Upload
dohanh
View
213
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
“Competência moral e formação médica: percepção dos docentes sobre a
influência do ambiente universitário”
por
Maria Angélica Bonfim Varela
Dissertação apresentada com vistas à obtenção do título de Mestre em
Ciências na área de Bioética, Ética Aplicada e Saúde Coletiva.
Orientador: Prof. Dr. Sergio Tavares de Almeida Rego
Rio de Janeiro, janeiro de 2013.
Esta dissertação, intitulada
“Competência moral e formação médica: percepção dos docentes sobre a
influência do ambiente universitário”
apresentada por
Maria Angélica Bonfim Varela
foi avaliada pela Banca Examinadora composta pelos seguintes membros:
Prof. Dr. Monica Carvalho de Mesquita Verner Vermellinger
Prof. Dr. Marisa Palácios de Cunha e Melo de Almeida Rego
Prof. Dr. Sergio Tavares de Almeida Rego – Orientador
Dissertação defendida e aprovada em 15 de janeiro de 2013.
Catalogação na fonte
Fundação Oswaldo Cruz
Instituto de Comunicação e Informação Científica e
Tecnológica
Biblioteca de Saúde Pública
V293c Varela, Maria Angélica Bonfim
Competência moral e formação médica: percepção dos
docentes sobre a influência do ambiente universitário. /
Maria Angélica Bonfim Varela. -- 2013.
100 f. : il. ; tab.
Orientador: Dr. Sergio Tavares de Almeida Rego
Dissertação (Mestrado) – Escola Nacional de Saúde
Pública Sergio Arouca, Rio de Janeiro, 2013
1. Desenvolvimento Moral. 2. Docentes de Medicina.
3. Educação Médica. 4. Educação Superior. I. Título.
CDD - 22. ed. – 610.7
Esta dissertação é dedicada aos meus pais Ruth e João, grandes mestres.
Ao meu companheiro Sérgio Bernardo e ao nosso querido filho Pedro, que chegou bem
ao meio desta tempestade de novas ideias e novo mundo que se aportou em meu cais.
Agradecimentos
Agradeço a compreensão e generosidade do meu orientador Prof. Sergio Rego,
Aos conselhos e incentivo da Prof. Lilian Koifman e da grande amiga-irmã Prof.
Cynthia Meirelles;
Ao carinho e apoio dos meus colegas do programa de pós-graduação;
Ao suporte de Sirlei, Simone, Patrícia, Geni, Eliane e Edmo.
A disponibilidade dos professores entrevistados.
Pedala, pedala,
Pedala pedalinho,
Me leva prá longe
Bem devagarinho.
O mar tá bonito,
Tá cheio de caminhos.
Pedala, pedala,
Pedala pedalinho.
(Bia Bedran)
Resumo
Este estudo discute a percepção dos docentes de uma escola médica de uma
universidade pública brasileira a respeito da influência do ambiente universitário na
formação ética ou desenvolvimento da competência moral dos estudantes de medicina.
Procurou-se identificar as oportunidades de reflexão sobre questões na universidade que
envolvesse a moralidade, a condução de situações eticamente conflituosas e a
participação dos estudantes na vida política e cultural da universidade, o que, de acordo
com diversos autores, promove o desenvolvimento moral. A pertinência do tema se
deve ao fato de pouco se discutir a formação moral no ensino superior e a existência nas
escolas médicas de uma demanda particular devido ao papel social do médico.
Concluiu-se que existe o entendimento de que a influência do comportamento dos
docentes se constitui no principal eixo da formação moral do estudante. Observaram-se
poucas oportunidades de reflexão sobre questões morais no ambiente universitário, a
inexistência de uma política institucional de condução dos problemas morais
enfrentados no cotidiano universitário dos estudantes de medicina, além da pouca
participação nos órgãos colegiados e na vida política e cultural universitária. Aponta-se
a necessidade de uma política de ensino superior para a formação docente em
desenvolvimento de competência moral e que fomente a participação democrática na
vida universitária.
Palavras chave: Desenvolvimento Moral, Docentes de Medicina, Educação Médica,
Educação Superior..
Abstract
This study discusses how teachers from a public school of medicine understand the
influence of university environment in the development of moral aspects on medical
students. The study has been conducted with the aim of identifying opportunities for a
reflection about moral issues at the university, the conduction of moral conflicting
problems and the students’ participation in the cultural and political life in the
university. In accordance with several authors, such involvement promotes the moral
development. The subject is important because the moral formation is rarely discussed
in higher education and there is a particular demand at the medicine school related to
the doctor’s social role. It has been concluded that most of the teachers consider the
teacher´s behavior influence as the main component in moral formation of medical
students. It also has been found there are few opportunities for reflection about moral
issues in the university environment as well the absence of an institutional policy for
conduction of moral problems on complicated situations during the student’s day-by-
day activities and the ineffective participation of students in the political and cultural
lives at the university. This study aims to emphasize the importance of an institutional
policy for higher education so as to promote the teaching formation in development of
moral competency and stimulate the democratic participation in the university life.
Key words: Moral Development, Medical Faculty, Medical Education, Higher
Education.
Sumário
1
1.1
1.2
1.3
1.4
1.5
1.6
2
2.1
2.2
2.3
2.4
2.5
2.6
2.7
2.8
3
4.
4.1.
4.2
4.3
Introdução
Aspectos históricos da construção da cultura universitária........................
Idade Média: nossa infância..............................................................................
Do Renascimento do século XVI ao século XVIII............................................
Industrialização e reforma universitária............................................................
Indústria de conhecimento e tecnologia do século XX.....................................
A universidade no Brasil...................................................................................
A universidade no século XXI...........................................................................
A formação moral na universidade e nas escolas médicas...........................
Entendendo a formação moral e o contexto universitário.................................
O contexto pedagógico escolar e universitário..................................................
A ideia de competência moral...........................................................................
A formação nas escolas médicas brasileiras......................................................
Formação ética e ensino da ética.......................................................................
Ensino da bioética..............................................................................................
Ensino médico e formação moral......................................................................
Agenda para a formação moral no ensino médico............................................
Percurso metodológico ...................................................................................
Resultados ........................................................................................................
Entrevistas e análise qualitativa.........................................................................
O ambiente universitário...................................................................................
Identificação e condução de situações eticamente complicadas.......................
Participação na vida política e cultural universitária.........................................
Considerações finais........................................................................................
Referências Bibliográficas..............................................................................
Anexos ..............................................................................................................
1
6
8
13
16
20
25
30
34
39
40
41
45
48
50
53
54
56
61
62
62
71
78
84
90
98
Lista de Siglas
COMEST – Comitê de Ética da Ciência e Tecnologia
MEC – Ministério da Educação e Cultura
MJI- Moral Judgment Interview
MJT - Moral Judgment Test
ORIGIN/ u – Questionnaire for assessing opportunities for role taking and guided
reflection in universities
PBL – Problem Based Learning
PMEDH – Plano Mundial de Educação em Direitos Humanos
PNDEH – Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos
PROUNI – Programa Universidade para Todos
REUNI – Programa de Apoio e Reestruturação e Expansão das Universidades Federais
SIDA – Síndrome da Imunodeficiência Adquirida
SUS – Sistema Único de Saúde
UDF – Universidade do Distrito Federal
UNB – Universidade de Brasília
UNE – União Nacional dos Estudantes
UNESCO – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
WMA – World Medical Association
2
O tema desta dissertação: “Competência moral e educação médica” partiu de uma
inquietude pessoal que me acompanha desde a graduação. Formada há 23 anos e quase
30 anos inserida (seja como estudante, médica residente ou médica componente do
corpo clínico) em hospitais da rede pública de saúde, ainda me causa “mal estar” o
descompasso entre o idealismo inicial dos estudantes de medicina e o progressivo
desenvolvimento de um sentimento de desânimo, chegando muitas vezes às raias do
cinismo e falta de comprometimento com os pacientes. Podemos apontar diversas
causas para este hiato: sucateamento da rede pública de saúde, desvalorização
profissional com condições de trabalho e salários aviltantes ou uma “crise ética”
mundial.
Esta questão, entretanto, me veio com um novo olhar, agora como docente de
uma escola médica: como promover uma formação que vá além da apresentação das
chamadas “boas práticas” da técnica médica? Como manter aquele entusiasmo dos
primeiros anos de vida universitária, aquele interesse e cuidado com o outro? Como o
ambiente de ensino e o professor poderiam contribuir para formar médicos ainda
idealistas e comprometidos com o outro?
A universidade deveria ser um espaço privilegiado para proporcionar um
ambiente que permitisse aos estudantes vivenciarem a democracia e que este lugar
tivesse como uma de suas metas a promoção do desenvolvimento integral dos sujeitos,
seja de estudantes, professores ou pesquisadores. Entretanto, quando observamos o
descontentamento da sociedade com a assistência médica, a despeito de outras causas
associadas, percebe-se que algo está faltando na formação do médico.
Embora exista uma percepção de uma “crise ética” em todas as áreas, com um
sentimento de “cada um por si”, quando esta discussão chega ao sistema educacional e,
principalmente, de saúde, ela toma dimensões diferenciadas do que em outros campos
do conhecimento. Existe uma expectativa social da idoneidade ética do médico e
mesmo considerando as limitações de intervenção educacional na formação moral
durante os anos da vida universitária do estudante de medicina, existe uma emergência
neste tema e um sentimento de que algo deveria ser feito.
A universidade, por ser um local propício ao encontro de pessoas com múltiplos
saberes e atividades de educação e pesquisa, que tem em suas raízes o questionamento e
desenvolvimento de idéias, seria um lugar propício para se estimular o debate num
ambiente democrático e de respeito mútuo entre os sujeitos. Mas, partindo da minha
3
vivência como estudante de medicina e médica residente de um hospital universitário e
depois como professora universitária, o que pude observar, de forma em geral, nos
cursos de medicina foi uma “vida coletiva universitária” pobre, no sentido de pouca
articulação com o restante da universidade, longe de movimentos políticos, sociais e
culturais. O curso se apresenta com disciplinas fragmentadas, com pouco diálogo entre
si e que valorizam primordialmente as questões técnicas da profissão, com pouco
espaço para as discussões éticas até mesmo de situações que surgem no decorrer do
curso, ou então, nas vivências da prática médica. Na maioria das vezes, as questões
éticas são interpretadas de forma equivocada, como se fossem um problema da ordem
técnica ou relacionadas à “má adaptação” do aluno ao curso médico.
Desta maneira, não conseguia estabelecer um “diagnóstico” real seja das
questões que envolviam a moralidade assim como das estratégias necessárias para que
os conflitos gerados no dia a dia da vida na universidade pudessem ser identificados,
refletidos e conduzidos. Isto me levou ao desejo de entender melhor o que seria a
universidade e como esta comunidade poderia contribuir para a formação moral dos
estudantes e, mais especificamente, dos estudantes de medicina.
Assim, nos propusemos neste estudo a discutir como o ambiente universitário
influencia a formação ética dos médicos, em especial como os docentes percebem
esta influência. À formação ética, associamos o conceito de competência moral de
Kohlberg, ou seja, a capacidade dos sujeitos perceberem os componentes morais das
situações, refletirem e agirem de acordo com princípios internos. Assim, intencionamos
analisar as oportunidades de reflexão sobre situações de conflito existentes dentro do
contexto universitário, de vivência da democracia e de participação na vida coletiva
universitária (cultural e política).
Este estudo faz parte do projeto de pesquisa: “Avaliação do desenvolvimento da
competência moral entre estudantes de medicina e ambiente de ensino na graduação de
medicina” onde participam três escolas médicas, com três modelos pedagógicos
diferentes: ensino tradicional, ensino com modelo de base comunitária e outra no
modelo PBL- Problem based learning. Neste caso, escolhemos uma escola de modelo
tradicional, que na época do estudo estava em processo de revisão curricular.
Para entender o que seria o ambiente universitário, no capítulo 1 buscou-se
contextualizar as universidades. Descreveu-se a construção histórica da cultura
universitária e as transformações desde suas origens na Idade Média até o século
4
XXI, apresentando suas influências nos modelos construídos e que foram as bases
da construção das universidades brasileiras. Manteve-se o foco nas oportunidades
de uma vivência democrática e buscando-se entender a participação estudantil e as
relações entre mestres e alunos. Observamos, na fundação das universidades brasileiras,
os eventos políticos que provocaram uma ruptura e mudanças na vida estudantil, em
especial o período da ditadura militar que têm influência até os dias atuais.
No capítulo 2 serão apresentadas as iniciativas mundiais e brasileiras para o
desenvolvimento de uma vida universitária pautada pela democracia o na vivência
dos direitos humanos, além da formação ética, em especial para o ensino médico.
Foram também apresentadas as teorias e estratégias educacionais para o fomento do
desenvolvimento moral, conforme defendido pelos teóricos cognitivistas do
desenvolvimento moral. Neste capítulo apresentaremos o conceito de desenvolvimento
da competência moral, entendida como a capacidade de identificar os componentes
morais de uma determinada situação, refletir sobre eles e agir baseado em princípios
próprios. Esta teoria representa uma evolução de uma moral heterônoma (baseada em
princípios ou em normas externas ao indivíduo) para uma moral autônoma. Kohlberg e
Lind, os principais teóricos, apresentam como estratégias educacionais: o
desenvolvimento de um ambiente democrático e oportunidades de discussão sob
orientação de um professor capacitado.
No capítulo 3 será apresentado o percurso metodológico. Foi escolhido um
percurso que permitisse identificar os valores e normas nas falas dos coordenadores do
curso médico e das disciplinas onde o tema “ética” estava incluído, ou nos períodos
onde geralmente se identificam os conflitos morais mais comuns do ensino e nas
práticas médicas. Estes se referem primordialmente às situações onde o paciente ou
usuário do sistema de saúde está incluído de forma direta. Entendemos que na fala
destes atores está uma representação do grupo de professores envolvidos nestas
disciplinas ou nestes períodos. Assim, optamos por entrevistas com um roteiro
semiestruturado, a fim que permitisse aos entrevistados falar livremente e a
entrevistadora modificações, caso julgasse necessário durante as entrevistas.
Ao apresentar os resultados, no capítulo 4, faremos a análise das entrevistas
utilizando como método a análise de conteúdo, conforme proposto por Bardin. Foram
identificados os núcleos de sentido e, em seguida, realizada a categorização, sendo
5
encontradas três categorias: ambiente de ensino, oportunidades de discussão e reflexão e
de participação na vida política e cultural universitária.
Ao final desta pesquisa, concluímos que foram observados resultados
semelhantes aos de Rego, ao realizar uma pesquisa entre estudantes de medicinai. Um
ambiente que pode ser classificado como hostil, sem oportunidades para a reflexão
sobre os problemas morais envolvidos no ensino e práticas da medicina. Observamos
também uma vida universitária voltada unicamente para a formação profissional.
Apesar de alguns docentes valorizarem uma formação integral e global, entendem que a
forma como é conduzido o ensino há pouco espaço para tal abordagem. Defendemos ao
final desta dissertação uma política institucional para a capacitação docente, assim
como, para a construção de um ambiente favorável ao desenvolvimento moral, à
educação nos direitos humanos e a vivência da democracia.
i No livro “Saindo da adolescência com a vida (dos outros) nas mãos: Estudo sobre a formação ética dos estudantes de medicina”, Rego apresenta um estudo sobre a formação ética dos estudantes de medicina.
7
Ao percorrer os caminhos que trilham o objeto desta dissertação - a influência do
ambiente universitário e do docente na formação ética dos estudantes de medicina - nos
ocorrem alguns questionamentos: o que é o ambiente universitário? Como entender esta
comunidade tão diversa em propósitos, aspectos acadêmicos propriamente ditos
(entendidos como conteúdos disciplinares específicos e objetivos), assim como nos seus
constituintes humanos (professores e alunos) de origem, formação e propostas tão
diversas.
Entendendo que para compreender o presente é necessário voltar ao passado e
que tanto os indivíduos como as instituições são produtos históricos, procuraram-se as
origens das universidades, suas tensões com os poderes hegemônicos, suas
representações, enfim, a cultura universitária que varia ao longo dos seus oito séculos de
existência. Embora entender o passado seja mais complexo do que qualquer
interpretação documental, este capítulo inicial tem a proposta de apresentação do
contexto em seus aspectos sociais, culturais, geográficos e temporais: a universidade
como uma organização social que muda de acordo como o local e o tempo.
Apesar da influência seja da Igreja católica, protestante, do Estado ou, mais
recentemente, das corporações, a universidade deve, ou pelo menos deveria, ser um
local onde o conhecimento e as hegemonias podem ser repensados e debatidos de forma
autônoma, democrática e ética, tendo em conta o respeito mútuo entre seus constituintes
e a liberdade de pensamento. Entretanto, assoberbados e perdidos entre inúmeras
funções, professores e alunos transitam entre as salas de aula sem refletir sobre a
existência da instituição ou até mesmo o que estaria incluído nesta formação
universitária.
A dificuldade em se demarcar exatamente quando surge a universidade ocorre por
questões etimológicas (universitas poderia significar até o século XV uma associação
ou corporação legal) ou por questões de interpretação documental. De acordo com Paul
Monroe (1979)1, por exemplo, a universidade surge na Grécia e em Roma. Na Grécia
através da fundação da Universidade de Atenas (combinação de três escolas: Academia,
Escola peripatética e estóica) e da Universidade de Alexandria (conhecida, então, como
centro intelectual do mundo) e, com a fundação da Universidade de Roma, originária da
biblioteca de Vespasiano, no Templo da Paz.
Entretanto, podemos afirmar que o que alguns entendem hoje como universidade
no ocidente é uma instituição que surge na Europa medieval, mais precisamente na
8
Itália, França e Inglaterra do século XIII com características inovadoras, representando
o maior legado cultural da Idade Média.2
O propósito deste capítulo é, então, entender um pouco sobre o nascimento da
universidade no mundo ocidental e o desenvolvimento do ambiente universitário através
de seus principais atores (mestres e alunos) e suas articulações com o momento
histórico e moral vigentes. A opção por apresentar as configurações da universidade
ocidental, em especial européia e americana, se deve ao fato de serem as principais
referências na constituição das universidades e escolas médicas brasileiras.
1.1 Idade Média: a nossa infância
“A Idade Média é a nossa infância, à qual temos que voltar
sempre para fazer nossa anamnese”.
(Umberto Eco – “O Nome da Rosa”)
Embora seja muito difícil precisar exatamente qual foi a primeira universidade
que surgiu, foram as cidades de Bolonha ( Itália), Paris (França) e Oxford (Inglaterra) as
primeiras a abrigarem as primeiras instituições universitárias propriamente ditas.
Para entendermos o seu surgimento é preciso, antes de tudo, conhecermos como
eram as escolas neste período. As disciplinas ensinadas correspondiam as “Sete Artes
Liberais” (Gramática, Retórica, Lógica, Aritmética, Música, Astronomia e Geometria),
a ciência sagrada (mais tarde conhecida como Teologia) além de disciplinas práticas
como o Direito e a Medicina3.
Havia, basicamente, três tipos de escolas: as escolas monásticas, dedicadas à
preparação dos próprios monges, onde estavam incluídos os estudos das artes e leitura e
a cópia de diversos manuscritos, com o objetivo de interesse real do saber ou como
forma de disciplina monástica; as escolas episcopais, que preparavam o clero que
estavam sob a direção daquela diocese e as escolas catedrais, que tinham o objetivo de
preparar as crianças destinadas ao sacerdócio1.
Em alguns centros urbanos, contudo, começaram a surgir o que poderíamos
denominar “escolas particulares”. Mestres, especialmente os que tinham boa reputação,
instalavam-se livremente e ofereciam serviços de ensino.
9
De acordo com Charle & Verger (1996)3, o século XII foi marcado por uma
expansão da rede de ensino. Isto ocorre devido ao crescimento urbano, renovação
econômica e também pela necessidade de uma classe dirigente e, especialmente dos
membros da Igreja, em consultar letrados que dominassem determinadas disciplinas
para gestão de negócios, tanto públicos como privados. A promoção social de quem
frequentava as escolas, com ofertas de empregos cada vez mais numerosas, faz com que
se multipliquem as escolas particulares. Entretanto, este desenvolvimento inquietou a
Igreja, que sempre obteve monopólio sobre o funcionamento escolar. Determina, então,
que para abrir uma escola seria imperativo ter uma autorização de ensino outorgada pela
autoridade episcopal de cada diocese3.
As primeiras escolas de medicina surgiram em Salermo (a primeira seria no
mosteiro de Salermo), no sul da Itália, estimulada pelas primeiras cruzadas. Neste
período houve uma abertura intelectual por conta de saberes, antes restrito ao oriente,
que começavam a se propagar pela Europa feudal, proporcionando um conhecimento
mais profundo da cultura e ciência greco-árabe, em especial a leitura de textos de
Aristóteles, Galeno, Hipócrates, Rhazès, Avicenas e Averróis3.
Em Bolonha havia predominantemente as escolas de Direito (por conta de um
interesse específico pelo direito romano) que eram muito conceituadas, a ponto de
serem protegidas pelo imperador (Frederico Barba Ruiva). Por volta de 1190, iniciou-se
uma mudança decisiva. Lá, os estudantes começaram a se reagrupar, de acordo com
seus países de origem (ingleses, alemães, provençais, lombardos, toscanos, etc.) em
“nações”. Enquanto os mestres tinham que prestar contas à comuna (cidade libertada do
senhor feudal), os estudantes se organizavam com o propósito de se proteger das
cobranças da população local, regrar seus conflitos, assinar contrato com os professores
e determinar eles mesmos os ensinamentos de que tivessem necessidade. Pouco a
pouco, as “nações” se fundiram para formar as universidades e, na sua direção, um
reitor eleito. Embora houvesse oposição da comuna (provavelmente com receio de
conflitos maiores, considerando a grande número de estudantes estrangeiros que
residiam em Bolonha), o papa apoia os estudantes, com o propósito de introduzir o
sistema de licença para as escolas. Em 1270 a comuna reconhece não somente a
existência da universidade, como os privilégios dos estudantes (taxação de aluguéis e
isenção de impostos)3.
10
Ainda de acordo com Charle & Verger (1996)3, o surgimento das universidades
em Paris e Oxford ocorreram de forma mais pacífica com o agrupamento de mestres.
Em ambos os países houve o apoio da realeza, ou então, não houve oposição. Em
Montpellier há um desenvolvimento contínuo das escolas de Medicina com o
surgimento da universidade em 1220. Num período próximo, por conta de conflitos
internos, ocorre o desmembramento das universidades de Oxford e Bolonha, surgindo,
respectivamente, Cambridge e Pádua. Em seguida, surgem universidades por toda a
Europa, especialmente na Península Ibérica e no século seguinte (XIV), no mundo
germânico3.
O método de ensino era baseado na análise lógica e em dois exercícios: a leitura e
a disputa. As leituras ordinárias eram conduzidas por estudantes avançados ou
bacharéis, enquanto que os mestres realizavam as leituras mais aprofundadas, com a
proposta de que os estudantes atingissem “os sentidos espirituais ocultos por detrás do
sentido literal”3
(p.35). Havia, então, uma análise fragmentada do texto, sendo
observados seus diversos significados (literal, alegórico, místico e moral). Após as
diversas interpretações, havia a formulação de uma questão (ou proposição), e então,
ocorria a disputa, o segundo exercício. Esta era organizada entre os estudantes sob a
direção do mestre, que concluía o debate “por meio de uma determinação”(p.35). As
referências aos autores eram citadas de memória e o raciocínio conduzido segundo as
regras do silogismo. Segundo Monroe (1979)1, algumas disputas aconteciam nas salas
de aula e outras envolviam toda a universidade e eram muito benéficas para estimular o
pensamento e a liberdade de inquérito.
Os graus obtidos eram três: bacharelado (obtido dentro da própria escola, após o
mestre atestar que o aluno conseguia conduzir ele mesmo algumas leituras e sustentar os
debates), mestrado e doutorado (onde após muitas disputas consideradas muito difíceis
os alunos podiam apresentar-se para o mestrado e doutorado e ser admitido no colégio
de mestres e habilitado, se assim o quisesse, para ensinar)3.
Para entender como era o ambiente universitário neste período, é preciso observar
sua estrutura e organização. A “comunidade universitária” era uma associação entre
mestres e estudantes que tinham características diferentes das antigas escolas:
governança democrática e autônoma (estabeleciam seus próprios estatutos e tinham seus
representantes eleitos), jurisdição interna (julgamento de seus afiliados internamente),
privilégios exclusivos (isenção de impostos e de serviço militar, por exemplo) e direito
11
a colação de grau (licença para ensinar), que antes era concedido somente pela Igreja.
Caso alguns dos membros tivessem seus direitos infringidos havia a possibilidade de
greve ou então de mudar de instituição, conforme ocorreu em Oxford e Bolonha, por
exemplo1,3
.
Para Monroe (1979)1, as universidades foram o primeiro exemplo de
“organização puramente democrática”, onde havia uma leitura tanto de assuntos
políticos quanto eclesiásticos e teológicos, com direitos, inclusive de voz em situações
de confronto, por exemplo, entre a Igreja e o Estado. Esta afirmação pode ser
questionada, em virtude do poder hegemônico da Igreja e a ordenação teocrática da
época. Provavelmente as universidades não ficaram ilesas ao ambiente dogmático e
autoritário deste período, incluindo as relações entre mestres e alunos. Mas, com
certeza, podemos afirmar que houve uma mudança significativa na vida intelectual.
Aos poucos elas se tornaram reconhecidas, entretanto, com a submissão, cada vez mais
crescente, ao poder do Estado. No século XVI, por exemplo, quase todos os reitores
eram nomeados pelo Estado e as nações perderam toda a sua autoridade1,3
.
Outra forma de se analisar o ambiente universitário é entender alguns aspectos
sociais e econômicos, como o perfil dos estudantes que buscavam as escolas e
universidades na época: a maioria eram filhos de comerciantes e artesãos abastados, ou
seja, da “classe média” urbana que surgia. Poucos eram os nobres que frequentavam as
universidades (5 a 15%) e muito menos os pobres, principalmente devido aos custos e
duração dos estudos3.
Podemos afirmar, então, que a universidade cresce e toma vulto devido às
possibilidades de ascensão social da burguesia que via na educação uma oportunidade
de ter reconhecimento social, especialmente na prestação de serviços públicos, na
prática privada (médicos e advogados), na justiça, além da carreira docente.
Embora muitas universidades fossem surgindo ao longo dos anos, poucos eram os
locais que tinham as “quatro faculdades”: Artes, Medicina, Direito e Teologia, além de
serem os responsáveis pela elaboração de novas teorias. Charle e Verger (1996)3
comentam que muitas tinham as faculdades somente “no papel” e a maioria se limitava
a reproduzir conhecimentos e os estudantes tinham como principal objetivo conseguir
seus diplomas de forma rápida e a um baixo custo, com o objetivo de beneficiarem-se
pessoalmente destes.
12
Outras críticas pairaram sobre a universidade medieval. Algumas negligenciavam
alguns saberes como História e negavam outros (os primeiros arquitetos e engenheiros
se formaram fora das universidades). Entretanto, as críticas mais interessantes vieram
durante o Renascimento, movimento que surge como uma tentativa de derrubar as
diversas formas de autoridade dominantes seja no Estado ou na Igreja, nas organizações
sociais, na vida intelectual e educacional. Na educação, observou-se uma revalorização
da educação liberal dos gregos que visava o desenvolvimento de uma personalidade
livre, assim como, uma releitura das línguas clássicas (latim, grego e hebraico) com
grande impulso à literatura e filosofia2,3
.
