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A interação humano-animal e o uso de homeopatia no manejo sanitário de rebanhos leiteiros em pequenas propriedades no Sul do Brasil Human-animal interactions and the use of homeopathy in small dairy farms in southern Brazil HONORATO, Luciana Aparecida1; HÖTZEL, Maria José2 1 Pós-graduação em Agroecossistemas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis/SC - Brasil, [email protected]; 2 Pós-graduação em Agroecossistemas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis/SC - Brasil, [email protected] RESUMO: O comportamento de vacas leiteiras pode ser influenciado pela natureza do tratamento que recebem dos humanos. Neste trabalho foram comparados 20 estabelecimentos de agricultores familiares que usavam terapia convencional (n=11) ou homeopática (n=9) como principal terapêutica em rebanhos leiteiros. Foram feitas entrevistas com os agricultores, medidas de comportamento humano (como nomear e falar com os animais, contatos positivos ou negativos, condução para a sala de ordenha), e de comportamento animal. Foram encontrados escores de comportamento humano similares entre os dois grupos. A média de distância de fuga foi menor nos rebanhos sob uso de homeopatia do que no convencional (P=0,04). Nos 9 estabelecimentos homeopáticos o medicamento era colocado na ração, reduzindo a frequência de manejos aversivos, o que pode ter influenciado o comportamento dos animais. A semelhança entre os dois grupos sugere que há um padrão de rotina de manejo, onde predominam os comportamentos neutros e positivos dos manejadores, o que pode refletir em atitudes geralmente positivas em relação aos animais. As diferenças no comportamento dos animais observadas neste estudo podem, portanto, ser explicadas principalmente pela forma de administração dos medicamentos, que possivelmente reduzem de uma forma geral a ocorrência de interações negativas entre manejadores e animais. PALAVRAS-CHAVE: Atitudes. Comportamento. Vacas. Homeopatia. Agricultura familiar. ABSTRACT: The behaviour of dairy cows can be influenced by the nature of the treatment they receive from humans. Twenty small farms that produced milk on a pasture system in South Brazil, and used conventional (n=11) or homeopathic therapeutic methods (n=9) for 1 to 8 years, were compared. Interviews with the farmers, measures of human behaviour (like frequency of naming and speaking to the animals, positive and negative contacts, tying up animals for milking), and cow’s behaviour, were performed. Similar scores for negative and positive human behaviour were found in both groups. The mean flight distance of the cows was smaller in the farms that used homeopathic than conventional treatments (P=0,04). All 9 farms dispensed the homeopathic medicines in the animal’s feed, thus reducing the frequency of aversive handling. The behaviour of the animals and of the humans in both groups suggests that routine interactions were mostly positive or neutral. This may reflect the generally positive farmers’ attitudes regarding the animals and the dairy activity in both groups. The differences observed in this study may be explained mainly by the form of administration of medicaments, that possibly reduce the occurrence of negative interactions between animals and handlers. KEY WORDS: Attitudes. Behaviour. Cows. Homeopathy. Family farm. Revista Brasileira de Agroecologia Rev. Bras. de Agroecologia. 7(2): 77-86 (2012) ISSN: 1980-9735 Correspondências para: [email protected] Aceito para publicação em 03/04/2012

Manejo sanitário de rebanhos leiteiros

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A interação humano-animal e o uso de homeopatia no manejo sanitário derebanhos leiteiros em pequenas propriedades no Sul do Brasil

Human-animal interactions and the use of homeopathy in small dairy farms in southernBrazilHONORATO, Luciana Aparecida1; HÖTZEL, Maria José2

1 Pós-graduação em Agroecossistemas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis/SC - Brasil,[email protected]; 2 Pós-graduação em Agroecossistemas, Universidade Federal de Santa Catarina,Florianópolis/SC - Brasil, [email protected]

