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Manifestações Culturais em Diadema Maurício Cardoso Introdução A produção cultural em Diadema tem vivido os dilemas de uma cidade periférica, procurando se estabelecer em meio a precariedade e a falta de recursos, de espaços de apresentação e de público. São manifestaçõesartísti- cas que se reconhecem no desafio de conduzir o subúrbio para a realizaçãoda cidadania, em sentido amplo. Em outros termos, as experiências em curso, esparsas, fragmentadas, resultando de açõesora isoladas, ora de pouco fôlego, projetam-se no "direito à cidade", incorporando, nas práticas e representações, a plenitUde da vida urbana. Deste modo, a formação e o funcionamento de alguns grupos e manifestações culturais podem indicar aspectos importantes da história de Diadema. Nas décadas de 50 e 60, desde a emancipação do município, em 1958, a condição de área rural da maior parte de Diadema propiciou o surgimento de manifestações religiosas - as festas de padroeiros, a folia de reis, as quer- messes - e cívicas, particularmente ligadas a necessidade de constituir a pró- pria municipalidade, através da Lira Musical e dos eventos comemorativos. De outro lado, esta condição dificultou o surgimento de prá- ticas culturais eminentemente urbanas, como grupos de teatro e dança, escolas de samba, conjuntos musicais e grupos de coral. Os trans- portes precários - poucas linhas de ônibus e ruas sem pavimentação -, a distância entre as habitações, a ausência de iluminação elétrica e de espaços públicos ou comunitários, bem como o difícil deslocamento para os locais de trabalho ou os esforços para sobreviver do

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Manifestações Culturais em Diadema

Maurício Cardoso

Introdução

A produção cultural em Diadema tem vivido os dilemas de uma cidade

periférica, procurando se estabelecer em meio a precariedade e a falta de

recursos, de espaços de apresentação e de público. São manifestações artísti-

cas que se reconhecem no desafio de conduzir o subúrbio para a realização da

cidadania, em sentido amplo. Em outros termos, as experiências em curso,

esparsas, fragmentadas, resultando de ações ora isoladas, ora de pouco fôlego,

projetam-se no "direito à cidade", incorporando, nas práticas e representações,

a plenitUde da vida urbana. Deste modo, a formação e o funcionamento de

alguns grupos e manifestações culturais podem indicar aspectos importantes da

história de Diadema.

Nas décadas de 50 e 60, desde a emancipação do município, em 1958, a

condição de área rural da maior parte de Diadema propiciou o surgimentode manifestações religiosas - as festas de padroeiros, a folia de reis, as quer-

messes - e cívicas, particularmente ligadas a necessidade de constituir a pró-

pria municipalidade, através da Lira Musical

e dos eventos comemorativos. De outro lado,

esta condição dificultou o surgimento de prá-

ticas culturais eminentemente urbanas, como

grupos de teatro e dança, escolas de samba,

conjuntos musicais e grupos de coral. Os trans-portes precários - poucas linhas de ônibus e

ruas sem pavimentação -, a distância entre ashabitações, a ausência de iluminação elétrica

e de espaços públicos ou comunitários, bem

como o difícil deslocamento para os locais de

trabalho ou os esforços para sobreviver do

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cultivo da terra - seja a exploração da madeira ou a agricultura -, informam

a condição de vida de grande parte dos diademenses.De modo que, naquelas décadas, as atividades religiosas, como a Festa de

Piraporinha, a Festa de Nossa Senhora dos Navegantes, a procissão de N. S..da Conceição, as Folias de Reis e as Quermesses constituíram o espaçofundamental de manifestações culturais significativas. No final da décadade 60, surge a Lira e, acompanhando um calendário nacional ou local, asFestas Cívicas indicam as primeiras experiências de práticas urbanas, aindaque ligadas diretamente ao poder e suas formas de legitimação.

Apenas na década de 70, o Teatro-Escola, iniciativa do governo munici-pal, trouxe algumas conexões entre a cidade e a capital, ao mesmo tempoque procurou apresentar um repertório de peças consagradas nacional einternacionalmente. O Teatro-Escola constitui-se num dos momentos mais

significativos de ação cultural, atingindo certa repercussão; organizava-se,naquele momento, uma experiência que se pretendia capaz de projetar a

cidade no cenário da produção artística da metrópole paulistana.A procissão de Nossa Senhora dos Navegantes, no bairro do Eldorado,

manifestava crenças religiosas e, ao mesmo tempo, constituía-se em opor-tunidade de reavivar laços de solidariedade entre os moradores da região.Surgiu nos anos 50 e prolongou-se até a década de 70, quando a poluiçãoda Represa Billings e a atuação dos ecologistas impediu a continuidade doevento. A partir de meados dos anos 90, paradoxalmente, a articulaçãoentre os grupos ambientalistas e a Igreja reiniciou a festa; numa combina-ção de aspectos ecológicos e religiosos que se fundiam em torno da

revitalização do bairro e da represa.As experiências atuais, originaram-se da política cultural empreendida

na cidade a partir do final dos anos 80 e, especialmente, durante a gestão de1993/96, quando se priorizou as áreas de Educação, Cultura, Lazer e Es-porte. A Cia. de Danças, os Festivais de Rock, o grupo de danças Mulheresde Eldorado e o Movimento Hip Hop surgiram ou cresceram em virtudedos espaços conquistados e da infra-estrutura constituída pelas administra-ções municipais. Neste sentido, uma análise da política cultural da gestãodo Prefeito Fillipi Jr. nos permite compreender os desafios que se estabele-cem para a maioria dos grupos que, lançados por decreto, passariam à con-quista de autonomia frente às políticas municipais. Tanto as entrevistas,

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quanto os materiais de imprensa revelaram,

nas intenções dos artistas e produtores, o an-

seio de "longa vidà' para as ações ainda re-

centes e, por vezes, imaturas. Indicaram tam-

bém os limites da interface com a política e

os interesses de Estado.

O relato das experiências de ação cultural

definem suas origens em datas demasiado

recentes ou descrevem práticas fragmentadas,

à deriva da política municipal. No entanto, é possível identificar alguns

momentos e expressões dos diversos grupos étnicos, das diversas origens e

setores das classes sociais da população de Diadema, em busca de constituir

novos espaços e práticas que refazem vínculos de sociabilidade e reincorporam

a cidade na experiência cotidiana.

A existência de práticas culturais diversificadas, das festas religiosas às

manifestações do Hip Hop, revela articulações entre o local e nacional,

entre o urbano e o rural, entre diferentes classes sociais e setores de classe. A

ação cultural traz valores, práticas e idéias produzidas socialmente, resulta-

do de demandas políticas ou estéticas; alimenta-se de procedências diver-

sas, fruto da vivência e da reflexão artísticas, combinando-se de maneira

diferenciada, por vezes, inusitada. Na cidade de Diadema, esta diversidade

projeta-se em tensas polaridades: autonomia e controle do poder público,

expressões regionais e cosmopolitas, rural e urbano, expressões de classe e

supra-classistas, manutenção do tradicional e anseio de vanguarda, incor-

poração e reprodução de modelos.

A cultura, como expressão de um sistema de significados e formas sim-

bólicas partilhados por um ou mais setores de uma sociedade, envolve a

quase totalidade da experiência coletiva capaz de imprimir significados aos

objetos, desde as modalidades de consumo à apresentação de uma peça de

teatro. No entanto, neste artigo, interessa-nos apenas algumas "expressões

artísticas" dentre as infindáveis manifestações culturais, através das quais

seja possível compreender alguns dilemas entre o cotidiano e a prática cria-

dora dos moradores.

Assim, procurou-se analisar a trajetória de algumas manifestações mais

significativas da cidade: o Movimento Hip Hop, a Companhia de Danças

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de Oiadema, o grupo Mulheres de Eldorado, o Teatro-Escola e a Festa deNossa Senhora dos Navegantes. Essas manifestações revelaram amultiplicidade de interesses sociais, as diferentes políticas culturais no mu-nicípio e a complexa urbanização de Oiadema - entre os resíduos do mun-

do rural e as marcas do subúrbio industrial.

Políticas culturais

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A história recente da cidade parece se confundir com as rupturasprovocadas pela administração do Partido dos Trabalhadores, tornando-seimpossível compreender as transformações urbanas sem a interferência di-reta ou indireta do poder público municipal, neste período.

A terceira gestão petista (1993-96), do prefeito José de Filippi Júnior,propôs a ampliação do conceito de cidadania em direção à educação, àcultura, aos esportes e ao lazer, tendo em vista que, no entendimento dosgestores, os problemas sociais básicos estavam sendo equacionados desde as

administrações anteriores.As prioridades em torno de uma Cidadania Cultural resultaram, de um

lado, no aumento do quadro institucional referente a produção artística ecultural do município e, de outro, na tentativa de constituir uma novaimagem, uma nova identidade para a cidade: "Criou-se na cidade uma iden-tidade cultural, com a apropriação dos espaços pela comunidade. Hoje,cultura é artigo de primeira necessidade em Diademà", afirmava uma pu-

blicação da Prefeitura.O diagnóstico realizado em 1993, sobre os "equipamentos públicos" na

área de cultura orientou a gestão a formular uma política baseada em doiseixos, a difusão e a formação cultural, tendo em vista ampliar os direitos docidadão. A atuação da Prefeitura fundamentou-se também em diversos cam-pos, pretendendo implantar uma programação diversificada e de qualidadeno Centro Cultural Diadema (localizado na região central) e nos diversosCentros Culturais dos bairros da cidade; iniciar parcerias com as "identida-des coletivas da sociedade civil"; organizar o Serviço de Memória e Patri-mônio Histórico; valorizar e enriquecer as bibliotecas públicas e reformulara Lira Musical de Diadema. Pretendiam ainda realizar ações mais sistemáti-r,oc nn nhcprv,orl-r;n AcrrnnAmirn ~p ni,o~pm,o pm rnni"nrn rnm " I\nrip-

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dade de Astronomia e Astrofísica de Diademaj e, finalmente, a organizar os

festejos carnavalescos2.No início da gestão, havia no município sete Centros Culturais, inaugu-

rados ao longo de 1992 e denominados Centros Juvenis de Cultura, osCJC's, atendendo exclusivamente aos setores juvenis da cidade. Cada umdesses "equipamentos" contava com um funcionário e uma programaçãocultural ainda a ser implementada. A formulação desses CJC's se funda-mentavam na constituição das "Casas de Culturà', pensadas a partir deuma experiência piloto, iniciada em 1989 no bairro do Campanário.

