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 12 Exê outras linhas V erdadeiros mestres na arte de viver no anonimato de suas  próprias letras, os ghostwriters alternam identidades textualmente Escrevendo em T omás Adam, 22 anos, chega ao seu trabalho, todos os dias, e incorpora o espírito de um político. Na verdade, de vários, durante o ex- pediente. A cada entidade que o invade, a crise nanceira, a reforma da previdência, a crise orçamen- tária e qualquer outro assunto político ou econômico da atualidade entra e sai de sua pauta. Cada vez com um viés e opinião. A partir do conhecimen to prévio da trajetória e da linha i deológica de cada político, Tomás traça textualmente a opinião do sujeito. Formata-a cor - retament e, coloca frases no papel com início, meio e m e uma posição clara. Geralmente, a opinião contraria, ou pelo menos se diferecia, a que foi fe ita para o cliente anterior. O estudante de jornalismo é um  ghostwriter .  A expre ssão em ing lês den e um pro ssional que escreve um texto, seja um livro, um poema, ou um discurso, sem receber os créditos. Ele escreve remune- Marcelo Fontoura O “fantasma-escrit or” assimila outras personalidades

Marcelo Fontoura - Escrevendo em outras linhas

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Reportagem realizada em 2011 sobre o trabalho de ghostwriter, para a revista Experiência.

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12 Exê 

outras linhasVerdadeiros mestres na arte de viver no anonimato de suas próprias letras, os ghostwriters alternam identidades textualmente

Escrevendo em

Tomás Adam, 22 anos, chega ao seu trabalho,todos os dias, e incorpora o espírito de umpolítico. Na verdade, de vários, durante o ex-pediente. A cada entidade que o invade, a crise

nanceira, a reforma da previdência, a crise orçamen-tária e qualquer outro assunto político ou econômico

da atualidade entra e sai de sua pauta. Cada vez comum viés e opinião. A partir do conhecimento prévio datrajetória e da linha ideológica de cada político, Tomástraça textualmente a opinião do sujeito. Formata-a cor-retamente, coloca frases no papel com início, meio e me uma posição clara. Geralmente, a opinião contraria,ou pelo menos se diferecia, a que foi feita para o clienteanterior. O estudante de jornalismo é um ghostwriter .

 A expressão em inglês dene um prossional queescreve um texto, seja um livro, um poema, ou umdiscurso, sem receber os créditos. Ele escreve remune-

Marcelo Fontoura

O “fantasma-escritor”

assimila outraspersonalidades

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radamente para outro que possuirá aautoria. Escondido atrás de sua caneta(ou, mais habitualmente, da tela docomputador), o escritor concretiza o so-nho de quem sempre quis ter suas ideiasreunidas em um livro ou transforma em

frases e versos aqueles pensamentos dealguém que não tem técnica e especia-lização para a tarefa.

No caso, Tomás se enquadra emum tipo mais comum do que se pensa:o  ghostwriting para políticos. Pros-sional da Ver Conteúdo Multimídiadesde agosto de 2009, ele e seus colegassão responsáveis por fazer artigosde opinião, discursos, pronun-ciamentos e, eventualmente, atélivros para políticos do estado.“Temos que dar conta de textosque não são supridos pela asses-soria deles”, explica. O material éfeito sob demanda e protegido porsigilo. “Produzimos o conteúdo e vendemos a propriedade intelectu-al. Quem fez o material, tecnicamente,foi ele”, ressalta Tomás.

 Atualmente, a equipe trabalha comcinco clientes, todos da área política.Cada freguês tem opiniões diversas deseus pares. “Não trabalhamos apenaspara um partido ou para um político.Seria nanceiramente uma burrice carpreso ao próprio espectro ideológico”,

destaca. A jornalista Thiana Orth tambémacabou caindo no ofício de fantasmaescritora, mas por acaso. Após um anoem viagem na distante e exótica NovaZelândia, ela retornava a Porto Alegre,o que não parecia algo interessante.Havia passado muito tempo conhe-cendo pessoas de locais distantes, comrealidades as mais diversas. Ao chegarà cidade, ela recebeu uma indicaçãoatravés de uma colega para trabalharcom um alto executivo de marketingde uma multinacional. Após um breve

contato, descobriu que não se tratava deuma função de assessora ou assistente,mas de algo diferente. Seria um traba-lho como ghostwriter .

“Quando começamos o trabalhonão falávamos em ghostwriting, depois

é que descobrimos o termo e começa-mos a usá-lo”, arma Thiana. Ocupadoe sem experiência na área, o executivoqueria um profissional que pudesseajudá-lo a tornar suas ideias em umaobra ccional. “Ele pensou no perl dealguém que tivesse conhecimento deescrita e entrevistasse várias pessoas”,

conta Thiana. A experiência multicul-tural recente dela ajudou na escolha.

Era um trabalho que a motivavamuito. Mesmo cansativo, ela via-o comoum exercício positivo e com um bomretorno nanceiro. Na visão de Tomás,é uma oportunidade para transcender acotidianidade do jornalismo. “Às vezesse começa na prossão lidando com

assuntos um pouco mundanos, e eutrabalho com nomes importantes dapolítica gaúcha e com temas mais rele- vantes. Falo sobre a crise, macroecono-mia. Se diferencia muito da assessoriade um político”, exalta.

