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A' 3 É possível ensinar a filosofia? E, se possível, como? Danilo Marcondes* A filosófia não é uma teoria, mas uma atividade. Ludwig Wittgenstein (Tractatus Logico-Philosophicus, 4.1 12) E famosa a afirmação de Kant de que não se pode ensinar filosofia, mas apenas a filosofar. Kant, por sua vez, apesar de ter sido autor de tex- tos de leitura e interpretação notoriamente difíceis, foi considerado um excelente professor, atraindo sempre inúmeros alunos para suas aulas que iam da geografia à lógica. A pergunta inicial sobre se é possível ensinar a filosofia e, em caso afirmativo, como, supõe uma questão anterior, a saber, que filosofia queremos ensinar? Supõe, portanto, uma determinada concepção de filosofia a ser ensinada. A tradição filosófica nos mostra que não há uma única resposta possível à questão sobre o que é a filosofia, mas que, ao contrário, ao longo dos séculos a filosofia foi concebida de diferentes maneiras, dando origem na verdade a várias tradições. Vamos tentar distinguir algumas no intuito de procurar responder melhor à nossa questão preliminar. Ao mesmo tempo, podemos nos perguntar se há, ou mesmo se deve haVer, algo em comum entre todas essas várias formas do que pode ser denominado de "filosofia". Segundo uma das muitas tradições que relatam o surgimento da filosofia, Pitágoras teria respondido a Leon, tirano de Fliús, quando interrogado sobre afinal quem era, "Sou um filósofo" (Diógenes Laércio, 1988, liVros I e VIII). É interessante notar aí que o termo Professor do Departamento de Filosofia da PUC-Rio. É possível ensinar a filosofia? E, se possível, como? 55 "filósofo" parece ter surgido antes mesmo de "filoso fi a", o que pode re- forçar a idéia defendida por alguns de que não há filosofia, mas apenas filósofos. Vamos explorar alguns elementos subjacentes a esta concepção. A afirmação de Pitágoras é apenas super fi cialmente modesta. Com ela, Pitágoras está estabelecendo um contraste entre sua forma de pen- samento, a filosofia, "a amizade ao saber", e a Sophia, o saber dos sábios, dos sophoi, daqueles que possuíam um saber de caráter especial, inspi- rado, iniciático, fruto de um dom diVino, o dom da sabedoria. O fi- lósofo, ao contrário, é apenas aquele que busca o saber, mas que tem consciência de ainda não o ter encontrado, de não possuí-lo, de estar distante dele. A filosofia se define deste modo mais pela busca do que pela posse do saber. Pitágoras faz assim explicitamente uma crítica aos sábios, à pretensão destes em afirmar já possuírem a sabedoria, já se- rem os donos ou mestres da verdade, sábios dogmáticos, portanto. Aponta também para os riscos desta pretensão sempre fr acassada. A sabedoria que pretende dar respostas definitivas às nossas indagações mais fundamentais, que pretende ter a palavra final, sempre se arris- cará a ser insuficiente, limitada, decepcionante, deixando de dar conta desta sua pretensão. Afinal, as questões permanecem em aberto, as res- postas são inconclusivas e nenhuma dessas doutrinas foi capaz de se im- por em definitivo como a verdadeira e única sabedoria. A primeira concepção que podemos destacar consiste, portanto, em ver a filosofia como busca e não como saber pronto e acabado; como saber que se faz pela busca, que resulta da busca, de uma atitude inda- gadora e não da posse da verdade ou do conhecimento. O buscar nos transforma, faz-nos mudar de atitude em relação ao que sempre fomos, reVela nossas insatisfações, nos impulsiona a atingir uma nova visão das coisas. Talvez a busca seja interminável, mas nela está o que nos torna filósofos. Nesse sentido não podemos ensinar a filosofia, já que não se trata de algo pronto ou acabado, de um conteúdo infor- DP&A editora

Marcondes EPossivelEnsinarFilosofia

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Page 1: Marcondes EPossivelEnsinarFilosofia

A' 3

É possível ensinar a filosofia? E, se possível, como?

Danilo Marcondes*

A filosófia não é uma teoria, mas uma atividade.

