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Maria Lafayette Aureliano Hirszman ENTRE O TIPO E O SUJEITO: Os retratos de escravos de Christiano Jr. São Paulo 2011

Maria Lafayette 1

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História, escravidão

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  • Maria Lafayette Aureliano Hirszman

    ENTRE O TIPO E O SUJEITO:

    Os retratos de escravos de Christiano Jr.

    So Paulo 2011

  • 2

    Maria Lafayette Aureliano Hirszman

    ENTRE O TIPO E O SUJEITO:Os retratos de escravos de Christiano Jr.

    vol. 1

    Dissertao apresentada ao Departamento de Artes Plsticas da Escola de Comunicao e Artes da Universidade de So Paulo como exigncia parcial para a obteno do ttulo de Mestre em Artes, sob a orientao do Prof. Dr. Domingos Tadeu Chiarelli

    rea de Concentrao: Histria da Arte

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    Nome: HIRSZMAN, Maria Lafayette Aureliano Ttulo: Entre o tipo e o sujeito: Os retratos de escravos de Christiano Jr. Dissertao apresentada ao Departamento de Artes Plsticas da Escola de Comunicao e Artes da Universidade de So Paulo na rea de histria da arte como exigncia parcial para a obteno do ttulo de Mestre em Artes. Aprovado em: Banca Examinadora

    Prof. Dr. _________________________________________________ Instituio: _________________________________________________ Prof. Dr. _________________________________________________ Instituio: _________________________________________________ Prof. Dr. _________________________________________________ Instituio: _________________________________________________

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    Agradecimentos

    Esse trabalho no teria sido possvel sem o apoio atencioso de muitos.

    Gostaria de expressar minha enorme gratido a todos que me ajudaram fornecendo

    dados, sugerindo caminhos, mostrando problemas ou simplesmente tornando a

    tarefa mais leve e agradvel.

    O desejo de esboar a biografia das imagens estudadas e entender a

    trajetria entrecortada de Christiano Jr., me fizeram bater em diversas portas.

    Dificilmente conseguirei lembrar de todos que foram importunados pelas minhas

    consultas. Impossvel, no entanto, no mencionar a gentileza, profissionalismo e

    generosidade de figuras como Rosngela Bandeira, do Museu Histrico Nacional,

    do Rio de Janeiro; Ruy Souza e Silva, colecionador responsvel pela preservao

    de imagens preciosas da fotografia brasileira do sculo XIX; Diran Sirinian, livreiro e

    estudioso argentino; Luis Priamo, co-autor de uma das obras de referncia acerca

    do fotgrafo. Devo agradecer ainda ao apoio de Magdalena Broquetas, do Centro

    de Fotografia de Montevidu; de Jorge Forjaz, da Academia dos Aores; da

    historiadora Maria Helena P. T. Machado; e da pesquisadora Fabiana Beltramim,

    que me alimentaram com dados e ajudaram a dirimir dvidas em momentos cruciais

    do trabalho. Tambm sou grata pela reviso cuidadosa e providencial de Marlene

    Petros Angelides, pelas inmeras vezes em que Marcio Martins me ajudou a obter

    textos que pareciam impossveis e pelas oportunas caronas dadas ao material por

    Sergio Mateus.

    Contei tambm com a ajuda de muitos mestres, interlocutores e colegas ao

    longo dessa longa jornada. amiga Camila Molina agradeo a confiana irrestrita e

    o apoio sempre constante. A leitura crtica, firme e generosa de Ulpiano Bezerra de

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    Menezes foi vital para o desenvolvimento da pesquisa e de minha formao

    pessoal. Devo lembrar tambm a ajuda e as ponderaes enriquecedoras de Dria

    Jaremchuk. Fao uma meno especial aos meus colegas do grupo de estudos em

    Arte e Fotografia com quem redescobri o prazer da leitura e reflexo em conjunto,

    compartilhando dvidas, expectativas e descobertas. Quero, finalmente, deixar

    registrada minha profunda gratido a Tadeu Chiarelli, com quem venho aprendendo

    sobre arte desde muito tempo e que tem me ajudado com generosidade e

    delicadeza a trilhar o caminho do estudo acadmico, nem sempre fcil para quem

    vem do jornalismo. Este trabalho chegou ao fim, mas seu exemplo e orientao

    continuaro a me servir de guia.

    Faltam palavras para os mais prximos. Ao Joo Manuel, agradeo o

    permanente estmulo. Aos meus sogros, a sempre gentil hospitalidade e apoio. De

    meu pai, que me deixou to cedo e me ensinou a perceber o poder da imagem,

    lembro o carinho e a doura. De minha me, o apoio sempre generoso, amoroso e

    incondicional. Foram eles que me deram rgua e o compasso e despertaram em

    mim o gosto pela arte e a preocupao em dar voz aos mais humildes. com muita

    admirao e afeto que lhes agradeo por isso.

    Plnio, Ana e Rosa, que alegraram todas as etapas desse caminho: sem

    vocs nada disso teria sentido. Obrigada por tudo. a vocs que dedico este

    trabalho.

