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Vozes de mulheres que surfam nas ondas do feminismo latino-americano
Marcia Paraquett (UFBA/CNPq)
Já se fala na quarta onda do feminismo, ainda que muitas mulheres continuem sendo
vítimas de feminicídio. Essa aparente contradição se explica, mais particularmente, por
questões de ordem racial, histórica e econômica, determinando o retorno desse movimento
que, no Brasil, parecia adormecido, quem sabe pela sensação de que tudo estava em seu lugar.
A entrada no século XXI determinou mudanças radicais no cenário político e estético, pois
houve o surgimento de movimentos considerados periféricos que trouxeram à tona vozes até
então apagadas pela hegemonia racial e sexual. De maneira sorrateira, jovens das periferias de
importantes cidades roubaram a cena e invadiram as ruas o mundo virtual, impondo sua voz e
levando outros jovens não periféricos a ouvi-los e descobrir que eles também falam e fazem
arte.
Como mulher que pertence, geracionalmente, à terceira onda do feminismo no Brasil,
já que nasci em 1948, pude dar atenção aos muitos e muitas jovens com quem convivi na
minha já longa experiência profissional, aprendendo com eles e elas que o mundo é mutante e
que os lugares de fala e de escuta precisam ser intercambiáveis. Minha experiência
profissional e de vida, portanto, me convoca a refletir com a nova juventude, especialmente, a
feminina, procurando escutar o que dizem e, mais do que tudo, procurando multiplicar o que
aprendo, em prol da incansável construção de um mundo justo e equânime.
Falo, neste momento, como uma pesquisadora da ‘terceira idade’, interessada em
compreender as manifestações de mulheres que na América Latina me inquietam e me
provocam a ser quem sou. Ressalto que as mulheres brasileiras da ‘terceira idade’
participamos mais ativamente da chamada terceira onda do feminismo, mas estamos tendo o
privilégio de acompanhar a quarta onda, onde essa inquieta meninada se manifesta de maneira
impensada para muitas mulheres de minha geração.
Ressalto que não acredito na possibilidade de colocar datas para marcar o início e o
fim de cada onda, como fazem alguns autores e autoras, porque o fato de ter sido testemunha
de tanta história me leva à certeza de que essas ondas não são estanques. Os meus olhos veem
e meus ouvidos ouvem coisas, ainda hoje, que não se pensava mais em dizer nos anos de
1970. Ou seja, o feminismo anda a passos ágeis para algumas pessoas e a passos lentos para
outras, mas, porque preciso dar uma certa ordem ao que pretendo discutir, vou tomar como
guia ou como sul1 alguns enquadramentos, sugeridos, particularmente, por duas autoras:
Heloisa Buarque de Hollanda, pesquisadora brasileira que organizou três importantes livros
nos anos de 20182 e 2019; e Nuria Varela, pesquisadora espanhola, autora de duas obras,
publicadas em 20133 e 2019. Essas duas autoras concordam que há quatro ondas de
feminismo, embora cada uma as organize de maneira diferente.
Varela (2019) prefere associar as ondas às crises pelas quais passou a humanidade,
destacando quatro momentos, como se vê abaixo:
Hasta ahora, las olas anteriores han surgido al tiempo que sucedía una «crisis
civilizatoria», por decirlo en palabras de Amelia Valcárcel; es decir, al
tiempo que cambiaban los sistemas políticos y económicos mundiales. En la
primera ola, nace el feminismo en el momento de destrucción del Antiguo
Régimen; la segunda ola surge en el siglo XIX con la Revolución industrial
y el cambio en los modos de vida y de producción que supone; la tercera,
tras la Segunda Guerra Mundial, que transformó el orden geopolítico y
económico. La cuarta es coetánea de la sociedad de la información y de lo
que ya se comienza a denominar la Cuarta Revolución Industrial.
(VARELA, 2019, s/p)
Tendo a concordar com a autora, pois me parece evidente que nunca saímos iguais de
uma forte experiência vivida. E se essa experiência foi coletiva, as mudanças tendem a
coletivizar-se. Penso, por exemplo, no que estamos vivendo no exato momento em que
produzo este texto: a COVID-19. Ainda não sabemos, mas novas atitudes e valores
aparecerão como resultado de tantas descobertas que estamos fazendo em nossos
confinamentos.
Voltando ao texto de Varela (2019), observe-se que a primeira onda está associada ao
Antigo Regime, ou seja, ao modelo no qual o poder estava concentrado na mão de um rei ou
uma rainha, dando-se início à centralização das decisões políticas, cujo berço foi a França. A
segunda onda se associa à Revolução Industrial, que se consolida no século XIX, afetando
significativamente o mundo do trabalho, na medida em que se dá a transição de métodos de
produção artesanais para a produção por máquinas. A terceira onda teria nascido após a
Segunda Guerra Mundial, que durou de 1939 a 1945, envolvendo a maioria das nações do
mundo e definindo novas políticas globais. Por fim, a quarta onda estaria associada à Quarta
1 Nego-me a dizer norte, porque é o sul que me guia. O norte, ao contrário, sempre me sufocou e apagou as
vozes do sul. É mais do que tempo de sulear a linguagem. 2 Embora a publicação original seja de 2018, neste artigo estou valendo-me da edição de 2019, conforme consta
nas referências bibliográficas. 3 Embora a publicação original seja de 2013, neste artigo estou valendo-me da edição de 2018, conforme consta
nas referências bibliográficas.
Revolução Industrial, expressão que engloba algumas tecnologias que permitem a
comunicação e a cooperação entre si e com os humanos em tempo real.
Mas antes mesmo do século XVIII, houve mulheres que souberam expressar-se,
rompendo fronteiras dos limites que nos foram impostos desde sempre. Uma dessas mulheres
é a poeta mexicana Juana Inés de la Cruz, para quem desvio o meu olhar no propósito de
homenagear outras tantas precursoras do feminismo.
1. Antes de tudo já havia poesia
Juana Inés de la Cruz, nascida no México em 1651, onde também morreu em 1695,
seria filha bastarda de um religioso com uma prostituta, o que a teria impedido de casar-se
com algum cristão. Desde muito cedo se interessou pelas humanidades, letras e teologia,
porém era afastada dessas áreas pelo simples fato de ser mulher. Diz-se que, em menina,
roubava livros do avô para ler e que, quando jovem, teria pedido à mãe que lhe permitisse
vestir-se de homem para frequentar a universidade.
Invenções ou realidade, a verdade é que Juana Inés está cercada de lendas que bem
poderiam ser reais no contexto em que viveu. Mas talvez a lenda mais recorrida seja o fato de
haver sido amante da vice-rainha, Marquesa de Mancera, o que a teria levado a sofrer muitas
perseguições no convento onde viveu grande parte de sua vida. O importante, no entanto, é
saber que Juana Inés teve voz e deixou muitos poemas que até hoje revelam suas dores, seus
anseios e seus amores.
Talvez quem melhor a tenha compreendido, seja Octavio Paz. Em Sor Juana Inés de
la Cruz ou As armadilhas da fé (2017, p.12), o autor mexicano se posiciona diante de dois
clássicos estudos feitos sobre a poeta (Diego Calleja e Ludwig Pfandl), afirmando que “o que
esses dois críticos leem é a transposição de sua vida. Uma vida santa para Calleja, um conflito
neurótico para Pfandl. A obra se transforma em hieróglifo da vida; na verdade, como obra, se
evapora”. E conclui, dizendo que “Sor Juana é uma individualidade poderosa e sua obra
possui inegável singularidade; ao mesmo tempo, a mulher e seus poemas, a freira e a
intelectual se inserem numa sociedade: a Nova Espanha do final do século XVII” (2017,
p.13).