Ludwig Wittgenstein (Tractatus Logico-Philosophicus, 4.1 12)

E famosa a afirmação de Kant de que não se pode ensinar filosofia,

mas apenas a filosofar. Kant, por sua vez, apesar de ter sido autor de tex-

tos de leitura e interpretação notoriamente difíceis, foi considerado

um excelente professor, atraindo sempre inúmeros alunos para suas

aulas que iam da geografia à lógica.

A pergunta inicial sobre se é possível ensinar a filosofia e, em caso

afirmativo, como, supõe uma questão anterior, a saber, que filosofia

queremos ensinar? Supõe, portanto, uma determinada concepção de

filosofia a ser ensinada. A tradição filosófica nos mostra que não há uma

única resposta possível à questão sobre o que é a filosofia, mas que, ao

contrário, ao longo dos séculos a filosofia foi concebida de diferentes

maneiras, dando origem na verdade a várias tradições. Vamos tentar

distinguir algumas no intuito de procurar responder melhor à nossa

questão preliminar. Ao mesmo tempo, podemos nos perguntar se há,

ou mesmo se deve haVer, algo em comum entre todas essas várias

formas do que pode ser denominado de "filosofia".

Segundo uma das muitas tradições que relatam o surgimento da

filosofia, Pitágoras teria respondido a Leon, tirano de Fliús, quando

interrogado sobre afinal quem era, "Sou um filósofo" (Diógenes

Laércio, 1988, liVros I e VIII). É interessante notar aí que o termo

Professor do Departamento de Filosofia da PUC-Rio.

É possível ensinar a filosofia? E, se possível, como? 55

"filósofo" parece ter surgido antes mesmo de "filoso fia", o que pode re-

forçar a idéia defendida por alguns de que não há filosofia, mas apenas

filósofos. Vamos explorar alguns elementos subjacentes a esta concepção.

A afirmação de Pitágoras é apenas superficialmente modesta. Com

ela, Pitágoras está estabelecendo um contraste entre sua forma de pen-

samento, a filosofia, "a amizade ao saber", e a Sophia, o saber dos sábios,

dos sophoi, daqueles que possuíam um saber de caráter especial, inspi-

rado, iniciático, fruto de um dom diVino, o dom da sabedoria. O fi-

lósofo, ao contrário, é apenas aquele que busca o saber, mas que tem

consciência de ainda não o ter encontrado, de não possuí-lo, de estar

distante dele. A filosofia se define deste modo mais pela busca do que

pela posse do saber. Pitágoras faz assim explicitamente uma crítica aos

sábios, à pretensão destes em afirmar já possuírem a sabedoria, já se-

rem os donos ou mestres da verdade, sábios dogmáticos, portanto.

Aponta também para os riscos desta pretensão sempre fracassada. A

sabedoria que pretende dar respostas definitivas às nossas indagações

mais fundamentais, que pretende ter a palavra final, sempre se arris-

cará a ser insuficiente, limitada, decepcionante, deixando de dar conta

desta sua pretensão. Afinal, as questões permanecem em aberto, as res-

postas são inconclusivas e nenhuma dessas doutrinas foi capaz de se im-

por em definitivo como a verdadeira e única sabedoria.

A primeira concepção que podemos destacar consiste, portanto,

em ver a filosofia como busca e não como saber pronto e acabado; como

saber que se faz pela busca, que resulta da busca, de uma atitude inda-

gadora e não da posse da verdade ou do conhecimento. O buscar nos

transforma, faz-nos mudar de atitude em relação ao que sempre

fomos, reVela nossas insatisfações, nos impulsiona a atingir uma nova

visão das coisas. Talvez a busca seja interminável, mas nela está o que

nos torna filósofos. Nesse sentido não podemos ensinar a filosofia, já

que não se trata de algo pronto ou acabado, de um conteúdo infor-

DP&A editora

Page 2: Marcondes EPossivelEnsinarFilosofia

56 Filosofa: caminhos para seu ensino É possível ensinar a filosofia? E, se possível, como? 57

mativo, que pode ser transmitido e reproduzido. Mas pode-se ensinar

a filosofar no sentido de motivar ou impulsionar para a busca.

