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Magnetismo TerrestreRegina Gouveia

2005

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Magnetismo Terrestre Género: PoesiaAutor: Regina GouveiaFotografia: Fernando GouveiaDirecção gráfica: fábrica mutanteCapa: fábrica mutante

Calendário de letrasmorada ???contactos ???

Impressão e acabamento: Papelmunde1ª edição: ????? de 2005 ISBN:Depósito legal:

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Tudo me prende à terra onde me dei:O rio subitamente adolescente, a luz tropeçando nas esquinas, as areias onde ardi impaciente….Dizem que há outros céus e outras luase outros olhos densos de alegriamas eu sou destas casas, destas ruas,deste amor a escorrer melancolia

Eugénio de Andrade, “Canção Breve”

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Prefácio

A beleza das coisas só pode ser fruída por um espíritosensível e o artista, ao exprimir na obra a estesia quealguma vez experimentou, inescapavelmente deixa nelaas marcas da sua idiossincrasia e das suas vivências. Otítulo desta colectânea de poemas repassados desaudades de um tempo e de um lugar (que afinal é umuniverso) é a transposição alegórica de uma temáticacientífica da área da Física, o que não surpreendeporque a autora, docente de Física e Química pode, coma maior naturalidade, emoldurar o seu estro emreferentes científicos ainda que metafóricos, como é ocaso presente e foi também o caso das obras anterioresReflexões e Interferências e Poeira Cósmica.A vertente poética que a autora manifesta e cultiva commestria mostra, por um lado, que a formação científica ea actividade profissional, ainda que empenhada (como éo caso) não satisfazem cabalmente os anseios de umaalma sensível que busca a completude. Por isso, que aprática da arte seja um complemento cabonde do frioracionalismo que enforma e estrutura a ciência. A autorareconhece-o quando diz “É difícil de explicar pois não háexplicação que assente só na razão“ (poema Sensações,nesta obra). Os poetas são seres sensíveis que,consonantes com a Natureza, vêm e exprimem o que arazão não alcança. A mente do artista pode atribuir àscoisas características que a pessoa dita normal nãovislumbra.”A paisagem é um estado de alma“, FernandoPessoa dixit.Os vinte e sete poemas que a autora nos oferece estãoimpregnados da recordação saudosa das coisas e dosseres dos lugares onde decorreu a sua meninice,infância e adolescência (o Universo da autora)

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recordação que se aviva a cada visita ao seu rincão sitono Nordeste Transmontano. O que está plasmado nosversos que nos deixa é a transfiguração pelo poeta que aautora é, do sentimento induzido por esse pequeno /grande mundo para ela de tão gratas memórias.A formação científica da autora transparece, como emAntónio Gedeão, na obra poética. Assim, às vezes, notasde cariz científico surgem integrados no discurso poéticosem quebras de ritmo nem significância, antes pelocontrário, como é, por exemplo o caso do final do poemaIlusão “ No ocaso, o sol vermelho já se esconde, porém,já lá não está, é ilusão. Ainda o vemos devido àrefracção.” Outras vezes (poema Big Bang) noçõescientíficas como a do Big Bang, ligado à expansão doUniverso são contrapostas à vivência da autora, cujoUniverso, clama, se contrai no tempo.Dos vinte e sete poemas cinco não são inéditos,respigados que foram do primeiro livro publicado pelaautora - Reflexões e Interferências. Foram aqui incluídospor se referirem à temática nordestina, foco polarizadorda inspiração dos poemas agora dados à estampa.Muitos dos poemas destilam nostalgia de um tempo quepassou mas que deixou marcas indeléveis, agoratransfiguradas em poesia induzida pela revivência dessepassado. No poema que tem expressamente essadesignação - Nostalgia - é dada conta dodesaparecimento de práticas ancestrais ligadas àeconomia de subsistência das populações nordestinas(cultura da oliveira e da amendoeira, emblema da regiãoagora substituído pela cerejeira, também objecto de umpoema). Curiosa a terminologia ligada a essas práticascomo alpechim e infernos.

