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São de responsabilidade de seus autores os conceitos emitidos nas conferências aqui publicadas. Maio 2008 Problemas Nacionais Conferências pronunciadas nas reuniões semanais do Conselho Técnico da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo 638 v. 54 Sumário México: o Estado Patrimonial segundo Octavio Paz (1914-1998) ......................... 3 Ricardo Vélez Rodríguez Certificado de Depósito Bancário e Cédula de Crédito Bancário ............................... 62 Theophilo de Azeredo Santos A Recente Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, os Planos Econômicos e o Direito Monetário ........................ 77 Arnoldo Wald Síntese da Conjuntura A Reforma Tributária ............................................ 92 Ernane Galvêas

Maio 2008 638 Problemas Nacionais v. 54 · El arco y la lira (1956), Las peras del olmo (1957), Los signos en rotación (1965), Puertas del campo (1966), Corriente alterna (1967),

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São de responsabilidade de seus autores os conceitos emitidosnas conferências aqui publicadas.

Maio2008

Problemas NacionaisConferências pronunciadas nas reuniõessemanais do Conselho Técnico daConfederação Nacional do Comérciode Bens, Serviços e Turismo

638v. 54

Sumário

México: o Estado Patrimonialsegundo Octavio Paz (1914-1998) ......................... 3Ricardo Vélez Rodríguez

Certificado de Depósito Bancárioe Cédula de Crédito Bancário ............................... 62Theophilo de Azeredo Santos

A Recente Jurisprudência doSupremo Tribunal Federal, os PlanosEconômicos e o Direito Monetário ........................ 77Arnoldo Wald

Síntese da ConjunturaA Reforma Tributária ............................................ 92Ernane Galvêas

Solicita-se aos assinantes comunicarem qualquer alteração de endereço.

As matérias podem ser livremente reproduzidas integral ou parcialmente,desde que citada a fonte.

A íntegra das duas últimas edições desta publicação estão disponíveis noendereço www.portaldocomercio.org.br, no link Produtos e Serviços -Publicações - Periódicos.

Carta Mensal |Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços eTurismo – v. 1, n. 1 (1955) – Rio de Janeiro: CNC, 1955-

100 p.MensalISSN 0101-4315

1. Problemas Brasileiros – Periódicos. I. Confederação Nacional doComércio de Bens, Serviços e Turismo. Conselho Técnico.

Confederação Nacional do Comérciode Bens, Serviços e Turismo

v. 54, n. 638, Maio 2008

BrasíliaSBN Quadra 01 Bloco B no 14, 15o ao 18o andarEdifício Confederação Nacional do ComércioCEP 70041-902PABX (61) 3329-9500 | 3329-9501E-mail: [email protected]

Rio de JaneiroAvenida General Justo, 307CEP 20021-130 Rio de JaneiroTels.: (21) 3804-9241Fax (21) 2544-9279E-mail: [email protected]

Web site: www.portaldocomercio.org.br

Publicação MensalEditor-Responsável: Gilberto PaimProjeto Gráfico:Coordenação de Documentação e Informação/Unidade de Programação VisualImpressão: Gráfica Ultraset

3Car ta Mensa l . Rio de Jane iro, v. 54, n . 638, p. 3-61, maio 2008

“Como toda a América Espanhola, o México estava condenado aser livre e a ser moderno, mas a sua tradição tinha negado semprea liberdade e a modernidade” (Octavio Paz, El ogro filantró-pico, p. 62).

O México representa, junto com a Guatemala, o Peru e a Bolívia, um dos quatro núcleos que preservaram, nas Américas, a

secular tradição do “despotismo hidráulico” ensejado pelos gran-des Impérios Asteca e Inca. Antes da descoberta do Novo Mundopor Cristóvão Colombo, na segunda metade do século XV, já tinhamflorescido, nessas terras, fortes impérios que desenvolveram modali-dades de “poder total”, ao ensejo da dominação inconteste de elitesguerreiras fortemente unificadas ao redor de soberanos inapeláveis.É uma longa tradição secular cujas origens se perdem no nevoeiro

México: O EstadoPatrimonial segundoOctavio Paz (1914-1998)

Ricardo Vélez RodríguezCoordenador do Centro de Pesquisas Estratégicas “Paulino Soaresde Sousa”, da UFJF; Coordenador do Núcleo de Estudos Ibéricose Ibero-Americanos da UFJF.

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dos tempos, se levarmos em consideração que a primeira ocupação,por homens provenientes da Ásia, através do estreito de Behring,ocorreu há 50 mil anos atrás, aproximadamente.1 Tradição secularque, no México e na Guatemala, percorreu etapas identificadas comcivilizações que foram sendo vencidas por outras novas manifesta-ções político-culturais: Olmecas, Maias e Astecas. Na América doSul ocorreu fenômeno semelhante: três grandes civilizações agrodi-retoriais foram aparecendo antes da chegada dos Espanhóis: Tihua-nacos, Paracas e Incas. Isso para não mencionar grupos menores,sediados à sombra dos dominadores principais, como era o caso dosChibchas, no norte do Continente Sul-americano. A marca de todasessas organizações era o centralismo despótico, fato que levou a umestudioso da talha de Karl Wittfogel a arrolá-las como manifestaçõesdo “patrimonialismo hidráulico”, alicerçado na prática do “poder to-tal” e condicionado pela necessidade de controlar a água em regiõescaracterizadas pelo regime de chuvas irregulares.2

A conquista espanhola, feita a partir do pressuposto da “guerra san-ta” contra o infiel, terminaria reforçando essa tendência despótica,em decorrência do fato da política de “terra arrasada” que os ibéri-cos puseram em funcionamento, à maneira como os conquistado-res árabes ocuparam o Sind, no sul da Ásia, entre 634 e 644, duran-te o reinado do segundo Califa ou sucessor do Profeta.3 Os espa-nhóis, como os portugueses, aprenderam, aliás, os procedimentosde “poder total” com os muçulmanos, que dominaram a PenínsulaIbérica durante oito séculos, a partir da invasão desta pelos gene-rais do Califa de Damasco Al-Walid, em 710. Os mouros foramvencidos, como sabemos, em 1490. Mas os procedimentos agrodi-retoriais dos árabes terminaram sendo assimilados pelos cristãosvencedores, dando ensejo ao que Wittfogel denomina de “absolu-tismo ibérico pós-feudal”.4

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A pesquisa desenvolvida por Octavio Paz acerca da formação so-cial da Nova Espanha (e das modalidades assumidas pelo Estadomexicano nos séculos posteriores) destaca os traços patrimoniaisdo mesmo, tendo sido este muito bem chamado de “ogro filantrópi-co”. Ogro que, como acabo de frisar, alimentou-se de uma duplatradição despótica: a pré-colombiana e a ibérica. Seguirei, nesta ex-posição, de forma prioritária, a obra do Prêmio Nobel de Litera-tura que leva o mesmo título da caracterização que acabo de men-cionar: El ogro filantrópico. Percorrerei duas etapas: I – O papeldo escritor, segundo Octavio Paz; II – O Estado patrimonial mexi-cano como “Ogro filantrópico”.

I – O papel do escritor, segundo Octavio Paz.

Para o escritor mexicano, o primeiro conceito a ser discutido quandose trata de identificar a missão do escritor, é o de compromisso ou enga-jamento. Em que consiste ser um escritor comprometido? Certamente essaexpressão corre o risco de ser genérica demais, pois, afinal de contas,todos estamos situados e, portanto, comprometidos. O que Paz de-sejava evitar era que se entendesse, sob essa expressão, a idéia deescritor militante, que abre mão do senso crítico para se entregar nasmãos de uma seita, religião ou partido. A respeito, escreve:

Acho que o termo compromisso, de origem sartriana, é equívoco.Não sabemos muito bem o que quer dizer um compromisso. Seentendermos por compromisso a relação de um escritor com a suarealidade, e com a sociedade em que vive, todos somos escritorescomprometidos. O que me parece inaceitável é que um escritor ouum intelectual se submeta a um partido ou a uma igreja. No séculoXX temos visto muitos e grandes escritores cederem diante das exi-gências dos partidos e das igrejas. Penso em Claudel e nas suasodes a Franco e Pétain; penso nos hinos de Aragon e Neruda a

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Stalin. O nosso século, dizia Benjamin Peret, foi o “da desonrados poetas”. Também foi o da sua honra: a sátira de Mandelstamcontra Stalin, que lhe custou a vida, ou o sacrifício de Lorca...5

Dois itens serão desenvolvidos nesta primeira parte: em primeirolugar, um breve escorço biográfico acerca do nosso autor; em se-gundo lugar, a caracterização de como ele entende a função do es-critor na sociedade.

1. Breve escorço biográfico de Octavio Paz

O nosso pensador nasceu na cidade do México, em 1914 e ali faleceuem 1998. Duas figuras familiares exerceram forte influência: o seuavô paterno, Irineo Paz, escritor e intelectual, que participou ativa-mente da revolução positivista ensejada pelo General Porfírio Díaz(1830-1915), na segunda metade do século XIX. De outro lado, seupai, Octavio Irineo Paz, que foi militante da revolução liberal comque Emiliano Zapata (1879-1919) tentou transformar as velhas es-truturas mexicanas, nas primeiras décadas do século XX. O nossojovem experimentou de perto, portanto, os dois grandes movimentosrevolucionários que os mexicanos sofreram no final do século XIX eno início do século seguinte: o positivista e o liberal.

Morto o líder revolucionário Emiliano Zapata, 6 a família de Octa-vio Irineo Paz7 teve de se exilar nos Estados Unidos, onde o nossoautor fez o aprendizado das primeiras letras. Já estava presente, navida do escritor, a vocação marginal do intelectual latino-america-no, fadado a não se inscrever incondicionalmente nas fileiras denenhum revolucionário, a fim de manter viva a sua capacidade crí-tica. De outro lado, restava uma lição para o jovem Octavio: umarevolução no comando do país não resolve nada, se não ancorarnuma mudança de crenças e valores. Vocação de escritor claramen-

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te definida, já com 17 anos o nosso autor fundou a sua primeirarevista literária. Tendo realizado os seus estudos superiores na Fa-culdade de Direito da Universidade Nacional Autônoma de Méxi-co, o nosso escritor, no entanto, não exerceu a advocacia, tendopreferido a docência endereçada aos jovens pobres.

Poeta de grande criatividade, Octavio Paz efetivou uma significativarenovação da poesia mexicana, ainda atrelada aos velhos parâmetrosparnasianos. Entre 1943 e 1945, cursou estudos literários na Universi-dade de Berkeley, nos Estados Unidos, tendo imediatamente ingressa-do no serviço diplomático do seu país, nele permanecendo até 1968,quando, após a violenta repressão do governo do México contra osestudantes, o nosso autor demitiu-se sumariamente do corpo diplomá-tico. Entre 1946 e 1952, por motivo de sua permanência em Paris,como diplomata, o nosso autor conheceu André Breton (1896-1966),tendo recebido forte influência dele, que se manifestou basicamentena mudança de parâmetros do estilo literário do jovem escritor, ado-tando a concepção surrealista da poesia como extensão da vida.

O nosso autor exerceu as funções diplomáticas como representan-te do seu país nos Estados Unidos, França, Suíça, Índia e Japão, noperíodo compreendido entre 1943 e 1968. Ativista político – comonão podia deixar de ser o filho e neto de intelectuais engajados – esimpatizante comunista, Octavio Paz participou, em 1937, duran-te a Guerra Civil Espanhola, do Congresso de Escritores Antifas-cistas realizado em Valencia. No entanto, a sua simpatia pelo co-munismo logo recebeu um duro golpe, quando da assinatura dopacto entre Hitler e Stalin, em 1939, que facilitou, junto com aexcessiva transigência dos líderes franceses e ingleses, a aventurabélica alemã, que deu início à Segunda Guerra Mundial. Nesse ano,o nosso escritor rompeu definitivamente com o comunismo, fatoque não lhe seria perdoado pelos intelectuais marxistas.

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O nosso autor casou, em primeiras núpcias, em 1937, com a dra-maturga mexicana Elena Garro, com quem teve uma filha, Helena,hoje conhecida escritora. O seu segundo casamento foi com a fran-cesa Marie José Paz, que passou a cuidar da Fundação OctavioPaz, após o falecimento dele. Escritor prolífico, o nosso autor fun-dou e colaborou efetivamente em várias revistas mexicanas queexerceram grande influência no mundo hispano-americano, taiscomo: Plural, Vuelta, Taller e El Hijo Pródigo. A sua obra ensaística,muito fecunda e profundamente influenciada por Ortega y Gasset(1883-1955), foi inicialmente publicada nessas revistas.

Octavio Paz foi o que se pode chamar de um “humanista”. A suaobra ensaística é realmente oceânica, dada a quantidade de temasabordados e a profundidade com que consegue desenvolver o seupensamento. Mencionemos, a título meramente ilustrativo, os prin-cipais ensaios político-literários: El laberinto de la soledad (1950),El arco y la lira (1956), Las peras del olmo (1957), Los signos enrotación (1965), Puertas del campo (1966), Corriente alterna (1967),Claude Levy-Strauss o el nuevo festín de Esopo (1967), MarcelDuchamp o el castillo de la pureza (1968), Conjunciones y disyun-ciones (1969), México: la última década (1969), Postdata (1969),El mono gramático (1971), Las cosas en su sitio: sobre la literaturaespañola en el siglo XX (1971, com a colaboração de Juan Mare-chal), Los signos de rotación y otros ensayos (1971), Traducción,literatura y literalidad (1971), Solo a dos voces (1973, em colabora-ção com Julián Ríos), El signo y el garabato (1973), Los hijos dellimo (1974), Teatro de signos (1974), La búsqueda del comienzo(1974), Javier Villaurrutia en persona y en obra (1978), El ogrofilantrópico: historia y política (1979), In-Mediaciones (1979), SorJuana Inés de la Cruz o las trampas de la fe (1982), Tiempo nubla-do (1983), Sombras y obras (1983), Hombres en su siglo (1984),Pasión crítica (1985), México en la obra de Octavio Paz (1987,

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com a colaboração de Luis-Mario Schneider, como editor), Poesía,mito, revolución (1989, Prêmio Alexis de Tocqueville), Pequeñacrónica de grandes días (1990), La otra voz (1990), Convergencias(1991), Al paso (1992), La llama doble (1992), Itinerario (1994) eVislumbres de la India (1995). As Obras Completas de OctavioPaz estão sendo publicadas pela Editora Fondo de Cultura Econó-mica do México, sendo que até o presente já foram postos em circu-lação os primeiros 12 volumes (de um total de 14), entre 1994 e1999.8

No ano de 1990 o nosso autor foi agraciado com o Prêmio Nobelde Literatura, “pela sua obra apaixonada e com amplos horizontes,caracterizada por uma inteligência sensual dotada de integridadehumanística”, como rezava o lacônico comunicado da Comissãoda Academia de Ciências da Suécia.

Octavio Paz recebeu a influência de Sigmund Freud (1856-1939),cujo pensamento projetou numa análise sociológica que buscava a“cura das civilizações” pela via da identificação dos caminhos histó-ricos seguidos pelos povos. Também recebeu a influência do pensa-mento de Karl Marx (1818-1883), que polarizou na identificação dascontradições latentes nas sociedades capitalistas. Foi influenciado,outrossim, por estudiosos das culturas como Roger Caillois (1913-1978), Georges Bataille (1897-1962) e Marcel Mauss (1872-1950).Conheceu os filósofos alemães através da leitura das obras de Ortegay Gasset. Recebeu a influência de historiadores como Wilhelm Dil-they (1833-1911) e Georg Simmel (1858-1918). A respeito de todasessas heranças culturais, escreveu o ensaísta mexicano:

O estudo de Freud sobre o monoteísmo judaico impressionou-memuito. Falei antes em moral; agora devo adicionar outra palavra:terapêutica. A crítica moral é auto-revelação daquilo que esconde-mos e, como ensinava Freud, cura... relativa. Nesse sentido, o meu

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livro [El laberinto de la soledad] quis ser um ensaio de críticamoral: descrição de uma realidade oculta e que faz mal. A palavracrítica, na época atual, é inseparável do marxismo e eu sofri ainfluência do marxismo. Por esses anos li os estudos de Caillois e,um pouco mais tarde, os de Bataille e do mestre de ambos, Mauss,sobre a festa, o sacrifício, a doação, o tempo sagrado e o tempoprofano. Encontrei imediatamente certas analogias entre aquelasdescrições e as minhas experiências cotidianas como mexicano. Tam-bém ensinaram-me muito os filósofos alemães que uns poucos anosantes tinha dado a conhecer na nossa língua Ortega y Gasset: afenomenologia, a filosofia da cultura, e a obra de historiadores eensaístas como Dilthey e Simmel.9

2) A missão do escritor no mundo atual.

O trabalho do escritor era pensado por Octavio Paz na trilha daconquista da liberdade, que constitui, fundamentalmente, uma es-colha que brota do fundo do espírito humano e que se torna reali-dade concreta no exercício da própria identidade, na prática damemória histórica. Lembrando Karl Jaspers (1883-1969), podería-mos afirmar: “se saíssemos da História, tombaríamos no nada”.10

Não ter consciência da própria história é não existir. Mas, para en-contrar o caminho da própria história, a condição sine qua non é aopção pela liberdade. Verdadeira profissão de fé liberal, que tornoua Octavio Paz um escritor definitivamente incômodo para os dog-máticos de todos os matizes, notadamente para os marxistas. Eis asbelas palavras dessa profissão de fé:

A liberdade não é um conceito nem uma crença. A liberdade não sedefine: se exerce. É uma aposta. A prova da liberdade não é filo-sófica mas existencial: há liberdade toda vez que encontramos umhomem livre, toda vez que o homem atreve-se a dizer não ao poder.Não nascemos livres: a liberdade é uma conquista e, ainda mais:

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uma invenção. Lembrarei duas linhas de Ifigênia cruel, o poe-ma dramático do esquecido e negado Alonzo Reyes (1889-1959).Arrebatada por Artemisa e transportada a Tauride, onde oficiaritos sangrentos como sacerdotisa da deusa, Ifigênia perde a memó-ria e torna-se um ser sem história. Um dia, ao se encontrar com oseu irmão Orestes, lembra; ao lembrar, recupera a sua história, oseu destino. Mas, justamente, nesse momento rebela-se e nega-se aseguir o seu irmão, que lhe impõe a vontade do sangue. Ifigêniaescolhe-se a si mesma, inventa a sua liberdade, e diz: leva nastuas mãos, colhidas pelo teu gênio/estas duas conchas ocasde palavras: não quero.11

O exercício da liberdade traduz-se, no terreno da cultura, na posi-ção crítica do escritor em face dos sistemas políticos. O nosso pen-sador não abria mão de ter uma posição de grande independênciaem face dos atores da política internacional. Embora reconhecesseas qualidades do sistema americano, no entanto, não deixava deassinalar a perda de valores ensejada, nessa sociedade, pela mone-tarização da vida humana. Os princípios da vida e da morte estãopresentes em todas as sociedades e, nos momentos de crise, essatensão manifesta-se numa circunstância de contradição. A críticaque Octavio Paz dirigia à política internacional praticada pelosEstados Unidos era endereçada, também, às demais potências. Oescritor mexicano achava que a Humanidade vivia, nesse final deséculo XX, uma etapa sombria, justamente porque se perdeu de vistaa perspectiva do homem, num contexto de cinismo e falsidade.