Sócrates é certamente herdeiro dessa tradição que remontaria a

Pitágoras. Seu pensamento, tal como o conhecemos pelos assim cha-

mados "diálogos socráticos" de Platão, reafirma o caráter prático do fi-losofar, como mudança de atitude. Para Sócrates o filosofar consiste em

romper com o a atitude comum, o domínio da opinião e das crenças

recebidas, em que nos aferramos a uma Visão das coisas que adqui-

rimos pelos hábitos, que recebemos por ouVir falar, que incorporamos

muitas vezes sem nos darmos conta disso. É nisso que consiste o do-

mínio do preconceito, da visão pré-concebida, irrefletida, impensada.

Daí a famosa afirmação da Apologia, segundo a qual "a Vida não exa-

minada não vale a pena ser vivida" (38a). Essa atitude deve dar lugar ao

espírito crítico; quando interrogamos nossas crenças e valores, quan-

do interpelamos o que nos é transmitido como verdadeiro, quando

questionamos aquilo que nos é ensinado sem exame ou discussão,

quando exigimos a justificatiVa daquilo que é afirmado. O espírito crí-

tico, a atitude refletida e questionadora, é a garantia de que estamos

na busca do saber, no caminho para o qual apontaVa Pitágoras. Por isso,

no Ménon (90a, 98a), Sócrates nos diz que aquilo que mais importa, a

Virtude, areté, não pode ser ensinado, porque deve ser descoberto a

partir da busca de cada um. O papel do filósofo, ou do mestre em geral,

pode, no máximo, ser o de despertar em cada um aquilo que já traz

dentro de si, o ímpeto, a curiosidade, a capacidade que permitirão com

que empreenda, ele próprio, essa busca. A filosofia consiste em umprocesso de re flexão que nos leva a buscar as respostas às indagações

que encontramos em nossa própria experiência.

Em contraste com esta, temos uma concepção de caráter mais his-

torico em que a filosofia consiste na tradição filosófica, sendo que é esta

tradição que deVe ser ensinada. Devemos ensinar filosofia atraVés da

leitura e da interpretação das obras dos filósofos mais importantes e

mais influentes, cuja contribuição formou esta tradição, não só do ponto

de vista filosófico, mas também de outras áreas do pensamento. O

ensino da filosofia não pode, portanto, ser independente do conheci-

mento da tradição, uma vez que é através dela que entramos em con-

tato com os problemas filosóficos e com o modo pelo qual os filósofos

mais influentes trataram esses problemas. Existe, portanto, um saber

a ser adquirido, consistindo nas principais teorias e nos grandes siste-

mas da tradição, desde o seu surgimento na Grécia Antiga até o pensa-

mento contemporâneo.

A história da filosofia nos reVela, contudo, que ao longo dessa tra-

dição não houVe uma única linha predominante de pensamento, nem

um estilo único de se fazer filosofia. A filosofia desenvolveu-se através

de aproximações em maior ou menor grau com a ciência natural, a

matemática, a arte, a política, a religião e o mito. O pensamento filosó-

fico expressou-se em diferentes estilos, em poemas, diálogos, aforis-

mos, tratados, cartas, autobiografias.

Embora possamos reconhecer o Valor e a importância da contribui-

cão á filosofia dos pensadores que são incluídos na tradição, muitas

Vezes é difícil identificar o traço comum entre eles, por exemplo, entre

o piedoso Boécio e o critico Sexto Empírico, tomando como exemplo

dois filósofos de aproximadamente o mesmo período, o final da an ti

-guidade. Há pensadores, por sua vez, que se encontram no limite entre

a filosofia e a literatura ou a retórica, como Cícero, ou entre a filosofia

e a ciência, como Euclides. Seria talVez inútil sequer tentar encontrar

esse traço comum entre os filósofos que a tradição incorporou, afinal

essa tradição ela própria se formou de modo menos linear e mais des-

contínuo do que quis Hegel em suas Lições de História da Filosofa. 0 que

Page 3: Marcondes EPossivelEnsinarFilosofia

58 Filosofia: caminhos para seu ensino É possível ensinar a filosofa? E, se possível, como? 59

a história da filosofia e o exame da tradição filosófica parecem nos en-

sinar é que se primeiro dizíamos que antes de haver filosofia há filó-

sofos, agora devemos dizer que não há filosofia, mas filosofias, ou seja,

que a filosofia é plural.

