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I adenda electrónica adenda electrónica N.º 13 | Julho 2005 [http://almadan.cidadevirtual.pt] SUMÁRIO s adenda electrónica I Sumário II Editorial | Jorge Raposo Arqueologia III Riba-Rio: um povoado calcolítico da planície do médio Tejo Júlio Manuel Pereira IV Os Pesos de Pedra Com Entalhes: possíveis vestígios pré-históricos da actividade da pesca na região de Constância Júlio Manuel Pereira V Intervenção Arqueológica no “Mercado Velho” de Palmela: primeiros resultados António Rafael Carvalho Opinião VI Sobre a Cristianização de um Forum Adriaan De Man Património VII Património e Identidade num Contexto de Glocalização Marta Anico e Elsa Peralta VIII A Identificação do Forte Português em Quíloa ou, como uma escavação arqueológica pode proporcionar resultados opostos às conclusões do seu autor João Lizardo IX Castelo de Monforte de Rio Livre João Mário Martins da Fonte e Ismael Basto Cardoso

Maqueta 13 ADENDALizardo - fortalezas.orgfortalezas.org/midias/arquivos/2639.pdf · al-madan IIª Série, n.º 13, Julho 2005 adenda electrónica Propriedade Centro de Arqueologia

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I adendaelectrónica

adendaelectrónicaN . º 1 3 | J u l h o 2 0 0 5

[http://almadan.cidadevirtual.pt]

S U M Á R I O sadenda electrónica

I Sumário

II Editorial | Jorge Raposo

Arqueologia

III Riba-Rio: um povoado calcolítico daplanície do médio TejoJúlio Manuel Pereira

IV Os Pesos de Pedra Com Entalhes:possíveis vestígios pré-históricos daactividade da pesca na região deConstânciaJúlio Manuel Pereira

V Intervenção Arqueológica no“Mercado Velho” de Palmela:primeiros resultadosAntónio Rafael Carvalho

Opinião

VI Sobre a Cristianização de um ForumAdriaan De Man

Património

VII Património e Identidade num Contexto de GlocalizaçãoMarta Anico e Elsa Peralta

VIII A Identificação do Forte Português em Quíloaou, como uma escavação arqueológicapode proporcionar resultados opostos às conclusões do seu autorJoão Lizardo

IX Castelo de Monforte de Rio LivreJoão Mário Martins da Fonte e Ismael Basto Cardoso

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al-madan IIª Série, n.º 13, Julho 2005

adenda electrónicaPropriedadeCentro de Arqueologia de AlmadaApartado 603 Pragal2801-602 Almada PORTUGAL

Tel. / Fax 212 766 975

E-mail [email protected]

Registo de imprensa 108998

Http://almadan.cidadevirtual.pt

ISSN 0871-066X

Depósito Legal 92457/95

Director Jorge Raposo ([email protected])

Conselho Científico Amílcar Guerra, António Nabais, Luís Raposo, Carlos Marques da Silva e Carlos Tavares da Silva

Redacção Rui Eduardo Botas, Ana Luísa Duarte, Elisabete Gonçalves e Francisco Silva

Colunistas Mário Varela Gomes, Amílcar Guerra, VíctorMestre, Luís Raposo, António M. Silva e Carlos M. da Silva

Colaboram na edição em papel Mila Abreu, Jorge deAlarcão, Mário Almeida, M. C. André, Nathalie Antunes--Ferreira, Marta Anico, Nuno Bicho, Jean-Yves Blot, JacintaBugalhão, João L. Cardoso, António Rafael Carvalho, AntónioSá Coixão, Miguel Correia, Luís Miguel Costa, Eugénia Cunha,A. Dias Diogo, Ana Luísa Duarte, José d’Encarnação, AlexandraFigueiredo, João Fonte, Patrícia Freire, Mário Varela Gomes,Susana Gómez Martínez, Gisela Gonçalves, Jorge AndréGuedes, Amílcar Guerra, Natália Jorge, Vítor O. Jorge, VirgílioLopes, A. Celso Mangucci, Carlos Alberto Mendes, VíctorMestre, Paulo Morais, João Muralha, Leonor Pereira, JoãoRaposo, Jorge Raposo, Luís Raposo, Ana Ribeiro, Jorge Russo,Ana Luísa Santos, António Manuel Silva, Carlos Marques daSilva, Maria de Fátima Silva, A. Monge Soares, Ana M. Vale,António C. Valera, Rui Venâncio, Alexandra Vieira, RaquelVilaça e todos os que aderiram ao Directório de Empresas eProfissionais de Arqueologia & Património

Colaboram na adenda electrónica Marta Anico, IsmaelCardoso, António Rafael Carvalho, Adriaan De Man, JoãoMartins da Fonte, João Lizardo, Elsa Peralta, Júlio Manuel Pereira

Publicidade Patrícia Freire

Apoio administrativo Palmira Lourenço

Resumos Jorge Raposo (português), Luisa Pinho (inglês) e Maria Isabel dos Santos (francês)

Modelo gráfico Vera Almeida e Jorge Raposo

Paginação electrónica Jorge Raposo

Tratamento de imagem Jorge Raposo e Cézer Santos

Ilustração Jorge Raposo

Revisão Ana Luísa Duarte, Maria Graziela Duarte, José CarlosHenrique e Fernanda Lourenço

Distribuição da edição em papel CAA

Distribuição da adenda electrónica distribuição gratuitaatravés de http://almadan.cidadevirtual.pt

Periodicidade Anual

Apoios Fundação Calouste Gulbenkian, Câmara Municipal de Almada, Câmara Municipal do Seixal, Instituto Português da Juventude

N os últimos anos, desenvolveu-se em Portugal uma diversificadaárea de prestação de serviços em Arqueologia, envolvendo umnúmero crescente de empresas e profissionais liberais que acorrem

às necessidades de pessoas individuais e colectivas, de natureza pública ouprivada.