O escritor mexicano centralizou a sua crítica à desumanização dapolítica do século XX ao redor do Estado, dando ênfase ao que acon-teceu no seu país de origem. Essa concepção aparecerá no segundoitem que desenvolverei, em relação à apreciação feita por Paz acercado patrimonialismo mexicano. De momento, vale destacar um aspec-

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to que será definitivo na análise crítica do nosso autor. No México –como nos restantes países da América Latina também – a crítica àsinstituições desumanas foi precedida pelo alerta dos poetas e dosartistas em geral, tornando realidade o que Martin Heidegger (1889-1976) afirmava acerca da fundação da linguagem na poiesis.12 A res-peito desse fenômeno, o escritor mexicano frisava:

Certamente, gostaria de dizer, aqui, algo que se esquece com fre-qüência: a crítica da sociedade contemporânea – uma crítica queabarca tanto as suas formas de vida, quanto as suas crenças, assuas paixões tanto quanto a sua linguagem – foi primordialmenteobra dos poetas, escritores e artistas mexicanos, mais do que dosteóricos da política revolucionária e dos ideólogos marxistas. Inclu-sive, pode-se dizer que contrasta a debilidade teórica dos ideólogosradicais (sem excluir muitos dirigentes estudantis) com o brilho, apaixão e a verdade de algumas das obras da literatura, bem comode algumas manifestações da arte contemporânea do México. Na-turalmente, a crítica dos escritores e dos artistas não é ideológica: éuma crítica que penetra em estratos da consciência mais profundosque a simples ideologia.13

Condição necessária para o escritor preservar a liberdade de espíritoem face das estruturas políticas era, no sentir de Octavio Paz, a atitudeque ele denominava de marginalidade, no sentido da capacidade de ohomem de letras se colocar à parte da busca do poder e dos holofotes.Tratar-se-ia, em outras palavras, do restabelecimento daquilo que MaxWeber (1864-1920) denominava de “ética dos intelectuais”,14 contrapos-ta à dos políticos, que buscam unicamente os resultados da ação, en-quanto que os primeiros deveriam se pautar pela fidelidade aos princí-pios. Exemplo dessa ética intelectual foi dado, no sentir de Paz, pelogrande pensador e publicista mexicano Daniel Cosío Villegas (1898-1976) a quem Octavio Paz rende calorosa homenagem nos seus escri-tos. A respeito desse ideal dos intelectuais, escrevia:

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Os comentários jornalísticos possuem um duplo valor, além de seremdocumentos de uma época que, em ocasiões, como em 1968, foi dra-mática: a claridade e a coragem. Claridade no sentido físico, intelec-tual e moral: capacidade para distinguir entre o justo e o injusto, oútil e o prejudicial, o bom e o ruim. Coragem: os seus outros nomessão integridade de caráter, correspondência entre as idéias e os atos.Por fatalidade de temperamento e por vocação moral, Cosío Ville-gas escolheu a solidão – não o isolamento. A sua foi solidão nocentro da vida pública. Muito cedo percebeu que o destino dos escri-tores, tanto no México quanto no resto do mundo, é a marginalida-de e ele aceitou com decisão ser um homem marginal. Por isso, pelofato de não ter temido ficar sozinho, é agora uma figura central. EmPlural [revista mexicana de história e crítica das idéias] aparece-ram os seus últimos artigos. Nós procuraremos permanecer fiéis àsua memória sendo fiéis ao seu exemplo: defenderemos sempre aliberdade e a independência dos escritores. A lucidez e a ironia – asduas qualidades de sua prosa e, também, de sua atitude vital – nãoo abandonaram nunca. Foi leal aos demais porque foi leal consigomesmo. Entre os seus mestres e colegas de geração não todos tiverama sua integridade e a sua rectidão. Algum deles, no final da vida,abraçou o obscurantismo religioso e, em política, a violência fascista;outros contagiaram-se com a lepra stalinista, doença incurável; ou-tros praticaram a arte do sorriso agradável e do compromisso com opoder arbitrário; os restantes, trancaram-se nos seus gabinetes deestúdio e nos seus laboratórios... Cosío Villegas atravessou sorrin-do o fúnebre baile de fantasias que é a nossa vida pública e saiulimpo, indemne. Cosío Villegas foi um liberal de 1867 que terialido Marx e Keynes, Freud e Bertrand Russell. Foi inteligente eíntegro, irônico e incorruptível. Como a maior parte dos intelectuaisdo nosso século, perdeu as ilusões; como muito poucos dentre eles,guardou sempre fidelidade às suas convicções.15

A marginalidade não é apenas o esforço do escritor para se manter

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livre da concupiscência pelo poder e pelos holofotes. Essa é umadas suas condições fundantes. Mas existe outra: o exercício críticoda razão. Este é, justamente, o aspecto que faltou na Espanha e emIbero-américa, ao passo que se encontra em outros países como aFrança e a Inglaterra, que souberam submeter os princípios quealimentaram o convívio social ao crivo purificador da crítica. Oescritor como franco-atirador: à luz dessa imagem, Octavio Pazsimbolizava a função desestabilizadora do pensador e do escritor.A respeito, escrevia o nosso autor:

A crítica é, para mim, uma forma livre do compromisso. O escritordeve ser um franco-atirador, deve suportar a solidão, se sentir ummarginal. Que os escritores sejamos marginais é uma condena que éuma bênção. Ser marginais pode conferir validez à nossa escrita. Edevo dizer algo mais sobre a crítica: para mim, a crítica é criadora.A grande diferença entre França e Inglaterra, de um lado, e Espa-nha e Ibero-américa, de outro, é que nós não tivemos século XVIII.Não tivemos nenhum Kant, Voltaire, Diderot, Hume.16

Marginais têm sido, na sociedade moderna, notadamente os poetas,os amantes e os artistas. Somos marginais quando nos erguemospor sobre o cálculo egoísta, a fim de descobrirmos o homem. Octa-vio Paz professava uma espécie de quixotismo kantiano, que o le-vava a valorizar o herói que faz da prática da liberdade o grandeimperativo que movimenta a sua vida, deixando para trás o cálculoe a preocupação com o dinheiro. A respeito, escrevia:

Creio que há uma oposição fundamental entre o que eu denomino de arealidade e a outra realidade. Há uma frase de Marx (está no Ma-nifesto comunista) que Luis Buñuel pensou em utilizar como sub-título do seu filme La edad de oro. (...) O tema desse filme é a sortedo amor no mundo moderno. A frase de Marx é, em espanhol, umalexandrino perfeito: En las aguas heladas del cálculo egoísta.Isso é a sociedade. Por isso o amor e a poesia são marginais.17

15Car ta Mensa l . Rio de Jane iro, v. 54, n . 638, p. 3-61, maio 2008

O grande carrasco dos escritores livres no século XX foi, sem dúvi-da, o Estado, nas suas versões autoritária e totalitária. Ele é o gran-de Leviatã, em cujo altar não poucos artistas e intelectuais depuse-ram a sua criatividade, em aras do “politicamente correto”. Ora,essa atitude de criminal complacência com o poder que tudo açam-barca, tem-se dado tanto à direita quanto à esquerda. Artistas eescritores vítimas do complexo de palco, somente se preocuparampor demonstrar alguma coisa para os poderosos de plantão, enquantoque os verdadeiros criadores de cultura simplesmente mostraramuma realidade que outros pretendiam ocultar. A literatura denomi-nada de comprometida infelizmente naufragou nas águas do dogma-tismo clerical e confessional.

Octavio Paz alertava para o fato de, no Ocidente desenvolvido e naAmérica Latina, via de regra, os escritores terem sido vítimas do com-promisso politicamente correto para com o leninismo, decorrente, em boamedida, da agressiva política cultural soviética e cubana, que se es-pecializou na arte de guindar às alturas do jet-set internacional aquelesque se submetessem à propaganda comunista e de ostracizar todosquantos se recusassem a render tributo ao pior dos estatismos, o leni-nismo. Sem meias-palavras, o nosso autor fez corajosa denúncia des-se fenômeno, sem se excluir a si próprio do meio dos que, na juventu-de, tinham caído nesse erro. Eis as suas palavras a respeito:

Quase todos os escritores do Ocidente e da América Latina, nummomento ou noutro das nossas vidas, às vezes por generoso impulsoembora ignorante, outras por debilidade em face da pressão do meiointelectual e outras simplesmente por estar na moda, temos sofridoa sedução do leninismo. Quando penso em Aragon, Eluard, Neru-da e outros famosos poetas e escritores estalinistas, sinto o calafrioque me produz a leitura de certas passagens do Inferno [da Di-vina comédia de Dante Aliguieri]. Começaram de boa-fé, sem

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dúvida. Como fechar os olhos diante dos horrores do capitalismo eperante os desastres do imperialismo na Ásia, na África e na nos-sa América? Experimentaram um impulso generoso de indignaçãodiante do mal e de solidariedade para com as vítimas. Mas, insen-sivelmente, de compromisso em compromisso, viram-se envolvidosnuma malha de mentiras, falsidades, enganos e perjuros até queperderam a alma (...). Direi mais, que as nossas opiniões nessamatéria não foram simples erros ou falhas da nossa faculdade dejulgar. Foram um pecado, no antigo sentido religioso do termo: algoque afeta ao ser por inteiro (...). Esse pecado manchou-nos (...).Digo isso com tristeza e com humildade.18

Nessa espécie de preguiça mental causada pela comodidade dopoliticamente correto, os intelectuais latino-americanos de esquer-da tardaram muito tempo em reconhecer o fracasso do comunismosoviético, atribuindo a um “acidente histórico” a realidade do Gu-lag, sem que isso comprometesse o edifício do socialismo marxista.Esses intelectuais passaram a integrar uma confraria de adoradoresfanáticos da ideologia totalitária.

Para identificar a categoria a que pertenciam os seus escritos, onosso autor preferia se situar na espécie dos que cultuavam o gêne-ro da “literatura política”. Modalidade literária deveras ampla, fru-to do exercício da liberdade de pensamento e na qual Octavio Pazarrolava os seus ensaios. Situava nesse gênero, de forma particular,a sua obra El ogro filantrópico. Eis as suas palavras a respeito:

A literatura política é o contrário da literatura a serviço de umacausa. Brota quase sempre do livre exame das realidades políticasde uma sociedade e de uma época: o poder e os seus mecanismos dedominação, as classes e os interesses, os grupos e os chefes, as idéiase as crenças. Às vezes, a literatura política limita-se à crítica dopresente; outras, oferece-nos um projeto de futuro. Vai do panfleto

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ao tratado, do cahier de dóleances ao manifesto, da apologia aolibelo, da República ao Français encore en effort si vousvoulez être républicains, de La Città del Sole a O 18 Bru-mário de Luís Napoleão Bonaparte. A literatura mexicana,desde Frei Servando Teresa de Mier e Lorenzo de Zavala até LuísCabrera e Daniel Cosío Villegas, tem sido particularmente ricaem textos de crítica política. A essa tradição mexicana pertence Elogro filantrópico. É composto por uma seleção dos artigos eensaios que escrevi durante os últimos anos, quase todos eles publi-cados em Plural (1971-1976) e em Vuelta. O título provém deum ensaio sobre a peculiar fisionomia do Estado mexicano.19

O nosso escritor achava que escrevia literatura política. Situava estegênero literário no contexto da historiografia: quando pretende-mos conhecer a estrutura das nossas sociedades, frisava Paz, re-montamo-nos às nossas origens, ou seja, fazemos história. Nãoexiste, a bem da verdade, para o escritor mexicano, a sociologia,como ciência autônoma. Ela é uma variante da história. Assimcomo no século XIX os pensadores sociais – como era o caso deMarx – relacionavam a sociologia com a ciência de moda nessestempos, a biologia, no século XX Octavio Paz buscava des-positi-vizar a sociologia tornando-a uma variante da história. O escritorfazia suas as seguintes palavras do historiador francês Paul Veyne(nasc. 1930): “A fórmula de Newton explica o movimento dosplanetas, a patologia microbiana explica a raiva e o aumento deimpostos explica a impopularidade de Luis XVI”. As categoriassociológicas, pensava Paz, emergiam dos processos históricos aten-tamente estudados pelos cientistas sociais. Ora, os sistemas socio-lógicos não seriam mais do que conjuntos de tipologias justifica-das pela história. Estaríamos, aqui, em face de uma proposta bemsemelhante à desenvolvida pelos doutrinários na França, notada-mente por François Guizot (1787-1874), que pretendia resgatar

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as características marcantes da sociedade francesa, mediante origoroso estudo historiográfico das origens desse país no contextoeuropeu. A propósito, escrevia Octavio Paz:

Se quisermos saber algo de física ou de biologia, acudimos a certosprincípios e leis que formam um corpo de doutrina mais ou menosinvariante; se quisermos saber algo de sociologia, não temos maisremédio que estudar os sucessivos sistemas sociológicos: Durkheimnão exclui a Tocqueville nem Max Weber a Pareto. Como estesdois grandes mestres, os jovens mexicanos dos anos 20 interessa-vam-se pelos problemas sociais e políticos do México, e acreditavamque faziam estudos sociológicos, mas o que praticavam realmenteera a história.20

Mais do que se definir como sociólogo, historiador ou cientistasocial, Octavio Paz preferia caracterizar o seu trabalho como oafazer de quem escreve um testemunho humano. Seria a obra dealguém que, consciente da sua radical insatisfação ontológica comopensante e ser livre, pretende legar para a posteridade um registropessoal do que significou a sua caminhada no seio da sociedadeconvulsionada do século XX. Diríamos – contraditando, nisto, aspalavras do próprio Paz – que se trata de obra legítima de historia-dor, porquanto este é, fundamentalmente, quem se debruça sobreo homem numa determinada época, para reconstruir o que foi odrama do destino humano, alicerçado em testemunhos. Ele é umescritor que constitui prova documental do que é a condição hu-mana. Independentemente de fidelidade a ideologias ou religiões.A sua única fidelidade é para com o homem que duvida e que lutapara sobreviver.

O grande problema a ser enfrentado pelo escritor na América Lati-na e particularmente no México, era a questão da modernização.Octavio Paz destacava que as soluções mirabolantes, alicerçadas

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na pseudociência, já causaram suficientes estragos nos países lati-no-americanos. Era chegado o momento em que os escritores aus-cultassem a alma popular e, a partir das energias dela, elaborassemum projeto humanístico e realista, uma autêntica utopia, não situa-da nos estreitos limites da linha progressista do tempo linear, maspensada no contexto do espaço atemporal da tradição mítica.

Não se trataria, certamente, de os mexicanos – e os latino-america-nos, em geral – reviverem tout-court as tradições míticas dos seusancestrais ameríndios. Tratar-se-ia, sim de, a partir desse chão devalores e representações, a razão elaborar uma proposta referida àsparticulares condições históricas dos homens desta parte do mun-do, de forma a responder aos seus anseios de modernização, massem ficarem atrelados ao passado. Incorporar as perspectivas incer-tas do futuro. Incorporar, também, a experiência dos outros povos,mediante o uso da razão crítica. Incorporar as riquezas da reflexãofilosófica ocidental. Mas não parar aí. Com essa bagagem, ter a au-dácia de pensar, como diria Immanuel Kant (1724-1804): “sapereaude!”.21 Esse seria o repto. E, para responder a ele, seria necessárioreconstruir o passado à luz da crítica racional, a fim de elaborarpropostas viáveis, não simplesmente cópias do que se pensou alhu-res. Tarefa semelhante à enfrentada, segundo o meu ponto de vista,no seu tempo, pelos filósofos doutrinários na França, sob o firmecomando de François Guizot. Pena que o nosso pensador não co-nhecesse a contento a obra dos Doutrinários. Muitas coisas encon-traria, nela, que sintonizariam com os seus anseios. Paz apelava paranão copiar mais soluções já feitas por outros povos. Essa atitudecopista é a que ele denominava de “moral patrimonialista cortesã”.

II – O Estado patrimonial mexicano como “Ogro filantrópico”

Desenvolverei os seguintes itens nesta segunda parte: 1)Ambigüi-dade da sociedade mexicana em face da modernidade. 2) Patriarca-lismo e caudilhismo. 3) Patrimonialismo estamental. 4) Estatismo

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e hipertrofia do Executivo. 5) Saindo do Patrimonialismo no Méxi-co: o caminho da reforma política.

1 – Ambigüidade perante a modernidade

O escritor mexicano considerava que a essência do patrimonialis-mo do seu país decorria da ambigüidade em face da modernização.Pelo fato de ter se expandido à sombra do Império Espanhol (e, afortiori, sob a proteção do catolicismo de cruzada peninsular), osmexicanos nunca acordaram para a prática sistemática da razão. AIlustração ficou a meio caminho. Não houve a formulação de umaética laica, como aquela que passou em determinado momento ainspirar às nações evangelizadas pelo protestantismo. O princípiodo livre exame foi afogado pela ortodoxia da segunda escolástica epela contra-reforma. Ambigüidade: essa é a característica funda-mental da cultura mexicana, em face do ideal da modernização.Esta é desejada. Mas, em decorrência do peso da tradição contra-reformista, jamais é focalizada com tudo quanto essa opção exige,a começar pela livre crítica da razão, da qual emergiriam o individua-lismo e a Ilustração. Assim, quando pensam a modernização do seupaís, os mexicanos oscilam entre o fascínio perante o progresso daRepública Americana e a rejeição da modernidade, que eles carre-gam no seu DNA ameríndio e peninsular. Dolorosa divisão.

A ambigüidade com que a imaginação mexicana representa o rela-cionamento com os Estados Unidos, no sentir de Paz, estruturou-se ao redor de uma versão do mito do gigante bobão mas poderoso,que pode nos esmagar e cujo castelo misterioso nos enche de so-nhos. Disneyworld é o pano-de-fundo dos nossos sonhos (os dos me-xicanos e, em geral, os de todos nós, latino-americanos). Perigo eatração, ódio e amor, identidade e estranheza, ambigüidade repre-sentada no terreno das idéias com a crítica ferrenha contra tudoque é americano, mas que se encontra também espelhada nos nos-

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sos planos de modernização que, invariavelmente, olham para ogigante do norte. No terreno mais subtil da imaginação e do sub-consciente, é a dialética entre o Mundo dos sonhos e a Casa do gigante.

O escritor mexicano particularizava a ambigüidade entre passado efuturo, típica da cultura mexicana, como a representação daquiloque dura (a pedra, a tradição), em face daquilo que é passageiro (amáquina, a inovação). Mexicanos e chicanos ancoraram definitiva-mente num passado de tradições imutáveis e, embora o segundogrupo more nos Estados Unidos, manteve-se, sempre, fiel às suascrenças ancestrais. Dos grupos imigrantes na República America-na, os chicanos são, de longe, os que melhor se subtraíram às influên-cias culturais norte-americanas.

O tradicionalismo mexicano é, no sentir de Paz, um constante seprojetar em direção ao passado das tradições. Ora, como estas sãovárias, trata-se, portanto, de conviver com múltiplos passados. Comoentre os mexicanos não se instalou definitivamente, de forma ple-na, a Ilustração, jamais foi feita uma crítica a esses passados, deforma que eles continuam assombrando ao cidadão mexicano con-temporâneo. Não acontece isso com o cidadão norte-americanoherdeiro dos pilgrim brothers, filhos da crítica calvinista aos valoresmedievais. Eles já nasceram projetados para o futuro, em decorrên-cia dessa herança crítica. Para os norte-americanos, a sua tradição éa crítica do passado efetivada no início da modernidade; a tradiçãodeles é o Iluminismo, enquanto que, para os mexicanos, as múlti-plas tradições em que ancoram, rejeitam a crítica iluminista. A res-peito, o nosso autor escrevia acerca dessas ambigüidades, utilizan-do ainda a imagem do castelo do gigante:

Viajar pelos Estados Unidos, para um mexicano, é penetrar nocastelo do gigante e percorrer as suas câmaras de horrores e maravi-

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lhas. Mas há uma diferença: o castelo do ogro nos surpreende peloseu arcaísmo, os Estados Unidos pela sua novidade. O nosso pre-sente está, sempre, um pouco atrás do verdadeiro presente, enquan-to que o deles está um pouco mais adiante. O deles é um presente emque já está escrito o porvir; o nosso está ainda amarrado ao passa-do. Faço mal em usar o singular quando falo do nosso passado: sãomuitos, ainda estão vivos e todos pelejam continuamente no nossointerior. Astecas, maias, otomões, castelhanos, mouros, fenícios,galegos: emaranhado de raízes e ramas que nos afogam. Como con-viver com eles sem ser o seu prisioneiro? Essa é a pergunta que, semcessar, fazemos e à qual não temos conseguido dar uma respostadefinitiva. Não temos sabido assumir o nosso passado, talvez, porquetampouco temos sabido fazer a sua crítica. A dificuldade dos norte-americanos é precisamente a contrária: nasceram como uma críticacortante ao passado. Essa crítica foi uma afirmação não menosradical dos valores da modernidade, tal como tinham sido defini-dos primeiro pela Reforma e, depois, pela Ilustração. Não é quenão tenham um passado; é um passado orientado ao futuro.22

A ambigüidade cultural mexicana, do ângulo ideológico, traduziu-se em algo que é também observável no Brasil: os mexicanos ado-taram a retórica liberal, sem que as palavras fossem sustentadas porrealidades correspondentes aos significantes23. Esvaziamento da lin-guagem numa dolorosa bifurcação entre significantes provenientesdo Iluminismo e significados vinculados às tradições telúricas quenegavam essa linguagem. A respeito escrevia Paz:

A carreira imperial da República norte-americana coincide, em suaprimeira parte, durante a segunda metade do século XIX, com aimplantação [no México] do regime liberal, que não tardou em setransformar em ditadura. É um fenômeno que, mutatis mutan-dis, repete-se em toda a América Espanhola. A revolução liberal,iniciada na Independência, não resultou na implantação de uma

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verdadeira democracia, nem no nascimento de um capitalismo naci-onal, mas numa ditadura militar e num regime econômico caracteri-zado pelo latifúndio e as concessões a empresas e consórcios estran-geiros, especialmente norte-americanos. O liberalismo foi infecundoe não produziu nada comparável às criações pré-colombianas ou àsda Nova Espanha: nem pirâmides nem conventos, nem mitos cos-mogônicos nem poemas de sóror Juana Inés de la Cruz. O Méxicoseguiu sendo o que tinha sido, mas já sem acreditar naquilo queera. Os velhos valores caíram por terra, não as velhas realidades.Cedo foram recobertas pelos novos valores progressistas e liberais.Realidades mascaradas: começo da inautenticidade e da mentira,males endêmicos dos países latino-americanos. No início do séculoXX estávamos já instalados em plena pseudomodernidade: estra-das de ferro e latifúndio, constituição democrática e um caudilhodentro da melhor tradição hispano-árabe, filósofos positivistas ecaciques pré-colombianos, poesia simbolista e analfabetismo. Aadoção do modelo norte-americano contribuiu para a dissolução dosvalores tradicionais; a ação política e econômica do imperialismonorte-americano fortaleceu as arcaicas estruturas sociais e políticas.Essa contradição revelou que a ambivalência do gigante não eraimaginária mas real: o país de Thoreau era também o país deRoosevelt-Nabucodonosor.24

Vale a pena anotar, à margem desta última citação que, nas duasderradeiras linhas, o nosso pensador deixava explícita, mais umavez, a duplicidade não apenas da representação que os mexicanostinham de si próprios – portadores de uma pseudomodernidade –como dos norte-americanos, que eram imaginados, ao mesmo tem-po, como o gigante perverso que a todos encadeava e o país queencarnava os ideais da liberdade.

