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IV CONALI - Congresso Nacional de Linguagens em Interação Múltiplos Olhares
05, 06 e 07 de junho de 2013
ISSN: 1981-8211
MANANA: tradição e aculturação
Izabel Cristina Souza GIMENEZ – UNIOESTE/UEL
Sérgio Paulo ADOLFO – orientador
Introdução
Os textos de Uanhenga Xitu - como o romance Manana, corpus deste trabalho - transitam do
campo para a cidade e, desta forma, permitem a representação dos aspectos sócio-culturais de um e
de outro espaço, configurando vozes históricas e sociais que ecoam em um país que, durante
séculos, esteve sob a dominação portuguesa.
No romance Manana ocorre um diálogo entre as vozes da tradição, as vozes da aculturação
e as vozes do poder constituído por meio do qual se pode vislumbrar discursos distintos que
estabelecem relações discursivas conflituososas e contraditórias que configuram a trama narrativa.
Em função disso, pensa-se que se pode, por meio da análise do discurso das principais personagens,
verificar o que dizem essas vozes e que significado as relações discursivas estabelecem. Neste
sentido, as obras podem ser analisadas, principalmente, segundo a ótica de Mikhail Baktin, segundo
o qual a linguagem é um instrumento de interação social, visto que
a palavra penetra literalmente em todas relações entre indivíduos, nas relações de
colaboração, nas de base ideológica, nos encontros fortuitos da vida cotidiana, nas
relações de caráter político, etc. As palavras são tecidas a partir de uma multidão de
fios ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais em todos os
domínios. (BAKHTIN, 1997, p. 41).
Em virtude disso, há que se pensar na pessoa que fala no romance e nas linguagens e vozes
que ressoam nesse discurso, pois o sujeito falante é um ser concreto, um homem que ocupa um lugar
no mundo, interage com tudo e com todos que o envolvem, possuindo, portanto, uma consciência
sócio-ideológica. E será pela palavra, como também pelas ações, que vão eclodir as dúvidas e
convicções de quem fala, nas quais está subjacente o contexto social que as circunscreve. O que se
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percebe, neste sentido, é que a linguagem do romance acampa os diversos discursos
ideologicamente situados, sejam eles religiosos, políticos ou outros, e representa-os criticamente.
Nesse contexto, cabe discorrer também sobre a questão da identidade e diferença, aspecto
relativo aos estudos culturais, uma vez que a obra Manana, ao representar os discursos sócio-
históricos-culturais de colonização de Angola, discute a questão da aculturação, da alienação e da
resistência, notadamente no que se refere à identificação e manutenção de uma identidade africana.
Nesse aspecto, vale lembrar as palavras de Woodword (2000), discorrendo sobre identidade e
subjetividade:
A subjetividade envolve nossos sentimentos e pensamentos mais pessoais.
Entretanto nós vivemos nossa subjetividade em um contexto social no qual a
linguagem e a cultura dão significado à experiência que temos de nós mesmos e no
qual nós adotamos uma identidade. Quaisquer que sejam os significados
construídos pelos discursos, eles só podem ser eficazes se eles nos recrutam como
sujeitos. (WOODWORD, 2000. p. 55).
Há que se destacar também a contribuição de Memmi (2007) acerca da visão do colonizador
sobre o colonizado e as consequências advindas de um processo que oprime, subjuga e humilha em
nome de um poder usurpador que busca legitimar.
Com base no suporte teórico citado, buscar-se-á analisar as vozes históricas e sociais que
ecoam em Manana e verificar o que a elas subjaz.
1. Manana: tradição e aculturação
Se o conto “Mestre Tamoda”, também de Xitu, ambienta-se no período inicial da colonização
de Angola, quando o colonizador se impôs sobre o angolano, tentando subtrair-lhe a língua e a
cultura, de modo a mais facilmente estabelecer-se e legitimar-se no poder, vamos encontrar Manana
no período relativo à década de 50, quando o país começa a ascender economicamente. Esse
crescimento econômico estendeu-se até os anos 70 e propiciou a chegada de uma grande leva de
imigrantes. Apenas no período compreendido entre os anos de 1941 a 1950, cerca de 110 mil
portugueses saíram de Portugal com destino às colônias africanas, tendo a maioria se fixado em
Angola. Isso se deu devido à exploração petrolífera, à elevação da cotação do café, e à exploração
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dos minérios de ferro. Esse desenvolvimento econômico, porém, não atingiu a maioria da população
angolana, pois a política do Alto Comissário Norton de Matos, instalada no período de 1912 a 1915,
e de 1921 a 1924, havia deixado danos irrecuperáveis, sobretudo para os habitantes nativos.
