter diminuído o isolamento
do país. O objetivo principal deste processo foi a construção de parâmetros de convívio
com outros Estados em que a credibilidade se respaldava no respeito as regras de
intercâmbio estabelecidas em comum acordo (GOTT, 2006).
As posições adotadas por Cuba se deparam com o processo de construção de relações
internacionais pautadas pelo pluralismo, valor este assumido pela maioria dos países.
Esse sistema existente em Cuba é apresentado como exemplo de uma forma superior de
organização em relação ao capitalismo, no qual se pretende a construção de uma
sociedade mais justa e avançada. Porém, no caso de Cuba, a pressão do exterior nunca
cessou, o que dificulta o desenvolvimento de suas potencialidades, pois há um clima de
permanente conflito, que favorece o fortalecimento das tendências autoritárias
existentes, o que permite que muitos pensem que as ações do governo expressam o
arbítrio que caracteriza um regime ditatorial. No entanto, este estado de vigilância
permanente, que se instalou no país após a revolução, não significa que as relações do
governo com a sociedade se pautem por um unilateralismo onipotente e impermeável a
qualquer ação que se afaste do credo oficial, pois é possível se verificar como a lei
fundamental se incorpora às mudanças que acontecem no país, definindo direitos e
atribuições em relação as organizações que expressam a diversidade social. Neste
sentido, a realidade apresentada contrasta com o senso comum das caricaturas de Cuba
como uma espécie de “inferno sartriano” (Gott, 2006) habitado por duas categorias de
seres humanos – os membros do Estado monolítico e uma sociedade que apenas
sobrevive, adormecida e amedrontada, entre quatro paredes de uma prisão flutuante.
Enquanto o intervencionismo permanecer na política externa dos Estados Unidos para
Cuba, abrir mão do regime de partido único pode significaria o fim do sistema político,
social e econômico gerado pela revolução. Como toda revolução, burguesa ou
socialista, a cubana gerou sua própria institucionalidade, que poderá modificar-se de
acordo com os imperativos colocados por processos sociais e políticos impulsionados
por uma dinâmica com origem exclusivamente interna. Todo sistema tem dificuldade
em lidar com o surgimento de fatores de incerteza, sendo que a experiência histórica
mostra que o grau de pluralismo tolerado pelos regimes capitalistas e socialistas é
proporcional ao risco percebido referente à estabilidade dos pontos considerados
fundamentais para continuidade do status quo: a propriedade privada dos meios de
produção ou o monopólio no exercício do poder pelo Partido Comunista. A Revolução
Cubana não deve ser percebida como um modelo fechado de aplicação universal, e sim
como uma experiência que expressa a capacidade das sociedades de inovar em situações
de crise.
A revolução e Fidel estão no centro da atual identidade nacional cubana, mas
respondendo ao padrão da velha tradição épica espanhola. Tal enraizamento explica,
em larga medida, a resistência do sistema político às pressões externas. Há uma
tentativa de imposição de uma identidade socialista cubana, na qual criou-se um
mundo emotivo próprio a partir de valores nacionais identificados com as lutas pela
independência e com a revolução socialista, associadas a uma real e assustadora
ameaça externa. Há uma transposição e superposição de diferentes tempos históricos,
culminando no atual. O denominador comum entre esses tempos é a bravura de
indivíduos e de todo um povo na defesa de sua liberdade. Tais valores são reiterados
no cotidiano dos meios de comunicação de massa, na cultura popular.
Cuba vive pronta para uma invasão americana a qualquer instante. Em cada bairro
existe, pelo menos, um comitê de defesa da revolução (CDR) para mobilizar a
população civil treinada e motivada, a partir dos dez anos de idade. O experiente e
ideológico exército cubano prepara-se para infligir perdas aos invasores que, segundo o
cálculo de Fidel Castro, apresentado em uma de suas repetidas aparições televisivas,
seriam "cem vezes maiores do que no Iraque". Embora seja este um tema que,
evidentemente, causa mal estar e medo, muitos cubanos afirmam que lutarão casa a
casa, em havendo uma invasão estrangeira. O exército e a população cubana treinada
para a guerra situam-se, assim, como uma "força de dissuasão" (force de frappe, na
expressão de De Gaulle, ao justificar a bomba atômica francesa). A ameaça externa
representa fator primeiro na coesão do povo e de sobrevivência do sistema político
cubano. A ameaça militar norte-americana é do que necessitava o enredo da narrativa
épica do nacionalismo cubano para a preservação do regime socialista na ilha. Mas, se
os Estados Unidos não se utilizam de meios militares contra Cuba, têm preferido o
bloqueio econômico para tentar destruir o sistema político do País. Para piorar a
ameaça, os Estados Unidos deixam claro que tais medidas econômicas são tomadas
como atos de guerra.
