MAJZOUB - Império Carolíngio

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MILENE CHAVEZ GOFFAR MAJZOUB

JUZOS DE DEUS E JUSTIA REAL NO DIREITO CAROLNGIO:ESTUDO SOBRE A APLICAO DOS ORDLIOS POCA DE CARLOS MAGNO (768-814)

Dissertao de Mestrado em Histria da Arte e da Cultura apresentada ao Departamento de Histria do Instituto de Filosofia e Cincias Humanas da Universidade Estadual de Campinas sob a orientao do Prof. Dr. Luiz Cesar Marques

Este exemplar corresponde redao final da Dissertao defendida e aprovada pela comisso julgadora em 16/11/2005

BANCA Prof. Dr. Luiz Cesar Marques Filho Prof. Dr. Leandro Karnal Prof. Dr. Marcelo Cndido da Silva Suplente Prof. Dr. Pedro Paulo Abreu Funari Suplente Prof. Dr. Gilberto Bercovici Novembro, 2005

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FICHA CATALOGRFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA DO IFCH - UNICAMP

M289j

Majzoub, Milene Chavez Goffar Juzos de Deus e justia real no direito carolngio: estudo sobre a aplicao dos ordlios poca de Carlos Magno (768-814) / Milene Chavez Goffar Majzoub. - - Campinas, SP : [s. n.], 2005. Orientador: Luiz Cesar Marques Filho. Dissertao (mestrado ) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Cincias Humanas. 1. Magno, Carlos, Imperador, 742-814. 2. Carolngios. 3. Direito Histria. 4. Justia - Histria. 5. Idade Mdia Historia. I. Marques Filho, Luiz Cesar. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Cincias Humanas. III.Ttulo. (cc/ifch)

Palavras chave em ingls (Keywords): Carlovingians. Law History. Justice - History. Middles Ages History.

rea de concentrao : Histria da Arte e da Cultura. Titulao : Mestre em Histria. Banca examinadora : Luiz Cesar Marques Filho, Leandro Karnal, Marcelo Cndido da Silva. Data da defesa : 16/11/2005.

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ResumoNosso estudo prope uma anlise exaustiva das fontes histricas relativas aplicao dos ordlios durante o reinado de Carlos Magno (768-814). Para tanto, assume uma perspectiva metodolgica que associa os pressupostos da histria do direito aos questionamentos da histria social, investigando o complexo mecanismo de funcionamento do esquema probatrio na justia real carolngia, explicando como ele se diferencia de acordo com o status social das partes, reproduzindo a organizao social e os valores da poca. Termos-chave: ordlios, justia, direito, histria, carolngios

AbstractOur research deals with a comprehensive analysis of the historical sources pertaining to the use of the ordeals during the reign of Charlemagne (768-814). For such, we opted for a methodological perspective which associates the requisites of the legal history with those of social history. We intend to investigate the complex mechanism of the modes of proof of royal carolingian justice, explaining how they differentiate according to social status, thus reproducing the social organization and values of the age. Keywords: ordeals, justice, law, history, Carolingians

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SumrioINTRODUO .............................................................................................................................................................7 1 A HISTORIOGRAFIA DOS ORDLIOS: REVISO BIBLIOGRFICA ........................................................11 1.1 1.2 1.3 1.4 1.5 2 A ORIGEM DOS ORDLIOS E O EMBATE ENTRE ROMANISTAS E GERMANISTAS .............................................11 A FUNDAMENTAO DOS ORDLIOS: IRRACIONALIDADE VERSUS RACIONALIDADE ....................................18 OS ORDLIOS COMO MEIO DE PROVA: HISTRIA INSTITUCIONAL E SOLUO DE CONTROVRSIA ..............24 A IGREJA E OS ORDLIOS: TELOGOS E OS JUZOS DE DEUS .......................................................................26

A PROIBIO DOS ORDLIOS: CANONISTAS E JURISTAS A PARTIR DO SCULO XII ......................................28

O PROBLEMA DA CONCEITUAO DO ORDLIO..................................................................................35 2.1 2.2 2.3 OS ORDLIOS NAS FONTES. O PROBLEMA DA LINGUAGEM JURDICA NA ALTA IDADE MDIA .....................35 CONCEITO DE ORDLIO COMO GNERO PROBATRIO ................................................................................37 TIPOLOGIA DAS FORMAS ORDLICAS ..........................................................................................................40

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ORDLIO NA JUSTIA REAL CAROLNGIA ...............................................................................................43 3.1 3.2 3.3 3.4 3.5 3.6 A ADMINISTRAO DA JUSTIA CAROLNGIA ..............................................................................................43 OS ORDLIOS NOS CAPITULRIOS DE CARLOS MAGNO ..............................................................................56 O USO DAS LEGES NOS REINOS FRANCOS POCA DE CARLOS MAGNO ....................................................48 OS ORDLIOS NOS CONCLIOS, SNODOS E CAPITULRIOS EPISCOPAIS POCA DE CARLOS MAGNO ........76 OS ORDLIOS NAS FONTES DIPLOMTICAS .................................................................................................83 OS ORDLIOS NOS FORMULRIOS ..............................................................................................................97

CONCLUSO ...........................................................................................................................................................100 BIBLIOGRAFIA..........................................................................................................................................................103 ABREVIAES .........................................................................................................................................................103 FONTES ...................................................................................................................................................................103 LITERATURA ............................................................................................................................................................105

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Introduo

Com a tese de J. Jarick, De iudiciis Dei sive de ordaliis medii aevi, defendida em 1820 na Universidade de Bratislava, o ordlio emerge como objeto de teses acadmicas. Historiadores da religio, do direito, das mentalidades, desde ento, contribuem para a compreenso deste complexo objeto de estudo que tambm j despertou o interesse de sociolgos e antroplogos. Os estudos sobre o ordlio formulam como problemtica de investigao um variado inqurito. Conseguimos, ao revisar a literatura, identificar as seguintes linhas centrais: o problema da origem dos ordlios nos termos da disputa entre romanistas e germanistas; o problema da fundamentao dos ordlios ou a polmica da racionalidade versus irracionalidade; o problema da possibilidade dos ordlios nos termos da teologia da Igreja; o problema da proibio dos ordlios pela canonstica do sculo XII. Nossa problemtica, porm, recaiu sobre o ordlio como meio de prova no contexto dos mecanismos de soluo de conflitos. Como tal, a dissertao se refere temtica mais geral da administrao da justia e ambiciona uma colocao disciplinar na histria do direito. Uma constante nos estudos sobre o ordlio a sua considervel abrangncia cronolgica e geogrfica. So freqentes as referncias ao ordlio no Israel Antigo, na ndia vdica e Grcia pr-clssica, ou uma discusso dos ordlios valendo-se de fontes entre os sculos VI a XII sem uma maior diferenciao. Em suma, so predominantes os estudos abrangentes sobre o ordlio, com nfase em tipologias e classificaes, que lhe retiram a espessura histrica. Tambm comeamos a trabalhar com um arco cronolgico maior o perodo carolngio como um todo mas logo nos convencemos da fecundidade em propor uma delimitao cronolgica mais estrita.

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Este recorte cronolgico, combinado com a problemtica da histria do direito, permite uma historicizao do ordlio o que est longe de ser uma obviedade na literatura. A maior delimitao cronolgica vem a ser: as prticas ordlicas na administrao da justia no reinado de Carlos Magno (768-814). Este um perodo-chave para os estudiosos de histria do direito carolngio. Carlos Magno, em meio a amplas reformas sociais, empreendeu uma importante reforma da justia, cujas bases permanecem at o sculo XI. Alm disso, o perodo de Carlos Magno nos legou um conjunto diversificado e representativo de fontes, valiosas para o estudo do direito carolngio. Para este perodo, estudamos exaustivamente todas as ocorrncias das prticas ordlicas na seguinte documentao: leges (escritas ou na reviso de Carlos Magno), capitulrios, conclios e snodos, capitulrios episcopais, fontes diplomticas e formulrios. Realizamos um estudo direto das fontes em latim. No abordamos apenas as referncias cannicas, mas, ao considerarmos as fontes em sua extenso, pudemos identificar possveis ocorrncias de ordlios que foram negligenciadas pela literatura. A mais importante hiptese que vamos sustentar o nexo entre o uso de determinado tipo de ordlio e o status pessoal do sujeito que se submete a ele. Alm disso, o ordlio aparece em uma relao estreita com o co-juramento. A investigao abriu-nos a compreenso para o complexo regramento da administrao da justia real de Carlos Magno, o que permitiu matizar uma corrente caracterizao desta justia como casustica, algo aleatria e sem maior organizao. A dissertao segue o seguinte plano. No captulo 1, apresentaremos uma extensa e abrangente discusso bibliogrfica, indentificando os enfoques privilegiados pela historiografia sobre os ordlios. No se trata, porm, de uma reviso da literatura que cuida da nossa problemtica o ordlio como meio de prova no mbito da administrao da justia. Trata-se de um ensaio bibliogrfico mais amplo, que faz justia a diversidade de problemas que tm animado

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os estudos sobre o ordlio. Em seguida, no captulo 2, cuidaremos de uma questo prvia qual o conceito de ordlio? Formularemos esta indagao tanto no mbito das fontes (pesquisando se possvel encontrar um termo latino correspondente ao conceito de ordlio da historiografia) como no mbito da historiografia. No captulo 3, o centro do estudo, iniciamos com uma

caracterizao geral da administrao da justia carolngia para, na seqncia, pesquisarmos as ocorrncias dos ordlios nas fontes do reinado de Carlos Magno indicadas acima.

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Somente a combinao da generosidade e erudio do Prof. Luiz Marques poderia tornar possvel o ingresso de uma aluna de mestrado para um estudo dos ordlios sub specie juris.

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1 A historiografia dos ordlios: reviso bibliogrficaAinda que poucas monografias tenham sido dedicadas ao tema do ordlio, o interesse dos medievalistas no tema tm sido contnuo ainda que incidental desde o incio do sculo XIX. Historiadores da religio, do direito, das mentalidades contriburam, cada qual a seu modo, compreenso deste objeto complexo. Neste captulo, no pretendemos realizar uma exposio cronolgica dos escritos destes autores, posto que entendemos no ser possvel adotar um enfoque progressivo/evolutivo anlise da historiografia, ainda que a cada gerao os historiadores reflitam metodologicamente sobre seu ofcio em uma constante crtica escrita de seus predecessores. Antes, preferimos uma abordagem que organize os eixos fundamentais de discusso e as principais teses da historiografia do ordlio. Neste sentido, propomos a seguinte organizao dos problemas centrais relacionados a nossa temtica : a origem dos ordlios e o embate entre romanistas e germanistas; a fundamentao dos ordlios: racionalidade vs. irracionalidade; o ordlio como meio de prova: histria institucional e resoluo de conflitos; a Igreja e os ordlios: a teologia e os juzos de Deus; a proibio de uso dos ordlios: canonistas e juristas a partir do sculo XII;

1.1 A origem dos ordlios e o embate entre romanistas e germanistasAs obras gerais e de referncia constatam a ocorrncia de usos ordlicos desde a Antigidade, ainda que se cotejem ritos divinatrios que no possam ser estritamente classificados como tal. O carter enciclopdico destes trabalhos guarda um propsito

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comparatista e de vis evolucionista, j que a ampla utilizao dos ordlios corresponderia a um estgio primitivo da histria da humanidade, progressivamente superado pela utilizao de outros meios de prova e julgamento. Assim, temos a descrio de procedimentos semelhantes no Antigo Israel, na ndia vdica e na Grcia pr-clssica1. No que tange aos ordlios na Europa medieval, h um consenso geral de que tm origem germnica. Esta opinio apia-se na rarefata meno aos ordlios nas fontes romanas. O raciocnio elementar: se os romanos no eram adeptos dos ordlios, estes s podem ter sido trazidos pelos germnicos instalados nos territrios do Imprio. So raras as pesquisas sobre o ordlio em Roma. Como indica Jean Philippe Lvy 2 , j que o sistema de provas romano, retomado a partir do sculo XII pelos legistas e canonistas medievais, opunha-se frontalmente aos procedimentos ordlicos, seria compreensvel que os romanistas no procurassem pesquisar em outras fontes romanas o exerccio de prticas anlogas ao ordlio. De fato, nas escassas enquetes sobre o assunto, os historiadores aplicam-se anlise de fontes da Roma republicana 3 , confirmando que o direito processual romano clssico e ps-clssico 4 , fundado na prova documental e testemunhal e no livre convencimento do magistrado no dispunham sobre meios no-averiguveis de prova judicial.