Segundo De Masi (2005)4, determinados acontecimentos concomitantes irão, em
conjunto, se destacar na Idade moderna, que se segue: o nascimento da imprensa, a
Reforma Protestante, o movimento da Contra Reforma da Igreja católica, a expansão do
comércio e do capitalismo. A invenção da imprensa permite a difusão de novos livros
que estimula um espírito crítico aguçado: A Divina Comédia (Dante Aliguieri), O
Príncipe (Nicolau Maquiavel), A Utopia (Thomas Morus) e Elogio da Loucura (Erasmo
de Roterdã) são exemplos. Houve também, nesta época, uma ampla representação de
pintores, escultores como Leonardo da Vinci e Michelângelo. Entretanto o movimento
conhecido como Reforma protestante é que terá uma influência marcante sobre a
educação.
Há muito, alguns membros da Igreja vinham sentindo a necessidade de uma
reforma, principalmente devido a muitos abusos que estavam ocorrendo dentro da
instituição. Entretanto, muitas discordâncias, especialmente no que se refere ao conceito
de religião: uma corrente considerava a religião como uma verdade completa revelada e
confiada a Igreja. A outra considerava que a religião era divina em sua origem, mas que
se completava com a evolução do espírito humano (em consonância com o espírito
renascentista). Estas diferenças levaram ao grande Cisma da Igreja e a Reforma
Protestante. A Igreja reage com a Contra Reforma através da Inquisição e a fundação da
Companhia de Jesus (os jesuítas)1,2
.
Apesar dos líderes da Reforma protestante (Lutero, especialmente) concordarem
com um liberalismo de pensamento e a predominância da razão, em virtude das lutas
contra a Igreja e internas do protestantismo, o que se observa é um formalismo de
resultados. Monroe (1979)1 comenta que devido a discordâncias internas, há o
aparecimento de diversas divisões do protestantismo, sendo os credos minunciosamente
13
descritos, com subdivisões até ínfimos detalhes, proporcionando uma vida intelectual
estreita e presa nestes limites, assim como os objetivos das escolas elementares e
superiores que funcionavam sob a égide do protestantismo.
1.2 Do Renascimento do século XVI ao século XVIII
A época moderna foi caracterizada pela difusão das universidades no norte da
Europa (especialmente na Alemanha), Escandinávia e nas Américas (São Domingos -
1538, Lima -1551 e do México -1551). As últimas instituídas por decreto real com
estatutos inspirados nas de Salamanca e Alcalá (Espanha), controladas por ordens
religiosas (jesuítas e dominicanos), ensinando primordialmente Teologia e Direito
canônico, com características fundamentalmente coloniais e missionárias3.
Na América do Norte, as universidades, que surgem sob a forma de colégios,
tinham um propósito local: formar administradores e pastores (especialmente as
fundadas por protestantes). As primeiras universidades foram Harvard (1636),
Williamsburg (1693) e Yale (1701)3.
Na Europa, o surgimento das diversas universidades se explica tanto pela
necessidade de se formar novos componentes para a administração e serviços, como
pelo cisma religioso e a Reforma, que levaram aos estados protestantes a terem sua
própria rede de ensino e aos católicos multiplicarem suas universidades, especialmente
em áreas fronteiriças, para uma possível reconquista missionária. Nesta época podem-se
distinguir as universidades em que a estrutura medieval permaneceu (as quatro
faculdades) e outras onde o sistema de cadeiras professorais preponderou (Alemanha) e
os colégios universitários, nas quais os mestres, os estudantes e praticamente todo o tipo
de ensinamento se dispersava em diversos colégios. Oxford e Cambridge eram os
exemplos clássicos deste modelo3. Entretanto, se a época moderna é marcada pela
explosão de novas universidades, é aqui também que elas perdem sua autonomia, com a
interferência cada vez maior dos poderes políticos do Estado e das religiões. As
universidades mais antigas ainda conservaram um pouco sua autonomia, como a
Universidade de Paris, porém, mesmo nos pequenos principados havia uma grande
influência sobre o conteúdo ministrado e os privilégios dos estudantes ficavam cada vez
mais limitados, sendo que, as antigas “nações” universitárias praticamente
desapareceram. Esta interferência do Estado foi cada vez mais facilitada pela
14
transferência dos salários dos professores. A exceção das universidades que tinham
verba própria e/ ou eram dotadas de terras (colégios ingleses e a Universidade de
Salamanca, por ex.), a maioria das instituições eram desprovidas de recursos próprios
ficando a mercê do Estado não somente o controle financeiro, como também dos seus
egressos, visto que era Ele o responsável por “regular o número de vagas” para a
maioria dos empregos administrativos e na judicatura2,3
.
Ao longo de todo o período da Idade Moderna se observará um aumento do
número de estudantes ingressando nas universidades, em especial Medicina e Direito,
entretanto há uma queda nas unidades de Teologia, em virtude da descristianização e do
início da era das Luzes, que contribuíram para uma mudança no cenário social, que
levaria mais tarde a Revolução Francesa.
Outra questão que se observa é uma diminuição das peregrinações estudantis em
busca das universidades, como ocorria na Idade média. No início do século XVI ainda
se vê um grande “turismo intelectual” relacionado ao Humanismo italiano, levando a
uma série de estudantes a percorrerem centros universitários daquele país, sem uma
proposta de obterem diplomas. Outros, entretanto, viajavam com a proposta de obter
suas certificações em unidades complacentes, que aceitavam atribuir seus graus sem um
controle sério dos conhecimentos, mas ainda havia aqueles como os estudantes de
medicina ingleses e escoceses, por exemplo, que iam para o continente com a finalidade
de estudarem em unidades célebres como a Universidade de Paris3.
Ainda de acordo com Charle & Verger (1996)3, o que mais caracteriza este
período é a regionalização do ensino, com os estudantes se mantendo em seus países e
regiões de origem. Isto também ocorria devido a decretos promulgados pelo Estado, não
validando diplomas provenientes de outras áreas geográficas, especialmente quando a
orientação religiosa era discordante. Isto levou a um empobrecimento cultural da
universidade, que, importante que se diga, permanecia voltada para o interior de seus
muros dogmática, autoritária e catedrática. Assim o foi até a época das Luzes.
Em relação à origem social dos estudantes, o que se observa é que a maioria ainda
vinha da burguesia. Em Oxford no século XVI, por exemplo, 55% eram filhos de
plebeus dos burgos e das cidades (camponeses ricos, artesãos e comerciantes, barbeiros)
e em Nantes, no século XVIII, o grosso dos contingentes era constituído de filhos de
oficiais, juristas, advogados, médicos e de pastores das igrejas protestantes. Em países
da Península Ibérica, os monges e padres ainda representam um número considerável
15
dos alunos. O que, entretanto, se observa nesta época é a chegada dos membros da
nobreza as universidades. Alguns consideram que este contato reforçou o desejo dos de
origem burguesa a ascender à nobreza, promovendo uma “aristocratização” das
universidades. Mas, o mais importante é ressaltar que o prestígio da cultura erudita, a
disseminação pela imprensa das idéias humanistas acrescida do prestígio que os letrados
adquiriam através de posições e cargos bem remunerados nos serviços públicos, na
justiça, nos serviços (advogados e médicos) e a possibilidade de uma atividade docente
atraiam, cada vez mais, os filhos dos meios populares para a universidade. Na
Alemanha no século XVI, por exemplo, 20% dos estudantes de Artes Liberais eram de
classes sociais mais pobres3.
Em relação aos professores, o caso do Direito e da Medicina se constituem uma
história a parte. A docência nestas escolas não era essencialmente uma profissão. Os
professores de medicina, por exemplo, também atuavam como prestadores de serviços,
além de ministrarem aulas, atuando de forma muito semelhante como no início das
escolas médicas e das “universidades de medicina”, na Idade Média. Esta cultura de não
profissionalização da docência em medicina perduraria até o século XX.
Na Idade Moderna, entretanto, as universidades sofreram grandes críticas,
relacionada a certo enrijecimento, sendo acusada de ensinamentos ultrapassados, pouco
acolhendo novas idéias, vindas do Humanismo e do Renascimento. As faculdades de
medicina, entretanto, foram receptivas aos primeiros ensinamentos de clínica médica e
as descobertas sobre anatomia.
Outras críticas dizem respeito à diminuição do período de estudos. Charle &
Verger (1996)3 descrevem que os graus pareciam cada vez mais fáceis de serem obtidos,
sobretudo a partir do século XVII. Citam o absenteísmo de professores e o
esvaziamento das salas de aulas. Comentam que muitos se apresentavam para
avaliações sem uma preparação adequada e muitas bancas se acomodavam a esta
situação. Nas universidades provincianas, observam-se vendas de graus, teses redigidas
por autores profissionais, envio de substituto em lugar do verdadeiro candidato,
inscrições prévias feitas por correspondência. “É impossível avaliar a importância
destas práticas, mas elas eram amplamente difundidas e, se determinados abusos eram
sancionados, é claro que elas se beneficiavam quase sempre de uma grande
indulgência”3
(p. 60).
16
Numa forma de se questionar a hegemonia das universidades como centro
de ensino e cultura superior, muitos entendiam que a verdadeira formação era
conseguida no ambiente exterior das universidades, especialmente nas escolas médicas,
onde a prática era “extra muros”. O grau universitário valia como o passaporte para a
integração num determinado grupo, uma subordinação à ordem política imposta. Outra
oportunidade eram as associações que surgiam, sob o nome de academias. Assim
surgiram na Inglaterra e na França do século XVII as primeiras: Academia francesa
(1661), Academia das ciências, Royal Society, etc... e as escolas profissionais como os
colégios e academias de cirurgia que se multiplicavam na Europa, às margens das
antigas faculdades de medicina4.
As diversas reformas no ensino universitário neste período tinham como objetivo
principal assegurar aos Estados o controle do recrutamento e gestão, em detrimento da
autonomia universitária, ocorrendo um empobrecimento da vida democrática que era a
característica principal da instituição. Entretanto, alguns pontos interessantes merecem
ser esclarecidos: diante da forte crítica relacionada a fraudes no ensino (cursos que não
existiam, mas se emitiam diplomas, por exemplo) houve um reestabelecimento da
regularidade dos cursos, profissionalização, laicização do docente, dos exames e de
algumas inovações disciplinares.
1.3 Industrialização e Reforma Universitária do século XIX
No decorrer do final do século XVIII e no século XIX, a instituição universitária
é caracterizada pelo aparecimento de modelos divergentes e modernizados de
organização na França e Alemanha.
Na França, a reconstrução do sistema de ensino superior levou em conta os
seguintes fatores: oferecer ao Estado e a sociedade, após a Revolução Francesa, os
quadros necessários para a estabilização de um país conturbado e controlar sua
formação em conformidade com a nova ordem social4. Assim, surge a universidade de
modelo napoleônico caracterizada pelo ensino profissionalizante, fragmentada em
diversas escolas superiores (de acordo com seus objetivos práticos), em consonância
com o espírito positivista e pragmático do Iluminismo. Sua organização era marcada
pela hierarquia administrativa e seu propósito formar as elites que iriam compor os
quadros no serviço público. O Estado era o responsável pelos concursos,
17
regulamentação e uniformização dos programas. A juventude universitária parisiense
era vista pelos conservadores como um foco de agitação política, visto a participação
nas barricadas dos movimentos liberais. Neste período, por conta dos movimentos
políticos, houve diversas demissões de docentes das escolas de Medicina e Letras3,4
.
Na Alemanha, as universidades foram muito afetadas pelos acontecimentos
ligados à revolução francesa, ao domínio napoleônico e a industrialização do século
XIX. Há um desejo da universidade em voltar a ocupar um lugar de liderança do
pensamento e preparar o homem para as atividades de descobertas, formulação e ensino
da ciência. A criação da universidade de Berlim (1810) e o pensamento de Humboldt
foram essenciais para as transformações que a instituição viria passar: a universidade se
tornaria também um centro produtor de conhecimento, um centro de pesquisa1,3
.
Nesta época, por conta das mudanças nas universidades alemães, existe um
vigoroso crescimento dos contingentes estudantis, melhorando os rendimentos de
professores que recebiam uma parte de seus direitos, contribuindo, desta forma, ao
desaparecimento de antigas práticas de trabalhar em profissões secundárias, assim os
professores dispõem de mais tempo para suas pesquisas. Humboldt e suas idéias neo-
humanistas (liberdade de aprender, liberdade de ensinar, recolhimento e liberdade do
pesquisador e do estudante) fundam o que convencionou chamar o modelo universitário
alemão ou modelo humboldtiano. O estudante fazia parte do contexto e esperava-se que
ele participasse do processo de produção de conhecimento e que tivesse um espírito
aberto e crítico3,5
.
Como observamos, as diferenças entre estes dois modelos hegemônicos
(napoleônico e humboldtiano) produzem relações diferenciadas entre estudantes,
professores, pesquisadores e o Estado. Elas serão reproduzidas em outros países, com
mudanças de acordo com a história e cultura locais, fazendo com que a universidade
seja um retrato ou um palco dos movimentos sociais e políticos, pelos quais o mundo
viria a passar.
O avanço da população estudantil na Alemanha explica-se por muitos fatores:
prestígio das profissões liberais e administrativas, ausência de procedimento de seleção
por meio de concursos, custo relativamente baixo do ensino superior devido à divisão
equilibrada das instituições no conjunto de territórios alemães e a sua implantação em
pequenas cidades com aluguéis a preços accessíveis, implantação de cotas para
membros da baixa burguesia. Neste período observam-se alguns rituais estudantis
18
como: vida coletiva nas pensões e cervejarias, oposição marcada entre as organizações
aristocráticas e o movimento liberal3.
Na Inglaterra, Oxford e Cambridge estavam saindo de uma longa fase de
estagnação. O sistema de colégios implicava em altos custos o acesso era limitado a
anglicanos. Entretanto, este sistema proporciona que as relações entre mestres e alunos
ocorram de forma diferenciada. O sistema de tutorado permite uma relação de um
aluno/ um mestre, em que o tutor tem uma responsabilidade direta pelo aluno, com o
qual discute temas acordados previamente, permitindo uma metodologia ativa de
aprendizagem com ênfase na formação intelectual e moral. A universidade britânica, de
acordo com Dreze & Debelle (1983)5, constituem uma “comunidade onde professores e
alunos discutem, avaliam e exploram idéias difíceis e muitas vezes originais de um
alcance muito mais geral”. O objetivo da universidade não era prover o mercado, mas
“aprender a aprender”, que os alunos levassem consigo elementos não somente técnicos,
mas uma cultura geral de entendimento de como o conhecimento específico se
relacionava dentro de um contexto mais amplo.
A Irlanda como a Escócia estavam mais próximas das idéias humboldtianas das
universidades alemães. Em Dublin, John Newman funda a Universidade de Dublin,
também com sistema de internato e tutores, com o propósito de ser um local de criação
e difusão do saber 4,5
. Na Escócia, as quatro universidades existentes (Edimburgo,
Glasgow, Saint Andrews e Aberdeen) tinham acesso fácil, permitindo até que os
estudantes trabalhassem o que caracterizava um recrutamento mais democrático do que
na maioria das universidades europeias. O ambiente universitário era mais aberto às
idéias inovadoras, com sessões abertas para discussão de temas relevantes para a
sociedade escocesa5.
A flexibilidade do sistema universitário americano permitiu que o número de
instituições de ensino superior crescesse nos Estados Unidos. No período da declaração
da independência, existiam apenas dez instituições de ensino superior e estima-se que
por ocasião de 1862 havia cerca de 250. Esta abundância pode ser explicada pelo
número possível de fundações: particulares, comunidades, estados, congregações,
notáveis, etc. Entretanto, o sistema universitário americano ainda se parecia muito com
o do período colonial: predominância do sistema de colégio residencial, ensino geral,
sobretudo religioso e literário, afiliação religiosa de numerosas instituições, tutorado
19
dos docentes que atuam muito próximos aos alunos, visto que existe um entendimento
que sua função moral é tão importante quanto sua contribuição intelectual1,3
.
A educação profissional, sobretudo medicina e direito, é realizada por grupo de
pares ou por escolas particulares. Os que desejavam ir além do Bachelor of Arts (BA)
deveriam ir para a Europa, uma vez que o primeiro doutorado (em Artes e Ciências) foi
em Yale, em 1861, nos moldes da escola alemã. Não existe liberdade no planejamento
nem execução das atividades, tendo em vista que os professores ficavam submetidos a
autoridades exteriores, conforme cada estabelecimento (autoridades políticas, as
congregações fundadoras ou aos fundadores privados). Os professores são meros
transmissores de um saber recebido, avaliado como pertinente e a pesquisa continua
sendo muito marginal1.
Entretanto, algumas mudanças, principalmente em Michigan e Virgínia, que
tinham vários professores formados em escolas alemãs e escocesas procuram
modernizar as universidades americanas de acordo com os moldes germânicos. Cresce o
número de colégios de todo o tipo, com abertura para mulheres a partir da metade do
século XIX3.
Em 1876 é fundada a Universidade de Medicina Johns Hopkins, nos moldes
humboldtianos3. É a primeira universidade, propriamente dita, americana com
finalidade de pesquisa e provocou uma mudança importante no ensino superior
americano como um todo, não somente no ensino médico, que até então estava nas
mãos dos práticos. Entretanto, é com a publicação do relatório Flexner em 1910, que
outras mudanças, especialmente nas escolas médicas, ocorrerão.
Na Rússia, a partir do século XIX, começa a se iniciar o ensino secundário e
superior. Com exceção de Moscou (1775), todas as outras universidades foram criadas a
partir de 1802, com ênfase ao modelo alemão, embora incumbidas da formação de
grupos para o trabalho do Estado, semelhante às escolas francesas. Este antagonismo
gera crises dentro do ambiente universitário russo, com períodos de grande liberalidade,
favoráveis a uma politização da juventude universitária russa, e momentos de repressão
e de militarização. quando o governo se sente temerário em “perder o controle da
situação”. Exemplo quando os estudantes são obrigados, em 1830, a utilizar uniformes
(marca de sua integração na hierarquia administrativa geral) e são submetidos a cursos
rígidos, obrigando os professores a defender a autocracia e nacionalismo russos. A
20
“Tempestade Européia” de 1848ii leva a uma nova onda de militarização das
universidades russas, que passam a ser dirigidas por reitores nomeados e controle prévio
dos conteúdos acadêmicos. Disciplinas consideradas perigosas (Direito constitucional e
Filosofia) são abolidas. O início da década de 1860, uma onda de liberalidade toma
conta das universidades. Antes um local para formar uma nobreza integrada ao Estado,
estas passam, então, a acolher uma minoria de estudantes de classes menos favorecidas.
Apesar de a maioria ainda ser de um grupo socialmente privilegiado, isto não impede
que uma parte importante desta juventude russa abrace novas idéias hostis a ordem
estabelecida 3.
A universidade se torna um local importante de discussão e reflexão sobre
questões pertinentes aos problemas sociais da comunidade e não somente da
universidade russa, isso também pode ser refletido na vida coletiva dos estudantes, que
não passa por corporações do tipo alemão, mas por sociedades com fins educativos e
assistenciais para a população. 3,5
.
A primeira metade do século XIX é marcada pela ruptura com o modelo antigo
universitário, ainda sob forte influência do modelo medieval das quatro faculdades e
pouco aberto à ideias renovadoras. Neste período, o modelo alemão de universidade
(livre, crítica, autônoma e voltada para a busca da verdade) torna-se cada vez mais
influente. Entretanto, o modelo francês (profissionalizante, disperso em escolas e sob
forte controle do Estado) e o inglês (colegial e com modelo tutorial) ainda são
alternativas possíveis. Em cada um dos modelos, as relações entre professores e alunos
são diferenciadas, proporcionando diferentes ambientes de ensino: liberal no estilo
alemão, tutelar no inglês e controlador no francês. Entretanto, os fatos históricos que
irão ocorrer no século XX, em especial a Segunda Guerra, proporcionarão mudanças no
interior da universidade e nas relações entre seus membros que se perpetuam até os dias
atuais.
1.4 Indústria de conhecimento e tecnologia do século XX
Neste período o modelo americano torna-se mais vultoso. Charle & Verger
(1996)3 enfatizam como o americano valoriza a educação como uma forma de preparar
iiCrise assolada na Europa pela pobreza extrema associada ao modelo capitalista e a crises na agricultura
européia, levando ao pronunciamento de diversos intelectuais da época . O mais importante é o “Manifesto Comunista” de Engels e Marx.
21
o país e os indivíduos para unificar a nação e formar uma elite urbana e industrial. O
modelo de colégios persiste, mas são cada vez menos adaptáveis as novas modalidades
de ensino como as escolas profissionais agrícolas e para formação de professores. Esta
também é a época que milionários investem maciçamente nas universidades (Stanford é
um exemplo)3.
A flexibilização de combinações de disciplinas são apontadas por alguns teóricos
como Abraham Flexner, formado nos modelos europeus, como uma traição ao ensino
propriamente dito. Flexner publica, em 1910, o livro Medical Education in the United
States and Canada, mais conhecido como Relatório Flexner 6. Nele expõe a real
situação das escolas médicas naqueles países. Além disso, suas propostas irão
proporcionar uma profunda reforma no ensino médico que seria estendida a outros
cursos da rede universitária dos países industrializados. Embora às vezes demonizado e
considerado por muitos o responsável por uma série de mazelas relacionadas ao ensino
médico atual (curativo, biologicista, mercantilista, são alguns adjetivos)7,8
, Almeida
Filho8 faz uma releitura do relatório em que pontua algumas questões fundamentais para
o que Flexner reflete e propõe, e o que é entendido. Sua proposta buscava não somente
uma união entre a clínica (centro das escolas médicas francesas, padrão do modelo
napoleônico) e o laboratório (modelo alemão). Henry Pritchett, então presidente da
Carnegie Foundation for the Advancement of Teaching, na introdução do relatório
pontuava que as escolas médicas se constituíam em feudos soberanos a parte do restante
da universidade: um “imperium in império” (p.vii). Esta afirmação também é defendida
por Almeida Filho8 ao descrever que este fato também é corrente no Brasil, senão em
todas, mas pelo menos na maioria das escolas brasileiras. No relatório, Flexner defende
a integração das faculdades de medicina às universidades, a entrada no ensino superior
pelo sistema de colégios, a fim de proporcionar uma formação integral do indivíduo,
através da introdução ao ensino das humanidades, das artes liberais e na experiência
numa diversidade cultural. 6,8
.
A importância crescente da pesquisa a partir do século XX nas universidades
americanas baseia-se na migração de estudantes formados nos modelos germânicos. A
outra originalidade é sua entrada precoce no ensino superior de massa, especialmente
para as formações técnicas, pedagógicas e das ciências sociais. O elitismo inicial do
sistema americano apaga-se com a predominância, a partir da década de 1950 de um
crescente investimento público na educação3,9
.
22
Na França, a partir de 1860, o sistema napoleônico das universidades entra em
decadência. A preocupação em desenvolver a função de pesquisa e reequilibrar o
organismo educacional hipercentralizado, leva a criação de laboratórios na Escola
Prática de Altos Estudos, criação de seminários especializados, aumento das verbas
destinadas às universidades e contratação de professores. Neste período a maioria das
universidades é ampliada ou reconstruída e criam-se bolsas de estudos. Em paralelo
ocorre a reforma administrativa, com descentralização do ensino (com a valorização de
instituições fora da capital Paris). Existe uma amplitude de disciplinas com a introdução
Psicologia, Sociologia, Etnologia, literaturas estrangeiras e línguas raras. Direito,
Economia Política, Finanças Públicas e História do Direito são introduzidas. Neste
período ocorre a divisão do curso médico em especialidades 1.
A partir do final do século XIX um novo público chega às universidades
francesas: mulheres e estrangeiros, principalmente. Entretanto, o recrutamento de
estudantes universitários permanece burguês (49% dos estudantes são oriundos de
famílias de burguesia liberal ou econômica) e 39% de famílias de classe média
(funcionários e de empregados). Porém, pouco a pouco ocorre uma abertura para as
pessoas de classes mais baixas da população, especialmente nas escolas onde não existe
o peso de um saber clássico ou de cultura intelectual (como as ciências aplicadas e as
escolas normais) 1.
Aos poucos as faculdades transformam-se no foco de vanguarda de intelectuais.
Um dos eventos mais marcantes da sociedade francesa foi o caso Dreyfusiii
, que
mobilizou todo o país e levou a disseminação de diversos movimentos populares. Este
caso tomou proporções imensas em toda a França e em vários países, incluindo no
Brasil com participação maciça de estudantes universitários em todo o mundo.
Esta interferência entre a política e a universidade será encontrada em todos os
países durante este período. Ela assinala que o ensino superior desempenha um papel
mais central na formação das nações, entretanto esta politização é mais forte na França
Na Alemanha, as tensões ocorrem pelas dificuldades em se equilibrar um sistema de
liberdade incondicional, com a organização política, jurídica e escolar3.
iii O caso Dreyfus se refere à acusação e condenação de um oficial francês de origem judaica de traição.
Dreyfus continuou preso mesmo após ter sido comprovada sua inocência. Este evento tomou grandes proporções na época, com participação maciça de universitários de todo o mundo, especialmente em Paris.
23
Enquanto muitos países se inspiram no modelo alemão para se modernizar, ele
próprio entra em processo de crise. Entre os anos de 1914 a 1930 o número de
estudantes cresce cerca de cinco vezes nas universidades alemães, em especial, nas
provincianas. Existe um aumento do número de postulantes em Letras e Ciências e, pela
primeira vez, um menor número proporcional de estudantes de Direito e um menor
número absoluto de estudantes de Teologia. Isto se reflete num aumento de candidatos a
postos de professores, pesquisadores, engenheiros e um menor contingente de religiosos
e funcionários.
Estes novos estudantes vêm da burguesia e das classes médias enriquecidas pela
expansão industrial e urbana do país. A busca por estudos superiores ocorre numa
sociedade mais maleável, como uma forma de ascensão social para as profissões mais
nobres e um meio de acesso aos novos estudos para grupos ainda não reconhecidos em
uma sociedade dominada pela moral aristocrática. Charle & Verger (1996)3 descrevem
que esta diversificação social interna se traduz numa vida associativa estudantil, onde os
grupos mais abastados mantêm ritos das fraternidades e praticam duelos e bebedeiras
dos quais estão excluídos outros estudantes por serem de origem social mais baixa, ou
então, por questões religiosas, como os judeus. Os estudantes que rejeitam esses ritos, se
associam em grupos como forma de defesa. 3.
O crescimento universitário e a heterogeneidade dos perfis dos estudantes
despertaram a inquietação dos conservadores ante o risco de nascimento de um
“proletariado de bacharéis”. A ausência de regulamentação por concursos (como na
França) e a liberação do mercado de profissões liberais resultam em uma proporção de
estudantes de Direito, Medicina e Ciências consideradas por alguns, superior às
necessidades.3
O ideal humboldtiano era formar pessoas ilustres provenientes da alta burguesia e
da nobreza. A procura por jovens que buscavam rentabilizar sua formação (parcela
advinda do ensino não clássico), a vinda de estudantes estrangeiros (através de políticas
do Estado alemão) demonstram as mudanças nas universidades alemães do século XX,
antes da II Guerra Mundial. A maioria de professores não titulares (sem dedicação
exclusiva a universidade) não participava da vida coletiva universitária, especialmente
em alguns setores das Ciências e da Medicina. Estes pouco se interessavam pelas
decisões dos grupos de professores. A autonomia universitária é cada vez mais
24
ameaçada, visto a crescente dependência financeira em relação ao Estado a fim de
manter os altos custos dos cursos de Ciências e Medicina. 1,3,5
A “liberdade e solidão” humboldtianas quase não tem mais sentido diante dos
trabalhos coletivos nos institutos e nas universidades que colaboram com a indústria no
seio das universidades independentes, marcando uma nova fase onde, por um lado,
existe uma reflexão social e, no outro, o desenvolvimento econômico por meio das
aplicações das técnicas da ciência3,9
.
