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Vozes de mulheres que surfam nas ondas do feminismo latino-americano Marcia Paraquett (UFBA/CNPq) Já se fala na quarta onda do feminismo, ainda que muitas mulheres continuem sendo vítimas de feminicídio. Essa aparente contradição se explica, mais particularmente, por questões de ordem racial, histórica e econômica, determinando o retorno desse movimento que, no Brasil, parecia adormecido, quem sabe pela sensação de que tudo estava em seu lugar. A entrada no século XXI determinou mudanças radicais no cenário político e estético, pois houve o surgimento de movimentos considerados periféricos que trouxeram à tona vozes até então apagadas pela hegemonia racial e sexual. De maneira sorrateira, jovens das periferias de importantes cidades roubaram a cena e invadiram as ruas o mundo virtual, impondo sua voz e levando outros jovens não periféricos a ouvi-los e descobrir que eles também falam e fazem arte. Como mulher que pertence, geracionalmente, à terceira onda do feminismo no Brasil, já que nasci em 1948, pude dar atenção aos muitos e muitas jovens com quem convivi na minha já longa experiência profissional, aprendendo com eles e elas que o mundo é mutante e que os lugares de fala e de escuta precisam ser intercambiáveis. Minha experiência profissional e de vida, portanto, me convoca a refletir com a nova juventude, especialmente, a feminina, procurando escutar o que dizem e, mais do que tudo, procurando multiplicar o que aprendo, em prol da incansável construção de um mundo justo e equânime. Falo, neste momento, como uma pesquisadora da ‘terceira idade’, interessada em compreender as manifestações de mulheres que na América Latina me inquietam e me provocam a ser quem sou. Ressalto que as mulheres brasileiras da ‘terceira idade’ participamos mais ativamente da chamada terceira onda do feminismo, mas estamos tendo o privilégio de acompanhar a quarta onda, onde essa inquieta meninada se manifesta de maneira impensada para muitas mulheres de minha geração. Ressalto que não acredito na possibilidade de colocar datas para marcar o início e o fim de cada onda, como fazem alguns autores e autoras, porque o fato de ter sido testemunha de tanta história me leva à certeza de que essas ondas não são estanques. Os meus olhos veem e meus ouvidos ouvem coisas, ainda hoje, que não se pensava mais em dizer nos anos de 1970. Ou seja, o feminismo anda a passos ágeis para algumas pessoas e a passos lentos para outras, mas, porque preciso dar uma certa ordem ao que pretendo discutir, vou tomar como

Marcia Paraquett (UFBA/CNPq)

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Vozes de mulheres que surfam nas ondas do feminismo latino-americano

Marcia Paraquett (UFBA/CNPq)

Já se fala na quarta onda do feminismo, ainda que muitas mulheres continuem sendo

vítimas de feminicídio. Essa aparente contradição se explica, mais particularmente, por

questões de ordem racial, histórica e econômica, determinando o retorno desse movimento

que, no Brasil, parecia adormecido, quem sabe pela sensação de que tudo estava em seu lugar.

A entrada no século XXI determinou mudanças radicais no cenário político e estético, pois

houve o surgimento de movimentos considerados periféricos que trouxeram à tona vozes até

então apagadas pela hegemonia racial e sexual. De maneira sorrateira, jovens das periferias de

importantes cidades roubaram a cena e invadiram as ruas o mundo virtual, impondo sua voz e

levando outros jovens não periféricos a ouvi-los e descobrir que eles também falam e fazem

arte.

Como mulher que pertence, geracionalmente, à terceira onda do feminismo no Brasil,

já que nasci em 1948, pude dar atenção aos muitos e muitas jovens com quem convivi na

minha já longa experiência profissional, aprendendo com eles e elas que o mundo é mutante e

que os lugares de fala e de escuta precisam ser intercambiáveis. Minha experiência

profissional e de vida, portanto, me convoca a refletir com a nova juventude, especialmente, a

feminina, procurando escutar o que dizem e, mais do que tudo, procurando multiplicar o que

aprendo, em prol da incansável construção de um mundo justo e equânime.

Falo, neste momento, como uma pesquisadora da ‘terceira idade’, interessada em

compreender as manifestações de mulheres que na América Latina me inquietam e me

provocam a ser quem sou. Ressalto que as mulheres brasileiras da ‘terceira idade’

participamos mais ativamente da chamada terceira onda do feminismo, mas estamos tendo o

privilégio de acompanhar a quarta onda, onde essa inquieta meninada se manifesta de maneira

impensada para muitas mulheres de minha geração.

Ressalto que não acredito na possibilidade de colocar datas para marcar o início e o

fim de cada onda, como fazem alguns autores e autoras, porque o fato de ter sido testemunha

de tanta história me leva à certeza de que essas ondas não são estanques. Os meus olhos veem

e meus ouvidos ouvem coisas, ainda hoje, que não se pensava mais em dizer nos anos de

1970. Ou seja, o feminismo anda a passos ágeis para algumas pessoas e a passos lentos para

outras, mas, porque preciso dar uma certa ordem ao que pretendo discutir, vou tomar como

Marcia Paraquet
Nota
Referência: PARAQUETT, Marcia. Vozes de mulheres que surfam nas ondas do feminismo latino-americano. In: MENDONÇA, Cleidimar (Org.). América Latina e língua espanhola: perspectivas decoloniais. São Paulo: Pontes, 2020, p.253-286, ISBN: 978-65-5637-030-9
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guia ou como sul1 alguns enquadramentos, sugeridos, particularmente, por duas autoras:

Heloisa Buarque de Hollanda, pesquisadora brasileira que organizou três importantes livros

nos anos de 20182 e 2019; e Nuria Varela, pesquisadora espanhola, autora de duas obras,

publicadas em 20133 e 2019. Essas duas autoras concordam que há quatro ondas de

feminismo, embora cada uma as organize de maneira diferente.

Varela (2019) prefere associar as ondas às crises pelas quais passou a humanidade,

destacando quatro momentos, como se vê abaixo:

Hasta ahora, las olas anteriores han surgido al tiempo que sucedía una «crisis

civilizatoria», por decirlo en palabras de Amelia Valcárcel; es decir, al

tiempo que cambiaban los sistemas políticos y económicos mundiales. En la

primera ola, nace el feminismo en el momento de destrucción del Antiguo

Régimen; la segunda ola surge en el siglo XIX con la Revolución industrial

y el cambio en los modos de vida y de producción que supone; la tercera,

tras la Segunda Guerra Mundial, que transformó el orden geopolítico y

económico. La cuarta es coetánea de la sociedad de la información y de lo

que ya se comienza a denominar la Cuarta Revolución Industrial.

(VARELA, 2019, s/p)

Tendo a concordar com a autora, pois me parece evidente que nunca saímos iguais de

uma forte experiência vivida. E se essa experiência foi coletiva, as mudanças tendem a

coletivizar-se. Penso, por exemplo, no que estamos vivendo no exato momento em que

produzo este texto: a COVID-19. Ainda não sabemos, mas novas atitudes e valores

aparecerão como resultado de tantas descobertas que estamos fazendo em nossos

confinamentos.

Voltando ao texto de Varela (2019), observe-se que a primeira onda está associada ao

Antigo Regime, ou seja, ao modelo no qual o poder estava concentrado na mão de um rei ou

uma rainha, dando-se início à centralização das decisões políticas, cujo berço foi a França. A

segunda onda se associa à Revolução Industrial, que se consolida no século XIX, afetando

significativamente o mundo do trabalho, na medida em que se dá a transição de métodos de

produção artesanais para a produção por máquinas. A terceira onda teria nascido após a

Segunda Guerra Mundial, que durou de 1939 a 1945, envolvendo a maioria das nações do

mundo e definindo novas políticas globais. Por fim, a quarta onda estaria associada à Quarta

1 Nego-me a dizer norte, porque é o sul que me guia. O norte, ao contrário, sempre me sufocou e apagou as

vozes do sul. É mais do que tempo de sulear a linguagem. 2 Embora a publicação original seja de 2018, neste artigo estou valendo-me da edição de 2019, conforme consta

nas referências bibliográficas. 3 Embora a publicação original seja de 2013, neste artigo estou valendo-me da edição de 2018, conforme consta

nas referências bibliográficas.

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Revolução Industrial, expressão que engloba algumas tecnologias que permitem a

comunicação e a cooperação entre si e com os humanos em tempo real.