Segundo Mourão (1978), Matos protagonizou o “primeiro golpe mortal” contra Angola ao
instaurar uma política que interrompeu “o processo de miscigenação e mudança com base numa
perspectiva comum para os dois grupos, brancos e negros [...]” (MOURÃO, 1978, p. 20). Para
Norton de Matos
A colonização de Angola tem de ser feita por famílias de trabalhadores da terra e
por trabalhadores do mar reunidas em pequena povoações, que serão o inicio da
formação dos centros rurais, industriais e urbanos do futuro [...]. Nessas terás de
África, ao lado de elementos da imigração portuguesa, outros terão de viver e
prosperar, sem se misturarem e fundirem, mas prestando-se auxílio indispensável
para os melhores resultados de uma civilização que a todos interessa. Os povos que
encontramos nos territórios africanos, se por um lado facilitam a nossa missão, por
outro a dificultam. Todo o nosso passado colonial, todas as nossas tradições nos
obrigam a olhar as raças primitivas não como povos a desviar ou a fazer
desaparecer do nosso caminho, ou a utilizar apenas como animais de trabalho, como
outras civilizações já fizeram e estão fazendo ainda: _ a nossa mentalidade colonial,
neste delicado e melindroso ponto de vista, obriga-nos a olhar essas raças de
diferente forma, a procurar melhorar continuamente as suas condições de vida,
materiais e morais levantá-las a civilizações mais perfeitas e combater seus vícios,
os seus erros e as suas superstições, a constituir-lhe seguros alicerces econômicos
para poderem progredir e desenvolverem-se. (MATOS, apud MOURÃO, 1978, p.
19-20).
As palavras de Matos expressam uma visão totalmente etnocêntrica e eurocêntrica sobre o
africano. O português os vê como pessoas inferiores, a quem precisam “civilizar” e, para isso, era
preciso “combater os seus vícios, os seus erros e as suas superstições”, ou seja, anular suas crenças e
costumes e ignorar sua cultura; isso tudo camuflado num discurso paternalista que evidencia o “bem
estar” do colonizado. Para Memmi (2007, p. 112), “o paternalista é aquele que, uma vez admitidos o
racismo e a desigualdade, se pretende generoso para além deles. Trata-se, se assim quisermos, de um
racismo caridoso – que não é o menos hábil nem o menos rentável”. Para o colonizador efetivar esse
processo e legitimá-lo era necessário também a aceitação do colonizado. Na medida em que o
colonizado aceita a imagem que dele é feita, aceita o papel que lhes foi atribuído e, com isso, aceita
a ideologia do colonizador. Esse fator gera a alienação social e propicia certa estabilidade entre as
sociedades. É para dentro desse contexto que nos leva a leitura de Manana, o contexto de uma
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população oprimida, que assimilou em grande parte a cultura do colonizador, mas que ainda mantém
alguns traços da tradição. Esses aspectos vão emergindo pouco a pouco na história de Felito e
Manana, personagens símbolo de uma geração que, dado o período de ambiência da obra, apenas
inicia um processo que, embora lentamente e a duras penas, levaria o povo angolano à
descolonização.
A história não é longa, seu autor a denomina de “livrário”, mas destaca: “Vocês vão ver: este
livrário não tem português caro, não. Português do liceu, não. Do Dr., não. Do funcionário, não. De
escritório, não. Só tem mesmo português d‟agente mesmo, lá do bairro, lá da sanzala, lá do
quimbo.” (XITU, s.d., p. 15). Ou seja, o livro representa a gente pobre, humilde, que mora na zona
rural e na periferia da cidade, e na qual o autor se inclui.