Contudo, como seria de esperar de mecanismos de oferta e procura poucoconsolidados, esta é uma actividade ainda algo incipiente, em constantemutação, onde não é fácil a quem dela precisa identificar e contactar asalternativas de que dispõe, nem aos que poderão dar resposta a essassolicitações promover as capacidades técnico-científicas que reúnem para assatisfazer.

Se isto é particularmente visível no que respeita aos trabalhos arqueológicos(em particular associados à prevenção ou minimização de impactos de grandesou pequenas obras), não deixa de ocorrer também na área do tratamento econservação preventiva ou curativa de bens móveis e imóveis, onde se regista a mesma “fluidez” de mercado, nem, sequer, quando falamos de intervençõesno Património arquitectónico, embora aqui em menor grau, por se tratar, na maioria dos casos, de empresas já estabilizadas.

Neste contexto, interessava reunir a informação dispersa por várias fontes eproceder à sua actualização e validação junto dos próprios, de modo a produziruma primeira versão de um Directório de Empresas e Profissionais deArqueologia & Património, que constituísse uma ferramenta de trabalho útil eeficaz.

O resultado é o que se apresenta no dossiê especial deste número (ediçãoem papel), que inclui perto de uma centena de empresas e profissionais e cobrepraticamente todo o tipo de intervenções de âmbito patrimonial. Naturalmente,não estará aí representado o universo total deste tipo de prestadores de serviçosno nosso país, uma vez que alguns não terão sido inventariados na pesquisa queesteve na base do inquérito promovido pela Al-Madan, e outros não se sentirammotivados para lhe responder, ou não o fizeram em tempo útil. Mas é umdocumento que, doravante, cremos de difícil dispensa.

Com este volume, para além da diversidade temática dos artigos,crónicas, textos de opinião, notas de actualidade, noticiário diverso e

outras rubricas fixas a que já habituou os seus leitores, Al-Madan passa aintegrar uma Adenda Electrónica (em http://almadan.cidadevirtual.pt), onde se reúnem conteúdos que não foi possível contemplar na tradicionaledição em papel. Obedecendo aos mesmos objectivos e tratamento editorial,garante-se assim o acesso online, em formato PDF, a informação científica ououtra que perderia parte da sua pertinência e actualidade.

Nas páginas impressas ou pelo ciberespaço, o leitor certamente encontrarámomentos de leitura com prazer e de reflexão estimulante.

Jorge Raposo

f i c h a t é c n i c a

Capa Jorge Raposo

Fase de escavação na olaria romana doPorto dos Cacos (Alcochete)

Fotografia © Centro de Arqueologia de Almada

E D I T O R I A L e

Apoio do Programa Operacional Ciência, Tecnologia, Inovação do Quadro Comunitário de Apoio III

adenda electrónica

II al-madan adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (13) | Julho 2005

C E N T R O D E A R Q U E O L O G I A D E A L M A D Aadendaelectrónica

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A Identificação do Forte Português em Quíloaou, como uma escavação arqueológica pode proporcionar resultados opostos às conclusões do seu autor

por João Lizardo

Advogado. Estudioso amador de vestígios da Expansão Portuguesa.

r e s u m o

Considerações acerca da forta-leza da Ilha de Quíloa (na costaoriental de África, a Sul de Dar--es-Salam, na actual Tanzânia),construída pelos portugueses noinício do século XVI e cujas ruínasforam incluídas pela UNESCO nalista do "Património Mundial".Reinterpretando os dados re-sultantes de escavação realiza-da no início dos anos 1960 peloarqueólogo britânico NevilleChittick, o autor contesta queas actuais ruínas correspondamà fortaleza portuguesa, propon-do antes uma cronologia do sé-culo XVIII.

p a l a v r a s c h a v e

Idade Moderna; África; expan-são portuguesa; fortalezas.

a b s t r a c t

Remarks on the fortress of theIsland of Quíloa (off the coastof East Africa, south of Dar-es--Salam, in present day Tanzania),built by the Portuguese at thebeginning of the 16th century andwhose ruins were included inUNESCO’s “World Heritage” list.By reinterpreting data resultingfrom excavations made at thebeginning of the 1960s by Britisharchaeologist Neville Chittick,the author disputes that the ex-isting ruins really belong to thePortuguese fortress and suggestsa 18th century chronology instead.

k e y w o r d s

Modern Age; Africa; Portugueseexpansion; fortresses.

r é s u m é

Considérations autour de la for-teresse de l’Île de Quíloa (sur lacôte orientale de l’Afrique, auSud de Dar-es-Salam, dans l’actu-elle Tanzanie), édifiée par lesportugais au début du XVIème

siècle et dont les ruines ont étéintégrées par l’UNESCO dans laliste du “Patrimoine Mondial”.Réinterprétant les données ré-sultant d’une fouille réalisée audébut des années 60 par l’ar-chéologue britannique NevilleChittick, l’auteur conteste lefait que les actuelles ruines cor-respondent à la forteresse por-tugaise, proposant plutôt unechronologie du XVIIIème siècle.

m o t s c l é s

Période Moderne; Afrique; ex-pansion portugaise; forteresses.