No período entre as duas grandes guerras, observou-se um ritmo contrastante com
um avanço muito grande seguido de retrocesso, relacionado ao advento das classes
miseráveis e com as medidas autoritárias do governo, particularmente contra os judeus.
O discurso dos nazistas é incorporado por vários membros da universidade, em especial
pelos estudantes das corporações. Muitos professores nada fazem diante dos atentados
contra a liberdade, seja por medo ou aderência ao novo regime. Até 1938 um terço dos
docentes é banido, incluindo 20 prêmios Nobel. A Alemanha sofre com estas perdas que
desestabilizam os próprios fundamentos do modelo alemão3.
Na Rússia, o ensino superior foi caracterizado por um estado de contradição: de
acordo com o despotismo esclarecido russo, o Estado fazia do ensino superior um
elemento de modernização e ocidentalização do país. Por outro lado, tendências
reacionárias da autocracia apareciam em virtude das universidades serem, ao ver deles,
um foco de tendências reacionárias e ideias subversivas3.
Ao final do século XIX e neste início do século XX a universidade já está inserida
no panorama que levará a um dos seus maiores questionamentos internos: de um lado,
a produção da cultura, de pensamento crítico, de uma elite intelectual e, do outro, a
formação de mão de obra qualificada exigida pelo sistema econômico vigente. De um
lado, o “mercado de produção das ciências”, com suas exigências de rapidez e
efetividade e, de outro, os ideais humboldtianos. Nos Estados Unidos, surge no final do
século XIX o modelo que seria repetido em algumas universidades da Europa e na fase
expansionista das universidades na América Latina: a universidade empresa3,5,9,10,11
.
Estas novas características, marcadas pela entrada maciça de financiamento pelas
corporações, levam a uma verdadeira reflexão sobre os rumos da universidade em
virtude da absorção de critérios externos na organização e gestão, privatização e
subordinação ao mercado.
25
1.5 A Universidade no Brasil
As universidades no Brasil nunca representaram uma originalidade, mas cópias
do que ocorria em outros países ou “idéias de universidades” em diferentes tempos e
países. Suas fundações, além de tardia e diferente da ocorrida nas outras colônias
americanas, se confundem com a própria história da fundação das faculdades de
medicina brasileiras. Enquanto que nas colônias espanholas as primeiras escolas de
ensino superior iniciaram suas atividades pouco depois da conquista territorial, o Brasil
chegaria à sua independência (1822) sem universidades.
O Brasil, assim como em outros países da América Latina, teve a educação a
cargo dos jesuítas, com forte influência no modelo medieval de ensino de Artes e
Teologia. Alguns consideram que os primeiros ensinos superiores no Brasil já ocorriam
em Olinda e Mariana, de caráter retórico e literário para a formação de sacerdotes.
Entretanto, os que desejavam ser inseridos em outras faculdades deveriam se destinar a
metrópole, em especial para a Universidade de Coimbra, onde era possível estudar
Medicina e Direito11, 12, 13
.
A primeira escola de medicina portuguesa foi fundada no Mosteiro de Santa Cruz
de Coimbra em 1130 e a Universidade de Coimbra em 1290. Eram ensinados, então,
Cânones, Lógica, Leis (Direito), Gramática e a Medicina. A universidade mudou
diversas vezes de local, ora situando-se em Lisboa, ora em Coimbra, fixando-se aí
definitivamente em 1537. O corpo estudantil e de decentes era preferencialmente de
ordens religiosas, sendo que a partir do século XV, observa-se a chegada de leigos, em
especial os judeus.14
Santos Filho (1977)14
ainda comentando sobre como a universidade portuguesa
foi influenciada pela religião católica, apresenta como uma de suas características a não
introdução de elementos de higiene e cirurgia no ensino médico, além da exclusão de
docentes (chamados de lentes, porque liam os textos) de ideologia liberal:
“E assim, enquanto Coimbra – a depositária da ciência e da cultura do
mundo português- ressonava sobre os antiquados textos medievais, em
diferentes partes da Europa, mormente nos principados italianos,
pesquisas, investigações e descobertas recriavam a anatomia,
desenvolviam a Patologia e adiantavam a Medicina, não obstante a
oposição e os entraves, também atuantes nos demais países, tanto
quanto nos ibéricos, originados dos preconceitos, da intolerância e do
faccionismo religioso.”14
(p.282)
26
A universidade portuguesa permaneceu com sua estrutura praticamente intocada
até o século XVIII, quando ocorre a Reforma Pombalina. O Marques de Pombal, então
Ministro do Rei, apresentou um grupo de propostas para a transformação econômica de
Portugal, de forma a fazer frente ao poder hegemônico inglês. Cunha (1980)12
descreve
que, para atingir esta transformação, o ministro dá início a um conjunto de políticas que
tinham como objetivo: o incentivo às manufaturas na metrópole, o incentivo ao acúmulo
de capital público e privado, além da transformação de uma sociedade de orientação
feudal para uma de orientação capitalista. Este tipo de redirecionamento político
econômico acabou por levar a expulsão dos jesuítas que tinham o monopólio
educacional, além de algumas regalias como não sujeição às normas e impostos
determinados pelo rei, defesa do feudalismo e não reconhecimento da autoridade
papal.12,14
Segundo Santos Filho (1977)14
, o ensino em Portugal e suas colônias, até então,
era fundamentado pela religião e administrado pela Igreja católica. A Reforma
Pombalina possibilitou a laicização da educação escolar além de mudanças importantes
na estrutura curricular, incluindo no ensino médico, com a introdução de disciplinas
como anatomia, cirurgia, arte obstétrica. Exigia-se dos postulantes, falar fluentemente o
latim, além do conhecimento de grego, filosofia moral e racional e da língua francesa ou
inglesa.
Após a invasão pelas tropas napoleônicas, a corte de Portugal instala-se no Brasil
a partir de 1808. Para garantir sua permanência na colônia, houve a necessidade de se
criar uma infraestrutura, o que levou ao surgimento das primeiras faculdades no Brasil..
São, então, fundadas as duas primeiras escolas profissionalizantes: Cátedras de Cirurgia
na Bahia e Anatomia e Cirurgia no Rio de Janeiro (1808). Estas, na realidade, foram
uma evolução de alguns cursos isolados, ministrados por mestres e que já existiam
anteriormente. Em 1811 é criada a Academia Real Militar com o objetivo de formar
oficiais e engenheiros militares para a defesa da monarquia, cuja sede estava instalada
no Brasil. Assim, não havia uma ideologia de fundação de uma universidade, como nos
moldes antes vistos na Europa e até mesmo nas Américas. A proposta era atender a
corte em suas necessidades e, preferencialmente, sem ameaçar as relações de
dependência entre Brasil e Portugal13
.
Acredita-se que uma das razões para o atraso da criação de faculdades no Brasil
seja o fato de, além da política de colonização portuguesa, que procurava malograr
27
qualquer tentativa de independência cultural das colônias, em Portugal, havia apenas
duas universidades no século XVI: Coimbra e Évora 12,14
. A elite intelectual brasileira
vinha fundamentalmente de Coimbra, Paris e dos Seminários, em especial de Olinda e
Mariana. Entretanto, não quer dizer que não houvesse um movimento para a instalação
de escolas de ensino superior no Brasil. O primeiro projeto de universidade surge,
entretanto, na Pernambuco holandesa do século XVII, por influência dos membros da
corte de Maurício de Nassau. Fávero (2006)13
lembra que ainda naquele século, houve
uma solicitação ao Rei de Portugal, em acordo com os jesuítas, da câmara de Salvador,
a criação de uma instituição nos moldes da Universidade de Évora. A solicitação foi
recusada duas vezes. Após a independência, o projeto mais importante foi de José
Bonifácio, retomado por duas vezes até o final do século XIX, sem sucesso.12,13
Com o estabelecimento da República e na virada para o século XX, a vivência de
um novo modelo de governo e a observação do potencial das ciências aplicadas nos
serviços e na economia, observa-se a premência da criação de escolas
profissionalizantes. Neste período surgem as primeiras universidades, algumas com
curto tempo de duração: Universidade de Manaus (1909), que sobreviveu 11 anos;
Universidade de São Paulo em 1911, que durou até 1917, e a Universidade do Paraná,
fundada em 1912 e extinta antes da reforma educacional de Carlos Maximiliano de
1915.12,13
Somente as universidades do Rio de Janeiro (criada em 1929) e a de Minas Gerais
(1927) resistiram. Muito embora, estas tinham mais uma característica de um
aglomerado de faculdades do que a idéia de uma instituição única. Somente em 1934,
quando é criada a nova Universidade de São Paulo com as faculdades de Direito,
Medicina, Politécnica e Filosofia, é que se busca um modelo que vá além da idéia de
um agrupamento de escolas. Entre suas finalidades, citamos a promoção da pesquisa,
ensino, formação de especialistas e popularização e divulgação científica. Apesar da
instalação do Estado Novo em 1935, é criada a Universidade do Distrito Federal (UDF),
na perspectiva de um lugar destinado a pesquisa livre e de produção de alta cultura.
Entretanto, esta idéia de um lugar livre e independente ia de encontro o sistema político
vigente. A UDF é extinta e seus cursos transferidos para a Universidade do Brasil,
antiga Universidade do Rio de Janeiro. Apesar disto, as antigas Escolas de Ciências e a
de Filosofia da UDF foram responsáveis pela formação de diversos pesquisadores,
incluindo do Instituto Oswaldo Cruz e do Museu Nacional, por exemplo.11,13
28
Com a deposição de Getúlio Vargas e, consequentemente, extinção do Estado
Novo, existe uma nova concessão de autonomia administrativas às universidades
brasileiras, através da reitoria, conselho universitário e conselho de curadores. Fávero
(2006)13
comenta que apesar destes “ares de liberdade e autonomia” o clima não muda
muito dentro das universidades federais, onde ainda predominava o enfoque da
formação profissional e controle do Estado.
Com a aceleração da industrialização e do desenvolvimento do país a partir da
década de 1950, toma-se consciência da necessidade de uma mudança nas universidades
brasileiras, levando a uma discussão além dos limites das instituições de ensino.
Entretanto, a idéia de uma universidade crítica, inovadora e livre, tal como sonhavam
Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro só foi possível com a fundação da Universidade de
Brasília (UNB) em 1961, que tinha como objetivo o desenvolvimento de uma cultura e
tecnologia nacionais com fins aos projetos de desenvolvimento do país. Foi a primeira
universidade brasileira que tinha uma estrutura integrada, moderna e flexível 9,10,15,16
.
Neste mesmo período o movimento estudantil, organizado através da União
Nacional de Estudantes (UNE), ganhava um grande impulso. A grande mobilização
nacional promovida pela realização do I Seminário Latino Americano de Reforma e
Democratização do Ensino Superior (Bahia, 1961), leva a uma série de encontros e
debates nas universidades brasileiras. Em seguida, houve a organização de três
seminários nacionais respectivamente na Bahia, Paraná e Minas Gerais. Nestes
seminários os estudantes emitem dois documentos: “Declaração da Bahia” e “A Carta
do Paraná”. Neles, o movimento estudantil fazia o seguinte diagnóstico das
universidades: o acesso restrito às camadas mais privilegiadas da sociedade brasileira,
importadora de modelos inadequados à nossa realidade e responsável pela formação de
sujeitos tecnocratas e individualistas, sendo assim, democrática apenas em aspectos
formais. Outro ponto defendido pelos estudantes é a participação em um terço nos
órgãos colegiados das universidades, que gerou a um movimento de greve, conhecido
como greve do um terço em 1962, que paralisou 40 universidades brasileiras16,17
.
Entretanto, todo este movimento e os ideais da UNB caem por terra com a
revolução militar de 1964. Em 1964 e 1967, respectivamente, através de decretos, o
governo recém-instalado, dissolve a UNE, limita a existência de organizações estudantis
nas universidades e estabelece punições severas a estudantes e professores com idéias
consideradas reacionárias ao governo militar16
.
29
Entretanto, apesar dos retrocessos políticos, em 1968 é aprovada a reforma
universitária, que apesar da forte influência da política universitária americana e do
nosso governo autoritário e repressor, representou um avanço em muitos pontos, nas
universidades brasileiras. O documento final extingue com as cátedras e estabelece uma
carreira universitária baseada no mérito acadêmico e institui a criação de departamentos
e dos colegiados de ensino, tal como o modelo americano de universidade. Neste novo
modelo, a pesquisa está inserida no cotidiano universitário e ainda havia as atividades
de extensão, que tinha o propósito de transferir a sociedade os resultados das produções
acadêmicas e oferecer aos estudantes oportunidades de participação em programas para
a melhoria de vida da comunidade19
.
Entretanto, mesmo após a reforma, não se conseguiu ampliar o número de vagas
para o acesso ao ensino superior de acordo com a demanda. Isto propicia um
desdobramento que é a expansão maciça das instituições privadas, sendo que as escolas
permanecem isoladas, com pouca ou nenhuma articulação entre si, com a proposta única
de formação profissionalizante e distante das atividades de pesquisa. Reproduz-se um
modelo onde pouco se contribui para uma análise crítica da sociedade brasileira e das
transformações que ela precisa. Neste modelo o que se observa é o surgimento da escola
empresa, sendo que os estudantes seriam convertidos em consumidores
educacionais18,19
. Este processo tomará maior impulso a partir do final dos anos de
1980.
A mudança de governo em 2003 leva a implantação de novos projetos para a
universidade, dentre eles, o Programa Universidade para Todos (PROUNI), com o
propósito de democratizar o acesso e a manutenção dos estudantes o ensino superior
(por conta dos altos níveis de evasão e inadimplência no ensino privado) e o Programa
de Apoio e Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI), com
melhorias físicas, aumento do número de professores e vagas18, 19
.
Desde seus primórdios até hoje podemos dizer que a universidade brasileira deveria
ser chamada de universidades brasileiras com características, objetivos e princípios
diversos. Embora sejam semelhantes “no papel”, elas se constituem num conjunto de
instituições com características diferenciadas e complexas. Podemos dizer, grosso
modo, que hoje as algumas universidades públicas teriam as características
homboldtianas, com a proposta de um corpo docente voltado para a pesquisa e ensino,
comprometido com a produção de conhecimento. E existem as instituições privadas,
30
que estariam mais próximas a um perfil neo-napoleônico, voltadas para a formação
profissional e de pessoas que atendam ao mercado de trabalho, com pouca ou nenhuma
atividade de pesquisa, contratando professores com pouca titulação e sem uma proposta
definida de uma carreira docente18,19
. Estas diferenças, muitas vezes, não podem ser
simplificadas e classificadas de acordo com o setor privado ou público. Podemos
encontrar nichos de cada uma destas características em diferentes setores de cada
universidade, independente de serem públicas ou privadas. Em relação às escolas
médicas, podemos dizer que ainda se mantem isoladas, com alguns vislumbres de
intersecção com as outras escolas de saúde, especialmente após a publicação das
diretrizes curriculares de 2001. Entretanto, a resistência ainda é alta.
Dentre algumas propostas de mudança universitária no Brasil, podemos citar a
Universidade Nova, de autoria do Prof Dr Naomar de Almeida Filho, antigo reitor da
Universidade Federal da Bahia. Este projeto tem como objetivo a reculturalização da
universidade. Segundo seu idealizador a universidade brasileira, após tantos processos
de reforma, perdeu “o estatuto de instituição de cultura e nenhuma instituição assumiu
isso” 20
(p.1). Este modelo introduz no Brasil o conceito de ciclos, onde o aluno, ao
entrar na universidade, inicia um bacharelado interdisciplinar nas grandes áreas
(Ciências, Artes e Humanidades)20
. Neste período existe uma grande exposição à
cultura geral, línguas e outros conteúdos e contextos que fazem parte de uma formação
integral. Após este período, já com outros elementos, ele faz a escolha da carreira
profissional. Este modelo tem como inspiração o antigo liceu, importado da França.
Neste modelo, durante o ensino médio, os alunos eram expostos à cultura geral.
Entretanto, os liceus acabaram e, no Brasil, esta idéia de uma formação mais integral
não foi incorporada pelas universidades. No modelo americano, existe esta proposta no
ensino superior, onde os estudantes entram num sistema onde, inicialmente, eles têm
acesso a um período de formação científica e cultural para depois definirem a formação
profissional.
1.6 A universidade no século XXI
“..a universidade é uma instituição social. Isso significa que ela realiza
e exprime de modo determinado a sociedade de que é e faz parte. Não
é uma realidade separada e sim uma expressão historicamente
determinada de uma sociedade determinada.” 20
(p.35)
31
Ao longo deste capítulo demos um panorama geral sobre a fundação das
universidades e como a cultura universitária foi se desenvolvendo ao longo dos séculos.
Vimos que muito embora sejam muitas vezes consideradas retrógradas, as universidades
foram um local de reflexão e reflexo da sociedade, cada uma no seu tempo. Mas e hoje?
Neste mundo onde parece não existir mais espaço, ou melhor, tempo para a reflexão,
tamanha é a velocidade das mudanças, em especial as provocadas pela introdução das
novas tecnologias de informação.
Até o início do século XX a maioria das universidades não se sentia responsável
pela aplicação do conhecimento. A formação profissional, especialmente de médicos e
engenheiros, não constituía o coração da universidade, mas sua extensão e
desenvolvimento. Após as duas grandes guerras, a ciência ocupa definitivamente o
espaço de determinação da expansão universitária. A separação entre ciência e aplicação
da ciência vai rapidamente deixando de existir.
Santos (1999)21
considera que os objetivos da universidade, diante das
modificações sociais e políticas do final século do século XX, ficam cada vez mais
confusos e conflitantes entre si. As demandas por serviços e formação profissional para
o mercado de trabalho provocaram uma verdadeira paralisação da dimensão intelectual
da universidade. Assim, as antigas finalidades idealizadas por Humboldt, de
investigação, cultura e verdade, passam a ser investigação, ensino e prestação de
serviços. Muitas vezes, estes objetivos entram em contradição entre si, se tornando
inconciliáveis e que vão refletir na forma como os sujeitos, que estão nas universidades,
se relacionam entre si. O mesmo autor resume esta crise universitária em três grupos: de
hegemonia (diante das dificuldades de gerenciar suas funções, levam os sujeitos a
buscarem formas “alternativas” para atender suas necessidades e expectativas), de
legitimidade (decorrente da incapacidade anteriormente referida) e institucional (devido
à contradição entre o princípio de autonomia universitária e produção social)21,22
.
Anísio Teixeira (apud Volpato15
) fazendo um diagnóstico das universidades
brasileiras, dizia:
“‘...universidade brasileira, além de preparar profissionais para as carreiras liberais e
técnicas que exigem uma formação de nível superior, o que tem havido é uma
preocupação muito fluida com a iniciação do estudante na vida intelectual. Daí
poder-se afirmar que, ressalvando o aspecto da habilitação profissional, a
universidade brasileira não logrou constituir-se verdadeiramente como uma
instituição de pesquisa e transmissora de uma cultura comum nacional, nem logrou
se tornar um centro de consciência crítica e de pensamento criador”(p.686).
32
Comentando sobre as mudanças no perfil das universidades, considerando as
diferentes formas como esta tem se relacionado com os modelos de economia e do
capital, Chauí (2000)23
chama de “universidade funcional” aquela que surge no decorrer
dos anos 70, e no Brasil, especialmente, após a reforma universitária de 1968. Ela
destina basicamente à formação de mão de obra qualificada para o mercado. Para
adaptarem-se as novas demandas mercadológicas, as universidades alteram seus
currículos e a relação entre professores e alunos. Surgem as pós-graduações e o perfil de
universidade semelhante às universidades americanas. Cresce a crença das avaliações
pela produção científica, surgindo, então, na década de 80 a “universidade de
resultados” em que se coroam as parcerias público- privadas, na justificativa da falta de
capital financeiro para se manter as estruturas de pesquisa dentro das universidades
federais custeadas somente com o capital federal. Ou seja, as universidades “servem” as
indústrias com capital humano e intelectual, espaço físico e sua credibilidade na
sociedade. Em troca cabe à indústria financiar os estágios, as pesquisas e alguns
profissionais.
A partir dos anos 90 surge um novo conceito de universidade: a “universidade
operacional”, que segundo Chauí, seria uma instituição voltada para si mesma, como
uma organização. Obedece à lógica do mercado capitalista, onde são definidos padrões
de eficácia e produtividade não pela capacidade crítica e de reflexão, mas por números e
velocidade com que os "produtos" são lançados. Estes produtos podem ser traduzidos
em pesquisas e trabalhos publicados e formandos. A docência é entendida pela
transmissão rápida de conhecimentos compactados, em manuais de fácil leitura e na
realidade a transmissão é um adestramento. Desaparece, assim, segundo Chauí (2000)23
a marca essencial da docência: a formação integral dos sujeitos .
Após esta afirmação, podemos sugerir o seguinte questionamento: que papel os
egressos universitários estão desempenhando na sociedade? São profissionais
preocupados apenas com os ganhos pessoais ou tem algum tipo de responsabilidade ou
compromisso com ideais mais amplos de bem estar e justiça social? Este compromisso
maior está relacionado com a formação de sujeitos que sejam capazes de exercer sua
cidadania nos campos técnicos, políticos e éticos. Esta consciência crítica, esta
capacidade de agir na sociedade com consciência de seus atos faz parte de uma
formação ética, que também é função da universidade, seja em que campo do
33
conhecimento for. Seja na universidade clássica, voltada para o conhecimento,
conforme descrito por Chauí (2000)23
, seja nesta universidade com interesses e funções
antagônicos e confusos, como estamos vivenciando hoje, é preciso que se reflita sobre a
universidade que nós queremos e de que forma é possível levar esta consciência crítica
aos nossos universitários, nestes tempos onde um grande número de variáveis influencia
a produção de conhecimentos, as práticas profissionais e as relações humanas. As
formas de produção, disseminação e transitoriedade do conhecimento afetaram de modo
irreversível e num espaço de tempo muito curto as relações entre professores e alunos,
fazendo com que ambos revejam seus papéis. Precisamos, mais do que em qualquer
tempo da história, de formar cidadãos que sejam agentes morais, que sejam capazes de
refletir sobre o conhecimento produzido e que consigam fazer escolhas baseados neste
processo reflexivo, e não por conta de determinação de outra ordem.
A universidade, como centro de formação e produção de cultura, guarda
especificidades, principalmente no que se refere ao desenvolvimento da sociedade.
Negar sua função de formar eticamente seus estudantes é antes de tudo fazer de conta
que ainda está dentro de muralhas, segura e protegida da miséria, da fome e das
barbáries, muitas vezes produzidas por ela própria.
35
“A educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o
bastante para assumirmos a responsabilidade por ele e, com tal gesto,
salvá-lo da ruína que seria inevitável não fosse a renovação e a vinda
dos novos e dos jovens.”
(Hannah Arendt)
O ensino superior tem sido confrontado com diversos desafios da sociedade
contemporânea, que hoje atravessa uma profunda crise de valores. As respostas que esta
sociedade necessita vão além de considerações econômicas. Devem ser incorporadas a
elas, dimensões de moralidade e espiritualidade. Esta afirmação está na introdução do
texto final da Declaração Mundial para o Ensino Superior do Século XXI: Visão e
Ação, documento emitido pela UNESCO (Organização das Nações Unidas para a
Educação, a Ciência e a Cultura) em outubro de 199824
.
Este documento é composto por três seções: “Missões e funções do ensino
superior”, “Delineando uma nova visão de ensino superior” e “Da visão a ação”. No
primeiro artigo da primeira seção, os autores afirmam que as instituições devem prover
oportunidades para a educação, a cidadania e a participação ativa na sociedade, com
uma visão global, consolidação dos direitos humanos, desenvolvimento sustentado,
democracia e paz, num contexto de justiça. Outro ponto a ser ressaltado se refere ao
segundo artigo, onde os autores recomendam que as instituições, incluindo seu corpo
docente e discente, devem estar aptas a esclarecerem questões relacionadas a problemas
éticos, culturais e sociais de forma independente e conhecedoras de suas
responsabilidades, exercendo um tipo de autoridade intelectual necessária a sociedade
para que a ajude a refletir, entender e agir, além de intensificar suas funções de crítica e
de predição em questões emergentes de ordem social, econômica, cultural e política,
incluindo o exercício de sua capacidade intelectual e prestígio moral para defender e
disseminar valores universalmente aceitos como a paz, justiça, liberdade, igualdade e
solidariedade24
.
A necessidade de considerar estas questões como fazendo parte do grupo de
responsabilidades do ensino superior, além da ampliação e democratização do acesso,
foi novamente pontuada na Conferência Mundial sobre o Ensino Superior ocorrida em
Paris, em julho de 2009. No documento emitido, foram considerados como elementos
primordiais do ensino superior: a promoção do pensamento crítico e da cidadania para o
36
desenvolvimento sustentável, além da formação de cidadãos éticos, comprometidos com
a construção da paz, defesa dos direitos humanos e com os valores da democracia25
.
O Comitê de Ética da Ciência e Tecnologia (COMEST) da UNESCO, em 2003,
publica o relatório do grupo de trabalho sobre o Ensino de Ética , no qual o recomenda
para as universidades, como forma de prover os cidadãos com elementos para lidar com
os desafios da contemporaneidade2. Entre os enfrentamentos elencados, citamos: as
rápidas mudanças das “verdades científicas”, aumento do contato de pessoas com
diferentes culturas, rapidez dos meios de comunicação que atravessam fronteiras e
criam questões éticas particulares (por exemplo, o acesso de crianças a determinados
conteúdos na internet), enfraquecimento de determinadas tradições morais como a
família e a religião, os avanços tecnológicos que levaram a destruição de pessoas,
preocupação com o meio ambiente e as biotecnologias26
.
Os autores descrevem como principal função do ensino da ética: desenvolver nos
estudantes habilidades em reconhecer e analisar questões de ordem ética e serem
capazes de chegar a decisões sobre como agir eticamente. Os objetivos seriam:
desenvolver o interesse em questões éticas, clarificar o que seriam questões éticas,
buscar alternativas considerando as várias consequências positivas e negativas possíveis
para aqueles que são afetados e desenvolver a capacidade de analise ética e
argumentação. O documento também recomenda que as universidades e outras
instituições de ensino superior, estabeleçam o ensino de ética em três níveis: cursos
elementares para todos os estudantes, cursos avançados para programas de PhD e cursos
apropriados para PhD em ética para pesquisadores que já possuem PhD em outras
áreas26
.
Outra iniciativa da UNESCO, com o intuito de promover um ambiente de ensino
democrático e comprometido com a discussão de temas relacionados à ética, é o Plano
Mundial de Educação em Direitos Humanos (PMEDH) constituído de orientações para
o desenvolvimento de programas educacionais com vistas à formação de profissionais e
educadores comprometidos com esta causa. O plano de ação apresenta duas fases, a
primeira relacionada à educação básica e a segunda referente ao ensino superior e à
formação para professores, servidores públicos, forças de segurança, agentes policiais e
militares27
.
O PMEDH para o ensino superior é definido como um “conjunto de atividades de
capacitação e de difusão de informação, orientadas para criar uma cultura universal na
37
esfera dos direitos humanos, mediante a transmissão de conhecimentos, o ensino de
técnicas e formação de atitudes” 27
(p.4). Tem como finalidades principais: fortalecer o
respeito aos direitos humanos e as liberdades fundamentais, desenvolver plenamente a
personalidade humana e o sentido de dignidade do ser humano com promoção da
compreensão e igualdade entre todos os seres humanos, independente de grupos raciais,
etnias, religião e língua. Estimular a participação efetiva de todas as pessoas numa
sociedade livre e democrática, onde impere o Estado de Direito. O ensino superior,
devido às suas funções de ensino, pesquisa e serviços para a comunidade, tem a função
não somente de formar cidadãos éticos e comprometidos com a paz e a defesa dos
direitos humanos, como também produzir conhecimento com o objetivo de
enfrentamento dos problemas mundiais emergentes como a erradicação da pobreza e da
discriminação, a compreensão multicultural e a reconstrução das nações pós-conflitos.
