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Marcelo Secron Bessa - Hist rias Positivas (pdf)(rev) · Capa: Tita Nigri Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, armazenamento ou transmissão de partes deste livro,

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HHIISSTTÓÓRRIIAASS

PPOOSSIITTIIVVAASS

A coleção CONTRALUZ é dedicada à sexualidade e segue uma

tendência mundial de valorização da discussão e da investigação desta

temática na arte e na literatura. Sem se limitar a qualquer gênero, a

coleção explora a sexualidade em seus aspectos históricos, políticos,

sociais, literários e antropológicos.

OUTROS TÍTULOS DA COLEÇÃO

AGORA QUE VOCÊ JÁ SABE, de Betty Fairchild e Nancy Hayward

O PORTEIRO, de Reinaldo Arenas

ANTES QUE ANOITEÇA, de Reinaldo Arenas

A VELHA ROSA, de Reinaldo Arenas

MAPPLETHORPE: UMA BIOGRAFIA, de Patrícia Morrisroe

O FIM DE SEMANA, de Peter Cameron

HOMOSSEXUALIDADE: UMA HISTÓRIA, de Colin Spencer

VICE-VERSA, de Marjorie Garber

BOÊMIA DOS RATOS, de Sarah Schulman

TROÇOS E DESTROÇOS, de João Silvério Trevisan

GUERRA DE ESPERMA, de Robin Baker

MMMMMMMMAAAAAAAARRRRRRRRCCCCCCCCEEEEEEEELLLLLLLLOOOOOOOO SSSSSSSSEEEEEEEECCCCCCCCRRRRRRRROOOOOOOONNNNNNNN BBBBBBBBEEEEEEEESSSSSSSSSSSSSSSSAAAAAAAA

HHII SSTTÓÓRRII AASS PPOOSSII TTII VVAASS

A literatura

(des) construindo

a aids

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte

Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

Bessa, Marcelo Secron, 1965-

B465h Histórias positivas: a literatura (des)construindo a AIDS

/ Marcelo Secron Bessa. - Rio de Janeiro: Record, 1997.

Originalmente apresentado ao Departamento de Letras

da PUC/RJ como Dissertação de Mestre.

Inclui bibliografia

ISBN 85-01-04878-X

1. Literatura e ciência. 2. AIDS (Doença). I. Titulo. IT. Titulo: A literatura

(des)construindo a AIDS.

CDD - 809.93356 97-1404 CDU - 82-96

____________________________________________________________________________

Copyright © 1997 by Marcelo Secron Bessa

Capa: Tita Nigri

Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, armazenamento ou

transmissão de partes deste livro, através de quaisquer meios, sem prévia autorização

por escrito.

Direitos exclusivos desta edição adquiridos pela DISTRIBUIDORA RECORD

DE SERVIÇOS DE IMPRENSA S.A. Rua Argentina 171 -Rio de Janeiro, RJ- 20921-380

- Tel.: 585-2000

Impresso no Brasil

ISBN 85-01-04878-X

PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTAL

Caixa Postal 23.052

Rio de Janeiro, RJ - 20922-970

À memória de

Jânio Cirne Araújo

Wladimir Aparício Vieira

Evandro Luis da Silva Benevides

e, especialmente,

Caio Fernando Abreu

AAggrraaddeecciimmeennttooss

Este livro foi apresentado, inicialmente, como dissertação de

mestrado ao Departamento de Letras da Pontifícia Universidade

Católica do Rio de Janeiro. Para a sua produção, tive apoio institucional

da Capes, que me concedeu uma bolsa de estudos. Defendida em 29 de

fevereiro de 1996, é publicada, agora, com pouquíssimas alterações.

Agradeço imensamente a Renato Cordeiro Gomes, meu

orientador-amigo, que me deu total liberdade de ação, porém sempre

direcionando com sabedoria meus devaneios, nem sempre lúcidos e

coerentes. Agradeço, também, pelos comentários valiosos, aos

professores Roberto Corrêa dos Santos e Vera Lúcia Follain de

Figueiredo, que compuseram a banca examinadora.

Também sou grato aos professores da PUC-Rio, especialmente a

Heidrun Krieger Olinto, a Pina Coco e a Junito Brandão (in memoriam).

Por várias vezes, pensei em abandonar a graduação. Vários

professores me fizeram desistir das inúmeras tentativas, quer por uma

palavra amiga ou apenas por suas ótimas aulas. Tenho, assim, dívidas

com Maria Cristina Lyrio Gurgel, Marília Rothier Cardoso, Sílvia Regina

Pinto, Terezinha Barbieri, Victor Hugo Adler Pereira e, principalmente,

Ítalo Moriconi Jr., que, em 1990 e 1991, orientou minha pesquisa em

Iniciação Científica junto à FAPERJ — intitulada "Literatura e

imaginário da AIDS" —, sendo assim, o embrião deste livro.

Além das dívidas intelectuais, há outras — afetivas — que

jamais poderão ser saldadas. Agradeço a meus pais, Olímpio e Sônia, e,

especialmente, a minha irmã, Cláudia, pelo paciente — e, por vezes,

árduo — esforço para juntos solidificarmos aquilo que chamamos de

amor.

Diversas pessoas me ajudaram de diferentes maneiras — de

sugestões e textos a simplesmente algumas risadas —, merecendo,

portanto, toda minha gratidão: Ana Paula Kiffer, Antônio Cordeiro Filho,

Antônio Tadeu Reis, Jacinto Fábio Corrêa, Jason Summerton, Joscelina

Frazão, José Márcio Penido, Luise Valente, Marta Gaspar Viana e

Ricardo Sarmento.

Agradeço, especialmente, a Benjamin Albagli Neto, pela elegante

tradução das citações originalmente em inglês; e a Flávia Pinto Leiroz,

por acompanhar diariamente a feitura deste livro, dando não só

sugestões pertinentes mas também oferecendo algo mais valioso: sua

delicada amizade.

Finalmente, gostaria de esclarecer que a originalidade e a

criatividade do título deste livro não pertencem a mim. Quando

entrevistei Caio Fernando Abreu, em Porto Alegre, em 24 de setembro

de 1995, o escritor revelou-me que, naquela manhã, tivera uma idéia

para um novo livro. Este projeto — um livro de contos sobre a AIDS —

já tinha um nome: Histórias positivas. Se Caio não pôde escrevê-lo,

decidi carinhosamente homenageá-lo, intitulando, assim, este livro.

Eu estava pensando, Úrsula disse a Quentin, que a diferença

entre uma história e uma pintura ou uma fotografia é que numa história

você pode escrever "Ele continua vivo". Mas numa pintura ou numa foto

não dá para representar esse "continua". Você pode apenas mostrá-lo

estando vivo. Ele continua vivo, Stephen disse.

Susan Sontag, Assim vivemos agora

SSuummáárriioo

Apresentação

PARTE I: A TEIA DOS DISCURSOS

Capítulo 1 — A epidemia discursiva

Capítulo 2 — Brasil: uma nota de rodapé?

PARTE II: O FIO LITERÁRIO

Capítulo 3 — A epidemia e suas personagens

Capítulo 4 — A doença que não ousa dizer o nome

Capítulo 5 — Outros olhares, outros espelhos

Considerações finais

Bibliografia

AApprreesseennttaaççããoo

In no health crisis in history has the written word played a

central, extensive and heavily contested role.

SimonWatney

Em uma recente entrevista, o médico e escritor Moacyr Scliar

declarou:

A AIDS É uma dessas tragédias epidemiológicas que

periodicamente assaltam a humanidade. (...) Um fato interessante, aliás,

é que há, por exemplo, uma literatura sobre tuberculose, da qual A

montanha mágica, de Thomas Mann, é um exemplo. Mas não há ainda

uma literatura sobre a AIDS. Há apenas alguns textos, como o da Susan

Sontag. O curioso é que, enquanto não há uma certa perspectiva de uma

realidade, não é possível fazer literatura sobre ela. (1996:541)

Iniciar um estudo que aborda literatura e AIDS com essa citação

pode levar o leitor a considerar que está, no mínimo, diante de um

logro. Afinal, se não há literatura sobre a AIDS, por que um estudo

sobre ela? E o que é a voz de um mero pesquisador frente à voz não só

de um médico, mas também de um escritor? Por partes, o mero

pesquisador falará ao leitor.

Ver a AIDS como mais uma epidemia, mais uma tragédia

epidemiológica que, de tempos em tempos, assola a humanidade, pode

ser um erro. Como lembra Simon Watney na epígrafe, em nenhuma

crise da saúde na história a palavra escrita desempenhou um papel tão

fundamental e importante como no caso da AIDS. Por quê? A citação de

Watney de certa forma já explica: a AIDS vai além do campo biomédico.

Assim, não é somente uma crise da saúde, mas se transforma, também,

numa crise da palavra, dos discursos.

Se é assim, a palavra contamina ou a palavra é contaminada? As

cada vez mais freqüentes publicações (e aqui me refiro somente ao

mercado brasileiro) de uma literatura da AIDS parecem indagar isso. O

que, afinal, podem responder os textos de Susan Sontag, Caio Fernando

Abreu, Reinaldo Arenas, Silviano Santiago, Hervé Guibert, Herbert

Daniel, Cyril Collard, Bernardo Carvalho, Alberto Guzik e muitos

outros? Os textos desses e de outros escritores podem dizer muitas

coisas, pois também constroem a epidemia de HIV/AIDS1.

Mais do que somente uma questão biomédica, a epidemia é,

antes, discursiva, como pretendo demonstrar na primeira parte, "A teia

dos discursos". No Capítulo 1, particularizo a atual epidemia em relação

a outras da história, percebendo os enganos que essa analogia pode

trazer. Mostro, também, como mesmo o discurso biomédico não permite

uma abordagem mais isenta da epidemia, pois insere, no processo de

construção da doença, concepções extracientíficas que desvalidam

qualquer neutralidade (se tal fosse possível) para a discussão da AIDS.

Ainda nesse capítulo, os limites do literal e do metafórico na epidemia de

HTV/AIDS são questionados, possibilitando clarificar a incongruência

de muitos discursos que tentam passar por "verdade literal".

No capítulo 2, contextualizo a epidemia no Brasil, apontando

como as peculiaridades, especialmente a cultura sexual brasileira,

influem nas respostas ao HIV e à AIDS. Se no país inexistem uma

1 HIV e AIDS são siglas, em suas formas inglesas, para, respectivamente,

vírus da imunodeficiência humana e síndrome da imunodeficiência adquirida. De

acordo com o conhecimento médico, há, primeiramente, a infecção pelo HIV, que pode

não se manifestar por vários anos. Somente é considerado AIDS quando o HIV começa

a se reproduzir, destruindo células do sistema imunológico, e levando o corpo a ficar à

mercê de várias infecções, oficialmente designadas de "oportunistas". Marcar a dupla

epidemia não serve apenas para diferenciar soropositividade da doença, mas para

alertar que, além do grande número de casos de AIDS divulgados (103.262 casos até

fevereiro de 1997), há um número alarmante de infecção pelo HIV (calculado em torno

de 500 mil a 1 milhão de brasileiros) não incluído no boletim epidemiológico da

Divisão de DST/AIDS do Ministério da Saúde. Por isso, sempre que possível, a dupla

epidemia será marcada.

identidade e uma comunidade gays nos moldes de países como os EUA,

e se é a literatura gay que, em grande parte, possibilita novas

formulações da epidemia, como se dá essa construção no Brasil? Há

esse tipo de literatura no país?

Na segunda parte, "O fio literário", analiso, basicamente, alguns

textos de Caio Fernando Abreu. A análise dos textos, entretanto, dialoga

com outras esferas, que ultrapassam a literária. Se a AIDS é uma

construção plural, se é uma teia discursiva, o fio literário se enreda (e,

necessariamente, deve se enredar) com outros dessa mesma teia. No

capítulo 3, concentro o foco na "personagem principal" da epidemia: sua

construção histórica, suas implicações e a necessidade, por parte de

certos discursos, de que essa personagem seja novamente restaurada e

essencializada. A elipse do nome AIDS e o uso das metáforas na

literatura da AIDS são debatidos no Capítulo 4. O que nele pretendo

mostrar é que a elipse e as metáforas, ao contrário do que se supõe,

podem ser extremamente úteis para que sejam criadas novas realidades

para a epidemia. No último capítulo, debato a crise de identidade

provocada pela doença. É através dessa crise que o outro, sua imagem e

sua representação na epidemia se tornam mais claros. Compreender

esse jogo implica a necessidade de se ver e compreender a diferença sob

outros olhares.

Por fim, gostaria de acrescentar que me apropriei da citação de

Moacyr Scliar não para ironizá-lo. Scliar é, aliás, um escritor a quem

admiro muito. Mas o que quero ressaltar é que a voz de Scliar tem um

enorme peso dentro de uma comunidade: é a voz do médico e a do

escritor. Mais especificamente pela voz do médico, pode se perceber que

a AIDS ainda é vista como mais uma das tragédias epidemiológicas que

assaltam a humanidade, ou também que é uma doença que independe

de fatores extrínsecos a ela. Ela existe e ponto. Mas a AIDS ultrapassa a

preexistência das doenças e a inexistente neutralidade biomédica. Tanto

assim, que um leigo como eu pretende discorrer sobre a doença

partindo de seu aparentemente lado oposto, a literatura. E é isso que

desafia a capacidade de todos: tentar construir novas abordagens para

a doença, vê-la com outros olhos e, então, criar outras realidades

possíveis.

PPAARRTTEE II

AA tteeiiaa ddooss ddiissccuurrssooss

A linguagem é um vírus do espaço sideral.

William Burroughs

CCaappííttuulloo 11

AA EEPPIIDDEEMMIIAA DDIISSCCUURRSSIIVVAA

O conhecimento científico é um castelo erguido não sobre as

nuvens mas sobre a linguagem.

Kenneth R. de Camargo Jr.

A linguagem não é um substituto da realidade; ela é nossa forma

de conhecê-la.

Paula Treichler

Pensar criticamente a epidemia de HIV/AIDS requer abandonar

preconceitos. Entre estes, pode-se incluir a saída — fácil — de se

perceber a atual epidemia inserida num conjunto de muitas outras ao

longo da história. Historicizá-la em um contexto mais amplo,

percebendo analogias com outras "pragas" vividas pela humanidade,

pode reforçar maneiras funestas e perigosas de se perceber a doença,

como esclarece Jeffrey Weeks:

A AIDS é um fenômeno preeminentemente moderno, a "doença" do

final do século XX. Mas também é um fenômeno notavelmente

historirizado, seguido por histórias que criam e moldam respostas a ele, e

sobrecarregam pessoas com HIV e AIDS com um peso do passado que

elas não deveriam ter de sustentar. (1990:133)

Desta forma, a inferência de Weeks se aproxima da observação

de Susan Sontag: a "maneira pré-moderna" — ou seja, o castigo

individual/coletivo inscrito na metáfora da peste — através da qual a

epidemia de HIV/AIDS é concebida. Esta não comporta o bom senso (e

nem, ao menos, a pretensa "neutralidade científica", que será discutida

logo depois) necessário para uma abordagem isenta de pânico ou

controle moral. Logo, a analogia com outras doenças faz com que a

epidemia de HIV/AIDS tenha uma história escrita anteriormente, um

roteiro a ser seguido e não questionado, "oferecendo um repertório de

reações e corretivos, de histeria em massa e pânico moral até

preconceito e ameaça de quarentena compulsória", completa Weeks

(1990:134). Incluir, assim, a atual epidemia dentro de uma série de

doenças organizadas ao longo da história (e acompanhadas de suas

metáforas), além de impedir a percepção da sua singularidade e

particularidade, faz com que um modelo extremamente preconceituoso

e perigoso seja encorajado, pois as metáforas — principalmente a da

peste — não são acidentais; elas incorporam um tipo particular de

operação ideológica.

Se a metáfora da peste não é de forma alguma acidental, muito

menos é espontânea, aparecendo na consciência popular de uma

memória cultural do passado, lembra Simon Watney (1994:276). Como

o seu retorno implica uma manobra ideológica, é necessário analisar

com mais atenção essa metáfora.

Em AIDS e suas metáforas (1989), Susan Sontag esclarece que

normalmente as epidemias é que são consideradas pestes. E preciso,

porém, observar as mudanças ocorridas no significado das doenças

coletivas. Ver as doenças como castigo é uma das mais antigas

explicações para as suas causas. A doença coletiva, assim, quando

adquiria esse significado, era tida como uma calamidade do grupo, um

castigo imposto a toda uma comunidade, tal a peste que aparece em

Édipo. Ao contrário das deformações e da deficiência física, a doença

como castigo não era considerada vergonhosa. Segundo a autora,

somente através da sífilis, no final do século XV, é que a metáfora da

peste se transforma. Além de ser um castigo, passa também a ser uma

punição repulsiva, representando, principalmente, uma invasão — que

parte de um indivíduo — a toda a coletividade (1989:54-55). Essa

mudança é crucial, pois a peste torna-se a doença do outro — que fez

por merecê-la —, mas que compromete sua comunidade.

Aparentemente contraditória, essa formulação se mostra eficaz quanto à

exclusão:

A idéia de que a AIDS vem castigar comportamentos divergentes e

a de que ela ameaça os inocentes não se contradizem em absoluto. Tale o

poder, a eficácia extraordinária da metáfora da peste: ela permite que

uma doença seja encarada ao mesmo tempo como um castigo merecido

por um grupo de "outros" vulneráveis e como uma doença que

potencialmente ameaça a todos. (Sontag, 1989:76)

O "outro", como um estranho às normas e às condutas morais,

sociais e legais de uma comunidade, aproxima-se do "estrangeiro", pois

ambos não comungam das mesmas práticas coletivas de um "todo".

Desta forma, o outro lugar-comum da peste é que sempre vem de outro

lugar, do estrangeiro. "E um troço que deve vir da África", diz, em seu

leito do hospital, a personagem Muzil, então identificada com Michel

Foucault, do livro de Hervé Guibert, Para o amigo que não me salvou a

vida (1995:13). A suposição de Muzil — mesmo aventada no início da

epidemia de HIV/AIDS, quando pouco se sabia a respeito — reitera a

ligação do imaginário da doença com o do estrangeiro. Só é estranho

que uma suposição tão etnocêntrica tenha partido de uma personagem

identificada com o famoso pensador, pois as dessa ligação "se

encontram no próprio conceito de errado, sempre identificado com o

não-nós, o estranho" (Sontag, 1989:5 7-58). Essa metáfora da peste, a

doença vinda do estrangeiro, que não é exclusiva do Primeiro Mundo,

mais do que permitir atitudes xenófobas, marcou profundamente a

expansão da epidemia em termos mundiais.2

Não é crucial, portanto, detectar de onde surgiu ou investigar

sua origem; o que se torna importante é que a epidemia surge em um

momento histórico particular onde forças neoconservadoras tentam se

aproveitar da doença, ressuscitando a metáfora da peste — entre outras

— para manobras ideológicas.

Analisar a epidemia de uma forma mais perspicaz é estar atento

à epidemia discursiva que se põe em jogo, capaz de direcionar o seu

curso presente e futuro, cabendo a todos o questionamento da

"inevitabilidade" da epidemia:

Dessa maneira, analogias históricas enganosas — quando muito,

pitorescas—são utilizadas para eliminar qualquer percepção das forças

sociais em conflito ou, de fato, qualquer dimensão política, seja ela de que

tipo for. No lugar disso, a epidemia é naturalizada de forma casual, de

modo a parecer inevitável, e toda percepção de ação humana, injustiça ou

de responsabilidades éticas desaparece de forma eficiente e conveniente.

(Watney, 1994:276)

Conforme indica Simon Watney, é mais fácil a muitos ver a

epidemia "naturalizada", estabelecida numa série de outras epidemias

— o que desvia o poder da intervenção humana —, atribuindo-a

simplesmente a "causas naturais" ou, para alguns, a um "castigo

divino". A fim de que essas forças políticas e sociais em conflito nos

discursos da AIDS sejam clarificadas e expostas em argumentos mais

explícitos e, antes, racionais, é preciso, primeiramente, que a

responsabilidade ética de todos seja posta em prática, evitando a nada

neutra e verdadeira divisão entre "nós" e "eles".

2 A AIDS como doença do estranho, do estrangeiro, também foi assim percebida

inicialmente no Brasil, o que serviu para uma inoperante ação governamental inicial de combate

à epidemia e falta de sensibilidade em relação às pessoas infectadas ou doentes. (Ver Parker,

1994; Daniel e Parker, 1991.)

Comparar a epidemia de HIV/AIDS a outras epidemias não é,

obviamente, o intento de Susan Sontag; muito menos incluí-la em uma

série de doenças e epidemias ao longo da história, naturalizando-a. Ao

contrário, ao comparar as metáforas observadas em epidemias

anteriores com as da AIDS, a ensaísta americana particulariza-a em

relação a outras doenças, tentando, assim, observar os campos

ideológicos que a acompanham e amoldam, ao se utilizarem de certas

metáforas para determinar um controle não especificamente

epidemiológico, mas, principalmente, discursivo.

Como já fizera em A doença como metáfora (1984), seu plano

maior era—contraditoriamente—mais simples e mais complexo: ver a

doença não como uma metáfora, mas apenas como uma doença.

Segundo a autora, a maneira mais honesta e saudável (sic) de se ficar

doente é aquela que é mais depurada de pensamentos metafóricos, ou,

pelo menos, mais resistente a eles (1984:7-8).

E, indubitavelmente, um projeto igualmente belo e utópico. Para

Sontag, adoecer sem culpa, perceber as doenças apenas como doenças,

é, assim, algo a ser resolvido, também, pela linguagem: uma linguagem

que mais se aproxima do "real", depurada ao mais alto grau para não

permitir que a doença signifique mais do que realmente é. A ciência

biomédica é, então, aquela que — segundo uma hierarquização

arbitrária — seria mais apta a descrever "imunemente" as doenças, sem

os floreios e figurações identificados com outras ciências,

principalmente a literária. Ao se observar, porém, com mais detalhe,

questões da linguagem e da produção do conhecimento científico da

ciência biomédica, pode-se perceber que nem ela poderá ser útil na

proposição de Sontag.

Falar da AIDS como construção lingüística, lembra Paula

Treichler, não é dizer que a doença exista somente no plano mental. As

doenças existem, e a AIDS, como qualquer outro fenômeno, é real e

indiferente ao que dizemos sobre ela,

mas a 'AIDS" não é apenas o rótulo de uma doença provocada por

um vírus. Em parte, o nome constrói a doença e nos ajuda a compreendê-

la. Não podemos, por esse motivo, examinar o discurso para determinar o

que a AIDS "realmente" é. Em vez disso, precisamos investigar o lugar

onde tais determinações acontecem: no próprio discurso, o qual é

marcado inevitavelmente por nossos árduos esforços para representar o

que consideramos que a AIDS seja de verdade, para conceitualizar o que

ela "realmente" significa. (Treichler, 1988:195)

A ciência biomédica, assim, ao utilizar os termos HIV e AIDS,

pressupõe a existência de um objeto-doença — a doença per se —, e

esses termos apenas nomeiam, etiquetam um vírus e uma doença

preexistentes, o que anula seu processo de construção (Camargo,

1994:43). Torna-se útil, portanto, analisar o discurso biomédico, pois é

nele que as "lutas" entre representação e conceitualização se iniciam,

obscurecendo o processo de "criação" das doenças e de suas

abordagens, muitas vezes nada científicas.

Partindo dessa lógica, Kenneth R. de Camargo Jr. faz uma crítica

a essa percepção das doenças como um dado, um achado, que — por

um processo de escamoteação — as apresenta como um objeto

preexistente (1994). Principalmente em relação à AIDS, a produção

discursiva biomédica, como num processo de acomodação geológica,

gradualmente reajusta e remove as pegadas dessa construção.

Complementa Camargo Jr.:

Abstraídas de todo o processo que levou à sua elaboração as

conclusões de estudos anteriores são, uma vez mais, essencializadas:

perdem sua historia e tomam-se naturais. (...) A AIDS é causada pelo HIV

e ponto; não há sentido em se esclarecer como se chegou a tal fato. (...)

Tudo isso contribui para a ilusão de eterna preexistência dos objetos,

simplesmente descobertos. (1994:114)

O discurso biomédico, desta forma, age como um habilíssimo

prestidigitador, ao escamotear esse processo gradual e apresentar uma

doença como um objeto descoberto. E essa a lógica clínica, que,

tomando a doença como um objeto preexistente, leva os médicos a

agirem como naturalistas, à semelhança das antigas expedições ao

Novo Continente, onde uma fauna e uma flora exóticas e desconhecidas

esperavam ser identificadas e catalogadas por aqueles especialistas.

Entre os naturalistas e os médicos há, assim, uma similaridade de

práticas: a catalogação; fauna e flora se aproximam das doenças, então,

pela taxonomia.

Ocorre, porém, que esses objetos, em vez de serem simplesmente

autônomos, são também construídos, e no processo de construção

refletem "não apenas as inflexíveis exigências do método científico, mas

toda uma gama de fatores socioculturais", que são chamados por

Camargo Jr., à falta de um termo melhor, de "não-científicos" (1994:51).

Esses dados "não-científicos" ou "extracientíficos" — relacionados, no

caso da AIDS, às sexualidades e às culturas "diferentes" —, quando são

pressupostos para formulações teóricas clínico-epidemiológicas, não só

estigmatizam grupos sociais, como também naturalizam e cientificizam

esse mesmo estigma, direcionando os rumos da epidemia e perpetuando

uma fantasiosa divisão entre uns em risco e outros não, conforme

concorda Paula Treichler:

O nome AIDS—e de fato todo o discurso biomédico que o cerca—

constrói, em parte, a doença e ajuda a tomá-la inteligível. A concepcão da

AIDS como uma "doença gay" não é baseada na "realidade material"—a

qual desafia qualquer divisão estável entre homem e mulher, gay e

straight 3 "promíscuo" e monogâmico, culpado e inocente. Ainda assim,

esta concepção, registrada repetidas vezes nos discursos de nossa

cultura, contém e controla radicalmente esses dados diversos e

contraditórios, produzindo e reproduzindo identidades monolíticas

daqueles que estão ou não em grupos "de risco", dependendo de sua

3 3Gay e straight são palavras criadas pela comunidade gay norte-americana.

Enquanto a primeira é a forma valorativa do termo homossexual, a segunda é a forma

pejorativa do heterossexual.

classificação oficial. (1988:232)

É preciso perceber, portanto, que mesmo em caracterizações

científicas a "realidade" da AIDS é sempre fundada em dados que não

são, necessariamente, científicos, mas que partem de considerações

socioculturais de certo e errado, de posições etnocêntricas e

completamente ignorantes a respeito da sexualidade humana. Aceitar a

falsa isenção do discurso biomédico, deste modo, ajuda a manter

preconceitos que fogem aos rigores da lógica científica, mas que são por

ela legitimados, ocorrendo, segundo Kenneth de Camargo Jr., uma

ideologização científica ou uma cientificização ideológica.

Enfim, o discurso biomédico, ao contrário do que se poderia

esperar, não pode oferecer uma caracterização mais isenta da doença,

depurada de pensamentos metafóricos. De um modo oposto, esses

mesmos pensamentos partem desse discurso, validando, pelo verniz da

ciência, concepções que paradoxalmente tenta eliminar. E é crucial para

o direcionamento do curso da epidemia que a neutralidade do discurso

biomédico seja questionada, e não apenas aceita como dados da

realidade material.