Segundo o documento "Plano de Ação para a Divisão de Cultura", de1990, a situação dos jovens diademenses era dramática e exigia atençãoespecial da Prefeirura, pois, a juventude se defrontava diretamente com aviolência social crescente e a desintegração familiar, sem ter acesso as ativi-dades culturais - restritas às classes mais abastadas.

Reorientou-se, no entanto, o uso dos CJC's que passaram a servir de"locais do encontro e da convivência de várias idades, de múltiplos interes-ses, de diferentes necessidades"3. Em 1994, o Departamento de Culturaimplantou as oficinas de arte, através da contratação de assessorias nas dife-rentes linguagens - música, teatro, dança e artes plásticas - e de agentes

culturais ligados a cada um dos Centros. Os assessores selecionaram "pro-fessores-oficineiros" e, em conjunto com os demais funcionários envolvi-dos, planejaram as agendas dos Centros Culturais. Segundo o Departa-mento de Cultura, "ao optarmos pela 'alfabetização' nas diferentes lingua-gens artísticas, definimos uma linha de ação cultural que ampliava as possi-bilidades de fala de seus habitantes"4. Ao mesmo tempo, ao privilegiar osCentros Culturais como espaços destinados à ação, deslocavam-se os interes-ses pela ocupação da rua e dos espaços abertos (praças, jardins, parques, etc.)

Além de remodelar os usos dos sete Centros Culturais, a administraçãoinaugurou mais três Centros, nos bairros Ruyce, Serraria e Canhema. Ape-sar da estrutura ainda reduzida, os Centros passaram a ter um Coordena-dor, dois agentes, serventes e vigias. Até o final da gestão, em 1996, cadaCentro funcionava com uma programação mensal que se baseava na for-mação cultural, através das oficinas artísticas - canto coral, teatro, artes

plásticas, dança, cerâmica, educação musical, capoeira, poesia lírica, entreoutros - e na difusão. através de shows. mostras de vídeo. danca. pecas de

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teatro. Outras atividades completa..vam a programação: eventuaisworkshops foram realizados por ar-tistas da cidade que expunham osseus trabalhos; passeios monitoradospelos pesquisadores do Centro deMem6ria, encontros de TerceiraIdade, debates sobre temas deinteresse geral (sexualidade,memória, folclore, etc.). Asoficinas oferecidas, surgi-ram de um duplo mo-vimento: a demandada população e as di- \" '---"-""""

retrizes do Departamento de Cultura.Segundo os dados do departamento de Cultura, em 1996, cerca de 2.000

pessoas freqüentaram as oficinas e cursos oferecidos e aproximadamente13.000 espectadores estiveram presentes as atividades de difusão progra-madas nos 10 Centros Culturais.

O Centro Cultural de Diadema, na região central, coordenou as açõesde difusão cultural de maior amplitude, das quais, destacaram-se: o "ViaMovimento" que ofereceu ao público diademense diferentes Companhiasde Dança do país; o "Entre Tons" que levou para Diadema artistas consa-grados de diferentes estilos musicais; as Mostras de Música Africana e Afro-Americana, "ANOKIE", como parte das comemorações do Dia da Consci-ência Negra; o projeto "Erudito em Concerto" que através de várias apre-sentações compôs um painel histórico da música erudita ocidental; o "Cir-cuito de Teatro" que procurou incorporar o Teatro Clara Nunes ao circuitode apresentações cênicas da capital, tanto com peças infanto-juvenis, comopara o público adulto. Foi inaugurado, em meados de 1995, o espaço "Cân-dido Portinari" eaGaleriadeArtes, no saguão do Centro Cultural Diadema,para realização de exposições fotográficas e de artes plásticas.

Duas experiências institucionais no campo da música e da dança se for-taleceram na cidade, durante a gestão de Filippi Jr. A Lira Musical deDiadema, criada em 1968 como banda musical. de oerfil marcial. comoos-

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ta de 34 músicos um maestro e um contra-mestre, recrutados, em geral, dos

quadros da administração pública passou por um processo de valorização.

A Lira já interpretou, desde sua fundação, mais de 600 composições, co-

brindo um repertório que varia do erudito ao popular. O investimento na

Lira Musical incluiu a compra de novos instrumentos e uniformes, a sele-

ção pública de novos componentes, elaboração de um regimento, aquisição

de um novo local para servir de espaço de ensaios e aulas. Além disso, foi

contratada uma assessoria especializada na área de composição e arranjo

musical e realizou-se um processo de formação e aperfeiçoamento para dez

músicos da Lira.

A outra experiência, criada recentemente, foi a Companhia de Danças de

Diadema, coordenada pela coreógrafa Ivonice Satie e composta por 15 bailari-

nos. A Companhia se baseia num coletivo de profissionais que exercem as di-

versas atividades da etapa de criação e produção das coreografias: performances,

formulação e construção de cenários, figurinos, iluminação e maquiagem.

A política cultural da gestão do município avaliava como um dos seus

principais desafios o envolvimento do Departamento de Cultura e seus

equipamentos com os movimentos culturais organizados existentes ou emer-gentes na cidade - denominados pela proposta da Prefeitura, "sujeitos cole-

tivos" -, pois, tal perspectiva de ação pressupunha inverter a matriz convenci-

onal dos órgãos públicos que planejam e executam a ação cultural. "O desafio

consistia no fato de que o Departamento de Cultura se propunha a combinar

os ritmos e os tempos do aparelho do estado e os dos sujeitos coletivos orga-

nizados na Cidade, para conjuntamente realizarem práticas culturais não de-

finidas a priori pelo Departamento, mas pelos próprios coletivos"5.

Neste sentido, algumas práticas envolvendo a administração e os setores

organizados se concretizaram. A parceria com a Sociedade de Astronomia e

Astrofísica de Diadema (SAAD) resultou na construção do Observatório

Astronômico da cidade. Os centros culturais do Inamar e do Campanário

cederam seus espaços para jovens do movimento Hip Hop, dando origem a

Oficinas de Hip Hop e a ação cultural de dois pesquisadores contratados

pela prefeitura para assessorar os grupos de RAP, break e os grafiteiros. De

modo semelhante, algumas bandas de rock procuraram o Departamento

de Cultura e conjuntamente organizaram dois Encontros das Bandas deRock de Diadema e diversas oficinas e workshoDs - um dos resultados oráti-

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cos foi o registro dos trabalhos das bandas envolvidas em gravações DAT

(Digital Audio Tape), com qualidade superior às gravações de garagem.A articulação entre o Departamento e diversas entidades do movimento

negr06 resultou no Seminário "Negro Consciência e Cidadanià', nas edi-ções anuais do ANOKIE - Mostra de Música Negra -, e na realizam de doiscursos, em 1995, o de "Arte, Educação e Cultura Negra no Brasil", coorde-nado pela Profa. Regina Maria Funari (MAC-USP) e o de "Língua e Cultu-ra Yorubá", ministrado pelo Prof. reter Olusiyi Adewole e membros doMovimento Negro Unificado de São Bernardo do Campo. Esta parceriadeu origem ainda a organização de acervo especial sobre cultura africana,afro-brasileira e afro-americana na Biblioteca do bairro Paineiras, na região

norte de Diadema.Os movimentos ambientalistas da região? e vários departamentos da ad-

ministração municipal realizaram anualmente, desde 1994, o Encontro de

Ecologia Urbana e Cidadania que colocou em pauta as principais questõesrelacionadas a qualidade de vida e as demandas sócio-ambientais da região.

A Secretaria de Educação (SECEL) e as Agremiações Carnavalescas deDiadema assumiram o desafio de "romper com os sentidos e valores tradi-cionalmente aplicados ao 'Carnaval", de que ele condensa um tempo e rit-mos de desocupados, vadios, malandros e assemelhados"8. Ao longo dosquatro anos as festas do Carnaval estiveram acompanhadas por atividadespreparativas na Praça da Moça, região central da cidade, por programas derádio sobre samba, contando com a participação de membros das escolas eblocos e por ações de recuperação da "Festa de Escolha da Corte Carnava-

lescà' da cidade.A gestão 93/96, portanto, definiu como prioridades a educação, a cultu-

ra e os esportes, tendo em vista as transformações da cidade promovidaspelas gestões anteriores que investiram na infra-estrutura e nos serviços ur-banos. No entendimento desta gestão era preciso ampliar o exercício dacidadania possibilitando o "acesso aos bens culturais, à informação e ao

desenvolvimento da análise crítica dos fenômenos do cotidiano"9.O investimento público no setor cultural se efetivou através dos Centros

Culturais de Bairro, organizados a partir dos Centros Juvenis de Cultura dagestão anterior. Ao todo funcionam nove Centros localizados nos seguintes

bairros: Canhema, Campanário (Wladimir Werzog), Taboão, Nogueira,~

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Serraria, Promissão, Inamar, Eldorado e Ruyce (Heleny Guariba); há tam-bém o Centro Cultural Diadema, na região central da cidade. Além disso,reformas administrativas criaram o Departamento de Cultura (antiga Divi-são de Cultura) e aumentaram o efetivo de agentes culturais, "oficineiros" eassessores das atividades artísticas patrocinadas pela Prefeitura de Diadema.