Mas antes mesmo do século XVIII, houve mulheres que souberam expressar-se,

rompendo fronteiras dos limites que nos foram impostos desde sempre. Uma dessas mulheres

é a poeta mexicana Juana Inés de la Cruz, para quem desvio o meu olhar no propósito de

homenagear outras tantas precursoras do feminismo.

1. Antes de tudo já havia poesia

Juana Inés de la Cruz, nascida no México em 1651, onde também morreu em 1695,

seria filha bastarda de um religioso com uma prostituta, o que a teria impedido de casar-se

com algum cristão. Desde muito cedo se interessou pelas humanidades, letras e teologia,

porém era afastada dessas áreas pelo simples fato de ser mulher. Diz-se que, em menina,

roubava livros do avô para ler e que, quando jovem, teria pedido à mãe que lhe permitisse

vestir-se de homem para frequentar a universidade.

Invenções ou realidade, a verdade é que Juana Inés está cercada de lendas que bem

poderiam ser reais no contexto em que viveu. Mas talvez a lenda mais recorrida seja o fato de

haver sido amante da vice-rainha, Marquesa de Mancera, o que a teria levado a sofrer muitas

perseguições no convento onde viveu grande parte de sua vida. O importante, no entanto, é

saber que Juana Inés teve voz e deixou muitos poemas que até hoje revelam suas dores, seus

anseios e seus amores.

Talvez quem melhor a tenha compreendido, seja Octavio Paz. Em Sor Juana Inés de

la Cruz ou As armadilhas da fé (2017, p.12), o autor mexicano se posiciona diante de dois

clássicos estudos feitos sobre a poeta (Diego Calleja e Ludwig Pfandl), afirmando que “o que

esses dois críticos leem é a transposição de sua vida. Uma vida santa para Calleja, um conflito

neurótico para Pfandl. A obra se transforma em hieróglifo da vida; na verdade, como obra, se

evapora”. E conclui, dizendo que “Sor Juana é uma individualidade poderosa e sua obra

possui inegável singularidade; ao mesmo tempo, a mulher e seus poemas, a freira e a

intelectual se inserem numa sociedade: a Nova Espanha do final do século XVII” (2017,

p.13).

Concordando com Octavio Paz, afirmo que é preciso que se leia a obra de Juana Inés

para além de sua vida e, sobretudo, de sua dura experiência, vivida num convento que,

certamente, limitou sua expressão. Aliás, como instituição, a Igreja também limitou o

feminismo no Brasil, como muito bem observa Hollanda (2019 p. 10), ao lembrar que durante

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a ditadura militar brasileira (1964-1985) “era frequente que as iniciativas do movimento

feminista estivessem vinculadas ao Partido Comunista ou à Igreja Católica progressista,

instituição particularmente importante enquanto oposição ao regime militar”.

Portanto, houve uma ala progressista da Igreja que apoiou o movimento feminista,

embora mantivesse seus valores morais, o que explica a ausência de discussões sobre o aborto

naquele momento e até os dias de hoje em nosso país. Mesmo conservadora nas questões

morais, uma Igreja progressista sempre foi parceira de projetos políticos, mas não creio que

tenha sido essa a experiência de Juana Inés, já que ainda hoje, um Papa reconhecido como

progressista está longe do que pleiteiam muitas mulheres. Lembremos que em fevereiro de

2019, durante reuniões no Vaticano que discutiram o lugar da mulher na Igreja e outras

questões como pedofilia, foi possível testemunhar a posição progressista do Papa Francisco,

mas nem por isso ele deixou de emitir uma infeliz frase que repercutiu intensamente: “Todo

feminismo acaba sendo um machismo de saias”4.

Deixando em paz o Papa Francisco, volto à breve discussão sobre a poeta mexicana,

retomando o dito por Octavio Paz: não se pode esquecer a imprescindível relação entre obra,

poeta e sociedade. Afinal, Juana Inés disse o que disse porque foi o que lhe foi possível dizer,

tendo vivido num contexto histórico de grande repressão, não só para as mulheres, mas

sobretudo para elas. Aí reside seu grande valor, porque foi capaz de enfrentar agruras e deixar

registrada sua voz na poesia que hoje ainda lemos.

Encerremos essa breve digressão, citando três estrofes de um de seus poemas mais

conhecidos, Hombres necios5, onde se identifica, claramente, o posicionamento feminista de

Juana Inés:

Hombres necios que acusáis

a la mujer sin razón,

sin ver que sois la ocasión

de lo mismo que culpáis:

si con ansia sin igual

solicitáis su desdén,

¿por qué queréis que obren bien

si la incitáis al mal?

[…]

Siempre tan necios andáis

que, con desigual nivel,

a una culpáis por cruel

4 Extraído do Jornal El País, de 24/02/2019. Acesso em: 21 maio 2020.

https://brasil.elpais.com/brasil/2019/02/22/internacional/1550863494_623319.html 5 Retirado de: https://www.culturagenial.com/es/poemas-de-sor-juana-ines-de-la-cruz/. Acesso em: 05 fev. 2020.

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y a otra por fácil culpáis.

Como se pode perceber, os “homens” a que se refere a poeta não são os seres humanos

em geral, o que poderia ser um uso de linguagem bem comum no seu contexto, já que ainda

hoje as mulheres tenhamos que conviver com essa categoria machista, sobretudo, em textos

acadêmicos. A poeta estava, de fato, referindo-se aos homens, ou seja, às pessoas do sexo

masculino, a quem acusa de estúpidos, néscios ou ignorantes ao chamar de cruéis as mulheres

que os rejeitam e de fáceis as que a eles se entregam.

Agradecendo às muitas mulheres que se manifestaram antes do movimento feminista

organizar-se em ondas, passo ao segundo item do artigo, onde reflito sobre algumas mulheres

da América Latina, entendida como território cultural. Segundo Figueiredo (2010), a primeira

pessoa a valer-se dessa categoria – América Latina – foi o chileno Francisco Bilbao, numa

conferência realizada em Paris, no ano de 1856, embora o termo tenha nascido um pouco

antes, também na França, durante o movimento conhecido como ‘panlatinismo’, idealizado

por Michel Chevalier (1806/1879), cuja pretensão era liderar as nações menos favorecidas que

também pertencessem à ‘raça Latina’.

2. Vozes latino-americanas nas ondas do feminismo

Para ser coerente com a escolha que fiz, ou seja, a de considerar que a primeira onda

do feminismo nasce no século XVIII, quando a América Latina não existia como a

conhecemos hoje, cogitarei que apenas a partir da segunda onda haverá representações de

mulheres que agiram e falaram por nós. Portanto, começo pelo período que Varela (2018)

toma como a segunda onda do feminismo, ou seja, entre o Sufragismo e Simone de Beauvoir,

afirmando, em consonância com a autora, que as vitórias da segunda onda foram

consequências das lutas das mulheres do século XVIII, cenário de avanços e retrocessos nos

nossos direitos, pois, diante do crescimento feminino, o poder masculino reagiu com força,

como se vê no excerto a seguir:

En 1793, las mujeres son excluidas de los derechos políticos recién

estrenados. En octubre se ordena que se disuelvan los clubes femeninos. No

pueden reunirse en la calle más de cinco mujeres. En noviembre es

guillotinada Olimpjia de Gouges6. Muchas mujeres son encarceladas. En

6 “Olympe de Gouges, pseudônimo de Marie Gouze, foi uma dramaturga, ativista política, feminista e

abolicionista francesa. Os escritos feministas de sua autoria alcançaram enorme audiência. Foi uma defensora da

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1795, se prohíbe a las mujeres asistir a las asambleas políticas. Aquellas que

se habían significado políticamente, dio igual desde qué ideología, fueron

llevadas a la guillotina o al exilio. (VARELA, 2018, p. 41).

No entanto, são essas perdas que vão alimentar a luta pelo Sufragismo durante o

século XIX e início do século XX, ainda que as mulheres do século XVIII não tenham tido a

oportunidade de disfrutar os direitos pelos quais, algumas delas chegaram a dar sua vida.

Como se sabe, apesar de suas lutas, as mulheres só conquistaram o direito ao voto no século

XX, o que leva muitos estudiosos a considerar que a primeira onda do feminismo se dá na

virada entre o século XIX e XX, seguindo até os anos cinquenta. Mas como já ressaltado,

estou considerando que a primeira onda se deu entre os séculos XVIII e XIX, enquanto a

segunda, no princípio do século XX até os anos cinquenta. Nesse contexto, as três mulheres

latino-americanas que ganharam dimensão global foram Alfonsina Storni (1892-1938), Frida

Kahlo (1907-1954) e Violeta Parra (1917-1967).