No entanto, a realidade não é tão simples comoa imagem que surge aos nossos olhos, existindomúltiplos obstáculos para a pretendida associação da“Gereza” com a obra que os portugueses edificaramem Quíloa, tornando-se difícil, para não dizer impos-sível, fazer coincidir tal fortaleza com as descriçõesque nos foram deixadas pelos relatos coetâneos daconstrução que foi levada a cabo pelo primeiro Vice--Rei da Índia, D. Francisco de Almeida.

VIII.1

Na ilha havia um castelo...

A fortaleza de Quíloa foi a primeira obrade relevo a ser construída pelos portu-gueses para além das costas do Oceano

Atlântico e, embora o seu período de utilização ti-vesse sido muito curto (1505-1512), esta caracterís-tica, só por si, torná-la-ia merecedora de especialatenção. Mas, além disso, a fama que aureolava o“reino” onde foi implantada, contribuiu para umaimagem que veio nos nossos dias a ser reforçadacom a classificação, em 1981, pela UNESCO, do con-junto das suas ruínas como “Património Mundial” 1.

Para quem tenha presente esta mítica ideia, aprimeira visão que se percepciona da pequena ilhaonde se situava a cidade de Quíloa é a de um caste-lo à beira-mar, apresentando um estilo de construçãoque satisfaz plenamente o nosso imaginário quantoao que julgamos ser um típico “castelo medieval”.

Face a esta imagem, não será de admirar que afortificação, localmente designada como “Gereza” 2,seja associada à primitiva obra dos portugueses e,como tal, a Fundação Calouste Gulbenkian tivesseprojectado e propagandeado que iria tomar medidaspara a sua recuperação 3 e, que, pela mesma razão, adita “Gereza” tenha sido encomiasticamente referidapor personalidades tão diversas como Miguel Portasou Maria João Avillez 4.

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1 A classificação da UNESCO abrange as ruínas quer da “cidade” de Quíloa,situada na pequena ilha de Kilwa Kisiwani, quer as ruínas da vizinha ilha deSongo Mnara, ambas situadas na costa da Tanzânia, a Sul de Dar-es-Salam.2 O termo “gereza”, que actualmente significa “prisão” em suaíli, surge comotendo óbvia origem portuguesa, embora pareça mais discutível que derive dapalavra “igreja”, como é sustentado na zona − p. ex. SUTTON, John (1992) −A Thousand Years of East Africa. Nairobi: The British Institute in Eastern Africa, p. 88.3 A respeito dos planos da FCG, vide, p. ex., artigos na revista Visãode 2002-03-21, no Jornal de Letras de 2001-05-02, ou ainda a exposiçãoitinerante denominada “A Fundação Calouste Gulbenkian e o PatrimónioHistórico Português no Estrangeiro”, que esteve patente na Academia deCiências até 2004-06-20.4 Vide AVILLEZ, Maria João − Portugal. As Sete Partidas para o Mundo. Veja-seainda recente notícia no jornal Público de 2004-07-08, dando conta dadisponibilidade do IPPAR e da representação portuguesa na UNESCO paracolaborarem na conservação da “Gereza”.

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Segundo este, conforme carta então enviada parao reino, tratar-se-ia de “huuma fortaleza que se po-desse ser compraria por anos de minha vida, vee laVossa alteza porque he tam forte que se esperaranela el rei de França e tem apousemtamento de mui-to boas casas pera duas tamta gente e desenbarquonos batees as pipas por huuma esquada de seis de-graaos demtro no baluarte que he o mais forte dacasa” 5. Todos os cronistas corroboram estas afir-mações, sendo de realçar que a utilização do termo“baluarte” remeteria para uma construção de grandemodernidade, que traduziria um conhecimento douso da artilharia e demais técnicas da pirobalísticacoincidente com o papel vanguardista então assumi-do por Portugal em matéria bélica.

Além disso, segundo outras descrições, “… quehavia de ter a fortaleza em quadra, que per quadratinha sessenta braças, e em hum canto pera a bandada cidade huma torre quadrada, sobradada com o an-dar do muro […] toda a obra em roda se fazia comoutra torre quadrada per a banda da baya, em quea terra fazia uma ponta, e na torre a porta pera omar, e nas casas dentro mandou alevantar a torre demenagem, de dous sobrados fortes, com janelas pe-ra todas as partes, de que podia jogar artilharia” 6.Sabe-se ainda que, em Setembro de 1506, uma equi-pa de pedreiros portugueses e quatro pedreiros “mou-ros”, “acabaram de cerrar hos muros de dentro” e a“torre de sobola porta do baluarte”, detendo a for-taleza em Fevereiro de 1507 a impressionante quan-tidade de 73 armas de fogo 7, o que corresponde aum entusiasmo pela sua utilização que já era bempatente desde a renovação do castelo de Vila da Fei-ra.

Para o território nacional, comoexemplo de uma fortificação contempo-rânea de Quíloa, poder-se-ia escolher pa-ra comparação uma estrutura modesta ealheia à iniciativa régia, como é o caso doCastelo de Barbacena, aonde toda a cons-trução foi orientada para o uso da artilha-ria, mesmo ao nível do piso térreo, deforma a proporcionar um tiro flanqueanteque “batesse” toda a frente da muralha,multiplicando-se as aberturas com esseobjectivo, nomeadamente nas torres, queeram ocas até à base.