RESUMO: O comportamento de vacas leiteiras pode ser influenciado pela natureza do tratamento que recebem dos

humanos. Neste trabalho foram comparados 20 estabelecimentos de agricultores familiares que usavam terapia

convencional (n=11) ou homeopática (n=9) como principal terapêutica em rebanhos leiteiros. Foram feitas entrevistas

com os agricultores, medidas de comportamento humano (como nomear e falar com os animais, contatos positivos

ou negativos, condução para a sala de ordenha), e de comportamento animal. Foram encontrados escores de

comportamento humano similares entre os dois grupos. A média de distância de fuga foi menor nos rebanhos sob

uso de homeopatia do que no convencional (P=0,04). Nos 9 estabelecimentos homeopáticos o medicamento era

colocado na ração, reduzindo a frequência de manejos aversivos, o que pode ter influenciado o comportamento dos

animais. A semelhança entre os dois grupos sugere que há um padrão de rotina de manejo, onde predominam os

comportamentos neutros e positivos dos manejadores, o que pode refletir em atitudes geralmente positivas em

relação aos animais. As diferenças no comportamento dos animais observadas neste estudo podem, portanto, ser

explicadas principalmente pela forma de administração dos medicamentos, que possivelmente reduzem de uma

forma geral a ocorrência de interações negativas entre manejadores e animais.

PALAVRAS-CHAVE: Atitudes. Comportamento. Vacas. Homeopatia. Agricultura familiar.

ABSTRACT: The behaviour of dairy cows can be influenced by the nature of the treatment they receive from humans.

Twenty small farms that produced milk on a pasture system in South Brazil, and used conventional (n=11) or

homeopathic therapeutic methods (n=9) for 1 to 8 years, were compared. Interviews with the farmers, measures of

human behaviour (like frequency of naming and speaking to the animals, positive and negative contacts, tying up

animals for milking), and cow’s behaviour, were performed. Similar scores for negative and positive human behaviour

were found in both groups. The mean flight distance of the cows was smaller in the farms that used homeopathic than

conventional treatments (P=0,04). All 9 farms dispensed the homeopathic medicines in the animal’s feed, thus

reducing the frequency of aversive handling. The behaviour of the animals and of the humans in both groups suggests

that routine interactions were mostly positive or neutral. This may reflect the generally positive farmers’ attitudes

regarding the animals and the dairy activity in both groups. The differences observed in this study may be explained

mainly by the form of administration of medicaments, that possibly reduce the occurrence of negative interactions

between animals and handlers.

KEY WORDS: Attitudes. Behaviour. Cows. Homeopathy. Family farm.

Revista Brasileira de AgroecologiaRev. Bras. de Agroecologia. 7(2): 77-86 (2012)ISSN: 1980-9735

Correspondências para: [email protected] para publicação em 03/04/2012

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IntroduçãoA relação entre humanos e animais é

construída pelas interações entre os mesmos. Osefeitos dessas interações podem gerar reações demedo, estresse fisiológico e influenciar até mesmoa produtividade dos animais (HEMSWORTH &COLEMAN, 1998). O comportamento da pessoaque maneja os animais pode estar intimamenterelacionado com a atitude que ela tem em relaçãoaos mesmos (BREUER et al., 2000;HEMSWORTH et al., 2000). As atitudes sãofortemente influenciadas pelos conhecimentosacerca dos animais, pelas várias crenças eintenções a respeito e pela satisfação com aatividade (HEMSWORTH 2003; MALLER et al.,2005), o que reflete diretamente na produtividadeleiteira do rebanho (HANNA et al., 2009). SegundoAjzen & Fishbein (1980), há uma cadeia causalligando as crenças ao comportamento,intermediada pelas atitudes e por normassubjetivas, como a percepção quanto à aprovaçãoou reprovação social de um comportamento. Acrença de que acariciar é importante para osbezerros pode levar as pessoas a realizarem maisfreqüentemente esse comportamento (LENSINK etal., 2000), assim como, acreditar que vacas sãoanimais difíceis de serem conduzidos pode levar auma maior freqüência de comportamentosnegativos com esses animais (HEMSWORTH &COLEMAN, 1998), o que demonstra a ligaçãoentre atitudes e comportamentos.

