Marcelo Gleiser - Criacao Imperfeita

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Marcelo GleiserCRIAO IMPERFEITACosmo, Vida e o Cdigo Oculto da NaturezaDigitalizado por Ricardo Fernando*EDITORA RECORDRIO DE JANEIRO SO PAULO2010CIP-BRASIL. CATALOGAO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJG468c Gleiser, Marcelo, 1959-Criao imperfeita / Marcelo Gleiser. - Rio de Janeiro : Record, 2010.ISBN 978-85-01-08997-71. Criao. 2. Religio. 3. Matria - Constituio. 4. Deus. I. Ttulo.Texto revisado segundo o novo Acordo Ortogrfico da Lngua Portuguesa. Copyright 2010 by Marcelo GleiserDireitos exclusivos desta edio reservados pela EDITORA RECORD LTDA.Rua Argentina 171 - 20921-380 Rio de Janeiro, RJ - Tel.: 2585-2000Impresso no Brasil ISBN 978-85-01-08997-710-0409CDD: 113 CDU: 113fJlTOlU^Seja um leitor preferencial Record. Cadastre-se e receba informaes sobre nossos lanamentos e nossas promoes. Atendimento e venda direta ao leitor [email protected] ou (21) 2585-2002EDITORA AFILIADAO Universo assimtrico e estou persuadido de que a vida, como ns a conhecemos, resultado direto da assimetria do Universo ou de suas conseqncias indiretas. Louis Pasteur extremamente ingnuo imaginar que todas as leis importantes da fsica foram descobertas no momento em que nossa gerao comeou a contempl-las. Haver uma fsica do sculo XXI, uma do sculo XXII e mesmo uma fsica do quarto milnio. Carl Sagan, ContatoNo quero desencorajar os fsicos que trabalham na teoria das supercordas; mas talvez o mundo seja mesmo o que sempre achamos: descrito pela teoria da relatividade geral e pelo Modelo Padro das partculas elementares. Steven Weinberg, Prmio Nobel de Fsica 1979In memoriam Carl Sagan (1934-1996)Sua ausncia mais do que evidenteSumrioNota ao leitor 11 13PrefcioParte 1 A unidade de todas as coisas1 Criao 21 29 33 392 Medo das trevas3 Transio 4 F5 Origens do monotesmo 456 O mito de Pitgoras 477 Vivendo o sonho platnico 518 Deus, o Sol 579 Decifrando o mistrio csmico 6310 O erro de Kepler 65Parte ii A assimetria do tempo11 Fsseis do Big Bang 7312 0 Universo num gro de areia 7513 A luz, esse mistrio 7714 A imperfeio do eletromagnetismo 8115 A origem dos tomos 8516 Dos mitos de criao ao quantum: uma breve histria 9117 Voltando origem do tempo 9918 A dana quntica do cosmo 10319 0 Universo visvel 10920 As falhas do modelo do Big Bang 11721 De volta origem de tudo 12122 Matria primordial extica 12523 Tudo comeou numa pequena regio excntrica do cosmo 13124 O cosmo s escuras 13725 O domnio da escurido 143Parte III A assimetria da matria26 Simetria e beleza 15127 Discurso breve sobre a simetria 15728 Quando a energia flui, a matria dana 16329 Uma belssima simetria violada 16930 O mundo material 17331 Cincia das lacunas 18132 Simetrias e assimetrias da matria 18933 A origem da matria no Universo 19734 Universo em transio 20535 Unificao: uma crtica 213Parte IV A assimetria da vida36 Vida! 22137 A centelha da vida 22738 A vida a partir da no vida: primeiros passos 23339 Vida primitiva: "quando" surgiu? 23740 Vida primitiva: "onde" surgiu? 24141 Vida primitiva: "como" surgiu? 24942 Vida primitiva: as partes que formam um todo 25543 O homem que matou a fora vital 26144 VUnivers est dissymtriquel 26545 A quiralidade da vida 26946 De um comeo to assimtrico... 27547 Somos todos mutantes 283Parte V A assimetria da existncia48 Medo das trevas II 29349 O Universo consciente? 29550 Significado e reverncia 30351 Alm da simetria e da unificao 30752 O sinal de Marilyn Monroe e o mito de um cosmo"certo" para a vida 31153 Terra rara, vida rara? 31954 Ns e eles 32755 Solido csmica 33356 Uma nova direo para a humanidade 335Eplogo O jardim das maravilhas 341Agradecimentos 345Notas 347Bibliografia 357ndice 361Nota ao leitorEste livro foi escrito para todos que se interessam pelas incrveis descobertas da cincia moderna e como elas transformam nossa viso de mundo, contribuindo para definir a cultura de nosso tempo. Sempre que possvel, usei analogias e metforas para ilustrar conceitos cientficos. Com exceo da icnica E = me2 (que explico em detalhe), no inclu qualquer outra frmula. Termos tcnicos foram cuidadosamente evitados e, quando mencionados, definidos em seguida. Porm, como o texto lida com idias de ponta em cosmologia, fsica de partculas, biologia e astrobiologia, inevitvel que, volta e meia, a leitura fique um pouco pesada. Se isso ocorrer com voc, no fique desencorajado. Sugiro que pule o pargrafo, e mesmo o captulo, e siga em frente. Para simplificar, dividi o livro em cinco partes. Todo mundo deve comear com a Parte I, "A unidade de todas as coisas". Se, em seguida, voc no se sentir pronto para explorar os detalhes cientficos do meu argumento, v direto para a Parte V, "A assimetria da existncia". Espero que, aps a leitura dessa parte a ltima do livro voc retorne para as Partes II, III e IV. Nelas, apresento algumas das idias mais instigantes da cincia moderna, nossas tentativas de compreender os maiores mistrios da Natureza: a origem do Universo, a origem da matria e a origem da vida. Como veremos, assimetrias e imperfeies tm um papel crucial em cada uma delas: do multiverso ao Big Bang; do Big Bang aos tomos; dos tomos s clulas; das clulas aos humanos; e dos humanos vida extraterrestre. Incluo tambm uma bibliografia para aqueles que queiram complementar a sua leitura.PrefcioSe no temos uma posio, velocidade ou acelerao especial, ou uma origem distinta da das plantas e dos animais, ento talvez sejamos as criaturas mais inteligentes em todo o Universo. Por isso somos nicos. Carl Sagan (1985)Toda a filosofia baseia-se em apenas duas coisas: curiosidade e viso limitada... O problema que queremos saber mais do que podemos ver. Bernard le Bovier de Fontenelle (1686)s vezes, para enxergarmos mais longe, temos que olhar por cima dos muros que nos cercam. Durante milnios, magos e filsofos, crentes e cticos, artistas e cientistas vm tentando decifrar o enigma da existncia, convencidos de que a incrvel diversidade do mundo natural tem uma origem nica, que a tudo engloba. A essncia dessa busca a convico de que, de alguma forma, tudo est interligado, de que existe uma unidade conectando todas as coisas. Para representar esta unidade, a maioria das religies invoca uma entidade divina que transcende os limites do espao e do tempo, um ser com poderes absolutos que criou o mundo e que controla, com maior ou menor arbtrio, o destino da humanidade. Todos os dias, bilhes de pessoas vo a templos, igrejas, mesquitas e sinagogas dedicar preces ao seu Deus, a fonte de todas as coisas. No muito longe dos templos, em universidades e laboratrios, cientistas tentam explicar as vrias facetas do mundo natural a partir de uma noo surpreendentemente semelhante: que a aparente complexidade da Natureza , na verdade, manifestao de uma unidade profunda em tudo o que existe.Neste livro, veremos que a crena numa teoria fsica que prope uma unificao do mundo material um cdigo oculto da Natureza a verso cientfica da crena religiosa na unidade de todas as coisas. Podemos cham-la de "cincia monotesta". Alguns dos maiores cientistas de todos os tempos, Kepler, Newton, Faraday, Einstein, Heisenberge Schrdinger, dentre outros, dedicaram dcadas de suas vidas buscando esse cdigo misterioso, que, se encontrado, revelaria os grandes mistrios da existncia. Nenhum deles teve sucesso. Nos dias de hoje, fsicos tericos, especialmente aqueles que estudam questes relacionadas com a composio da matria e a origem do Universo, chamam esse cdigo de "Teoria de Tudo" ou "Teoria Final". Ser que essa busca faz sentido? Ou ser que no passa de uma iluso, produto das razes mticas da cincia?Se, quinze anos atrs, uma vidente me dissesse que um dia escreveria este livro, no acreditaria. Passei meu doutorado e a primeira dcada da minha carreira buscando por essa elusiva Teoria Final, que unifica tudo o que existe. No tinha dvida de que esse era o meu caminho. A candidata mais popular era, e ainda , conhecida como teoria das su-percordas, segundo a qual as partes mais bsicas da matria, os tijolos a partir dos quais tudo construdo, no so pequenas partculas como o eltron, mas tubos submicroscpicos de energia que vibram freneti-camente num espao de nove dimenses. A teoria, de uma elegncia matemtica extremamente sedutora, deu passos importantes em direo a uma teoria unificada, se bem que, como veremos, continua longe do seu objetivo. Milhares de mentes brilhantes continuam tentando aprimor-la, enquanto outras trabalham em teorias rivais.Todas as teorias de unificao baseiam-se na noo de que quanto mais profunda e abrangente a descrio da Natureza, maior o seu nvel de simetria matemtica. Ecoando os ensinamentos de Pitgoras e Plato, essa noo expressa um julgamento esttico de que teorias com um alto grau de simetria matemtica so mais belas e que, como escreveu o poeta John Keats em 1819, "beleza verdade". Porm, quando investigamos a evidncia experimental a favor da unificao, ou mesmo quando tentamos encontrar meios de testar essas idias no laboratrio, vemos que pouco existe para apoi-las. Claro, a idia de simetria sempre foi e continua sendo uma ferramenta essencial nas cincias fsicas. O problema comea quando a ferramenta transformada em dogma. Nos ltimos cinqenta anos, descobertas experimentais tm demonstrado consistentemente que nossas expectativas de simetrias perfeitas so mais expectativas do que realidades.Mesmo que, inicialmente, minha mudana de perspectiva tenha sido bastante difcil e mesmo dolorosa, aos poucos fui reorientando minha pesquisa para uma nova direo. Comecei a reconhecer que no tanto a simetria, mas a presena de assimetria a responsvel por algumas das propriedades mais bsicas da Natureza. No h dvida de que a simetria tem o seu valor e continuar sendo extremamente til na construo de modelos que descrevem a realidade fsica em que vivemos. Porm, por si s, a simetria limitada: toda transformao que ocorre no mundo natural resultado de alguma forma de desequilbrio. Como explicarei neste livro, da origem da matria origem da vida, do tomo clula, o surgimento de estruturas materiais complexas depende fundamentalmente da existncia de assimetrias.Aos poucos, fui convergindo numa nova esttica, baseada na imperfeio. Que me perdoe o grande Vincius de Moraes, mas beleza no fundamental. o imperfeito, e no o perfeito, que deve ser celebrado. Como no famoso sinal de Marilyn Monroe, a assimetria bela precisamente por ser imperfeita. A revoluo na arte e na msica do incio do sculo XX , em grande parte, uma expresso dessa nova esttica. hora de a cincia mudar, deixando para trs a velha esttica do perfeito que acredita que a perfeio bela e que a "beleza verdade".Essa nova perspectiva cientfica tem repercusses que vo muito alm das universidades e dos laboratrios. Se estamos aqui porque a Natureza imperfeita, o que podemos afirmar sobre a existncia de vida no Universo? Ser que podemos garantir que, dadas condies semelhantes, a vida surgir em outras partes do cosmo? E a vida inteligente? Ser que existem outros seres pensantes espalhados pela vastido do espao? De forma completamente inesperada, minha busca cientfica levou-me a um novo modo de pensar sobre o que significa ser humano: a cincia tornou-se existencial.Oculta na busca pela unidade de todas