A ação cultural do município, voltada para a construção de "equipamen-tos" que oferecem espaços para expressões culturais e que fomenta a produ-ção artística, revela-se, no entanto, aprisionadora das experiências cotidia-nas mais espontâneas, refreando possibilidades de insubordinação do usoda cidade e contendo as rebeldias dos movimentos sociais mais radicais. Amediação do poder público, mesmo incentivando as ações progressistas,revertem em controle de horários, locais e, às vezes, em linhas de atuação.Além disso, a política cultural, seja qual for seu critério, realiza sempre umaescolha entre os grupos e manifestações a serem contemplados e os demais,considerados inexpressivos, irrelevantes ou ainda prejudiciais a formação cul-tural dos moradores da cidade. Um caso exemplar, o apoio dado a Compa-nhia de Danças de Diadema, encarregada de divulgar a dança contemporâ-nea em Diadema e projetar a cidade no cenário artístico nacional, pode sercontraposto a relutância em promover e financiar o movimento Hip Hop,que, apenas no final de 1999, conquistou um espaço público para desenvol-ver suas expressões artísticas, a Casa do Hip Hop, no bairro do Canhema.

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Movimento Hip Hop

A cultura de rua, encarnada no movimento Hip Hop, congrega diferen-tes manifestações artísticas, como o break, o grafite e o rap, e representa asexperiências das populações jovens que habitam as periferias das grandescidades. Nos EUA, desde meados da década de 70, o Hip Hop cresceu e seconsolidou como manifestação cultural da juventude negra e pobre. Poucoa pouco, estes jovens que conviviam com a violência e a marginalização dosbairros periféricos, passaram a utilizar o break e o grafite e, depois, o RAPcomo formas de expressão.

Criaram um código próprio, valorizando determinadas formas de com-portamento e de expressão artística, desvalorizando outras, denunciando aviolência das ruas, a repressão policial e as injustiças do sistema capitalista e

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racista. Além disso, mostravam uma for-ma autêntica e original de ex-pressar-se, diferente da que seveiculava pelos meios de comu-

nicação de massa.O RAP chegou ao Brasil através de

um ou outro disco importado e de

vídeo clips; surgiram, depois, algunsprogramas de rádio e bailes nas cidadesgrandes que passaram a difundir o RAP;O s grupos de break e funk começa-

ram a se interessar e conhecercada vez mais as característicasdo novo ritmo e a incorporá-Ias

:;)" suas formas de arte..c:;)! Em Oiadema, o movimento surgiu na

",".c "'"

J.décadade80, com os pioneiros "B-Boys" NelsonTriunfo e Marcelinho Back Spin, integrados nas manifestações paulistanasdo Hip Hop. No início da década de 90, a gestão de Fillipi Jr. começou aacompanhar o movimento, oferecendo uma série de oficinas, sob orienta-ção de Triunfo e Marcelinho, que se tornaram oficineiros da administraçãomunicipal. Desde então, o Centro Cultural do Canhema tem sido o princi-pal ponto de encontro entre os membros do movimento. Os debates e ofi-cinas resultaram na peça "Se Liga Mano", com participação de 67 meninose a orientação de Oswaldo Faustino, jornalista e voluntário no trabalho

com crianças de periferia.Em 1999, a montagem da peça "O Preço", escrita por Faustino com a

colaboração de um grupo de 20 integrantes do movimento, era uma refe-rência ao tema de Fausto, em que um jovem vende a alma ao demônio. Apeça trazia os dilemas dos jovens de periferia, refletindo sobre os compro-missos do rap com a comunidade e sobre o "sucesso fácil" que atinge algunsrappers (cantores de rap) e outras expressões artísticas, como a música ser-taneja e o pagode. A falta de espaços adequados, levou o grupo a ensaiarnuma pequena sala da ONG Instituto de Oiadema de Estudos Municipais.

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A criação da Casa do Hip Hop, no Centro Cultural do Canhema, resul-

tou da persistência e atividade constante dos integrantes do movimento. A

Casa possibilitou estruturar o trabalho das oficinas (break dance, grafite e

discotecagem) e a incorporação de novas atividades, como as oficinas de

percussão e de aperfeiçoamento em técnica vocal. Há cerca de 850 alunos

inscritos e, aos sábados, mais de 300 pessoas comparecem no Centro Cul-

tural para participarem do movimento Hip HOpIO.

Resulta, portanto, uma configuração complexa e multifacetada, na me-

dida em que a relação entre a política cultural do município e as expressões

artísticas apresenta-se contraditória, tensa e insuficiente. A análise de algumas

manifestações procurou evidenciar essas tensões, descrevendo a disposição dos

produtores e anistas em constituir autonomia financeira, política e ideológica,

reafirmando-se enquanto grupo que superou as expectativas engendradas pelo

poder público e pode, agora, desenvolver um caminho próprio.

Companhia de Danças de Diadema

209A Cia. de Danças de Diadema foi criada pela Prefeitura Municipal, poriniciativa de Ivonice Satiell, em fevereiro de 1995, com o objetivo deformar um corpo estável de bailarinos e de trabalhar a dança com a popu-

lação da cidade.Satie começou a se interessar por Diadema, no início da década de 90,

através do trabalho de seu marido Wagner Bossi, Diretor de PlanejamentoUrbano nas gestões dos prefeitos José Augusto (1989-1992) e Fillipi Jr.(1993-96). Ela recebeu, no início de 1993, o convite para assessorar asatividades ligadas à dança, do Departamento de Cultura.

Ela realizou um levantamento sobre as escolas de dança de Diadema eorganizou uma oficina de três meses para conhecer os profissionais e pro-fessores que atuavam na cidade, identificando seus interesses. O nível técni-co e de consciência corporal desses profissionais estava abaixo das suas ex-pectativas, no entanto, foi possível formar uma primeira equipe no final de1993, com as bailarinas Rose M. de Souza e Suzana Gomes - integrantes

atuais da Cia. de Danças.A coreógrafa propôs à administração municipal um trabalho que pudesse

tratar de questões essenciais ao movimento e à consciência corporais, sem

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objetivar a formação de bailarinos, mas como uma opção de lazer, de prazer,de referência social e de educação. Rose Maria de Souza e Suzana Gomesiniciaram o trabalho, em 1994, nos oito centros culturais dos bairros.

Coordenando a pauta dos espetáculos a serem apresentados em Diadema,Satie procurava constituir um público interessado em dança e com um gos-to ampliado para diferentes trabalhos e modalidades dessa arte.

O trabalho das duas professoras resultou em bons resultados, mas evi-denciou as dificuldades de uma equipe tão pequena. Simultaneamente, al-guns produtores ligados a administração avaliavam que a política culturaldo município oferecia apenas grandes espetáculos vindos de fora da cidade,mas não incentivava a formação de grupos estáveis em Diadema. Surgia,assim, uma Companhia de Danças, defendida por Ivonice Satie, para aten-der a demanda de professores e bailarinos para a cidade e, ao mesmo tem-po, estabelecer uma nova diretriz para a política cultural do município:

'~ idéia era ousar. Era criar uma companhia diferente de todas queexistem, onde os bailarinos pudessem estar desenvolvendo um tra-balho que também é cênico. O bailarino não tem só aula de dança,ele precisa coreografar. Ele vai aprender a coreografar, a ser assisten-te do colega que está coreografando, ele vai fazer a sua criação defigurinos, sua proposta cenográfica e de material cênico. A Prefeitu-ra iria dar o material e a execução".12

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A Cia. constituiu-se baseada em dois aspectos originais em relação ascorpos de baile existentes no país. Em primeiro lugar, os bailarinos sãoresponsáveis pela produção das coreografias. Conforme afirma Satie, a Cia.tornou-se "um grupo de profissionais autônomos que cuidam ao mesmotempo da produção, cenário, iluminação, figurinos, montagem 13. Em se-gundo lugar, os bailarinos também são professores de dança (oficineiros)nos 10 centros culturais da cidade com oficinas para crianças, jovens e, em

alguns centros, adultos.Além disso, a Cia. forjava-se, segundo sua fundadora, com um projeto

político de democratizar e popularizar a dança contemporânea, hoje,elitizada. A primeira equipe foi formada por Rose Maria de Souza e SuzanaGomes, Sandro Borelli, core6grafo e bailarino de Santo André e outros 9integrantes. A partir de 1995, cada bailarino ficou responsável por um CentroCultural, com oficinas semestrais. Além de ministrar as aulas, cada oficineiro

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permanece um dia por semana no seu Centro Cultural, em horário inte-gral, tornando-se referência para comunidade e para os interessados em

aprofundar as atividades dadas em aula."Pierrot de Veias" marcou a estréia da Cia. de Danças, em 11 de maio de

1995, no Teatro Clara Nunes, no Centro Cultural Diadema. O espetáculo,criado por Sandro Borelli, é uma espécie de teatro coreografado. Um traba-lho denso, numa linguagem complexa que exigia uma público preparado,isto é, acostumado às características da dança contemporânea. O espetácu-lo recebeu o Prêmio de melhor coreografia da Promodança e o PrêmioEstímulo à dança da Associação Paulista dos Críticos de Arte.

Em 1995, a Cia. apresentou-se no Grande ABC, em São Paulo e emBrasília, através de 48 espetáculos e uma temporada de 6 semanas no Cen-

tro Cultural São Paulo (Vergueiro).O segundo espetáculo, "Jardin de L'Enfant", também dirigido e coreó-

grafo por Borelli, foi apresentado no Teatro Clara Nunes em setembro de1996. Tratava-se de uma remontagem do trabalho desse coreógrafo, cujotema central abordava os problemas da infância carentel4.

A terceira coreografia foi "Linha de Montagem', criada e produzida, em1996, por Rogério Maia, Ricardo Freire, Cristine Belomene, Sandro Borellie Ivonice Satie. Este trabalho aprofundou o contato com a população deDiadema e resultou num espetáculo bem humorado e integrado com opúblicol5, numa linguagem direta, com movimentações de fácil compreen-são e músicas populares. Ao mesmo tempo, a coreografia aprofundou a

prática "cooperativistà' e o rodízio entre os bailarinos."Fábrica Coreográficà', o quarto trabalho da Cia., também foi uma cri-

ação coletiva. Segundo Satie "utiliza como fio condutor a cultura brasileiraem forma de música, dança e ritmos, não buscando o homogêneo ou osinônimo estético, e sim a diversificação da linguagem de cada coreógrafonuma expressão contemporâneà'16. "Fábricà' leva para o palco temas diver-sificados - as emoções do futebol e do carnaval, as diferenças gerando pre-

conceitos sociais, o consumo de drogas, a cultura popular nordestina, ohomossexualismo - através de coreografias que fundem ritmos e estilos,

integrando à dança as artes plásticas, pela confecção de grandes bonecos,cofeccionados por José Maria Oliveira Viana. Em dezembro de 1997, oespetáculo foi gravado pela TV Cultura e exibido no início do ano seguinte.~

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Diadema nasceu na Grande ABC: História Retrospectiva da Cidade Vermelha-

212

Em 1997, Sandro Borelli desligou-se da Cia. tendo em vista não apenas

os seus projetos pessoais, mas uma discord~ncia em relação aos rumos da

companhia. A manutenção da dimensão educativa dos bailarinos, como

oficineiros dos Centros Culturais, inviabilizava o desenvolvimento estético

e a projeção internacional do grupo.