Concordando com Octavio Paz, afirmo que é preciso que se leia a obra de Juana Inés
para além de sua vida e, sobretudo, de sua dura experiência, vivida num convento que,
certamente, limitou sua expressão. Aliás, como instituição, a Igreja também limitou o
feminismo no Brasil, como muito bem observa Hollanda (2019 p. 10), ao lembrar que durante
a ditadura militar brasileira (1964-1985) “era frequente que as iniciativas do movimento
feminista estivessem vinculadas ao Partido Comunista ou à Igreja Católica progressista,
instituição particularmente importante enquanto oposição ao regime militar”.
Portanto, houve uma ala progressista da Igreja que apoiou o movimento feminista,
embora mantivesse seus valores morais, o que explica a ausência de discussões sobre o aborto
naquele momento e até os dias de hoje em nosso país. Mesmo conservadora nas questões
morais, uma Igreja progressista sempre foi parceira de projetos políticos, mas não creio que
tenha sido essa a experiência de Juana Inés, já que ainda hoje, um Papa reconhecido como
progressista está longe do que pleiteiam muitas mulheres. Lembremos que em fevereiro de
2019, durante reuniões no Vaticano que discutiram o lugar da mulher na Igreja e outras
questões como pedofilia, foi possível testemunhar a posição progressista do Papa Francisco,
mas nem por isso ele deixou de emitir uma infeliz frase que repercutiu intensamente: “Todo
feminismo acaba sendo um machismo de saias”4.
Deixando em paz o Papa Francisco, volto à breve discussão sobre a poeta mexicana,
retomando o dito por Octavio Paz: não se pode esquecer a imprescindível relação entre obra,
poeta e sociedade. Afinal, Juana Inés disse o que disse porque foi o que lhe foi possível dizer,
tendo vivido num contexto histórico de grande repressão, não só para as mulheres, mas
sobretudo para elas. Aí reside seu grande valor, porque foi capaz de enfrentar agruras e deixar
registrada sua voz na poesia que hoje ainda lemos.
Encerremos essa breve digressão, citando três estrofes de um de seus poemas mais
conhecidos, Hombres necios5, onde se identifica, claramente, o posicionamento feminista de
Juana Inés:
Hombres necios que acusáis
a la mujer sin razón,
sin ver que sois la ocasión
de lo mismo que culpáis:
si con ansia sin igual
solicitáis su desdén,
¿por qué queréis que obren bien
si la incitáis al mal?
[…]
Siempre tan necios andáis
que, con desigual nivel,
a una culpáis por cruel
4 Extraído do Jornal El País, de 24/02/2019. Acesso em: 21 maio 2020.
https://brasil.elpais.com/brasil/2019/02/22/internacional/1550863494_623319.html 5 Retirado de: https://www.culturagenial.com/es/poemas-de-sor-juana-ines-de-la-cruz/. Acesso em: 05 fev. 2020.
y a otra por fácil culpáis.
Como se pode perceber, os “homens” a que se refere a poeta não são os seres humanos
em geral, o que poderia ser um uso de linguagem bem comum no seu contexto, já que ainda
hoje as mulheres tenhamos que conviver com essa categoria machista, sobretudo, em textos
acadêmicos. A poeta estava, de fato, referindo-se aos homens, ou seja, às pessoas do sexo
masculino, a quem acusa de estúpidos, néscios ou ignorantes ao chamar de cruéis as mulheres
que os rejeitam e de fáceis as que a eles se entregam.
Agradecendo às muitas mulheres que se manifestaram antes do movimento feminista
organizar-se em ondas, passo ao segundo item do artigo, onde reflito sobre algumas mulheres
da América Latina, entendida como território cultural. Segundo Figueiredo (2010), a primeira
pessoa a valer-se dessa categoria – América Latina – foi o chileno Francisco Bilbao, numa
conferência realizada em Paris, no ano de 1856, embora o termo tenha nascido um pouco
antes, também na França, durante o movimento conhecido como ‘panlatinismo’, idealizado
por Michel Chevalier (1806/1879), cuja pretensão era liderar as nações menos favorecidas que
também pertencessem à ‘raça Latina’.
2. Vozes latino-americanas nas ondas do feminismo
Para ser coerente com a escolha que fiz, ou seja, a de considerar que a primeira onda
do feminismo nasce no século XVIII, quando a América Latina não existia como a
conhecemos hoje, cogitarei que apenas a partir da segunda onda haverá representações de
mulheres que agiram e falaram por nós. Portanto, começo pelo período que Varela (2018)
toma como a segunda onda do feminismo, ou seja, entre o Sufragismo e Simone de Beauvoir,
afirmando, em consonância com a autora, que as vitórias da segunda onda foram
consequências das lutas das mulheres do século XVIII, cenário de avanços e retrocessos nos
nossos direitos, pois, diante do crescimento feminino, o poder masculino reagiu com força,
como se vê no excerto a seguir:
En 1793, las mujeres son excluidas de los derechos políticos recién
estrenados. En octubre se ordena que se disuelvan los clubes femeninos. No
pueden reunirse en la calle más de cinco mujeres. En noviembre es
guillotinada Olimpjia de Gouges6. Muchas mujeres son encarceladas. En
6 “Olympe de Gouges, pseudônimo de Marie Gouze, foi uma dramaturga, ativista política, feminista e
abolicionista francesa. Os escritos feministas de sua autoria alcançaram enorme audiência. Foi uma defensora da
1795, se prohíbe a las mujeres asistir a las asambleas políticas. Aquellas que
se habían significado políticamente, dio igual desde qué ideología, fueron
llevadas a la guillotina o al exilio. (VARELA, 2018, p. 41).
No entanto, são essas perdas que vão alimentar a luta pelo Sufragismo durante o
século XIX e início do século XX, ainda que as mulheres do século XVIII não tenham tido a
oportunidade de disfrutar os direitos pelos quais, algumas delas chegaram a dar sua vida.
Como se sabe, apesar de suas lutas, as mulheres só conquistaram o direito ao voto no século
XX, o que leva muitos estudiosos a considerar que a primeira onda do feminismo se dá na
virada entre o século XIX e XX, seguindo até os anos cinquenta. Mas como já ressaltado,
estou considerando que a primeira onda se deu entre os séculos XVIII e XIX, enquanto a
segunda, no princípio do século XX até os anos cinquenta. Nesse contexto, as três mulheres
latino-americanas que ganharam dimensão global foram Alfonsina Storni (1892-1938), Frida
Kahlo (1907-1954) e Violeta Parra (1917-1967).
2.1. Alfonsina Storni
Embora tenha nascido na Suíça, foi na Argentina que Alfonsina Storni cresceu, viveu
e morreu. Além de poeta, era professora, atriz e jornalista, nunca tendo se casado, o que já
revela um comportamento diferenciado para sua época. No entanto, foi mãe aos 19 anos,
tendo assumido sua condição de mãe solteira, o que não a impediu de ser reconhecida como
poeta por seus contemporâneos.
No meu ponto de vista, dois temas muito frequentes na sua obra poética são o mar e a
morte, que algumas vezes são coincidentes. É o caso, por exemplo, do último poema escrito
no dia em que se matou, afogando-se no mar.
democracia e dos direitos das mulheres”. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Olympe_de_Gouges.
Acesso em: 11 maio 2020.
Voy a dormir (1938)
Dientes de flores, cofia de rocío,
Manos de hierbas, tú, nodriza fina,
Tenme prestas las sábanas terrosas
Y el edredón de musgos escardados.
Voy a dormir, nodriza mía, acuéstame.
Ponme una lámpara a la cabecera;
Una constelación; la que te guste;
Todas son buenas; bájala un poquito.
Déjame sola: oyes romper los brotes...
Te acuna un pie celeste desde arriba
Y un pájaro te traza unos compases
Para que olvides...gracias. ah, un encargo:
Si él llama nuevamente por teléfono
Le dices que no insista, que he salido.
A eu lírica se assume em primeira pessoa, desde o título, anunciando que vai dormir.
