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ESPECIAL PERFIS PLUG 2012 46 Trinta anos após a Guerra das Malvinas, as feridas abertas pelo conflito ainda sangram na vida do veterano Alvarez Juan Carlos Texto Marcel Verrumo Design Graciela Tocchetto Ilustrações Jhonata Alves e Marcelo Garcia Fotos AP Photo D entro de um buraco úmido nas ilhas Malvinas (Falklands, para os britânicos), o soldado argentino Alvarez Juan Carlos segura um morteiro. A fome, o frio e o medo o corroem. No horizonte, a úni- ca certeza é a rápida aproximação do Exército inimigo, o britânico. Um zunido de bala rom- pe o silêncio. Curioso e assustado, o jovem de 18 anos espia o autor do disparo. Alívio: era um colega de armada que derrubara uma ove- lha e a arrastava para dentro de seu buraco. O som que se segue é o da faca rompendo a carne do animal. Atônito, Alvarez assiste ao compatriota comer as tripas do bicho, cruas e quentes. Em minutos, outros militares se aproximam e dividem as vísceras e o sangue da ovelha. Um militar superior argentino, tes- temunha da cena, não gosta do que vê. Chama o rapaz que deu fim ao animal e o leva a um Marcas de um INFERNO

Marcas de um inferno

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Perfil do veterano argentino Alvarez Juan Carlo, publicado na Revista Plug, da Editora Abril.

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ESPECIAL PERFIS

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Trinta anos após a Guerra das Malvinas, as feridas abertas pelo conflito ainda sangram na vida do veterano Alvarez Juan CarlosTexto Marcel Verrumo Design Graciela TocchettoIlustrações Jhonata Alves e Marcelo Garcia Fotos AP Photo

Dentro de um buraco úmido nas ilhas Malvinas (Falklands, para os britânicos), o soldado argentino Alvarez Juan Carlos segura um morteiro. A fome, o

frio e o medo o corroem. No horizonte, a úni-ca certeza é a rápida aproximação do Exército inimigo, o britânico. Um zunido de bala rom-pe o silêncio. Curioso e assustado, o jovem de 18 anos espia o autor do disparo. Alívio: era um colega de armada que derrubara uma ove-lha e a arrastava para dentro de seu buraco.

O som que se segue é o da faca rompendo a carne do animal. Atônito, Alvarez assiste ao compatriota comer as tripas do bicho, cruas e quentes. Em minutos, outros militares se aproximam e dividem as vísceras e o sangue da ovelha. Um militar superior argentino, tes-temunha da cena, não gosta do que vê. Chama o rapaz que deu fim ao animal e o leva a um

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ESTOPIM Entre abril e junho de 1982, argentinose ingleses disputaram o domínio do arquipélago

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poço cheio de água congelada. “Enfie as mãos aí”, ordena. O soldado colocou uma. “A outra também. Que isso sirva de exemplo”, diz. No dia seguinte, o jovem oficial amanheceu morto. Mas não foi de frio. Causa mortis: intoxicação.

Esse episódio marcou para sempre a vida de Alvarez. Hoje, 30 anos depois daquela tar-de na Guerra das Malvinas, conflito em que Argentina e Grã-Bretanha disputaram o do-mínio do arquipélago, ele ainda o assombra. Todos os meses, o ex-soldado vai ao psiquiatra e, diariamente, toma quatro comprimidos para minimizar as marcas deixadas pela guerra em sua vida. As bolsas negras abaixo dos olhos, resultantes de noites de insônia, começaram a desaparecer, mas ele reconhece: “Nunca serei um ser humano normal novamente”.

DesembarqueFilho de civis, Alvarez foi convocado para

entrar no Exército argentino em janeiro de 1982, ao completar 18 anos. Na época, todos os jovens que atingiam a maioridade deveriam servir a pátria. “Servi em uma província dife-

rente de onde eu morava. Era de Córdoba e fui enviado a Comodoro Rivadavia. Sofri muito com a mudança. Era muito apegado à família”, diz. Nos dois meses de treinamento, aprendeu técnicas de sobrevivência, manuseio de armas e morteiros. Aprendeu a ser um soldado.