O tamanho do rebanho e a intensidade e aqualidade dos contatos dos manejadores sãocorrelacionados (WAIBLINGER et al., 1999).Tratadores de fazendas leiteiras em sistematotalmente confinado usam menos contatospositivos e mais comportamentos negativos do quetratadores de fazendas com sistema deestabulação livre (RENNIE et al., 2003). Portanto,as condições de produção influenciam a rotina demanejo diário, o que pode afetar a percepção daspessoas que lidam com os animais e sua condutapara com os mesmos. É possível que a escolha

por diferentes opções terapêuticas para tratamentodos animais seja influenciada por tais disposições.Entre as opções terapêuticas, a homeopatia é umaalternativa aos medicamentos alopáticos e visamanter o equilíbrio do organismo, o que exige umolhar atento ao indivíduo e suas particularidades(KENT, 1995). A adoção da homeopatia podeestar associada a mudanças na percepção daspessoas em relação aos animais e nas suasatitudes em relação à própria atividade, resultandoem modificações que propiciem melhorias naqualidade do manejo recebido pelos animais.Além disso, uma vez que os medicamentoshomeopáticos podem ser fornecidos na água ouna ração, não há necessidade de contenção dosanimais, o que pode diminuir as interaçõesnegativas com os manejadores e o estresseresultante.

Este trabalho descreve e compara relações demanejadores para com os animais, considerandoaspectos comportamentais, conceituais eatitudinais dos manejadores e a respostacomportamental de vacas leiteiras criadas emestabelecimentos de agricultores familiares1 noSul do Brasil, usuárias de homeopatia ou alopatiacomo terapêutica veterinária.

Materiais e MétodosCaracterização dos municípios, propriedades e

famíliasO estudo foi realizado em 20 estabelecimentos

de agricultores familiares envolvidos na atividadeleiteira, nos municípios de Antônio Prado e Ipê, noRio Grande do Sul, Brasil. Nessa bacia leiteiragrande parte da produção está vinculada àCooperativa Pradense, com 389 produtoresassociados. Desse total, cerca de 50 produtoresusavam medicamentos homeopáticos em seurebanho. Foram selecionadas 11 propriedadesonde os tratamentos dos animais era convencional(NH) e 9 propriedades que usavam medicamentos

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homeopáticos (H) como terapêutica principal parao manejo sanitário dos animais. As propriedadesforam escolhidas levando em consideração afacilidade de acesso, e buscando-se a maiorsemelhança possível entre os dois grupos emaspectos como o tipo de alimentação, o manejo deordenha, o tamanho do rebanho, o número deanimais em lactação.

Em 18 dos 20 estabelecimentos pesquisados, aresponsabilidade pelo conjunto das atividadesprodutivas estava ao cargo de uma família. Emuma propriedade havia duas famílias noestabelecimento e em outra propriedade havia umempregado que auxiliava na ordenha. As famíliaspossuíam em média quatro pessoas, e geralmenteduas delas estavam envolvidas na atividade deordenha e manejo dos animais. A idade média dosentrevistados foi de 31 a 40 anos, variando entre18 e 70 anos; 63% tinham entre dois e cinco anosde escolaridade, 15% até 8 anos e 22% possuíamensino médio ou técnico. Todas essas pessoasnasceram no meio rural, sendo a bovinoculturauma atividade familiar ou conhecida.

O sistema de criação era similar em todas aspropriedades. Os animais eram mantidos empastagem e recebiam suplemento alimentar(silagem ou ração) no cocho durante ou após cadaordenha. Das 20 propriedades, 12 possuíamanimais somente da raça Holandês e oitopossuíam animais da raça Holandês, Jersey oucruzadas com animais de raças zebuínas. Quantoao sistema de ordenha, 19 eram mecanizadas euma fazia ordenha manual. O tamanho médio dosrebanhos era de 15 vacas em lactação (entre 6 e30) e as propriedades em média de 20 hectares(entre 3 e 84). A produção média de leite era de3.886 litros vaca/lactação (entre 1.234 e 8.158litros).

Entrevistas e observação do comportamentodos manejadores

Foram realizadas entrevistas semi-estruturadascom os manejadores dos animais. Foram

chamadas de manejadores as pessoas quetrabalhavam na condução dos animais, nofornecimento de ração e tratamentos dos mesmos,e os responsáveis pela ordenha propriamente dita.Foram entrevistados 27, dos 42 manejadores, queeram as pessoas que tinham contato maisfreqüente com os animais, sendo 11 manejadoresdas propriedades que usavam homeopatia e 16das que não usavam. O roteiro das entrevistas(Figura 1) compreendeu quatro temas: i)motivações para o uso de homeopatia, ii)satisfação com a atividade leiteira, iii)conhecimentos e iv) declarações/crenças emrelação aos animais.