Os céticos antigos, ao combater o dogmatismo, construíram uma

imagem interessante sobre essa natureza múltipla da filosofia e sobre

como essa multiplicidade constitui um desafio para o ensino da filosofia

nossa busca. Imaginemos um joVem interessado em filosofia , que

dirige para Atenas, em pleno século IV a.C., atraído pela fama da ci-

dade como grande centro das escolas de filosofia. TalVez tenha ouvido

talar primeiramente na Academia de Platão e para lá se dirige. Fasci-

nador_elas lições dos platónicos, converte-se ao platonismo, tornando-

se adepto da Academia. Mas, vindo a saber pelos atenienses do Liceu

de Ariszoteles, passa a freqüentá-lo, interessado na crítica ao platonismo

e logo adere ao aristotelismo, sob a influência de sua lógica e de seus

argumentos. Em seguida, alguém lhe aponta o caminho do Pórtico e

o joVem procura os estóicos e se persuade de seus ensinamentos, tor-

nando-se um estóico. Mais adiante, curioso acerca do epicurismo, pro-

cura o Jardim ao qual acaba por se integrar. O jovem que buscaVa a

filosofia encontra não uma, mas Várias doutrinas concorrentes, que se

excluem mutuamente e se proclamam como a verdadeira filosofia.

Mas como decidir entre elas e entre a verdade de seus Vários ensina-

mentos? Não há, finalmente, um critério teórico independente das

próprias doutrinas filosóficas que permita escolher entre elas. O jovem

que procurava na filosofia uma resposta para suas indagações encontra-

se agora ainda mais perplexo, sem sabercomo optar entre as diferentes

escolas que freqüentou, e talvez acabe por aderir a uma delas dogmati-

camente, ou abandone a sua busca, considerando-a inútil. Segundo os

céticos, as doutrinas dogmáticas, ou seja, que se consideram as únicas

verdadeiras e excluem a possibilidade de qualquer outra, acabam por

levar ao chamado conflito das doutrinas, a diaphonia, conflito este in-

solúvel por falta de critério filosófico de decisão entre a validade das es-

colas.i Afinal, todo critério depende por sua vez de uma determinada

doutrina. Diante disso, a lição dos céticos consistia em recuperar a

concepção de filosofia como busca, zétesis e indagação, skepsis, abando-

nando, ou ao menos colocando no segundo plano, o caráter doutri-

nário. Por outro lado, os céticos valorizavam o exame da tradição

porque o conhecimento das várias doutrinas levava à sua relativização,

fazia com que seu caráter dogmático se diluísse e reVelava o interesse

e a relevância das Várias respostas às nossas indagações. O ecletismo de

alguns pensadores do final do período antigo, como o próprio Dió-

genes Laércio, e também Plutarco, resulta dessa concepção e da possi-

bilidade de se combinarem diferentes doutrinas, ou de bebermos de

várias fontes. Posição esta que foi retomada com freqüência no início

da modernidade com o Humanismo Renascentista. Alguns céticos

modernos chegaram, inclusive, a defender a importância da história da

filosofia como apresentando as várias alternativas que se formularam na

tradição de tal modo que o interessado em filosofia possa fazer a sua

própria escolha.Podemos supor, então, que essas duas concepções, a filosofia como

busca ou como estudo da tradição filosófica, não necessariamente se

excluem, mas podem ambas trazer elementos valiosos para o ensino

da filosofia. A história da filosofia pode contribuir para despertar o in-

teresse por questões filosóficas através do contato com as obras dos

grandes pensadores que primeiro as formularam. Seu modo de tratá-

las pode servir de inspiração e motiVação para nossa busca, mesmo que

criticamente.

' Sobre a questão do conflito das doutrinas ver de Oswaldo Porchat Pereira, "O con-flito das filosofias". In: Prado Jr., Bento et al. (1981), capítulo I.

