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M U N D O D A P E R P L E X I D A D E emanuel dimas de melo pimenta 2 0 0 6

M U N D O D A P E R P L E X I D A D E - Welcome to Emanuel ...emanuelpimenta.net/ebooks/archives/2006 Mundo da Perplexidade PT... · todos os séculos anteriores desde cerca de dez

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M U N D O D A P E R P L E X I D A D E emanuel dimas de melo pimenta2 0 0 6

título: MUNDO DA PERPLEXIDADEautor: Emanuel Dimas de Melo Pimentaano: 2006

Filosofia, estéticaeditor: ASA Art and Technology UK Limited © Emanuel Dimas de Melo Pimenta © ASA Art and Technology

www.asa-art.comwww.emanuelpimenta.net

Todos os direitos reservados. Nenhum texto, fragmento de texto, imagem ou parte desta publicação poderá ser utilizada com objectivos comerciais ou em relação a qualquer uso comercial, mesmo indirectamente, por qualqueis meios, electrónicos ou mecânicos, incluindo fotocópia, qualquer tipo de impressão, gravação ou outra forma de armazenamento de informa-ção, sem autorização prévia por escrito do editor. No caso do uso ser permitido, o nome do auto deverá ser sempre incluído.

também conferência emORIGENS DO FUTURO ITribunal Europeu do AmbienteFundação para as Artes, Ciências e Tecnologias - ObservatórioTrancoso, Portugal, 2006Mundo da PerplexidadeEmanuel Dimas de Melo Pimenta

MUNDO DA PERPLEXIDADEemanuel dimas de melo pimenta

2006

A poderosa desintegração do átomo veio modificar tudo, excepto o nosso modo de pensar, fazendo-nos assim deslizar para uma catástrofe nunca vista. A sobrevivência da

Humanidade exige uma nova maneira de pensar.

Albert Einstein (1955)

Apenasnosúltimoscemanosterãonascidomaispessoasqueasomadetodos os séculos anteriores desde cerca de dez mil anos atrás. A cada ano a população mundial aumenta em cerca de setenta e cinco milhõesdepessoas–equivalendoaquaseumpaíscomoaAlemanha,oumaisdeumaTurquia,acadadozemeses;ouaumaSuíçaacadamês.

A cada dia a população mundial aumenta em mais de duzentas e cinco milpessoas,numritmodemaisdecentoequarentapessoasporminuto.

Noúltimoséculo,apopulaçãomundialquadruplicou, tendoduplicadoapenasnosúltimoscinquentaanos,alcançandocercadeseismilmilhõesdehabitantes.

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Em2003,umrelatóriodasNaçõesUnidasrevelouquecercadeumterçodas pessoas vivendo em cidades, encontrava-se em favelas, em bairros de lata. NocontinenteAfricano,cercade70%dapopulaçãourbanaviveemfavelas.

Quaseatotalidadedaexplosãodemográficaplanetáriaseencontranospaísespobres.

No início do terceiro milénio, mais de cinco biliões de pessoas estãolocalizadasnospaísespobresepoucomaisdeumbiliãonospaísesricos.

Mais de 75% das pessoas pobres, em todo o planeta, vive em áreasurbanas.

Em1950,cercade30%daspessoas,emtodoomundo,vivianascidades.Estenúmerosubiupara50%em2005.

OutrorelatóriodasNaçõesUnidasindicaque,todososdias,nosprimeirosanos do século XXI, cerca de cento e oitenta mil pessoas se mudam do campo para ascidades.Issoimplicaaconstruçãodeinfra-estruturasurbanasequivalentesaduascidadesdasdimensõesdeTóquioacadaano–umanecessidadecujaconcretizaçãotemsidoimpossível.

Esse forte movimento migratório planetário para grandes concentrações urbanas, aliado à emergência de uma superpopulação mundial, gerou as chamadas megacidades: cidades com mais de dez milhões de habitantes.

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Em 1970 haviam onze megacidades em todo o mundo, seis delas localizadasnospaísesricos,ecinconospaísespobres.Noano2000,jáhaviamvinte e cinco megacidades, e em 2015 se prevê que existirão trinta e trêsmegacidadesemtodoomundo–eapenasseisestarãolocalizadasnospaísesricos.Vinteesetedelasestarãonospaísespobres.

Em2005jáexistiamcercadeumbiliãodecomputadoresemaisdeumbiliãodetelefonesmóveissendoconstantementeutilizadosemtodooplaneta.Um computador para cada seis pessoas.... mas a grande parte concentrada nospaísesricos.NosEstadosUnidoshápraticamenteumcomputadoremusoparacadaduaspessoas.NaEuropa,Canada,Hong-Kong,Japão,CoreiadoSuleAustráliahácercadeumcomputadoremusoparacadatrêsaquatropessoas.No leste e sul da Europa, como Portugal, Espanha e Grécia, esse número chega acairparacercadeumcomputadorparacadavintepessoas.NaÍndia,paíscommaisdeumbiliãodehabitantes,jáhácercadeumcomputadorparacadacempessoas,comumcrescimentodeusoestimadoemcercade40%acadadozemeses, nos próximos anos.

NaEuropa,Japão,Austrália,CoreiadoSuleNovaZelândia,onúmerodetelefones móveis chega a ser de um por cada habitante – o dobro dos Estados Unidos.

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Em 2005, na China, com uma população de cerca de um bilião equatrocentosmilhõesdehabitantes,jáhaviamcercadetrezentosecinquentamilhões de pessoas utilizando telefonesmóveis, representando um telefonemóvelparacadaquatropessoas.Menosdedezanosantes,eramapenassetemilhões de pessoas a usar telefones móveis.

Cercadecentoecinquentamilhõesdetelevisoressãocomercializadosacadaano,emtodoomundo–eavidaútildecadaaparelhodetelevisãoéestimadaemcercadedezaquinzeanos.Issosignificaqueemapenasdezanospassemaexistirmaisumbiliãoequinhentosmil aparelhosde televisãoempleno funcionamento no planeta.

Cada aparelho de televisão consome, em média, cerca de cento e oitenta ecincokilowattsporano.Apenasosnovosaparelhosdetelevisãoqueentramnomercadoacadaanorepresentamumconsumoenergéticoadicionalestimadodecercade27.750.000kilowattsacadadozemeses.

Acadaano,oconsumoenergéticoper capita na Ásia, excluindo a China e aÁfrica,édecercade185kilowattsporano.NaAméricaLatinaessevalorédecercade1.400kilowatts/anoporpessoa–númeroquepodechegaraos7.500kilowattsper capitanospaísesricos.

Cerca25%dapopulaçãomundial,algoemtornodeumbiliãoequinhentosmilhões de pessoas, não tem acesso à electricidade.

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Entre 1992 e 2002, em apenas dez anos, e somente nos Estados Unidos, avendadeequipamentoselectrónicosfoimultiplicadaporquatro.

Estima-seque,emtodoomundo,somentenospróximostrêsanos,maisde trezentos milhões de computadores irão se tornar totalmente obsoletos. Todos os anos, cerca de cem milhões de computadores são transformados em lixo.

Estima-se, ainda, que nos próximos tempos, a cada ano, em todo oplaneta, cerca de vinte e cinco milhões de televisores sejam abandonados,transformando-se em lixo.

A cada ano, cerca de sete milhões de toneladas de equipamentoselectrónicos se tornam obsoletos e são abandonados. Uma parte relevante dos componentesusadosnafabricaçãodeequipamentoselectrónicoséaltamentetóxica. Quando se transformam em lixo e não são tratados de forma criteriosa, aqueleselementos,muitasvezesconstituídospormetaisesolventesacabamporcontaminarperigosamentelençóisfreáticos,rios,lagoseaquíferos,afectandodramaticamenteasaúdepública.

No ano de 2004 soube-se que o lixo constituído por equipamentoselectrónicosjárepresentavacercade70%dosmetaispesadose40%dochumboencontrado nos aterros, apenas nos Estados Unidos.

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Todos os dias, a cidade de Nova York produz cerca de doze mil toneladas emlixo,quesãotransportadosacercadetrezentosquilómetrosdedistância,com o uso de seiscentos camiões com capacidade de vinte toneladas cada – o quesignificaumcamiãodevintetoneladasacadadoisminutos,vinteequatrohoras por dia!

Quase a metade das crianças em França nascem contaminadas com mercúrio, uma substância que interfere nas funções cerebrais e no sistemanervoso.Questiona-seseesseterrívelquadrodecontaminação,numpaístãodesenvolvido,estarárelacionadoaotratamentoinadequadodosequipamentoselectrónicos transformados em lixo ao longo de décadas.

