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O AMOR NOS LIVROS DE CAVALARIAS O
PALMEIRIM DE INGLATERRA
DE
FRANCISCO DE MORAES:
EDIO E ESTUDO
Margarida Maria de Jesus Santos Alpalho
___________________________________________________
Dissertao apresentada para cumprimento dos requisitos necessrios
obteno do grau de Doutor em Lnguas e Literaturas Romnicas especialidade
de Literaturas Romnicas Comparadas, realizada sob a orientao cientfica da
Prof. Doutora Irene Freire Nunes e do
Prof. Doutor Helder Godinho.
NOVEMBRO DE 2008
Dedicatria
memria de meus avs
A meus pais
A meu irmo
Ao Manuel, incessante cavaleiro andante
Agradecimentos
Fundao para a Cincia e Tecnologia pelo apoio concedido no mbito
do III Quadro Comunitrio de Apoio; aos meus orientadores, Prof. Doutora Irene
Freire Nunes e Prof. Doutor Helder Godinho, pelo incentivo, pela disponibilidade
e pelas palavras sbias que me facultaram ao longo deste trabalho; aos muitos
familiares e amigos que gostaria, mas no posso aqui nomear, ao proprietrio da
Biblioteca del Cigarral del Carmen pela sua imensa generosidade e amabilidade;
aos investigadores do CEIL (Centro de Estudos sobre o Imaginrio Literrio),
nomeadamente Professora Yvette Kace Centeno, pela partilha de ideias e de
saber; a todos quantos, de algum modo, me facultaram apoio no percurso de
elaborao deste trabalho, em especial a Ana Paiva Morais, a Paulo Alexandre
Pereira, a Aurelio Vargas Daz-Toledo, a Odete Martins, a Helena Arjones, a
Arantxa Domingo, a Ral Cesar Gouveia Fernandes; a todos o meu mais sincero
obrigada.
DISSERTAO: O AMOR NOS LIVROS DE CAVALARIAS O
PALMEIRIM DE INGLATERRA DE FRANCISCO DE MORAES: EDIO
E ESTUDO
MARGARIDA M. de J. SANTOS ALPALHO
DISSERTATION: LOVE IN ROMANCES OF CHIVALRY PALMERIN OF
ENGLAND OF FRANCISCO DE MORAES: EDITION AND STUDY
MARGARIDA M. de J. SANTOS ALPALHO
PALAVRAS-CHAVE: amor, edio, Francisco de Moraes, Francisco de Morais,
Literatura Portuguesa, livros de cavalarias, Palmeirim de Inglaterra, Renascimento
KEYWORDS: edition, Francisco de Moraes, Francisco de Morais, love,
Palmeirim de Inglaterra, Palmerin of England, Portuguese Literature, Renascence,
romances of chivalry
Resumo:
Esta Dissertao tem dois objectivos principais: um editar o texto
Palmeirim de Inglaterra de Francisco de Moraes com base nas edies
quinhentistas em portugus, outro estudar o amor a partir da personagem de
Floriano do Deserto.
Alm destes aspectos, apresenta-se a biografia e a obra do autor tendo em
conta novos dados descobertos. Relaciona-se ainda o Palmeirim com outros
textos, principalmente com aqueles que lhe servem de intertexto e com outras
obras, maioritariamente medievais.
Abstract:
This dissertation have two main objectives, one is the edition of the text of
Palmeirim de Inglaterra from Francisco de Moraes with reference to the XVI
century prints, in Portuguese, and the other the study of Love based on the
character Floriano do Deserto.
Beside this two points is also presented the author biography and works
considering new and recently discovered data. Palmeirim is also compared with
other works mainly those used as intertext and others, most medieval.
ndice
Introduo 1
Captulo 1- os livros de cavalarias 5
1.1- (con)textos e pretextos 7
1.2- o Palmeirim de Inglaterra e os palmeirins 17
1.3- outros livros tambm de cavalarias 25
1.4- Palmeirim de Inglaterra e o seu autor 37
1.4.1- a vida de Francisco de Moraes 37
1.4.2- a obra de Francisco de Moraes 47
Captulo 2- o amor nos livros de cavalarias:
uma anlise literria de Palmeirim de Inglaterra 55
2.1- uma narrativa de gmeos 57
2.2- o cavaleiro, a donzela e o mediador 63
2.3- a aventura do amor 77
Captulo 3- uma edio crtica de Palmeirim de Inglaterra 87
3.1- as edies em portugus 89
3.2- as tradues e suas edies 109
3.3- breve apresentao lingustica 113
3.4- critrios de transcrio e aparato crtico 121
3.5- texto 129
3.6- ndice de captulos 1157
3.7- glossrios 1165
Concluso 1235
Bibliografia 1237
Lista de figuras 1273
Apndices: 1275
n. 1: Carta a Ferno de lvares i
n. 2: Frei Diogo de Santa Anna, Memorial fidelissimo, 1638 (excerto) xi
n. 3: Documentos consultados relativos ao nome Francisco de Moraes xiv
n. 4: Documentos relativos biografia xvii
n. 5: Alvars rgios da edio de 1592 xxiv
n. 6: Ascendentes e descendentes de Francisco de Moraes xxv
n. 7: Exemplares da obra registados em catlogos antigos de bibliotecas xxvii
n. 8: Referncias a Palmeirim de Inglaterra e Lngua Portuguesa xxxi
n. 9: Genealogias em Palmeirim de Inglaterra xxxiv
n. 10: Dedicatria da edio 1567 (e notas sobre a de 1592) xlii
n. 11: Cotejo textual (de dois exemplares da edio de 1567) xlv
n. 12: Cotejo textual e edio l
Lista de abreviaturas
ANTT: Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Lisboa (Portugal)
BA: Biblioteca da Ajuda, Lisboa (Portugal)
BCC: Biblioteca Cigarral del Carmen, Toledo (Espanha)
BNP: Biblioteca Nacional de Portugal, Lisboa
BNE: Biblioteca Nacional de Espanha, Madrid
BMP: Biblioteca Menendez Pelayo, Santander (Espanha)
FCG: Fundao Calouste Gulbenkian, Lisboa
FLUC: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra
FLUL: Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
HSA: Hispanic Society of America, Nova Iorque (Estados Unidos da Amrica)
RB-PR: Real Biblioteca Palcio Real, Madrid (Espanha)
PDVV BDM II: Pao Ducal de Vila Viosa Biblioteca de D. Manuel II
1
Introduo
Investigar no mbito da literatura cavaleiresca portuguesa e no dos livros
de cavalarias em particular implica desde logo aceitar um conjunto de desafios, o
primeiro dos quais envolve o prprio objecto de estudo. Com efeito, as obras que
constituem o corpus a considerar para desenvolver tal estudo nem sempre so de
acesso fcil, nomeadamente porque algumas apenas esto disponveis em edies
quinhentistas, outras apenas existem em verso ainda manuscrita, de outras foram
feitas reedies que alteram o texto ou, ainda, apenas de actualizao ortogrfica
de edio anterior.
Neste contexto, encetar um trabalho mais particular sobre uma obra
pareceu implicar desde logo uma edio com critrios definidos e enunciados
segundo prticas da ecdtica. Considerou-se ento que a edio da obra de
Francisco de Moraes, que se pretendia que constituisse a base de uma reflexo
sobre o amor nos livros de cavalarias, deveria ser parte do trabalho a efectuar,
tanto mais que o nico exemplar existente em Portugal da edio quinhentista
mais antiga que se conhecia se encontrava mutilado. E a localizao e
identificao de outros exemplares quinhentistas da obra do autor foi tambm um
percurso necessrio. Neste mbito encontraram-se outros desafios, nomeadamente
no que prtica editorial quinhentista diz respeito, bem como quanto a editores
que na centria em anlise trabalharam em Portugal, designadamente um dos que
se encontram ligados s edies quinhentistas de Palmeirim de Inglaterra. O texto
que aqui se apresenta o que se revelou ser o da edio mais antiga da obra.
edio do texto foi inevitvel juntar uma revisitao da biografia e da
obra do autor Francisco de Moraes (como assina), tendo em conta que novos
dados, ainda quando considerados parcos, foram encontrados sobre ambos.
O prprio texto constitui outro desafio. Por um lado porque faz parte de
um corpus literrio que foi, at h bem pouco tempo, um gnero
menosprezado (Osrio 2001: 9) no mbito da literatura nacional. E se esta
posio poder ter tido origem no facto de conter um alto grau de fantasia e
imaginao, como escreve Aurelio Vargas Daz-Toledo (2006a: 236), a mesma
est a ser contrariada pelos vrios estudos acadmicos que lhe tm sido dedicados
2
recentemente, como afirma logo depois este mesmo autor (2006a: 240), o qual se
tem revelado ele prprio um dos mais entusiastas e produtivos investigadores dos
livros de cavalarias portugueses. Por outro lado, o texto palmeiriniano portugus
constitui em si um desafio pelo seu contedo. Oriundo da pena de um escritor que
parece ter estado muito atento tanto ao seu tempo como aos espaos geogrficos
pelos quais se moveu, Palmeirim de Inglaterra parece, nem sempre de modo
completamente explcito, um enunciado polifnico, transportando ecos das vrias
manifestaes humanas que na primeira metade de quinhentos pareceram estar no
centro das atenes da elite culta da poca. Este aspecto torna-o numa obra nica
dentro do seu gnero e torna a sua leitura num exerccio interessante, motivador
de outras leituras, pretexto para realizar um percurso integrador, dialctico por
vezes, na via do acesso ao conhecimento.
Relativamente ao estudo sobre o amor nos livros de cavalarias este pode
parecer, a partir do enunciado, excessivamente abrangente e importa por isso
enunciar o propsito que daquele modo se apresenta. Os estudos dedicados ao
amor so inumerveis e oriundos das mais diversas reas do saber. Procurar
delimitar este sentimento como objecto de estudo concreto no mbito literrio
poderia ainda conduzir a outras abordagens do tema: o amor ao divino, por
exemplo, ou a reflexo mais filosfica sobre o sentimento em si, tendo em conta
uma das caractersticas literrias mais importantes do Renascimento ser
justamente a elaborao de dilogos filosficos com base em relaes de amor
como afirma Joo Vila-Ch (2001: 49) a pretexto dos Dilogos de Amor de Leo
Hebreu.
O ponto de vista que, no entanto, aqui interessa diz respeito s
manifestaes e configuraes textuais do amor entre damas e cavaleiros.
Interessa pois aqui abordar o sentimento amoroso na sua dimenso humana e nas
motivaes que conduzem damas e cavaleiros a esse encontro, ou desencontro, a
essa vivncia ou fixao, numa palavra, a essa aventura. Dado o gnero literrio
em anlise, no parecia possvel encetar tal abordagem sem abordar a tradio
literria e crtica sobre o assunto, nomeadamente a oriunda da tradio medieval
do amor corts, sobre o qual a obra O Amor e o Ocidente de Denis de Rougemont
tantos ecos provocou, tanto mais que os livros de cavalarias renascentistas so
herdeiros das narrativas cavaleirescas medievais em vrios aspectos. Importava
3
ainda, porque de obras renascentistas se trata, procurar compreender que outras
tradies da Antiguidade Clssica lhes poderiam estar por vezes associadas,
designadamente as que por via do humanismo italiano e da obra de Marslio
Ficino em particular, parecem ecoar no texto de Francisco de Moraes, tendo em
conta, entre outros aspectos, primeiramente algumas referncias textuais a Cupido
(Eros), e depois outras a alguns pares amorosos trgicos da Antiguidade que o
autor tambm convoca no seu Palmeirim de Inglaterra.