Ter o conhecimento prévio de que as doenças são, de certa

maneira, construídas, e de que o discurso biomédico não é sinônimo de

neutralidade científica, ao utilizar pressupostos que fogem à validade da

ciência, é de extrema importância quando se propõe um estudo que

conjuga literatura e AIDS. A percepção hodierna e convencional indica

que há duas coisas opostas: a primeira ligada à ficção, às metáforas, e a

segunda, à realidade, ao sentido literal, como indica Susan Sontag:

Em vez de conferir significado, que é o objetivo tradicional do

empreendimento literário, esvaziar o significado de algo: aplicar a

estratégia, altamente quixotesca, de ser "contra a interpretação", dessa

vez ao mundo real. Ao corpo. (1989:18)

Esta citação aponta que, para uma análise realmente crítica da

epidemia de HIV/AIDS, devem-se abandonar as metáforas, sendo estas

corruptoras de uma "realidade" que lhes é oposta. O "mundo real" e o

corpo devem ser percebidos em um sentido literal, sem os significados

alheios que lhes são conferidos. Se Susan Sontag aponta a necessidade

de um real depurado de metáforas, atribuídas ao "empreendimento

literário", também não é difícil perceber um esvaziamento de

significados ou uma "desmetaforização" no próprio conceito de literário,

como assinala Lee Grove: "'Morrer', 'ter relações sexuais' — este par

sempre foi um jogo de palavras figurado, metafórico, sofisticado, uma

licença literária (...). O par não é mais figurativo. É literal" (apud

Edelman,1989:300).

O literário e as metáforas que o acompanham tornam-se, por

conseguinte, impotentes nesta epidemia. Mais que impotentes, tornam-

se o vilão: "As ferramentas para escrever literatura", diz Ollé-Goig, "não

podem ser sempre utilizadas para o empreendimento científico, a não

ser que, é claro, queiramos fazer ficção científica" (apud Camargo

Jr.,1994:172, n. 82). O literário, assim, deturpa; ele é altamente

pernicioso à objetividade científica, ao literal. Partindo dessas

inferências, a literatura (e, em especial, aquela que é considerada

ficção), frente à AIDS, se vê diante de algumas indagações: pode existir

ficção diante de um fenômeno doloroso e real? Deve a ficção se dobrar a

este real? Deve ser lida num sentido literal?

Antes de se tentar responder a essas perguntas, deve-se

sublinhar que "real" e "ficção", "literal" e "literário" são convenções

estabelecidas anteriormente à epidemia. Esta apenas ajuda a explicitar

a convencional divisão. Assim como a "realidade material" é, de certa

forma, construída, literal e literário também são construções variáveis,

dependentes de práticas culturais, sociais, políticas e ideológicas.

Sabendo que essa discussão aponta para questões bem mais

profundas, o importante a destacar aqui é a divisão ressaltada pelos

autores. A partir delas, as perguntas feitas linhas atrás precisam,

inicialmente, ser modificadas. Deve-se, antes, determinar a relação

entre real e ficcional, literário e literal, a forma através da qual tais

dimensões são hierarquizadas, e como essa divisão hierárquica conduz

os rumos da epidemia discursiva.

Discurso biomédico e discurso literário não estão num mesmo

plano, não possuem igualdade de valores. E um fato. E deve-se perceber

nessa divisão uma opção ideológica e profundamente política ao

hierarquizar valores distintos. Se o literário é ligado ao metafórico, ao

ficcional, e o biomédico é associado ao literal e ao real, nada mais justo

que, segundo essa ótica, o último conduza as discussões sobre AIDS. É

por sua possibilidade racional, científica e neutra que ele detém as

rédeas do controle discursivo da epidemia. Partindo desse viés, Lee

Edelman procura mostrar que essa divisão é falha, e que mesmo o

discurso biomédico, associado ao real, ao literal, contém a inevitável

inscrição do literário que marca o discurso sobre a AIDS (1989).

Para investigar essa inscrição, Edelman busca a leitura de

phármakon feita por Jacques Derrida em A farmácia de Platão,

mostrando a ambigüidade inscrita — entre discurso literário e discurso

biomédico—já na construção do pensamento racional ocidental.

Phármakon, uma palavra grega que significa droga ou filtro, ocupa uma

posição ambígua como remédio ou veneno; tanto pode ser maléfico

como benéfico. Se Platão já identificara phármakon também com

"escritura", Derrida insiste, na sua leitura de phármakon, na

inextricabilidade do textual e do biológico, especialmente quando afirma

que "a metaforicidade é a lógica da contaminação e a contaminação da

lógica". O diagnóstico de metáfora feito por Derrida, portanto, torna

claro que racionalismo da lógica ocidental não está descontaminado da

figuralidade repudiada como literário, e, conseqüentemente, ilusório e

dispensável. "Tanto a lógica como o contágio estão em jogo no

desdobramento dessas equações que se multiplicam infecciosamente",

completa Edelman (p. 295).

O texto utilizado pelo autor para observar essas "múltiplas

equações infecciosas" não é propriamente um texto, mas uvashgan do

grupo ativista norte-americano Act Up,4 "Silence = Death" (Silêncio =

4 O grupo Act Up (AIDS Coalition to Unleash Power) foi fundado em março de

Morte). Este slogan é de grande impacto: com um extremo apelo

visual—fundo negro, triângulo rosa e letras brancas —, prende a

atenção do leitor por sua breve e incisiva mensagem. Esta, por sua vez,

pretende incitar as comunidades mais afetadas pelo HIV e pela AIDS a

se manifestarem, a produzirem discursos, sem especificar quais, mas

que se tornam um contradiscurso ao oficial (que, com o respaldo do

discurso científico, pretende-se neutro e objetivo). Calar-se significa a

morte, não só física mas também simbólica e discursiva. Além disso, o

triângulo rosa remete aos campos de concentração do Estado nazista,

onde, ao lado de judeus e outros não-arianos, homossexuais eram

confinados e exterminados. Ao contrário dos judeus, que ostentavam

uma estrela-de-davi amarela, homossexuais eram reconhecidos pelo

triângulo rosa costurado no uniforme. Como o discurso oficial da AIDS

manteve um inicial e persistente caráter de pós-holocausto,

identificando homossexualidade (e, por extensão, homossexuais) com a

doença, o triângulo retomado no slogan reforça essa identificação,

conscientemente, para que o discurso arbitrário que uniu práticas

sexuais à doença seja questionado, e também o próprio preconceito

extracientífico que levou a essa identificação. Incitando à produção de

discursos, de mais textos, o slogan estabelece a equação de igualdade

entre discurso e defesa: assumir não só a própria doença, mas também

a opção sexual para a sobrevivência e afirmação sociais.

Ocorre, porém, que o slogan Silêncio = Morte apresenta-se como

uma fórmula, um axioma matemático, uma verdade literal, que não

comporta figurações ou evasões: Silêncio = Morte diz que A = B. O

triângulo, por sua vez, analisa Edelman, apresenta-se como tal, apenas

um triângulo, reforçando semioticamente o científico ou a

inevitabilidade geométrica de sua equação textual. Só que A = B, além

de ser uma fórmula, além de invocar a retórica da linguagem

1987 em Nova York, e desde então várias representações apareceram em outros estados dos EUA e em vários países. É possivelmente um dos grupos mais atuantes m manifestações e passeatas, além de continuamente promover campanhas, através de cartazes, adesivos e camisetas, realmente cáusticos contra a inoperância e a intolerância, especialmente governamentais. Silence = Death é provavelmente seu projeto mais conhecido. (Ver Crimp e Rolston, 1990.)

matemática, é também uma figura da substituição metafórica. O que

então é percebido e lido como literal, matemático, cientificamente real e

objetivo comporta também a literaridade que tenta solapar:

(...)as equações que parecem proclamar o literal, a verdade

cientificamente verificável, não podem ser distinguidas da literariedade

repudiada da própria linguagem figurativa que aquelas equações se

incumbiram de repudiar ou de excluir. A verdade de tais equações só

pode ser considerada verdade uma vez que ignoremos que o literal

também necessita, ele próprio, ser produzido por um artifício da

linguagem figurativa. (Edelman, 1989:300)

Como a fórmula A = B, Silêncio = Morte faz mais do que

transformar o matemático em poético, o literal em metafórico; é um

texto que apela à produção de novos e mais textos para uma reação

defensiva contra aqueles discursos que tentam passar por "verdade

literal", apresentando a própria duplicidade que lhes é intrínseca.

Assim, corpo, vírus e sistema imunológico, por exemplo, são

designações metafóricas daquilo que se entende e é percebido como tal,

e essa contaminação metafórica "pode parecer ser tão natural, tão

intrínseca a nossa maneira de pensar, que a tomamos como a verdade

literal do corpo" (Edelman, 1989:303).

A metáfora, esse indesejável alienígena, permanece no corpo do

hospedeiro sem que este o saiba. A linguagem, proclama William

Burroughs, é um vírus: a contaminação da linguagem por ela própria,

assim como vislumbra Derrida:

Mas já que, como diz Derrida, "a metaforicidade é a lógica da

contaminação e a contaminação da lógica", nenhum discurso poderá

jamais alcançar a lógica da identidade própria, a lógica das equações

científicas, sem o contágio da metáfora que encontra o inimigo ou o

alienígena sempre já instalado. Como disse Emily Dickinson, numa

antecipação da interpretação dada por Derrida ao phármakon: "na frase

gera-se a contaminação" infection in the sentence breeds. (Edelman,

1989:303)

Logo, a investigação proposta inicialmente por Edelman mostra

que, se o literário são as metáforas, o figurativo, a contaminação do

literal, então qualquer discurso sobre a AIDS o é, pois nenhum está

isento de "infecções metafóricas", inerentes à própria linguagem,

impondo-se perceber que cada linguagem, ou melhor, cada discurso,

encontrará uma AIDS apropriada ao que se quer. Para isso, ao contrário

do que atesta Lee Grove, quando o literal, no discurso da AIDS,

suplantou o metafórico, é preciso desfiar todo discurso apresentado

como "literal", descobrindo suas propostas tendenciosas que se

mostram como tal.

As "ferramentas" para escrever literatura, portanto, são as

mesmas para o empreendimento científico. O alienígena — o figurativo,

a metáfora — sempre estará presente em qualquer discurso, pois a

linguagem contamina a si própria. E a ficção, o locus presumivelmente

natural da metáfora, pode apontar a contradição da aparente auto-

identidade do discurso que se pretende literal. A literatura de ficção,

deste modo, também faz parte da epidemia discursiva da AIDS. Mais do

que simplesmente mimetizar um real que lhe é superior ou reproduzir

reações sociais, políticas e culturais, ela se coloca ao lado de inúmeros

discursos, pois apresenta novas concepções e abordagens da epidemia.

Como os outros discursos, a literatura de ficção constrói uma

linguagem que ajuda a manter ou desfazer imagens e identidades

monolíticas, afirmando ou negando outros discursos, podendo, assim,

atuar diretamente no enfrentamento da epidemia e proporcionar

direções para seu curso presente e futuro.

CCaappííttuulloo 22

BBRRAASSIILL:: UUMMAA NNOOTTAA DDEE RROODDAAPPÉÉ??

A epidemia entre nós vai se desenvolver de acordo com

características culturais bem próprias. Bem próprias de nossa cultura

sexual, bem próprias dos nossos recursos materiais e simbólicos para

enfrentar as doenças e a saúde, bem próprias de nossos preconceitos e

de nossa capacidade de exercer a solidariedade. A Aids se inscreve em

cada cultura de um modo distinto. Cada cultura constrói a sua Aids

própria e específica. Bem como as respostas a ela.

Herbert Daniel, "Antes, a vida"

Ao lado da maneira pré-moderna, observada por Susan Sontag

no capítulo anterior, através da qual a epidemia de HIV/AIDS é

percebida e vivenciada como uma forma de castigo individual e também

coletivo, vários autores incluem a mesma epidemia em um contexto

pós-moderno. Este aponta — além da descentralização do corpo,

imprimida pelos ataques biológico e discursivo—para o deslocamento

em espaços transnacionais e para a eliminação de espaços circunscritos

das fronteiras geográficas internacionais, aproximando países distantes

e diferentes (Lopes Jr., 1993:3). Ao contrário de várias epidemias

circunscritas a certos países e continentes, a epidemia de HIV/AIDS é

global; todos no mundo experienciam-na de uma forma ou de outra.

Essa experiência, entretanto, em vez de ser uniforme e invariável num

sentido global, como podem sugerir o deslocamento de espaços

transnacionais e o rompimento de fronteiras, é diferente. Conforme

observa Jeffrey Weeks, a despeito de os fatores viral e imunológico

serem comuns, HIV e AIDS são experienciados diferentemente por

diferentes grupos de pessoas, seja numa escala local ou global

(1990:135). Mais ainda, o autor vê um aspecto curioso do presente, que

congrega a simultaneidade do universal e do particular. A AIDS, como

um dos "arautos distópicos da aldeia global" (Sontag, 1989:109), ajuda

a esclarecer a dualidade presente no mundo pós-moderno: nada que

seja regional, limitado, local, é importante, mas configura um mundo

onde são criadas continuamente novas comunidades de valor, crença e

identidade numa escala limitada (Weeks, 1990:135).

Perceber e entender a simultaneidade do global e do local na

epidemia de HIV/AIDS é de extrema importância para apreender suas

particularidades existentes em vários países, e, mais especificamente,

no Brasil. Sobre isso, Richard Parker (1994; ver também Daniel e

Parker, 1991) mostra que a discussão mundial sobre a AIDS converge

para situações mais comuns, e, assim, consideradas paradigmáticas na

construção do entendimento global da epidemia. As representações da

mídia, os modelos epidemiológicos e o discurso científico tomam por

base, mesmo que de uma forma genérica ou superficial, os extremos da

diferença social e cultural, no caso a AIDS nos EUA e em países da

África Central, os quais se transformam em modelos das dimensões

internacionais da epidemia. Contudo, acrescenta Parker, "exemplos

mais ambíguos, ou menos nitidamente contrastáveis, têm sido

geralmente descartados como exceções curiosas ou notas de rodapé

desconcertantes na descrição mais ortodoxa da epidemia" (Parker,

1994:24). Não se incluindo, portanto, nos paradigmas mundiais, ao

constituir "nota de rodapé", a epidemia de HIV/AIDS no Brasil há que

ser particularizada, possibilitando que se veja como as imagens da

epidemia criadas na cultura brasileira dialogam com as imagens

internacionais, validando-as ou contestando-as, para, deste modo,

desconstruí-las.

Além das diferenças sociais e culturais da epidemia de

HIV/AIDS no Brasil, concorrem para aumentar sua complexidade um

momento histórico específico e um complicado conjunto de

transformações sociais.5 Tudo isso faz com que o perfil da epidemia no

Brasil tenha características próprias, e basear-se em modelos

epidemiológicos internacionais desvia o reconhecimento de um contexto

social e cultural próprio, e, deste modo, de como esse mesmo contexto

constrói a epidemia e a ela responde.

A questão da sexualidade é exemplar, ao mostrar as diferenças

em relação aos modelos internacionais, pois a prática sexual, diz

Parker, "como qualquer comportamento humano, é aprendida dentro da

sociedade, ou seja, comportamentos sexuais são também social e

culturalmente organizados e prescritos" (Daniel e Parker, 1991:72), não

sendo, portanto, constantes e uniformes transculturalmente. O modelo

de práticas sexuais que orienta o padrão dos EUA e da Europa

Ocidental é o modelo médico-científico de classificação sexual, que

corresponde às divisões e às classificações heterossexual, homossexual

e bissexual, modelo este onde há uma correspondência entre desejo,

prática e identidade. Esse sistema de classificação médico-científica não

se restringe ao campo médico, sendo utilizado como forma de regulação,

controle e condenação — quando é o caso — por outras instituições

sociais, ao valorizar uma identidade sexual e ao excluir as outras, tendo

como respaldo o discurso aparentemente neutro e científico que o

constrói. Nos países desenvolvidos e industrializados, onde esse modelo

pode ser percebido mais claramente, grupos de indivíduos que têm

relações sexuais com o mesmo sexo se apropriam dessa identidade já

dada para reconstruí-la, distanciando-a da medicalização imposta pela

5 Richard Parker contextualiza a epidemia de HIV/AIDS no Brasil em um

amplo campo social, político, econômico e cultural, onde se entrecruzam mudanças da

rota de narcotráfico, exploração do comércio clandestino de sangue, mudanças

políticas recentes de uma ditadura militar para uma democracia e práticas sexuais

distintas, entre vários fatores. É interessante perceber como forças diferentes se

entrecruzam e se sobrepõem, construindo, dessa forma, uma epidemia com

características próprias e especiais. (Ver Daniel e Parker, 1991; e, especialmente,

Parker, 1994.)

classificação médica — que estabelece as dicotomias saudável/doente,

normal/anormal — e valorizando, assim, uma identidade que se

contrapõe àquela doentia. Além disso, essa nova identidade estabelece

um novo termo —gay — para os indivíduos same-sex oriented, em

oposição ao termo homossexual, que carrega intrinsecamente as noções

de desvio, perversão e doença.

Essa classificação, se não é nova no discurso médico-cientí-fico

brasileiro, configura-se como tal na cultura popular. E esse o

argumento de Richard Parker, que estabelece a existência de um

modelo sexual popular na cultura brasileira que difere do modelo

existente nos EUA e na Europa Ocidental (Parker 1989,1994; Daniel e

Parker, 1991). O Brasil não é Estocolmo, acrescenta Simon Watney, e

seria profundamente etnocêntrico pensar que as categorias de

identificação sexual dos países desenvolvidos e industrializados são

igualmente aplicáveis em todo o mundo (1994:99). A existência de um

modelo popular próprio, entretanto, não quer dizer que o modelo de

classificação médico-científica não exista na cultura brasileira. Ele

existe, só que restrito mais exclusivamente às classes média e alta dos

centros urbanos brasileiros, tendo sido, inclusive, o responsável, no

final da década de 60 e no início da de 70, pelo surgimento de uma

identidade de certa forma semelhante à identidade gay observada em

outros países, como nos EUA, colaborando, ainda, na construção

gradual de uma comunidade gay nos moldes das subculturas de grupos

emergentes existentes naqueles mesmos países (Parker, 1994; Daniel e

Parker, 1991; Trevisan, 1986; MacRae, 1991).

O modelo popular, porém, foge das classificações importadas.

Se, na classificação médico-científica, a ênfase é dada ao objeto sexual

(homem /mulher), no modelo popular o que entra em jogo são os papéis

sexuais (atividade/passividade), que se tornam muito mais significativos

e fortes na construção de uma identidade sexual. Isso quer dizer que,

na cultura sexual popular brasileira, as noções de "homossexualidade"

e "bissexualidade" tornam-se distantes e muitas vezes sem significado

frente às práticas sexuais numa relação, definidas pela atividade ou

passividade. Um papel sexual ativo entre homens, portanto, não é

indicativo de uma identidade homossexual, pois não trans-gride o

padrão dicotômico de atividade masculina/passividade feminina.

Ocorre, também, que às vezes esses papéis podem ser negociados numa

relação, sendo o que Parker chamou de "cultura da transgressão", mas,

da mesma forma como são negociados, podem ser completamente

ignorados em seguida. A "cultura da transgressão" permite ainda a

existência de uma complexidade de identidades fluidas e variáveis que

fogem da "simplicidade" da classificação médico-científica. Não há,

assim, a possibilidade de uma subcultura relativamente homogênea,

devido às identidades e às práticas marcadas pela fluidez e diversidade:

Os limites desta subcultura têm sido relativamente flexíveis e ela

tem-se organizado menos em tomo de uma "identidade homossexual"

compartilhada e mais como um conjunto de desejos e práticas bastante

diversas entre o mesmo sexo. O que pode ser descrito (mesmo com um

certo grau de exagero) como a uniformidade relativa da subcultura gay

nos Estados Unidos, por exemplo, está completamente ausente no Brasil,

onde uma pluralidade de classificações e identidades reúne-se sem se

tomar um grupo social único e claramente definido. (Parker, 1994:33)

A diferença entre os modelos médico-científico e o popular

trouxe inúmeras conseqüências no combate à epidemia no Brasil. Por

importar um modelo que foge à apreensão nas camadas mais

populares, campanhas dirigidas a homossexuais como uma construção

monolítica simplesmente falharam. Essa construção nega as inúmeras

variações de identidade e classificação sexuais existentes sem formar

um grupo distinto, além de não alcançar indivíduos que mantêm

relações sexuais com o mesmo sexo, ou com ambos, mas que não se

identificam como homossexuais, já que o padrão sexual no qual estão

circunscritos estabelece uma noção que privilegia os papéis sexuais em

relação aos objetos sexuais na construção de uma identidade.

A pluralidade de classificações e identidades sexuais existentes

no Brasil dificulta, então, que uma identidade e uma comunidade gays,

assim como são percebidas nos EUA e na Europa Ocidental, sejam

construídas.6 Se, para a prevenção e o controle da epidemia biológica de

HIV/AIDS, a adoção de um modelo importado sobrepondo-se à

pluralidade de identidades teve um resultado drástico, resta investigar

como esse confronto se desenvolve na epidemia discursiva.

Sendo também a literatura um dos elementos que compõem essa

epidemia discursiva, a AIDS ocupa hoje uma posição de destaque na

literatura gay norte-americana,7 pois, acima de tudo, tem um

significado especial para autores gays, já que são diretamente atingidos

pela doença, seja numa escala comunitária ou individual — por terem

amigos, parceiros ou serem eles próprios soropositivos ou doentes de

AIDS 0ones,1993:225).

Apesar de, no início da epidemia, a comunidade gay norte-

americana ter tentado a todo custo desfazer a falsa equação AIDS =

homossexualidade e mostrar que o termo "grupo de risco" nada tinha de

científico, neutro e burocrático, hoje essa mesma comunidade faz

6 A partir de uma pesquisa realizada pela ABIA (Associação Brasileira

Interdisciplinar de AIDS), em 1988, entre os 500 primeiros casos de AIDS notificados

do Rio de Janeiro, Herbert Daniel observou a dificuldade de enquadrar sexualmente os

entrevistados: "Normalmente, as fichas vinham extremamente rasuradas: na linha

referente às práticas sexuais. Havia um x no quadrado de heterossexual, logo depois

uma rasura e um outro x mais nítido em bissexual, a seguir um círculo em volta da

palavra homossexual. E ainda havia mais algumas setas, marcas, traços, em várias

cores e intensidades, demonstrando a enorme vacilação do investigador e do

investigado." (Daniel e Parker, 1991:39.)

7 Franklin Brooks e Timothy F. Murphy reuniram, numa bibliografia

comentada de textos sobre AIDS, entre 1982 e 1991, inúmeros títulos. São anotados

134 títulos de ficção, entre contos, romances e novelas; 34 títulos de poemas ou livros

de poemas; 31 títulos de biografia ou autobiografia, vários textos teatrais, além de

inúmeros textos críticos (ensaios, artigos ou livros). Apesar de a bibliografia não

considerar apenas a literatura americana ou gay — pois se incluem, por exemplo,

Susan Sontag e Hervé Guibert —, praticamente a maior parte é literatura gay norte-

americana. (Ver Brooks & Murphy, 1993.)

questão de não se desvincular dos discursos sobre a AIDS. Primeiro,

porque essa "deshomossexualização", como observa Parker, perpetua a

imagem da epidemia como uma "praga gay" e não discute a questão da

alteridade, continuando a sociedade a negar a todo custo a questão da

diferença; segundo, porque, ao transformar a doença "deles" em doença

de "todos", reafirma de modo subliminar que a discriminação realmente

existe, pois esse "todos" não inclui grupos emergentes e marginalizados;

e terceiro, porque a estabilização de contágio do HIV na comunidade,

conseguida por árduas campanhas de prevenção, poderia se modificar

ao desvincular a doença do grupo (ver Sontag, 1989:97-98; McGrath,

1990:145-146; Costa, 1992:164-171; Daniel e Parker,

1991;Parker,1994).

Mais ainda, não desvincular a AIDS da comunidade gay leva a

discutir práticas da representação e, principalmente, a questão da

visibilidade. Stuart Marshall aponta que homens gays e mulheres

sempre foram alvo das representações dominantes, com uma

semelhança e, também, uma diferença: ambos são sempre objetos nas

representações e quase nunca sujeitos. Mas enquanto as mulheres

sofrem de um excesso de representação, ou seja, não possuem controle

da visibilidade excessiva a elas imposta, os homens gays sofrem de uma

pobreza de representação, ou, como prefere Marshall, uma

"invisibilidade virtual" (1990:19-20). E inegável que essa invisibilidade

marcou profundamente o estigma da doença, pois, como salientou

Kenneth R. de Camargo Jr., o processo de construção daquilo que hoje

é conhecido como AIDS foi contaminado por preconcepções

extracientíficas de médicos e cientistas que pouco sabiam de

sexualidade humana, mais especificamente de práticas sexuais entre o

mesmo sexo. A falta da visibilidade, que determina em parte essa

ignorância, pode ser percebida na mídia, que expõe apenas poucos e

determinados estereótipos. Antes da AIDS, homossexualismo,

identidade e comunidade gays pouquíssimas vezes tiveram espaço na

mídia, salvo em representações estereotipadas. Somente após o

surgimento da AIDS, uma visibilidade começou a existir, porém

completamente sem controle.

A representação e a visibilidade — e de que maneiras são

conduzidas — tornam-se cruciais nos discursos da AIDS. Frente ao

discurso médico muitas vezes intolerante e aos estereótipos da mídia,

setores culturais de comunidades mais atingidas — especialmente a

comunidade gay — atestam a importância da visibilidade, contrapondo,

porém, modelos de representação, como diz James W. Jones: "os

discursos competem em torno das questões de quem serão os sujeitos e

quem serão os objetos de sua linguagem: quem pode dizer 'eu' e quem

se tornará o 'eles' a quem o 'eu' irá ordenar" (1993:227). Assim, a

literatura gay norte-americana faz visível como sujeito do discurso a sua

comunidade, ao contrário de muitos discursos sobre a AIDS

(especialmente da mídia televisiva), que sempre ignoram aquela e outras

comunidades como sujeitos, como espectadores ou leitores, mas sempre

transformando-as em objetos de seus discursos (Grover,1992:231;ver

também Treichler, 1993; Clum, 1993). Transformando objetos em

sujeitos, a literatura gay marca, delimita espaços em confronto com a

"outra" literatura; em seu oposto, há uma literatura chamada de outside

(de fora), mainstream (tradicional) ou straight (careta), que se apropria

de suas identidade e comunidade para retirar-lhes a voz, numa

representação sobre a qual não possuem controle.

Marcando a diferença em relação a uma literatura outside, ou

seja, que está fora de sua comunidade, a literatura gay não só desloca o

centro ideológico (para a comunidade heterossexual, os gays estão à

margem), como também forma um espaço mercadológico inserido num

esquema de produção, distribuição e consumo. Um escritor que se

identifica com uma comunidade produz textos para ela, através de um

esquema de editoração, distribuição e venda também para esse público-

alvo. O escritor conhece e sabe quem é seu público leitor, pois também

a ele pertence comunitariamente, dividindo, quase sempre, ideologias,

práticas e crenças. O que vale ser ressaltado nesse esquema é a

comunhão de valores entre escritor e leitores, o fato de o escritor saber

de antemão quem são esses leitores, e que há, inegavelmente, um

mercado consumidor desses livros.

No Brasil, porém, inexiste essa relativa homogeneidade de uma

comunidade compartilhada por uma identidade sexual. O esquema de

produção, distribuição e consumo permitido por essa comunidade se

dispersa, pois poucos escritores que tratam do homoerotismo se

definem sexual e socialmente por uma identidade gay, além de o

público que compartilha práticas homoeróticas ser muito diverso em

suas classificações. Mesmo sendo tema para possíveis pesquisas

interessantes, a investigação da existência de uma literatura gay no

Brasil é quase que esquecida. Um dos poucos exemplos é a tese de Sape

Grootendorst, da Universidade de Utrecht, na Holanda, que sequer foi

editada no Brasil.