Que não era o que parecia…

Porém, e ao contrário das descriçõescitadas, o edifício a que nos vimos referin-do traduz-se num quadrado de modestasdimensões (20 m x 20 m), com duas torresnos vértices opostos, de bases maciças esem aberturas para o tiro senão nos pisossuperiores, não mostrando quaisquer tra-

ços que possam corresponder ao que seria de esperarde uma fortificação evoluída do início do séc. XVI.

É certo que este obstáculo seria ultrapassável secolocássemos a hipótese de que as notícias então en-viadas para o reino, por serem de difícil comprova-ção directa, teriam uma forte componente de exage-ro, para fins de auto-promoção dos seus autores, e,nesse caso, seria natural que a realidade tivesse fica-do aquém das descrições acima citadas. Mas, exis-tem vários factores que, para este caso, tornam pou-co credível uma tal teoria.

Deve fazer-se notar que a fortaleza actual estáinstalada de uma forma demasiado avançada relati-vamente à linha da costa, o que originou a forte ero-são e rápido desaparecimento da sua fachada Norte,sem que esteja em posição de controlar eficazmenteo acesso de navios à Ilha, mais parecendo que estalocalização tinha em vista impedir o seu acesso apartir do continente, como teria sucedido com a in-vasão dos “zimbas” no séc. XVI 8.

Além disso, esta escolha da praia leva a que aconstrução fique num plano inferior relativamente àsfalésias que começam a elevar-se a Leste, colocan-do-a a um nível mais baixo do que o da cidade, oque, sob o ponto de vista militar, a tornaria pouco ounada aconselhável para dominar a povoação indíge-na, assim como também não dominaria o porto.

Poder-se-ia hipotetizar que o seu rápido aban-dono se tornaria, nesse caso, explicável por esta erra-da escolha do local aonde se situava, mas, além domais, e tanto quanto se saiba, não se afigura que osportugueses fossem especialmente descuidados noque diz respeito à implantação das suas constru-ções…

VIII.2

5 Carta de D. Francisco deAlmeida citada por Pedro Dias, em História da Arte Portuguesa noMundo. O espaço do Índico, pág. 356.6 Transcrição de PEREIRA, Mário(1994) − “Da Torre ao Baluarte”.In A Arquitectura Militar na ExpansãoPortuguesa. Lisboa: CNCDP, p. 41.7 Transcrição de CALADO, Rafael(1989) − História das FortificaçõesPortuguesas no Mundo. Edições Alfa,p. 112.8 Nos finais do século XVI, os“zimbas” invadiram a Ilha atravésde uma passagem a vau que a ligavaao continente e teriam então“comido” boa parte da população,sendo certo que, descontados osexageros, se tratou de um eventoprofundamente traumatizante, quepoderá explicar eventuais cautelasem matéria de defesa. Vide SANTOS,Fr. João (1999) − Etiópia Oriental eVária História de Cousas Notáveis doOriente. Lisboa: CNCDP, p. 235 [ed. original 1608].

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C E N T R O D E A R Q U E O L O G I A D E A L M A D A

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Figura 1

A fortaleza de Quíloa, usualmentedesignada por “Gereza”. Fotografiaaérea do Museu de Dar-Es-Salam.

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Divagando por outras bandas

Para Neville Chittick, e face às investigaçõesque realizou, não existia qualquer margem para dú-vidas quanto à origem “árabe” da “Gereza”, tratan-do-se de uma obra dos inícios do séc. XIX realizadapor um representante do sultão de Mascate 10.

Poderá parecer estranho que o aspecto “medie-val” inicialmente invocado surja numa construçãolevada a cabo no séc. XIX, mas as características dasfortificações da Península Arábica que tinham sido“exportadas” para a Costa Oriental de África corres-pondem inteiramente a essa aparência.

A “Gereza” é contemporânea das grandes obrasna fortaleza de Zanzibar, sendo ambas da responsa-bilidade de um “eunuco” que agia em nome do sul-tão de Mascate 11, e, citando uma opinião alheia, “osfortes de Quíloa e Zanzibar são tão patentementesemelhantes no conjunto da sua construção, espe-cialmente nas suas gordas torres, em feitio de barril,e nas suas passagens muradas, que, em si próprios,já sugerem um arquitecto comum” 12.

A arquitectura militar de origem árabe fez surgirnos primeiros anos do séc. XIX uma série de forta-lezas nesta costa, todas de idênticas características,em Siyu 13, Lamu, Zanzibar e Quíloa.

VIII.3

Como se voltará a sustentar, existem muitas ou-tras objecções quanto à ligação da “Gereza” com oforte português que é vulgarmente proposta, mas,entretanto, dever-se-á trazer à colação um estudo so-bre Quíloa que resultou de aturadas escavações ar-queológicas aí levadas a cabo. O autor optou por si-tuar a obra portuguesa neste local, e, aparentemente,a respeitabilidade da sua opinião deveria afastar to-das as dúvidas que se pudessem colocar.

Uma escavação exemplar

Os países da África Oriental têm conhecido umnotável conjunto de arqueólogos, entre os quais so-bressai mediaticamente a família Leackey, dotadosde estreita ligação com a época áurea da arqueologiabritânica, que acompanhou o evoluir dos trabalhosna zona, nomeadamente quanto a Quíloa, observadapor Mortimer Wheeler em 1955.