Entretanto, o papel das instituições não se restringe apenas ao ensino e utilização de
metodologias que estimulem a livre participação e análise crítica. Mas, também,
abrangem o desenvolvimento de políticas em matéria de gestão e governança
universitária, incluindo aquelas que afetam a cultura da universidade e a vida dos
estudantes, que sejam coerentes com os princípios dos direitos humanos.
Quanto ao ambiente de aprendizagem, os autores do PMEDH enfatizam que a
liberdade acadêmica inclui a liberdade dos indivíduos expressarem livremente opiniões
sobre a instituição ou o sistema em que trabalham, de cumprirem suas funções, sem
discriminação ou medo de repressão por parte do estado ou de qualquer outro ator, de
participarem de entidades representativas, profissionais ou acadêmicas, bem como de
desfrutarem dos direitos humanos. Apresentar a educação em direitos humanos nas
instituições de ensino superior significa vivenciá-los, com políticas explícitas e
compartilhadas, evidenciando-se a responsabilidade de cada um dos atores envolvidos.
As instituições devem ser espaços livres de violência, abuso sexual, assédio e castigos
corporais, com políticas de não discriminação incluindo apresentação de procedimentos
para a resolução pacífica de conflitos e não violência27
.
Em relação ao papel dos docentes, o plano afirma que estes têm uma grande
responsabilidade em apresentar os valores de direitos humanos, assim como
competências, atitudes, motivação e práticas, tanto no desempenho das suas atribuições
profissionais, como na função de modelos a serem seguidos27
.
38
Ao abordar o papel das escolas de medicina, em específico, o plano se refere à
inclusão dos direitos humanos como tema transversal em todas as disciplinas, porém,
em especial, não exclusivamente, nas que se referem aos cuidados com a criança, a
saúde pública, aos direitos de reprodução das mulheres, SIDA e deficiências27
.
No Brasil, a elaboração do Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos
(PNEDH)28
foi iniciada em 2003 e, após inúmeros debates, teve sua publicação em
2007. Em relação ao ensino superior, considerando que as universidades, em especial as
públicas, tem um compromisso com a formação crítica, a criação de um pensamento
autônomo e tendo em conta nosso contexto de exclusão, desigualdade social e violência,
podemos concordar com a urgência em participar de um processo onde se consolide a
integração dos direitos humanos no processo educacional28
.
O que podemos observar através destes documentos e iniciativas é a reafirmação
de que as universidades devem contribuir não somente como formadora de sujeitos
pensantes, críticos e éticos. Mas ela, também, deve ser um local onde se vivencie a
democracia, a liberdade de pensamento e que convide seus membros a uma convivência
harmoniosa com diferenças étnicas, sexuais, religiosas, culturais, de nacionalidades ou
físicas. Deve possibilitar espaços para o encontro das suas diferentes escolas, que os
professores sejam adequadamente capacitados para conduzir atividades que promovam
o desenvolvimento de cidadãos comprometidos com a ética, a democracia e o respeito
mútuo.
Estas ideias e iniciativas vão de encontro à idéia da universidade como um local
que promova a formação integral, incluindo o desenvolvimento moral daqueles que
transitam em seus espaços, especialmente os sujeitos em formação, seja na graduação
ou pós-graduação. Apesar de amplamente discutida na educação básica, a formação
moral é pouco abordada no contexto do ensino superior. Existe uma idéia de que as
pessoas chegam moralmente prontas a universidade, havendo pouco a ser feito.
Considerar que o ensino universitário deve, também, se ocupar da formação moral é
recente do ponto de vista histórico. No Brasil, as primeiras iniciativas partiram de
estudiosos da educação médica. Rego (2003)29
, pioneiro nos estudos acerca do
desenvolvimento moral no ensino superior no Brasil, aponta a necessidade de se incluir
o tema de forma mais contundente nas diretrizes curriculares para o ensino de
graduação médica e, em 200130
, ao apresentar um retrato das situações vivenciadas por
39
estudantes de medicina numa universidade pública brasileira, apresenta a necessidade
de se incluir a formação moral no escopo de obrigações dos cursos universitários30
.
2.1 Entendendo a formação moral e o contexto universitário
A universidade no mundo ocidental foi concebida na Idade Média, na Europa,
como um espaço para o desenvolvimento do ser humano. Apesar das mudanças
ocorridas nos seus quase oito séculos de existência, sua adesão à lógica de produção do
mercado, ainda encontramos muitos pontos de resistência a esta idéia de valor associado
ao número de publicações científicas e número de formandos. Humboldt e seu ideário
de universidade como um local de liberdade de pensamento, pesquisa e educação
parecem hoje longe da lógica que permeia os campi universitários e as instituições de
ensino superior.
Este distanciamento e fragmentação dos saberes durante o processo de formação e
as poucas oportunidades para uma vivência da democracia podem transformar os
ambientes universitários em espaços desfavoráveis para o que chamamos de
desenvolvimento moral. Esta idéia de que “as coisas não iam bem na universidade”
pode ser vista nas iniciativas da UNESCO já pontuadas inicialmente, como, por
exemplo, o Plano Mundial de Educação em Direitos Humanos e o relatório do grupo de
trabalho sobre o Ensino de Ética. Elas demonstram a preocupação com uma formação
para além da capacitação técnica para o trabalho e a pesquisa científica, e apresentam
uma demanda do mundo contemporâneo frente a algumas realidades: as barbáries
oriundas, muitas vezes, das cabeças pensantes da universidade, um mundo calcado no
consumo desenfreado, uma era de individualismo exacerbado. A ausência de certezas
absolutas e a convivência de pessoas com diferentes estilos de vida, como ocorre hoje
nas sociedades democráticas e plurais, tornaram mais urgente a criação de espaços que
se ocupem da educação moral. Transitar nestes contextos sociais complexos exige dos
sujeitos um esforço para a construção dos seus próprios critérios de bem e mal, certo e
errado, justo e injusto, além de conviver com os outros, que também estão tentando
construir seus próprios critérios. A ausência de reflexão e de princípios pessoais é fonte
de angustia e pode contribuir para a violência, tão presente hoje no cotidiano das
sociedades. A necessidade de se formar moralmente os sujeitos, neste contexto de
reflexão, têm sido demonstrada através de estudos e formulações teóricas em vários
campos de conhecimento. Este aspecto da formação toma vulto quando falamos de
40
profissões em que a sociedade deposita, ou precisa depositar alta confiança, como, por
exemplo, os profissionais do direito, educação e da saúde. A capacidade de refletir,
utilizando a razão crítica, sobre as suas práticas e como elas interferem na vida de
outrem, está intimamente ligada à atuação destes profissionais. Embora se entenda que
seja da pertinência de todo cidadão um compromisso com a ética, os direitos humanos e
o cuidado com o outro, estas questões fazem parte do núcleo central das atividades
daqueles profissionais.
2.2 O contexto pedagógico escolar e universitário
Um das questões mais importantes da educação é a tarefa de fazer com que os
alunos participem de um processo reflexivo a respeito da informação, cada vez mais
fácil de ser acessada.. Que informações eu vou selecionar? Quais as que são fidedignas?
O que eu considero como fidedigno? Quais valores eu vou considerar no processo das
minhas escolhas? O papel do professor está também voltado para ajudar o aluno no
processo de refletir sobre a informação, e escolher quais ele considera como as mais
adequadas, baseados valores ou princípios. Entretanto, chegamos ao primeiro conflito:
nós não estamos acostumados ao processo de reflexão e escolha, especialmente uma
geração inteira de pais e professores educados nos anos da ditadura brasileira. Os
professores de hoje podem cair na mesma armadilha dos antigos mestres. Podem
entender que educar em valores, por exemplo, significa que eles, professores, devem
escolher os valores a serem seguidos pelos alunos. Rios (1998)31
comenta que esta
postura geralmente leva a uma fala moralista ou moralizante e que numa sociedade
plural, os valores não precisam ser os mesmos, mas precisam ser refletidos antes de
serem escolhidos.
Rios (1993)31
também nos lembra que um dos maiores problemas vivenciados por
educadores no âmbito escolar é a desarticulação entre as dimensões técnicas e políticas,
muito por conta da não inclusão do componente ético no escopo da competência do
professor. O professor expressa valores na escolha da técnica e política dos conteúdos,
dos métodos de ensino e no sistema de avaliação. Ele apresenta um “ideal” que é
entendido e reconstruído pelos alunos, que chegam as escolas (ou universidades)
portando outros valores vivenciados em suas relações familiares, nos diversos grupos
sociais que ele transita e no que é transmitido pelos meios de comunicação. É no
41
processo reflexivo da atividade docente, que estes valores serão entendidos num nível
mais consciente, evitando que ocorra pelo chamado currículo oculto 31,32
.
A educação/ formação moral pode ser entendida como um processo que conduz
os sujeitos a um processo de reflexão sobre situações cotidianas, onde estejam
envolvidos valores morais e que esta reflexão seja usada pelos sujeitos nas tomadas de
decisão. Puig (1998)33
afirma que a educação moral pode ajudar na detecção e crítica de
aspectos injustos da realidade cotidiana e a construção de formas de vida mais justas,
tanto na vida interpessoal como na vida coletiva. Ela facilita o desenvolvimento e a
formação das capacidades que intervém no julgamento e na ação moral. O autor
também pondera que se pode cair nas armadilhas de apresentação de modelos clássicos,
“ideais”, ou então, num relativismo, onde, na realidade, se ensina uma habilidade para
decidir o que cada pessoa entende como melhor para si mesmo, visto que uma decisão
pode ser individual e seus motivos difíceis de serem explicitados.
Puig (1998)33
propõe que diante de um conflito de valores, podemos seguir
algumas rotinas: inicialmente estabelecer uma crítica para abrir caminho ou submeter à
análise uma determinada realidade que não queremos ou consideramos injusta, depois o
principio de alteridade, nos obrigando a sair de nossas posições para o estabelecimento
de uma melhor relação com os demais e, por fim, um nível de concretização. Entende
que, neste nível, os valores propagados na Declaração dos Direitos Humanos podem ser
interessantes para uma primeira aproximação33
.
2.3 A idéia de competência de juízo moral
Ética e moral: afinal, qual a diferença? Cortina (2003)34
pondera que elas se
distinguem pelo fato de que a moral, como um conjunto de normas de condutas em
determinadas sociedades, vem de “fora” do indivíduo e que a ética é um saber
filosófico, uma reflexão sobre a moral, ou seja, uma avaliação resultante do exercício da
razão crítica. Estas diferenças são importantes nas orientações pedagógicas, pois um
ensino em ética tem diferenças conceituais e estratégicas de um ensino para o
desenvolvimento moral, embora caminhem lado a lado.
A forma como os sujeitos internalizam as regras sociais tem sido alvo de interesse
de diversos campos do conhecimento. Biaggio (1988)35
apresenta três grandes correntes
teóricas, com metodologias de estudo bem distintas: teoria psicanalítica, da
42
aprendizagem social e a teoria cognitivista. Neste estudo, faremos uma reflexão com
base nas teorias cognitivistas do desenvolvimento moral, em especial nas oportunidades
que o ambiente universitário das escolas médicas proporciona aos estudantes
desenvolvam uma competência moral. Esta corrente se diferencia das demais por
considerar que o comportamento moral deve ser abordado pela forma como o indivíduo
identifica o componente moral em uma determinada situação ou comportamento, como
ele reflete e toma decisões baseado em regras morais e princípios internos. Ou seja, a
moralidade é vista como uma forma de competência cognitiva que requer um raciocínio
lógico, sem, entretanto, negar os aspectos afetivos envolvidos no comportamento
humano 36,37
.
Kohlberg, psicólogo americano que publicou seus primeiros estudos na década de
1950, define esta capacidade de identificação, julgamento moral e ação conforme tal
julgamento e princípios internos, como competência de juízo moral. Também afirma
que, a partir da avaliação do raciocínio moral, todos os indivíduos passam por estágios
de forma linear e sem regressões, independente de sua cultura. Estes estágios vão desde
um nível, chamado de pré-convencional, onde um ato é julgado não pelas suas
intenções, mas por suas consequências. Ou seja, se houver punição significa que o ato
foi mau, caso contrário significa que foi bom ou correto. Se ele atende às minhas
necessidades, está correto, se não atende é por que não o é, significando que não houve
questionamento sobre os princípios morais que subsidiam os atos 36,37
.
No nível convencional, já existe internalização dos princípios morais. O sujeito
tem claro o que julga certo ou errado e acredita neste valor. Porém, decide a partir de
valores como amizade, aceitação dos outros ou respeito à ordem estabelecida. É
importante entender que este respeito às leis ocorre não pelo caráter punitivo, mas por
respeito à sociedade, ao bem estar do grupo. No nível pós-convencional, o sujeito toma
as decisões, baseadas em princípios internos, muitas vezes questionando a própria lei, se
as considerar injustas 36,37
.
Para o desenvolvimento desta capacidade, Kohlberg propõe atividades que
desafiem o aluno e provoquem um conflito cognitivo como a discussão de dilemas
morais, promovendo a educação moral sem doutrinação nem relativismo. Evita a
doutrinação porque visa promover o desenvolvimento natural de estruturas universais
de tomada de decisão, e não adesão a um determinado conjunto de valores e crenças
religiosas ou morais. Evita-se o relativismo porque postula que os estágios são
ordenados de forma hierárquica, assim os educadores podem questionar criticamente as
formas de julgar sem estabelecer respostas certas. O papel do líder não é apresentar
43
soluções prontas para serem aceitas na base da autoridade, mas estimular a busca de
solução pelos alunos. 36,37
.
Considerando que as discussões morais sobre casos hipotéticos possam ter efeito
sobre o comportamento das pessoas, Kohlberg também propõe a utilização de casos do
cotidiano. Ele concorda que existe uma relação entre julgamento e ação moral e propõe
uma avaliação de desenvolvimento moral utilizando uma entrevista como instrumento.
Nesta entrevista, o Moral Judgment Interview- MJI, o avaliador analisa respostas a
dilemas morais. Kohlberg encontrou resultados interessantes, como, por exemplo, no
estudo realizado para avaliação de scores de desenvolvimento moral entre estudantes
universitários, observando scores de maior nível, entre estudantes universitários que
participavam de movimentos políticos e sociais (ativistas)36
. Entretanto, Kohlberg não
consegue responder a questão: se existe intenção e o reconhecimento de princípios
relacionados a níveis mais altos do score de desenvolvimento moral (avaliados pelo
MJI), por que não se consegue, muitas vezes, agir conforme estes princípios?
Georg Lind, outro pesquisador sobre desenvolvimento moral, que dá continuidade
aos estudos de Kohlberg, iniciou seus estudos na década de 70. Ele parte da idéia que a
compreensão do comportamento moral deve incluir não somente os aspectos cognitivos,
como também os afetivos. Piaget, em seus primeiros estudos sobre o juízo moral na
infância, assim como Kohlberg em seus estudos iniciais, já comentavam que os aspectos
cognitivos e afetivos são inseparáveis do comportamento humano, inclusive da moral. O
ponto de vista de que o afeto e a cognição são diferentes propriedades do mesmo
comportamento e que podem ser mensurados num mesmo momento foi algo inédito nos
estudos em psicologia. A esta idéia dá-se o nome de “teoria do duplo aspecto”, sendo
que o Moral Judgment Test (MJT), teste elaborado por Lind onde avalia, de forma
objetiva e não falseável, ambos os aspectos do raciocínio moral38,39
.
Lind comenta que lhe parece absurda a idéia de ver o comportamento moral como
um campo separado do comportamento do homem e medi-lo com um procedimento
próprio e fomentá-lo com métodos educacionais próprios. Assim, a preocupação com o
desenvolvimento moral deve ser incluída em todo e qualquer tipo de formação, como se
fosse um aspecto transversal em todo e qualquer tipo de ensino. Outro equívoco,
segundo ele, se dá ao relacionarmos o comportamento moral como um assunto
puramente da ordem afetiva, sem considerar os aspectos cognitivos, que podem ser
fomentados com procedimentos como outros campos do conhecimento38,39,40
.
Outro ponto de vista de Lind, discordante de Kohlberg, é a idéia de regressão ou
erosão moral. Lind (2000)41
, em seus estudos com estudantes de medicina, observou
44
que um ambiente universitário desfavorável, pode levar a regressão moral. Para a
manutenção ou desenvolvimento de um status moral, sugere que os estudantes estejam
constantemente em atividades apropriadas. Para tal, Lind propõe, assim como Puig33
,
atividades que promovam o conflito cognitivo capazes de levar a uma elaboração de um
novo pensamento. Elabora o Método Konstanz de Discussão de Dilemas Morais onde
são necessárias quatro regras: a criação de uma comunidade democrática e de livre
discurso, o entendimento que a aprendizagem é um processo de reconstrução, regulação
das emoções nos debates e auto avaliação da eficácia do método pelo MJT 41
.
Rego e colaboradores42
citam, como exemplos de atividades que podem promover
o desenvolvimento moral nas escolas de nível superior, além da discussão de casos (de
forma a aplicar um conhecimento específico a um caso particular)), o role-playing
(atividades em que os alunos atuam em situações experimentais com diferentes papéis e
pontos de vista, por exemplo: papel de médico, paciente, pai), clubes de debate e
competições (simulação de julgamentos, por exemplo), discussão de filmes (desperta e
mobiliza sentimentos morais, pode também ser usado como casos a serem debatidos),
além da apresentação das teorias éticas
Lind40,41
, ao relatar o impacto de oportunidades de role taking (que se diferencia
do role playing pelo fato das situações vivenciadas serem reais) e de guided reflection
(oportunidades de receber o suporte adequado e ajuda de professores e/ ou alunos mais
experientes em situações vivenciadas no role taking), encontra resultados diretamente
positivos entre estas estratégias e o aumento da competência moral. Estas constatações
foram feitas mediante a utilização do ORIGIN/u (Questionnaire for assessing
opportunities for role-taking and guided reflection in universities) quando foi
comparado esta metodologia ao ensino da ética em sala de aula.
Puig33
defende como finalidade da educação moral, a “formação de pessoas
autônomas e dialogadoras, dispostas a comprometer-se na relação pessoal e na
participação social com uso crítico da razão, abertura para com os demais e o respeito
pelos Direitos Humanos” (p.22). Assim como Lind, também postula atividades
específicas como discussão de dilemas morais, estratégias de clarificação de valores,
role playing (atividades onde existe uma simulação de situações vivenciadas no
cotidiano), processos de tomada de consciência. Pondera que para estas atividades
serem eficazes, devem ser organizadas de modo transversal e sistemático. Lind coloca
que os métodos para educação moral se apresentaram até hoje ineficazes pelo fato de
estarem desacoplados das outras disciplinas e atividades da vida escolar e
universitária40,41,43
.
45
Outro ponto de vista defendido tanto por Lind quanto por Puig se refere a
participação de forma democrática nas instituições de ensino. A questão da ação moral
deve ser colocada no centro das atividades educativas para o desenvolvimento moral.
Assim, a participação em atividades não pode ser prescindida, como por exemplo: foros
onde sejam abordados os problemas reais de trabalho, cooperação e integração coletiva,
discussão objetiva de conflitos reais, de forma que todos possam se colocar no lugar dos
companheiros e adquirir atitudes dialógicas e criação de hábitos de auto governo33,43
.
2.4 A formação nas Escolas Médicas no Brasil
As iniciativas de mudança para o ensino superior reforçam a idéia de que as
universidades precisam repensar suas funções e práticas, ou pelo menos, como as estão
realizando. Em relação às escolas médicas no Brasil, o que se percebe é um
distanciamento dos outros cursos, incluindo os outros da área de saúde, assim como
uma fragmentação interna das próprias disciplinas. Entretanto, podemos assinalar dois
marcos importantes para o redirecionamento do ensino médico nos últimos vinte e cinco
anos: o estabelecimento do Sistema Único de Saúde (SUS) como norteador das políticas
de formação dos profissionais de saúde e a publicação das Diretrizes Curriculares
Nacionais. Neles ficam listados três princípios relacionando trabalho e educação dos
profissionais de saúde no Brasil: o direcionamento pelo SUS, o trabalho em equipe e a
integralidade do atendimento em saúde 44
. As então, novas diretrizes para as escolas de
saúde provocaram mudanças, conforme pontuadas por Rossini e Lampert (2004)45
principalmente relacionadas às vivências da interdisciplinariedade e do trabalho em
equipe no mundo real, possibilitando a construção, percepção e reflexão a partir de
múltiplos olhares. Entretanto, como já dito anteriormente, é necessário um docente
capacitado e sensível a estas mudanças. Capacitado, como já pontuado por diversos
autores46,47,48
, em elementos pedagógico- didáticos (metodologias de ensino e
aprendizagem, processos de avaliação, conteúdos específicos). Sensível a mudanças,
pois provavelmente o seu processo de formação universitária ocorreu em épocas de
ensino tradicional, autoritário e fragmentado. É importante que ele, mais do que atento
aos processos de mudança que ocorrem no ensino, esteja também “convencido” desta
necessidade. Para tal, Saippa – Oliveira e Koifman (2011)48
acrescentam a necessidade
de profissionalização da docência universitária e a incorporação da educação
permanente.
46
Ao se refletir sobre a formação dos profissionais de saúde, é importante ter em
conta que o trabalho em saúde traz como uma de suas especificidades, o encontro de
dois grupos de pessoas: as que trazem seus sofrimentos e necessidades (usuários) e
outro grupo (profissionais da saúde) que dispõe de um conhecimento científico
específico ou de recursos instrumentais dispostos a solucionar as questões apresentadas
pelo primeiro grupo. Este encontro, dependendo da percepção do profissional em
questão, pode levar a visões limitadas ou interpretações equivocadas sobre o que se
passa com o outro. Esta dimensão do cuidar do outro, ou cuidar com o outro, está
diretamente relacionada com a capacidade do profissional de saúde em ouvir o outro.
Uma escuta atenta, interessada e sem preconceitos49
.
Vários autores49,50
já mencionaram a importância do direcionamento da formação
dos profissionais de saúde, em especial do profissional médico, pelo eixo da
integralidade. Além de ser uma das diretrizes do Sistema Único de Saúde, ela se
justifica pelo fato dos processos saúde-doença serem complexos e não restritos ao
campo biológico, havendo necessidade de uma abordagem integral dos sujeitos. A
formação orientada pelo eixo da integralidade do cuidado valoriza a construção das
relações humanas, fazendo com que os profissionais desenvolvam uma escuta
diferenciada, tanto dos saberes e vivências cotidianas de seus pares, profissionais de
saúde, quanto dos usuários do sistema. Ou seja, uma assistência pautada pela
democracia, que poderia ser resumido no respeito e consideração pelo outro.
Durante suas vivências na vida universitária, os alunos de medicina
cotidianamente descrevem situações onde presenciam o desrespeito, a falta de ética, de
acolhimento e de vínculos48
. A relação entre professores e alunos tem um papel muito
importante, na forma como estes profissionais irão agir em suas vidas futuras. E, se
optarem pela carreira docente, a forma como futuramente entenderão seu papel
enquanto professores 30,51
. Koifman e Wog Un (2008)52
entendem que as escolas de
saúde, em especial o ensino médico, reproduzem e produzem um sentimento de
ansiedade, mal estar, competitividade ao exigir de forma extrema e sobre-humana, a
incorporação de conhecimentos em velocidade extrema e “apresentando regras de
comportamento social para garantir o sucesso dentro e fora da universidade são
traduzidos em ceticismo, agressão contra o que consideram banal, simples e repetitivo”
(p. 264), justamente a lógica do cuidado, da integralidade, da medicina prudente/
decente.
47
Heckert (2008)53
nos lembra de que experimentamos um período marcado pelo
pragmatismo e pela busca de resultados imediatos, pelas técnicas de intervenção da vida
(transplantes, reprodução assistida, mapeamento do código genético), pela
judicialização da saúde e por uma crença, quase que religiosa, na ciência, como
detentora das verdades que irão resolver todas as questões mundiais. Na outra ponta, há
os que “demonizam a técnica em nome de um foco nas relações interpessoais como
forma de valorização do humano”53
(p. 225). É necessário, diz a autora, que a ação
técnica seja compreendida não como um ato separado do mundo, do cotidiano, mas algo
que caminha lado a lado com a ética, esta não como um conteúdo a ser ensinado, mas
um exercício, um processo de reflexão.
Já Duarte e colaboradores (2008)54
, ao abordarem as contradições das
biotecnologias, pontuam que estas, ao mesmo tempo em que são criadas pelo homem e,
a primeira vista, para seu benefício, podem interferir na relação entre os sujeitos
envolvidos no processo do cuidado, provocando um distanciamento entre eles. A ética
no cuidado, conforme entendido pelas autoras, é uma escolha ancorada na autonomia
individual do profissional, o que seria melhor para ele mesmo, respeitando a autonomia
do usuário e seu direito de definir os rumos de sua própria vida. Seria uma prática e um
ensino pautados na prudência na utilização das tecnologias, com autocrítica e diálogo
para que seja possível a inserção da integralidade na formação do médico e dos outros
profissionais de saúde, e também na assistência.
Podemos observar o que estas iniciativas, sejam da UNESCO para o ensino
superior ao propor o tema ensino da ética e dos direitos humanos, sejam as diretrizes
curriculares para o ensino (aqui, mais especificamente da medicina) ou os movimentos
de redirecionamento do ensino médico a partir das diretrizes do SUS (com destaque ao
princípio da integralidade do cuidado), têm como enfoque em comum a proposta de um
ambiente de ensino e trabalho em saúde pautados pelo respeito, pela ética e pela
democracia. Este ambiente de ensino, conforme entendido por Lind39,40,41,43
, seria o
principal propulsor para o desenvolvimento da competência moral, além das estratégias
educacionais, conforme descrito por este autor e Puig33
.
48
2.5 Formação ética e ensino da ética no curso de medicina
A emergência de se incluir o ensino da ética nos programas de graduação de
medicina vem ocorrendo especialmente nos últimos 30 anos. A WMA (World Medical
Association) em sua assembleia de 1999, sediada em TelAviv, recomendou que o
ensino da ética e dos direitos humanos fosse incluído de forma obrigatória no currículo
de todas as escolas médicas.55
No Brasil, as diretrizes curriculares de 200156
definiram o perfil de formando
egresso como de formação generalista, humanista, além de crítico e reflexivo,
capacitado em atuar em diferentes níveis de atenção ao paciente e “nos mais altos
padrões de qualidade e dos princípios de ética e bioética”54
(p.1). Apesar dos avanços,
como comenta Rego, ainda falta um melhor esclarecimento do que é ou o que se
pretende com tal afirmativa29
.
A preocupação com o ensino da ética nas escolas médicas não é recente. Dantas
& Sousa (2008)57
, em revisão sobre publicações a respeito do ensino da ética nas
faculdades de medicina no Brasil, encontraram três levantamentos sobre o assunto com
intervalo de uma década (1984, 1992 e 2001) e, após analisá-los, concluíram que
comparando os primeiros dados com o último levantamento, realizado por Muñoz &
Muñoz (2003)58
, ainda havia uma baixa carga horária, muito embora pudesse observar
uma mudança nos professores envolvidos com as disciplinas, havendo um perfil mais
direcionado para docentes com mais experiência clínica. Neste também constavam os
objetivos da disciplina (que geralmente era associada com deontologia, psicologia ou
saúde coletiva) que eram formar profissionais mais humanos, com postura ética,
elevados ideais de profissão e ensino do código de ética médica. Em relação ao
conteúdo, os principais tópicos eram: aspectos da responsabilidade profissional,
confidencialidade e privacidade, relação com o paciente, morte e final de vida, e
exercício lícito e ilícito da profissão. Em relação às estratégias educacionais, embora se
enfatize as discussões de casos reais com problemas éticos em pequenos grupos, estas
raramente eram observadas, provavelmente devido ao pequeno número e não
capacitação dos professores envolvidos e a baixa carga horária.