Em uma leitura linear, em Manana pode-se vislumbrar a história de Felinto, um homem
casado, e suas peripécias para manter um noivado com uma jovem chamada Manana. Além de
precisar ludibriar a esposa, bem como a jovem noiva, Felinto precisa conviver com as tradições,
principalmente religiosas, que a família de Manana cultiva. No entanto, essa história, aparentemente
simples e curiosa, guarda aspectos relevantes da cultura angolana, como a tradição religiosa e
mítica, a bigamia e a aculturação.
O que primeiro chama a atenção na obra é a oralidade e o entrelaçamento da língua
portuguesa com a língua quimbundo. Diferente de “Mestre Tamoda”, onde o autor mescla apenas
palavras e pequenas frases no dialeto angolano, em Manana se verifica, além de palavras, frases e
parágrafos inteiros em quimbundo e umbundo, incluindo orações e cantigas:
„Tata mpolo-éé
(ndunda kuná)
Tata mpolo-éé
(ndunda kuná)
........................‟. (XITU, s.d., p. 56).
Desse modo, a obra apresenta tanto as estruturas da oralidade quanto as estruturas da escrita.
A utilização da oralidade nos romances, explica Padilha (2007), surge da necessidade que tem o
escritor de resgatar, da tradição, o ato de contar histórias, papel desempenhado pelos velhos e pelos
griots, que é, no universo angolano, “uma prática ritualística e gozosa pela qual os imaginários do
contador e de seu(s) ouvintes(s) entram em interação prazerosa.” (Padilha, 2007, p. 21). Com isso,
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abre-se espaço para o nativo, ele ganha voz e começa a mostrar o que o diferencia do branco
colonizador. Por outro lado, a forma escrita pertence ao universo do branco, bem como a língua
portuguesa, porém, a ela apõem-se as línguas quimbundo e umbundo. No dizer de Padilha, “tais
línguas caracterizam o discurso dos não assimilados, sobretudo dos velhos, mostrados como mais
arraigados ao mundo de origem.” (PADILHA, 2007, p. 218). São dois elementos, a oralidade e a
língua, fatores de resistência, ou seja, de manutenção da cultura africana, elementos marcadores da
identidade nacional.
Percebe-se, assim, a dicotomia tradição versus modernidade que percorre a trama narrativa.
Por um lado está Filito, voz da modernidade e, por outro, estão os velhos, vozes da tradição. A
personagem Manana situa-se entre um e outro, ela é o elemento que poderia ser o mediador nessa
tensão que se estabelece entre a cultura nacional tradicional e a nova cultura, moderna, oriunda do
colonizador e, portanto, branca.
Destaca-se que, por ser um narrador em primeira pessoa, é por intermédio de Filito que se
toma conhecimento das vozes da tradição, fator que poderia levar à conclusão de que ele manipula
os discursos e os repete segundo sua intenção de narrador, de acordo com seu ponto de vista acerca
dos acontecimentos. No entanto, talvez inclusive para atestar a veracidade de sua versão, ele, de
fato, dá voz às demais personagens, incluindo aí os mais velhos.
Uma das primeiras manifestações da manutenção dos costumes tradicionais vê-se na
apresentação da família quando Felito vai à casa de Manana pedi-la em casamento:
Na porta do quintal, fomos recebidos pelo senhor Afonso, tio da Manana. No
quintal encontramos algumas pessoas que logo nos foram apresentadas.
Esta é a velha Chiminha, mãe de Manana e minha prima. Esta é a velha Maria,
irmã do falecido pai da minha sobrinha. Esta é a prima nzenze, irmã da velha
Chiminha, portanto tia da Manana. E esta Tita é minha sobrinha, filha mais velha da
velha Chiminha. (XITU, s.d., p. 68).
Percebe-se aí a importância da família, visto que os parentes mais próximos estão presentes
e, na ausência do pai, é o tio que se apresenta como o chefe da família. Nota-se, na citação, a
incidência da palavra “velha”, o que denota a importância da hierarquia e a importância do parente
mais idoso, ou seja, o valor que se atribui aos mais velhos. Padilha afirma que os velhos são
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[...] os guardiães contadores das estórias, como são ainda os condutores das
cerimônias pelas quais os neófitos ingressam nos mistérios do novo mundo, cujas
portas lhes são abertas pela iniciação. O ancião liga o novo ao velho, estabelecendo
as pontes necessárias para que a ordem se mantenha e os destinos se cumpram [...].