O amor a matria-prima dos livros de cavalarias, mas a pergunta que
determinou a anlise da personagem de Floriano do Deserto com mais detalhe que
outras decorreu do facto de alguma bibliografia crtica sobre Palmeirim de
Inglaterra aproximar a personagem do mito de D. Joo, aliado a outro facto que
se prende com a censura que feita de vrias atitudes da personagem pelo censor
da edio de 1592, aspecto j analisado por Isabel Almeida (1998: 280-291).
Enquanto o editor de 1567 parece no s ter um domnio da lngua
portuguesa menos consistente e ser movido pelo desejo de, em certa medida,
encurtar a obra, o censor da edio de 1592 parece movido pelo pensamento de
que amor humano e amor divino no so conciliveis, pelo menos na forma em
que Floriano do Deserto corporiza o primeiro daqueles, nomeadamente por o seu
ponto de vista ser o da religio catlica apostlica romana ps-tridentina, o qual
nem sempre parece ser o ponto de vista do autor de Palmeirim de Inglaterra que,
em vrios momentos, parece posicionar-se segundo um olhar menos ortodoxo
face quela f, e mais cristo no sentido lato do termo, adoptando uma perspectiva
que se considera sintetizada com exactido por Ernst Cassirer (1983: 172): Acte
de connaissance et damour ont un seul et mme but, tendant lun et lautre
surmonter la sparation des lments de ltre et remonter jusquau point de leur
unit originelle. Este autor refere aqui tambm um outro aspecto determinante da
obra de Moraes: o do conhecimento da origem, ou, por outras palavras, o da
recuperao da identidade perdida, tpico frequente nos livros de cavalarias.
Por outro lado, se em vrios textos das gestas medievais se encontram
diversas batalhas, nas quais se destacam alguns cavaleiros, nos livros de
cavalarias encontram-se predominantemente torneios e justas que colocam em
destaque os cavaleiros individualmente. A batalha s portas de Constantinopla que
se encontra em Palmeirim de Inglaterra assume, por isso, trao diferenciador.
4
Esta passagem do exerccio das armas das batalhas para os torneios e as justas
acompanha e traduz uma mundividncia microcsmica que se acentua com o
Renascimento e desloca o enfoque do grupo para o indivduo. Est-se ainda longe,
no entanto, do individualismo contemporneo (decorrente da noo psicanaltica
de ego), visto que, se h predominncia do indivduo na renascena quatrocentista
e quinhentista, esta visibilidade individual encontra-se relativizada pela, tambm
clara na poca, pertena a um grupo, assentando esta pertena no raro num
determinado maniquesmo. A configurao do Outro que as descobertas
peninsulares facilitaram e desenvolveram, e de que a chamada literatura de
viagens testemunho, disso exemplo, tal como a questo religiosa o foi durante
o sculo XVI, tanto dentro do continente europeu (catolicismo vs. heresia) como
fora (cristo vs. turco).
O percurso de trabalho que aqui se apresenta vai, pois, do texto poca,
passando pelo autor e pela sua obra, acompanhando tambm o narrador em
deambulaes apenas aparentemente errantes, num percurso que se pretende
dirigido para o conhecimento, mesmo quando realizado por trilhos de pendor
sentencioso, em certa medida tambm ao gosto da poca.
5
Captulo 1- os livros de cavalarias
6
7
1.1- (con)textos e pretextos
Ainda que o ponto enunciado, sobre o contexto histrico-literrio e
cultural dos livros de cavalarias, seja demasiado vasto, procurar-se- apontar
aqui, em traos gerais, alguns aspectos contextuais pertinentes para a
compreenso de alguns destes livros em geral e de Palmeirim de Inglaterra em
particular.
Produo peninsular por excelncia, os livros de cavalarias apresentam
com frequncia universos imaginrios e ficcionais strictu sensu, embora neles seja
possvel encontrar um conjunto de tpicos e de assuntos que radicam no campo
histrico, constituindo-se, concomitantemente, como facto literrio e como
veculo e afirmao de vrias outras manifestaes artsticas.
Herdeiros em primeira linha de uma tradio medieval conhecida
principalmente atravs da matria arturiana, ou da Bretanha, estes livros de
cavalarias inscrevem-se plenamente na sua poca e em alguns casos, de que
Palmeirim de Inglaterra de Francisco de Moraes um excelente exemplo,
apresentam testemunhos do seu tempo, convocando assuntos diversos como
adiante se ver.
Os livros de cavalarias, enquanto gnero, surgem ainda no sculo XIV,
com uma verso do Amadis de Gaula em trs livros (Cacho Blecua 1987: 80), no
sculo XV enriquecem-se (nomeadamente com o Libro del Caballero Zifar), so
objecto de numerosa produo durante o sculo XVI, em particular no seu incio
(Luca Megas 2004: 10 e 24), e parecem ter cado em descrdito com a publicao de El
Ingenioso Hidalgo Dom Quijote de la Mancha (1605).
A par desta realidade mais especificamente espanhola, importa equacionar
a realidade portuguesa que apresenta vrios testemunhos posteriores,
nomeadamente vrios livros cuja existncia est documentada apenas sob forma
manuscrita at, pelo menos, finais do sculo XVII, ou ainda princpios do XVIII
8
(Vargas 2006b: 233) e cuja produo se inicia com a publicao, em 1522, do
texto Prymeira parte da cronica do emperador Clarimundo donde os Reys de
Portugal desendem, de Joo de Barros. pois neste contexto literrio especfico,
meio impresso, meio manuscrito, sem (...) assumidos esforos de teorizao
(Almeida 1998: 77), ou talvez por isto mesmo, que vai desenvolver-se o universo
ficcional cavaleiresco quinhentista, entretecido de alguns textos, de um espao
nem sempre geograficamente identificvel e de um tempo nem sempre
reconhecvel no eixo cronolgico.
O cotejo das duas realidades fundamental para a compreenso do gnero
e da obra em anlise por quatro motivos em particular: em primeiro lugar pela
filiao textual que se encontra entre um conjunto de textos de que Palmeirim de
Inglaterra oriundo; seguidamente por se viver um ambiente de bilinguismo
manifesto nas edies quinhentistas conhecidas, no mbito do que se salienta pelo
menos um livro de cavalarias de autor portugus escrito em castelhano Selva
de cavalarias famozas de Antnio de Brito da Fonseca Lusitano (Vargas Daz-
Toledo 2006b: 246) embora a situao no seja indita, pois foram vrios os
autores portugueses a usar a lngua castelhana nas suas produes; em terceiro
lugar porque h, no caso de Palmeirim de Inglaterra, de Francisco de Moraes,
uma traduo castelhana, de debatida memria (1547-48) a primeira edio
com data conhecida, anterior portanto primeira edio conhecida com data do
texto em portugus (1567) e ainda porque, a par de muitas manifestaes de
intercmbio, tambm lingustico, os factos histricos do final de quinhentos
tornam indispensvel este olhar conjunto.
Veja-se, ento, em que contexto este gnero literrio marginal (Almeida
1998: 80), de evidente sucesso, nasce, cresce, mas embora parodiado no morre.
Na Pennsula Ibrica, os reinos de Castela e Portugal encontram-se, no
virar de sculo, em fase de concluso da expanso do mundo conhecido e em
contacto directo com algumas culturas at ento ignoradas. A separao do
Atlntico em duas zonas de influncia (Albuquerque 1991: 289), atribudas uma
a cada reino, haviam sido recentemente confirmadas pois o Tratado de
9
Tordesilhas fora assinado em 1494. E esta (re)definio do espao geogrfico
operava-se no s fora, mas tambm dentro do espao ibrico, pois:
Os Romanos tinham dividido a Hispnia em provncias. Todavia, o que
agora os humanistas descobriam diante dos olhos no era a diviso de
Augusto ou Dioclesiano, mas a que a histria fora determinando desde o
sculo IX. Portugal no coincidia com nenhuma das provncias da
Hispnia. E apesar do esforo de retroverso de Portugal por Lusitania, o
encaixe no resultava. O retorno ao Imprio Romano, literalmente
ambicionado, caa na frustrao. (Magalhes 1993: 15)
Este novo olhar sobre o espao no se ficava pelo das fronteiras, unificadoras
certo, pois descia ao particular e individual. Multiplicaram-se as obras com
descries regionais, s quais os fidalgos no ficaram indiferentes, orgulhando-se
da origem em terras belas e frteis. E antigas, onde seus avs, supostos ou
verdadeiros, se tinham enraizado e onde brotara frondosa rama. (Magalhes
1993: 18).
Na verdade, vrios foram os autores portugueses que descreveram
provncias e cidades, e tambm Portugal e o Novo Mundo, como, por exemplo,
Damio de Gis, Andr de Resende, Duarte Nunes de Leo e Tom Pires fizeram
com Lisboa, vora, o reino e o Oriente1, deixando por essa via testemunho deste
(novo) olhar sobre o espao que se habita ou de que se provm e at por (ou para)
onde se viaja. Espao este que outros, como Francisco de Holanda, pretenderam
ver engrandecido e fortificado, particularmente o local citadino que pretendia
manter-se capital de um imprio: Da fabrica que fallece cidade de Lisboa
(1571)2. A nova mundividncia espacial encontra-se presente tambm, antes de
mais, na pintura e na arquitectura por via do abandono progressivo da obra ao
romano que tinha a caracterstica comum de ser bidimensional (Moreira 1995:
318).
1 Vejam-se as obras: Gis, Damio de, Urbis Olisiponis descriptio (vora, 1554), com edio
recente: Elogio da Cidade de Lisboa. Urbis Olisiponis descriptio, Aires Nascimento ed. e Ildio do
Amaral, introd., Lisboa, Guimares Editores, 2002; Resende, Andr de, Historia da antiguidade
da ciidade de Euora, Euora, Andr de Burgos, 1553 (BNP F 1287); Descrio do Reino de
Portugal, 1610, Cf. Orlando Gama ed., Lisboa, Centro de Histria da Universidade de Lisboa,
2002; O manuscrito de Lisboa da Suma Oriental de Tom Pires, (1523-26), Cf. Rui Manuel
Loureiro ed., Lisboa, Instituto Portugus do Oriente, 1996. 2 Obra manuscrita. Veja-se a edio com introduo, comentrio e notas de Jos da Felicidade
Alves, Lisboa, Livros Horizonte, 1984.
10
A par daquelas e de muitas outras obras sobre o espao de origem, de
residncia ou de viagem, multiplicaram-se as obras de mbito genealgico,
algumas oriundas da pena de escritores conhecidos, como acontece com a de
Damio de Gis1 ou com obras de encomenda rgia como o Livro do Armeiro-
Mor (1509)2 realizado sob a superviso de Antnio Rodrigues (Freire 1973:9),
bem como outras de mbito arquitectnico como a construo da Sala dos Brases
na ala manuelina do Pao Real de Sintra, realizada entre 1515 e 1520 (Freire
1973:22-3).