2.1. Alfonsina Storni

Embora tenha nascido na Suíça, foi na Argentina que Alfonsina Storni cresceu, viveu

e morreu. Além de poeta, era professora, atriz e jornalista, nunca tendo se casado, o que já

revela um comportamento diferenciado para sua época. No entanto, foi mãe aos 19 anos,

tendo assumido sua condição de mãe solteira, o que não a impediu de ser reconhecida como

poeta por seus contemporâneos.

No meu ponto de vista, dois temas muito frequentes na sua obra poética são o mar e a

morte, que algumas vezes são coincidentes. É o caso, por exemplo, do último poema escrito

no dia em que se matou, afogando-se no mar.

democracia e dos direitos das mulheres”. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Olympe_de_Gouges.

Acesso em: 11 maio 2020.

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Voy a dormir (1938)

Dientes de flores, cofia de rocío,

Manos de hierbas, tú, nodriza fina,

Tenme prestas las sábanas terrosas

Y el edredón de musgos escardados.

Voy a dormir, nodriza mía, acuéstame.

Ponme una lámpara a la cabecera;

Una constelación; la que te guste;

Todas son buenas; bájala un poquito.

Déjame sola: oyes romper los brotes...

Te acuna un pie celeste desde arriba

Y un pájaro te traza unos compases

Para que olvides...gracias. ah, un encargo:

Si él llama nuevamente por teléfono

Le dices que no insista, que he salido.

A eu lírica se assume em primeira pessoa, desde o título, anunciando que vai dormir.

Mas ainda na primeira estrofe, dormir se confunde com morrer, já que aparecem elementos

próprios ao ritual da morte, como flores, ervas, terras e musgos. Na segunda estrofe, surge a

interlocutora, uma nodriza, ou seja, alguém que a cuida e que a prepara para dormir. Por isso,

o abajur e a constelação; por isso, a luz da casa e a luz do céu. Essa interlocução se dá entre

duas pessoas que têm confiança entre si, mas há uma terceira pessoa, que surge na última

estrofe do soneto: él. Um ser masculino chamará outra vez por telefone e a nodriza terá que

pedir que él não insista, porque o yo saiu.

É bastante curioso pensar o contexto de produção do soneto, pois a eu lírica confunde,

intencionalmente, vida e morte, terra e céu. Mas quando se pensa que este foi o último poema

escrito por Alfonsina antes de afogar-se no mar, este elemento tão presente em muitas de suas

poesias não aparece, mas a morte sim, embora transmutada em sono. Mas a rica adjetivação

dos elementos corpóreos não deixa dúvida: os dentes são de flores; a touca de sereno; as mãos

de ervas. O corpo se transforma em natureza, alterado pelo processo de decomposição ou

metamorfose.

Muitos anos antes, no entanto, Alfonsina escreveu um de seus mais simbólicos

poemas, Yo en el fondo del mar, como a anteceder que ali, no mar, repousaria eternamente seu

corpo.

Yo en el fondo del mar (1934)

En el fondo del mar

Hay una casa

De cristal.

A una avenida

De madréporas,

Da.

Un gran pez de oro,

A las cinco,

Me viene a saludar.

Me trae

Un rojo ramo

De flores de coral.

Duermo en una cama

Un poco más azul

Que el mar.

Un pulpo me hace guiños

A través del cristal.

En el bosque verde

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Que me circunda

Din don ... din don

Se balancean y cantan

Las sirenas

De nácar verdemar.

Y sobre mi cabeza

Arden, en el crepúsculo,

Las erizadas puntas del mar.

Aqui, os adjetivos trazem luz e alegria. Trazem vida. A casa é de cristal; a avenida de

madrepérolas; o peixe é de ouro; as flores são de coral. A eu lírica também dorme numa cama

um pouco mais azul que o mar. E não está sozinha, embora não seja a nodriza que a

acompanhe, mas as sereias e os polvos que brincam com ela, numa interação de alegria e bem

estar. Tudo isso se dá no fundo do mar, porque na superfície, as ondas são agitadas, bem

diferentes daquela alegria e daquela paz que só o fundo do mar tem. Curiosamente, portanto,

o mar é vida e alegria. Quem sabe por isso foi escolhido para ser o lugar da eternidade da

poeta. Esse episódio ficou guardado, poeticamente, na canção Alfonsina y el mar, de Ariel

Ramírez e Félix Luna, gravada pela primeira vez no álbum Mujeres Argentinas, de Mercedes

Sosa, em 1969.

Além de poemas que brincam e choram com a natureza, Alfonsina produziu poesias

que alfinetavam o patriarcado, sobretudo no que se refere às relações afetivas e os cuidados

com os filhos. Em Tú me quieres blanca, acusa o homem de buscar a pureza e a castidade na

mulher, ainda que, hipocritamente, queira seu corpo e seu calor. Fica impossível não lembrar

de Juana Inés. Vejamos parte do poema:

Tú me quieres blanca (1918)

Tú me quieres alba,

me quieres de espumas,

me quieres de nácar.

Que sea azucena

Sobre todas, casta.

De perfume tenue.

Corola cerrada.

Ni un rayo de luna

filtrado me haya.

Ni una margarita

se diga mi hermana.

Tú me quieres nívea,

tú me quieres blanca,

tú me quieres alba.

Tú que hubiste todas

las copas a mano,

de frutos y mieles

los labios morados.

Tú que en el banquete

cubierto de pámpanos

dejaste las carnes

festejando a Baco.

Tú que en los jardines

negros del Engaño

vestido de rojo

corriste al Estrago.

Tú que el esqueleto

conservas intacto no sé todavía

por cuáles milagros,

me pretendes blanca

(Dios te lo perdone),

me pretendes casta

(Dios te lo perdone),

¡me pretendes alba!

Page 9: Marcia Paraquett (UFBA/CNPq)

Há um jogo de oposição muito bem marcado nas palavras. Para ela abundam adjetivos

e substantivos que cabem na pureza: alba, de nácar, açucena, casta, nívea, branca. Se há

perfume, que seja tênue. Se é flor, que não seja margarida. Para ele, no entanto, as cores e os

sabores são fortes. Eles podem desfrutar de prazeres, podem frequentar os jardins de luxúria,

embriagando-se e saboreando lábios roxos. Que Deus te perdoe, diz a eu lírica, que Deus não

perceba tua hipocrisia.

Lembremos que é na segunda onda do feminismo que cresce a consciência do

movimento de maneira mais coletiva, quando as principais reivindicações tinham sido

concretizadas, em especial o direito ao voto e o acesso à universidade. Esse segundo aspecto,

evidentemente, ainda muito reservado às classes mais abastadas, pois o feminismo ainda era

branco e burguês. Talvez por isso Alfonsina possa ter podido frequentar bares e bibliotecas

com homens de sua geração e ver reconhecida por eles a qualidade de sua poesia. Não se pode

esquecer também que Alfonsina nasceu na Europa, afastando-se, portanto, de qualquer traço

físico que a aproximasse das origens latino-americanas, o que não ocorrerá com Frida kahlo

(1907-1954) e nem com Violeta Parra (1917-1967), ainda que as duas tenham conseguido

alçar voos através de suas artes.

2.2 Frida Kahlo

A pintura de Frida Kahlo revela a mulher que habitava o seu corpo. Ela e Diego

Rivera, marido e companheiro de toda uma vida, se manifestaram a partir de recortes e

pinceladas muito diferentes, ainda que tivessem vivido o mesmo momento histórico e

tivessem a mesma ideologia política.

Magdalena Carmen Frida Kahlo y Calderón nasceu em 06 de julho de 1907, na cidade

mexicana de Coyacán, onde também morreu, aos 47 anos, em 13 de julho de 1954. Sua vida

adulta se deu num cenário político de muita relevância para a história de seu país e da

América Latina, assim como foram momentos inquietos para o século XX, que mergulhava

em conflitos que terminariam em duas guerras mundiais (1914 a 1918 / 1939 a 1945). No

início do século passado, seu país natal fez a sua Revolução, cujo marco histórico se deu entre

20 de novembro de 1910 a 01 de junho de 1920. Para muitos intelectuais esse teria sido o fato

histórico que permitiu o nascimento do Continente Latino-americano como o entendemos

hoje. Diego Rivera, marido e espelho de sua formação política, nasceu em 08 de dezembro de

1886, tendo participado, portanto, do movimento revolucionário já como adulto. Sua obra não

Page 10: Marcia Paraquett (UFBA/CNPq)

pode ser separada de sua afiliação política, conforme comprova sua produção maior, ainda

que Rivera tenha pintado telas paisagísticas e étnicas.