Foram considerados satisfeitos com a atividadeagricultores que fizeram afirmações como“pretendo continuar”, “pretendo aumentar aprodução”, “não trocaria por outra”, “gosto muito”,“o leite é o melhor serviço”. Foram consideradoscomo menos satisfeitos aqueles manejadores quefizeram afirmações positivas, mas tambémalgumas negativas ou indefinidas, como “mudarem quê?”, “fazer o quê, tem que continuar...”,“talvez mudaria”, “gosto, apesar de...”, “não temoutra opção...”. Respostas como: “gostaria demudar de atividade”, “estou cansado”, “estouestressado”, “essa é a atividade mais penosa”,foram consideradas como o nível mínimo desatisfação.

Além das questões objetivas sobrecaracterísticas das vacas, foram anotadas asdeclarações espontâneas que os manejadoresfizeram sobre os animais e sobre seus próprioscomportamentos. Declarações a respeito dasvacas como “são fáceis de conduzir”, “sãointeligentes”, “não são teimosas”, foramclassificadas como positivas. Afirmaçõescontrárias, como “se assustam facilmente”, “sãogulosas”, “briguentas”, “preguiçosas”, foramconsideradas negativas.

Também foi feita a observação direta docomportamento dos manejadores durante a

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condução dos animais até a sala de ordenha epara o campo, e durante a ordenha. Oscomportamentos positivos registrados foram: a)contato físico positivo: palmadinhas, coçadinhascom a mão ou mantendo a mão em descanso nagarupa, pernas ou flancos e alisar o pêlo; b) darnome as vacas c) falar ou não com as vacas. Oscomportamentos negativos registrados foram, a)contato físico negativo, incluindo tapas, empurrões,batidas com a mão ou objetos e dobrar a cauda; b)uso de amarras durante a ordenha, nas pernas, nacauda e na cabeça ou pescoço das vacas; c) usode cães para conduzir as vacas; d) uso de objetos

como bastão, chicote ou qualquer objeto paraauxiliar na condução dos animais. O registrodesses comportamentos foi feito em uma planilhacom as opções “ocorreu” ou “não ocorreu”.

Comportamento animalA partir da observação do comportamento dos

animais durante a ordenha, foi outorgado umescore de reatividade para cada animal (Tabela 1),adaptado de Das & Das (2004).

Um teste de distância de fuga, consideradocomo a menor distância que o animal permite queuma pessoa se aproxime sem reagir a esta

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Figura 1: Temas das entrevistas com os manejadores.

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aproximação, foi feito no campo onde seencontravam os animais, sempre pela mesmapessoa, conforme descrito em Hötzel et al. (2005).Em duas propriedades (uma de cada tratamento)não foi possível realizar o teste de distância defuga dos animais porque estes permaneciam emum estábulo para alimentação após a ordenha.

O estudo foi aprovado pela Comissão de Éticano Uso de Animais da UFSC, sob o protocolo nº355/CEUA.

Análise dos resultadosPara testar se houve efeito do tratamento na

distância de fuga e reatividade das vacas, osdados foram submetidos a uma análise devariância simples, onde cada propriedade foiconsiderada uma repetição. Para essa análiseutilizou-se o programa estatístico SAS (SAS, 1993).

As entrevistas foram submetidas a uma análise

de conteúdo temático baseado na metodologiadesenvolvida por Strauss & Corbin (1998). Comoneste trabalho os temas já estavampreestabelecidos (i. motivações para o uso dehomeopatia, ii. a satisfação com a atividadeleiteira, iii. conhecimentos e iv.declarações/crenças em relação aos animais,), fez-se, inicialmente, o processo de agrupamento derespostas dentro dos temas. Após esta primeiracodificação, foi feita a codificação axial onde seprocurou investigar e estabelecer relações entre osdiferentes temas. Por fim, foi feita a codificaçãoseletiva, onde se procurou estabelecerconvergências e divergências entre agricultoresusuários ou não de homeopatia, entre os temas eos comportamentos, observados diretamente acampo.

Dados referentes ao efeito dos tratamentos namanutenção da saúde dos rebanhos foramapresentados em Honorato et al. (2007).

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Tabela 1: Definição dos comportamentos correspondentes a cada escore.