GLOTZ, Gustave. L'ordalie dans la Grce primitive. Paris: Fontemoing, 1904. LVY, Jean-Philippe. Le problme des ordalies en droit romain. In: LVY, Jean-Philippe (Ed.). Autour de la preuve dans les droits de l'Antiquit. Napoli: Jovene, 1956. p.409-434. 3 Ainda citando Jean-Philippe Lvy (p. 35) : por muito tempo sequer nos preocupamos em pesquisar se os romanos primitivos no haviam conhecido algo anlogo s prticas ordlicas. Chamo a ateno para a delimitao que o autor impe pesquisa : a Roma primitiva , na qual poder-se-ia, sem grande espanto, localizar procedimentos opostos tcnica processual desenvolvida pelo direito romano clssico e ps-clssico. 4 ALVES, Jos Carlos Moreira. Direito Romano I. 13.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 68 e ss. O autor comenta a cronologia consagrada pelos romanistas, dividindo a histria interna do direito romano em trs fases: 1) a do direito antigo ou pr-clssico (das origens de Roma Lex Aebutia, de data incerta, compreendida aproximadamente entre 149 e 126 a.C); 2) a do direito clssico (da ao trmino do reinado de Diocleciano, e, 305 d.C.; o perodo ureo dessa poca vai de 96 a 235 a.C); 3) a do direito ps-clssico ou romano-helnico (dessa data morte de Justiniano, em 565 d.C d-se porm, a designao de direito justinianeu ao vigente na poca em que reinou Justiniano, de 527 a 565 a.C)2

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Rudolf Dll, um dos raros romanistas a investigar os ordlios na pennsula itlica, cita a comdia Casina, de Plauto, como uma das poucas fontes romanas a descrever um procedimento semelhante ao ordlio5, um duelo especificamente. afirmao de que a pea de Plauto e outras fontes literrias, como a stira 137 de Petrnio, retratariam uma forma comum de soluo de litgio em Roma, Dll alerta na p. 19 de seu artigo, na mesma linha de outros romanistas que: talvez este procedimento provenha de fontes gregas que teriam influenciado as narrativas destes autores 6 , o que nos conduziria a uma posio acautelada sobre o emprego dos ordlios no ambiente judicial romano. Jean-Philippe Lvy tambm cita textos literrios antigos na descrio dos ordlios em Roma, para igualmente reduzir sua eficcia informativa devido estreita influncia dos textos gregos sobre os escritores romanos7. Concentrando-se nas fontes romanas pr-clssicas, Lvy afirma ser, apesar de todas estas ressalvas, bastante provvel a presena dos ordlios no direito romano antigo, pois: o instituto to geral, to disseminado pelo mundo, que uma espcie de lei sociolgica parece postular seu emprego em meio a todos os povos, em um certo estgio de sua evoluo jurdica. Este estgio no necessariamente primitivo, muito recuado na barbrie. (...) Ademais, o contraste no total entre a prova racional e a prova mstica (...) como por vezes em nossa idade mdia ocidental, os dois mtodos coexistem sem

DLL, Rudolf. Zur Frage des Gottesurteils im vorgeschichtlichen rmischen Zivilstreit. Zeitschrift der SavignyStiftung fr Rechtsgeschichte. Romanistische Abteilung, v.58, p.17-35, 1938, especialmente as passagens da p. 19 e ss. 6 A.C. Pearson tambm faz ressalvas interpretao das fontes romanas que descrevem ordlios: no apenas os materiais so escassos, mas sua elucidao faz-se ainda mais difcil pois a literatura romana to dependente dos modelos gregos que constantemente tende a representar como prprio aquilo que de fato de origem estrangeira (p. 528). PEARSON, A.C. Ordeal: Roman. In: HASTINGS, James (Ed.). Encyclopaedia of religion and ethics. Edinburgh: T. & T. Clark, 1926., v.9). p.528-529. O autor cita extensivamente referncias literrias que poderiam ser interpretadas como ordlios. 7 Na pgina 421, o autor comenta que alm da influncia grega, muitas das fontes arcaicas romanas a descreverem rituais prximos aos ordlios seriam de origem etrusca, sarda ou mbria, o que tambm afastaria do direito romano o uso de ordlios.

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separao absoluta, podendo-se transitar entre um e outro em caso de necessidade8. Na sua busca pelos indcios que possam inserir Roma nas tradies jurdicas que utilizam os ordlios9 o autor conclui que a nica forma de superar a afirmao de que os romanos no recorriam a eles ampliar o escopo da pergunta, o sentido clssico do termo compreendido estritamente como prova judiciria imposta aos litigantes no processo para incluir os orculos, augrios de toda sorte, pressgios e todas as manifestaes das foras sobrenaturais10. Mesmo assim, os exemplos citados por Lvy11, advindos de fontes pr-clssicas, o conduzem a afirmar na p. 428 que: os indcios de intervenes milagrosas so bastante raros (...) e de ocaso precoce (...) o que nos permite concluir, talvez no pela prtica regular dos ordlios propriamente ditos, mas ao menos pelo julgamento ocasional dos processos segundo o arbtrio dos deuses12. Os estudos dos romanistas sobre os ordlios em Roma nos permitem assumir por ora algumas concluses: os ordlios so praticamente inexistentes no direito romano, e quando h referncias a estas prticas, as fontes so bastante antigas, provenientes do perodo arcaico, e teriam cado em desuso j no final da Repblica. Neste sentido, o ordenamento jurdico romano aplicado no Imprio e nos primeiros sculos da Idade Mdia, bem como transmitido nas compilaes retomadas pelos eruditos do sculo XII no contemplava o ordlio como prova legal.8

LVY, Jean-Philippe. Le problme des ordalies en droit romain. In: LVY, Jean-Philippe (Ed.). Autour de la preuve dans les droits de l'Antiquit. Napoli: Jovene, 1956. p.409-434, especialmente p. 422 e 423 9 A historiografia dos ordlios impregnada de evolucionismo. Acreditamos que Lvy poderia ter justificado de forma mais feliz sua busca pelos ordlios romanos se pretendesse polemizar o alegado racionalismo da jurisprudentia clssica romana modelo maior de nossa tradio jurdica moderna utilizado como contraponto ao regramento dos ordlios. 10 LVY, Jean-Philippe. Le problme des ordalies en droit romain. In: LVY, Jean-Philippe (Ed.). Autour de la preuve dans les droits de l'Antiquit. Napoli: Jovene, 1956. p.409-434, especificamente passagem na p. 426. 11 O autor comenta nas p. 417 e ss., que as manifestaes da vontade divina, pressgios e orculos so freqentes na arte oratria romana, embora raros como prova no processo. Ccero, Quintiliano e Marciano Capela so exemplos de retores que admitiam os testemunhos sobrenaturais como eficazes; algumas passagens so brevemente discutidas pelo autor. 12 A posio de Lvy apresenta algumas dificuldades. Como tratamos em nossa introduo, os ordlios em suas variadas configuraes so essencialmente definidos como intervenes divinas cuja finalidade a de pr termo a uma controvrsia levada ao tribunal. Afastar os procedimentos ordlicos de sua utilizao no ambiente judicial, das formas organizadas de soluo de controvrsias, implica na descaracterizao do objeto.

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O processo imperial romano, tal qual conhecido e transmitido na Antigidade Tardia e na Idade Mdia tem como princpio fundamental a livre convico do magistrado, apoiado por uma sofisticada teoria de presunes 13 , pelas provas escritas, pela confisso e, por fim, testemunho. Estabelecer uma relao entre a instalao dos povos germnicos nos territrios do Imprio Romano e sua utilizao no Ocidente medieval, o que nos parece bvio face aos indcios documentais, nos obriga a uma reflexo necessria sobre pr-concepes nem sempre assumidas pela historiografia, calcadas sobre uma avaliao do contato entre a tradio germnica e romana, entre paganismo e cristianismo. Um primeiro grupo de historiadores interpreta a introduo dos ordlios nas prticas judiciais como correspondente influncia determinante que os povos germnicos teriam exercido na formao da cultura medieval. Representativamente, o mais importante estudioso sobre os ordlios do sculo XX, Hermann Nottarp, afirma que a crena justificadora dos ordlios caracterstica dos povos germnicos14, e outra importante historiadora eclesistica dos ordlios, Charlotte Leitmaier, inclusive toma emprestada a tese da germanizao do cristianismo 15 , para justificar a recepo dos ordlios pelo clero como um exemplo deste processo. A discusso sobre a origem dos ordlios suscitou um largo debate na primeira metade do sculo XX na historiografia alem16. Algumas espcies de juzos de Deus, como o duelo,13

pelo

GAUDEMET, Jean. Les institutions de l'Antiquit. 7.ed. Paris: Montchrestien, 2002, p. 483. A teoria das presunes um dos aspectos centrais da teoria romana das provas, tendo influenciado profundamente a doutrina romano-cannica medieval. H duas espcies de presunes, cujas ocorrncias so rigorosamente elencadas: as presunes iuris tantum, que permitem prova em contrrio, e as presunes iuris et de iure, incontestveis. 14 NOTTARP, Hermann. Gottesurteilstudien. Mnchen: Ksel, 1956, p.103. 15 LEITMAIER, Charlotte. Die Kirche und die Gottesurteile: eine rechtshistorische Studie. Wien: Herold, 1953, p. 115. A tese da Germanisierung des Christentums foi recentemente debatida em RUSSELL, James C. The Germanization of early medieval Christianity: a sociohistorical approach to religious transformation. New York: Oxford University Press, 1994. 16 Referimo-nos ao debate iniciado por MAYER, Ernst. Der Ursprung der germanischen Gottesurteile. Historische Vierteljahrschrift, v.20, p.289-316, 1920, retomado por FEHR, Hans. Kraft und Recht. In: FREISLER, Roland; LNING, George Anton; NIPPERDEY, Hans Carl (Ed.). Festschrift fr Justus Wilhelm Hedemann zum 60.