as coisas, encontramos a crena de que a vida no pode ser um mero acidente: se foras superiores no tiverem planejado nossa existncia, nada faz sentido. No importa se fomos criados por deuses, como afirmam muitas religies, ou por um universo cujo objetivo gerar a vida. De um modo ou de outro, nossa presena aqui tem que ter uma razo de ser. A alternativa seria depri-mente: qual o sentido da vida se ela tiver surgido acidentalmente num universo sem propsito? Como conseqncia, muitos se ofendem quando sugerido que estamos aqui devido a uma srie de acasos: Por que somos capazes de pensar, de amar e de sofrer com tanta intensidade, de criar obras de enorme beleza, se mais cedo ou mais tarde iremos todos perecer e, com rarssimas excees, seremos esquecidos aps algumas geraes? Por que somos capazes de refletir sobre a passagem do tempo se no temos o poder de control-la? No, devemos ser criaturas divinas, ou ao menos parte de um grande plano csmico. Sermos meramente humanos no pode ser toda a histria.Mas e se formos um acidente, um raro e precioso acidente, agregados de tomos capazes de se questionar sobre a existncia? Ser que devemos menosprezar a humanidade se no for parte de um "grande plano da Criao"? Ser que devemos menosprezar o Universo se no existir um cdigo oculto da Natureza, um conjunto de leis que explica todas as facetas da realidade? Eu diria que no. Pelo contrrio, a cincia moderna, ao mesmo tempo que mostra que no existe um grande plano da Criao, pe a humanidade no centro do cosmo. Podemos mesmo chamar essa corrente de pensamento, que proponho aqui, de "humanocen-trismo". Talvez no sejamos a medida de todas coisas, como props o grego Protgoras em torno de 450 a.C., mas somos as coisas que podem medir. Enquanto continuarmos a nos questionar sobre quem somos e sobre o mundo em que vivemos, nossa existncia ter significado.Vamos considerar esse ponto mais detalhadamente. Aps apenas 400 anos de cincia moderna, criamos um corpo de conhecimento que se estende do interior do ncleo atmico at galxias a bilhes de anos-luz de distncia. Ao mergulharmos com nossos maravilhosos instrumentos nos confins do muito pequeno e do muito grande, encontramos uma infinidade de mundos de uma riqueza insuspeitada. A cada passo que demos, a Natureza nos encantou e nos surpreendeu. Com certeza, continuar a faz-lo. Ao construirmos uma narrativa explicando como, a partir de uma sopa de partculas elementares no Universo primordial, surgiram estruturas materiais cada vez mais complexas, nos deparamos com uma incrvel diversidade de formas que jamais poderamos ter imaginado. A Natureza muito mais criativa do que ns. Dos muitos mis-trios que nos inspiram, talvez o mais instigante seja entender como a matria inanimada tornou-se viva, e como nossos primeiros ancestrais, minsculas bolsas de molculas animadas, transformaram um planeta rochoso num osis de atividade biolgica em meio a um cosmo frio e indiferente.Vendo a riqueza da vida aqui, e sabendo que as leis da fsica e da qumica permanecem vlidas por todo o cosmo, voltamos nossos instrumentos para nossos vizinhos planetrios, buscando avidamente por companhia. Infelizmente, apesar da convico de que encontraramos algo, nos deparamos apenas com mundos mortos. Belos, sem dvida, mas destitudos de qualquer sinal bvio de vida. Mesmo que algum ser vivo se oculte no subsolo marciano ou nos oceanos gelados e escuros de Europa, a enigmtica lua de Jpiter, certamente ter pouco a ver com seres autoconscientes, capazes de refletir sobre o sentido da vida. Se civilizaes aliengenas existirem a busca por vida extraterrestre inteligente continua esto to afastadas de ns que, na prtica (e descontando especulaes um tanto fantasiosas), como se no existissem. Enquanto estivermos sozinhos, produtos de acidentes ou no, ns somos a conscincia csmica, ns somos como o Universo reflete sobre si mesmo. Como veremos, essa revelao tem conseqncias profundas. Mesmo que no tenhamos sido criados por deuses ou por um cosmo com o propsito de gerar criaturas inteligentes, a verdade que estamos aqui, refletindo sobre a razo de estarmos aqui. E isso nos torna muito especiais.Nosso planeta, pulsando com incontveis formas de vida, flutua precariamente num cosmo hostil. Somos preciosos por sermos raros. Nossa solido csmica no deveria incitar o desespero. Pelo contrrio, deveria incitar o desejo de agirmos, e o quanto antes, para proteger o que temos. A vida na Terra continuar sem ns. Mas ns no podemos continuar sem a Terra. Ao menos no at encontrarmos uma outra casa celeste, o que tomar muito tempo. Basta olhar em torno, para a situao delicada em que se encontra o nosso planeta, para constatar que tempo um luxo que no temos.PARTE IA unidade de todas as coisasCriaoNingum testemunhou o que estava para acontecer. O "tempo" no existia;A realidade existia fora do tempo, pura permanncia. O espao no existia.A distncia entre dois pontos era imensurvel. Os pontos podiam estar aqui ou ali, suspensos, saltitantes. Entrelaado em si prprio, o espao aprisionava o infinito. De repente, um tremor;uma vibrao, uma ordem que nascia. O espao pulsava, ondulando sobre o nada. O que era perto se afastou. O agora virou passado.O espao nasceu com o tempo. Ao falarmos em espao, pensamos em contedo. Ao falarmos em tempo, pensamos em transformao. E assim foi.O espao borbulhou; o tempo, incerto, iniciou sua marcha.Da agitao conjunta do espao e do tempo surgiu a matria, expelida de seus poros.Mas ateno! Essa no era uma matria ordinria feito a nossa. Ela fez o espao crescer, inflar, como um balo. Esse balo o nosso Universo.Esse o mito de criao da nossa gerao. A Santssima Trindade aqui o Espao, o Tempo e a tria. No existe um Criador; nenhuma mo divina guia a transio do Ser ao Devir, a emergncia do cosmo a partirde uma existncia atemporal. O Universo surgiu por si mesmo, uma bolha de espao vinda do vazio: creatio ex nihilo, a criao a partir do nada. Essa possibilidade nos parece implausvel, j que tudo o que ocorre nossa volta resulta de alguma causa. Ser que o Universo diferente? Ser que tudo pode mesmo surgir do nada? Sem uma causa?A causa que deu incio a tudo, o primeiro elo da longa corrente causai que leva da criao do cosmo ao presente, tradicionalmente conhecida como a Primeira Causa. Para iniciar o processo de criao, nada pode preced-la: a Primeira Causa no pode ter uma causa; ela tem que ocorrer por si s. O desafio como implementar essa misteriosa Primeira Causa, como dar sentido a algo que parece violar o bom-senso. Ser que a cincia tem uma resposta? As religies usam os deuses para resolver o dilema. A estratgia funciona bem, j que as leis fsicas e o bom-senso no so aplicveis aos deuses. Sendo imortais, so indiferentes aos processos de causa e efeito: os deuses existem, sobrenaturalmente, alm do tempo e de suas inconvenientes limitaes. No primeiro livro do Antigo Testamento, Gnese, Deus, eterno e onipotente, manipula o "nada" com o verbo e d origem luz. Para os judeus, cristos e muulmanos, Ele a Primeira Causa. Tudo vem de Deus, enquanto Deus, onipresente, no vem de lugar algum. Como Deus perfeito, Sua criao tambm deve ser perfeita. E assim foi, at que Ado e Eva comeram a famosa ma da rvore da Sabedoria. A lio simples: o desejo e a curiosidade nos expulsaram do Paraso, e deixamos de ser como deuses. Desde ento, como meros mortais, tentamos de todos os modos nos reconectar com o que perdemos, ascender perfeio divina. Essa busca, mesmo que nobre, j nos iludiu por tempo demais. Precisamos de um novo comeo, de uma nova busca.Segundo algumas teorias modernas que lidam com a origem do espao, do tempo e da matria, existe um "nada quntico", uma entidade de onde universos-bebs podem surgir ocasionalmente chamada de "multiverso" ou "megaverso". Em algumas verses, esse multiverso eterno e, portanto, no criado: o multiverso dispensa a Primeira Causa. Dessa existncia csmica atemporal, flutuaes de energia a partir do "nada" ocorrem aleatoriamente, dando origem a pequenas bolhas de espao, os universos-bebs. A maioria dessas flutuaes desaparece, re-tornando sopa quntica de onde vieram. Raramente algumas crescem. Um equilbrio entre a fora da gravidade e a energia armazenada no espao permite que os universos-bebs surjam sem qualquer custo de energia. Ou seja, possvel, ao menos em tese, criar um universo a partir do nada: creatio ex nihilo. O tempo inicia a sua marcha quando a bolha csmica sobrevive e comea a evoluir, isto , quando existem mudanas que podem ser quantificadas. Se nada muda, o tempo desnecessrio.As teorias que invocam o multiverso propem que existimos numa dessas bolhas que conseguiu desprender-se da sopa primordial e crescer, produto de uma flutuao energtica to aleatria quanto a responsvel por partculas ejetadas de ncleos radioativos. Nossa bolha, nosso Universo com "U" maisculo (para diferenciar de universos hipotticos ou de partes do universo alm dos nossos telescpios e instrumentos de observao), aparentemente tem a rara distino de haver existido por tempo suficiente para que a matria em seu interior tenha se organizado em galxias, estrelas e pessoas: segundo essas teorias da cosmologia moderna, somos resultado do nascimento deveras improvvel de um cosmo que, por ter as propriedades certas, foi capaz de evoluir a ponto de gerar criaturas capazes de se perguntar sobre suas prprias origens. Certamente, essa viso cientfica um tanto distante da criao premeditada e sobrenatural retratada no Gnese. Mas ser que ela , de fato, capaz de abordar a questo da origem de todas as coisas?Qualquer verso cientfica da criao (a ser explorada em detalhe mais adiante), inclusive essa valiosa tentativa de abordar racionalmente o problema da Primeira Causa, precisa ser formulada de acordo com princpios e leis fsicas: a energia deve ser conservada; a velocidade da luz e outras constantes fundamentais da Natureza devem ter os valores corretos para garantir a viabilidade do nosso Universo. Ademais, um "nada quntico", com sua sopa borbulhante de universos-bebs, no exatamente o que podemos chamar de um nada absoluto. O problema que ns, humanos, no sabemos como criar algo a partir do nada. Precisamos dos materiais; precisamos das instrues. Essa limitao tor-na-se evidente quando tentamos lidar com a primeira das criaes, a do Universo. No se deixe levar por afirmaes ao contrrio, mesmo que usem termos inspiradores como "decaimento do vcuo quntico","supercordas", "espao-tempo com dimenses extra" ou "colises de multibranas": estamos longe de obter uma narrativa cientfica da criao capaz de ser empiricamente validada (ou seja, testada por experimentos). Mesmo se, um dia, formos capazes de construir tal teoria, ela dever ser qualificada como uma teoria cientfica da criao, baseada numa srie de suposies.A cincia precisa de uma estrutura, de um arcabouo de leis e princpios, para funcionar. No pode explicar tudo simplesmente porque precisa comear com algo. Como exemplo desses pontos de partida, cito os axiomas dos teoremas matemticos afirmaes no demonstradas, aceitas como evidentes e, portanto, como verdadeiras e, nas teorias fsicas, uma srie de leis e princpios da Natureza, como as leis de conservao de energia e de carga eltrica, cuja validade extrapolada muito alm dos limites em que podemos test-las. Como