No fundo da ambigüidade mexicana – e também ibero-americana –como fonte secreta da mesma, esconde-se a ambigüidade de que

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foi vítima o Império espanhol sob a dinastia dos Áustrias. Domina-vam o maior Império do mundo naquele momento (final do séculoXVI e primeiras décadas do século XVII), mas permaneciam anco-rados na escala de valores da Idade Média. Essa ambigüidade ibéri-ca foi a responsável pelo progressivo desmonte do Império espa-nhol e a sua saída de cena, deixando na primeira linha da políticaeuropéia outras potências: a França e a Inglaterra. A respeito, onosso autor escrevia:

As sociedades não morrem vítimas de suas contradições mas da suaincapacidade para resolve-las. Quando isso ocorre, uma espécie deparálise imobiliza o corpo social, primeiro os centros pensantes edeliberativos, depois os braços executores. A parálise é uma respos-ta da sociedade a perguntas sobre as que a sua tradição e os pressu-postos de sua história não oferecem outra saída do que o silêncio.Isso foi o que aconteceu com o Império espanhol. Todas as desgraçasdos povos hispano-americanos são efeitos longínquos desse estuporfeito de obstinação, orgulho e cegueira que tomou conta da monar-quia austríaca em meados do século XVII.25

2 – Patriarcalismo e Caudilhismo

O pensador mexicano achava que o Estado, tanto no México quan-to no resto da América Latina, tinha-se consolidado, fundamental-mente, como uma instituição de tipo patrimonialista. Não ocorreu,em terras americanas, sob a inspiração ibérica, um Estado de tipocontratualista, como o que acabou sendo organizado na AméricaAnglo-Saxã (nos Estados Unidos e no Canadá). O nosso foi umtipo de organização patrimonialista, em que o poder foi organizadode forma semelhante a como o patriarca organiza a sua família: oEstado emerge da hipertrofia de um poder patriarcal original, quealarga sua dominação doméstica sobre territórios, pessoas e coisas

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extrapatrimoniais, passando a administrá-los como propriedade fa-miliar (patrimonial).26 A propósito desta forma familística de orga-nização do poder em Ibero-américa, escrevia Paz:

Os primeiros germes da democracia neste continente aparecem nascomunidades e seitas dissidentes de Nova Inglaterra. Certamenteos espanhóis estabeleceram, nas terras conquistadas, a instituiçãodo ajuntamento, fundado no autogoverno das vilas e cidades. Masos ajuntamentos viveram sempre uma vida precária, estranguladospor uma extensa e complexa teia de jurisdições e privilégios buro-cráticos, eclesiásticos e econômicos. Nova Espanha foi, sempre, umasociedade hierárquica, sem governo representativo e dominada pelopoder dual do Vice-rei e o Arcebispo. Max Weber dividia os regi-mes pré-modernos em duas grandes categorias: o sistema feudal e opatrimonial. No primeiro, o Príncipe governa com – às vezes, con-tra – os seus iguais pelo nascimento e pela dignidade social: os ba-rões; no segundo, o Príncipe rege a nação como se fosse o seu patri-mônio e a sua casa; os seus ministros são os seus familiares e os seuscriados. A monarquia espanhola é um exemplo de regime patrimo-nialista. Também o foram (e o são) as suas sucessoras, as repúbli-cas democráticas da América Latina, oscilantes sempre entre oCaudilho e a Demagogia, o Pai déspota e os Filhos revoltosos.27

Esse processo de diferenciação na organização do Estado decorre,no sentir de Paz, da presença de duas tradições religiosas: a refor-mista e a contra-reformista. Nos países da América em que vingoua Reforma Protestante, consolidou-se o tipo de Estado contratua-lista, com sociedades altamente diversificadas; já nos países em quevingou a Contra-Reforma, terminou prevalecendo o tipo de Esta-do patrimonial. A propósito, Paz escrevia o seguinte:

As comunidades religiosas de Nova Inglaterra firmaram ciosamente,desde o seu nascimento, a sua autonomia perante o Estado. Inspi-

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rados no exemplo das igrejas cristãs dos primeiros séculos, estesgrupos foram sempre hostis à tradição autoritária e burocrática daIgreja católica. Desde Constantino, o cristianismo tinha vivido emsimbiose com o poder político; durante mais de mil anos, o modeloda Igreja tinha sido o Império cesáreo-burocrático de Roma e Bi-zâncio. A Reforma foi o rompimento desta tradição. Por sua vez,as comunidades religiosas da Nova Inglaterra levaram essa ruptu-ra às suas últimas conseqüências, enfatizando os traços igualitáriose a tendência ao auto-governo dos grupos protestantes dos PaísesBaixos. Na Nova Espanha, a Igreja foi, ante tudo, uma hierar-quia e uma administração, ou seja, uma burocracia de clérigos quelembra, em alguns de seus aspectos, a instituição dos mandarins doantigo império chinês. Daí a admiração dos jesuítas, no séculoXVII, em face do regime de K’ang-hsi, no qual viram realizada,por fim, a sua idéia do que poderia ser uma sociedade hierárquicae harmoniosa. Uma sociedade estável mas não estática, como umrelógio que, embora sempre marche, dá sempre as mesmas horas.Nas colônias inglesas, a igreja não foi uma hierarquia de clérigosdonos do saber, mas a livre comunidade dos fiéis. A igreja foiplural e esteve, desde o início, constituída por uma rede de associa-ções de crentes, verdadeira prefiguração da sociedade política dademocracia.28

Octavio Paz, como no Brasil Gilberto Freyre29 e Oliveira Vianna,30

considerava que a base culturológica sobre a qual assentou a socie-dade, ao longo dos cinco séculos de história, era a família. Estaprimeira organização social, essa celula mater foi a origem de tudo eé a partir dela que deve ser entendida a teia de crenças fundamen-tais que alimentam o imaginário coletivo dos mexicanos. O patriar-calismo, fonte do Patrimonialismo. Esse foi o caminho percorridopela sociedade. A propósito do papel essencial representado pelafamília, escrevia o nosso autor:

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No fundo da psiquê mexicana há realidades recobertas pela histó-ria e pela vida moderna. Realidades ocultas, mas presentes. Umexemplo é a nossa imagem da autoridade política. É evidente que,nela, há elementos pré-colombianos e, também, restos de crençashispânicas, mediterrâneas e muçulmanas. Por trás do respeito aosenhor Presidente está a imagem tradicional do Pai. A família éuma realidade muito poderosa. É o lar no sentido originário dapalavra: centro e reunião dos vivos e dos mortos, ao mesmo tempoaltar, cama onde se pratica o amor, fogão onde se cozinha, cinzaque enterra os antepassados. A família mexicana atravessou qua-se indemne vários séculos de calamidades e somente até agora come-ça a se desintegrar nas cidades. A família deu aos mexicanos assuas crenças, valores, conceitos sobre a vida e a morte, o bom e omau, o masculino e o feminino, o belo e o feio, o que se deve fazer eo indevido. No centro da família: o pai. A figura do pai bifurca-sena dualidade de patriarca e de macho. O patriarca protege, é bom,poderoso, sábio. O macho é o homem terrível, o chingón, o pai quefoi embora, que abandonou mulher e filhos. A imagem da autori-dade mexicana inspira-se nesses dois extremos: o senhor Presidentee o Caudilho.31

Embora o nosso escritor considerasse que, no México, os presidentesda República, no período posterior à Revolução positivista, todospertencessem ao Partido Revolucionário Institucional, no entanto,achava que eles não encarnavam a figura do tradicional caudilho his-pano-americano, em decorrência de terem sido legitimados por umainvestidura, ao passo que o caudilho tradicional sobrepõe-se a ela. Paz,a bem da verdade, caracteriza o patrimonialismo republicano mexi-cano como um tipo de dominação patrimonial estamental, algo seme-lhante ao que aconteceu no Brasil republicano sob a égide do getulis-mo. Mas, de qualquer forma, mesmo no México, está presente o cau-dilhismo, fenômeno que o nosso pensador considerava como algo

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típico da América Espanhola, um traço cultural possivelmente her-dado do nosso passado árabe peninsular. A respeito, escrevia:

A imagem do caudilho não é mexicana unicamente, mas espanholae hispano-americana. Talvez é de origem árabe. O mundo islâmicocaracterizou-se pela sua incapacidade para criar sistemas estáveisde governo, quer dizer, não instituiu uma legitimidade suprapesso-al. O remédio contra a instabilidade foi e são os chefes, os caudi-lhos. Na América Latina, continente instável, os caudilhos nascemcom a Independência; nos nossos dias chamam-se Perón, Castro e,no México, Díaz, Carranza, Obregón, Calles. O caudilho é he-róico, épico: é o homem que está além da lei. O Presidente é ohomem da lei: o seu poder é institucional. Os presidentes mexicanossão ditadores constitucionais, não caudilhos. Têm poder enquantosão presidentes; e o seu poder é quase absoluto, quase sagrado. Masdevem o seu poder à investidura. No caso dos caudilhos hispano-americanos, o poder não lhes vem da investidura, mas eles confe-rem investidura ao poder.32

O caudilhismo, no sentir de Paz, produzia a instabilidade. Pelo fatode não ter conseguido elaborar um processo de legitimidade buro-crática, a sucessão do caudilho é sempre traumática. Os processossucessórios dos países latino-americanos, que evoluíram em dire-ção ao patrimonialismo estamental, deram ensejo a uma certa esta-bilidade: tal é o caso do presidencialismo mexicano. Mas como naAmérica Latina o caudilhismo é a regra e não a exceção, a instabili-dade é, por conseqüência, o clima do continente. Em relação a esteponto, o nosso pensador escrevia:

O princípio de rotatividade, que é uma das características do siste-ma mexicano, inexiste nos regimes caudilhescos da América Lati-na. Aqui aparece, ao lado do tema do pai terrível, outra vez otema da legitimidade. O mistério ou o enigma da origem. Algoparticularmente grave para a América Latina, desde a Indepen-

29Car ta Mensa l . Rio de Jane iro, v. 54, n . 638, p. 3-61, maio 2008

dência. O caudilhismo, que foi e é o verdadeiro sistema de governolatino-americano, não conseguiu resolver a questão da sucessão. Noregime caudilhesco, a sucessão realiza-se pelo golpe de estado, oupela morte do caudilho. O caudilhismo, concebido como remédioheróico contra a instabilidade, é o grande produtor de instabilidadeno continente. A instabilidade é conseqüência da ilegitimidade. De-pois de aproximadamente dois séculos de independência da monar-quia espanhola, os nossos povos não encontraram ainda uma for-ma de legitimidade. Nesse sentido, o compromisso mexicano – acombinação de presidencialismo e dominação burocrática de umpartido único – foi uma solução. Mas é cada vez menos uma saídaviável.33

A perspectiva familística: ela explica tanto o caudilhismo mexicanoquanto o surgimento do Patrimonialismo, na sua forma mais tradici-onal, herdada da Espanha. Proveio dessa herança a idéia de que opoder é administrável como bem de família, de que o Estado, que é oproduto do poder, pode ser loteado entre amigos e apaniguados, deque parcelas dele podem ser comercializadas se os donos do mesmoacharem conveniente. A respeito, escrevia o pensador mexicano:

Do ângulo da persistência do patrimonialismo é fácil de entendereste fenômeno [da corrupção]. Em todas as cortes européias, duran-te os séculos XVII e XVIII, eram vendidos os empregos públicos ehavia tráfico de influências e favores. Durante a regência de Mari-ana de Áustria, Dom Fernando Valenzuela (o Duende do Palá-cio), num momento de escassez do tesouro público, decidiu consultarcom os teólogos se era lícito vender ao melhor pagador os altos car-gos, entre eles os vice-reinados de Aragão, Nova Espanha, Peru eNápoles. Os teólogos não encontraram nada nas leis divinas, nemnas humanas, que fosse contrário a esse recurso. A corrupção daadministração pública mexicana, escândalo de próprios e estranhos,não é, no fundo, mais do que uma manifestação da persistência

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dessas maneiras de pensar e de sentir, que exemplifica o parecer dosteólogos espanhóis. Pessoas de irreprochável conduta privada, exem-plos de moralidade na sua casa e no seu bairro, não têm escrúpulospara dispor dos bens públicos como se fossem próprios. Trata-senão tanto de uma imoralidade quanto da vigência inconsciente deoutra moral: no regime patrimonial são mais bem vagas e flutuan-tes as fronteiras entre a esfera pública e a privada, entre a famíliae o Estado. Se cada um é o rei na sua casa, o reino é como uma casae a nação como uma família. Se o Estado é o patrimônio do Rei,como não vai sê-lo também de seus parentes, seus amigos, seus ser-ventes e os seus favoritos? Na Espanha, o Primeiro Ministro cha-mava-se significativamente, Privado.34

Octavio Paz considerava que, no México, o Estado Patrimonialtinha percorrido três grandes etapas: Estado forte na época de Nue-va España, no período colonial; Estado fraco, com a privatizaçãodo poder pela Igreja e pelos Senhores Patrimoniais Locais (bispos ecomunidades religiosas, de um lado e, de outro, ricos proprietáriose grandes fazendeiros), no século XIX, após a Independência daEspanha; Estado Patrimonial (Estamental) Forte, com o adventoda República Positivista, no século XX.

Numa curiosa aproximação, o nosso pensador traçava um paraleloentre o Estado Patrimonial mexicano e o russo, destacando os ele-mentos semelhantes entre ambas realidades, mas acrescentando, tam-bém, a diferença fundamental. Esta consistiu no fato de o Estadorusso ter enveredado pelo caminho do poder total, em decorrência dofato de o Partido, na Rússia, ter-se tornado o verdadeiro Estado, aopasso que, no México, o Partido não passou de um instrumento doEstado. Vale a pena transcrever os termos dessa comparação, queressalta a inegável acuidade sociológica do nosso autor:

Lembrei o caso da Rússia porque, por mais longínquo que pareça,

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ilumina indiretamente as peculiaridades da situação mexicana.Como na Rússia de início do século [XX], o projeto histórico dosintelectuais mexicanos e, também, o dos grupos dirigentes e da bur-guesia ilustrada, pode-se resumir na palavra modernização (in-dústria, democracia, técnica, laicismo, etc.). Como na Rússia, dian-te da relativa debilidade da burguesia nativa, o agente central damodernização foi o Estado. Por último, como na Rússia, o nossoEstado é o herdeiro de um regime patrimonial: o vice-reinado novo-hispano. No entanto, há diferenças capitais. A primeira: entre oEstado novo-hispano e o moderno interpõe-se o breve mas marcan-te período democrático da República Restaurada (1867-1876). Asegunda: enquanto o Estado totalitário liquidou a burguesia rus-sa, submeteu os camponeses e os operários, exterminou os seus ri-vais políticos, assassinou os seus críticos e criou uma nova classedominante, o Estado mexicano tem compartilhado o poder não sócom a burguesia nacional, mas também com os quadros dirigentesdos grandes sindicatos. Já destaquei que a relação entre os governosmexicanos, os dirigentes operários e camponeses e a burguesia éambígua, uma espécie de aliança instável não isenta de querelas,notadamente entre o setor privado e o público. Tudo isso pode seresumir numa diferença que abarca a todas e que é capital: enquan-to na Rússia o Partido é o verdadeiro Estado, no México o Estadoé o elemento substancial e o Partido é o seu braço e o seu instrumen-to. Assim, embora o México não seja realmente uma democracia,tampouco é uma ideocracia totalitária.35

Uma das características marcantes do Estado patrimonial mexica-no – extensiva, também, aos outros estados ibero-americanos –consistia, segundo Octavio Paz, no fato de as respectivas socieda-des não se terem diversificado em correntes de opinião que acom-panhassem uma diversificação da representação de interesses. Comotudo, na América Latina, decorreu do fato da hipertrofia do Estadosobre a sociedade, terminou acontecendo que esta não se diferen-

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ciou em Partidos que exprimissem uma diversidade política. Nãoencontramos nem no México, nem nos restantes países da AméricaLatina, Partidos Conservadores solidamente definidos36. De outrolado, não achamos Partidos Socialistas de índole democrática. Arespeito do fenômeno apontado, escrevia o nosso autor:

O espectador mais distraído descobre imediatamente, neste panora-ma, duas grandes ausências. Uma, a de um Partido Conservadorcomo o Republicano dos Estados Unidos ou os partidos conserva-dores da Grã-Bretanha, França, Alemanha e Espanha; outra, ade um autêntico Partido Socialista com influência entre os traba-lhadores, os intelectuais e a classe média. Isto é verdadeiramentelamentável e revela, cruelmente, uma das carências mais graves doMéxico e da América Latina, a inexistência de uma tradição socia-lista democrática.37

3 – Patrimonialismo estamental

O pensador mexicano considerava que, na América Latina, apenas oMéxico tinha conseguido superar a modalidade de patrimonialismocaudilhista, para evoluir em direção a uma forma mais sofisticada, ado patrimonialismo estamental. O nosso pensador não conhecia,decerto, de forma suficiente, a história do republicanismo brasileiro,onde, como frisamos atrás, também vingou um modelo de patrimo-nialismo estamental, ao ensejo do ciclo castilhista-getuliano.38 A par-ticularidade mexicana, no contexto do continente latino-americano,decorre, segundo Paz, da prática dessa modalidade de dominação. Opatrimonialismo estamental, centrado na figura do presidente da Re-pública legitimado pelo Partido Único, essa seria a peça-chave dadominação patrimonialista no México. Essa estrutura tem um efeitocultural importante: instaura a preponderância da variável políticasobre a econômica, fato que o nosso autor considerava um traço pré-

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moderno da cultura mexicana. O primeiro a pôr em funcionamentoessa maquinaria foi o General Lázaro Cárdenas.