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indicariam o reconhecimento da verve guerreira e combativa dos germnicos (vitoriosos contra os romanos derrotados e protegidos pela Igreja) como um valor importante nestas sociedades17. Retomando as concluses de Adalbert Erler, os ordlios representam sim uma contribuio germnica cultura jurdica medieval, mas que no devem ser confundidos com reminiscncias do paganismo outrora praticado pelas tribos germnicas primitivas. Em absoluto, parte da histria do cristianismo medieval; uma oportunidade do Deus todo-poderoso concebido pela erudio religiosa crist socorrer o fraco e o indefeso 18 . Para ns leitores, a informao principal a de que o cristianismo medieval seria forjado sobretudo a partir da influncia cultural sobrepujante dos povos germnicos. Para um grupo relevante de historiadores da religio, o ordlio reconhecidamente de origem germnica recepcionado e praticado pelo clero, seria um ritual que, embora revestido de um invlucro cristo, indicaria a insero de tradies pags na Igreja medieval, suscetvel a supersties e encantamentos nos primeiros sculos da Idade Mdia. Henry Charles Lea, referncia constantemente citada na historiografia dos ordlios, resume a tese geral: a Igreja da

Geburtstag am 24.April 1938. Jena: Frommansche, 1938. p.1-12, ERLER, Adalbert. Der Ursprung der Gottesurteile. Paideuma. Mitteilungen zur Kulturkunde, v.2, p.44-65, 1941. Para um comentrio sobre as implicaes ideolgicas das razes germnicas da cultura europia, consultar BUSCH, Jrgen. Das Germanenbild der deutschen Rechtsgeschichte: zwischen Wissenschaft und Ideologie. Frankfurt am Main: Peter Lang, 2004. 17 O caso do sucesso duradouro do duelo enseja uma linha de pesquisas prpria, que se organiza j em fins do sculo XVIII. Veja principalmente os estudos monogrficos de: MAJER, Friedrich. Geschichte der Ordalien, insbesondere der gerichtlichen Zweikmpfe in Deutschland. Jena: Akademischen Buchhandlung, 1795; MARCHEGAY, Paul. Duel judiciaire entre des communeauts religieuses. Bibliothque de l'cole des Chartes, v.1, n.1839/1840, p.552-564, 1839 ; GL, Alexander. Der Zweikampf im frnkischen Proze. ZRG GA, v.28, p.236-289, 1907; FEHR, Hans. Zur Geschichte des Zweikampfes. ZRG GA, v.34, p.422-424, 1913; HOLZHAUER, Heinz. Der gerichtliche Zweikampf. In: HAUCK, Karl (Ed.). Sprache und Recht: Festschrift fr Ruth SchmidtWiegand, 1986. p.263-283; WERKMLLER, Dieter. Per pugnam probare: zum Beweisrecht im frnkischen Prozess. In: BUCHHOLZ, Stephan; MIKAT, Paul; WERKMLLER, Dieter (Ed.). berlieferung, Bewahrung und Gestaltung in der rechtsgeschichtlichen Forschung: Ekkehard Kaufmann zum 70. Geburtstag. Paderborn; Mnchen; Wien; Zrich: Schningh, 1993. (Rechts- und Staatswissenschaftliche Verffentlichungen der GrresGesellschaft, N.F., v.69). p.379-390 e as snteses de NOTTARP, Hermann. Gottesurteilstudien. Mnchen: Ksel, 1956 e BARTLETT, Robert. Trial by fire and water: the medieval judicial ordeal. Oxford: Clarendon, 1986 18 ERLER, Adalbert. Der Ursprung der Gottesurteile. Paideuma. Mitteilungen zur Kulturkunde, v.2, p.44-65, 1941, p. 65.

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Idade das Trevas prontamente aceitou as prticas pags dos brbaros convertidos, e lhes atribuiu um carter fidedigno ao guarnec-las das mais impressionantes solenidades da f 19. Embora a historiografia mais recente tenha abandonado termos como Idade das Trevas e brbaros, a estrutura do argumento permanece: a Igreja medieval recepcionou prticas pags, tornando-as aceitveis ao traduzi-las na linguagem e na simbologia da doutrina eclesial. Esta posio seguida por exemplo por Rudolf Kstler20, Franois Louis Ganshof21, Jean Gaudemet22 e Paul Fournier23. Entendemos que a idolatria das origens foi, muita vez, oportunidade para a propagao subliminar de convices culturais contemporneas. Ao supervalorizar a superao de uma tradio sobre outra, desconsidera-se o processo peculiar da formao da cultura medieval seja religiosa ou jurdica como um complexo amlgama entre as diferentes contribuies germnica, romana e crist24. Assumir os ordlios como um ponto de confluncia de valores compartilhados

LEA, Henry Charles. The Ordeal. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1973, p. 163. KSTLER, Rudolf. Der Anteil des Christentums an der Ordalien. Zeitschrift der Savigny-Stiftung fr Rechtsgeschichte. Kanonistische Abteilung, v.33, p.208-248, 1912. O autor discute a recepo das formas pags de ordlios pela Igreja e o desenvolvimento de ritos especificamente cristos como o ordlio eucarstico. 21 GANSHOF, Franois Louis. La preuve dans le droit franc. In: GILISSEN, John (Ed.). La Preuve 2: moyen ge et temps modernes. Bruxelles: Librairie encyclopdique, 1965. (Recueils de la socit Jean Bodin pour l'histoire comparative des institutions, v.17). p.71-98. L-se na pg.74: [os ordlios] tratavam-se originalmente de atos de magia pag que haviam sido cristianizados ao menos na forma. 22 GAUDEMET, Jean. Les ordalies au moyen ge: doctrine, legislation et pratique canoniques. In: GILISSEN, John (Ed.). La Preuve 2: moyen ge et temps modernes. Bruxelles: Librairie encyclopdique, 1965. (Recueils de la socit Jean Bodin pour l'histoire comparative des institutions, v.17). p.99-135. Na pgina 103 o autor afirma que o ordlio no propriamente cristo (pois o encontramos em meio aos povos pagos e parece, na Cristandade, mais pago que cristo). 23 FOURNIER, Paul. Quelques observations sur l'histoire des ordalies au moyen ge. Mlanges Gustave Glotz. Paris: Presses Universitaires de France, 1932., v.1). p.367-376, especialmente p. 397. 24 Igualmente convm observar que estas discusses sobre as origens do ordlio caracterizam idealmente estas tradies culturais: os germanos assumem as qualidades das tribos intocadas da poca de Tcito, a cultura romana refere-se ao sculo de Augusto, e o cristianismo conspurcado pelos brbaros o dos tempos apostlicos. Raras so as interpretaes que no os tomam como grupos estanques, mas que j usufruam de um contato secular, influenciando-se mutuamente.20

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por diferentes grupos sociais pode nos apontar um caminho mais proveitoso para nosso entendimento25.

1.2 A fundamentao dos ordlios: irracionalidade versus racionalidadeOutro ponto sensvel nos estudos sobre o ordlio consiste em sua anlise a partir das categorias racional/ irracional. Os estudos gerais e comparatistas do sculo XIX, imbudos de uma perspectiva evolucionista26, firmaram o senso comum de que os ordlios seriam irracionais, compatveis com a mentalidade primitiva e supersticiosa de seus praticantes. Esta interpretao portanto considera como irracional a prpria forma de pensamento de uma dada sociedade, ou de um estgio da evoluo da humanidade, do qual a adeso s prticas ordlicas seria mais um indcio. O carter irracional dos ordlios tambm foi defendido por razes metodolgicas distintas daquelas da erudio do sculo XIX por um grupo de historiadores que identificam a25

Para quem acredita que a origem dos ordlios tema superado na historiografia, citamos o recente artigo de KERNEIS, Soazick. Le chaudron des parjures: Rome, les barbares et l'ordalie. In: LEMESLE, Bruno (Ed.). La preuve en justice: de l'Antiquit nos jours. Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 2003. (Histoire p.23-47. Nele, o autor sugere que os ordlios so uma contribuio celta cultura medieval. Saem os germanos, entram os celtas em cena. Recomendo principalmente a leitura do tpico caldeiro celta e justia dos deuses, p. 36 e ss. 26 Referimo-nos snteses do sculo XIX, fortemente influenciadas pela antropologia Tyloriana, como LEA, Henry Charles. The Ordeal. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1973 e PATETTA, Federico. Le Ordalie: studio di storia del Diritto e scienza del Diritto comparato. Torino: Fratelli Bocca, 1890. A obra de Lea uma apologia ao estgio civilizatrio do Ocidente novecentista, e por esta razo, deve ser lida com toda precauo possvel. No devemos nos esquecer que seu estudo sobre os ordlios parte de uma obra mais ampla sobre a superao das supersties na cultura ocidental. O livro sobre o ordlio a 3 parte da coleo Superstition and Force, originalmente publicada em 1866, da qual tambm constam uma histria da tortura e do juramento. Para um comentrio a respeito da obra de Lea, consultar PETERS, Edward. Introduction. In: LEA, Henry Charles (Ed.). The Ordeal. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1973, p.viii-xxix, especificamente para os volumes da coleo Superstition and Force e ULLMANN, Walter. Historical introduction. In: LEA, Henry Charles (Ed.). The inquisition of the middle ages: its organization and operation. London: Eyre & Spottiswoode, 1963. p.11-51 para uma anlise mais geral. Patetta tambm faz uma histria dos ordlios evolutiva, mas seguindo o mtodo histricojurdico, tm comentrios ainda pertinentes sobre as fontes jurdicas, especialmente medievais. , mesmo hoje, consulta obrigatria para o historiador dos ordlios.

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crena na justia imanente, isto , na convico de que Deus intervm constantemente no mundo fsico para dispensar benesses e castigos, como fundamento para a aceitao de eventos sobrenaturais no cotidiano, entre os quais o ordlio, mas tambm, as calamidades naturais e colheitas abundantes27. Esta tendncia comea com o clebre estudo de Paul Rousset28 na dcada de 1940 e foi retomado mais recentemente por Charles Radding29 e com mais aprofundamento por Georg W. Oesterdiekhoff30. Esta discusso, que est a merecer prolongamentos, oferece uma viso bastante particular do ordlio, no mais como um procedimento judicial, mas como uma circunstncia privilegiada da manifestao da religiosidade medieval, da acepo de natureza e de Deus poca31. Os ordlios so tambm considerados irracionais pelos historiadores de orientao folclorista. De fato, estes autores, que se pretendem absolutamente inovadores em suas anlises, consolidam todo o senso comum em torno dos ordlios apenas mais uma prtica mgica como tantas outras que ritmavam o cotidiano dos homens na Idade Mdia interpretando-os como parte de uma resistncia das condutas mgicas e animistas da mitologia pag que a Igreja Crist

PAUL, Jacques. L'glise et la culture en occident: IXe-XIIe sicle. 2: l'veil vanglique et les mentalits religieuses. 3.ed. Paris: Presses Universitaires de France, 2000, p. 654-657. 28 ROUSSET, Paul. La croyance en la justice immanente l'poque fodale. Moyen ge, v.54, p.225-248, 1948. A interpretao do autor diretamente influenciada pelo conceito de mentalidade primitiva de Henri Lvy-Bruhl. 29 RADDING, Charles M. Superstition to science: nature, fortune and the passing of the medieval ordeal. The American Historical Review, v.84, n.4, p.945-969, 1979. O artigo de Charles Radding muito importante na medida em que comenta as correntes historiogrficas recentes sobre a fundamentao do ordlio, como a da justia imanente e o funcionalismo. uma das referncias obrigatrias, apresentando vrias crticas pertinentes a diferentes linhas de pesquisa. 30 OESTERDIEKHOFF, Georg W. Das archaische Prozess- und Beweisrecht und die 'immanente Gerechtigkeit': Erklrung von Struktur, Entwicklung und Untergang ordalfrmiger Konfliktregelungen. ZRG GA, v.119, p.175-192, 2002. O autor prefere a teoria piagetiana para fundamentar a crena na justia imanente. L-se nas p. 190 e 191: Referindo-se psicologia cognitiva, os procedimentos ordlicos tornam-se plausveis e explicveis. Tais concluses poderiam no apenas construir uma ponte entre a psicologia cognitiva e a histria do direito, como tambm colaborar para o posicionamento da histria do direito no centro da histria cultural, da psicologia histrica e das teorias evolutivas sociolgicas. 31 Neste contexto, afirma Oesterdiekhoff que tambm se pode avaliar de maneira interessante a concepo dos fundadores da Histria do Direito, como Grimm e Savigny, de que o direito tradicional (altes Recht) no uma ordem no sentido formal, mas uma expresso natural e um reflexo das foras espirituais (geistigen Krfte) espontneas dos povos tradicionais (...). E realmente: os procedimentos ordlicos tm apenas efeitos jurdicos, mas nenhum fundamento jurdico! (p.192).