No ano seguinte, no entanto, a Cia. de Danças recebeu novas contribui-

ções que fundamentaram o trabalho coreográfico coletivo que tem sido sua

marca. A presença de Henrique Rodovalho, diretor do grupo goiano Quasar,

ini~ou uma nova prática de trazer coreógrafos convidados para enriquece-

rem as experiências do grupo. No espetáculo de Rodovalho, "TrêsmaisuM",

os artistas se revezavam entre os papéis, retomando uma prática semelhante

ao sistema Curinga, do Teatro de Arena, na década de 60. "TrêsmaisuM"

divide-se em quatro cenas, estruturadas em torno de quatro compositores:

reter Scherer, Tom Zé, Goldie e Mestre Amrbósio. Segundo Satie, Rodovalho

pode contribuir com sua criatividade e seu humor, incentivando os bailari-

nos da Cia. a tornarem-se coreógrafos.

A apresentação é precedida por um vídeo que descreve o trabalho dos

bailarinos como arte-educadores, nas oficinas de dança dos Centros Cultu-

rais. Essas oficinas se organizam em torno da montagem de uma coreogra-

fia, na qual oficineiros e alunos tem autonomia para criá-Ia e propor temas,

a partir de algumas diretrizes básicas que incluem o respeito e a incorpora-ção das experiências culturais dos alunos - a maioria crianças e adolescentes.

As coreografias são apresentadas, anualmente, num evento que envolve

todos os centros culturas, evidenciando-se a diversidade de propostas, como

as diferenças de complexidade e envolvimento dos oficineiros com o traba-

lho pedagógico. Algumas apresentações, como a do grupo de Mulheres de

Eldorado e das adolescentes do Centro Cultural Serraria, coordenadas por

Suzana Gomes, formam um conjunto de coreografias integradas, compon-

do temas coerentes e encarnados nos movimentos e nas músicas.

No entanto; outras oficinas pareciam fragmentadas e mal elaboradas,

como uma apresentação ao som da Primavera das Quatro Estações de Vivaldi,

seguida do último sucesso do grupo É o tchan! Em algumas apresentações

evidencia-se não a integração de diferentes tradições culturais, mas a "justa-

posição" de tradições, como se oficineiros e alunos cedessem de um lado,

para ganhar, do outro, cada um reatualizando suas próprias experiências

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Diadema nasceu no Grande ASC: Histório Retrospectiva da Cidade Vermelha

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artísticas, sem a realização de trocas de experiências, proposta pela assesso-ria de dança.

Além dos trabalhos nos bairros com iniciação à dança, havia uma oficinade 4 horas semanais, no Centro Cultural Diadema, para "iniciados", comjovens interessados em continuar estudando dança. Formou-se, assim, umgrupo amador que há dois anos trabalha com balé clássico e contemporâ-neo, apresentou-se em diversas cidades do interior de São Paulo, conquis-tando o primeiro lugar na categoria de grupo amador contemporâneo noúltimo FestiDança de São José dos Campos, em 1997. A longo prazo, oobjetivo é formar bailarinos para compor a Companhia.

Em 1999, a assessoria de Henrique Amoedo, criador do Grupo RodaViva Cia. de Dança, resultou num trabalho dedicado a ensinar dança adeficientes físicos, no Projeto Mão na Roda. No mesmo ano, Ivonice Satiereassumiu a direção do Balé da Cidade de São Paulo.

As oficinas de duas bailarinas-professoras destacaram-se do conjunto pelaseriedade e envolvimento no trabalho pedagógico: Suzana Gomes, oficineirado Centro Cultural do Serraria e Rose Maria de Souza, oficineira no Cen-tro Cultural de Eldorado e coordenadora do Grupo de Mulheres de Eldorado.

A trajetória artística de Suzana Gomes ilustra o próprio amadureci-mento da proposta de formação da Cia. de Danças. Moradora deDiadema, começou a estudar dança aos 9 anos, inicialmente na própriacidade e depois em São Paulo, fez teatro amador e deu aulas em acade-mias e escolas de teatro. Conheceu Ivonice Satie na primeira oficina deIniciação à Dança Moderna, destacando-se devido a sua formaçãoprofissional. Fez parte da primeira equipe, junto como Rose Maria deSouza, responsável. pelas experiências iniciais nos Centros Culturais. E,finalmente, incorporou-se a Cia. de Danças e tornou-se, ainda em 1995,oficineira do Centro Cultural da Serraria. Em 1998, assumiu também aassistência de Direção da Cia. de Danças.

No início, Suzana Gomes afirma que foi muito complicado coordenar asoficinas, pois sua experiência pedagógica em academias estava orientada paramodalidades específicas de dança (balé clássico, sapateado, etc.) e para alunosinteressados nestas modalidades. Gomes avalia, assim, o seu trabalho:

"Ao chegar nos bairros, embora eu não tenha dado balé clássico,nem sapateado, mas juntei um pouQuinho de tudo, sem trabalhar

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nada do que era popular. Claro que eu tive evasão. Começava com20, 30 e terminava com 4. Eu tinha uma aluna que dizia: 'Pô pro-fessora, essas danças que você dá nas aulas, acho que só você conhe-ce, por aqui ninguém nunca viu'."I?

214

Aos poucos, Suzana Gomes modificou seu trabalho e abandonou as au-las de técnica de dança, experimentando outras atividades, incorporandoos ritmos e danças conhecidos pelos seus alunos e propondo jogos e brinca-deiras que envolviam desde os movimentos cotidianos mais comuns às di-ferentes formas de dança.

Após quatro anos de trabalho, Suzana Gomes conseguiu estruturar umaproposta de oficina reconhecida pelos alunos e aceita pelos novos integran-tes. Ela tornou-se não apenas uma oficineira, mas uma produtora local,estimulando e auxiliando a organização dos eventos do Centro Cultural, acargo do agente de cultura. As suas oficinas alcançaram um dos objetivospropostos, como a formação de lideranças, através dos alunos mais antigos einteressados em continuar o trabalho. Esses jovens líderes assumem algumasresponsabilidades e se tornam assistentes, inclusive, coordenando os ensaiosna ausência da professora. O grupo de adolescentes está, aos poucos, assu-mindo certa autonomia em relação à dinâmica de organização da coreografia.

Assim, a Cia. de Danças parece ter dado resultado na constituição degrupos que ultrapassaram a proposta de iniciação à dança. Em 1998, ogrupo coordenado por Suzana, apresentou a coreografia "Batalha Naval",sobre a violência policial vivenciada por moradores na Favela Naval, noCanhema. O mesmo propósito, aperfeiçoar as coreografias, envolveu ou-tras oficinas que passaram a realizar atividades específicas com alunos maisantigos. O caso mais significativo de conquista de autonomia e de elabora-ção de uma identidade própria foi o Grupo de Mulheres de Eldorado.

Além disso, a Cia. projetou-se no cenário nacional da dança e tem sidoconvidada para eventos em todo o país, inclusive a 1 a Mostra de Dança do

Teatro Municipal que reuniu, em fevereiro de 1999, as seis melhores com-panhias de dança do país: Quasar, 3 de Paus, Stagium, Stavvato, o Balé dacidade de São Paulo a Cia. de Danças de Diadema.

Afinada com as propostas culturais contemporâneas, a Cia. De Dànçasprocurou articular modalidades artísticas distintas, de um lado, ampliandoas possibilidades de apreciação de espetáculos de vanguarda, de outro, ofe-

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recendo, nas oficinas dos centros culturais, um primeiro contato com adança, através da valorização das experiências comuns da população infanto-juvenil em Diadema. Os dilemas, no entanto, são expressivos de sua pró-pria constituição: criada e mantida pela administração pública municipal, aCia. mantêm-se na instabilidade do mundo político e de suas oscilações.São, portanto, desafios ainda não alcançados a gestão autônoma dos seusrecursos e a consolidação de seu papel como "essencial" a cultura da região

e não apenas, como "artigo de consumo" das elites regionais.

Grupo de Dança Mulheres de Eldorado

215

o Grupo de Mulheres de Eldorado surgiu a partir de uma oficina doCentro Cultural Eldorado, coordenadas por Rose Maria de Souza. No en-tanto, o grupo conquistou autonomia e destaque no município passando afuncionar de modo peculiar e superando a experiência das oficinas. A traje-tória deste Grupo evidencia as possibilidades concretas de reconstruir iden-tidades e laços de solidariedades, através das expressões artísticas.