Nesse grupo destacou-se Neville Chittick que,no início dos anos 1960, dedicou a sua actividade àescavação das ruínas da cidade a que os vimos re-ferindo, aí praticando uma arqueologia que, pelascondições de vida locais, se aproximava da imagemmais aventurosa desta Ciência, mas que, ao contrárioda visão romântica, nada tinha a ver com a ambiçãode achar “tesouros”, mas sim com a minuciosa reco-lha e registo de todos os indícios que pudessem con-tribuir para o conhecimento do passado.

Este trabalho de Neville Chittick foi condensadoem dois grossos volumes 9, que permitem adoptarvários tipos de análises no que toca à localização dafortaleza que tinha sido construída às ordens deD. Francisco de Almeida, ultrapassando até a pro-posta do autor desse livro.

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9 CHITTICK, Neville (1974) − Kilwa:an islamic trading city on East Africancoast. Nairobi: The British Institutein Eastern Africa.10 Uma inscrição árabe sobre aporta de entrada da fortalezareferiria a data de 2 de Abril de1807. STRANDES, Justus (1899) −The Portuguese Period in East Africa.4ª edição em língua inglesa.Nairobi, p. 58 [1899, 1ª ediçãoalemã]. 11 Pouco tempo depois o sultãoabandonou Mascate para se instalarem Zanzibar, que passou aconstituir a capital dos seusdomínios, os quais, para além doactual Oman, abrangiam a costaafricana desde o Rovuma até àactual fronteira do Quénia com aSomália.12 STRANDES, ob. cit.: 58.13 A cidade de Siyu fica situada nacosta ocidental da Ilha de Pate, noarquipélago de Lamu, no Norte doQuénia.

Figuras 2 e 3

Aspecto de um dos volumes da obra de NevilleChittick e localização da “Gereza” e do conjuntofortificado de Makutani, in SUTTON, John (2000) −Kilwa: a history of the ancient swahili town...

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Tal não significa que aí não existissem tambémconstruções doutro tipo, como o Forte de Jesus e res-pectivas fortificações de apoio, de origem portugue-sa, mas utilizados então pelos naturais de Mombaça.Ou até uma ou outra bateria costeira para algumas pe-ças de artilharia, de origem indefinida e datação im-precisa, embora, provavelmente, fosse desse tipo aprimeira fortificação de Zanzibar, realizada em 1700,logo após a saída dos portugueses 14. Mas, no seuconjunto, estas obras são pouco significativas.

Tradicionalmente, as cidades suaíli limitavam-sea estar dotadas de muros de demarcação do espaço ur-bano, de finalidades mais simbólicas do que defensi-vas 15, com excepção de Pujini, na ilha de Pemba, queapresenta uma autêntica muralha, no sentido que asso-ciamos aos castelos medievais, mas que poderá tersido construída sob a orientação de portugueses 16, e dacidade de Pate que, nos primeiros anos do séc. XVIII,travou duros combates com as nossas tropas, o quelevou ao reforço do muro inicial.

Surgem ainda em vários locais (Gedi, p. ex.) mu-ros com orifícios especialmente orientados para o ti-ro de “espingarda”, mas, de qualquer forma, trata-sede obras com fraca expressão, que permitiam a totaldestruição da cidade perante ataques de meros “ban-doleiros”, como sucedeu com Kua, na ilha de Juane--Mafia, por volta de 1818.

Entretanto, na Península Arábica, desde os finaisdo séc. XVIII e até meados do séc. XX 17, multipli-cava-se a construção de estruturas fortificadas, compredomínio de torres redondas excepcionalmente bar-rigudas (em feitio de “barril”, como as denominou o

autor atrás citado), com patente cariz arcaizante, emque eram negligenciados os materiais construtivos eonde o aspecto aparatoso sobrelevava da eficácia mi-litar.

Se compararmos, por exemplo, a fortaleza de AlRiffa e a de Arad, ambas no Bahrein, sendo a primei-ra de 1812 e a segunda do séc. XVI 18, poderemosfacilmente constatar no primeiro caso, um claro des-interesse pelos aspectos militares e pela adequaçãoao uso da artilharia, em favor da imponência cons-trutiva, traduzindo um vincado retrocesso em maté-ria militar face ao segundo exemplo, que era contem-porâneo do forte português dessa Ilha.

Este tipo de fortalezas, como já se disse, foi “trans-plantado” para a costa africana, aonde estava essencial-mente dotada de finalidades simbólicas (aliás, não seconhecem grandes combates em que tivessem tidoutilização) e, portanto, as mesmas não devem serconfundidas com a arquitectura castrense europeia.

Regressando a Quíloa...

Neville Chittick estava bem consciente desta di-ferenciação, não tendo deixado margem para dúvi-das quanto ao carácter árabe da “Gereza”, mas aca-bou por aceitar que a mesma poderia ter resultado doaproveitamento de uma hipotética construção por-tuguesa, mais por exclusão de partes do que devidoa qualquer outro fundamento, limitando-se a utilizardois argumentos a favor dessa ideia, que, no entanto,são facilmente rebatíveis.