essas leis descrevem eficientemente os fenmenos naturais que podemos observar, supomos que continuaro a ser vlidas nas condies extremas pre-valentes na vizinhana do Big Bang, o evento que marca a origem do tempo. Porm, no podemos ter certeza se nossas extrapolaes esto corretas e cientistas no deveriam afirmar o contrrio at termos confirmao experimental. Como disse o paleontlogo J. William Schopf, da Universidade da Califrnia, "Asseres extraordinrias necessitam de provas extraordinrias".Por outro lado, teorias cosmolgicas modernas explicam com enorme sucesso detalhes de eventos que ocorreram muito prximos da origem do tempo, um feito que e deveria ser celebrado como sendo absolutamente fabuloso. Podemos hoje afirmar com segurana que o Universo emergiu de uma sopa quente e densa de partculas elementares de matria h pouco menos de 14 bilhes de anos, mesmo que os detalhes desse parto csmico permaneam desconhecidos. Sabemos que o cosmo-criana, com apenas alguns minutos de existncia, produziu os elementos qumicos mais leves, e que exploses estelares forjaram e continuam forjando aqueles necessrios para a vida. Entendemos o funcionamento do cdigo gentico e o mecanismo responsvel pela incrvel diversidade de animais e plantas na Terra. Descontando a possvel existncia de outros seres capazes de teorizar sobre a vida e a morte, ns acidentes imperfeitos da criao somos como o Universo reflete sobre si mesmo. Em outras palavras, somos a conscincia do cosmo. Como exploraremos neste livro, essa revelao profundamente transformadora. Mesmo que vivamos num local mundano do cosmo, e que talvez no sejamos as estrelas principais do grande pico da Criao, o fato que somos, sim, especiais. Por essa razo, devemos ser extremamente cuidadosos. Nossos triunfos e conquistas so imperfeitos e limitados como ns. importante lembrar que o que importa no chegar a verdades absolutas, mas ao conhecimento. Como Tom Stoppard escreveu em sua pea Arcdia, o que importa no saber tudo, mas o querer saber.A cincia uma construo humana, uma narrativa que criamos para explicar o mundo a nossa volta. As "verdades" que obtemos, como a lei da gravitao universal de Newton ou a teoria da relatividade especial de Einstein, apesar de brilhantes, funcionam apenas dentro de certos limites. Sempre existiro fenmenos que no podero ser explicados por nossas teorias. Novas revolues cientficas iro acontecer. Vises de mundo iro se transformar. Infelizmente, vaidosos que somos, atribumos peso demais s nossas conquistas. Iludidos pelo nosso sucesso, imaginamos que essas verdades parciais so parte de um grande quebra-cabea, componentes de uma Verdade Final, esperando para ser desvendada. Foram muitas as grandes mentes que buscaram, durante dcadas de suas vidas, por esse Graal, que chamarei aqui de Cdigo Oculto da Natureza: Pitgoras, Aristteles, Kepler, Einstein, Planck, Pauli, Schrdinger, Heisenberg. A lista longa. Milhares de outros continuam a faz-lo nos dias de hoje, herdeiros de uma tradio filosfica nascida na Grcia Antiga, que equaciona a perfeio e a beleza com a verdade.Com o passar dos sculos, essa tradio filosfica fundiu-se ao mo-notesmo judaico-cristo: a Criao, sendo obra de Deus, era perfeita e bela. Dedicar-se ao seu estudo, busca por verdades eternas, era a aspirao mais nobre do intelecto humano. Desde o nascimento da cincia moderna no incio do sculo XVII, homens como Kepler e Newton estavam convictos de que o quebra-cabea poderia ser resolvido, de que era apenas uma questo de tempo at que o Cdigo Oculto da Na-tureza fosse revelado em toda a sua glria. Essa crena continua mais viva do que nunca. O fsico ingls Stephen Hawking, ecoando os patriarcas da cincia, equiparou (metaforicamente) tal feito a "conhecer a mente de Deus". Ser que estamos mesmo nos aproximando da soluo, da Teoria Final? Ou ser que estamos perdidos, buscando um objetivo inatingvel? No seria adequado nos perguntar por que precisamos tanto acreditar nessa Teoria Final? No deveramos nos perguntar por que temos tanta convico de que ela de fato existe? O que nos diz a evidncia experimental e observacional? Ser que a crena numa Teoria Final uma fantasia, a encarnao cientfica do monotesmo, a expresso intelectual do desejo de uma vida mais espiritual, uma tentativa de resgatar um Deus que a razo exorcizou?Dado que a Teoria Final necessariamente explica a origem do Universo (e tudo o mais), vemos agora como ambas as buscas a por uma descrio unificada da Natureza e a por uma explicao da origem de todas as coisas convergem: a Teoria Final contm a Primeira Causa; a Primeira Causa contm a Teoria Final. Ser que ns, seres limitados, poderemos um dia explicar a Criao em toda a sua complexidade?Conhecemos ao menos duas respostas:"Claro que sim!", afirmariam os Unificadores. "A essncia da Natureza pode ser expressa atravs de certas leis e princpios fsicos. Em breve, todos sero descobertos. So a base da teoria unificada de campos, a expresso suprema da simetria matemtica oculta em tudo o que existe. Ns a chamamos de Teoria de Tudo ou Teoria Final.""Claro que sim!", afirmariam os Crentes. "Todas as respostas esto escritas no nosso Livro Sagrado. A Criao obra de Deus, onipotente, onisciente e onipresente. Apenas um ente sobrenatural pode existir antes do espao e do tempo. Apenas um ente sobrenatural pode transcender a realidade material para cri-la. Deus a Primeira Causa e a Verdade Final."Sero essas as nicas opes? Ou ser que existe uma terceira alternativa? Durante milnios, temos vivido numa espcie de transe, encantados pelos poderes msticos da unidade de todas as coisas. Ajoelhados em nossos templos, ou buscando pela expresso matemtica da "mente de Deus", tentamos desesperadamente transcender os limites do mera-mente humano, procurando por uma perfeio que no encontramos em nossas vidas. Perdidos no fervor da busca, fechamos os olhos para ns mesmos e para o mundo a nossa volta, e deixamos de valorizar o que temos. Esse foco numa perfeio divina precisa mudar. Precisamos abraar os ensinamentos de uma nova viso cientfica do mundo, onde o poder criativo da Natureza reside nas suas imperfeies, e no na sua perfeio; onde a vida, e mesmo a nossa existncia, frgil e preciosa. Dentro dessa nova viso, nosso conhecimento do mundo ser sempre limitado. No existe uma Teoria Final, apenas uma descrio cada vez mais precisa da realidade em que vivemos.Sei que a transio no ser fcil. Teremos que confrontar com muita humildade a verdadeira dimenso da nossa existncia, num cosmo indiferente nossa presena. Por sermos pequenos e frgeis, somos nicos e preciosos, agregados raros de tomos inanimados capazes de reflexo. Em apenas alguns milnios, nos desenvolvemos a ponto de hoje poder mudar o curso da histria do nosso planeta e, portanto, o da nossa tambm. A coexistncia do nosso poder destrutivo com a fragilidade do nosso planeta precria. A humanidade encontra-se numa encruzilhada. As decises que tomaremos nas prximas dcadas definiro o futuro da nossa espcie e o da nossa casa planetria. Apesar de a estrada ser longa, o primeiro passo simples: entender que nada mais importante do que a preservao da vida.Medo das trevasQuando era menino, eu morria de medo do escuro. O que os olhos no viam, a imaginao criava. Aps o cair da noite, a porta do meu armrio tomava vida e os desenhos da madeira comeavam a se contorcer, como se monstros terrveis estivessem tentando escapar, prontos para me atacar. A pequena luz verde ao p da minha cama, posta l pelo meu pai para amenizar a minha angstia, s fazia piorar as coisas, dando s sombras uma coreografia sobrenatural. Escondia-me sob o travesseiro feito um avestruz, rezando para que os entes-sombra no me avistassem.Mas o medo no ia embora. Ser que algo tocou no meu p? Que rudo estranho foi aquele? Podia jurar que senti uma brisa junto ao meu rosto, enterrado sob o travesseiro. No havia dvida, "eles" estavam cada vez mais prximos. Desta vez, no escaparia... iriam arrancar-me da cama e afndar suas presas no meu pescoo, drenando a vida de minhas veias. Tinha que reagir, fazer algo para sobreviver. Levantava a ponta do travesseiro e olhava rapidamente em torno, tentando me convencer de que no havia nenhum monstro, de que havia imaginado tudo. Ao menos, era isso que dizia meu pai. "Se voc tem tanto medo do escuro, por que adora assistir a filmes de terror? Por que fica lendo essas revistas com histrias de vampiros e lobisomens? Qual o seu problema, meu filho?"Meu pai sabia apenas metade da histria. Aos dez anos, minha vida girava em torno de histrias de terror e de supersties sobrenaturais. Era viciado em medo. No me limitava simplesmente a assistir a filmes ou a ler livros. Eu era um vampiro ou, pelo menos, acreditava que estava prestes a virar um. bem verdade que o apartamento em que morava em Copacabana no tinha muito em comum com um castelo decrpito na Transilvnia. Porm, estava convicto de que esse era o meu destino. Como prova, tinha os caninos pontiagudos, capazes de furar folhas de papel como agulhas. "Obviamente, isso algum efeito psicos-somtico bizarro", protestava meu pai, exasperado. E quem melhor doque ele, um dentista formado pela Universidade de Harvard, para saber dessas coisas?Quando cheguei aos onze anos, minha morbidez tornou-se mais intelectualizada. Pegava sozinho o nibus at a Biblioteca Nacional no centro da cidade para ler livros sobre vampiros. No via outra alternativa: de alguma forma, precisava entrar no mundo dos mortos. Virar vampiro me parecia ser o nico caminho. Queria poder driblar a morte, tornar-me imortal. Para os no iniciados, vampiros so mortos-vivos: durante o dia esto mortos, escondidos em seus caixes. Porm, ao anoitecer, despertam de seu estupor e saem pelas sombras em busca de sangue humano, o segredo da sua imortalidade. Para mim, nenhuma criatura era mais fascinante do que o conde Drcula, o Prncipe das Trevas. Que outro personagem da literatura era mais poderoso do que a prpria morte, capaz de controlar as pessoas especialmente belas mulheres com seus poderes hipnticos, de se transformar em morcego e voar pela noite, e at de perder a sua forma material, transformando-se numa tnue nvoa?Sei que pareo ter sido um pr-adolescente um tanto desequilibrado, mas minha morbidez no vinha do nada. Quando tinha seis anos, minha me morreu em circunstncias trgicas. Agora que tenho fdhos, vejo no meu dia a dia a devastao emocional que uma perda dessas causa. De repente, passei a ser a criana que no tinha me, a que meus amigos olhavam de forma estranha, como se fosse uma ovelha desgarrada. Quantas vezes ouvi mes e babs dizerem s suas crianas, "Coitadinho do Marcelo, ele no tem uma mame feito voc. Vai l, brinca com ele, brinca". No apenas a humilhao de ser diferente, ou a dor de no ter mais o amparo emocional, a doura, os carinhos da mulher que o ps no mundo. O mais doloroso de no ter uma me no ter uma me: no ter o seu colo e os seus abras quando voc tem medo; no ter algum para celebrar com voc as notas boas ou a vitria num jogo; no ter mais aquela pessoa que voc sabe que o amar sempre, incondicionalmente. Todos os dias via meus amigos saindo da escola de mos dadas com suas mes, sorrindo, contentes da vida, e me sentia amaldioado. A maior tragdia de no ter me saber que ela no o ver crescer, que no ser mais