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    Resumo A dissertao examina, a partir de um enfoque multidisciplinar que contempla aspectos estticos, histricos e antropolgicos, as imagens de negros de ganho realizadas por Christiano Jr. em cerca de 1865 no Rio de Janeiro. O objetivo sublinhar seu carter contraditrio quando colocadas em perspectiva de longa durao. Mesmo sem romper com os padres estticos da poca, as fotografias de Christiano Jr. introduzem elementos que representam uma diferenciao, uma vez que subvertem certos elementos estruturais da imagem do negro, temticos e compositivos, quebrando o cdigo de silncio, ocultamento e disfarce que marca a relao da sociedade brasileira com o tema da escravido. O trabalho desdobra-se em trs movimentos. O primeiro captulo apresenta uma anlise detalhada do trabalho de Christiano Jr., ressaltando sua trajetria e o sistema de consumo e circulao em que suas fotografias se inserem. O segundo caracteriza os padres tradicionais de representao da figura do negro e das camadas populares estabelecendo relaes entre esses gneros consolidados e as fotografias de Christiano Jr. O ltimo captulo sublinha uma espcie de fissura no rgido cdigo de representao iconogrfica do escravo e prope que o trabalho do fotgrafo aoriano seja lido no mais como um documento neutro sobre os usos e costumes da poca ou apenas como reiterao de um olhar preconceituoso, mas como registro de uma relao complexa entre o fotgrafo e seus modelos, como um elemento constitutivo e, portanto, carregado de sentidos, mesmo que paradoxais daquela sociedade que se via s voltas com a crise aguda do regime escravagista.

    Palavras-chave: Christiano Jr., fotografia do sculo XIX, escravido, histria da arte, representao do negro, retrato, realismo, iconografia brasileira, escravo de ganho

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    Abstract The aim of this work is to examine, from a multidisciplinary approach

    (aesthetic, historical and anthropological), images of black slaves and black wage earners made by the Azorean photographer Christiano Jr. in mid of the 1860s in Rio de Janeiro. The purpose is to emphasize their contradictory character when placed in a long-term perspective. Even without breaking with the aesthetic standards of the period, the pictures of Christiano Jr. introduce elements that represent a differentiation as they subvert certain thematic and compositional structural aspects of images of black labors, thus breaking the code of silence, concealment and disguise that characterizes the relationship between the Brazilian society and the system of slavery. The work develops in three movements. The first chapter presents a detailed analysis of the work of Christiano Jr. highlighting his career and the system of consumption and circulation of his images. The second features the traditional patterns of representation of the figure of the black working classes relating them with the pictures of Christiano Jr. The last chapter stresses a kind of fissure in the strict code of the iconographic representation of the slaves and proposes that the work of the azorean photographer be read not as a neutral document about the uses and customs of the time or only as a reiteration of a biased look, but as a record of a complex relationship between the photographer and his models as a constituent component therefore charged with meaning of a society that was itself grappling in an acute crisis of the slavery regime.

    Keywords: Christiano Jr., nineteenth-century photography, slavery history of art, representation of black labor, portraiture, realism, brazilian iconography

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    Sumrio

    Introduo ........................................................... 10

    1. Secura eloquente ........................................................... 20

    1.1. Leituras ........................................................... 26

    1.2. Um empreendedor oitocentista .............................................. 33

    1.3. Estudo de caso: as imagens .............................................. 47 dedicadas a D. Fernando 1.3.1. O estdio ........................................................... 51

    1.3.2. Objetos e vestes .......................................................... 56

    1.3.3. A posio do modelo .......................................................... 64

    1.3.4. Ponto de vista ........................................................... 71

    1.3.5. A dedicatria ........................................................... 74

    1.4. Releituras grficas ........................................................... 76 1.4.1. Marcas do cativeiro ........................................................... 80

    1.4.2. O pescador e a Dulcineia ............................................ 81

    1.4.3. A maternidade ........................................................... 84

    1.5. Formas de consumo e circulao .......................................... 88

    2. Inventrios de imagem ............................................................ 93

    2.1. Representando o outro ........................................................... 100

    2.2. Entre o pitoresco e o cientfico ............................................... 108 2.2.1. Agassiz ........................................................... 113 2.2.2. Viagem artstica ........................................................... 116

  • 9

    2.3. Os viajantes e a tradio do extico ......................... 119

    2.3.1. Disseminao: estampas e fotografia ......................... 128

    2.3.2. Rugendas e Debret ......................................................... 131

    2.3.3. Aproximaes ......................................................... 137

    2.4. Imagens do povo ......................................................... 140

    2.4.1. Mapeando os sditos ........................................................ 141

    2.4.2. Gritos urbanos ........................................................ 147

    2.4.3. Orientalismo e costumbrismo .......................................... 152

    2.4.4. Dentro ou fora do estdio .......................................... 158

    2.5. Flertando com o realismo ........................................................ 161

    2.5.1. Naturalismo ......................................................... 165

    2.5.2. A escola realista ......................................................... 168

    2.5.3. Realidade degradante ........................................................ 172

    2.5.4. Realismo e fotografia ........................................................ 177

    3. Ser escravo ........................................................ 180

    3.1. O assunto e o lugar ........................................................ 182

    3.1.1. No campo ........................................................ 186

    3.1.2. Conspirao de silncio ......................................... 188

    3.2. O indivduo por trs do tipo ...................................................... 195

    Concluso .................................................................................. 203

    Bibliografia .................................................................................. 206

    Caderno de imagens .................................................................... v. 2

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    Introduo

    Bem no incio, a ideia era estudar a presena do trabalho na arte brasileira do

    sculo XIX. Rapidamente a empreitada mostrou-se inexequvel e foi necessrio ir

    recortando, moldando e refazendo o projeto em razo no apenas do anseio inicial

    de compreender melhor a produo visual brasileira do sculo XIX para alm das

    divises estanques de gnero, tcnica e autoria, mas tambm do estabelecimento

    de um dilogo cada vez mais intenso com os objetos de pesquisa.