Disserta
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Page 4: Marcondes EPossivelEnsinarFilosofia

60 Filosofia: caminhos para seu ensino E possível ensinar a filosofia? E, se possível, como? 61

A história da filosofia deve ser vista assim como história não da tra-

dição em seu sentido doutrinário, ou como história dos grandes sis-

temas, mas sim como contendo a contribuição dos grandes filósofos ao

introduzirem questões que até hoje nos motivam a pensar, e como

indicando os vários modos como essas questões foram tratadas. DeVe

ser vista também não como linear ou contínua, mas como incluindo

o intenso debate entre os Vários filósofos e as várias correntes de pensa-

mento, as críticas, rupturas, controvérsias, polêmicas que já se encon-

tram no início mesmo da filosofia como a crítica de Parmênides aos

mobilistas, de Platão aos sofistas e de Aristóteles aos platônicos. A tra-

dição filosófica é uma história de grandes polêmicas, mais do que da

formação progressiva de um saber ou da constituição de uma doutrina.

Nem todas as questões da tradição permanecem atuais. A forma do

Bem, o Motor Imóvel ou o Logos Spermdtikos são conceitos que possuem

interesse apenas histórico, importantes para entendermos as teorias

respectiVamente de Platão, de Aristóteles e dos estóicos, porém não

mais diretamente releVantes para o nosso contexto. Por outro lado, os

problemas que levaram Platão, Aristóteles e os estóicos à formulação

desses conceitos, conk) a necessidade de um princípio para a ética ou

a necessidade de explicarmos o movimento e a mudança, são proble-

mas que ainda nos preocupam.

A consideração da história da filosofia não nos revela o progresso

de um saber, nem a expansão de um conhecimento. Não é linear, nem

cumulativa, mas antes, os problemas são recorrentes, incessantemente

retomados.

Assim, não são as respostas dos filósofos, mas antes suas perguntas,

que nos motivam e é através dessas perguntas que encontramos o seu

ensinamento, desde que possamos retomá-las e reformulá-las como

nossas. Toda teoria da tradição para que se torne relevante, para que

reviva e tenha seu interesse despertado, supõe um leitor interessado,

um leitor que torne suas aquelas questões, as retome e as leve adiante

em um novo contexto. Isso ocorreu no início da modernidade com a

retomada do ceticismo antigo e na Revolução Cientifica do século XVI

com a retomada das antigas teorias heliocêntricas do Cosmo.

A história da filosofia deVe ser vista, assim, como história dos con-

ceitos que inicialmente formulados por filósofos acabaram por ir além

do âmbito da discussão filosófica e se incorporaram à nossa forma de

pensar, à nossa visão de mundo. Como alguns dos exemplos mais evi-

dentes nesse sentido temos o conceito de causalidade, introduzido pelos

pré-socráticos, e a noção de idéia, no sentido particular que Descartes

lhe deu e que se incorporou em definitivo a nosso vocabulário.

Deve ser vista também como a história dos argumentos filosóficos,

ou seja, do modo como os filósofos procuraram justificar uma deter-

minada concepção, ou defender racionalmente uma determinada po-

sição. A defesa por Aristóteles do Princípio da Não-Contradição no

livro F da Metafísica, o célebre argumento ontológico de Santo An-

selmo, as provas da existência de Deus em São Tomás de Aquino, o ar-

gumento do cogito de Descartes e a concepção kantiana de argumento

transcendental são alguns dos grandes exemplos de argumentos reto-

mados sucessiVamente pela tradição filosófica. O argumento ontoló-

gico formulado por Anselmo foi retomado por São Tomás, reaparece

em Descartes, é combatido por Kant e depois por Nietzsche e por

Bertrand Russell e defendido em algumas reinterpretações contempo-

râneas (Platinga, 1965).

Podemos concluir, assim, que tanto a visão da filosofia como busca

a partir de nossas indagações, quanto como história da filosofia e

conhecimento das doutrinas da tradição, não necessariamente se ex-

cluem e podem servir de ponto de partida para o ensino da filosofia.

Page 5: Marcondes EPossivelEnsinarFilosofia

62 Filosofa: caminhos para seu ensino E possível ensinar afilosofia? E, se possível, como? 63

O estudo da origem dos conceitos e das transformações pelas quais

passaram como no exemplo da causalidade, pode ser relevante para o

1`27.ecimento em diferentes áreas. A análise dos argumentos filosóficos

_:ez seja o que revela mais de perto o modo de pensar dos filósofos,

como esses argumentos podem ser defendidos, refutados,

_e_ _-anulados, suscitando por sua vez urna discussão sobre nó que con-

t!- ar c estar e como podemos legitimamente fazê-lo. O exame dessa

__c menta? para o ensino da filosofia em qualquer níVel.

A esta,_: ,da

p,c•ssibilidade do ensino da filosofia supõe agora uma

c'cesta. sobre o objetivo desse ensino. Para que queremos

_..o_cda, para que alguém deve aprender filosofia?