A imprensa, inveno recente, vulgariza(-se), iniciando um percurso
prprio, tambm comercial, que interessa desenvolver e consolidar. Este novo
meio, introduzido em Portugal no reinado de D. Afonso V (Canaveira 1994:27),
permite a divulgao das novas tendncias culturais e cientficas (se o termo se
pode adequar poca), bem como um acesso mais facilitado regulamentao da
justia e das actividades3 e um acesso mais universal cultura, mesmo quando
esta continua a ser um assunto de elites e quando boa parte das publicaes se
fazem em latim, lngua ainda tutelar a vrios nveis e base de uma nova cultura
humanista (Curto 1993: 357), at porque tambm as naus das descobertas, de
portugueses e espanhis, vo levar a tipografia a novos mundos (Canaveira
1994:61). Esta nova tcnica contribuiu seguramente para a divulgao e
circulao dos livros de cavalarias. certo que o primeiro livro de cavalarias
portugus, Prymera parte da cronica do emperador Clarimundo donde os reys de
Portugal desendem (Lisboa, Germo Galharde), da autoria de Joo de Barros, s
saiu do prelo em 1522, mas no reino vizinho em oito anos (a partir de 1508, com
Amadis de Gaula, texto fundador) contam-se dezassete ttulos publicados (Luca Megas
2004: 24-25) e muitos outros se lhe seguiram at que, em 1605, e incluindo as
cinco obras impressas portuguesas4, se contabilizam as aproximadamente setenta
que se conhecem hoje na Pennsula Ibrica. Alm de que, a generalizao da
1 Veja-se a obra Livro das Linhagens de Portugal de Damio de Gis. 2 Recentemente reeditado e indicado na Bibliografia. 3 A este propsito importa lembrar as Ordenaes Manuelinas, bem como um conjunto de leis
impressas avulso de entre as quais se destacam aqui a Ordenaam da defesa dos veludos e sedas,
de 3 de Junho de 1535 e a Lei sobre os vestidos de seda & feytios delles. E das pessoas que os
podem trazer, de 25 de Junho de 1560, obras referidas na Bibliografia. 4 Alm do j referido Clarimundo de Joo de Barros e de Palmeirim de Inglaterra de Francisco de
Moraes, incluem-se nestas o Memorial das Proezas da Segunda Tavola Redonda de Jorge Ferreira
de Vasconcelos (1567), Dom Duardos II de Diogo Bernardes (1587) e Clarisol de Bretanha de
Baltasar Gonalves Lobato (1602).
11
imprensa permite que a primeira traduo de Amadis de Gaula, em lngua
francesa, seja publicada a partir de 1540: Le Premier Livre dAmadis de Gaule qui
traicte de maintes aventures dArmes & dAmours... (Paris, Denys Ianot),
traduzida do espanhol por Nicolas de Herberay des Essarts. Este autor traduziu os
oito primeiros livros de Amadis de Gaula at 1548 (Balsamo e Barroux 2001: 49).
A nova tcnica permite ainda que, depois da traduo castelhana de Palmeirim de
Inglaterra, feita em 1547-48 por Miguel Ferrel (Luca Megas 2004: 31 e 35),
apaream, em 1552-53 e 1553-54, as tradues francesa e italiana da obra de
Francisco de Moraes, dadas estampa, respectivamente, por Jacques Vincent du
Crest Arnaud en Dauphin e Mambrino Roseo da Fabriano, bem como, no final
do sculo em anlise, a traduo inglesa do texto do autor portugus que aqui nos
interessa particularmente (Vargas Daz-Toledo 2006b: XXIV). Importante tambm
neste contexto o facto de, na sequncia da excomunho papal de Lutero em
1515, ter passado a haver uma vigilncia rigorosa da importao de livros
estrangeiros, (Martins 2001: 6), vigilncia esta que passou a ser bastante mais
restritiva em 4 de Setembro de 1567, por alvar de Dom Sebastio (Martins
2001: 6 n.4).
A par desta difuso de textos e conhecimentos facilitada pela nova tcnica,
semelhana do que j acontecia em Castela, a reflexo metalingustica irrompe
no contexto cultural portugus. Ferno de Oliveira com a sua Grammatica da
lingoagem portuguesa (1536), e Joo de Barros com a Grammatica da lingua
Portuguesa (1540) do estampa os dois primeiros instrumentos para esse fim. E
Joo de Barros apresenta desde logo um Dialogo em Louvor da Nossa Linguagem
em apndice sua obra (Barros 1540: 50v-60v).
No obstante, se j antes vrios escritores portugueses usavam o castelhano
como lngua de cultura, como aconteceu com Gil Vicente ao iniciar as suas
representaes com um texto em castelhano, Visitao em 15021, e com Antnio
Rodrigues Portugal, Rei dArmas, ao inscrever-se no rol dos tradutores com obra
naquela lngua, Chronica llamada el Triumpho de los nueve mas preciados
varones de la fama (Lisboa, Germo Galharde, 1530), o mesmo acontecer ao
longo do sculo e o mesmo faro outros autores como, por exemplo, Jorge de
Montemor, ainda que por motivos diversos (Fardilha 2007: 95), e outros ainda, e
1 Veja-se o texto incluso na edio dirigida por Jos Cames (2002: 17) e Buescu (2005: 13-15).
12
por maioria de razes, durante a Dinastia Filipina. No de estranhar, portanto,
que um autor opte pelo castelhano para redigir um livro de cavalarias como
aconteceu com Antnio de Brito da Fonseca Lusitano, mesmo quando os lusismos
traem a sua lngua materna (Vargas Daz-Toledo 2006a: 246).
A par do conhecimento das lnguas latina e grega, entre outras, e da
utilizao das duas lnguas (portugus e castelhano) pela camada culta da
populao, parecem faltar estudos acerca do ensino elementar da lngua lusa na
poca, mas sabe-se que este varia segundo o contexto geogrfico e social (Curto
1993a: 360). Naturalmente, decorrente deste facto, o seu domnio, a sua utilizao
mais ou menos correcta ser tambm varivel: eis como tambm representado
por vrios escritores o uso da lngua no sculo XVI (Curto 1993a: 360). O louvor
frequente da utilizao que dela fez Francisco de Moraes pois um aspecto a ter
em conta neste contexto e neste estudo, mesmo quando esses testemunhos
raramente sejam seus contemporneos1. O prprio ensino ter contribudo para
aumentar o acesso cultura escrita quer por via das bolsas concedidas, tambm
por D. Joo III, para realizar estudos no Colgio de Santa Brbara, em Paris
(Carvalho 1986: 171), quer por via da reforma dos estudos e fundao de
colgios, quatro dos quais em Coimbra (Carvalho 1986: 176), aps a transferncia
de Lisboa para ali, em 1537, da Universidade (Carvalho 1986: 182). De entre
aqueles quatro colgios, saliente-se o Colgio de S. Bernardo ou Colgio do
Esprito Santo de Coimbra incorporado na Universidade em 1560 (Sousa 2005:
116). No parece de omitir, no entanto, o facto de a condenao papal de Lutero
ter conduzido fundao da Companhia de Jesus e, em 1542, do Colgio de
Jesus, em Coimbra (Carvalho 1986: 287).
A par destas reformas, e vrias proibies, outras artes se desenvolveram,
como foi o caso da msica, qual tambm se dedicaram os humanistas e na qual
se verificaram mudanas significativas no sculo XVI. At porque a msica de
acordo com os ideais cavalheirescos (...) era uma componente essencial da
formao cultural de um fidalgo (Nery 1991: 26), embora talvez se conheam
hoje melhor os compositores portugueses do Maneirismo Frei Manuel Cardoso
(1566-1650), Duarte Lobo (1564/9-1646), Filipe de Magalhes (m. + 1652),
polifonistas eborenses (Nery 1991: 53-55). E apesar de na segunda metade do
1 Vejam-se os testemunho apresentados no Apndice n. 6.
13
sculo se verificar uma decadncia acelerada da actividade musical profana na
corte (Nery 1991: 52), tal no parece implicar que Portugal tenha ficado
margem do movimento de renovao que se verificava por toda a Europa no
incio do sculo XVI. O j mencionado Jorge de Montemor, por exemplo, deixa
Portugal em 1543 e passa parte da sua vida como msico-cantor na corte de
Castela (Fardilha 2007: 95 e 97). Mas tambm Damio de Gis, habitualmente
mais referido pela obra escrita, se dedicava msica como executante e
compositor (Ferreira 2003: 533). Nem sequer ao nvel mais popular a msica
estava ausente de manifestaes sagradas ou profanas que aconteciam certamente
por todo o pas. Veja-se, por exemplo, o testemunho de um frade italiano que
entre 1593 e 1595 permaneceu em Lisboa, quando se refere s procisses:
No h nunca festa sem haver procisso, e muitos grupos de
homens e mulheres mascarados vo festa bailar, cantar e tocar a guitarra
espanhola, ou outras espcies de vis instrumentos, e no, s vo vestidos
de ciganas ou ciganos, mas de verdadeiros arlequins, ou de vestes tais que
dificilmente se vem noutro stio seno no carnaval, e aqui se vem em
toda a festa. Depois, os negros levam s costas certas raparigas que cantam
diversas bagatelas, e vo sempre bailando em procisso ao som de
tambores e pfaros, tocando mourisca. Na procisso, vem-se danas de
homens vestidos em diversas formas, com bastes ou arcos na mo para
fazer as danas pelo caminho, e da mesma maneira h danas de mulheres
negras e brancas que vo cantando com certos tambores na mo, e outras
vo rodando um tambor grande, cantando e tocando com tal rapidez, e to
desesperadas, que parecem loucas de esprito. E quem quiser saber que
coisa sejam estas bagatelas, lhe direi da etimologia ou significado dos seus
nomes, pois aqueles tambores mourisca, com aquele tipo de som, que se
chamam em Itlia naccare, se chamam em Portugal, tmbalos, quase acta
Bacchi; e aquelas midas que os negros levam s costas para fazer estas
bagatelas, chamam-se plas, quase Pallas, como doidas de Pallade;
finalmente, aqueles punhados de mulheres negras que cantam, tocam e
bailam, rodando um tambor, chamam-se folias, que quer dizer loucura ou
cousa de maluco, e isto basta para saber que coisa so estes seus abusos.
(Confalonieri 2002: 197-198)
Algo semelhante se l nas palavras do historiador Diogo Ramada Curto, a partir
de testemunhos oculares da mesma dcada e da anterior, referindo-se s danas
que abriam as procisses, aproveitamento de antigos cultos solares e de velhas
14
crenas relativas ao poder milagroso das fontes efectuado pela Igreja (Curto
1993b: 140)1.