(PADILHA, 2007, p. 42).
A valorização dos velhos se verifica também quando as senhoras dão a benção a Filito após a
aceitação do pedido de casamento:
Etu, mininu, tua akuá ngene a Zanga. Tuandala ngo uembi ni kilunji. Se ua-tu-
sange ni inda ietu ia mbiji bu mutue, ku-tu-lenge. Etu muen tuavuala minina
Manana. Mu-di-bana kiambote (Nós, menino, somos gente da ilha. Esperamos de si
bondade e respeito. Se calhar nos encontrar com nossos cestos de peixe na cabeça
não nos fuja. Somos nós que nascemos a Manana). (XITU, s.d. p. 74).
Os costumes tradicionais comportamentais são mostrados em todas as situações que
envolvem encontros com a família de Manana. A tradição religiosa começa a revelar-se na morte da
velha Chiminha, mãe da protagonista: “Era no momento em que um quimbanda cumpria
discretamente certos ritos, com o caixão aberto.” (Xitu, s.d., p. 74) e no período de luto familiar,
quando Manana é escolhida para “viuvar”, que, nesse caso, significava guardar luto pelo
falecimento da mãe. Por isso, Manana é trancada em um quarto onde deveria permanecer por trinta
dias. Porém, Manana foi liberada no 15o dia por ter adoecido e, em função da doença, foi
encaminhada para um tratamento, na casa do avô, realizado por uma quimbanda. Com isso, apesar
dos apelos de Filito, Manana, em vez de tratar-se com um médico, é tratada por uma feiticeira, já
que os parentes acreditavam que a doença era causada pelo espírito da mãe ou por outros espíritos.
Além disso, na casa da Dilemba (casa onde se realizavam rituais), Manana passaria por uma
preparação para o casamento afim de que não tivesse dificuldade para fecundar, tal como acontecera
com a irmã. Era a vontade da mãe que seria cumprida.
Começa, então, o ritual de evocação dos espíritos – disakela – com a finalidade de afastar
o(s) espírito(s) que poderiam provocar a morte de Manana. Discorrendo sobre o missosso, Padilha
(2007) tece considerações sobre a morte. Segundo a autora, a morte para os angolanos – e, via de
regra, para os africanos – não é um processo natural, ao contrário, ela agride o princípio que
organiza a força vital. É, portanto, uma descontinuidade. No entanto, existe a crença de que os
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mortos interagem com os vivos e podem interferir na vida destes. Daí a necessidade de invocá-los e
afastá-los quando se pressente um perigo iminente, como é o caso de Manana.
Em primeiro lugar, a velha Kazola, a quimbanda, submeteu a doente a uns banhos
de kifuku ou kifutu, acompanhados de massagens e fricções com dikoso, com
pomadas caseiras e drogas feiticistas por todo o corpo.
Como, depois de tudo isso, a moça não revelasse as rápidas melhoras que se
esperavam, resolveu o velho Mbengu mandar fazer uma sessão de disakela. Para
isso convidou outra quimbanda.
Em vez de uma disakela seguiram-se muitas, acompanhadas de grandes batuques e
canções de encantamento que aquele povo há muito não ouvia e, talvez, nunca
ouviram alguns deles.
Nas primeiras sessões começaram-se com uma só „médium‟ no centro da cerimônia.
E o espírito nunca actuava. Então, resolveu-se fazer assentar mais „xingidi no
luando.
Eram mais de três mulheres que se sentavam, agora, no centro da disakela, para ver
qual delas tinha a „cabeça mais leve‟, para atrair o espírito e dar o sinal de hanhi-
hanhi-ranhi..._ a manifestação da descida do espírito.
A Manana era uma delas! Tinha sido instruída, naquele escasso tempo, pelas
mágicas, da maneira de se portar no „dilombe‟, dos sinais de como se pressentia o
espírito a actuar, e uma infinita série de recomendações.