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tenta eliminar, mas que por fim se v obrigada a participar32. Os ordlios se fundamentariam numa crena generalizada no poder dos elementos (gua, fogo) manipulados pelo clrigo-mago que oficiava os complexos ritos litrgicos dos ordlios. Em um completo distanciamento das fontes, os ordlios so considerados como mais um indcio do vigor das supersties que a religio oficial quer suprimir, no consegue e que apenas cristianiza superficialmente A qualificao dos ordlios como irracionais feita mais comumente pelos historiadores do direito33. De fato, no h jurista que afirme serem os ordlios racionais. Mais ainda, servem como ndice de periodizao da histria das provas jurdicas34. H, na Europa Medieval, um perodo da histria das provas que tambm previa a aplicao das provas irracionais (que coincide com a utilizao dos ordlios), entre os sculos VI e XII substituda pelo perodo da aplicao de provas exclusivamente racionais (correspondente excluso dos ordlios do ordenamento jurdico), regime que persiste at hoje nos ordenamentos de tradio europia. oportuno um esclarecimento sobre o sentido do conceito de prova jurdica racional e irracional. Tal qual aplicadas pelos tericos e historiadores do direito, estas categorias so classificadoras e no avaliativas. Tratam das condies de produo e conhecimento da prova no processo judicial. A prova racional baseada na inquirio e compreenso humanas, pautadas

GIORDANO, Oronzo. Religiosidad popular en la alta edad media. Madrid: Gredos, 1983, p. 135. Para o autor, o duelo antes decidido por Odin, continuaria a ser praticado pelos brbaros, to-somente agora arbitrado por um Deus mais forte. 33 Mas no apenas os juristas, os autores de orientao sociolgica ou de nenhuma orientao operam com a mesma distino. BALDWIN, John W. The intellectual preparation for the canon of 1215 against ordeals. Speculum, v.34, p.613-636, 1961, l-se na p. 614: o declnio dos ordlios deve ser analisado no contexto de um movimento geral na direo de procedimento legais mais racionais. GRIPPARI, Marie-Nolle. Le jugement de Dieu et la mise en jeu du pouvoir. Revue Historique, v.278, n.2, p.281-291, 1987, l-se na p. 284: mas, quer dependa de uma jurisdio eclesistica ou laica, de um tribunal condal do sculo IX ou da jurisdio capetngia dos sculos XI e XII, o juiz no tem nem a possibilidade prtica, nem a vontade de conduzir apropriadamente um inqurito. Sua finalidade imediata, talvez nica, consiste no restabelecimento da paz entre os adversrios a fim que no perturbem uma ordem pblica j bastante precria. Sendo as provas bastante difceis de se reunir e a autenticidade dos documentos de difcil averiguao, mais simples, mais rpido, e mais condizente aos espritos atrados pela irracionalidade, recorrer a Deus. 34 GILISSEN, John. Introduo histrica ao Direito. 2.ed. Lisboa: Fundao Calouste Gulbekian, 1995, p. 714 e ss. O autor cita bibliografia geral da histria da prova.

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pela evidncia [material ou circunstancial] e argumentao 35. Em oposio, a prova irracional revelada a partir de um apelo interveno sobrenatural (...) renunciando-se ao inqurito arrazoado e ao exame crtico de indcios e informaes que podem ser analisadas para formulao de um juzo36. Neste sentido, esta classificao dos meios de prova de uso corrente no campo jurdico por historiadores, socilogos, antroplogos e tericos do direito 37 , no havendo sentido em equiparar a sistemtica do ordlio, do duelo, dos co-juramentos purgatrios inteligibilidade da apreciao de uma prova documental ou ao inqurito. A partir dos anos de 1970, h uma profuso de estudos sobre o ordlio, especialmente no domnio anglo-saxo. relevante que a retomada deste tema tenha sido motivada justamente por uma reao contra a histria do direito, que como dissemos anteriormente, classifica os ordlios como meio de prova irracional. Desde ento, os maiores esforos tm sido no sentido de se reavaliar as historiografia dos ordlios e qualific-los como racionais. Rebeca V. Colman, inaugurando uma longa srie de discusses, entende que a classificao dos ordlios como prova irracional impreterivelmente acarreta uma valorizao deste procedimento como inferior, resultado de uma concepo evolucionista e preconceituosa

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CAENEGEM, Raoul C. van. Reflexions on rational and irrational modes of proof in medieval Europe. Tijdschrift voor rechtsgeschiedenis, v.58, p.263-279, 1990, p.265. 36 CAENEGEM, Raoul C. van. La preuve dans le droit du moyen ge occidental: rapport de synthse. In: GILISSEN, John (Ed.). La Preuve 2: moyen ge et temps modernes. Bruxelles: Librairie encyclopdique, 1965. (Recueils de la socit Jean Bodin pour l'histoire comparative des institutions, v.17). p.691-753, p. 695 37 A sociologia do direito e a antropologia jurdica trabalham com a mesma diviso, embora possam recorrer a terminologia distinta. Tomamos como exemplo ROULAND, Norbert. L'Anthropologie juridique. Paris: Presses Universitaires de France, 1995. O autor sugere a seguinte tipologia das provas (p. 312 a 316): 1) provas transcendentes: tm como princpio o apelo e a interveno de foras invisveis, dentre as quais o ordlio, a adivinhao e o juramento; 2) provas materiais: flagrante delito e o inqurito, dependente da averiguao de indcios materiais conduzida por um experto; 3) provas mistas: so provas que dependem da coleta e apreciao de indcios materiais, mas que podem dispor de aspectos simblicos e sagrados, como o testemunho, a confisso, a prestao probatria, a prova escrita; as provas mistas podem passar categoria material se perderem sua dimenso simblica e sagrada.

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do problema por mentes contemporneas arrogantes que se crem superiores. Para a autora, a alegada eficcia dos rituais ordlicos seriam argumento para sua racionalidade38, criticando: os historiadores cuja imaginao moderna encontra dificuldade em conceber que um recurso ao plano transcendental produza efeitos fsicos (...) e que condenam estas prticas primevas como irracionais simplesmente por atenderem a necessidades que desconhecemos, o que nos leva a juzos superficiais sobre a justia da alta idade mdia.39 A interpretao de maior repercusso, no caminho aberto por Rebeca V. Colman, foi formulada por Peter Brown40. Para o autor, o ordlio consistia em uma soluo satisfatria para algumas dificuldades (...) e neste contexto racional. Assim, se o ordlio desempenha uma funo em um dado grupo social, no h como negar-lhe ao menos uma racionalidade prtica. A quais propsitos poderia atender a execuo deste procedimento? Para Brown, o ordlio faria sentido como um instrumento de coeso social de pequenos grupos, engajando a participao de todos membros da comunidade em um longo ritual no qual haveria um ambiente favorvel negociao, antes mesmo que a prova fsica se consumasse. Com isso, sugere Brown que o ordlio seria racional por produzir decises consensuais, evitando dissenses no grupo. A tese funcionalista de Brown fez fortuna especialmente entre os historiadores da tradio anglo-sax, tanto em adeptos41, quanto em crticos42.38

COLMAN, Rebecca V. Reason and unreason in early medieval law. Journal of Interdisciplinary History, v.IV, n.4, p.571-591, 1974, p. 588. A autora sugere que o ordlio um meio de prova at mais eficiente que aqueles classificados como racionais. Os culpados se sentiriam oprimidos pelo peso da cerimnia, enquanto os inocentes procederiam calmamente, tendo uma boa performance. 39 COLMAN, Rebecca V. Reason and unreason in early medieval law. Journal of Interdisciplinary History, v.IV, n.4, p.571-591, 1974, p. 587-590. As crticas da autora repousam na carga negativa que teriam termos como irracional. Ela chega mesmo, o que nos parece um exagero, a afirmar que a categoria razo um juzo de valor (p. 572). Parte das discusses de Colman e da historiografia que lhe segue parece ser resultado de uma confuso em utilizar a linguagem em registro diferente do senso comum. 40 BROWN, Peter. Society and the supernatural: a medieval change. In: BROWN, Peter (Ed.). Society and the holy in late antiquity. London: Faber and Faber, 1982. p.302-332. 41 WICKHAM, Chris. Land disputes and their social framework in Lombard-Carolingian Italy. In: DAVIES, Wendy; FOURACRE, Paul (Ed.). The Settlement of Disputes in the Early Medieval Europe. Cambridge: Cambridge University Press, 1986. p.105-124. Consultar posio semelhante em BARTHLEMY, Dominique. Diversit des ordalies mdivales. Revue Historique, v.280, n.1, p.3-25, 1988. 42 RADDING, Charles M. Superstition to science: nature, fortune and the passing of the medieval ordeal. The American Historical Review, v.84, n.4, p.945-969, 1979 e BARTLETT, Robert. Trial by fire and water: the

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Janet L. Nelson, continuando o embate terminolgico iniciado por Rebeca V. Colman, julga tratar-se de uma impropriedade a aplicao de categorias como racional e irracional aos procedimentos judiciais carolngios j que h casos que sugerem que as testemunhas eram inquiridas e as provas documentais usadas 43. Como bem observou Raoul C. van Caenegem, as posies de Janet L. Nelson so bastante criticveis, j que nenhum historiador do direito srio qualificaria todo processo carolngio como irracional, como comprovam os estudos de direito carolngio que tambm analisam a prova testemunhal, escrita e o inqurito44. A mesma impreciso conceitual em se tomar a classificao do ordlio como meio de prova irracional e ampli-la indevidamente para uma qualificao da prpria ordem jurdica da alta idade mdia tambm censurvel nas consideraes de Susan Reynolds sobre o direito tradicional dos primeiros sculos medievais. Em seus esforos em denunciar o quo evolucionista e racista a historiografia tradicional em contraponto com uma historiografia contempornea isenta de tendenciosidades pode-se correr o risco de se propor uma anlise anistrica, negando a mudana e a diferena entre as formas e meios de soluo dos conflitos em sociedade ao longo do tempo45.

medieval judicial ordeal. Oxford: Clarendon, 1986. Radding critica duramente a liberalidade que Brown assume na leitura das fontes (p. 948 e ss.), sendo um equvoco associar o ordlio ao consenso e coeso social, j que correspondiam a medidas extremas impostas ao litigantes diante de um impasse na soluo dos litgios. 43 NELSON, Janet L. Dispute settlement in Carolingian West Francia. In: DAVIES, Wendy; FOURACRE, Paul (Ed.). The Settlement of Disputes in the Early Medieval Europe. Cambridge: Cambridge University Press, 1986. p.45-64, no caso p. 47. interessante que ao mencionar o uso de testemunhos e documentos como uma espcie de compensao ao ordlio, a autora perpetua sem dar-se conta a dicotomia entre os tipos de prova. Tanto que argumenta que a eventual utilizao dos ordlios no podem ser motivo para se qualificar os meios de soluo de disputas carolngios como irracionais. 44 CAENEGEM, Raoul C. van. Reflexions on rational and irrational modes of proof in medieval Europe. Tijdschrift voor rechtsgeschiedenis, v.58, p.263-279, 1990, p. 266 45 REYNOLDS, Susan. Kingdoms and communities in western Europe: 900-1300. 2.ed. Oxford: Oxford University Press, 1997, p. 336. Contra as hipteses de racionalizao do direito, a autora rejeita o suposto movimento de crescente racionalizao, justificando que a argumentao no estava ausente dos litgios do sculo X e XI. Na concluso de seu livro, a autora critica a utilizao de tipologias evolutivas, como as da sociologia weberiana, para a leitura da histria medieval. Em que pesem as crticas da autora, as categorias weberianas so um referencial importante aos historiadores da poltica e do direito. Para um comentrio introdutrio ao conceito de racionalizao jurdica, sugerimos FREUND, Julien. La rationalisation du droit selon Max Weber. Archives de Philosophie du Droit, v.23, p.69-92, 1978.