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Sem curar de fazer uma recensão completa da obra, noconjunto de grande nível e valor artístico – tarefa quecompetirá a quem for da arte da crítica literária - apraz-me salientar dois exemplos paradigmáticos: No poemaSensações a autora poetiza “o cheiro da sua casa daaldeia”, o que recorda Régio quando refere em uma dassuas obras “ os bons e maus cheiros” de uma velhacasa. No poema Entropia a degradação da matéria viva(medronhos apodrecendo no chão) é usada comoilustração do 2º Princípio da Termodinâmica.Já outros autores com formação científica de basepoetaram glosando, por exemplo, temas de Física (NielsBohr) e / ou de Química (António Gedeão / Rómulo deCarvalho). Mas no caso da presente autora a poesia,ainda que insira aspectos da sua cultura científicaencadeados no discurso poético, o lirismo dos temas e aforma como são tratados denunciam uma sensibilidadeque só pode ser feminina.A presente obra, pela diversidade dos tópicos quepercorre, todos ligados à vivência da autora na terra dassuas raízes ficará, sem dúvida, como um belo retratopoético do Nordeste Transmontano.

José Ferreira da Silva1

1 Professor Catedrático jubilado do Departamento de Física da Faculdadede Ciências da Universidade do Porto.

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Raízes

As minhas raízes estão em íngremes ladeiras, em terras de xisto, onde crescem amendoeiras, carrascos, sobreiros, oliveiras, e onde o sentir é outro, mais profundo. Como que em busca da certeza de que existo, gosto de vaguear pelas ladeiras, sentindo rumorejar o rio ao fundo.

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Outrora

Outrora seriam por certo diferenteso achatamento polar, o campo magnético, a atracção lunar e, como tal, o peso das coisas, as marés. Diferença subtil, irrelevante, pois se esse tempo, à escala humana é já distante,à escala do Universo ainda é presente.Outrora seriam por certo diferentes as gentes que no castro habitavammas como hoje, sofriam, amavam e guerreavam em sangrentas batalhas, deixando virgens, talvez para sempre, tímidas donzelas.Testemunhas desse tempo, as muralhas,naturais do lado do abismo,do outro lado humana construção, como também humana a destruição que de onde em onde grassa.Ignorou-se que enquanto o tempo passa, as pedras guardam na memória os feitos da história, o sangue derramado, a glória, o revés.Em terras que com sangue foram adubadas, florescem hoje papoilas encarnadas por entre alvas estevas, roxas arçãs e giestas amarelas. Na Primavera,todas elas salpicam a ladeira do castro até ao rio. Deste, quem sabe, o rumor será ainda eco dum clamor, outrora lançado no vazio.

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Tempos agrestes

Eram tempos agrestes quando da azeitona ou da amêndoa, a apanha. Era o vento cieiro que vinha de Espanha,uma brisa seca, cortante, geladaque gretava a pele já de si curtida, era a soalheira que encardia o rosto no ateado Agosto.Eram tempos agrestesde fugas para França e de passadores de silêncios pesados, de densos suoresque iam desgastando dia a dia a vida qual roupa delida já de tanto usada.Eram tempos agrestesgrávidos de sol, de frio e de nada.

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Ocaso

Em Fevereiro, o dia quase exangue, era azul claro e rosa a cor do céu.Depois escureceu; tornou-se cor de chumbo e cor de sangue. Talvez anjos brincando na imensidão etérea ou, simplesmente, a interacção da luz com a matéria. O sol vai imergindo por detrás do monte e no horizonte destaca-se a silhueta de um sobreiro.Difusa, voa rasante uma cotovia e é então que, no céu, Vénus se anuncia.