Rose Maria de Souza trabalha com dança afro há 15 anos, foi educadorana Secretaria do Bem-estar do Menor, no início dos anos 90, quando pas-sou a refletir sobre o papel da dança no processo de formação das crianças eadolescentes. Aos poucos, abandonou as preocupações com coreografias eresultados bem acabados e ensaiados e passou a integrar às oficinas os mo-vimentos realizados quotidianamente e não refletidos, como as brincadei-ras infantis. Caminhava, assim, em direção aos princípios da dança con-temporânea, no entanto, situando-os num contexto das suas atividades com

crianças e jovens da periferia.Rose Souza conta como começou o Grupo de Mulheres de Eldorado, a

partir de 1994, com as oficinas para crianças e adolescentes:

"No final de 1994, cinco ou seis mães assistiam as aulas de suasfilhas e ficavam se balançando. Quando foi no ano seguinte eu abriuma turma para jovens e adultos, achando que viriam essas cinco,mais outras quatro ou cinco. Vieram 25. Eu sentia que elas queriamr"7pr 11m" rprrp"rSn nll "prnhir,," 18

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Diad~~anasce~~o~!~~ ~~~!~óri.a R~trospectiva da Cidade Vermelha

216

Rose Maria introduzia vários ritmos e danças recreativas, além de con-versar com as alunas sobre assuntos contemporâneos, a partir da história devida delas, propondo temas e direcionando o trabalho para a situação davida no campo e para a realidade do movimento dos Trabalhadores RuraisSem Terra, o MST. Neste ínterim, a chacina de Eldorado dos Carajás sensi-bilizou as alunas, ainda receosas, e resultou no primeiro trabalho do grupo,

a dança-teatro "Sem Terrà'.Uma das integrantes mais antigas do Grupo, Vera Lucia Gomes da Cruz

conta sua versão sobre a origem do grupo. Ela e sua irmã levaram as filhaspara a oficina, apesar do desânimo com a antiga professora que queria ensi-nar balé clássico para os alunos. No entanto, como o trabalho de Roseparecia diferente, elas passaram a freqüentar as aulas com mais duas mães, aprincípio apenas como espectadoras, até que o convite de Rose foi aceito,não sem receios, pois lhes parecia tarefa difícil voltar a dançar.

As oficinas ocorrem as quartas-feiras à tarde, num salão da Escola Muni-cipal Hercília A. da Silva Ribeiro e estão divididas em dois grupos: um dejovens e adultos, outro de crianças e adolescentes. A princípio as oficinas serealizavam no Centro Cultural Eldorado, mas o crescimento do grupo quede 36 passou a 50 mulheres e, no caso das crianças e adolescentes, chegou a50 alunos em meados de 1996, obrigou a procura de espaços maiores.

As coreografias são criações coletivas, orientadas por Rose de Souza. To-dos os integrantes são estimulados a criar passos e movimentos e apresentá-los para o grupo que recria e incorpora (ou não) ao trabalho em comum. Aprodução das coreografias também é responsabilidade das alunas: criação efabricação de figurinos e cenários, busca de materiais mais baratos, parceri-as com empresas do bairro, divulgação na imprensa, por isso, o grupo tem

uma secretaria e uma tesouraria.As apresentações e o sucesso das oficinas originaram uma lista de espera

com mais de 100 pessoas. Uma das soluções encontradas por Rose resultouno Projeto Multiplicarte que consistiu em transformar suas alunas, entre 16e 21 anos, em professoras. São oito alunas que iniciaram a oficina em 1994e, a partir de maio de 1997, passaram a coordenar as oficinas aos sábados,orientadas e supervisionadas por Rose Maria de Souza.

O trabalho de Rose procura coordenar as atividades de dança, com ori-entações sobre higiene, trabalho em grupo e noções de cidadania. Além

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Diadema nasceu no Grande ABC: História Retrospectivo do Cidade Vermelho

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disso, há um acompanhamento sistemático da vida escolar das crianças eadolescentes, sendo a aprovação na escola um dos critérios para continuar

nas oficinas.Formado basicamente por donas de casa e de famílias de baixa renda, o

Grupo de Mulheres de Eldorado também tem empregadas domésticas, di-aristas, cozinheiras, costureiras, doceiras e lavadoras de roupa. As alunas,como a maioria da população adulta de Eldorado, não nasceu em Diadema,mas nas cidades do interior de São Paulo, no Nordeste, em Minas Gerais eno Paraná. O grau de escolaridade não ultrapassa o antigo ginásio (até a 4asérie do 1 ° grau), inclusive algumas estudam atualmente nas turmas de alfa-

betização e p6s-alfabetização do Serviço de Educação de Jovens e Adultos daPrefeitura de Diadema. No entanto, as alunas jovens (as professoras das cri-anças) estão matriculadas nas escolas estaduais do bairro, algumas no 1 ° grau,

outras no 2°. Um traço peculiar do grupo é a presença de parentes no grupo:mães, filhas, irmãs e netas compartilham juntas das oficinas de dança.

O primeiro trabalho do grupo foi "Sem Terrà', uma coreografia comaproximadamente 40 minutos, que mescla dança e teatro e trata dos temasrelacionados a vida no campo, à reforma agrária e ao êxodo rural. O Poemade João Cabral de MeIo Neto, Funeral de um lavrador, a Carta da 1erra dosoci610go Betinho e as músicas de Pena Branca e Xavantinho fazem partedo espetáculo que conta a hist6ria de mulheres b6ia-frias, incorporandonos movimentos e expressões faciais, o sofrimento e a proximidade da mor-te destes trabalhadores.

A montagem e produção do espetáculo contaram com a participaçãoefetiva das mulheres que sugeriam as coreografias, o cenário, os figurinos e

as músicas. Elaspesquisaram sobre o temae fizeram diversas leituras,escolhendo o poema deJoão Cabral.

As primeiras apresen-tações do grupo de Mu-lheres de Eldorado, emfins de 1995, foram noCentro Cultural do

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Diadema nasceu no Grande ABC: História Retrospectiva da Cidade Vermelha

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Eldorado. No início de 1996, se apresentam no Teatro Municipal Clara

Nunes, em junho, no 111 Encontro de Ecologia Urbana e Cidadania e, em

novembro, no 111 Congresso de Educação, Cultura, Esporte e Lazer de

Diadema. Depois se apresentaram em outros locais da cidade e, em de-

zembro, no Centro Cultural São Paulo. Em 1997 retomaram para o Cen-

tro Cultural São Paulo e se apresentaram no Festival de Dança do SESC

Interlagos, na Casa das Rosas, no SESC Ipiranga e no Teatro João Caetano.

Além das apresentações em cidades da Grande São Paulo, como São Bemardo

do Campo, Santo André, Ribeirão Pires e Itapecirica da Serra e em São

Sebastião, no litoral norte paulista.

O maior desafio do grupo surgiu, no início de 1997, com um convite

para se apresentarem em Cuba, no XVII Festival de Ia Cultura Cairebefia, a

Fiesta deI Fuego, de 3 a 9 de julho de 1998, em Santiago de Cuba, organi-

zado pela Casa do Caribe. Este festival contou com participantes de 25

países; os brasileiros convidados foram as Mulheres de Eldorado, o cantor

João Bosco e o Grupo Olodum.

A necessidade de obter R$ 45 mil para as passagens e a hospedagem das 40

mulheres do grupo foi um dos principais obstáculos a serem vencidos. Uma

intensa campanha organizada pelas integrantes do grupo arrecadou R$ 5 mi119,

a Fundação Japão patrocinou o grupo com R$7,5 mil e a Câmara Municipal

de Diadema aprovou por unanimidade uma medida encaminhada por Gilson

Menezes, garantindo o restante das verbas pela Prefeitura2°.

Em Cuba, as Mulheres de Eldorado apresentaram 10 vezes a coreografia

"Sem Terrà' em teatros e nas ruas de Santiago. A experiência resultou em

maior integração do grupo e fortaleceu a consciência do trabalho artístico

dessas mulheres. Maria Cristina Peres Pinto de Figueiredo conta que ficou

"muito ansiosa, mas o mais importante foi poder conhecer a realidade de

outro país e através de nosso trabalho mostrar um pouco da nossa culturà'21.

A coordenadora Rose M. de Souza avalia a importância das lutas para

conseguir recursos para a viagem e o convívio do grupo por 15 dias em Cuba:

"Eu tinha medo que o grupo se esfacelasse no retorno à Cuba. Afi-nal, até a viagem a gente não comia junto, não dormia junto. E lávocê tinha que compartilhar a vida como uma família, chorandojunto a saudade dos maridos e dos filhos. Por isso, fiz algumas ativi-dades antes para prepará-Ias para o convívio" 22,

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o resultado desse convívio foi a montagem, no segundo semestre de

1997, da coreografia "Dual" que, ao invés de tratar dos problemas sociais,como vinha sendo proposto, refletia sobre a personalidade e os conflitoshumanos, num trabalho de autoconsciência e de reconhecimento do outro.

Incorporando a oficina das crianças às mulheres surgiu o espetáculo"Kebalá" que significa, no idioma africano iorubá, resgatar. O espetáculocom 90 integrantes, reuniu, pela primeira vez, as mulheres ao grupo decrianças e adolescentes, e trata do consumo e do tráfico de drogas nas peri-ferias urbanas, abordando, com realismo, o cotidiano violento de famíliasdesestruturadas pela pobreza. "Kebalá" é um apelo aos direitos das crianças,num espetáculo, ao mesmo tempo trágico e vibrante, que integra dança eteatro, incorporando desde músicas de Chico Buarque (Acalanto, Minha

Vida, Meu Guri) aos RAPs.A coreografia surgiu de uma reflexão proposta sobre o Estatuto da Criança

e do Adolescente e da própria realidade do bairro. Segundo Rose M. de Sou-

za:

"mosttamos os problemas, indicamos as soluções e pedimos o res-peito aos direitos das crianças. A dança está resolvendo muitos con-flitos, além de servir como alerta para a situação delas". Uma dasintegrantes do grupo, Maria Aparecida Santos, afirma que a peçatrata da "realidade que vivemos"23.

219

Depois de "Kebalá", o grupo de crianças e adolescentes montou a coreo-grafia "Brasilidades" que se constitui num amplo quadro dos problemassociais contemporâneos, a situação do trânsito nas grandes cidades, a ques-tão do assédio sexual, como forma de violência às mulheres e a existência,nem sempre eficaz, do Estatuto da Criança e do Adolescente. As coreogra-fias, criadas por Rose, são variadas e integram funk, maculelê e pagode.

Na origem, "Brasilidades" era uma espécie de canal de televisão, do qualsurgiu o "Jornal Brasilidades", sugerido por Rose Maria de Souza para 're-latar notícias que diariamente invadem nossa residência, causando-nos es-

" . al . "24panto, paruco, prazer, egnas...

O "Brasilidades" acompanha a apresentação das Mulheres, abrindo qespetáculo com cerca de 50 crianças e 40 minutos de duração.