VIII.4

14 A residência fortificada deChake-Chake, na Ilha de Pemba, a norte de Zanzibar, talvez aindado séc. XVIII, apresentacaracterísticas diferentes, commenos exuberância de formas doque as fortalezas que foramreferidas no texto, embora sejainquestionável a sua origemislâmica.15 Muitas vezes nem sequerexistia o muro de delimitação doperímetro urbano, como, aliás, era o caso de Quíloa, ao contráriodo que foi sustentado pelos nossoscronistas. Vide, p. ex., SUTTON, John (2000) − Kilwa: a history of the ancient Swahili town, with a guide to the monuments…Nairobi: The British Institute inEastern Africa, p. 20.16 A este respeito, vide “Sinais da Expansão Portuguesa na CostaOriental de África: sécs. XVI eXVII”. Islenha. Funchal: DirecçãoRegional de Assuntos Culturais. 33: 50-63.17 Refira-se, por exemplo, que o forte da cidade de Dubai, no essencial, foi construído porvolta de 1900, e, no entanto,apresenta o aspecto medieval quese apontou para a “Gereza”. A respeito desta matéria, AL-ROSTOMANI, Ahmed Hassan(1993?) − Gulf and it’s ArchitecturalHeritage. Dubai.

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C E N T R O D E A R Q U E O L O G I A D E A L M A D A

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Figuras 4 e 5

Fortalezas de Zanzibar (à esquerda, finais do séc. XVIII) e de Lamu (à direita, primeira década do séc. XIX).

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Esta fervilhante actividade exigia óbvias medi-das de segurança e instalações alfandegárias apro-priadas, o que torna facilmente explicável que se ti-vesse verificado o afastamento do sultão local e oaparecimento da “Gereza”, em substituição das ante-riores instalações francesas.

Um detalhado relatório de escavação

Chittick apoiou também a sua opção na desco-berta de ruínas subjacentes à “Gereza”, pertencentesa construções habitacionais que datou do séc. XV,porque essa descoberta coincidia com as referênciasdos cronistas portugueses que afirmavam que D. Fran-cisco de Almeida tinha mandado arrasar algumascasas para proceder à construção da fortaleza, argu-mento cuja relevância mais adiante se examinará.

Mas, neste aspecto, não deixa de ser útil atentarem notícia quanto a uma primeira e improvisadafortificação “árabe”, que teria sido realizada no iní-cio do séc. XVIII e para a qual também teria sidonecessária a demolição de casas existentes na pra-ia 23.

De qualquer forma, independentemente do queatrás se referiu, sucede que todos os demais resulta-dos das escavações na “Gereza” são demolidora-mente desfavoráveis para a tese que sustenta a suaorigem portuguesa.

Em Quíloa, durante a investigação arqueológica,foram achadas oito moedas nacionais, de D. Afonso Va D. Manuel 24, mas nenhuma se encontrava no localonde, supostamente, os portugueses se teriam insta-lado e vivido durante perto de sete anos.

E também não foi detectado qualquer vestígio decerâmica de origem portuguesa 25, o que resultariadeveras estranho se se tratasse de uma construçãoaonde os portugueses tivessem mantido uma guar-nição permanente.

Mas, sobretudo, Chittick não conseguiu detectarnenhum pormenor construtivo que se pudesse dife-renciar da obra “árabe”, sendo pouco crível que umarqueólogo altamente capacitado, que efectuava umrigoroso trabalho de escavação, não chegasse a obser-var qualquer diferença entre duas construções comorigens tão diferentes e a que se sobreporiam trezen-tos anos de separação, a não ser que, na realidade,essa sobreposição fosse totalmente inexistente.

Face à uniformidade construtiva que resulta des-tas observações de Chittick, para que a “Gereza” fos-se atribuível aos portugueses, seria imprescindívelque não tivesse existido senão uma construção quese teria mantido até aos nossos dias, o que contradiztodos os dados históricos.

E é totalmente inverosímil que a obra que hojese observa seja atribuída aos portugueses, não sóporque nos textos nada aponta nesse sentido, mastambém porque a mesma apresenta uma péssima

18 A fortaleza de Arad foiescavada e estudada por ArchibaldG. Walls, autor do livro Arad Fort,Bahrain, Manama, 1987.19 Sobre a tardia implantação do“pinheiro bravo” em Portugal, vide,por ex., SILVA, A. R. Pinto da(1991) − “A Paleoetnobotânica naArqueologia Portuguesa”. Gazetadas Aldeias. Janeiro de 1991, p. 39.Sobre as madeiras utilizadas nasnaus portuguesas, vide FERNANDES,Mário (1998) − “A Carreira daÍndia…”. Al-Madan. II Série, 7: 94.20 CHITTICK, ob. cit., I vol., p. 222.21 M’BOKOLO, Elikia (2003) −África Negra, História e Civilização.Lisboa: Vulgata, p. 307.22 Num exemplo do número de“peças” taxadas na Alfândega deQuíloa a favor do Sultão deZanzibar, no período entre 1862--1867, foram por aí exportados 97 203 escravos. Dados recolhidosin SULIVAN, Captain G. L. (2003) −Dhow Chasing in Zanzibar Waters.2ª ed. Zanzibar, pp. 54, 89, 166,171 ou 224 (1ª ed., Londres,1873). Embora, em meados do séc. XIX, este negócio tivesse sidotransferido para uma novapovoação, Kilwa Kivinje, fundada apouco mais de trinta quilómetros aNorte da Ilha, as suas regrasmantiveram-se inalteráveis.23 STRANDES, ob. cit.: 240 −Em 1710, “In Kilwa… the housebelonging to a local MuslinManabacare (Mwana Bakari) had been turn into a fort”.24 CHITTICK, ob. cit., II vol., pp. 285, 293, 294, 298 e 301.25 Idem, II vol., p. 313.