CAPÍTULO III – ANÁLISE
3.1 Orishas e os relatos sobre a sociedade cubana - Análise da realidade vivida em
Cuba através das músicas
As identidades nacionais não estão impregnadas em nossa essência, porém nós nos
referimos a elas como se elas fizessem parte de nossa natureza. As identidades não estão
presentes em nós desde que nascemos: elas são formadas e transformadas no interior da
representação. A nação não é apenas uma identidade política, mas algo que produz
sentidos, um sistema de representação cultural. As pessoas não se resumem apenas a
cidadãos legais de uma nação, mas sim participantes da idéia de nação tal qual
representada em sua cultura nacional. “Uma nação é uma comunidade simbólica e é isso
que explica seu poder para gerar um sentimento de identidade e lealdade” (SCHWARZ,
B. 1986, p. 106).
Para expressar a realidade de Havana e como vivem alguns dos que nela residem, assim
como faz o grupo Orishas, através de suas canções, o autor Pedro Juan Gutiérrez, utiliza
sua obra mais importante, Trilogia suja de Havana, que é considerado um marco na
literatura latino-americana. Em grande parte autobiográfica, a obra mistura realidade e
ficção para compor um conjunto de histórias sobre o cotidiano de Cuba em plena crise
econômica. Sem medo de se expor, o escritor narra sua vida particular e tudo o que se
passa ao seu redor. Com uma linguagem direta, aborda temas como fome, desencanto,
medo e luta, assim como as canções do Orishas, em relatos que fazem a sociedade
repensar a realidade, relatos estes que podem ser percebidos no trecho da música
Emigrantes:
Eh yo he lo que te digo aquí es bien real. Fácil, solo se trata de vivir, compreder, resisitr, como Ave Fénix en jaula de oro. Revivir, yo, no ha sido fácil, representar en un año las influencias y penurias de este lado del continente colonizao, explotao, marcao, no huella. Triste el hombre que ha dejado atrás su sol, su gente y su camisa, sin pensar tan lejos cambia todo y la nostalgia te hace trizas (Emigrante, 2002).
Sendo sua versão em português:
É o que te digo: aqui é bem real. Fácil, só se trata de viver, compreender, resistir como a Ave Fénix em uma jaula de ouro. Reviver. Não tem sido fácil representar em um ano as influências e penúrias deste lado do continente colonizado, explorado, marcado. Triste é o homem que deixou para trás seu sol, sua gente, sua camisa, sem pensar que a distância tudo muda. Essa nostalgia o faz triste (VERSÃO PRÓPRIA, 2008).
Esse sentimento de se viver em uma sociedade com diversos problemas sociais existe e
é percebido através das letras, porém, resquícios de esperança continuam existindo, e
também são expressados, como feito no trecho da música Silencio:
El hermano de la calle es el problema social, al abismo puede arrastar. Estoy parado frente a la tropa de nuevo y no juego hay que acabar con esto, antes de que corra el fuego. Discriminación racial, problema social total. El tiempo pasa, debemos llegar sin pesimismo viviendo al borde de un abismo y este lirismo que me libera de todas mis penas. Aquel que busca un golpe de suerte espera, la vida es corta, pero llega. Con gente que viven de la esperanza paro en seco y hago eco con la pura verdad y con confianza, violaciones degradables de las convicciones. Mi silencio hace parte de todas esas acciones, confusiones y traiciones (Antidiotico, 2005).
Sendo sua versão em português:
O irmão da rua é o problema social, que o abismo pode arrastar. Estou parado frente a tropa novamente e no jogo, isso te que acabar, antes que ocorra o fogo. Discriminação racial, problema social tota. O tempo passa, devemos chegar sem pessimismo, vivendo à beira do abismo e é este lirismo que me liberta de toda minha penúria. Aquele que busca um golpe de sorte, espera; a vida é curta, mas chega. Com gente que vive com esperança paro, seco, e faço eco com a pura verdade e com confiança, violações desagradáveis das convicções. Meu silêncio faz parte de todas essas ações, confusões e traições (VERSÃO PRÓPRIA, 2008).