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Diadema nasceu na Grande AS': História Retrospectiva da Cidade Vermelha

A mais recente coreografia do grupo, "Oferendà', traz a presença da cul-

tura negra na formação da população brasileira, retratando seus sofrimen-

tos e alegrias desde a escravidão. "Oferendà' integra dança afro, teatro e dança

contemporânea, com poemas de Castro Alves e coreografia e textos elaborados

por Rose Maria de Souza e a participação especial do mestre de capoeira Suassuna.

O espetáculo, com músicas de Paul Simon e de Quenda, tem duração aproxi-

mada de 30 minutos e conta com 40 mulheres de 14 a 64 anos.

A questão da escravidão é central neste trabalho, a partir de um

questionamento sobre o limite da ruptura estabelecida com o fim do regi-

me escravista. No texto de Rose Maria, o personagem anuncia: "Sabe Dou-

tor, a senzala se transformou, virou favelà', no entanto, enfatizaque a escra-

vidão não inclui apenas a população negra, mas os pobres e miseráveis.

O depoimento de Vera Gomes da Cruz ilustra um sentimento comum

ao grupo que nas coreografias, participam com verdadeira emoção, dado a

sensibilidade dos textos e o tratamento às questões sociais muito próximas

a vida destas mulheres. Vera afirma que:

"Na dança afro e em 'Oferenda' a gente está pedindo liberdade. A'história grita que a escravidão acabou, como diz o texto, mentira'.Existe escravidão, todo mundo é empregado de alguém, todo mun-do tem um dono, um patrão. Quando eu falo o texto, eu querochorar e não posso, senão eu perco o texto. Parece que assim aquelaspalavras... eu olho pras pessoas e tenho dó, está tudo sendo escravi-zado, assim pelo governo, sabe? Gente, aquilo dói na gente"25,

220

Rose M. de Souza, orgulhosa da autonomia e da vitalidade do grupo, afir-ma que, independente dos resultados em coreografias bem elaboradas, o es-forço realizado até agora transformou inevitavelmente a vida dessas mulheres:

"Elas nunca vão deixar de ser Mulheres de Eldorado. Elas sabemque são vitoriosas. Eram donas de casa que tinham que cuidar dosfilhos e ainda conseguir uma hora e meia por semana para brincar,para dançar, isso já as faz diferenciadas"26.

A concretização desses anseios tem alterado as relações entre o grupo e adança. Desde a apresentação em Cuba, o grupo ultrapassou o tempo deensaio definido para as oficinas semanais. Elas se encontram nos finais desemana, nas casas das mulheres que podem receber, pelo menos, parte das

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Diadema nasceu no Grande ASC: História Retrospectiva da Cidade Vermelha

40 integrantes. Novamente, é Rose Maria de Souza quem descreve o cotidi-ano das novas bailarinas:

"Do 'Dual' pra cá elas acharam mais horários. Não comigo, por quenão tenho condições. Mas, aos sábados de manhã elas ensaiam nacasa de uma, na casa da outra"27.

Vera Gomes enfatiza as conquistas que a dança trouxç para seu auto-conheci-

mento, revelando suas descobertas a medida que surgem novos trabalhos:

"Cada trabalho que a gente faz a gente se surpreende mais. Você vaimais se soltando. Eu agora estou conhecendo um jeito meu, na'Oferenda' que eu não conhecia, de dançar assim com os braços,com o corpo, sabe? de gesricular assim com os braços, que eu nãofazia isso. Eu estou aprendendo a mexer com o corpo, com os bra-ços, com as pernas, com a cabeça"28.

221

o desafio para 1998 era a conquista da autonomia do grupo em relação aotrabalho da coordenadora e em relação a própria oficina - diretriz traçada pela

política cultural na cidade. A valorização e o reconhecimento do trabalhoartístico do grupo resgatou a auto-estima dessas mulheres pobres, com maisde 40 anos, voltadas para o trabalho doméstico, a vida dos filhos e dos mari-dos.

É possível afirmar também que a dinâmica desenvolvida pelo grupoextrapolou a organização inicial das oficinas e assumiu um papel de ativida-de agregadora das relações de vizinhança entre essas mulheres. Evidente quenão se pode estabelecer prognósticos sobre a duração e a amplitude que ogrupo terá nos próximos anos, mas, concretamente, Mulheres de Eldoradoconquistou seu espaço nas atividades c1,ilturais do município e se estabele-ceu como possibilidade, inspirando outros grupos e oficinas a assumir adança como expressão de seus desejos e anseios.

A mostra das oficinas de dança de Oiadema, ocorrida em dezembro de1997 exemplificou o destaque dado as Mulheres de Eldorado que se apre-sentaram por último, como o principal evento do dia, foram muito aplau-didas e ainda receberam homenagem de uma aluna poetiza da oficina dedança do Serraria.

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Diadema nasceu~~rande ASC: Hi~ória Re~~pectiva da Cidade Vermelha

o teatro-escola e o teatro amador nos anos 90

Em 1995, teve início uma nova ação da administração municipal comoficinas para jovens atores, isto é, para pessoas com idade mínima de 16anos e que já tivessem expetiência com teatro, inclusive nas oficinas deiniciação dos Centros Culturais da cidade29. A primeira montagem do gru-po, apresentada em dezembro do mesmo ano, foi "Algumas Estórias", ba-seada em contos de Guimarães Rosa e outras histórias de tradição popular,sob a direção de Angela Barros. Deste trabalho resultou um grupo que semantém atualmente com atividades regulares e apresentações na cidade.Em setembro de 1996, apresentaram uma montagem de textos de MartinsPena, "Retratalhos", ditigidos por Isa Kopelman e sob a coordenação de

Angela Barros.São 19 atores que já se apresentaram no interior do Estado, nas cidades

de Penápolis, Outinhos, e Bragança Paulista. As oficinas são realizadas noCentro Cultural Canhema, quatro vezes por semana, à noite.

Existem, atualmente, 10 professores de teatro atuando nos Centros Cul-turais de Oiadema, com formações diversificadas, desde trabalhos com tea-tro convencional, teatro de bonecos, teatro de rua e atividades circenses.São 35 oficinas de teatro, em três estágios diferentes: iniciação (6 meses),intermediário (8 a 9 meses), avançado (1 ano)30. Assim, procurou-se trans-por a proposta original de oficinas de iniciação às linguagens artísticas, dandooportunidade aos interessados em aprofundar a prática e os conhecimentossobre história do teatro, cenografia, iluminação, sonoplastia, etc.

O objetivo, segundo Alberto Pereira Chagas, é formar multiplicadorespara ampliar as oficinas de teatro. Além disso, a orientação dada propõe abusca de autonomia dos grupos, pois expetiências anteriores, em especial oTeatro-Escola, evidenciaram os problemas da estreita dependência da polí-

tica municipal.No entanto, em Oiadema quase não se investiu em teatro durante toda a

década de 80, quando apenas alguns grupos amadores sobreviviam precari-amente, apresentando-se em suas regiões. Eram grupos sem perspectivas deprofissionalização, mantendo-se com seus recursos, ensaiando em locais

impróprios, em geral emprestados.

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A última, ou ainda, a única ptesença expressiva de atividades teatrais na

cidade ocorreu na década de 70 quando a administração municipal propi-ciou a criação de um Curso de Teatro da Municipalidade que ficou conhe-cido como Teatro-Escola, contrastando com a ausência de uma política

cultural sólida e direcionada.O prefeito Ricardo Putz nomeou, em abril de 197331 , a atriz Lêda Sylvia

Mendes Szochalewicz para o cargo de Chefe de Divisão de Cultura, do

Departamento de Educação, Cultura e Esportes. Todavia, essa nomeaçãoapenas consagrava a atuação de Leda Sylvia como produtora cultural e dire-tora de teatro desde 1970. Leda Sylvia era atriz e professora, viera trabalharem Diadema devido a um convênio do Conselho Estadual do Teatro com o

Governo do Estado, sob o comando de Abreu Sodré.Segundo a imprensa da regiã032, em 1970, o prefeito Evandro EsquiveI

reformou o antigo Cinema Paroquial e o transformou numa casa de espetá-culos, o Teatro Cultura Diadema, inaugurado com a peça '~s árvores mor-rem em pé" de Alexandre Caso na, dirigida por Lêda Sylvia Mendes

Szochalewicz e interpretada por atores amadores.Um artigo da própria Lêda Sylvia aborda os preparativos da peça de

inauguração do Teatro Cultura de Diadema e defende a prática de um tea-tro sério, "espelho da realidade para uma épocà'. Valoriza a pesquisa e dedi-cação necessárias a um bom trabalho cênico, indicando as bases humanistase as qualidades estéticas do teatro que, para Lêda Sylvia deveria ser instru-

mento de "educação, cultura e progresso"33. Afirma a diretora:

223

"Hoje nós estudamos o autor da peça; a peça como obra literária, oseu valor artístico, psicológico, humano, o seu ambiente, a socieda-de a que se destina, o local onde se desenrola, a psicologia de seuspersonagens, os costumes, a época, a política (...)"34.

De fato, durante os quatro anos de existência do Teatro-Escola forammontadas as mais variadas peças, mantendo constantemente um trabalhoeducativo com os alunos através do estudo das obras, dos autores e da épocade cada peça. Apresentaram textos de dramaturgos consagrados, como "Judasem Sábado de Aleluià' e "O Caixeiro da Tavernà' de Martins Pena, "OTraído Imaginário" de Moliere e "O Pedido de Casamento" de AntonTchecov; textos de autores contemporâneos, como '~Morte do Imortal"

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de Lauro Cezar Muniz, "Zumbi" e "Tiradentes" de G. Guarnierij e ainda

textos criados coletivamente pelos alunos.Os cursos do Teatro-Escola eram anuais, com duas aulas semanais, das

19 às 20:30 hs. Os interessados passavam por uma seleção que consistia naleitura dramática de um trecho de peças indicadas previamente. Em 1974,havia em Diadema 3 grupos estáveis e vários grupos circulantes, resultadosdas atividades do Teatro-Escola. As disciplinas oferecidas pelo curso eram

História do Teatro, Interpretação, Expressão Corporal e Encenação.Participavam do Teatro-Escola estudantes do Colégio Estadual de

Diadema, funcionários da Prefeitura e professoras de escolas municipais.Um dos integrantes que adquiriu, posteriormente, notoriedade foi o dire-tor Ulysses Cruz, hoje reconhecido nos meios culturais paulistanos.