Velho Mbengu vivia satisfeito por ver a neta sentada, vaidosamente, entre as
caracterizadas. [...]
Velha Kijila, da sanzala de Mindele-Ialém-bua, propositadamente contratada para
dirigir os mágicos que conduziam as sessões, numa noite esclareceu o público, na
sua linguagem típica:
„Se o kilundu não tinha aparecido até aquela altura_ já tinham feito quatro
masakela, foi por se ter incluído na mesma, entre as „xingidi, uma moça estranha a
essas coisas. Porque, antes disso, a rapariguinha devia ser preparada por um
quimbanda especial [...] Menina da cidade, dada às missas, procissões e a outras
coisas mais que não se praticam no meio, foi uma asneira lançá-la nesta disakela
sem antecipados tratamentos... As nossas filhas, da área, embora freqüentem as
missas e tudo mais que se faz nas cidades, de quando em quando vão comendo e
bebendo, por vezes sem saberem, dos makoso e jindembu dos seus antepassados...
Em suma, o ar que se respira no nosso meio e ambiente tem muita importância, para
que a escolha das „médiuns‟ recais nas mulheres que cá residem. (XITU, s.d., p.
115-117).
Percebe-se no fragmento, a voz de Filito a situar o fato de que aquele tipo de ritual já não era
tão praticado, pois há muito tempo as pessoas do lugar não ouviam os batuques e as canções
específicas e, algumas delas, talvez nunca as tivessem ouvido; e percebe-se também a voz da velha
Kijila, explicando o porquê de o espírito não se manifestar. A explicação é também uma crítica aos
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novos costumes, dos jovens, que aderiram à cultura religiosa da cidade – missas, procissões –, ou
seja, a cultura religiosa do colonizador.
Assim, se, por um lado se tem Felito a mostrar que já havia um distanciamento do povo em
relação à tradição religiosa, por outro se tem a reação dos idosos ao aculturamento dos mais jovens.
A jovem citada pela quimbanda é Manana, que não morava na Funda – zona rural de Luanda
– e sim na cidade e, portanto, recebera a educação escolar e religiosa do colonizador, bem como
assimilara seus costumes. Ora, mostra-se que Manana é também um produto da assimilação cultural
vivenciada no país naquele período. Mas a personagem vive uma dualidade religiosa, pois, ainda
que batizada na igreja católica, respeita e aceita os costumes religiosos da tradição. Tanto é que se
submete ao ritual de preparação para o casamento na casa da Dilemba. Neste ponto soa mais forte a
voz da modernidade, representada pelo assimilado e aculturado Filito, quando descreve, com
assombro, a visão que teve de Manana:
A moça surgiu à porta para nos receber. E entramos. Não parecia mais a mesma.
Magra e escanzelada, estava vestida de um pano de algodão branco, besuntado, por
cima do qual tinha outro de luto, com que tapava os ombro nus. Um lenço preto,
cheio de óleo, também lhe cobria a testa e toda a cabeça até à nuca, não deixando
ver sequer um cabelo. Descalça estava ela!... [...] _E por que estás metida nestes
panos sujos, descalça e o corpo cheio de óleo?[...].
Responde, Manana, por quê estás metida nestes panos sujos?
O que é que tu chamas de panos sujos?... São panos da casa da dilemba. Se eu
não fizer esse tratamento, quando casar dizem que não faço filhos, e se ficar grávida
ou os filhos saem como malucos ou como abortos. [...]. Mas quando é que uma
moça tão esperta, que comungava todas as semanas e menina dos bailes, vem cair
de um momento para outro entre bruxas?...Olha como está a tua cara, pálida! Olha
como estão as tuas unhas sem sangue! Tu queres morrer, não é?[...]
Pelo caminho não exalava o cheiro de perfume da Manana que conheci nos bailes
do mestre Joaquim, mas, sim, o cheiro da menina de dilemba. (XITU, s.d., p. 127-
142).