Resenhada com o título "Nunca fomos santas", no periódico gay

Nós por exemplo, pelo escritor Sérgio Barcellos (1994), ela levanta

algumas considerações importantes a serem discutidas.

Definindo literatura gay como uma literatura que transmite uma

temática homoerótica, porém lembrando que, ao mesmo tempo, falta

uma boa e clara definição do que seria essa literatura, Grootendorst

selecionou inúmeros escritores, mas se concentrou em apenas dezoito,

entre os quais estão incluídos não só escritores consagrados (como, por

exemplo, João Gilberto Noll, Silviano Santiago, Caio Fernando Abreu,

Aguinaldo Silva e Fernando Gabeira), mas também escritores que não

possuem uma legitimação no círculo literário (Geraldo Markan, Getúlio

Grigoletto e Francisco Caetano Lopes, entre outros), com um público

limitado e, quase sempre, com edições do autor. Após ter entrevistado

os escritores, Grootendorst constatou que eles, desviando-se de uma

literatura gay — em geral considerada "meio proibida, pornô, de mau

gosto e mal escrita" —, desejam, como objetivo geral, situar-se na

"grande" ou "alta" literatura:

Pelas entrevistas, nota-se efetivamente que os escritores tentam

escapar àquilo que eu queria saber. Isto é relacionado à valorização do

jogo, do brincar, da ambigüidade, do não fixar de categorias e também a

vontade de não criar uma "literatura gay" à parte, mas de ter espaço na

"grande literatura". (Grootendorst, apud, Barcellos, 1994:14)

"Literatura alta" e "literatura baixa" são distinguidas por

Grootendorst, respectivamente, como "acadêmica, de fácil aceitação

social", e "escrita rebelde, de temática marginal". Nessa divisão exposta

pelo autor, Sérgio Barcellos inclui os critérios acadêmicos na

manutenção dessas fronteiras, quando vê que a universidade autentica

obras e lhes dá passagem, e, assim, por almejarem uma inclusão na

academia, os escritores unanimemente rejeitam uma literatura gay.

Diante desses argumentos propostos por Grootendorst, é

necessário discutir algumas questões importantes. A primeira é quanto

à definição. Quando define literatura gay como uma literatura que

transmite uma temática homoerótica, o autor incorre em um erro: todos

os textos gays são homoeróticos, mas nem todos textos homoeróticos

são gays, pois este termo pressupõe uma identidade sexual e social,

circunscrita em um determinado período na história das práticas

homoeróticas.8 O uso do termo homoerótico, portanto, seria mais útil

8 Jurandir Freire Costa, em seu livro A inocência e o vício (1992), retoma o

exemplo utilizado por Peter Gay em A paixão tema (1990) para explicitar essa

diferença. Na Nova Inglaterra de 1837, Albert Dodd, um rapaz de 19 anos, escrevia

longas cartas de amor a suas amadas e, também, a seus amados. Sem demonstrar

tormento, culpa ou pecado por amar também a homens, as cartas do jovem são

utilizadas por Gay para mostrar que o século XIX seria menos vitoriano do que

pensamos, o que, de certa forma, é a sua tese. Jurandir F. Costa vai além e percebe

que a falta de conflitos de Dodd pode ser atribuída à "impossibilidade de perceber ou

interpretar o que vivia como sendo 'homossexualismo'" (1992:40-41), já que esse

termo pressupõe a criação médico-científica que viria somente depois. O autor ainda

complementa que Dodd poderia se considerar, no máximo, entregue ao "vício da

sodomia" ou, ainda, caso tivesse acesso à literatura médico-científica, um

"monomaníaco". O termo homossexualismo, então, e é esse o argumento principal de

Costa, é apenas um episódio na história das relações homoeróticas, e o que hoje é

conhecido como homossexualismo e o termo valorativo gay não podem ser estendidos

a todas essas específicas práticas ao longo da história. (Ver Freire, 1992.)

por ser mais amplo e atender mais especificamente às peculiaridades

culturais — e também sexuais—brasileiras. Além disso, o autor não

levou em conta o fato de quase todos os escritores consagrados por ele

delimitados não escreverem única ou basicamente textos homoeróticos.

Em quase todos, o homoerotismo é um dentre vários temas. Deve-se

notar também que todos os escritores—ou quase todos — não se

identificam social ou sexualmente como gays, o que os faz não nomear

a literatura de gay. Dizia Caio Fernando Abreu:

Acho que literatura é literatura; ela não é masculina, feminina ou

gay. E como o ser humano também não é. Não acredito nessas divisões, o

que existe é sexualidade. Cada um é sexuado ou assexuado; se você é

sexuado, tem mil maneiras de exercer a sexualidade. E se nós formos

compartimentalizar essas coisas, acho que dilui, pois fica uma editora

gay, publicando escritor gay, que vai ser vendido numa livraria gay, que

vai ser lido apenas por gays. (Abreu, 1995b)

O que poderia ser visto como uma heresia politicamente

incorreta nos EUA deve ser percebido de modo diferente aqui. Pois,

ironia das ironias, esses mesmos poucos escritores a quem são

cobradas posições e que não possuem a "vontade de criar uma

literatura gay à parte" são os mesmos que fornecem, eventual ou

freqüentemente, textos homoeróticos à literatura brasileira.

Outro ponto a ser discutido é a definição de "literatura alta" e

"literatura baixa", pois ficam algumas indagações pela maneira como

foram expostas. Nem toda literatura acadêmica é de fácil aceitação

social, como nem toda temática "marginal" é associada a uma

"literatura baixa". Um exemplo é o escritor Rubem Fonseca, que, apesar

de não escrever textos homoeróticos, se utiliza de temas muitas vezes

"marginais", e é tido como um escritor renomado na literatura

brasileira. Além disso, Caio Fernando Abreu, um dos escritores

consagrados a quem Grootendorst se referiu, queria apenas escrever

boa literatura; não se via na academia nem pretendia nela ingressar:

Sou uma figura um pouco atípica na literatura brasileira. Também,

porque sou um pouco roqueiro, fui hippie, fui punk. Não faço vida

literária, corro por fora. Não conheço o lobby das universidades, não vou

a lançamentos de livros, só vou quando sou amigo do escritor. E na

minha obra aparecem coisas que não são consideradas material didático.

(Zé Castello jornalista de O Estado de São Paulo) escreveu uma crítica

brilhante de Ovelhas negras, em que ele diz que me utilizo do trash e me

compara a Zulmira Ribeiro Tavares. Segundo ele, ela escreve como uma

professora, a literatura dela é organizada e limpa; é "boa" literatura. E

sou o oposto, porque lido com o trash, de onde tiro não só "boa" literatura,

mas também vida pulsante. E acho que isso é aterrorizante,

principalmente no meio universitário. (Abreu: 1995b)

Se as distinções de Grootendorst entre as duas literaturas forem

conjugadas às dicotomias alta cultura/baixa cultura, aí sim a inferência

de Barcellos fará, de certa forma, sentido. Ao assinalar que a

universidade dá passagem a certas obras e impede a de outras, ele

torna claro que o meio acadêmico ajuda a delimitar o espaço e a

circulação de muitos objetos textuais, acabando por determinar se estão

dentro ou fora das margens da sociedade. E essa divisão ajuda a refletir

uma arena de confrontos e conflitos desiguais numa sociedade

conservadora e hierarquizada como a brasileira (Lopes Jr., 1993:5-7).

Toda a discussão sobre alta e baixa culturas não é nova e vem desde a

década de 60, perdurando até hoje (ver Sontag,1987;1987a;

Huyssen,1992). Essa discussão torna-se mais clara no meio acadêmico

norte-americano, onde o cânon em suas mais variadas formas é

continuamente confrontado. A literatura de grupos emergentes ganha

seu espaço aí, e os estudos que se fazem dessas literaturas ajudam a

questionar ainda mais esse cânon. Deve-se lembrar, entretanto, que as

literaturas emergentes não buscam na "autenticidade" da academia um

ingresso ao cânon literário, pois isso contrariaria todas as suas

propostas. A academia serve para, como disse Barcellos, dar passagem

às literaturas emergentes, mas nunca para restaurar uma dicotomia

hierárquica, possibilitando o ingresso num círculo dos happy few

literários. Contudo, será um tanto ingênuo pensar que há uma

literatura gay estabilizada só porque estudos acadêmicos a acolhem; o

que verdadeiramente a faz produzir e se afirmar é um grande mercado

consumidor à sua retaguarda, que, como foi exposto anteriormente,

compartilha uma identidade e uma comunidade.

No final da resenha, Barcellos acrescenta uma curiosidade,

levantada pela tese: "o tema da AIDS é fortemente recusado por todos os

escritores. Por não encararem a AIDS como pretexto, afirmam ainda que

o tema é extremamente real, o que dificultaria uma elaboração poética".

Não é verídico que todos os escritores se recusem a trabalhar o tema da

AIDS. Dois dos escritores citados na tese já o fizeram, como Silviano

Santiago, em Uma história de família (1992), e, principalmente, Caio

Fernando Abreu, em vários contos e no romance Onde andará Dulce

Veiga? (1990). O significado de "pretexto" fica meio ambíguo, mas a

oposição estabelecida entre um real concreto e uma ficção etérea

merece atenção, pois remete às discussões estabelecidas no capítulo

anterior. Demonstra essa divisão uma hierarquização arbitrária na

epidemia discursiva da AIDS, que resgata não só convenções literárias

que vêm sendo combatidas desde o final da década de 60, mas

convenções sociais, culturais, políticas e econômicas que tentam

restaurar antigas e fortes dicotomias em suas áreas específicas, como

observa Susan Sontag:

O comportamento que está sendo estimulado pela AIDS faz parte

de todo um processo maior, encarado com certo alívio, de volta às

"convenções", como a volta à figura e fundo, tonalidade e melodia, enredo

e personagem, e tantas outras atitudes alardeadas de rejeição do difícil

modernismo nas artes. (1989:93)

E é isso que este livro se propõe a fazer. Investigar se a literatura

que é vista como "de ficção" também (des) constrói a epidemia

discursiva, de que modo, e quais são seus resultados. Se a ficção

contribui também para que essa divisão hierárquica e o retorno a

convenções binárias e excludentes sejam discutidos, analisados,

criticados. E mais ainda: se a literatura gay nos moldes de países como

os EUA, inexiste no Brasil, e se é essa literatura que permite novas e

necessárias abordagens da AIDS, como se dá a existência da AIDS na

literatura brasileira? Terá um caminho próprio? Desvinculará o tema da

AIDS do homoerotismo? Caso contrário, seguirá a linha de uma

literatura mainstream, não permitindo que grupos emergentes sejam

sujeitos na narrativa, mas sempre objetos? Reafirmará e construirá

discursos autoritários, não dando espaço às diferenças?

A ênfase deste livro recairá, portanto, sobre textos ficcionais e

não sobre depoimentos, que se marcam pelo caráter documental. Além

disso, a leitura se concentrará em contos, novelas e romances de Caio

Fernando Abreu. Será importante perceber como um escritor que não

faz uma "literatura gay" e que, segundo Grootendorst, relaciona-se à

"grande literatura" (ou mainstream, em oposição a um grupo definido)

aborda a tematização da epidemia discursiva. Será relevante verificar

como Caio Fernando Abreu desfia e tece o tema da AIDS. Outros

escritores, nacionais e estrangeiros, também serão utilizados num

diálogo textual, mas o fio condutor será a obra de Caio Fernando Abreu.

PPAARRTTEE IIII

OO ffiioo lliitteerráárriioo

A única coisa que posso fazer é escrever — essa é a certeza que

te envio, se conseguir passar esta carta para além dos muros. Escuta

bem, vou repetir no teu ouvido, muitas vezes: a única coisa que posso

fazer é escrever, a única coisa que posso fazer é escrever.

Caio Fernando Abreu, "Primeira carta para além do muro"

CCaappííttuulloo 33

AA EEPPIIDDEEMMIIAA EE SSUUAASS PPEERRSSOONNAAGGEENNSS

Os olhos dos dois tornaram a se cruzar. Tão raro. Nas ruas, nos

ônibus, nos elevadores. Você me reconhece? E por me reconhecer, tem

medo? A peste de que nos acusam.

Caio Fernando Abreu, "Pela noite"

A novela "Pela noite", publicada em 1983, no livro Triângulo das

águas (1991), de Caio Fernando Abreu, é provavelmente o primeiro

texto literário brasileiro que trabalha com o tema da AIDS. Ter a AIDS

como tema não implica que ela apareça explicitamente; através da

elipse, o escritor pode criar, em relação à síndrome, novas formas de

percepção ou outras abordagens. Estes pontos serão trabalhados

minuciosamente no próximo capítulo. Relevante, agora, é relembrar que

a AIDS também é — e fortemente — uma construção discursiva e

ideológica. Por isso, Lee Edelman, ao escrever a sigla da síndrome,

utiliza-a entre aspas. "AIDS" — assim escrita — marca mais a arena

onde discursos se unem, se desviam e se confrontam, e onde mesmo o

discurso médico-científico não consegue sua total apreensão (1993:9-

10). De posse dessa observação, é importante perceber como a AIDS

aparece numa novela, onde é referida apenas duas vezes, que são,

aparentemente, corriqueiras e descompromissadas citações.

O ano de publicação da novela tem um aspecto curioso: é o

mesmo ano em que surgiu o primeiro caso de AIDS diagnosticado no

Brasil. A morte de um famoso estilista não trazia uma novidade ao país;

ao contrário, como disseram Herbert Daniel e Richard Parker, aqui a

AIDS chegou antes da AIDS. Desde o início, todas as informações, sobre

essa doença, quase sempre de intolerância travestida de ciência,

chegavam rapidamente ao Brasil. A semelhança de Crônica de uma mor'

te anunciada, de Gabriel Garcia Márquez, todos já sabiam quem iria

morrer e como, só não sabiam quando — e essa era a grande

expectativa. Esse quem, entretanto, não é um indivíduo, mas indivíduos

metamorfoseados em uma estranha personagem: o homossexual.

Em 1981, algumas infecções incomuns, relacionadas a uma

falha no sistema imunológico e observadas em pacientes do sexo

masculino, desafiavam médicos norte-americanos na apreensão de um

agente conhecido. Mais do que provocada por um agente, a AIDS — que

ainda não tinha essa nomeação — era vista como multicausal, ou seja,

múltiplos fatores se combinavam e convergiam para a fragilização do

sistema imunológico. Já que era multicausal, o único fator a ligar os

pacientes eram suas práticas sexuais: homens que tinham relações

sexuais com outros homens. Essa preferência sexual foi decisiva na

construção da doença, e, mais ainda, reforçou-se como a existência de

um grupo distinto, como se essas práticas same sex fossem "por si só

um fator de homogeneização suficiente" (Camargo, 1994:64). Com

estudos cada vez mais freqüentes na literatura médica e manchetes

diárias na imprensa mundial, torna-se necessário conhecer esse tipo: o

que faz, como é, como se comporta. Descobre-se que essa personagem

— o homossexual —, entre outras coisas, foge da monogamia familiar; é

um tipo "promíscuo". E é a promiscuidade que fecha um aparentemente

simples silogismo: se homossexualidade = promiscuidade, e

promiscuidade = AIDS, então homossexualidade = AIDS.

A equação homossexualidade = doença, porém, não é nova,

podendo ser localizada em um contexto histórico na metade do século

passado. Criado em 1869 por Benkert, um médico húngaro, o termo

homossexualismo, mesmo que à revelia de seu inventor (ver

Costa,1992:43), foi transposto para uma linguagem não só médica, mas

psiquiátrica, jurídica e legal que marca aspectos binários e valorativos

de construção, entre os quais normal/anormal, permitido/proibido,

certo/errado. Para marcar os limites não só do prazer, mas também do

cidadão burguês, como e de que maneira este deveria ser, era

necessário transformar práticas sexuais em identidades, ou, ainda,

personagens:

O homossexual do século XIX torna-se uma personagem: um

passado, uma história, uma infância, um caráter, uma forma de vida;

também é morfologia, com uma anatomia indiscreta e, talvez, uma

fisiologia misteriosa. Nada daquilo que ele é, no fim das contas, escapa à

sua sexualidade. Ela está presente nele todo: subjacente a todas as suas

condutas, já que ela é o princípio insidioso e infinitamente ativo das

mesmas; inscrita sem pudor na sua face e no seu corpo já que é um

segredo que se trai sempre. É-lhe consubstancial, não tanto com o pecado

habitual porém como natureza singular (...)

O sodomita era um reincidente, agora o homossexual é uma

espécie. (Foucault, 1984:43-44)

Michel Foucault, então, mostra como esse "segredo" foi

descoberto pela ciência. Descobrir, no caso, é montar, criar parte por

parte uma personagem, dotando-a de um corpo, um passado, uma face

e um caráter definidos. Se o homossexual foi, deste modo, uma criação,

circunscrita em um determinado período histórico, buscar sua

representação, ou aquilo que é entendido como homossexualidade, na

história diversificada de práticas e relações homoeróticas anterior, é um

grande erro. Antes desse período não se podia ter uma noção de uma

essência ou personalidade comum aos indivíduos de práticas

homoeróticas e hoje, a suposta homogeneização ainda outorgada ao

homossexualismo "só existe quando lidamos com a figura imaginária da

identidade 'homossexual', tal como existe na abstração criada pelo

preconceito" (Costa, 1992:156). Apesar de ser uma abstração, na qual

distinções várias são anuladas ou esquemas para formar um tipo

específico e único, essa identidade é ao mesmo tempo real: não natural,

mas uma realidade lingüística, como aponta Jurandir Costa. É

justamente a apreensão desta identidade criada — ou desta realidade

lingüística — e sua valorização que são feitas a partir da contracultura

do fim da década de 60 e início da de 70. Ao valorizar essa identidade,

retirando-lhe o caráter anômalo, doentio, tornando-o positivo, cria-se

uma nova face para esse personagem já existente. Além disso, a nova

nomeação —gay — se contrapõe à outra, vista como preconceituosa e

inadequada a esse novo posicionamento.

Esse novo, termo, contudo, ainda compreende umbinarismo

relativamente forte, além de autenticar uma identidade ditada por esse

binarismo. Além disso, esse termo não atende a todas as peculiaridades

relacionadas ao desejo e prática homoeróticos. Esse é o argumento de

Jurandir Freire Costa (1992), que propõe o uso do termo homoerotismo

a homossexualismo ou a sua face positiva gay. Ao retomar o termo

usado por Sandor Ferenczi, médico húngaro contemporâneo de Freud, o

autor alerta que não se trata de rebatizar o homossexualismo. Apenas

esse termo é mais flexível a várias questões. Primeiro, não está

vinculado a Uma noção de desvio ou doença. Segundo, contrapõe-se à

idéia de uma essência comum aos homens same-sex oriented. Terceiro,

não possui o termo substantivo, como ocorre com o termo

homossexualidade, o que delimita a tentação de criar um

termo/identidade a partir dele. Mais ainda, o termo permite uma gama

maior de peculiaridades de desejos e práticas, que são limitadas no

termo homossexualidade (ver Costa,1992:21-40).9

Mais do que reforçar a ligação de práticas sexuais entre o mesmo

9 Jeffrey Weeks se aproxima bastante de Jurandir Freire Costa, quando

concorda que as identidades sexuais são criadas historicamente. Enquanto Costa,

através da desconstrução de uma identidade sexual comum e partilhada, pretende

mostrar o quanto a divisão sexual binaria é arbitrária, possibilitando, assim, um

argumento coerente contra o preconceito, Weeks vê um saldo positivo no que chama

"dualidade da identidade": "Identidade é uma coisa que nos caracteriza, que

provavelmente nos arma ciladas. Ela delimita potencialmente nossas possibilidades. É

também, entretanto, uma coisa que buscamos para podermos nos tornar nós

mesmos" (1991:138). Weeks, portanto, vê a identidade sexual como uma ficção não só

delimitadora, mas também necessária.

sexo e doença, os discursos da AIDS tendem a ratificar a existência de

um tipo, uma identidade monolítica, que tais práticas parecem sugerir.

Assim, como o homossexual "foi uma personagem imaginária com a

função de ser a antinomia do ideal de masculinidade requerido pela

família burguesa oitocentista" (Costa, 1992:24), restaurar e confirmar

essa identidade/personagem servem para definir, por contraste, através

de um discurso conservador, o que a pessoa que quer se prevenir do

vírus HIV não deve ser.

O que "Pela noite" faz é apresentar, na metróple de São Paulo,

essa atmosfera de paranóia e acusação através de duas personagens

inseridas em um jogo de sedução, presidido por urna delas. E é

justamente através de encontro casual de duas pessoas entre muitas,

perdidas na noite de um enorme centro urbano, que o discurso

normatizador e classificador da sexualidade é questionado e também

desconstruído. Se discursos da AIDS tentam restaurar a personagem

homossexual, a AIDS mostra, paradoxalmente, o quanto este termo é

arcaico e pobre em relação à apreensibilidade de práticas e identidades

sexuais. "Pela noite" não é uma novela "gay" ou "homossexual" como

muitos críticos a catalogaram. Ela vai justamente pelo lado oposto:

apresenta, na noite gay de São Paulo, um jogo de sedução entre uma

personagem identificada com o modelo do homossexual oitocentista e

outra que não se identifica com nenhum modelo anterior. Qual será a

essência comum a todos eles? Será que eles a têm? Se é um jogo de

sedução, as linguagens amorosa e erótica serão as mesmas entre as

personagens? Mais ainda, a novela apresenta, através do discurso da

personagem identificada com o modelo sexual oitocentista, seu discurso

oposto, que de forma alguma se contrapõe ao primeiro; este valida o

segundo. Se os discursos da AIDS, portanto, têm uma personagem

principal, "Pela noite" desmonta-a e mostra que as divisões do

comportamento e identificação sexuais, com fronteiras rígidas e

estáveis, são mais frágeis do que se pensa.

Início da década de 80, noite de sábado, inverno rigoroso de

julho, apartamento no décimo nono andar de um prédio na capital

paulista. Esse é o cenário inicial da novela "Pela noite". Em vez de ser

introduzido rapidamente pelo narrador, o cenário é composto

gradualmente, pois, independentemente de sua vontade, uma

personagem interrompe-o a todo instante. A atitude verborrágica desta

personagem será uma das conduções da novela, paralelamente à voz do

narrador, além de quase não permitir qualquer réplica da outra

personagem. Nomes não há; sua fala contínua impede uma

apresentação do narrador. O que esta personagem pretende, através de

um diálogo sem interlocutor imposto à outra, é iniciar um jogo de

sedução, onde é preciso que representem papéis, como em todos os

jogos: um é o sedutor, quem conduz, e o outro é o seduzido, levado pela

determinação do primeiro. Assim, à revelia da outra personagem — e de

certa forma do narrador —, ele estabelece nomes para cada uma.

Pérsio, retirado do livro Os prêmios, de Júlio Cortázar, será o seu;

Santiago, a personagem fatídica de Crônica de uma morte anunciada, de

Garcia Márquez, será do rapaz a quem tenta seduzir.

Não que os rapazes sejam desconhecidos. O narrador, numa das

folgas que Pérsio lhe dá, esclarece que eles vêm da mesma cidade do

interior, Passo da Guanxuma,10 e, após muitos anos sem se verem,

encontram-se, com espanto, numa sauna masculina no sábado

anterior, onde se inicia o jogo de Pérsio. Porém, parecem ser a

nomeação e a representação impostas por Pérsio a tônica não só do jogo,

mas também da novela. São elas algo aprendido na infância de ambos e

que começou

numa cidade do interior em que teriam sido os únicos, mesmo

10 Passo da Guanxuma é uma cidade imaginária freqüentemente observada

nos textos do escritor. Podem-se encontrar referências a ela nos contos "Linda, uma

história horrível", "Uma praiazinha de areia bem clara, ali, na beira da Sanga", ambos

de Os dragões não conhecem o paraíso (1988); no conto "Introdução ao Passo da

Guanxuma'', de Ovelhas negras (1995); e no romance Onde andará Dulce Veiga?

(1990).

sem dizer, mesmo que eles próprios não soubessem ainda o que já

sabiam sem sequer saber o nome criava uma espécie de pacto mudo,

sinuosa cumplicidade prosseguindo agora—fatalidades? (p. 144)

Essa inserção do narrador permite analisar dois pontos

relevantes. O primeiro diz respeito à exclusão e à cumplicidade. Mesmo

que o desejo sexual por outros homens, na infância, não fosse percebido

nem por eles mesmos, a maneira de ver o mundo dividido segundo o

desejo sexual já era uma realidade para eles. Por serem os únicos a se

perceberem assim, esse desejo é compartilhado, dividido, como um

conhecimento escondido a ser guardado e nunca exposto. Não só o

mundo em que vivem é dividido; essa divisão também aponta uma

hierarquia, valores binários de certo/errado, normal/anormal, entre os

quais devem optar. Estar entre os primeiros permite a inclusão, entre os

segundos impõe-se a exclusão. "O 'homossexual' era apenas uma figura

de exclusão. Era aquele que não tinha, não podia, não queria, não sabia

etc", diz Jurandir E Costa, "em suma, era tudo aquilo que 'um homem'

não era" (1992:156). Pérsio analisa anos depois, nessa noite de sábado

com Santiago, essa divisão:

Eles não perdoam, eles não aceitam. Eles não perdoam nunca,

sabia? Eles não vão sacar que não se trata sequer de perdão. Se um

deles discutir com você, esse vai ser sempre o último insulto que te

jogarão na cara. O mais ofensivo, na opinião deles. Você não vai passar

nunca de um veado escroto. Uma a-ber-ra-ção. Com todos os Masters &

Johnsons do planeta, (p. 165)

Mesmo que não se trate de perdão, como observou Pérsio, há o

sentimento de pertencer ao errado, ao contrário das normas, o que cria

uma cumplicidade, pela necessidade de partilhar o proibido. E

cúmplices são aqueles que participam de algum delito, de um crime. O

encontro casual em uma sauna masculina de uma metrópole, anos e

anos depois, só vem confirmar essa necessidade de cumplicidade; diz

Pérsio: "Não quero segurar a culpa sozinho. Preciso de cúmplices" (p.

164). A mudança para São Paulo sugere a fuga da superexposição

imprimida pela vida numa cidade pequena. Viver em uma metrópole

significa se perder, misturar-se à multidão, onde esses valores, longe de

serem inexistentes, são apenas mais frouxos; ou ainda, ao lado da cena

— aquilo que significa as normas, as regras, o espaço da família nuclear

— encontra-se também a obscena — o que foge à apreensão normativa,

à ordem, o espaço não familiar (ver Gomes, 1994). A cidade grande,

então, representa a possibilidade de encontro de mais cúmplices, com

os quais se pode dividir a culpa, e a possibilidade de se misturar às

pessoas, passar despercebido pela multidão: "[Santiago] Aproveitou que

estava em pé para entreabrir duas folhas de vidro da janela.

(...) Ao recuar, viu o próprio rosto misturado às luzes da cidade,

corado como o de um garoto surpreendido em meio a um ato obsceno"

(p. 140).

O segundo ponto é o processo de aprendizagem daquilo que já

sabiam, sem o saber e sem saber o nome, ou seja, um processo de

identificação e nomeação de suas sexualidades, que se dá de formas

diferentes nos dois rapazes. Sexualidade e linguagem, aponta Jurandir

E Costa, são dadas culturalmente; é impossível esquecê-las ou negá-las,

e, deste modo, "não podemos mudar nossos padrões sexuais por

decisão de um ou muitos, assim como não podemos 'desaprender' a

língua em que aprendemos a falar. Mas se não podemos 'desaprender'

nossas linguagens e sexualidades maternas e paternas, podemos

aprender outras línguas" (1992:38-39). Inicialmente, o aprendizado das

"línguas" se diferencia em Pérsio e Santiago. Santiago tem um namoro

de seis anos com uma menina de Passo da Guanxuma e somente terá

um relacionamento sexual com um homem aos vinte anos, na capital,

com o qual viverá dez anos. Seu processo, sua aprendizagem de outras

linguagens, se dá sem culpa, dor ou problemas. Pérsio, entretanto, é

visto desde cedo como um "anômalo" nessa sociedade dividida:

Sabe que quando saía na rua as meninas gritavam Biiiiiiicha!