O grupo Orishas, além de retratar as mazelas sociais de seu país, trata também daquilo
que há de bom, e do sentimento nacionalista e de fidelidade ao país, presente em cada
um dos integrantes, que pode ser percebido no trecho letra da música 5.3.7 Cuba (A lo
Cubano, 1999):
Si de mí lengua estoy viviendo y calmando mí fiel tristeza, de qué forma quieres tú que yo detenga la sangre de amor y patria que me corre por las venas? Generaciones vieja y nueva de corazón, sangre y pulmón. (...) Allá lejos Donde el sol calienta más, olvidé mí corazón, un arroyo y un palmar. Dejé mí patria querida Hace más de un año ya. Por más que me lo propongo, mí herida no cerrará. (...) Estraño mí tierra querida hablar de ella ni lo intentes. Todo el tiempo está en mi mente, la tengo presente, entiende. Me habla el corazón que no me mienente hermano, flotando ando pasando la mano, mano, sobre el mapa de éste Mundo. Y desde lo profundo de mí corazón siento nostalgia, una estraña sensación como añoranza de ésta distancia que se interpone, que regresaré bién se supone. Y eso me pone el hombre más felíz por un segundo. (...) Me arrancaré el corazón y esperaré mi regreso, para sacarlo otra vez y colocarlo en mí pecho.
E sua versão em português:
Se de minha língua vivendo e acalmando minha fiel tristeza, de que forma queres que eu detenha o sangue do amor à pátria que me corre pelas veias? As gerações velha e nova de coração, sangue e pulmão (...) lá longe, onde o sol esquenta mais esqueci meu coração e um grito e um palmo. Deixei minha pátria querida há mais de um ano. Por mais que me proponhas, minha querida não acabará (...) Sinto falta de minha terra querida, e falar dela eu não tento. Está em minha mente a todo tempo. A tenho presente, entende? Me fala o coração que não mentes irmão, flutuando ando passando sobre o mapa do mundo. E desde o fundo do meu coração, sinto nostalgia, uma estranha sensação como saudade desta distancia que nos interpõe, e que regressarei bem, suponho. Isso me faz o homem mais feliz do mundo por um segundo (...) Me arrancará o coração e esperarei minha volta, para tirá-lo outra vez e colocá-lo em meu peito.
A obra literária de Pedro Juan Gutierrez descreve o serve como referência para
compreender a crise na qual que estava mergulhada a sociedade cubana com o fim da
Guerra Fria e a posterior queda da União Soviética. Em setembro de 1990, a imprensa
sofreu uma intervenção, sendo fechadas revistas e jornais. Das 157 publicações que
havia no país, não restavam mais do que quatro ou cinco. Em 1991, a população
começava a passar fome. Desta forma, com a queda da URSS, a relação de dependência
que Cuba mantinha com este país repercutiu de maneira profunda na sustentação do
socialismo fortemente atrelado ao modelo soviético. Não havia mais com quem contar.
Esse relato pode ser visto no trecho da música Atención (A lo Cubano, 1999):
Opocisiones, estan jugando las acciones que montan como la espuma, pierdes el control. Ya no tienes duda de la situacion, un pie en la calle y otro en la prision. (...) De todas formas, sientes la cosa no estas en la norma. Prenda de oro alante y un jodido alboroto que se forma. Buscaste unos pesos, ya no tienes frenos. (...) Ese es proceso que te atira, bien conoces el final: calle sin salida. Prestas tu vida de por vida. Te puedes ir del aire, mira chico malo, sin que te despidas, pierdes la partida (A lo Cubano, 1999). .
E sua versão em português:
Oposições estão julgando as ações que se montam como espuma, perde-se o controle. Já não tenho dúvida da situação, um pé na rua e outro na prisão. (...) De todas as formas, sente-se que as coisas não estão normais. Presente de ouro radiante e um maldito escândalo que se forma. Para conseguir alguns pesos, já não há mais freios (...) Este é o processo ao qual se atiras, que se conhece o final: rua sem saída. Dá sua vida por outra. Se pode ir ao ar, mira irmão, sem que te despeça, perde a partida (VERSÃO PRÓPRIA, 2008).