As estréias do Teatro-Escola, em 30 de julho de 1973, foram com trêspeças de criação coletiva, baseadas no tema "O Amor". O teatro estavalotado, os espetáculos foram aplaudidos por aproximadamente trezentaspessoas e o desempenho dos alunos foi "alvo de calorosos e constantes aplau-SOS"35. Houve ainda a apresentação da peça "Pluft, o Fantasminhà', dirigidapor Ulysses Cruz e estreada por Leda Sylvia Mendes.

Além das apresentações na própria sede e em outros teatros da região, osgrupos do Teatro-Escola levavam seus espetáculos para as Sociedades Ami-gos de Bairro, as Escolas e outras instituições públicas de Diadema.

Organizados por Leda Sylvia e Ulysses Cruz, Diadema foi palco do I e 11Festival de Teatro Amador, em 1973 e 1974. Promovido pela Prefeitura, osfestivais contaram com a participação de grupos teatrais do Grande ABC esegundo Cruz os objetivos dos eventos era "formar um público para o teatro,dar uma ocupação extra-trabalho ao operário e uma saída para o jovem"36.Cerca de 50 grupos se inscreveram para o 11 Festival, devido a problemas como palco e a censura reduziu para 18 grupos e destes foram selecionados nove.

Neste mesmo artigo, Ulysses Cruz cita em entrevista a construção dedois teatros pela prefeitura, um ao ar livre, outro de arena, para substituir asinstalações onde se encontrava o Teatro-Escola. O teatro arena citado é o

atual Teatro Clara Nunes, no Centro Cultural Diadema, na região central,construído por Lauro Michels e inaugurado por Gilson Menezes, em 1983.No entanto, o mais significativo é a justificativa elaborada por Cruz, defen-~

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dendo-se do que parecia ser um ataque constante as investidas ou, no caso,das intenções culturais da administração municipal:

"Muita gente poderá nos criticar, achando que existe no município,problemas reais mais imediatos do que dar-lhe um teatro. Concorda-mos plenamente. Porém, quando sabemos que somos 120 milmunícipes, marginalizados, no que se refere a lazer, tendo apenas comodistração principal a televisão, é justo que se pense no assunto"37.

225

o fim do Teatro-Escola foi resultado do desinteresse das administraçõesmunicipais, no início da década de 80. Conforme Elmir de Almeida, "apartir daí, a experiência sobreviveu pela teimosia de seus 'militantes', maspor pouco tempo. Não contando com o apoio do governo Michels,tampouco do 10 governo doPT - Menezes -, o Teatro-Escola não chegou a

ultrapassar os primeiros anos da década de 80, pulverizado em pequenosgrupos de prática amadora"38.

Alberto Pereira Chagas, um dos alunos do Teatro-Escola39 e, na sua ava-liação, acredita que, apesar da curta duração do Teatro Escola, ele teve im-portância fundamental, dado o contexto artístico e a conjuntura políticado período: havia associações e federações teatrais, além de vários gruposamadores na região, em geral, ligados a atividades políticas, inspirados nasexperiências do Teatro Oficina e do Teatro Arena.

Nos anos 80, as atividades que congregavam os diversos grupos se enfra-queceram, fragmentando as ações no campo teatral. Alguns atores se torna-ram profissionais, como Ulysses Cruz, outros desistiram de fazer teatro, oupassaram a trabalhar em trajet6rias individuais. Além disso, conforme aentrevista de Chagas:

"o artista é complicado às vezes, para ele se agrupar é complicado,pois ficavam discutindo a qualidade de um grupo ou qualidade deoutro, quando a intenção, na época, era tentar se segurar, ter umtrabalho auto-sustentável"4O.

Ao contexto desfavorável para a ação teatral- dado as dificuldades finan-ceiras e um campo de trabalho com poucas oportunidades para profissio-nalização - somou-se políticas culturais voltadas para a difusão de grandes

eventos, contratando artistas e grupos consagrados. O resultado foi o desa-parecimento público dos grupos teatrais. Essa trajetória e a.~ inrernrPt~rnp"

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Diadema nasceu no Grande AB~:~~~ória Retrospectiva da Cidade Vermelha

dos atuais assessores da ação municipal tem impulsionado uma nova políti-ca, ainda prematura, que procura desenvolver a independência dos gruposamadores, dispondo os equipamentos e a infra-estrutura da prefeitura, mas,ao mesmo tempo, estimulando novas parcerias com a iniciativa privada,através das leis de incentivo à cultura.

A Festa de Nossa Senhora dos Navegantes

Em 02 de fevereiro de 1997, realizou-se a Festa de Nossa Senhora dosNavegantes, no bairro de Eldorado, na divisa com São Paulo e com SãoBernardo do Campo, às margens da Represa Billings.

A procissão náutica, formada por cerca de 30 barcos, saiu do bairro Ria-cho Grande, em São Bernardo do Campo, deslizou pela Represa com aimagem de Nossa Senhora à frente, cerca de duas horas. Aportou na Praiado Ponto Certo, no Eldorado, onde a imagem seguiu pela Estrada doAlvarenga, sendo levada à pé pelos romeiros até a igreja de Nossa Senhorados Navegantes.

Os eventos começaram em 31 de janeiro com distribuição de panfletos,vigília na Igreja de Nossa Senhora dos Navegantes, benção de veículos, quer-messe, show ao vivo e um torneio de futebol41. Além disso, na manhã de 02de fevereiro um carro de som e fogos de artifício avisavam a comunidade dascomemorações. A estimativa dos organizadores era que a procissão reunisse5.000 pessoas, no entanto, cerca de 2.500 estiveram presentes aos festejos.

A organização da festa foi articulada pela paróquia de Nossa Senhora dosNavegantes, através do Padre Odair Agostin e pelo Movimento em Defesa

da Vida (MDV) lideradopor Virgílio Alcides de Fa-rias. Segundo osorganizadores "nosso gran-de desafio é recuperar a tra-dição que a procissão teveem décadas passadas"42. AFesta, no entanto, desde1995 tem procurado "in-ventar" uma nova tradição,

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incorporando às comemorações de caráter religioso, a defesa da RepresaBillings e a denúncia das atuais condições ambientais da região.

O evento, iniciado em 1957 e interrompido em 1978, foi retomado em1995, teve, portanto, significativas modificações, acompanhando e se adap-tando as transformações do próprio Bairro. O atual "renascimento" da pro-cissão de Nossa Senhora dos Navegantes parece atender mais às necessida-des concretas de recuperação da Represa e da qualidade de vida no bairro,do que aos anseios espirituais da comunidade católica"

O Eldorado constitui-se com inúmeras particularidades dentre as regi-ões de Diadema. A paisagem urbana neste bairro se caracteriza pela ocupa-ção desordenada e socialmente diferenciada, com pequenas residências pró-ximas a grandes mansões; intercala-se com a área de manancial preservada,uma vegetação heterogênea de coqueiros, eucaliptos, bananeiras e pinhos,misturadas a capoeira que cresce a revelia.

No centro do Bairro, um grande terreno é utilizado como campo defutebol e pasto para alguns cavalos; este terreno - localizado em frente aigreja de Nossa Senhora dos Navegantes - é resultado de um pequeno aterro

da represa Billings. Um comércio a varejo bastante diversificado, a EscolaMunicipal, o Centro Cultural, a Igreja e um Distrito Policial conformam ageografia dessa região central.

No trecho próximo da Represa Billings, uma grande placa informava que aágua era imprópria para banho e o peixe impróprio para consumo, no entanto,o local é visitado para pescaria e para o lazer da população carente do bairro.

O Eldorado começou a ser loteado por chácaras de veraneio, desde adécada de 30, servindo de local de passeio e descanso para a alta classemédia paulistana. Até os anos 60, o bairro manteve esse perfil: lanchas egrandes barcos, restaurantes elegantes, ótimos hotéis, clubes de campo e atéum cinema, o Iate Cine Eldorado, compunham a bela paisagem de umaregião preservada, e banhada por uma represa de água limpa. Moravam naregião pescadores e pequenos agricultores, a maioria imigrantes ou filhos de

imigrantes europeus.O crescimento industrial da capital e do grande ABC atingiu a região de

Eldorado, transformando radicalmente essa ocupação, com o aumento des-controlado da população e a poluição da Represa Billings. O novo quadrodesestimulou os proprietários de grandes áreas na região, acentuando um~

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processo de loteamentos nas áreas ainda preservadas e nas grandes chácaras,que resultou na devastação de parte considerável dos mananciais.

O fluxo populacional se constituía basicamente por migrantes que, semcondições de adquirir terrenos e casas mais próximas aos locais de trabalho,fosse São Paulo ou São Bernardo, passaram a ocupar lotes irregulares, des-providos de infra-estrutura. Essa situação, a despeito da lei de proteção aosmananciais, aprovada em 197543, "tornou-se norma para os loteadores que

promoveram sem critério algum, um desmatamento compulsivo compro-metendo totalmente o equilíbrio ecológico da região"44.

No início dos anos 50, a organização da vida religiosa em Eldorado e a

criação da Sociedade Amigos de Bairro foi liderada por André Mussolino,morador e proprietário de uma chácara na região. Uma pequena igreja,inaugurada em dezembro de 1953, recebeu como padroeira Nossa Senhorados Navegantes, dado as próprias características do bairro e aos pouco mais

de 100 metros que separavam a igreja e a represa.A Festa-procissão em homenagem a padroeira dos barqueiros e pescado-

res começou a ser comemorada anualmente desde 1957, tendo a sua datafixada na "cheià' da represa. "A imagem da Santa saia da pequena igreja emum ando r que era colocado num barco e navegava sobre "as águas seguidopor outros barcos com os fiéis munidos de tochas acesas. Refletiam naságuas imagens de encanto admiradas à distância, nas margens do lago, pela

gente pura e fiel a Santà'45.Ao redor da igreja ficavam as barracas de quermesse, com comidas e

bebidas das diferentes "colônias" de imigrantes. As comemorações mobili-zavam dezenas de moradores encarregados de enfeitar o bairro, organizar aprocissão náutica noturna e as demais atividades, como o leilão, e a "cadeiapúblicà' que, segundo os irmãos Pereira, organizadores do evento, eram as

maiores atrações da Festa:

"No Leilão quando sentíamos certo desânimo, o morador provoca-va os visitantes com lances fortes até que o leiloeiro recebesse umsinal para arrematar a prenda no lance do visitante. Na cadeia pú-blica o preso não podia pagar fiança com seu próprio dinheiro. Issodava margem a uma enorme correria atrás de uma pessoa que pu-desse proceder a 'solturà do preso num clima fraterno e alegre"46.