Característica marcante do patrimonialismo estamental mexicanofoi o fato, destacado pelo nosso pensador, de os donos do poder cha-marem os intelectuais para colaborar na gestão do Estado, notada-mente quando se fazia necessário elaborar novos modelos de orga-nização constitucional, ao ensejo da revolução positivista, no períodoque vai de 1920 a 1940. Mas essa colaboração, ressaltava o nossoautor, sempre foi desenvolvida no contexto de uma rigorosa coop-tação. Os intelectuais mexicanos desse período terminaram sendoenganados pelo Executivo hipertrofiado: ele os chamava para cola-borar, mas não os queria escutar! A respeito, Paz frisa:

A vocação intelectual da geração de Cosío Villegas foi inseparávelde sua vontade de reforma social, política e moral. Num primeiromomento, todos eles conceberam a sua atividade não defronte oucontra, mas dentro do Estado. O governo revolucionário tinha-oschamado para colaborar na tarefa da reconstrução nacional. E eles,ao aceitarem esse chamado, assumiram por inteiro a responsabili-dade dessa colaboração. Inclusive a crítica ao poder se fez dentro dopoder. A diferença com os intelectuais europeus ou com a situaçãodo México contemporâneo é radical. Entre 1920 e 1940, os inte-lectuais do México acreditaram que a sua missão era a de seremconselheiros dos príncipes revolucionários. A realidade os desenga-nou cruelmente: aqueles príncipes, como quase todos os da história,ou estavam surdos ou não queriam ouvir.39

Quanto à estrutura sociológica do patrimonialismo estamental mexi-cano, o nosso autor a entendia como um jogo de dominação entre cin-co grandes estamentos: a Tecnocracia Administrativa, a Casta Política,o Capitalismo Privado, as Burocracias Operárias e os Estudantes eIntelectuais (que seriam os porta-vozes da classe média). Nesse con-

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junto de grupos sociais, prevalecem as decisões da Tecnocracia Admi-nistrativa e da Casta Política que, de um lado, não são homogêneas,havendo muitos conflitos de interesses entre uma e outra. De outrolado, Paz destacava que essas duas instâncias de dominação precisa-vam constantemente de estar negociando as decisões fundamentaiscom os outros três grupos. Tratar-se-ia, portanto, do ponto de vista daracionalidade administrativa, de um modelo tipicamente patrimonia-lista, do tipo que Paul Milukov identificou como “racionalidade admi-nistrativa variável”: não se estrutura, no interior do Estado, uma racio-nalidade plena, apenas uma racionalidade condicionada pela manuten-ção da estrutura do poder em mãos dos estamentos privilegiados.40

A respeito, Paz escrevia:

O poder central, no México, não reside nem no capitalismo privadonem nas uniões sindicais, nem nos partidos políticos, mas no Esta-do. Trindade secular, o Estado é o Capital, o Trabalho e o Parti-do. No entanto, não é um Estado Totalitário nem uma ditadura(...). No México, o Estado pertence a uma dupla burocracia: atecnocracia administrativa e a casta política. Ora, essas burocraci-as não são autônomas e vivem em contínua relação de rivalidade ede cumplicidade, de alianças e rompimentos com os outros dois gru-pos que compartem a dominação do país: o capitalismo privado eas burocracias operárias. Estes grupos, por sua vez, tampouco sãohomogêneos e estão divididos por querelas de interesses, de idéias epessoas. Há também um outro setor, cada vez mais influente eindependente: a classe média e os seus porta-vozes, os estudantes eos intelectuais.41

O constante confronto entre a Tecnocracia Administrativa e a CastaPolítica, terminou fazendo com que, no México contemporâneo, pre-valecessem os interesses patrimonialistas sobre o esforço em prol deorganizar uma gestão racional do Estado. O perfil de privatização do

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poder por parte dos Estamentos terminou comprometendo a eficiên-cia e a modernização do Estado. Trata-se de uma situação contradi-tória. A história do México atual oscila, a cada seis anos, não entre amodernização pura e simples e o atraso, mas entre os interesses pri-vatistas das clientelas políticas que se revezam no poder ao redor dotrono do Presidente; ora, nessa luta termina sendo minimizado o es-forço modernizador veiculado pela Tecnocracia Administrativa. As-sim destacou Octavio Paz essa confusa realidade, cujo traço funda-mental é a preservação do Estado patrimonial, ou seja, a pervivênciada tradição que faz com que as instituições políticas sejam sempregeridas como propriedade privada dos donos do poder:

Falta-me mencionar outra característica notável do Estado mexica-no: apesar de ter sido o agente cardinal da modernização, ele pró-prio não conseguiu se modernizar plenamente. Em muitos de seusaspectos, especialmente no seu relacionamento com o público e nasua maneira de conduzir os negócios, continua sendo patrimonialis-ta. Num regime desse tipo, o chefe do Governo – o Príncipe ou oPresidente – consideram o Estado como o seu patrimônio pessoal.Por tal motivo, o corpo dos funcionários e empregados governamen-tais, dos ministros aos contínuos e dos magistrados e senadores aosporteiros, longe de constituir uma burocracia impessoal, forma umagrande família política ligada por vínculos de parentesco, amizade,compadrio, regionalismo e outros fatores de índole pessoal. O patri-monialismo é a vida privada incrustada na vida pública. Os mi-nistros são os familiares e os criados do rei. Por isso, embora todosos cortesãos comunguem no mesmo altar, os regimes patrimonialis-tas não se petrificam em ortodoxias nem se transformam em buro-cracias. São o contrário de uma igreja e daí que, contrariamente aoque ocorre em corpos como a Igreja Católica ou o Partido Comunis-ta, os vínculos entre os cortesãos não são ideológicos mas pessoais.Nas burocracias políticas e eclesiásticas, a ordem hierárquica é sa-grada e está regida por regras objetivas e princípios imutáveis tais

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como a iniciação, o noviciado e a aprendizagem, a antigüidade noserviço, a competência, a diligência, a obediência aos superiores, etc.No regime patrimonial o que conta, em última instância, é a vonta-de do Príncipe e de seus colaboradores mais próximos.42

Esse convívio diuturno entre cortesãos movidos por interesses patri-monialistas e tecnocratas inspirados por metas de modernização, fazcom que o trabalho destes últimos se torne infrutífero e que as velhasestruturas do Estado continuem agarradas ao passado de clientelis-mos e privilégios. Em suma, a estrutura patrimonial das instituiçõespolíticas termina comprometendo o processo de modernização dasociedade e do próprio Estado. O resultado é o atraso do país. Eis aforma em que o nosso autor explicava essa doença do sangue patri-monialista num corpo com algumas feições de modernidade:

No interior do Estado mexicano há uma contradição enorme queninguém conseguiu ou intentou sequer resolver: o corpo de tecnocra-tas e administradores, a burocracia profissional compartilha osprivilégios e os riscos da administração pública com os amigos, osfamiliares e os favoritos do Presidente de plantão e com os amigos,os familiares e os favoritos de seus Ministros. A burocracia mexi-cana é moderna, propõe-se a modernizar o país e os seus valoressão valores modernos. Diante dela, às vezes como rival e outrascomo associada, levanta-se uma massa de amigos, parentes e favo-ritos unidos por laços de ordem pessoal. Esta sociedade cortesã re-nova-se parcialmente a cada seis anos, ou seja, cada vez que ascen-de ao poder um novo Presidente. Tanto pela sua situação quantopela ideologia implícita e o seu modo de recrutamento, estes corposcortesãos não são modernos: são uma supervivência do patrimonia-lismo. A contradição entre a sociedade cortesã e a burocracia tecno-crata não paralisa o Estado mas torna difícil e sinuosa a suamarcha. Não há duas políticas dentro do Estado: há duas manei-ras de entender a política, dois tipos de sensibilidade e de moral.43

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Nesse contexto de dominação patrimonialista, o Partido a serviçodas clientelas políticas arrebanhadas pelo Presidente da Repúblicaé o grande canal de ascensão social e a esperança das novas gera-ções. Não se trata, no caso mexicano, de um Partido terrorista, quepretenda mudar a essência humana a ferro e fogo. O Partido Revo-lucionário Institucional é uma agremiação de conveniência da bu-rocracia estatal e das clientelas políticas, é um instrumento patri-monialista que serve aos interesses de cooptação dos donos do podere que, ao mesmo tempo, responde às necessidades dos novos seg-mentos sociais que buscam um lugar ao sol. Octavio Paz caracteri-zava, nestes termos, a função mediadora do PRI:

A natureza peculiar do Estado mexicano revela-se pela presença,no seu interior, de três ordens ou formações diferentes (mas em con-tínua comunicação e osmose): a burocracia governamental propria-mente dita, mais ou menos estável, composta por técnicos e adminis-tradores, feita à imagem e semelhança das burocracias das socieda-des democráticas do Ocidente; o conglomerado heterogêneo de ami-gos, favoritos, familiares, serviçais e protegidos, herança da socie-dade cortesã dos séculos XVII e XVIII; a burocracia política doPRI, formada por profissionais da política, associação não tantoideológica quanto de interesses de grupelhos e individuais, grandecanal da mobilidade social e grande fraternidade aberta aos jovensambiciosos, geralmente sem fortuna, recém-saídos das universida-des e dos colégios de educação superior. A burocracia do PRI está ameio caminho entre o partido político tradicional e as burocraciasque militam sob uma ortodoxia e que agem como milícias de Deusou da História. O PRI não é terrorista, não quer mudar os ho-mens nem salvar o mundo: quer se salvar a si mesmo. Por isso querse reformar. Mas sabe que a sua reforma é inseparável da do país.A questão que a História colocou ao México desde 1968 não con-siste unicamente em saber se o Estado poderá governar sem o PRI,mas se os mexicanos deixar-nos-emos governar sem um PRI.44

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Octavio Paz entendia que a organização patrimonialista do Estadomexicano não deixou nenhum segmento social de fora, tendo-secaracterizado por um amplo labor de cooptação. A fim de aproxi-mar e tornar dependente dele todo o setor produtivo, o Estado,após a Revolução Porfirista,45 passou a controlar rigorosamenteoperários e capitalistas, mediante as organizações sindicais inseri-das como peças da engrenagem da burocracia estatal, sendo as úni-cas entidades capazes de negociar com o governo. É curioso comoo escritor mexicano identifica os estamentos da Tecnocracia Admi-nistrativa e da Casta Política com “burocracias paralelas”, quando,de fato, como acabamos de ver, o processo de dominação é exerci-do diretamente através deles. A realidade talvez fosse inversa: opoder patrimonial modernizador e tradicional desses estamentos,teria sido complementado mediante a organização sindical do setorprodutivo.

4 – Estatismo e hipertrofia do Executivo

Octavio Paz considerava que o poder no México foi se centralizan-do cada vez mais, ao longo da história plurissecular do país. Noinício, na era colonial, prevalecia uma espécie de desconcentraçãode poderes no seio da sociedade, herança sem dúvida das tradiçõesmedievais ibéricas, mas que terminou dando ensejo, com o correrdos séculos, a uma modalidade de poder concentrado, sendo que amelhor expressão dessa hipertrofia era o moderno presidencialis-mo. A propósito dessa evolução, escrevia o nosso pensador:

Desde a segunda metade do século XVI até finais do XVII, NovaEspanha foi uma sociedade estável, pacífica e próspera. Houveepidemias, ataques de Piratas, escassez de milho, tumultos popu-lares, sublevações de nômades no norte, mas houve, também, abun-dância, paz e, com freqüência, bom governo. Não porque todos os

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vice-reis fossem bons, embora houve alguns excelentes, mas porqueo sistema constituía, de fato, um regime de equilíbrio de poderes. Aautoridade do Estado estava limitada pela da Igreja. Por sua vez,o poder do Vice-rei enfrentava-se ao da Audiência e o do Arcebis-po ao das Ordens Religiosas. Embora nesse sistema hierárquico osgrupos populares não podiam ter senão uma influência indireta, adivisão de poderes e a pluralidade de jurisdições obrigavam o Go-verno a buscar uma espécie de consenso público. Nesse sentido, osistema da Nova Espanha era mais flexível que o atual sistemapresidencialista. Sob a máscara da democracia, os nossos presiden-tes são, à maneira romana, ditadores constitucionais. Só que aditadura romana durava seis meses e a nossa seis anos.46

Para o Nobel mexicano era claro que o poder exercido, no seu país,de forma patrimonial terminou reforçando o Executivo e o predo-mínio do Estado sobre a sociedade. Ao ensejo do predomínio dosinteresses da elite governante sobre o resto dos cidadãos, houveuma mimetização daqueles por trás de uma aparência revolucioná-ria, que curiosamente produziu o abandono das ideologias liberal econservadora e a manutenção de uma retórica revolucionária, sobcujo manto passaram a se resguardar as tradicionais elites patrimo-nialistas. Traços notadamente reacionários da estrutura de poderno México, que Paz desenhava com as seguintes pinceladas:

México é um país centralista, o poder legislativo e o judiciário sãoapêndices obedientes do poder executivo; Porfírio Díaz nomeava osdeputados e senadores e, depois, cada Presidente revolucionário fezo mesmo. Nesse aspecto, a única diferença com o Porfiriato é aexistência do PRI (Partido Revolucionário Institucional). O resul-tado dessa palpável contradição entre a verdade legal e a verdadeverdadeira tem sido a aclimatação da mentira na nossa vida públi-ca. Não menos grave do que a naturalização da mentira tem sido oeclipse das idéias conservadoras: ninguém as professa nem ninguém

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as defende, nem sequer os banqueiros. Explico-me: desapareceu oPartido Conservador e a sua filosofia política, não os interesses con-servadores. O que aconteceu é que esses interesses aparecem mascara-dos, primeiro com a máscara liberal e agora com a revolucionária.47

O fortalecimento exagerado do Estado, no entanto, não era privilé-gio do México do século XX. O estatismo foi, com certeza, o gran-de mal da política mundial nesse período da História da Humanida-de. Pensava Octavio Paz que faltou um instrumento conceitual deanálise adequado, a fim de desmascarar esse terrível problema.Embora conhecedor da obra de Max Weber, o nosso autor pareceesquecer, aqui, que a grande contribuição do sociólogo alemão con-sistiu justamente em ter chamado a atenção para a realidade doEstado, tendo feito da variável política uma área que mereceu todaa sua atenção, notadamente no que tange a explicitar os valores emque se alicerçava a ação humana. Eis a forma em que Paz destaca-va a magnitude do problema do estatismo no século XX:

A pergunta sobre a natureza do Estado é a pergunta central denossa época. Infelizmente, só até há pouco renasceu entre os estudi-osos o interesse por este tema. Para piorar as coisas, nenhuma dasduas ideologias dominantes – a liberal e a marxista – contém ele-mentos suficientes que permitam articular uma resposta coerente. Atradição anarquista é um precedente valioso, mas é preciso renová-la e alargar as suas análises: o Estado que conheceram Proudhone Bakunin não é o Estado totalitário de Hitler, Stalin e Mao.Assim, a pergunta acerca da natureza do Estado do século XXcontinua sem resposta. Autor dos prodígios, crimes, maravilhas ecalamidades dos últimos 70 anos, o Estado – não o proletariadonem a burguesia – tem sido e é o personagem do nosso século. É-loem tal medida que parece irreal: está em todas partes e não temrosto. Não sabemos o que é nem como é. Como os budistas dosprimeiros séculos, que somente podiam representar o Iluminado pelos

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seus atributos, nós conhecemos o Estado só pela imensidão dassuas devastações. É o Desencarnado: não uma presença mas umadominação. É a impessoa.48

O caráter impessoal do Estado: esta é a faceta da política contem-porânea que mais impressionava ao nosso pensador. Realidade tipi-camente moderna. O Estado, mais do que um mal – no sentidometafísico do termo que indica carência ontológica – é positividade,constitui uma verdadeira máquina que se perpetua nas sociedadespelo mundo afora. A propósito, Paz escrevia, perplexo:

O Estado do século XX revelou-se como uma forma mais poderosaque a dos antigos impérios e como um senhor mais terrível que osvelhos tiranos e déspotas. Um senhor sem rosto, desalmado e queage não como um demônio mas como uma máquina. Os teólogos e osmoralistas tinham concebido o mal como uma exceção e uma trans-gressão, uma mancha na universalidade e transparência do ser.Para a tradição filosófica do Ocidente, salvo para as correntesmaniquéias, o mal carecia de substância e somente podia ser defini-do como uma falta, ou seja, como carência de ser. Em sentido estri-to não havia mal, mas existiam os maus: exceções, casos particula-res. O Estado do século XX inverte a proposição: o mal conquistapor fim a universalidade e apresenta-se com a máscara do ser. Sóque na medida em que cresce o mal, tornam-se pequenos os malva-dos. Já não são seres excepcionais, mas espelhos da normalidade.Um Hitler ou um Stalin, um Himmler ou um Yéjov, assombram-nos não só pelos seus crimes, mas pela sua mediocridade. A suainsignificância intelectual confirma a afirmação de Hannah Aren-dt sobre a banalidade do mal. O Estado moderno é uma máqui-na, mas uma máquina que se reproduz sem cessar.49

O Estado moderno, máquina que se reproduz. E, nesse processodiabólico, o instrumento passa a ser o partido único, que impede a

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diversificação de interesses na sociedade – interesses que deve-riam se representar numa pluralidade político-partidária – para darlugar a uma cinzenta massa amorfa dominada pelo partido. A po-lítica contemporânea converte-se, nos países dominados pelo par-tido único, em exercício de unanimidade, com banimento de qual-quer dissenso. Estava assim materializado o ideal que tinha sidopensado por Jean-Jacques Rousseau, no seu oitavo capítulo doContrato social.50 É claro que o fenômeno não se deu no Méxicocom toda a carga de terror e de fanatismo que vingaram em outroslugares, ao ensejo de ideologias radicais como o nazismo ou ocomunismo russo. O Estado Patrimonial mexicano revelou-se,nesse aspecto, mais brando do que outros regimes de partido úni-co. Mas nem por isso o Estado no México deixou de ser autoritá-rio. Um autoritarismo mitigado, que justificaria o título da obraem apreço: o Estado como “ogro filantrópico”. Paz explicava daseguinte forma esse fenômeno:

Trata-se de um fenômeno universal: os partidos únicos apareceramtanto em países fascistas (Itália e Alemanha), quanto em paísescom revoluções no poder, como a União Soviética ou o México. Eagora o fenômeno, longe de se dissipar, estende-se por todo o Tercei-ro Mundo. Um fato concomitante foi a aparição dos dogmatismosideológicos. A ortodoxia é o complemento natural das burocraciaspolíticas e eclesiásticas. Diante das modernas ortodoxias e os seusbispos, sinto a mesma repulsa que tomava conta do pagão Celso,em face dos cristãos primitivos e da sua crença numa verdade única.Felizmente o partido mexicano não é um partido ideológico; como oPartido do Congresso da Índia, é uma coalizão de interesses. Issoexplica o fato de que no México nunca houve terror, no sentidomoderno da palavra. Tampouco houve Inquisição. Houve, sim, vi-olência estatal e violência popular, mas nada parecido com o terro-rismo ideológico do nazismo e do bolchevismo.51

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O Nobel mexicano destacava a necessidade imperiosa de se fazer,na América Latina, uma crítica ao estatismo, a começar pelo regimeque se estruturou em Cuba, modelo mais acabado do vício estati-zante entre os herdeiros da colonização ibérica. Sem meias pala-vras, Octavio Paz partia para uma crítica aprofundada do que eledenominava de “peste autoritária”. Eis as suas palavras:

Tudo isso seria unicamente grotesco se não constituísse um sintomaa mais do fato de que em Cuba já está em marcha o fatal processoque converte ao partido revolucionário em casta burocrática e aodirigente em César. Um processo universal e que nos faz ver comoutros olhos a história do século XX. O nosso tempo é o da pesteautoritária: se Marx fez a crítica do capitalismo, corresponde a nósfazermos a do Estado e das grandes burocracias contemporâneas,tanto as do Leste quanto as do Ocidente. Uma crítica que nós oslatino-americanos deveríamos completar com outra, de ordem histó-rica e política: a crítica ao governo de exceção centrado no homemexcepcional, ou seja, a crítica ao caudilho, essa herança hispano-árabe.52

Os mexicanos sempre conheceram, ao longo de sua secular histó-ria, a realidade de um Estado mais forte do que a sociedade, emque pese os esforços feitos pelos liberais na segunda metade doséculo XIX, no sentido de colocar o Estado a serviço da sociedade,como instrumento dela. O que terminou prevalecendo foi, comcerteza, a indiferenciação social, catalisada pela cooptação de umcentro de poder sobre todos os estamentos e grupos sociais. Nãohouve, no sentir de Paz, propriamente, na história mexicana, umsurto continuado de diferenciação da sociedade em classes, que seorganizassem ao redor da defesa de determinados interesses. OEstado tomou conta de tudo. No decorrer do século XX, esse fenô-meno se tornou mais forte, mediante a incorporação, pelo poder

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central, da técnica como elemento modernizador do próprio Esta-do e da sociedade. É o fenômeno que sociólogos brasileiros comoSimon Schwartzman53 e Antônio Paim54 denominaram de neopatri-monialismo ou patrimonialismo modernizador.