Enfim, por trás desta redefinição dos rumos do socialismo cubano está a concepção que
compreende o socialismo numa perspectiva mais ampla e plural, ou seja, onde sua
existência e evolução não estejam concentradas unicamente nos dispositivos do Estado.
Trata-se de compreendê-la enquanto uma experiência vivida e refletida por seres
humanos, que não são apenas massa de manobra de um Estado personificado em uma
liderança carismática, mas sim agentes de seu próprio destino.
Sendo assim, as culturas nacionais, ao produzirem sentidos sobre esta nação em crise,
sentidos estes em que se identificam, constroem identidades. Da mesma forma que o
grupo, objeto de análise desse trabalho, o autor retrata um tempo em que a falta de
trabalho e de alimentos fazia com que os habitantes de Havana procurassem todas as
formas possíveis de sobrevivência. As narrativas do grupo e do autor são semelhantes,
pois descrevem características peculiares de uma sociedade em que mulheres se
prostituem, homens tentam sobreviver a qualquer custo, espertos e estrangeiros se
envolvem em brigas e desencontros. Estes narradores vivenciaram esta realidade, cheia
de antagonismos, conflitos e problemas, em uma sociedade marcada pelo conflito
social. O relato dessa sociedade de fachada é expresso na música El Kiko (El Kiko,
2005):
Promesas que enganchan, yo sí, fui lo que te digo pipo: el dinerito es el gobierno quien lo raba chico. Habla tu habla como si yo te fuera ajeno. Habla tu, habla política cochina vemos, pero porque tu esperas, si el que espera,
desesperas veras. Así que juega por la acera verdadera. (...) El invento es la bala trazante, que utilizan todos los cuenteros, los que dicen verdad no son tantos. Dime cuantos y donde los veo, dime cuanto les costo llegar. Y si son buenos. No es por nada pero no dan ya nervios ni miedo, la mentira puede correr años. Tiene genios eso no lo niego, recordando los tiempos de ataño. Solo puedo quitarme el sombrero, lo que tengo es musicalidad, viene de lejos. No es robado, ni copiado. Es más: es heredado, es otra edad. (...) Te lo advertí más de una vez: que yo no entro en el juego de pendencieros mentirosos y embusteros viejos. Para el que se atreve esta poniendo en juego su pellejo. La mentira no pasa, si no esperas. Desesperas y que ya te paso una vez, son dos si no lo ves El Kiko (El Kiko, 2005).
E sua versão em português:
A invenção é a bala certeira, que utiliza todos os contadores de história. Os que falam a verdade não são muitos. Diz-me quantos são e onde é que os vejo! Diz-me o quanto é que sofreram, e se são honestos. Não é por nada, mas já não dão, nervos nem medo. A mentira pode correr anos, tem genios e isso não o nego. Recordando os tempos assados, apenas posso tirar o chapéu. O que tenho é musicalidade, vem de longe. Não é roubada, nem copiada, mas sim: é herdada, é outra idade! Eu avisei-te mais de uma vez que eu não entro no jogo, de canalhas mentirosos e velhos aldrabões. Para o que se atreva, está a por em jogo a sua pele. Tremendo guanguanco, Rumberito. (pessoa que dança Rumba : estilo musical de Cuba) Avisa ao Velho que o seu tempo já passou, e que agora caminha de lado, aldrabão. Mentira não, tira-o, passa-o, esmaga-o, companheiro! Se te esqueces-te que o El Kilo não tem retorno não, companheiro! (VERSÃO PRÓPRIA, 2008)
As identidades de cada uma das nações, Estados Unidos e Cuba são contraditórias,
porém elas se cruzam mutuamente, pois os problemas sociais encontrados em cada uma
dessas sociedades são similares. As contradições atuam tanto fora da sociedade,
atravessando grupos políticos estabelecidos, quanto dentro da cabeça de cada indivíduo.
Nenhuma identidade singular – por exemplo, de classe social – pode alinhar todas as
diferentes identidades como uma 'identidade mestra', única, abrangente, na qual se
pudesse basear uma política. As pessoas não identificam mais seus interesses sociais
exclusivamente em termos de classe; a classe não pode servir como um dispositivo
discursivo ou uma categoria mobilizadora através da qual todos os variados interesses e
todas as variadas identidades das pessoas possam ser reconciliadas e representadas.