Muitosdosgasesquepoluíamoardasnossascidades,estradasecampos,foramgradualmenteeliminadospelousodenovossistemasdefiltragem.Mas,essessistemasapenastornaramaindamenoresaspartículaspoluentes.Assim,em vários casos, a matéria dos gases poluentes foi simplesmente redesenhada aonívelmolecular,tornando-a indetectável,podendoatémesmo,emalgunscasos,atravessarimperceptivelmenteosnossoscorpos.Seremnãodetectáveisnosfazacreditarqueestamosemambientesmenospoluídos.

Noanode2005,aChinaconsumiunassuasconstruçõescercadametadedo cimento produzido em todo o planeta.

A partir de 2005 as universidades Chinesas têm formado cerca dequinhentosmilcientistaseengenheirosacadaano.NosEstadosUnidos,essenúmerocaiparacercadesessentamilcientistaseengenheiros,cercadedezvezes menos, para uma população cinco vezes menor.

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Omercadode trabalho Indianopassouacontar,apartirdaqueleano,comcercadedoismilhõesemeiodejovensdedicadosàgestãodenegócioseaomercadofinanceiro,enquantoqueosEstadosUnidoscontamcommenosdeummilhãoeoitocentosmiljovensdedicadosàquelasactividades.

Cercade70%dosIndianosedosChinesesaindavivememáreasrurais.Mas,essequadrodeverámudarradicalmentenospróximosanos.Em2005aÍndiajápossuíatrintaecincoconcentraçõesurbanascommaisdeummilhãode habitantes. Dentro dos próximos vinte anos, estima-se que apenas naÍndia venham a existirmais de setenta cidades commais de ummilhão dehabitantes.

NaÁsia,em1950,haviamcercadevinteeseiscidadescompopulaçãovariando entre um e cinco milhões de habitantes. Esse número deverá chegar aosduzentosetrintanoanode2015.

Nova Deli e Bombaim possuem cada uma delas, nas suas manchas urbanas, mais de trinta milhões de habitantes. Na China, o número de cidades commaisdeummilhãodehabitantesjáultrapassaquarentaecinco.

AChinapossui cercade22%dapopulaçãoplanetária,mascontacomapenas8%dasreservasmundiaisdeáguadoce.

AproduçãodegrãosnaChinadiminuiuemcercade30%,entreosanosde1997e2005,possivelmentedevidoaorápidodeclíniodassuasreservasdeágua doce.

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A situação das reservas de água doce na Índia foi considerada como extremamente grave pelas análises do BancoMundial divulgadas em 2005.Milhões depequenos equipamentos extractores de água subterrânea foraminstaladoscaoticamenteemtodoopaís,exaurindoosrecursoshídricosparaalém da capacidade de regeneração através das chuvas.

De toda a água do planeta, apenas um centésimo de um por cento é água doce renovada pelos ciclos hidrológicos.

É esse centésimo de um por cento, formado pelos cerca de cento e dez milquilómetroscúbicosdeprecipitaçãodechuvasa cadaano,quesustentaboa parte da vida sobre o planeta. Em todo o planeta, a cada hora, chove em médiaapenascercadedozequilómetroscúbicosporhora.1,6%detodaaáguadoplanetaestácongeladanascapaspolareseglaciares,somente0,36%estálocalizadanosaquíferossubterrâneos.

É esse delicado equilíbrio que tem mantido o planeta como oconhecemos.

NaÍndia,otratamentodeáguasresiduaisatingeapenascercade10%dapopulação.Hápoucosanos,acidadedeSãoPaulo,cujamanchaurbanapossuicerca de vinte e cinco milhões de habitantes, era capaz de tratar somente cerca de20%daságuasresiduais,númeroquefoielevadoaalgoemtornode60%segundo os relatórios mais recentes.

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Em2006,maisdeumbiliãodepessoas,quase20%dapopulaçãomundial,ainda não tem acesso a água limpa. A cada dois segundos morre uma criança com menos de cinco anos de idade devido à ingestão de águas contaminadas. Issoequivaleamileoitocentascriançasporhora,equasedezasseismilhõesdemortes por ano!

Emtodooplaneta,80%dascidadescomarmaispoluídoestãolocalizadasnaChina.Em2004aChinasetornounosegundomaioremissordepartículasdecarbononaatmosfera,depoisdosEstadosUnidos,significandojácercade65%dasemissõesAmericanas.

Se,nospróximospoucosanos,oconsumoper capita de petróleo na China enaÍndiachegara50%doqueéactualmenteconsumidonosEstadosUnidos,a produçãomundial de petróleo deverámais que duplicar para atender àsnecessidadesglobais.Grandepartedosgeólogosacreditaquenãoháreservassuficientesdepetróleoparaatenderaumatalprocura.

Inspirado nas ideias do genial Richard Feynman, Eric Drexler desenvolveu, noiníciodadécadade1980,osprincípiosdeumanovaciência–ananotecnologia.Drexler sonhava em ser astronauta. Diante da impossibilidade de consegui-lo, voltou-se para à nano escala.

Nosúltimosanos, as investigações relacionadas ànanotecnologia têmabsorvidoboapartedosinvestimentosdosEstadosmaisricosdoplaneta.Desde2001, somente a National Nanotechnology Initiative, departamento do Estado Americano,jáinvestiumaisdecincomilmilhõesdedólaresnapesquisasobreesse novo ramo da ciência.

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Apartirde2005,aEuropa,osEstadosUnidoseoJapãotêminvestidocada um, independentemente, cerca de um bilião de dólares nesse tipo deinvestigação. As Nações Unidas consideram oficialmente a nanotecnologiacomouminstrumentodegrandeimportâncianareduçãodapobrezamundial.

Nanotecnologia:montarestruturasdinâmicascomátomos.Espéciesdemecanismosquenãomaispertencemaodomínioanimal,vegetaloumineral.Nempertencemaodomíniodosseresvivosounãovivos.

Como aconteceu com o cinema, com a rádio ou com a televisão, para citar apenas três exemplos, também a nanotecnologia trás em si, na sua origem, os meiosanteriorescomoconteúdo.Porisso,fala-senormalmente–aindaquesoefolclórico–demáquinas,robots,computadoresemesmofábricaselaboradasnumananoescala.Naverdade,ananotecnologiaabreumnovouniverso,queé,simultaneamente,orgânicoeinorgânico,automáticoeinteligente,implicandouma nova lógica.

Estruturas invisíveis e assensoriaisquepodemseautomontarouseautodestruir.

Umnanómetroequivaleadezátomosdehidrogénio,colocadosladoalado,emlinha.Umfiodecabelohumanopossuicercadeoitentamilnanómetrosde espessura.

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Curiosamente,numananoescala,aspartículastêmumamaioráreadesuperfície,emcomparaçãocomanossamacroescala,fazendocomquemuitasvezes sejam mais reactivas quimicamente. Assim, geralmente, numa nanoescalaosmateriaistêmcomportamentosdiferentesdaquelesqueconhecemosem nosso dia a dia.

Emnossaescalahumana,ocarbononaformadegrafite,queutilizamostão vulgarmente no uso dos lápis, é muito maleável, mas numa nano escala ele podesetornarcemvezesmaisduroeseisvezesmaislevequeoaço.

Muitas pessoas não sabem,mas actualmentemuitos produtos já sãofabricadoscomnanotubosdecarbono,talcomoquadrosdebicicletas,raquetesde ténis ou peças para aviões entre outros.

Tanto nos EstadosUnidos comona Índia, laboratórios de investigaçãotêmdesenvolvido estruturas de nano tubos de carbono como objectivodefiltrareremoverpartículaspoluentes,querestejampresentesemlíquidosougases.Outrasnanoestruturas,talcomoosnanocristaismagnéticos,começamaserusadoscomofiltrosparaeliminarapresençadearséniconaágua–casotípicodoBangladesh.

Na década de 1970, águas armazenadas em lençóis subterrâneos emBangladeshcomeçaramaserbombeadasparaousodapopulação,semquesesoubesse,então,queestavamcontaminadas.Semoutrorecursoaáguapotável,apopulaçãosetornouvítimadocasoconsideradoomaisgravedepoluiçãoemtoda a História. Apenas cerca de trinta anos mais tarde uma nova tecnologia

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foidesenvolvidacomoobjectivoderesolveresseproblema,comumcustodemilhões de vidas humanas.

Aalteraçãodeescalanousodemateriaisesubstânciasfazemergirumnovomundodereacçõesfísicas:numananoescalaoalumíniopodeexplodirespontaneamente.