parte da sua vida; saber que haver um lugarvazio na sua formatura, no seu casamento, no nascimento do seu primeiro filho. a ausncia que di. A maior tragdia de no ter me que para sempre.No podia aceitar isso. Tinha que transcender as fronteiras do tempo, ir alm do mundo dos vivos, encontrar algum modo de traz-la de volta para mim. Ou, caso falhasse, de ir at ela. Tinha que v-la novamente, de sentir a sua pele macia junto minha, de olhar nos seus olhos castanhos e saber que ela me via tambm, de ouvir a sua risada. Lem-brava-me apenas das lgrimas, da tristeza, do desespero. Se fosse capaz de controlar o tempo, poderia mudar tudo. Se fosse senhor da vida e da morte, poderia estar com ela outra vez. De alguma forma, tinha que ser mais do que humano.Para a minha mente, jovem e impressionvel, incapaz de diferenciar a realidade da fantasia, a imerso num mundo sobrenatural, onde vampiros e outras criaturas existiam alm das fronteiras da vida e da morte, era uma escolha bvia. De dia, na escola, ouvia histrias do Antigo Testamento, onde Deus, onipotente, afogou quase que toda a humanidade (e os animais), ou de como Ele transformou cajados em serpentes e o mar em sangue, ou de como anjos desciam dos cus para lutar com meros mortais. Ouvia, tambm, histrias sobre espritos e demnios, e de humanos capazes de desafiar a prpria morte. A minha preferida era a lenda do Golem, que contava como o rabino Loew, que viveu em Praga no final do sculo XVI, deu vida a uma esttua de barro, aps inscrever palavras mgicas na sua testa. Se aprendia isso tudo na escola, ser que era to absurdo assim acreditar em outros seres sobrenaturais? Como a psicloga da escola podia me considerar emocionalmente frgil se, na sala de aula, aprendamos que Deus transformava pessoas em esttuas de sal e, na escola catlica perto da nossa, at mesmo a ressurreio dos mortos era permitida e celebrada?TransioComecei minha adolescncia numa espcie de transe. Podia jurar que vi, mais de uma vez, o fantasma da minha me flutuando numa ca-misola branca no fim do longo corredor do nosso apartamento, que ligava a sala de estar aos quartos. Seu rosto trazia toda a tristeza do mundo. Aos poucos, fui me convencendo de que as aparies tinham uma misso, de que minha me queria me dizer algo. Se ela estava mesmo l, ou se a viso era fruto da minha imaginao, me era indiferente. O que importava era a emoo que sentia quando a via, que era bem real. Finalmente, entendi o que queria me dizer. Ao contrrio do que eu planejava, no tinha que abraar a morte, cercar-me de morbidez, para estar perto dela. Tinha, sim, que abraar a vida, celebrar a sua memria, viver pelo que ela no viveu. Tinha que torn-la orgulhosa de ser a minha me. A verdade que, viva ou morta, ela sempre seria a minha me. Quando no temos me inventamos uma, na tentativa de preencher o enorme vazio emocional deixado pela sua ausncia. Na verdade, isso ocorre sempre que sofremos uma perda, no s a da me ou a do pai. Conto aqui essa histria porque a minha e a conheo bem. Toda perda deixa um vazio que deve ser preenchido. O desafio, claro, saber como preench-lo da melhor maneira possvel.Havia iniciado a transio de volta vida. Comecei a jogar vlei e a ter aulas de violo clssico. Passei a estudar mais e a prestar ateno nas garotas da minha escola. Quando completei quatorze anos, o fantasma da minha me deixou de aparecer, o que interpretei como um bom sinal. "Finalmente, ela estava em paz", imaginei, "agora que o filho menor havia escolhido o caminho da luz e no o das trevas."Foi nessa poca que descobri a cincia. Sabia dela antes, claro. Afinal, tive aulas de cincia j no ensino fundamental. At hoje me lembro bem da experincia do gro de feijo no algodo umedecido. Infelizmente, fora alguns raros professores inspirados, o ensino de cincias que tivedeixou muito a desejar. Mesmo assim, fiquei cada vez mais fascinado. Lembro perfeitamente quando, com a cara grudada na televiso, assisti boquiaberto aos astronautas Neil Armstrong e Buzz Aldrin plantarem a bandeira americana na Lua. Tendo crescido durante a Guerra Fria (mesmo morando no Brasil, pois a ameaa era global), o poder destrutivo da bomba H me aterrorizava. Como entender que, pela primeira vez na histria, o homem tinha o poder de obliterar a civilizao por completo apertando apenas alguns botes? Por outro lado, a viso mtica do futuro na obra-prima de Stanley Kubrick, 2001: Uma odissia no espao, me impressionou profundamente. Ser que inteligncias superiores nossa viviam nos confins do espao? Ser que foram eles que nos criaram? Ser que nos vigiam distncia, invisveis como deuses? Meu pai, um grande f das idias promulgadas por Erich Von Dnicken em seu livro Eram os deuses astronautas?, adorava especular sobre esses assuntos, inspirando ainda mais a minha imaginao. Tnhamos "prova" de que os aliengenas haviam estado aqui e de que eram muito mais avanados do que ns. Apesar de ter acreditado durante um tempo que as linhas de Nazca no Peru eram pistas de aterrissagem para espaonaves extraterrestres e que as pirmides do Egito haviam sido construdas sob tutela dos ETs, gradualmente comecei a questionar o que lia e ouvia. Por que os extraterrestres s se interessaram pela gente no passado distante, quando nossa tecnologia era to primitiva? Por que no voltavam agora, para nos dar um empurro to necessrio em direo s estrelas?Quando aprendi que a cincia era capaz de nos mandar Lua e de destruir mundos, de nos dar poderes que, cem anos antes, seriam reservados aos deuses, meu medo do escuro transformou-se numa venerao pela noite e os seus mistrios. Em vez de Drcula, agora queria ser um cientista vitoriano. Afinal, at mesmo o dr. Van Helsing, o arqui-inimigo do Prncipe das Trevas, era professor numa respeitada universidade europeia, e lanava mo da razo e do conhecimento para destruir o mal. Frankenstein, descobri, no era um filme de terror, mas um romance gtico explorando a cincia de ponta do incio do sculo XIX, o poder da eletricidade de acionar msculos e, possivelmente, ressuscitar os mortos.1Comecei a perceber que a cincia tinha uma dimenso mgica, uma mgica mais fascinante ainda por ser real, por ser criada por seres humanos, e no por criaturas sobrenaturais. Era a mgica da cincia que nos permitia desvendar os segredos ocultos da Natureza. Quanto mais aprendia, mais suspeitava da religio e das suas histrias. Vendo quantos assassinos agiam em nome de seus deuses, tornei-me cada vez mais ctico. Que moralidade religiosa era essa que inspirava o assassinato de inocentes? O que aconteceu com o "no faa aos outros o que no queres que faam a ti mesmo"? Para piorar, havia tambm a questo do sofrimento humano. Onde estava Deus quando minha me morreu? Por que eu? Ser que era j um pecador aos seis anos? Ser que meus irmos ou meu pai eram? Onde estava Ele quando rezava pedindo ajuda? E os terrveis desastres que marcam a histria da humanidade? Terremotos e erupes vulcnicas assolando cidades inteiras; maremotos e furaces; os crimes hediondos perpetrados pelos homens contra os homens, o Holocausto, o genocdio de russos e chineses por Stalin e Mao, a dizi-mao dos nativos das Amricas... A lista longa e assustadora. Afirmaes como "Deus age de forma misteriosa", ou "Deus tem mais o que fazer do que atender s preces de uma criancinha metida", ou "os feitos e os crimes dos homens devem ser atribudos aos homens e no a Deus", me soavam como desculpas, e no aliviavam em nada a minha angstia. Conclu que, se Deus teve mesmo algo a ver com a origem do mundo e da vida, obviamente perdeu o interesse pela Sua obra. Tinha que haver uma outra forma de enfrentar as questes da existncia.Na minha busca, comecei a devorar livros de divulgao cientfica escritos por autores venerveis como Isaac Asimov e George Gamow o originador da teoria do Big Bang e, claro, o famoso livro de Albert Einstein e Leopold Infeld, A evoluo da fsica. Das muitas coisas que aprendi nessas leituras, uma me impressionou mais do que as outras: se queremos desvendar os segredos mais ntimos do Universo e essa a misso principal das cincias fsicas temos que buscar pelas simetrias ocultas da Natureza. Por trs do aparente caos que nos cerca existe uma ordem racional, acessvel mente humana. Entendi que cientistas tambm tm uma crena: que a expresso matemtica dessa ordem, codifi-cada na simetria dos fenmenos naturais, a mais profunda e verdadeira expresso da beleza.A noo de que uma ordem oculta permeia tudo o que existe me impressionou profundamente. Sem que me desse conta, senti-me mais calmo, como se houvesse encontrado o que tanto buscava. Se a vida parece catica, no se desespere: busque na raiz das coisas e voc encontrar ordem e sabedoria. Poucos expressaram o sentido dessa busca to claramente quanto o grande astrnomo alemo Johannes Kepler, quando escreveu, um ano antes de sua morte: "Quando a furiosa tempestade ameaa naufragar o Estado, nada mais nobre nos resta fazer seno ancorar nossos estudos no cho firme da eternidade." A verdade eterna, que transcende os afazeres dos homens e nos remete ao que existe de mais exaltado, oculta-se nos mistrios da Natureza. Jurei, inspirado por Kepler, ancorar os meus estudos nas verdades eternas e buscar pela essncia racional da realidade. Entendi que essa busca um poderoso antdoto contra o sofrimento humano.Passei a ver a cincia como um ato heroico. Homens e mulheres buscando os mesmos objetivos, trocando experincias e aprendizados, desvendando os segredos mais ntimos da Natureza tal qual os sbios da Antigidade. As teorias que estudaria pareciam fazer parte de um conhecimento sagrado, de um cnone de saberes ocultos acessvel apenas aos iniciados: a teoria da relatividade e a unio do espao e do tempo; os buracos negros e a possibilidade de viagens no tempo; os estranhos tomos e seu potencial para criar e destruir; a vida e a sua misteriosa origem; e, finalmente, a mais fascinante de todas as questes, a origem do prprio Universo. O que poderia ser mais estimulante, mais maravilhoso, do que devotar minha vida a essa busca? Como os heris das sagas do passado, estava pronto para iniciar a minha peregrinao, pronto para ser transformado pela procura (ou, como me disse uma vez o psicanalista Hlio Pelegrino, pela "pr-cura"). As portas do templo estavam abertas, e as solues dos mistrios mais profundos da existncia estavam l, esperando para serem reveladas ao mundo.A vida me esperava. Meu caminho era devotar-me apaixonadamente ao estudo da matemtica e da fsica, virar um cientista e zarpar em busca de verdades eternas, ajudando a desvendar os segredos da Natureza.O que poderia ser mais mgico do que dedicar-me ao estudo de uma realidade invisvel, alm dos sentidos? A ponte que nos ligava a esse mundo paralelo estava bem ali, na minha frente, e no passava sobre terras sobrenaturais. Essa foi a maior revelao da minha vida at ento. A Natureza era cheia de mistrios e, para acess-los, no era necessrio mergulhar numa realidade sobrenatural imaginria. Bastava usar a mente e a intuio. Estava pronto para estudar fsica. Queria juntar-me aos Unificadores e buscar o cdigo oculto da Natureza.4FMinimizar a importncia e o poder da f na vida das pessoas um erro grave. Aqueles que acham que a tecnologia necessariamente leva a uma sociedade cada vez mais secular deveriam dar