Mas ainda na primeira estrofe, dormir se confunde com morrer, já que aparecem elementos
próprios ao ritual da morte, como flores, ervas, terras e musgos. Na segunda estrofe, surge a
interlocutora, uma nodriza, ou seja, alguém que a cuida e que a prepara para dormir. Por isso,
o abajur e a constelação; por isso, a luz da casa e a luz do céu. Essa interlocução se dá entre
duas pessoas que têm confiança entre si, mas há uma terceira pessoa, que surge na última
estrofe do soneto: él. Um ser masculino chamará outra vez por telefone e a nodriza terá que
pedir que él não insista, porque o yo saiu.
É bastante curioso pensar o contexto de produção do soneto, pois a eu lírica confunde,
intencionalmente, vida e morte, terra e céu. Mas quando se pensa que este foi o último poema
escrito por Alfonsina antes de afogar-se no mar, este elemento tão presente em muitas de suas
poesias não aparece, mas a morte sim, embora transmutada em sono. Mas a rica adjetivação
dos elementos corpóreos não deixa dúvida: os dentes são de flores; a touca de sereno; as mãos
de ervas. O corpo se transforma em natureza, alterado pelo processo de decomposição ou
metamorfose.
Muitos anos antes, no entanto, Alfonsina escreveu um de seus mais simbólicos
poemas, Yo en el fondo del mar, como a anteceder que ali, no mar, repousaria eternamente seu
corpo.
Yo en el fondo del mar (1934)
En el fondo del mar
Hay una casa
De cristal.
A una avenida
De madréporas,
Da.
Un gran pez de oro,
A las cinco,
Me viene a saludar.
Me trae
Un rojo ramo
De flores de coral.
Duermo en una cama
Un poco más azul
Que el mar.
Un pulpo me hace guiños
A través del cristal.
En el bosque verde
Que me circunda
Din don ... din don
Se balancean y cantan
Las sirenas
De nácar verdemar.
Y sobre mi cabeza
Arden, en el crepúsculo,
Las erizadas puntas del mar.
Aqui, os adjetivos trazem luz e alegria. Trazem vida. A casa é de cristal; a avenida de
madrepérolas; o peixe é de ouro; as flores são de coral. A eu lírica também dorme numa cama
um pouco mais azul que o mar. E não está sozinha, embora não seja a nodriza que a
acompanhe, mas as sereias e os polvos que brincam com ela, numa interação de alegria e bem
estar. Tudo isso se dá no fundo do mar, porque na superfície, as ondas são agitadas, bem
diferentes daquela alegria e daquela paz que só o fundo do mar tem. Curiosamente, portanto,
o mar é vida e alegria. Quem sabe por isso foi escolhido para ser o lugar da eternidade da
poeta. Esse episódio ficou guardado, poeticamente, na canção Alfonsina y el mar, de Ariel
Ramírez e Félix Luna, gravada pela primeira vez no álbum Mujeres Argentinas, de Mercedes
Sosa, em 1969.
Além de poemas que brincam e choram com a natureza, Alfonsina produziu poesias
que alfinetavam o patriarcado, sobretudo no que se refere às relações afetivas e os cuidados
com os filhos. Em Tú me quieres blanca, acusa o homem de buscar a pureza e a castidade na
mulher, ainda que, hipocritamente, queira seu corpo e seu calor. Fica impossível não lembrar
de Juana Inés. Vejamos parte do poema:
Tú me quieres blanca (1918)
Tú me quieres alba,
me quieres de espumas,
me quieres de nácar.
Que sea azucena
Sobre todas, casta.
De perfume tenue.
Corola cerrada.
Ni un rayo de luna
filtrado me haya.
Ni una margarita
se diga mi hermana.
Tú me quieres nívea,
tú me quieres blanca,
tú me quieres alba.
Tú que hubiste todas
las copas a mano,
de frutos y mieles
los labios morados.
Tú que en el banquete
cubierto de pámpanos
dejaste las carnes
festejando a Baco.
Tú que en los jardines
negros del Engaño
vestido de rojo
corriste al Estrago.
Tú que el esqueleto
conservas intacto no sé todavía
por cuáles milagros,
me pretendes blanca
(Dios te lo perdone),
me pretendes casta
(Dios te lo perdone),
¡me pretendes alba!
Há um jogo de oposição muito bem marcado nas palavras. Para ela abundam adjetivos
e substantivos que cabem na pureza: alba, de nácar, açucena, casta, nívea, branca. Se há
perfume, que seja tênue. Se é flor, que não seja margarida. Para ele, no entanto, as cores e os
sabores são fortes. Eles podem desfrutar de prazeres, podem frequentar os jardins de luxúria,
embriagando-se e saboreando lábios roxos. Que Deus te perdoe, diz a eu lírica, que Deus não
perceba tua hipocrisia.
Lembremos que é na segunda onda do feminismo que cresce a consciência do
movimento de maneira mais coletiva, quando as principais reivindicações tinham sido
concretizadas, em especial o direito ao voto e o acesso à universidade. Esse segundo aspecto,
evidentemente, ainda muito reservado às classes mais abastadas, pois o feminismo ainda era
branco e burguês. Talvez por isso Alfonsina possa ter podido frequentar bares e bibliotecas
com homens de sua geração e ver reconhecida por eles a qualidade de sua poesia. Não se pode
esquecer também que Alfonsina nasceu na Europa, afastando-se, portanto, de qualquer traço
físico que a aproximasse das origens latino-americanas, o que não ocorrerá com Frida kahlo
(1907-1954) e nem com Violeta Parra (1917-1967), ainda que as duas tenham conseguido
alçar voos através de suas artes.
2.2 Frida Kahlo
A pintura de Frida Kahlo revela a mulher que habitava o seu corpo. Ela e Diego
Rivera, marido e companheiro de toda uma vida, se manifestaram a partir de recortes e
pinceladas muito diferentes, ainda que tivessem vivido o mesmo momento histórico e
tivessem a mesma ideologia política.
Magdalena Carmen Frida Kahlo y Calderón nasceu em 06 de julho de 1907, na cidade
mexicana de Coyacán, onde também morreu, aos 47 anos, em 13 de julho de 1954. Sua vida
adulta se deu num cenário político de muita relevância para a história de seu país e da
América Latina, assim como foram momentos inquietos para o século XX, que mergulhava
em conflitos que terminariam em duas guerras mundiais (1914 a 1918 / 1939 a 1945). No
início do século passado, seu país natal fez a sua Revolução, cujo marco histórico se deu entre
20 de novembro de 1910 a 01 de junho de 1920. Para muitos intelectuais esse teria sido o fato
histórico que permitiu o nascimento do Continente Latino-americano como o entendemos
hoje. Diego Rivera, marido e espelho de sua formação política, nasceu em 08 de dezembro de
1886, tendo participado, portanto, do movimento revolucionário já como adulto. Sua obra não
pode ser separada de sua afiliação política, conforme comprova sua produção maior, ainda
que Rivera tenha pintado telas paisagísticas e étnicas.
Frida é, dessa forma, fruto de um ambiente revolucionário e bélico, tendo frequentado,
quando menina, as escolas que seguiam as doutrinas de José Vasconcelos, filósofo e Ministro
da Educação do governo do Presidente Obregón, que sobe ao poder em 1920. É nesse ano que
se consolida a Revolução Mexicana, momento em que se institui um programa nacional de
educação e se concebe o Muralismo como movimento de arte nacional. Dessa forma, o
México, liderado por homens democráticos e revolucionários (mas homens), entra na
Modernidade e leva consigo a América Latina.