A realidade de um Estado mais forte do que a sociedade conheceu,no México e em outros países latino-americanos, a sua justificativateórica, numa forma de positivismo heterodoxo, que mudou a ordemconceitual vigente no originário comtismo, que era uma doutrina pe-dagógica, visando a garantir a ordem social e política. Os positivistasdeste lado do mundo – mexicanos, colombianos, chilenos e brasilei-ros – inverteram acintosamente a filosofia de Comte (1798-1857),tornando-a uma doutrina da ditadura caudilhista tout-court, a serviçode uma ordem alicerçada na preservação do latifúndio. Castilhismo,porfirismo, regeneração à la Rafael Núñez, foram versões heterodo-xas do comtismo. O nosso autor identificava a forma em que se pro-cessou, no México, esse estranho fenômeno, em decorrência da es-trutura patrimonialista do poder político, que levava a que se gerisseo bem público como a empresa privada do latifundiário:

Da mesma forma na Europa, como que entre nós, o positivismo foiuma filosofia destinada a justificar a ordem social imperante. Mas– e nisto reside a minha crítica – ao atravessar o oceano, o positi-vismo mudou de natureza. Lá a ordem social era a da sociedadeburguesa: democracia, livre discussão, técnica, ciência, indústria,progresso. No México, com os mesmos esquemas verbais e intelectu-ais, em realidade foi a máscara de uma ordem alicerçada no poderlatifundiário. O positivismo mexicano introduziu certo tipo de má-fé em relação às idéias. Equívoco não só entre a realidade social –neolatifundismo, caciquismo, servidão, dependência econômica doimperialismo – e as idéias que pretendiam justificá-la, mas tam-bém aparição de um tipo de má-fé particular, pois introduzia-se naconsciência mesma dos positivistas mexicanos. Produziu-se uma

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cisão psíquica: aqueles senhores que juravam por Comte e por Spencernão eram uns burgueses ilustrados e democratas, mas os ideólogosde uma oligarquia de latifundiários.55

Do predomínio do Estado mais forte do que a sociedade não es-capou, na América Latina, nem a Igreja. Fiel à tendência da domi-nação patrimonialista no sentido de cooptar a religião dominante,o Estado, em Ibero-américa, converteu a instância religiosa eminstrumento de dominação. A religião, que na Europa Ocidentalconstituiu inspiração para os movimentos libertários, na AméricaLatina foi cooptada pelo Estado presidido pelas oligarquias libe-ral-conservadoras no século XIX, ou pelos que acenavam comuma proposta político-libertadora radical, os ativistas de inspira-ção marxista-leninista que, no século XX, formularam a Teologiada Libertação. Eis a forma em que o escritor mexicano entendia acooptação da religião pelos tradicionais dominadores na AméricaLatina, no século XIX:

Do mesmo modo que na tragédia grega a liberdade dos heróis éuma dimensão do Destino, na teologia calvinista a liberdade estáligada à predestinação. Assim, a revolução religiosa da Reformaantecipou a revolução política da democracia. Na América Latinaocorreu precisamente o contrário: o Estado lutou contra a Igreja nãopara fortalecer os indivíduos, mas para substituir o clero no contro-le das consciências e das vontades. Na nossa América não houverevolução religiosa que preparasse a revolução política; tampoucohouve, como na França do século XVIII, um movimento filosóficoque fizesse a crítica da religião e da Igreja. A revolução política naAmérica Latina – refiro-me à Independência e às lutas entre libe-rais e conservadores que ensangüentaram o nosso século XIX –não foi senão uma manifestação, mais uma, do patrimonialismohispano-árabe: combateu a Igreja como a um rival que deveria tirarde cena; fortaleceu o Estado autoritário e os caudilhos liberais não

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foram mais tolerantes que os conservadores; agravou o centralismo,embora com a máscara do federalismo; em fim, tornou endêmico oregime de exceção que impera nas nossas terras desde a Indepen-dência: o caudilhismo.56

Em que pese o poder centrípeto e a supremacia do Estado mexica-no sobre a sociedade, Octavio Paz chamava a atenção para o fatode a dominação patrimonialista deixar interstícios de liberdade àsociedade; não se tratava, evidentemente, de uma sociedade con-tratualista, na qual os indivíduos e os grupos podiam pactuar com oEstado o teor do seu relacionamento com ele. Mas, de outro lado,também não era uma relação de poder total, em que nenhum espa-ço restasse aos indivíduos. Era uma dominação termo-meio, na qualo Estado procura a cooptação, mas sem conseguir polarizar ao re-dor de si todas as instâncias sociais. Comparava o escritor mexica-no esse tipo de relação “benévola”, com os espaços de liberdadepermitidos a um país dependente como México, no jogo internacio-nal, pelo imperialismo norte-americano, em face da maneira decla-radamente despótica em que outras potências – as do mundo co-munista, por exemplo – dominavam aos seus satélites. A respeitodesse ponto de vista, Paz escrevia:

A observação que fiz em face da relação ambígua que prevaleceentre os sindicatos e o Estado mexicano, pode-se aplicar à que nosune com Washington; quero dizer: é uma relação de dominação quenão pode ser reduzida pura e simplesmente ao conceito de depen-dência e que permite certa liberdade de negociação e de movimentos.Há uma margem para a ação. Por mais estreita que nos pareçaessa margem, é de qualquer forma consideravelmente mais amplaque a da Polônia, Hungria, Tchecoslováquia ou Cuba em face daUnião Soviética. Evidentemente, em momentos de crise política, ainfluência do embaixador dos Estados Unidos no México pode ser

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– e, de fato, tem sido – tão importante e decisiva como a do Sátrapado Grande Rei durante a Guerra do Peloponeso. 57

É justamente pelo fato de o Estado mexicano deixar esses interstí-cios de liberdade – como, no plano internacional, a grande potênciaocidental, os Estados Unidos, deixa margem de manobra aos paísesalinhados com ela – que o nosso pensador insistia na necessidadede os mexicanos partirem para um estudo aprofundado – e umacrítica – ao fenômeno do estatismo, no contexto ibero-americano.Somente conhecendo em profundidade tal fenômeno, seria possí-vel ao México de finais do século XX se preparar para que as novasriquezas petrolíferas recém-descobertas passassem a beneficiar re-almente à sociedade, não a uma meia-dúzia de tecnocratas bêbadosde estatísticas. O faraonismo é a conseqüência direta, num paíscomo México, herdeiro da tradição patrimonialista e do despotismohidráulico pré-colombiano, da falta de iniciativa de uma sociedadetradicionalmente insolidária. Paz conclamava aos cientistas sociaispara esse hercúleo trabalho de crítica histórica, reconhecendo queseu papel como escritor era o de um simples ensaísta não sistemáti-co. Em relação a este ponto, escrevia:

As minhas reflexões sobre o Estado não são sistemáticas e devemser vistas, melhor, como um convite aos especialistas para que estu-dem o tema. Esse estudo é urgente. De um lado, o Estado mexica-no é um caso, uma variedade de um fenômeno universal e ameaça-dor: o câncer do estatismo; de outro lado, será o administrador danossa iminente riqueza petrolífera: está preparado para isso? Osseus antecedentes são negativos: o Estado mexicano padece, comodoenças crônicas, da rapacidade e da venalidade dos funcionários.O mal data do século XVI e é de origem hispânica. Na Espanha,o dinheiro da corrupção e dos subornos era chamado de “unto deMéxico”. Contudo, o mais perigoso não é a corrupção mas as tenta-

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ções faraônicas da alta burocracia, contaminada pela mania plani-ficadora do nosso século. O perigo é maior graças à inexistênciadesse sistema de controles e balanças que permite à opinião pública,em outros países, fiscalizar a ação do Estado. No México, desde oséculo XVI, os funcionários contemplaram com menosprezo aosparticulares e foram insensíveis tanto às suas críticas quanto àssuas necessidades. Como poderemos os mexicanos supervisionar evigiar um Estado cada vez mais forte e rico? Como evitaremos aproliferação de projetos gigantescos e ruinosos, filhos da megaloma-nia de tecnocratas bêbados de números e estatísticas? Os caprichosdos antigos príncipes arruinavam as nações mas, pelo menos, dei-xavam palácios e jardins: o que nos deixou a triste fantasia danova tecnocracia? Nos últimos cinqüenta anos assistimos com raivaimpotente à destruição de nossa cidade e de nada nos serviram nemas críticas nem as queixas. Teremos mais sorte com o nosso petróleodo que com nossas avenidas e monumentos?58

5 – Saindo do Patrimonialismo no México: o caminho daReforma Política

O nosso autor achava que o caminho para superar o vício do Patrimo-nialismo estava justamente em percorrer a via recusada pelo Estadomexicano. Ora, essa via caracterizar-se-ia por três coisas, no sentir donosso autor: em primeiro lugar, deveria ser um caminho reformista,não de revoluções. Em segundo lugar, a reforma a ser feita seria apolítica. Em terceiro lugar, o cerne dessa reforma deveria consistir nadescentralização e na construção de uma autêntica representação deinteresses na sociedade. Tarefa difícil, mas não impossível. Paz nãoacreditava nas soluções miraculosas, tipo revoluções mirabolantes, que,de um momento para outro, cortassem com o passado para inaugurarum novo tempo. Essa seria uma via messiânica que já fracassou. Comoexemplo disso, o pensador mexicano colocava a Revolução Cubana.Hoje, certamente, o nosso escritor apresentaria, como caminho errado,

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a mais nova versão revolucionária encarnada no messianismo políticoda Revolução Bolivariana do Presidente Chávez, na Venezuela. Octa-vio Paz revelava, nesse ponto, a sua nítida inspiração liberal. A respei-to da sua proposta, escrevia:

Esclareço: não condeno prematura e precipitadamente a ReformaPolítica. Ela é benéfica, inclusive dentro de suas limitações. Creioque deve ser aprofundada e, por dizer assim, democratizada: des-cer do nível dos partidos, que é o plano da ideologia, ao dos interes-ses e sentimentos concretos e particulares dos povos, dos bairros edos grupos. No caso da Reforma Política, a expressão voltar àsorigens quer dizer: tratar de inseri-la nas práticas democráticastradicionais do nosso povo. Essas práticas e essas tradições – afo-gadas por muitos anos de opressão e recobertas por umas estruturaslegais formalmente democráticas, mas que são, em realidade, abs-trações deformantes – estão vivas ainda. Vivas em muitas formasde convívio social e, sobre tudo, vivas na memória coletiva. Penso,por exemplo, no autogoverno dos grupos indígenas, no municípionovo-hispano e em outras formas políticas tradicionais. Aí está,acredito, a raiz de uma possível democracia mexicana. Somente,para que a Reforma Política chegasse ao povo real, o Estado teriade começar pela sua própria reforma. Se democracia é pluralismo, oprimeiro a ser feito é descentralizar. É possível? A outra tradiçãohistórica mexicana é o centralismo. No México, a realidade derealidades chama-se, desde Izcóatl, Poder Central. Contra essarealidade bateram de frente os liberais e federalistas do século pas-sado [XIX]. De outro lado, burocracia é sinônimo de centralismoe o Estado mexicano, como todos os do século XX, inexoravelmen-te tende a se converter num Estado burocrático.59

Para que se concretizasse a Reforma Política, seria necessário que osintelectuais passassem a dar maior importância ao estudo do Estado.Ora, tradicionalmente – não só no México, mas também na AméricaLatina, em geral – eles ficaram atrelados ao estudo dos temas do

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subdesenvolvimento e da dependência, deitando uma cortina de fu-maça sobre a realidade do Estado Patrimonial. Talvez o obstáculopara que acontecesse o estudo deste decorria, no sentir do nossoautor, da complexidade do mesmo, sendo que o Estado encontra-se,na realidade ibero-americana, com um pé na tradição contra-refor-mista ibérica e com outro na Modernidade. A respeito, escrevia:

Apesar da onipresença e onipotência do Estado do século XX (...)só até faz pouco tempo renasceu a crítica do poder e do Estado.Penso sobre tudo na França, Alemanha e os Estados Unidos. NaAmérica Latina, o interesse pelo Estado é muito menor. Os nossosestudiosos continuam obsessionados com o tema da dependência e osubdesenvolvimento. Certamente, a nossa situação é diferente. Associedades latino-americanas são a imagem mesma da estranheza:nelas justapõem-se a contra-reforma e o liberalismo, o latifúndio ea indústria, o analfabeto e o literato cosmopolita, o cacique e obanqueiro. Mas a estranheza das nossas sociedades não deve serum obstáculo para estudar o Estado latino-americano que é, preci-samente, uma das nossas peculiaridades maiores. De um lado, é oherdeiro do regime patrimonial espanhol; de outro, é a alavanca damodernização. A sua realidade é ambígua, contraditória e, de cer-ta forma, fascinante.60

Encerrando este trabalho, vale a pena citar as palavras com que ogrande estudioso de Octavio Paz, o historiador Enrique Krauze,caracteriza a obra do Nobel mexicano como modelo de crítica lite-rária, situando-a no fio da navalha de tradição e ruptura que aflora,sempre, nos seus escritos:

La posición crítica de Octavio Paz, equilibrada entre la tradición yla ruptura, se presenta para algunos autores como el arquetipo in-telectual de este período. Como ejemplo de esta visión está la es-pañola Fanny Rubio, para quien Octavio Paz es el gran intelectu-al, sin par en su momento, en lengua española. 61

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Notas

1 Cf. LAVIANA CUETOS, María Luisa. La América española,1492-1898. Madrid: Temas de Hoy, 1996, p. 6.

2 Cf. WITTFOGEL, Karl. Le despotisme oriental. (Tradução deM. Puteau.) Paris: Minuit, 1977.

55Car ta Mensa l . Rio de Jane iro, v. 54, n . 638, p. 3-61, maio 2008

3 Cf. NAIPAUL, V. S. Entre os fiéis – Irã, Paquistão, Malásia,Indonésia, 1981. (Tradução de C. Knipel Moreira.) 2. ed. São Paulo:Companhia das Letras, 2001. A propósito da relação entre coloniza-dor e colonizado no mundo muçulmano, este autor a caracteriza daseguinte forma: “Substituir isso tudo. O Islã significava a raiva – raivana fé, raiva política: uma podia ser como a outra” (p. 484).

4 Cf. WITTFOGEL, ob. cit. NAIPAUL, V. S. The Loss of El Do-rado. London: Picador, 2001.

5 PAZ, Octavio. “El presente y sus pasados”. In: El ogro filantró-pico, Barcelona: Seix Barrral, 1983, p. 34.

6 Cf. MANCISIDOR, José. Historia de la Revolución Mexica-na. 28. ed. México: Costa-Amic, 1976.

7 Octavio Irineo Paz era casado com a andaluza Josefina Lozano,de quem o filho Octavio, muito provavelmente, herdou essa sen-sual apreensão da realidade que caracterizava ao estilo literário doPrêmio Nobel mexicano.

8 Cf. SOLANO, Patrício Eufraccio. “Octavio Paz, el hombre y suobra”. In: www.ensayistas.org/mexico/paz/introd.htm

9 PAZ, Octavio. “El presente y sus pasados”. In: El ogro filantró-pico, ob. cit., p. 20.

10 JASPERS, Karl. Introdução ao pensamento filosófico. (Tra-dução de Leonidas Hegenberg e Octanny Silveira da Mota.)17. ed. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 34.

11 PAZ, Octavio. “Propósito”. In: El ogro filantrópico, ob cit,p. 13-14.

56 Car ta Mensa l . Rio de Jane iro, v. 54, n . 638, p. 3-61, maio 2008

12 Cf. HEIDEGGER, Martin. “Sobre o Humanismo – Carta a JeanBeauffret”. In: Conferências e Escritos Filosóficos. (Tradução e no-tas de Ernildo Stein.) 1. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 348.

13 PAZ, Octavio. “Hechos y dichos”. In: El ogro filantrópico, ob.cit., p. 104.

14 Cf. WEBER, Max. Ciência e política – Duas vocações. (Tra-dução de Leonidas Hegenberg e Octanny Silveira da Mota.) 3. ed.São Paulo: Cultrix, 1981.

15 PAZ, Octavio. “El presente y sus pasados”. In: El ogro filan-trópico, ob. cit., p. 83-84.

16 PAZ, Octavio. “El presente y sus pasados”. In: El ogro filan-trópico, ob. cit., p. 34-35.

17 PAZ, Octavio. “El presente y sus pasados”. In: El ogro filan-trópico, ob. cit, p. 37.

18 PAZ, Octavio. “Eros Job”. In: El ogro filantrópico, ob. cit,p. 260-261.

19 PAZ, Octavio. “Propósito”. In: El ogro filantrópico, ob. cit, p. 8-9.

20 PAZ, Octavio. “El presente y sus pasados”. In: El ogro filan-trópico, ob. cit, p. 72.

21 KANT, Immanuel. “Respuesta a la pregunta: Qué es la Ilustra-ción?”. In: ERHARD, KANT et al. Qué es Ilustración? (Estudointrodutório de Agapito Mestre; tradução de Agapito Mestre e JoséRomagosa.) 3. ed. Madri: Tecnos, 1993, p. 17.

22 PAZ, Octavio. “El presente y sus pasados”. In: El ogro filan-trópico, ob. cit, p. 65-66.

57Car ta Mensa l . Rio de Jane iro, v. 54, n . 638, p. 3-61, maio 2008

23 No caso brasileiro, os ideólogos da República, Rui Barbosa àtesta, adotaram os princípios liberais consagrados na Carta de24 de fevereiro de 1891 – quase uma cópia da Carta Norte-Ame-ricana de 1786, mas à luz da mesma praticaram uma autênticaditadura de oligarquias, a denominada “política dos governado-res”. No Rio Grande do Sul, os Castilhistas, no mesmo período,adotaram a retórica liberal, se mantendo, no entanto, encastela-dos na visão privatista do poder. A retórica liberal serviu paraangariar votos, quando necessário, mas não implicou em verda-deira liberalização do regime. Essa síndrome da duplicidade per-petuou-se até a Revolução de 30, comandada por Getúlio aoamparo de uma retórica que defendia eleições livres e anistia,ideais abruptamente negados quando os revolucionários chega-ram ao poder. Há verdadeiramente uma brecha significativa en-tre os ideais da campanha da Aliança Liberal, apregoados em1929 e o regime que se instaurou em 30. Cf. A respeito, o docu-mento intitulado Aliança liberal – Documentos da campa-nha presidencial, 2. ed., organizada por mim, Brasília: Câmarados Deputados, 1983. Em relação à duplicidade existente noinício da República, com a política dos governadores, cf. A mi-nha obra intitulada A propaganda republicana, 1. ed., Brasí-lia: Universidade de Brasília, 1982.

24 PAZ, Octavio, “El presente y sus pasados”. In: El ogro filan-trópico, ob. cit, p. 63-64.

25 PAZ, Octavio, “El presente y sus pasados”. In: El ogro filan-trópico, ob. cit, p. 68-69.

26 O ensaísta mexicano, com certeza, tinha lido a obra de MaxWEBER. Cf., deste autor, Economía y sociedad, (tradução aoespanhol de José Medina Echavarría et al), primeira edição em es-

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panhol. México: Fondo de Cultura Económica, 1944, IV volume,p. 139-140.

27 PAZ, Octavio. “El presente y sus pasados”. In: El ogro filan-trópico, ob. cit, p. 58.

28 PAZ, Octavio. “El presente y sus pasados”. In: El ogro filan-trópico, ob. cit, p. 58-59.

29 Cf. FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala – Formaçãoda família brasileira sob o regime de economia patriarcal,25. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1987.

30 Cf. VIANNA, Francisco José de Oliveira. Populações meridio-nais do Brasil e Instituições Políticas Brasileiras, 1. ed. numúnico volume. (Introdução de Antônio Paim.) Brasília: Câmara dosDeputados, 1982.