Frida é, dessa forma, fruto de um ambiente revolucionário e bélico, tendo frequentado,

quando menina, as escolas que seguiam as doutrinas de José Vasconcelos, filósofo e Ministro

da Educação do governo do Presidente Obregón, que sobe ao poder em 1920. É nesse ano que

se consolida a Revolução Mexicana, momento em que se institui um programa nacional de

educação e se concebe o Muralismo como movimento de arte nacional. Dessa forma, o

México, liderado por homens democráticos e revolucionários (mas homens), entra na

Modernidade e leva consigo a América Latina.

Muito mais haveria que se falar desse ambiente cultural e político que atravessa a vida

de Frida, mas me centro na tentativa de provocar alguma reflexão sobre a relevância de sua

arte no que ela permita visualizar a representação da categoria de gênero. A oferta de

possibilidades para o meu recorte é imensa, na medida em que, majoritariamente, as telas de

Frida empreendem marcas da mulher que habitou o seu corpo, seja nos autorretratos ou na

representação das tragédias que viveu: o acidente, os abortos e, em palavras suas, o casamento

com Diego Rivera7.

Cabe a mim, assim como cabe a cada professor que queira levar a produção da artista

para uma aula, definir que tela ou que telas servem àquela discussão que se está propondo.

Esse também é o nosso papel, ou seja, ter a autonomia de escolher determinados textos que

sejam relevantes e apropriados aos interesses e aos objetivos de uma interação de

aprendizagem. Tomada pelos limites dessa discussão, escolho apenas uma tela, Autorretrato

de pelona8, onde Frida se representa como a mulher que foi possível ser no ambiente em que

viveu.

7 Muitas frases de Frida Kahlo estão disponíveis em diversos sites na Internet, conforme esta que retirei de

https://www.pensador.com/frase/NjIyNzA1/: “Diego, houve dois grandes acidentes na minha vida: o bonde e

você. Você sem dúvida foi o pior deles”. Acesso em: 04 jun. 2020. 8 Disponível em: https://www.elcuadrodeldia.com/post/140143895658/frida-kahlo-autorretrato-de-pelona-1940-

%C3%B3leo. Acesso em: 04 jun. 2020.

Page 11: Marcia Paraquett (UFBA/CNPq)

A tela em questão foi pintada em 1940 e se encontra exposto no Museu de Arte

Moderna (MOMA), na cidade de Nova York. Esse autorretrato foi pintado num momento de

fúria, provocada pelo divórcio com Diego Rivera, que estava tendo um caso extraconjugal

com a irmã dela. A vida e a obra se unem de maneira irreparável, já que se representa na arte

o que possivelmente não se pode dizer ao vivo ou, o que é melhor, o que se preferiu dizer em

público, rompendo-se as barreiras com o privado, espaço reservado às mulheres recatadas e

do lar.

Os versos que se leem no quadro são de uma canção mexicana e teriam sido dedicados

ao ex-marido, que admirava sua cabeleira, sua madeixa, esse importante elemento de fetiche e

controle masculino sobre a aparência das mulheres: “Mira que si te quise, fue por el pelo.

Ahora que estás pelona, ya no te quiero”. Ademais, Frida se autorretrata vestindo um terno

que talvez fosse de Diego, abandonando a vestimenta tehuana9, tão frequente em sua

indumentária e que tanto agradava a seu marido.

Diz Marga Fernández-Villaverde (2016, s/p) que “La artista ha matado a “la esposa de

Diego Rivera” para convertirse en una mujer independiente, de mirada desafiante, que está

dispuesta a reclamar su lugar en una sociedad dominada todavía por los hombres”10

. No chão

se veem cabelos cortados que têm vida própria, assim como se vê sua trança, ao lado esquerdo

da cadeira amarela. Nas mãos, a tesoura seria a arma homicida, enquanto a vítima seria sua

madeixa, esquartejada a sangue frio.

A necessidade de sobrevivência e a artimanha feminina nos mostram as armas com as

quais podemos lutar contra o desrespeito e o desafeto. Frida Kahlo se valeu de muitas armas,

porque precisou se manifestar esteticamente num mundo masculino, no qual as mulheres são

mais objetos do que sujeitos, na medida em que foram e são modelos para nus artísticos, que

até podem ter sido artes incríveis e maravilhosas, como as produzidas por artistas homens,

conforme é o caso de Venus al Espejo (1647-1651), de Velázquez, ou La Maja Desnuda

(1790-1800), de Goya.

Frida não se casou com Diego porque teria sido uma de suas modelos. Estas serviram

ao trabalho e ao machismo dele. O troco que Frida lhe deu, e não apenas na cena da tela em

análise, pode ter servido para que ele também repensasse sua atitude de macho alfa. Quem

sabe terá morrido mais sábio, porque terá aprendido com sua mulher que nosso corpo nos

pertence.

9 Trata-se de um traje regional mexicano, bastante conhecido e admirado no mundo e que corresponde às

mulheres da etnia Zapoteca, que viviam no Istmo de Tehuantepec. 10

Retirado de http://www.elcuadrodeldia.com/post/140143895658/frida-kahlo-autorretrato-de-pelona-1940-

%C3%B3leo. Acesso em: 08 maio 2018.

Page 12: Marcia Paraquett (UFBA/CNPq)

Aliás, a história mostrou que ela se fez mais presente do que ele, pelo menos no

mundo pop, como confirmam as imagens abaixo.

Desde os anos de 1980, Frida tem sido referência para movimentos em prol dos

direitos de gêneros dissidentes, embora também seja recorrentemente convidada a fazer parte

do jogo comercial, comprovando-se que sua imagem pega, agrada e provoca impacto. A partir

do grande sucesso obtido no filme Frida11

(2002), estrelado pela atriz Salma Hayek, é fácil

encontrá-la em propagandas comerciais, como a da Calvin Klein12

, que se valeu de sua

imagem para vender cuecas, assim como da Mattel, que acaba de criar uma nova Barbie13

a

partir da imagem de Frida. Observe-se que tanto o filme como as duas empresas comerciais

são estadunidenses, modelo de sociedade que se afasta em muito dos valores ideológicos

seguidos por Frida. Mas afinal a arte não tem dono e parece que o capitalismo compra até as

memórias.

2.3. Violeta Parra

Talvez Volver a los 17 (1962) e Gracias a la vida (1966) sejam as canções mais

populares de Violeta Parra, mas não serão estas as escolhidas neste recorte. E a razão é muito

simples: prefiro trazer a mulher que bradou contra a injustiça social, presenciada naquele

Chile que lhe coube viver, transformando-se em uma espécie de precursora da terceira onda.

Violeta del Carmen Parra Sandoval nasceu no dia 4 de outubro de 1917, num povoado

chileno (São Carlos), tendo morrido em Santiago, aos 49 anos, no dia 5 de fevereiro de 1967,

como consequência de um suicídio. Além de autora, cantora e compiladora, foi pintora,

escultora, bordadeira, ceramista. É considerada uma das mais importantes vozes do Chile,

tendo sido uma das fundadoras da Nueva Canción Chilena, movimento musical fortemente

comprometido com a luta política pelos direitos humanos, no qual se destacaram artistas

11

Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Frida#/media/Ficheiro:Frida_(filme).jpg. Acesso em: 04 jun.

2020. 12

Disponível em: https://www.pinterest.com/pin/399342691930825432/. Acesso em: 04 jun. 2020. 13

Disponível em: https://br.pinterest.com/pin/602215781398540591/. Acesso em: 04 jun. 2020.

Page 13: Marcia Paraquett (UFBA/CNPq)

como Quilapayún, Inti Illimani e Victor Jara, influenciando a produção musical latino-

americana naquele momento.

Era filha de um professor de música e uma mulher do campo, que costurava para

cooperar no sustento da numerosa família. Esse ambiente familiar será responsável pela

orientação de Violeta no que tange à sua produção estética, vivida ao lado de seus irmãos,

dentre os quais, o conhecido poeta Nicanor Parra (1914-2018), que a orienta na definição de

sua escolha pelo folclore chileno. Viveu dois casamentos, teve quatro filhos, entre os quais

Ángel e Isabel Parra, artistas ainda atuantes no cancioneiro chileno.