Muito mais haveria que se falar desse ambiente cultural e político que atravessa a vida
de Frida, mas me centro na tentativa de provocar alguma reflexão sobre a relevância de sua
arte no que ela permita visualizar a representação da categoria de gênero. A oferta de
possibilidades para o meu recorte é imensa, na medida em que, majoritariamente, as telas de
Frida empreendem marcas da mulher que habitou o seu corpo, seja nos autorretratos ou na
representação das tragédias que viveu: o acidente, os abortos e, em palavras suas, o casamento
com Diego Rivera7.
Cabe a mim, assim como cabe a cada professor que queira levar a produção da artista
para uma aula, definir que tela ou que telas servem àquela discussão que se está propondo.
Esse também é o nosso papel, ou seja, ter a autonomia de escolher determinados textos que
sejam relevantes e apropriados aos interesses e aos objetivos de uma interação de
aprendizagem. Tomada pelos limites dessa discussão, escolho apenas uma tela, Autorretrato
de pelona8, onde Frida se representa como a mulher que foi possível ser no ambiente em que
viveu.
7 Muitas frases de Frida Kahlo estão disponíveis em diversos sites na Internet, conforme esta que retirei de
https://www.pensador.com/frase/NjIyNzA1/: “Diego, houve dois grandes acidentes na minha vida: o bonde e
você. Você sem dúvida foi o pior deles”. Acesso em: 04 jun. 2020. 8 Disponível em: https://www.elcuadrodeldia.com/post/140143895658/frida-kahlo-autorretrato-de-pelona-1940-
%C3%B3leo. Acesso em: 04 jun. 2020.
A tela em questão foi pintada em 1940 e se encontra exposto no Museu de Arte
Moderna (MOMA), na cidade de Nova York. Esse autorretrato foi pintado num momento de
fúria, provocada pelo divórcio com Diego Rivera, que estava tendo um caso extraconjugal
com a irmã dela. A vida e a obra se unem de maneira irreparável, já que se representa na arte
o que possivelmente não se pode dizer ao vivo ou, o que é melhor, o que se preferiu dizer em
público, rompendo-se as barreiras com o privado, espaço reservado às mulheres recatadas e
do lar.
Os versos que se leem no quadro são de uma canção mexicana e teriam sido dedicados
ao ex-marido, que admirava sua cabeleira, sua madeixa, esse importante elemento de fetiche e
controle masculino sobre a aparência das mulheres: “Mira que si te quise, fue por el pelo.
Ahora que estás pelona, ya no te quiero”. Ademais, Frida se autorretrata vestindo um terno
que talvez fosse de Diego, abandonando a vestimenta tehuana9, tão frequente em sua
indumentária e que tanto agradava a seu marido.
Diz Marga Fernández-Villaverde (2016, s/p) que “La artista ha matado a “la esposa de
Diego Rivera” para convertirse en una mujer independiente, de mirada desafiante, que está
dispuesta a reclamar su lugar en una sociedad dominada todavía por los hombres”10
. No chão
se veem cabelos cortados que têm vida própria, assim como se vê sua trança, ao lado esquerdo
da cadeira amarela. Nas mãos, a tesoura seria a arma homicida, enquanto a vítima seria sua
madeixa, esquartejada a sangue frio.
A necessidade de sobrevivência e a artimanha feminina nos mostram as armas com as
quais podemos lutar contra o desrespeito e o desafeto. Frida Kahlo se valeu de muitas armas,
porque precisou se manifestar esteticamente num mundo masculino, no qual as mulheres são
mais objetos do que sujeitos, na medida em que foram e são modelos para nus artísticos, que
até podem ter sido artes incríveis e maravilhosas, como as produzidas por artistas homens,
conforme é o caso de Venus al Espejo (1647-1651), de Velázquez, ou La Maja Desnuda
(1790-1800), de Goya.
Frida não se casou com Diego porque teria sido uma de suas modelos. Estas serviram
ao trabalho e ao machismo dele. O troco que Frida lhe deu, e não apenas na cena da tela em
análise, pode ter servido para que ele também repensasse sua atitude de macho alfa. Quem
sabe terá morrido mais sábio, porque terá aprendido com sua mulher que nosso corpo nos
pertence.
9 Trata-se de um traje regional mexicano, bastante conhecido e admirado no mundo e que corresponde às
mulheres da etnia Zapoteca, que viviam no Istmo de Tehuantepec. 10
Retirado de http://www.elcuadrodeldia.com/post/140143895658/frida-kahlo-autorretrato-de-pelona-1940-
%C3%B3leo. Acesso em: 08 maio 2018.
Aliás, a história mostrou que ela se fez mais presente do que ele, pelo menos no
mundo pop, como confirmam as imagens abaixo.
Desde os anos de 1980, Frida tem sido referência para movimentos em prol dos
direitos de gêneros dissidentes, embora também seja recorrentemente convidada a fazer parte
do jogo comercial, comprovando-se que sua imagem pega, agrada e provoca impacto. A partir
do grande sucesso obtido no filme Frida11
(2002), estrelado pela atriz Salma Hayek, é fácil
encontrá-la em propagandas comerciais, como a da Calvin Klein12
, que se valeu de sua
imagem para vender cuecas, assim como da Mattel, que acaba de criar uma nova Barbie13
a
partir da imagem de Frida. Observe-se que tanto o filme como as duas empresas comerciais
são estadunidenses, modelo de sociedade que se afasta em muito dos valores ideológicos
seguidos por Frida. Mas afinal a arte não tem dono e parece que o capitalismo compra até as
memórias.
2.3. Violeta Parra
Talvez Volver a los 17 (1962) e Gracias a la vida (1966) sejam as canções mais
populares de Violeta Parra, mas não serão estas as escolhidas neste recorte. E a razão é muito
simples: prefiro trazer a mulher que bradou contra a injustiça social, presenciada naquele
Chile que lhe coube viver, transformando-se em uma espécie de precursora da terceira onda.
Violeta del Carmen Parra Sandoval nasceu no dia 4 de outubro de 1917, num povoado
chileno (São Carlos), tendo morrido em Santiago, aos 49 anos, no dia 5 de fevereiro de 1967,
como consequência de um suicídio. Além de autora, cantora e compiladora, foi pintora,
escultora, bordadeira, ceramista. É considerada uma das mais importantes vozes do Chile,
tendo sido uma das fundadoras da Nueva Canción Chilena, movimento musical fortemente
comprometido com a luta política pelos direitos humanos, no qual se destacaram artistas
11
Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Frida#/media/Ficheiro:Frida_(filme).jpg. Acesso em: 04 jun.
2020. 12
Disponível em: https://www.pinterest.com/pin/399342691930825432/. Acesso em: 04 jun. 2020. 13
Disponível em: https://br.pinterest.com/pin/602215781398540591/. Acesso em: 04 jun. 2020.
como Quilapayún, Inti Illimani e Victor Jara, influenciando a produção musical latino-
americana naquele momento.
Era filha de um professor de música e uma mulher do campo, que costurava para
cooperar no sustento da numerosa família. Esse ambiente familiar será responsável pela
orientação de Violeta no que tange à sua produção estética, vivida ao lado de seus irmãos,
dentre os quais, o conhecido poeta Nicanor Parra (1914-2018), que a orienta na definição de
sua escolha pelo folclore chileno. Viveu dois casamentos, teve quatro filhos, entre os quais
Ángel e Isabel Parra, artistas ainda atuantes no cancioneiro chileno.
Embora haja uma diferença de apenas dez anos entre Violeta Parra e Frida Kahlo, cada
uma dessas mulheres deixou um legado particular, o que se explica, entre outras questões,
pelo ambiente familiar e nacional no qual viveram. Violeta vai levantar a bandeira dos
camponeses, motivada por sua origem e pela filiação política, que coincidia com a de Frida
Kahlo. No entanto, a pintora mexicana optou por representar em sua arte seu mundo mais
privado, priorizando autorretratos ou retratos com Diego Rivera, enquanto as canções de
Violeta, grosso modo, retratam o universo camponês e da opressão aos trabalhadores. Por
isso, a canção que seleciono para esta discussão é La Carta, símbolo do engajamento político
e ideológico de sua produção estética.