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Esta questo terminolgica, que tem causado tanta celeuma nos ltimos tempos, foi explanada com muita clareza por Raoul C. van Caenegem: O problema parece ser provocado pela ambigidade da palavra irracional. Um significado do termo refere-se ao sentido de insensato, inadequado, ineficiente (...). O outro sentido refere-se a socorrer-se com foras ou entes divinos, invisveis, sobrenaturais, e neste caso no se ope a insensato ou ineficiente, mas quilo que racional por depender da inteligncia e observao crtica humanas. um fato histrico que a Europa passou por uma fase na qual os meios de prova irracionais eram um elemento importante na atividade judicial, e j que esta fase persistiu por sculos, plausvel que devido s condies gerais destas sociedades, os ordlios fossem em uma larga medida eficientes. Mas tambm claro que por volta do sculo XII podemos identificar certas mudanas que levaram transformao daquelas sociedades em outras nas quais os ordlios no mais encontravam condies para florescer. Disso tudo, fica o problema de que irracional um termo ambguo, com conotaes negativas para alguns, e se os pesquisadores concordarem com outra terminologia, pois tanto melhor!46

1.3 Os ordlios como meio de prova: histria institucional e soluo de controvrsiaDentre as questes representativas sobre a histria dos ordlios medievais, so comparativamente escassos os estudos sobre sua aplicabilidade47. Basicamente, so as snteses de

CAENEGEM, Raoul C. van. Reflexions on rational and irrational modes of proof in medieval Europe. Tijdschrift voor rechtsgeschiedenis, v.58, p.263-279, 1990, p. 270. 47 Apenas Recentemente porm, nota-se um interesse no estudo da aplicao dos ordlios, com nfase para as fontes dos sculos XI e XII, cuja perspectiva a de investigar a convivncia dos ordlios com os ordenamentos sob influncia da tradio romano-cannica erudita ou com a justia senhorial consuetudinria. Comeamos a srie com o estudo clssico de BONGERT, Yvonne. Recherches sur les cours laques du Xe au XIIIe sicle. Paris: Picard, 1948, e citamos mais recentemente GAUVARD, Claude (ed.). La justice en lan mil. Paris : La Documentation franaise, 2003. (Collection Histoire de la Justice, v. 15) ; BARTHLEMY, Dominique. Le bon usage des jugements de Dieu. In : BARTHLEMY, Dominique. Chevaliers et miracles : la violence et le sacr dans la socit fodale. Paris : Armand Colin, 2004, p.225-260; MORRIS, Colin. Judicium Dei: the social and political significance of the ordeal in the eleventh century. In: BAKER, Derek (Ed.). Church, Society and Politics. Oxford: Basil Blackwell, 1975. (Studies in Chuch History, v.12). p.95-111.

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histria institucional e jurdica 48 que versam com algum nvel de profundidade sobre a efetividade dos ordlios na administrao da justia medieval. Estes estudos compartilham de alguns princpios metodolgicos comuns. A preocupao fundamental de sistematizar as fontes normativas que prescrevem e probem os ordlios, identificando com preciso quando e onde eram empregados. Subsidiariamente questo da validade dos ordlios, o aspecto jurisdicional menos desenvolvido, restando ainda por se fazer uma pesquisa mais meticulosa sobre sua relevncia e diferente organizao nas instncias seculares, eclesisticas49 e de execuo mista. O resultado principal destas pesquisas, ao lado de uma cronologia de sua regulamentao nos ordenamentos jurdicos europeus, consiste na elaborao de uma tipologia. Uma sistematizao das formas de execuo dos juzos de Deus, acompanhada das respectivas fontes normativas, portanto o enfoque que, at o momento, tm sido prioritrio pelos historiadores. Nossa dissertao pretende se concentrar neste eixo de discusso, isto , do estudo da utilizao dos ordlios nas formas de soluo de litgios50, assumindo, sem dvida, questes mais amplas que as tradicionalmente discutidas pela histria do direito51. Neste sentido, discutiremos

Entre as obras mais importantes, citamos BRUNNER, Heinrich. Historia del derecho germnico. Barcelona: Labor, 1936, referncia clssica dentre as snteses de direito alemo, alm dos estudos mais recentes de WEITZEL, Jrgen. Dinggenossenschaft und Recht: Untersuchungen zum Rechtsverstndnis im frnkisch-deutschen Mittelalter, 2.Teilbnde. Kln, Wien: Bhlau, 1985. (Quellen und Forschungen zur hchsten Gerichtsbarkeit im alten Reich, v.15/I/II). No domnio francs, no poderamos deixar de citar o clssico FUSTEL DE COULANGES, Nouma Denis. Histoires des institutions politiques de l'ancienne France, v. III: la monarchie franque. Paris: Hachette, 1905 e recentemente CARBASSE, Jean-Marie. Histoire du droit pnal et de la justice criminelle. Paris: Presses Universitaires de France, 2000. 49 O estudo mais importante sobre a competncia jurisdicional eclesistica na alta idade mdia HARTMANN, Wilfried. Der Bischof als Richter: zum geistlichen Gericht ber kriminelle Vergehen von Laien im frheren Mittelalter (6.-11. Jahrhundert). Rmische historische Mitteilungen, v.28, p.103-124, 1986. 50 Ainda que no se ocupem diretamente dos ordlios, h uma efervescncia dos estudos sobre conflitos na Alta Idade Mdia. A referncia inicial DAVIES, Wendy; FOURACRE, Paul (Ed.). The Settlement of Disputes in the Early Medieval Europe. Cambridge: Cambridge University Press, 1986. 51 Nossa orientao metodolgica tem como referenciais: OEXLE, Otto Gerhard. Rechtsgeschichte und Geschichtswissenschaft. In: SIMON, Dieter (Ed.). Akten des 26. Deutschen Rechtshistorikertages: Frankfurt am Main, 22. bis 26. September 1986. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1987, p.77-107; KOSELLECK, Reinhart. Geschichte, Recht und Gerechtigkeit. In: SIMON, Dieter (Ed.). Akten des 26. Deutschen Rechtshistorikertages: Frankfurt am Main, 22. bis 26. September 1986. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann,

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os pontos mais recentes e controversos da aplicao dos ordlios no mbito de uma histria da justia nos demais captulos.

1.4 A Igreja e os ordlios: telogos e os juzos de DeusAs prticas ordlicas so um recurso generalizado nos tribunais entre os sculos VIII e XII, cuja execuo dependia da participao de uma autoridade eclesistica como oficiante. No obstante o papel central que o clero desempenhava na prxis litrgica dos ordlios, a historiografia privilegia uma explicao da relao Igreja-ordlio52 a partir de uma histria das idias. Tais estudos concentram-se na identificao das autoridades eclesisticas favorveis e contrrias ao ordlio e no esmiuamento da argumentao teolgica a sustentar cada uma das posies53. Em regra, h uma prevalncia dos comentrios sobre os telogos que contribuem para a formulao da doutrina condenatria dos ordlios que se consolidar no sculo XIII no IV Conclio de Latro (1215). Em menor grau, os historiadores da Igreja discutem a regulamentao cannica s prticas ordlicas 54 , mas sempre subsidiariamente s grandes linhas determinadas pelos escritos teolgicos. A sistematizao deste repertrio trata distintamente dos conjuntos normativos locais

1987. (Ius Commune. Sonderhefte, v.30). p.129-149; DREW, Katherine Fischer. Legal materials as a source for early medieval social history. In: DREW, Katherine Fischer (Ed.). Law and society in early medieval Europe: studies in legal history. London: Variorum Reprints, 1988. (Collected Studies, v.271). p.33-43. 52 A obra mais abrangente para o estudo da relao entre a Igreja e os ordlios permanece LEITMAIER, Charlotte. Die Kirche und die Gottesurteile: eine rechtshistorische Studie. Wien: Herold, 1953. 53 Dentre as obras mais consultadas: VACANDARD, Elphege. L'glise et les ordalies au XIIe sicle. Revue des questions historiques, v.53, jan, p.185-200, 1893 ; ESMEIN, Adhmar. Les ordalies dans l'glise gallicane au IXe sicle: Hincmar de Reims et ses contemporains. Paris: Imprimerie Nationale, 1898 ; GRELEWSKI, S. La raction contre les ordalies en France depuis le IXe sicle jusqu'au Dcret de Gratien. Rennes: Imprimerie du Nouvelliste, 1924 ; FOURNIER, Paul. Quelques observations sur l'histoire des ordalies au moyen ge. Mlanges Gustave Glotz, v.1. Paris: Presses Universitaires de France, 1932, p.367-376. 54 GAUDEMET, Jean. Les ordalies au moyen ge: doctrine, legislation et pratique canoniques. In: GILISSEN, John (Ed.). La Preuve 2: moyen ge et temps modernes. Bruxelles: Librairie encyclopdique, 1965. (Recueils de la socit Jean Bodin pour l'histoire comparative des institutions, v.17). p.99-135.

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snodos e conclios e das decises pontificais, com nfase nestas ltimas55. Esta diferenciao no gratuita. Considerando que as posies de Roma face aplicao das provas ordlicas sempre foi mais reservada que as assumidas pelas autoridades eclesisticas locais, h um entendimento dominante na historiografia de que a adoo e disseminao do uso dos ordlios pela Igreja teria mesmo durante sua expanso entre os sculos VIII e XII contado apenas eventualmente com o aquiescncia de Roma, sendo muito mais o resultado dos interesses decorrentes das relaes diretas que o clero local dispunha com as autoridades seculares. Os ordlios seriam, portanto, desvios localizados que a uniformizao doutrinria imposta pelo Papa em toda Igreja viria progressivamente a corrigir. Nos comentrios sobre a regulao cannica aos ordlios, comenta-se sucintamente a apreciao diversificada das vrias formas de juzos de Deus pelas autoridades eclesisticas. Estas observaes so importantes pois nos impedem de atribuir uma homogeneidade s provas ordlicas que absolutamente no era reconhecida por seus contemporneos. Assim, h um disciplinamento cannico diferenciado do duelo e das demais espcies de ordlios (liturgizadas e oficiadas por clrigos). No que se refere aos duelos, so desde cedo proibidos nas instncias eclesisticas, proscritos ao clero e restritos jurisdio secular, constituindo um captulo parte e menos controverso no mbito do direito cannico. A nfase na produo teolgica no investiga a importncia que o monoplio da administrao dos ordlios representava para o clero local em termos de poder econmico e poltico. Como sugere Edward Peters56, a compreenso do exerccio das liturgias dos juzos de Deus como parte do conjunto de privilgios tais como o controle sobre as relquias e locais de55

BOUGARD, Franois. Un pape au IXe sicle: Nicolas Ier. In: BOUGARD, Franois (Ed.). Le christianisme SCHMOECKEL, Mathias. Nicolaus I. und das Beweisrecht im 9. Jahrhundert. In: HELMHOLZ, Richard H. et al. (Ed.). Grundlagen des Rechts: Festschrift fr Peter Landau zum 65. Geburtstag. Paderborn; Mnchen; Wien; Zrich: Schningh, 2000, p.53-76. 56 PETERS, Edward. Introduction. In: LEA, Henry Charles (Ed.). The Ordeal. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1973, p.viii-xxix, especialmente p. xxvii.