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ResultadosAtitudes, conhecimentos e comportamentos dos

manejadoresDe forma geral, não foi encontrada divergência

entre os tratamentos nos temas satisfação com aatividade leiteira, conhecimentos edeclarações/crenças em relação aos animais.Todos os entrevistados demonstraram facilidadeem reconhecer sintomas iniciais de adoecimentonos animais e não houve diferença nessesconhecimentos entre os tratamentos. A maioria dosmanejadores identificava os animais doentes pelosseguintes comportamentos: o animal não come, seafasta dos outros, não quer entrar na sala deordenha e fica de cabeça baixa. Outras formas deidentificar foram relatadas como: “corta (diminui) oleite”, “ficam aborrecidos”. Alguns mostraramfacilidade em observar as mudanças decomportamento dos animais: “pelos olhos delas eujá sei” (4H), “se vê logo, desde que entra nogalpão, com uma olhada já se vê se está comfebre!” (3H).

Os agricultores demonstraram conhecimentosobre comportamento animal e consideravam esteum importante fator ao escolher os animais paracompor o rebanho. Demonstravam conhecer ocomportamento individual dos animais, através dedeclarações como “A Comprida é mais metida abater nas outras... a Estrupício é a que apanha dasoutras” (14NH); “Tem as mandonas, queguampeiam as outras, mas elas geralmente sãotranquilas” (9H). Agricultores dos dois gruposfizeram declarações a respeito dos seus próprioscomportamentos para com os animais, como: “Eufalo com elas, acaricio...” (14NH); “Gosto deacariciar as vacas antes do parto e perceber obezerro na barriga delas!” (9H); “Gosto de darcomida para os bezerros!” (6H); “Eu chego emcasa e chamo pelo nome, ela muge de volta!”(16NH).

A maioria dos agricultores demonstrou atitudespositivas em relação aos animais do seu rebanho,

por exemplo, considerando-os fáceis de manejar,pacíficos, confiantes e tranqüilos. Em declaraçõesespontâneas, se referiam a indivíduos do rebanhoque se destacavam positiva ou negativamente emrelação aos demais. Também tinham atitudespositivas quanto à capacidade cognitiva dosanimais. Algumas declarações espontâneasservem de exemplo: “...é só ensinar... "(3H); “àsvezes chama pelo nome, elas já entendem” (11H);“elas são espertas, elas me respondem, eu chamopelo nome e elas mugem de volta (14NH)”, e “...euchamo pelo nome... porque elas vão acostumandoe entendem que não precisa ter medo.” (16NH).Essas atitudes positivas tiveram correspondênciacom comportamentos positivos, como falar eacariciar as vacas durante a condução dasmesmas.

Verificou-se um padrão de conduta semelhanteentre as propriedades, independentemente dostratamentos. Os manejadores geralmenteconduziam os animais com certo distanciamento,tendo poucos momentos de contato com osmesmos. Em 52% dos manejadores (7 H e 7 NH)observou-se comportamentos positivos como darpalmadinhas e/ou alisar o pêlo. A maioria dosmanejadores (63%; 7 H e 10 NH) dava nomes asvacas. Dos 27 manejadores, apenas 6 (3 H e 3NH) deles falaram com os animais durante aordenha ou conduzindo-os. Verificou-se umaconvergência entre as atitudes e oscomportamentos desses manejadores. Todos osque falavam com as vacas demonstraram tambémcontatos positivos com as mesmas (alisando opêlo) e mostraram atitudes positivas sobre aquestão “inteligência das vacas”.

Amarrar as pernas, prender o pescoço comuma corda ou corrente e amarrar a cauda foi umcomportamento observado em 18 das 20propriedades (8 H e 10 NH). Observou-se o uso deum cão para recolher as vacas na hora da ordenhae conduzi-las novamente ao pasto somente em

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duas propriedades convencionais. Contatosnegativos foram raros, sendo observado que trêsmanejadores (2 NH e 1 H) deram tapas e ummanejador NH usou uma corda para bater nosanimais durante a condução dos mesmos.

Do total, 41% dos entrevistados mostraram omaior nível de satisfação com a atividade (6 H e5NH) e 11% os mais baixos (1H e 2NH), ficando48% em níveis médios (4H e 9NH). Não houve,portanto, relação deste tema com o tratamento.Nos dois tratamentos pode-se perceber umaconvergência entre a expressão de satisfação coma atividade e a frequência de declarações positivassobre os animais.