Entre 1961 e 1965, Violeta Parra viveu na Europa, entre a Suíça e a França, tendo
sido a primeira artista latino-americana a expor no Louvre, com uma exposição intitulada
Tapices de Violeta Parra. A saída para a Europa lhe dá novas dimensões políticas, mas não se
desliga do que ocorria no Chile, então governado por Jorge Alessandri (1896-1986). Durante
uma apresentação em Havana/Cuba, Víctor Jara (1932-1973), o grande herdeiro da tradição
de Violeta Parra, ao explicar ao público presente o contexto no qual a poeta havia escrito a
canção que tocaria, disse:
Mientras ella estaba allá – en París – en Chile la cosa se movía bastante, así
como el agua en una batea. Estaba bien movida. Y, teníamos un gobierno en
el año 63, de derecha por supuesto. Y el presidente de turno, se llamaba don
Jorge Alessandri, hijo de don Arturo Alessandri, un hombre que está en la
historia de nuestro país por ser un tipo con un fuego interior tremendo,
potente. Rugía hacia las masas. Le decían el ‘León de Tarapacá’. ‘León’
porque se las traía como orador. De Tarapacá, bueno, yo creo que sería
porque la provincia de Tarapacá le pertenecía casi entera a él.
El hijo, don Jorge, quiso rugir fuerte, pero no tenía el fuego del padre, y sacó
las garras, creando un cuerpo represivo policial como nunca antes el pueblo
y los estudiantes lo habían conocido en Chile. En este ambiente, Violeta
escribe esta canción que se llama La Carta.14
Violeta havia recebido uma carta pelo correio, meio de comunicação hegemônico
naquele contexto histórico, na qual fica sabendo que seu irmão, Roberto, havia sido preso por
participar de uma manifestação de greve. Diz uma das estrofes:
La carta dice el motivo
Que ha cometido Roberto
Haber apoyado el paro
Que ya se había resuelto
Si acaso esto es un motivo
Presa también voy sargento, si
E provoca as autoridades, cantando:
Yo que me encuentro tan lejos
Esperando una noticia
Me viene decir la carta
Que en mi patria no hay justicia
Los hambrientos piden pan
Plomo les da la milicia, si
E segue com suas denúncias provocativas e irônicas sobre a elite que governa o seu
país:
De esta manera pomposa
Quieren conservar su asiento
Los de abanicos y de frac
Sin tener merecimiento
Van y vienen de la iglesia
Y olvidan los mandamientos, si
E consciente do poder que o movimento musical já ganhara, encerra seu poema-
canção, dizendo:
La carta que he recibido
Me pide contestación
Yo pido que se propague
Por toda la población
Que el león es un sanguinario
En toda la generación, si
Por suerte tengo guitarra
14
Publicado no jornal The Clinic Online do dia 4 de outubro de 2014 e disponível em:
http://www.theclinic.cl/2014/10/04/a-47-anos-de-su-muerte-las-7-canciones-mas-politicas-de-violeta-parra.
Acesso em: 09 maio 2018.
Para llorar mi dolor
También tengo nueve hermanos
Fuera del que se engrilló
Los nueve son comunistas
Con el favor de mí Dios, si
Veja-se que a denúncia se faz de forma simples e direta, característica da poética de
Violeta Parra. Ela escreveu e cantou para os camponeses chilenos, fazendo de sua arte a sua
militância.
Nesse mesmo contexto, Violeta escreveu outras duas canções que são cartas, sendo
uma endereçada aos estudantes (Me gustan los Estudiantes) e outra ao Papa (Qué dirá el
santo padre), quando denuncia o assassinato de Julián Grimau15
, importante político
espanhol, assassinado em 1963 pela ditadura de Francisco Franco, que durou de 1939 a 1975.
Vejamos uma estrofe e o estribilho da canção:
Miren como nos hablan del paraíso
Cuando nos llueven balas como granizo
Miren en el entusiasmo, por la sentencia
Sabiendo que mataban ya la inocencia
¿Qué dirá el Santo Padre?
Que vive en Roma
Que le están degollando
A su paloma.
Ao seu estilo, Violeta convoca a atenção do Sumo Pontífice, valendo-se de uma
metáfora poética, la paloma, tão recorrente na poesia de Federico García Lorca (Espanha,
1898-1936), poeta andaluz, também assinado pelo mesmo ditador espanhol, em 1936.
Essa é a Violeta Parra, com quem aprendemos a ser simples, diretos e comprometidos
com as pessoas vulnerabilizadas pelos poderes das elites econômicas e políticas. Sua
contribuição para o feminismo é, portanto, essencial, na medida em que fala a partir de uma
América Latina que se ocultaria nas trevas das ditaduras da pós-modernidade. Nascia a
terceira onda do feminismo, nos idos dos anos sessenta, quando, Betty Friedan lançava a
Mística Feminina em 1963, publicação que mobilizará mulheres de muitos países, da mesma
15
Julián Grimau García (Madrid/Espanha, 18 de fevereiro de 1911 - 20 de abril de 1963) foi um político
comunista espanhol, condenado à morte e executado pela ditadura franquista, acusado de crimes cometidos
durante a Guerra Civil Espanhola, na condição de membro dos serviços policiais e chefe da Brigada de
Investigação Criminal. A oposição à ditadura, tanto no interior como no exterior, questionou a validade de
provas apresentadas pelo juízo e denunciou as torturas às que foi submetido durante sua detenção. (Traduzido e
adaptado de: https://es.wikipedia.org/wiki/Juli%C3%A1n_Grimau. Acesso em: 09 maio 2018).
forma que ocorreu anos anteriores com Simone de Beauvoir, com seu Segundo Sexo,
publicado em 1949.
Ainda que a terceira onda tenha nascido nos anos sessenta, na América Latina ela só se
consolidou nos anos oitenta, quando começam a ter fim as ditaduras militares. No Brasil,
particularmente, não poderia ter sido diferente, como nos lembra Hollanda (2019c, p. 10):
Enquanto o feminismo daquela hora na Europa e nos Estados Unidos se
alimentava das utopias e dos sonhos de liberdade e transformação da década
de 1960, no Brasil a esquerda, incluindo-se aí as mulheres militantes, se
manifestava numa frente ampla de oposição ao regime.
Coincidindo com o fim da ditadura (1985), um texto feminino ganhou repercussão
internacional, sacudindo o movimento, inclusive em nosso país. Refiro-me ao livro publicado
por Gayatri Spivak, em 1983, quando a pergunta Pode o subalterno falar? sacudiu todas nós,
nos alertando “para o perigo de se constituir o outro e o subalterno apenas como objetos de
conhecimento por parte de intelectuais que almejam meramente falar pelo outro”, como
esclarece Sandra Goulart no prefácio da tradução brasileira. (SPIVAK, 2014, p. 14)
Nesse mesmo contexto, os cursos de Pós-graduação ganham espaço, oportunizando a
produção de muitas pesquisas que dariam tom ao feminismo acadêmico que marcou parte da
terceira onda do feminismo. Assim como no Brasil, surgem muitas vozes por diferentes países
de nossa América, diversificando nossas discussões e lugares de fala. Era a vez das mulheres
brancas ouvirem mulheres indígenas e negras que viriam nos falar de Interseccionalidade.
Reconhecia-se, por fim, que as mulheres são diferentes e que haverá muita diferença entre o
que significa ser uma mulher branca, uma mulher negra ou uma mulher indígena. No intuito
de compreender e refletir sobre essa questão, convido duas mulheres importantes de nossa
América Latina: Silvia Rivera Cusicanqui e Shirley Campbel Barr.