VIII.5

Ao estudar o edifício, foram detectadas duas ja-nelas numa parede exterior cujos lintéis eram feitosde madeira de pinheiro mediterrânico, provavelmen-te pinus pinaster e, por essa razão, Chittick supôsque essa madeira tivesse sido reaproveitada a partirde alguma nau portuguesa.

No entanto, seria desde logo muito estranho queas naus de uma das primeiras armadas para a Índiapudessem ir prescindindo de bocados da sua estrutu-ra pelo caminho, assim como também seria estranhoque um material facilmente inflamável tivesse sidoutilizado numa zona especialmente exposta aos ata-ques do inimigo. Mas, sobretudo, tudo indica que opinheiro-bravo, ou seja, o pinus pinaster, ainda nãofosse utilizado em Portugal no início do séc. XVI, oque inviabiliza totalmente a suposição de Chittick 19.

Além disso, a análise através do radiocarbonoforneceu para essas madeiras a data de 1775 20, eembora tal datação tivesse sido considerada irrele-vante, porque poderia resultar da contaminação dasamostras que tinham servido de base para essas aná-lises, a mesma provavelmente será correcta e forneceuma explicação que ajuda a compreender as origensdesta fortaleza.

Surgem outros ocupantes na ilha

Com efeito, no último quartel do séc. XVIII,Quíloa constituiu uma importante base francesa parao comércio de escravos e, neste caso, já se torna per-feitamente normal a presença de madeiras de pi-nheiro mediterrânico, em consonância com os dadosfornecidos pelo radiocarbono.

Aliás, em 1776, foi assinado um tratado entre o“negreiro” Jean Vincent Morice e o sultão de Quíloa,permitindo que o francês tivesse uma fortaleza onde“poderia instalar tantos canhões quantos desejassee a sua bandeira” 21. Embora tal não tivesse sidointegralmente concretizado, é de supor que tivesseexistido uma construção nessa época, que seria im-prescindível para o armazenamento e segurança da“mercadoria” que era embarcada nos navios do fran-cês e estaria convenientemente situada na praia,podendo vir a ser reaproveitada posteriormente.

Entretanto, tinha-se verificado um incessantecrescimento do comércio de escravos, centrado emZanzibar, e, por isso, o Sultão de Mascate sentiu anecessidade de se apoderar de Quíloa, que constituíaentão a principal base para o seu fornecimento, pois“Quíloa é o principal porto de embarque […]. Osescravos que chegam a Quíloa vindos do interiorsão frequentemente retidos durante alguns mesescom o duplo objectivo de recuperarem a saúde parase tornarem mais comerciáveis e aprenderem a lín-gua suaíli…”, sendo objecto de rigoroso controlo acobrança dos direitos alfandegários que resultavamda sua exportação 22.

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técnica construtiva, ou, nas palavras do arqueólogo,“this fort is built of rough random rubble, set in arather poor lime mortar” 26, sublinhando Chittickque os vestígios de construções suaílis do séc. XVapresentavam melhor qualidade de construção do queos muros da fortaleza que se lhes sobrepõe.

Por outro lado, quando os portugueses, em 1512,anunciaram que tinham desmantelado a sua edifi-cação, tal implicaria um certo grau de destruição dasmuralhas, que seria facilmente detectável.

No entanto, aquele anúncio deve ser entendidoem termos hábeis, pois, regra geral, tal desmantela-mento limitar-se-ia ao retirar da artilharia e à demo-lição das estruturas superiores, dado que os meios daépoca tornariam inviável que, atendendo à sua espes-sura, se procedesse ao total desmanchar das mura-lhas.

Mas, de qualquer forma, é irrecusável que per-maneceriam vestígios portugueses que seriam vi-síveis, até porque trezentos anos de erosão alterariamforçosamente o aspecto dos muros que restassem eos tornariam distinguíveis da obra “árabe” que se lhessobrepusesse.

Por excessivo gosto pelo uso do contraditório,poder-se-ia colocar a hipótese de que a fortaleza ini-cial tivesse sido totalmente demolida e, seguidamen-te, os seus alicerces fossem destruídos para aprovei-tamento como material de construção mas, aindaassim, seria pouco provável que essa situação esca-passe à observação de N. Chittick, que a detectounoutras construções, sendo frequente a referência a“alicerces roubados” no que diz respeito a várias zo-nas da cidade.

E uma hipotética demolição da fortaleza inicialdeixaria no local, seguramente, uma quantidade deentulho que qualquer arqueólogo minimamente ca-paz não deixaria de detectar aquando da escavaçãoda “Gereza”.

Mas, para além de todos estes óbices, pode ain-da trazer-se à colação um outro obstáculo que, pro-vavelmente, Chittick não teria presente.

É que o mestre-de-obras responsável por Quíloa,Tomás Fernandes, construiu seguidamente as forta-lezas de Socotorá e de Ormuz 27, sendo de supor quenão existiriam grandes alterações no seu estilo detrabalho, atendendo a que, nesse espaço de tempo,esteve entregue a si mesmo, sem fáceis contactoscom a Europa, e, no entanto, não existe a menor se-melhança entre a obra de Ormuz e a “Gereza”, o quetorna mais uma vez altamente improvável qualquerorigem portuguesa para esta última.