    Da ideia genrica de trabalho ao recorte especfico das fotografias de negros

    na produo de Jos Henriques Christiano Junior (1830-1902), muito se passou. A

    primeira constatao transformadora foi a de que, no Brasil oitocentista,

    praticamente no se podia falar em representao genrica do trabalho, j que

    trabalho queria dizer escravido e representao visual significava adequao aos

    preceitos bastante restritos da Academia, ao menos do ponto de vista da histria da

    arte mais tradicional1. As excees ficava por conta da fotografia e da gravura, cujos

    profissionais, como afirma Lygia Segala, ocupavam um lugar menos privilegiado,

    porm menos burocrtico e institucionalizado que o do pintor2. Evidenciaram-se

    desde logo um percurso temtico o trabalho escravo e uma base concreta de

    pesquisa a das artes ditas menores, ou reprodutveis, de grande circulao e

    consumo.

    1 Sobre a necessidade de revisar os parmetros gerais adotados pela historiografia, ver

    CHIARELLI, Tadeu. De Anita academia: para repensar a histria da arte no Brasil. Novos Estudos CEBRAP [online]. n.88, p. 113-132, 2010; COLI, Jorge. Como Estudar a Arte Brasileira do sculo XIX. In: MARTINS, Carlos (curador geral). O Brasil Redescoberto. Rio de Janeiro, Pao Imperial, 1999.

    2 SEGALA, Lygia. Ensaio das Luzes sobre um Brasil Pitoresco: o projeto fotogrfico de Victor Frond (1857-1861). Tese (Doutorado em Antropologia Social) Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), 1998.

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    A partir da a escolha por Christiano Jr. deu-se de forma quase natural. Afinal,

    trata-se do mais importante e diverso conjunto de imagens produzidos sobre a

    escravido no Brasil: quase uma centena de cartes de visite3 feita num curto

    perodo de tempo registrando negros com seus utenslios de trabalho num ateli

    neutro e vazio. Essas imagens de trabalhadores negros urbanos contm alguns

    fatores particulares intrigantes, dentre os quais destacam-se a grande secura

    compositiva e um foco preciso e direto sobre a condio transitria desses

    indivduos.

    A partir da observao dessas fotografias delinearam-se as principais

    hipteses de trabalho; as imagens pareciam dizer que, para alm do registro

    documental dessas profisses e da inteno autodeclarada de transformar esses

    clichs em objetos de grande interesse para os estrangeiros interessados em

    imagens exticas de pases distantes, havia ali uma repetio de padres e gestos

    que, por um lado, se adequavam aos modelos de retratstica em voga no Ocidente e

    herdados de modelos clssicos da representao, e por outro pareciam indicar um

    olhar atento situao da populao negra carioca e s tenses crescentes entre o

    tradicional cativeiro e as formas modernas de explorao da mo de obra escrava,

    como o aluguel ou a colocao do escravo no ganho. Ou seja, a hiptese

    desenvolvida na pesquisa que h nessa produo elementos que, mesmo de

    forma rudimentar e escamoteada, sugerem uma diferenciao em relao aos 3 A tcnica fotogrfica chegou ao Brasil em 1840, poucos meses aps a divulgao da

    descoberta do daguerretipo pela Academia Francesa. Mas o processo permitia gerar apenas uma imagem nica, frgil (sobre superfcie de vidro) e que exigia longos tempos de pose. S a partir da dcada de 1850, com a introduo das tcnicas do coldio mido e do papel albuminado (1851), e do sistema de carte de visite criado em 1854 a fotografia ganha um impulso vigoroso (sobre as cartes de visite consultar a nota 25 desta dissertao). H uma farta bibliografia sobre os primeiros anos da fotografia no Brasil e no exterior. Ver, entre outros, FERREZ, Gilberto. A Fotografia no Brasil. Separata da Revista do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional , Rio de Janeiro, n.o 10, 1953; KOSSOY, Boris. Origens e Expanso da Fotografia no Brasil: Sculo XIX. Rio de Janeiro: Funarte, 1982; e FREUND, Gisele. La Fotografa como Documento Social. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 2008.

  • 12

    modelos vigentes porque iluminam a existncia de um pacto de silncio em torno ao

    problema da escravido.

    A opo foi adotar um enfoque mltiplo, que contemplasse os aspectos mais

    tangveis do material, iluminasse os dilogos nele existentes com a tradio visual e

    sublinhasse o carter ambguo dessas imagens, vistas ora como documentos

    histricos objetivos, ora como construes ideolgicas. Explicando melhor, a

    pesquisa se prope a investigar os retratos que o fotgrafo fez dos negros

    trabalhadores que encontrou nas ruas do Rio de Janeiro a partir de abordagens

    distintas: ao mesmo tempo que se baseia na ideia de continuidade de modelos

    visuais, procura estabelecer possveis nexos entre aspectos constitutivos das

    imagens e a cena social e cultural que as gerou. So dois caminhos distintos, mas

    no excludentes.

    importante precisar aqui antes de entrar no detalhamento da estruturao

    do texto e dos encaminhamentos especficos de organizao de cada uma das trs

    partes que compem este estudo que, apesar de este trabalho se situar no campo

    da histria da Arte, ele fortemente tributrio de outras reas do conhecimento, em

    especial da histria e da antropologia visual. Em lugar de delimitar fronteiras claras

    entre as disciplinas, pareceu-nos mais enriquecedor apostar no caminho da feliz

    desordem, termo que o antroplogo Carlo Severi cunhou para definir a frtil

    imbricao entre esses dois domnios do conhecimento4. O historiador francs

    Philippe Aris utiliza expresso equivalente feliz indeciso de fronteiras5 para

    defender o dilogo crescente entre disciplinas afins. Dentre as principais diretrizes 4 Essa ideia apresentada em introduo edio da revista LHomme dedicada a Aby

    Warburg. Ver SEVERI, Carlo. Pour une anthropologie des images: Histoire de lart, esthtique et anthropologie, L Homme, n. 165, 2003. p. 7-10.

    5 ARIS, Philippe, A Histria das mentalidades. In: LE GOFF, Jacques (Org.). A Histria Nova. So Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 163.