Não, não era bicha. Nem veado. Acho que era maricas, qualquer coisa

assim. (...) Todas gritavam juntas. Ai,ai, elas gritavam. Bem alto, elas

queriam ferir. Elas queriam sangue. E eu nem era, porra, eu nem sabia

de nada. Eu não entendia nada. Eu era super inocente, nunca tinha

trepado. Só fui trepar aqui, já tinha quase vinte anos. E cheio de

problemas, (p. 164)

Apesar de não entender nada e de ter relações sexuais somente

aos vinte anos em São Paulo, como Santiago, Pérsio é catalogado e

nomeado em sua cidade natal. Estranhamente, vive uma identidade

antes de experimentar a própria sexualidade. Sua identidade, assim, é

claramente dada pelos outros, vem do exterior: a voz das meninas é a

voz da comunidade. Elas são representantes da sociedade que exclui o

que se "desvia" das normas. No entanto, mais do que imprimir-lhe a

exclusão, a nomeação a ele imposta será plenamente absorvida. Pérsio,

a partir daí, representará fidelissimamente, mesmo que assim não o

veja, a personagem que lhe foi atribuída. Não é à toa que, no início da

novela, Santiago observa que ele poderia ter sido um ator, por sua

grande capacidade de interpretar coisas, pessoas e situações. Pérsio o

interrompe, dizendo, com certa irritação, que não gosta de ficar falando

de coisas que poderia ter sido: "Eu tenho a sensação meio de amargura,

de fracasso. Você me entende? Como se tivesse a obrigação de ter sido,

ou tentado ser, outra pessoa" (p. 120). Essa sensação de amargura, de

fracasso, lhe é intrínseca, pois, atrás de seus traumas aparentemente

resolvidos, ele sabe que deveria ser "outra pessoa", tinha a obrigação de

ser um "heterossexual". Outro dado relevante que indica essa absorção

é o fato de ser somente ele a fazer referências à AIDS. Como já foi visto,

a AIDS, em sua gênese discursiva, era uma doença particular de um

tipo específico, o "homossexual", algo portanto que somente a ele

interessava. Pérsio, sendo esse "ele", tem a síndrome como um elemento

em sua pauta de assuntos: "E de repente eu ia dizer não, não posso,

não quero, não devo, estou doente, descobri que tenho AIDS, tenho um

compromisso (...)" (p. 162), ou ainda, "Tenho milhões de medos. Alguns

até mais graves. Medo de ficar só, medo de não encontrar, medo de

AIDS. Medo de tudo que esteja no fim, de que não exista tempo para

nada. E da grande peste" (pp. 188-189).

Representar bem a personagem homossexual não é revelar-se

sem culpa, satisfazendo seus desejos, assumindo sua condição de

"outro" ; mais que isso, é ser o "outro" de si próprio. Sob uma aparente

contradição, essa personagem é contra ela mesma, seu discurso é

contra si mesma. Primeiro, ao representar fala por fala dessa

personagem, Pérsio reafirma em outras ou em mesmas palavras que o

mundo é dividido por uma binaridade sexual. Segundo, tendo essa

binaridade uma distinção valorativa, em que um dos elementos é

identificado como doença, perversão e anomalia, o caráter e a

identidade distintos ditados por essa binaridade também terão aspectos

ou positivos ou negativos. Terceiro, verse como doente, anômalo ou

marginal faz com que almeje a "cura", ou que seja levado a uma

autoflagelação moral, psíquica e, às vezes, física. Em outras palavras,

através do discurso de Pérsio, pode-se perceber que a personagem

homossexual — construída pelo discurso oitocentista—é, de certa

forma, anti-homossexual, pois carrega em si o discurso da anomalia, da

doença, da exclusão e da culpa. Ao assumir-se como "homossexual",

Pérsio assume também o discurso de sua contraparte, o

"heterossexual". Como esta personagem só existe pela diferença e

contraste com a outra, é imprescindível que marque um discurso —

homofóbico — pela diferença e conseqüente aversão. E isso não é

apenas um jogo de palavras ou de idéias em Pérsio: "Não disse? Veado é

foda" (p. 195).

Deste modo, é preciso que se leia o discurso de Pérsio por

inversão. Ou melhor, não é necessário invertê-lo, pois ele já se

apresenta, claramente, em suas afirmações, como homofóbico. Sua

homofobia, por exemplo, dirige-se aos locais gays, onde só vai por

necessidade de encontros sexuais e mais nada. Se Santiago também

não se sente à vontade nesses ambientes, isso se deve mais à sua falta

de identificação com esse modelo do que propriamente a uma aversão.

No caso de Pérsio, o que o irrita profundamente, além do consumismo e

da pretensa originalidade dos tipos em série da subcultura gay, é saber

que essa palavra —gay — é mais que isso: "E mais grave, um

comportamento, um feeling. A sacralização da bobagem. E são todos

exatamente assim. Felizes, descontraídos, sem problemas. Leves,

levíssimos. Soltos, sem culpas, sem traumas" (p. 191). Sua aversão a

gays deve ser percebida como um ataque a si mesmo, pois se aqueles

estabelecem uma identidade que nega e solapa a negatividade inerente

ao homossexual oitocentista, negam e se contrapõem, então, ao que

Pérsio é. Enquanto ele vive a culpa, o trauma, a dor, os outros se

desligam disso, rompendo a cumplicidade que ele desesperadamente

procura em sua vida e naquilo que representa. Além disso, se seu

discurso é também o inverso, a apresentação de um novo modelo que se

dirige contrariamente ao modelo hegemônico, estabelecido por um

binarismo valorativo e excludente, é de certa forma subversivo em

relação à manutenção valorativa desse mesmo modelo. Ou seja, os gays

desafiam a existência — em termos valorativos — tanto do

"homossexual" quanto do "heterossexual". Provavelmente, é por isso que

Pérsio considera que relações sexuais e desejos eróticos entre homens

"no fundo tudo é a mesma coisa" (p. 191). Independentemente de como

se identificam, ressalta o comum que todos partilham: "Esse trauma é

pessoal, mas todo homossexual sul-americano tem no subconsciente

um grupo de garotas monstras vaiando enfurecidas" (p. 192). Essa

idiossincrasia autoritária de Pérsio, que pretende anular as

peculiaridades e buscar cúmplices, nada mais é do que aquilo que

pretende o discurso conservador da sexualidade: ao apreender desejos e

relações eróticas sob um único tipo — o do desvio —, apreende melhor a

sua identidade.

Sua vida, sua sexualidade e seu destino são malditos — assim

ele os vê. Como a moça dos sapatinhos vermelhos da história de

Andersen, que é condenada a dançar, a dançar sempre, sem parar,

Pérsio também assim vive, e o fim, para ele, está na sublimação, na

renúncia ou na morte:

Pois parece assim. Urna maldição. Para sempre. Só acaba quando

amputam os pés da moça. Quando você perde um pedaço. Quando você

se anula. Quando você renuncia e nunca mais trepa. Em nome da

higiene, em nome da. Eu não consigo. Jean Genet me cuspiria na cara.

Daí você me diz, então pára, se é tão. Tão traumatizante, tão violento,

pára. Ou batalha uma mulher. Sublima. Ou muda tua sexualidade. Eu

não gosto de mulher. Até transei, mas não sinto nada, tudo liso. Então eu

tento, fico uma semana, quinze dias sem foder. Então sinto falta. Aí vou

na esquina e cato o primeiro que passar. Quanto custa, vamos lá,

qualquer um. Paraíba, michê, crioulo, não tem problema. É rápido.

Toalhas, torneiras, camisinha e tal. A grana, papéis definidos, eu sou-

bicha-você-é-macho, nenhum envolvimento. Já me roubaram, qualquer

dia me matam. Isso não importa. Mas é isso que falavam, amor? Essa

sua história, eu não conheço. Eu só tive vislumbres, parecia prometido,

preparado. E nunca aconteceu. Eu nunca fui capaz, deve ser culpa

minha. Ah, que banal. Até que ponto as circunstâncias não me favorecem,

ou eu é que não favoreço as circunstâncias? (pp. 178-179)

Pérsio, então, na impossibilidade de sublimar seu desejo ou a ele

renunciar, dilacera-se entre vislumbres de histórias de amor e relações

sexuais com papéis definidos e sem um envolvimento a mais. O que

mais o incomoda, porém, é essa promessa não cumprida, uma história

prometida que ou lhe foi negada ou negou-a a si próprio. Justamente

por representar um papel específico, ele sabe que não tem acesso a esse

ideal amoroso, pois é ao outro papel que pertence esse ideal, além da

linguagem amorosa que o acompanha.

Em outras palavras, Jurandir Freire Costa aborda o dilema no

qual vive Pérsio. No Capítulo 3 de seu livro (1992), intitulado

"Conjugabilidade, ética sexual e parceria homoerótica", o autor analisa

o papel da ética sexual conjugal e sua relação nas parcerias

homoeróticas masculinas. Para iniciar essa análise, o autor recorre aos

historiadores das mentalidades e das vidas privadas, os quais, num

relativo consenso, concordam que o ideal moral das condutas sexuais

nem sempre esteve associado à conjugabilidade. Por um longo processo,

a aliança conjugal estabelece, ao fim do século XVIII e começo do XIX,

um acoplamento à ética sexual, e será essa fusão modelo e norma para

outras práticas sexuais: "a ética sexual conjugal", acrescenta Costa,

"funcionava como norma implícita para a avaliação do desvio"

(1992:81). O modelo da ética sexual conjugal que então avalia os

desvios é formado pelo homem e pela mulher, parceria esta vinculada à

reprodução e à transmissão de bens.

Dentre outras coisas sobre que o autor discorre, o que mais

interessa no momento é a posse da linguagem amorosa pela ética

sexual conjugal do casal heteroerótico, e como isso implica uma

ausência de uma linguagem positiva na parceria homoerótica. Ressalta

ele que o amor — e tudo que podemos dizer sobre ele —, ou mais

precisamente a linguagem do amor romântico, está estritamente

associado às imagens do homem e da mulher. Assim, ao utilizar um

vocabulário que não é seu para expressar-se amorosamente, o

homossexual é visto como um usurpador ou, mais ainda, um impostor,

pois está fora dessa parceria e toma-lhe emprestado um vocabulário

que não lhe pertence por direito. Exemplifica o autor que tudo o que, na

troca amorosa, parece sublime ou belo na boca de um homem e de uma

mulher torna-se grotesco e aviltante na boca de um homossexual. Este,

portanto, se vê oprimido pelo ideal sexual conjugal—que estabelece a

parceria heteroerótica — e pela privação de um vocabulário amoroso—

que pertence àquela parceria. Esse, obviamente, não é o caso dos

indivíduos identificados com um modelo sexual afirmativo, que

apresenta críticas e descobre novas formas de expressão, como os gays.

Entretanto, aqueles que se identificam com o modelo oitocentista se

vêem numa "cultura da privação", como nomeia Costa, e para ela

estabelecem algumas condutas de reação, entre as quais a cultura

clandestina do gueto (ver 1992:94-99).

O que Costa chama de gueto são os locais onde há a promessa

de encontros e facilidade de relações sexuais. A liberdade que é coibida

em outros locais está presente aí, sendo, portanto, uma liberdade entre

aspas, precária e circunscrita a um determinado espaço. Além disso, os

encontros são, muitas vezes, puramente sexuais, onde a esperança de

encontrar uma promessa amorosa, nas palavras de Pérsio, é vaga e

distante. Essa exploração do prazer imediato em detrimento de algo um

pouco mais sólido é percebida por Costa como uma busca no sentido de

contornar a privação do vocabulário do amor romântico imposta

aos amores masculinos, criando um estilo de comunicação que o toma

dispensável. No gueto domina o ideal da "mínima fala" e da inflação de

gestos, sinais e atos, de modo a indicar com a máxima precisão onde

está o desejo. Tudo se organiza para que o encontro sexual não passe

pela palavra, posto que toda palavra sobre "homossexualismo" aponta

para a dominação. Assiste-se, assim, a uma tentativa de relação sexual

sem metáforas, sem um discurso que a sublinhe seja positivamente, seja

negativamente, donde o sentimento de frustração afetiva dos parceiros.

(1992:96-97)

O movimento gay teve uma grande importância ao desvincular a

culpa das relações sexuais, mostrando que o sexo não se restringe

apenas a formas reprodutivas, e que o sexo pelo prazer também é uma

opção positiva, além de tornar afirmativa a linguagem amorosa entre

dois homens. Pode-se perceber, ainda, a tentativa de construir novos

modelos de expressão e parceria amorosas que não se restrinjam a

mimetizar os modelos heteroeróticos já existentes. Mas na "cultura do

gueto" exposta por Costa, a criação de uma linguagem que não passa

pela palavra repete, indubitavelmente, a negação do vocabulário

amoroso ao homossexual, e não se expressar pela palavra ratifica a

noção de desvio a ele inerente. Negar a palavra nega também, de certa

forma, o afeto, o amor, tudo que há além das relações físicas. Estas,

assim, apontam a existência de um vício, algo que se limita ao corpo,

inviabilizando o "verdadeiro encontro amoroso". A felicidade conjugal,

como mostra Costa, sendo verdadeira ou fictícia, não é permitida ao

homossexual, pois este sabe que não é candidato a ela.

Daí o sentimento de promiscuidade vivido por alguns daqueles

que se restringem a esses locais. Não são candidatos à felicidade

conjugal, não dispõem de um vocabulário amoroso, tendo ocasionais

encontros sexuais que não passam pela palavra. Mesmo sabendo o

quanto é discutível esse termo "promiscuidade", releva notar que o

discurso que o condena é o mesmo que o faz existir e se perpetuar na

"cultura do gueto", ao limitar indivíduos na apreensão de uma

linguagem e parceria amorosas.

Portanto, quando Pérsio se indaga até que ponto as

circunstâncias não o favorecem, ou se ele é que não favorece as

circunstâncias, a resposta é a mesma para as duas suposições. Seu

discurso, deve-se lembrar, é também seu inverso: não lhe é permitido e

ele não se permite. Para continuar a representar sua personagem, deve

ir à esquina e procurar um encontro rápido e de papéis definidos, e

saber que de histórias de amor só terá vislumbres, quando muito. Para

ele, o ideal amoroso pertence à parceria homem/mulher, e a

possibilidade de existir essa parceria entre dois homens lhe provoca

nojo: "Aquelas monstras, porra, eu só tinha uns treze anos. Fiquei com

nojo. Entre dois homens, amor é igual a sexo que é igual a eu que é

igual a merda. Sabe que não agüento merda?" (p. 176). A equação feita

por Pérsio não foi aprendida em São Paulo, mas sim em sua cidade

natal, começando com a nomeação imposta pelas garotas "monstras". A

equação "amor-entre-dois-homens = merda" apenas continua em sua

vida. E nojo o que sente por ver dois homens juntos, o que, além de

reduzir esse amor somente ao sexo, não passa por um afeto ou um

carinho que possibilite uma parceria.

E isso o afasta profundamente de Santiago, seu pobre

interlocutor a quem tenta seduzir. Falam eles linguagens totalmente

diversas, o que impede uma troca, qualquer que seja. Diz Santiago:

Se tudo isso, se tocar no outro, se não só tolerar e aceitar a merda

do outro, mas não dar importância a ela e até gostar, porque de repente

você pode até gostar, sem que isso seja necessariamente uma perversão,

se tudo isso for o que chamam de amor. (...) Do teu próprio corpo que é

igual, talvez tragicamente igual. (p. 180)

Logo, a cumplicidade que aparentemente os unia na dispersão

da noite da capital paulista se mostra falsa, traiçoeira, enganosa. Como

os dois não vêem cumplicidade nos indivíduos gays, também não

conseguem estabelecê-la entre eles mesmos. Até porque Santiago não se

vê participando de um delito ou crime. Ele simplesmente tenta

transcodificar o que sente sob uma outra ótica, uma nova linguagem,

que não passa pela "perversão" consumida por Pérsio. Ao fazer isso,

rompe com a "tragicidade" que a igualdade de corpos estabelece e

abandona a personagem que lhe seria imposta por essa tragédia.

O encontro, portanto, só será possível quando os papéis forem

ou abandonados ou revistos. Quanto mais a noite avança e mais

conversam, mais as personagens se afastam. Somente no começo da

manhã o encontro amoroso se dá, quando o jogo, uma espécie de RPG11

de sedução erótica, iniciado por Pérsio, é abandonado: "Eu não me

chamo Santiago. (...) Eu também não me chamo Pérsio. Portanto não

nos conhecemos" (p.225).

Sabendo-se que o discurso de Pérsio estabelece uma divisão de

valores distintos nas práticas e desejos sexuais, e que é ao mesmo

tempo o discurso de seu algoz, torna-se necessário retornar à sua

equação de amores entre o mesmo sexo:

Entre dois homens, amor é igual a sexo que é igual a cu que é

igual a merda. (...) Amor entre dois homens tem sempre cheiro de merda.

Por isso, eu não agüento. (...) Ter cu é insuportável, é degradante você se

resumir a um tubo que engole e desengole coisas. Eu não vou aceitar

11 RPG é a sigla de Role Playing Game. No RPG, os participantes são mais que

meros jogadores e tornam-se personagens da própria história, decidindo seus

destinos.

nunca que o ser humano tenha cu e cague. (pp. 176-177)

O que Pérsio diz, em palavras diretas e objetivas, é o que os

discursos conservadores iniciais da AIDS pregaram: homossexualidade

= sexo anal = AIDS. Essa equação, que acredita ter um pressuposto

científico, está longe de desaparecer, como torna claro o editorial do

Manchester Union Leader, de New Hampshire, em 1991, que apresenta

uma impressionante similaridade com a lógica equacionai de Pérsio:

A relação homossexual é a gênese de todos os casos de AIDS que

puderam ser relacionados — direta ou indiretamente — com a prática

sexual. De qualquer modo que a doença seja transmitida, a perversão

sexual — isto é, o sexo anal praticado por sodomitas — é o ponto

fundamental de origem, (apud Edelman:1993:14)

Mesmo reconhecendo o quanto de grotesco há nessa declaração,

que não só desafia a ordem biológica da origem das espécies, mas, em

uma dimensão religiosa e bíblica, contraria até a onipotência divina da

Criação — se Deus fez o mundo do caos, o sodomita faz o vírus do ânus

—, ela ainda persiste no imaginário popular, e, relativamente, no

científico. Susan Sontag lembra que a idéia romântica em relação à

tuberculose fazia a doença expressar o caráter, e com o câncer essa

idéia é ampliada de tal modo, que o caráter se torna a causa da doença:

o doente de câncer é aquele que não expõe seus sentimentos, tem uma

vida sexual reprimida etc. (1984:61). Com a AIDS, mais que um caráter,

é uma prática sexual que se transforma no "ponto de origem", na

"gênese" da doença, reforçando, pela equação sexo anal = doença, que

homossexualidade = doença, visto que homossexualidade = sexo anal =

doença.

Essa equação, vinda de discursos conservadores, nada tem de

extraordinária; em certo ponto, é até previsível. O que se torna

aparentemente estranho nesses discursos é a desvinculação da mulher

como vetor da doença. Tanto Paula Treichler (1988) quanto Leo Bersani

(1988) concordam que a mulher sempre foi ligada, historicamente, às

doenças venéreas; mais ainda, a sexualidade feminina sempre foi vista

como intrinsecamente doente. Perguntou Hipócrates: "O que é uma

mulher? Doença" (Treichler, 1988:234, n. 2). Por conseguinte, a

equação estabelecida para a homossexualidade não é nova para a

mulher: mulheres = doença. Mas, na presente epidemia, as mulheres

foram retiradas do papel principal para cedê-lo aos homossexuais.

Agora, estes são os Contaminated Others, na expressão de Treichler,

ocorrendo o que Simon Watney chama de uma "misoginia deslocada".

Por que, então, essa desvinculação é "aparentemente" estranha,

como foi dito antes? Porque não há uma verdadeira desvinculação entre

mulheres e homossexuais num discurso homofóbico e misógino. Eis

como Pérsio fala das mulheres ao se referir a uma vizinha: "Vestem-se

como putas para ir a festas. (...) Trepam em pé, coito anal, sexo grupal,

masturbação sem culpa. Tão liberais, você não acha? Sou do tempo em

que cabaço era documento" (p. 155). E a fantasia do sexo ininterrupto

ou a sua viabilidade que os aproxima. Pode-se perceber melhor essa

aproximação no conto "Noites de Santa Tereza", de Caio Fernando

Abreu. Apesar de ter sido publicado apenas em 1995, em Ovelhas

negras, esse conto foi escrito em 1983, no mesmo período em que o

escritor produzia as novelas de Triângulo das águas, livro em que se

encontra "Pela noite". No pequeno conto, a protagonista, que também é

a narradora, explora ao máximo sua sexualidade no Rio de Janeiro,

relacionando-se com inúmeros homens, e, ao mesmo tempo, alimenta

uma paixão não correspondida em São Paulo. A vagina dentata — que,

por sinal, é o nome da banda da personagem Márcia F. de Onde andará

Dulce Veiga? — apresenta a mesma fome do "tubo que engole e

desengole coisas" referido por Pérsio. Amores, somente os platônicos,

sexo com qualquer um e bastante. Diz Pérsio: "A carne é insuportável,

uma espécie de macrobiótica da sexualidade. Só platonismos. Ou

sacanagem braba, Dama do Lotação perde" (p. 181). Tanto são similares

em sua insaciável necessidade sexual, que confidencia a narradora de

"Noites de Santa Tereza", no final do conto:

Fumo além da conta, tenho umas febres suspeitas, certos suores

à noite, muito além deste verão sem fim. Uns gânglios, umas fraquezas,

sapinhos na boca toda, será? Tenho lido coisas por aí, dizem, sei lá. Não

duro muito, acho. (p. 166)

Essa aproximação é o gancho do ensaio de Leo Bersani (1988),

ao ver uma ressonância do discurso homofóbico da AIDS à

representação das prostitutas do século XIX como contaminadas,

espalhando, incansavelmente, a sífilis entre homens inocentes. Pode-se,

inclusive, ir além dessa aproximação feita por Bersani, às prostitutas de

apenas algumas décadas atrás, no período da Segunda Guerra Mundial,

quando elas eram vistas como tão perigosas quanto os nazi-fascistas.

Deste modo, sexo anal praticado por sodomitas e sexo vaginal se

assemelham, pois homens sexualmente passivos e mulheres, como

aponta Bersani, abrem as pernas num "insaciável apetite para a

destruição" (1988:211).12 O autor concorda que essa imagem é

altamente poderosa, embora seja uma fantasia partilhada por quase

todos. Especialmente poderosa, deve-se acrescentar, é a imagem do

homem que pratica o sexo anal, pernas abertas num "êxtase suicida de

ser uma mulher"(1988:212).13

As palavras de Bersani nada têm de agressivas, como um

primeiro julgamento faz supor. O que ele apresenta são simplesmente

as fantasias — que não são incomuns — que cercam o sexo passivo,

12 No conto "Dama da noite", de Os dragões não conhecem o paraíso (1988),

Caio Fernando Abreu também brinca com o imaginário da "passividade assassina": "Eu sou a dama da noite que vai te contaminar com seu perfume venenoso e mortal. Eu sou a flor carnívora e noturna que vai te entontecer e te arrastar para o fundo de seu jardim pestilento. Eu sou a dama maldita que, sem nenhuma piedade, vai te poluir com todos os líquidos, contaminar teu sangue com todos os vírus. Cuidado comigo: eu sou a dama que mata, boy (1989:95).

13 No Brasil, as primeiras campanhas oficiais de prevenção contra a AIDS sempre utilizaram um rosto de mulher nas propagandas, como a campanha "Quem vê cara não vê AIDS". Enquanto isso, campanhas dirigidas a homens com práticas sexuais com o mesmo sexo ou eram muito raras ou simplesmente inexistiam (Ramos, 1988:6). Isso leva a pensar que, na impossibilidade moralista de levar o "homossexualismo" à mídia, a mulher foi então utilizada para simbolizar grupos de "práticas sexuais passivas".

especialmente o praticado por homens. Voltando à sua declaração, é

necessário destacar o adjetivo "suicida". Por que suicida? É esse o seu

argumento ao mostrar que a prática deste sexo, e, por extensão, tudo

aquilo que pode ser resumido na expressão "passividade sexual",

desafia uma ordem falocêntrica de poder que anula socialmente o

sujeito em questão. Expõe, assim, que o sexo anal passivo sempre foi

condenado, considerado um tabu, mesmo nas sociedades com tradição

homoerótica, como a grega e a romana. Fato este que encontra respaldo

tanto em Foucault (1994) quanto em Veyne (1985), para citar apenas

dois. A mesma cultura que permitia o amor a efebos também impedia

que houvesse sexo penetrativo. Isso só era permitido com os escravos,

ou seja, aqueles que não eram cidadãos. Justamente aí são marcados

os limites do cidadão. Não somente porque um é livre e o outro não;

mas, principalmente, porque um penetra e o outro é penetrado. Reflita-

se a posição das esposas desses cidadãos: livres, porém não

consideradas plenas de direitos. Mulheres, crianças e escravos se

assemelham na falta de direitos e na falta do falo. "Ser penetrado é

abdicar o poder", conclui Bersani (p. 212).

Resumindo: penetrar é reafirmar a autoridade, ser penetrado é

ser submisso a essa autoridade. De certa forma, discursos da AIDS

consolidam essa divisão hierárquica, em que tudo o que pode ser

resumido em "passividade sexual", principalmente entre homens, faz

mais que abdicar o poder; abdica a própria vida. Será apenas o "risco de

vida" que faz a passividade sexual, e, mais especificamente, o sexo anal

passivo tão perigoso?

Estendendo os argumentos de Bersani, Lee Edelman (1993)

aponta que mais que abdicar o poder, esse ato leva à morte — simbólica

— do sujeito que o pratica. Mas como aquele que o pratica pode, com

sua morte simbólica e singular, ser tão desafiador? Primeiro, é preciso

entender por sujeito a figura falocêntrica do Homem, legada pela

cultura ocidental. Portanto, no "êxtase suicida de ser uma mulher", ele

mata, por extensão, esse sujeito que representa. E se uma cultura é

conivente e tolerante com essas práticas, ela mesma permite uma morte

universal desse sujeito, como lembra Edelman ao citar Eve Sedgwick,

quando esta vê que Sodoma e Gomorra se perpetuam entre marxistas

modernos, nazis e ideologias capitalistas liberais. Em maior ou menor

grau, estes vêem o desejo sexual entre homens como "decadência", não

individual, mas de toda uma coletividade, de uma civilização a tal

submetida (1993:16).