uma boa olhada em torno. Em junho de 2008, a Fundao Pew publicou os resultados da maior pesquisa realizada at ento sobre a importncia da religio nos Estados Unidos. Foram entrevistadas 35 mil pessoas, com idades acima de dezoito anos.2 Noventa e dois por cento dos entrevistados responderam "sim" seguinte pergunta: "Voc acredita em Deus ou num esprito universal?" Desse grupo, 71% responderam que tinham certeza absoluta, enquanto os 21% restantes no especificaram a natureza da sua crena. Apenas 5% dos entrevistados disseram no acreditar em nada. Trs por cento recusaram-se a responder. A margem de erro no estudo foi estimada em 1%. Ou seja, mesmo admitindo variaes do que "Deus" signifique, de cada dez americanos em mdia sete tm certeza absoluta de que Deus existe.Esses resultados demonstram que os Estados Unidos so uma das naes mais religiosas do mundo. No tendo dados equivalentes para o Brasil, arrisco dizer que os resultados de uma pesquisa semelhante seriam no mnimo comparveis. Mesmo que a crena em Deus seja menos prevalente na maioria dos pases da Europa e do Sudeste Asitico, no h dvida de que vivemos num mundo onde o conceito de uma divindade sobrenatural muito presente. Os incrveis avanos cientficos dos ltimos quatro sculos no criaram grandes mudanas no nmero de fiis, mesmo se compararmos com a Grcia ou o Egito Antigos. Se a percentagem de fiis na poca do fara Akenaton (circa 1350 a.C.) era, digamos, de 99,9%, esta apenas uma diferena de 7,9% do nmero atual nos EUA. De fato, descontando uns poucos pases (que incluem a maioria dos pases nrdicos, a Repblica Tcheca, a Frana, o Vietn e o Japo), a maioria esmagadora dos pases conta com menos de 50% deateus e agnsticos em sua populao.3 Esses nmeros nos dizem algo de importante: somos capazes de acreditar em algo mesmo na ausncia de qualquer evidncia. Em outras palavras, quando queremos acreditar em algo fica bem mais fcil nos convencer de que esse algo existe. Por exemplo, na mesma pesquisa da Fundao Pew, 49% dos entrevistados afirmaram que suas preces so atendidas vrias vezes por ano. Ou seja, um em cada dois americanos acredita que a comunicao com uma divindade sobrenatural no s possvel como tambm eficiente.Nos ltimos anos, a chamada "guerra" entre a religio e a cincia vem sendo abordada por um novo ngulo, bastante polmico. Cientistas como Richard Dawkins e Sam Harris, o filsofo Daniel Dennett, e o polmico jornalista ingls Christopher Hitchens, um grupo conhecido como os "Quatro Cavaleiros do Apocalipse", resolveram tomar a ofensiva, tachando a crena religiosa como uma espcie de iluso ou de delrio, uma forma de loucura coletiva que vem causando caos pelo mundo afora desde os primrdios da civilizao. O grupo prega um atesmo radical, usando uma retrica extremamente agressiva, to inflamada e intolerante quanto a do fundamentalismo religioso que se prope a combater.*Esse tipo de atitude acaba levando a uma radicalizao ainda maior. Um estudo superficial da histria da civilizao humana mostra que o extremismo uma pssima estratgia diplomtica. Acusar as pessoas que acreditam em Deus de serem ignorantes, loucas ou simplesmente estpidas, no leva a nada. Deixando de lado os possveis benefcios sociais e psicolgicos da religio todos em princpio proporcionveis por meios seculares como uma entidade que proporciona um senso de comunidade e identidade a bilhes de pessoas, e que oferece consolo a tantos tipos de sofrimento, existe uma razo universal que leva as* Quando acusado de fundamentalismo, Dawkins defende-se afirmando que, ao contrrio dos extremistas religiosos, mudaria imediatamente de idia se tivesse provas convincentes. Imagino que, caso Jesus aparecesse flutuando sobre um arco-ris frente de um judeu ou um muulmano ortodoxo, eles tambm se converteriam ao cristianismo. Mas talvez eu esteja sendo muito otimista. Provavelmente, diriam que era algum demnio, tentando comprometer a sua f.pessoas a buscar pela f, mesmo na ausncia de provas de que divindades sobrenaturais existam. Claro, muitos diriam que essas provas no fazem sentido, que a sua f j prova suficiente, que nem tudo no mundo tem que ser comprovado para ser real. A verdade que provas empricas no tm nada a ver com o poder da f. Quanto mais misterioso o credo, mais ardente a crena. A grande maioria das pessoas acredita no sobrenatural por no aceitar que a morte possa ser o fim definitivo da vida. No queremos ser esquecidos, reverter ao nada, perder nossos entes queridos. Quantas pessoas j no passaram por este mundo, ricas e pobres, reis e escravos, famosas e desconhecidas, belas e feias, pessoas que amaram e foram amadas, que sentiram alegria e dor, e que agora so apenas um punhado de p? "Ser que s isso? Ser que vivemos, amamos e sofremos para sermos esquecidos aps algumas geraes? Se temos apenas alguns anos de vida, e nem sempre felizes, para que batalhar tanto? Qual o sentido da vida, se no final a morte e o esquecimento so inevitveis?"Com mais perguntas do que respostas, as pessoas abraam a f, entregando-se a algo que promete al-las alm dos confins da matria e do tempo. Ridicularizar essa necessidade humana, como fazem os "Quatro Cavaleiros" e tantos outros, demonstrar uma profunda ignorncia (ou indiferena?) do que passa pelos coraes e mentes de bilhes de pessoas espalhadas pelos quatro cantos do mundo.Alguns anos atrs, dei uma entrevista ao vivo para uma rdio AM em Braslia. Estvamos na rodoviria, perante uma audincia composta principalmente de operrios e diaristas. Falei da origem do universo de acordo com a teoria do Big Bang e de como a cincia explicava tantos detalhes da Criao. De repente, a mo de algum se ergueu numa das primeiras filas. Um homem com rugas precoces e o rosto sujo de graxa me olhava intensamente. "Quer dizer que o senhor quer tirar at Deus da gente?" perguntou. Olhei-o chocado, sabendo que a sua voz ecoava bilhes de outras.Karl Marx disse a famosa frase: a religio o pio do povo. Se a inteno de alguns tirar a religio das pessoas, bom oferecer um outro tipo de pio. O que o atesmo oferece mesmo com todo o seu apelo a razo e lgica da cincia no vai funcionar. Ao menos no comocostuma ser apresentado, sem qualquer vestgio de espiritualidade. Para evitar confuso, importante explicar que, para mim, espiritualidade no est ligada a uma dimenso religiosa sobrenatural, oposta ao mundo material. Tambm no est ligada a uma possvel conexo espiritual com a "mente de Deus" que os Unificadores buscam numa Teoria Final. O que inspira a minha espiritualidade a ligao profunda que sinto com a Natureza, uma celebrao da vida.Vrios atestas e agnsticos afirmam que seu modo de pensar no incompatvel com uma relaospiritual com a vida. Concordo plenamente. O difcil demonstrar essa compatibilidade, especialmente se o ponto de partida o materialismo estrito do racionalismo cientfico. Afirmar que a Natureza bela e que o estudo de seus mecanismos e fenmenos nos inspira espiritualmente no o suficiente. Apenas uma reavaliao do nosso lugar na ordem natural das coisas, produto de um novo modo de se pensar sobre a cincia e sobre o seu papel no mundo, que pode levar a uma espiritualidade livre de uma f sobrenatural.A f brota da nossa dificuldade de lidar com o imprevisto, com o que est alm do nosso controle ou compreenso. Se somos apenas carne e osso, uma mera coleo de molculas sujeitas s leis da Natureza, no temos outra alternativa seno seguir o curso das coisas materiais e ao final retornar ao p inanimado de onde viemos. Ao nos defrontarmos com questes desse tipo, muito tentador acreditar que o fim da vida no o fim da nossa existncia, que possvel ir alm das rgidas limitaes temporais impostas pelo materialismo. Se a cincia ir nos ajudar como uma "luz nas trevas", como queria Carl Sagan, ela prpria tem que ser repensada. O primeiro passo admitir que a cincia tem limites, que a sua prtica e os cientistas que a praticam tm limites. A cincia tem que ser humanizada, relacionada com a cultura em que existe. Precisamos confessar nossa surpresa ao nos depararmos com um Universo aparentemente cada vez mais misterioso; precisamos ser mais humildes ao declarar o quanto sabemos sobre o mundo, no nos esquecendo do quanto no sabemos. Isso no significa que no devamos celebrar nossos tantos triunfos. H quatro sculos, a cincia vem transformando nossas vidas e nossa viso de mundo basta lembrar que, para Cabral e todos do seu tempo, a Terra era o centro do cosmo. Por outrolado, importante lembrar que esses triunfos so frutos da criatividade de homens e mulheres que no esto imunes aos anseios e incertezas que fazem parte da vida de todos. Como veremos, muitos cientistas, incluindo alguns dos maiores, foram e so inspirados por mitologias. Muitas vezes, consciente ou inconscientemente, confundem sonho e realidade, e tentam impor ao mundo propriedades que existem apenas na sua imaginao. No h nada de errado, como fizeram Kepler e Einstein, em "sonhar com a Teoria Final" ou "buscar pelas harmonias". Tais noes inspiraram grandes descobertas, muitas delas retratadas em livros como, por exemplo, os de Steven Weinberg e Frank Wilczek, dois prmios Nobel de fsica que usam essas expresses nos seus ttulos. Por outro lado, devemos aceitar o que a Natureza nos diz, mesmo que contrarie nossas fantasias. E a evidncia que temos hoje que no isso o que est ocorrendo.Origens do monotesmoA idia de que por trs da enorme diversidade do mundo existe uma realidade mais simples que a tudo engloba tem suas razes na f mono-testa: existe apenas um Deus e esse Deus criou tudo o que existe.* Se acreditamos que tudo vem de Deus ou de Sua essncia transcendental, tudo, ento, parte dessa realidade divina e nica. Uma fonte d origem a tudo, e para ela tudo deve retornar. Dessa forma, tudo o que existe no mundo uma manifestao da presena divina.Essa noo da unidade de todas as coisas est conosco h milnios. Como alguns leitores devem ter percebido, no invoquei o fara Ake-naton por coincidncia. A primeira meno que temos de uma crena monotesta data de seu reino, que ocorreu em torno de 1350 a.C. O prprio fara celebrou o monotesmo em seu "Grande hino a Aten": Deus nico, que nenhum outro pode igualar!O mundo Tua criao, de acordo com o Teu desejo...Akenaton declarou-se emissrio de Deus, a nica ponte entre o humano e o divino. Ordenou que todas as esttuas e imagens de outros deuses fossem destrudas, condenando a f politesta de seus antepassa-* At mesmo em religies politestas podemos identificar um deus ou princpio divino dominante. Para os gregos da Antigidade, Zeus era o mestre do monte Olimpo, o deus dos deuses. Para os hindus, Brahma a essncia de todas as coisas, a substncia do espao, do tempo e da matria, criador e destruidor de toda a existncia. Em algumas verses do budismo, uma religio que prescinde de uma divindade, a figura do Buda adquire uma natureza sobre-humana, que transcende a morte fsica de Sidarta Gautama, seu fundador. Por exemplo, na vertente conhecida como Mahayana, o conceito de Dharmakaya representa o aspecto eterno de todas as coisas, a essncia mais fundamental do Universo. Variaes parte, aqui estamos interessados na concepo de um Deus central que, de um modo ou de outro, aparece em todas as principais religies do mundo.dos como uma forma de paganismo que deveria ser extirpado a todo