E a par da msica, a dana ganha novas demonstraes, nomeadamente a
nvel corteso, concorrendo para um ambiente cultural continuador de uma
tradio medieval, certo, mas inovador nas formas e meios de que os seus
agentes dispem e de que se servem. Sobre a dana em Portugal e a sua ligao s
manifestaes religiosas, Daniel Trcio escreve que se encontram:
certas manifestaes bailatrias como a folia, as danas dos mesteres, as
danas dos judeus, a dana dos ciganos e a (...) mourisca, nas Entradas
Rgias, nas Cerimnias Nupciais entre Membros da Realeza e tambm nas
Procisses Religiosas, das quais podemos sublinhar a Procisso de
Corpus Christi (Trcio 1991: 216)
Acrescentando, depois que os jesutas vo montar espectculos notveis,
representados e produzidos pelos jovens colegiais como se verificou na
recepo das relquias de S. Roque, em 1588 (Trcio 1991: 216). De carcter
mais profano e para um pblico mais corteso, primeiro em Itlia e depois na
Europa, o ballo de salo, antepassado do ballet, reproduz temas da Antiguidade
Clssica para recreao de damas e cavaleiros (Salazar 1962: 75-76). Este
ambiente cultural continua, ento como antes, a ser reservado a uma elite
constituda por nobres e por, cada vez mais, burgueses.
A Igreja Catlica Romana v a sua praxis, se no a sua identidade, abalada
pelas ideias e pelas prticas luteranas e a Inquisio, atravs da criao da
Inquisio em Portugal, em 1536 (Martins 2001: 6), adquire um papel social e
judicial incontornvel, munindo-se de meios para o desempenho das suas
actividades. De entre estes meios saliente-se a manuscrita Prohibicam dos liuros
defesos de 1547 (S 1983: 131-151), publicada como Rol dos liuros defesos em
1551 (S 1983: 153-176), e a obrigatoriedade de submisso a exame prvio e
autorizao do bispo (...) a publicao e circulao de qualquer obra,
obrigatoriedade esta instituda pelo Inquisidor-Geral por carta datada de 15 de
1 Ainda sobre festas e alguns cultos antigos, tambm em alguns livros de cavalarias portugueses,
veja-se Alpalho, Margarida, Da mscara verbal, in O Carnaval na Idade Mdia: discursos,
imagens, realidades (no prelo).
15
Outubro de 1564 (Martins 2001: 13). Alm de outras, as prticas culturais e as
relaes sociais tambm no estiveram isentas da concordncia ou condenao
das instituies eclesisticas.
No entanto, a circulao de pessoas e bens atinge nveis at ento
desconhecidos. As coroas vem-se a braos com problemas novos decorrentes quer
do necessrio povoamento dos novos territrios, quer da consolidao de
entrepostos comerciais conquistados, quer ainda de fragilidades que as viagens
martimas implicam, incluindo a pirataria e o corso. E acontecimentos ligados a
estas ltimas actividades encontram-se referidos em relatrios e cartas enviadas e
recebidas pelos embaixadores de D. Joo III a Francisco I, como aconteceu, por
exemplo com Brs de Alvide (Serro 1969: 24).
Parece ainda fundamental salientar, no mbito da Literatura e a par da
comparativamente elevada produo quinhentista portuguesa de textos dramticos
e da singular epopeia camoniana, o conjunto de obras designados como livros de
cavalarias que, se por um lado assume uma herana medieval, por outro, e de
acordo com a sua prpria poca, se reveste de vincados contornos renascentistas,
nomeadamente em algum desfazamento entre a realidade e a aventura
cavaleiresca (Vilar e Silva 1986: 1196), ainda quando fazendo nomeadamente
eco de matrias, de obras e de autores tanto do seu tempo quanto da Antiguidade
Clssica (caracterstica cultural, ampla e profusamente repetida como
renascentista), conjunto de obras narrativas que circulou quer sob a forma de livro
impresso quer, dado o sucesso do gnero, de livro manuscrito. A juntar aos
aspectos de contedo, outro aspecto externo diz respeito ao pblico visado que era
variado, mas enquadrvel, antes de mais, nas classes sociais mais altas de ento.
Dito de outra maneira, atravs das palavras de Joo Gaspar Simes:
Era melhor ouvir falar de justas e batalhas que participar nelas. Chegara a
hora dos lendrios cavaleiros andantes. E eis como o romance de
cavalarias, aproveitando o material dos poemas arturianos se converte no
gnero preferido pelas damas e ricos-homens, burgueses e burguesas
(Simes 1987: 35)
Uma ltima caracterstica globalizante digna de registo consiste nos ecos
encontrados, muito particularmente na obra de Francisco de Moraes, de factos da
16
Histria coeva bem como das vrias reas do saber que iniciavam, poca, um
percurso em direco autonomizao. A pintura, a msica, a arquitectura, a
natica, a herldica encontram-se neste caso e so, por outro lado, apenas algumas
das vrias matrias que Moraes no dispensa para enformar a urdidura da sua obra
maior. Outros dois aspectos a merecer destaque, que na sua obra se revelam com
profuso desigual, prendem-se, um com as menes aos cavalos e respectiva cor,
outro com as detalhadas descries do vesturio das damas e das armas dos
cavaleiros. Neste ltimo tpico, impera em ambos os casos um colorido
facilmente notado, em aparente contradio com um ambiente que, com o avanar
do sculo e o aumento do controlo eclesistico e rgio tambm sobre a vida
cortes e laica1, parece dar lugar a un monde en noir et blanc (Pastoureau 2004:
135), pelo menos para uma parte da Europa quinhentista. No entanto o preto, uma
cor honesta como a apelida Michel Pastoureau (2004: 156), aparece em Palmeirim
de Inglaterra, tambm insistentemente, quando se trata de afirmar o luto. Estes
aspectos singularizam sobremaneira a obra em anlise no conjunto dos textos
considerados no ciclo dos palmeirins.
1 Parece importante relembrar aqui as leis avulsas sobre os materiais e as cores do vesturio
publicadas ainda por D. Joo III (a j referida Ordenaam da defesa dos veludos e sedas de 1535 e
ainda a Ordenaam pera os estudtes da uniuersidade de Coymbra sobre os criados. bestas. e
trajos. e outras cousas de 1539), no que ser secundado por D. Sebastio (com a Ley sobre os
vestidos de seda, & feitios delles. E das pessoas que os podem trazer em 1560). Corrobora este
aspecto histrico a referncia feita por Rui Vieira Nery a um vilancete, No tragais borzeguins
pretos, que considera satirizar as pragmticas severas com que D. Joo III procurou disciplinar o
traje dos seus cortesos (Nery 1991: 30).
17
1.2- o Palmeirim de Inglaterra e os palmeirins
Pretende-se agora, antes de mais, dar conta de algumas genealogias
textuais que se constituem como parte do intertexto que a obra de Francisco de
Moraes assume e que, simultaneamente, implicam a sua incluso num grupo de
obras tradicionalmente consideradas sob o designativo de palmeirins um dos
considerados, tambm tradicionalmente, ciclos dos livros de cavalarias.
H mais de sculo e meio, os textos aqui referidos como livros de
cavalarias, objecto desta parte do captulo, foram agrupados pelo seu contedo.
Alguns autores procuraram classificar estas obras de matria cavaleiresca segundo
ciclos que permitem uma aproximao de textos de acordo com o assunto que
convocam, semelhana do que acontece com os que se incluem na matria
arturiana ou de Bretanha.
Surgiram assim, segundo Pascual de Gayangos, alm do ciclo breton
(Gayangos 1857a: VII), o ciclo carlovingio (Gayangos 1857a: XII), o ciclo
greco-asitico (Gayangos 1857a: XXI), que abarca Amadis de Gaula e as suas
continuaes, um conjunto de textos apelidado Los palmerines, no qual foi
includo o Palmeirim de Inglaterra (Gayangos 1857a: XXXIX) e um grupo de
livros independientes (Gayangos 1857a: XLVI).
Menndez y Pelayo far depois uma distino entre as obras segundo os
parmetros geogrfico, formal e de contedo. Trata as obras de influncia
estrangeira e as de produo peninsular separadamente, agrupando-as em ciclos,
ou conjuntos. Dentro destes dois grandes grupos: situa no primeiro obras do ciclo
carolngio, de influncia italiana, de assunto clssico, greco-oriental, das cruzadas,
do ciclo breto espanhol e outras vrias e dos sculos XIV e XV (Menndez y
Pelayo 1905: CXXV); no segundo grupo inclui Amadis de Gaula e as suas
continuaes, o ciclo dos Palmerines, o das obras catals, o dos livros em verso,
18
o dos livros lo divino, bem como outro de obras sueltas (Menndez y
Pelayo 1905: CLXXXVI).
Logo em seguida, Adolfo Bonilla y San Martn (1907-1908) dedicou dois
volumes aos livros de cavalarias. Dedica o primeiro volume a obras dos ciclos
artrico e carolngio e o segundo ao ciclo dos palmerines extravagantes. Neste
segundo volume inclui a traduo castelhana do texto de Moraes.
No muito divergente se apresentar a arrumao destas obras no segundo
volume da Historia General de las Literaturas Hispnicas, em 1951, na qual
Bohigas Balaguer destaca os ciclos de Amads e de Palmern (1951: 226) de
entre os livros de cavalarias do sculo XVI.
De entre os autores portugueses que se dedicaram histria literria
Fidelino de Figueiredo (1930: 183) menciona os livros de cavalarias,
nomeadamente o Palmeirim de Inglaterra, sob o ttulo As novellas e Tefilo
Braga arruma a obra num captulo dedicado a Novelas e Contos (2005: 203).
ainda sob a designao de A novelstica cavaleiresca que Maria Helena Duarte
Santos (2001: 475) aborda os livros de cavalarias.
Mas partindo tambm da classificao em ciclos que Mara Carmen
Marn Pina inclui o Palmeirim de Inglaterra no j referido ciclo dos palmeirins.
Considerando as trs obras castelhanas do ciclo dos palmeirins, Palmeirim de
Olivia, Primalen e Platir (Marn Pina 1988: 499, 518 e 536), a autora estabelece
a genealogia textual das continuaes do mesmo ciclo, tanto italiana como
portuguesa. Nesta ltima continuao, considera as obras portuguesas quer
impressas quer manuscritas: Palmeirim de Inglaterra, Dom Duardos II de
Bretanha e Dom Clarisol de Bretanha, no caso das primeiras, e Vida de
Primaleo, seguida da Segunda Parte da Cronica de Dom Duardos, concluindo
com a Terceira Parte da Cronica de Dom Duardos, no caso das segundas (Marn
Pina 1988: 541-552).