Embora haja uma diferença de apenas dez anos entre Violeta Parra e Frida Kahlo, cada

uma dessas mulheres deixou um legado particular, o que se explica, entre outras questões,

pelo ambiente familiar e nacional no qual viveram. Violeta vai levantar a bandeira dos

camponeses, motivada por sua origem e pela filiação política, que coincidia com a de Frida

Kahlo. No entanto, a pintora mexicana optou por representar em sua arte seu mundo mais

privado, priorizando autorretratos ou retratos com Diego Rivera, enquanto as canções de

Violeta, grosso modo, retratam o universo camponês e da opressão aos trabalhadores. Por

isso, a canção que seleciono para esta discussão é La Carta, símbolo do engajamento político

e ideológico de sua produção estética.

Entre 1961 e 1965, Violeta Parra viveu na Europa, entre a Suíça e a França, tendo

sido a primeira artista latino-americana a expor no Louvre, com uma exposição intitulada

Tapices de Violeta Parra. A saída para a Europa lhe dá novas dimensões políticas, mas não se

desliga do que ocorria no Chile, então governado por Jorge Alessandri (1896-1986). Durante

uma apresentação em Havana/Cuba, Víctor Jara (1932-1973), o grande herdeiro da tradição

de Violeta Parra, ao explicar ao público presente o contexto no qual a poeta havia escrito a

canção que tocaria, disse:

Mientras ella estaba allá – en París – en Chile la cosa se movía bastante, así

como el agua en una batea. Estaba bien movida. Y, teníamos un gobierno en

el año 63, de derecha por supuesto. Y el presidente de turno, se llamaba don

Jorge Alessandri, hijo de don Arturo Alessandri, un hombre que está en la

historia de nuestro país por ser un tipo con un fuego interior tremendo,

potente. Rugía hacia las masas. Le decían el ‘León de Tarapacá’. ‘León’

porque se las traía como orador. De Tarapacá, bueno, yo creo que sería

porque la provincia de Tarapacá le pertenecía casi entera a él.

El hijo, don Jorge, quiso rugir fuerte, pero no tenía el fuego del padre, y sacó

las garras, creando un cuerpo represivo policial como nunca antes el pueblo

Page 14: Marcia Paraquett (UFBA/CNPq)

y los estudiantes lo habían conocido en Chile. En este ambiente, Violeta

escribe esta canción que se llama La Carta.14

Violeta havia recebido uma carta pelo correio, meio de comunicação hegemônico

naquele contexto histórico, na qual fica sabendo que seu irmão, Roberto, havia sido preso por

participar de uma manifestação de greve. Diz uma das estrofes:

La carta dice el motivo

Que ha cometido Roberto

Haber apoyado el paro

Que ya se había resuelto

Si acaso esto es un motivo

Presa también voy sargento, si

E provoca as autoridades, cantando:

Yo que me encuentro tan lejos

Esperando una noticia

Me viene decir la carta

Que en mi patria no hay justicia

Los hambrientos piden pan

Plomo les da la milicia, si

E segue com suas denúncias provocativas e irônicas sobre a elite que governa o seu

país:

De esta manera pomposa

Quieren conservar su asiento

Los de abanicos y de frac

Sin tener merecimiento

Van y vienen de la iglesia

Y olvidan los mandamientos, si

E consciente do poder que o movimento musical já ganhara, encerra seu poema-

canção, dizendo:

La carta que he recibido

Me pide contestación

Yo pido que se propague

Por toda la población

Que el león es un sanguinario

En toda la generación, si

Por suerte tengo guitarra

14

Publicado no jornal The Clinic Online do dia 4 de outubro de 2014 e disponível em:

http://www.theclinic.cl/2014/10/04/a-47-anos-de-su-muerte-las-7-canciones-mas-politicas-de-violeta-parra.

Acesso em: 09 maio 2018.

Page 15: Marcia Paraquett (UFBA/CNPq)

Para llorar mi dolor

También tengo nueve hermanos

Fuera del que se engrilló

Los nueve son comunistas

Con el favor de mí Dios, si

Veja-se que a denúncia se faz de forma simples e direta, característica da poética de

Violeta Parra. Ela escreveu e cantou para os camponeses chilenos, fazendo de sua arte a sua

militância.

Nesse mesmo contexto, Violeta escreveu outras duas canções que são cartas, sendo

uma endereçada aos estudantes (Me gustan los Estudiantes) e outra ao Papa (Qué dirá el

santo padre), quando denuncia o assassinato de Julián Grimau15

, importante político

espanhol, assassinado em 1963 pela ditadura de Francisco Franco, que durou de 1939 a 1975.

Vejamos uma estrofe e o estribilho da canção:

Miren como nos hablan del paraíso

Cuando nos llueven balas como granizo

Miren en el entusiasmo, por la sentencia

Sabiendo que mataban ya la inocencia

¿Qué dirá el Santo Padre?

Que vive en Roma

Que le están degollando

A su paloma.

Ao seu estilo, Violeta convoca a atenção do Sumo Pontífice, valendo-se de uma

metáfora poética, la paloma, tão recorrente na poesia de Federico García Lorca (Espanha,

1898-1936), poeta andaluz, também assinado pelo mesmo ditador espanhol, em 1936.

Essa é a Violeta Parra, com quem aprendemos a ser simples, diretos e comprometidos

com as pessoas vulnerabilizadas pelos poderes das elites econômicas e políticas. Sua

contribuição para o feminismo é, portanto, essencial, na medida em que fala a partir de uma

América Latina que se ocultaria nas trevas das ditaduras da pós-modernidade. Nascia a

terceira onda do feminismo, nos idos dos anos sessenta, quando, Betty Friedan lançava a

Mística Feminina em 1963, publicação que mobilizará mulheres de muitos países, da mesma

15

Julián Grimau García (Madrid/Espanha, 18 de fevereiro de 1911 - 20 de abril de 1963) foi um político

comunista espanhol, condenado à morte e executado pela ditadura franquista, acusado de crimes cometidos

durante a Guerra Civil Espanhola, na condição de membro dos serviços policiais e chefe da Brigada de

Investigação Criminal. A oposição à ditadura, tanto no interior como no exterior, questionou a validade de

provas apresentadas pelo juízo e denunciou as torturas às que foi submetido durante sua detenção. (Traduzido e

adaptado de: https://es.wikipedia.org/wiki/Juli%C3%A1n_Grimau. Acesso em: 09 maio 2018).

Page 16: Marcia Paraquett (UFBA/CNPq)

forma que ocorreu anos anteriores com Simone de Beauvoir, com seu Segundo Sexo,

publicado em 1949.

Ainda que a terceira onda tenha nascido nos anos sessenta, na América Latina ela só se

consolidou nos anos oitenta, quando começam a ter fim as ditaduras militares. No Brasil,

particularmente, não poderia ter sido diferente, como nos lembra Hollanda (2019c, p. 10):

Enquanto o feminismo daquela hora na Europa e nos Estados Unidos se

alimentava das utopias e dos sonhos de liberdade e transformação da década

de 1960, no Brasil a esquerda, incluindo-se aí as mulheres militantes, se

manifestava numa frente ampla de oposição ao regime.

Coincidindo com o fim da ditadura (1985), um texto feminino ganhou repercussão

internacional, sacudindo o movimento, inclusive em nosso país. Refiro-me ao livro publicado

por Gayatri Spivak, em 1983, quando a pergunta Pode o subalterno falar? sacudiu todas nós,

nos alertando “para o perigo de se constituir o outro e o subalterno apenas como objetos de

conhecimento por parte de intelectuais que almejam meramente falar pelo outro”, como

esclarece Sandra Goulart no prefácio da tradução brasileira. (SPIVAK, 2014, p. 14)

Nesse mesmo contexto, os cursos de Pós-graduação ganham espaço, oportunizando a

produção de muitas pesquisas que dariam tom ao feminismo acadêmico que marcou parte da

terceira onda do feminismo. Assim como no Brasil, surgem muitas vozes por diferentes países

de nossa América, diversificando nossas discussões e lugares de fala. Era a vez das mulheres

brancas ouvirem mulheres indígenas e negras que viriam nos falar de Interseccionalidade.

Reconhecia-se, por fim, que as mulheres são diferentes e que haverá muita diferença entre o

que significa ser uma mulher branca, uma mulher negra ou uma mulher indígena. No intuito

de compreender e refletir sobre essa questão, convido duas mulheres importantes de nossa

América Latina: Silvia Rivera Cusicanqui e Shirley Campbel Barr.