O que se pode observar, especialmente pelos tópicos abordados, é um
direcionamento para a ética profissional deontológica. Os temas sobre morte e final de
vida provavelmente eram incluídos em instituições onde já havia um direcionamento
para uma abordagem mais afim da bioética.
49
Rego e colaboradores (2005)59
e Rego & Schillinger – Agati (2011)60
ao
abordarem sobre os códigos de ética profissional, destacam que eles estão dentre as
premissas para que uma ocupação laborativa seja considerada uma profissão, de acordo
com as atuais correntes da sociologia das profissões. Eles, em geral, contêm duas partes:
os de interesse corporativo e, a segunda, os de interesse da sociedade. As primeiras se
relacionam com normas de convívio profissional entre os pares, e a segunda de
orientação para que os profissionais assegurem os interesses e o bem estar da população,
o que é denominado “ideal de serviço”, ou seja, que as tomadas de decisão tenham
sempre como ponto norteador, o melhor interesse da população e dos sujeitos
envolvidos.
Rego e colaboradores (2005)59
comentam que apesar das inúmeras atualizações
dos códigos, eles têm se tornado insuficiente para gerenciar as ações médicas e do
campo da saúde em virtude do surgimento das biotecnologias, mudando alguns
conceitos teoricamente sedimentados como vida, morte, saúde e doença. Além disso, as
novas demandas, especialmente após a década de 1960, com os movimentos feministas
e de luta pelos direitos civis, dos animais, e a revolução da comunicação, com a
disseminação massiva das informações, fazem com que o médico reveja seu papel. O
sujeito que procura sua ajuda, antes passivo, não é mais “tão paciente” quanto antes. Ele
quer, sobretudo, participar das escolhas pertinentes a ele ou sobre ele. Entretanto, o
ensino da ética tem se baseado na apresentação do código de ética médica, ou então, de
modelos considerados ideais, a fim de serem “copiados” ou “repetidos”, como se as
situações nas práticas e os sujeitos envolvidos não fossem únicos e não carregassem as
suas subjetividades nas decisões morais. Este modelo de aprendizagem reforça a idéia
de uma moral heterônoma, apresentando princípios que, no caso das práticas em saúde,
seriam beneficência e não maleficência. Outra questão é o fato de muitas vezes o
profissional entender que nas decisões médicas existem apenas componentes técnicos,
ou que à técnica não sejam atribuídos valores morais.
Segundo Schramm (2001) 61
, as teorias deontológicas dizem respeito ao caráter do
agente e as teorias teleológicas, ou consequencialistas, centram sua atenção na
qualidade do que é feito. Assim, apresentar apenas o código de ética profissional da
medicina como o único instrumento para responder às questões de âmbito ético que
envolvem as ações no campo de atuação dos médicos, não é somente um equívoco, mas
deixa futuros profissionais e a população numa situação de fragilidade e de
possibilidade de aumentar os conflitos que podem surgir, ampliando a insatisfação, seja
50
de usuários do sistema de saúde, seja dos trabalhadores. É negar uma formação
adequada aos sujeitos e um atendimento digno à população. É conveniente lembrar que
pesquisas referentes à satisfação de usuários dos sistemas de saúde, público ou privado,
em todo o mundo, têm demonstrado o seu desapontamento com o atendimento médico.
As queixas têm sido referenciadas a questões de âmbito técnico, mas, sobretudo, ético e
relacional com os profissionais de saúde62
.
Assim como Rego e colaboradores (2005)59
, entendemos que existem duas
questões referentes à formação ética dos estudantes da área de saúde, mais
especificamente do curso de medicina. Uma é a apresentação da bioética como
disciplina, no intuito de fornecer ao aluno instrumentos teóricos fundamentais para agir
em situações específicas na área de atuação do médico contemporâneo: questões
relacionadas ao início e fim da vida, alocação de recursos, cuidados paliativos, uso das
biotecnologias, reprodução assistida, etc... Para tanto, é necessário um docente com
formação e capacitação na área de ética ou bioética. A outra questão é proporcionar uma
formação ética ou, utilizando o termo mais adequado, formação ou competência moral,
entendida como uma educação voltada para a democracia e os direitos humanos, onde
seja possível abordar as questões pertinentes aos conflitos morais existentes no
cotidiano, que podem ou não estar associadas diretamente às questões específicas da
área de saúde. O desafio é desenvolver moralmente os sujeitos e o ambiente
universitário para que seja possível, por exemplo, ao apresentar a “caixa de
ferramentas” da bioética, uma discussão respeitosa onde se considerem as diferenças
entre os sujeitos.
2.6 Ensino da bioética
A bioética, em sua proposta inicial, feita pelo oncologista Van Rensslaer Potter,
foi concebida para ser uma nova ética científica, com a finalidade de abarcar questões
relacionadas à deterioração das relações homem-natureza e cujos objetivos principais
seriam garantir a perpetuação da espécie humana e de sua qualidade de vida. Maurizio
Mori (1994)63
considera que a bioética é um movimento cultural associado à ética
aplicada que inclui, além da bioética, a ética dos negócios e a ética ambiental.
Schramm59
a define como “filosofia moral que visa o estudo sistemático dos aspectos
morais ou éticos implicados pela conduta humana consistente na aplicação dos saberes
das Ciências da Vida e da Saúde ao mundo da vida e, em particular, da vida humana”63
51
(p. 32). A bioética é uma ética aplicada e utiliza princípios morais, daí o principialismo
ser, para alguns, a corrente mais importante.
A tendência de relacionar a bioética, de forma mais específica, ao campo da saúde
ocorreu no Kennedy Institute for Study of Human Reproduction and Bioethics
(Georgetown University), na abordagem de Heggelers, seu fundador, que utilizou o
termo para abordar uma nova ética aplicada à biomedicina. Ela surge nos Estados
Unidos, no final da década de 1960, em meio aos movimentos de direitos civis, como
forma de estender as discussões para além do campo da metaética (estudo da linguagem
moral) ou da ética normativa (que incluía as várias teorias normativas). Os fatores que
influenciaram esta reflexão foram inúmeros, incluindo os escândalos relativos à
experimentação clínica, à impossibilidade de disponibilizar a diálise a todo, à discussão
sobre a moralidade do aborto e às relacionadas ao conceito de morte, especialmente
após o advento das unidades de terapia intensiva e da era dos transplantes61,63,64
.
Este campo multi, inter ou, como alguns preferem, transdisciplinar, agregou, além
da filosofia e teologia moral, membros da antropologia, da sociologia, da psicologia, do
direito e das ciências biológicas61
. A bioética propõe o diálogo para resolução dos
conflitos morais nas sociedades democráticas e laicas, respeitando-se as diferenças até
chegar a um consenso, quando possível.
O livro de maior difusão de uma ética aplicada é “Princípios de Ética Biomédica”
de autoria de Beauchamp e Childress, em que os autores apresentam quatro princípios
para orientar moralmente as decisões de pesquisadores e clínicos no âmbito da
medicina: respeito pela autonomia, beneficência, não maleficência e justiça. O livro se
constitui na maior referência de ética aplicada baseada em princípios61, 65
.
. Entretanto, nesta “caixa de ferramentas” da bioética esta não é a única corrente.
Citamos outra, a ética utilitarista, sendo Peter Singer seu representante mais influente,
na atualidade. O princípio que rege esta corrente é o da utilidade ou da maximização da
felicidade ou bem estar, e ainda, o de evitar dor e sofrimento para o maior número de
pessoas envolvidas. A melhor alternativa de resolução de conflito está associada à
otimização das consequências para o maior número de pessoas ou de sujeitos afetados
pelas decisões65
. Outras correntes que vale a pena mencionar são: as feministas, em
especial, a ética do cuidar, de Carol Gillian e Nel Noddings. Nesta corrente, é colocado
que o elemento fundamental no cuidado, intrinsecamente relacionado às profissões da
saúde, pode ser encontrado na relação entre quem cuida e quem é cuidado. Este tipo de
52
corrente troca a visão da ética aplicada em princípios universais ou baseada na justiça
imparcial, para a particularidade das relações estabelecidas no cuidado. A pergunta
central, nesta corrente, não é o que é justo, mas quais são as necessidades desta pessoa,
nesta situação? Devemos estar atentos às particularidades do contexto e avessos às
deliberações morais calcadas na ética do dever deontológico, em que se baseiam os
códigos de ética profissional, aos princípios absolutos e prima facie da ética
principialista e à ética utilitarista 65
.
O conhecimento destas correntes da bioética pode ser decisivo para as tomadas de
decisão acerca de questões morais. Ao valorizar o contexto e os grupos sociais
envolvidos, a bioética vai além das regras universais da ética tradicional e propõe a
inclusão da diversidade nas discussões éticas. É necessário incluir o outro num diálogo
plural, pois as pessoas, dependendo da sua cultura, diferem em suas concepções a
respeito de vida/ morte, saúde/ doença, natureza/ cultura, sentido/ intenção, entre
outras66
. Assim, a bioética propõe uma tomada de decisão pautada na análise dos
argumentos contra e a favor, utilizando a razão crítica, em determinadas práticas que
afetam a qualidade de vida e bem estar dos seres humanos e, num plano mais holístico,
dos outros seres vivos e de seus ambientes40
. A percepção da bioética como um dos
dispositivos de proteção aos sujeitos e outros seres vivos vulnerados nos processos de
decisão, especialmente no campo da saúde pública, é defendida por Schramm e Kotow e
na Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos da UNESCO67
.
Entretanto, para um diálogo aberto, que propicie tomadas de decisão consistentes
é necessário não somente o conhecimento teórico sobre bioética ou da ética aplicada ao
campo biomédico. Não acreditamos que apenas a introdução de uma disciplina, ou a
inclusão de temas relacionados seja suficiente para a formação de futuros profissionais
de saúde. Uma condição essencial é que o ambiente universitário propicie este tipo de
debate e que seja possível a convivência das diversas escolas, resgatando o conceito ou
concepção de uma universidade.
É necessário que a universidade se “desenvolva moralmente”, seja um local onde
se vivencie a democracia, a exposição livre de ideias, para que este tipo de discussão
favoreça a formação de sujeitos capazes de levarem “a campo”, em suas vidas
profissionais, estes conceitos sobre as tomadas de decisões que permeiam diariamente a
saúde.
53
2.7 O ensino médico e a formação moral
Em estudo sobre desenvolvimento moral entre estudantes do curso de medicina
na Alemanha, Lind (2000)41
observou uma regressão da sua competência ou
desenvolvimento moral e concluiu que não existem dúvidas de que o ambiente de
ensino nas escolas médicas não colabora com a promoção da capacidade de juízo moral
que os futuros médicos precisarão, além de proporcionar, muitas vezes, uma erosão
moral.
A violência nos ambientes de ensino, especialmente nas relações professor aluno,
é tema recorrente nas publicações sobre o ensino na educação básica68
e pode estar
associada, ao não desenvolvimento ou regressão moral dos estudantes. Entretanto, é um
tema pouco abordado nas pesquisas e nas discussões em educação médica Villaça &
Palácios (2010)69
observando a forma como estudantes e professores descreviam os
trotes universitários, concluíram que estes, embora ressaltando seus aspectos violentos,
banalizavam as situações em que ocorriam agressões morais, ou até mesmo físicas. As
autoras relacionam esta atitude a sentimentos de negação, impotência ou falta de
reflexão a respeito do tema. Rego (2003)70
, abordando as relações entre alunos e
professores de medicina, observou nos relatos de alunos diversas situações onde
imperavam o desrespeito e violência. Palácios & Rego (2006)71
, em editorial, chamam
de epidemia invisível a violência nas relações entre os profissionais de saúde e o
bullying nas escolas médicas. Outros relatos, disseminados em blogs e redes sociais,
desvelam os espaços de formação médica, demonstrando os altos níveis de violência nas
relações entre professores ou preceptores e estudantes de medicina72
. Pergunta-se: como
num espaço onde a violência aparece de forma tão permissiva, esperamos formar
médicos humanos, comprometidos com o bem estar do outro e com alto padrão de
desenvolvimento moral?
Lind (2000)41
, referindo-se ao ambiente de ensino médico na Alemanha, relata
que os estudantes de medicina, quando comparados com outros estudantes
universitários, têm pouco contato com seus colegas, trabalham menos em grupo e são
mais competitivos, além de terem uma relação professor/ aluno que classifica como
ruim.
Observando a educação médica no Brasil e estabelecendo um paralelo com a
formação médica no mundo, Rego (2003)70
acredita que a ênfase dada à formação
técnica, pouco se privilegiando espaços de construção de outros saberes
interdisciplinares, pode ser uma das causas da dificuldade de se ter um ambiente que
proporcione um desenvolvimento moral adequado. Feuerwerker (2002)73
lembra que
54
concepções pedagógicas que envolvem relações mais democráticas entre professores e
alunos, sempre encontraram grande resistência nas escolas médicas de uma forma em
geral.
2.8 A agenda para a formação moral no ensino médico
Especialmente após a publicação das diretrizes curriculares nacionais56
, muitas
escolas médicas têm passado por um processo de reforma do ensino. Entretanto,
Feuerwerker73
comenta que, na maioria das vezes, esta “reforma” não passou da
inclusão de novas disciplinas ou de algumas mudanças em concepções pedagógicas. Em
relação à formação ética ou formação moral, nos parece pertinente que não basta
apresentar um projeto de inclusão do tema, mas entender o que professores,
coordenadores e gestores da educação efetivamente entendem como formação moral ou
educação moral.
Algumas escolas, com o intuito de atender as exigências das diretrizes
curriculares, procuraram no ensino de habilidades e atitudes, as bases para a formação
ética dos estudantes de medicina74
. Outras entendem que a formação ética passa pela
afirmativa “a ética se ensina com o exemplo e se aprende com o modelo”75
. Ainda há
aquelas que acreditam que a apresentação ou introdução dos alunos em ambientes
socialmente desprovidos de condições de existência digna pode ser suficiente para
despertar neles uma orientação moral mais elevada. Rego e colaboradores (2004) 64
lembram que, muitas vezes, este tipo de atividade pode gerar nos alunos um desconforto
tal, que leve àquele sentimento de não pertencimento, ou à sensação de que nada pode
ser feito para mudar aquela realidade.
Assumindo que um dos aspectos da educação moral é a aquisição de um
conjunto de elementos e saberes a serem utilizados no processo de reflexão e
argumentação em debates e discussão de dilemas, consideramos que a percepção de
como os docentes e coordenadores dos cursos de medicina entendem o processo de
ensino aprendizagem no contexto escolar, seja fundamental para o entendimento de
como as escolas médicas estão lidando com estas questões.
Becker76
, ao analisar como o professor pensa a respeito do processo de conhecer
e do conhecimento, observou três formas de entendimento. A apriorista, quando ele
entende que o conhecimento já existe no indivíduo, sendo que caberia ao professor
despertar este conhecimento. A segunda forma seria a empirista, onde o conhecimento
55
estaria na percepção e observação do objeto pelo sujeito, que seria uma tábula rasa,
sendo o saber retirado do objeto, através da experimentação e de recursos sensoriais, o
que subsidia a proposta de condicionamento ou treinamento. Acreditamos que as
práticas onde se introduz os alunos em ambientes esperando que estes se desenvolvam
do ponto de vista moral, tenham como base esta concepção de aquisição de
conhecimentos. A terceira forma seria construtivista, na qual Kohlberg e Lind se
apoiam. Tendo como um de seus precursores teóricos Piaget, esta teoria se baseia na
concepção de que o conhecimento não está nem no objeto, nem no sujeito, mas na
interação de ambos. Para interpretar e internalizar o objeto externo, o sujeito produz
ações que levam a um processo de assimilação e, depois, muda suas estruturas
cognitivas num processo denominado acomodação, empreendendo uma mudança em si
mesmo. Assim, o sujeito se transforma devido a sua própria ação no meio social e
cultural, de acordo com suas necessidades. Ele se torna a figura central neste processo,
ativo e determinante. Cabe ao professor propor as atividades, explicar os objetivos e
como ela se relaciona com o restante de sua formação.
Pontes e colaboradores77
, ao analisarem a compreensão de como os docentes de
uma escola médica entendiam como se dava o processo de ensino e aprendizagem,
observaram a forte relação que os professores tinham com o locus de prática como fonte
dos saberes a serem “construídos nos alunos”, demonstrando um forte componente
empirista nas suas concepções sobre aprendizagem. Os próprios autores concordam que
uma mudança efetiva no ensino médico e nos profissionais que se pretende formar,
tendo como parâmetro as diretrizes curriculares, somente ocorrerá com uma profunda
reflexão sobre a forma como os professores entendem seu papel e suas concepções
sobre aprendizagem, e no nosso caso, sobre a formação moral dos estudantes de
medicina.
Sabemos que as atividades efetivas para o desenvolvimento moral, conforme
descritas por, Kohlberg36,37
, Lind39,40,41,43
e Puig33
, devem provocar um conflito
cognitivo nos estudantes para que eles se sintam convidados ao debate, exerçam sua
liberdade de expressão, sua autonomia, questionem seus valores, o senso comum e o
politicamente correto. Cabe, então, à universidade e, neste caso, às escolas médicas,
proporcionar um ambiente livre da violência, democrático e desejoso realmente de
mudanças no ensino.
57
Este estudo faz parte do projeto “Avaliação do desenvolvimento da competência
moral entre estudantes de medicina e ambiente de ensino na graduação de medicina”
onde participam três escolas médicas, com três modelos pedagógicos diferentes: ensino
tradicional, ensino com modelo de base comunitária e outra no modelo PBL- Problem
based learning, coordenado pelo Prof Dr Sergio Tavares de Almeida Rego, professor e
pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz
(FIOCRUZ).
O projeto tem como objetivo principal avaliar o impacto do processo de formação
em medicina no desenvolvimento moral dos estudantes nestes diferentes modelos
pedagógicos. Está sendo desenvolvido em três fases: na primeira estão sendo realizados
os estudos sobre o ambiente de ensino e as oportunidades de aprendizagem ativa, que os
alunos têm nas diferentes escolas. Na segunda fase, estão sendo realizados os estudos
com o MJT- Moral Judgment Test e com a nova versão do ORIGIN/u. A terceira fase se
caracterizará por um estudo transversal nas três escolas estudadas com as turmas
incluídas nesta fase. O projeto foi aprovado em 25/06/2007 pelo CEP- comitê de ética
em pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública- ENSP/ FIOCRUZ (CAAE
0061.0.031.000-07).
Este estudo faz parte da primeira fase do projeto e foi realizado numa escola
médica de modelo pedagógico tradicional.
Percurso metodológico da dissertação
Esta pesquisa teve caráter exploratório, de corte transversal, sob a forma de
estudo de caso. Ela faz parte da primeira fase do projeto principal e tem como objetivo
geral identificar como os professores entendem o papel e a influência do ambiente
universitário e do docente no desenvolvimento moral e/ ou formação ética dos
estudantes de medicina. Os objetivos específicos são: (1) analisar como os docentes
entendem o papel da universidade e do docente na formação moral dos estudantes de
medicina; (2) identificar as oportunidades de role taking e guided reflection durante a
graduação de medicina; (3) observar como os docentes entendem e valorizam a
participação dos alunos na vida universitária (órgãos colegiados, vida cultural
universitária, participação política, ativismo estudantil).
Para atingir tais objetivos, foi realizado um percurso metodológico que será
detalhado a seguir, com a proposta de deixar o mais claro possível os caminhos e
58
decisões escolhidos para a análise, além das bases teóricas que serão confrontadas para
a realização dos julgamentos, a partir do material coletado.
A escola escolhida para a realização desta pesquisa estava, na época, em fase de
reavaliação e reforma curricular. Para a abordagem dos participantes, foi realizado um
contato inicial, primeiramente eletrônico e depois pessoal, com o coordenador
pedagógico da Faculdade de Medicina. A proposta da pesquisa foi prontamente
acolhida, e segundo o mesmo, “em momento bem oportuno”, visto que os docentes
estavam em fase de discussão a respeito da reforma curricular. Imediatamente foram
repassados os contatos eletrônicos dos professores a serem entrevistados, que foram
abordados também via email e, depois, por telefonema.
O método de pesquisa foi baseado na realização de entrevista que, segundo
Lüdke & André (1986)78
, tem a vantagem de captação imediata e corrente da
informação desejada, sendo bastante pertinente nas pesquisas em educação. Foi
utilizado um roteiro semi-estruturado, de forma que permitisse ao entrevistado falar
livremente e à entrevistadora, também pesquisadora principal, uma liberdade de
percurso para que pudesse fazer as adaptações necessárias no curso da entrevista.
Os sujeitos escolhidos foram os coordenadores das disciplinas de: Medicina Legal
e Deontologia Médica, Psicologia Médica, Semiologia Médica, Clínica Médica,
Cirurgia geral, Bioética, além do coordenador pedagógico e o diretor da Faculdade de
Medicina. Todos estão genericamente nominados por um código, para que seja possível
ao leitor acompanhar o sentido do pensamento de cada um, mas não os identificaremos
por disciplina pelo compromisso assumido de não os identificarmos pelo nome.
A proposta era se ter um grupo que representasse a voz dos professores da escola
e as políticas da universidade e da escola médica em questão. Assim escolhemos as
disciplinas que tinham o ensino da ética propriamente dita entre seus objetivos e as
disciplinas, ou períodos, onde surge a maior parte das questões éticas e morais
relacionadas ao ensino médico (semiologia, clínica médica, cirurgia e internato médico).
A respeito também do uso da entrevista nas pesquisas sociais e da escolha dos
sujeitos a serem entrevistados, Minayo (1999)79
comenta:
“O que torna a entrevista instrumento privilegiado de coleta de
informações para as ciências sociais é a possibilidade de a fala ser
reveladora de condições estruturais, de sistema de valores, normas e
símbolos (sendo ela mesma um deles) e ao mesmo tempo ter a magia
de transmitir, através de um porta voz, as representações de grupos
determinados, em condições históricas, socioeconômicas e culturas
específicas.”79
(p. 109)
59
As entrevistas foram realizadas em local escolhido pelos entrevistados e iniciadas
após cada entrevistado ler, concordar e assinar o termo de consentimento livre e
esclarecido. (Anexo I)
Percebemos que, de forma em geral, os entrevistados se sentiram muito a vontade
durante as entrevistas e demonstraram muito interesse em participar. O tema, segundo
todos, é de suma importância e de grande preocupação, tanto que após o término das
entrevistas se mostraram interessados em saber mais sobre o tema, inclusive solicitando
a leitura final da dissertação e referências especializadas. Todos os professores tem uma
participação atuante na universidade, tanto em ensino quanto em pesquisa.
Foram realizadas três perguntas (Anexo II) e o registro das entrevistas foi feito
através de gravação e anotações durante a abordagem, e transcrição na semana corrente,
conforme sugerido por Lüdke e André (1986)78
.
Em relação à análise, foi utilizada a técnica de análise temática, baseado na
metodologia de análise de conteúdo, conforme descrito por Bardin80
. Esta análise nos
pareceu mais adequada tendo em vista que:
“a análise de conteúdo é utilizada como um instrumento de
diagnóstico, de modo que se possam levar a cabo inferências
específicas ou interpretações causais sobre um dado aspecto da
orientação comportamental do locutor”80
(p. 140).
Na análise temática, buscou-se os “núcleos de sentido”, cuja presença poderia
significar alguma coisa para os objetivos analíticos pretendidos:
1. As oportunidades de um ambiente universitário democrático entendido como um
espaço onde os sujeitos possam se expressar livremente, sejam em foros formais
(órgãos colegiados) ou previamente acordados (sessão de debates) que permitem
ao estudante de medicina expor as questões éticas implicadas em sua vida
acadêmica universitária. Estas podem ser mais gerais, comum a todo estudante
universitário (as de relação instituição- alunos, as de professor- aluno e entre
alunos), ou mais específico da área médica. Sobre esta última, entendemos que
existem as situações específicas do ensino das profissões de saúde (exemplo:
relação aluno-professor-paciente) e outras que se referem ao cotidiano das
praticas em saúde (conceitos de inicio e fim de vida, cuidados paliativos, etc.).
2. As políticas institucionais de apoio/enfrentamento ou como os professores
entendem de que forma as situações de conflito moral devem ser encaminhadas
a nível institucional ou se elas têm um foro específico para serem encaminhadas.
60
3. A participação dos estudantes de medicina na vida cultural e política
universitária.
Assim, durante a análise das entrevistas, pode-se observar a presença de três
categorias para reflexão: (1) o ambiente de ensino universitário e papel do docente no
desenvolvimento moral, (2) abordagem de situações eticamente problemáticas e (3)
participação da vida política universitária (ativismo estudantil). As três categorias foram
encontradas nas respostas das três perguntas propostas.
62
Entrevistas e análise qualitativa
Foram entrevistados nove professores no período de Maio a Outubro de 2012.
Neste período, ocorria uma paralisação das instituições públicas de ensino universitário
público, que perdurou por 120 dias, o que dificultou muitas vezes o encontro dos
professores na instituição e a impossibilidade de encontro de outros (dois coordenadores
de cursos do internato). Estas perdas não foram consideradas significativas, pois outros
entrevistados faziam ou fizeram parte do grupo de coordenadores do internato. Os
professores entrevistados foram: o diretor da Faculdade de Medicina e os
coordenadores: o acadêmico e os das disciplinas de: Clínica Médica, Semiologia
Médica, Psicologia Médica, Medicina Legal e Deontologia, Cirurgia Geral (internato) e
Bioética. As entrevistas duraram uma média de 30 (trinta) minutos, variando de 13 a 45
minutos.
Considerando o fato do número de entrevistados ser pequeno, não
discriminaremos outros elementos de seu perfil, o que poderia levar a sua identificação.
4.1 O ambiente universitário
Numa leitura flutuante inicial pudemos observar que quando inquiridos sobre
como a universidade poderia ajudar na formação éticaiv
dos estudantes de medicina, os
professores se remeteram imediatamente ao espaço compreendido de sua disciplina ou
departamento, sem referência à universidade. Apenas um entrevistado teve a percepção
do contexto universitário como um todo e da necessidade de uma discussão
institucional. Esta idéia de um curso médico apartado da cultura universitária não é
contemporânea, como pudemos observar no desenvolvimento histórico da cultura
universitária brasileira e mundial. A percepção de um curso médico também
fragmentado, com pouco diálogo entre os departamentos e entre as disciplinas, também
não é novidade.
Anísio Teixeira9 relata que as universidades brasileiras na década de 1960 mais se
pareciam como um conglomerado de faculdades, sem uma idéia de universidade,
conforme observado em outros países, especialmente americano. No Brasil, as
universidades permaneceram fragmentadas e há pouco dialogo entre as escolas11
. Esta
iv Embora concordemos que o termo mais apropriado seria formação moral, utilizamos o termo ética,
pois os entrevistados poderiam estar mais familiarizados como o último. Não houve dificuldade de compreensão à realização das perguntas. Os entrevistados entenderam de imediato que se tratava ao que chamamos de formação moral.
63
cultura também pode ser identificada no campo mais especifico das escolas médicas de
ensino tradicional. Nestas podemos observar um currículo organizado em disciplinas,
entendidas como “um saber especializado, ordenado e profundo sobre uma determinada
realidade específica, deixando, na maioria das vezes, de levar em consideração o todo
que faz parte”46
(p. 106). Isto traz consequências, seja na concepção inicial da formação
dos sujeitos dentro do contexto universitário, seja na formação profissional específica
com pouco espaço para a interdisciplinaridade do conhecimento. Esta questão se torna
mais nevrálgica, quando nos reportamos à formação dos profissionais de saúde, pautada
pelas diretrizes do SUS que prevê a integralidade da assistência, ou a integralidade do
cuidado.