2.4. Silvia Rivera Cusicanqui
Faz pouco tempo que a intelectualidade brasileira começou a desviar seu olhar do
Norte para, finalmente, se dar conta de que aqui também se fala e se faz pesquisa. Refiro-me
ao projeto de Decolonialidade Epistemólogica, como se está dando em importantes
universidades latino-americanas, em detrimento da subserviência intelectual ainda corrente
em muitos Programas de Pós-graduação em nosso país. Silvia Rivera Cusicanqui seria uma
dessas intelectuais, que nos estão mostrando que podemos e devemos falar de nós mesmos, os
do Sul, sem a interferência ou o domínio das vozes do Norte. Sul e Norte para mim estão
sendo entendidos como referências simbólicas do poder de fala, não apenas na perspectiva
continental, mas de gênero e étnicas.
Cusicanqui, que nasceu em 1949, na cidade de La Paz, Bolívia, é uma socióloga
aimará, que pesquisa sobre a teoria anarquista e sobre as cosmologias quéchua e aymara. Em
1983, fundou com outros intelectuais o Taller de Historia Oral Andina (THOA), que
desenvolve temas de oralidade, identidade e movimentos sociais indígenas e populares
aimará. Atualmente, dirige o Colectivo Ch'ixi, além de ser uma importante ativista,
trabalhando diretamente com os movimentos tupacatarista16
e cocaleros17
.
Na obra Ch’ixinakax utxiwa: una reflexión sobre prácticas y discursos
descolonizadores (2010, p. 27), a socióloga afirma que “Hay en el colonialismo una función
muy peculiar para las palabras: ellas no designan, sino que encubren.” E ressalta que “En
lengua aymara y qhichwa no existen palabras como opresión o explotación. Ambas ideas se
resumen en la noción (aymara) de “jisk’achasiña” o “jisk’achaña”: empequeñecimiento, que
se asocia a la condición humillante de la servidumbre”.
Esse posicionamento da autora revela sua preocupação com a escrita e a leitura,
promovendo a construção de uma epistemologia indígena e resgatando o direito de fala
daqueles povos, silenciados ou encobertos pelos dizeres dos colonizadores. “Los discursos
públicos se convirtieron en formas de no decir”, denuncia a ativista aimará, pois criam
“modos retóricos de comunicarnos, dobles sentidos, sentidos tácitos, convenciones del habla
que esconden una serie de sobreentendidos y que orientan las prácticas, pero que a la vez
divorcian a la acción de la palabra pública” (2010, p. 20).
É sobre essa questão que a autora se expressa num pequeno vídeo, disponível na
Internet18
, quando fala de gênero e diversidade, comparando a forma como a tradição indígena
entende essa questão e a maneira como se impôs o modelo espanhol, marcadamente cristão.
Cusicanqui retoma a visão indígena sobre o papel das diversidades, sugerindo que se
16
Movimento inspirado em Túpac Katari, ou Julián Apaza Nina (1750-1781), herói da independência do
domínio espanhol. 17
Em 1987 uma linha de esquerda da Falange Socialista Boliviana, seguidora de David Añez Pedraza forma o
partido Movimiento al Socialismo-Unzaguista (MAS-U). El MAS-U pretendeu dar coerência às reivindicações
dos cocaleros, cultivadores da planta sagrada nas culturas andinas, numa estratégia centrada na oposição aos
governos desse período, mas na medida em que esses governos foram se fazendo mais permeáveis às exigências
indígenas, suas teses foram dando lugar à sua atual doutrina de esquerda, também chamado “capitalismo de
estado andino. As notas 11 e 12 foram traduzidas e adaptadas de:
https://es.wikipedia.org/wiki/Silvia_Rivera_Cusicanqui. Acesso em: 10 maio 2018. 18
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=c-eytSCY2rU. Acesso em: 10 maio 2018.
recuperem aqueles saberes. Inicia sua exposição, ressaltando que sempre desconfia das visões
dualistas, e que o homem e a mulher não esgotam todas as possibilidades de gênero.
Segundo a autora, as sociedades andinas têm uma ampla variedade de percepção que
não limita os gêneros em dois, observando que ela própria, pela idade que tem (66 no
momento da gravação do vídeo) e pelo que já fez em termos de trabalho, pode estar sozinha e
atuar em papéis intercambiáveis. O mesmo acontece com uma criança, que não é homem e
nem mulher, pois está passando por um processo de diferenciação que se dá em várias etapas.
Continua Cusicanqui, contando-nos que, ao chegarem, os espanhóis acharam que todos os
índios eram sodomitas (e diz isso com certo sorriso irônico), já que havia práticas sagradas de
sexualidade que contradiziam a crença católica seguida pelos conquistadores, que as
interpretaram como práticas sexuais anormais, ou seja, fora da naturalidade dada por Deus.
A autora também se refere ao fato das deficiências físicas serem reconhecidas nas
culturas tradicionais indígenas como marcas do sagrado, quando na visão trazida pelos
europeus, essa compreensão é justamente contrária, o que explica o preconceito que se tem
até hoje com relação aos cegos, aos mudos, aos coxos. Portanto, essa possibilidade de
conexão com o sagrado estava fincada nas pessoas diferentes, o que é muito positivo na visão
de Cusicanqui porque, em lugar de se trabalhar por uma possível normalização desses
diferentes, considerando-os doentes, eles são vistos como poderosos. A autora encerra sua
exposição, dizendo que, apesar dos séculos de colonialismo, há muita coisa a ser
reinterpretada e resgatada em termos de gênero e diversidade. Para ela, ainda é possível
desenterrar muitas verdades que foram escondidas, pois acredita na liberdade humana para
criar formas de identidades fluidas, ou seja, identidades que abandonem essas heranças rígidas
e estáticas.
Estou de acordo com a autora e observo que teríamos nos desgastado menos, teríamos
presenciado menos violência de gênero, caso os saberes aimará tivessem sido seguidos, em
lugar dos valores cristãos ocidentais herdados dos ibéricos. Afinal, na terceira onda do
feminismo,
Se conceptualiza y analiza el patriarcado, se modifican las leyes y las
condiciones de vida de algunas mujeres en algunas partes del mundo, pero
podríamos resumir que en realidad lo que se consigue – donde se consigue –
es la igualdad formal, no la igualdad real. Así pues, correspondería a la
cuarta ola, siguiendo esta dinámica, alcanzar la igualdad real. (VARELA,
2019, s/p)
Essa igualdade real ainda não foi conseguida, mas continua sendo a mola que nos
impulsiona; a tal utopia de que falava Hollanda (2019a, p.248). Assim como ela,
Percebo que hoje, para uma feminista branca, é antes de mais nada
importante promover um tipo de escuta na qual, sem abrir mão de seu
próprio “lugar de fala”, sejam possíveis formas inovadoras de empatia e de
troca que gerem novas perspectivas de reflexo e ação. A formulação de
Hannah Arendt, quando afirma que “sem diálogo não há política”, volta
agora como uma referência forte no meu posicionamento diante do que estou
chamando aqui de feminismos da diferença.
2.5. Shirley Campbel Barr
Shirley Campbell Barr é uma mulher negra, antropóloga, escritora, nascida na Costa
Rica em 1965, o que me leva a afirmar que seu posicionamento está na interseção entre a
terceira e quarta ondas. Assim como Cusicanqui, Shirley é uma ativista e trabalha em
movimentos afrodescendentes na América Latina, proferindo conferências, oferecendo
oficinas de criação artística, promovendo leituras públicas de seus poemas e contribuindo,
consequentemente, para a mobilização e conscientização de comunidades afrodescendentes.
A poeta costarriquense entende que a arte é compromisso social e político, com o que
estou plenamente de acordo, embora eu tenha a consciência de que essa tomada de posição
nem sempre é acompanhada pelos críticos de arte. Em entrevista cedida a Afroféminas19
,
afirma que escreve porque pode escrever e também porque acredita que tem um compromisso
e uma responsabilidade. Com isso, está nos dizendo que tem consciência de sua força, de sua
capacidade e de sua militância. Shirley e sua família nunca pertenceram à classe pobre da
Costa Rita e tiveram uma educação que lhes deu essa consciência e essa força.