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    que orientaram a investigao, sobressai tambm a preocupao em ater-se, nesta

    dissertao, primordialmente anlise da imagem, atentando para sua plasticidade,

    considerando-a como uma forma expressiva6. Em sntese, necessrio inscrev-la

    numa cultura visual, numa tradio iconogrfica7.

    Produzidas em meados do sculo XIX, seguindo de perto a descoberta e

    expanso da tcnica fotogrfica pelo mundo, essas fotos foram h muito

    catalogadas como ndices imutveis de um passado enigmtico que se quer

    reconstruir, muitas vezes ignorando-se que qualquer tentativa de resgate desse

    passado embute, inquestionavelmente, muito de nosso prprio tempo8.

    Como j foi dito, a pesquisa foi dividida em trs Captulos. O primeiro deles

    trata da obra de Christiano Jr. propriamente dita, retraa aspectos importantes de

    sua produo, as diferentes leituras feitas sobre seu trabalho, e prope uma anlise

    mais detalhada de alguns trabalhos especficos, bem como uma apresentao das

    caractersticas mais marcantes do autor e do carter serial de seus retratos de

    negros. No se trata de especular sobre uma vontade consciente de denncia por

    parte do fotgrafo, mas sim de identificar nas caractersticas tangveis do registro

    fotogrfico (enquadramento, iluminao, ngulos de composio, escolha dos

    modelos e dos utenslios que os acompanham) elementos que levem a

    compreender melhor: a) suas especificidades compositivas e b) suas relaes com

    6 Como sintetiza Sylvia Caiuby, imagens no reproduzem o real, elas o representam ou o

    reapresentam. CAIUBY NOVAES, Sylvia. Imagem, magia e imaginao: desafios ao texto antropolgico. Mana, Rio de Janeiro, v. 14, n. 2, out. 2008. p. 456.

    7 Tais consideraes foram apresentadas em palestra realizada pelo pesquisador francs Phillippe Dubois em agosto de 2009 no Departamento de Jornalismo da ECA-USP e traduzidas e compiladas por mim.

    8 Afinal, como diz Braudel, presente e passado se iluminam com luz recproca. Ver BRAUDEL, Fernand. Histria e Cincias Sociais: A longa durao. In ______. Escritos sobre a Histria. So Paulo: Perspectiva, 1978. p. 57. O texto foi originalmente publicado em Annales E. S. C., n. 4, p. 725-753, out/dez. 1958.

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    a produo visual e o contexto social de sua poca, em sentido amplo. Em sntese,

    o intuito retraar, na medida do possvel, a biografia dessas imagens, como

    defende Ulpiano Bezerra de Menezes:

    As imagens no tm sentido em si, imanentes. [...] a interao social que produz sentidos, mobilizando diferencialmente (no tempo, nos espaos, nos lugares e circunstncias sociais, nos agentes que intervm) determinados atributos para dar existncia social (sensorial) a sentidos e valores e faz-los atuar. Da no se poder limitar a tarefa procura do sentido essencial de uma imagem ou de seus sentidos originais, subordinados s motivaes subjetivas do autor, e assim por diante. necessrio tomar a imagem como um enunciado, que s se aprende na fala, em situao. Da tambm a importncia de retraar a biografia, a carreira, a trajetria das imagens.9

    A anlise atenta dessa representao traz consigo novas e renovadas

    possibilidades, em funo de quem a olha, de quais perguntas lhe so feitas. Da a

    utilidade do roteiro proposto por Joana Scherer em The Photographic Document:

    Photographs as Primary Data in Anthropological Enquiry. Ela prope, em suma, que

    se combine:

    1) anlise detalhada das evidncias internas e comparao das fotografias com outras imagens; 2) entendimento da histria da fotografia, incluindo restries tecnolgicas e convenes; 3) estudo da inteno e das propostas do fotgrafo, incluindo exame dos usos dessas imagens por seu autor; 4) estudo dos assuntos etnogrficos; e 5) reviso das evidncias histricas, incluindo o exame dos usos feitos pelos outros das ditas imagens.10

    A anlise de alguns casos especficos, como a oferta ao Rei D. Fernando II11

    e a releitura na forma de gravura das fotografias de Christiano Jr. na revista 9 MENEZES, Ulpiano T. Bezerra de. Fontes Visuais, Cultura Visual, Histria Visual. Balano

    Provisrio, Propostas Cautelares, Revista Brasileira de Histria, So Paulo, ANPUH, v. 23, n. 45, 2003. p. 28.

    10 Ibid., p. 34. 11 D. Fernando II (1816-1885) era duque de Saxe-Coburgo-Gotha. Tornou-se rei de Portugal

    por seu casamento com a rainha D. Maria I, filha de D. Pedro VI (Pedro I no Brasil), governando o pas aps a morte desta. Tinha grande apreo s artes, razo pela qual recebeu a alcunha de rei-

  • 15

    Harper's Weekly12 em 1865, ajuda a reconstituir, mesmo que muito parcialmente,

    algo sobre os esquemas construtivos, o consumo e a circulao desse material.

    Alm disso, a anlise comparativa com outros ncleos de obras de autoria do

    fotgrafo aoriano13 bem como de outros autores que elegeram temas similares,

    contribuiu para aprofundar algumas questes sobre as formas de representao e

    recepo da imagem do negro e do escravo no perodo contemplado por este

    estudo. Se o intuito entender melhor as especificidades e o tipo de olhar lanado

    pelo artista e pelo consumidor dessas imagens sobre aquele que est sendo

    retratado, importante enfocar a questo a partir da noo de ponto de vista. Ao se

    estudar a conformao desse olhar de forma concreta, na prpria imagem,

    encontram-se pistas mais claras do tipo de relao que o fotgrafo estabelece com

    o modelo e quais so os sistemas (de proximidade ou distncia, isolamento ou

    incluso, enaltecimento ou subordinao) adotados.