Ao analisar as respostas à mesma pergunta, também não foi considerada uma
novidade, quando três professores (E3, E4 e E5) se remeteram ao seu locus de trabalho
e com o pronome possessivo: “No meu departamento” ou “na minha disciplina”. O
espaço e tempo das disciplinas, como aponta Rego (2003)70
, é demarcado e é causa de
intensas disputas de poder dentro dos diversos departamentos da estrutura universitária,
independente da faculdade.
Também, não causou estranhamento quando perguntamos aos professores: De
que forma a universidade, ou o ambiente de ensino universitário, poderia ajudar na
formação ética dos estudantes de medicina, eles se referiram imediatamente às relações
interpessoais. Estas respostas também podem ser entendidas pelo fato de que na história
da educação médica sempre houve a presença de um profissional mais experiente que se
responsabilizava pelo treinamento de aprendizes mais jovens81
. Como explica Rego
(2003)70
, a prática é considerada o “verdadeiro coração da educação médica” (p.34).
Especialmente os professores de disciplinas com atividades que envolvem o contato
direto com os pacientes (semiologia, clínica médica, internato), enfatizaram a questão
das relações professor/ aluno. Entretanto, como disseram os entrevistados E4 e E5, com
a migração dos professores para as atividades docentes de pós-graduação e pesquisa
(especialmente por conta das mudanças da reforma universitária de 1968, privilegiando
estes campos de atuação), as atividades de ensino prático, onde existem grandes chances
de surgirem as questões de âmbito moral do ensino médico, têm ficado primordialmente
como atribuição dos preceptores81,82
.
E4: “eu acredito nisso que eu te falei: no exemplo (...), mas o que a gente
tem visto nos últimos anos, pelo menos nesses últimos quinze anos, é que os
docentes da faculdade estão progressivamente se afastando da graduação
(...) porque a própria carreira incentiva a pós-graduação. (...) Então, neste
64
momento, o grande exemplo dos nossos alunos não é mais o professor. É o
médico.”
Os preceptores, de acordo com Botti & Rego (2006)81
podem ser conceituados
como “o profissional que atua dentro do ambiente de trabalho e formação, estritamente
na área e no momento da prática clínica em atividades que objetivam o progresso
clínico do aluno ou recém-graduado”81
(p.370). No contexto do hospital universitário da
faculdade de medicina escolhida, os docentes entrevistados entendem que não há
diferença entre o papel de um professor e de um preceptor na formação ética dos
estudantes, afinal todos convivem no mesmo ambiente (espaço físico). Há ainda os que
entendem que todos (equipe multiprofissional) têm influência na formação moral dos
alunos.
E3: “O modo como as pessoas se comportam no exercício de sua prática
assistencial é o grande eixo formador da moralidade, se é que posso dizer
assim, ou da dimensão moral do exercício profissional, da identidade
profissional...eu acho que ele (docente) deveria ter esta responsabilidade,
embora todos os sujeitos (outros profissionais de saúde) sejam participantes
desta construção, da moralidade do aluno(...) eu acho que a responsabilidade
moral seria de salvaguardar o que seja a formação moral do aluno(...) Não
acho que um ato médico praticado por um docente é mais potente do que o
ato médico praticado por um preceptor”.
Botti & Rego (2011)82
em artigo sobre o docente clínico (como o preceptor
envolvido diretamente nas atividades práticas deveria ser reconhecido) e seu papel na
formação moral de médicos residentes, observaram que eles entendiam a preceptoria
como sendo um forte componente na formação ética dos sujeitos, mesma fala
encontrada nas entrevistas realizadas nesta pesquisa.
Oito dos nove docentes entrevistados apresentaram como o núcleo de suas
respostas “o exemplo do docente constituindo o eixo central na formação ética dos
estudantes de medicina”. Esta crença parece prevalecer entre os professores da
universidade. Ou seja, a moralidade é algo que vem de fora do individuo e é apreendido
através da observação e do convívio.
E4: “..o aluno aprende a ser médico no encontro com o paciente, é vendo o
professor lidar com o paciente, todos os contextos éticos deste encontro
entre médico e paciente .....eu acredito no exemplo, os nossos alunos
deveriam aprender com os exemplos de seus professores, exemplo do
professor em ação praticando a medicina”.
65
E2: “... ele já vem com uma formação quase pronta e a condição ética dele
na medicina eu acho que se deve ao exemplo do professor (...) Eles já vem
com uma formação boa ou ruim, mas sempre você consegue mudar um ou
outro conceito do aluno, mas aquilo que está enraizado ali com ele vai ser
difícil. Então acho que você muda isso na atividade profissional
preservando o paciente, o segredo médico, o sigilo, como tratar direito do
paciente, os direitos do médico”.
Esta forma de entender a formação ética encontra eco nas formas empiristas de
construção do conhecimento, conforme descrito por Becker76
, sendo a forma mais
comumente encontrada entre professores de ensino médio e superior de diversas áreas, e
também encontrada por Pontes e colaboradores77
em estudo com professores de
medicina a respeito de suas concepções sobre ensinar, aprender e conhecimento. Ou
seja, os sujeitos chegam às universidades como tábula rasa e “retiram do objeto”, no
caso o comportamento do professor ou dos profissionais de saúde com quem convivem,
o conhecimento ou a cultura médica, sem reflexão sobre a mesma. Outro professor (E2)
inicia sua fala reconhecendo que os alunos vêm com crenças já previamente
construídas, mas não estabelece uma conexão reflexiva com os novos conhecimentos
que eles entrarão em contato na universidade, como na perspectiva construtivista, e
ainda reforça uma idéia de que existe uma ética médica e uma ética não médica, como
se os sujeitos não fossem somente um.
E1: “Eu não acho que somente o exemplo pode contribuir para a formação
ética, mas se dá principalmente por ele (...) os professores dizem o que é
certo na ideologia deles a todo o momento. Vamos falar do currículo oculto
ou paralelo que se passa o tempo todo... eu transmito minha ideologia do
que é certo o tempo todo”.
Outro entrevistado (E1) relembra que nos espaços de ensino, de forma consciente
ou não, os professores apresentam seus valores morais. Portanto, é mais que pertinente
os professores refletirem sobre suas práticas enquanto docentes, na medida em que
entendemos que estamos perdendo um espaço valioso para a discussão e reflexão. Rego
e colaboradores (2004)64
defendem que as escolas “deixem claro que valores morais elas
aprovam e enfatizam” (p. 183), assim como os docentes precisam clarificar através de
um processo reflexivo, o que pretendem sinalizar aos alunos. Normalmente
relacionamos o cuidado às práticas dos profissionais de saúde, mas entendemos que
podemos estender este conceito ao cuidado com os estudantes.
66
Outros, embora ainda enfatizando a questão do exemplo, nos remetem as teorias
de socialização.
E3: “O modo como as pessoas se comportam no exercício de sua prática
assistencial é o grande eixo formador da moralidade, se é que posso dizer
assim, ou da dimensão moral do exercício profissional, da identidade
profissional”
E8: “... o papel do professor é central na formação do médico não apenas
técnico, mas do ponto de vista ético e moral. O problema é que este
professor também não foi formado nesta ética. Então é um ciclo vicioso, que
se perpetua ao longo dos anos. Se você tem como referência um grande
professor que tem um tipo de atitude, você vai tender a ser um médico que
tem aquelas atitudes, aquelas práticas com o paciente. Então como, quando e
onde romper com esta cadeia que se retroalimenta de pessoas que são
formadas sem uma base sólida de ética, sem conteúdo sólido das
humanidades.”
Nesta fala também podemos entender que pode ser o exemplo, ou seja, o processo
de desenvolvimento moral passaria unicamente pela questão da valorização de atos,
comportamentos e características individuais, durante a socialização.
O processo de socialização apresenta duas fases: a primária, que ocorre dentro do
núcleo familiar ou primeiro núcleo social, na qual o individuo se torna um membro da
sociedade e a secundária que é “a interiorização de submundos, ou subculturas
específicas, diretamente relacionadas à complexidade da divisão do trabalho. É
virtualmente inevitável que todo individuo se submeta a algum tipo de socialização
secundária.”70
(p. 52). Assim, os estudantes de medicina, no desejo de fazer parte da
corporação médica, acabam também por apreender a cultura, hábitos e atitudes dos
diversos profissionais com quem convivem ao longo de sua formação, seja no espaço
formal de ensino (a universidade), seja nos espaços extramuros. É importante comentar
que, na atual crise hegemônica da universidade, estes espaços, cada vez mais, se
constituem como o lugar aonde os estudantes irão buscar sua formação. Entretanto,
como aponta Rego (2003)70
, considerando que é a abordagem teórica tradicionalmente
usada, somente “o processo de socialização parece insuficiente para compreender a
complexidade do processo de deterioração moral que hoje atinge os estudantes no curso
médico” (p. 158).
Ainda dissertando sobre a questão do exemplo, Botti & Rego (2011)82
argumentam que: “o exemplo é importante por ser um estímulo para a ação, mas uma de
suas funções é explicitar e discutir valores que humanizam as relações. Estimular o
67
desenvolvimento da consciência crítica, questionando e gerando conflitos cognitivos
para, então, esperarmos o amadurecimento de sua competência moral. Para que a
formação ética não se transforme numa transmissão de valores e códigos, o preceptor
deve utilizar das situações diárias de seu próprio local de trabalho, observando e
discutindo os comportamentos e atitudes com o residente.”82
(p.79). Esta afirmação é
perfeitamente cabível, ao nos transportar para o contexto de ensino na graduação,
semelhante aos da residência médica, em especial o internato médico.
Sobre a fala do entrevistado E8, que aborda o distanciamento da medicina da área
de humanidades, lembramos que propostas para aproximá-las das escolas médicas não
são algo inédito. Outras iniciativas vêm sendo introduzidas ao longo dos últimos vinte
anos, como disciplinas de ética médica, bioética e psicologia médica, empregando
metodologias ativas a até com alterações nos modelos pedagógicos, como ocorreu em
várias escolas médicas com a mudança do modelo tradicional para PBL- Problem Based
Learning83
. Entretanto, talvez por conta do pequeno número de docentes capacitados e
de carga horária, as discussões sobre ética e moralidade na graduação de medicina estão
restritas ao formato de disciplina, no caso a disciplina de ética/ bioética, prevalecendo a
aula, como estratégia de ensino 57
.
Rego e Schillinger-Agati (2011)60
argumentam que não se tem percebido uma
mudança efetiva nos médicos formandos. Acreditam que uma das explicações seja,
conforme se referem alguns professores (E1 e E3), o entendimento frequente de que a
moralidade está exclusivamente no domínio afetivo, o que leva os responsáveis pelas
políticas pedagógicas das instituições a reforçarem atividades com este enfoque. Rego
(2004)64
comenta que apesar da teoria construtivista ser bastante aceita e propagada nas
discussões sobre o ensino e aprendizagem de conhecimentos técnicos, seu entendimento
no processo de formação moral ainda não é tão difundido. Assim, para o
desenvolvimento de práticas educacionais efetivas para o desenvolvimento moral, é
necessário que o complexo formador seja capacitado a fim de compreender todos os
aspectos do desenvolvimento moral.
E8: “... eu acho que a melhor coisa que nós podemos ensinar aos nossos
alunos é, diante de cada paciente, pensar o seguinte: o que eu gostaria que
fizesse comigo caso eu tivesse com o problema deste paciente. Ou então
meu filho, minha mãe, meu pai.”
A máxima da moralidade cristã “faça ao outro o que gostaria que fizessem a ti”
deve ser percebida como uma orientação para a moral convencional, conforme descrito
68
por Kohlberg em seus estágios. Neste nível, os sujeitos tomam decisões baseados em
princípios internos, porém tendo como foco norteador a manutenção de uma ordem
estabelecida externamente, no caso a crença religiosa. Entretanto, compreendemos que
o foco ainda permanece na moralidade do agente e não está na relação. Rego (2003)70
,
ao entrevistar estudantes de medicina, observou falas semelhantes ao perguntar o que é
ser ético: “ser ético é se pôr no lugar das pessoas e fazer o que gostaria que fosse feito
com você” ou “é tratar todos como gostaria de ser tratado”, ou ainda “coloco-me na
posição do paciente, no tocante à sua doença e consequências psicossomáticas, porque
uma pessoa bem de saúde comporta-se diferente de uma enferma e mesmo as pessoas
normais podem entrar em situação de estresse” (p. 136). Assim, conforme conclui este
autor, na análise das decisões a respeito do outro, lhe é negada a voz, sendo que o
agente moral (no caso o médico) utiliza unicamente seus valores para a tomada de
decisão.
Com a proposta de que metodologias diferenciadas precisam ser oferecidas para
o desenvolvimento da capacidade de julgamento moral dos estudantes universitários, E9
faz uma reflexão a respeito da criação de espaços apropriados para este processo.
E9: “... criar oportunidades de discussão, de reflexão sobre o cotidiano,
sobre todas as questões éticas relacionadas com a vida profissional do
sujeito (...). Precisa-se adotar estratégias pedagógicas que façam o sujeito
refletir sobre essa ponte entre o cotidiano. Pode não ser o cotidiano dele,
mas é um cotidiano que ele sabe que vai enfrentar na vida profissional.(...) a
discussão ética precisa estar o tempo todo em cima da mesa, o tempo
inteiro. Para deixar muito claro que qualquer decisão que a gente toma tem
um componente moral. Então é preciso que se explicite. Assim eu acho que
a gente dá menos chance para os preconceitos, para as discriminações, para
as injustiças de uma maneira em geral”.
Na fala deste entrevistado podemos encontrar alguns elementos que corroboram
tanto com os objetivos das iniciativas da UNESCO para ao ensino superior 24,25,26,27
, em
especial o Plano Mundial para a Educação em Direitos Humanos8 (ao abordar a
promoção da compreensão, tolerância e igualdade de direitos), assim como, com as
teorias cognitivistas de desenvolvimento moral de autoria de Kohlberg e, especialmente,
Lind. Em ambas as teorias, as estratégias pedagógicas para o desenvolvimento moral, ou
para o desenvolvimento da capacidade de juízo moral, se baseiam em criar
oportunidades para que as questões éticas ou morais, que surgem no âmbito da vida
acadêmica, possam ser expostas e discutidas de forma livre e democrática. A percepção
de que, nas ações humanas, ou seja, que em cada atitude existe um componente moral é
69
bastante pertinente e que com a qual concordamos. Existe uma intenção subsidiada por
um valor de bom ou ruim, de bem ou mal nas ações humanas, especialmente se estamos
falando no contexto das relações que são estabelecidas numa situação de ensino84,85
.
Lind38
pontua que mesmo quando temos boas intenções, nós geralmente não nos
comportamos de acordo com nossos “ideais morais”. Este gap entre intenção e ação é
mais perceptível quando estamos vivenciando um dilema real. Assim, a questão não é a
resolução do conflito ou a relação entre a razão e o comportamento, mas o manejo de
“diálogos internos” que circundam uma situação, em que existe um componente moral.
As emoções surgem no primeiro plano, quando nos confrontamos com um conflito real.
Surge, então, a primeira questão: como lidar com as emoções numa situação dilemática,
a fim de não se perca o foco na razão crítica? Assim, Lind38
entende que não podemos
esquecer o lado emocional quando estamos falando sobre desenvolvimento moral
(“Teoria do duplo aspecto”).
A partir desta teoria, Lind propõe que nas atividades que tenham como finalidade
específica o desenvolvimento moral, se estimule uma razão dialógica como ferramenta
para a resolução de conflitos e construção de uma personalidade democrática39,40
. O que
seria isso? Desenvolver a capacidade de ouvir o outro, dialogar, reconhecer o direito do
outro em ser e pensar diferente. Para tal é necessário um professor antes de tudo
capacitado. De acordo com o Método Konstanz de Discussão de Dilemas Morais40
,
proposto por este autor, além da necessidade de um ambiente democrático, o professor
precisa estar capacitado para, por exemplo, organizar as emoções que surgem durante os
debates.
E9: “... tem que ter o momento de discussão ética. Quais são as questões que
o sujeito tem que saber? Tem que ser competente? Então, precisa ser
ensinado. (...) É possível refletir e essa reflexão não é algo individual, que
você tenha que dar conta para sua religião, para sua família ou para quem
quer que seja; você tem que dar conta é para a sociedade de uma maneira
em geral, você tem que compartilhar com seus pares, (...) com aqueles que
você esta atendendo. Enfim, a discussão ética, ela tem que estar em cima da
mesa, clara! E aí tem que ter momentos específicos para isso...”.
Esta prática deve ser fomentada na universidade, no momento que se discute sua
função de formar pessoas. Muito mais que formar engenheiros, advogados, médicos. A
universidade precisa tomar para si o papel de formar cidadãos, com atitudes e valores
orientados para a vivência democrática, o desenvolvimento da autonomia e para o
principio de justiça equitativa64
.
70
Entendemos que um aluno ativo, inserido num ambiente acolhedor e que o
estimule com desafios cognitivos, teria as ferramentas para gerenciar seu
desenvolvimento moral. Entretanto para que isto ocorra, é necessário criar este ambiente
e este não é um caminho pessoal ou de uma disciplina ou um departamento. Isto é um
processo institucional64
, conforme também defendido pelo docente E9.
E9: “Então, é preciso mobilizar as faculdades de medicina para que elas
possam oferecer aos alunos um ambiente mais condizente com esta
perspectiva... Não é uma questão de exemplo do professor, não é uma
questão individual, diria que é uma questão institucional”.
A urgência de se estabelecer estes espaços não é percebida de agora. Não foi por
mera coincidência que a World Medical Association, sugere a implantação, de forma
obrigatória, do ensino da ética e dos direitos humanos nas escolas médicas. Há muito, já
se percebia que havia um “desserviço” por parte do ensino médico na formação ética
dos estudantes de medicina. Tanto que dois docentes, num processo reflexivo durante a
entrevista, demonstrando uma grande consternação, indagam sobre uma possível erosão
moral durante o curso médico.
E3: “Eu acho que dentro de um cenário de prática, (...) onde o aluno vai
aprender a exercer a pratica médica, o docente deveria chamar para si a
responsabilidade de apreciação, de como a prática esta sendo executada e se
a formação moral do aluno está, portanto, sendo bem construída, bem
orientada ou enfim a melhor palavra talvez seja bem salvaguardada, porque
eu não sei o quanto há de uma deformação e o quanto há de uma formação
insuficiente. Eu acho que as duas questões estão em jogo.”
E5: “Na verdade a gente vive dos exemplos (...) essas pessoas que nos
inspiram...mas o aluno, durante a graduação, vai mudando as perspectivas,
porque eu não acredito que alguém pense em ser médico já com isso na
cabeça...eles entram de uma forma e saem inteiramente modificados”.
Lind (2000)41
em estudo onde avaliou a competência de juízo moral de estudantes
universitários na Alemanha através do Moral Judgment Test, observou uma diminuição
nos scores de competência moral nos estudantes de medicina. Segundo o autor, as
faculdades de medicina, embora provenha o aluno de conhecimentos técnicos, ao se
afastar das humanidades, negligenciam a formação moral dos estudantes,
desconsiderando o fato que quanto mais próximos das biotecnologias os médicos se
encontram, mais decisões a respeito da morte, vida, qualidade de vida dos pacientes,
terão que tomar. Ou seja, decisões com um alto componente moral.
71
Lind (2000)41
, neste estudo, também afirma que os estudantes de medicina
adoram o que fazem e tem boas intenções, além de ter altos ideais morais, entretanto
como têm uma formação enfocada puramente na técnica, ao se depararem com dilemas
morais reais ou os negam, ou os interpretam como uma questão técnica, procurando
nela, a resolução de tais conflitos. Este dado também foi encontrado por Rego (2003)70
,
que entrevistando estudantes de medicina, observou que para alguns “existe uma
verdade científica inabalável que justifica todos os seus atos, por ela própria”. (p.130)
Rego (2003)70
, ao perguntar aos estudantes de medicina de uma universidade se já
haviam vivenciado alguma situação em que uma questão ética estava implicada,
encontrou diversos depoimentos de desrespeito ao estudante, a membros da equipe
multiprofissional de saúde e aos pacientes. Percebeu um processo de formação, que
classificou como desumanizante e alienante, que ensina os estudantes a se distanciarem
dos pacientes, por uma desconsideração do outro como sujeito capaz de pensar e decidir
sobre seu destino, em suma, em suas palavras “a coisificação do paciente” na percepção
dele como objeto de trabalho.
4.2 Identificação e condução de situações eticamente complicadas
A abordagem de situações conflituosas vivenciadas durante o período escolar vem
ganhando espaço além de ser considerado um dos grandes desafios dos gestores e
professores da educação básica 68
. Entretanto, ao abordar a questão do ensino superior,
exceto na ocorrência de conflitos extremamente violentos, encontramos poucos artigos
que tratem deste assunto. Quando abordados, estão relacionados ao “trote” entre alunos.
Ao serem inquiridos como eram conduzidas as questões eticamente complicadas
que surgiam na escola de medicina, observamos quais eram as situações identificadas
por estes docentes como tendo um alto teor de conflito moral e como elas eram
conduzidas, dentro do ambiente universitário.
Todos os docentes diagnosticaram situações que julgavam merecer uma
abordagem mais específica. Estas situações envolviam relacionamento entre: professor/
aluno; aluno/ aluno; professor/ professor e ainda as que envolviam professor/ aluno/
paciente nos ambientes de ensino e aprendizagem, geralmente no hospital universitário.
Situações identificadas como eticamente complicadas
A maioria das situações identificadas se refere às relações entre professores e
alunos, demonstrando um alto teor de violência de ambas as partes. Entretanto, por
conta de uma situação hierárquica, o que observamos é que nesta relação de poder do
72
professor e também de corporativismo (palavra utilizada por um dos entrevistados), o
professor acaba com um poder que poderíamos classificar como incoercível, caso não se
tenha uma proposta institucionalizada de definição dos espaços.
E1: “muitas vezes... eu fico sabendo de práticas, não sei se poderia chamar
de assédio moral ou bullying de determinados professores em relação aos
alunos (...) a gente pede aos alunos, por favor, me deem um documento por
escrito, me deem algum tipo de permissão para que eu possa intervir junto
ao professor. Não conseguem, porque depois esse professor vai prejudicá-
los na nota, porque depois eles vão fazer concurso para residência, os
professores vão ser os avaliadores deles, porque depois eles vão querer
seguir a profissão aqui na faculdade ou no hospital e os professores não vão
aceitá-los,(...), por mais que eu diga que desse jeito eles estão
compactuando, desse jeito eles vão ser um dos que depois vão fazer a
mesma coisa...”
E4: “... eu estou falando de uma coisa que a gente não dá a menor
importância: as questões éticas de sala de aula entre professor e aluno. Isso
praticamente é ignorado. Basicamente o professor é o mestre sábio e o aluno
o receptor da sua sabedoria (...) então algumas vezes chegam queixas dos
alunos de que o professor é grosseiro com o paciente, que expõe o paciente
sem cuidados, sem o necessário respeito.”
E9: “... o que é absolutamente necessário, imprescindível que a questão da
violência ela seja colocada em foco. Essa relação do professor e do aluno ela
é uma relação de poder sem dúvida nenhuma (...) porque ele é tão absoluto,
que a violência é absolutamente neutralizada (...) esse professor é o cara
que vai abrir caminhos pro outro, e ele sabe disso, e o estudante sabe disso,
o estudante está absolutamente na mão do outro.”
Rego (2003)70
, entrevistando alunos de um curso médico, identificou diversas
situações de violência nesta relação que deveria ser pactuada de forma afetiva e
respeitosa, sendo que o professor deveria ter como norte a percepção de sua influência
sobre os alunos. As situações mais relatadas pelos alunos foram: falta de compromisso
com o ensino, professores que se privilegiavam de uma situação hierarquicamente
poderosa para ofender e desrespeitar o aluno, exposição do aluno a situações vexatórias.
Esta realidade, presente em grande parte das escolas médicas, pode ter como causa
a pouca reflexão dos professores sobre seu papel no ensino e na vida do estudante de
medicina. Os desdobramentos deste tipo de atitude, muitas vezes justificada como
forma de preparar ao aluno para as dificuldades da profissão médica, está associado a
stress desnecessário, sintomas depressivos, aumento da chance de suicídio nesta
população e perpetuação de uma cultura de violência nos locais de ensino. Em relação
aos estudantes das profissões de saúde ainda existe um agravante. Como estão durante a
73
maior parte de seu processo formativo também em contato com os serviços de saúde,
ainda ficam como expectadores, ou então, submetidos à violência tão conhecida entre os
trabalhadores da saúde, em especial o assédio moral71
.
Azevedo (apud Lima)86
em estudo sobre humilhações sofridas por acadêmicos de
medicina encontrou que 76% dos estudantes se sentiram depreciados de alguma forma,
42% severas críticas e 40% humilhações perante seus colegas. Lima (2012)86
faz uma
análise do poder de sedução do conhecimento médico sobre os estudantes de medicina.
Seduzidos, tais quais as vítimas de do mito do vampiro, sentem que podem transgredir a
morte. Com a “promessa” da eternidade do conhecimento, muitos negam os ambientes
hostis, pelos quais são impostos a vivenciar.
No que diz respeito às relações hierarquicamente estabelecidas entre docentes e
preceptores/ alunos, reforça-se a idéia que estratos superiores teriam poder sobre os
inferiores, submetendo-os à sua vontade. Este tipo de perspectiva também pode ser vista
nas relações entre estudantes mais antigos (veteranos) e estudantes novos (calouros).
Entretanto, também foi observado nas entrevistas, que o “clima” de violência se torna
tão forte, que o direcionamento se inverte. Ou seja, alunos agredindo professores.
E1: “eu já presenciei uma ofensa em público (...) um aluno ofendendo o
diretor da faculdade, em termos baixos. Então, tem a violência dos dois
lados. Outro, que deu nota baixa para um grupo de alunos, foi assediado na
porta de seu automóvel... bloquearam a entrada do professor no carro,
ameaçando-o. (...) Como se lida com isso? Tentando medidas coercitivas.
Quanto a trotes, a gente está para aprovar na congregação, uma monção de
repúdio seguindo aquele texto que está em tramitação no congresso
extinguindo a pratica de trote como é feito hoje em dia: humilhação,
exploração, obtenção de fundos para os veteranos”.
E6: “..eu não consigo enxergar os limites do que é disciplinar, do que é
ético, que muitas vezes se confundem, e há uma postura muito arrogante de
ambas as partes, dos alunos com relação a cadeira, de muitos professores
com relação ao aluno e eu, nesse instante, não consigo identificar onde é o
problema ético, onde é o problema de falta de educação, eu confesso que
esse momento, para mim, é confuso”.
Zuin (2011)87
comenta que muitos ainda se esforçam para manter um
entendimento que a universidade, sendo um local de produção de cultura e
conhecimento, estivesse apartada das atrocidades produzidas na e pela sociedade.
Entretanto, esta, desde suas origens medievais sempre teve dentro de seu espaço físico,
manifestações de violência (física e/ou moral) nas relações entre mestres e alunos e
entre alunos, em especial o trote. As humilhações sofridas dentro dos espaços
74
universitários criam um terreno profícuo para um ressentimento, que aos poucos
desembocam em outras manifestações de violência, como às vezes impetradas a outros
professores, ou então, a outros estudantes, que são percebidos em condições mais
vulneráveis87,88,89
. Entretanto, é necessário compreender que esta leitura é baseada numa
perspectiva histórica, com o olhar dos tempos atuais. O que hoje entendemos como
violência, poderia não ter sido, anteriormente, interpretada como tal.