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peregrinao sobre o qual se apoiavam as autoridades eclesisticas, permanece como um ngulo vital a se considerar na histria da relao entre a Igreja e os ordlios.

1.5 A proibio dos ordlios: canonistas e juristas a partir do sculo XIIPor difcil e complexa que seja a tarefa de compreender o uso das provas ordlicas na soluo organizada de litgios, a problemtica estudada com mais empenho pelos historiadores refere-se a seu declnio e desaparecimento a partir do sculo XII. A historiografia ocupa-se principalmente em analisar as transformaes sociais, jurdicas e eclesiais que motivam o progressivo abandono dos juzos de Deus como meio de prova de direito. Uma leitura temtica da historiografia nos indica que os ordlios so sobretudo reconhecidos como problema histrico relevante na medida em que se tornam incompatveis com a nova organizao scio-poltica da Baixa Idade Mdia e com a nova ordem jurdica romano-cannica 57 . Ao leitor, resta quase sempre montar um compreender os ordlios por aquilo que no conseguem ser. Sugerimos a organizao das principais teses em dois eixos: a) mudanas scio-polticas; b) mudanas intelectuais. Dentre as teses que reputam o declnio dos ordlios a fatores de ordem scio-poltica, a primeira proposio a se comentar a tese sociolgica defendida por Hermann Nottarp58. O autor se vale, como base documental, das imunidades outorgadas aos burgueses durante os sculos XII e XIII, garantindo-lhes o privilgio de no se submeterem a duelos e demais formas de juzos de

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Para um panorama da formao da cultura jurdica erudita: BERMAN, Harold J. La formacin de la tradicin jurdica de Occidente. Mxico, D.F.: Fondo de Cultura Econmica, 1996. 58 NOTTARP, Hermann. Gottesurteilstudien. Mnchen: Ksel, 1956, p. 388 e ss.

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Deus59. Para Nottarp, o abandono dos ordlios decorreria da urbanizao e retomada do comrcio na Baixa Idade Mdia. A burguesia, como classe racionalizadora, se posicionaria contra a continuidade de prticas irracionais, tais como os ordlios, e as substituiriam por outras, racionalmente controlveis. Robert Bartlett retomou recentemente a tese de Nottarp, reconhecendo a importncia da anlise das cartas urbanas no complexo processo de desuso dos ordlios, pois as imunidades do sculo XII testemunham o fato de que era considerado um privilgio a garantia de no ser submetido aos ordlios 60 . Porm, ressalva o autor que a equao cidade, comrcio, racionalidade e hostilidade ao ordlio implausvel, pois apia uma interpretao histrica em modelos sociolgicos, como a associao da burguesia racionalidade61. R.C. van Caenegem acrescenta que no se pode subestimar o estigma que pesava sobre os ordlios unilaterais associados ao status servil ou crimes infamantes, bem como a clara desvantagem que os citadinos teriam diante de cavaleiros no duelo judicial62. Em que pese a crtica metodolgica de Bartlett tese inicialmente formulada por Nottarp, no podemos negar uma relao entre a organizao urbana e a hostilidade aos ordlios. Hoje, este um problema aberto na historiografia, h toda uma documentao a ser estudada que aguarda novas pesquisas organizadas a partir dos debates mais recentes acerca da histria urbana da Baixa Idade Mdia.

As imunidades garantidas s cidades tambm so analisadas por BARTLETT, Robert. Trial by fire and water: the medieval judicial ordeal. Oxford: Clarendon, 1986, p. 53-62. 60 BARTLETT, Robert. Trial by fire and water: the medieval judicial ordeal. Oxford: Clarendon, 1986, p. 62. 61 Ainda na p. 62, conclui o autor que: A existncia de imunidades urbanas contra os ordlios no significam que os citadinos viviam uma crise na confiana de sua eficincia, (...) mas sobretudo que procuravam evitar esta forma particularmente rigorosa de julgamento e submeter-se, em seu lugar, a procedimentos menos demandantes. 62 CAENEGEM, Raoul C. van. Reflexions on rational and irrational modes of proof in medieval Europe. Tijdschrift voor rechtsgeschiedenis, v.58, p.263-279, 1990, p. 276.

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Uma segunda tese, de grande fortuna na historiografia anglo-sax, a tese funcionalista de Peter Brown63. J a comentamos brevemente no tpico sobre as teorias da fundamentao dos ordlios, porm seu propsito maior est em analisar as razes pelas quais os ordlios so substitudos por outros procedimentos de apurao ao longo dos sculos XII e XIII. Para Brown, os ordlios so prtica vigente enquanto serviam como um mecanismo garantidor da coeso social. Falhando neste propsito, so substitudas por outros dispositivos que desempenhem esta funo a contento. A pergunta de Brown : o que mudou nos sculos XII e XIII para que os ordlios fossem abandonados? Sugere o autor que os longos ritos de execuo dos ordlios favoreciam a negociao entre os litigantes, com a participao de toda comunidade, facilitando uma soluo consensual em pequenos grupos que resolviam suas dificuldades face a face. Brown identifica nos sculos de depreciao dos ordlios uma substituio deste modelo de resoluo de conflitos baseada no consenso por outro baseado na autoridade do governante, que avoca para si a prerrogativa de julgar, constituindo um modelo de soluo de controvrsias supra-partes, conduzindo inexoravelmente ao desaparecimento das condies de julgamento que prevaleciam em pequenos grupos nos quais o longo ritual do ordlios desempenhava funes teraputicas. A tese de Brown foi duramente criticada por Charles Radding64

, conforme j

mencionamos no item (ii) supra, e Robert Bartlett 65 . As principais crticas referem-se configurao do ordlio como uma prtica afeita a pequenas comunidades autnomas, em que o ritual do ordlio favoreceria a coeso pelo consenso. Bartlett ressalva, nas p. 41 e 42, que as fontes nos indicam que:

63

BROWN, Peter. Society and the supernatural: a medieval change. In: BROWN, Peter (Ed.). Society and the holy in late antiquity. London: Faber and Faber, 1982. p.302-332. 64 RADDING, Charles M. Superstition to science: nature, fortune and the passing of the medieval ordeal. The American Historical Review, v.84, n.4, p.945-969, 1979. 65 BARTLETT, Robert. Trial by fire and water: the medieval judicial ordeal. Oxford: Clarendon, 1986, p. 34-42.

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Os ordlios eram parte regular do procedimento judicial oficial e eram presididos por autoridades formalmente constitudas. Eram homens que tinham o poder de decidir. Os tribunais eram conduzidos por eclesisticos, oficiais reais e senhores locais, no por pequenas comunidades face-aface com poder de barganhar. (...) Ao se superestimar a autonomia do grupo, negligencia-se o papel das autoridades (...). O ordlio produzia um resultado, mas no gerava consenso. Entendemos igualmente que a tese de Brown tem srios problemas, principalmente na relao que formula entre ordlio e consenso. Esta virada do consenso para a autoridade, como fundamento das formas de soluo de controvrsias no aplicvel para os ordlios, pois estes eram utilizados justamente em litgios crticos em que a soluo consensual no era possvel. O que se pode manter da tese de Brown, uma sugesto de pesquisa: a de que se deve investigar, entre os sculos XII e XIII, a formulao de uma nova concepo da administrao da justia, segundo a qual, o ordlio perderia sua funo e sentido. Avanando nas pesquisas scio-polticas, h uma linha importante que relaciona o declnio dos ordlios estruturao de uma justia pblica repressiva pelas monarquias a partir do sculo XII66. O tema da formao da justia criminal um problema clssico da histria do direito, embora nele, mais uma vez, o ordlio seja tratado de forma apenas incidental. Esta nova instncia de justia fundamentada na autoridade real67 e dirigida persecuo penal, organiza-se a partir de meios de prova controlveis sobretudo no inqurito conduzido por agentes do rei e opostos, portanto, a provas aleatrias cuja execuo dependente do clero. A justia repressiva secular da Baixa Idade Mdia pode ser contada como um dos fatores decisivos do declnio do emprego dos juzos de Deus, do qual a autoridade pblica seria apenas expectadora, e no

WEITZEL, Jrgen. Dinggenossenschaft und Recht: Untersuchungen zum Rechtsverstndnis im frnkischdeutschen Mittelalter, 2.Teilbnde. Kln, Wien: Bhlau, 1985. (Quellen und Forschungen zur hchsten Gerichtsbarkeit im alten Reich, v.15/I/II), especialmente a segunda parte. 67 A relao entre o declnio dos ordlios e a centralizao da autoridade secular tambm foi discutida em GRIPPARI, Marie-Nolle. Le jugement de Dieu et la mise en jeu du pouvoir. Revue Historique, v.278, n.2, p.281-291, 1987.

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executora. Para a soluo do impasse no processo, o poder pblico preferir a confisso obtida mediante tortura68. Um grupo majoritrio de historiadores reputam o declnio e interdio das prticas ordlicas a fatores de ordem intelectual. Como explicar que os juzos de Deus, mesmo difundidos sculo XII adentro teriam, mesma poca, sido alvo de uma intensa rejeio? Sugere-se que a proibio dos ordlios seria decorrente da oposio de uma elite intelectual permanncia de usos que no mais se justificavam diante de seus novos princpios. Neste sentido, a retomada da filosofia aristotlica, mas principalmente a doutrina cannica e jurdica da Baixa Idade Mdia so considerados fatores determinantes para o declnio dos ordlios. Nesta linha, um grupo de autores69 prope que a retomada dos estudos aristotlicos so determinantes para a superao dos ordlios. Uma nova interpretao sobre a natureza, vista como sujeita a leis fsicas ao invs de impulsos providenciais constantes, seria incompatvel com a lgica dos ordlios. A filosofia aristotlica anti-providencialista, ao assumir uma posio dominante na formao intelectual, influenciaria na elaborao de doutrinas anti-ordlicas, determinantes para a canonstica70 a partir do sculo XII.