31 PAZ, Octavio. “El presente y sus pasados”. In: El ogro filan-trópico, ob. cit, p. 23.

32 PZ, Octavio. “El presente y sus pasados”. In: El ogro filantró-pico, ob. cit, p. 23.

33 PAZ, Octavio. “El presente y sus pasados”. In: El ogro filan-trópico, ob. cit, p. 24.

34 PAZ, Octavio. “El presente y sus pasados”. In: El ogro filan-trópico, ob. cit, p. 98-99.

35 PAZ, Octavio. “El presente y sus pasados”. In: El ogro filan-trópico, ob. cit, p. 91.

36 A exceção, no caso concreto dos Partidos Conservadores, tal-vez seria a Colômbia, a meu modo de ver. Cf., a respeito, o meu

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livro Liberalismo y Conservatismo en América Latina, Bogo-tá: Tercer Mundo, 1978.

37 PAZ, Octavio. “El presente y sus pasados”. In: El ogro filan-trópico, ob. cit, p. 97.

38 Cf. A minha obra Castilhismo, uma filosofia da República.2. ed., corrigida e acrescida. (Apresentação de Antônio Paim.) Bra-sília: Senado Federal, 2000.

39 PAZ, Octavio, “El presente y sus pasados”. In: El ogro filan-trópico, ob. cit., p. 73.

40 Cf. WITTFOGEL, Karl, Le despotisme oriental, ob. cit., p. 69.

41 PAZ, Octavio, “El presente y sus pasados”. In: El ogro filan-trópico, ob. cit, p. 88-89.

42 PAZ. Octavio. “El presente y sus pasados”. In: El ogro filan-trópico, ob. cit, p. 91-92.

43 PAZ, Octavio. “El presente y sus pasados”. In: El ogro filan-trópico, ob. cit, p. 92.

44 PAZ, Octavio. “El presente y sus pasados”. In: El ogro filan-trópico, ob. cit, p. 93-94.

45 Cf. KRAUZE, Enrique. Porfirio Díaz, místico de la autoridad.(Pesquisa iconográfica de Aurelio de los Reyes.) México: Fondo deCultura Económica, 1987.

46 PAZ, Octavio, “El presente y sus pasados”. In: El ogro filan-trópico, ob. cit, p. 48.

60 Car ta Mensa l . Rio de Jane iro, v. 54, n . 638, p. 3-61, maio 2008

47 PAZ, Octavio. “El presente y sus pasados”. In: El ogro filan-trópico, ob. cit., p. 82.

48 PAZ, Octavio. “Propósito”. In: El ogro filantrópico, ob. cit,p. 10.

49 PAZ, Octavio. “El presente y sus pasados”. In: El ogro filan-trópico, ob. cit., p. 85.

50 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Du contrat social. Paris: Garnier/Flammarion, 1966.

51 PAZ, Octavio. “El presente y sus pasados”. In: El ogro filan-trópico, ob. cit., p. 18.

52 PAZ, Octavio, “Eros Job”. In: El ogro filantrópico, ob. cit.,p. 239-240.

53 SCHWARTZMAN, Simon. Bases do autoritarismo brasilei-ro. 1. ed. Rio de Janeiro: Campus, 1982.

54 PAIM, Antônio. A querela do estatismo. 1. ed. Rio de Janeiro:Tempo Brasileiro, 1978.

55 PAZ, Octavio. “El presente y sus pasados”. In: El ogro filan-trópico, ob. cit., p. 19.

56 PAZ, Octavio, “El presente y sus pasados”. In: El ogro filan-trópico, ob. cit., p. 60.

57 PAZ, Octavio. “El presente y sus pasados”. In: El ogro filan-trópico, ob. cit., p. 90.

58 PAZ. Octavio. “Propósito”. In: El ogro filantrópico, ob. cit.,p. 9.

61Car ta Mensa l . Rio de Jane iro, v. 54, n . 638, p. 3-61, maio 2008

59 PAZ, Octavio. “El presente y sus pasados”. In: El ogro filan-trópico, ob. cit., p. 98.

60 PAZ, Octavio. “El presente y sus pasados”. In: El ogro filan-trópico, ob. cit., p. 86.

61 Cit. por SOLANO, Patrício Eufraccio. “Octavio Paz, el hombrey su obra”. In: www.ensayistas.org/mexico/paz/introd.htm [con-sultado em 26/12/2007].

62 Car ta Mensa l . Rio de Jane i ro, v. 54, n . 638, p. 62-76, maio 2008

O Conselho Monetário Nacional, pela Resolução nº 18, de 18de fevereiro de 1966, autorizou os bancos a emitir CDB’s,

instrumento de captação de poupança, que logo obteve grande su-cesso, em face à garantia que oferece aos investidores.

Lembro-me que o Ministro Otávio Gouvêa de Bulhões, que alémde economista era formado em Direito, indagado sobre qual a ra-zão de o título ser, obrigatoriamente, nominal explicou que era paraassegurar a certeza de que houve depósito prévio e, também, con-trolar, com maior facilidade, a sua emissão.

Trata-se de um título de crédito que representa uma promessa depagamento em dinheiro, na data nele identificada, com a garantiade instituição financeira. A fim de facilitar a sua circulação, foi ad-mitido o seu endosso em preto ou completo, mas, por exceção, oendossante não responde pelo pagamento do certificado, mas ape-nas pela sua legitimidade.

Certificado de DepósitoBancário e Cédula deCrédito Bancário

Theophilo de Azeredo SantosDoutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Geraise “Faculté de Droit de Paris” e Presidente do Comitê Brasileiroda Câmara de Comércio Internacional

63Car ta Mensa l . Rio de Jane i ro, v. 54, n . 638, p. 62-76, maio 2008

Essa regra reflete o bom senso: o endossante já depositou no bancoo valor do título, cabendo, conseqüentemente, exclusivamente àinstituição financeira, a responsabilidade pelo seu pagamento. Masa responsabilidade pela validade do título tem o escopo de evitarfraudes ou emissões sem os respectivos depósitos, em evidente cri-me de estelionato.

Observa-se que o Recibo do Depósito Bancário – RDB, não podeser endossado, pois esse documento representa apenas a prova dodepósito, sem a natureza jurídica de título sujeito ao endosso.

Não conheço a razão, mas o CDB – Certificado de Depósito Ban-cário é tema raramente versado nos livros do Direito Comercial,apesar de sua crescente emissão.

A Lei nº 4.595, de 31 de dezembro de 1964, inciso VI, entre ospoderes conferidos ao Conselho Monetário Nacional, indica: “Dis-ciplinar o crédito em todas as suas modalidades e as operações cre-ditícias em todas as suas formas, inclusive, avais e prestaçõesdegarantias por parte das instituições financeiras”.

Já o art. 17, da Lei nº 4.720, de 14 de julho de 1965, que regula-menta o mercado de capitais, dispõe, na Seção III, sobre o acessoaos mercados financeiros e de capitais.

Coube ao Decreto-Lei nº 13, de 18 de julho de 1966, autorizar oBanco Central do Brasil a suprir recursos para assistência financei-ra às empresas, com a finalidade de reforçar o seu capital de giro.

A Lei nº 6.385, de 7 de dezembro de 1976, que dispõe sobre omercado de valores mobiliários, alterada, em parte, pela Lei nº10.303, de 31 de outubro de 2001, não inclui o CDB como valormobiliário e nem poderia tê-lo feito, pois esse título não tem essanatureza jurídica.

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O CDB é título de crédito1 com dupla natureza jurídica: representaa prova do depósito bancário e constitui a garantia do pagamentoao investidor do valor do principal e rendimentos nele identifica-dos. Não podem ser emitidos ao portador: são nominais aos respec-tivos depositantes ou escriturais, se custodiados na CETIP – Cen-tral de Custódia e de Liquidação Financeira de Títulos, que exercesuas funções com reconhecida competência.

Sua negociação está confiada à instituição financeira ou ao sistemadistribuidor de títulos e valores mobiliários autorizados pelo BancoCentral do Brasil, inclusive no mercado de balcão.

Se emitidos ao portador, criariam um mercado paralelo de dinheiro,colocando sob suspeita a legitimidade desses papéis, perturbando aestabilidade do sistema financeiro.

Assim, a instituição financeira é o emitente, o cliente-investidor,que não pode endossá-lo em branco, o favorecido.

Trata-se de título de renda fixa, de remuneração sempre superior aoaplicado e cujo rendimento varia segundo o mercado.O prazo míni-mo para aplicação e resgate varia de 1 a 12 meses, conciliando osinteresses das organizações credoras de ambos os papéis, que nãopodem ser resgatados antes do prazo contratado.

Essa vedação nasceu com a Resolução nº 2.107, de 31 de agosto de1994, que reza no art. 1º: “É vedado às instituições financeiras edemais instituições autorizadas a funcionar pelo Banco Central doBrasil operar na compra e recompra de títulos de emissão ou aceitepróprio ou de instituições ligadas, enquanto não decorrido o prazomínimo regulamentar”.

Pode também ser emitido o RDB – Recibo de Depósito Bancá-rio, que, não sendo título de crédito, não se sujeita ao endosso,pois é intrasferível. É a prova do contrato de depósito.

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A Resolução nº 3.454, de 30 de maio de 2007, ao disciplinar osdepósitos a prazo (CDB e RDB), autorizou essa captação aos ban-cos comerciais, bancos de investimentos, bancos de desenvolvi-mento e caixas econômicas (art. 1º).

Mas a emissão de RDB’s foi atribuída às sociedades de crédito, fi-nanciamento e investimento, de pessoas físicas e jurídicas e às coope-rativas de crédito, apenas para seus associados (art. 2º).

Operações, antes permitidas, foram proibidas: I. a captação dasseguintes modalidades de depósito: a) de aviso prévio; b) de acio-nistas representados por recibos negociáveis de depósitos não mo-vimentáveis por cheque e de reaplicação automática,bem como acaptação de depósitos a prazo de instituições financeiras, exceto desociedades de crédito ao microempreendedor (art. 4º).

O sucesso dos CDB’s e RDB’s deve-se ao fato de ser instrumentooperacional que facilita às sociedades empresárias e às pessoas físi-cas auferir rendimentos de recursos disponíveis a curto prazo, me-lhorando seu desempenho operacional. O fato de se tratar de rendafixa retira do investidor qualquer receio de não receber as vanta-gens dos títulos e seus respectivos vencimentos, ao contrário dospapéis de renda variável, cujos lucros são ditados pelo mercado.

Há, ainda, o fato de as empresas de avaliação de risco (ratings) ofe-recer aos depositantes pormenores técnicossobre a liquidez de seusclientes, com a identificação de seu passado, convenientementeexaminado, e de suas perspectivas futuras em face de sua atuaçãono mercado e seus índices de liquidez.

Apresentamos informações sobre o desempenho do mercado deCDB’s e RDB’s e sua evolução.

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Acompanhei, desde o início, as discussões sobre a CCB e, em ne-nhuma ocasião, houve dúvida sobre sua natureza jurídica, identifi-cada, inequivocamente, no art. 26: “A Cédula de Crédito Bancárioé título de crédito, emitido por pessoa física ou jurídica, em favorde instituição financeira ou entidade a esta equiparada, represen-tando promessa de pagamento em dinheiro, decorrente de opera-ção de crédito, de qualquer modalidade”.

Esse argumento, baseado em lei em vigor, seria suficiente para re-conhecê-lo juridicamente, mas podemos ainda lembrar o art. 29,item VI, parágrafo primeiro: “A Cédula de Crédito Bancário serátransferida mediante endosso em preto, ao qual se aplicarão as nor-mas de direito cambiário (os grifos são nossos).

A sujeição da CCB ao direito cambiário e a possibilidade de serendossada reforçam sua natureza jurídica, tese não contestada pornenhum jurista conhecedor da teoria dos títulos de crédito. Obser-ve-se, ainda, a intenção do legislador: “Trata-se de promessa depagamento em dinheiro (certamente substituirá pelas suas inúme-ras vantagens, a nota promissória). lastreada em uma operação decrédito (esta é a sua causa debendi). É, assim, inequivocamente umtitulo causal, vinculado, obrigatoriamente, a um financiamento, iden-tificado claramente nesse documento, simplificando a sua cobran-ça, afastando os conflitos de demandas que desgastavam o relacio-namento banco-cliente (“Notas de Crédito Rural”, Theophilo deAzeredo Santos, artigo na Carta Mensal nº 542, volume 46, da Con-federação Nacional do Comércio, maio de 2000, pp. 50 a 64).

Enquadra-se no conceito de Vivante: “Título de Crédito é o docu-mento necessário para o exercício do direito literal e autônomo quenele se contém”. A fim de esclarecer dúvidas, o art. 28 especifica:

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“A Cédula de Crédito Bancário é título executivo extrajudicial erepresenta dívida em dinheiro, certa, líquida e exegível, seja pelasoma indicada, seja pelo saldo devedor demonstrado em planilhade calculo, ou nos extratos da conta-corrente, elaboradas conformeprevisto no § 2º”.

A Comissão de Valores Mobiliários (CVM), embora integrada portécnicos competentes, revelou entendimento de seu colegiado nosentido de que CCB’s constituem valores mobiliários, desde quesejam objeto de oferta pública e a responsabilidade da instituiçãofinanceira por seu inadimplemento tenha sido expressamente ex-cluída do título.

A caracterização de documento como título de crédito parte, teori-camente, do conceito doutrinário e, em especial do Código Civil(Lei 10.406. de 10/1/2002), que no título VIII, art. 887 repete,quase totalmente, o conceito de Vivante, não permitindo, portan-to, alterar-se a natureza jurídica da CCB, como desejam técnicos daCVM.

A estrutura do Sistema financeiro Nacional, regulada pela Lei nº4.595, de 31/12/1964 - em pleno regime militar – está, até hoje,em vigor e é exemplo para inúmeros países que facilitaram ao Mi-nistério das Relações Exteriores que técnicos expliquem o seu fun-cionamento. Faltará - ninguém de bom-senso duvida - à CVM con-dições para assumir responsabilidades que fogem aos seus objeti-vos legais, especialmente com o enorme crescimento das opera-ções bancárias.

NELSON EIZIRIK (2), em obra recente e também em palestra naAssociação e Sindicatos dos Bancos do Estado do Rio de Janeiro,

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com acerto ensina: “A CCB não atende aos requisitos necessáriospara a caracterização da figura do “contrato de investimento coleti-vo”, previsto no artigo 2º, do inciso IX, da Lei nº 6.385/1976.”

“Primeiramente, a criação da CCB não pressupõe a existência deum “empreendimento” por parte do devedor, uma vez que ela podeser emitida para representar qualquer espécie de crédito detido pelainstituição financeira, independentemente de sua origem”.

Em segundo lugar, a expectativa do recebimento de “lucros” porparte do titular da CCB, inerente a qualquer investimento financei-ro, não decorre diretamente dos resultados gerados pelo empreen-dimento gerido pelo devedor, mas tão somente da taxa ele juroscobrada pela concessão do empréstimo”.

“O titular da CCB - a instituição financeira credora ao contrário doque ocorre com aquele que investe em valores mobiliários, não estáassumindo os riscos do empreendimento eventualmente desenvol-vido com os recursos por ele emprestados, tanto que a remunera-ção prevista na Cédula continuará a lhe ser devida ainda que oempreendimento não seja bem-sucedido”.

Assiste razão a esse jurista, pois não há, no caso, qualquer comu-nhão de interesses envolvendo o devedor e a instituição financeiraem torno do sucesso de determinado empreedimento e inexiste nãohá qualquer dúvida - qualquer “empreendimento comum” vincu-lando os interesses da instituição financeira emitente dos Certifica-dos e seus adquirentes.

Também ha equivoco na afirmação dos que defendem que a insti-tuição financeira, ao transferir a titularidade da CCB fica exonerada

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de responsabilidade, o que só ocorrera se houver disposição ex-pressa em contrário, conforme dispõe o art. 914, do Código Civil,Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, pois assumindo responsa-bilidade pelo pagamento, o endossante se torna devedor solidário.(parágrafo 1º).

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Notas

1 Aplica-se, neste caso, a clássica definição de Vivante: “Título deCrédito é o documento necessário para exercício do direito literal eautônomo nele contido”, ou, na lição de Whitaker, é o documentocapaz de realizar imediatamente o valor que ele representa.

2 Mercado de Capitais – Regime Jurídico, editora Renovar, Rio deJaneiro, 2008, ps. 127 a 132, no 3.8.5.

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A recente decisão proferida na Ação Direta de Inconstituciona- lidade (ADI) nº 608-8 – Distrito Federal se reveste da maior

importância pelos reflexos que terá na jurisprudência dos demaistribunais, pacificando definitivamente a matéria litigiosa decorren-te dos planos econômicos, que congestionou os tribunais durantemais de quinze anos.

O acórdão se refere ao Plano Collor II e considera constitucional asnormas legais que estabeleceram o fator de deflação, do mesmomodo que anteriormente o Supremo Tribunal Federal já tinha ado-tado o mesmo princípio em relação ao Plano Collor I, na Súmula nº725. Deve ser lembrado que também o plenário da Corte Supremareconheceu a legitimidade da aplicação da tablita em casos anterio-res, como o Plano Bresser (RE 141.190)1.

A Recente Jurisprudência doSupremo Tribunal Federal,os Planos Econômicose o Direito Monetário

Arnoldo WaldAdvogado, Professor Catedrático de Direito da UERJ, Presidente do Conselhoda Academia Internacional de Direito e Economia, Doutor honoris causa daUniversidade de Paris II, Membro da Corte Internacional de Arbitragem da CCI.

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Na realidade, em todas essas decisões ficou prevalecendo o enten-dimento de acordo com o qual não há direito adquirido em relaçãoao regime legal monetário, cujas normas são aplicáveis de imediato,ressalvando-se os casos de falta de razoabilidade ou de proporcio-nalidade dos textos legislativos. Esta última ressalva tem sido feitapelo Ministro Gilmar Mendes, tendo, por outro lado, o MinistroMarco Aurélio, invocado o princípio da vedação da retroatividademínima e o Ministro Carlos Britto, a proibição de medidas que im-portem em retrocesso social. O tribunal consolidou, pois, a suaposição, não se tendo considerado os planos econômicos como con-trários à proporcionalidade e razoabilidade.

Algumas distinções que foram feitas no passado parecem ultrapas-sadas. Assim, discutia-se se a mudança de indexador da correçãomonetária, sem que houvesse mudança de moeda, deveria ser con-siderada como decorrente de lei de direito monetário ou poderia serexaminada como simples situação contratual, ensejando a manu-tenção da incidência do direito anterior, ou seja, a ultra-atividadedo texto legal já revogado que continuaria a ser aplicado após aalteração do mesmo. Essa visão, mais acadêmica do que realista,não mais prevalece, reconhecendo-se que a mutação de indexadorincide de imediato, inclusive em relação aos contratos firmadosanteriormente.

Por outro lado, admitiu-se, no passado, uma distinção entre o regi-me dos contratos, sobre os quais incidiria desde logo a tablita, e odos títulos de crédito, no tocante aos quais se mantinha a aplicaçãoda lei anterior. Essa diferenciação de regime legal, que não tinhaqualquer fundamento, desapareceu com a equiparação de ambas assituações, como se verifica pela ementa do acórdão da ADI nº 608.

Verificamos, assim, que, identificando-se com a melhor doutrina

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nacional e estrangeira, a jurisprudência do STF admite a soberaniamonetária do Estado, sem a qual o Governo não teria condições defazer a política monetária e de garantir a estabilidade da moeda,que é uma das suas funções básicas. Poder-se-ia até dizer que, numpaís em desenvolvimento, o respeito à imutabilidade da legislaçãomonetária anterior impediria o desenvolvimento nacional e, em certascircunstâncias, poderia condenar-nos a viver sempre num regimeinflacionário. Mas, por outro lado, essa soberania não pode signifi-car uma ditadura e deve ser exercida tendo em consideração osdireitos individuais e o equilíbrio que deve ser mantido entre osinteresses públicos e os do indivíduo e da sociedade, aplicando-sepois os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade.

Mas outra causa de relevância do recente acórdão decorre do fatode ter sido proferido já na composição atual do STF, contando coma manifestação favorável da maioria absoluta dos ministros.