Se ser penetrado leva homens a abdicar o poder, e mulheres a

perpetuar a sua falta, além de, no caso dos homens, levar à morte do

sujeito, qual será o melhor caminho para se enfrentar a perda de poder

ou a morte do sujeito? "Se o reto é a cova", responde Bersani, "na qual o

ideal masculino (um ideal partilhado — de formas diferentes — por

homens e mulheres) de subjetividade altiva está enterrado, então

deveria ser celebrado por seu próprio potencial para causar a morte"

(1988:222). Portanto, o caso não é enfrentar, mas sim celebrar a perda

do poder e a morte desse sujeito. A resposta de Bersani, então, é o

oposto do que se esperava: a interrupção dessas práticas, ou seja, uma

abstinência sexual ou a valorização de práticas que neguem uma

penetração. Para ele, ao contrário, por ter esse potencial para a morte

do sujeito, essas práticas devem ser celebradas, principalmente em

tempos de AIDS, quando discursos conservadores tentam reafirmar um

poder falocêntrico, o do Homem racional ocidental. Essas práticas,

feitas com segurança, são altamente políticas e desafiadoras. Deste

modo, pode-se entender por que os discursos conservadores pleiteiam,

para o controle da epidemia, não o sexo seguro, mas a necessidade de

que essas práticas — no caso, sexo anal—sejam imediatamente

suspensas, tornando-se, literalmente, um coitus interuptus. Essas

práticas levam esse ideal de masculinidade, ou a cultura masculina

ocidental e sua civilização, à morte, à anulação.

A morte do Homem, porém, não inviabiliza o surgimento de

outras subjetividades, só que estas devem ser realmente diferentes e

não apenas um deslocamento de posição. Como observou Bersani, esse

ideal de masculinidade é partilhado, diferentemente, por homens e

mulheres. Diferentemente, mas partilhado, devendo-se acrescentar,

também, que essa partilha compreende desejos e práticas tanto hetero

quanto homo-eróticas. Como a dicotomia atividade/passividade

estabelece outras que perpassam masculinidade/feminilidade,

poder/submissão, forte/fraco, senhor/escravo, impõe-se que a criação

de novos sujeitos, ou subjetividades, não passe por esses binarismos

valorativos.

Quando Santiago, em "Pela noite", rompendo sua imposta e

paciente audição, retruca a Pérsio que é necessário descobrir no cheiro

do outro, seja considerado bom ou ruim, algo que não passe por esses

julgamentos, está também indicando uma nova abordagem daquilo que

Pérsio chama de sexo ou amor. Pérsio, em sua fixação depreciativa do

ânus, continua a repetir uma binaridade que, através da divisão

atividade/passividade, dita outras divisões autoritárias daí derivadas, e

onde um termo sempre terá mais poder do que o outro, como, por

exemplo, na própria divisão em que vive:

heterossexualidade/homossexualidade. Toda essa atitude de Pérsio só

faz afastá-lo cada vez mais de Santiago. O que prometia ser apenas

mais uma sedução, uma companhia para uma única noite e só, escapa-

lhe das mãos. Isso porque Santiago se recusa a participar do jogo de

Pérsio, onde as representações de masculino/feminino,

sedutor/seduzido, senhor/ escravo, algoz/vítima e poder/submissão se

perpetuam.

Através desse jogo de sedução e poder imposto por Pérsio a

Santiago, "Pela noite" tem o mérito de discutir muitos dos discursos

paranóicos em que, no início, circulavam a epidemia e suas

personagens, e que ainda lhes dão forma. Talvez por apresentar, de

uma forma dura e direta, a necessidade de se discutirem questões que

não eram novas, mas que a epidemia só fazia reafirmar, "Pela noite"

ajudou a fazer de Triângulo das águas um livro bem obscuro, ao

contrário do anterior e bem-sucedido Morangos mofados (1982). O

próprio escritor concorda que foi muito incompreendido: o livro resultou

num fracasso de vendas (1995), e mesmo uma reedição mais recente

não mudou seu status maldito. Pouco a pouco, porém, a novela vai

sendo redescoberta. Recentemente, em setembro de 1995, no festival de

teatro Porto Alegre em Cena, houve uma elogiada montagem teatral de

"Pela noite", dirigida por Renato Farias. Talvez a urgência de se

discutirem outras questões, abandonando o moralismo, torne possível o

reconhecimento da perspicaz novela que é "Pela noite".

Em relação a "Noites de Santa Tereza", cumpre responder a um

provável contra-argumento. Ao mostrar uma mulher ninfômana e

possivelmente soropositiva, não estaria o conto perpetuando a imagem

da mulher como insaciável e/ou doente? À primeira vista, sim; mas,

sabendo-se que as mulheres, na epidemia de HIV/AIDS, tiveram — e

relativamente ainda têm — uma invisibilidade que lhes foi funesta,

tornando-as nota de rodapé, o conto permite, por outro lado, mostrar

que, sob a alcunha de "nota de rodapé", há uma enorme diversificação

de comportamentos e práticas, tal como no termo "homossexualismo".

Assim, "Noites de Santa Tereza" ajuda a desmistificar a idéia de

"grupos" como identidades monolíticas, com um comportamento

uniforme e estável. Como lembra Paula Treichler, qualquer análise de

AIDS que se baseie fielmente em fronteiras estáveis entre "grupos de

risco" a«caba ignorando tudo o que se sabe sobre as realidades do

comportamento sexual (1988:221). Pode-se concluir, então, que entre a

cama e o boletim epidemiológico há mais coisas do que sonha nossa vã

filosofia.

CCaappííttuulloo 44

AA DDOOEENNÇÇAA QQUUEE NNÃÃOO OOUUSSAA DDIIZZEERR OO

NNOOMMEE

"(...) pronunciar o nome é sinal de saúde, sinal de que a gente

aceitou ser do jeito que é, mortal, vulnerável, não um privilegiado, não

uma exceção, afinal; sinal de que estamos dispostos, verdadeiramente

dispostos, a lutar por nossas vidas."

Susan Sontag, Assim vivemos agora

Na introdução de seu livro Antes que anoiteça, sugestivamente

chamada de "O fim", Reinaldo Arenas diz: "Não posso fazer isso [falar da

AIDS], pois não sei o que é. Ninguém sabe, com toda a certeza. Visitei

inúmeros médicos e para todos eles representa um enigma. Tratam das

doenças relativas à AIDS, mas a AIDS em si parece um segredo de

Estado" (1995:15-16). A ignorância angustiada de Arenas tem uma

razão; falar da AIDS é, metaforicamente, descascar uma cebola. Sendo

que cada casca desta cebola é composta por inúmeros discursos que a

moldam. Até mesmo clinicamente, ninguém morre de AIDS. Esta sigla,

assim diz o discurso científico, refere-se a uma síndrome que afeta o

sistema imunológico. Os doentes, portanto, podem falecer devido a

várias doenças em decorrência da AIDS, mas nunca de AIDS. Como,

então, falar da "AIDS em si"?

Falar da AIDS, tê-la como tema, é uma dificuldade exposta por

Lee Edelman (1993). Por mais que se tente, ela resiste aos esforços que

são feitos na tentativa de inscrevê-la como um tema manipulável na

escrita. O significante, complementa o autor, "tanto conota como

designa uma série de diagnósticos médicos densos e contraditórios,

experiências sociais, fantasias projetivas e programas 'políticos'"

(1993:10). Isso não quer dizer que Edelman desconsidere a dor alheia.

O autor sabe que o sofrimento vivido por várias pessoas nada tem de

inexistente ou inapreensível, mas que esse sofrimento também se deve a

todos os discursos que lhe dão forma, o que leva, nova e

inevitavelmente, à metáfora da cebola.

Consciente ou inconscientemente, grande parte dos escritores

que a tomam como tema de seus textos tem noção exata disso. Para

eles, a AIDS não é apenas uma doença, mas, de certa forma, suas

produções literárias permitem levar adiante o projeto quixotesco de

Susan Sontag — de considerar as doenças apenas como doenças —,

além de apresentarem novas abordagens à epidemia discursiva.

No Brasil, como foi visto, a AIDS surgiu na literatura através de

seus discursos; no caso, na novela "Pela noite", de Caio Fernando

Abreu. A doença como tema, porém—ou, pelo menos, a tentativa de

inscrevê-la como tal —, apareceu em 1987, no romance Alegres e

irresponsáveis abacaxis americanos, de Herbert Daniel. Este romance,

no entanto, não foi a sua primeira tentativa de analisar a epidemia de

HIV/AIDS. Em 1983 — ano do primeiro caso de AIDS diagnosticado no

Brasil —, o escritor já publicara um pequeno ensaio sobre a epidemia,

no anexo intitulado "A síndrome do preconceito", do livro Jacarés e

lobisomens (1983), coescrito com Leila Míccolis. Sua incursão na ficção

e AIDS, porém, se dá com Alegres e irresponsáveis abacaxis americanos.

O romance apresenta uma vila, com diversos e inúmeros

moradores, e um casarão que se põe à frente da vila, onde moram a

proprietária desta e seus familiares. A morte de um dos moradores da

vila, em decorrência da AIDS, desencadeia variadas e inesperadas

reações em todos os moradores, inclusive naqueles do casarão. Essa

disposição estabelece uma semelhança com o cortiço do romance

homônimo de Aluísio Azevedo. Este autor, ao elaborar seu romance

naturalista no fim do século passado, utilizou-se de um cortiço — ou

seja, um único e pequeno espaço — para poder abranger um número

diversificado de raças, credos e práticas sexuais que pudessem ser

utilizados no estudo e na comprovação de sua tese determinista.

Parece que a semelhança, no romance de Daniel, não é ao acaso;

há, entre ambos, a base documental. Não que ele tenha propostas

deterministas em seu romance, mas tanto o cortiço quanto a vila

formam um corpo diminuto da cidade. Lê-los é ler o corpo social, algo

maior do que sugerem e no qual estão incluídos. Assim, nesse corpo

diminuto, tenta o escritor mostrar como as divisões em grupos nada

têm de científico ou natural e que ninguém, portanto, está isento da

epidemia; todos, de certa forma, experienciam-na.

Tendo uma base documental, o romance é educativo,

pedagógico. Num momento em que as informações eram muito mais

truncadas e parciais do que são hoje, Daniel tentou, então, educar seu

leitor, distanciando-o das fobias, ao discorrer sobre os variados

assuntos que compõem a epidemia. O romance, porém, se perde na boa

intenção. A existência de inúmeras personagens e variados núcleos

pequenos — e, talvez, a própria e explícita intenção pedagógica —

tornam o longo romance cansativo e atrapalham sua urdidura. O livro,

assim, vale mais, hoje, pelo seu caráter inédito do que por suas

qualidades literárias.

A habilidade de Daniel ao tratar a AIDS é mais bem-sucedida em

depoimentos e ensaios (ver 1983,1989e 1991),onde ele consegue

discorrer sobre inúmeros assuntos (como, por exemplo, a inoperância

governamental frente à AIDS, a estigmatização dos chamados "grupos

de risco", a clandestinização do doente de AIDS) com uma lógica e uma

clareza incomuns. Também se deve a ele muito das iniciativas, no

Brasil, para desmistifícar a AIDS e tornar os direitos civis um fato para

pessoas portadoras do vírus ou doentes: junto com Herbert de Souza, o

Betinho, fundou em 1986 a ABI A (Associação Brasileira Interdisciplinar

de AIDS), uma das mais importantes ONGs no Brasil que lutam contra

a AIDS.

Importante a destacar aqui é como Daniel abordou a AIDS em

seus textos, sejam ensaios, depoimentos ou romance. A doença não é

sugerida ou implícita; ela é exposta, clara, sendo a sigla—AIDS —

praticamente soletrada em seus textos. O fato de enunciar o nome da

doença fez parte de sua coerência política. Desde o surgimento da

epidemia, o escritor esteve atento a todos os discursos de intolerância

que a compunham, e, como se sabe, direcionou sua produção literária

para essa discussão. Quando se descobriu portador do HIV, em 1989,

foi uma das primeiras pessoas a se declarar publicamente soropositiva.

Falar da AIDS, para ele, significava desmistificá-la, mostrar que HIV e

AIDS não são, necessariamente, sinônimos de morte, como confirma em

Vida antes da morte:

É por causa disto que falo da minha doença. Como um esforço

para desmistificar uma doença tão terrível que é uma ameaça à saúde

pública mundial. É também minha contribuição para o trabalho de

divulgar informações corretas sobre a doença. (1989:25)

Pronunciar claramente a sigla, soletrá-la, significava tirar a

doença — e mais especificamente portadores do vírus e doentes de AIDS

— da sombra, da mudez, para transformá-la em algo não vergonhoso,

como era o câncer algumas décadas atrás.14

Entre os escritores brasileiros que abordam a AIDS em seus

textos, Daniel é uma exceção. Praticamente nenhum deles escreve a

sigla AIDS. Se nos textos de Daniel, a sigla é escrita e reescrita

inúmeras vezes, quase todos os outros escritores vão pelo caminho

oposto, utilizando-se da elipse da sigla. Muitas vezes, mesmo com a

elipse, a doença é facilmente identificável; outras, nem tanto. Logo, o

que se vêem são textos onde ela é sutilmente sugerida (Uma história de

família, 1992, de Silviano Santiago), onde é facilmente subentendida (os

contos "A valorização" e "Atores" do livro Aberração, 1993, de Bernardo

Carvalho), ou mesmo metâmorfoseada em outra doença Çtinho da noite,

14 Susan Sontag lembra que o silêncio em torno do câncer era uma das piores

coisas da doença. Como era escondido, era vergonhoso, levando, assim, o doente à culpa remorso e à vergonha. Lembra a autora, ainda, que nos obituários de jornais comum observar "fulano morreu de uma longa doença , o que fazia subentender câncer, pois este nunca era mencionado. (Ver Sontag: 1984; 1989.)

1994, de Caíque Ferreira). Nos textos de Caio Fernando Abreu que

abordam a AIDS, a não-nomeação é uma ordem. Em todos eles, a AIDS

é subentendida em maior ou menor grau, mas quase nunca a sigla é

escrita. As exceções são as duas rápidas vezes em "Pela noite", uma em

"Dama da noite" (conto de Os dragões não conhecem o paraíso), e uma

em Onde andará Dulce Veiga?, o que praticamente não conta.

Dos exemplos dados, é com o romance Vinho da noite (1994), do

ator e artista plástico Caíque Ferreira, que se deve ter mais tato ao fazer

tal inferência. Narrado na primeira pessoa, o romance apresenta a

história do escritor Leon Elman, cinqüentão, que entra em crise —

criativa e pessoal — devido a um laudo médico. Este acusa um aumento

de atividade osteogênica no lado direito do crânio, o que o leva a deduzir

tratar-se de um câncer. Entre fazer novos exames para comprová-lo e

não ir mais ao médico, decide pela segunda opção. Decisão semelhante

à do personagem do romance A morte de um apicultor, do sueco Lars

Gustafsson (1989), ao rasgar a carta a ele enviada pelo hospital, com o

resultado de um exame que poderia indicar ou não um tumor

cancerígeno. A partir daí, porém, os dois se distanciam. Enquanto o

apicultor se fecha em casa, e a releitura de sua vida passa por um

niilismo irônico e mordaz, Leon Elman parte para a Grécia, onde

simplesmente redescobre a vida nas mínimas coisas. O apicultor morre;

Leon retorna ao Brasil e volta a escrever. Se tem realmente câncer ou

não, o leitor fica sem saber.

Mas por que, então, pensar que a AIDS poderia estar

metamorfoseada no câncer? Afinal, narrativas sobre o câncer não são

incomuns, e, ao lado da citada A morte de um apicultor, poderia ser

incluída uma obra-prima de Tolstoi, A morte de Ivan llitch. Talvez a

resposta esteja na própria biografia do escritor. Diz o texto da

contracapa que Caíque Ferreira entregou o romance à editora poucas

semanas antes de sua morte, sem dizer que estava doente. Faleceu logo

depois, em janeiro de 1994, em decorrência da AIDS, fato este que não

se encontra na pequena biografia da orelha do livro. Sabendo que

pessoas públicas e anônimas omitem sua doença, e que, nos obituários

e, às vezes, nos certificados de óbito, as famílias se encarregam de

omitir a sigla AIDS (e essa era a luta de Herbert Daniel, fazer com que o

nome fosse pronunciado sem vergonha ou culpa), não será tendencioso

fazer tal aproximação, tornando essa leitura uma das possíveis. Caso

assim seja lido, a metamorfose indicaria vergonha ou de um real por

demais palpável? Esta última suposição não convincente. Por acaso o

câncer não é "real", ou será "menos real que a AIDS? Vergonha ou

culpa, então? Talvez. Estas são abordadas e aprofundadas na novela de

Silviano Santiago, Uma história de família (1993), onde a AIDS é

vagamente sugerida. Deixando momentaneamente a questão da

vergonha e da culpa, é necessário atentar para o que observa James W.

Jones: "o nome AIDS evoca certas imagens que circunscrevem a

capacidade de transcender os limites que elas impõem" (1993:228).

Jones, deste modo, considera que, ao se escrever ou pronunciar o nome

AIDS, há um sem-número de imagens que podem bloquear a tentativa

de se buscarem outras imagens da doença e novas abordagens para ela,

o que difere do câncer hoje. Portanto, não se trata de um real maior ou

menor, mas construções outras que vão além das do texto e que o

direcionam. Se a pretensão de Caíque Ferreira era fazer digressões

sobre a morte, a doença, a degeneração física e mesmo sobre a vida,

talvez ele estivesse consciente de que, caso abordasse a AIDS em vez do

câncer, seu romance teria limites maiores nas próprias digressões pela

forte imposição das imagens e discursos que constroem a AIDS.

Vinho da noite é um bom livro para um estreante. Apesar de, às

vezes, os diálogos apresentarem certa fraqueza, as digressões antes

citadas são um ponto positivo do livro. Além disso, as imagens da

viagem à Grécia feita por Leon Elman são de uma beleza narrativa

genuína. Mas, caso o autor dispensasse o câncer e abordasse a AIDS,

não haveria uma possibilidade de se ultrapassarem, no texto, os limites

impostos pelas imagens e discursos já imprimidos à doença? Ainda

mais: qual a possibilidade de um texto literário que aborde a AIDS

introduzir, na epidemia discursiva, outras imagens além daquelas

impostas? Jones ainda complementa: "o ato de dar um nome imprime

valores sobre as coisas que são designadas" (1993:225). Reconhecendo

que o ato de nomear imprime valores já dados, alguns escritores

retiram-lhe o nome, e podem, assim, discutir a doença e suas imagens

pré-fabricadas. Para observar como a elipse pode ser bastante útil nesse

processo, é necessário destacar um conto de Susan Sontag, "Assim

vivemos agora" e uma novela de Silviano Santiago, Uma história de

família.

Um dos contos mais generosos para se analisar a não-nomeação

da AIDS e seus efeitos é "Assim vivemos agora", de Susan Sontag

(1995).15 Publicado na revista New Yorker, em 1986, o conto antecedeu

sua abordagem crítica da doença em AIDS e suas metáforas, publicada

dois anos depois. Mesmo sendo um texto de ficção, sua veia ensaística e

crítica dificilmente pode passar despercebida. O jornalista Sérgio

Augusto considera que "talvez não seja nem mesmo um conto, e sim um

ensaio disfarçado — a ficção como metáfora" (Augusto, 1988:B-11).

Mas, se em AIDS e suas metáforas a ensaísta se põe radicalmente

contra todo e qualquer uso de metáforas em relação à AIDS, em "Assim

vivemos agora", a escritora parte pelo caminho inverso, utilizando-se da

metáfora e, principalmente, da elipse. Apesar da aparente oposição, a

ensaísta e a escritora se encontram pelos dois diferentes textos, como a

recente publicação ajuda a esclarecer.

O conto inicia-se captando uma conversa no ar. Em vez de um

simples diálogo, há uma pluralidade de vozes que se misturam, se

interrompem e se completam, num interminável discurso direto. Isso

imprime à narrativa uma agilidade enorme, pois a abundância de

personagens e suas vozes entrecortadas e misturadas não permitem

uma pausa ao leitor. O centro de suas conversas é a doença de um

amigo. Sabe-se apenas que ele está doente, e, aos poucos, a doença vai

sendo identificada. Ele é novo, está perdendo peso, teve febre, tosse, e

completam os amigos: "por que você acha que tem que ser aquilo?" (p.

15 Este conto foi publicado pela primeira vez no Brasil em 26 de fevereiro de

1988, com o título "O modo como vivemos hoje", no caderno "Folhetim", integrante do jornal Folha de S. Paulo, traduzido por Nicole Grosso. A tradução usada nesta dissertação é de Caio Fernando Abreu.

10) ou "daí não querer consultar um médico ou fazer o teste (...)" (p. 11).

Não só a AIDS não tem nome, como o amigo que está doente também

não tem; é apenas "ele". Há, assim, um contraste com os amigos, pois

todos eles possuem um nome. Se a doença não tem um nome, mas é

facilmente identificada — AIDS —, está, portanto, mais próxima dos

nomeados do que o não-nomeado. O centro da narrativa, deste modo,

ao contrário do que se poderia esperar, não é o doente e a doença, mas

os amigos e a AIDS. Há uma distância entre o centro da conversa e o

centro da narrativa: "Contem-me uma história", pediu ele; "Você é a

história", respondeu uma amiga. Mas aí deve-se atentar: é a história da

conversa deles, não da narrativa; aquilo que a narrativa centra são suas

reações à doença.

É esse o ponto pretendido por Susan Sontag, segundo Jones, o

modo como nós — ou grande parte de nós — vivemos agora formados

por nossas respostas àqueles com AIDS (1993:237). Mas deve-se

considerar que o conto vai além dessa divisão imposta pela doença,

como observou Jones, ao separar um mundo dos saudáveis e dos

doentes. Mais do que respostas àqueles com AIDS, o conto permite

mostrar que todos são atingidos pela AIDS, direta ou indiretamente,

seja por uma atração mórbida, seja pelo fim da farra que até então

viviam, ou mesmo por mostrar que a divisão entre saudáveis e doentes

é muito tênue:

(...) dando um jeito de passar todos os dias pelo hospital, é uma

maneira de tentar definir-nos mais firme e irrevogavelmente como aqueles

que estão bem, aqueles que não estão doentes, que não vão ficar doentes,

como se o que aconteceu com ele não pudesse acontecer conosco, quando

na verdade tudo indica que em pouco tempo um de nós vai acabar na

mesma situação (...). (p. 26)

Nesse pequeno conto, portanto, Susan Sontag consegue alcançar

mais facilmente o objetivo proposto por Herbert Daniel no longo

romance Alegres e irresponsáveis abacaxis americanos, ao utilizar

inúmeras e diferentes personagens para mostrar o clima de ansiedade e

paranóia em que todos vivem, e que esse "todos" não se divide em

grupos de "risco" ou não, saudáveis e doentes. Apesar das intrigas,

crises de ciúmes e outras coisas miúdas entre os amigos, "a doença dele

nos põe todos no mesmo barco" (p. 25), o que os leva a ficar

preocupados com todo mundo, "parece ser assim que vivemos, assim

que vivemos agora" (p. 19).

A escritora não só quebra as fronteiras entre saudáveis e

doentes, como também o faz na diferenciação entre vivos e mortos a que

aquela divisão induz. Herbert Daniel lembrou: "dizer simplesmente que

a Aids é mortal tem servido apenas como condenação à morte civil.

Quem está contaminado, ou doente, vive numa outra vida, no além"

(1989:12). Se as personagens se referem ao amigo mais como um

morto-vivo, de uma maneira retrospectiva, como se fizesse parte do

passado, a forma da narrativa se encarrega de romper com essa

atmosfera. Sabendo que a AIDS está inscrita num plano de causa e

efeito, que compreende a contaminação do vírus HIV à manifestação da

AIDS, a escritora tenta romper com essa linearidade do discurso

médico, já que este situa um determinado início — a contaminação —

que leva a um predeterminado fim — a morte. E essa linearidade, que

também está presente na mitologia popular, faz com que o leitor espere,

numa narrativa sobre um doente de AIDS, que o seu desfecho seja a

morte do doente. Uma narrativa clássica, portanto, com início, meio e

fim, se adaptaria perfeitamente a esse conto. Susan Sontag, contudo,

subverte essa esperada narrativa e apresenta uma saída que passa

despercebida a muitos leitores, tal a sua sutileza. Deve-se perceber que

o início do conto não é o início da doença: "No começo ele estava só

perdendo peso, sentia-se apenas um pouco adoentado, Max disse a

Ellen (...)" (p. 7). Como se vê, a narrativa se inicia pela conversa dos

amigos; o início da doença é, portanto, anterior à conversa. E o desfecho

esperado, a morte, desaparece no fim: "Ele continua vivo, Stephen

disse" (p. 55). Os termos aqui usados — início e fim — devem-se mais à

falta de outros melhores do que propriamente ao fato de serem os mais

corretos. Como em algumas narrativas de Clarice Lispector —

principalmente em Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres ou em A

paixão segundo GH —, a linearidade discursiva é rompida, e a narrativa

é apenas um fragmento, pois supõe-se uma continuidade anterior e

posterior a ela. Susan Sontag, assim, introduz novas imagens, por um

procedimento formal, que rompem a equação preestabelecida HIV =

AIDS = morte, surpreendendo o leitor que espera um final

predeterminado que é rompido.

Deste modo, a estrutura da narrativa, aliada à elipse, serve de

instrumento para a apresentação de novas abordagens e imagens para

a epidemia, esvaziando seu significante de conotações funestas e

irracionais e permitindo ao doente

dizer o nome da doença, a pronunciá-lo muitas vezes e com

facilidade, como se fosse apenas outra palavra, por exemplo rapaz ou

galeria ou cigarro ou dinheiro ou coisa, por exemplo coisa sem

importância (...). (pp. 30-31)

Não é somente dizer, mas transformar o que diz em algo

diferente. Se não falar indica vergonha, falar, às vezes, pode não alterar

nada, caso implique associação à culpa. Estas questões são discutidas

em Uma história de família.

Se no conto de Susan Sontag a AIDS não é nomeada, embora

seja facilmente identificada, não se pode dizer o mesmo quanto à novela

Uma história de família, de Silviano Santiago. Mais do que uma simples

elipse, o escritor utiliza-se de uma alegoria para tratar da AIDS, o que a

torna muito mais simbólica e metafórica do que já é. Diz Santiago:

A referência à AIDS seria muito mais alegórica do que

própriamente real. Em vez de tratar a doença de maneira direta, quis dar

um tratamento literário. A questão da AIDS é tão relevante, transcende

de tal forma a especificidade e o campo semântico da doença, que pensei

enfocá-la de modo abstrato, através de duas éticas: da vergonha e da

culpa. (Santiago, 1992:8)

A forma através da qual essas duas éticas são abordadas é

aparentemente simples: um moribundo estabelece um imaginário

diálogo com o falecido tio Mário, o louco da família. Não dá para saber

com certeza o que o doente tem. Ele é o narrador, e dele o leitor

depende na condução da narrativa. Sabe-se, apenas, dele próprio, que

não pode se locomover, tem o peito congestionado, tosse e uma febre

diária no fim da tarde. Fecha-se em seu quarto, e, trancado em casa,

estabelece o contato com o mundo exterior através da imaginação ou da

audição, orientando-se pelo ruídos externos da madrugada. Agonizante,

o narrador pretende ter uma conversa com o tio de igual para igual. Há,

portanto, uma similaridade, uma aproximação entre tio e sobrinho. Só

que estas, não se dão pela doença, mas sim pela marginalidade, pela

vergonha que provocam. São, assim, duas doenças que se encontram

pelo estigma da diferença, do outro:

A vergonha da família e de todos os amigos, baixando à

sepultura, perde olhos de ver, boca de falar, ouvidos de escutar, nariz de

cheirar, mãos de agir e pés de andar. A vergonha passa a ser lembrança,

pura e incorpórea, quase inumana, pois nem um retrato de você, tio

Mário, chegaram a tirar, nem um só retrato seu ficou como lembrança

para que eu pudesse contemplá-lo agora enquanto converso com você. (p.