O zinco que conhecemos, utilizado tantas vezes como cobertura depobresedificaçõesemnossamacroescala,éopaco–masnumananoescalaeleétransparente.Eocobre,queutilizamosemcaboseléctricos,torna-setãoelásticoquepodeseresticadoematécinquentavezessemromper.

Partículasdehidroxipatita–cristaisquecompõeosnossosossosequeéumasubstânciaimportanteparaadataçãoarqueológica–têm,quandotomadasnumaescalaatómica,amesmaestruturaquímicadoesmaltedosdentes.Essacondiçãopermitiráaconstruçãodenanoestruturasdestinadasàreconstruçãodo esmalte dos nossos dentes.

Essetipodenanoestruturas tempermitidoa criaçãode váriosnovosmateriais, tal como uma cobertura molecular aderente aos tecidos de algodão que, sem impedir a passagem de ar e as características normais do tecido,realizaumabarreiracontraapenetraçãodelíquidos;ouvidrosqueselimpamautomaticamente,atravésdenanopartículasdedióxidodetitânioqueinteragemcom os raios ultravioletas fazendo descolardasuperfícieoselementosestranhos,comoopóouagordura,queaelatinhamaderido.

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Outronovomaterialéumaespéciedetintasemicondutorapreenchidaporbiliõesdenanocélulaseficazesnacaptaçãodeenergiasolar.Assim,apinturaque cobre a superfície das paredes poderá ser transformada em poderososacumuladores de energia solar, alimentando imediatamente as infra-estruturas dosedifícios.

A borracha utilizada nos pneus dos nossos automóveis poderá,muitobrevemente,sersubstituídaporumelementocujananoestruturapossibilitauma gigantesca redução de desgaste e uma grande melhoria na performance tantoempisosecocomomolhado,reduzindooruídogeradopeloatritocomopavimento.

Com a crescente aplicação de materiais elaborados com nanotecnologia, atendênciamundialseráumadramáticareduçãonoconsumodematériaprimacomo o ferro, o cobre ou mesmo o ouro.

Paísesque sobrevivemgraçasavendado seu solo,do seupatrimónionatural, poderão se encontrar rapidamente fora do mercado, numa situação de profundo isolamento planetário.

Por outro lado, a não diminuição do uso de recursos naturais com o contínuoaumentodeconsumodeprodutosedeenergiaemtodoomundo,rapidamenteconduziráoplanetaaumquadrodeexaustão.

Issotornaaindamaisclaraumavelhaepolémicaquestão–aúnicasaídaparaospaísessujeitosàfomeeàexclusãoéaeducação,acultura,aarteeaciência.

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Nessesentido,todooplanetadeveriasededicaraumimensoeconcertadoesforço,aumprojectoglobal,dedicadoàeducaçãointensiva,àciência,àarteeà cultura, com um programa de várias décadas.

Por outro lado, um intenso processo de alfabetização, que tem sidoo elemento central de todo o programa de educação, com o consequentedesenvolvimento das capacidades de silogismo, directamente relacionadas àsestruturaspredicativas,produziráprofundastransformaçõessociais–umametamorfose planetária sobre como compreendemos e lidamos com o nosso planeta.

Ouseja,acurtoprazo,umtalesforçoplanetário,voltadoparaaeducação,paraasartes,ciênciasetecnologias,conduziriaaumperíododeinstabilidadecomamutaçãodeantigasculturastribaiseacústicas.

Tratamosdeconceitos,bolsõesdesignificados,ideias–essatransformação,aindaquepossaparecer,àumprimeiroedesavisadoolhar,contraditória,éofundamentodoquechamamosdetradição.

Não há tradição sem ruptura. A própria palavra tradição nasce de uma partículaIndoEuropeia,*tr,queindicavaapassagemdeumaooutroladodeum rio, implicando a mudança, a transformação.

Reconhecemosumatradiçãoenquantotalapenasquandotudomudou– tal como apenas conhecemos as coisas em situações limite, situações de metamorfose.

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Nessaondademutações,umnovocampodeinvestigaçãonascecomananotecnologia:abiologiasintética.

Surgemos chamadosbiobots – robots autónomos com o tamanho de vírus, projectados para realizar operações específicas tais como identificarcélulascancerosas.Algunsmedicamentos,especialmenteemrelaçãoaocâncer,jáutilizamcomercialmentebiobots.

No desenvolvimento de novos materiais, proteínas são retiradas decloroplastosdoespinafre–elementoplásticopresentenointeriordascélulasdasplantas,portadordeclorofila–comoobjectivodecriarpoderosascélulasdeacumulaçãodeenergiasolaratravésdafotossíntese.

Novos tipos de bactéria artificial, auto reprodutivas emunidas de umauto controle para auto eliminação segundo a densidade, estão sendo criadas em laboratório, como forma de absorver e processar o excesso de dióxido de carbono na atmosfera.

Surge uma convergência transdisciplinar na investigação da Natureza,conhecida como BANG – bits, átomos, neurónios e genes. Uma nova forma de abordar o conhecimento da matéria através do estudo simultâneo einterdependente das tecnologias de infomação, da nanotecnologia, das neurociências e da biotecnologia – tudo enfeixado numa mesma disciplina, ou transdisciplina,revelandoanovafacedaquiloaquevulgarmentechamamosderealidade.

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Umarealidadequerevelafactossurpreendentes.

Para a fabricação de cada grama de microchip são necessárias oito gramasdecombustívelfóssiledeprodutosquímicos.Ouseja,aproduçãodechips electrónicos, presentes em nossos computadores, televisões, telefones, automóveiseelectrodomésticosutilizaelementosquímicosnumaquantidadeaté oito vezes superior ao seu peso. Sete partes daquilo que é utilizado naconfecçãodessescomponentessetornamautomaticamentesucata.

Tanto a arte como a ciência, pela sua própria natureza, pressupõe nenhuma respostafinal.Sãocamposemconstantetransformaçãoequestionamento.

Quando lidamos com a rádio, com a televisão, com os telefones, estamos tratandodeumformidávelprocessodedesencarnação,nãoapenasenquantoenergia, mas como informação.

A voz no telefone, assim como a imagem e o som no cinema ou na televisão, não possuem corpo. Ao lidarmos com o tempo real, ao comunicarmos com alguém através do telefone, por exemplo, toda a comunicação acontece sem corpo. Mas, o corpo tem sido, ao longo de milhares de anos, o elemento essencial na comunicação.

O primeiro sistema de inteligência que inaugurou de forma radical oprocessodedesencarnaçãofoiaescritafonética.Opapelacelerou,ampliouemodificouessefenómeno.

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ApósGutemberg,a imprensa tratoudedesencarnardefinitivamenteopersonagem, antes pertencente privilegiadamente ao mundo do teatro.

No teatro, o personagemera fundamentalmente a voz.Daí, a palavrapersonagememergirdeumaantigaexpressãoLatinaaplicadaauminstrumentoparao trabalhonopalco,utilizadonomundoEtruscohámaisdedoismil equinhentos anos: uma máscara destinada a amplificar a voz e distinguir opersonagem principal segundo a acção – o personare, para soar, para ouvir.

Em Sânscrito, a palavra vac significa comunicação oral, mas tambémindica uma realidade divina, sagrada, e lança – tal como a nossa palavra voz – a suaraiznoIndoEuropeu*wek,quesignificava,desdeostempospré-históricos,emissão de voz.

Durantemilharesdeanos,avozcunhouoprincípiodeidentidadehumana,e gerou o nacionalismo.

O telefone foi o primeiro processo de desencarnação da voz e foi, ainda, o

primeiro acto do tempo real. Mas a voz ao telefone reduz o número de ouvintes –doquepotencialmenteeramantesváriascentenas,paraapenasumadecadavez,comoaspiraomundoliterário,mecânicoevisual.

A literatura produziu a leitura em silêncio, encarnando em nossos próprios corpososmaisdiferentespersonagens,econduzindodramaticamentetodoomundo a um ponto de fuga – cada um de nós. Essa é a lógica da literatura –quandolê-seemsilêncio,apenasexisteum de cada vez.

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A rádio reverteu sensorialmente, num processo oximórico, o fenómeno criadopelaliteratura–nãomaisosmaisdiferentespersonagensqueacontecemem nosso corpo, mas personagens feitos de vozes desencarnadas. Como, de certaforma,ooutro ladodoespelho.Eénaépocaemqueé inventadoquesurgeLewisCarrollcomasuaobraAtravés do Espelho,em1872–poucosanosdepois, em 1888, Heinrich Rudolph Hertz demonstrava a existência das ondas de rádio.