Mesmo em uma linha bem diversa,Thiana teve tarefas árduas pela frente.Foram nove meses de intensa pesquisa,seguidos por outros nove meses paraa escrita do material. Em encontrosquinzenais, sua entidade inspiradora (enanciadora) ditava os rumos do traba-lho e ela gravava tudo. Nas entrevistas

para embasar o material ouviu diversosespecialistas. “Entrevistei cerca de dezpessoas, entre especialistas e professo-res. No nal, tinha horas de decupagemde entrevistas e de conversas entre eu eele”, comenta.

O resultado foi um livro de cçãocom traços autobiográcos (do próprioautor), incursões à física, tendências esincretismo religioso, chamado Efeito Aranha. Um lho de dois pais.

No ofício do  ghostwriting de po-líticos Tomás não está sozinho. É atri-buída a Winston Churchill (1874-1965),

político e estadista britânico, a frase“era um político tão medíocre queescrevia os próprios discursos”, ao sereferir a um adversário. O ex-presi-dente norte-americano John Kenne-dy (1917-1963) tinha em seu assessore condente pessoal Ted Sorensenseu fantasma escritor. Ele chegoua ser dení-lo como seu “banco desangue intelectual”. No Brasil, um

dos exemplos mais conhecidos é o doescritor mineiro Autran Dourado, queescrevia os discursos do ex-presidente Juscelino Kubitschek (1902-1976). Dis-creto, se colocava somente como “a mãoque escrevia”.

Seria apenas isso o  ghostwriter ?Uma ferramenta a quem quer um tex-to? O fantasma é alguém que contribui

estilisticamente, mas, mais do queisso, tem o conhecimento necessáriopara fazer o texto certo para a ocasiãocerta. “Sou um prossional da escrita,que entende a estrutura de um textoopinativo, que entende de português,de encadeamento de opiniões e ar-gumentos, atributos que um políticonão precisa necessariamente saber”,considera Tomás. Mesmo não sendoa fonte inspiradora das ideias, cabe à“mão que escreve” certa autonomiatambém. Thiana, na escrita do livro deseu cliente, procurava explorar o terri-

Mais do que simples profssional da escrita, o ghostwriter entra na mente daquele para quem escreve

Entre os adeptos da difundida prática do ghostwriting político

estão John Kennedy, WinstonChurchill e Juscelino Kubitschek 

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 A jornalista Thiana Orth concretizou um sonho literário latente

Os preços variam bastante para ter suas ideias transformadas em livro oudiscurso. No caso de um livro de cção, depende se o material já está reunido ou se precisa de pesquisa, se há necessidade de entrevistas. Assim, se pode acordar um valor mensal, com relação ao trabalho necessário. “O que eu faço é uma

média de tempo de quantas horas por semana vou trabalhar e o tempo que vaime custar”, calcula Thiana. Em seis meses de projeto, seis parcelas. “No meucaso, no início era um preço, e depois aumentei, porque vi que era maior do que pensava. Hoje, não cobraria menos de R$ 1,5 mil por mês, se a pessoa vier sócom a ideia”, especula.

 No caso da política, há quem possa ter à disposição um funcionário em tem- po integral para a função. Já em uma empresa terceirizada também se trabalhacom contratos mensais, de acordo com a demanda e visibilidade do político.“Varia bastante. Um contrato clássico, com um artigo por semana e um ou outro pronunciamento, custa R$ 5 mil por mês. Mas tem os muito maiores, e os maiscasuais”, constata Tomás.

Quanto custa um texto seu? 

tório disponível. “As ideias eram dele,mas como nos víamos sob intervalos eraeu quem conduzia o trabalho. Muitascoisas de alguns personagens são mi-nhas. Ele mesmo me dizia para contarminhas histórias”, conta Thiana.

Em alguns casos, o  ghostwriter  deve quase “psicografar” o texto. Iden-

ticar as referências do autor, o que elediria e por quê. Se a opinião é um grandedesao, as palavras e o tom a utilizarconstituem outro. “Eu tenho um estiloque é necessariamente diferente docliente X ou Y. Até pela biograa dele,se veio do Interior, da Capital ou deSão Paulo. São vozes diferentes, modosde se portar textualmente”, radiografaTomás.

Na cção e na política, é um exer-cício freudiano de entrar na mente deoutro. O tempo moldou a experiênciade Tomás como médium da política.“Meu primeiro texto foi para um clien-te importante da empresa, e foi umpouco virulento demais. Quando leu,ele disse ‘isso aqui não tá a minha cara,eu não sou assim’. Eu me liguei queeu sou um jornalista de 22 anos, que édiferente dele. Ele tem toda uma bio-graa por trás que eu preciso respeitare assimilar”, interpreta. Thiana sempreprocurou estabelecer uma conexãoforte com seu cliente. Além de gravar asreuniões, organizava as entrevistas emplanilhas, de modo a ordenar as frases

de cada consultado. “Foi uma maneiraque criamos de não haver página embranco”, descreve.

Thiana planeja escrever seu própriolivro. A jornalista chegou a publicar,  juntamente com outros colegas, umacoletânea com crônicas suas, produzi-das em uma ocina literária. Ela nuncaquis a autoria de seu ghostwriting. “Aspessoas me perguntavam se ele ia mecolocar como co-autora. Não, e nemquero. Não são as minhas ideias, se eufosse escrever um livro nunca seria este”,admite. No copyright, ela consta comocolaboradora na redação, organizaçãoe pesquisa. Tomás já está acostumadoa incorporar opiniões alheias: “Lógico,sempre é melhor escrever algo com quetu tenhas alguma coerência ideológica,mas isso não acontece sempre. Fazparte do jogo”.

Interpretar e colocar no papel ospensamentos de outra pessoa não é ta-refa fácil. No caso dos ghostwriters, sãoos fantasmas que incorporam os vivos.