2.4. Silvia Rivera Cusicanqui

Faz pouco tempo que a intelectualidade brasileira começou a desviar seu olhar do

Norte para, finalmente, se dar conta de que aqui também se fala e se faz pesquisa. Refiro-me

ao projeto de Decolonialidade Epistemólogica, como se está dando em importantes

universidades latino-americanas, em detrimento da subserviência intelectual ainda corrente

em muitos Programas de Pós-graduação em nosso país. Silvia Rivera Cusicanqui seria uma

dessas intelectuais, que nos estão mostrando que podemos e devemos falar de nós mesmos, os

Page 17: Marcia Paraquett (UFBA/CNPq)

do Sul, sem a interferência ou o domínio das vozes do Norte. Sul e Norte para mim estão

sendo entendidos como referências simbólicas do poder de fala, não apenas na perspectiva

continental, mas de gênero e étnicas.

Cusicanqui, que nasceu em 1949, na cidade de La Paz, Bolívia, é uma socióloga

aimará, que pesquisa sobre a teoria anarquista e sobre as cosmologias quéchua e aymara. Em

1983, fundou com outros intelectuais o Taller de Historia Oral Andina (THOA), que

desenvolve temas de oralidade, identidade e movimentos sociais indígenas e populares

aimará. Atualmente, dirige o Colectivo Ch'ixi, além de ser uma importante ativista,

trabalhando diretamente com os movimentos tupacatarista16

e cocaleros17

.

Na obra Ch’ixinakax utxiwa: una reflexión sobre prácticas y discursos

descolonizadores (2010, p. 27), a socióloga afirma que “Hay en el colonialismo una función

muy peculiar para las palabras: ellas no designan, sino que encubren.” E ressalta que “En

lengua aymara y qhichwa no existen palabras como opresión o explotación. Ambas ideas se

resumen en la noción (aymara) de “jisk’achasiña” o “jisk’achaña”: empequeñecimiento, que

se asocia a la condición humillante de la servidumbre”.

Esse posicionamento da autora revela sua preocupação com a escrita e a leitura,

promovendo a construção de uma epistemologia indígena e resgatando o direito de fala

daqueles povos, silenciados ou encobertos pelos dizeres dos colonizadores. “Los discursos

públicos se convirtieron en formas de no decir”, denuncia a ativista aimará, pois criam

“modos retóricos de comunicarnos, dobles sentidos, sentidos tácitos, convenciones del habla

que esconden una serie de sobreentendidos y que orientan las prácticas, pero que a la vez

divorcian a la acción de la palabra pública” (2010, p. 20).

É sobre essa questão que a autora se expressa num pequeno vídeo, disponível na

Internet18

, quando fala de gênero e diversidade, comparando a forma como a tradição indígena

entende essa questão e a maneira como se impôs o modelo espanhol, marcadamente cristão.

Cusicanqui retoma a visão indígena sobre o papel das diversidades, sugerindo que se

16

Movimento inspirado em Túpac Katari, ou Julián Apaza Nina (1750-1781), herói da independência do

domínio espanhol. 17

Em 1987 uma linha de esquerda da Falange Socialista Boliviana, seguidora de David Añez Pedraza forma o

partido Movimiento al Socialismo-Unzaguista (MAS-U). El MAS-U pretendeu dar coerência às reivindicações

dos cocaleros, cultivadores da planta sagrada nas culturas andinas, numa estratégia centrada na oposição aos

governos desse período, mas na medida em que esses governos foram se fazendo mais permeáveis às exigências

indígenas, suas teses foram dando lugar à sua atual doutrina de esquerda, também chamado “capitalismo de

estado andino. As notas 11 e 12 foram traduzidas e adaptadas de:

https://es.wikipedia.org/wiki/Silvia_Rivera_Cusicanqui. Acesso em: 10 maio 2018. 18

Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=c-eytSCY2rU. Acesso em: 10 maio 2018.

Page 18: Marcia Paraquett (UFBA/CNPq)

recuperem aqueles saberes. Inicia sua exposição, ressaltando que sempre desconfia das visões

dualistas, e que o homem e a mulher não esgotam todas as possibilidades de gênero.

Segundo a autora, as sociedades andinas têm uma ampla variedade de percepção que

não limita os gêneros em dois, observando que ela própria, pela idade que tem (66 no

momento da gravação do vídeo) e pelo que já fez em termos de trabalho, pode estar sozinha e

atuar em papéis intercambiáveis. O mesmo acontece com uma criança, que não é homem e

nem mulher, pois está passando por um processo de diferenciação que se dá em várias etapas.

Continua Cusicanqui, contando-nos que, ao chegarem, os espanhóis acharam que todos os

índios eram sodomitas (e diz isso com certo sorriso irônico), já que havia práticas sagradas de

sexualidade que contradiziam a crença católica seguida pelos conquistadores, que as

interpretaram como práticas sexuais anormais, ou seja, fora da naturalidade dada por Deus.

A autora também se refere ao fato das deficiências físicas serem reconhecidas nas

culturas tradicionais indígenas como marcas do sagrado, quando na visão trazida pelos

europeus, essa compreensão é justamente contrária, o que explica o preconceito que se tem

até hoje com relação aos cegos, aos mudos, aos coxos. Portanto, essa possibilidade de

conexão com o sagrado estava fincada nas pessoas diferentes, o que é muito positivo na visão

de Cusicanqui porque, em lugar de se trabalhar por uma possível normalização desses

diferentes, considerando-os doentes, eles são vistos como poderosos. A autora encerra sua

exposição, dizendo que, apesar dos séculos de colonialismo, há muita coisa a ser

reinterpretada e resgatada em termos de gênero e diversidade. Para ela, ainda é possível

desenterrar muitas verdades que foram escondidas, pois acredita na liberdade humana para

criar formas de identidades fluidas, ou seja, identidades que abandonem essas heranças rígidas

e estáticas.

Estou de acordo com a autora e observo que teríamos nos desgastado menos, teríamos

presenciado menos violência de gênero, caso os saberes aimará tivessem sido seguidos, em

lugar dos valores cristãos ocidentais herdados dos ibéricos. Afinal, na terceira onda do

feminismo,

Se conceptualiza y analiza el patriarcado, se modifican las leyes y las

condiciones de vida de algunas mujeres en algunas partes del mundo, pero

podríamos resumir que en realidad lo que se consigue – donde se consigue –

es la igualdad formal, no la igualdad real. Así pues, correspondería a la

cuarta ola, siguiendo esta dinámica, alcanzar la igualdad real. (VARELA,

2019, s/p)

Page 19: Marcia Paraquett (UFBA/CNPq)

Essa igualdade real ainda não foi conseguida, mas continua sendo a mola que nos

impulsiona; a tal utopia de que falava Hollanda (2019a, p.248). Assim como ela,

Percebo que hoje, para uma feminista branca, é antes de mais nada

importante promover um tipo de escuta na qual, sem abrir mão de seu

próprio “lugar de fala”, sejam possíveis formas inovadoras de empatia e de

troca que gerem novas perspectivas de reflexo e ação. A formulação de

Hannah Arendt, quando afirma que “sem diálogo não há política”, volta

agora como uma referência forte no meu posicionamento diante do que estou

chamando aqui de feminismos da diferença.

2.5. Shirley Campbel Barr

Shirley Campbell Barr é uma mulher negra, antropóloga, escritora, nascida na Costa

Rica em 1965, o que me leva a afirmar que seu posicionamento está na interseção entre a

terceira e quarta ondas. Assim como Cusicanqui, Shirley é uma ativista e trabalha em

movimentos afrodescendentes na América Latina, proferindo conferências, oferecendo

oficinas de criação artística, promovendo leituras públicas de seus poemas e contribuindo,

consequentemente, para a mobilização e conscientização de comunidades afrodescendentes.

A poeta costarriquense entende que a arte é compromisso social e político, com o que

estou plenamente de acordo, embora eu tenha a consciência de que essa tomada de posição

nem sempre é acompanhada pelos críticos de arte. Em entrevista cedida a Afroféminas19

,

afirma que escreve porque pode escrever e também porque acredita que tem um compromisso

e uma responsabilidade. Com isso, está nos dizendo que tem consciência de sua força, de sua

capacidade e de sua militância. Shirley e sua família nunca pertenceram à classe pobre da

Costa Rita e tiveram uma educação que lhes deu essa consciência e essa força.

Em 2018, sua irmã, Epsy Campbell Bar, foi eleita vice-presidente da Costa Rica,

sendo a primeira mulher negra a ocupar esse espaço público em toda América Latina. Assim

como sua irmã, Epsy é militante das causas de gênero e de raça, sendo, entre outras coisas, a

fundadora do Centro de Mulheres Afro-Costarriquenses e membro do Parlamento Negro do

Fórum das Américas.