    O objetivo do segundo capitulo inserir a discusso num contexto histrico

    mais amplo, delineando algumas questes modelares presentes em parte da artista. Isso e a nacionalidade portuguesa de Christiano Jr. possivelmente esto na origem de tal dedicatria. . Outro fato interessante relacionado ao monarca foi o leilo de seu acervo: Aps a morte do rei, em 1886, organizado aquele que ainda hoje pode ser considerado o maior leilo j realizado em Portugal. As colees do rei eram famosas em toda a Europa e o interesse foi tremendo. O catlogo listava 4.581 lotes e seu leilo iniciou-se no dia 3 de janeiro de 1893 e seguintes, at o fim de fevereiro, durou, portanto, cerca de 2 meses. .

    12 Revista semanal norte-americana lanada em 1857 como um jornal da civilizao, responsvel por uma cobertura de destaque dos acontecimentos ao longo da Guerra Civil Americana e do debate em torno da escravido nesse pas. Em 1916 ela deixou de circular nesse formato, retornando posteriormente em breves reaparies. Arquivos da publicao podem ser encontrados digitalmente, em endereos como: ou .

    13 Se o corpus do trabalho esse conjunto de negros trabalhadores retratados em ateli, convm esclarecer que ao longo da dissertao so abordadas, mesmo que sucintamente e sempre de forma comparativa, para iluminar o objeto de trabalho, os seguintes conjuntos de imagens: a srie de bustos, tambm negros; alguns retratos da burguesia (brasileira e argentina); os registros mdico-cientficos da elefantase; o projeto de mapeamento das provncias argentinas e, finalmente, imagens externas de trabalho escravo feitas em fazendas brasileiras. Outra obra do autor, que tambm ser abordada aqui, no visual mas textual: as crnicas que ele escreveu no final da vida para o jornal de uma provncia argentina.

  • 16

    produo artstica dos ltimos sculos e que subsistem na fotografia de Christiano

    Jr. Em linhas gerais, esta parte dedica-se a compreender um pouco mais o

    processo de constituio e amadurecimento de um olhar ao mesmo tempo

    preconceituoso, curioso e controlador lanado pela cultura ocidental aos diferentes e

    aos excludos, como os africanos, os orientais e as camadas populares. Aspectos

    como o paralelismo existente entre as formas de representao pitoresca e

    cientfica; a reiterao de modelos e iconografias por parte dos viajantes que

    mapearam o Brasil ao longo da Colnia e do Imprio; e o debate em torno do anseio

    por uma representao naturalista, cada vez mais prxima do real, fazem parte

    dessa reflexo.

    O projeto de contemplar essas fotografias a partir de uma tica de longo

    prazo se apoia em tericos, como Pierre Francastel, que defendem a necessidade

    de pensar a histria a partir de segmentos de tempo mais amplos, que deem conta

    no apenas das rupturas, mas tambm das persistncias, continuidades e dilogos

    com as questes afins ao debate proposto. Afinal, como afirma o historiador, cabe

    a ns retomar no as teorias mas as obras nas nossas prprias perspectivas,

    reinterpret-las, rel-las, se preferirmos14. Em suma, o interesse da pesquisa

    sublinhar que estamos diante de um processo mais complexo a apropriao de

    uma tradio retratstica, de modelos j existentes na representao de tipos raciais

    e de trabalhadores, para dar um passo alm na direo de uma arte que se volta,

    com maior intensidade, para a representao daquelas figuras miserveis, em plena

    transio da invisibilidade da escravido para a vala comum da explorao do

    trabalhador nos moldes da economia capitalista.

    14 FRANCASTEL, Pierre. La Figure et le Lieu. Paris: Gallimard, 1980. p. 9.

  • 17

    J o terceiro e ltimo captulo desta dissertao se debrua sobre o

    significado dessas imagens para quem as v. A escravido era assim? Essa a

    pergunta que muitos fazem diante delas, quando na verdade se deveria perguntar

    por que ela representada assim e entender que esse arsenal de imagens

    constitutivo de nossa prpria noo acerca da escravido. Quando se pensa na

    existncia de tal regime de trabalho no passado recente do pas, so imagens como

    essas que mobilizam o pensamento, que funcionam como uma memria residual

    que se prolonga no tempo. Trata-se de uma forma de entender esse passado no

    como algo objetivo e congelado no tempo remoto, mas como uma construo

    ideolgica que se perpetua at agora. Uma leitura fundamental para essa

    concepo foi a das teses Sobre o conceito de histria, de Walter Benjamin,

    sobretudo as de nmero III, VI e VII. Nesses textos sintticos, na forma de

    aforismos, o filsofo estabelece algumas premissas que ecoam em diversos outros

    autores que serviram de apoio ao longo do amadurecimento e execuo desta

    pesquisa: a ideia de que nada do que alguma vez aconteceu pode ser dado por

    perdido para a histria15, a constatao de que articular o passado historicamente

    no significa conhec-lo tal como ele propriamente foi. Significa apoderar-se de

    uma lembrana tal como ela lampeja num instante de perigo16 e, finalmente, a

    defesa de que cabe ao historiador, consciente de que todo documento de cultura

    tambm um documento de barbrie, escovar a histria a contrapelo17.

    15 LWY, Michael. Walter Benjamin: Aviso de Incndio Uma Leitura das Teses Sobre o

    Conceito de Histria. So Paulo, Boitempo Editorial, 2005, p. 55. 16 Ibid., p. 65. O risco aqui, alerta Benjamin, tanto para o contedo dado como para os

    destinatrios deixar-se transformar em instrumento da classe dominante. Ou seja, ceder ao conformismo e as teses vencedoras. Nesse excerto da tese VI inevitvel tambm destacar a ideia de lampejo, de momento luminoso, que remete ao instante fotogrfico.