Após a publicação do acórdão da tablita2 e da decisão tomada naADI nº 608 em relação ao Plano Collor nº 2,3 acabam de ser divul-gados dois outros posicionamentos relevantes da Corte Suprema arespeito da matéria. São, respectivamente, os julgamentos referen-tes à Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.668-8, que trata daausência de competência dos Estados para estabelecer normas dedireito do consumidor no tocante aos bancos, e à ADPF nº 77, naqual se discute a constitucionalidade do Plano Real. Ambos os as-suntos são da maior relevância prática, sendo que, no primeiro caso,o processo se concluiu com uma decisão unânime, tomada em17.09.20074, e, no segundo caso, houve um início de julgamento deapreciação da liminar, com a manifestação da maioria dos minis-tros em favor da sua concessão, em audiência realizada em24.10.20075.

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Na ADI nº 3.668-8, o Governador do Distrito Federal alegou ainconstitucionalidade da Lei nº 3.706, do DF, que “dispõe sobre aafixação de tabela relativa a taxa de juros e de rendimentos de apli-cações financeiras pelas instituições bancárias e de crédito.”

O texto da lei que foi impugnado é o seguinte:

“Art. 1º – É obrigatória a afixação, na entrada das instituições ban-cárias e de crédito, da tabela atualizada relativa a taxa de juros, bemcomo o percentual dos rendimentos de aplicações financeiras ofe-recidas ao consumidor.

Parágrafo único – As instituições de que trata o caput ficam tambémobrigadas a afixar a tabela contendo os preços dos serviços por elaoferecidos.

Art. 2º – As instituições bancárias e de crédito têm o prazo de trintadias, contados da data de publicação desta lei, para se adaptarem àsnovas regras.

Art. 3º – O não-cumprimento desta lei sujeitará as instituições àspenalidades previstas na Lei nº 8.069, de 11 de setembro de 1990(Código de Defesa do Consumidor).

Art. 4º – Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.”

O Governador tinha alegado a inconstitucionalidade da lei distritalem virtude de se tratar de diploma relacionado com as atividadesdas instituições financeiras.

A Advocacia Geral da União, em parecer de 17.03.2006, subscritopelo então Advogado-Geral da União, Dr. Álvaro Augusto RibeiroCosta, rejeitou o argumento, considerando constitucional a lei local

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por regulamentar o direito do consumidor, matéria na qual existecompetência concorrente dos Estados (art. 24, V e §§ 1º e 2º). En-tendeu a AGU que, existindo norma geral da União, nada impedia oEstado, no caso o Distrito Federal, de exercer a competência suple-mentar ou complementar, desde que respeitado texto legal federal6.Para a AGU, a regulamentação do Código do Consumidor, como ados horários de banco, é de competência dos Estados, tendo a ju-risprudência do STF entendido, no último caso, que se tratava dequestão de interesse local. Devemos, todavia, salientar que, ao con-trário, a publicidade dada às taxas de juros e às tarifas bancárias nãoé questão de interesse local, devendo a matéria ser tratada de modouniforme em todo o País.

Concluiu o parecer da AGU que:

“Como se sabe, em se tratando de competência concorrente, a com-petência da União para legislar sobre normas gerais não exclui acompetência suplementar dos Estados (§ 2º do art. 24).

É fato que a Lei nº 8.078, de 1990 (Código de Defesa do Consu-midor), dá relevo à informação do consumidor, ao prever, no caputde seu art. 36, que ‘A publicidade deve ser veiculada de tal formaque o consumidor, fácil e imediatamente, a identifique como tal’.

(...)

Tal regramento, que se configura como a norma geral, efetivamentenão foi ultrapassado pela Câmara Legislativa do Distrito Fede-ral, o exercício de sua competência suplementar, porque a afixaçãodas tabelas é um modo de publicidade, que propicia ao consumidorfácil e imediata informação sobre as taxas de juros; sobre o percen-tual dos rendimentos das aplicações financeiras oferecidos pela ins-tituição financeira, bem assim sobre os preços de seus serviços.”

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Divergiu a Procuradoria Geral da República em parecer de31.3.2006,7 que aprovado pelo Procurador-Geral, Dr. Antonio Fer-nando de Barros e Silva de Souza, considerou que o pedido deviaser julgado procedente, não por se tratar de atividade bancária, comoalegado na petição inicial, mas pelo fato de ocorrer, no caso, usur-pação da competência privativa da União para legislar sobre o di-reito do consumidor.

Citando Raul Machado Horta e José Cretella Junior, a ProcuradoriaGeral da República entendeu que as normas de direito complemen-tar da competência estadual só poderiam tratar de “peculiaridadeslocais”, não podendo criar direito novo e só lhe cabendo “descer aminúcias que o poder central, a União, jamais poderia regular pela distânciaem que se encontra da periferia”. Comparando as normas do Código deDefesa do Consumidor com a Lei nº 11.105, que trata dos organis-mos geneticamente modificados OGM, deduz que, no caso do CDC,o legislador federal não quis descer ao detalhamento de informaçãoque foi exigido no diploma regulador da comercialização de ali-mentos. E conclui afirmando que:

“Nota-se, portanto, que o legislador distrital inovou acerca de temasobre o qual não poderia fazê-lo.

Assim, partindo-se do mesmo raciocínio formulado por Alexandrede Moraes, ao abordar as regras definidoras da competência legis-lativa concorrente, no sentido de que a ‘a competência da União édirecionada somente às normas gerais, sendo de flagrante inconsti-tucionalidade aquilo que delas extrapolar’, é de se inferir que é,também, inconstitucional aquilo que extrapola a competência dosEstados-membros e do Distrito Federal para legislar acerca de adap-tação de diretrizes gerais a peculiaridades regionais”.

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Trata-se, aliás, de entendimento que defendemos, há mais de trintaanos, em relação à Lei nº 5.456/68, que mandava aplicar o Decre-to-lei nº 200 aos Estados e cuja incidência sobre a administraçãopública estadual tivemos o ensejo de discutir, contando, na oca-sião, com o apoio de José Afonso da Silva e Celso Antônio Bandei-ra de Mello.8

A importância do pronunciamento da Procuradoria Geral da Repú-blica está na interpretação que dá à competência estadual, que nãopode ser complementar ou suplementar em todas as matérias, emrelação ao direito do consumidor. No seu entender, só pode aten-der a situações locais específicas, limitando-se assim a própria con-ceituação da competência complementar, que deve ser restrita enão pode ser ampliada. Praticamente, extraindo as conseqüênciasdo parecer, chegamos à conclusão que a legislação local, além denão poder contrariar a lei federal, também não pode divergir do quese pode denominar a política nacional em matéria de consumo, queé da competência exclusiva da União e se aplica de modo uniformeem todo o território nacional.

Trata-se de matéria relevante que foi objeto de discussão em duasADIs julgadas em 2006, tratando da cobrança das contas telefôni-cas, que ensejaram ampla discussão no plenário do Supremo Tribu-nal Federal. Na ocasião, nas ADIs nº 3.533 e nº 3.322 (medida cau-telar) referentes respectivamente às Leis distritais nº 3.596 (instala-ção de contador de pulso em cada ponto de consumo, pelas compa-nhias de telefonia fixa) e nº 3.246 (individualização pelas mesmasempresas nas suas faturas da individualização de cada ligação lo-cal) a Corte Suprema entendeu, adotando o parecer do MP9, queambos os diplomas eram inconstitucionais. Fundamentou a suadecisão no fato de que a legislação local não podia afetar os direitose obrigações constantes de contrato entre a União e os concessio-

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nários, devendo, pois, prevalecer a lei federal que, no particular,não podia ser complementada pela lei local de modo a afetar osdireitos dos concessionários.

No recente julgamento da ADI nº 3.668-8, o relator adotou a posi-ção da Procuradoria Geral, reconhecendo que a discussão se limi-tava ao problema da competência estadual em relação ao direito doconsumo em questões nas quais existe legislação federal. Rejeitouo argumento da inicial que se referia ao fato de se tratar de legisla-ção bancária, e invocou a decisão proferida na ADI nº 2.591, quemandou aplicar aos bancos o direito do consumidor, a não ser nasquestões relativas à política monetária. Afirmou o relator no seuvoto que:

“No âmbito da competência constitucional concorrente relativa àsrelações de consumo, a União traçou as normas gerais a serem apli-cadas a todos os entes da Federação na Lei nº 8.078/1990 (Códi-go de Defesa do Consumidor – CDC).”

A análise das decisões das ADI nº 3.533, 3.322 e 3.668 suscitaimportante discussão a respeito do controle da constitucionalidadedas políticas nacionais ou de sua modificação em nível local. Veri-ficamos que, para o STF, a distinção entre normas gerais e normaslocais, as primeiras de competência da União e as segundas elabo-radas pelos estados, não decorre da área de incidência das mesmas.Ou seja, não se trata de distinção exclusivamente baseada na geo-grafia, na dimensão nacional ou local, com fundamento no lugar noqual a norma se aplica.

Na realidade, o que se veda aos estados é a possibilidade de usar acompetência concorrente para estabelecer modelos de proteção aoconsumidor distintos dos estabelecidos pela União, embora even-tualmente complementares em relação aos mesmos.

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A razão dessa proibição é o fato de não se admitir que possa umdireito estadual divergir da política nacional ou criar distinções en-tre as atividades comerciais ou industriais, realizadas em estadosdiferentes.

Resta saber se o que é proibido pelo legislador local pode ser auto-rizado ao juiz dentro da sua jurisdição, modificando o direito doconsumidor local em ação civil pública, cujo alcance é local10, situa-ção que já aconteceu no passado e provocou uma reação do Supre-mo Tribunal Federal.11

Na atualização da obra de Hely Lopes Meirelles, o Ministro GilmarMendes reconheceu que diante da especificidade do nosso modelode controle “tudo leva a se não recomendar o controle de legitimidade de leiou ato normativo federal ou estadual em face da Constituição no âmbito daação civil pública.”12

Como a jurisprudência, na maioria dos casos, tem tolerado a manu-tenção desse controle, no âmbito da ação civil pública, talvez umasolução conciliatória, inspirada nas recentes decisões do STF aci-ma referidas consistisse em excluí-lo sempre que se tratar de políti-ca monetária ou até de política de informação, cujas diretrizes sãode competência exclusiva da União, pelo seu Poder Executivo ouLegislativo ou através de Agências Reguladoras. Em tais casos ainconstitucionalidade do ato político só deve ser da competênciado Supremo Tribunal Federal, ao qual cabe julgar as ADIs e as ADCs.É um entendimento que merece ser discutido para dar maior coe-rência ao Ordenamento Jurídico em vigor e garantir a segurançajurídica da qual o País tanto necessita.

A segunda decisão que queremos comentar é a referente à medidaliminar concedida na ADPF nº 77, na qual se discute a constitucio-

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nalidade do Plano Real. É realmente estranho que, decorridos maisde dez anos da reforma monetária, que deu estabilidade econômicaao País, ainda se discuta a sua constitucionalidade nos tribunais.Mas tal fato decorre das várias ações intentadas, nos últimos anos,contra o Banco Central, instituições financeiras privadas e a pró-pria União, que acabaram ensejando uma jurisprudência dividida.

Embora a maioria das decisões do STJ e dos tribunais locais fosseno sentido de reconhecer a constitucionalidade do Plano Real, al-gumas outras manifestações do Poder Judiciário, tanto no Rio deJaneiro, quanto em São Paulo e alguns votos vencidos no STJ fo-ram no sentido de considerá-lo inconstitucional na medida em quese aplicava imediatamente aos contratos em curso e aos Certifica-dos de Depósito Bancário vencidos.

Diante dessa situação, que colocava em risco a política monetária,ameaçando, outrossim, os tribunais de uma verdadeira avalanchede processos, ingressamos com uma Argüição de Descumprimentode Preceito Fundamental, cuja inicial está publicada.13 Concedidainicialmente a medida liminar pelo Ministro Sepúlveda Pertenceem 21 de agosto de 200614 e indeferida pelo Ministro Celso de Mel-lo uma reclamação contra o mencionado despacho, em 13 de se-tembro de 200715, o processo foi encaminhado ao plenário em24.10.2007 pelo novo relator, Ministro Carlos Alberto Direito, quesubstituiu o antigo decano que acabara de se aposentar.

Iniciou-se a votação e após o exaustivo relatório e o pronuncia-mento das partes e dos amici curiae, inclusive do Banco Central, foisuscitada preliminar em relação ao cabimento da ADPF. Após am-pla discussão quanto ao cabimento da ADPF no caso, por se tratarde medida requerida contra decisões judiciais, seis Ministros semanifestaram no sentido de reconhecer que a argüição devia ser

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conhecida, tendo havido um pedido de vista e um voto conhecen-do a ação com ADC16.

O aspecto altamente positivo da discussão é o reconhecimento,pela maioria dos ministros do Tribunal, da existência de questãoconstitucional, pois a legislação que instituiu o Plano Real se fun-damentou no poder de emitir moeda e de legislar sobre direito mo-netário que incumbe à União. O Tribunal considerou, outrossim,que existia controvérsia jurídica relevante comprovada pelos docu-mentos juntos nos autos e pelas informações prestadas pelo BancoCentral e pela Delegacia do Tesouro Nacional.

Por outro lado, entendeu o Tribunal que a ADPF podia ser utilizadasempre que não coubesse a ADI ou a ADC, mesmo que os interes-sados pudessem ter a sua disposição outros recursos. Trata-se, pois,de mais uma questão nas quais se discutirá a incidência imediata donovo regime monetário, em virtude da inexistência, no caso, de di-reito adquirido à moeda e ao indexador anteriormente em vigor.

Verificamos, pois, que nos tempos de turbulência nos quais vive-mos e aos quais alude Allan Greenspan, no título das suas memó-rias, o Poder Judiciário está consolidando a sua posição no sentidode reconhecer a necessidade de garantir a estabilidade do poderaquisitivo da moeda. Permite-se, assim, que a União tome todas asmedidas razoáveis necessárias para evitar e combater a inflação,que, mantendo as aparências, destrói as realidades e, pelas suasconseqüências, ameaça o próprio Estado de Direito.

Notas

1 Publicado na Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais, SãoPaulo, nº 33, p. 141, jul./set. 2006.

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2 RE 141.190, Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais, SãoPaulo, nº 33, p. 141, jul./set. 2006.

3 Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais, São Paulo, nº 38,p. 219, out./dez. 2007.

4 WALD, Arnoldo, Duas decisões importantes do STF em matériamonetária. In: Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais, SãoPaulo, no 39, p. 17, jan./mar. 2008.

5 Conforme noticiário do STF, transcrito na nota 16 do presenteartigo.

6 Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais, São Paulo, nº 39,p. 125, jan./mar. 2008.

7 Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais, São Paulo, nº 39,p. 121, jan./mar. 2008.

8 WALD, Arnoldo, Aspectos financeiros e econômicos da contrata-ção administrativa. In: Anais do Simpósio realizado em setembro de 1971,pelo Centro de Estados de Direito Rodoviário do DER de SãoPaulo – Cedro, p. 85.

9 Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais, São Paulo, nº 39,p. 116, jan./mar. 2008.

10 De acordo com o art. 16 da Lei nº 7.347, a decisão proferida emação civil pública fará coisa julgada erga omnes “nos limites dacompetência territorial do órgão prolator”.

11 O Supremo Tribunal Federal decidiu no Conflito de Atribuiçõesnº 35, que o juiz não podia usurpar a competência do ConselhoMonetário Nacional e, em despacho liminar ou até na sentença,

89Car ta Mensa l . Rio de Jane i ro, v. 54, n . 638, p. 77-91, maio 2008

modificar o regime local do cheque administrativo. O acórdão estápublicado na Revista Trimestral de Jurisprudência, Brasília, no 130,p. 485 a 515, nov. 1989 e Revista dos Tribunais, São Paulo, nº 650,p. 181 a 205, dez. 1989.

12 Mandado de Segurança, Hely Lopes Meirelles, atual. por ArnoldoWald e Gilmar Ferreira Mendes, São Paulo, Malheiros, 29 ed., 2006,p. 613.

13 Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais, nº 39, p. 336,jan./mar. 2008.

14 Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais, nº 38, p. 226,out./dez. 2007.

15 Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais, nº 38, p. 230,out./dez. 2007.

16 O noticiário do Supremo Tribunal Federal do dia 24.10.2007 es-clarece a respeito que:

“Foi suspenso hoje (24) o julgamento em que os ministros do Supre-mo Tribunal Federal (STF) decidirão se vão ou não manter limi-nar da Corte que paralisou a tramitação de todos os processos nopaís que versam sobre a regra de conversão do cruzeiro real para aURV (Unidade Real de Valor), instituída na fase de implanta-ção do Plano Real, entre julho e agosto de 1994.

Um pedido de vista do Ministro Cezar Peluso suspendeu o julga-mento na votação de uma questão preliminar proposta pelo minis-tro Marco Aurélio.

A liminar em questão foi deferida pelo Ministro Sepúlveda Perten-ce em agosto de 2006. Ele apontou a existência de decisões diver-

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gentes sobre a validez ou não da regra de conversão e disse que amatéria envolve “pendências judiciais vultosas”. A Advocacia Ge-ral da União (AGU) fala em uma cifra em torno R$ 26,5 bilhõescaso a regra de conversão, instituída pelo artigo 38 da Lei nº8.880/94, seja considerada inconstitucional.

Ao deferir a liminar, Pertence atendeu a pedido da ConfederaçãoNacional do Sistema Financeiro (Consif), que ajuizou uma Ar-güição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 77)na qual defende que o Supremo deve atestar a constitucionalidadeda regra de conversão.

Com a aposentadoria de Pertence, a relatoria da matéria passoupara o Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, que o substi-tuiu. Este defendeu o referendo da liminar, mas o julgamento pa-rou na análise da preliminar levantada pelo Ministro Marco Au-rélio: se cabe ou não o ajuizamento de ADPF para debater amatéria.

Preliminar -

Até o momento, seis ministros votaram pelo cabimento da argüiçãode descumprimento de preceito fundamental, instrumento jurídicoque visa evitar ou reparar lesão a preceito fundamental causadopor ato do Poder Público. No caso, o risco de lesão existe nasdecisões judiciais divergentes sobre o caso.

Outro ponto levantado por esses ministros é o fato de que o disposi-tivo que instituiu a regra de conversão já teve sua eficácia exaurida.A jurisprudência do Supremo determina que, nesses casos, não épossível ajuizar outros dois tipos de ação: uma para atestar a cons-titucionalidade de uma lei ou dispositivo; outra para contestar aconstitucionalidade. A primeira é a ação declaratória de constitu-

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cionalidade (ADC). A outra é a bem conhecida ação direta deinconstitucionalidade (ADI).

Votaram nesse sentido Menezes Direito (relator), Gilmar Mendes,Cármen Lúcia Antunes Rocha, Ricardo Lewandowski, Eros Graue Joaquim Barbosa.

Para o Ministro Marco Aurélio, a ADPF não é cabível porquenão há, no caso, lesão de preceito fundamental a ser reparada. Eleinsiste, também, que a eficácia do dispositivo que instituiu a regrade transição não está exaurida. “Estamos 13 anos depois a discu-tir a matéria no Supremo, o que bem demonstra que os efeitos [dalei] não estão exauridos.” Por isso, ele defende que a ação da Con-sif seja julgada como sendo uma ação declaratória de constituciona-lidade.

O Ministro Carlos Ayres Britto, por sua vez, entende que o casonão pode ser analisado nem por meio de ADPF, nem por meio deADC. Ou seja, o Supremo deveria arquivá-la, sem a análise damatéria”.

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Ernane GalvêasEx-Ministro da Fazenda

Síntese da ConjunturaA Reforma Tributária

Depois de muitas idas e vindas, o Governo acabou enviando ao Congresso Nacional uma proposta de reforma tributária,

contida na PEC nº 233/208. O projeto altera ou acrescenta nadamenos do que 213 novas regras sobre o atual sistema tributárionacional.

Em resumo, a PEC nº 233/08 contém três alterações consideradasbásicas: a criação de um novo tributo federal (o IOBS ou IVA-F), ede um novo ICMS estadual (ou IVA-E) e a incorporação da CSLLao Imposto de Renda da pessoa jurídica. As três afirmações nãocorrespondem aos fatos: o IVA-F não é um novo tributo, mas, sim-plesmente, a unificação do PIS, da COFINS, da CIDE e do salário-educação, contribuições que irão mudar de nome; certamente, ha-verá aumento da carga tributária, como já aconteceu anteriormen-te, principalmente considerando que, doravante, parte da arrecada-ção irá para os Estados e Municípios. Tudo isso a ser implementadoao longo de oito anos. Repetimos: oito anos.