Para os que não sabem, permitam-me dizer que a Costa Rica é um dos países

democráticos mais consolidados da América Latina, sendo o único entre nós a fazer parte da

lista das 22 democracias mais antigas do mundo. Não passou por governos autoritários, não

vivenciou golpes de Estado e guerras civis, pois aboliu seu exército nacional desde 1948. Essa

19

Disponível em: https://afrofeminas.com/2014/04/15/entrevista-a-shirley-campbell-barr/. Acesso em: 11 maio

2018.

Page 20: Marcia Paraquett (UFBA/CNPq)

decisão permitiu

que o país vivesse uma estabilidade política que teve consequências

positivas, tanto no setor econômico, como no social. O dinheiro economizado pela

inexistência de despesas militares é direcionado em sua maioria para o investimento em

educação e saúde, possuindo um índice de 96% de sua população alfabetizada e uma

expectativa de vida é de 78 anos20

.

Mesmo com esse cenário, que me causa inveja, se fizeram necessárias a arte e a

militância em prol das questões de mulheres afrodescendentes. De qualquer forma, se

comparamos o contexto histórico e as condições sociopolíticas da Costa Rica, da Bolívia, do

Chile e do México, cada um no momento que privilegiei, entenderemos perfeitamente a

consciência de Shirley Campbell ao afirmar que escreve porque pode escrever. Eu também

posso escrever e por isso estou aqui. Minha filha também pode, mas minha mãe não pôde.

Ainda que não possamos comparar o Brasil à Costa Rica, também já avançamos um pouco. E

avançaremos muito mais, se eliminarmos os valores e as atitudes fascistas que se espalham

pelo mundo.

Mas falemos da poesia de Shirley, porque, como disse Neruda, “Se nada nos salva de

la muerte, que al menos el amor nos salve de la vida”21

. Sem medo de cair no lugar comum,

começo com o poema mais popular da poeta costarriquense: Rotundamente negra. E o faço,

porque acompanho os argumentos da própria autora: “A mí gusta creer que “Rotundamente

negra”, es un poema de amor para nosotras mujeres negras y las mujeres lo han hecho suyo a

partir de la necesidad que tenemos de recuperar esa pasión por nosotras mismas”22

. Vejamos

o poema:

Me niego rotundamente

a negar mi voz

mi sangre y mi piel

y me niego rotundamente

a dejar de ser yo

a dejar de sentirme bien

cuando miro mi rostro en el espejo

con mi boca

rotundamente grande

y mi nariz

rotundamente hermosa

y mis dientes

rotundamente blancos

20

Traduzido e adaptado de: https://es.wikipedia.org/wiki/Costa_Rica. Acesso em: 12 maio 2018. 21

Disponível em: https://www.chicagotribune.com/hoy/ct-hoy-8367597-frases-de-pablo-neruda-story.html.

Acesso em: 10 jun. 2020. 22

Disponível em: https://afrofeminas.com/2014/04/15/entrevista-a-shirley-campbell-barr/. Acesso em: 11 maio

2018.

Page 21: Marcia Paraquett (UFBA/CNPq)

y mi piel

valientemente negra.

Y me niego categóricamente

a dejar de hablar

mi lengua, mi acento y mi historia

y me niego absolutamente

a ser de los que se callan

de los que temen

de los que lloran

porque

me acepto

rotundamente libre

rotundamente negra

rotundamente hermosa.

O poema não apresenta dificuldades para a compreensão dos sentidos expressados e

nem para a identificação do lugar de fala e do posicionamento ideológico da eu lírica. Quem

fala é uma mulher negra que reconhece a beleza de sua boca grande, de seu nariz, de seus

dentes brancos e de sua pele negra. Ademais, a eu lírica se nega a negar sua língua e sua

história; se nega a chorar ou a ter medo, porque se aceita como é; se aceita livre, se aceita

negra, se reconhece bonita. Os advérbios que se repetem e os adjetivos de carga positiva são

responsáveis pela força com que os sentidos chegam aos nossos ouvidos. A eu lírica se nega

radicalmente a negar sua voz, seu sangue e sua pele; se nega radicalmente a não se sentir bem

quando se vê no espelho, porque se encontra valentemente negra. E se nega categoricamente a

falar de outra maneira que não seja a de sua gente e de sua história; se nega absolutamente a

silenciar-se e a ter medo ou a chorar.

Fica fácil entender porque esse poema se transformou numa espécie de mantra que

leva as mulheres negras que o escutam a se mobilizarem e a multiplicá-lo, porque o corpo da

mulher negra – sua cor, seus cabelos, seu nariz, sua boca – foi visto historicamente como feio,

como diferente, como defeituoso, necessitando, portanto, ser ‘corrigido’. O que a poeta terá

aprendido com sua mãe está projetando para sua filha, para quem escreveu outro poema,

também muito simbólico.

El cabello de Illari23

[…]

Yo voy a enseñarte, hija mía, así como un día aprendí de mi madre y ella de su abuela y su

abuela de otra madre, a construir caminos y perfectas veredas en tu cabeza.

23

Retirado de: https://anidabar.wordpress.com/2012/10/17/el-cabello-de-illari-shirley-campbell-barr/. Acesso

em: 10 jun. 2020.

Page 22: Marcia Paraquett (UFBA/CNPq)

Te voy a enseñar, hija de mis entrañas, a diseñar obras de arte, a delinear imágenes y tejer un

mundo brillante y lleno de colores en las trenzas de tu cabeza. Y un día, cuando aprendas a

peinar tu propio cabello y los cabellos de tus hijas, vamos a construir un nuevo mapa.

Construiremos un mundo nuevo en tu cabeza que les permita a todas las niñas negras como tú

llevar con orgullo la hermosura de nuestros cabellos.

Yo te prometo hoy, mi pequeña, que tus peinados y los peinados de tus hijas asombrarán al

mundo, y tu figura monumental no tendrá entonces que usar más disfraces para brillar.

É muito fácil encontrar vídeos na Internet com apresentações de poema de Shirley,

seja por ela mesma ou por meninas negras de diferentes países da América Latina. A internet

a popularizou, possibilitando que em diferentes lugares possamos ouvi-la e aprender com ela.

Vale ressaltar que essas práticas poéticas são recorrentes na quarta onda do feminismo, e

mesmo nos movimentos afrodescendentes, que promovem Saraus e Slams. A internet tem

esse poder e não será por outra razão que as atuais feministas se valem dela, assim como das

ruas, para se manifestarem, constituindo-se numa nova forma de ativismo, que está dando

cara à quarta onda do feminismo. O Chile e a Argentina, mais particularmente, tem

comprovado a força do movimento das ruas, conforme veremos adiante.

2.6 As mina da vez

Posso imaginar como será difícil para a atual juventude feminista acreditar que no dia

7 de setembro de 1968, em Atlantic City, no Atlantic City Convention Hall, cerca 400

ativistas do WLM (Women’s Liberation Movement) protestaram contra a realização do

concurso de Miss América, num episódio que ficou conhecido como Bra-Burning, ou A

Queima dos Sutiãs.

Na verdade, não houve queima no sentido literal, mas a atitude daquelas jovens de

minha geração foi incendiária. Em 1968, o Brasil estava de pés e mãos atadas, assim como de

boca e olhos vendados, já que foi naquele ano que se assinou o AI-524

. Em lugar de queimar

sutiãs, nos sentamos diante da TV para aplaudir a beleza de Martha Vasconcellos, a Miss

24

“O AI-5, o mais duro de todos os Atos Institucionais, foi emitido pelo presidente Artur da Costa e Silva em 13

de dezembro de 1968. Isso resultou na perda de mandatos de parlamentares contrários aos militares, intervenções

ordenadas pelo presidente nos municípios e estados e também na suspensão de quaisquer garantias

constitucionais que eventualmente resultaram na institucionalização da tortura, comumente usada como

instrumento pelo Estado”.

Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Ato_Institucional_n.%C2%BA_5. Acesso em: 10 jun. 2020.