Na citação revela-se, claramente, a visão de Felito acerca das práticas culturais religiosas
vivenciadas por Manana. Felito desrespeita a tradição quando denomina o traje usado pela noiva de
panos sujos, no que se observa a diferença do sentimento da moça ao advertir: “ O que é que tu
chamas de panos sujos?... São panos da casa da dilemba.” (XITU, s.d., p. 130), acrescentando ainda a
explicação da necessidade do tratamento. No entanto, para Felito são exercícios de bruxaria, não
condizentes com a educação religiosa católica recebida por Manana na cidade. São duas vozes em
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confronto, a do moço aculturado e a da jovem também aculturada, porém que não perdeu o contato
com suas raízes e não somente as respeita como crê em seus preceitos religiosos.
Felito age preconceituosamente, como agiam os colonizadores ao se depararem com tais
práticas religiosas. Para Padilha,
A presença do branco fez com que a África se cindisse e não só se fizesse branca e
negra mestiço „tabuleiro de xadrez‟, [...], mas começasse ela própria a
incorporar, assimilando-os, os valores do colonizador, questionando seu saber
autóctone que passava a perceber como um menos saber. Quanto mais imergia, pelo
acesso à escolarização e pelo domínio da letra, no universo do saber branco, mais o
colonizado passava a „assimilar‟ – como dizia Fanon – „a cultura do opressor‟,
tentando „fazer suas as formas de pensamento da burguesia colonial‟. (PADILHA,
2007, p. 101)
Desse modo, Felito não apenas questiona como nega o valor da cultura negra, tomando-o por
primitivo e inadimissível naqueles “novos” tempos. Ao saber ancestral dos velhos ele sobrepõe, com
supremacia, a cultura branca. Mas, se Manana – apesar de também ser resultado da assimilação da
cultura hegemônica branca – guarda os valores da cultura tradicional, por que tal aspecto não
ocorreu com Felito? Por que Felito tem uma postura tão unilateral? Talvez se possa pensar em uma
questão de gênero. Felito é homem e nas mulheres a tradição sempre pesou mais forte, talvez pela
educação da submissão a elas impingida, de onde vem a necessidade da obediência. Tanto é que
Manana, em nenhum momento questiona as determinações dos parentes. Felito, por outro lado,
desde cedo, ignorou as determinações paternas. Nele falou mais forte a influência do tio carpinteiro
do que o desejo da mãe de vê-lo concluir os estudos.
Porém, ainda que Felito se mostre um produto da cidade e, com isso, um representante da
modernidade, em sua viagem à Funda verifica-se um retorno ao passado. O comboio que o
transporta é, metaforicamente, uma ponte entra a cidade e o campo. Percebe-se, nesse sentido, como
tradição e modernidade dialogam, pois Felito sai da agitação de Luanda e adentra a um mundo de
sons, cores e perfumes que, de certa forma, o contagiam. Ele descreve a Funda como um espaço
democrático onde pessoas de diversas classes sociais interagem; as vozes se entrelaçam provocando
um burburinho alegre e efusivo, principalmente quando as pessoas se reconheciam: “Algumas
famílias quando topavam com os seus, como que espantados abraçavam-se e batiam-se
demoradamente nas costas, numa satisfação franca. Olhavam-se, ainda agarrados, e interrogavam-
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se: Veio? Vim. Voltavam a abraçar-se e estalavam risos abertos.” (XITU, s.d., p. 122). Descreve
também, no comboio, os protestantes, cantando o „Sivaya, Sivaya...‟, acompanhados por pessoas
que, ao som do hino de louvor “mungumunavam mbundas em cadência de batuque...”. (XITU, s.d.,
p. 119). Com isso, verifica-se que no espaço rural, essencialmente o da tradição, as duas culturas
conviviam com muito mais naturalidade do que na cidade, de onde era oriundo o protagonista.
Embora pareça que a narrativa privilegia a cultura branca, já que o narrador é dela um
assimilado e, na escrita, se façam presentes os dialetos africanos (quimbundo e umbundo)
praticamente só na voz dos velhos e marcados com aspas e em itálico, nela estão as marcas de uma e
de outra tradição, evidenciando na estrutura romanesca o que os angolanos vivenciavam
cotidianamente: a tensão entre o “velho” e o “novo”.