As descobertas tomadas como espécies de pulsares de inteligência distribuídosnoespaço-tempo;comodandorazãoaHermannMinkowiskieasua fascinante teoria para o espaço-tempo.

Seriaapenasem1906,poucoantesdeMarconi,paraumpequenogrupodecuriososemBoston,queReginaldFessendenrealizariaaprimeiraefectivatransmissãoderádio–utilizando-sedeumfragmentodeumapeçadeHaendel,com o uso de um fonógrafo, e de um solo de violino tocado pelo próprio Fessenden.

Arádioamplificouofenómenodadesencarnaçãodavozatravésdasviassemfio,podendoalcançar imediatamente lugares mais distantes e por vezes inacessíveisaocabo,lançandoaexpansãodavoznumanovageografia–umageografiaefémeraeinstável.

Poressarazão,durantedécadas,arádiofoiconsideradaumaquestãodeEstado,estandoatéhoje,emmuitos lugares,sujeitaaautorizaçõesespeciaisdos governos.

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Oqueanteseradestinadoaalgumascentenas,nodiscursopresencialdeumpolítico,eficarareduzidoaapenasumaúnicapessoacomotelefone,arádio expandiu para milhões de pessoas numa única vez, em tempo real.

A voz que ouve-se na rádio é isenta do corpo – trata-se de uma vozdesencarnada.

Nas primeiras décadas do uso da rádio, o fenómeno da oratória – desde sempre fundamentalparaaactividadepolítica– foi fortementeamplificado,gerandoHitlereosupernacionalismo.Umaformidávelamplificaçãodosentidotribal.

Onacionalismoéprodutodavoz.Éissoqueforjaaideiadenação.Avozdesencarnadaéavozpura,total.Daíacrençanumaevidênciasensorialúnicaetotal – a primazia de uma raça pura.

A voz pura.

Todo o nacionalismo é tribal na sua essência.

A televisão desencarna a imagem e o som.

A televisão é o movimento sem corpo, mas com a sua imagem bidimensional, livre do espaço, do tempo e da matéria.

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O grande sucesso da crença numa invasão de seres extraterrestres, principalmente entre as décadas de 1930 e 1960, deve-se a isso. A concepção geral dos seres extraterrestres é a de seres-imagem, sem música, desencarnados, puraimaginaçãoenquantoimagememacção,nasuamáximasublimação.

Entretanto, a informação na televisão também é caracterizada por outro fenómeno. A percepção da forma depende do rastreamento ocular e, em especial, dos chamados movimentos oculares sacádicos. Varremos o mundo com os nossos olhos em breves rastreamentos involuntários cerca de sete a dez vezes por segundo. Sem esse movimento, a nossa visão simplesmentedesaparece.

Natelevisão,esseprocessoésubstituídopeladistribuiçãoemvarreduradossinaisvisuaisproduzidapelostuboscatódicos,assimcomopelafrequênciadosplasmasedastelasemcristallíquido.

A tela que olhamos torna-se, por essa via, numa verdadeira prótesesensorial, fazendo pelos nossos olhos o trabalho de movimento sacádico.

E os nossos olhos param.

Comos olhos parados, nossos ouvidos ficammais activos e podemosexperimentar a sensação de imersão.

Aquiloqueconhecemoscomoimersão,conteúdotípicodossistemasderealidade virtual, nasce com a televisão.

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A informação conhece, assim, uma nova mudança de natureza.

Opapeleoalfabetofonético–amplificadospelaimprensa–geraramumanatureza de informação em alta definição e baixa resolução. Isto é, escrevemos uma cena e ela torna-se, subitamente, num verdadeiro cenário de acção, mas trata-se de um sistema de baixa resolução–letrasquesimulamsonsesonsquesimulamacção.Doisplanosdedegeneraçãoqueprojectamumsimulacro.

Por isso, tudo na literatura acontece em profundidade – como um mergulhonumuniversoparalelo,atravésdelâminassígnicasinteractivasnumamplopadrãodesimultaneidade.Umuniversodecamposoperandonosentidode um único atractor, um ponto de fuga: o leitor.

Poucaspessoasdão-secontadequealiteraturaéummeioalucinógenopor excelência.

Assim também acontece com a história da música – o aparecimento dassinfonias,eostrabalhosmaiscomplexosdosquartetos,dosconjuntosdecâmara,asfugaseasobrasmaiscomplexasparapianosolo:espéciesdelâminasdeeventosemsimultaneidade,tendoatonalidadecomosistemaqueorganizaos sons em função de uma nota principal, ponto de fuga de um processamento fortemente hierárquico. Tudo girando em torno do mesmo princípio quecaracteriza a literatura.

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Considera-se aqui a cognição como a formação do conhecimento, na estruturação de uma complexa rede de relações sígnicas das mais diversasnaturezas; e percepção a estruturação do meio e dos sistemas sensoriais. Obviamente, ambos estão enfeixados num mesmo complexo de acção, mas a suadivisão,aindaqueartificial,permite-nosestabeleceralgunsinteressantesprincípiosparaacompreensãodamutaçãodaordemdopensamento.

O telefonealteraaquelequadrodedefinição e resolução estabelecido pelaliteratura.Enquantoquearesolução é um dado da percepção, a definição éumelementocognitivo.Naturalmente,umsempremodificandoooutro.

Enquantoqueonossoespectroauditivovaidosdezasseisaosvintemilciclos por segundo, nos ouvidosmais jovens e apurados, com o telefone, oespectrodefrequênciaéreduzidoaalgoemtornodosapenastrêsmilciclosporsegundo. Todo o resto é eliminado, virtualmente recriado pelas nossas mentes e, assim, a sua resoluçãoérelativamentebaixa.

Mesmo antes do surgimento do telefone, os aspectos cognitivos domundoacústico,aquiloquechamamosdedefinição foi sempre baixa.

Ofactorquedesignaabaixa definiçãonomundoacústicoéa relaçãoentre os nossos sistemas de memória de curto e longo prazo.

O nosso sistema de memória de curto prazo transfere apenas informação fragmentada e parcial ao sistema de longo prazo. Assim, sendo diacrónico e efémero, omundo acústico é obrigado a um elevado grau de repetição, deredundância,parasesedimentarenquantomemóriadelongoprazo.

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Assim, para que a informação seja sedimentada enquanto memóriadelongoprazo,énecessárioquehajaumaltograuderecorrênciaparaasuafixação. Enquantoqueomundovisual é suficientementeestável em termostemporais,permitindo longosperíodosde recorrência,ouniversoacústicoéextremamentevolátilnotempo.

Poressavia,associedadesacústicassão,normalmente,cunhadaspeloscompromissosinterpessoais,todosestandopermanentementeemdívida,unscomosoutros. Enquantoquenomundovisual asdívidasentrepessoas sãocanceladasautomaticamente,talcomoacontecenumjogodesomazero,nomundotribalelasnuncadeixamdeexistir.Issofazcomqueouniversoacústicoeoralfrequentementeacuseovisualdeseregoísta,poucosolidário,fechado,frio e ameaçador.

Porisso,tãofrequentemente,associedadestribaiseacústicasprocuramreafirmara todoomomentoos seusvalores,os seuselementos relacionais.Não apenas, também isso faz com que as sociedades orais e tribais sejamacusadas de falta de precisão – um universo onde as pessoas se encontram em permanentedívida,umascomasoutras,nãopode terumdesenhopreciso.Todososvaloressearticulamnumacomplexateiadefortesenvolvimentos.

A precisão é uma questão lógica, um elemento fundamental naestruturação do pensamento.

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Ouniversoacústicoé,portanto,dealta resolução em baixa definição – o contrário da literatura. Por outro lado, provocando uma reversão sensorial, o telefone é caracterizado por uma baixa resolução em baixa definição.

Sendoummeiodebaixa resolução e baixa definição, o telefone nunca poderiaserumveículoparaousodemuitaspessoasaomesmotempo,eacabouporseespecializarnumúnicoindivíduoporvez.Mas,possuindoumanaturezapouco precisa, é também mais resistente, espalhando-se rapidamente como instrumentoeficaznacomunicaçãodepessoaapessoa.

A rádio, ampliando o espectro de frequência sonora e de amplitudegeográfica,aumentouemmuitoadefinição e rapidamente expandiu-se para várias pessoas.