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Caminhada

Flores tímidas, selvagens, atapetam o chão.Coberta de líquenes e musgo, a fraga, ao fundo,onde frágil se equilibra uma oliveiraque espreita a queda de água que escorre na ladeira onde agoniza um pombal, já sem função.Um balir de rebanho rompe o ar dolente e uma avezita, que emerge de um sobreiro,toma por seu mundo o céu inteiro.Medito enquanto calcorreio o caminho lentamente.Quanta transformação química ocorridapara transformar húmus em vida…Quanta energia transformada… Quanto neutrino atravessando o nada…

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Moinho

Entre calhaus e areias, grossas, finas, virgens porque há muito não pisadas,e mescladas de vegetação rasteira, resistem ao tempo, no fundo da ladeira,umas ruínas de um açude, um canal e um moinho, cuja cobertura se perdeu como todos os anos se perdia quando o rio, nas enchentes, lúbrico crescia.Ainda hoje o rio umas vezes adormece outras galopa na viagem. Do moinho que agoniza junto à margem resta, corroída, uma mó que em tempostransformava grão em pó.Restam também vestígios de uma antiga construção e, numa fraga, escavada uma pequena cova, talvez a gamela de um cão. Quiçá um perdigueiro, companhia de caça do moleiro.

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Crepúsculo

Plana o falcão sobre a ravina.O sol declina e todo um mistério invade o ar. Num eco etéreo, há um rumor que se aproxima.Talvez o vento cujo lamento cruza a neblina que esconde o dia e abraça a noite que se anuncia numa acalmia, numa doçura crepuscular.Porém, na Terra, algures há guerra, bombas, granadas a deflagrar.

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Barca

Entardece. Ainda uns raios de sol, já desmaiadosque se reflectem nos calhaus rolados que o rio afaga. No ar, um silêncio que apenas o rumor do rio apaga,rumor, ou talvez prece ao Senhor da Barca, ali ao lado. Já não existe mais a barca que outrora foi realmas na margem do rio, enferrujado,testemunha de um tempo intemporal, jaz moribundo um pedaço do cabo que, a cada viagem, guiava a barca de uma à outra margem.

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Big-Bang

Na minha infância, o Universo estendia-se do Castelo até às Eiras, envolvendo a Praça e o Cabecinho onde ficava a minha escola.À volta eram ladeiras que velavam o sono do rio lá no fundo. Era assim o meu mundo que, para mim, era maior que o infinito e que em cinco linhas aqui ficou descrito, contrariando assim, à evidência, uma das conjecturas da ciência.Desde o seu Big-Bang o meu Universo contrai-se, não se expande.

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Teia

Com as recordações da minha infância fui tecendo, dia a dia, enredada teia.O cheiro do azeite no lagar e no Outono a fermentar o mosto, o céu estrelado, o luar de Agosto, as cores da Primavera e as do Outono,o vermelho das papoilas, dos medronhos, o branco das flores de amendoeira, o sabor das amoras de silva ou de amoreira, as histórias contadas à lareira, o som da chuva, da neve, do granizo, na escacha da amêndoa, o som do riso, o rumorejar do rio no fundo da ladeira, o piar da coruja, o bramir do vento, são imagens que preenchem os meus sonhose assim invadem o meu pensamento, enredando-o na emaranhada teiaque até hoje a minha vida prende por um fio, que tanto se contrai como distende.

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Ponte2

Sempre em concordância com o traçado, desventraram a ladeira de um e outro lado.O rio, no fundo, parece alheado,correndo ligeiro ou sonhando parado.Sobre ele crescem, da ponte, pilares e tabuleiro.Este, apoiado só no meio, cresce dia a diapara um e outro lado, sempre em simetria.As leis da física assim o determinam.Pesos, momentos, reacções, tensões, tudo se conjuga em equações que os operários jamais imaginam.Em busca da terra prometidavêm daquém, dalém, vêm de Leste,vêm de África, têm vida agreste,chegam a pagar o sonho com a vida.E o Sabor, em eterno devaneio,beija a ladeira a tudo o mais alheio.

2 Foto gentilmente cedida por Maria Manuel Gouveia.

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Casas de Xisto

Casas de xisto com, sem escaleiras, traves de zimbro nas padieiras, balcões, sacadas, toscas ombreiras, foram com o tempo, há muito tempo…Ficaram histórias entre as memóriasque traz o vento que chora, chora e no seu pranto lembra o encanto das casas de outrora.