No dia 4 de abril, dois dias após a Argentina invadir a capital das Falklands, na época cha-mada de Port Stanley (ou Puerto Argentino), Alvarez foi enviado às ilhas. “O avião pousou às 17h30. Estava escuro, o vento era forte. O frio adormeceu meus dedos”, descreve. Quando chegou às ilhas, enfrentar uma guerra era algo que ainda não passava pela mente dos soldados. “O soldado raso que perguntasse a um superior sobre a possibilidade de os britânicos invadi-rem a região recebia a resposta: ‘Eles não virão, vamos ficar 15 ou 20 dias e já voltaremos’”, con-ta. A tranquilidade de Alvarez acabou no dia 26 de abril. “Era o Dia da Bandeira. Com a mão no peito e olhando a bandeira azul e branca de meu país ser hasteada, jurei defender minha terra até a morte. Naquele momento, pensei: ‘Daqui não voltarei’.”

DESPREPARO Muitos soldados do Exército argentino eram jovens recém-incorporados que mal sabiam manejar uma arma

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Alvarez voltaria da guerra, mas sua vida jamais seria a mesma. Perdeu 28 kg, estava com o intestino comprometido, tinha pé de trincheira de terceiro grau (feridas provocadas pelo frio e umidade) e dores no joelho. Em casa, encontrou sua mãe com metade do corpo paralisado por um AVC (provocado, acredita, pela tensão de ter um filho na guerra). Perdeu amigos, não conseguia emprego e tinha difi-culdade para demonstrar emoções. “O senti-mento é a primeira coisa que a guerra mata”, afirma. Depois das Malvinas, nunca consegui amar alguém. Nem mesmo a minha esposa e meus filhos.”

A primeira batalhaA primeira vez que Alvarez matou um

inimigo se perdeu em sua memória. Segundo ele, era noite e o grupo estava à beira da praia, protegendo a região de um possível desem-barque inimigo. Repentinamente, os argenti-nos ouviram um barulho ensurdecedor. Dos navios e aviões britânicos, bombas começa-ram a ser lançadas. Os argentinos revidaram.

Mas, segundo Alvarez, seus armamentos não tinham potência para chegar onde os navios britânicos estavam.

Viu um helicóptero inimigo cortar o céu. Pela primeira vez, teria de matar. “Três razões me fizeram atirar. Primeiro, a crença de que a luta pelas Malvinas era legítima, as ilhas são argentinas. Segundo, a consciência de que, a milhares de quilômetros daquelas ilhas, meus pais estavam me esperando – meu pai era hi-pertenso e minha mãe sofria do coração; se eu morresse, eles não durariam muito tempo. E, por fim, a sobrevivência: ou eu matava ou morria.” Como outros soldados a seu lado, atirou. Uma explosão clareou a noite. Caíam os primeiros britânicos. Sua primeira batalha terminava aí.

Guerra psicológica Todas as noites, quando os argentinos esta-

vam prestes a dormir, os britânicos disparavam. O sono ia embora. Na hora de comer, a cena se repetia. Com a comida na mão, o barulho de um disparo tensionava a tropa, e a fome também passava. “A repetição fez com que fi-cássemos em constante alerta. ‘Eles estariam chegando’, eu pensava. Nas Malvinas, também enfrentamos uma guerra psicológica.”

A estratégia parece ter dado certo. Com o passar das semanas, a Argentina foi perdendo as batalhas e ficando cada vez mais vulnerá-vel. Os britânicos começaram a cercar grupos como o dele, que ficaram isolados e sofreram com a fome e a falta de munição.

Segundo o soldado, o momento em que ele mais se aproximou da morte foi na véspera da rendição argentina. “Eu estava defendendo a costa da ilha. Os britânicos não paravam de atirar. Faziam o que chamamos de ‘batir al sur’, atirando com os canhões muitas vezes se-guidas, em regiões próximas umas das outras. Era uma noite com neblina e eu só enxergava a poucos metros de onde estava. Fui colocar mu-nição em um canhão. Um estrondo ensurdeceu meus ouvidos. Vi fogo se aproximar do meu corpo. Senti cheiro de carne queimada. Era a minha carne queimando. Tudo ficou branco.” A guerra havia acabado para Alvarez.