Atelevisão–amplificandoemudandoaexpressãodarádio,constituindoum universo de vários personagens desencarnados – acabou por reverter a funçãosensorialbásicaestabelecidapelopapeleoalfabetofonético:designandouma alta resolução em baixa definição,emalgumsentidosemelhanteaomundoacústico.Istoé,asimagenseosomestãolá,emalta resoluçãorelativamenteàrádioouaotelefone,mas–paraalémdenãoparticiparmosdirectamentenapercepçãodaforma,realizadaaquipelafrequênciadatela–daimagemvistasomente memorizamos alguns pontos por segundo.

Assim,atelevisãotornou-seainformaçãototalultrasuperficial.

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Na televisão tudo caminha pela superfície – tudo é extremamentepresente,masaltamenteimpreciso.Issofezcomqueelaseespalhassemuitomais rapidamente pelas sociedades iletradas. No Brasil, por exemplo, a televisão instalou-serapidamentenasfavelas,enquantoquenaEuropaelalevoudécadaspara se implantar de forma avassaladora.

Por isso, a novelas Brasileiras e Mexicanas se tornaram rapidamente num imensosucessoanívelmundial.

Diferentemente da literatura, onde o ponto de fuga é o leitor em silêncio, cada aparelho de televisão, assim como cada rádio ou telefone, é um centro de percepção e de cognição, ponto de fuga da atenção.

Mas, na rede de computadores não há mais centros.

A fusão de mundos e culturas que a rede de sistemas de hípertelecomunicaçãointeractivaemtempo realgeraimplicatudooqueconhecemos–dodesenhodeinformaçãoatudooqueconsumimos.

Chamamos a esse fenómeno de virtual–termosurgidodoLatimvirtus, quesignificaplenapotencialidade.

Antes,tínhamosadesencarnaçãodavozedocorpo–agora, temosadesencarnação do pensamento.

Voz, imagem, face, escrita, movimento – pensamento desencarnado.

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Enquanto que no universo da literatura tudo é formadopor unidadesdiscretaseprecisas,nomundodigitaldehípertelecomunicaçãointeractivaemtempo real –e,numcerto sentido, tal comoacontecenomundoacústicoetribal – a realidade não pode ser fragmentada.

Tal comoaconteceparaum líder tribal, tambémnouniversodigital, ahistória não mais pode ser cortada aos pedaços.

Tudo é parte de um único sistema.

E tal como acontece no mundo tribal, a nossa memória de longo prazo exigeumgraumaiorderedundância,derepetição–eassimtemosaemergênciado entretenimento.

Tudo torna-se, gradualmente, entretenimento. Automóveis, que antestinham a única função de transporte, transformam-se emgadgets. Cidades, comoParis,Venezaemuitasoutras,transformam-seemgigantescosparquestemáticos.

E assim como apenas a diferença produz a consciência, mergulhamos gradualmente num mundo sem grandes diferenças ou, em outras palavras, um universoqueaspiraàumadiversidadepelasuperfície.

Écuriosoreflectirmossobreofactodequealiteraturaproduziuaaspiraçãoa um universo homogéneo, feito de partículas discretas intercambiáveis,

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masquegerouummundodegrandesassimetrias;eque,ouniversovirtualprojectaoidealdadiversidade,gerandoummundoondemesmoasdiferenças– evidenciadas pelas guerras e pela miséria – são geralmente apenas dados de entretenimento.

Se,antes,omundoliterárioemergiacomoopostoaomundooral,avozem silêncio em oposição à voz falada, através da diferença surgiram fortes identidades.Agora,ouniverso integralda realidadevirtualnãoéoposiçãoàvoz falada, mas à voz escrita, penetrando como imparável elemento subversivo nasraízesdomundotribal.

No mundo tribal todos são iguais nas suas diferenças – mas, há fortes identidades,promovidasprincipalmentepelarepetiçãodeelementosderelaçãosocial,representadospelareligião,pelafamília,peloclã.

No mundo virtual não há mais religião, família ou clã. Tudo édesencorporado, desencarnado.

Aquiteminíciomuitodaviolênciacontemporânea–quenadamaiséquea busca do resgate da identidade.

O mundo tribal absorve rapidamente os recursos digitais e perde a identidade,sempassardefinitivamenteparaumoutromundo,comoaconteciacom a transição do universo acústico para o da literatura. Todos os gruposterroristasqueagememnomedevalorestribais,ofazemcomousodomundovirtual.

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Omundo virtual amplifica alguns aspectos do universo tribal, porquenascedatelevisãoetransitadaculturaliterária,predicativaevisualparaumuniversointegraletrans-sensorial.Mas,ofazpelasuperfícieenumaprofundametamorfose de escala.

Assim,subitamente,omundoacústicotorna-sevirtual,masdesencarna,perdeasrelaçõespessoa-a-pessoaerevela-seenquantosuperfície.

O mundo desencarnado não conhece departamentos.

No mundo virtual, a imagem de um actor pode ser imediatamente substituídapeladeumatleta,deumcientistaoudeumpolítico–tudotorna-seentretenimento, todo o tempo.

O entretenimento é o signo essencial da obsolescência. Quando algo torna-seobsoletonãodesaparece,comogeralmenteacredita-se.Acoisaquetorna-seobsoletaéaquelaquepassaaintegrarotecidocontínuodousolivredacríticaedaconsciência.

Éaquiloquesomossempensar.

O obsoleto é, assim, não o presente, mas o passado.

Comossistemasdehípercomunicaçãointeractivaemtempo real, tudo tende ao entretenimento, tudo tende ao obsoleto.

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Não há mais novidade. Tudo é passado. Tudo torna-se, de alguma forma, déjà vu.

Poressavia,ouniversodossistemasdehípertelecomunicaçãointeractivaem tempo real acaba por ser caracterizado por uma nova lógica: ser e não ser. Umalógicaestranhatantoaossistemasacústicoscomoaosliterários.

Nesse novo universo,mesmo as questões de resolução e definição se tornam subitamente paradoxais.

Tudo pode acontecer.

Arededigital,enquantonovomeio,penetraprofundamenteemtodootecido de acção. Está presente no design,nosfilmes,televisão,livros,jornais,revistas, rádio, roupas, perfumes e mesmo na alimentação. Tudo compondo um forte complexo de inteligência.

AestruturaçãodinâmicadaquiloqueRoyAscottchamoudehípercórtex. Umahíperestruturadepensamentodesenhandoealterandocontinuamentetodas as relações humanas.

Numa família, como numa empresa, num grupo de amigos, numacidade ou numa escola, por exemplo, todo o contraditório passa a estar presente–osucesso,orevés,aética,odesrespeito:paradoxalmentetodasasdiferençasjuntas,massemprecomosuperfície.Assim,tudopassaatervalorequivalente.

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Aprópriafamília,amplificadageograficamentepeloautomóvel,torna-seagoravolátileefémera,existenteenãoexistente.

Mas,hánessanovaestruturalógica,uminesperadofenómeno:aohípersuperficialprojecta-se,emunderground, pontoshíperdensosdeinteligência,queexistem,masquesãocolocadosempermanentederiva.

Basta tomarmos a imagem do mundo – um planeta único e totalmente fragmentado,oespectrodeguerracontínuacomosseushorroresladoaladoafabulosasdescobertascientíficas.

Umpanoramadeguerraquenãopossuitempo.

Umprocessodeglobalizaçãoqueprovoca,simultaneamente,igualdadese desigualdades brutais.

Pessoasignoranteseleitasparacargospúblicos.Cientistaseinvestigadoresno desemprego. Atletas e actores do entretenimento recebendo milhões;professoresefilósofosabandonadospelasociedade.

Sem nos darmos conta de como as coisas se processam, procuramosmuitasvezesumalógicapadrão,literária,paraessasquestões–porqueonossoconteúdo ainda é a literatura.

A explicaçãoéumaquestãopredicativaporexcelência.

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Assim,partimosparaumanovalógica,cujaformaestámaispróximadapoesiaquedaprosa,ecujosignificadoépermanentementeeludidopelasuaprópria estrutura.

Paradoxalmente, trata-se de uma estrutura de pensamento plena de mistério – e, como se mergulhássemos na mais absoluta contradição, é o mistério quegeraaquiloquechamamosdeIluminação, de descoberta. Penetramos num mundocheiodeenigmas,dedescobertas,deparadoxosedecriatividade,detragédias e de perplexidade.

Quando tomamos o meio ambiente, os seres vivos, defendemos a diversidade.Mas,nummundodesuperficialidade,muitosseesquecemdissoquandoconsideramacultura.

Esquecemo-nosdeque,afinal,tudogiraemtornodeduasgrandesforças,asduasleisfundamentaisdatermodinâmica–aagregaçãoeadesagregação.