custo. V-se que a intolerncia para com as outras religies j estava presente nos primrdios da f monotesta: ao escolhermos um deus, exclumos todos os outros. Embora a influncia das idias de Akenaton aps o seu reinado seja ainda alvo de controvrsia entre os historiadores da religio, Freud sugeriu algo bem interessante em seu livro Moiss e o monotesmo. Segundo ele, Moiss teria sido um sacerdote atenista, forado a deixar o Egito com seus seguidores aps a morte de Akenaton. Caso Freud esteja certo, o fiel sacerdote teria sido mais bem-sucedido do que o fara. Porm, como nos conta o Antigo Testamento, ao contrrio de Akenaton, Moiss teve uma pequena ajuda de Deus, o que lhe deu uma pequena vantagem sobre os seus oponentes.Sem entrar no mrito da sugesto de Freud, no h dvida de que crenas religiosas diversas circularam pelo Oriente Mdio, influenciando a muitos. Por exemplo, por volta da mesma poca, o templo de Pella Migdol, na Jordnia, registra a ascenso do monotesmo um pouco mais ao norte.4 Com a melhoria das rotas mercantis terrestres e martimas, o comrcio aumentou, as pessoas viajaram mais e foram expostas a diferentes crenas. Aos poucos, noes monotestas espalharam-se pela costa do Mediterrneo. Por volta de 600 a.C., na Grcia, ocorreu uma grande transio. Como veremos a seguir, foi l que a noo da unidade de todas as coisas apropriou-se do intelecto ocidental, influenciando a prpria origem da filosofia.O mito de PitgorasTales, natural da cidade de Mileto, na costa oeste da Turquia moderna, considerado o fundador da filosofia ocidental. Como o caso da maioria dos filsofos pr-socrticos esse grupo de homens incrivelmente criativos que viveu at por volta da poca de Scrates (circa 469 - 399 a.C.) quase nada sabemos sobre a sua vida e obra. Mesmo assim, textos escritos sculos aps a sua morte, principalmente os de Aristteles e do historiador Digenes Laerte (circa 200 d.C.), assim como uma persistente tradio oral, atribuem a Tales a distino de ter sido o primeiro a fazer um pronunciamento cientfico sobre o mundo: "Tudo feito de uma nica substncia", disse. Tales defendia a unificao da matria. Segundo ele, na coreografia de criao e destruio que caracteriza o mundo natural, tudo o que existe vem dessa matria e para ela reverte. Portanto, j na sua origem, a filosofia natural grega prega a noo da unidade de todas as coisas.Tales props que a gua fosse a essncia material do mundo, provavelmente devido sua habilidade de se transformar e de se adaptar sem jamais perder a sua identidade: para ele, a realidade material flua em forma mas no em essncia. Os seguidores de Tales, conhecidos como inicos, continuaram defendendo a noo-chave de seu mestre, a existncia de uma unidade material por trs da diversidade das coisas, mesmo que houvesse variaes na escolha da substncia primordial. Por exemplo, para o filsofo Anaxmenes, essa substncia era o ar.Com o passar dos sculos, a noo de unidade material da Natureza, apesar de sofrer vrias transformaes, persistiu. O historiador da cincia Gerald Holton, da Universidade de Harvard, usou a expresso encantamento inico" para ilustrar a busca pela unidade na cincia.5 Como veremos, esse "encantamento" continua to presente no pensamento cientfico moderno como era ento, h mais de dois milnios. Mais apropriadamente, em seu ensaio "Logical Translation", o grandefilsofo e historiador das idias Isaiah Berlin referiu-se busca por uma descrio unificada do mundo material como a "falcia inica", argumentando que "Uma afirmao do tipo 'Tudo consiste em...' ou 'Tudo ...', a menos que seja emprica, no significa nada, pois uma proposio que no pode ser contrariada ou questionada no contm informao".6 Um dos objetivos deste livro expor a relao entre a falcia inica e o encantamento com a unificao, oferecendo uma viso alternativa.Algumas dcadas aps Tales, Pitgoras, outro filsofo pr-socrtico, combinou uma forma de misticismo matemtico com a noo inica de unidade para criar uma viso de mundo que viria a influenciar profundamente o pensamento ocidental. no legado pitagrico que encontramos a noo de que o mundo natural pode ser descrito atravs de relaes matemticas que traduzem, de forma racional, a sua perfeio e simetria. Segundo Pitgoras, a Natureza construda a partir de princpios simtricos que traduzem a ordem fundamental que existe por trs de todas as coisas. Essencialmente, a mesma crena, de que a Natureza, em sua essncia, simtrica e perfeita, forma o arcabouo das teorias de unificao da fsica moderna. Os pitagricos acreditavam que, sob o aparente caos do mundo, existiam simetrias matemticas que revelavam a simplicidade e beleza da Natureza: o cdigo oculto da Natureza. Para encontrar esse cdigo, era necessrio ir alm das aparncias e buscar por essas relaes numricas e geomtricas, as leis matemticas que descrevem a realidade. Como argumentou Plato profundamente influenciado pelo pensamento pitagrico o mundo que vemos e ouvimos uma distoro: nossos sentidos podem nos iludir. Apenas atravs da razo que podemos encontrar a verdadeira essncia da realidade. Essa essncia, por sua vez, est fundamentada na matemtica, nas formas geomtricas e nas suas relaes e propores. Por exemplo, para Plato, o nico crculo perfeito a idia de crculo que exis na nossa imaginao. Qualquer representao concreta de um crculo ser necessariamente imperfeita. Em outras palavras, o mundo real o mundo pensado e no o mundo olhado. Como escreveu o filsofo e matemtico britnico Bertrand Russell em seu livro Histria da filosofia ocidental (1946), "Pitgoras... foi intelectualmente um dos homens mais importantes da histria, mesmo quando era sbio ou quando no o era".Parece que Pitgoras nunca provou o famoso teorema que leva o seu nome, ou, como se acreditava at recentemente, tenha desenvolvido a estrutura da prova dos teoremas matemticos.7 Muito do que se atribui a ele foi obra de seus discpulos, ou conseqncia de uma elaborada inveno de Espeusipo e Xencrates, discpulos de Plato que usaram o nome legendrio de Pitgoras para apoiar os aspectos mais matemticos da filosofia de seu mestre. Inicialmente devido ao pensamento de Plotino e, mais tarde, ao de outros neoplatonistas, o mito de Pitgoras avanou ainda mais durante a Idade Mdia e, mais tarde, na Renascena. Todos desejavam essencialmente o mesmo: construir um vnculo entre a matemtica e a experincia mstica de Deus.De qualquer forma, a questo que, desde a Antigidade, as idias atribudas a Pitgoras vm nutrindo os sonhos daqueles que buscam o cdigo oculto da Natureza. Ao contrrio dos inicos, para os pitagricos a essncia da Natureza estava nos nmeros e nas suas relaes, e no na unificao da matria. Como veremos, na fsica moderna as duas noes sero combinad: a unificao da matria ser descrita por nmeros e por simetrias expressas atravs de relaes matemticas.Se nossa premissa que a Criao obra de um Deus racional, a matemtica passa a ser a ferramenta que nos permite desvendar os seus segredos e, assim, estabelecer uma unio com o Criador. O Pitgoras mtico era justamente aquele que conseguiu atingir essa unio, um se-mideus capaz de feitos sobre-humanos, o filsofo-santo que servia de inspirao a todos que sonhassem em se aproximar da mente de Deus. As descobertas atribudas a ele, como o seu teorema e a relao entre os sons harmnicos e os nmeros inteiros, eram os primeiros vislumbres de uma sabedoria que, supostamente, transcendia a realidade dos homens. Apenas o mestre grego podia ouvir a harmonia das esferas, o coro polifnico entoado pelos planetas ao girarem em suas rbitas circulares em torno da Terra. Pitgoras e seus seguidores acreditavam que as mesmas propores numricas que definiam os sons harmnicos da escala musical definiam, tambm, as distncias entre os planetas. Por exemplo, duas cordas de violo, uma o dobro da outra e, portanto, numa proporo de 2:1, ressoam harmonicamente ao serem tocadas juntas; do mesmo modo, Saturno est aproximadamente duas vezes mais longe do queJpiter, satisfazendo a mesma proporo de 2:1. Suas "vozes" devem ressoar com a mesma harmonia/Resumindo, os pitagricos acreditavam que os nmeros eram a essncia da Natureza e que os homens, com sua habilidade de compreender e interpretar as relaes entre os nmeros, eram capazes de decifrar o cdigo oculto da Natureza. Dado que o poder de um mito no est na sua veracidade mas na sua capacidade de convencer, o legado do Pitgoras mtico muito mais relevante historicamente do que a obra concreta do Pitgoras homem. Na tradio intelectual do mundo ocidental, o misticismo matemtico de Pitgoras transformou-se na ponte entre a razo humana e a inteligncia divina. Durante a Renascena, esse legado ir inspirar o trabalho do homem que iniciou a revoluo de maior impacto na histria do conhecimento.* Em nmeros modernos, a distncia mdia entre Saturno e o Sol de 1.427 milhes de quilmetros e a entre Jpiter e o Sol de 778 milhes de quilmetros, dando uma razo de 1,83:1, no to distante assim da proporo de 2:1 da escala musical. Provavelmente, os astrnomos da Antigidade baseavam-se no perodo orbital do planeta (o tempo de uma rbita completa) e no nas suas distncias at a Terra, que eram desconhecidas na poca. Nesse caso, o resultado pior: Saturno tem um perodo orbital de 29 anos e lpiter de 12 anos, dando uma razo de 2,4:1.?Vivendo o sonho platnicoNo dia de sua morte, 24 de maio de 1543, Nicolau Coprnico, acamado e semiparalisado, recebeu em mos a primeira impresso de sua obra-prima, Sobre as revolues das esferas celestes, onde resumiu dcadas de seu trabalho em astronomia. A ocasio, que deveria ter sido motivo de grande celebrao, tornou-se um pesadelo. Durante quarenta anos, o tmido Coprnico estava convencido de que, por toda a histria, dos babilnios a Aristteles, do grande Ptolomeu aos inspirados astrnomos islmicos que mantiveram viva a sabedoria grega durante as trevas medievais, literalmente todo mundo, sbio ou ignorante, pensava de forma errada sobre o arranjo dos cus. O to amado cosmo-cebola dos gregos, onde a Lua, o Sol, os planetas e as estrelas revolviam em rbitas circula-res em torno da Terra, era uma distoro da realidade. Coprnico acreditava que a Terra no era o centro do cosmo, que no tinha um papel especial na Criao: para ele, estava claro que a Terra era apenas um outro nmade csmico, girando junto aos outros planetas em torno do Sol, este sim o centro, a fonte de toda a luz. Por quatro mil anos, o mundo vivia uma grande iluso.Ao olharmos para a trajetria diria do Sol e da Lua, temos a impresso de que tudo gira mesmo a nossa volta. No surpreendente que nossos antepassados pensassem que a Terra era o centro do cosmo. Afinal, tanto no passado quanto no presente, e esse ponto extremamente importante, nossa viso de mundo determinada pelo que podemos ver e medir. Nossa imaginao, claro, vai alm, expandindo as fronteiras do real. Mas hipteses continuaro a ser hipteses, a menos que sejam confirmadas (ou rejeitadas) por meio de experimentos e observaes. Esse simples fato tem uma conseqncia vital: a despeito dos nossos fantsticos instrumentos de medida e observao, jamais poderemos medir tudo o que existe: sempre haver aspectos do mundo natural fora do alcance de nossos instrumentos. Portanto, nossa viso da realidade sersempre incompleta. Somos como um peixe que vive aprisionado num aqurio; mesmo que o nosso "aqurio" cresa