Presente de aniversárioEm uma cama, Alvarez dormia. Ao acordar,

algo na orelha o incomoda.— Acalme-se, Alvarez. Agora está tudo

bem. Isso é apenas um curativo...

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Século 16Quem desembarcou primeiro nas Malvinas: piratas ingleses, navegadores espanhóis, franceses, holandeses ou italianos? Não há consenso.

Século 18No lado ocidental, é fundada a primeira colônia, Port Louis. Habitada por colonos franceses, as ilhas são batizadas de Îles Malouines, em referência à região de Saint-Malo. No mesmo século, os britânicos ocupam a parte oriental e se estabelecem no território.

1810A Argentina proclama independência da Espanha e começa a dominar territórios da ex-metrópole, como as Malvinas.

1833Os britânicos reclamam a posse do arquipélago, afirmando serem seus descobridores. Expulsam os argentinos e começam a colonizá-lo.

Janeiro de 1982Às vésperas da dominação britânica completar 150 anos, a Argentina invade o território. A recuperação das Malvinas poderia servir como argumento para seus ditadores recuperarem a legitimidade.

2 de abril de 1982A Argentina toma a capital das ilhas, Port Stanley, e recupera o território. A Grã-Bretanha, governada pela primeira--ministra Margaret Thatcher, declara guerra.

ENTENDA O CONFLITO

10 milsoldados

28 milsoldados

NO AR: a frota era numerosa e mais velha

NO MAR: os argentinos só tinham um porta-aviões e submarinos a diesel com pouca autonomia embaixo d’água

EM TERRA: a maioria dos soldados era recém-incorporada e não tinha expe riência militar

NO AR: os caças eram modernos, porém poucos

NO MAR: três submarinos de propulsão nuclear podiam ficar embaixo

d’água por meses seguidos

EM TERRA: os soldados eram pro� ssionais e contavam com armamentos da Otan

POR DENTRO DA GUERRA

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— Por que tenho isso no ouvido?— Uma explosão fez com que você perdes-

se sangue pelo ouvido, pelo nariz e pela perna, próximo ao seu joelho, onde um estilhaço de bomba o atingiu. Você teve sorte: foi encontra-do por argentinos que o trouxeram aqui.

Oliver, o médico argentino, seguiu tentan-do tranquilizá-lo. De repente, Alvarez conta que deteve seu olhar diante da janela do quarto. Ao longe, descia a bandeira azul e branca de seu país e outra, azul e branca, mas também vermelha, era içada: a bandeira britânica. Uma lágrima de dor e de alívio escorreu pelo rosto do soldado argentino. Era 14 de junho. A Ar-gentina tinha perdido a guerra.

O melhor presente Do hospital, Alvarez foi transferido para

um avião e, em seguida, para um barco-hospi-tal. Em poucos dias, estava no hospital Almi-rante Sarlo Palomar, em Buenos Aires.

O sobrevivente conta que, deitado na cama do hospital, pensando nos horrores que havia vivido na guerra, a porta do quarto se abriu. Ele ouviu passos e sentiu um cheiro conhecido. Em sua direção, viu braços abertos. Era sua irmã. Ele permaneceu em silêncio, mas começou a chorar. “Minhas lágrimas canalizaram meu sofrimento de meses de saudades, de luta para conseguir estar outra vez ao lado dela, de ten-são para resistir a todas as misérias que enfren-tei”, afirma, emocionado. Naquele dia, Alvarez completava 19 anos. Estar vivo, ao lado da irmã, era seu melhor presente de aniversário.

Ao voltar da guerra, Alvarez começou a manter relacionamentos com várias mulheres ao mesmo tempo. A situação faria com que o soldado tivesse duas namoradas grávidas si-multaneamente. O segundo filho nasceu um mês e três dias após o primeiro. Quando des-cobriram a traição, as duas namoradas sepa-raram-se do soldado e o proibiram de visitar as crianças. Ele não fez questão de lutar para ver os filhos.

Meses depois, o soldado seria convidado por um amigo para ir a um aniversário. Foi apresentado a Mayes Virginia Helena Ferreira, mãe do aniversariante e 25 anos mais velha. Ele diz que a guerra o envelheceu bruscamente. “Já não conseguia me relacionar com uma pessoa da mesma idade”, diz. Casou-se com a mãe do amigo.