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A nova feição do ICMS traz algumas mudanças difíceis de seremquantificadas. Em primeiro lugar, vai reduzir o imposto interesta-dual de 7% (dos grandes Estados) e 12% (dos Estados menores)para 2%, de modo que o grosso do imposto, ou seja aproximada-mente 16%, passará a ser cobrado no Estado de destino. Do pontode vista do contribuinte, nada se altera, em verdade, dependendodas alíquotas que vierem a ser fixadas pelo Senado. O Governoassegura que essa medida vai acabar com a “guerra fiscal”, o que éuma aposta de difícil comprovação. Basta ver o que acontecerá coma indústria automobilística, da qual o Estado de São Paulo é omaior produtor e o maior consumidor; doravante, será muito maisfácil a São Paulo atrair indústrias nesse setor, via estímulo fiscal, doque a Bahia ou Pernambuco, como é óbvio. A medida sobre o “novo”ICMS só entrará em vigor dentro de seis anos, esperando-se quepossa promover uma importante simplificação do sistema.

A incorporação da CSLL ao IR da pessoa jurídica é uma questão debom senso; entretanto, como, a partir da fusão, a parcela da CSLLdeverá ser repartida com os Estados e Municípios, temos de espe-rar qual vai ser a alíquota resultante. Dificilmente será menor que aatual.

Finalmente, diz a PEC nº 233/08 que parte da contribuição empre-sarial para o INSS será transferida para o faturamento das empre-sas, sem especificar quando isso será feito. O Congresso Nacional,portanto, terá tempo suficiente para avaliar essa proposição e, pos-sivelmente, concluir que se trata de um non sense, baseado no fútilargumento de que “mudando o sofá de lugar”, isto é, mudando abase de cálculo, mas com a mesma arrecadação, vai induzir as em-presas a contratarem mais trabalhadores, com carteira assinada.

Pelo visto, a “reforma tributária” não reduzirá a carga tributária

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(poderá agravá-la), nem promoverá a simplificação do sistema, comopode parecer à primeira vista.

Paralelamente, duas medidas no bom sentido – embora de efeitosnegligíveis, foram anunciadas: a isenção do IOF e a liberação dainternação das divisas de exportação e a imposição de um IOF de1,5% sobre o ingresso de capitais estrangeiros especulativos, apli-cados em títulos públicos e fundos de renda fixa. Houve, também,a promessa de isentar de impostos os investimentos fixos, melho-rando e até mesmo ampliando as isenções já existentes.

Do lado bom, outrossim, cabe mencionar que a “reforma” não to-cou no IPI, nem no ISS. Se o fizesse, o transtorno tributário seriaainda maior.

Em tudo isso, constitui uma grande incerteza o capítulo que tratada repartição das arrecadações entre a União, os Estados e os Mu-nicípios. Uma mixórdia, que esperamos venha a ser esclarecida pelalei complementar.

POLITICA ECONÔMICA

O Ministro da Fazenda declarou não haver pressões inflacionáriase que o IPCA ficará dentro das metas do Governo; em contraposi-ção, o Banco Central prevê inflação acima da média e sinaliza altade juros (Folha de S. Paulo – 28/3).

Os recursos para a expansão da demanda agregada (consumo e in-vestimentos), no Brasil, vêm da expansão das exportações (+16,6%),do aumento da liquidez gerada pelas compras de dólares do BancoCentral e pelo déficit da União, da expansão do crédito (+ 28% aoano) e do aumento da renda do trabalho (+4,5% ao ano). Do ladoda oferta, a resposta é positiva: aumento da produção agrícola, ex-

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pansão dos investimentos industriais e crescimento das importa-ções (+32% ao ano). Havendo equilíbrio entre a oferta e a procura,não há formação de pressões inflacionárias, o que explica a manu-tenção do nível baixo e estável da inflação (cerca de 4,5% ao ano).Alguma pressão inflacionária que possa existir vem do exterior: altados preços do petróleo, das matérias-primas e dos alimentos, puxa-da basicamente pela China.

A elevação dos juros básicos pelo COPOM do Banco Central nãoafeta a inflação; pelo contrário, joga mais lenha na fogueira, poisaumenta o rendimento dos investidores de renda fixa e os custos daprodução, pela via do aumento que gera na carga tributária.

Ao que tudo indica é inócua e contraproducente a política de man-ter a taxa real da SELIC nas alturas em que se encontra. Nem mes-mo funciona a sinalização psicológica que o BC pretende passar aomercado, como é fácil ver pela constante expansão do crédito ban-cário, que continua financiando a expansão do consumo e dos in-vestimentos.

OS CICLOS ECONÔMICOS

É sabido que, por razões várias, a economia mundial – assim comoa dos países – evolui, ao longo do tempo, em forma sinuosa de altose baixos, conhecidos como ciclos econômicos. A explicação maisóbvia é a das ondas de inovações schumpeterianas, que provocamondas de investimentos, com relevantes efeitos multiplicadores,alimentando a expansão das atividades econômicas. Quando essesefeitos se esgotam, atinge-se um ponto de inflexão e a curva ascen-dente muda de direção, com redução do ritmo ou até mesmo retra-ção das atividades. Esse é o capítulo dos ciclos econômicos, umdos mais ricos e excitantes temas da Teoria Econômica.

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Depois da crise da dívida externa, na década perdida dos anos 80, aeconomia mundial, a partir de 1990, iniciou uma fase ascendente,de grande prosperidade, patrocinada pela atuação dos blocos eco-nômicos e pela maior integração internacional, conhecida comoglobalização, que proporcionou substancial expansão do comér-cio internacional e dos fluxos de capitais. Esse “boom” econômicoesteve próximo de terminar com a crise asiática de 1997 e morató-ria russa de 1998. Mas quando tudo indicava uma possível inver-são da curva, na altura do ano 2000, surgiu a China, “bombando”prosperidade em todas as direções, e o ciclo ascendente continuou.

Nos Estados Unidos, a fase de crescimento, nos anos 2003 a 2007,foi ampliada pela expansão do crédito, com taxas de redesconto a1% (a metade da taxa de inflação), o que gerou uma “bolha” nomercado imobiliário. Em julho de 2007, com a alta dos juros, a“bolha” estourou, indicando o fim da fase de prosperidade e o iní-cio da recessão. Até o momento, entretanto, isso não ocorreu, basi-camente em função da presença da China, que segue puxando aexpansão do comércio internacional e o crescimento dos paísesemergentes.

Existe, pois, uma resistência à crise emanada dos Estados Unidos eem seu próprio benefício. Sem dúvida, é a China que faz a dife-rença, fomentando a liquidez internacional, mediante a expansãoda demanda e da alta dos preços do petróleo, das matérias-primas,dos metais e dos alimentos.

Quanto tempo a China vai sustentar essa situação, ninguém sabe.De outro lado, há fortes indícios de que ciclo ascendente da econo-mia americana terminou e já está em curso a fase da (“down swing”),cuja proximidade e duração ainda não se pode prever. O momentoatual é de grande incerteza de volatilidade e um fantasma ameaça-dor ronda sobre a economia mundial.

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O sistema financeiro internacional está visivelmente fora de con-trole, realizando empréstimos de alto risco, abusando das opera-ções de derivativos e realizando nas Bolsas de mercadorias financia-mentos de contratos nominais muitas vezes superiores à movimenta-ção física nos mercados de compra e venda. A maioria dessas ope-rações acaba nas carteiras dos fundos de investimentos e serve debase à emissão de “securities”, títulos representativos desses lastrosprecários, vendido em profusão nos mercados mundiais.

A crise imobiliária dos sub-prime americanos revelou a fragilidadedessas operações de alto risco que envolve o sistema financeiro.Uma nova ameaça está vindo do setor das commodities, cujos preçossubiram astronomicamente assim como da exagerada expansão navenda de automóveis e outros bens de consumo duráveis e levaramà formação de estoques (petróleo, metais, soja, trigo, etc.). Se hou-ver uma queda forte nos preços desses produtos, poderemos teruma nova crise, do mesmo tipo dos sub-prime.

Como já vimos alertando desde algum tempo, o sistema financeirobrasileiro também ostenta muitas dessas características e o nossoBanco Central não tem qualquer controle sobre tais operações, quetambém escapam à vigilância das empresas auditoras, como acon-teceu no caso dos Bancos Econômico, Nacional e Bamerindus. Epodemos citar dois casos mais recentes: o do Banco Marka (doCacciola) e o do Banco Cindam, ambos operando na BM & F con-tratos de câmbio futuro várias vezes acima de seus patrimônioslíquidos, que acabaram nas mãos do Banco Central.

Ao que tudo indica, o Banco Central reforçou sua vigilância sobreo sistema, mas o Conselho Monetário faz bem em começar a sepreocupar com os prazos dessas operações. É isso que também estáfazendo o FED, dos Estados Unidos, revelando uma mudança de

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orientação em relação aos Bancos Centrais, que deverão preocu-par-se mais com a ação regulatória e de vigilância sobre o sistemafinanceiro e menos com a pretensa política monetária de regulaçãodas atividades econômicas, pela via da variação das taxas de juros.

ATIVIDADES ECONÔMICAS

Ao que tudo indica, a economia brasileira está vivendo uma con-juntura de “boom” nos setores imobiliário e automobilístico. A quan-tidade de novos lançamentos – comerciais e residenciais – anunci-ados diariamente nos grandes centros urbanos, como São Paulo,Rio de Janeiro, Vitória, etc., chega a preocupar. O mesmo ocorrecom a venda de automóveis, financiados a prazos que ultrapassamde longe a vida útil do veículo.

Até aqui, essas transações estão ajudando a puxar a economia, quecresceu 5,4% no ano passado. A expansão na área industrial (+6%em 2007) produziu uma escassez de mão-de-obra especializada, decimento e de outras matérias-primas essenciais. A produção demáquinas e equipamentos aumentou 19,5%, ao mesmo tempo emque as importações de bens de capital cresceram 32,7% (US$ 25,2bilhões).

Em meio a essa inusitada expansão, chegam os primeiros sinais darecessão norte-americana: em janeiro, o número de desempregadosaumentou 22 mil e em fevereiro 63 mil. Estima-se que os prejuízosdos grandes bancos mundiais tenham atingido cerca de US$ 190bilhões, produzindo forte queda nas cotações de suas ações nasBolsas de Valores e estendendo seus efeitos a outros países. A idéiade que as economias emergentes estão “descoladas” do que acon-tece nos Estados Unidos não é inteiramente correta, embora paísescomo a China e o Brasil tenham, hoje, maior sustentação no merca-

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do interno. Entretanto, se houver uma retração forte nos financia-mentos bancários, isso poderá levar a uma redução dos investimen-tos. Ninguém escapa.

Por tudo isso, alguns analistas prevêem que o PIB brasileiro, em2008, possa ter uma redução e situar-se em cerca de 4,5%.

Indústria

Segundo o IBGE, a produção industrial teve queda de 0,5% emfevereiro ante janeiro, mas cresceu 9,7% na comparação com feve-reiro de 2007. No primeiro bimestre do ano, a produção do setoracumula aumento de 9,2%, a maior expansão para o período, desde2002.

O nível das atividades na indústria paulista, em fevereiro, subiu1,5% sobre janeiro.

Considerados os campos do Brasil e do exterior, a produção totalde petróleo e gás natural da Petrobrás atingiu, em fevereiro desteano, a média diária de 2.351.883 barris de óleo equivalente, 1,5%maior que a produção de fevereiro de 2007.

A produção exclusiva de petróleo no Brasil, em fevereiro, foi de1.821.469 barris/dia, refletindo estabilidade em relação ao volumeextraído em janeiro e um aumento de 0,9% sobre o volume produ-zido em fevereiro de 2007.

A produção de gás natural dos campos nacionais atingiu 48 mi-lhões 960 mil metros cúbicos, 11,5% maior que a do mesmo mêsdo ano passado.

A produção brasileira de aço bruto em fevereiro situou-se em 2,7milhões de toneladas, crescimento de 8,1% na comparação com o

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mesmo mês em 2007. No acumulado dos dois primeiros meses doano, as vendas para o mercado interno somaram 3,564 milhões detoneladas, 27,9% superior ao de igual período do ano passado.

O uso da capacidade instalada alcançou em março 85,2%, comuma expansão de 2,1 pontos porcentuais na comparação com mar-ço de 2007.

O Governo está anunciando uma nova “Política de Desenvolvimentoda Indústria”, compreendendo investimentos de R$ 251,6 bilhõesaté 2010, dos quais 84% virão do BNDES. A idéia é ampliar a taxade investimentos (TFBCF) de 18,6% para 21% do PIB, em 2010. Avenda de telefones celulares no Brasil aumentou 170% em feverei-ro, sobre fevereiro/07, atingindo o total de 124,1 milhões.

O Banco Credit Suisse considera que a produtividade brasileira cres-ceu 1,5%, em 2007.

Comércio

O volume de vendas do comércio cresceu 11,8% em janeiro, emrelação a igual mês do ano passado. Na comparação com dezem-bro, o varejo avançou 1,8%, segundo o IBGE.

As vendas nos supermercados tiveram alta de 8,63% em fevereiroe de 8,31% no primeiro bimestre, em comparação com iguais perío-dos de 2007, segundo a Abras. As vendas no pequeno varejo au-mentaram 3,2% em janeiro, em relação ao mesmo período do anopassado, segundo a Fecomércio-SP.

O faturamento das 92 maiores empresas de turismo no Brasil foi deR$ 34,1 bilhões em 2007 – um crescimento de 14,8% sobre o anoanterior. Para 2008, a estimativa de alta é de 16,7% (FGV).

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Agricultura

Além de produzir a maior safra de grãos, em 2007/2008, os preçosatuais chegaram aos níveis históricos mais elevados, com destaquepara milho, soja, feijão e arroz. Todavia, mais recentemente, há si-nalização de baixa em vários desses produtos, inclusive a soja. Apóssubir 15%, na safra passada, espera-se um crescimento de 8% nasafra corrente 2008/09.

Está prestes a ser concluída a negociação com o Governo, para asdívidas rurais, no montante de R$ 56,3 bilhões. Segundo a CNA, oPIB do setor agropecuário deve crescer 5,8%, neste ano.

Mercado de Trabalho

A taxa de desemprego nas seis principais regiões metropolitanas dopaís – São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Recife, Salvador ePorto Alegre – ficou em 8,7% em fevereiro, maior que a de janeiro(8,0%) e menor que a de fevereiro de 2007 (9,9%). O contingentede desocupados (2,01 milhões) cresceu 9,1% em relação a janeiro ecaiu 9,9% em relação a fevereiro de 2007. Já o número de ocupa-dos teve queda de 0,5% ante janeiro e aumento de 3,6% em relaçãoa fevereiro do ano passado. O rendimento médio real dos trabalha-dores chegou a R$ 1.189,90 em fevereiro, com alta de 1,1% nacomparação com janeiro e expansão de 2,5% ante fevereiro de 2007,segundo o IBGE.

Segundo a CAGED/MTE, a economia brasileira abriu 204,9 milnovos empregos com carteira assinada em fevereiro, um resultado38,5% superior ao saldo de fevereiro de 2007.

Em 2007, 96% das 715 negociações salariais, segundo o DIEESEasseguraram, no mínimo, a incorporação das perdas ocorridas des-

102 Car ta Mensa l . Rio de Jane i ro, v. 54, n . 638, p. 92-104, maio 2008

de a data-base anterior. É o quarto ano consecutivo em que emmais de 70% das negociações houve reposição segundo a inflaçãomedida pelo INPC.

Inflação

Depois de uma queda generalizada em todos os índices de preços,em fevereiro, tanto no atacado, como no varejo, há sinais de quehouve um pequeno recrudescimento da inflação, em março, a co-meçar pela desvalorização do Real/US$ em 3,9%. A segunda pré-via do IGP-M disparou em março, com alta de 0,78%, quase o do-bro em relação à alta de 0,46% apurada em igual prévia em feverei-ro. Entretanto, favorecida pela queda dos preços dos alimentos novarejo (-0,39%), a inflação medida pelo IGP-10 perdeu força e su-biu 0,61% em março, ante 0,80% em fevereiro – a menor taxa emoito meses.

Segundo a FGV, a inflação dos insumos para a indústria disparouno primeiro trimestre. A alta dos insumos, que acumulou 0,41% noano passado, saltou para 3,69% nos três primeiros meses do ano.As maiores pressões já afetam diretamente siderúrgicas, indústriade alimentos, produtores agrícolas, centrais petroquímicas e cons-trutoras.

A expectativa do BC é que o IPCA suba 4,7% neste ano e 4,8% em2009.

Setor Fiscal

As receitas totais do Governo central no primeiro bimestre desteano somaram R$ 114,685 bilhões, um crescimento de 20,35%, emrelação ao mesmo intervalo de 2007. As despesas totais no períodoalcançaram R$ 72,736 bilhões, uma alta de 15,07% ante os dois

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primeiros meses do ano passado. Já o superávit do Governo centralem fevereiro foi de R$ 5,028 bilhões, contra R$ 15,353 bilhões emjaneiro.

O superávit primário do setor público acumulado em 12 meses su-biu de 4,14% do PIB para 4,18% do PIB, entre janeiro e fevereiro.Contudo, não impediu que a dívida líquida do setor público aumen-tasse, passando de 41,9% do PIB para 42,2% do PIB entre um mêse outro.

As despesas com juros sobre a dívida pública deram um pulo emfevereiro, alcançando R$ 15,444 bilhões, valor 40,2% maior queem igual mês do ano passado. A alta foi influenciada principalmen-te pelas perdas do Banco Central em suas operações com dólar.

Nos 12 meses acumulados até fevereiro, o déficit nominal foi de2,07% do PIB, e os gastos com juros, 6,25% do PIB.

A dívida pública interna registrou em fevereiro uma alta de 3,17%,na comparação com janeiro, o equivalente a R$ 1,242 trilhão, devi-do à apropriação de juros (R$ 10,914 bilhões) e à emissão líquidade títulos (R$ 27,3 bilhões). Já a dívida pública total – que incluitambém a externa – passou de R$ 1,311 trilhão em janeiro para R$1,345 trilhão mês passado, uma elevação de 2,60%.

A participação dos investidores estrangeiros na dívida pública saiu de2% em fins de 2006 para 4,47% em junho de 2007. No segundo se-mestre, chega a superar 5%, mas recua durante o agravamento da crisedas hipotecas americanas, fechando em 4,71% em dezembro/07.

Além de obstruir a pauta de votação do Congresso, as medidas provi-sórias estão modificando substancialmente o Orçamento da União.No ano passado, 20 medidas provisórias abriram créditos extraor-

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dinários de R$ 48,2 bilhões, o que representa 10,4% das despesastotais previstas na lei orçamentária de 2007 – que foram de R$463,5 bilhões. Apenas neste ano, já se abriu crédito extraordinário,por meio de MP, de R$ 12,5 bilhões.

O Orçamento de 2008 foi sancionado sem vetos pelo PresidenteLula. A peça orçamentária para este ano fixa receita e despesa emR$ 1,424 trilhão e o orçamento de investimentos prevê aplicaçõesde R$ 62,1 bilhões.

Setor Externo

As exportações no 1º trimestre alcançaram US$ 38,7 bilhões, 13,8%superior ao mesmo período de 2007, porém 10% abaixo da médiado 2º semestre do ano passado. As importações somaram US$ 35,9bilhões (+42,2%) e o saldo da balança comercial chegou a US$ 2,8bilhões, contra US$ 8,7 bilhões no ano passado. A previsão de défi-cit em Transações Correntes para 2008 é de US$ 12 bilhões, com-parado com um superávit de US$ 1,5 bilhão, em 2007, uma diferen-ça colossal que traduz a deterioração das contas externas e os equí-vocos da política cambial.

A dívida externa, inclusive inter-company, atingiu US$ 248,0 bilhõesem 28/02, contra US$ 240,8 bilhões, em 31/12/07. As reservascambiais aumentaram US$ 94,5 bilhões em 2007 e US$ 14,9 bi-lhões no 1º trimestre/08, chegando a US$ 195,3 bilhões. Parado-xalmente, empresas e bancos brasileiros levantaram empréstimossindicalizados de US$ 5,8 bilhões, no 1º trimestre.

O comércio mundial está se ressentindo da crise americana e nostrês últimos meses, até janeiro/08, cresceu apenas 0,2%.