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Stacatto

Ali onde o silêncio impera e onde o infinito faz sentido, numa fraga, junto ao rio, foi esculpido algo que pode ser uma mensagem,uma data, talvez de uma romagem, um nome, quiçá o de um romeiro,que envolto num denso nevoeiro, surgiu num dealbar de primavera.

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Divagação

Com o olhar perdido entre rio e céu, tendo por horizonte o infinito, divaga o meu eu, angustiado, aflito. Se este rio fosse meu, não permitiria que algo o poluíssee talvez um dia com ele me fundisse num apertado e sempiterno abraçoquando a vida nada mais fosse que cansaço

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Cores outonais

O muro de xisto é já uma ruína mas a vinha, velha e tão cansada,exibe de novo os seus tons outonais.Numa subtil gradação de frequências a folhagem é agora amarelada, acobreada, cor de vinho, acastanhada.Ostentam cores outonais também, mais além, a pereira e o marmeleiro.Enquanto transferências de electrões desencadeiam oxidações e reduções,carotenos e antocianinas conjugam-se em paisagens quase surreais. Sentada numa fraga, ao lado de um sobreiro,quero perpetuar estes instantes, transformar em eterno este momento,mas o agora de há pouco já é antes, nesta implacável corrida do tempo.

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Prodígio

Prodigiosa aquela cerejeira com seus frutos. Sensual, rubro o epicarpo, carnudo, nacarado omesocarpo da pudica semente protecção. Tal como se fora a vez primeira, saboreio uma cerejacalmamente num misto de volúpia e devoção.

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Andorinhas

Sentada no terraço, vejo as andorinhas entrar e sair dos ninhos na casa do vizinho.O vizinho morreu e a casa está abandonada, mas as andorinhas, de luto, como é sempre o seu vestir, talvez pelo vizinho, os que o antecederam e os que ainda hão-de vir,continuam a voltear em torno dos ninhos na casa agora abandonada do vizinho que morreu.Sempre me lembro das andorinhas no beiral da casa do vizinho.Sei que as de agora não são as mesmas que as de outroramas talvez de geração em geração, tal como passa o sentido de orientação, tenha passado a informação da minha existência no terraço em frente à casa do vizinhodesde quando o meu pai me dizia poesia que falava da sua migração.Orientadas pelo campo magnético terrestre, pelo sol, pelas estrelas, ou simplesmente navegando à vista, aí vão elas seguindo uma pista que as trará de volta novamente, quando se iniciar o tempo quenteSó que um dia já não haverá casa do vizinho, nem eu estarei no terraço a recebê-las.

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Lição

Constava no compêndio que eu tinha que estudar que o azeite, no essencial, é um misto de oleína e palmitinade diferente densidade e ponto de fusãoFalava ainda o meu compêndio em decantação, ponto de inflamação, porém, ainda antes do compêndio, era bem pequenina e já sabiaque os negros frutos de todo o olival iriam ser esmagados no lagarpara das entranhas o azeite retirarjunto com o alpechim do qual se iria separarAmargo e negro, o alpechim iria ser lançado nos infernos3.Também antes do compêndio já sabia que em candeias o azeite iria alumiare que em gélidos Invernos iria talhar, em duas camadas se iria separar, a inferior, pastosa, esbranquiçada, a superior , viscosa, amarelada.Mas quando criança, também me apercebia que o tão dourado azeite, à mesa sempre usado com deleite, na malga do pobre não ia ter lugar,quando muito o azeite das sobras de fritar.Só que isso não constava no compêndio.

3 Reservatórios para recolha do alpechim.

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Estevas

Pegajosas as estevas, quando florescem, ostentam flores majestosas de fino odor. Porém as flores fenecem. Resta uma além, murcha, esquecida. Pobre flor! Uma das pétalas já não tem vidamas, mesmo assim, desfalecida, mantém o odor.