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A Festa entrou para o calendário da Secretaria de Turismo do Estado deSão Paulo, a partir de 1972, aumentando ainda mais o prestígio do evento- considerado um dos maiores da região. A participação da Sociedade Ami-

gos de Eldorado foi significativa nesse processo, tendo em vista que a partirde 1968 tornou-se a principal responsável pela divulgação da Festa.

Conforme a publicação do Departamento de Cultura, em meados dosanos 70 a Festa recebia ampla cobertura da imprensa que destacava suastradições e seus contrastes - paradoxalmente surgiam os primeiros sinais de

alerta da poluição da represa.Em 1978, os participantes da Festa surpreenderam-se com alguns mani-

festantes encapuçados, com cartazes à mão denunciando a morte da Repre-sa Billings. Era o último ano da Festa que perdia seu prestígio e se tornavaum contracenso, evidenciado pela diminuição acentuada do público.

Conclusão

229

A nossa pesquisa procurou compreender a multiplicidade de práticasculturais empreendidas na cidade de Diadema, desde sua emancipação.Pretendemos, deste modo, construir um trajeto, historicamente dimensio-nado, das relações entre os produtores culturais e o poder público. Nestetrajeto, fizemos escolhas que nos pareceram relevantes das diversas articula-ções entre o local e o nacional, o urbano e o rural e dos diferentes interessesdas classes sociais.

O Teatro-Escola, nos anos 70, e as experiências mais contemporâneas

pretendiam projetaram a cidade no circuito paulistano das artes cênicas e,ao mesmo tempo, permitiram o contato com a dramaturgia clássica. OMovimento Hip Hop, sintonizado com as periferias das metrópoles mun-diais, indicou-nos a dupla exclusão, étnica e social. A Cia. de Danças e otrabalho das Oficinas nos Centros Culturais procuraram democratizar aexperiência com as danças contemporâneas, através da vivência corporal decrianças e jovens. Um dos resultados mais surpreendentes das Oficinas le-vou a formação do grupo Mulheres de Eldorado que extrapolou o progra-ma da Secretaria de Cultura e trouxe novos significados para a vida de ope-rárias, donas de casa e empregadas domésticas que integram o grupo. Final-mente, a Festa de Nossa Senhora dos Navegantes revelou-nos a complexa

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articulação entre os interesses dos movimentos ambientalistas e os anseiosda população e da Igreja Católica.

Entendemos, portanto, que as práticas culturais informam aspectos sig-nificativos da história social da cidade. Os diversos conflitos, a presença detempos históricos simultâneos, os diferentes agentes culturais envolvidos, aação sistemática da administração municipal configuram um quadro instá-vel da formação política e cultural de Diadema.

A análise destas práticas revelou também a difícil tarefa de "fazer a histó-rià' no subúrbio. Carente, precária e orbitando em torno da metrópole,Diadema tem constituído um espaço próprio para suas manifestações artís-

ticas, procurando concretizar, em sua agenda política, a experiência da Ci-dadania Cultural. Neste sentido, a busca de autonomia e a legitimidadesocial das ações culturais tornam-se fundamentais para incorporá-Ias aocotidiano dos moradores da cidade.

Notas

I Diadema. Cada dia melhor. Revista Trimestral da Prefeitura Municipal de

Diadema. 1(3): 24-26, dez 1996.2 Ver a publicação da SECEL, PMD: Educação Cultura Esporte e Lazer:

investir em gente é que faz a diferença. 1996, pp. 21-39.3 Idem, p. 25.

4 Ibidem, p. 25.

5 Idem, Ibidem, p. 27.

6 Movimento Negro Unificado - MNU, Movimento Negro RaÍzes de Áfri-

ca, Quilombo Regional do ABC - Agentes de Pastoral Negros, Federação

de Umbanda e Cultos Afro-Brasileiros de Diadema.7 Movimento em Defesa da Vida - Diadema, Movimento de Proteção e

Recuperação da Fauna e Flora - Diadema, Grupo Ecológico Consciência -Santo André.8 Ver Educação Cultura Esporte e Laze1:.., p.32. A lista das escolas de Sam-

ba e Blocos Carnavalescos se encontra nos Anexos, ao final deste relatório.9 SILVA, Patricia Adriana da. Descentralização da Política Cultural através

de Centros Culturais de Bairro. Diadema, Departamento de Cultura, 1996.

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mimeo. p. 3. Texto apresentado na comunicação no I Congresso Nacional

de Educação, em julho de 1996, na cidade de Belo Horizonte.

10 Os dados do movimento Hip Hop de Diadema foram obtidos em con-

versas com participantes do Departamento de Cultura e do Movimento.

11 Satie, coreógrafa e bailarina com formação acadêmica em balé clássico e

contemporâneo, trabalhou no Balé de São Paulo - primeiro como aluna e

posteriormente como coreógrafa - e em companhias européias, onde esteve

a serviço do balé de Genebra por oito anos. Em 1999, ela retomou a dire-

ção do Balé de São Paulo.

12 Entrevista realizada em 07 de outubro de 1997, no Centro Cultural

Diadema.

13 CIA. de danças de Diadema recebe Prêmio Estímulo. Jornal da Cidade.

Publicação da Prefeitura de Diadema. 07(60): 12,8-21 abr 1996.

14 Este trabalho havia sido realizado por Borelli na Favela Monte Azul, em

1993, em São Paulo, com o patrocínio do Instituto Goethe.

15 A construção do cenário e a confecção dos figurinos estiveram a cargo dos

alunos da Escola Profissionalizante Florestan Fernandes.

1.6 Ver o folderde apresentação do espetáculo "Fábrica Coreográfica". Diadema,

Departamento de cultura - Prefeitura do Município de Diadema, 1997.

]7 Entrevista realizada em 08 de novembro de 1997, no Centro Cultural

Diadema. Suzana embarcou, em agosto de 1999, para Amsterdã, Holanda,

em busca de aperfeiçoamento profissional.

18 Entrevista realizada em 08 de novembro de 1997, no Centro Cultural

Diadema.

1.9 Dos quais R$lmil foram doados pelo proprietário de uma das empresas

onde uma das integrantes é funcionária.

20 No dia da votação, o grupo esteve presente no plenário da Câmara, pres-

sionando, com sucesso, os vereadores.

21 Ver o artigo Mulheres de Eldorado realizam sonho, Diadema Jornal.

Suplemento Especial, Diadema, 8 dez 1997, p.47.

22 Entrevista realizada em 08 de novembro de 1997, no Centro Cultural

Diadema.

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23 As citações estão nos artigos de Sérgio Ouran, A dança que seus males

espanta, Diário do Grande ABC, cad. Cultura e lazer, 24 dez 1996 e Kebalámostra como é conviver com a violência, Diário do Grande ABc, cad.

Oiarinho, 18 maio 199624 Texto de Rose Maria de Souza, Brasilidades, Oiadema, Grupo de Mulhe-

res de Eldorado, 1997, mimeo. p.Ol25 Entrevista realizada em 16 de novembro, no bairro do Eldorado.

26 Entrevista realizada em 08 de novembro, no Centro Cultural Oiadema.

27 Entrevista realizada em 08 de novembro, no Centro Cultural Oiadema.

28 Entrevista realizada em 16 de novembro, no bairro do Eldorado.

29 Ver o artigo Cidade terá oficina pra jovens atores. Jornal da Cidade.

Publicação da Prefeitura de Oiadema. 06(43): 06, 1-15 ago 1995.30 Há uma turma avançada que é o Grupo de Jovens Atores.

31 Portaria n° 210 de 06 de abril de 1973.

32 Ver o artigo Um Centro de Arte e Cultura para Oiadema, Diadema Jor-

nal, 03 ju11970.33 Trechos citados do artigo de Lêda Sylvia Mendes Um Teatro para Oiadema,

Diadema Jornal, 26 jun 1970, p. 02.34 Leda Sylvia Mendes, op. cito

35 Ver o artigo Teatro em Oiadema em franca atividade, Diadema Jornal

ago 1973.36 Ver o artigo assinado por Waldemar 5.5., Oiadema se prepara para o 11

Festival de Teatro Amador, Folha Metropolitana, nov 1974.

37 Idem, ibidem.

38 Ver a tese de Elmir de Almeida, op. cit., p.139.

39 Atualmente ele é assessor das atividades teatrais em Oiadema, tanto a

difusão dos eventos, quanto as oficinas e cursos de formação e tornou-sefuncionário da Prefeitura em 1978, para trabalhar com teatro.

40 Entrevista a Alberto Pereira Chagas, em 08 de outubro de 1997, no De-

partamento de Cultura em Oiadema.41 Os finalistas foram premiados com imagens da Santa.

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42 Ver o artigo de Maria Angélica Sales, Festa dos Navegantes deve reunir 5 mil

hoje no Eldorado, Diário do Grande ABC, cad. Cultura e Lazer, 02 fev 1997.

43 Lei Estadual no898/75. O texto definia normas para ocupação e subme-

tia a fiscalização dos lotes a Emplasa e a Cetesb.44 Ver a publicação Eldorado. Departamento de Educação, Cultura e Es-

portes; Serviço de Biblioteca e Documentação. Diadema: Prefeitura de

Diadema, 1997, p.28.45 Idem, ibidem, p. 15.

46 Depoimento registrado pelo Centro de Memória e transcrito em Depar-

tamento de Educação, Cultura e Esportes, op. cit., p. 15.

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