sempre (pois isso o que ocorre com o corpo do conhecimento humano), tal como o peixe, nunca poderemos sair dele e explorar a totalidade do que existe. Haver sempre um "lado de fora", alm do que podemos explorar.Coprnico sabia que alguns gregos, dentre eles Herclides do Ponto e Aristarco de Samos, haviam j proposto alternativas ao modelo geo-cntrico. Sabia tambm que, se as idias desses filsofos j no foram aceitas na Grcia Antiga, a situao agora seria ainda pior, aps quinze sculos de teologia crist terem pregado a Terra no centro da Criao. No , portanto, surpreendente que Coprnico tenha esperado dcadas at ter tido a coragem de denunciar os erros do mundo. Sabia que sua obra teria srias repercusses. Uma nova cosmologia implicaria uma nova viso de mundo; uma nova viso de mundo, por sua vez, implicaria um lugar diferente para o homem no cosmo, numa nova explicao para quem somos e qual o sentido da vida. Se no somos mais o centro da Criao, somos ainda os eleitos de Deus? Se a Terra um mero planeta, ser que existem seres inteligentes em outros? Ser que tambm so pecadores e precisam ser salvos? Por quem? Pelo nosso Jesus, ou ser que Deus teve muitos filhos? Ser que o nosso Paraso o mesmo do dos extraterrestres? Tirar a Terra do centro causava muita confuso.Para complicar ainda mais as coisas, Coprnico no baseou seus argumentos numa nova fsica, distinta da de Aristteles. Inspirado pelos valores da Renascena, sua motivao era principalmente esttica, ordenar os planetas de acordo com o perodo de suas rbitas em torno do Sol: Mercrio, com um perodo de apenas trs meses, tem que ser o planeta mais prximo ao Sol; Vnus, com um perodo de oito meses, deve ser o segundo, seguido da Terra com um ano; Marte, com dois anos, deve vir aps a Terra; e, completando o sexteto planetrio, Jpiter e Saturno, com rbitas de doze e vinte e 29 respectivamente. Mas ser que argumentos estticos eram convincentes o suficiente?Coprnico estava ciente de que seu modelo estava longe de ser perfeito. Para comear, suas previses das posies dos planetas no cu no eram melhores do que as obtidas pelo modelo de Ptolomeu, propostotreze sculos antes e repleto de epiciclos.* Do ponto de vista prtico, o mais importante eram as posies planetrias previstas pelo modelo, j que, com elas, se faziam os mapas astrolgicos: a maioria das pessoas acreditava que, quanto mais preciso o clculo da posio de um planeta em relao s constelaes do Zodaco, melhor a qualidade da preso astrolgica. Se as previses de Coprnico no eram melhores do que as de Ptolomeu, por que abandonar o modelo geocntrico?Como Coprnico antecipara, suas idias foram atacadas pelos aris-totlicos: se a Terra no era o centro, por que as coisas caam em direo a sua superfcie? Por que a Lua girava em torno da Terra, mas os planetas em torno do Sol? A rotao diurna da Terra tambm causava problemas: se a Terra girava em torno de si mesma, por que pssaros e nuvens no ficavam para trs? Existia ainda a questo da composio material das coisas: as observaes da poca indicavam que as esferas celestes no pareciam mudar, brilhando com uma luz prpria. Aristteles, muito sensatamente, props que esses objetos fossem feitos de uma quinta substncia, a quintessncia, eterna e incorruptvel, distinta dos quatro elementos (terra, gua, ar e fogo) que compunham as substncias encontradas na Terra.Apesar de Coprnico ter oferecido algumas crticas s idias de Aristteles, em seu livro no havia nada que se comparasse ao arcabouo conceituai construdo pelo filsofo grego. Como vimos, seu argumento* No que Coprnico houvesse eliminado os epiciclos. Era muito difcil usar apenas crculos para descrever as trajetrias complicadas dos planetas nos cus: por exemplo, ocasionalmente estes pareciam recuar em vez de avanar (o chamado "movimento retrgrado"). Um epiciclo simplesmente um crculo imaginrio fixo a um outro crculo maior. O planeta, por sua vez, ficava preso ao epiciclo. Portanto, medida que o crculo maior girava, ele carregava consigo o epiciclo e o planeta, como uma pessoa girando numa roda gigante. A diferena que o epiciclo (o assento da pessoa) podia tambm girar. Com isso, era possvel gerar movimentos complicados, inclusive o movimento retrgrado dos planetas (a linha traada pela cabea da pessoa). Usando epiciclos, Ptolomeu conseguiu calcular a posio futura dos planetas com um erro equivalente ao tamanho ocupado pela Lua cheia no cu. E isso num modelo geocntrico proposto por volta de 150 d.C.! Coprnico no conseguiu muito mais com o seu modelo heliocntrico: no sabia que as rbitas planetrias so elpticas e no circulares.baseava-se principalmente numa nova esttica celeste, mais simtrica e por influncia de Pitgoras e Plato considerada mais bela e verdadeira.Possivelmente, o fato de o seu modelo no ser mais preciso do que o de Ptolomeu, aliado falta de uma justificao fsica, contribuiu para a longa hesitao de Coprnico. Quando finalmente resolveu publicar seu livro, argumentou que, apesar da importncia da preciso e do embasamento fsico, sua maior motivao era obedecer ao ideal platnico de uma ordem csmica: Coprnico retornou sugesto de Plato, de que os movimentos celestes, sendo criao de uma entidade divina inteligente (que o filsofo grego chamou de "Demiurgo"), s poderiam ser baseados em crculos, a mais perfeita das formas. Fora isso, os planetas deveriam viajar pelos cus com velocidades constantes. Para Coprnico, o cosmo era de uma beleza sublime e de extrema simplicidade. Qual outra forma, seno o crculo em toda a sua perfeio, poderia ter sido usada na construo do mundo pelo Criador? Qual outro arranjo planetrio poderia ser mais elegante do que este, ordenado pelos perodos orbitais? O Demiurgo de Plato, o grande arquiteto csmico, transformou-se no Deus cristo de Coprnico. O cosmo era uma manifestao da mente divina e, portanto, necessariamente perfeito. "A deduo principal obter a forma do Universo e as simetrias de suas partes", declarou Coprnico. Apenas na Antigidade filsofos haviam proposto uma ponte to inspiradora entre as ambies religiosas e estticas do homem.Aps agonizar durante dcadas, e sob presso constante de seus poucos amigos, Coprnico decidiu tornar pblica a sua obra, mesmo se ainda imperfeita. Os detalhes, imaginava, seriam preenchidos mais tarde, quando melhores observaes estivessem ao alcance dos astrnomos.O livro deve ter-lhe parecido belo o suficiente, um tomo imponente, ricamente ilustrado. Porm, nele escondia-se uma terrvel surpresa. Logo aps uma comovente dedicatria ao papa Paulo III, onde Coprnico expressava corajosamente a opinio de que as escrituras sagradas no deveriam ser usadas para descrever o arranjo dos cus, um novo prefcio havia sido inserido, que no era de sua autoria. O texto declarava que o cosmo heliocntrico nada mais era do que uma construo matemtica,que pouco tinha a ver com a realidade. As palavras, que devem ter-lhe cortado o corao como mil adagas, declaravam que as idias no livro o trabalho de toda a sua vida eram apenas hipteses "que no precisavam ser verdade ou mesmo demonstrveis como tal". No sendo assinado, o texto dava a impresso de ser de autoria do prprio Coprnico. Apenas em 1609 Kepler iria desmascarar a farsa, revelando o verdadeiro autor do prefcio, o telogo luterano Andreas Osiander. Por uma srie de circunstncias alm do controle de Coprnico, Osiander tomou posse do manuscrito e acabou supervisionando a sua publicao. Mesmo assim, Sobre as revolues acabou por influenciar algumas das mentes mais importantes da Europa.8 Dentre elas, a de Michael Maestlin, professor de Kepler na universidade luterana de Tbingen, na Alemanha.Deus, o SolNa famosa pea teatral (e tambm filme) Amadeus, de Peter Shaffer, o conflito entre genialidade e mediocridade, conformismo e criatividade, atinge conseqncias trgicas quando o compositor Antonio Salieri, desesperado, aterroriza continuamente o doentio Mozart, levando-o finalmente morte. O vaidoso Salieri, inicialmente orgulhoso de seu talento como compositor, vai gradualmente perdendo o controle ao testemunhar a beleza imortal da msica de Mozart. Em uma cena devastadora, Salieri presenteia uma nova composio ao seu patrono, o ar-quiduque austraco e sagrado imperador romano Jos II. Mozart, retratado como um jovem irreverente com uma risada histrica, se oferece para toc-la. Logo comea a improvisar em torno da melodia medocre de Salieri, conferindo-lhe uma beleza inusitada. Os presentes, comovidos, trocam olhares incrdulos, enquanto Salieri, humilhado, mal pode conter a sua ira. "Por que Deus concedeu tanto talento a um jovem idiota, enquanto eu, Seu devoto servo, que jurei minha castidade em troca de inspirao, nada mais crio do que estpidas melodias?" Ciente de sua mediocridade, Salieri sabia que seu nome seria esquecido to logo morresse, enquanto o de Mozart seria celebrado por sculos. Maestlin, em seus momentos mais melanclicos e solitrios, deve ter sido vtima dos mesmos temores.Em 1589, ano em que o jovem Johannes Kepler, ento com dezessete anos, ingressou no curso de astronomia ministrado por Maestlin, as idias de Coprnico eram tabu nos crculos intelectuais luteranos. Com ainda mais veemncia do que a Igreja Catlica, Martinho Lutero havia denunciado o cosmo heliocntrico como sendo uma heresia pag. Maestlin, evitando envolver-se na controvrsia, havia escrito um livro-texto de astronomia onde quase nenhuma aluso feita a Coprnico: 0 cosmo heliocntrico e a rotao da Terra no so sequer mencionados- Paradoxalmente, Maestlin havia observado o grande cometa de1577, estabelecendo em contradio direta com a doutrina aristo-tlica, que pregava serem os cus imutveis que o cometa viajava alm da esfera lunar. Para aliviar a sua covardia intelectual, Maestlin ensinava os detalhes das idias de Coprnico aos seus melhores alunos. Talvez o mestre luterano nutrisse secretamente o desejo de que, um dia, um de seus discpulos teria a coragem que no teve para promulgar a nova viso de mundo. Se, de fato, era essa a sua inteno, foi muito bem-sucedido.Quando pesquisava a vida de Kepler para o meu romance A harmonia do mundo, publicado em 2006, tive a oportunidade de visitar Praga e algumas cidades da Alemanha onde o grande astrnomo viveu. Na minha opinio, nenhum outro cientista, nem mesmo Galileu e o seu famoso confronto com a Inquisio Catlica, encarna de forma to dramtica o arqutipo do heri solitrio que luta sem trguas pela verdade. Queria entender a fonte da fora de Kepler, o motivo da paixo que o levou a buscar por toda a vida o cdigo oculto da Natureza. Nunca poderia ter imaginado que, ao fim da minha busca, minha prpria viso de mundo se transformaria.A vida de Kepler foi uma sucesso interminvel de tragdias, interrompidas aqui e ali por raros momentos de graa. Nestes momentos, sua mente iluminada vislumbrou alguns dos segredos mais ntimos da Criao, transformando a cincia para sempre. Seu pai era um mercenrio, que o maltratava com uma brutalidade selvagem. Sua me, dada a ataques de histeria, quase terminou seus dias na fogueira, acusada de bruxaria. Durante sua vida, Kepler foi constantemente forado a viajar de um lugar a outro, vtima dos sangrentos conflitos entre catlicos e protestantes que marcaram as primeiras dcadas do sculo XVII. Croni-camente doente, pobre e sofrendo a perda de vrios filhos, Kepler, o mais fiel