    17 Ibid., p. 70.

  • 18

    Investigar os registros de escravos realizados no sculo XIX a partir de

    enfoques mltiplos, que considerem tanto a configurao material e histrica do

    documento, quanto a relao que de fato se estabeleceu entre fotgrafo e modelo

    no contexto de uma sociedade escravocrata em seus estertores, s faz sentido se

    se tiver em mente a proposta de compreender esse documento tanto como ndice

    material quanto como smbolo das contradies inerentes sociedade que o

    produziu, invertendo sentidos, expondo contradies e levantando questes que,

    ainda que fiquem sem resposta, ajudem a iluminar e reorganizar esse passado.

    Como diz Argan, a pesquisa histrica nunca circunscrita coisa em si. Ou,

    retomando as palavras de Marc Bloch18, a obra sempre a mesma, mas as

    conscincias mudam19.

    Uma das questes que motivaram a realizao deste trabalho a sutil

    relao que se percebe entre essas fotografias de escravos e a crescente adoo,

    por parte dos artistas e literatos brasileiros, de temas e questes relacionadas

    presena incontornvel porm longamente escamoteada do negro na vida

    nacional. Ao tratar dessa questo considerada tabu ou abordada de forma

    suavizada no pas, onde a imagem praticamente nunca foi usada como arma de

    combate contra a escravido20, o artista de origem aoriana parece caminhar sobre 18 No obstante o que por vezes parecem pensar os principiantes, os documentos no

    aparecem, aqui e ali, pelo efeito de um qualquer imperscrutvel desgnio dos deuses. A sua presena ou a sua ausncia no fundo dos arquivos, numa biblioteca, num terreno, dependem de causas humanas que no escapam de forma alguma analise, e os problemas postos pela sua transmisso, longe de serem apenas exerccios de tcnicos, tocam, eles prprios, no mais ntimo da vida do passado, pois o que assim se encontra posto em jogo nada menos do que a passagem da recordao atravs das geraes. BLOCH, Marc. Apologie pour lhistoire ou Mtier dhistorien. Paris, Colin, 1949. Apud LE GOFF, Jacques. Documento/monumento, In: ______. Historia e memria, Campinas: Editora da Unicamp , 2003. p. 534.

    19 ARGAN, Giulio Carlo. A Histria da Arte. In: Histria da Arte como Histria da Cidade, 5. ed., So Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 25.

    20 Tal uso verifica-se com grande intensidade, por exemplo, nos EUA. Sobre o tema, ver WOOD, Marcus. Blind memory. Visual representations of slavery in England and America; 1780-1865. Manchester; Nova York: Manchester University Press, 2000.

  • 19

    uma espcie de linha divisria, atando pontos distantes da visualidade de seu

    perodo. Ao mesmo tempo que respeita os modelos estabelecidos da arte europeia

    (como lembra Aumont, h um evidente prazer em reconhecer na imagem aquilo que

    j nos familiar), introduz pequenas subverses compositivas.

    No demais considerar tambm que a cautela com que o fotgrafo lida com

    a figura do escravo pode derivar das tenses e subterfgios caractersticos da

    sociedade brasileira de ento, na qual coexistiam a defesa de necessidade absoluta

    de preservao do sistema sob a alegao de que o fim do escravismo seria um

    golpe demasiado forte para a economia local e a defesa crescente (mas ainda

    dbil, em meados da dcada de 60 do sculo antepassado) de superao do

    modelo, por meio de uma distenso gradual constantemente postergada.

    No toa, nos parece, fotografias como as de Christiano Jr. passaram quase

    um sculo escondidas, at ressurgirem h algumas dcadas. E mesmo a partir de

    ento passaram a ser vistas como tentativas do fotgrafo de suavizar o tema em

    razo de interesses comerciais, sem que se atentasse para o fato de que esse

    tratamento e negao da questo no necessariamente correspondia s intenes

    do fotgrafo, falta de poder dos modelos de determinar sua representao ou ao

    desinteresse do pblico consumidor, mas sim a uma combinao de fatores que at

    hoje repercutem na maneira de os brasileiros pensarem e representarem a questo

    da escravido.

  • 20

    1. SECURA ELOQUENTE

    Em meados do sculo XIX, o fotgrafo Jos Christiano de Freitas Henriques

    Junior (1832-1902), aoriano radicado no Brasil desde 185521, realiza uma srie

    ampla de retratos de trabalhadores negros no Rio de Janeiro, ento capital do

    Imprio. Feitas entre 1864 e 1866, essas imagens representam apenas parcela

    relativa da obra do artista no perodo em que atuou na ento capital do Imprio,

    produo que inclui tambm diversos retratos, cenas ao ar livre e reprodues de

    gravuras, entre outros. Tais fotografias, que ele apregoa em anncios publicados na

    imprensa local como sendo uma Variada colleo de [...] typos de pretos, cousa

    muito prpria para quem se retira para a Europa22, sobreviveram de forma esparsa,

    em colees pblicas e privadas do Brasil e do exterior23. Em um levantamento

    preliminar, baseado em referncias bibliogrficas, foi localizada quase uma centena

    desses retratos24. 21 As informaes biogrficas de Christiano Jr. foram levantadas em AZEVEDO, Paulo Csar

    de; LISSOVSKY, Maurcio (Orgs.). Escravos Brasileiros do Sculo XIX na Fotografia de Christiano Jr. So Paulo: Ex Libris, 1987. A obra, um dos mais importantes trabalhos sobre o fotgrafo, abre caminho para diversos outros estudos acerca de seu trabalho. Dentre outros estudos monogrficos significativos sobre o fotgrafo aoriano, pode-se citar: LEVINE, Robert M., Faces of Brazilian Slavery: The Cartes de Visite of Christiano Jnior. The Americas, v. 47, n. 2, p. 127-159, Oct. 1990; ALEXANDER, Abel; BROGONI, Beatriz; MARTINI, Jos; PRIAMO, Luis. Un pas en transicin. Buenos Aires, Cuyo y el noroeste em 1867-1883. Fotografias de Christiano Junior. Ediciones de la Antorcha, 2007; e BELTRAMIM, Fabiana. Sujeitos Iluminados: A reconstituio das experincias vividas no estdio de Christiano Jr. Dissertao de mestrado em Histria, PUC, So Paulo, 2009.