Os estudos portugueses relativos aos livros de cavalarias tm-se centrado
principalmente nas obras impressas, ainda que desde h quase um sculo se tenha
vindo a referir a outra parte, de no menor volume, deste patrimnio literrio
portugus: as obras manuscritas. Com efeito, foi Fidelino de Figueiredo (1930)
19
quem primeiro assinalou este conjunto de textos, o qual foi secundado por
Massaud Moiss (1957a), a quem se seguiu Joo Palma-Ferreira (1983). Estes
dois autores iniciaram tambm um trabalho de identificao e classificao de
textos manuscritos1. E depois dos estudos de Marn Pina (1988) e de Luca
Megas (2004: 155-172), dedicados principalmente aos textos castelhanos, hoje
importa tambm referir os muito recentes e teis estudos de Aurelio Vargas Daz-
Toledo que, dedicando-se aos textos portugueses, lista oito textos inditos, de
extenso variada, e refere oito textos perdidos, alm de uma traduo e um
original em castelhano (2006b: 239-240 e 2006a: 245). Quanto aos impressos que
enumera, estes so os conhecidos e nomeados por todos quantos se dedicaram a
uma listagem global dos livros de cavalarias portugueses: a obra de Joo de
Barros publicada em Lisboa, em 1522, e j acima enunciada, a obra de Francisco
de Moraes, objecto deste trabalho, o Memorial das Proezas da Segunda Tauola
Redonda de Jorge Ferreira de Vasconcelos (Coimbra, Joo de Barreira, 15672) e
as continuaes impressas do texto do nosso autor: Dom Duardos II de Bretanha
de Diogo Fernandes, (Lisboa, Marcos Borges, 1587 e Lisboa, Jorge Rodrigues,
1604, a segunda edio) e tambm auto-denominada Terceira parte da Chronica
de Palmeirim de Inglaterra e Quarta parte da Chronica de Palmeirim de
Inglaterra, nas prprias folhas de rosto3, e D. Clarisol de Bretanha de Baltasar
Gonalves Lobato (Lisboa, Jorge Rodrigues e Antnio lvares, 1602), tambm
naquele espao auto-denominada Quinta e Sexta Parte de Palmeirim de
Inglaterra.
Em sntese, a obra de Francisco de Moraes encontra-se includa nas obras
consideradas no ciclo dos palmeirins (designao oriunda da personagem que d
nome ao primeiro dos livros do ciclo espanhol) e d incio s continuaes
portuguesas de tal ramo textual, filiando-se em Palmeirim de Olivia e Primalen,
ou seja, apenas, nos dois primeiros textos espanhis do ciclo (Marn Pina 2007a:
1 Depois de Carolina Michalis de Vasconcelos e do seu estudo relacionando os livros de
cavalarias com o Romanceiro, as obras destes autores foram pioneiras quanto tentativa de
sistematizao dos exemplares manuscritos conhecidos e iniciaram a identificao destes
manuscritos, inclusive com uma publicao da Crnica de Maximiliano, mencionada na
Bibliografia. 2 Vrios autores referem uma primeira edio desta obra, feita em Coimbra em 1554, e intitulada
Livro primeyro da Primeyra Parte dos Triunfos de Sagramor Rey de Inglaterra e Frana..., mas
de que no parecem restar, hoje, mais que as referncias (Almeida 1998: 19-20), (Vargas 2006a:
247). 3 Ao contrrio do que habitual no gnero, a segunda parte desta obra, ou seja, a Quarta Parte da
Chronica, apresenta tambm folha de rosto.
20
79-80). Mas no basta apenas esta referncia ao assunto para situar a obra do
escritor portugus, pois a verdade que o prprio texto apresenta algumas
relaes com textos includos, na classificao por ciclos, tanto no dos palmeirins
como no dos amadises, como a mencionada autora tambm refere (Marn Pina
2007a: 80) e adiante se ver.
Entretanto, j no presente sculo, foi apresentada uma nova classificao
dos livros de cavalarias por Jos Manuel Luca Megas, tendo em conta, alm do
gnero literrio, o gnero editorial destas obras, considerando para o efeito
particularmente o formato in-flio e a extenso dos textos (Luca Megas 2004: 15). A
nova classificao permite destacar aspectos externos das obras e dar ateno a
caractersticas anteriormente no, ou pouco, tidas em conta na anlise das
mesmas.
Um destes aspectos externos a merecer apontamento o do desenho da
folha de rosto de Palmeirim de Inglaterra. Eugenio Asensio (1972: 131) j
escreveu que o desenho da edio eborense de 1567 o mesmo da edio
princeps de Florando de Inglaterra (Lisboa, Germo Galharde, 1545). Poder-se-
acrescentar que um desenho de aspecto muito semelhante quele que se encontra
na edio de Dom Duardos II de Bretanha, de Diogo Fernandes, tanto na de
Marcos Borges (1587), como na segunda edio de Jorge Rodrigues (1604). As
semelhanas entre ambos podero inclusive fazer pensar que se trata do mesmo
desenho, num primeiro olhar: o cavaleiro e o castelo apresentam pequenssimos
detalhes diferentes, dos quais o que mais facilmente se pode notar a barba do
cavaleiro presente no da obra de Fernandes; a vegetao apresenta algumas
pequenas diferenas, das quais a maior um morro com plantas, ou uma palmeira,
no da obra deste autor, do lado direito do desenho observado. , alis, o desenho
presente na obra de Diogo Fernandes que se encontra na folha de rosto da edio
de 1592 de Palmeirim de Inglaterra (Lisboa, Afonso Fernandes1). O desenho que
d rosto a Clarisol de Bretanha de Baltasar Gonalves Lobato (Lisboa, Jorge
Rodrigues [e Antnio lvares] 1602) bastante diverso dos anteriormente
referidos, ainda que mantenha em primeiro plano a figura do cavaleiro. Estes
1 O desenho referido encontra-se nos exemplares que conservam a folha de rosto original. A
excepo a este caso encontra-se referido em 3.1- as edies em portugus. tambm este
desenho que se encontra em Amadis de Grcia, ou Choronica del muy valiente e esforado
principe y cauallero de la ardiente espada, Amadis de Grecia, hijo de Lisuarte de Grecia, y Rey de
Rodas. (Lisboa, Simo Lopes, 1596).
21
desenhos so, de resto, bem diferentes daqueles que as obras de Joo de Barros ou
Jorge Ferreira de Vasconcelos contm, onde o cavaleiro desaparece dando lugar a
outras imagens, ligadas principalmente genealogia.
Alm do desenho considera-se de referir, muito brevemente pois tal estudo
escapa ao objectivo destas pginas, que existe alguma recorrncia nos nomes dos
impressores ligados aos livros de cavalarias portugueses: Antnio lvares
imprime a terceira edio quinhentista em portugus de Palmeirim de Inglaterra e
a primeira parte de Dom Duardos II de Bretanha, Jorge Rodrigues d estampa a
segunda edio de Dom Duardos II de Bretanha e a primeira parte de Clarisol de
Bretanha. Germo Galharde acabara de imprimir Clarimundo de Joo de Barros
em 3 de Maro de 1522 conforme regista no clofon (Barros: 1522: 176v), alm
do j referido Florando de Inglaterra, em castelhano, mas este foi o mais
operoso impressor que teve o XVI. seculo portugus (Brito 1911: 44). De Andr
de Burgos apenas se conhece a edio de 1567 de Palmeirim de Inglaterra,
enquanto impressor de livros de cavalarias1.
Outro aspecto que se considera merecer aqui um olhar mais demorado a
apresentao dos cavaleiros, particularmente a que feita pela folha de rosto ou
pelo texto de incio destes livros. Encontra-se, com frequncia, nas folhas de rosto
das edies quinhentistas (ou mesmo nas das poucas edies j seiscentistas),
alm do desenho caracterstico j mencionado frequentemente um cavaleiro a
cavalo, em primeiro plano, sobre um fundo que apresenta uma paisagem natural e
um castelo2 , a nomeao de um cavaleiro: o heri do livro de cavalarias em
questo. Mas vejam-se exemplos concretos3:
[A] El libro del famoso muy esforado cauallero Palmerin de oliuia (Salamanca,
15114)
1 Para outros nomes de impressores de livros de cavalarias em Portugal veja-se a lista apresentada
por Aurelio Vargas (2007c: 25-29). 2 Algumas variaes deste aspecto podem ser observadas, por exemplo, no artigo de Luca Megas
(2005) Libros de Caballeras Castellanos en la Biblioteca del Cigarral del Carmen (Toledo).
Registe-se ainda que a imagem da folha de rosto da edio eborense de Palmeirim de Inglaterra
pode ver-se em Asensio (1972), pp. 127-133+3 (Estampa I) e em Sarmento (2001) capa e p. 18. 3 Indica-se sem itlico o texto que serve de incipit, no includo na folha de rosto, no caso dos dois
primeiros exemplos. 4 Veja-se a edio de Giuseppe di Stefano (2004) para estes dados, nomeadamente a pgina 1 para
o ttulo.
22
Aqui comiena el libro del famoso cauallero Palmerin de oliua que por el mundo
grandes fechos en armas fizo: sin saber cuyo hijo fuesse: mas la su gran bondad le
fizo alcanar grande honrra venir en grande alteza despues de auer passado
grandes trabajos a fanes1.
[B] Libro segundo del Emperador Palmerin en que se recuentan los grandes e
hazanozos fechos de Primaleon e Polendus sus hijos e os de outros buenos
caualleros estrangeros que a su corte vinieron (Salamanca, 15122)
[C] Libro del inuencible Cauallero Primaleon, hijo de palmerin de Oliua: donde
se tractan los sus altos hechos en armas, y los de Polendos su hermano, y los de
don Duardos principe de Inglaterra, y de otros preciados caualleros de la corte
del emperador Palmerin. (Lisboa, 15663)
[D] Libro qve trata de los valerosos y esforados hechos en armas de Primaleon,
hijo del Emperador Palmerin, y de su hermano Polendos: y de Don Duardos
Principe de Inglaterra, y de outros prec[iad]os caualleros de la Corte del
Emperador Palmerin. (Lisboa, 15984)
[E] La cronica del muy valiente y esforado cauallero Platir hijo del inuencible
Emperador Primaleon en que recuenta las sus grandes prohezas e cauallerias e
dellos amores que tuuo con la esclarecida e animosa princesa Florinda: hija del
esclarecido rey Tarnaes de Lacedemonia: el qual por sus grandes hechos de
armas fue Emperador de Costantinopla y rey de Lacedemonia. (Valhadolide,
15335)
1 Texto do incipit, segundo a edio de 1526 feita em Veneza, por Gregorio de Gregoriis (BNP
RES 457), que o retoma da edio de 1511, como se pode ver na edio de Stefano (2004: 7). O
texto da folha de rosto, na edio veneziana diverso: PALMERIN de Oliua sus grandes
fechos. Nueuamente emprimido., colhendo-se os dados relativos ao impressor, local e data no
clofon, BNP RES. 457V. 2 Texto do incipit. Veja-se a edio de Mara Carmen Marn Pina (1998: 1 e 3). 3 Exemplar do PDVV: BDM II 318 4 Exemplar da BNP: 358V 5 Veja-se a edio de Maria Carmen Marn Pina (1997: 1).
23
[F] La Historia dove si ragiona de i valorosi e gran gesti et amori del cavallier
Flortir, figliuolo dellImperator Platir. (Veneza, 1554-601)
[1] MORAES, Francisco de,
Cronica do famoso e muito esforado caualleiro Palmeirim Dinglaterra, filho del
rei d Duardos: no qual se ctam suas proezas, e de Floriano do desetro seu
hirm o e alg as do principe Florendos filho de primaliam. (vora, 15672)
[2] MORAES, Francisco de,
Chronica do famoso e muyto esforado cavaleyro Palmeyrim de Inglaterra Filho
del Rey Dom Duardos: No qual se contem suas proezas. & de Floriano do
Deserto seu irmo: & do Principe Florendos Filho de Primaleo. (Lisboa, 1592)
[3] FERNANDES, Diogo
Dom Duardos de Bretanha. Terceira parte da Chronica Palmeirim de Inglaterra
na qval se tratam as grandes cauallarias de seu filho o principe Dom Duardos
segundo, & dos mais Principes, & Caualleiros que na ylha deleytosa se criaram.