De forma crescente, as paisagens políticas do mundo moderno são fraturadas dessa
forma por identificações rivais e deslocantes – advindas, especialmente, da erosão da
'identidade mestra' da classe e da emergência de novas identidades, pertencentes à base
política definida pelos movimentos sociais. Uma vez que a identidade muda de acordo
com a forma como o sujeito é interpelado ou representado, a identificação não é
automática, mas pode ser ganhada ou perdida. Ela tornou-se politizada. Esse processo é,
às vezes, descrito como constituindo uma mudança de uma política de identidade (de
classe) para uma política de diferença (Canclini, 1999).
Os fluxos culturais entre as nações fazem com que a influência seja possível, pois à
medida que as culturas nacionais tornam-se mais expostas a influências externas, é
difícil manter as barreiras e conservar as identidades culturais ou impedir que elas se
enfraqueçam com essa infiltração cultural, ou seja, é possível que haja identidades
partilhadas entre nações (pessoas) que estão distantes no espaço e no tempo.
Quanto mais a vida social é influenciada pelo mercado global de estilos, lugares,
imagens e sistemas de comunicação globalmente interligados, mais as identidades se
desvinculam de tempo, história e tradições específicas, para então transitarem
livremente. No que diz respeito ao discurso do consumismo global, as diferenças e
distinções culturais, que até então eram fatores que definiam a identidade, ficam
reduzidas a uma espécie de linguagem comum, em termos das quais todas as diferentes
identidades podem ser traduzidas - este fenômeno é chamado de homogeneização
cultural.
Segundo Ortiz (2006), cada vez mais ocorre essa homogeneização entre países, assim
como uma segmentação no interior desses países, que cria universalidades, e estas por
sua vez, explicam como segmentos mundializados partilham as mesmas características.
Segundo este autor, “o mundo é um mercado diferenciado constituído por camadas
afins” (ORTIZ, 2006, p. 171), no qual não se trata de produzir ou vender artefatos para
todos, mas sim promovê-los globalmente entre grupos específicos.
Nesse sentido, cabe refletir acerca das transformações ocorridas a partir da segunda
revolução industrial no século XIX e que originaram o que se denomina agora
sociedade pós-industrial ou pós-moderna: as artes – entendidas em sua totalidade –
foram submetidas às regras do mercado capitalista e à ideologia da indústria cultural,
baseadas na idéia e na prática do consumo de “produtos culturais” fabricados em série.
Nesse sentido, a arte massificou-se para consumo rápido nos meios de comunicação de
massa, transformando-se em propaganda e publicidade, sinal de status social, prestígio
político e controle cultural (CHAUÍ, 1997).
3.2 Orishas como produto da cultura de massa
Os meios de comunicação de massa – rádio, televisão, imprensa, cinema entre outros –
servem como instrumento para a transmissão de mensagens. Esses mecanismos são os
responsáveis pela tendência à homogeneização da vida e da visão de mundo das mais
diversas populações. O ritmo acelerado de produção e consumo é acompanhado da
evolução dos meios de comunicação que se aprimoram na rapidez e alcance. A
indústria cultural é por si só, uma esfera de atividade econômica, que emprega mão-de-
obra especializada, desenvolve novas tecnologias, produz bens e serviços.
Esses meios de comunicação de massa penetram em todas as esferas da sociedade –
social, política, econômica, religiosa – e são responsáveis não só pela transmissão de
informações, mas também difundem maneiras de comportamento e estilos de vida.
Essas mensagens, embora pareçam ser dirigidas a cada indivíduo particularmente,
trazem conteúdos comuns e ajudam a criar necessidades massificadas, assim como
transmitir idéias a respeito dos mais diversos assuntos e esferas.
Cabe pensar a obra do grupo Orishas como um produto cultural a ser consumido tanto
pelos latinos, como pelos estadunidenses, europeus, africanos, australianos, asiáticos:
produto para ser consumido e não necessariamente apreendido em sua totalidade. O
consumo assume lugar primordial como estruturador dos valores e práticas que
regulam relações sociais, que constroem identidades e definem mapas culturais. Sob os
efeitos da massificação da indústria e consumo culturais, o discurso crítico se converte
em alegoria, e a obra passa de expressiva, a reprodutiva e repetitiva e de
experimentação do novo, para tornar-se consagração do que é consagrado pela moda e
pelo consumo.