Revivendo o passadoSegundo Alvarez, o correr dos anos veio

acompanhado de um vazio. As noites come-çaram a ficar mais longas. Sem dormir, bolsas negras forma ram-se sob seus olhos, rugas ris-caram sua testa. Iniciou-se uma fase em que o veterano varava madrugadas diante da tele-visão desligada, revivendo cenas do filme de guerra que viveu nas Malvinas.

Em 2003, Mayes, sua mulher, o conven-ceu a procurar um psiquiatra. O diagnóstico: o veterano sofria de estresse pós-traumático, doença comum em pessoas que enfrentaram uma situação limite, como uma guerra. Entre os medicamentos prescritos, um antidepressi-vo, um ansiolítico, um anticonvulsivante e um sonífero. Entre as recomendações, procurar um trabalho e tentar restabelecer vínculos sociais.

Um recomeçoDepois de nove anos de tratamento, o ve-

terano conseguia frequentar lugares públicos e manter vínculos mais duradouros. Ainda toma a mesma quantidade de remédios diários. “Es-tou me sentindo melhor”, diz.

O ex-soldado trabalha no Instituto Na-cional de Servicios Sociales para Jubilados y Pensionados, um programa social do governo

CONSEQUÊNCIAS DA GUERRA

Número de mortos

649 argentinos

255 britânicos

Na InglaterraA Grã-Bretanha recuperou o domínio das ilhas. Margaret Thatcher, então primeira-ministra, ganhou mais credibilidade e foi reeleita em 1983. O pulso firme na tomada de decisões lhe rendeu o apelido de Dama de Ferro.

Na ArgentinaTrês dias após a derrota, Leopoldo Galtieri, general à frente da ditadura argentina, renunciou à presidência. Um ano e meio após, Raúl Ricardo Al-fonsín tornou-se o primeiro presidente argentino eleito democraticamente.

Número de mortos

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A primeira coisa que a guerra mata são os sentimentos. Depois das Malvinas, nunca consegui amar alguém. Nem mesmo a minha esposa e meus filhos""

VETERANOS ARGENTINOS DAS MALVINAS EM NÚMEROS*

88%nunca buscaram um tratamento mental

72%não recebem atenção médica de nenhum tipo

60%não possuem trabalho

64%consomem cigarros diariamente

31%são viciados em álcool

8%são hipocondríacos

*Fonte: Ministério da Saúde da Província de Buenos Aires

argentino voltado para aposentados e pensio-nistas, como os veteranos da guerra. O pro-grama distribui medicamentos aos veteranos e familiares de todo o país. Também oferece tra-tamento médico em todo o território nacional. Alvarez desenvolve um trabalho administrati-vo, pedindo medicamentos para farmácias e atendendo ao público. Acredita que a atividade está lhe devolvendo a vontade de viver.

Ainda vive com Mayes, mas confessa que não a ama. “Quem vive 27 anos com a mesma pessoa não pode dizer que não sente nada por ela. Mas não posso olhar para ela e falar: ‘Eu te amo’. Se fizesse isso, seria da boca para fora. Não a amo como amam os amantes. Amo como um filho ama uma mãe”, afirma.

Em 2010, ainda faltava resolver algumas questões que deixou pendentes. Faltava con-quistar o amor dos filhos, que via na rua, mas com quem nunca havia conversado. Decidiu ligar para uma das filhas, Noelia, e marcar um encontro. Frente a frente, Alvarez desabafou:

— Não quero que você me ame. Mas que, ao menos, me queira. Sei que errei, que não dei tudo o que deveria ter dado como pai. Mas peço que saiba que esses anos também não foram fáceis para mim. Também tive que reconstruir minha vida, que me criar outra vez. Quero uma chance.

Ela abriu os braços. Ele ainda disse: “Des-culpe-me”. Pai e filha, então, se abraçaram. TRINCHEIRA O frio e a umidade no campode batalha castigavam os soldados

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FERIDA ABERTA Trinta anos após a guerra, argentinos ainda reivindicam a posse do arquipélago, que permanece com a Grã-Bretanha