(Lisboa, 1587) e
Dom Dvardos II. Quarta Parte da Chronica de Palmeirim de Inglaterra, onde se
Conto os feitos do valeroso Principe o segundo Dom Duardos, seu filho: e dos
famosos Principes, Vasperaldo, Primalio, & Laudimante, & de outros grandes
caualleiros de seu tempo. (Lisboa, 15873)
1 Segundo Pascual de Gayangos (1857a: xli). 2 Segundo o exemplar da Hispanic Society de Nova Iorque: HC397/815 (HSA cop.). Veja-se a
folha de rosto publicada pelos autores mencionados na nota 2 da pgina 21 e adiante 3.1- as
edies portuguesas, pp. 101-102. 3 Segundo o exemplar da BNP: RES. 1125A.
24
[4] LOBATO, Baltazar Gonalves
Quinta e Sexta parte de Palmeirim de Inglaterra. Chronica de D. Clarisol de
Bretanha, filho do Principe dom Duardos de Bretanha, na qual se cto suas
grandes cauallarias, & dos principes Lindamor, Clarifebo, & Beliandro de
Grecia, filhos de Vasperaldo, Laudimte, & Primalio, & de outros muitos
principes, & caualleiros famosos de seu tempo. (Lisboa, 16021)
O aspecto que aqui se pretende salientar prende-se com a apresentao
do(s) heri(s) de cada texto. A partir do ttulo e do incipit, no parecem restar
dvidas de que os heris do segundo livro mencionado [B] so os filhos de
Palmeirim de Oliva: Primaleo e Polendos. J de acordo com a folha de rosto das
edies seguintes, [C] e [D], os heris sero Primaleo e seu irmo Polendos, mas
tambm Dom Duardos. Esta mesma situao se encontra no texto portugus de
Francisco de Moraes, [1] e [2], cujos heris so Palmeirim de Inglaterra e o seu
irmo Floriano do Deserto2, sendo ainda mencionado Florendos, nas folhas de
rosto destas duas edies. E este aspecto parece ser to significativo, como
significativo o facto de se mencionar a ascendncia desconhecida de Palmeirim
de Oliva a encabear o texto do primeiro livro listado [A]3. Repare-se, de resto,
que esta e as restantes obras mencionam em especial no rosto um nico cavaleiro:
Palmeirim de Oliuia [A], Platir [E] e [F] Flortir, ou, no caso dos textos
portugueses, Dom Duardos segundo [3], ainda que na segunda parte desta obra
(com rosto prprio como se registou) surjam outros nomes, e em Clarisol de
Bretanha [4] sejam nomeados tambm vrios outros cavaleiros. Ainda assim pode
concluir-se, partindo deste elemento externo, que as folhas de rosto das obras
mencionadas enunciam claramente os seus heris. Voltar-se- ao assunto adiante,
no caso particular de Palmeirim de Inglaterra.
1 Segundo o exemplar da BNP RES. 796A. 2 A situao claramente assumida pelo prprio texto: Ainda queste livro e historia seja de
Palmeirim de Inglaterra e do Cavaleiro do Salvaje seu irmo... a expresso que inicia o captulo
CXXXVII (fl. 206a). 3 Tal como o ser a referncia ao Imperador Clarimundo como pretenso ascendente da realeza
portuguesa na obra de Joo de Barros, j mencionada.
25
1.3- outros livros tambm de cavalarias
Sem pretender fazer aqui o estudo das fontes da obra de Moraes,
necessrio mencionar algumas das obras convocadas pelo seu texto.
Como j se disse acima, o prprio texto menciona outros livros, alguns
deles de cavalarias, que no so habitualmente classificados no grupo de textos do
ciclo dos palmeirins. Encontram-se neste caso as remisses para a obra de Garci
Rodrguez de Montalvo, tanto para o Amadis [de Gaula] (referido uma vez como
livro e outra vez como histria, alm de trs referncias personagem) quanto
para as Sergas de Esplandin (o ttulo referido uma vez e a personagem duas).
Do ciclo palmeiriniano so referidos o livro de Palmeirim [de Olivia] e o livro de
Primaliam (segundo a ortografia na obra em anlise) como tambm j se apontou,
socorrendo-se, ainda, sem o nomear, de Lisuarte de Grecia, de acordo com o
detalhado estudo feito por Mara Carmen Marn Pina (2007a: 81)1. Ao primeiro
daqueles dois textos palmeirinianos encontram-se cinco referncias, trs sob o
designativo de livro e duas sob o de crnica, palavra esta tambm usada no plural.
De entre as referncias ao livro de Palmeirim, pretende salientar-se a seguinte: nam faa
dvida nam conformar isto com o que no seu livro diz, porque em ser desta
maneira e em tal tempo concertam os mais antigos e autenticos autores. (fl.
266b-c) atravs da qual se afirma a liberdade criativa do autor de Palmeirim de
Inglaterra face sua fonte. Quanto ao segundo texto do ciclo, Primaliam,
referido como livro sete vezes e como crnica uma. O texto de Moraes inicia-se
de resto, desde logo, com uma meno a esta obra a propsito da apresentao de
Dom Duardos.
Mas as referncias a outras obras no parecem ser sempre to
documentveis atravs de outros tantos ttulos. o caso, por exemplo, das
1 Ao intertexto de Francisco de Moraes, colhido nos livros de cavalarias castelhanos, dedicou esta
autora o detalhado artigo que se cita. A outras fontes, nomedamente de tradio oral, dedica a
autora parte de outro estudo onde identifica episdios da obra de Moraes usados por Cervantes
Saavedra (2007b). Ao intertexto de outros livros de cavalarias portugueses, no que tm de
tributrio da obra de Ariosto, dedicou Isabel Almeida (2007) um artigo rico em informao.
26
remisses para as crnicas antigas que Moraes refere amide. Inscrevem-se neste
grupo as cronicas antigas dAlemanha (fl. 10a) a pretexto de Vernao, as
cronicas antigas ingresas ou cronicas ingresas antigas mencionadas para
caucionar a ascendncia de Daliarte e Pompides (fl. 17d) e a de Rosiram de la
Brunda (fl. 29b), tambm mencionadas como Cronicas Antigas dInglaterra (fl.
45a) a propsito de Dramusiando e dos seus ascendentes. Encontra-se ainda
meno crnica del rei Armato de Persia (fl. 63a), s cronicas dos
emperadores de Grecia que mencionam os feitos de Dramusiando, s crnicas do
emperador Marcelo (fl. 108d), s cronicas dos reis antigas (fl. 145d) onde o
autor diz colher informaes sobre os feitos de Florendos junto ao castelo de
Almourol. Menciona ainda a Cronica Geral dos feitos antigos e obras notaveis
dos franceses (fl. 211b) e as crnicas do Gram Turco num total de mais de vinte
utilizaes do termo.
A meno origem da sua prpria obra surge, no texto, quando menciona
as Cronicas Antigas dInglaterra donde esta historia foi tirada (fl. 45a) ou as
cronicas ingresas donde esta historia foi treladada (fl. 168c) bem como as
cronicas daquele tempo donde isto foi trasladado (fl. 267d) referindo-se ao
tempo da destruio de Constantinopla. Tambm na Dedicatria da obra Infanta
D. Maria, filha de D. Manuel I, o autor menciona a sua obra como traduo
(tresladei-a escreve), no entanto, o prprio texto e as marcas do narrador,
mltiplas ao longo do texto, apontam outra realidade. E as opinies que, por
vezes, expressa no provm seguramente de pena alheia, at pelo seu contedo,
tal como variados locais que refere foram seguramente do seu conhecimento
pessoal, como o caso da zona centro de Portugal. , de resto, meramente formal
a associao do tpico da traduo ao seu texto, pois, logo em seguida, na mesma
Dedicatria, diz se () da obra alguns detractores mormurarem nam me
queixarei; queixem-se os sabios quando suas obras forem julgadas por pecos, que
as minhas ninguem as pode tachar que as nam entenda milhor queu. Alis,
porque afirmaria, nesse mesmo local, a fama de Alber de Renes, famoso cronista
deste tempo, se ele o fosse? Ou porque seria necessrio afirmar a veracidade da
existncia dos autores Jaimes Biut e Anrico Frusto como far no final da obra e se
refere abaixo, se isso assim fosse? O tpico do tradutor, ou seja, da autoria
fictcia, foi j estudado por outros investigadores (Marn Pina 1988: 314-322),
27
assim como o tpico da historiografia (Marn Pina 1988: 323-340), ou o da
origem fictcia, poder dizer-se. Alis esta inveno de fontes, uma caracterstica
do gnero, visava a produo de efeitos de real (Almeida 1998: 113). E se os
livros de cavalarias castelhanos mencionados por Moraes tambm o fazem1, no
caso portugus, poder-se- acrescentar ao seu outros exemplos: a j referida
Prymeira parte da cronica do emperador Clarimundo de Joo de Barros
apresentada como trasladaam (Barros 1522 : fl. 1) tal como o Memorial das
Proezas da Segunda Tauola Redonda referido como, no final do respectivo
Prlogo, trasladao do triumpho del Rey Sagramor (Vasconcelos 1567).
Poder ainda acrescentar-se a estes exemplos impressos, um outro da continuao
palmeiriniana manuscrita: Chronica de Primaleo Emperador de Grecia:
Primeira parte em que se da conta das faanhas que obrou o Princepe D.
Duardos e os mais Princepes que com elle se criaro na ilha Perigosa do sabio
Daliarte, Composta por Guilherme Frusto, Author Hibernio; e copiada por
Simisberto Pachorro, em quanto esteve occupado, ou encantado, no cume da
Penha Riguroza da Serra da Lua, pello odio do Sabio Bragamante (BNP COD.
12904)2. Alm de que o apelido Frusto no aparece pela primeira vez, pois
Moraes, de entre vrios cronistas e autores fictcios que refere (Alber de Renes,
logo no prlogo, Tornelo Alteroso no final da obra), menciona ainda: Joanes
dEsbrec que compos a Cronica daqueles tempos, Jaimes Biut e Anrico Frustro
autenticos escriptores (fl. 253c).
Sem grande detalhe por escapar aos objectivos deste captulo, pretende-se,
aqui, ainda registar alguns ecos em Palmeirim de Inglaterra de outras leituras de
Moraes, estas de carcter mais clssico, nomeadamente as relativas aos pares
amorosos trgicos que menciona no captulo VI a propsito da Casa da Tristeza, e
cuja nomeao conduz interrogao sobre a possibilidade ter sido leitor de
Ovdio, e das suas Metamorfoses em particular. Odorico Mendes (1860: 25)
menciona Homero e a Odisseia, Virglio e a Eneida bem como Ariosto e Orlando
[Furioso] a propsito da batalha final das obras. Parece haver ainda, no intertexto
1 Tanto no prlogo de Amadis de Gaula como no das Sergas de Esplandin se menciona o
respectivo texto como traduo. Salienta-se o de Amadis de Gaula pela semelhana evidente entre
este e o enunciado moraesiano: en letra e pergamino tan antiguo, que com mucho trabajo se
pudo leer (Montalvo 1987: 224-225) e a Cronica de Palmeirim dInglaterra, filho de dom
Duardos, tam gastada da antiguedade de seu nacimento, que com assaz trabalho a pude ler
(1567). 2 Registe-se que Serra da Lua era nome atribudo Serra de Sintra.