No entanto, cabe ressaltar que “a cultura na sociedade contemporânea não se reduz ao
conteúdo dos meios de comunicação em massa, nem a lógica do funcionamento da
indústria cultural é necessariamente uma descrição da dimensão cultural da sociedade”
(ROCHA, 1989 p.69). Sob essa perspectiva é possível perceber que nem mesmo a
niveladora indústria cultural está imune às contradições da vida social, mostrando que o
controle das massas não é absoluto, ou seja, a percepção dos consumidores em relação
ao mundo ao seu redor não pode ser totalmente substituída.
Diferença e similaridade se combinam, pois as similaridades tornam as pessoas
humanas, e a diferença faz com tenham um caráter individual. A natureza humana
constitui a base para a unicidade, característica que se vincula às transformações
recentes das sociedades. A aproximação dos hábitos de consumo espelha uma nova
configuração social. Uma grande diversidade de comportamentos e abundância de
pluralismos podem ser percebidas de forma local e regional, mas, em todos os lugares,
uma parcela cada vez maior da população se distancia da sociedade tradicional, de seus
valores, para entrar na modernidade, criadora de novos valores. Esta evolução aproxima
os comportamentos, principalmente no que se refere ao consumo.
Essa tendência caracteriza uma diferenciação da conduta em função de segmentos do
consumo, e não mais segundo sua territorialidade. O impacto das culturas locais é
relativizado, sendo assim, a cartografia do consumo independe das realidades nacionais.
A convergência dos hábitos culturais é uma tendência das sociedades contemporâneas,
que faz com que as desigualdades intranacionais não contradigam o movimento da
convergência dos hábitos de consumo.
CONCLUSÃO
Por meio deste projeto, cujo objetivo foi o de analisar o trabalho de uma banda de rap
originária de Cuba, chamada Orishas, que tem como tema principal relatar os problemas
sociais vividos em Cuba, especialmente na periferia de Havana, foi possível
compreender as interações culturais existentes entre Estados Unidos e Cuba, no que se
refere à influência de um ritmo estadunidense sobre outro cubano. Este intercâmbio
cultural pode ser compreendido por meio de conceitos como identidade, identidade
nacional e, principalmente, identidade híbrida, sendo que as relações entre tais culturas
distintas se dão em tempos de globalização. A principal conseqüência da globalização
sobre essas identidades culturais é a de que as identidades nacionais entram em declínio,
fazendo surgir novas identidades híbridas, características de quase todas as nações
contemporâneas.
Em decorrência desse processo de globalização, surgiu um novo conceito, chamado
globalização do consumo, que afirma e expande particularidades étnicas ou de regiões
culturais. Alguns setores sociais encontram, nesses processos, recursos para resistir à
globalização ou modificá-la, e assim propor as condições de intercâmbio entre as
culturas descritas neste projeto. As identidades de cada uma dessas nações, Estados
Unidos e Cuba, são contraditórias, mas cruzam-se no momento em que os problemas
sociais encontrados em cada uma são similares. As contradições atuam tanto fora da
sociedade, atravessando grupos políticos estabelecidos, quanto dentro da cabeça de cada
indivíduo. Nenhuma identidade singular – por exemplo, atrelada a uma classe social –
pode alinhar todas as diferentes identidades como se em uma 'identidade mestra', única,
abrangente, na qual se pudesse basear uma política. Pode-se perceber que as pessoas
não identificam mais seus interesses sociais exclusivamente em termos de classe; a
classe não pode servir como um dispositivo discursivo ou uma categoria mobilizadora,
através da qual todos os variados interesses e todas as variadas identidades das pessoas
possam ser reconciliadas e representadas.
A questão que norteou este estudo é a de que um estilo musical originado em uma
cultura não somente distinta, mas entendida pelo Estado cubano como um mal a ser
combatido, como dito anteriormente, obteve em Cuba, nos Estados Unidos, na Europa e
em outras regiões uma grande ressonância, pelo fato de denunciar problemas sociais que
não conhecem distinções de fronteiras geográficas, ideológicas ou culturais. Este
trabalho se mostrou relevante por tratar de temas que são atualmente discutidos no
campo das ciências sociais e humanas – mestiçagens, trânsito cultural, hibridações
culturais – e ao buscar compreender tais processos por meio da análise da produção
musical.