As escolas de filosofia na Grécia Antiga distinguiam entre as dou-

trinas a_crericcs e as exotéricas. O ensinamento esotérico era voltado para

o público interno das escolas, para os discípulos, para aqueles que vi-

savam tornar-se filósofos e pertencer á escola. Não há necessariamente

nada de misterioso, oculto ou secreto no ensinamento esotérico, mas

ele tendia a ser mais longo, mais especializado. Supunha urna dedicação

maior e mais aprofundamento no estudo de textos e uma maior prepa-

ração na arte de argumentar. O ensinamento exotérico, ao contrário,

era voltado para o grande público e atest a a popularidade da filosofia

na Grécia; quando se tratava de filósofos famosos era grande a procura

por essas lições públicas. A linguagem nesses casos deVeria ser mais

acessīvel, o estilo tendia a ser mais retórico e a ênfase em questões de

interesse mais geral. Ambos eram igualmente importantes, o ensina-

mento esotérico era essencial para o desenvolvimento da filosofia e

para a formação das futuras gerações de filósofos, mas sem os ensina-

mentos exotéricos a filosofia ficaria restrita; não atingiria o público em

geral, não mostraria sua releVância, não ampliaria sua discussão e até

mesmo poderia deixar de atrair novos discípulos e noVas Vocações filo-

sóficas. Não havia assim necessariamente o privilégio de uma forma de

ensinamento ou de um estilo de filosofar.

Isso nos mostra que a filosofia não precisa ser necessariamente um

discurso hermético, embora o estudo de textos clássicos da filosofia

pressuponha certamente um conhecimento altamente especializado, e

com freqüência a linguagem dos filósofos contenha termos técnicos,

os conceitos que estes filósofos formularam e utilizaram. Porém, na

medida em que a filosofia diz respeito ás questões que interessam a

todos, desde a ética até as formas de argumentação e os problemas do

conhecimento e da ciência, é possível fazer com que a discussão filosó-

fica seja acessível e que todo aquele que tiver interesse possa se sentir

capaz de filosofar. A filosofia pode ser entendida assim como contínua

com nossa atividade cotidiana, com nossa experiência comum (Prado

Jr., 1981, capítulos VI e VII). As questões dos filósofos não estão ne-

cessariamente distantes das pessoas comuns, que não possuem qual-

quer conhecimento filosófico, mas dizem respeito a preocupações que

todos compartilhamos, por exemplo, sobre que decisão tomarmos ou

como justificarmos uma crença ou uma escolha; embora as teorias que

resultam das tentativas de tratamento dessas questões possam ser al-

tamente especializadas, como a teoria das formas de Platão ou a filo-

sofia transcendental de K ant.

Contemporaneamente, não falamos mais em doutrinas esotéricas

ou exotéricas, mas podemos distinguir, em linhas gerais, entre o ensino

da filosofia que visa formar o professor ou o pesquisador e o voltado para

estudantes ou profissionais de outras áreas que terão apenas um

contato inicial com a filosofia. O ensino da filosofia pode ter então no

primeiro caso, do estudante de filosofia, um papel formativo, levando-

o a desenVolver suas próprias reflexões com base no conhecimento dos

filósofos da tradição, de seus textos, de seus argumentos. 0 estudante

Disserta
Trabalho
As questões dos filósofos não estão necessariamente distantes das pessoas comuns, que não possuem qualquer conhecimento filosófico, mas dizem respeito a preocupações que todos compartilhamos, por exemplo, sobre que decisão tomarmos ou como justificarmos uma crença ou uma escolha; embora as teorias que resultam das tentativas de tratamento dessas questões possam ser altamente especializadas, como a teoria das formas de Platão ou a filosofia transcendental de K ant
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É possível ensinar a f losefia? E, se possível, como? 65Filosofa: caminhos para seu ensino64