Todos os usuários de homeopatiaadministravam os medicamentos na ração dasvacas. A análise das questões sobre o que levouos agricultores a usarem a homeopatia napropriedade resultou em um agrupamento dequatro motivações diferentes: um começou a usarnos animais por experiência na saúde da família;outro porque a propriedade produzia hortaliçasorgânicas; dois porque sentiram necessidade oudesejo de deixar de usar venenos; e cinco

alegaram influência de outros produtores que jáusavam.

Mais detalhes dos resultados das entrevistas,com declarações dos entrevistados, encontram-seem HONORATO (2006).

Comportamento animalA distância de fuga foi maior nos rebanhos

convencionais do que nos homeopáticos (P=0,04;Figura 2). Nos animais dos rebanhos H 39%permitiram ser tocados ou que o observadorchegasse a menos de 1 metro de distância, contra22% dos animais dos rebanhos NH. Não houvediferença significativa entre os dois grupos quantoa reatividade dos animais.

DiscussãoA menor distância de fuga dos animais sugere

uma melhor qualidade das interações entrehumanos e animais nos rebanhos tratados comhomeopatia, em comparação com os rebanhostratados convencionalmente. Hemsworth &Coleman (1998) propuseram um modelo paraexplicar a influência da interação humano-animal

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Figura 2: Média de reatividade e distância de fuga dos animais, nas propriedades que usavam ou nãohomeopatia.

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no comportamento dos animais, onde as atitudesdeterminam os comportamentos humanos, que sãoreforçadas pelos comportamentos dos animais,num processo de retroalimentação. A satisfaçãocom o trabalho e opiniões sobre condições detrabalho estão relacionados com a formação deatitudes dos manejadores (HEMSWORTH, 2003).Entretanto, diferenças entre os dois grupos deagricultores na satisfação com a atividade, nasatitudes e conhecimentos em relação aos seusanimais, assim como nos comportamentosdirigidos aos mesmos, não foram encontradas.

Esperavamos identificar motivações de fundofilosófico associadas à adoção da homeopatia, quepoderiam levar esses produtores a terem um olharmais individualizado dos seus animais e, assim,melhorar a relação com os mesmos. No entanto, amotivação por parte dos agricultores pelo uso dehomeopatia esteve mais associada a questões nãorelacionadas às atitudes em relação aos animais,como influência de vizinhos, preocupações com asaúde da família e intenção de diminuir o contatocom produtos químicos, ou a necessidade deproduzir dejetos sem resíduos para a produção devegetais orgânicos.

Por outro lado, as diferenças no comportamentodos animais entre os tratamentos podem seratribuídas a fatores intrínsecos ao tratamento. Umexemplo seria um efeito dos medicamentoshomeopáticos sobre o comportamento dosanimais. Reis et al. (2006) encontraram umaredução dos níveis de cortisol sérico em bezerrostratados com medicamentos homeopáticos, emcomparação com bezerros não tratados. Noentanto, como neste estudo não houve controle dafrequência de uso, do tipo de medicamentosutilizados, período de utilização e outros fatoresnão controlados não é possível discorrer sobreessa hipótese. Mais provavelmente, ocomportamento dos animais pode ter sido afetadopela forma de administração dos medicamentos.Como sugere Hemsworth (2003), a associação de

medo e dor nos procedimentos aversivos podeaumentar o medo de humanos, que o animalexibirá em outras situações. Em comparação coma administração de drogas alopáticas, ofornecimento de medicamentos homeopáticos naração reduz a frequência de interações negativasentre os tratadores e os animais, evitaprocedimentos dolorosos ou desconfortáveis comoinjeções e a contenção dos animais, e requer umamenor movimentação para fins de tratamentosveterinários, evitando o estresse dos animaisfrequentemente associado a alguns tratamentosconvencionais. É possível que as interaçõesnegativas tenham sido menos frequentes nosrebanhos tratados com medicamentos na ração e,consequentemente, os animais tenham tido menosaversão aos tratadores. Se os animais se tornarammais dóceis devido à forma de administração dosmedicamentos, isso pode ter diminuído anecessidade de interações negativas durante acondução ou ordenha propiciando o ambiente deretroalimentação positivo proposto por(HEMSWORTH & COLEMAN, 1998). Portanto,não podemos descartar que algumas diferençassutis no comportamento dos manejadores,dificilmente detectáveis numa única visita àpropriedade, como a intensidade e frequência douso de força ou da voz no manejo, possam tercontribuído para o comportamento dos animais.