O tema da substituio dos ordlios pela tortura no processo tambm um dos campos centrais da histria jurdica da baixa idade mdia. A respeito: FEHR, Hans. Gottesurteil und Folter: eine Studie zur Dmonologe des Mittelalters und der neueren Zeit. In: TATRIN-TARNHEYDEN, Edgar (Ed.). Festabe fr Rudolf Stammler zum 70. Geburtstag am 19. februar 1926. Berlin; Leipzig: De Gruyter, 1926. p.231-254; PETERS, Edward. La tortura. Madrid: Alianza, 1987. 69 RADDING, Charles M. Superstition to science: nature, fortune and the passing of the medieval ordeal. The American Historical Review, v.84, n.4, p.945-969, 1979. Extensa discusso sobre a influncia aristotlica no processo de crescente ceticismo face aos milagres, justia imanente, punies divinas e evidente os ordlios (especialmente p.959-965) ]70 Especificamente sobre a proibio dos ordlios no direito cannico: LEITMAIER, Charlotte. Die Kirche und die Gottesurteile: eine rechtshistorische Studie. Wien: Herold, 1953; NOTTARP, Hermann. Gottesurteilstudien. Mnchen: Ksel, 1956; GAUDEMET, Jean. Les ordalies au moyen ge: doctrine, legislation et pratique canoniques. In: GILISSEN, John (Ed.). La Preuve 2: moyen ge et temps modernes. Bruxelles: Librairie encyclopdique, 1965. (Recueils de la socit Jean Bodin pour l'histoire comparative des institutions, v.17). p.99-135 ; BALDWIN, John W. The intellectual preparation for the canon of 1215 against ordeals. Speculum, v.34, p.613-636, 1961.

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Ainda, ordlios e duelos mostram-se incompatveis com a retomada dos estudos de direito romano pelos legistas eruditos71. Como vimos no item (i), os ordlios no eram previstos como meio de prova legtimo nas fontes romanas, da os sistemas jurdicos medievais de inspirao romanstica, como as escolas eruditas e cannicas, desacreditarem a permanncia dos ordlios no novo sistema probatrio organizado a partir da restaurao da teoria romana das provas72. Do ponto de vista terico, os ordlios so prticas alheias ao sistema jurdico romano-cannico que se organizar na Europa a partir do sculo XII73. Uma perspectiva recente, que nos parece conjugar com xito os diferentes fatores que concorrem para o declnio dos ordlios, foi sugerida por Robert Jacob74. Historiador do direito dedicado mais amplamente ao estudo da formao das competncias jurisdicionais, sugere o autor em seu artigo que o fim dos ordlios deve ser compreendido segundo uma nova definio da funo judicante no contexto da Reforma Gregoriana, sujeita ao efeito de uma dupla mutao, de idias e de prticas judicirias, de recuo dos limites da justia divina e consolidao da organizao judiciria: A querela entre o papado e o imprio redesenharam a fronteira entre os domnios temporal e espiritual. Os telogos, as autoridades da Igreja empreenderam ento, para melhor control-los, uma vasta redefinio dosDentre a vasta bibliografia a tratar do direito erudito medieval, citamos apenas como introduo BERMAN, Harold J. La formacin de la tradicin jurdica de Occidente. Mxico, D.F.: Fondo de Cultura Econmica, 1996; HESPANHA, Antnio Manuel. Panorama histrico da cultura jurdica europia. 2.ed. Mem Martins: EuropaAmrica, 1998. 72 LVY, Jean-Philippe. Le problme de la preuve dans les droits savants du moyen ge. In: GILISSEN, John (Ed.). La Preuve 2: moyen ge et temps modernes. Bruxelles: Librairie encyclopdique, 1965. (Recueils de la socit Jean Bodin pour l'histoire comparative des institutions, v.17). p.137-167, especificamente passagens nas p. 148-160. NEHLSEN-VON STRYK, Karin. Die Krise des 'irrationalen' Beweises im Hoch- und Sptmittelalter und ihre gesellschaftlichen Implikationen. ZRG GA, v.117, p.1-38, 2000. ]73 certo que o abandono dos ordlios no imediato aps sua interdio eclesistica e secular. A persistncia das prticas ordlicas, especialmente o duelo, so tambm um tema estudado pela historiografia. Veja especialmente: CONRAD, H. Das Gottesurteil in den Konstitutionen von Melfi Friedrichs II von Hohenstauffen. Festschrift W. Schmidt-Rimpler. Karlsruhe, 1959. p.9-21.SCHMOECKEL, Mathias. Ein sonderbares Wunderwerck Gottes: Bemerkungen zum langsamen Rckgang der Ordale nach 1215. Ius Commune, v.26, p.123-164, 1999; LEICHT, P.S. Ultime menzioni delle ordalie e del duello giudiziario in Italia. In: Festschrift Ernst Heymann zum 70. Geburtstag I: Rechtsgeschichte. Weimar: Bhlau, 1940. p.95-101. 74 JACOB, Robert. Le jugement de Dieu et la formation de la fonction de juger dans l'histoire europenne. Archives de Philosophie du Droit, v.39, p.87-104, 1995.71

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lugares, tempos e meios de comunicao entre Deus e os homens. (...) Desta recomposio dos limites entre o profano e o sagrado, a proibio dos ordlios era uma pea-chave. (...) O Ocidente latino elaborou uma concepo rigorosa da justia transcendente (...) o que resulta no fato de que a justia divina apartava-se, a partir de ento, de qualquer aplicao prtica nos procedimentos seculares75. Adiante, o autor comenta as alteraes substanciais da justia secular motivadas pelas transformaes econmicas e sociais poca: As novas riquezas decorrentes da expanso rural, e em seguida urbana, propiciaram aos poderes pblicos das cidades, dos grandes senhores e das monarquias condies para formar estavelmente um corpo de agentes policiais e magistrados profissionais. A autoridade do poder judicirio refora-se. Ele era a partir de ento perfeitamente capaz de impor s partes litigantes o respeito s regras comuns e a execuo de seu julgamento. A tentao de apelar ao Outro Mundo declinava proporcionalmente. As novas relaes de fora e poder atriburam um novo papel ao juiz no processo, do qual ele constitua o mestre incontestvel76.

***

Ainda que nossa dissertao tenha como marco cronolgico o perodo carolngio, entendemos que no havia sentido em se comentar apenas a historiografia restrita a esta etapa da histria dos ordlios. As anlises sobre os ordlios so pouco numerosas e muito semelhantes entre si, geralmente reproduzindo a discusso dos mesmos problemas em uma descrio contnua que vai da controversa origem germnica/pag, passando pela utilizao na alta idade mdia e encerrando-se no declnio na baixa idade mdia, e da, enfatizando uma ou outra perspectiva.

75

JACOB, Robert. Le jugement de Dieu et la formation de la fonction de juger dans l'histoire europenne. Archives de Philosophie du Droit, v.39, p.87-104, 1995, p. 99. 76 JACOB, Robert. Le jugement de Dieu et la formation de la fonction de juger dans l'histoire europenne. Archives de Philosophie du Droit, v.39, p.87-104, 1995, p. 100. Acrescento, de minha parte, que a ascenso do juiz pblico como autoridade mxima no processo outorga a ele ferramentas persuasivas como a tortura, o suplcio e as penas infamantes.

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Mais proveitosa entendemos que seria a explicitao das teses historiogrficas comuns discusso do tema, e que transitam indistintamente nas anlises das fontes do sculo VI, X e XIII. Neste sentido, podemos concluir que a historiografia sobre os ordlios tem como fio condutor a dicotomia racional/irracional77, e que este debate conceitual adquire por vezes propores to ampliadas que chega mesmo a superar o estudo do repertrio documental sobre estas prticas probatrias. A leitura da historiografia sobretudo a mais recente pode ser considerada pouco informativa no que se refere discusso das fontes histricas, e extremamente dirigida discusso de conceitos contemporneos. Quanto aos trabalhos mais comprometidos com as fontes primrias preferem a elaborao de tipologias e sistematizao de um determinada tradio documental, seja normativa ou teolgica.

2 O problema da conceituao do ordlio2.1 Os ordlios nas fontes. O problema da linguagem jurdica na Alta Idade MdiaAntes do estudo das provas ordlicas na justia real carolngia, importa explicitar a conceituao do ordlio. Isto porque, como veremos, no se trata de uma categoria que possa ser utilizada sem ulterior discusso. Aqui investigaremos o problema em se falar de ordlio considerando-se a equivocidade da linguagem jurdica na Alta Idade Mdia. A ausncia de literatura erudita escrita por juristas profissionais com formao escolar ajuda a explicar esta equivocidade. Com efeito, no h, nos documentos medievais redigidos em latim, uma uniformidade terminolgica para designar o que hoje nomeamos como ordlio. O termo que na Idade Mdia seAinda que a discusso sobre a aplicao das categorias racional/irracional pelos historiadores no seja expressamente discutida, a predileo pelos temas de fronteira, isto , a origem e o fim dos ordlios tm como pressuposto a assuno da questo da racionalidade/irracionalidade como determinante.77

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aproxima da forma ordlio atestado primeiramente nas fontes anglo-saxs jurdicas redigidas em vernculo a partir do sculo VIII (ordal). Nas fontes continentais, a forma ordalium (latinizada a partir do antigo alemo urtheil>urteil) atestada apenas na poca moderna. Na documentao dos scs. VI a XII, h um conjunto de palavras que se referem s provas ordlicas. A mais comum iudicium, termo tcnico do direito romano que designa tanto a apreciao de um quesito processual quanto a pronncia da prpria sentena, e que tambm tem uma relevncia no plano religioso, uma vez que designa o Juzo Final (iudicium extremum, iudicium ultimum). A expresso geralmente apontada nos livros contemporneos como equivalente de ordlio, iudicium Dei, muito equvoca e em muitos dos casos se refere aos Juzos de Deus em sentido moral. Sem outras informaes documentais que contextualizem o iudicium Dei, no podemos afirmar que se trata de um ordlio. Por outro lado, nossa compreenso pode ser facilitada quando os textos qualificam o meio que propicia o iudicium, em locues como iudicium aquae ferventis, iudicium aquae frigidae, iudicium crucis, iudicium panis et casei. Nestes casos, no h dvidas para entendimento do documento. Por vezes, apenas o termo iudicium suficiente para referir-se a um ordlio, desde que o contexto do documento assim o indique, Outro termo bastante comum examinatio (tb. examen, examinare). Na Bblia, fonte mais privilegiada que qualquer outra, o salmista canta a Deus: igne examinasti me et non in me est iniquitas. Nos textos especificamente jurdicos, a examinatio descrita na Leges, em capitulrios carolngios (como o de 813), e na doutrina teolgica (como na correspondncia papal de Etienne V). A palavra examinatio pode se referir averiguao de autenticidade de um diploma, ao questionamento de testemunhas ou simplesmente apreciao da causa no tribunal. S podemos afirmar que a palavra examinatio se refere a um ordlio se a cotejarmos com outras informaes

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do documento ou se locues delimitarem inequivocamente o sentido da expresso (examen aenei, examen per eucharistiam, examinatio crucis, etc.). A implicao moral crist que o ordlio adquire acentuada com o emprego do termo purgatio. Para a Patrstica, este termo designava em princpio a purificao da alma e mais tarde, liturgicamente, a reconciliao do pecador aps a penitncia. Purgatio um dos termos que designa com mais freqncia o ordlio a partir do sc. IX78, principalmente nos textos teolgicos (doutrinrios e litrgicos). Aqui, tambm dependemos da contextualizao do texto ou das locues (purgatio per corpus et sanguinem Domini nostri Iesu Christi, purgatio vulgaris). H ainda outros termos correntes, como adiuratio (adiuratio ferri, adiuratio aquae ferventis) e probatio para os quais as mesmas observaes so vlidas. O importante que fique claro que no h um termo latino que corresponda a nosso conceito de ordlio, e sim uma srie de expresses que s adquirem sentido no contexto do documento.