9)

A vergonha, corporificada na figura do tio, era um "perigo

constante para a tranqüilidade da família" (p. 43), daí a necessidade de

escondê-lo, trancá-lo dentro de casa, a fim de que a vergonha não

ultrapassasse os limites da casa. A vergonha e o estigma levam,

também, à não-nomeação das doenças: tanto a do narrador quanto a do

tio não são nomeadas. Somente pode-se encontrar o vocábulo "louco"

na epígrafe do livro — uma frase de Artur Bispo do Rosário —, e três

vezes o vocábulo "débil mental" no meio do livro, proferido pelo médico

da cidade natal do tio, Pains. Se nem os familiares nem o narrador

proferem a palavra, o médico parece neutralizá-la ao dizê-la, como se o

discurso médico justificasse uma neutralidade no julgamento de

valores. Mas entre a doença do narrador e a do tio há uma diferença: se

a do tio praticamente não é nomeada, embora facilmente subentendida,

a dele é muito mais escondida, cifrada. Assim, entender o tio,

compreender sua doença-estigma, serve para o narrador compreender

sua própria doença, e, talvez, sua própria vida e sua provável morte

próxima.

Seu diálogo de igual para igual se dá com uma "imensa e

invisível fotografia 3x4, do tamanho de uma tela de cinema poeira" (p.

19), nâ parede do quarto. Já que a imagem do tio não foi preservada,

pois comprometia a tranqüilidade da família, a única forma de resgatá-

la é através de uma imagem estática, coagulada, retirada da memória

da infância do narrador. Só que esta imagem do tio vem antecedida e

seguida de outras imagens, como, por exemplo, da avó do narrador —

mãe do tio — e da comadre desta, dona Marta. Como o próprio narrador

assinala, o significado de uma expressão do ator depende dos

fotogramas anterior e posterior, fato observado pelos teóricos do cinema

russo dos anos 20. A importância da montagem no cinema se dá pela

ambigüidade da expressão do ator, pois esta será condicionada pelos

fotogramas que lhe antecedem e lhe sucedem. A expressão do ator,

assim, nada diz. Apesar de a pista ser dada pelo próprio narrador, ele

não se dá conta de que, para descobrir algo mais do tio, para

compreendê-lo e assim compreender-se, é necessário ir antes e depois

dele, é preciso ir além dele.

Inesperadamente, chega-lhe uma carta do Dr. Marcelo, médico

que trabalhara em Pains e a quem procurou anos antes, numa viagem a

Minas, buscando dados sobre o tio. Se a visita anterior ao médico,

assim como a ida a Pains e a Formiga, sua cidade natal, foram inúteis,

a carta se mostra reveladora. Ou melhor, pode-se dizer que ela é

indicadora, pois nada revela, e sim induz a memória do narrador a

outras instâncias, permitindo-lhe ter um olho na carta e um olho no

pensamento, como ele mesmo diz.

O Dr. Marcelo explica que se nada acrescentou de novo, no

encontro anterior, ao que ele esperava, foi porque duvidava de suas

intenções. Qual a lógica de se desenterrarem os mortos? Por que querer

informações de um tio pária? Como salienta o Dr. Marcelo, o narrador

buscava uma lógica na vida do tio que pudesse explicar o

encadeamento dos acontecimentos de sua vida, e sublinha: "E, no

entanto, vocês não se casavam, afirma categórica e definitivamente.

Vocês não se casam" (p. 70). Pouco a pouco, com um olho na carta e

outro no pensamento, ele é levado a olhar os outros fotogramas

anteriores e posteriores além do tio. Estes são mais reveladores do que

imaginava, fazendo com que o diálogo com o tio fuja do "previsível

ditado pela narrativa construída pela memória dos mais próximos e dos

que mais te amam" (p. 95). Memória esta que é excludente e parcial,

pois enterra-se a vergonha junto com aquele que a faz. Ao fugir do

previsível, transformando a narrativa da memória familiar, o olho atento

aos outros fotogramas revela uma mudança:

Vira algoz de nós mesmos, tio Mário. Contra a vontade, estou me

metamorfoseando. Transformado e transtornado, torturo-me a mim e a

você e a todos nós. (p. 98)

Saindo da memória seletiva da família, ele percebe que a avó,

mãe do tio, foi a mandante da dupla tentativa de assassinato do próprio

filho, pedido este feito ao amante dela, o farmacêutico da cidade. A ela

não importava a culpa do assassinato, mais importante era a

invisibilidade social que deveria ser conquistada a qualquer preço: "A

vergonha e não a culpa. A consideração pública vale mais do que uma

consciência tranqüila", induz o Dr. Marcelo (p. 73). A vergonha, nesse

caso, fere mais que a culpa; ver-se livre da chaga que a humilhava

socialmente é mais importante do que ter a consciência tranqüila.

O diálogo com o tio, portanto, não dá para ser de igual para

igual. A suposta aproximação entre o narrador moribundo e o tio louco

se mostra falsa, enganosa. Como disse o Dr. Marcelo, eles

definitivamente não se casam. A vergonha que aparentemente

compartilham não dá para ser dividida. O narrador mesmo observa que

seu tio é "imaculado como um original" (p. 71). A vergonha não lhe

pertencia, imputavam-na a ele. Mas, ao narrador, a vergonha é

presente, é um fato, pois ele se fecha em um quarto enquanto imagina

as coisas que lá fora acontecem. A sua voz é tão acusadora quanto a da

família e da comunidade: ao narrar, desvia-se da própria doença, não a

nomeia e desloca o foco para o tio, sendo este foco, de certa forma,

também acusador. Está mais perto, deste modo, não do tio, mas

daqueles que mais queriam vê-lo morto ou que tentaram isso. Daí a

metamorfose, de vítima enclausurada vira o algoz enclausurador:

encarcera a si próprio em um quarto, longe do olhar reprovador da

comunidade. Os valores mais altos e caros àqueles a quem julgava

agora lhe pertencem também: a necessidade da invisibilidade social, a

consideração pública a qualquer preço. A exposição, ainda dentro

desses códigos familiares e sociais, leva à culpa:

Ou bem você se isola dentro de sua casa e não quer exibir a

doença ou bem você tenta exorcizá-la, numa exposição pública. Aí entram

questões como o privado gerenciado pela vergonha e o público gerenciado

pela culpa. (Santiago, 1992:8)

Os "laços de família", então, nada têm de carinho ou amor. A

família como sinônimo de fraternidade, de solidariedade e aceitação,

neste caso, é falsa. Ela é, antes, repressora, excludente e, ainda,

perversa. Mostra-se como um sinônimo de regras a serem seguidas,

imbuídas de um ideal de invisibilidade a que todos devem estar atentos.

E aqueles que não são atentos a esse ideal, ou que não seguem as

regras preestabelecidas que o direcionam, devem viver a vergonha ou a

culpa e, através destas, a exclusão. Silviano Santiago vai ao cerne da

questão: como os códigos e normas sociais, e, também, o círculo

familiar perpetuam a existência e, pior, a necessidade da vergonha e da

culpa. Complementa Herbert Daniel:

E o medo das, muito freqüentemente, invisíveis pressões sociais (o

pior preconceito nem sempre é a discriminação direta). É o pânico de não

poder ter mais vida sexual e afetiva. É a constante presença de pessoas

que parecem estar segurando a alça do caixão. É a invisível rede de

opressões criadas pelo círculo familiar, às vezes por médicos, padres, até

amigos.

Diante disso, a opção mais freqüente é a clandestinização, um

modo de fugir para morrer, já que a morte é a única forma de vida que a

sociedade parece oferecer ao doente. (...) A clandestinidade é o

reconhecimento da impossibilidade que a sociedade tem de viver a

doença. E um atestado de falência. Doentes clandestinos são muitos no

Brasil. (...) Doentes anônimos servem para não perturbar a marcha cruel

de uma espoliação da cidadania que atinge a todos nós. (1989:26)

A clandestinização salientada por Daniel é o que Santiago referiu

como "privado gerenciado pela vergonha". A vergonha que se fecha em

casa para morrer se mostra eficaz. Doentes anônimos perpetuam o ideal

de invisibilidade e afastam o perigo de uma real cidadania. Sair da

clandestinidade da doença, porém, nem sempre é fácil, pois ela aponta

para outras "clandestinidades". "Para muitos", esclarece Daniel, "o pior

não é a doença; é a necessidade de se revelar homossexual" (1989:26).

Mesmo que não seja este o caso, o doente é obrigado a se "diferenciar",

como diz Daniel, daqueles que são homossexuais, ou seja, acaba se

afastando daqueles que têm a mesma doença que o atinge. Esta atitude

apenas perpetua a eterna imagem da doença do "outro".

Assim, sair da clandestinização—ou do privado gerenciado pela

vergonha — muitas vezes não leva a uma relação melhor com a própria

doença, com a vida ou com a morte. Mais do que uma exposição ou

uma confissão, é um interrogatório inquisitorial. Sair do espaço

delimitado pela vergonha leva a um mea culpa em praça pública. É

mostrar suas outras clandestinidades ou tentar, a todo custo, desviar-

se delas. Como diz Santiago, é o público gerenciado pela culpa.

A vergonha e a culpa, portanto, tornam-se uma cilada. Trancado

em seu quarto, assim percebe o narrador de Uma história de família. A

vergonha que o enclausura em casa afasta-o de uma aproximação com

o tio, pois esse sentimento o coloca, tacitamente, ao lado daqueles que

julgavam, condenavam e excluíam o louco da família. Abandonar a

cilada, no entanto, requer desviar o foco visual: do olhar reprovador da

comunidade ao olhar do outro, que não comporta a necessidade da

invisibilidade e da eterna aprovação sociais. É necessário, então, olhar

pelos olhos do tio — e aquilo que ele representa — e construir outras

realidades.

Sabe-se, então, que a vergonha mantém a doença escondida e

enclausurada, e torná-la pública pode se tornar um espetáculo de mea

culpa. Não foi, obviamente, o caso de Herbert Daniel, e também não o

foi o de Caio Fernando Abreu. Pelos seus textos, percebe-se que os

escritores não se afastam do "outro", não o renunciam. Eles são o outro

também. Viver o outro possibilita falar aberta e claramente da doença,

sem que essa exposição se transforme em expiação. Como foi visto,

porém, algo separa os escritores quando eles falam da AIDS: enquanto

Daniel praticamente soletra e repete infinitamente a sigla, Caio parte

pelo caminho inverso. Nos textos do escritor gaúcho, a sigla é omitida e

imperam as metáforas.

É pela trilogia das "Cartas para além dos muros", de Caio

Fernando Abreu (1994,1994a, 1994b), que essa diferença pode ser mais

bem percebida. As "cartas" são, na verdade, crônicas publicadas no

jornal O Estado de S. Paulo, onde o escritor tinha um espaço quinzenal.

Foi através delas, enquanto estava internado num hospital, em agosto

de 1994, que o escritor se declarou publicamente soropositivo. Não há,

no entanto, nada nelas que indique uma expiação pública. Conforme

observou Zuenir Ventura a propósito das crônicas, "não se trata de

compulsão de autodevassa, que leva às vezes a exposições meio

mórbidas de intimidades" (1994:9). O compromisso do escritor é com a

verdade, como ele próprio admitiu: "não vejo nenhuma razão para

esconder. Nem sinto culpa, vergonha ou medo" (1994b). Mas por que,

então, as metáforas e a elipse? Assim se inicia a "Primeira carta para

além dos muros":

Alguma coisa aconteceu comigo. Alguma coisa tão estranha que

ainda não aprendi o jeito de falar claramente sobre ela. Quando souber

finalmente o que foi, essa coisa estranha, saberei também esse jeito.

Então serei claro, prometo. Para você, para mim mesmo. Como sempre

tentei ser. Mas por enquanto, e por favor, tente entender o que tento

dizer. (1994)

Escrever as crônicas em forma de cartas acaba tendo uma

função, mesmo que esta não fosse uma intenção do escritor. Como se

fossem cartas para um amigo, Caio Fernando Abreu possibilita uma

aproximação maior com o leitor; este se transforma no amigo. Enquanto

lê, o leitor é o amigo. Há, assim, uma afetividade construída entre

aquele que escreve e aquele que lê, e este se vê numa posição de um

caro confidente. Metamorfoseado em amigo e, conseqüente e

momentaneamente, particularizado entre os outros milhares de leitores,

o leitor precisa tentar entender o que seu amigo epistolar tenta lhe

dizer. Há um acordo tácito entre os dois, não só em relação ao

entendimento do mistério, mas, principalmente, na comunhão do

sentimento do escritor com o leitor.

Por que mistério? Não existem no texto as palavras HIV ou AIDS,

nem algo que possa indicá-las. Aliás, não há, na crônica, nada direto ou

explícito. Ou melhor, há somente uma coisa explícita: a dor. E uma dor

gélida, cortante, metálica, como a maça de metal na qual o escritor

ficou amarrado durante uma longa madrugada fria do inverno paulista.

A semelhança de alguns quadros da pintora mexicana Frida Kahlo, a

dor não se restringe ao texto; ela o ultrapassa e atinge o leitor. E não é

uma dor moral ou emocional, é física:

É com terrível esforço que te escrevo. E isso agora não é mais

apenas uma maneira literária de dizer que escrever significa mexer com

funduras — como Clarice, feito Pessoa. (...) Dói muito, mas não vou parar.

A minha não' desistência é o que de melhor posso oferecer a você e a mim

nesse momento. Pois isso, saiba, isso que poderá me matar, eu sei, é a

única coisa que poderá me salvar. Um dia entenderemos, talvez. (1994)

A preocupação maior, então, não se restringe em parar a dor que

o tortura e que pode matá-lo; preocupa-o, também, que a carta,

dolorosamente escrita, consiga passar pelas grades de onde está, dos

muros grandes, gélidos e brancos que o aprisionam. Na "Segunda carta

para além dos muros" (1994a), a dor lancinante cede lugar a uma dor

suportável, e é por essa crônica que o ambiente hospitalar fica mais

claro. Não só o hospital e seus "muros brancos", mas também aquilo

que levou o escritor à internação. Como anjos que lhe aparecem no

meio do sono, há, na crônica, quase duas dezenas de nomes de pessoas

que faleceram em decorrência da AIDS. Num jogo bem trabalhado,

esses "anjos" se misturam uns com os outros: Derek Jarman, Vicente

Pereira, Hervé Guibert, Carlos A. Strazzer, Cyrill Collard, Alex Vallauri e

outros "tantos, meu Deus, os que se foram" (1994a). Tudo, porém, é

sugerido, metafórico, nada é explícito.

E somente na "Ultima carta para além dos muros" (1994b) que a

doença é esclarecida. Da trilogia, é a carta mais aberta e direta. Apesar

do seu gosto pelo mistério, diz o escritor, o que gosta mais, no entanto,

é da verdade. "E por achar que esta lhe é superior", ele continua, "te

escrevo agora assim, mais claramente" (1994b). Saindo do enigma e da

obscuridade que marcam as outras cartas, o escritor torna explícito o

que tentara contar:

Volta da Europa em junho me sentindo doente. Febres, suores,

perda de peso, manchas na pele. Procurei um médico e, à revelia dele, fiz

o Teste. Aquele. Depois de uma semana de espera agoniada, o resultado:

HIV positivo. (1994b)

Será um abandono do "mistério", das metáforas, da não-

nomeação? Apesar de sua condição soropositiva ser dada sem enigmas,

permanece, ainda, um eufemismo que foge da clareza: "O Teste.

Aquele." Essas palavras mais sugerem do que explicitam. E essa

abordagem deve ser ressaltada, pois, mesmo preferindo a clareza ao

mistério, não há, até o final da crônica, uma repetição da sigla HIV,

além de a sigla AIDS nem aparecer no texto. Sua elipse não indica

vergonha, culpa ou medo, como afirmou o próprio escritor, mas apenas

sua maneira de abordar o assunto: "não sei ser senão pessoal". Essa

"maneira pessoal" não foge do lirismo e das metáforas, como parece

indicar o início da crônica, quando o escritor diz que a última carta é

superior às antecedentes. Pretendendo, inicialmente, usar uma

linguagem objetiva e direta, o escritor, sem sentir, desvia-se dessa

intenção. Ou será a própria linguagem que se desvia? Como lembrou

Lee Edelman, ao citar Emily Dickinson, no Capítulo 1, "infection in the

sentence breeds". A linguagem contamina a si mesma, e a metáfora

torna-se a contaminação da lógica.

Continuar a ser pessoal (e, por isso, entenda-se metafórico) — ou

deixar que se gere a contaminação na frase — parece que foi o caminho

do escritor, especialmente nos textos que abordam a AIDS e se seguem

à trilogia das cartas. É o que alerta o miniprefácio do conto "Depois de

agosto", incluído em Ovelhas negras (1995): "Talvez seja um tanto

cifrada, mas pra um bom leitor certo mistério nunca impede a

compreensão" (p. 245). Uma crônica publicada, em dezembro de 1995,

em O Estado de S. Paulo (1995 a), confirma essa opção. Com o título de

"Mais uma carta para além dos muros", Caio Fernando Abreu conta os

horrores de uma operação a que foi submetido, onde, como Cazuza, viu

"a cara da morte, e ela estava viva". E a proximidade da morte e a visão

de sua "face" o que a crônica-carta pretende contar ao amigo-leitor. Mas

é tão intrincada e metafórica, que até o próprio escritor observa no final:

"Brindemos à vida— talvez seja esse o nome daquela cara, e não o que

você imaginou" (1995a).

Dizer morte por vida, uma coisa por outra: é a função da

metáfora. Viu-se, porém, no Capítulo 1, que a metáfora não é exclusiva

do discurso literário; o discurso que se apresenta como literal também

tem a inscrição do metafórico que repudia ou tenta solapar. Essa

divisão rígida e hierárquica, com determinados propósitos, acaba

legitimando umas metáforas como literais e outras como literárias. Mas

fato e ficção na epidemia de HIV/ AIDS imiscuem-se constantemente.

Um exemplo é o conto, de Caio Fernando Abreu, "Depois de agosto", que

nasceu da experiência pessoal do escritor com a AIDS mas é lido como

um texto de ficção. O que o separa de um texto documental e, portanto,

literal? A não-nomeação? As metáforas?

Que assim seja essa divisão, pois o "literário" pode apontar as

incongruências do "literal". O texto assumidamente metafórico pode,

então, permitir novas concepções da doença, diferentes daquelas

apresentadas por alguns discursos. Os ensaístas Herbert Daniel e

Susan Sontag, ao negar ou contornar o uso de metáforas para um

entendimento menos tendencioso da epidemia, acabam encontrando,

por um caminho diverso, os escritores Herbert Daniel, Susan Sontag,

Silviano Santiago, Caio Fernando Abreu e muitos outros. A ficção se

mostra, assim, tão eficiente na composição de novas imagens e

abordagens para a epidemia quanto os ensaios que tentam desconstruí-

la. Talvez o reconhecimento dessa possibilidade da ficção tenha feito

Susan Sontag afirmar em uma recente entrevista que "a ficção é uma

forma maior" (1995b).

Além disso, os escritores, sugerindo a AIDS ou apenas retirando-

lhe o nome, demonstram perceber que ela não é simplesmente uma

doença; estão cientes de que há algo mais que a constrói. Negando-se a

escrever o nome, já que este imprime valores a ele inerentes, buscam

criar valores outros além daqueles que lhes são impostos. Mais ainda,

os escritores, pela recusa à nomeação, desviam-se da própria doença,

levando a outras questões, como complementa Jones: "São os efeitos

nas vidas dos indivíduos e na comunidade que formam os centros

dessas histórias, mais do que a própria doença e sua mitologia pública"

(1993:228). Deve-se acrescentar à inferência de Jones que, mais do que

deixar de lado a "mitologia pública", os textos que utilizam a elipse do

nome AIDS também a questionam, levando a novas leituras da doença

que são limitadas por essa mesma mitologia.

Se pronunciar é sinal de saúde, sinal de que se está

verdadeiramente disposto a lutar pela vida, a não-nomeação pode, pelo

caminho inverso, possibilitar essa nomeação, sem vergonha, medo ou

culpa. Deste modo, será possível, um dia, dizer-se algo como o título do

posfácio do livro Vida antes da morte, de Herbert Daniel, escrito por seu

companheiro Cláudio Mesquita: "Estamos bem, obrigado. Só temos

AIDS."

CCaappííttuulloo 55

OOUUTTRROOSS OOLLHHAARREESS,, OOUUTTRROOSS EESSPPEELLHHOOSS

Senti a morte chegar no espelho, em meu olhar no espelho, muito

antes que ela realmente ali se tivesse alojado. Eu já projetava essa

morte, através de meu olhar, nos olhos dos outros? (...) Isso se vê nos

olhos? A preocupação já não se resume em conservar um olhar humano,

mas em adquirir um olhar humano demais (...).

Hervé Guibert, Para o amigo que não me salvou a vida

Apesar de o livro Os dragões não conhecem o paraíso (1988), de

Caio Fernando Abreu, apresentar outros contos que abordam a AIDS, o

conto introdutório "Linda, uma história horrível" é onde a doença

aparece de uma forma mais explícita. Isso não significa, entretanto, que

haja a presença do nome. Como se sabe, é um recurso do escritor

utilizar a elipse, sendo a AIDS subentendida facilmente ou não. No caso

deste conto, há, ainda, algo mais que a elipse; a doença é entendida

paulatinamente pelo leitor, com as poucas e crescentes pistas sugeridas

pelo texto. O motivo pelo qual a AIDS não é nomeada, sendo

apresentada aos poucos e por pistas, deve-se a um objetivo mais amplo

do conto: discutir a solidão, a finitude da vida e a devastação provocada

pelo tempo, não só através do protagonista que está com AIDS, mas

também através da mãe dele e da cadela Linda.

Pode-se dizer "pistas" porque o narrador na terceira pessoa se

situa no mesmo plano do protagonista, evitando a onisciência. Quando

o protagonista, que não tem nome, chega à sua cidade natal, Passo da

Guanxuma, para fazer uma visita inesperada à mãe, é através de seu

olhar que o leitor apreende o cenário, a casa materna. O narrador e,

conseqüentemente, o leitor, colocados no mesmo plano do protagonista,

"vêem" o que este vê. É através de seu olhar que se percebem a velhice e

a degeneração física da mãe e de Linda.

Se leitor e narrador seguem a visão e a percepção do

protagonista, é natural que estas se desviem dele próprio, pois seu

olhar se dirige à mãe e a Linda. Mas, como num verso de Ana Cristina

César citado no conto ("é agora, nesta contramão", de A teus pés), é a

posição contrária da mãe que lhe permite perceber o filho. O ponto de

vista centrado na mãe dá ao leitor as pistas para montar o motivo da

inesperada visita. É ela quem observa que ele está mais magro, que

perdeu cabelos e tem uma "tosse de cachorro" e complementa: "Saúde?

Dizque tem umas doenças novas aí, vi na tevê. Umas pestes" (p. 18).

Além disso, é também a mãe que traz à conversa a preferência do filho

por homens, de uma forma sinuosa, ao perguntar por um "grande

amigo" que ela conhecera há anos. O que o protagonista desvia de si

próprio ou omite, a mãe, em sua privilegiada posição contrária, aponta

e sublinha. Somente no final, quando o filho está só na sala, o olhar

perceptivo e esclarecedor da mãe faz mais sentido. Em vez dela, a única

que conseguia vê-lo, há um grande espelho na parede da sala que

reflete a imagem do visitante:

Como depois de uma vertigem, percebeu-se a olhar fixamente

para o grande espelho da sala. No fundo do espelho na parede da sala

de uma casa antiga, numa cidade provinciana, localizou a sombra de um

homem magro demais, cabelos quase raspados, olhos assustados feito os

de uma criança. (...) Um por um, foi abrindo os botões. Acendeu a luz do

abajur, para que a sala ficasse mais clara quando, sem camisa, começou

a acariciar as manchas púrpura, da cor antiga do tapete na escada —

agora, que cor? —, espalhadas embaixo dos pêlos do peito. Na ponta dos

dedos, tocou o pescoço. Do lado direito, inclinando a cabeça, como se

apalpasse uma semente no escuro. Depois foi dobrando os joelhos até o

chão. Deus, pensou, antes de estender a outra mão para tocar no pêlo da

cadela quase cega, cheio de manchas rosadas. Iguais às do tapete gasto

da escada, iguais às da pele do seu peito, embaixo dos pêlos. (pp. 21-22)

Narrador e leitor, dependentes de seu olhar, só conseguem

visualizá-lo totalmente através da imagem que o protagonista vê de si

próprio. O espelho, desta forma, desvenda que à mãe e à cadela Linda

junta-se o filho: a mãe, com esclerose e a ceratose nas mãos indicando

a velhice; a cadela cega, moribunda e com manchas no pêlo; e ele, com

as lesões púrpura do sarcoma de Kaposi e a linfopatia indicando a

AIDS. Todos os três, então, se aproximam, no caso deste conto, pela

solidão e pela provável morte.

Se o espelho foi usado em "Linda, uma história horrível" para

desvendar as pistas de um jogo narrativo, indubitavelmente indica algo

mais, mesmo neste conto. Em narrativas sobre a AIDS, parece ser o

espelho um ponto comum; inúmeros escritores convergem ao

utilizarem-no em seus textos, como, por exemplo, o americano John

Weir em The Irreversible Decline of Eddie Socket (1989):

Eddie Socket contraiu-a. AIDS.

"Os Estados Unidos estão morrendo lentamente", disse ele,

sentado na tampa de um vaso sanitário e olhando fixamente para um

espelho, num banheiro ao lado do consultório do médico onde recebeu o

diagnóstico, (p. 99)

O choque da notícia inesperada do diagnóstico da AIDS faz

Eddie, antes de mais nada, olhar fixamente o espelho; descobrir,

naquela imagem, que lá existe algo até então insuspeitado. Como o

protagonista do conto de Caio Fernando Abreu, não é só observar a

imagem das mudanças físicas provocadas pelas infecções — no caso

específico de ambos, as lesões do sarcoma de Kaposi —, mas também, e

principalmente, descobrir, estupefato, o outro no espelho. A alteridade,

na epidemia discursiva da AIDS, parece ser o ponto crucial. A criação

inicial — e ainda persistente — dos "grupos de risco" esclarece bastante

essa questão. A AIDS é percebida e vivenciada como uma doença do

outro, daquele que é visto como estranho, diferente, marginal à sua

própria sociedade. Lembra Paula Treichler que "parte do choque da

AIDS era, então, o choque da identidade" (1988:200). Deve-se

acrescentar que, pelo menos no Brasil, o diagnóstico de AIDS continua

a ser um choque de identidade. Ser diagnosticado doente de AIDS é um

passaporte para o outro lado, numa sociedade dividida em "nós" e

"eles". Mesmo reconhecendo que essa divisão é frágil e fluida, ela existe

e marca os espaços de cada um a partir dela. A AIDS confirma sua

alteridade, põe para fora quem e o que a pessoa é (Weeks, 1990:138).

Assim, olhar-se no espelho indica a descoberta de ser um "deles", o

reconhecimento e a visão de si próprio como um estranho. A imagem do

espelho e a descoberta do outro, deste modo, conjugam-se, pois esta

descoberta é fortemente vinculada às imagens e suas representações já

dadas pela epidemia discursiva.

A relação entre imagem, representação e a existência do outro

não é uma novidade da epidemia discursiva de HIV/AIDS.

Definitivamente não é. Se a condição de outro da pessoa com AIDS é

condicionada, em grande parte, por alteridades anteriores que a

marcam, delimitam e lhe dão forma, é possível buscar essa relação na

imagem e na representação dessas alteridades. Retomar, assim, a

representação inicial do homossexual — ou antes, a criação dessa

personagem — pode esclarecer o jogo entre imagem, representação e

alteridade na epidemia de HIV/ AIDS.