28
moraesiano, algum dilogo com o texto bblico e com uma ou outra Relao1,
suas e alheias, como se enuncia no captulo seguinte.
E Marn Pina encontra vrios motivos da literatura tradicional e oral como
germen de la aventura de Miraguarda (Marn Pina 2007b: 366), entre outras.
Acresce dizer, retomando os textos convocados por Francisco de Moraes
em Palmeirim de Inglaterra, que o prprio remete, vrias vezes, para uma
continuao desta sua obra: a Crnica do Segundo Dom Duardos. Ao apresentar
Cardiga, mulher de Almourol2, encontra-se a primeira meno: no segundo livro
desta historia chamado Dom Duardos de Bretanha (fl. 218d). J no final do
texto, no final do captulo 170, referindo-se ao filho de Albaizar e Targiana
encontra-se escrito como na Cronica do segundo dom Duardos filho de
Palmeirim dInglaterra se pode ver (fl. 251c-d). Adiante refere-se que este
Duardos II reinou em Inglaterra como refere a sua Crnica (fl. 254a),
acrescentando, logo depois, a propsito de Flrida, irm deste Duardos, e eu creo
que na Cronica do segundo dom Duardos, que sae deste livro e ainda nam
tresladada, faz muita menam desta Flerida (fl. 254b) e continua com a
nomeao de Carmlia, filha de Floriano do Deserto e Lionarda de Trcia, cuja
formosura provocou aventuras que dam muito lustro Cronica do segundo dom
Duardos que foi seu servidor e pouco favorecido dela (fl. 254b). Ao finalizar o
seu texto escreve ainda:
Quem for curioso de ver as proezas de cada um, lea a Cronica deste dom
Duardos, nela ver maravilhas, novidades e galantarias, por ventura
1 A Relao ou Relato afastava-se do mbito literrio aproximando-se do texto hoje considerado
jornalstico. A explicao do aparecimento destes textos encontra-se em Jos Tengarrinha (1989:
27-30). 2 Refira-se que Cardiga e Almourol so, alm de personagens da obra, tambm dois topnimos do
centro de Portugal (a cerca de 100 km a Norte de Lisboa). O segundo corresponde ao, hoje em dia, to afamado castelo (fotografias 1 a 3). Cardiga hoje o nome de uma Quinta (com construes de
pocas diversas: fotografias 4 a 6), no muito longe daquele, tambm no actual curso do Tejo, no
limite do concelho de Goleg. A comenda de Almourol remonta ao sculo XII (Dias 1998: 23) e a
da Cardiga autonomiza-se no sculo XIV (Dias 1998: 26), voltando ambas no sculo XVI a fazer
parte do territrio em tempos templrio, quando, por alvar de 28 de Agosto de 1536, a comenda
da Cardiga passava para a administrao do Convento de Tomar (Dias 1998: 47). Moraes ter
conhecido bem a regio tanto mais que um seu descendente o d como Comendador da Ordem de
Cristo (sem mencionar comenda), a Ordem portuguesa sucessora da do Templo. Nas imediaes
do Almourol existe hoje Constncia, Punhete ao tempo, onde Cames ter permanecido algum
tempo desterrado e onde os Condes de Linhares podero ter possudo um castelo (Saraiva 1994:
244 e 255-6).
29
muito acima do que se pode ver em outras Cronicas, assi de Palmeirim
dInglaterra, como do Cavaleiro do Salvaje (fl. 254b)
Este reenvio para a continuao do seu Palmeirim, quase insistentemente diga-se,
aliado a outros factores estranhos ao texto, contribuem para duas hipteses
enunciadas mais frente neste trabalho. A primeira decorre da expresso j
mencionada, entre outras existentes no texto, no segundo livro desta historia (fl.
238c) e ser retomada no terceiro captulo; a segunda prende-se com a produo
literria de Francisco de Moraes e encontra-se na parte 1.4.2 deste captulo,
dedicada sua obra.
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Figura 1: O castelo de Almourol e o ilhu
Figura 2: O castelo de Almourol (vista da margem Norte)
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Figura 3: O castelo de Almourol (vista da margem Sul).
Figura 4: Quinta da Cardiga (vista de nascente)
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Figura 5: Quinta da Cardiga (vista de Norte)
Figura 6:
Quinta da Cardiga
(vista de poente)
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37
1.4- Palmeirim de Inglaterra e o seu autor
1.4.1- a vida de Francisco de Moraes
A vida de Moraes encerra muitas interrogaes e poucas certezas. No h
certeza documental sobre onde ou quando nasceu, nem sobre a sua ascendncia.
Sobre a sua morte so habitualmente colocadas duas hipteses, dependentes do
apelido Cabral que alguns autores tm considerado pertencer-lhe.
Entre os dois momentos delimitadores da sua existncia, h outras
ocorrncias por documentar e algumas, raras, certezas. O facto no indito e
mais parece um trao caracterstico do nosso sculo XVI, em particular no que a
grandes escritores diz respeito: tambm se possui pouca documentao sobre as
vidas de Lus de Cames e de Gil Vicente, por exemplo.
Procurou-se, por isso, fazer o estudo de alguma documentao que
pudesse esclarecer mais alguma das muitas dvidas relativas ao autor de
Palmeirim de Inglaterra. Depois da leitura dos dados j impressos, pesquisaram-
se inditos de Chancelarias Rgias com vista a obter alguma informao mais que
a apenas referida, por vezes sem informao completa, por vrios autores; leram-
se alguns Registos Paroquiais, quando existem, pois nem sempre os registos de
baptismo, casamento e bito foram iniciados imediatamente aps o Conclio de
Trento que os instituiu (1543-63)1 e, no raro, eram inexistentes antes dessa data.
Da obra prpria e da obra de outros autores se colheram ainda algumas outras
informaes. Muito foi feito, ainda que seja certo que muito fica por fazer.
Da lista de documentos de chancelaria consultados2 resultaram mais
perguntas que respostas, ainda que a recentemente descoberta carta autgrafa,
1 O Registo Civil Portugus muitssimo posterior: institudo em 1832, s passaria a obrigatrio
em 1911 (Reis 1991: 146). 2 Apresentada no apndice n. 3.
38
datada de 3-3-1542, e enviada de Paris a Ferno de lvares1, seja um documento
relevante pois permite, a par da referncia viagem a Ceuta, e eventual passagem
por Sevilha, na companhia de D. Francisco de Noronha, juntar mais alguns aos
dados de Francisco de Moraes e complementar a sua biografia com dois
acontecimentos que ainda no haviam sido mencionados por qualquer dos autores
que lhe dedicaram semelhante estudo.
Da anlise de trabalhos publicados, ressalta uma concluso: alguns autores
adiantam motivos para se considerar Bragana a terra natal de Moraes, ainda que
no se tenha encontrado prova de que, quer aquela cidade, quer Lisboa, o seja. Os
autores mais antigos, e portanto cronologicamente mais prximos do autor,
referem-no como nascido em Bragana, mas veja-se o que registaram
efectivamente. Joo Franco Barreto considera-o nattural de Bragana no fl. 475
do tomo III da sua Bibliotheca Luzitana e o copista setecentista do Cathalogo dos
Autores Portugueses, tirado do original q fes Manoel de Faria e Sousa regista
Francisco de Morales de Brargana (sic) no verso do flio seis falando do autor
de Palmeirim de Inglaterra. J o seu neto Manuel de Moraes, conhecido como Fr.
Diogo de Santa Anna (1638: 15r2) regista que indo a corte foi nella muy
estimado, e ficando nella, foi comendador da ordem de nosso sor
Jesus X, ao
tempo que os reis de Portugal trazia a seu pescoo a cruz desta comenda. Mas o
seu descendente Lucio Xavier de Moraes, em 1748, escreve que foy natural de
Lisba em carta endereada a Diogo Barbosa Machado (Freitas 1910: 92), o qual
altera, na sua Bibliotheca Portugueza, o local de nascimento de Bragana para
Lisboa (tomo II e IV, pp. 209 e 138, respectivamente). Tambm assim concluem
Diaz de Benjumea (1876: 82) e Fidelino Figueiredo (1930: 191, n.1). Camilo
Castelo Branco, a partir de documento que considera talvez autgrafo, anota
que Francisco de Moraes quando desceu de Bragana, sua ptria, entre 1527 e
1533, foi recebido na corte na qualidade de moo da cmara do infante D.
Duarte. (Branco 1852: 51)3. Sendo ainda nesta qualidade que Andr de Resende
1 O texto da carta em constitui o Apndice n. 1. A mesma carta, com estudo introdutrio,
encontra-se, desde Novembro de 2007, em www2.fcsh.unl.pt/iem/investigar-estudo-iem.html. 2 O excerto relevante desta obra, para o biografado, encontra-se no Apndice n. 2. 3 E ali regista ainda, na nota 1, que o local de nascimento se infere de um manuscrito dele que
cita: sexta-feira de endoenas do ano de 1521 vi no mosteiro de So Francisco de Bragana...
em 1525 Camilo assevera que demorava em Miranda do Douro e, cita: Sexta feira de
endoenas de 1533 vi no mosteiro de Santos de Lisboa representar-se um auto da paixo de N.
39
regista um encontro seu com o mencionado Francisco de Moraes, como abaixo se
documenta.
Alm do argumento cronolgico apontado, considera-se que a incluso na
carta de 1542 da referncia aos veludos de Bragana bem como o trao fonolgico
da troca de b por v (nas cartas autgrafas e em Palmeirim de Inglaterra) podero
apontar para uma possvel infncia brigantina.
E se alguns outros dados biogrficos que Camilo aponta podem ser
contestados, a verdade que tambm o local da morte que adianta (vora), na
senda de Joo Franco Barreto (fl. 475r), o que tem sido mais vezes retomado, e
por vrios autores.
J afirmao camiliana de ter casado em vora, depois de voltar de
Frana, onde passou o restante da sua longa existncia (Branco 1852: 54), pode
contrapor-se a nota de seu neto, Fr. Diogo (Santa Anna 1638: 15r): cazando na
ide de lx, com hua senhora, erdeira unica, do vinculo de bens da caza de seus
Paes, bem como o documento de Chancelaria que o d, em 1530, como marido
de Brbara Madeira e morador no vale de Xabregas em Lisboa1, ou um outro que
lhe confere o estatuto de arrendatrio, em 1558, de um olival em Chelas2. O
primeiro destes documentos permite tambm, de resto, diminuir o tempo apontado
para a sua instalao em Lisboa para os cinco anos que vo de 1526 a 1530, se
no nasceu na cidade. E 1526 resulta como data possvel a partir do que o prprio
Camilo diz, na medida em que documenta a sua permanncia em terras
transmontanas em 1525, mas nada diz sobre o ano seguinte, embora tambm no
apresente qualquer motivo para que se considere 1527 em detrimento do ano
anterior.