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Nostalgia

Quando passo num amendoal, após o verão, sinto um misto de nostalgia e emoção ao ver a amêndoa abandonada nas árvores e no chão.Outrora significou prosperidade e eram guardados os amendoaispara garantir que os rebusqueiros não rebuscavam demais,que rebuscavam só no chão, à claridade, só de dia e não ao lusco-fusco.Hoje já ninguém anda ao rebusco. No Verão, sob um sol abrasador, era a apanha. Hoje fica nas árvores e cai na terra que a arrebanha e com ela se funde; confundem-se os seus tons. Da escacha já há muito não se ouvem sons. Os escachadores ora em uníssono, ora desfasados, habilmente manejadoscom gestos secos, certeiros e brevespor mulheres, crianças, raparigas, que enchiam o ar de risos e cantigas, iam partindo a amêndoa, sempre cadenciados, deixando o grão intacto ou com mazelas leves, enquanto das cascas, o monte crescia no chão.

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Mais tarde, a par da lenha, na lareira, iriam servir para combustão. O grão ia para sacos de serapilheira. Mais tarde era vendido e o seu destino era assim perdido. Aquele que ficava imperfeito, esbotenado, iria ser, mais tarde, laminado, misturado com ovos e açúcar, nos rochedoscujas receitas eram envoltas em segredos e cuja doçura ocultava a agrura de tanta fadiga e de tanto suor. Eram a lavra, a limpa, a enxertia, ano após ano um ritual que se cumpria e quando floriam as amendoeiras, o lavrador contemplava do cimo das ladeiras aqueles véus de noiva a perder de vista, não com o olhar breve de um turista, mas com um profundo olhar, cheio de amor.

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Flores de amendoeira

As flores de amendoeira, antes da Primavera, cobrem a ladeira como um branco véuou como vestes de anjo que se esfumou no céu.Impressa no código genético a química magia da ebúrnea cor que recende a nostalgia

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Ilusão4

Em pleno estio os meus olhos vagueiam na ladeiraque exulta em cor, em cheiro e em sons que me afloram o ouvido, subtis.Os meus olhos vagueiam na ladeira, exuberante em todos os seus tons,tecendo à minha volta mil ardis É o amarelo das searas, das oliveiras o verde prateado, dos troncos dos sobreiros o tom acastanhado, mais além um outro verde, das figueiras. Pobres figueiras em terras tão avaras, avaras de água, que não de encantamentoque esse de há muito me há a mim tomadoenquanto dolente passa o vento que agita os ramos das amendoeiras.Os meus olhos vagueiam na ladeira em pleno estio e sinto um arrepio.Lá em baixo serpenteia preguiçoso o rio e o céu, por cima, dum azul sem fim, parece olhar para mim.

4 Poema incluído em Reflexões e Interferências.

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Sinto no ar toda uma fragrância e volto sem querer à minha infância de sonhos que nunca mais foram sonhados.Amoras, mel, uvas e mostode repente sinto-lhes o gosto.Tudo se repete agora e logo, de onde em onde.Cigarras, besouros, libelinhas, gaviões, pardais e andorinhas,urze, giesta, papoilas e tomilho, tudo se agita; é grande a euforianos meus pensamentos enredados, grávidos de sonho e fantasiaque parecem gerar como que um filho, envolto em tule, rendas e brocados.Afaga-me uma onda de alegria matizada de muita nostalgia,aproxima-se a noite, ao fim do dia.No ocaso, o sol vermelho já se esconde, porém, já lá não está, é ilusão!Ainda o vemos devido à refracção

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Flores5

Eram flores selvagens embelezando Maio, junto ao caminho. Eram muitas e singelas, rubras, azuis, roxas , brancas, amarelas.Os seus nomes? Creio que uma se chamava rosmaninho, as outras não sei, mas não importa.Numa conferência a que a memória me reportaFeynman, Nobel da Física, sobre a ciência dizia que o nome das coisas não é o que mais importa, até porque de lugar para lugar varia.Importa muito mais observar, reflectir, interrogar.Só assim se pode compreender a natureza.E também amar, eu acrescentaria. Veio isto a propósito das flores junto ao caminho,que me impressionaram pela singeleza, mas cujo nome não sei. Por isso as baptizei; a uma chamei ternura e a outra afecto, a uma outra alegria, a uma dei o nome fantasia, a outra atribuí o nome de paixão. A uma que logo ali murchou e murcha se quedou baptizei-a com o nome de ilusão