No Capítulo 3, viu-se que as identidades sexuais "periféricas"

(mais especificamente, a identidade homossexual) foram uma criação

com o intuito de assegurar, pela antinorma, a identidade do cidadão

burguês, o que Stuart Marshall confirma e complementa:

É importante notar que esse processo não só constrói e categoriza

o desviante, mas também a própria norma. Esta noção de norma,

particularmente quando articulada com o conceito de "natural", tornou-se

um dos mais importantes pontos de referência para a descrição do

relacionamento entre indivíduo e sociedade, da metade do século XIX até

os dias atuais. (1990:25)

Desvio e norma, natural e não-natural foram, portanto, criações

simultâneas. Como ao cidadão burguês, era necessário dar aos

desviantes um caráter, uma psicologia, uma história, mas também,

lembra Michel Foucault, uma face e um corpo (1984:43-44).

Justamente aí, a imagem torna-se necessária. Mais do que

simplesmente montar essa personagem numa linguagem escrita —

médica, jurídica, legal e, também, literária16 —, era preciso dar-lhe uma

face e mostrá-la a todos, para que assim a diferença fosse vista,

reconhecida e apontada. A imagem serviu, então, para retirar o caráter

abstrato de personagens incorpóreas, comprovando sua existência. A

ciência — ou, segundo Foucault (1984), a scientia sexualis — precisava

de provas, e foi a fotografia, em grande parte, que as forneceu. "A

normatização de homossexualidade e doença", continua Marshall, "foi

irrecuperavelmente entrelaçada no domínio da imagem fotográfica"

(1990:28). Assim, foi a fotografia, então em seu início, que permitiu a

construção dessa personagem, que, além de um passado e uma

psicologia, teve, a partir daí, uma face e um corpo definidos.

Para a classe burguesa em expansão no século XIX, a fotografia

serviu a dois propósitos básicos. O primeiro era estabelecer seu status

através de representações honoríficas de si mesma, distinguindo-se

daqueles que a ela não pertenciam. O segundo era assegurar,

16 Jurandir Freire Costa, em A inocência e o vício, diz: "Proust e Gide, com a

força e densidade de seus textos, indubitavelmente ajudaram a conferir substância

imagina' ria à crença de que os homens dividem-se intuitiva e naturalmente em

'homossexuais' e 'heterossexuais'. Sem eles, a idéia hoje quase indiscutível para a

maioria de todos nós de que existe um tipo humano homossexual com características

próprias e irredutíveis a outros homens provavelmente perderia parte de seu poder

persuasivo" (1992:106).

simultaneamente, seu poder, identificando e controlando o território —

e o corpo—dos alijados da classe (McGrath, 1990:142). Foi através da

conjunção da fotografia e da medicina que esses alijados, transformados

em personagens especificamente doentes, puderam ser identificados.

Mais do que simplesmente sua identificação, foi a sua patologização que

permitiu o controle:

A história da fotografia e a história da medicina estão ambas pro'

fundamente comprometidas nos crescentes sistemas de vigilância,

controle e normatização que facilitaram a ampliação da supervisão e

controle social da população como um todo, realizada pelo Estado,

através de todo o século XIX e para dentro do século XX. (Marshall,

1990:24)

A fotografia médica, deste modo, atendia os princípios básicos de

afirmação de uma identidade burguesa pela criação, patologização e

controle de outras identidades que se desviavam ou se opunham

àquela. Stuart Marshall mostra que a medicalização do desvio resultou

numa proliferarão de novas identidades, uma complexa coleção de

novos seres humanos (ver também Foucault, 1984:37-49). A medicina,

assim se ocupava de uma taxonomia médica que obscurecia o próprio

processo de criação desses novos seres. Aparentemente, identificando,

catalogando e separando, a medicina buscou na fotografia uma maneira

de fixar essas criações.

A imagem fotográfica tornou-se parte indispensável da medicina.

Os exemplos dados por Marshall são vários, e, entre eles, pode-se

destacar Charcot e sua teoria da histeria. Em suas palestras, o médico

francês utilizava as imagens como narrativas fotográficas, ou antes,

registros congelados das "performances", como diz o autor, de seus

objetos de estudos, ou seja, as mulheres histéricas. Um dos pontos

mais importantes do uso da fotografia médica é descobrir a essência

desses novos seres através da múltipla exposição:

Um ponto básico para esta catalogação de imagens foi a noção de

traço peculiar — a peculiaridade fisiológica que exprimia numa linguagem

visual os segredos patológicos ocultos dos indivíduos fotografados e

permitia que eles fossem detectados com acuidade. Fotografia com

múltipla exposição foi utilizada por Galton para sobrepor imagens de

rostos. Este processo produzia, supostamente, um caos visual desses

traços faciais superpostos que diferia de indivíduo para indivíduo dentro

do tipo particular e deixando intacto, até tomando proeminente através

da repetida sobreposição, o traço específico comum a todos os indivíduos

de um tipo particular. (Marshall, 1990:26)

Era possível, então, através da imagem fotográfica, descobrir o

que o indivíduo escondia, já que sua identidade patológica falava uma

linguagem visual. Além disso, pela múltipla exposição fotográfica, havia

a possibilidade de identificar os aspectos comuns em indivíduos

tipificados. No caso específico de um desses tipos, o homossexual, a

relevância da imagem continuou a ser preponderante, até o momento

em que a medicina abandonou a investigação das macroestruturas (isto

é, a análise dos aspectos fisionômicos e corporais) para se concentrar

nas microestruturas (aspectos hormonais, genéticos ou cromossomiais)

(Marshall: 1990:30). A partir daí, ocorreu um processo inverso: se antes

havia uma superexposição de imagens, com a finalidade de

identificação e controle, agora, após essa mudança, há uma extrema

invisibilidade. Indicará essa inversão uma despatologização ou até uma

aceitação desse "desvio"?

Não parece que sejam essas as questões. Primeiro é necessário

observar a fixação das identidades sexuais. Se estas foram uma criação

circunscrita a um determinado e recente período histórico, ver o mundo

dividido em heterossexuais e homossexuais, por exemplo, era

impossível antes desse período. Assim, as imagens, basicamente

fotográficas, tiveram a função de fixar as personagens e torná-las

realidades naturais. A partir do momento em que as pessoas

começaram a se perceber e aos outros sob essa divisão, a

superexposição de imagens já não era mais necessária, pois a criação

tornou-se real. Além disso, a dicotomia heterossexual/homossexual,

transformada em realidade natural, dita outras dicotomias, como

normal/anormal, saudável/doente etc. Não há, portanto, uma

"despatologização"; a patologia já está embutida no segundo termo.

A invisibilidade relaciona-se a dois fatores: a direção tomada

pela medicina às microestruturas, e as identidades sexuais já tornadas

reais. A personagem homossexual não precisa mais ser comprovada, ela

existe e todos reconhecem sua existência. A representação dessa

imagem, porém, se dá por poucos e determinados estereótipos, levando

a uma pobreza de representações. A invisibilidade, condicionada por

essa pobreza, é quase tão perigosa quanto a superexposição. A epidemia

de HIV/AIDS tornou isso claro. A inicial e ainda persistente ligação

homossexualidade = AIDS deve-se, em grande parte, a essa

invisibilidade. Essa ligação fez mais do que reforçar o caráter patológico

dessa identidade: reforçou o tipo, a essência comum a todos os homens

same sex oriented. O que ocorreu foi um retorno, com a finalidade de

reforço, à criação dessa personagem: quem é, o que faz, que tipo de sexo

pratica e, principalmente, como é identificada.

A imagem, então, torna-se novamente necessária. Como é um

tipo duplamente doente—perverso sexualmente, carregando um vírus

perigoso —, é preciso que lhe mostre a face, o corpo, para que seja

identificado, apontado e excluído. Reconhecê-lo ajuda a impedir que o

vírus ultrapasse o seu corpo doente. Esse controle pela imagem — da

face e do corpo — dá-se, principalmente, com o doente de AIDS. Como o

homossexual, essa nova personagem, o "aidético", também tem um

passado, uma história, uma psicologia e, ainda, uma face e um corpo.

Ser portador do vírus ou ser doente de AIDS implica deixar de ser quem

é para ser um "aidético", para ter um corpo, uma face e uma história

definidos. Olhar-se no espelho, portanto, não significa ver sua própria

imagem, mas ver a imagem de um "aidético" e aquilo que essa imagem

representa. Ver o outro em seu lugar, mirar o outro no espelho.

Um romance que trabalha exemplarmente as questões da

imagem, sua representação e a questão do outro é Onde andará Dulce

Veiga? (1990), de Caio Fernando Abreu. Nas palavras do escritor, "a

realidade que Dulce Veiga mostra é aterrorizante e louca. É um espelho

talvez nítido demais do Brasil" (1995c:D5). A pista fornecida pelo

escritor sugere que ler o romance-espelho é ver essa imagem que causa

terror, cabendo ao leitor encará-la de frente, ou não. Mais ainda, cabe

ao leitor transformar essa imagem em algo não-aterrorizante, que se

possa descobrir e aceitar, vendo-a, então, com outros olhos. Porém,

como o título de uma série de livros inacabada de Marques Rebelo,17 O

espelho partido, a imagem do romance-espelho de Caio é fragmentada,

partida em vários pedaços. Isso se deve à pluralidade de universos do

romance, que vão se imiscuindo pouco a pouco, penetrando-se e

desviando-se. "Dulce Veiga é um romance espatifado", disse o escritor

(1995b). Como, então, nesse universo literário espatifado em inúmeros

pedaços, pode-se discutir a AIDS e, especificamente, as questões da

alteridade e da representação de imagens?

"E importante dizer", complementou Caio, "que Dulce Veiga já é

um romance sobre a AIDS. O narrador talvez seja soropositivo e Márcia

[personagem do romance] também é. É uma história de amor entre dois

contaminados" (1995c:D5). A afirmação do escritor é útil à leitura do

romance feita aqui. Não que a sua voz seja autoritária a ponto de (de)

limitar a leitura do romance, mas ela serve de guia em virtude de um

procedimento comum nos seus textos que abordam a AIDS. Como foi

visto, o escritor utilizou a elipse do nome AIDS em praticamente todos

eles. Dulce Veiga não foge à regra: o nome da doença aparece uma

única vez, na página 169. De resto, ela é subentendida mais

claramente, ou não.

Provavelmente, para muitos leitores a possível soropositividade

do narrador é apenas um elemento menor de suspense frente ao grande

17 É interessante lembrar que o romance de Caio Fernando Abreu relaciona-se a um de Marques Rebelo: "Dulce Veiga é a personagem de A estrela sobe, de Marques Rebelo, vivida por Odete Lara no filme de Bruno Barreto. O livro é uma homenagem a Rebelo, um escritor que eu adoro, e também a Odete Lara" (Abreu, 1995c:D5).

mistério do livro: o desaparecimento e a procura de Dulce Veiga. Quem

lê por esse viés acaba tendo uma frustração no final: não há mistério,

não há respostas. Para outros leitores, a AIDS no texto é apenas um

pano de fundo ou uma referência esparsa, mas também não parece ser

o caso. A AIDS e as metáforas a ela inerentes estão presentes em quase

todos os pequenos universos — ou universos espatifados, como indica o

escritor. Agrupando-os como um puzzle sem forma, aparece a cidade de

São Paulo. Esta, assim percebida no texto, é também espatifada,

fragmentada, onde circulam personagens distintas e variadas, em

bairros e cenários idem.

Além de ser vista em pedaços soltos, que, às vezes, se unem

rapidamente, São Paulo é uma cidade contaminada: "Atrás da mesa

dele os vidros imundos filtravam a luz cinza da Nove de Julho. A cidade

parecia metida dentro de uma cúpula de vidro embaçada de vapor.

Fumaça, hálitos, suor evaporado, monóxido, vírus" (p. 16). E

basicamente nessa cidade, onde vapores e vírus circulam pelo ar e pela

vida de seus habitantes, que se dá a maior parte da história. Como a

Babel apodrecida projetada na cidade de Los Angeles de 2019, no filme

O caçador de andróides (Blade Runner), de Ridley Scott, a cidade do

romance é mais que podre, é doente, terminal. O prédio onde mora o

narrador é um exemplo:

Era um edifício doente, contaminado, quase terminal. Mas

continuava no mesmo lugar, ainda não tinha desmoronado. Embora, a

julgar pelas rachaduras no concreto, pelas falhas cada vez mais largas

no revestimento de pastilhas de cor indefinida, como feridas espalhando-

se aos poucos sobre a pele, isso fosse apenas uma questão de meses. (...)

Novamente subi pelas escadas meio alagadas, que sempre me faziam

lembrar de um hospital onde nunca estivera. Um hospital em quarentena,

isolado por alguma peste desconhecida e mortal, no coração da Rodésia:

Karen Blixen traria víveres, vacinas. (p. 37)

Se a cidade é espatifada, onde coexistem universos idem, o que

há de comum em todos eles é, inicialmente, a presença (metafórica ou

não) de um vírus. É uma "peste desconhecida e mortal" — e sem nome

— que contamina habitantes, prédios e cidade. Assim como a peste,

sem nome é o narrador-protagonista. Todos as outras personagens têm

nome, mas ele não. Deve-se acrescentar que, além do vírus, ele é uma

outra ligação entre os pedaços; o único que, aparentemente, tem

trânsito livre através deles. Durante o desenvolvimento do romance,

pode-se perceber que os espaços limítrofes desses universos espatifados

são frágeis e.tênues, e que todas as personagens circulam por eles, para

surpresa do narrador e do leitor. Não há, assim, nessa cidade

espatifada e empesteada, limites nos fragmentos; como estes e as

personagens se imiscuem e se superpõem, estão todos, portanto, em

"risco" e expostos a esse vírus sem nome.

"Eu deveria cantar. (...) Agradecer, pedir luz, como nos tempos

em que tinha fé. Bons tempos aqueles, pensei" (p. 11). E assim que se

inicia a narrativa de Dulce Veiga. Viver numa cidade espatifada e

abafada por vapores e vírus implica uma desesperança, uma falta de fé.

O passado, diferente e distante desse insidioso presente, mostra-se

luminoso e nostálgico. Lembrar do passado indica mais do que reviver

os tempos de esperança; representa, também, fugir da metrópole escura

e contaminada.

Como Pérsio e Santiago da novela "Pela noite", e o protagonista

de "Linda, uma história horrível", o narrador de Dulce Veiga também é

da cidade sulina Passo da Guanxuma. Mas, ao contrário deles, que

vêem a metrópole como fuga dos laços familiares ou como a

possibilidade de dispersar-se na multidão, o narrador não partilha de

suas aversões pela cidade natal. O passado do narrador, sendo o Passo

da Guanxuma o ponto central, é feliz e esperançoso, sendo percebido

por uma nostalgia quase proustiana: "A vida não é apagável, pensei.

Nem volta atrás. Ainda não construíram a máquina do tempo. Ninguém

virá em meu socorro" (p. 120).

Nada volta atrás; esta é a descoberta assustada do narrador.

Nem a vida nem o corpo retornam no tempo. O possível saldo positivo

da passagem do tempo — a experiência — mistura-se com a

degeneração física, como constata o narrador ao se olhar no velho

espelho riscado de seu banheiro: "Tudo bem, disse a cara no espelho, já

que você prefere mesmo confundir experiência com devastação..." (p.

12). A experiência, por conseguinte, perde-se, dissolvendo-se na cidade

em pedaços. De que vale a experiência acumulada de um passado num

presente obscuro e contaminado, e num futuro, no mínimo, incerto? O

hard rock da banda da filha de Dulce Veiga, Márcia Felácio e as Vaginas

Dentatas, parece sublinhar essa questão: "O passado é uma cilada,/

não há presente nem nada,/ o futuro está demente,/ estamos todos

contaminados" (p. 79). O passado torna-se uma cilada: a experiência de

vida se choca com a inexperiência da morte. Deste modo, o que o

espelho mostra—inicialmente — é a destruição do corpo e da vida, a

devastação causada pelo tempo:

Tempos, pensei, tempos melhores. E dei de cara com minha

própria imagem refletida entre as rachaduras de um espelho. Meu cabelo

começara a cair. Automático, como sempre fazia nos últimos anos, desviei

depressa os olhos. Eu também conhecera melhores tempos. (P-125)

Desviar o olhar da própria imagem refletida no espelho significa

mais do que desviar-se da contemplação da destruição física. Significa,

também, desviar-se de sinais outros que a imagem do espelho pode

mostrar. Logo no início do romance, quando se vê no espelho riscado, o

narrador casualmente declara: "toquei o pescoço" (p. 12). Misturada a

outras declarações, essa nada acrescenta; passa despercebida ao leitor.

No entanto, conforme a narrativa se desenvolve, os toques se repetem e

dão uma pista:

Minha roupa estava encharcada, vou pegar um resfriado,

pensei— e não, eu não podia, o jornal, a entrevista, a febre outra vez no

apartamento vazio, as pontas dos dedos buscando sinais malditos no

pescoço, na nuca, nas virilhas. (p. 32)

Toquei o pescoço, no lado direito. Inaparentes, rolavam sob as

pontas dos dedos. (p. 42)

Como em "Linda, uma história horrível", o espelho pode mostrar

muitas coisas. Enquanto o protagonista do conto se põe em frente ao

espelho da sala, vendo sua imagem e permitindo, assim, o mesmo ao

leitor, o narrador de Dulce Veiga age de modo oposto. Ao desviar-se do

espelho, ele nega a contemplação das marcas destrutivas do tempo e,

também, daquilo que os toques no corpo parecem sugerir. Pode-se

dizer, então, que essa recusa à contemplação da própria imagem desvia,

claramente, a atenção do leitor. Se os toques são também "pistas", o

narrador as esconde, concentrando o foco em Dulce Veiga e seu

misterioso desaparecimento.

É esse mistério que parece nortear o "romance B", como assim

indica o subtítulo. Desvendar, porém, o mistério de um

desaparecimento ocorrido há vinte anos significa mais, para o narrador,

do que simplesmente obedecer às ordens do proprietário do jornal em

que trabalha. Foi com a cantora que o narrador fez, na juventude, sua

primeira entrevista, há também exatos vinte anos. Logo, procurar Dulce

Veiga é procurar a própria vida, é reencontrar o seu passado perdido,

dos tempos em que tinha força e fé: "Mas, eu quis dizer. Eu precisava

falar de Dulce Veiga. Dela, de mim, do tempo" (p. 30). Se encontrá-la

indica o reecontro do passado, pode, também, permitir que as marcas

da devastação do tempo — na face, no corpo, na alma —, das quais o

narrador tanto se desvia, sejam vistas através do outro, no caso a

cantora. O outro, desta forma, transforma-se no espelho.

A partir daí, há uma obsessão de encontrar Dulce Veiga. Em

quase todos os capítulos, o narrador vê a cantora nos lugares mais

inesperados, e ela sempre escapa, misteriosamente, quando ele tenta

alcançá-la. Junta-se ao mistério e à procura de Dulce o sumiço de outra

personagem, Pedro. Dele o leitor paulatinamente fica sabendo; a cada

capítulo o narrador esclarece quem é. Assim como as antigas

lembranças de Dulce Veiga, as de Pedro são fragmentadas e liberadas

aos poucos. Pedro — e aquilo que ele representa ao narrador — é

construído pedaço por pedaço. Sabe-se, então, que foi um

relacionamento afetivo-sexual do narrador. Nessa aparente distância

entre Dulce e Pedro, há uma aproximação: encontrá-los é uma questão

de vida ou morte: "Era preciso encontrar Dulce Veiga, manter aquele

emprego, continuar a viver. Mesmo sem encontrá-la, mesmo que Pedro

jamais voltasse" (p. 120). Encontrar a cantora permite ver em sua face a

devastação do tempo, encontrar Pedro permite ver e descobrir outras

coisas.

O romance é ágil: toda a ação se desenvolve em Uma semana,

sendo cada capítulo um dia da semana. E somente no Capítulo 5,

porém, ou na sexta-feira, que a necessidade de encontrar Pedro e os

toques no pescoço—as pistas dadas na segunda-feira —fazem sentido.

Após um show das Vaginas Dentatas, o narrador se vê com Márcia

Felácio num apertado camarim: "Bebeu no gargalo de uma garrafa

d'água. Depois acendeu um cigarro, sentou em frente ao espelho e ficou

olhando para mim" (p. 166). Deste modo, é através do reflexo do espelho

que seus olhares se cruzam, que vêem um ao outro. Agindo de modo

estranho — mas, para o narrador, familiar —, leva uma das mãos ao

pescoço e começa a acariciá-lo com os dedos: "Longe, ela continuava a

acariciar o pescoço. Às vezes, apertava suavemente, parecia apalpar

alguma coisa. Redonda, pequena, imperceptível" (p. 167). O ato era

familiar não apenas ao narrador, mas também ao leitor, que, no

capítulo inicial, presenciou esses inexplicáveis toques do jornalista.

Márcia, no entanto, vai além e esclarece aquilo que o narrador omitiu:

Entre seus dedos frios, de unhas curtas, pintadas de preto,

apanhou meus dedos e, curvando mais a cabeça, levou-os até seu

pescoço, fazendo-me tocar no mesmo ponto onde tocara antes. Estendi os

dedos sobre sua pele. Por baixo dela, por trás das riscas de tinta, gotas

de suor e água, como sementes miúdas, deslizando ao menor toque,

havia pequenos caroços. Senti minha mão tremer, mas não a retirei.

Circundei-os, apalpei-os levemente. Ela fechou os olhos. Eram grânulos

ovalados, fugidios. Exatamente iguais aos que haviam surgido, há alguns

meses, no meu próprio pescoço. Não só no pescoço, nas virilhas, nas

axilas.

— Em outros lugares também — ela disse. — Estão espalhados

pelo corpo todo. Tenho medo de procurar um médico, fazer o teste. (...)

Ícaro [um ex-namorado] morreu de Aids. E eu acho que estou doente

também, (pp. 168-169)

É Márcia, então, que clarifica os toques. Não só os toques, mas

aquilo que os dedos tocam: os gânglios inchados pelo corpo. Vendo

Márcia através do reflexo do espelho, é como se visse sua própria

imagem. Um espelho tridimensional, onde se pode tocar e apalpar a

imagem. Por isso, sua mão treme: tocar o pescoço de Márcia é tocar seu

pescoço. A cantora de hard rock faz mais do que esclarecer, ela fala a

verdade, diz — não só por gestos, mas por palavras — o que ele omite. É

de sua boca que é pronunciada a palavra AIDS, a única vez que aparece

em todo o romance. Se desde o Capítulo 1 o narrador não mais toca seu

corpo, agora ele torna a fazê-lo e, mais, elucida o que toca: "(...) toquei

em meu próprio pescoço, como tocara antes em meus lábios.

Continuavam lá, os gânglios. Esquivos, arredondados, exatamente

iguais aos de Márcia" (p. 170).

Elucidando os toques, o narrador também elucida o

desaparecimento de Pedro:

Lembrei então daquela noite em que encontrara um cartão-postal

sob a porta, algumas semanas depois que Pedro desaparecera. Todo

dourado, como ele, devia ser outono em Paris, mas o cartão não tinha

selos, não vinha dela. A beira de um rio, sob uma árvore, havia um

homem sentado sozinho, a cabeça baixa. Nas costas, logo abaixo da

inscrição Pont Neuf sur la Seine: Mélancolie, com sua letra torta, meio

infantil, Pedro escrevera:

"Não tente me encontrar. Me esqueça, me perdoe. Acho que estou

contaminado, e não quero matar você com meu amor." Mas já matou,

pensei naquele dia.

E outra vez agora, embaixo dos arcos vermelhos da Liberdade,

como pensara em todos os dias depois daquele dia em que ele

desaparecera, e nos meses seguintes, sem me atrever a procurar um

médico ou fazer o teste que poderia confirmar as suspeitas, apalpando

meu corpo inteiro em busca dos sinais amaldiçoados, suores noturnos,

manchas na pele, voltei a pensar—mas já matou. (p. 170)

A procura de Pedro, agora, faz mais sentido. Para o narrador, o

ex-namorado matou-o duplamente: ao abandoná-lo e ao, possivelmente,

contaminá-lo. Reencontrar Pedro significa trazer o amor de volta, mas

também ver, em sua face e em seu corpo, a doença ou não. Como o

narrador confirma, poderia procurar um médico e fazer "o teste", mas

prefere ouvir isso do outro. O reencontro aponta também para a

possibilidade de um perdão ou não, como Pedro escrevera na carta: "me

perdoe". A doença, ou melhor, a sua contaminação, passa, assim, pela

culpa: a culpa do outro. Como lembra Susan Sontag, a doença é sempre

identificada com o estranho, o estrangeiro, o não-nós (1989:57-58). É o

outro, com o vírus, que se transforma no anjo da morte.

O encontro com Márcia Felácio e a conversa intermediada pelo

espelho esclarecem mais do que a sua provável soropositividade; põem

em dúvida sua própria sexualidade. Numa passagem anterior, era

assim que o narrador se via: "Mas eu era um sujeito sério, eu não era

homossexual (...)" (p. 130) ou "Estranho, estranho impulso já que,

excluindo Pedro, eu não era homossexual" (p. 164). Mas, no camarim,

Márcia pergunta-lhe se é homossexual, e ele responde:

— Não sei.

Márcia endireitou a cabeça:

— Eu também não sei direito, às vezes, eu, Patrícia, você sabe.

Mas é estranho não saber. Acho que ninguém sabe. Deve ser mais

confortável fingir que sim ou que não, você delimita. Mas acho que

aqueles que acham que são homossexuais compreendem melhor essas

coisas, (p. 168)

Viu-se neste e no Capítulo 3 que as identidades heterossexual e

homossexual foram uma criação, mas que acabaram sendo aceitas e

estabelecidas como realidades naturais, assim como, séculos atrás, o

mundo era dividido, naturalmente, em cristãos e não-cristãos, homens

livres e escravos, e — hoje ainda — brancos e não-brancos. Ver,

portanto, o binarismo sexual oitocentista como uma criação é, para

muitos, impossível ou, no mínimo, difícil, pois este se apresenta como

uma realidade. Para os que, como Márcia, percebem ou intuem essa

criação, às vezes se torna mais fácil fingir, pois isso não só delimita mas

os poupa da árdua tarefa de fabricar novas realidades, que ultrapassem

esse binarismo valorativo e excludente, ou que não por ele perpassem.

Como diz ela, é mais confortável fingir que sim ou que não.

"Não sei", responde o atordoado narrador. O que o espanta é a

possibilidade de ser soropositivo e, também, homossexual. Se antes

desviava-se do espelho para não encontrar sinais que dissessem algo,

preferindo encontrar Pedro e vê-los nele, agora descobre que a doença e

a sexualidade do outro podem ser suas também. Ele percebe a

possibilidade de ser o outro.

A descoberta do outro em si dá-se num encontro com Saul, ex-

amante de Dulce Veiga, que conhecera na época da primeira entrevista

com a cantora. Saul, agora, demente após inúmeras torturas no DOPS,

vive enclausurado num quarto escuro e fétido de uma pensão. É Márcia

quem lhe paga o aluguel do quarto e lhe fornece a droga na qual é

viciado. Lá, entre insetos e ratos, vive a fantasia de ser Dulce Veiga,

vestindo-se com roupas antigas da cantora e usando uma peruca loura

sobre a cabeça raspada, "como a de um presidiário, um louco, um

judeu em campo de concentração, um doente terminal submetido à

quimioterapia" (p. 187). Quando Saul lhe pede um beijo em troca de

pistas do paradeiro de Dulce, o narrador compreende que beijará tudo

aquilo que ele representa: o louco, o presidiário, o judeu, o doente

terminal. Saul é uma alegoria do outro, e beijá-lo é beijar sua própria

face no espelho:

Sem compreender coisa alguma, eu começava a compreender

alguma coisa vaga. Era preciso coragem para compreendê-la, muito mais

que coragem para realizá-la, e coragem nenhuma, porque, aceita, ela se

fazia sozinha. Eu repeti, de outra forma, aquele vago conhecimento

assim: é preciso ser capaz de amar meu nojo mais profundo para que ele

me mostre o caminho onde serei inteiramente eu. Pensei então na GH de

Clarice mastigando a barata, em Jesus Cristo beijando as feridas dos

leprosos, pensei naquela espécie de beijo que não é deleite, mas a

reconciliação com a própria sombra. Piedade, reverso: empatia.(...) Ele

fechou os olhos quando aproximei mais o rosto. E eu também fechei os

meus, para não ver meu espelho, quando finalmente aceitei curvar o

corpo sobre a cama e beijara aquela boca imunda. (p. 190)

O narrador fecha os olhos ao beijar aquela boca imunda que

também é dele. Tenta piedade, tenta empatia, mas o que tem é nojo:

nojo da boca purulenta de Saul, nojo de ser o outro. Por isso, fecha os

olhos para não encarar o que possivelmente é: o "aidético".