    22 A afirmao consta de anncio publicado no Almanaque Laemmert em 1866, reproduzido a seguir.

    23 Dentre os principais acervos brasileiros a possuir fotografias de escravos feitas por Christiano Jr. esto: o Museu Histrico Nacional (MHN); o Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional (Iphan); o Ministrio das Relaes Exteriores e a Biblioteca Nacional (BN). H tambm uma presena significativa de imagens de sua autoria em colees particulares. Em relao a esse levantamento das fotografias que Christiano Jr. fez de negros em seu perodo de permanncia no Brasil importante destacar a grande contribuio dos pesquisadores Paulo Csar de Azevedo e Mauricio Lissovsky, Op. cit.

    24 O colecionador Ruy Souza e Silva estima que no existam mais de 150 fotografias de negros de autoria identificada de Christiano Jr. e considera que muitas delas so semelhantes, apresentando apenas pequenas diferenas. Segundo ele, todo ano cerca de 10 a 15 novos exemplares so oferecidos ao mercado,por meio de sistemas de venda virtual como o e-bay, e despertam muito interesse. A maioria dessas fotografias so provenientes de acervos privados

  • 21

    Essas imagens, todas em formato de carta de visita25, podem ser subdividas

    em trs grupos principais: os bustos de modelos representando diferentes naes

    africanas, uma espcie de rol das diferentes etnias africanas presentes no Brasil no

    perodo (Fig. 1); as obras de cunho mdico-cientfico, com destaque para uma srie

    de registros de vtimas da elefantase, considerada um dos primeiros registros

    fotogrficos do gnero (Figs. 3 a 5); e os retratos de corpo inteiro, de modelos

    individuais ou em grupo, feitos em estdio, que relacionam de maneira evidente

    esses modelos com diferentes ofcios, situando-os sempre em relao a objetos do

    universo do trabalho (Fig. 6)26. Tabuleiros, cestos, cadeiras e tamboretes se

    revezam na cena, manipulados ou ao lado desses homens, mulheres e crianas.

    So estes ltimos que constituem o principal foco de interesse desta pesquisa.

    A escolha dos modelos27, a disposio das figuras e objetos, a ausncia de

    cenrio nessa sala estabelecem um claro elo entre as fotografias. Merece destaque

    a linha do rodap que separa o cho do estdio da parede vazia ao fundo, europeus e no passaram por muitos lugares ou colees. Essas informaes foram extradas de entrevista realizada com o colecionador por e-mail em 10/04/2011.

    25 Carto de visita, ou carte de visite, o nome dado imagem obtida por meio do sistema que permitia tirar vrios clichs sobre a mesma placa de vidro, o qual barateava o custo de realizao da imagem e popularizava a fotografia, cujo formato e dimenso assemelha-se aos do carto de visita. O mecanismo foi inventado pelo francs Andr Adolphe Eugne Disdri (1819-1889), fotgrafo de maior renome na Frana do perodo, e permitiu a transio de uma fotografia ainda artesanal para um verdadeiro sistema industrial de produo. Isso porque tornou possvel, por meio do uso de mltiplas lentes, a realizao de diversas imagens a partir de uma mesma pose, potencializando de forma exponencial a produo dos estdios.

    26 Assim, para alm do negro constituir fora motriz nestas terras, o fardo do trabalho delimita com preciso o lugar que lhe compete na sociedade que est se formando o trabalho civiliza e demarca o lugar que lhe foi reservado pelo europeu na marcha incessante do progresso que conduzir todos civilizao. Ver FREITAS, Iohana Brito de. Cores e olhares no Brasil oitocentista: os tipos negros de Rugendas e Debret. Dissertao (Mestrado), Departamento de Histria, Instituto de Cincias Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense, 2009, p. 71.

    27 Os pesquisadores que se dedicaram nas ltimas dcadas a analisar o trabalho de Christiano Jr., redescoberto na dcada de 1980 quando os estudos sobre a escravido no pas ganharam novo flego em razo das celebraes do centenrio da Abolio, supem que o fotgrafo usava como modelos os escravos que encontrava na regio em que se situava seu estdio e oferecia algum pagamento a eles ou a seus proprietrios em troca do servio. Trata-se dos negros de ganho, figura caracterstica do escravismo brasileiro, fortemente presente j nos desenhos de Debret e que tambm vai servir de modelo para outros fotgrafos, como Marc Ferrez.

  • 22

    promovendo um corte austero em dois planos bem demarcados, que organizam a

    imagem e acabam por acentuar aquilo que considerado o principal atributo do

    escravo: os ps descalos28. Outra caracterstica comum o fato de todas as

    imagens serem explicitamente posadas. Ou seja, no h a inteno de disfarar, de

    montar uma cena artificialmente natural. A encenao por demais evidente, quase

    que voluntariamente explcita, contrastando muito com os tpicos retratos de estdio

    realizados no perodo, marcados por uma forte dose de fantasia.