2. Filito e Manana: identidades em confronto?
Desde o início da colonização portuguesa em Angola, em 1575, até o período de ambiência
de Manana, 1950, ou seja, quase quatro séculos após, qual seria a identidade do povo angolano?
Filito e Manana são personagens que nasceram na cidade e foram criados em um período no
qual a grande maioria da população de Luanda já era aculturada, mas alienada também, posto que os
valores da cultura branca, antes impostos, agora já estavam quase que totalmente assimilados. Desse
modo, foram à escola, receberam educação religiosa cristã e não há neles nenhum traço de
contestação em relação à colonização, ou seja, a princípio, poder-se-ia dizer que seriam
representantes de uma nova geração, a dos indivíduos com uma nova identidade, a do sujeito
sociológico. Segundo Hall (2006),
A noção de sujeito sociológico refletia a crescente complexidade do mundo
moderno e a consciência de que este núcleo interior do sujeito não era autônomo e
auto-suficiente, mas era formado na relação com „outras pessoas importantes para
ele‟, que mediavam para o sujeito os valores, sentidos e símbolos – a cultura – dos
mundos que ele/ela habitava. (HALL, 2006, p. 11).
Para os interacionistas, afirma Hall (2006, p. 11), a identidade é formada na “interação entre
o eu e o outro”. Para Filito, o outro com quem ele interagiu, e cuja influência marcou de forma mais
contundente a sua identidade, foi o tio Chico. Diferente dos pais, que, após a 4a série, o forçavam à
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continuidade dos estudos no Liceu, tio Chico incentivava a sua vocação para a carpintaria. É do tio
Chico que Filito recebe tanto as lições do ofício de carpinteiro, como as lições que dizem respeito ao
tratamento a ser dado aos mais velhos:
Sobrinho, você está um mestre. Mas dou-te um conselho. Nas oficinas onde vai
trabalhar, se encontrar velhos, mesmo que não sabem nada, você trata-lhes por
mestres. Não é mestre porque sabe mais, não. É mestre porque entrou primeiro na
arte. [...] Acatava com todo o rigor os conselhos do tio. (XITU, s.d., p. 31).
Essa interação com o tio contribuiu para formar o carpinteiro Filito e formar o homem Filito
que, ao ser “criado” na modernidade e por viver a modernidade, conhecia também os preceitos da
tradição, ainda que os utilizasse apenas quando lhe era conveniente.
Em Manana, porém, os dois elementos, tradição e modernidade, parecem estar mais
equilibrados. O nome Manana, de origem quimbundo, lhe foi dado pelo avô e significa ninfa ou
larva de abelha, porém,
No dia do baptismo, na Igreja da Ilha do Cabo, o chorado Padre que lá andava fez
questão por causa desse nome. Não era nome de Santa. E só depois de muita
insistência aceitou, o Padre, realizar o acto. Mas recomendou que a tratassem por
Mariana ou Ana, embora a registrasse – segundo a vontade dos avós – com o nome
de MANANA. (XITU, s.d., p. 39).
Confrontando a identidade das duas personagens, pode-se pensar em seu princípio formador
que, segundo Woodward (2011), é a diferença. A diferença entre Manana e Filito está, pois, no
gênero, na configuração familiar, e no âmbito espacial, fatores interligados, uma vez que a mulher
fica mais circunscrita ao ambiente privado, portanto familiar. E o espaço doméstico propicia a
manutenção da cultura de origem. Bia, esposa de Filito, também vive uma situação semelhante à de
Manana, pois ainda que cultive apenas a religião católica, ela atém-se ao espaço doméstico e na
companhia da mãe que lhe incute o respeito ao marido, valor da tradição que acaba por facilitar a
vida dupla de Filito.
Já Filito, sendo homem, tem uma vivência maior no espaço privado, o que lhe faculta a
experiência com a profissão, com colegas de profissão e, sobretudo, com os fatores externos
culturais já bem distanciados da tradição.
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Em síntese, Filito e Manana são angolanos aculturados, mas que, embora com concepções
distintas, vivenciam a experiência da tradição – nela com maior força e nele segundo a
conveniência. Desse modo, a identidade das personagens estaria pautada na convivência entre
tradição e modernidade. De acordo com Woodward (2011), citando Mercer, “a identidade só se
torna um problema quando está em crise, quando algo que se supõe fixo, coerente e estável é
deslocado pela experiência da dúvida e da incerteza.” (MERCER, 1990, p. 4).