Em 2018, sua irmã, Epsy Campbell Bar, foi eleita vice-presidente da Costa Rica,
sendo a primeira mulher negra a ocupar esse espaço público em toda América Latina. Assim
como sua irmã, Epsy é militante das causas de gênero e de raça, sendo, entre outras coisas, a
fundadora do Centro de Mulheres Afro-Costarriquenses e membro do Parlamento Negro do
Fórum das Américas.
Para os que não sabem, permitam-me dizer que a Costa Rica é um dos países
democráticos mais consolidados da América Latina, sendo o único entre nós a fazer parte da
lista das 22 democracias mais antigas do mundo. Não passou por governos autoritários, não
vivenciou golpes de Estado e guerras civis, pois aboliu seu exército nacional desde 1948. Essa
19
Disponível em: https://afrofeminas.com/2014/04/15/entrevista-a-shirley-campbell-barr/. Acesso em: 11 maio
2018.
decisão permitiu
que o país vivesse uma estabilidade política que teve consequências
positivas, tanto no setor econômico, como no social. O dinheiro economizado pela
inexistência de despesas militares é direcionado em sua maioria para o investimento em
educação e saúde, possuindo um índice de 96% de sua população alfabetizada e uma
expectativa de vida é de 78 anos20
.
Mesmo com esse cenário, que me causa inveja, se fizeram necessárias a arte e a
militância em prol das questões de mulheres afrodescendentes. De qualquer forma, se
comparamos o contexto histórico e as condições sociopolíticas da Costa Rica, da Bolívia, do
Chile e do México, cada um no momento que privilegiei, entenderemos perfeitamente a
consciência de Shirley Campbell ao afirmar que escreve porque pode escrever. Eu também
posso escrever e por isso estou aqui. Minha filha também pode, mas minha mãe não pôde.
Ainda que não possamos comparar o Brasil à Costa Rica, também já avançamos um pouco. E
avançaremos muito mais, se eliminarmos os valores e as atitudes fascistas que se espalham
pelo mundo.
Mas falemos da poesia de Shirley, porque, como disse Neruda, “Se nada nos salva de
la muerte, que al menos el amor nos salve de la vida”21
. Sem medo de cair no lugar comum,
começo com o poema mais popular da poeta costarriquense: Rotundamente negra. E o faço,
porque acompanho os argumentos da própria autora: “A mí gusta creer que “Rotundamente
negra”, es un poema de amor para nosotras mujeres negras y las mujeres lo han hecho suyo a
partir de la necesidad que tenemos de recuperar esa pasión por nosotras mismas”22
. Vejamos
o poema:
Me niego rotundamente
a negar mi voz
mi sangre y mi piel
y me niego rotundamente
a dejar de ser yo
a dejar de sentirme bien
cuando miro mi rostro en el espejo
con mi boca
rotundamente grande
y mi nariz
rotundamente hermosa
y mis dientes
rotundamente blancos
20
Traduzido e adaptado de: https://es.wikipedia.org/wiki/Costa_Rica. Acesso em: 12 maio 2018. 21
Disponível em: https://www.chicagotribune.com/hoy/ct-hoy-8367597-frases-de-pablo-neruda-story.html.
Acesso em: 10 jun. 2020. 22
Disponível em: https://afrofeminas.com/2014/04/15/entrevista-a-shirley-campbell-barr/. Acesso em: 11 maio
2018.
y mi piel
valientemente negra.
Y me niego categóricamente
a dejar de hablar
mi lengua, mi acento y mi historia
y me niego absolutamente
a ser de los que se callan
de los que temen
de los que lloran
porque
me acepto
rotundamente libre
rotundamente negra
rotundamente hermosa.
O poema não apresenta dificuldades para a compreensão dos sentidos expressados e
nem para a identificação do lugar de fala e do posicionamento ideológico da eu lírica. Quem
fala é uma mulher negra que reconhece a beleza de sua boca grande, de seu nariz, de seus
dentes brancos e de sua pele negra. Ademais, a eu lírica se nega a negar sua língua e sua
história; se nega a chorar ou a ter medo, porque se aceita como é; se aceita livre, se aceita
negra, se reconhece bonita. Os advérbios que se repetem e os adjetivos de carga positiva são
responsáveis pela força com que os sentidos chegam aos nossos ouvidos. A eu lírica se nega
radicalmente a negar sua voz, seu sangue e sua pele; se nega radicalmente a não se sentir bem
quando se vê no espelho, porque se encontra valentemente negra. E se nega categoricamente a
falar de outra maneira que não seja a de sua gente e de sua história; se nega absolutamente a
silenciar-se e a ter medo ou a chorar.
Fica fácil entender porque esse poema se transformou numa espécie de mantra que
leva as mulheres negras que o escutam a se mobilizarem e a multiplicá-lo, porque o corpo da
mulher negra – sua cor, seus cabelos, seu nariz, sua boca – foi visto historicamente como feio,
como diferente, como defeituoso, necessitando, portanto, ser ‘corrigido’. O que a poeta terá
aprendido com sua mãe está projetando para sua filha, para quem escreveu outro poema,
também muito simbólico.
El cabello de Illari23
[…]
Yo voy a enseñarte, hija mía, así como un día aprendí de mi madre y ella de su abuela y su
abuela de otra madre, a construir caminos y perfectas veredas en tu cabeza.
23
Retirado de: https://anidabar.wordpress.com/2012/10/17/el-cabello-de-illari-shirley-campbell-barr/. Acesso
em: 10 jun. 2020.
Te voy a enseñar, hija de mis entrañas, a diseñar obras de arte, a delinear imágenes y tejer un
mundo brillante y lleno de colores en las trenzas de tu cabeza. Y un día, cuando aprendas a
peinar tu propio cabello y los cabellos de tus hijas, vamos a construir un nuevo mapa.
Construiremos un mundo nuevo en tu cabeza que les permita a todas las niñas negras como tú
llevar con orgullo la hermosura de nuestros cabellos.
Yo te prometo hoy, mi pequeña, que tus peinados y los peinados de tus hijas asombrarán al
mundo, y tu figura monumental no tendrá entonces que usar más disfraces para brillar.
É muito fácil encontrar vídeos na Internet com apresentações de poema de Shirley,
seja por ela mesma ou por meninas negras de diferentes países da América Latina. A internet
a popularizou, possibilitando que em diferentes lugares possamos ouvi-la e aprender com ela.
Vale ressaltar que essas práticas poéticas são recorrentes na quarta onda do feminismo, e
mesmo nos movimentos afrodescendentes, que promovem Saraus e Slams. A internet tem
esse poder e não será por outra razão que as atuais feministas se valem dela, assim como das
ruas, para se manifestarem, constituindo-se numa nova forma de ativismo, que está dando
cara à quarta onda do feminismo. O Chile e a Argentina, mais particularmente, tem
comprovado a força do movimento das ruas, conforme veremos adiante.
2.6 As mina da vez
Posso imaginar como será difícil para a atual juventude feminista acreditar que no dia
7 de setembro de 1968, em Atlantic City, no Atlantic City Convention Hall, cerca 400
ativistas do WLM (Women’s Liberation Movement) protestaram contra a realização do
concurso de Miss América, num episódio que ficou conhecido como Bra-Burning, ou A
Queima dos Sutiãs.