Em1950,HaroldInnismostrava-noscomoasculturastribaiseacústicassão orientadas para o tempo, através de acumuladores informacionais como a pedra, que é, por excelência, um forte interconector temporal; enquantoqueassociedadesvisuais,articulandomeiosmaisfrágeis,maisprecisosemaisvoláteis, como o papel, são orientadas para o espaço.

Enquanto que a pedra estabelece uma forte conexão informacionalatravésdostempos,sobrevivendoalargosperíodosdeduraçãomascombaixamobilidade física, os meios mais frágeis e mais flexíveis, tal como o papel,espalham-serapidamenteporumagrandeáreageográfica.

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Com os sistemas digitais, há uma presença virtual – potencial – em todo o lado, e a sobrevivência no tempo – dado tudo ser reconstruído a todo omomento–torna-sepotencialmenteinfinita,aindaqueatravésdeumcontínuoprocesso de clonagem.

Clonagem de informação, backups, cópias de memória. Por essa via, expandimo-nos, pela primeira vez, simultaneamente no tempo e no espaço, e passamos a compreendê-los, tempo e espaço, como vectores de um mesmo evento cósmico, como mostrou Minkowiski há um século. Da mesma forma, passamos a compreender os fenómenos históricos antes como explosões atemporais,caminhandonosdoissentidosdotempo.Noespaçoestabelecemoso conceito de ideosfera.

Passamosacompreenderofenómenodasdescobertascientíficascomoespécies de equilíbrios pontuados, verdadeiras dobraduras de campo, no tecido do espaço-tempo.

Esse corte transversal no tecido do espaço-tempo revela outro elemento paradoxal. Dado serem os sistemas digitais formados a partir do número,e mais precisamente, do zero e do um, eles possuem uma natureza de alta precisão. Esse elevado factor de precisão torna tudo mais frágil. Assim, apesar de estabelecermos uma formidável expansão no tempo e no espaço, também sofremos súbitos e radicais cortes dememória, seja através de do bloqueioinesperadodofuncionamentodossistemasdigitais,ouatémesmopeloataquede vírus informáticos, fazendo comque a presença espaço temporal dessessistemassejae,aomesmotempo,nãosejaumfactorfundamental.

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Umanaturezaqueimplicaumanovalógicaque,apesardereveladaaolongo dos tempos pela brilhante intuição de um pensador como Maimonides, pelasagacidadelógicadeCharlesSandersPeirce,oupelanotávelcriatividadematemáticadeStéphaneLupasco,nuncafoieaindanãoéfacilmenteaceite.

A lógica do universo virtual é, simultaneamente, a da agregação e da desagregação,ouseja:daviscosidade.

Assim, os padrões de percepção e de cognição se tornam voláteis e em permanente transformação.

Esse é o novo desenho da realidade. Aos princípios de transformaçãoparadigmática,ondeoparadigmaéoponto de fuga de todo o processo, sucede-seumprocessodemutaçãosintagmática.Éo todoemmetamorfose,comaflutuaçãodediversosparadigmasactuandoemrede.

Isso gera a sensação de um mundo onde tudo pode acontecer, a todo o momento.

Contrariamenteaoqueaconteciacomosuniversosacústicosevisuais,comovirtualospadrõescíclicossãoaperiódicos, não lineares, em termos de espaço e tempo. Tudo pode ser coerente e incoerente num dado momento.

Aquiloque conhecemos comoLei, assim comoaprópria ideologia, osestilosnaarte,tudoissopressupõeumacoerênciasistémica–algoestranhoàrealidade virtual.

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TodaaLeisefundamenta,convencionalmente,numcorpusespecíficodeethos.

A célebre defesa de Pascal – lex dubia non obligat – aplica-se agora como umfenómenouniversal.SenoséculoXVIIIeladesignavaaaspiraçãoàcoerência,agoraelaindicaumestadodarealidade.Éoqueacontecetantasvezes,quandoatémesmoleissãocriadasoualteradascomoobjectivodeacobertarcrimes,deaumentarimpostos,deeliminardireitosoudeveres,mudandoasregrasdojogoatodoomomento.Issoacontecepraticamentetodososdias,publicamente,àluzdodia,semquehajamprotestosoucontestações.

Arealidadedomundovirtualéofluxodacontínuamudança.

Entretanto, aparentemente como um novo paradoxo, aspira-se a um ethosplanetário,atravésdaconsagraçãodeumaéticauniversal,semprepelasuperfície. Uma ética universal implicaria uma homogeneização global, algoimpossívelparaummundoconstituídoporredesderedesdeinformaçãoemhípertelecomunicaçãointeractivaemtempo real.

Na era dos aviões e da televisão, as cidades se tornaram no subúrbio umasdasoutra.Éotipodetransportequeprojectaaideiadaprovínciaedacorte.

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Provínciaecortesimplesmentenãoexistementrelugaresisolados,comotambémnãoexistemquandotudoéapenasumaúnicacoisa.Entretanto,paraomundo virtual, tudo é uma única coisa e, ao mesmo tempo, tudo é fragmentado. Asideiasdeprovínciaedecorte,transformam-seemtipologias,oumodeloscomportamentaisosmaisvariados,competindoentresi,nacontínuasuperaçãodetodootipodemoda.

Tudo ditado pelas leis do consumo.

No universo virtual não há mais centros, nem mesmo graves factores de importância.Todospodemsertudo,atodoomomento:potencialidadetotal.

Os chamados Primeiro e Segundo Mundos se fundem gradualmentenum grande primeiro mundo, enquantoqueos Terceiros eQuartosMundosse fundem, também eles, mas para formar um imenso quarto mundo – não maisisoladosgeograficamente,masdentrodeummesmobairro,emtodasascidades. E o planeta caminha para uma imensa concentração urbana.

Nesse mundo complexo, profundamente desencarnado, forjado porrelaçõesefémerasevoláteis,porumadinâmicaestruturaderelaçõesvirtuais,tudo tende ao imaterial. Assim, gradualmente, os bens dão lugar aos serviços.

Liderançaspolíticassemideologia,semnação,formalizadaspornúmeros– essa é a natureza primeira do universo digital – das pesquisas de opiniãopública, às análises demercado, às previsões económicas, que tendema seassemelhar às previsões meteorológicas, e sociedades urbanas empobrecidas, mas munida de um rico consumo de entretenimento.

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Países transformados em grandes superfícies de consumo eentretenimento,comaparadoxalemergênciadepontosdescontínuosdezonasde alto repertório e alta competência.

Duas figuras emergem com especial destaque, desse novo universo:a incompetência e a irresponsabilidade. Um pouco por todo o lado o mundo parece se tornar povoado por incompetentes e irresponsáveis – salvo raras e notáveis excepções.

A palavra competênciasurgedaraizIndoEuropeia*pet–quesignificavaaenergia criativa, o se lançar adiante, o impulso para fazer coisas, para criar novas coisas,paramudar.Aquelapartículatambémgerouanossapalavra ímpeto e também pena, das penas dos pássaros, indicando o acto de voar – e, ainda, as palavras perpétuo, apetite e repetição. Todas elas apontando, de alguma forma, paraaquelamisteriosa ideiade impulso.NoséculoXIII,associadaàpartículaLatinacom–revelandonãosomenteanoçãodecontiguidade,mastambémdeconjunto–geraotermoLatinocompetent,quetinhaosignificadodeconvir, de agradar, de reconciliar.Umconjuntodeimpulsos criativos,queeratidocomoalgopositivo,benéfico.Mais tarde,apenasnoséculoXV,àmesmaépocadarevolucionária invenção de Gutenberg, surgiria a ideia de competência, como umconjuntodeimpulsosadiante,umconjuntodeímpetos,deenergiacriativacom um ponto de fuga;capacidadedeinovação,deelaboração,comumclaroobjectivo.

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Competiçãonãoéomesmoqueconcorrência. Enquantoqueaúltimasignificacorrer junto,competiçãoindicaosentidodeumconjuntodeimpulsosnumaacçãodetransformação,demudançacomumobjectivopreciso.

Quando acusamos estar o nosso mundo pleno de incompetência, ainda que tenhamosemmente, imediatamente,a faltadecapacidade, revelamos,mesmosemperceber,queoaquiloquerealmenteaconteceéagradualausênciado impulso para a mudança.

Esse é um dos signos primeiros de um mundo caracterizado pela superficialidadeepeloentretenimento.

A palavra responsabilidade tem outra origem. Ela nasce do Indo Europeu *spend,queindicavaoactodefazer uma libação, realizar um ritual de carácter religioso.Daísurgiuanossapalavraesposo – como uma relação consagrada por umactoreligioso;oumesmoapalavraresposta,doLatimsponsus e spondere, indicando uma espécie de retorno, de devolução face a um acto sagrado.