Na obra, a crise identitária ocorre quando Manana precisa escolher entre o tratamento
médico, como solicita Filito, e o tratamento com as quimbandas, como exigem os familiares.
Manana opta pela continuidade do tratamento religioso, no entanto, morre. Com isso, Manana não
se torna abelha nem se torna Ana, ela não se transforma. A identidade que se supunha fixa,
construída pela interação entre tradição e modernidade, evidencia um sujeito ainda no entre lugar.
Por outro lado, Filito, ao saber da morte de Manana, sofre um desvario, o que revela também uma
crise identitária, haja vista ter se deixado abalar por preceitos nos quais ele não acreditava, e os quais
apenas fingia aceitar. Além do que, cai-lhe a máscara e o adultério é revelado a Bia.
Do ponto de vista moral da tradição, Filito sofre uma punição por ter mentido, ele não
honrou a palavra nem a Bia nem a Manana. Além disso, a mentira configura uma traição aos
Velhos, portanto, ao se pensar na narrativa como uma história contada por um griot – tal qual os
missossos – percebe-se o caráter educativo a evidenciar que os transgressores são sempre punidos.
Evidencia-se na trama narrativa a identidade dos jovens angolanos, formada pela interação
entre os sujeitos da tradição e os sujeitos da modernidade e tornada híbrida em seu desenvolvimento,
conforme as situações que os sujeitos iam vivenciando.
Considerações finais
Deve-se igualmente ressaltar o caráter histórico da obra, visto que, dado o período de
ambiência e escritura, esta se caracteriza pelo engajamento ao movimento de reconstrução da
identidade angolana. Sobre esse engajamento, Padilha afirma que
Ideologicamente os textos ficcionais procuram tecer a manha da libertação nacional
e, para tanto, vão pouco a pouco construindo um espaço imaginário onde Angola
emerge não como uma terra idílica à qual metaforicamente o sujeito poético deseja
retornar [...], mas como um espaço dilacerado, à espera de uma reconstrução. Para
que se viabilize tal processo reconstrutor, o primeiro passo é a revitalização de
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práticas culturais autóctones, sempre marginalizadas, quando não esmagadas, pelo
colonizador. (PADILHA, 2007, p. 169).
Dessa forma, o romance Manana, ao resgatar aspectos culturais da tradição angolana em
contraponto com os aspectos culturais da modernidade, propõe uma nova ordem na identidade
cultural angolana. Não expressa o aniquilamento da nova cultura, posto que isso não seria possível,
assim como não deseja fazer voltar o passado, já que isso também não seria possível. Antes, atenta
para o que os novos tempos pediam: revoluções e transformações políticas, sociais e culturais que
resultassem na autonomia do povo angolano.
Referências
ADOLFO, Sérgio Paulo. Nkissi Tata Dia Nguzu: estudo sobre o candomblé congo/angola. Londrina:
EDUEL, 2010.
BAKHTIN, Mkhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: HUCITEC, 1997.
_________. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. São Paulo: HUCITEC, 1993.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução Tomaz Tadeu da Silva e
Guacira Lopes Louro. 11. dd. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
MEMMI, Albert. Retrato do colonizado precedido de retrato do colonizador.Trad. de Marcelo
Jaques de Moraes. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2007.
MOURÃO, Fernando Augusto Albuquerque. A sociedade angolana através da literatura. São
Paulo: Ática, 1978.
PADILHA, Laura Cavalcante. Entre a voz e a letra: o lugar da ancestralidade na ficção angolana do
século XX. 2. ed. Niterói: EdUFF; Rio de Janeiro: Pallas Editora, 2007.
SILVA, Tomaz Tadeu da. Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais/ Tomaz Tadeu
da Silva (org.) Stuart Hall, Kathryn Woodward. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.
XITU, Uanhenga. Manana. Angola: Edições 70. s.d.
_____. “Mestre” Tamoda e outros contos. Angola. União dos escritores angolanos, 1985.
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