Por fim, conforme visto no capítulo 3 cabe pensar a obra do grupo Orishas como um
produto cultural a ser consumido tanto pelos latinos como pelos estadunidenses,
europeus, africanos, australianos ou asiáticos – um produto para ser consumido, e não
necessariamente apreendido em sua totalidade. O consumo assume lugar primordial
como estruturador dos valores e práticas que regulam as relações sociais, que constroem
identidades e definem mapas culturais. Sob os efeitos da massificação da indústria e do
consumo culturais, o discurso crítico se converte em alegoria, e a obra passa de
expressiva a reprodutiva e repetitiva, assim como de experimentação do novo, para
tornar-se consagração do que é consagrado pela moda e pelo consumo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDERSON, Benedit. Imagined Communities. Londres: Verso, 1983. 205p.
AYERBE, Luis Fernando. A Revolução Cubana. São Paulo: Unesp, 2004. 133p.
BARBOSA, Nelma Cristina Silva. Mais definições em trânsito: identidade. Salvador: UFBA, 2005. Disponível em www.cult.ufba.br/maisdefinicoes/IDENTIDADE. Acesso em 23/04/2008.
CANCLINI, Nestór García. Culturas Híbridas. São Paulo: Edusp, 2004. 385p.
CANCLINI, Nestór García. Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais da globalização. Rio de Janeiro: UFRJ, 1999. 164p.
CASTRO, Fidel. La revolución cubana. México: Ediciones Era, 1976. 131p.
CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 1997. 440p.
DRAPER, Theodore. A revolução de Fidel Castro, mitos e realidades. Rio de Janeiro: GRD, 2000. 240p.
ENRIQUÉZ, María Antonieta. Historia de la musica: de la antigüedad hasta el renacimiento. La Habana [Cuba]: Editorial Pueblo y Educación, 1991. 238p.
FAGEN, Richard. The transformation of political culture in Cuba. Stanford, California: Stanford University Press, 1969. 271p.
GIDDENS, Richard. The Consequences of modernity. Cambridge: Polity Press, 1985. 254p.
GOTT, Richard. Cuba: Uma Nova História. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. 425p.
HALL, Stuart. A questão multicultural. In: Da diáspora: identidade e mediações. Belo Horizonte: UFMG, 2003.
HALL, Stuart. A Identidade Cultural na pós-modernidade. São Paulo: DP&A, 2002. 111p.
HARVEY, D. The condition of post-modernity. Oxford: Oxford University Press, 1989. 126p.
HOBSBAWN, Eric. Nações e nacionalismos. São Paulo: Paz e Terra, 1998. 231p.
LACLAU, Ernest. New Reflections on the revolution of our time. Londres: Fontana, 1967. 206p.
LIMA, Wellington Santana. Os desafios de Cuba ante a crise do socialismo. João Pessoa: Idéia, 2001. 136p.
LOCKWOOD, Lee. Castro’s Cuba, Cuba’s Fidel: an American journalist’s inside look at today’s Cuba, in text and picture. New York [Estados Unidos]: The Macmillan Company, c1967. 288p.
MERCER, K. “Welcome to the jungle”.In Rutherford, J. (org). Identity. Londres: Lawrence and Wishart, 1990. 212p.
MARTHE, Marcelo. Malemolência, letras trépidas e camaradagem com o ditador cubano: Assim é o ORISHAS. Brasil: out de 2001. Seção Artes e Espetáculos – Música. Disponível em www.veja.abril.com.br. Acesso em 28/09/2007.
ORISHAS. Biografia e discografia. Disponível em www.orishasthebest.com. Acesso em 30/09/2008.
ORTIZ, Renato. Cultura e mundialização. São Paulo: Brasiliense, 1994. 234p.
ROCHA, Everardo P. Guimarães. O que é etnocentrismo. 11. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. 95p.
ROBINS, K. Tradition and translation: national culture in its global context. Londres: Routeledge, 1991. 321p.
SADER, Emir. Cuba, Chile, Nicarágua: socialismo na América Latina. São Paulo: Atual, c2000. 84p.
SADER, Emir. Cuba: um socialismo em construção. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001. 119p.
SCHWARZ, B. Conservatism, nationalism and imperalism. Londres: Open University Press, 1986. 347p.
STROSS, Brian. The hibrid metaphor: from biology to culture. Estados Unidos: American Folklore Society, 1999. 267p.
ZARUR, Jorge. Antropologia e Economia Política. Seção: Etnicidade e Multiculturalismo. Disponível em www.georgezarur.com.br. Acesso em: 12/05/2008.