Por que nojo? Por que o doente e a doença são asquerosos e

malditos? Simples: eles representam basicamente a conjunção da AIDS

e dos iniciais "grupos de risco", e especialmente da homossexualidade.

Mesmo sabendo que, em termos mundiais, a AIDS não é uma doença

que atinge somente homens some sex-oriented, ela ainda é vinculada à

homossexualidade. Jeffrey Weeks lembra que as primeiras imagens de

pessoas com AIDS eram calcadas nos estereótipos mais reprimidos do

homossexual: irresponsável, orientado pelo prazer, promíscuo, etc.

(1990:138). Pode- se, inclusive, complementar a inferência de Weeks,

lembrando que ainda existe um quê de denúncia nas atuais

representações, como destaca Herbert Daniel:

De um modo patético, o doente de Aids é obrigado a revelar a

forma de sua contaminação. É a transformação do diagnóstico em

denúncia. Mesmo o doente que não se contamina por via sexual vê-se

constrangido a se "diferenciar", a insistir permanentemente para que não

o confundam com aqueles que tem a mesma doença que o atinge!

(1989:26)

Por isso, a exemplo do discurso médico do século passado, que

procurava, numa linguagem visual, a doença "escondida" dos novos

seres catalogados, ver um doente de AIDS significa, de certo modo, ver

uma patologia comportamental ou sexual estampada em sua face e em

seu corpo. A imagem do doente de AIDS indica o que a pessoa é e aquilo

que fez para merecê-la. É "aquela aparência", como diz Susan Sontag

(1995:38); são as lesões do sarcoma de Kaposi, a queda do cabelo, o

emagrecimento, "o olhar humano demais" a que Hervé Guibert se

referiu e que pode ser observado na polêmica capa da revista Veja de 26

de abril de 1989, com a foto do cantor Cazuza e com a chamada: "Uma

vítima da AIDS agoniza em praça pública". Apesar "daquela" aparência,

apesar de toda a devastação física provocada pela AIDS, Cazuza

mantém a cabeça erguida e a altivez que sempre o acompanhou.

Mesmo sendo usada como um exemplo, a imagem do cantor é

singular. Na mídia, as imagens de pessoas com AIDS são, quase

sempre, marcadas pelo anonimato, pelo desconhecimento de suas

histórias pessoais e pela falta da altivez que marca a foto do cantor.

Geralmente as representações de pessoas com AIDS mais parecem

cópias semivivas e macilentas de O pensador de Rodin. Ao contrário da

escultura, no entanto, a pose dos doentes indica submissão, invalidez,

dor e sofrimento. Longe de serem ultrapassadas, essas imagens ainda

persistem na mídia. Veja-se, por exemplo, uma ilustração do desenhista

Lula, publicada no Caderno "Idéias Livros" do Jornal do Brasil em 9 de

dezembro de 1995. Um homem está sentado, curvado em sinal de

fraqueza e submissão, com as pernas descarnadas e seus ossos e

tendões aparecendo. Seus braços finos apóiam-se naquilo que eram as

coxas, enquanto a cabeça, disforme e enorme em relação ao corpo,

quase não tem traços distintos. O desenho, pelo conjunto, transmite

uma sensação de extrema passividade, solidão e dor. Aos olhos de

todos, o desenho não retrata algo desconhecido: representa o que um

doente de AIDS é.

Pode-se argumentar que; esta imagem não é relevante, não

passando de um desenho. Absolutamente, não. Todas as imagens são

representações. Segundo argumento: esse desenho não pretende ser

fiel, assemelha-se mais a uma caricatura. Pois é exatamente por se

aproximai de uma caricatura que o desenho foi descrito aqui como

exemplo. O que faz uma caricatura? Há uma intenção pura e simples

em deformar? Pode até ser, mas a intenção primeira da caricatura é

ressaltar as características mais salientes do caricaturado.

Mostrar essas imagens parece indicar piedade. Mas é preciso

observar: piedade não € solidariedade. Esta indica uma

interdependência mútua, enquanto piedade é pena, dó, ressalta uma

divisão entre os que Sofrem e os que não sofrem, os que podem e os que

não podem. Mais do que piedade, indica uma forma camuflada de

marcar a pessoa, de mostrar em "praça pública" como é a cara do

doente e a cara da doença: "Cuidado! AIDS." Não, realmente essas

imagens não indicam piedade; elas apontam uma mórbida curiosidade

pelo diferente, pelo doente, pelo não-nós. Tanto a foto de Cazuza da

capa de Veja quanto a referida caricatura são exemplos: mostrar, para o

mórbido deleite coletivo, o verdadeiro Homem-Elefante do final do

século XX. Assim, a imagem do "aidético" provoca o que,

aparentemente, deveria exterminar: nojo, asco, tal como sentiu o

narrador ao beijar a boca de Saul. Como ele mesmo disse, era preciso

tentar não a piedade, mas a empatia, e o que acabou sentindo foi nojo.

Em suas "cartas abertas", Herbert Daniel atentou para essas

representações dos doentes de AIDS:

Enfim, eu não suspeitava que poderia estar com Aids porque não

"parecia" com um doente de Aids. Agora, olhando no espelho, sei com que

se parece um doente de Aids. Aliás, este é um exercício que qualquer um

pode fazer, diante do espelho, para ver a famosa cara da Aids. (1989:16)

Daniel expõe de modo singular a existência dessas

representações. Por não se parecer com as imagens veiculadas pelos

meios de informação, achava que não poderia ter AIDS. Ou seja, não é

nossa imagem, mas a imagem do outro. A superexposição de imagens

de devastação física, de dor e de sofrimento — físico, moral e emocional

— acabam, portanto, construindo mais uma personagem, que, além da

face e do corpo macerados, também tem um passado, uma história. São

as "vítimas inocentes" (bebês nascidos soropositivos, pessoas que

ficaram doentes devido a uma transfusão de sangue ou hemoderivados,

ou devido à "traição do outro') e as "vítimas culpadas", aquelas que

fizeram por merecer o castigo. A história bifurcada dessa personagem,

no entanto, não altera seu presente: é um morto-vivo anônimo, uma

aberração empesteada que suja o mundo dos normais, limpos e

saudáveis. Deve-se, portanto, trancá-lo em casa ou no hospital para que

não contamine o corpo e o olhar daqueles que o tocam ou vêem.

E essa a personagem deste final de século: o "aidético". O

neologismo em língua portuguesa, inclusive, realçou essa criação

tornada real. Ao contrário da expressão em inglês, person with AIDS ou

sua sigla PWA, criou-se no Brasil esse substantivo derivado da sigla da

síndrome, tal qual o sidatique, na França.

Esses neologismos, aparentemente neutros, têm uma função:

retirar a condição humana do doente, apresentando outra que é

distante dessa. Ao se descobrir com AIDS (ou se saber soropositivo, já

que a mitologia popular e, às vezes, o discurso médico equacionam HIV

positivo = AIDS), o indivíduo deixa de ser uma pessoa com AIDS (ou, no

outro caso, soropositiva) para ser algo distinto: "Sub-repticiamente, a

doença criou uma mitologia tão complexa, que o doente passou a ser

visto como um ser especial, um 'aidético"' (Daniel, 1989:25).

Apesar dos esforços de Herbert Daniel e de várias ONGs— que

enviaram inúmeras cartas aos meios de comunicação, mostrando o

quanto havia de perigoso nesse neologismo —, o preconceituoso termo

vingou e a personagem se estabeleceu, tornando-se uma realidade

natural. Era contra essa personagem e sua representação que Daniel

alertava a população e incitava outras pessoas com AIDS a fazerem o

mesmo que ele: mostrar uma face da AIDS que se opõe à da cruel

representação da mídia. Era preciso, também, que mostrassem sua

história específica, diferente daquela predeterminada por imagens e

discursos anteriores:

O doente de Aids torna-se um ser sem nome e sem história. É

preciso tirá-lo da escuridão da clandestinidade para que possa dizer em

plena luz: "este é meu nome, esta é minha história". Muito menos que

"assumir" um "ser" ou um "estado" (...). (Daniel, 1989:26)

O narrador de Dulce Veiga — que não tem nome — assume

agora o "ser" a que Daniel se referiu. Agora pode ter aquele nome, pois

sabe quem é: beijou sua própria boca no espelho.

O romance desde o início apresenta um grande mistério: onde

andará Dulce Veiga? O que terá acontecido a ela? Por que sumiu?

Durante a leitura, mais um mistério, aparentemente menor, se

apresenta: quem é Pedro? Por que sumiu? Qual a necessidade de

encontrar Pedro? Para este mistério, o beijo em Saul é o desfecho. A

semelhança do detetive do filme Coração satânico (Angel Heart), de Alan

Parker, o narrador procurava alguém e descobre, estupefato, que esse

alguém é ele mesmo. Encontrou o que precisava — e temia — encontrar.

Se uma parte do suspense foi desvendada, onde andará Dulce

Veiga? Pelas pistas que o antigo diário de Dulce Veiga dá, ela está em

Estrela do Norte, uma cidade de Goiás. Solução do mistério? Caio

Fernando Abreu esclarece:

E, no desfecho, para complicar, eu dou um salto inesperado para

um universo mítico. O leitor, se puder, vai entender que a Dulce está

ligada ao Santo Daime e isso provocará um choque violento, porque,

provavelmente, ele estava lendo o livro como um romance policial. Tanto

que o chamei de um "romance B". (1995c:D5)

O salto para outro universo, diferente daqueles espatifados e

contaminados da metrópole de São Paulo, e o singelo encontro com

Dulce espantam o leitor. Então não há mistério no desaparecimento da

cantora? O desaparecimento de Pedro era o único mistério? Não há

respostas?

Talvez. Para o narrador, porém, procurar Dulce Veiga era

também buscar em sua face as marcas do tempo, a destruição física e

espiritual: "força e fé, que tinha perdido, eu perdi" (p. 36). O encontro

com a cantora dá uma resposta. E ela, com o chá dado ao narrador, que

o leva a encontrar aquilo que estava soterrado no passado: "Ela disse:

Força e fé, repete comigo: dai-me força e dai-me fé, dai-me luz" (p. 209).

Terá conseguido? Assim diz o narrador na primeira frase do romance:

"Eu deveria cantar", como nos tempos em que tinha força e fé. No final

do livro, enquanto se distancia de Estrela do Norte, com a mochila e um

gatinho nas mãos, diz: "E eu comecei a cantar."

O encontro com Dulce Veiga significa mais do que resgatar a fé e

a força perdidas: significa ver com outros olhos a imagem do outro que

é também sua. Ao beijar Saul, seu sentimento foi nojo, pois reconhecia

a diferença não como algo distante ou fora de si, mas parte de si mesmo.

No entanto, na despedida em Estrela do Norte, a cantora dá a ele um

gatinho chamado, significativamente, de Cazuza. Aceitar o gato e

protegê-lo entre as mãos com carinho e amor significa não mais ter nojo

ou medo. Voltar a São Paulo, com força e fé, e aceitando Cazuza — e,

por extensão, sua imagem — significa ultrapassar o nojo, o medo e,

principalmente, a diferença, como vislumbra Susan Sontag:

Não fico pensando se corro perigo ou não, disse Hilda, só sei que

estava com medo de conhecer alguém com a doença, medo do que iria

ver, do que iria sentir, e desde o primeiro dia em que vim ao hospital me

senti tão aliviada. Nunca mais aquilo, aquele medo; ele não parece

diferente de mim. Ele não é, Quentin disse. (1995:34)

É fácil deixar de ver a diferença ou, ao menos, vê-la com outros

olhos? Certamente não, e esse é o complexo processo de afirmação das

alteridades. No caso específico da AIDS, como não ver a diferença, se ela

"marca" distintamente a face e o corpo? "(...) olhos baixos no espelho a

cada manhã, para não ver Caim estampado na própria cara" (p. 247).

Difícil, assim parece responder a atitude do protagonista do conto

"Depois de agosto", do livro Ovelhas negras (1995), de Caio Fernando

Abreu. A "marca de Caim", como diz ele, é visível e impossibilita a

tentativa de não perceber a diferença, tanto aos que a têm, quanto aos

que não a têm. No entanto, essa marca, que parece ser forte denúncia

do próprio corpo, não está somente estampada nele ou na face; está

dentro, naquilo que a pessoa é. O sinal de Caim—dos banidos, dos

marginais, dos excluídos — vai além do doente, estampa, também,

outras faces. Assim, ao abaixar os olhos defronte ao espelho, o

protagonista nega contemplar aquelas imagens que o representam.

Sabendo que a imagem vista no espelho é basicamente

predeterminada pelas imagens veiculadas pelos meios de comunicação,

é necessário rever como estas são construídas:

(...) imagens de pessoas com AIDS criadas pela mídia e pelos

fotógrafos de arte de maneira semelhante são aviltantes e são

sobredeterminadas por muitos preconceitos que as precedem em relação

à maioria de pessoas que têm AIDS — gays, usuários de drogas

injetáveis, negros, pobres. (Crimp, 1992:125)

Deste modo, como já foi visto, a imagem clássica de um doente

de AIDS (passivo, desfigurado, solitário, sem esperança) não é

apresentada — e criada — para despertar o óbvio: a piedade. Essas

imagens têm básica e principalmente a função de apontar e condenar

aquilo que precede a doença, acabando, porém, fazendo-o com o doente.

Era contra essa imagem do moribundo, do inválido, da pessoa anônima,

muda e sem história que Herbert Daniel se revoltava. Para o escritor,

apagar essa imagem e apresentar uma outra que lhe é oposta era uma

saída.

Algo semelhante conta Douglas Crimp (1992). Na exposição

fotográfica "Pictures of People", de Nicholas Nixon, em 1988, no MoMA

de Nova York, houve um pequeno e silencioso protesto do grupo ativista

ACTUP. O motivo? Uma das séries fotográficas retratava pessoas com

AIDS, e, apesar de excelentes críticas recebidas, apenas reiterava as

imagens veiculadas na mídia: dor, sofrimento, lesões na face,

desfiguração física etc. Com pequenas fotos coloridas de parentes,

amigos ou companheiros, os ativistas mostravam aos espectadores da

exposição pessoas com AIDS totalmente diferentes daquelas: enérgicas,

felizes e fortes. Além das fotos pessoais, os ativistas entregaram folhetos

que terminavam assim: "Nós exigimos a visibilidade de pessoas com

AIDS que sejam vibrantes, lutadoras, apaixonantes,sexy e bonitas,

agindo e reagindo" (1992:118).

Para os ativistas, portanto, mudar a imagem tendenciosa da

pessoa com AIDS gerada pela mídia requer a troca de imagens: não as

negativas, mas as positivas. Apesar de Crimp explorar, em seu ensaio,

exemplos e casos mais generosos, o que interessa aqui é o problema

que essa oposição de imagens induz. Como Crimp argutamente percebe,

o problema de se opor a um estereótipo é que tacitamente fica-se ao

lado daquele que, anterior e previsivelmente, se distanciava da imagem.

Junto com este, concorda-se que aquela imagem é o outro (p. 126).

Acaba-se estabelecendo, novamente, uma divisão rígida e marcada

entre "nós" e "eles", e, assim, que aquela imagem é o não-nós, é o

diferente. Crimp concorda que as imagens padrão de pessoas com AIDS

nada fazem além de tentar inspirar piedade, e que esta se distancia

largamente da solidariedade. Dependendo, porém, do modo como se

marca a oposição a essa imagem, há o risco de sua contra-imagem ser

tão perigosa quanto ela. A primeira reação de muitos ativistas é dizer:

"Eu não sou assim" ou "Essa imagem não é verdadeira. Não se parece

com meu pai, ou minha irmã ou meu amigo". Opor-se, no entanto, às

imagens de sofrimento veiculadas pela mídia não deve passar pela

veracidade que elas contêm ou não. Crimp pergunta: por acaso as fotos

de Nixon não são verdadeiras? E deve-se ainda acrescentar: as sofridas

imagens vistas na mídia também não são verdadeiras? Completa Crimp:

Mas nós também devemos reconhecer que toda imagem de uma

pessoa com AIDS é uma representação, e devemos formular nossas

exigências ativistas não em relação à "verdade" da imagem, mas em

relação às condições de sua construção e de seus efeitos sociais, (p. 126)

A inferência do autor vem validar tudo o que foi e está sendo

discutido neste capítulo. Quando se diz que o "aidético" é uma criação

tornada real, isso não quer obviamente dizer que a imagem exposta não

é verdadeira, que muitas vezes o sofrimento que a marca é irreal, mas

que sua representação é uma criação com fins determinados. E tomar

essa representação como algo absoluto significa fundamentar a

personagem. Reiterando o que Crimp apontou, a discussão não deve se

basear na "verdade" da imagem, mas sim nas condições de sua

construção e seus efeitos relacionados.

Baseando-se na "verdade" da imagem — se assim é possível —,

há o risco de se fazer uma outra personagem, que, ao contrário do

"aidético", é a sua contraface positiva. E necessário indagar: já que a

personagem existe, não é melhor que seja substituída pela sua

contraface positiva? Talvez seja, aparentemente, a solução mais fácil e

rápida, mas, definitivamente, não é a mais sensata. A linguagem da

própria fotografia pode responder a isso. A imagem fotográfica existe em

duas formas: o positivo, que contém as luzes e as sombras iguais às do

original, e o negativo, que as inverte. A imagem do positivo, portanto,

está mais próxima do real, do verdadeiro, do que o negativo. Este é um

deturpador, pois inverte a coloração da imagem verdadeira. Para uma

resposta mais clara, deve-se voltar às exigências do grupo ativista.

Imagine que a contraface positiva — a pessoa com AIDS ativa, enérgica,

sexy e bonita — seja "a personagem". E o que acontecerá com as

pessoas que, por razões várias, estejam sós e deprimidas ou sejam

"passivas" e, às vezes, nada sexy ou bonitas? Será culpa delas? Não

poderão ser vistas novamente como párias?

Essa oposição, certamente, reforça a dicotomia atividade/

passividade e todas aquelas que lhe são próximas: força/fraqueza,

poder/submissão, masculino/feminino, homossexual/heterossexual

etc. A saída, então, é procurar imagens que não se baseiem em aspectos

binários e excludentes, que sejam mais permeáveis às diferenças. Veja-

se, por exemplo, a exigência de imagens de pessoas com AIDS sexy e

bonitas. O belo pressupõe o feio, e o que é considerado belo depende de

padrões pré-estabelecidos e, de certa forma, autoritários. Não será

melhor, em vez de exigir imagens de pessoas "bonitas", rever o próprio

conceito de beleza? O protagonista de "Depois de agosto" dá uma pista:

Meio fingindo que não, pela primeira vez desde agosto olhou-se

disfarçado no espelho do hall do hotel. As marcas tinham desaparecido.

Um tanto magro, bien-sür, considerou, mas pas grave, mon cher.

Twiggy, afinal, Iggy Pop, Verushka (onde andaria?), Tony Perkins — não,

Tony Perkins melhor não —, enumerou, ele era meio sixties. Enfim, quem

não soubesse jamais diria, você não acha, meu bem? (p. 252)

Agora ele já pode se olhar no espelho, pois as "marcas de Caim"

desapareceram. Sem elas ninguém jamais diria, como ele observa. Sem

o sinal da exclusão, a existência marginal não é revelada. Mas o que é

importante ressaltar é sua observação em relação à magreza. Apesar de

repudiar Tony Perkins por ser muito "sixties", todos os nomes que

enumera são exemplos de beleza de décadas atrás, mas que, hoje, são

repudiados como ideal do belo. Ele sugere, portanto, não a tentativa de

se integrar ao padrão vigente de beleza, mas a de buscar outras formas

de se considerar e ver o belo.

Mais fundo vai Hervé Guibert, quando, no hospital, defronta-se

com sua imagem:

Nesse instante, por acaso, vi-me num espelho e me achei

extraordinariamente belo, enquanto fazia meses que não via mais que um

esqueleto. Acabara de descobrir uma coisa: seria preciso que eu me

habituasse àquele rosto descarnado que o espelho me devolve toda vez

como se não me pertencesse mais, mas sim ao meu cadáver, e seria

preciso, por cúmulo ou interrupção do narcisismo, que eu conseguisse

gostar dele. (1995:131)

Guibert deduz que, para gostar da imagem descarnada e

cadavérica que vê no espelho, é preciso partir ou para o cúmulo ou para

a interrupção do narcisismo. Será? Para ver a imagem do espelho sem a

morbidez ou sem que a diferença seja ressaltada, é necessário

transformá-la, vê-la com outros olhos. É possível, assim, sem a

"interrupção do narcisismo", continuar a ver uma beleza na face

refletida. Então isso aponta para o "cúmulo do narcisismo"? Também

não é por esse caminho. Se a eliminação do binarismo belo/feio, como

tantos outros, é um processo difícil, que o modelo de beleza seja, ao

menos, plural, aberto às diferenças, e não apenas um modelo

inatingível ou autoritário. Logo, é preciso que se amplie esse modelo,

fazendo com que a face que provoca nojo, curiosidade ou medo seja

também considerada bela.

As "imagens positivas", portanto, podem provocar ciladas, e é

importante perceber isso. No Capítulo 2, viu-se que há uma

necessidade, na epidemia de HIV/AIDS, de que grupos emergentes

sejam sujeitos e não só objetos nas representações. Mas é necessário,

além disso, que a própria concepção de sujeito seja reavaliada,

criticada, transformada, caso contrário será um mero deslocamento de

posição. A "imagem positiva" que nega a passividade inerente à "imagem

negativa" reforça inúmeros aspectos dicotômicos já existentes. Para que

se evite isso, talvez seja necessário, como se propõe ao modelo de

beleza, que se amplie o conceito de "positivo", que este não seja, apenas,

sinônimo de atividade, alegria, energia e outros termos correlatos.

Os leitores do conto "Depois de agosto" — que tem o subtítulo

"Uma história positiva" — provavelmente entenderão isso. O

protagonista é duplamente positivo: HIV positivo e "positivo", porque

não renuncia à vida, reage contra a morte do corpo e a morte civil, e,

principalmente, reaprende a viver. Ele é o oposto do protagonista de

"Linda, uma história horrível", que só vislumbra a tristeza, a solidão e a

morte. Porém, a positividade em "Depois de agosto" não é heróica; ela

não exige qualidades, sentimentos e força sobre-humanos. E, além

disso, uma positividade não excludente e rígida. Ela abre espaço para a

paixão, alegria, coragem e energia, mas também para a dor, o cansaço,

a melancolia, a separação. O protagonista, assim, não é o Homem-

Elefante e muito menos o Super-Homem. Ele é um homem, apenas um

homem. Entre ser uma "triste aberração" e ser um poderoso herói, ele

descarta ambas as opções. Interessa-lhe ser somente um homem —

comum, mortal e, principalmente, humano — que tenha o direito de rir

e chorar, de alegrar-se e entristecer-se, e, é claro, de adoecer e viver em

paz.

CCoonnssiiddeerraaççõõeess ffiinnaaiiss

Estas considerações finais deveriam ter o título mais apropriado

de A conclusão inconclusa. Um dos motivos é óbvio. A epidemia de

HIV/AIDS, ponto central deste trabalho, continua, e uma vacina para

deter o vírus parece, infelizmente ainda distante. Outro motivo para se

ter esta conclusão em aberto é que este pequeno livro, sendo um dos

primeiros no país, não pretendeu pôr um ponto final nas discussões

sobre literatura e AIDS. Há muito mais a ser dito e feito. Tendo em vista

o número cada vez maior de publicações de autores nacionais e

estrangeiros que abordam a AIDS em seus textos, provavelmente outros

e diversos estudos surgirão.

A inconclusão desta dissertação, no entanto, não é total. Pôde se

perceber que a literatura (assim como por exemplo, o cinema, o teatro e

as artes visuais) também a parte da epidemia discursiva de HIV/AIDS,

pois permite novas abordagens e constrói linguagens que, geralmente,

opõem-se às de certos discursos monopolizadores e autoritários,

ultrapassando-as. Oferecendo outras concepções da sexualidade, do

corpo; da doença e da epidemia, essas manifestações artísticas não

mimetizam simplesmente algo dado, mas constroem outras formas de

ver e de entender a epidemia. Constroem, assim, outras possíveis

realidades.

Criar realidades que não sejam tão autoritárias parece ser um

dos caminhos não só possíveis mas também necessários. Se a AIDS é

uma doença que provoca tanto pavor, não é somente por ser, até agora,

incurável. A AIDS é temida, em grande parte, por ter sido fixada como

uma doença que indica o outro e tudo aquilo que muitos preferem

ignorar: a pobreza, o uso de drogas injetáveis e, Principalmente, o

"homossexualismo".Para alterar essa arbitrária e fantasiosa criação,

qualquer discussão sobre a AIDS não deve deixar de abordar esses

assuntos. Sim, a AIDS não é exclusiva de determinados grupos, todos

são potencialmente iguais quanto à vulnerabilidade. Sabe-se, porém,

que esse "todos" é excludente e não comporta as diferenças, sejam elas

o que for. Para tanto é necessário que a alteridade na epidemia de

HPV/AIDS seja realmente exposta, permitindo, deste modo, que

preconceitos anteriores a ela, estabelecidos como realidades naturais,

sejam discutidos e contestados.

Não será mais fácil ver as doenças apenas como doenças? É esse

o projeta "quixotesco" de Susan Sontag, de ver o "mundo real" sem os

significados alheios que lhe são conferidos. Porém, infection in the

sentence breeds, a palavra contamina a palavra. Podemos, no entanto,

conferir outros significados, menos perigosos ou nocivos ao mundo

real", pois descobrir a essência das coisas através da. palavra é um

longo processo. E o que mostra, em "Uma rosa amarela", a voz sempre

bem-vinda de Jorge Luis Borges:

Então ocorreu a revelação. . Marino viu a rosa, como Adão pôde

vê-la no Paraíso e sentiu que ela estava em sua eternidade, e não em

suas palavras, e que podemos mencionar ou aludir, mas não expressar,

o que os altos e soberbos volumes que, num ângulo da sala, formavam

uma penumbra de ouro, não eram (como sua vaidade sonhara) um

espelho do mundo, mas uma coisa mais agregada ao mundo.

Esta iluminação alcançou Marino na véspera de sua morte, e

Homero e Dante talvez também a tenham alcançado.

São tudo histórias, menino. A história que está sendo contada,

cada um a transforma em outra, na história que quiser. Escolha, entre

todas elas, aquela que seu coração mais gostar, e persiga-a até o fim do

mundo. Mesmo que ninguém compreenda, como se fosse um combate. Um

bom combate, o melhor de todos, o único que vale a pena. O resto é

engano, meu filho, é perdição.

Caio Fernando Abreu, Onde andará Dulce Veiga?

BBiibblliiooggrraaffiiaa

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