5 Poema incluído em Reflexões e Interferências.

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Castro6

Em mato de urze, de giesta, de carrasco,fica ali escondido, abandonado, o castro, castelo dos mouros, como o povo diz, de onde, quem sabe, uma moura donzelafugiu para Castela num belo alazão enquanto soprava o vento suão.Partiu com um mouro, ou partiu com cristão?De livre vontade ou partiu infeliz?Quem sabe, não descenderia da moura donzelaminha bisavó, de seu nome Anaque era castelhana fugida da guerra, da luta intestina entre um tal D. Carlos e D. Cristina?Quem sabe? Pergunto ao carrasco, mas não existia, ao tempo, no castro.Questiono o rio que corre no fundo, mas a água de outrora correu, foi embora, perdeu-se no mundo.

6 Poema incluído em Reflexões e Interferências.

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Hipocrisia7

Lactarius deliciosus.Não sei se foi Lineu quem o nome lhes deu.Eu, no meio do pinhal, com gestos suaves, subtis, vou-as colhendo uma a uma.São as sanchas, frágeis, delicadas, como que envergonhadas, por baixo da caruma.Chapéu e pé em tom alaranjado, já em pequenina, a medo eu as colhia pois sabiaque mesmo ali ao lado, outros cogumelos, alguns muito mais belos, teciam seus ardis.Insidiosos, perigosos, escondem em si a muscarina, a psilocibina, tanta, tanta toxina, tantas vezes fatal.Tal qual a hipocrisia nos humanos,desumanos, antes eu diria, que enchem a boca com a democracia e a globalização, visando um mundo novo,enquanto vendem armas para matar o povo que subjugam pela exploração

7 Poema incluído em Reflexões e Interferências.

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Entropia

Desde o átomo à célula, toda uma evolução que desafia os mais ousados sonhos.E assim, no mato denso de carrascos,salpicando de cor os dias baçose dando aos espaços um ar de fantasia,irrompem sensuais e rubros os medronhos. Alguns logo ali se degradam, ao cair no chão.Eis o sentido da evolução. Chamou-se-lhe entropia.

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Sensações8

Tem um cheiro inconfundível a minha casa da aldeiaNão sei se é do rosmaninho que perfuma todo o linho dentro das arcas guardado, se é da madeira das portas, dos tectos e do sobrado se é das pratas no lambrim ou das peças de faiança, são travessas e são pratos, nas paredes pendurados, se é das peças de mobília, uma herança de família, não sei se é dos retratos que às vezes, a horas mortas, falam, sorriem para mim.Terão perfume as memórias de quando eu era criança? Terá perfume a lembrança?Tem um cheiro inesquecível a minha casa da aldeiaMas não é só o odor, são as cores e são os sonsque vejo e ouço em qualquer lado e em tudo o que me rodeiaLembro lágrimas, sorrisos, por vezes já imprecisos.Lembro sussurros e histórias, imagens em vários tons, plenas de luz e de cor ou também acinzentadas baças, sem cor, desbotadas. Têm cor alguns dos sons, sons e cores têm odorA minha casa da aldeia cheira a afecto e amor.Mesmo quando estou distante às vezes, por um instante, chego a pensar que estou lá, pois apesar da distância eu sinto aquela fragrância. Que explicação haverá? Será acção magnética? Uma interacção eléctrica? Força electromagnética? Gravítica? Nuclear? Forte ou fraca interacção?É difícil de explicar pois não há explicação que assente só na razão. Esta estranha sensação tem a ver com o coração.

8 Poema incluído em Reflexões e Interferências.

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Índice

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PrefácioRaízesOutroraTempos agrestesOcasoCaminhadaMoinhoCrepúsculoBarcaBig-BangTeiaPonteCasas de XistoStacattoDivagaçãoCores outonaisProdígioAndorinhasLiçãoEstevasNostalgiaFlores de amendoeiraIlusãoFloresCastroHipocrisiaEntropiaSensações

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