Na verdade, não houve queima no sentido literal, mas a atitude daquelas jovens de
minha geração foi incendiária. Em 1968, o Brasil estava de pés e mãos atadas, assim como de
boca e olhos vendados, já que foi naquele ano que se assinou o AI-524
. Em lugar de queimar
sutiãs, nos sentamos diante da TV para aplaudir a beleza de Martha Vasconcellos, a Miss
24
“O AI-5, o mais duro de todos os Atos Institucionais, foi emitido pelo presidente Artur da Costa e Silva em 13
de dezembro de 1968. Isso resultou na perda de mandatos de parlamentares contrários aos militares, intervenções
ordenadas pelo presidente nos municípios e estados e também na suspensão de quaisquer garantias
constitucionais que eventualmente resultaram na institucionalização da tortura, comumente usada como
instrumento pelo Estado”.
Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Ato_Institucional_n.%C2%BA_5. Acesso em: 10 jun. 2020.
Brasil de 1968: uma baiana de olhos verdes, com 1,75 m, 59 cm de cintura, 93 cm de busto,
93 cm de quadris, 55 cm de coxa e 21 cm de tornozelos.25
1968 foi também o ano do penúltimo Festival de Música Popular Brasileira,
promovido pela então TV Record e realizado em São Paulo. Naquele ano, o 1º. lugar do Júri
Especial foi outorgado a Tom Zé, com a canção São, São Paulo Meu Amor, e pelo Júri
Popular a Chico Buarque, com a canção Benvinda. Minha geração, portanto, trocava de canal
para assistir o Concurso de Miss Brasil ou ouvir as canções de protesto nos festivais da
Record. O AI-5 encerrou os festivais em 1969, mas os concursos de Miss Brasil se mantêm
até os nossos dias, valorizando-se o corpo da mulher como objeto de consumo.
De 1968 a 2018 há uma diferença de 50 anos, tempo suficiente para o surgimento de
duas gerações. Em outras palavras, uma mulher que foi mãe em 1968, pode estar
acompanhando na TV ou na Internet o movimento que sua neta estará fazendo nas ruas, onde
já não se queimam sutiãs, porque eles já não são armas de castidade. Ainda assim, o peito da
mulher, historicamente resguardado nos sutiãs, tem valor simbólico para o avanço ou para o
retrocesso de nosso ativismo.
Vejamos um episódio ocorrido no Chile, em maio de 2017, cuja imagem fala por si só.
Trata-se da capa de um livro26
, organizado por Faride Zerán e publicado em 2018,
onde várias autoras se manifestam sobre o episódio. Entre elas, Nelly Richard (2018, p. 120)
fez uma pergunta que revela com perfeição o impacto provocado pela atitude daquela
estudante universitária: “¿Cómo olvidar la imagen de una estudiante encapuchada, a torso
desnudo y con el puño levantado, montada en la estatua del papa Juan Pablo II que bendice
desde la eternidad el frontis de la Pontificia Universidad Católica?”
Como se percebe, a foto releva a imagem de uma estudante universitária de peitos
descobertos e com uma carapuça vermelha, que subiu na estátua do papa João Paulo II, que
25
Informações retiradas de: https://www1.folha.uol.com.br/banco-de-dados/2018/07/1968-martha-vasconcellos-
vence-concurso-e-e-eleita-a-miss-brasil-de-1968.shtml. Acesso em: 10 jun. 2020. 26
Disponível em: https://www.eldesconcierto.cl/2019/02/06/mayo-feminista-la-rebelion-contra-el-patriarcado-
la-universidad-como-institucion-machista/. Acesso em: 04 jun. 2020.
fica na entrada da Universidade Católica do Chile, fundada desde 1888. Lembremos que João
Paulo II esteve como papa de 1975 a 2005, ano em que morreu. Portanto, durante a ditadura
chilena (1973-1990), comandada pelo General Augusto Pinochet (1915-2006), João Paulo II
ocupava um lugar de prestígio, tendo sido convidado para uma tumultuada visita ao Chile,
ocorrida em 1987, quando houve manifestações contra as detenções e torturas promovidas
pelo ditador, resultando num saldo final de 600 feridos e dezenas de detenções com as
consequentes torturas.27
Violeta Parra já estava morta neste episódio, mas antes de suicidar-se
mandou seu recado ao papa com quem lhe coube conviver. Como observado anteriormente, a
Igreja e as ditaduras da América Latina andaram de braços dados, ainda que tenha havido uma
ala progressista que fez oposição ao regime militar.
Nesse mesmo livro organizado por Faride Zerán (2018), uma jovem escritora chilena,
Nona Fernández, produz um pequeno poema, cujo eu lírico faz perguntas que reproduzem os
valores patriarcais:
¿Para qué viene a estudiar si la van a mantener?
¿Viene a la clase o viene a que la ordeñen?
¿Por qué se viste así? ¿A quién quiere provocar?
Chúpame el pico. Yo sé que querís.
Tápese las piernas, que desconcentra a sus compañeros.
¿No sabe la respuesta?: váyase a cocinar.
Con esa cara tan linda no necesita ser inteligente […]
(FERNÁNDEZ, 2018, p.73)
Alguns dados biográficos de Nona Fernández, nascida no Chile em 1971, são muito
curiosos para a discussão que estamos tendo aqui. Nona é filha única de mãe solteira, estudou
na Escola de Teatro da Universidade do Chile e ganhou o prêmio Sor Juana Inés de la Cruz,
em 2017. Sua mãe, ainda que de forma simbólica, assistiu à queima de sutiãs e cantou as
canções de Violeta Parra, assim como viveu a mesma tragédia de Alfonsina Storni, sendo mãe
solteira numa sociedade muito conservadora, como é a chilena. O feminismo é assim. Ele se
estica, ele se transforma, ele se deforma, ele se conforma. Ele é constituído por pessoas de
diferentes idades, credos, ideologias, raças, etnias, gêneros, nacionalidades, profissões.
Melhor do que eu se expressa Nuria Varela (2018, p.131), de cujas palavras me valho para
fechar essa discussão:
27
Informações recolhidas de: http://www.ihu.unisinos.br/188-noticias/noticias-2018/575299-a-infeliz-viagem-
de-joao-paulo-ii-ao-chile-em-1987. Acesso em: 10 jun. 2020.
Todo eso, más la creación de nuevos modelos de relaciones personales e
íntimas y de diferentes opciones de vida para las mujeres, fue posible gracias
a la impertinencia, inteligencia y valor de las mujeres de la Revolución
francesa, de las sufragistas, de las feministas de todas las clases: utópicas,
anarquistas, socialistas, marxistas, radicales, ilustradas, de la diferencia… de
todas las razas y de todos los países, ricas y obreras, asalariadas y amas de
casa que supieron que la vida, además de vivirla, está para disfrutarla.
Referências:
1. CUSICANQUI, Silvia Rivera. Ch’ixinakax utxiwa: una reflexión sobre prácticas y
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3. FIGUEIREDO, Eurídice. Representações de etnicidade: perspectivas interamericanas de
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Santiago/CH: LOM, 2018.
Marcia Paraquett possui Graduação em Letras pela Universidade Federal Fluminense (1970);
Mestrado em Letras pela Universidade Federal Fluminense (1977); Doutorado em Letras
(Língua Espanhola, Literatura Espanhola e Hispano-Americana) pela Universidade de São
Paulo (1997) e Pós-doutorado em Linguística Aplicada pela Universidade de Campinas
(2002), pela Universidade de Santiago do Chile (2015) e pela Universidade de
Murcia/Espanha (2015). É professora aposentada da Universidade Federal Fluminense e ativa
da Universidade Federal da Bahia. É autora de três livros; organizou outros três, além de ter
diversos artigos publicados em coletâneas e revistas nacionais e internacionais. Desenvolve e
orienta pesquisas sobre aprendizagem de línguas, formação de professores, interculturalidade
e políticas de ensino de línguas, em particular referentes ao Espanhol como Língua
Estrangeira no Brasil. É líder do Grupo de Pesquisa PROELE: formação de professores de
espanhol em contexto latino-americano, e bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq
(PQ-2).
E-mail: [email protected]