dos pitagricos, procurou desesperadamente nos cus por uma ordem que a vida lhe negava.O Sol brilhava forte quando cheguei na estao de Weil der Stadt, a cidade natal de Kepler. Cercada por uma muralha de pedra com torres de observao guardando todas as direes, a pequena vila me lembrouuma criana tentando parecer mais forte do que . As casas, perfiladas ao longo das ruas estreitas, so pintadas de cores vivas no estilo tpico da Baviera. Caminhando da estao de trem ao meu hotel, sentia a presena de Kepler a cada passo. Se ignorasse os carros e os fios eltricos, e os adolescentes de cabelos pintados e lbios com piercings, era fcil esquecer que estava no sculo XXI. De vez em quando, parava e olhava em torno com um misto de ansiedade e reverncia, sabendo que Kepler havia caminhado por aquelas mesmas ruas quatrocentos anos antes, quando bruxas ainda eram queimadas na Markt Platz, a praa central de Weil.Pedi recepcionista do hotel um quarto com vista para a praa. Quando abri as janelas, l estava ele, olhando diretamente para mim. Sua enorme esttua domina a praa, deixando claro que aquela a "Keplerstadt", a cidade de Kepler. Seu rosto tem uma expresso calma e nobre, simbolizando a vitria da razo sobre as dificuldades da vida. Kepler est sentado, segurando um livro na mo esquerda, provavelmente o Astronomia nova, a obra que redefiniu a astronomia. Na direita, segura um compasso, uma aluso a ter sido ele quem decifrou os cus usando a geometria. A enorme estrutura est apoiada num pedestal octogonal, com cada face abrigando uma esttua numa pequena alcova. Vemos o dinamarqus Tycho Brahe, o astrnomo-prncipe cujas observaes meticulosas forneceram a munio de que Kepler precisava para elaborar a hiptese copernicana. E, claro, vemos Michael Maestlin, o mentor de Kepler. Enquanto Tycho tem uma pose arrogante, apontando desafiadoramente para cima, Maestlin est semicoberto por uma longa capa, que fecha com as mos como se escondesse algo. O contraste entre as duas personalidades no poderia ser mais bvio.Aps circundar a esttua algumas vezes, atravessei a praa na direo da casa de Kepler, hoje um museu. A casa original queimou em 1648, sendo essa outra uma fiel reconstruo. Ao chegar, fui entusias-ticamente recebido pela administradora do museu, Frau Gnad. Seus olhos brilharam ainda mais quando expliquei que era um fsico pesquisando a vida de Kepler, possivelmente para um livro. Fui levado a todos os aposentos da casa, inclusive um onde se encontra a famosa banheira que Kepler supostamente usou apenas uma vez na vida (e ain-da assim reclamou que o banho o fez adoecer). Porm, o objeto mais impressionante do museu uma rplica em bronze do "Mysterium Cos-mographicum".O "Mysterium" foi como Kepler tentou unificar todo o cosmo sob uma nica estrutura: um modelo do sistema solar composto de cinco slidos geomtricos arranjados um dentro do outro como bonecas russas, com esferas separando cada um deles. Havia j visto desenhos, mas nunca uma escultura. Ali estava o que Kepler acreditava ser o mapa da Criao, a expresso geomtrica da mente de Deus. Perdido numa espcie de transe, fiquei admirando a obra por um tempo indefinido. Percebendo minha emoo, Frau Gnad afastou-se silenciosamente, deixando-me a ss.J durante os seus anos como estudante em Tbingen, Kepler dedicou-se causa copernicana com um fervor religioso. Estava convicto de que o cosmo heliocntrico era obra de Deus. Como tal, deveria refletir, em suas propores, a perfeio divina, expressando uma beleza sobre-humana. Chegou at a relacionar o cosmo com a Santssima Trindade: no centro encontrava-se Deus, o Sol, emitindo luz em todas as direes; na periferia, a esfera das estrelas fixas que marcava a fronteira do cosmo, encontrava-se o Filho; e, no espao por onde a luz do Pai viajava ao encontro do Filho, encontrava-se o Esprito Santo. Num momento de grande intuio, Kepler sugeriu que o Sol tinha o poder de mover os planetas a sua volta, um mecanismo que chamou de "alma do movimento" (anima motrix). Os planetas distantes, recebendo uma influncia menor, viajavam mais devagar. Mesmo que hoje saibamos que a luz solar no a causa dos movimentos planetrios, foi a primeira vez na histria da astronomia que algum props que os movimentos do sistema solar fossem explicados a partir de uma interao entre o Sol e os planetas. So foras, e no esferas cristalinas, que mantm o cosmo coeso.O cosmo de Aristteles, com a Terra, imvel, ao centro, no era mais vivel. Um novo casamento entre a astronomia e a f, bem diferente daquele celebrado pela teologia medieval crist, estava prestes a ser celebrado. Kepler passou anos buscando pela soluo do desafio de Coprnico, a soluo do mysterium cosmographicum: "deduzir a forma do Universo e as simetrias de suas partes."-r M'i A Tl OR.BIVM'PLANITAS-VM DIMENSIONES, ET DISTANTIAS PE.ELOVINqVE 1 ABVLA11J ORb1v,v^ovlaria CORPORA okometricaexhibens.I.TVCTRISS" PR.INCIPIAC DNO. DMO.FRIDELICO, DVCI WIB^TEN B FR & li , ET T FXCI O, COMITI MONTU BFLGAR-VM, ETTC. CON5ECK.ATA.JZ7Z.ay K.nK yw UV*mflj7* rutvrumOrfaTrtJrJn,Sctftce Uni, Hy} ntrt ^*furrL-Kj^Hfcr TZCCICO ; JiUt.de 'fivcj.V Af^-^. c . .TU mrl A .* itif WI.^r.f>- o , ,trrMU a* >f VIrt^m* k.,- cSmllbm',.H CrH^w I * ^Herzog August Bibliothek WolfenBttel: 40 AstronAs idias revolucionrias de Kepler despertaram a ira dos professores de Tbingen. A centelha que Maestlin havia aceso rapidamente tornou-se um incndio de enormes propores. Dividido entre a admirao que sentia por seu pupilo e o medo de se contrapor s idias de seus colegas, e> Para piorar, enciumado do brilho intelectual de Kepler, Maestlin, juntamente com alguns membros do corpo docente, criou uma estratgia Para silenciar o jovem iconoclasta. Faltando apenas alguns meses para asua formatura, Kepler foi despachado para a longnqua cidade de Graz, na ustria. Para a sua surpresa e decepo, sua misso l era ensinar matemtica e no ser pastor, a carreira que havia planejado por toda a vida.9 Felizmente, a estratgia dos mestres falhou. Forado a repensar o seu futuro, Kepler acabou encontrando uma nova direo profissional e espiritual. Se no lhe fosse permitido servir a Deus como pastor protestante, o faria atravs da astronomia. Decidiu que sua misso seria desvendar o cdigo oculto da Natureza, a escrita de Deus revelada nos fenmenos dos cus. Animado, escreveu ao seu mentor: "Por toda a minha vida sempre quis ser telogo. Sofri muito com essa mudana de direo to inesperada. Mas agora finalmente compreendi que posso louvar a Deus de outra forma, atravs do meu trabalho em astronomia." Jamais saberemos se Maestlin sorriu ou chorou ao ler essas linhas/4 No romance A harmonia do mundo (Companhia das Letras, 2006), conto a histria da vida de Kepler e da sua relao com Maestlin.Decifrando o mistrio csmicoFoi durante uma aula para um grupo de alunos sonolentos que Kepler teve a viso que mudaria a sua vida. Quando explicava os movimentos dos planetas Jpiter e Saturno, percebeu algo a que antes no dera o significado devido: o fato de Saturno ser duas vezes mais distante do Sol do que Jpiter no podia ser uma coincidncia. Dentro da ideologia pi-tagrico-crist, se Deus era o arquiteto csmico, o arranjo dos cus no podia ser ao acaso. Deveria, por exemplo, haver alguma explicao para o nmero de planetas ser seis, e no trs ou vinte e cinco. E o que determinava as suas distncias em relao ao Sol? Kepler sabia que, de alguma forma, a resposta tinha que envolver a geometria.Passou semanas trabalhando, procurando por um modelo geomtrico do cosmo. Tentou diversas possibilidades, mas nada parecia funcionar. Sua frustrao aumentava a cada dia. De repente, num momento de grande intuio, entendeu. Como suspeitara, era mesmo a geometria que determinava a estrutura do cosmo, isto , o nmero de planetas e as distncias entre eles e o Sol. Kepler sabia que, em trs dimenses espaciais, existiam apenas cinco slidos perfeitos, os chamados slidos platnicos: nenhum outro slido tridimensional fechado pode ser construdo a partir de apenas um objeto bidimensional (tringulos, quadrados e pentgonos). Os dois mais familiares so o cubo (feito de seis quadrados) e a pirmide (feita de quatro tringulos equilteros). Os outros trs so o octaedro (oito tringulos equilteros), o dodecaedro (doze pentgonos) e o icosaedro (vinte tringulos equilteros). Como vimos, Kepler imaginou que os cinco slidos deveriam se encaixar um dentro do outro, como num quebra-cabea (as bonecas russas). Entre cada dois slidos, uma esfera imaginria localizava a rbita planetria, como mostra a figura na p. 61. O surpreendente era que cinco slidos Permitem apenas seis esferas entre eles, isto , apenas seis planetas: Sol ao centro - esfera (Mercrio) - SLIDO - esfera (Vnus) - SLIDO -esfera (Terra) - SLIDO - esfera (Marte) - SLIDO - esfera (Jpiter) -SLIDO - esfera (Saturno). Ademais, as distncias entre as esferas eram determinadas precisamente pelas leis da geometria. Aps experimentar com alguns arranjos para os cinco slidos, Kepler encontrou um que coincidia, com uma preciso surpreendente, com as distncias entre os planetas medidas pelos astrnomos.10Com essa sacada genial, Kepler "resolveu" o maior mistrio da astronomia, explicando a priori no s por que existiam apenas seis planetas, mas tambm as suas distncias em relao ao Sol. Jamais seria o mesmo aps essa revelao. Morreu acreditando ter decifrado a estrutura do cosmo, que a matemtica permitiu-lhe vislumbrar a mente de Deus. Conforme afirmavam os filsofos pitagricos da Grcia Antiga, a soluo ocultava-se na geometria. Apenas um cosmo desenhado por um Deus gemetra respeitaria as mais perfeitas propores. Em sua estrutura simtrica, revelava a beleza divina da Criao.Com apenas 26 anos, Kepler acreditou ter desvendado o mapa da Criao. Deus havia mesmo usado a geometria para construir o mundo. Cabia aos homens usar a razo para estudar a Natureza. Essa era a verdadeira devoo religiosa, louvar a Deus atravs da Sua obra, fazer preces das equaes. Em Tbingen, Maestlin impressionou-se com a elegncia da soluo de Kepler. Tanto que o ajudou public-la num livro, Mysterium Cosmographicum. Em 1596, o modelo de Coprnico havia ganho uma dimenso geomtrica que parecia justificar uma ntima relao entre a matemtica e a teologia. A perfeio de Deus se manifestava na simetria geomtrica da Sua Criao.100 erro de KeplerRodeei o modelo csmico de Kepler algumas vezes, admirando a sua beleza. Ali estava a viso de um homem brilhante, a primeira verso concreta da Teoria Final, a suposta soluo a priori da estrutura do universo, baseada apenas em propores geomtricas: um cosmo criado pela mente humana. Para Kepler, a ordem, as propores perfeitas, a simetria refletiam a glria da mente de Deus. Mesmo aps ter revolucionado a astronomia, provando que as rbitas planetrias eram elpticas e no circulares, Kepler continuou acreditando no seu modelo geomtrico. Em 1621, quando era j um astrnomo maduro, conhecido em toda a Europa, Kepler aproveitou a publicao da segunda edio do Mysterium para adicionar novos comentrios: "Quando Deus determinou a ordem dos corpos celestes", escreveu, "tinha em mente os cinco slidos regula-res, famosos desde os tempos de Pitgoras e Plato at os nossos dias." Kepler jamais abandonou o sonho pitagrico. A busca por uma harmonia csmica era o que dava significado a sua vid