Arriscando a formulação de outra hipótese

Nos finais do séc. XIX, a tradição indígena apon-tava uma outra localização para o forte português 28,situando-o em Makutani (ver Fig. 2), aonde foi insta-lado o palácio dos sultões de Quíloa após a partidados portugueses e até ao seu definitivo afastamentodo poder pelos “árabes” de Zanzibar e Mascate, noinício do séc. XIX, e existem algumas razões paraque esta hipótese seja devidamente ponderada.

Começando pela localização, Makutani talvez per-mitisse um melhor controlo do tráfego marítimo 29 edominava estrategicamente a cidade indígena, tal

VIII.6

26 CHITTICK, ob. cit., I vol., p. 213.27 Vide DIAS, Pedro (1998) −História da Arte Portuguesa noMundo. O espaço do Índico. Lisboa:Círculo de Leitores, pp. 356, 377ou 387.28 STRANDES, ob. cit.: 57.29 A predominância de Makutani é sustentada por STRANDES

(ob. cit.: 57) − “[…] indeed dominatethe harbour entrance” −, embora talopinião não coincida com o pontode vista de John SUTTON, in Kilwa: A history…, p. 21.

P A T R I M Ó N I Oo

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C E N T R O D E A R Q U E O L O G I A D E A L M A D A

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Figura 6

A primitiva fortaleza de Ormuz,segundo o desenho de GasparCorreia nas Lendas da Índia. O tracejado corresponde aestruturas que ainda sãodetectáveis, o que permite concluirque o desenho reproduziucorrectamente a construção deTomás Fernandes.

É de supôr que fosse equiparável asua obra em Quíloa.

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formá-lo num émulo das dezenas de “casas de Co-lombo” que se encontram espalhadas pelo Mundo oudo “Hotel Braganza”, aonde um moderno autarcalisboeta pretendeu instalar Eça de Queirós.

Quanto à obra de Neville Chittick em Quíloa, aforma rigorosa como recolheu e divulgou os dadosda sua investigação possibilitam agora que sejamobtidas conclusões diferentes das que formulou masque assentam num trabalho que, por todo o conheci-mento que faculta, se supõe poder ser consideradocomo exemplar.

30 Sobre a fortaleza de Ormuz,vejam-se, “Vestígios daArquitectura Manuelina e SuaPersistência no Golfo Pérsico ePenínsula Arábica” e “Técnicas eGostos Indígenas na ArquitecturaPortuguesa da Época dosDescobrimentos: os casos dasfortalezas de Ormuz e Barém”.Islenha, 25: 92-100 e 31: 145-158.

VIII.7

como veio a ser reconhecido pelos sultões locais,que para aí se transferiram depois da saída dos por-tugueses.

Por outro lado, foi detectado um ceitil de D. João IInessas ruínas e, apesar de não terem sido recolhidosoutros materiais a que fosse atribuível uma origemportuguesa, será necessário sublinhar que esta zonafoi limitadamente escavada por N. Chittick, que sepreocupou sobretudo com os vestígios suaílis doséc. XV.

Por outro lado, sob o palácio de Makutani exis-tem também vestígios de construções anteriores, doséc. XV, e, portanto, o segundo argumento que atrásse referiu relativamente à origem da “Gereza”, tam-bém pode ser aplicado a este local.

Além disso, parte deste palácio inclui aspectosfortificados, com um primeiro andar assente sobreum piso dotado de um talude bastante acentuado,sendo difícil encontrar nesta zona do mundo umaconstrução em escarpa, destinada a rebater o impactodos projécteis da artilharia, para além deste caso.

Porém, em Ormuz, na muralha Leste original,encontramos um talude idêntico em inclinação e al-tura, construído por Tomás Fernandes com o objec-tivo de obter o melhor rendimento para o tiro deartilharia e a melhor resistência aos projécteis inimi-gos, traduzindo uma inovação na arquitectura militarda fase inicial da pirobalística que tem paralelismocom Makutani, onde surge como um elemento dis-sonante, a não ser que o relacionemos com a obraque Tomás Fernandes terá levado a cabo em Quíloa.

Para Ormuz 30, é fácil constatar a existência doselementos característicos dessa época, quer através dodesenho de Gaspar Correia, quer através da observa-ção directa, e, em conjunto, aí se detectam as tronei-ras cruzetadas (que também surgem na capela da Ilhade Moçambique); os dispositivos para o tiro razanteao correr dos muros; as torres poligonais; os peque-nos cubelos semi-circulares ou os “baluartes” quesão típicos da arquitectura militar portuguesa do iní-cio do séc. XVI e que, por mais que se procure, nãoencontram lugar na “Gereza”.

No entanto, sem observações mais detalhadastambém não é fácil fazer coincidir a obra de Maku-tani com tais características ou com as descriçõesdos cronistas de D. Francisco de Almeida, suceden-do que, até à data, todos os olhares, incluindo o doautor destas linhas, tinham sido direccionados para olado errado, ou seja, para a “Gereza”, não sendo porenquanto possível formular qualquer proposta segu-ra quanto à localização do forte português.

Mas, por outro lado, afigura-se ser incontornávela conclusão de que a “Gereza” nunca teve nada a vercom a obra do séc. XVI, e, por isso, não há qualquerrazão para que, em nome das glórias pátrias de an-tanho, os portugueses vão em romaria admirar esseforte que, no fundo, poderá não ter passado de umdepósito de escravos, a não ser que se pretenda trans-

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Figura 7

Fortaleza de Ormuz, pormenor da construção inicial.