E9: “... isso é uma caixinha preta, eles (alunos) não falam muito sobre isso,
eles se submetem e acabou, e acham tudo isso muito natural, é porque os
próprios estudantes aceitam isso com uma naturalidade enorme, é assim, o
ambiente é esse. Então assim, eu acho essa relação, uma relação difícil, uma
relação violenta hoje, uma relação total e absoluta pro professor, não há
nenhuma, nenhum direito né? Nenhuma, nada pro estudante, o estudante
sabe que qualquer coisa que ele faça ele vai ter que explicar pro resto da
vida, então ele aceita toda violência”.
Villaça & Palácios (2010)69
, em estudo onde analisaram como o tema trote
aparecia nas falas de alunos e professores de uma escola médica, demonstraram que
tanto o assédio moral como a violência são temas aparentemente ausentes na pauta de
discussões do ensino. Apesar de relatarem situações claras de abuso, bullying ou de
assedio moral, não reconheciam diretamente como tais, apresentando um tom de
justificativa, entendimento e legitimidade. As autoras entendem que a inexistência de
reflexão sobre o tema no espaço universitário, a negação da violência e um sentimento
de impotência podem estar associados a estes resultados.
Warth & Lisboa (1999)88
entendem que o trote foi a fórmula encontrada pelos
estudantes, especialmente de medicina, direito e engenharia, onde eles sempre foram os
mais violentos, como uma forma de fazer frente a relação professor/ aluno.
Infelizmente, somente as situações extremas acabaram suscitando algum tipo de reação
das autoridades, sob a forma de punições e proibições sumárias. Entretanto, como
pontuam os autores, baseando-se em pesquisa sobre como o jovem percebe a violência e
a cidadania, fala: “a violência aparece como uma negação do direito do outro e emerge
quando as noções de cidadania não estão consolidadas, agravando-se em condições
sociais e econômicas precárias”88
(p.114).
Akerman e colaboradores90
, em carta a um editor de revista, propuseram uma
reflexão profunda sobre o tema, fazendo algumas colocações bastante pertinentes: a
intimidação e violência que ocorrem na recepção dos calouros se mantem ao longo do
ano ou do curso médico; relaciona este comportamento ao mesmo que acontece nas
75
relações professor/ aluno; os calouros que não se submetem as humilhações ficam no
ostracismo, ficando a parte do corpo estudantil; não são muitos os que abusam física e
moralmente dos colegas, mas são muitos os que se calam; alguns professores se calam
diante destes episódios, por considerarem natural; consideram que o bullying já
retratado nas escolas de educação básica encontram formas semelhantes nos cursos
universitários.
E1: “Ah! Certas atitudes de nossos alunos no OREM (Olimpíadas Regionais
dos Estudantes de medicina) nos espantaram, em termos da violência
cometida contra alunos de outras faculdades. Violência de palavras, muitas
vezes de atos, atos de terrorismo, tem o esquadrão, auto intitulado,
esquadrão de bombas que se caracteriza por aterrorizar outras pessoas. Isso
não pode... isso é polícia pra quem precisa de polícia.”
E9: “Tem uma violência... antiética e mais crua. Aí um professor dizia
assim: “- Pois é, eu já vi... a gente acabou percebendo na ocasião, que uma
aluna ficava sempre muito acuada e a gente percebia que ela tava dando
cola. Até que, a gente acabou percebendo, investigando a coisa .... essa
moça, ela era assediada pelos colegas. Ela era completamente humilhada.”
Ali havia bullying, sem nenhuma dúvida! Ela era obrigada, não só a passar
cola para os alunos (...).- E aí? Nada! Como nada? “- A gente não sabia!”
Eu estou chamado atenção desde a sua primeira pergunta, para a questão
institucional. É absolutamente imprescindível que as questões éticas, elas
tenham uma abordagem institucional(...) Não tem jeito, entendendo a
universidade como um espaço de democracia.”
E8: “Quando eu entrei nessa universidade, eu era um aluno perdidaço,
depois como professor, o mesmo sentimento. A gente entra aqui sem
nenhum acolhimento .não sabia onde eram as coisas da graduação, outras
coisas não sabia, tinha que ficar perguntando ou seja a instituição não me
acolheu.”
O que observamos é um contínuo ciclo de pouco acolhimento e violência. As
escolas médicas se veem diante de uma situação extremamente complicada e as
soluções apresentadas, até o momento, parecem que não são as mais eficazes, pelo
menos no que entendemos do que seja a construção de um ambiente universitário
voltado para a democracia e a formação de sujeitos moralmente desenvolvidos, com
capacidade de refletir criticamente sobre o cotidiano.
Alguns entendem que se trata de um assunto unicamente relacionado à justiça,
atribuindo um caráter judicial e verdadeiramente um “caso de polícia”. Outros entendem
que se trata de uma situação psicologicamente problemática do aluno, devendo este ser
encaminhado para serviços especializados de atendimento a vitimados. Não estamos
negando os aspectos jurídicos e de saúde envolvidos. Mas, sem uma reflexão crítica e
76
profunda sobre os fatores envolvidos neste processo, não será possível colocarmos na
pauta da universidade, os Direitos Humanos, por exemplo.
Como não existe uma política pedagógica de enfrentamento destas situações,
buscam-se as formas de resolução dos conflitos unicamente por meios disciplinares. Há,
ainda, os docentes que propõem uma discussão inserida numa atividade pedagógica.
Entretanto, não se deixa claro, quais seriam as metodologias e que teorias estariam
subsidiando tais abordagens.
E3: “Eu acho que a gente tem que ter um certo cuidado de não patologizar o
estudante de medicina. Eu acho que a medicina é uma profissão muito
exigente, a formação é um percurso muito exigente, eles são muito jovens.
(...) e eu acho que a gente ajuda melhor dentro de um cenário pedagógico. É
lógico que haverão casos que não vai se dar conta.(...) se a faculdade tivesse
na sua estrutura curricular espaços de reflexão, para que o aluno pudesse
refletir com seus pares e com orientadores capazes de conduzir uma boa
discussão, eu acho que a gente patologizaria menos o estudante de
medicina, a gente cuidaria de um modo geral melhor do nosso ambiente em
geral, afinal de contas estamos todos nesse ambiente e eu acho que grande
parte das angústias poderiam ser usadas para reflexão dentro de um contexto
pedagógico”.
Resolução dos conflitos e oportunidades de role taking e guided reflection
A sociedade e a universidade se veem em estado de perplexidade quando algum
fato mais violento ocorre dentro dos campi universitários. Entretanto, na maioria das
vezes buscam-se soluções mágicas, como uma “pílula para dormir”86,88,
.
Não identificamos nas falas de nossos entrevistados que metodologias seriam
utilizadas nas soluções “locais” de enfrentamento de situações eticamente complicadas,
conforme descrito pelos docentes entrevistados. Não há relato de uma discussão mais
aprofundada sobre os eventos, ou se são utilizados em alguma situação de ensino que
tenha como finalidade a promoção do desenvolvimento moral.
Ao falarem sobre a abordagem dos problemas que surgem no contexto de ensino
e aprendizagem, apresentam diferentes colocações, não havendo uma uniformidade. Ou
que elas são resolvidas no local, no momento do conflito, e caso não consigam ser
resolvidas são encaminhadas a instancia superior, coordenação do departamento,
coordenação acadêmica, ou então, para a direção da escola de medicina. Não
observamos oportunidades de se discutir de forma democrática as situações complicadas
que surgem seja nas relações entre o corpo docente e discente, nas relações entre os
profissionais de saúde ou entre estes e o usuário do sistema de saúde. Não houve relato
77
de oportunidades de utilização das técnicas de role taking e guided reflection. Assim
como não há relato de uma diretriz institucional, ficando os professores responsáveis
por tomar as decisões, baseados unicamente em seus princípios morais, sem muitas
vezes, passar por uma reflexão.
E1: “A abordagem é polícia pra quem precisa de polícia, para atos violentos
medidas coercitivas, mas esperando contar sempre com a possibilidade de
conversar”
E1: “ Ah! Tentamos conversar, conversar e conversar. No momento estamos
chegando a uma situação bastante delicada (...) em que a postura dos alunos
da faculdade daqui nos parece muito elitista, tentamos mostrar isso pra
eles.”
Ou então, demonstram que pode existir uma tendência corporativista:
E5: “A gente tem que tentar resolver (...), tentando não ser parcial, usando
realmente os fatos. Porque sempre entra o lado humano e a gente tende a
tomar partidos, (...) a gente tem que ter muito cuidado pra não fazer pré-
julgamentos ou, às vezes, a gente já julgou porque a gente já conhece, já
houve outras situações”.
Comentam sobre as dificuldades de se abordar o docente:
E8: “Os docentes acham que “está me dando aula de moral”, “está me dando aula
de ética” (...) Mas, pelo menos, é um dos passos dessa desconstrução .....mostrar
claramente as regras e que é questão de regimento da universidade, que é
regimento disciplinar”
A não existência de um projeto institucional de abordagem da formação moral e
das balizas éticas que a universidade pretende adotar dificulta construir espaços
democráticos e estabelecer relações humanas que tenham os Direitos Humanos como
eixo norteador. As relações entre alunos e professores, calouros e veteranos, entre os
profissionais de saúde e entre estes e usuários do sistema de saúde tendem a ficar
desiguais, ficando os indivíduos situados em patamares mais inferiores da hierarquia
institucional sujeitos a situações de violência, e os de patamares mais altos, com a
sensação eterna de impunidade91
.
E9: “... aquele que é o mau professor tem que ser punido de alguma
maneira. Há uma questão institucional nessa estória, não tenha dúvidas, a
responsabilidade é institucional do meu ponto de vista, a instituição não
pode permitir. Por outro lado, essa relação próxima com o aluno é
78
absolutamente indispensável para formação do aluno, para formação do
médico (...) o manejo de informações, o manejo de buscar o concreto,
analisando os professores, ir aprendendo, ver como o outro faz, enfim, essa
relação próxima é necessária...”.
4.3 Participação na vida política e cultural universitária
O campo político de atuação dos universitários brasileiros, até a década de 1980,
quando houve a retomada da democracia no Brasil, esteve fundamentalmente ligado ao
movimento estudantil de resistência a ditadura militar. As mudanças que ocorreram
tanto no Brasil como no mundo deram um novo entorno aos jovens que hoje frequentam
o campus universitário. Parte desta mudança está associada ao desencanto com as
instituições públicas, cada vez mais sucateadas, ao clima competitivo existente,
especialmente nas escolas médicas, de direito e engenharia, onde predominam,
especialmente nas universidades públicas, jovens advindos da classe média alta da
sociedade brasileira.
As poucas oportunidades de discussão dentro do ambiente acadêmico, com as
escolas separadas, o pouco entendimento da universidade como um local para a
formação de sujeitos reflexivos, produzem igualmente um distanciamento de um ideal
universitário e da vivência de uma democracia participativa.
Participação nos órgãos colegiados e representação dos alunos
Órgãos colegiados são aqueles em que há representações dos diversos
componentes de uma organização, independente de sua hierarquia, com finalidades de
consulta ou deliberação. Durante o processo da Reforma Universitária de 1968, apesar
de argumentos contra a participação estudantil nos órgãos colegiados da universidade, o
GTRU (Grupo de Trabalho da Reforma Universitária) considerou pertinente reforçar a
participação dos estudantes, a fim de não “fomentar um clima de desconfiança e
hostilidade”, visto que estávamos num dos períodos mais conturbados no país, em
virtude da ditadura militar92
.
O movimento estudantil se organiza nas universidades através do DCE- Diretório
Central dos Estudantes, que representa todos os alunos da universidade, e os CAs
(Centros Acadêmicos) ou DAs (Diretórios Acadêmicos) que representam os estudantes
de cada faculdade, instituto ou curso. Cabe às entidades direcionar e prover as decisões
de acordo com as demandas dos grupos que representam. Outra função se deve a sua
participação como representantes dos discentes nos órgãos colegiados das faculdades e/
79
ou universidades, como as congregações e o conselho universitário. Uma das grandes
questões que gera tensão é o direito a voto e o número de participantes dos
representantes estudantis92
.
Quando inquiridos sobre a participação dos estudantes nos órgãos colegiados da
Faculdade de Medicina, os professores foram unânimes em afirmar a quase nenhuma
representação dos estudantes, exceto naquele período quando ocorriam as entrevistas
desta pesquisa, devido a uma situação de “crise” na Universidade por conta da vinda de
um grupo de estudantes de outro campus, o que, segundo os professores, os alunos
consideravam que iria prejudicar o aprendizado deles.
E1: “Não usam, não usam. Eles tem voz, não me lembro se tem voto, não
me lembro na congregação e no conselho departamental eu vi uma vez em
sei lá em cinco anos .....mas é uma crise. Se tem uma crise vão (...).”
E5: “Até a chegada dos alunos de (...) era negativa, não estavam se
importando com nada. Resolveram achar que o hospital está péssimo, fazer
alguma coisa que realmente demonstrasse a insatisfação, com a chegada de
mais gente. Ah, nós já estamos com migalhas, alto lá, o hospital já está
muito ruim.”
E8: “... mas há uma preocupação muito com as questões mais gerais que
atinge nossa sociedade e muitas vezes não focam nas questões o
compromisso do órgão docente, o professor falta, não vem, não há nenhuma
sabe revolução, nenhuma revolta...”
E7: “Existe esse espaço, mas é muito pouco ocupado, muito pouco
estimulado. Infelizmente existe hoje uma representação estudantil
completamente comprada pelo governo, não faz protesto, não se indigna ....”
Da Rosa (2006)93
entende que o movimento estudantil do século XXI encontra-se
“perdido, sem rumo, sem saber ao certo qual o seu papel, sem saber como agir, onde
atuar”. Vivendo hoje numa democracia consolidada, dos movimentos sociais, sindicais,
das ONGs e da globalização, o autor entende que o movimento estudantil se esvaziou,
justamente porque não consegue perceber a sua função. A autora entende que a questão
que não pode deixar de nortear os líderes estudantis é: “Quais são os problemas dos
estudantes? O que os estudantes querem ou precisam?”. Da Rosa (2006)9
entende que
existem alguns equívocos nos movimentos estudantis, que se dizem democráticos,
quando tomam posições politico partidárias. Este autor cita Vladimir Palmeira em
discurso, no final da década de 80:
80
“Primeiro, é preciso que o movimento estudantil priorize as questões
da universidade. Segundo, e em conseqüência, as entidades devem
representar os estudantes e não só setores mais avançados. Você tem
que traduzir as expectativas, os anseios do conjunto da massa
estudantil. Terceiro, é necessário encontrar, em cada momento, a
articulação entre a luta sindical e a luta política, evitando a
partidarização do movimento. Por exemplo, em nosso propagandismo,
tendíamos a passar coisas que refletiam nossas concepções partidárias
e não as que expremiam o movimento. Isto é desrespeitar a
autonomia, a representatividade das entidades. Recentemente no
Brasil houve um congresso estudantil que discutia se devia se
pronunciar a favor do PMDB ou do PT. Um absurdo. Depois
decidiram não escolher nenhum dos dois, mas tiraram uma resolução
contra votar no PDS. Outro absurdo. Não é assim que uma entidade de
massa faz política. (...) Já vi alguns murais estudantis em faculdades
que se fala de tudo, da Babilônia a Israel, da luta de classes a guerra
atômica, mas nenhuma palavra sobre as reivindicações estudantis. O
estudante tem uma luta que termina sendo política, de qualquer jeito,
mas não se trata de impor a linha de nenhuma organização, de nenhum
grupo ou partido político.”93
Entendemos que as reflexões a respeito das questões políticas externas devem fazer
parte das preocupações da universidade, no caso das organizações estudantis.
Entretanto, a dificuldade em se perceber as necessidades internas pode ser vista como o
resultado de um processo, onde a participação política passou a ser vista como algo que
não pertence à universidade.
Considerando outro ponto de vista, um dos docentes entrevistado entende que a
não articulação das representações estudantis pode estar relacionada às questões de
hierarquia de poder entre os alunos, dentro da própria universidade. Além do fato, de
efetivamente não representarem os interesses dos alunos, não conhecem os problemas
internos dos estudantes e não buscarem soluções para os problemas que eles enfrentam.
E9: “A gente fez uma discussão de violência. É interessante porque
especialmente nesse ponto de vista, não há, ou pelo menos não houve, da
parte das lideranças (estudantis), nenhuma familiaridade com a discussão,
não houve nenhuma mobilização dessa turma. Algo para dizer assim: nós
estamos aqui pra defender os alunos, nada disso... mas é assim mesmo,
porque mesmo dentre os estudantes tem competição... essa estrutura de
poder, ela se reproduz nos alunos. Então, você tem os veteranos, que são
donos dos calouros, ou seja, essa estrutura de violência, de poder, ela
também se reproduz.”
Participação em atividades extracurriculares.
As atividades extracurriculares podem ser entendidas de diversas formas: Galli
apud Rego (1994)94
define como estágio extracurricular “todas as atividades de prática
81
clínica ou cirúrgica cumprida pelo aluno sem que esteja sob os auspícios e direção da
escola”. Como currículo paralelo, identifica-se “conjunto de atividades extracurriculares
que os alunos desenvolvem, subvertendo, na maioria das vezes, a estrutura curricular
formal estabelecida pela faculdade” (p.3). Outro termo habitualmente utilizado nas
definições de atividades extracurriculares é o currículo oculto. O mesmo autor define
que o currículo oculto “consistiria na transmissão de uma cultura particular através de
processo de identificação” (p. 25).
Retornando ao contexto atual das universidades, Santos21
, ao dissertar sobre as
finalidades das universidades, comenta que estas permaneceram praticamente intocadas
até a década de 1960 quando passaram a ser ensino, pesquisa e prestação de serviços.
Para a análise desta categoria, como os docentes entendem e valorizam as atividades
extracurriculares, gostaríamos de salientar as funções de: produção de mão de obra
qualificada para o mercado e educação e treinamento altamente qualificados.
A introdução maciça das biotecnologias e a quantidade imensa de conhecimento
produzido pelas ciências biomédicas, em especial, nos últimos 50 anos, deixariam
perplexo qualquer jovem universitário proveniente das nações medievais, ou então, até
mesmo o próprio Humboldt. Podemos entender que existe uma perspectiva de que a
medicina deixou de ser uma ciência humana que se apoia em outras ciências e tem sido
compreendida, por alguns, como uma ciência tecnológica que tem como objeto o
humano. A necessidade de se incorporar rapidamente os conhecimentos e de se estar
“apto” a exercer a atividade médica, faz com que professores e alunos tenham visões
particulares sobre as possíveis atividades a serem exercidas nas chamadas “áreas
verdes”, muitas fundamentadas na perspectiva de uma universidade voltada unicamente
para a formação de mão de obra.
As “áreas verdes” são compreendidas como períodos em que os alunos não têm
atividades formais na universidade, em que eles escolhem que atividades querem
realizar: lazer, atividades culturais, iniciação científica, etc...
A proposta ao realizar esta pergunta, foi analisar o que os professores entendiam e
valorizavam como atividade extracurricular.
E1: Zero. Eu tentei implantar uma época aqui uma atividade na hora do
almoço, cinema, discutir filmes, alguns filmes ligados a medicina, outros
filmes, comédias. Nada, só três pessoas, duas pessoas. Fui uma vez num
debate lá na Praia Vermelha, na reitoria, na reitoria não no fundão, na Praia
Vermelha uma atividade para discutir um filme (Gattaca), era eu e um
82
geneticista famoso do Centro Municipal de Saúde, um bambam. Não tinha
ninguém.”
E4: “os alunos deveriam utilizar para fazer as disciplinas eletivas e os
programas de iniciação cientifica ou simplesmente para estudar. Todo
período tem pelo menos um turno ou dois turnos livres”
E6: “(...) então no meu ponto de vista as escolas de medicina não atendem
aquela visão mais ampla de uma universidade, de formar muito mais
pensadores ou questionadores ou pessoas. Ensinar a pensar, e para isso é
necessário a convivência em diferentes ambientes, se expor a diferentes
áreas. Teoricamente o médico seria um humanista. Entretanto, o médico não
é exposto a sociologia, antropologia, artes, a discussões politicas, a nada, a
não ser o conhecimento técnico. A quantidade de conhecimento é
extraordinariamente grande, eles se limitam a estudar aquilo e pronto, então
não há um foro de discussão, e não há tempo pra isso.”
E8: “(...) eu costumo dizer o seguinte que nada, nada mais bem denominado
do que grade (...). Na verdade nossos alunos não tem tempo pra estudar, mal
tem tempo pra estudar, estudam de noite, de madrugada. Na verdade nossos
alunos não tem tempo para viver e eu posso dizer que isso talvez seja um
dos retardos que determinam esse comportamento meio distante do seio do
dia a dia do paciente. Eles têm muito pouco tempo pra pensar (...). Um
conjunto monstruoso de conhecimento e nenhum momento para refletir,
questionar, pensar, então a formação crítica fica prejudicada. A formação
ética totalmente secundária ou inexistente. Eles tem que estudar muito para
fazer a prova e passar na prova e depois dar o cargo para se formar e ser
médico.”
O entendimento do que seja uma atividade extracurricular, ou o que seria
interessante os alunos realizarem neste período foi muito variado: desde a participação
em atividades culturais, de lazer até para a realização de disciplinas optativas, estudar,
ou então, participar de programas de iniciação científica. As áreas verdes são de livre
arbítrio dos alunos. Não cabe a universidade decidir ou impor qualquer atividade. Mas
como disse o entrevistado E8, o que existe é uma grade, como numa prisão. Podemos
entender que ao estabelecer a própria grade, deixa-se para as áreas verdes a realização
de disciplinas optativas, que são uma obrigação do currículo.
Todos os professores entrevistados argumentaram que o grande volume de
conhecimentos a serem apreendidos durante o curso médico é uma causa importante
para a não participação dos estudantes numa vida universitária mais politizada.
Observamos, nestas falas, a pouca reflexão sobre as metodologias de ensino e
aprendizagem. Se o volume de conhecimentos mudou, se as atuais tecnologias de
comunicação permitem que a velocidade de disseminação da informação seja
83
diferenciada, é necessário que o professor e a escola médica revejam que métodos
seriam mais adequados a este tempo. Além disso, as escolas médicas precisam assumir
que diante do enorme desenvolvimento científico e tecnológico é impossível formar
médicos com tantos conhecimentos em profundidade. Alguns autores 46,47,48,73,76,77
têm
apontado a necessidade de se rever a formação de professores, os currículos das escolas
médicas e dos métodos de ensino. A introdução de metodologias que estimulem a
participação ativa dos estudantes e que propiciem a reflexão sobre a construção e
aplicação do conhecimento tem sido apontada pelos mesmos autores, como uma
proposta viável e adequada.
Ao final desta etapa da pesquisa, ficamos com algumas perguntas: diante de um
ambiente de ensino massacrante, nada acolhedor, podendo até mesmo ser ameaçador e
violento, existe como formar um médico que não seja cínico e impassível ao sofrimento
alheio? Não estamos dizendo que a universidade e a escola médica sejam os únicos
responsáveis, afinal os sujeitos são do mundo e estão no mundo, assim como a própria
universidade. Mas ela tem a responsabilidade de ter espaços para reflexão e estar
comprometida com a formação de sujeitos moralmente competentes. Se almejarmos
viver em democracia, precisamos educar para a democracia.. Uma democracia que vá
além de discursos, mas vivida nos “pequenos mundos” das relações entre professor
aluno, colegas de trabalho, profissionais de saúde e usuários. A universidade precisa
trazer para dentro de seus muros a responsabilidade para a construção de um mundo
melhor. Pode ser que seja mais uma “pedra na mochila” desta senhora tão assoberbada.
Mas pelo menos não há como se ignorar.
85
Defendemos nesta dissertação que a formação ética deve fazer parte das
preocupações da universidade, considerando sua missão de formar sujeitos reflexivos e
comprometidos com o bem estar da sociedade. Esta formação ética pode ser entendida
como a apresentação das ferramentas em ética, ramo da filosofia, para a adequada
reflexão sobre as questões morais que surgem ao longo da vida universitária, assim
como, as relacionadas às áreas de atuação destes futuros profissionais.
Podemos também considerar que a formação ética tenha outra perspectiva, que se
refere à formação moral, entendida como um conjunto de estratégias que favoreçam ao
desenvolvimento de uma competência moral. Esta última é conceituada como a
capacidade dos sujeitos identificarem os aspectos morais de uma determinada situação,
refletirem sobre ela e tomar decisões baseados em princípios morais internos. Este
conceito é fortemente defendido pelas correntes cognitivistas de desenvolvimento moral
que tem em Piaget, Kohlberg e Lind, as maiores referências. Kohlberg e Lind postulam
que a construção de um ambiente democrático, livre de violência e que ofereça
atividades que desafiem cognitivamente os sujeitos a refletirem sobre questões morais
são condições essenciais para que se promova o desenvolvimento moral.
Em relação às escolas médicas, encontramos algumas particularidades, em
especial pela presença de uma terceira variável nas situações de ensino e aprendizagem:
o paciente ou usuário do sistema de saúde. Além disso, existem outros componentes que
fazem com que o ensino médico ganhe tanta visibilidade ao se abordar a formação ética
dos sujeitos: a reflexão sobre temas como vida e morte, qualidade de vida, bem estar
fazem parte, ou pelo menos deveriam fazer, do cotidiano do ensino e da prática médica,
especialmente nos últimos 40 anos com a introdução maciça das biotecnologias,
provocando uma revolução nestes conceitos.
Neste sentido, buscamos compreender como os coordenadores e dirigentes de
uma escola médica de ensino tradicional, que estava, no momento da realização da
pesquisa, em fase de reforma curricular, entendiam como a universidade poderia
contribuir para a formação ética dos estudantes de medicina. Além disso,
intencionávamos entender como eram conduzidas as situações moralmente conflituosas
vivenciadas na faculdade e conhecer quais eram as oportunidades para discussão e
reflexão com o suporte de um profissional capacitado, no caso o professor. Outra
variável buscada, ainda nesta concepção de construção de ambientes democráticos de
ensino, foi como os coordenadores entendiam e valorizavam as atividades
86
extracurriculares e a participação dos estudantes na vida política e cultural da
universidade, entendida por nós como uma grande oportunidade para o
desenvolvimento moral e a vivência em democracia.
O percurso metodológico escolhido possibilitou grandes momentos de reflexão
tanto para os entrevistados como para a entrevistadora. Todos se sentiram e disseram
profundamente desafiados com o tema, muito embora, em certos momentos, alguns
docentes se mostrassem desanimados e com uma fala de que “pouco se tem a fazer”.
Acreditamos que esta sensação venha da pouca intimidade com o tema e o
desconhecimento de alguns aspectos do desenvolvimento moral, o que acaba levando a
um sentimento de impotência.
Todos os docentes percebem a emergência do tema, mas encontram na
observância aos hábitos e atitudes do professor, a única alternativa metodológica. Dois
entrevistados entenderam que se deveria ter uma proposta pedagógica para a abordagem
de situações eticamente problemáticas e que, através de metodologias próprias, poder-
se-ia propiciar ou fomentar a reflexão e o desenvolvimento moral dos estudantes.
Entretanto, os professores não comentaram sobre estratégias pedagógicas reconhecidas
para o desenvolvimento moral, como o role taking e guided reflection, entre suas
práticas pedagógicas.