Um conhecimento individualizado dos animaisfoi observado na maioria dos manejadores nosdois tratamentos. Exemplos disso são o uso da vozpara acalmar os animais, e o fato de somentealguns dos animais na mesma propriedadereceberem nome (por exemplo, o agricultor 6NHdeclarou que as vacas que tinham nome eram assuas prediletas. Bertenshaw & Rowlinson (2009)ressaltam a importância do tratamentoindividualizado, como dar nomes as vacas, nobem-estar psicológico desses animais. A relaçãoencontrada entre algumas crenças, por exemplo, arespeito da capacidade cognitiva das vacas, e os

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comportamentos de falar com elas e ter contatospositivos, é consistente com a teoria da açãoracional, segundo a qual os comportamentos sãofortemente influenciados pelas atitudes (AJZEN &FISHBEIN, 1980). Alguns agricultores declararamque falavam com os animais por acreditar que issoreduzia o medo nesses.

Porém, em contraste com outros relatos daliteratura (HEMSWORTH, 2003), a consistênciaentre as atitudes e os comportamentos humanosneste estudo foi fraca. Isso pode ser explicadotalvez por algumas características associadas como nível de produção e intensificação dos sistemascriatórios. Nos sistemas de produção onde oscontatos entre humanos e animais são maisintensos encontra-se uma relação positiva entreatitudes e comportamentos de manejadores(COLEMAN et al., 1998). Já em sistemas onde oscontatos são menos intensos, como este caso,essas relações não são facilmente encontradas(BREUER et al., 2000).

É possível que, na agricultura familiar, o modode tratar os animais seja definido mais fortementepor questões culturais do que por característicasde satisfação pessoal com a atividade ou atitudespessoais em relação aos animais. Isso podeexplicar por que houve uma relação entre asatisfação com a atividade e as atitudes emrelação aos animais, mas ambas apresentarampouca convergência com os comportamentos dosmanejadores para com os seus animais. Ou seja,as opiniões manifestadas pelos manejadores arespeito dos animais podem ser extensões de seussentimentos em relação ao trabalho, enquanto omanejo dos animais pode ser um hábitoestabelecido, aprendido e transmitido dentro dogrupo familiar. Nesse contexto, o padrão decomportamento encontrado nas propriedadesestudadas pode ser justificado pela existência deum modelo comportamental estabelecido dentro dogrupo social. ANTHONY (2003) sugere que a“ética do cuidado” promove nos agricultores a

construção de uma relação de responsabilidadecom os seus animais, aos quais consideram seresque despertam um cuidado e uma preocupaçãoquase maternal, ao invés de um negócio, umafonte de renda ou “máquinas de produzir leite”. Defato, neste estudo pôde-se perceber nasdeclarações, na forma como os manejadores sereferiam aos animais e durante o trabalho comeles, que a agricultura familiar parece manter nosagricultores esse compromisso implícito decuidado com seus animais.

ConclusõesA semelhança de conduta nos dois grupos

sugere que na agricultura familiar há um padrãode rotina no manejo dos animais, ondepredominam os comportamentos neutros epositivos dos manejadores, o que pode ter serefletido em atitudes geralmente positivas emrelação aos animais. As diferenças nocomportamento dos animais observadas nesteestudo podem ser explicadas principalmente pelaforma de administração dos medicamentos, quepossivelmente reduzem a ocorrência de interaçõesnegativas entre manejadores e animais.

AgradecimentosAgradecemos aos agricultores que nos deram

acesso a seus animais e dispensaram seu tempoe conhecimento. Aos professores Dr. Luiz CarlosPinheiro Machado Filho e Antônio Carlos Machadoda Rosa por seus comentários. Esse estudo teve oapoio da CAPES (Coordenação deAperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior).

Notas1 INCRA/FAO (1996) definiram agricultura

familiar a partir de três características centrais: a) agestão da unidade produtiva e os investimentosnela realizados são feitos por indivíduos quemantém entre si laços de sangue ou casamento;b) a maior parte do trabalho é fornecida pelos

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membros da família; c) a propriedade dos meios deprodução (embora nem sempre da terra) pertenceà família e é em seu interior que se realiza suatransmissão em caso de falecimento ouaposentadoria dos responsáveis pela unidadeprodutiva.

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Honorato & Hötzel

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