Do que acima se regista no parece poder inferir-se, com segurana, que
Moraes nasceu em Bragana, ainda que continue a existir a possibilidade. Mas
viveu parte da sua vida em Lisboa onde se encontra ligado ao Conde de Linhares,
ttulo criado por D. Joo III em 1525 (Buescu 2005: 295), e sua casa, como o
prprio regista na carta enviada de Melun a D. Antnio de Noronha, ao
subscrever-se como cryado (Braga 1881: 257), e reafirma-o na carta dirigida a
Senhor, para anotar, por fim, que em dia de Corpus Christi de 1534 estava em vora com a
corte. 1 Chancelaria de D. Joo III, Doaes, Ofcios e Mercs, livro 9, fl. 15-15v. 2 Chancelaria de D. Sebastio e D. Henrique, Doaes, livro 6, fl. 128v-129.
40
D. Leonor ao referir o Conde de Linhares que me criou, e deu a El Rey nosso
seor (Miguel 1998: 153). Na corte foi moo de cmara do Cardeal Infante
(veja-se o Recibo autgrafo da Merc de 1539) D. Afonso (Almeida 1999: 927) e
do infante D. Duarte, segundo mencionam algumas biografias j publicadas
(Branco 1852: 51), (Miguel 1955: 6), (Almeida 1999: 927). Escreveu Andr de
Resende (1789: 47):
Vi eu huma vez Francisco de Moraes seu moo da camara pedir-lhe certa
merce, indo o Infante j para fra, e elle lhe respondeo que si, como
tornasse. Senhor ( disse o Moraes) quer V. A. que lho lembre Vasco da
Motta? Respondeo o Infante, dizendo: E bem, na me serves tu a mi? Se tu
serves, porque buscars outrem, que me represente teu servio? Quando
vires que me descuido, tu mo lembra. A todos os criados de somenos
moradia, se lhe parecia que lhes na bastaria, cada vez mandava dar mais
certa cousa para ajuda de supprimento de suas necessidades.
Conforme tambm j afirmou Isabel Almeida (1999: 927), esta situao encontra-
se ainda documentada no tomo II, parte II das Provas da Histria Genealgica da
Casa Real Portuguesa, no Rol de Moradores incluso no testamento do Infante D.
Duarte, onde se menciona Francisco de Moraes (Sousa 1948: 238).
Sabe-se que esteve em Frana atravs da sua Dedicatria do Palmeirim de
Inglaterra e das cartas que de l enviou, possivelmente por duas vezes,
acompanhando D. Francisco de Noronha, embaixador junto de Francisco I1. A
primeira vez a partir de 24 de Novembro de 1540 (Miguel 1955: 7) at entorno a
1544 (Vargas 2006b: XVIII) e a segunda en 1547 () de nuevo junto a
Francisco de Noronha (Vargas 2006b: XIX), de onde ter regressado em 1548,
quando o futuro Conde de Linhares foi substitudo por Brs de Alvide, segundo as
cartas datadas de 13 de Maro desse ano, enviadas por D. Joo III ao rei francs e
a D. Francisco de Noronha (Serro 1969: 61-63).
Vejam-se, em seguida, os cargos que lhe so atribudos. Partindo dos
estudos publicados, e dos documentos de Chancelaria consultados relativos ao
nome Francisco de Moraes, verifica-se que h, entre outras, referncias a um
1 Alm de os vrios bigrafos de Moraes o mencionarem, deste facto d conta Francisco de
Andrada no pitoresco captulo 90 da sua Terceira parte da Chronica del Rei D. Joo o III (1976:
862-865).
41
moo da camara real e a um escudeiro , depois cavaleiro fidalgo1. Note-se, de
resto, que nos vrios acontecimentos h, ao longo do tempo, alternncia entre uma
designao e outra2, mas que em momento algum as designaes se associam, o
que parece acentuar mais uma confuso por homonimia3. Em consequncia,
considera-se que h que optar por uma de duas hipteses: ou o autor, primeiro
moo de cmara, seguidamente escudeiro e depois cavaleiro-fidalgo filho de
(Se)Bastio de Moraes e tem sido por vezes confundido, por homonimia, com o
moo de cmara do Rei, apontado na documentao de Chancelaria como
sobrinho daquele, ou o autor de facto sobrinho daquele (Se)Bastio e no
ser, consequentemente, filho de Sebastio de Moraes [Balcarcel, Valcacer ou
Valcaar] como tm adiantado vrios bigrafos4. Assim, o sobrinho de bastio
de moraes5 seria um e o autor do Palmeirim de Inglaterra outro, filho de
Sebastio de Moraes, mas ambos com o mesmo nome. Em consequncia deste
facto, no ter sido o autor a ser nomeado como Alcaide-mor e Feitor em Cofalos
em 15436, nem como escrivo da carreira da Mina em 1549 e 1550
7. Por outro
lado a confirmao de cavaleiro, feita por D. Joo III em 1550, tambm no ser
sua, tal como no sua a capitania da nau da carreira da ndia (1574), pois estes
factos referem-se a outro Francisco de Moraes Cabral, filho de Antnio de Moraes
Cabral (capito de ordenana), que fora feito cavaleiro por D. Joo de
Mascarenhas, sendo este capito em Diu. Decorre do que se acaba de dizer a
dvida sobre a nomeao de Francisco de Moraes, cavaleiro-fidalgo, para Feitor e
Alcaide-mor de Chal, em 1552, mas atendendo a que esta nomeao se deve a
seruios que na India e no erquo de dio8 foram feitos tal como a capitania da
1 Sobre os foros dos fidalgos da Casa Real, ser elucidativa a leitura do texto A Estrutura Social e
o seu Devir de Joo Pereira (1998), em particular as pginas 289-298. 2 Esta situao pode verificar-se atravs dos documentos consultados e apresentados no Apndice
n. 3. 3 A possibilidade de homonimia foi tambm mencionada por Antnio Dias Miguel (1955: 8) e
Isabel Almeida (1999: 926). Quanto a outros Francisco de Moraes encontrados nas Chancelarias
(referidos na lista em Apndice), considerou-se que a associao de alguns ao autor se apresentava, desde logo, descabida: o mdico lisboeta que em 1526 tem 60 anos, o cavaleiro
morador em vora (1535), o juiz das sizas de Braga (1536), bem como o bacharel salamantino
(1559), por exemplo. 4 Veja-se Andrade Leito (BA, 49-XII-38, fl. 964), Odorico Mendes (1860: 71), Freitas Jordo
(1910: 91), Cristovo Alo de Moraes (1997: 442), F. Moraes Sarmento (2001: 20-24), por
exemplo. 5 Chancelaria de D. Joo III, Doaes, Ofcios e Mercs, livro 55, fl. 214v-215. Este e outros
documentos relevantes para a biografia do autor encontram-se transcritos no Apndice n. 4. 6 Chancelaria de D. Joo III, Doaes, Ofcios e Mercs, livro 6, fl. 152. 7 Chancelaria de D. Joo III, Doaes, Ofcios e Mercs, livro 55, fl.214v-215 e livro 62, fl.120v. 8 Chancelaria de D. Joo III, Doaes, Ofcios e Mercs, livro 61, fl. 21v.
42
nau se deveu a seruios que () na Imdia e neste Reyno1 realizara Francisco de
Moraes Cabral, tambm cavaleiro como se viu, aponta-se a probabilidade de se
tratar de nomeao dada ao mesmo Francisco. Tal situao parece inclusive mais
concordante com algumas actividades em datas prximas daquelas,
nomeadamente o Torneio em Xabregas (1550) e a viagem a Ceuta de que em
seguida se tratar. Resta, por fim, o cargo de Almoxarife em vora tanto mais que
os documentos mencionam simplesmente Francisco de Moraes enquanto a
nomeao para Recebedor do Almoxarifado refere expressamente francisco de
moraes caualeiro fidalguo da casa do cardial Ifamte2. Aquele cargo levanta ainda
ainda outra questo relacionada com a(s) data(s) da morte do autor e, por isso,
desta se trata adiante.
A j acima referida viagem a Ceuta mencionada pelo autor dos Dittos
Portuguezes Dignos de Memoria, e realizada com o objectivo de visitar um irmo
de D. Francisco de Noronha, D. Pedro de Menezes3. Assim se pode ler nas
pginas 163 e 164:
De Francisco de Moraes
De Francisco de Moraes creo, que posso dar poucas confrontaes, para se
conhecer, pois as partes que teue boas so manifestas a muitos. Somente
digo que em moo foi paje de D. Antonio de Noronha conde de Linhares,
e por seu ueyo a ualer com el Rej. Indo elle a Ceuta com D. Francisco de
Noronha, que despois foi conde de Linhares, o qual hia uisitar a D. Pedro
de Menezes seu irma, que la estaua por capita, quando se quiz uir,
pedindolhe seu parecer se deixaria la a seu filho D. Antonio de Noronha
que leuara com sigo, por que em sua auzencia se lhe na cazasse com h a
dama, a que era afeioado ou se o tornaria a trazer, proposlhe Francisco de
Moraes primeiro, qual de dous acontecimentos lhe seria mais penozo, ver
seu filho cazado com sua dama, ou uelo morto, respondeolhe D. Francisco,
que antes o queria morto, enta lhe disse Francisco de Moraes, pois
deixaio, e la o matara.
Hauendo hum anno falta de agoa e fazendose por isso muitas procies;
queimara hum homem no rocio de Lixboa, por culpado no pecado
nefando, e o secretario disse a Francisco de Moraes, que por aquillo na
chouia, e elle respondeolhe. Senhor na deixa de chouer por estes pecados,
porque se este homem he tal, queimano, e se outro he ladro enforcano;
1 Chancelaria de D. Sebastio e D. Henrique, Doaes, livro 33, fl. 52. 2 Chancelaria de D. Sebastio e D. Henrique, Doaes, livro 15, fl. 36v-37. 3 Terceiro filho do 1.Conde de Linhares (Faria 1621?: fl.54v), capito de Ceuta entre 1550 e 18 de
Abril de 1553, quando morre em batalha, juntamente com o seu sobrinho Antnio de Noronha de
que fala o dito transcrito e que tambm participara no Torneio de Xabregas, conforme menciona a
Carta enviada Rainha D. Leonor, publicada por Antnio Dias Miguel (1998: 137).
43
pellos pecados, que so Deos pode castigar, e na o Rej, por estes he que
nos castiga.
Dando hum Dezembargador huma sentena contra Francisco de Moraes,
queixandose a outro Dezembargador disso, disselhe que se na espantaua
ter pouco saber hum homem, que era Doutor em lingoagem, e falaua com
borda, e dizendolhe o Dezembargador, que o Doutor em lingoagem bem
entendia, o que era, mas que o falar com o borda, lhe declarasse ele; disse
Francisco de Moraes; quando, no discurso do que pratica, lhe falta
lingoagem, entulha com huma destas duas palauras ta, e assi, ou assi que
de maneira.
Isto que Francisco de Moraes notou no Doutor que o tinha magoado me
fez atentar por outros homens; ou por outros bordes, que ui em homens
criados na corte, e lembro aqui para que sirua como de mostrador, e auizo