2.2 Conceito de ordlio como gnero probatrioPodemos nos surpreender com a dificuldade de encontrar uma formulao expressa do conceito de ordlio na historiografia79. A maior parte dos autores assume uma pr-compreenso78

No gratuitamente, o termo purgatio primeiramente empregado pelos autores que possuem um amplo conhecimento dos textos teolgicos e eruditos patrsticos e ser o preferido pela doutrina cannica aps o ano mil, fixando a expresso purgatio vulgaris, como no Decreto de Graciano e Ivo de Chartres. 79 Apenas como exemplo citamos a monografia mais recente: BARTLETT, Robert. Trial by fire and water: the medieval judicial ordeal. Oxford: Clarendon, 1986. O autor define seu objeto enunciando os tipos de procedimento de que se ocupar ao longo do livro. O prprio ttulo do livro Julgamento pelo fogo e pela gua, j pressupe uma delimitao do ordlio a partir dos elementos da natureza, ser que esta distino procede nas fontes ou se trata de uma circunscrio simplesmente arbitrria. A definio de ordlio est portanto, ligada tipologia dos rituais. Para citar mais um exemplo recente, referimo-nos ao verbete Ordalies, preparado por Dominique Barthlmy (GAUVARD, Claude; DE LIBERA, Alain; ZINK, Michel (Ed.). Dictionnaire du Moyen ge. Paris: Presses Universitaires de France, 2002, p.1020-1022): o autor no define em nenhum momento o que ordlio. Na abertura do verbete considera o termo ordalie como sinnimo de preuve judiciaire ou jugements de Dieu. S, ou seja, basta saber o que preuve judiciaire ou jugement de Dieu, que automaticamente chagamos ao sentido de ordlio! Mais frente o autor volta a ocupar-se da definio, na verdade decidindo quais tipos de prova podem ou

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da prova ordlica residualmente ao meios probatrios da tradio jurdica erudita. Um estudo sobre os ordlios costuma abordar por excluso todos os procedimentos diferentes da confisso, da prova documental e testemunhal, isto , tudo que alheio tradio romano-cannica. O termo ordlio no uma categoria do direito medieval, mas uma elaborao terica moderna que rene em uma nica enunciao elementos comuns a vrias aes probatrias80. Portanto, a definio de ordlio refere-se a um gnero e no a um tipo especfico de prova. Vejamos algumas definies:Ordlio. Procedimento judicial para determinar a verdade de uma acusao. Pode ser unilateral (gua fervente, gua fria, ferro em brasa) ou bilateral (duelo judicial entre representantes das duas partes). Parece ter existido na maior parte dos povos indo-europeus, mas nas populaes germnicas, parece constatada apenas junto aos Burgndios, dos quais teria passado aos Francos.81

Os autores so imprecisos em sua proposio, afinal, o interrogatrio, o documento e a confisso tambm so procedimentos para se determinar a veracidade de uma alegao, qualquer meio de prova define-se como tal. Na dificuldade em recensear as caractersticas essenciais dos ordlios, apegam-se a uma tipologia exemplificativa que organizam segundo o critrio da lateralidade (mero casusmo ou atende a exigncias da organizao do processo?). Por fim,

no ser includos nesta categoria. L-se na p. 1020: Il faut aussi assumer une certaine dfinition des ordalies. La plus pertinente est sans doute assez restrictive : ni le serment, ni lpreuve de lEucharistie, ni la divination appele sort des saints ne sont exactement des ordalies ; le duel judiciaire lui-mme, sil est une aperte loi , nest que trs peu sacralis, il ne fait jamais lobjet dune liturgie et savre donc beaucoup moins sacral que les autres preuves. En revanche, en sortant du domaine judiciare strict, il faut voquer les ordalies de saintt : au XIe sicle, un moine rformateur, un dcouvreur de reliques passent au travers le feu dun bcher, pour prouver leur charisme . A dificuldade do autor em esclarecer sobre o que est escrevendo no resolvida. Afinal, que so os ordlios para M. Barthlmy? 80 A multiplicidade de aes que podem ser reunidas sobre a rubrica de prova ordlica foi objeto da exposio de KBLER, Gerhard. Welchen Gottes Urteil ist das Gottesurteil des Mittelalters?. In: BRIESKORN, Norbert; MIKAT, Paul; MLLER, Daniela; WILLOWEIT, Dietmar (Ed.). Vom mittelalterlichen Recht zur neuzeitlichen Rechtswissenschaft: Winfrid Trusen zum 70. Geburtstag. Paderborn; Mnchen; Wien; Zrich: Schningh, 1994. p.89-108. 81 DEFLOU-LECA, Nolle; DUBREUCQ, Alain (Ed.). Socits en Europe: mi VIe- fin IXe sicle. Paris: Atlande, 2003, p. 564

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perseguidos pelo dolo das origens, traam uma genealogia desde os indo-europeus at os reinos dos Burgndios e Francos82. Outras definies independem da classificao dos tipos de ordlio e preferem expor o mecanismo de validao da prova:Trata-se de um meio sagrado de apurao do direito, baseado na idia que, sendo Deus o protetor do direito, ir indicar por meio de um sinal a culpa ou inocncia da parte no caso de improcedncia de uma alegao.83 Deus o protetor do direito; Ele no tolera que em um conflito humano o culpado prevalea e o inocente seja abatido. Na ameaa deste perigo, o prprio Deus revelar especialmente por invocao a culpa ou inocncia do acusado por meio de um sinal milagroso.84

A contribuio destas definies reside na superao da tipologia. A tipologia s faz sentido se soubermos o critrio adotado para constru-la. No caso, temos que o gnero de provas ordlicas rene procedimentos que dependem da interveno direta da divindade que apontar a procedncia de um direito por meio de um sinal visvel. Os litigantes e julgadores so meros espectadores da deciso divina, a incumbncia de decidir sobre um direito transferido para Deus, garantidor supremo da justia. Estes elementos so confirmados por Sigismond Grelewski:Chamamos de ordlios certos procedimentos solenes pelos quais consulta-se uma divindade a respeito de uma questo litigiosa vinculando-a a se pronunciar sobre esta questo de uma forma previamente estabelecida85

Esta definio de Grelewski sinttica e bastante apurada, em nossa opinio. Independe da tipologia, abstraindo apenas os elementos comuns a todos procedimentos classificados como ordlicos. As caractersticas essenciais deste gnero de prova so portanto: a apelao para a interveno direta de Deus na revelao do bom direito, a revelao visvel e inconteste deste juzo divino e a formalidade do procedimento probatrio.82 83

Esta restrio Burgndia e Francia absolutamente improcedente, vide nosso captulo 3 no item sobre as Leges. BECKER, Hans-Jrgen. Gottesurteil. LexMa IV, col. 1594-5. 84 ERLER, Adalbert. Gottesurteil. HRG 1, col. 1769-1773. 85 GRELEWSKI, S. La raction contre les ordalies en France depuis le IXe sicle jusqu'au Dcret de Gratien. Rennes: Imprimerie du Nouvelliste, 1924, p.2.

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Os ordlios tm portanto uma funo exercida no mbito do juzo, do procedimento judicial. No se trata de um milagre qualquer, mas de um milagre no juzo. Falta portanto, uma ampliao da definio de ordlio para alm de sua fundamentao e que o defina como parte integrante do procedimento judicial.

2.3 Tipologia das formas ordlicasA diversidade de prticas evidenciada nas fontes assumida pela posio destacada que as tipologias das modalidades ordlicas ocupam na historiografia86. Assim, importante sublinhar que para a maior parte dos estudos, a histria da aplicao dos ordlios menos importante que o problema de sua insero e excluso dos ordenamentos jurdicos reduz-se quase que exposio estanque de suas variantes, descrevendo-se as particularidades da execuo do rito com nfase para o elemento material empregado e as principais referncias histricas de seu uso, geralmente abrangendo amplos intervalos temporais e domnios territoriais. Para os estudos que contemplam os ordenamentos utentes, o cerne da pesquisa sobre o uso dos ordlios est em recolher as mirabolncias praticadas pelas sociedades medievais. A investigao da aplicao dos ordlios praticamente reduz-se ao desfile de suas variadas expresses. No estamos com isso desconsiderando a sistematizao dos tipos de ordlios, a historiografia no pode se eximir de seu trabalho de racionalizao das fontes, mas assumimos

Esta perspectiva absolutamente majoritria. Adotam a exposio tipolgica dos tipos ordlicos as principais monografias sobre o tema: MAJER, Friedrich. Geschichte der Ordalien, insbesondere der gerichtlichen Zweikmpfe in Deutschland. Jena: Akademischen Buchhandlung, 1795; Jarick, J. K. F. De iudiciis Dei sive de ordaliis medii aevi: commentatio iuris teutonici historica. (Tese de doutorado apresentada na Universidade de Bratislava). Bratislava, 1820; LEA, Henry Charles. The Ordeal. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1973; LEITMAIER, Charlotte. Die Kirche und die Gottesurteile: eine rechtshistorische Studie. Wien: Herold, 1953; NOTTARP, Hermann. Gottesurteilstudien. Mnchen: Ksel, 1956; BARTLETT, Robert. Trial by fire and water: the medieval judicial ordeal. Oxford: Clarendon, 1986. No mesmo sentido, a organizao dos verbetes nas enciclopdias e obras de referncia tambm reduzem a questo da aplicao dos ordlios tipologia.

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que a tipologia no um fim, mas to-somente um meio para o historiador compreender a utilizao destas prticas, indicar seus aspectos comuns, explicitar as discrepncias entre as diferentes modalidades e, tambm, ponderar em que medida a variabilidade das formas de execuo era relevante para a poca. Enfim, trata-se antes de como dar um sentido complexidade das prticas jurdicas. A tipologia mais completa que conhecemos foi organizada por Charlotte Leitmaier 87 . Como estas sistematizaes pretendem-se exaustivas, no se limitam a um perodo, local ou repertrio de fontes em particular. Por ora ainda no nos restringimos s formas usitadas poca de Carlos Magno. Apresentaremos a seguir uma sntese das informaes reunidas pela autora, com a respectiva terminologia latina mais usual: a) prova da relha de arado (iudicium vomerum ignitorum): ao de caminhar sobre uma certa quantidade de relhas em brasa. b) prova do ferro incandescente (iudicium ferri igniti, candentis, calidi; iudicium igneum): ao de portar nas mos um objeto de metal em brasa por um certo espao ou intervalo de tempo. A inocncia comprovada pela ausncia de leso. c) prova da chama (manum in ignem mittere): passar a mo pelo fogo ou mant-la na chama por um determinado tempo. A inocncia comprovada pela ausncia de leso88. d) prova da gua fervente (iudicium aquae ferventis, calidae, bullientis; examen aenei, caldariae): imergir o brao ou parte em um caldeiro de gua fervente, geralmente durante o tempo necessrio para recuperar um objeto (desde uma simples pedra at uma relquia, raramente especificado). A inocncia comprovada pela ausncia de leso.

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LEITMAIER, Charlotte. Die Kirche und die Gottesurteile: eine rechtshistorische Studie. Wien: Herold, 1953, p.9-30 88 OPET, Otto. Hatten die Franken ein Ordal des Flammengriffs?. MIG, v.15, p.479-482, 1894.

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e) prova da gua fria (iudicium aquae frigidae): a pessoa submetida prova tem os ps e braos amarrados e lanada em um tanque de gua, lago ou rio. A interpretao da inocncia do acusado varivel, por vezes indicada pela submerso, por vezes pela emerso. f) prova do torro (iudicium panis et casei; iudicium offae): oferecido um alimento consagrado para deglutio (geralmente um preparado de po e queijo), se no for possvel ingeri-lo ou se a pessoa tiver alguma indisposio posterior, considerado culpada. g) prova da eucaristia (examen per eucharistiam; purgatio per corpus et sanguinem D