O termo responsabilidadesurgiriasomentenoséculoXII,comoiníciodaproduçãodepapelnaEuropa,significandooriginariamenteumcompromissocomumactoreligioso.SomentenoséculoXVIIIéqueteremosaemergênciadapalavra irresponsável–numaépocaemquejáéramossuficientementevisuaise literários para estabelecer uma designação especializada para aquele que não cumpre com as suas obrigações.

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Um mundo de entretenimento é um universo de estereótipos. Oestereótipo é o anti-sagrado. O estereótipo caracteriza-se pela repetição defórmulas, de percursos standard na informação, percursos sem descoberta. Por outro lado, a ideia de sagrado implica a descoberta, a Iluminação.

Por essa via, mergulhamos num universo de irresponsáveis e de incompetentes – sem estabelecer, todavia, julgamentos de valor. Trata-se,simplesmente, de uma nova realidade, sem ser, obrigatoriamente melhor ou pior.

Umarealidadeemquetudoestáeminstabilidadetotal.

Livresdequalquercentro,tornamo-noslivresdopesodoerroexacto,daculpaabsoluta,poisosistematorna-seimprevisível,instável,indecidível – para usarumcaroconceitoàmatemática.Sóháerroabsoluto,culpaabsoluta,numquadrodeprevisibilidadeabsoluta.

Aocontráriodoerótico,apornografiaeoobscenonascemcomaliteratura,comocondiçãodefragmentaçãoeespecialização–figuradestacadadofundo.Mas,nouniversovirtualissonãoémaispossível.

A palavra pornografiasignificaliteralmenteescrita acerca da prostituição e surgiu somente, como termo culto, no século XVIII. A palavra obsceno, por sua vez, surge pouco antes, no século XVI, significando etimologicamentemau presságioe indicando,nasuaorigem,umaofensaaoscostumesquesetornavam, apenas então, padrão.

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Comomundovirtual,apornografiaeoobscenogradualmentedeixamdeterolugardedestaqueedetabuqueantespossuíam.

O que passa a existir são os ambientes cada vez mais eróticos,incorporando gradualmente aquilo que antes era obsceno e pornográfico,atravésdapublicidade,docinema,umpoucoemtodoo lugar–semquesedestaquem julgamentos de valor. As nossas casas se tornam, assim, naquiloqueantesestavarestritoàsimagenspublicadasemrevistasespecializadas,emlivros proibidos.

Mesmo os filmes pornográficos, que antes eram dificilmentecomercializados num mercado negro exclusivo, proscrito, vendem-se hojefacilmente,umpoucoportodoolado,incorporadosdefinitivamentenomercadolivre.

Osexo–queéalgovitaleprimário–passaapertenceraosmercadosebolsasdevaloresdetodoomundo,commilharesdeprodutosdetodootipoalicerçadosdirectaou indirectamenteemimagense ideiasqueantesseriamproibidas.Mas,aprostituição–quenãooperaaculturademassa–continua,nagrandemaioriadospaíses,umaactividadeilegal.

Com a emergência do universo virtual, tudo o que já era anunciadopelos jornais, pelas revistas, pelo telefone, pelo cinema, pela rádio e pelatelevisão, torna-se, directa ou indirectamente, pela primeira vez na História da Humanidade, tempo real.

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Assim,tambémosfenómenosqueconhecemoscomotempo e espaço se transformam.

Temos, pela primeira vez, o tempo real expandindo-se numa escala planetária – e não mais sendo um fenómeno individual, como acontecia com o telefone.Nãomaisotempocíclicoformadoporespéciesdelâminasparalelas,tãocaracterísticonassociedadesmedievais.Nãomaisarígidanoçãodetempodiacrónico estabelecida pela imprensa de Gutenberg, pela literatura, pela culturamecânica.

O passado deixa de ser algo remoto.

Aquilo que fizera do passado algo remoto era a condição da nossamemória.Comopassardotempo,asimagensesonsquetínhamosvividosedesintegravamgradual e inevitavelmente. Esse fenómenoprojectou ohic et nunc, o aqui e agora. Com ele, também a noção da aura na obra de arte única.

Agora,nãomaissetratadareprodutibilidadetécnicaamplificadaàumaescala planetária, mas também o tempo real e uma nova condição da memória – um novo teatro da memória.

Com um mundo de pensamento desencarnado, a aura da obra de arte desmaterializa-seetransforma-senaprópriaideia.Poressavia,aaura–queantes estava asseguradapelo suportematerial único –muta-senoprincípiodadescoberta.Aartenãomaistemvalorsecomelanãoexistirumconjuntoimaterial de ideias, referências em rede, momentos de descoberta.

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Nesse processo, o passado torna-se presente. Um universo povoado por fantasmas e fantasias.

A palavra fantasma nasce do Grego phainein,quesignificatornar visível e quetambémgerouostermosfenómeno e fantasia.Tornamosvisívelumimensagaláxia de informações do passado.

Deixamos de contar o passado como algo remoto. Contamos com fotografias,filmes,imagensemaltaresolução,textos,sons,tudoconferindoaltadefiniçãoaopassado–àquiloqueantestínhamoscomodistanteenostálgico.

Cícero,Sócrates,Bashô,ImhotepeLeonardodaVincientretantosoutros,estão todos presentes, aqui e agora.

AssumimosnãoapenasopassadoSumério,Nipónico,IndianoouAstecaenquantonossaherançaculturalcomum,comotomamostudonummúltiplocomplexonãolineardeespaçotempo.Nãomaisotempopresente,nosentidodeaspirarasuaseparaçãoradicalcomumpassadoremoto.Tudoconfluiemnossa memória, como um turbilhão em viscosidade.

Porisso,também,nãopodemosmaisfalardemudançasparadigmáticas,masdemetamorfosessintagmáticas.

PodemosviajaràGréciaAntigasemsairdecasa.

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Essanotávelconstruçãodinâmicanãolineardeespaçotempotemaindaimplicações físicas directas. Somos formados cognitiva e fisiologicamente, atodoomomento,pelotransportedetodootipodecoisasatravésdoplaneta–oqueRenéBergertãosabiamentechamoudeteleantropos.

Assim,redesenhamosageografiadasculturas,asestaçõesclimáticas,oconhecimentoeoscomplexosgenéticosatravésdeumgigantescoprocessodetransporte de alimentos, de sangue, de pedaços humanos para implantes, de obrasdearte,deartefactosdetodootipo–materiaiseimateriais.

Aquiloque,paraouniversodaliteratura,erafigurasemfundo,torna-seagorafundosemfigura.Umpanoramacomplexoqueimplicacadafiguraser,antes,umanovaespéciedefundo,sobreoqualdiversasfiguraseoutrosfundoscompetem.

O princípio literário da democracia aspirava atender aos desejos deuma maioria – ainda que idealmente preservadas as minorias – pelas viasde um sistemahierárquico de comando, através da departamentalização depoderes independentes. Mas, agora, não trata-se mais de uma única maioria – sãomaioriasdistribuídaspor todooplaneta, cujosdestinos seencontramfortemente interligados.

No mundo da literatura, a figura pública – resgatada da imagem dopríncipe–eraumpersonagem:possuíaumavoz,eatravésdelaumconjuntopreciso de ideias. No mundo virtual os personagens se transformam numa espéciedeespectrodesintoniaemtransiçãocontínua,talcomoactoresteatrais

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efémeros improvisando num complexo em permanente mutação. Também por isso,asideiasdefendidaspormuitospolíticossetornaramigualmentevagasevoláteis.

Nouniversodaliteratura,oensinopropagava-seatravésdeconjuntosdeinformação em alta precisão – nada deixado ao acaso. No mundo virtual, o ensino fazconstantementeusodealgoaquepoderíamoschamardeconhecimentopermanentemente incompleto, de forma a ser semprepreenchidopelo queensina e pelo que aprende – ambos pertencendo ao mesmo universo deaprendizado.

Quandolidamoscomasquestõesenvolvendoaemergênciadouniversovirtual,ouosuniversostribaiseliterários,tratamosdeconflitosdeestruturasde pensamento e não de conteúdos.

Os conteúdos surgemapenas como referências degeneradasdaquelesprocessos lógicos.

Seatelevisãoproduziuaaldeiaglobal,eliminandooespaçoeotempoentreeventos–alterandoageografiaeodesenhodomundo–ouniversovirtualdossistemasdetelecomunicaçãointeractivaemtempo real e a realidade do teleantropos produziram uma metamorfose ainda mais radical, lançando o ser humanoaoimagináriodoentretenimentocontínuo.