Pudemos também observar que os professores apresentavam, de uma forma em
geral, uma visão empirista sobre a aquisição do conhecimento, pouco falando sobre o
processo de construção do conhecimento, considerando os saberes prévios dos
estudantes. Tal descoberta nos colocou diante de um problema que é a não
profissionalização e não capacitação para a docência em medicina. Este fato,
historicamente conhecido, tem fortes implicações tanto nas escolhas de modelos e
estratégias educacionais, como também na aplicação destas. Em relação à formação
moral, pudemos observar que predominou o entendimento que o exemplo do docente
(objeto de onde se “retira” o conhecimento) é a estratégia mais adequada ou a única
possível.
É importante mencionar que não estamos desconsiderando o papel do exemplo do
docente na formação moral dos estudantes. Existem componentes afetivos e de
socialização inerentes ao processo de identificação com um grupo social, do qual se
deseja fazer parte, no caso a corporação médica. Apenas enfatizamos outros
componentes da formação moral que permitem a adoção de estratégias baseadas num
87
processo reflexivo, inclusive sobre os hábitos e atitudes dos professores, e que podem
ser consideradas uma oportunidade para se promover o desenvolvimento moral.
Ainda nos colocando na perspectiva do professor, entendemos que deixar nas
mãos deste a responsabilidade única de formar moralmente os alunos pode ser
considerado injusto e inadequado, visto que a ausência de reflexão por parte do
professor pode levar a imposição de seus valores morais, especialmente se levarmos em
conta a inexistência de uma política institucional tanto para a capacitação docente, como
para o reconhecimento das possibilidades pedagógicas para o desenvolvimento moral.
Além disso, a universidade precisa ter claro, conforme pontuado por um dos
entrevistados (E9), que “balizas éticas” ela vai considerar e de que forma elas serão
refletidas em conjunto com o corpo docente e discente.
As iniciativas da UNESCO tanto para o ensino da ética, como de Educação em
Direitos Humanos, nos parecem alternativas interessantes para o inicio de uma
discussão mais ampla sobre: aspectos éticos das políticas institucionais universitárias e
propostas de formação moral dentro dos contextos de ensino e pesquisa. Estas questões
nos parecem vitais, no momento em que se questiona o papel da universidade em
formar pessoas.
Os docentes que participaram da pesquisa se reportaram diversas vezes a
situações de desrespeito mútuo vivenciadas na escola médica e em atividades
extramuros, onde os estudantes representam a universidade. O que nos chama atenção é
que este “clima” de intolerância acaba gerando desdobramentos em atividades fora da
universidade, incluindo em encontros que deveriam ser de confraternização.
Consideramos que estes eventos não são exclusivos das escolas médicas. E assim como
nas faculdades de medicina, pouco se comenta sobre bullying, assédio moral nas
faculdades de direito, engenharia e até mesmo das humanidades.
Outra constatação foi a pouca participação dos estudantes tanto nos órgãos
colegiados da Faculdade de Medicina como na defesa dos interesses dos estudantes.
Podemos entender este processo pela dificuldade do movimento estudantil,
especialmente após os anos de ditadura e do processo de democratização do país, em
encontrar seu espaço. O que foi observado por um dos entrevistados é a preocupação
com temas mais gerais relacionados à sociedade e pouco foco nas questões pertinentes a
vida universitária e que, fundamentalmente, sejam do interesse dos estudantes. Os
primeiros são importantes e fundamentais para a construção da cidadania, entretanto
88
alguns docentes entendem que este tipo de direcionamento dos órgãos de representação
estudantil pode funcionar como um véu encobrindo os problemas do cotidiano da
universidade, que acabam por ser pouco valorizados.
A participação dos estudantes na vida cultural universitária parece inexistente, na
visão dos professores entrevistados. Alguns argumentam que a grande massa de
informações e conhecimentos a serem administrados e com a adoção de formas de
avaliação ainda pautadas na memorização, os alunos pouco tem tempo para uma vida
cultural. Outros acham natural que as “áreas verdes” do curso sejam utilizadas para o
curso de disciplinas optativas, ou então, para atividades de iniciação científica ou
simplesmente para estudar. Parece-nos que estes professores entendem a universidade
como um local unicamente de formação profissional e que não existe uma valorização
de uma vida universitária mais rica, que promova o desenvolvimento integral dos
estudantes. Esta visão mais ampla da vida universitária é também defendida nas
propostas da UNESCO especialmente na Declaração Mundial para o Ensino Superior,
onde se enfatiza uma proposta de uma formação mais global, para a cidadania e
participação ativa na sociedade. Outros documentos apresentam o mesmo
direcionamento: o da WMA e do MEC (através do PNEDH e das diretrizes
curriculares). Para a formação de um médico humanista, crítico e reflexivo é importante
considerarmos a adoção não somente de práticas de ensino voltadas para esta proposta,
mas fundamentalmente de políticas institucionalmente determinadas. Esta visão não
pode ser fruto somente de iniciativas focais, de uma faculdade, de um departamento ou
de uma disciplina. Formar pessoas humanistas, para a vida democrática, nos direitos
humanos, com uma visão global de cidadania tem que ser uma proposta da
universidade. Esta proposta deve “passar” de modo transversal por todo o curso, por
todo o campus.
Assim, revendo os objetivos da nossa pesquisa, podemos concluir que ao se
investigar como os coordenadores de uma faculdade de medicina de ensino tradicional
entendem como o ambiente universitário e os docentes podem contribuir para a
formação ética dos estudantes de medicina, concluímos que a maioria afirma que a
ferramenta disponível é o exemplo do professor. Interpretamos esta fala como um
entendimento do desenvolvimento moral apenas em seus aspectos afetivos, pouco se
conhecendo dos aspectos cognitivistas da formação moral e das estratégias (role taking
e guided reflection) para a promoção da capacidade de julgamento moral. Em relação ao
ambiente universitário observamos intolerância e violência, especialmente nas relações
89
professor- aluno e entre professores- pacientes- alunos, que acabam por causar
desdobramentos e repetições nas relações entre os estudantes da própria universidade e
nas relações com estudantes de outras instituições. Este clima de violência, intolerância
gera desdobramentos ao longo da vida acadêmica e profissional. Não observamos uma
política institucional para abordagem e condução de conflitos morais, ficando somente
ao cargo dos princípios morais que norteiam os professores, deixando os alunos
absolutamente indefesos e com possibilidade de aumentar os conflitos. Em relação à
participação em atividades culturais e políticas da universidade, altamente promotoras
do desenvolvimento moral, observamos uma vida universitária pobre, limitada e que
associada às questões de violência previamente comentadas, devem estar fortemente
associadas ao declínio da competência moral, conforme encontrado por Lind em seus
estudos com estudantes de medicina na Alemanha.
Entendemos, assim, que não há como mudar este cenário sem uma política
institucional universitária para a capacitação docente, em especial, para que as
estratégias que promovam o desenvolvimento moral sejam efetivamente implantadas.
Entretanto, entendemos que também são necessárias iniciativas para a promoção de uma
vida universitária que não tolere a violência e as discriminações de qualquer ordem.
Sem as quais não será possível formar médicos, ou qualquer sujeito humanista, crítico,
reflexivo em altos padrões de ética.
91
1. Monroe P. História da educação. São Paulo: Editoria Nacional, 1979.
2. Janotti A. Origens da universidade. São Paulo: Editora USP, 1992.
3. Charle C, Verger J. História das universidades. São Paulo: Editora da Universidade
Estadual Paulista, 1996.
4. De Masi D. Criatividade e grupos criativos: Descoberta e Invenção. Rio de
Janeiro: Sextante, 2005.
5. Dreze J, Debelle J. Concepções de universidade. Fortaleza: Edições Universidade
Federal do Ceará, 1983.
6. Flexner A. Medical education in the United States and Canada. Boston, The
Merrimount Press, 1910.
Disponível em:
http://www.carnegiefoundation.org/sites/default/files/elibrary/Carnegie_Flexner_R
eport.pdf (acessado em outubro de 2012)
7. Pagliosa FL, Da Ros MA. O relatório Flexner: para o bem e para o mal. Revista
Brasileira de Educação Médica 2008; 32(4):492-9.
8. Almeida Fº N. Reconhecer Flexner: inquérito sobre produção de mitos na
educação médica no Brasil contemporâneo. Cad. Saúde Pública 2010;
26(12):2234-49.
9. Teixeira A. A Universidade de ontem e de hoje. Revista Brasileira de Estudos
Pedagógicos 1964; 42 (95):27-47.
Disponível em: www.bvanisioteixeira.ufba.br/artigos/ontem.htm (Acessado em
2/10/2012).
10. Sobrinho JD. Dilemas da educação superior no mundo globalizado: sociedade do
conhecimento ou economia do conhecimento? São Paulo: Casa do Psicólogo,
2005.
11. Mendonça AWPS. A universidade no Brasil. Revista Brasileira de Educação 2000;
14:131-150.
12. Cunha LA. A Universidade temporã. O ensino superior da colônia a era Vargas.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980.
13. Fávero MLA. A universidade no Brasil: das origens a reforma universitária de
1968. Educar 2006; 28:17-36.
14. Santos Filho L. História geral da medicina brasileira. São Paulo: HUCITEC, 1977.
92
15. Volpato G. A universidade na sua constituição: criação, reformas e implicações
político-epistemológicas. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos 2011;
232:678-701.
16. Groppo LA. A questão universitária e o movimento estudantil no Brasil nos anos
1960. Impulso 2005; 16(40):117-131.
17. Trindade H. O ensino superior na América Latina: um olhar longitudinal e
comparativo. In: Trindade H & Blanquer JM. Os desafios da educação na América
Latina. Petrópolis: Vozes, 2002.
18. Martins CB. A reforma universitária de 1968 e a abertura para o ensino superior
privado no Brasil. Educação & Sociedade 2009; 30(106):15-35.
19. Macedo AR; Trevisan LMV; Trevisan P; Macedo CS. Educação superior no
século XXI e a reforma universitária brasileira. Ensaios: Aval, Pol, Publ, Educ.
2005; 13:127-148.
20. Almeida Fº N. As três culturas na Universidade Nova. Ponte de Acesso (2007);
1(1):5-15.
21. Santos BS. Pela mão de Alice: o social e o político na pós modernidade. São
Paulo: Cortez, 1999.
22. Rego S. Currículo paralelo em medicina: experiência clínica e PBL: uma luz no
fim do túnel? Interface. Comunicação, Saúde e Educação. 1998; 2: 35-48.
23. Chauí MS. Escritos sobre a universidade. São Paulo: Editora Unesp, 2001.
24. UNESCO. World Declaration on Higher Education for the Twenty- first Century:
Vision and Action and Framework for Priority Action for Change and
Development in Higher Education. Disponível em:
www.unesco.org/education/educprog/wche/declaration_eng.htm.
Acessado em novembro de 2012.
25. UNESCO. 2009 World Conference on Higher Education: The New Dynamics on
Higher Education and Research for Society Change and Development. Disponível
em:
www.unesco.org/fileadmin/MULTIMEDIA/HQ/ED/ED/pdf/WCHE_2009/FINAL
%20COMMUNIQUE%20WCHE%202009.pdf. Acessado em novembro de 2012.
26. UNESCO. Report on the Working Group of the Teaching of Ethics of the World
Commission on the Ethics of Scientific Knowledge and Technology (COMEST).
Paris, 2003.
Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001345/134552mb.pdf.
Acessado em novembro de 2012.
93
27. UNESCO. Plano de ação: Plano Mundial de Educação em Direitos Humanos.
Segunda fase.
Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0021/002173/217350por.pdf.
Acessado em novembro de 2012.
28. Brasil. Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos. Plano Nacional de
Educação em Direitos Humanos:2007. Brasília, Secretaria Especial dos Direitos
Humanos.
29. Rego S. Diretrizes curriculares para os cursos médicos: e a educação moral?
Caderno de currículo e ensino 2003; 2(4): 25-32.
30. Rego STA. Saindo da Adolescência com a vida (dos outros) nas mãos: Estudo
sobre a Formação Ética dos Estudantes de Medicina. Rio de Janeiro; 2001.
Doutorado [Tese de Doutorado]. Rio de Janeiro: Instituto de Medicina Social,
Universidade do Estado do Rio de Janeiro; 2001.
31. Rios T. Ética e competência. São Paulo: Cortez, 1993.
32. Goergen P. Educação moral hoje: cenários, perspectivas e perplexidades. Educ.
Soc 2007; 28(100):737-62.
33. Puig JM. Aproximação à educação moral. In: Puig JM. Ética e valores: métodos
para um ensino transversal. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1998.
34. Cortina A. O fazer ético. Guia para a educação moral. São Paulo: Moderna, 2003.
35. Biaggio AMB. Desenvolvimento moral: aspectos cognitivos. In: Psicologia do
Desenvolvimento. Petrópolis: Vozes, 1988.
36. Biaggio AMB. Lawrence Kohlberg. Ética e educação moral. Rio de Janeiro. Ed
Moderna, 2002.143p.
37. Kohlberg L. Moral Stages and Moralization: The Cognitive-developmental
Approach. In: Harper & Row publishers. The psychology of Moral Development.
Essays on Moral development:vol II. Ed1984
38. Haste H. An Interview with Georg Lind. International Journal of Group Tensions
2002; 31(2):187-215.
39. Lind G. Una teoría integradora de la moral. In: Lind G. La Moral Puede Enseñarse.
Mexico: Trillas, 2007.
40. Lind G. Building on Ideals and Fostering Competencies. Contemporary Issues in
Education 2011; 2(1):45-59. Disponível em: http://www.uni-konstanz.de/ag-
moral/pdf/Lind-2011_MoralEducation_english.pdf. Acessado em setembro de
2012.
94
41. Lind G. Moral Regression in Medical Students and their Learning Environment.
Revista Brasileira de Educação Médica 2000; 24(3): 24-33.
42. Rego S, Gomes AP, Siqueira-Batista R. Bioética e humanização como temas
transversais na formação médica. Revista Brasileira de Educação Médica 2008;
32(4): 482-491.
43. Lind G. The Nature, Measurement, Development and Education of Moral
Democratic . Disponível em: http://www.uni-konstanz.de/ag-moral/about.htm.
Acessado em setembro de 2012.
44. Koifman L. A função da universidade e a formação médica. Revista Brasileira de
educação Médica 2010, 35(2): 145-6.
45. Rossini E, Lampert J. A formação de profissionais para o Sistema Único de Saúde
e as ddiretrizes curriculares. Boletim da Saúde Porto Alegre 2004, 18 (1): 87-98.
46. Batista NA, Batista SH. Docência em Saúde. São Paulo: Senac, 2004.
47. Batista NA. O Professor de Medicina: conhecimento, experiência e formação. São
Paulo: Loyola, 2001.
48. Saippa- Oliveira G, Koifman L. Os docentes universitários: como transformar a
formação? In: Pinheiro R, Silva Junior AG. Cidadania no cuidado: o universal e o
comum na integralidade das ações de saúde. Rio de Janeiro: IMS-UERJ-CEPESC,
2011.
49. Silva Junior AG, Pontes ALM, Henriques RLM. O cuidado como categoria
analítica no ensino baseado na integralidade. In: Pinheiro R, Ceccim RB, Mattos
RA. Ensinar Saúde: a integralidade e o SUS nos cursos de graduação na área da
saúde. Rio de Janeiro: IMS/UERJ-CEPESQ-ABRASCO, 2005.
50. Ceccim RB, Feuerwerker LCM. Mudança na graduação das profissões de saúde
sob o eixo da integralidade. Cad. Saúde Pública 2004; 20(5): 1400-10.
51. Taquette SR, Rego S, Schramm FR, Soares LL, Carvalho SV. Situações
eticamente conflituosas vivenciadas por estudantes de medicina. Rev Assoc Med
Bras 2005; 51 (1): 23-8.
52. Koifman L, Wong Un, JA. Construindo saberes recíprocos: ética e técnica na
prática educativa em saúde. Cuidar do cuidado: responsabilidade com a
integralidade das ações de saúde. Rio de Janeiro: IMS/UERJ-CEPESQ-
ABRASCO, 2008.
53. Heckert ALC. Ética e técnica: exercício e fabricações. In: Pinheiro R, Mattos RA.
Cuidar do cuidado: responsabilidade com a integralidade das ações de saúde. Rio
de Janeiro: IMS/UERJ-CEPESQ-ABRASCO, 2008.
95
54. Duarte ED, Dittz ES, Madeira LM, Lopes TC. A utilização da técnica e agir ético
no cuidado: conciliações possíveis na prática educativa. Cuidar do cuidado:
responsabilidade com a integralidade das ações de saúde. Rio de Janeiro:
IMS/UERJ-CEPESQ-ABRASCO, 2008.
55. WMA Resolution on the Inclusion of Medical Ethics and Human Rights in the
Curriculum of Medical Schools world –wide. Disponível em:
www.wma.net/en/30publications/10policies/e8/index.html. Acessado em Janeiro
de 2012.
56. Brasil. Ministério da Educação e Cultura. Diretrizes curriculares nacionais do
curso de graduação em medicina.
Disponível em: http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/CES04.pdf. Acessado
em outubro de 2010.
57. Dantas F, Sousa EG. Ensino da deontologia, ética médica e bioética nas escolas
médicas brasileiras: uma revisão sistemática. Revista Brasileira de Educação
Médica 2008; 32 (4): 507-17.
58. Muñoz D, Muñoz DR. O ensino da ética nas faculdades de medicina no Brasil.
Revista Brasileira de Educação Médica 2003; 27(2): 114-24.
59. Rego S, Palácios M, Schramm FR. Competencia bioética em saúde materno
infantil. In: Schramm FR, Braz M. Bioética e saúde: novos tempos para mulheres e
crianças? Rio de Janeiro: Fiocruz, 2005.
60. Rego S, Schillinger- Agati M. Desenvolvimento moral e ambiente de ensino-
aprendizagem nas escolas médicas. In: Marins JJN, Rego S. Educação Médica:
gestão, cuidado, avaliação. São Paulo: Hucitec, 2011.
61. Schramm FR. As diferentes abordagens da bioética. In: Palácios M, Martins A &
Pegoraro AO. Ética, ciência e saúde: desafios da bioética. Petrópolis: Ed Vozes,
2001.
62. Paschoal G. Pesquisa Mundial de Saúde apresenta os primeiros resultados relativos
ao Brasil. 2004.
Disponível em: www.fiocruz.br/ccs/novidades/mai04/pesquisa2_gab.htm.
Acessado em setembro de 2011.
63. Mori M. A Bioética: sua natureza e história. Humanidades 1994; 9(4): 332-41.
64. Rego S, Palacios M, Schramm FR. Ensino de bioética nos cursos de graduação em
saúde. In: Marins JJN, Rego S, Lampert JB, Araújo JGC. Educação Médica em
Transformação. São Paulo: HUCITEC, 2004.
65. Ferrer JJ, Álvarez JC. Para Fundamentar a Bioética. São Paulo: Loyola, 2003.
96
66. Braz M. Bioética, proteção e diversidade moral: quem protege quem e contra quê
na ausência de um referencial comum? In: Schramm FR, Rego S, Braz M, Palácios
m. Bioética; riscos e proteção. Rio de Janeiro: UFRJ, Fiocruz, 2009.
67. UNESCO. Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos. Disponível
em: http://unesdoc.unesco.org Acessado em 15/11/2012.
68. Aquino JG. A violência escolar e a crise de autoridade docente. Cadernos
CEDESS 1998; 47: 7-19.
69. Villaça FM, Palácios M. Concepções sobre Assédio Moral: Bullying e Trote numa
Escola Médica. Revista Brasileira de Educação Médica 2010; 34 (4): 506-14.
70. Rego S. A formação ética dos médicos. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2003.
71. Palácios M, Rego S. Bullying: mais uma epidemia invisível? Revista Brasileira de
Educação Médica 2006; 30 (1): 3-5.
72. Chen PW. The Bullying Culture of Medical School. Disponível em:
http://well.blogs.nytimes.com/2012/08/09/the-bullying-culture-of-medical-school/
Acessado em 24/11/2012.
73. Feuerwerker L. Além do discurso de mudança na educação médica: processos e
resultados. São Paulo: Hucitec; Londrina: Rede Unida; Rio de Janeiro: ABEM,
2002.
74. Colares MFA, Troncon LEA, Figueiredo JFC, Cianflone ARL, Rodrigues MLV,
Piccinato CL, Coleta JAD. Construção de um instrumento para avaliação das
atitudes de estudantes frente a aspectos relevantes da prática médica. Revista
Brasileira de Educação Médica 2002; 26 (3): 194-203.
75. Allegro LA. Etica y Educacion. Disponível em:
http://sem.intramed.net/revista/007.htm. Acessado em novembro de 2012.
76. Becker F. A epistemologia do professor: o cotidiano da escola. Petrópolis: Vozes,
1993.
77. Pontes ALM, Rego S, Silva Junior AG. Saber e pratica docente na transformação
do ensino médico. Revista Brasileira de Educação Médica 2006; 30 (2): 66-75.
78. Lüdke M, André MEDA. Pesquisa em educação: abordagens qualitativas. São
Paulo: EPU, 1996.
79. Minayo MC. A desafio do conhecimento. São Paulo: HUCITEC; Rio de Janeiro:
Abrasco, 1999.
80. Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1988.
81. Botti SHO, Rego S. Preceptor, supervisor, tutor, mentor: quais são os seus papéis?
Revista Brasileira de Educação Médica 2006; 32 (3):363-73.
97
82. Botti SHO, Rego S. Docente clínico: o complexo papel do preceptor na residência
médica. Physis. Revista de Saúde Coletiva 2011; 21(1):65-85.
83. Gomes AP, Rego S. Transformação da educação médica: é possível formar um
novo médico a partir de mudanças no método de ensino- aprendizagem? Revista
Brasileira de Educação Médica 2011; 35 (4):557-66.
84. Rego S. Educar para a democracia. Revista Brasileira de Educação Médica 2009;
33 (2):163-5.
85. Rego S. A Educação médica e o Plano nacional dos Direitos Humanos no Brasil.
Revista Brasileira de Educação Médica 2010; 34 (4):479-80.
86. Lima MCP. Sobre trotes, vampiros e relacionamentos humanos nas escolas
médicas. Revista Brasileira de Educação Médica 2012; 36 (3): 407-13.
87. Zuin AAS. O trote universitário como uma violência espetacular. Educação e
Realidade 2011; 36 (2): 587-604.
88. Warth MPTN, Lisboa LP. Tradição, trote e violência. Interface- comunicação,
saúde e educação 1999; 5: 111-7.
89. Segre M. Trote violento contra calouros universitários. Interface- comunicação,
saúde e educação 1999; 5: 121-2.
90. Akerman M, Conchão S, Hotmisky S, Boaretto RC Violência e intimidação na
recepção dos calouros nas faculdades de Medicina: ato que persiste ao longo do
ano. Revista Brasileira de Educação Médica 2010; 34 (4): 627-8.
91. Akerman M, Conchão S, Boaretto RC, Fonseca FLA, Pinhal MA. R deevelando
fatos, sentidos, afetos e providências sobre o trote numa faculdade de Medicina.
narrativa de uma experiência. Revista Brasileira de Educação Médica 2012; 36 (2):
249-54.
92. Rothen JC. Os bastidores da reforma universitária de 1968. Educação e Sociedade
2008; 29 (103): 453-75.
93. Da Rosa GBM. Divagações sobre o movimento estudantil. Disponível em:
http://www.fenea.org/artigos/divagacoesmovimentoestudantil. Acessado em
novembro de 2012.
94. Rego STA. A prática na formação médica: o estágio extracurricular em questão. Rio
de Janeiro; 1994. Mestrado [Dissertação de Mestrado]. Rio de Janeiro: Instituto de
Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro; 1994.
99
Anexo I – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
Você está sendo convidado para participar da pesquisa O Papel do professor na formação
ética dos estudantes de medicina. Você foi selecionado por ser diretor da Faculdade de
Medicina, coordenador de curso ou de uma disciplina que tem em seu conteúdo temas
relacionados à ética, bioética ou formação ética. A qualquer momento você pode desistir de
participar e retirar seu consentimento. Sua recusa não trará nenhum prejuízo em sua relação com
os pesquisadores, com a ENSP/ Fiocruz ou com a Faculdade de Medicina. Esta pesquisa é parte
da pesquisa Desenvolvimento da competência moral e ambiente de ensino na graduação em
medicina: estudo comparativo entre três modelos pedagógicos”, coordenada pelo Prof Sergio
Rego e foi aprovada pelo CEP/Ensp (CAAE 0061.0.031.00007) e autorizada em reunião do
Colegiado do Curso de Medicina em 2009.
O objetivo principal deste estudo é avaliar como o professor entende a sua influência e do
ambiente universitário na formação ética dos estudantes de medicina. Ou seja, você não será
avaliado ou estudado, mas o ambiente de ensino da faculdade. Sua participação neste estudo
consistirá em responder a uma entrevista com roteiro semi-estruturado sobre o ambiente da
Faculdade de medicina e sobre as oportunidades que os estudantes tem , ao longo do período do
curso, de participar de atividades nas quais tem efetiva responsabilidade sobre suas ações.
Os riscos relacionados com sua participação estariam relacionados à sua identificação no
questionário. Isso será controlado mediante a utilização de uma codificação que impedirá
relacionar o questionário que você preencheu com seu nome. Não existem benefícios
individuais relacionados cm sua participação na pesquisa, mas você está colaborando para que
entendamos melhor o processo de formação de nossos colegas.
Como já disse, as informações obtidas através dessa pesquisa serão confidenciais, mas embora
você não seja nominado em qualquer momento dessa pesquisa, nem a sua faculdade, existe a
possibilidade de que alguém com conhecimento na área identifique a faculdade e, por
conseguinte, você.
Os resultados poderão ser divulgados para a direção da escola e para o Centro Acadêmico e em
artigos científicos.
Você receberá uma cópia deste termo onde constam o telefone e o endereço do pesquisador
principal, podendo tirar dúvidas sobre o estudo e sua participação, agora ou a qualquer
momento.
Pesquisadora desta pesquisa
Maria Angélica Varela
Rua Leopoldo Bulhões 1480/914 – 21
25982987 – [email protected]
Coordenador Geral da Pesquisa
Sergio Rego
Rua Leopoldo Bulhões 1480/914 – 21
25982987 – [email protected]
Comitê de Ética em Pesquisa: 21 25982863 – [email protected]
Declaro que entendi os objetivos, riscos e benefícios de minha participação no estudo e
concordo em participar.
Sujeito da pesquisa
100
Anexo II – Roteiro da entrevista
O PAPEL DO DOCENTE NO DESENVOLVIMENTO DA COMPETÊNCIA DE
JUÍZO MORAL DO ESTUDANTE DE MEDICINA
ENTREVISTA: PERGUNTAS E O QUE OBSERVAR NAS RESPOSTAS
1. Na sua opinião de que forma a universidade pode ajudar na formação ética
dos médicos?
(O que observar nas respostas e perguntas que podem ser complementares
ao longo da entrevista)
Disciplinas: que disciplinas? Disciplina de ética? Conteúdos
transversais?
Relação com os docentes: eles acham que o docente tem uma
responsabilidade ética na formação ética dos alunos?
Somente sendo ético? Precisa interagir?
Deve explicar o que é certo? Interagir/ não interagir?
O aluno é passivo nesta questão? Apenas o exemplo?
Observar se tem disponibilidade para a problematização da situação.
2. Como a universidade/ docente agem quando situações psicologicamente ou
eticamente problemáticas surgem na sala de aula ou nas práticas?
3. Como se dá o apoio aos estudantes que se deparam com estas situações?
4. Os alunos tem tempo disponível para atividades extracurriculares?
( interessante se há pré julgamento)
Vinculadas diretamente ou não à formação médica: participação em atividades
sociais, culturais e políticas
Para o coordenador e diretor: representação dos alunos em órgãos e espaços
formais. Como é o Centro acadêmico (CA)? Tem participação? Existem espaços
formais para a participação dos alunos de forma democrática?