de filosofia deve ser capaz sempre de buscar as suas próprias questões,

mas sua reflexão se desenvolverá na medida em que puder aperfeiçoar

urn método de leitura dos textos dos filósofos, e de interpretar e re-

construir seus argumentos. No segundo caso, a filosofia tem um papel

mais geral em um sentido cultural, quando se pretende mostrar a re-

leVância e a influência de teorias e de conceitos filosóficos em nossa tra-

dição para além das próprias teorias filosóficas, fazendo assim com que

o estudante entenda melhor essa tradição, sua formação, seus desdo-

bramentos, suas crises. E, por fim, pode ter um papel de aprofundamento

para quem atua em outras áreas para as quais o conhecimento de teo-

rias filosóficas pode trazer uma contribuição específica. Isso ocorre,

sobretudo, em áreas como filosofia da ciência, filosofia da arte, filosofia

da linguagem, filosofia política em que a reflexão filosófica sobre essas

determinadas areas contribui para a discussão metodológica e episte-

mológica daqueles que atuam nelas.

A preparação do filósofo de certa forma demanda menos, porque

já parte de uma motiVação inicial pela filosofia e o que se requer é,

como Vimos acima, que ele possa desenvolVer suas indagações filosó-

ficas por um lado e conhecer os elementos mais importantes da tradi-

ção por outro, e que cada aspecto de\ sua formação possa alimentar o

outro. O grande desafio para o ensino da filosofia consiste em mo tiVaraquele que ainda não possui qualquer conhecimento do pensamento

filosófico, ou sequer sabe para que serve a filosofia, a desenVolver ointeresse por este pensamento, a compreender sua releVância e a Vir a

elaborar suas próprias questões. Profissionais de outras área e estu-

dantes já maduros não terão normalmente -maiores dificuldades nestesentido, se o curso for adaptado ás suas necessidades e a seus interesses.

O caso mais especial e que demanda maior atenção e cuidado do pro-fessor é o ensino da filosofia em níVeis iniciais para estudantes do

ensino médio. Deve-se então partir da realidade destes estudantes, de

seu contexto, de sua experiência de vida, de suas inquietações. E pre-

ciso ser sensível a seus dilemas e interesses. Creio que nesses casos, a

melhor forma de abrir caminho para a filosofia é através da discussão

de questões existenciais, que foram sempre centrais na filosofia, mos-

trando, como dissemos acima, a continuidade entre filosofia e nossa

vida concreta e indicando como essas questões que vivenciamos foram

também questões dos grandes filósofos e que o modo como as discuti-

ram pode ser relevante para nós, pode nos ajudar a pensar por nós

mesmos, mas junto com eles. Filósofos como Sócrates, Kierkegaard,

Sartre, cujo pensamento tem forte apelo existencial, geralmente são

os melhores guias para os iniciantes na filosofia.

Se, portanto, o que se ensina em filosofia, em última análise, tanto

para os que pretendem se dedicar à filosofia como para os estudantes

de outras áreas, é a possibilidade de desenvolver o seu próprio pensa-

mento de forma crítica, os textos dos filósofos da tradição, os conceitos

que formularam e os argumentos que desenvolveram podem fornecer

os pontos de par tida e os instrumentos através dos quais essa reflexão

se desenVolVerá.

A reflexão crítica não é espontânea, mas se elabora a partir das

questões de cada um, existenciais, profissionais, científicas, teóricas;

através dos métodos e argumentos que a tradição filosófica nos legou

e que devemos, de alguma maneira, converter em nossos. A escolha de

que método adotar tem inevitavelmente um certo grau de arbitrarie-

dade, dependendo de nossos mestres, de nosso contexto, dos filósofos

que, por vários motivos se tornaram mais acessíveis a nós e com que

por várias circunstâncias entramos em contato.

Isso nos leva, assim, à última questão, ou seja, como ensinar a filo-

sofia? De que meios, instrumentos ou material dispomos para isso? Se

Page 7: Marcondes EPossivelEnsinarFilosofia

Filosofia: caminhos para seu ensino66 É possível ensinar afilosofia? E, se possível, como? 67