Page 23: Marcia Paraquett (UFBA/CNPq)

Brasil de 1968: uma baiana de olhos verdes, com 1,75 m, 59 cm de cintura, 93 cm de busto,

93 cm de quadris, 55 cm de coxa e 21 cm de tornozelos.25

1968 foi também o ano do penúltimo Festival de Música Popular Brasileira,

promovido pela então TV Record e realizado em São Paulo. Naquele ano, o 1º. lugar do Júri

Especial foi outorgado a Tom Zé, com a canção São, São Paulo Meu Amor, e pelo Júri

Popular a Chico Buarque, com a canção Benvinda. Minha geração, portanto, trocava de canal

para assistir o Concurso de Miss Brasil ou ouvir as canções de protesto nos festivais da

Record. O AI-5 encerrou os festivais em 1969, mas os concursos de Miss Brasil se mantêm

até os nossos dias, valorizando-se o corpo da mulher como objeto de consumo.

De 1968 a 2018 há uma diferença de 50 anos, tempo suficiente para o surgimento de

duas gerações. Em outras palavras, uma mulher que foi mãe em 1968, pode estar

acompanhando na TV ou na Internet o movimento que sua neta estará fazendo nas ruas, onde

já não se queimam sutiãs, porque eles já não são armas de castidade. Ainda assim, o peito da

mulher, historicamente resguardado nos sutiãs, tem valor simbólico para o avanço ou para o

retrocesso de nosso ativismo.

Vejamos um episódio ocorrido no Chile, em maio de 2017, cuja imagem fala por si só.

Trata-se da capa de um livro26

, organizado por Faride Zerán e publicado em 2018,

onde várias autoras se manifestam sobre o episódio. Entre elas, Nelly Richard (2018, p. 120)

fez uma pergunta que revela com perfeição o impacto provocado pela atitude daquela

estudante universitária: “¿Cómo olvidar la imagen de una estudiante encapuchada, a torso

desnudo y con el puño levantado, montada en la estatua del papa Juan Pablo II que bendice

desde la eternidad el frontis de la Pontificia Universidad Católica?”

Como se percebe, a foto releva a imagem de uma estudante universitária de peitos

descobertos e com uma carapuça vermelha, que subiu na estátua do papa João Paulo II, que

25

Informações retiradas de: https://www1.folha.uol.com.br/banco-de-dados/2018/07/1968-martha-vasconcellos-

vence-concurso-e-e-eleita-a-miss-brasil-de-1968.shtml. Acesso em: 10 jun. 2020. 26

Disponível em: https://www.eldesconcierto.cl/2019/02/06/mayo-feminista-la-rebelion-contra-el-patriarcado-

la-universidad-como-institucion-machista/. Acesso em: 04 jun. 2020.

Page 24: Marcia Paraquett (UFBA/CNPq)

fica na entrada da Universidade Católica do Chile, fundada desde 1888. Lembremos que João

Paulo II esteve como papa de 1975 a 2005, ano em que morreu. Portanto, durante a ditadura

chilena (1973-1990), comandada pelo General Augusto Pinochet (1915-2006), João Paulo II

ocupava um lugar de prestígio, tendo sido convidado para uma tumultuada visita ao Chile,

ocorrida em 1987, quando houve manifestações contra as detenções e torturas promovidas

pelo ditador, resultando num saldo final de 600 feridos e dezenas de detenções com as

consequentes torturas.27

Violeta Parra já estava morta neste episódio, mas antes de suicidar-se

mandou seu recado ao papa com quem lhe coube conviver. Como observado anteriormente, a

Igreja e as ditaduras da América Latina andaram de braços dados, ainda que tenha havido uma

ala progressista que fez oposição ao regime militar.

Nesse mesmo livro organizado por Faride Zerán (2018), uma jovem escritora chilena,

Nona Fernández, produz um pequeno poema, cujo eu lírico faz perguntas que reproduzem os

valores patriarcais:

¿Para qué viene a estudiar si la van a mantener?

¿Viene a la clase o viene a que la ordeñen?

¿Por qué se viste así? ¿A quién quiere provocar?

Chúpame el pico. Yo sé que querís.

Tápese las piernas, que desconcentra a sus compañeros.

¿No sabe la respuesta?: váyase a cocinar.

Con esa cara tan linda no necesita ser inteligente […]

(FERNÁNDEZ, 2018, p.73)

Alguns dados biográficos de Nona Fernández, nascida no Chile em 1971, são muito

curiosos para a discussão que estamos tendo aqui. Nona é filha única de mãe solteira, estudou

na Escola de Teatro da Universidade do Chile e ganhou o prêmio Sor Juana Inés de la Cruz,

em 2017. Sua mãe, ainda que de forma simbólica, assistiu à queima de sutiãs e cantou as

canções de Violeta Parra, assim como viveu a mesma tragédia de Alfonsina Storni, sendo mãe

solteira numa sociedade muito conservadora, como é a chilena. O feminismo é assim. Ele se

estica, ele se transforma, ele se deforma, ele se conforma. Ele é constituído por pessoas de

diferentes idades, credos, ideologias, raças, etnias, gêneros, nacionalidades, profissões.

Melhor do que eu se expressa Nuria Varela (2018, p.131), de cujas palavras me valho para

fechar essa discussão:

27

Informações recolhidas de: http://www.ihu.unisinos.br/188-noticias/noticias-2018/575299-a-infeliz-viagem-

de-joao-paulo-ii-ao-chile-em-1987. Acesso em: 10 jun. 2020.

Page 25: Marcia Paraquett (UFBA/CNPq)

Todo eso, más la creación de nuevos modelos de relaciones personales e

íntimas y de diferentes opciones de vida para las mujeres, fue posible gracias

a la impertinencia, inteligencia y valor de las mujeres de la Revolución

francesa, de las sufragistas, de las feministas de todas las clases: utópicas,

anarquistas, socialistas, marxistas, radicales, ilustradas, de la diferencia… de

todas las razas y de todos los países, ricas y obreras, asalariadas y amas de

casa que supieron que la vida, además de vivirla, está para disfrutarla.

Referências:

1. CUSICANQUI, Silvia Rivera. Ch’ixinakax utxiwa: una reflexión sobre prácticas y

discursos descolonizadores. Buenos Aires: Tinta Limón, 2010.

2. FERNANDEZ, Nona. Líquida avanzada. In: ZERÁN, Faride (Editora). Mayo feminista.

La rebelión contra el patriarcado. Santiago/CH: LOM, 2018, p. 67-76.

3. FIGUEIREDO, Eurídice. Representações de etnicidade: perspectivas interamericanas de

literatura e cultura. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2010.

4. HOLLANDA, Heloisa Buarque de (Org.). Explosão Feminista. Arte, Cultura, Política e

Universidade. Rio de janeiro: Companhia das Letras, 2019a.

5. HOLLANDA, Heloisa Buarque de (Org.). Pensamento feminista brasileiro. Formação e

contexto. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019b.

6. HOLLANDA, Heloisa Buarque de (Org.). Pensamento feminista. Conceitos

fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019c.

7. PAZ, Octavio. Sor Juana Inés de la Cruz ou As Armadilhas da Fé. São Paulo: UBU,

2017.

8. RICHARD, Nelly. La insurgencia feminista de mayo 2018. In: ZERÁN, Faride (Editora).

Mayo feminista. La rebelión contra el patriarcado. Santiago/CH: LOM, 2018, p.115-125.

9. SPIVAK, Gayatri. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: UFMG, 2014.

10. VARELA, Nuria. Feminismo 4.0. La cuarta ola. Barcelona: Penguin Random House

Editorial, 2019.

11. VARELA, Nuria. Feminismo para principiantes. Barcelona: Benguin Random House,

[2013] 2018.

12. ZERÁN, Faride (Editora). Mayo feminista. La rebelión contra el patriarcado.

Santiago/CH: LOM, 2018.

Marcia Paraquett possui Graduação em Letras pela Universidade Federal Fluminense (1970);

Mestrado em Letras pela Universidade Federal Fluminense (1977); Doutorado em Letras

(Língua Espanhola, Literatura Espanhola e Hispano-Americana) pela Universidade de São

Paulo (1997) e Pós-doutorado em Linguística Aplicada pela Universidade de Campinas

(2002), pela Universidade de Santiago do Chile (2015) e pela Universidade de

Murcia/Espanha (2015). É professora aposentada da Universidade Federal Fluminense e ativa

da Universidade Federal da Bahia. É autora de três livros; organizou outros três, além de ter

diversos artigos publicados em coletâneas e revistas nacionais e internacionais. Desenvolve e

orienta pesquisas sobre aprendizagem de línguas, formação de professores, interculturalidade

e políticas de ensino de línguas, em particular referentes ao Espanhol como Língua

Estrangeira no Brasil. É líder do Grupo de Pesquisa PROELE: formação de professores de

espanhol em contexto latino-americano, e bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq

(PQ-2).

E-mail: [email protected]