Tudo como imaginação, todo o tempo.

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Marshall McLuhan já anunciava, em 1969, o facto de tornarmo-nos,gradualmente,caçadores.Aquelequeeraumcolectordeinformaçãonomundoda literatura e um receptor passivo no mundo tribal, transforma-se agora num caçadorcujaspresassãovariadaseestãosempreemacção,emmovimento.

Essa é natureza de muito da música pop, do rap, dos djs – combinando coisasquejáantesexistiam,numrápidoprocessodeimprovisaçãosobretudoo que já se conhecem, num intenso exercício debricolagem – sempre pela superfície–fazendousodetudoaquiloqueapresenta-secomoumaespéciedeemanaçãodarealidadematerialeque,noturbilhãodamultiplicidadedeprodução de gadgets, muda a todo o momento.

Nummundodeeventosdinâmicos,clonadoserecicladosatodooinstante,defundosemfigura,ondetudoéplenainstabilidadedeacontecimentos,oserhumano torna-se caçador, mas de uma outra natureza.

Governos, terroristas, empresas, actores, investigadores, políticos,artistas,todospassamacaçar.

Mas,senapré-históriatratava-sedecaçaralgoquedestacava-sedeumcontexto; na pós-história passamos a caçarmomentos do próprio contexto,incorporando-o, e é esta a natureza primeira daquilo a que chamamos deaudiência.

O fenómeno público surgiunasequênciada imprensadetiposmóveisde Gutenberg. A sua estrutura lógica é clara – um emissor e vários receptores,

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umlivroeosseusváriosleitores.Estaéaestruturafundamentaldaperspectivaplana com o seu único ponto de fuga.

Tratava-se de um fenómeno pontual – um único livro alcançando milhões deleitores.EssaéalógicadoPríncipe.

Mas,aquiloquechamamosaudiêncianãoémaisalgoestáticovoltadopara uma obra de arte, uma peça de entretenimento, um único livro e nem mesmo a um único personagem. Nem uma única obra ou ideia para milhões de pessoas. Por isso surgiu o zapping.Trata-sedeumcontínuodeatenção.E,comoaquantidadealteraaqualidade,essecontínuodeatençãotorna-sesuperficial–eestaéalógicaquenascecomatelevisão,comarádioecomotelefoneequeéincorporadapelouniversovirtual.

A palavra públicosurgedoLatimpopulus,étimoquetambémfeznasceras palavras publicação e publicidade. Por outro lado, a palavra audiência vem de audição, de ouvir,domundoacústico.Écuriosopercebercomoomundovirtual,eantesdeleoelectrónico,resgataramdouniversoacústicoetribalapalavra audiência.

Pois a nova audiênciaéumareferênciacontínua,turbulenta,inesperada,surpreendente, sem voz – implicando uma permanente caça. Tom Jobim costumavadizerquenoBrasilnão basta matar um leão, tem de se matar um leão a cada dia. Essa é a imagem do universo virtual. Não basta alguém fazer algo importante num determinado momento, mas se espalhar em todos os momentos.

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Alguémpodeserumgrandecompositor,artista,cientista,filósofoouumexcelenteescritor–mas, seficaralgumtemposemseapresentar,elepassaimediatamente ao redundante contínuo do tecido cultural, mesmo estandovivo.Éaobsolescênciaperene,contínua.

Assim, nesse universo em permanente transformação, tudo torna-se conspiração. A palavra conspiraçãonascedoLatimspirare,quesignificaespirar, exalar, emanar, soprar.Daí,ainda,apalavraespírito.

Da união da palavra spirarecomapartículaLatinacom–queindicaaideiadeconjunto–temosaconspiração.Trata-sedeumconjuntodeemanações,deideias,numsentidocomum,coerentes.Buscamossempreumacoerênciaparacompreenderumtodo–mesmoquandotalcoerêncianãofaçapartedomundoquenosdeixaperplexos.Essaaspiraçãoaconteceemtodasasdirecções–poismesmoaquelequeactua,ofazcompreendendoomundoaquepertence.

Duaspalavrasseassociam,deformaquasesecretaesurpreendente,aessedesenhodesignificados:ambiente e cultura.

Etimologicamente, as palavras ambiente, em várias línguas latinas, eenvironmenttantonoInglêscomonoFrancês,trazememsiosentidodosopro em torno de algo, como circundar, cercar–muitosemelhantesentidodapalavracultura.

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A palavra ambiente temassuasorigensetimológicasnoGregoamphi, quesignificaem torno de,equefoiresgatadonoIndoEuropeu*ant,quequeriadizer sopro. Environment,porsuavez,significa,literalmente,girar em torno de algo ou cercar.

A palavra culturasurgiudoIndoEuropeu*kwolquesignificavaasideiasde caminhar em torno de algo, de cercar uma presa, como uma caçada em acção.Daí,ainda,apalavracírculo.

Assim,tomadanoseusentidomaisabrangente,acultura revela a sua natureza ambiental.

A palavra cultura,comoareferimoshojeemgeral,comocoisadoespírito,doconhecimento,apenascomeçaaserutilizadaapartirdoséculoXVI,apartirda imprensa de Gutenberg. E a palavra ambiente começaria a ser utilizadasomentenoséculoXIX,enquantoqueenvironment, embora tendo conhecido o seu nascimento no século XVII, era extremamente rara até ao século XIX.

A palavra conspirar já existiano século XIV,mas como significadodeacordo, pacto, não obrigatoriamente no sentidonegativo. Seria somente noséculo XV, concomitante com o surgimento da imprensa de Gutenberg queemergiria a expressão conspirador, tal como normalmente utilizamos aindahoje.

Como um novo meio traz em si, como conteúdo, o meio anterior, todos esses conceitos e ideias passaram ao mundo virtual como conteúdo, como referências degeneradas.

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Tudo passou a girar em torno das conspirações, do ambiente e da cultura –tudoenquantoentretenimento.

Nãopodemosnosesquecerdequeaculturaétudoaquiloquecompõeaordemsocial–desdetodootipodelinguagem,aodesenhodasnossasmesas,cadeiras, às leis e às regras de conduta, de comportamento.

Omundosetornoupolítico,nosentidodeumacontínuaconspiração – sejaelarealmenteexistente,oufrutodaanálise,frutodecomocompreendemosos acontecimentos.

E, naturalmente, conspiraçãoimplicaasideiasdesegurança,devigilânciaedecontrole.Nestemundoempermanenteconspiração,aconfiança,otrust, praticamentedeixadeserumvalorglobal.Eaí,anão informação simplesmente nãofazmaissentido.Aconfiançanadamaiséqueacreditaremalgoquenãoseconhece,masquefazpartedeumapromessa,deumacordo,umfuturo.

Um dos aspectos do silêncio do John Cage é exactamente isso – a críticaaumasociedadeparaaqualtudodeveser,deumaoudeoutraforma,permanentemente conhecido, vigiado e controlado. Uma sociedade onde, com relativafacilidade,gradualmente,aspessoasvãoabrindomãodaprivacidadeem nome da segurança.

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A palavra segurançaemergedoLatimsecurus,queterásurgidoapenasnoséculoXIII–umséculodegrandesmudanças.Umséculoquetestemunhoua incorporação dos numerais arábicos e com eles o conceito do zero, do uso sistemáticodocarvãocomofontedeenergia,dapavimentaçãodasestradas,daemergênciadosóculos,doaparecimentodapólvora,doiníciodaexpansãomassivadousodeespelhos,dosurgimentodosprimeirosrelógiosmecânicos,da fundação das Universidades de Cambridge, de Coimbra, de Pádua, do forte desenvolvimento e expansão da cabala, um mundo dos trovadores – cantores popularesqueseespalhavamportodaaEuropa,Fibonacci,dascruzadas,deSãoFranciscodeAssis,doaparecimento,naDinamarca,daprimeirabandeiraEuropeia,deTomásdeAquino,deGengisKhan,daInquisição,deCimabue,deRoger Bacon, da instalação das primeiras grandes fábricas de papel na Europa, deMarcoPolo,deGiotto,daformaçãodosCantõesSuíços,deDanteAlighieri,e da Catedral de Florença entre tantos outros acontecimentos e personagens notáveis.

HenryDavidThoreaudiziaquetoda a mudança é um milagre para ser contemplado; mas é um milagre que acontece a todo o instante.

Isso,porquemudançaéanaturezaprimeiradavida–princípioquenosensina a mudar num universo em permanente metamorfose.

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Referências

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