nosso objetiVo último é chegar, em níVeis mais ou menos elaborados,

à possibilidade de uma reflexão critica, que não é espontânea, mas pro-

Vocada por nosso contato com a filosofia, então nosso filosofar deverá

se tornar possível a partir de uma interação direta com os textos mais

significativos da tradição filosófica, ou seja, de um contato com a refle-

xão que os filósofos que mais marcaram a tradição realizaram eles pró-

prios. Para isso, o instrumento fundamental deVe ser, ao menos de iní-

cio, a leitura e interpretação dos textos mais relev antes para o interesse

do estudante. A escolha desses textos deve ser feita em função de sua

capacidade de cumprir esse papel de iniciar esse processo, tanto por

seu carater representativo da reflexão filosófica, quanto por sua afi-

nidade com os interesses do leitor. O desenvolvimento da reflexão de

cada um se fará pela maneira, mais ou menos criatiVa, mais ou menos

aprofundada, levando em conta as possibilidades e as necessidades, pela

qual cada um se apropria do pensamento filosófico. Todos os métodos

de leitura e interpretação de textos, estrutural, hermenêutico, his-

tórico, analítico podem se válidos e úteis nesse sen tido, o importante

é que sejam escolhidos em função do papel que podem exercer e que

venham a transformar-se em instrumentos de desenvolvimento da

reflexão de cada um. Isso significa que mesmo nos níveis mais introdu-

tórios, a leitura dos textos é indispens; bel, e parte do que ensinamos

consiste exatamente em uma forma específica de ler, que reconstrói o

argumento, que interroga o texto, que iden tifica suas questões básicas,

que revela como tece seus argumentos, que o avalia quanto à sua capa-

cidade de nos convencer ou não.

Kant define no texto famoso da Crítica do Juízo (§ 4-0) o pensamento

crítico de acordo com os seguintes princípios fundamentais:

1) Pensar por si mesmo; a garantia da autonomia do pensamento.

2) Pensar do ponto de Vista do outro; significando o pensamento alar-gado, capaz de ultrapassar os limites do estritamente subjetivo.

3) Pensar de forma consistente; o princípio, segundo Kant, da própriarazão, resultando da combinação dos dois primeiros.

O pensamento crítico se caracteriza assim, pela capacidade de

reflexão e de auto-exame, pela consciência de limites que resulta disso

e pela possibilidade de pensar alternatiVas, eVitando o dogmatismo e

a crença de que em algum momento podemos ter a palavra final sobre

qualquer questão.

Creio que a filosofia, em suas origens gregas, nos ensina uma carac-

terística fundamental do filosofar: o debate, a discussão, a polêmica, a

argumentação. Nossa época tem sido, desde a modernidade, um pe-

ríodo de grande valorização do pensamento autoral, da escrita, da

produção do texto. Esse é, sem dúvida, o momento em que a criativi-

dade se exerce, em que podemos desenvolver um pensamento próprio;

contudo, esse pensamento deve ser sempre visto como provisório,

deVe permanecer sempre em aberto, capaz de se auto-reformular, de

descobrir novos caminhos e para isso a instância do diálogo, do debate,

da crítica é indispensável. Desse modo, a filosofia não se encerra em

si mesma, mas é levada a se auto-reformular com base nos questiona-

mentos que sofre. Port anto, um aspecto essencial do ensino da filosofia

consiste na interação, no debate filosófico, no questionamento do

pensamento e na necessidade de defendê-lo, o que leva inevitaVelmente

à sua reformulação. Essa é a garantia de que o pensamento não se cris-

taliza e não se torna superado. E é por isso que podemos ainda hoje não

só ler Platão, ou Kant, mas discutir os seus textos, tornando-os vivos

para nós. É nessa reapropriação dos textos para nosso próprio pensa-

mento que encontramos um gr ande desafio para mestres e estud antes

e urn dos muitos paradoxos da filosofia.

A filosofia é paradoxal porque partindo da experiência comum

busca chegar a uma reflexão radical e a um conhecimento especializado

Page 8: Marcondes EPossivelEnsinarFilosofia

68 Filosofa: caminhos para seu ensino

que por sua vez se afasta desta experiência, mas pretende ainda reintegrá-

la, ser relevante para ela; mais ainda, parte da linguagem comum, bus-

cando lhe dar noVos significados e, também, tom ando os textos da tra-

dição pretende lhes ser fiel, mas ao mesmo tempo precisa reinterpretá-los.

dessa natureza paradoxal que a filosofia extrai seu caráter dinâ-

mico e sua relevância para nós.

Referências bibliográficas

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