    H ausncia de qualquer ornamentao e uma grande nfase nos atributos

    de trabalho e nos trajes mais tpicos da populao africana ou dos trabalhadores de

    rua do perodo, sobretudo no caso das mulheres. As roupas, os xales e os

    acessrios do a impresso de serem aqueles usados no dia a dia, trazem marcas

    de uso, de sujeira e rasgos, contrastando com diversas imagens do mesmo gnero

    e perodo, nas quais os modelos tambm trabalhadores negros aparecem com

    trajes cuidadosamente escolhidos e limpos, bem arrumados, em imagens que

    expressam seja uma situao de subordinao e respeito ou exploram elementos

    tpicos da cultura africana, como os panos de costa e as longas e rodadas saias29.

    Essas so algumas das caractersticas comuns s imagens que compem o

    corpo de estudo e que sero estudadas com maior detalhe nas pginas que se

    seguem. A inteno, neste primeiro bloco do trabalho, detalhar alguns aspectos

    dessa produo, que se destacam tanto no embate direto com as imagens quanto

    por sua presena quase constante na crescente bibliografia sobre a obra de

    28 A associao entre os ps nus e a escravido, muito mencionada no caso da escravido no

    Brasil, tem razes bem mais antigas. Segundo o Dicionrio dos Smbolos, na Antiguidade andar calado era um privilgio e um smbolo do homem livre; os escravos andavam descalos LEXICON, Herder, Dicionrio de Smbolos. So Paulo: Cultrix, 1994. p. 41.

    29 H exemplos desse tipo de abordagem em trabalhos do prprio Christiano Jr. e de outros autores como Albert Henschel e de August Stahl (ver nota 231), conforme ser visto a seguir.

  • 23

    Christiano Jr. O objetivo aqui evidenciar as especificidades dessa produo,

    mostrar, por meio da anlise da obra, do contexto em que ela foi produzida e da

    documentao existente sobre o artista no s o que o trabalho de Christiano Jr.

    tem de comum com o padro tpico de sua poca, mas tambm suas

    particularidades, sugerindo novas interpretaes, como a de que h a presena de

    um olhar mais atento questo escravista e uma ateno especial a modelos

    estticos mais requintados.

    Dois casos especficos, dentro desse recorte mais amplo, sero tratados em

    detalhe. O primeiro refere-se ao conjunto dessas imagens que o autor selecionou,

    editou e presenteou ao rei de Portugal e que permite avanar no estudo de certas

    caractersticas marcantes de suas fotografias de negros, como a neutralidade

    compositiva (a ausncia dos tradicionais adornos de estdio), a importncia central

    dada aos objetos e vestes como elementos constitutivos da identidade do modelo e

    a repetio de modelos de pose derivados da tradio do retrato. Essas

    caractersticas, que estabelecem um padro evidente para a produo de Christiano

    Jr., permitem tambm diferenci-la do conjunto mais amplo da retratos de typos

    realizados em meados do sculo XIX no Brasil por outros fotgrafos em atuao no

    perodo e, ao mesmo tempo, a colocam em sintonia com uma tradio mais ampla e

    modelos estticos j consolidados em outras reas de produo artstica.

    O segundo conjunto de imagens a ser trabalhado mais detidamente bem

    menos significativo do ponto de vista numrico, j que trata apenas de imagens de

    Christiano Jr. e de suas releituras em gravura, publicadas na revista norte-

    americana Harpers Weekly (Figs. 7 a 12). No entanto, a descoberta dessas

    fotografias do autor traduzidas para outro meio e utilizadas para divulgao em

    outro pas e num veculo de grande circulao permite especular sobre novas

  • 24

    possibilidades de consumo e circulao das fotografias de Christiano Jr.30 Discutir a

    insero dessas fotografias traduzidas num circuito mais amplo de consumo

    parece til para compreender que no se trata de uma produo de sentido nico,

    mas sim de um trabalho desenvolvido em sintonia com demandas dispersas, que

    poderia gerar mesmo em sua poca diferentes formas de consumo e leitura.

    Tambm neste primeiro bloco ser esboado um perfil biogrfico do fotgrafo

    e elaborada uma sntese da produo bibliogrfica a seu respeito, com um

    levantamento extensivo das pesquisas e anlises interpretativas de diferentes

    campos de conhecimento sobre seu trabalho, sobretudo da histria da fotografia e

    da antropologia.

    Alm de viabilizar uma maior compreenso do quadro em que se est

    trabalhando, tal esforo de sntese tambm auxilia a traar um panorama diverso,

    em que se somam e muitas vezes se chocam informaes distintas e

    complementares. Por que no considerar a possibilidade, mesmo que

    aparentemente contraditria, de que Christiano Jr. tenha sido, ao mesmo tempo, um

    homem com ambies e talentos artsticos e um empreendedor que sobreviveu

    comercializando de forma acrtica tanto fotos de escravos31 como reprodues de 30 Este material foi localizado durante busca na internet em agosto de 2010, em site mantido

    pela Virgnia University, sob o titulo The Atlantic Slave Trade and Slave Life in the Americas: A Visual Record, de autoria de Jerome S. Handler e Michael L. Tuite Jr. Disponvel em .

    31 Alguns questionam se os modelos usados pelo fotgrafo eram ou no cativos. Tal questo parece secundria, posto que eles so representados com os principais atributos associados aos negros de ganho que povoavam as ruas da capital do Imprio na segunda metade do sculo XIX: roupas em andrajos, atributos de trabalho comuns a essa populao como os cestos e tabuleiros, e sobretudo, os ps descalos em destaque. Fabiana Beltramim trabalha essa questo detalhadamente em sua dissertao de mestrado: Tratar esses indivduos como seres apticos, arrastados aos atelis, seria silenciar possveis experincias sociais. No porque no eram os consumidores diretos dessa produo, que no sabiam dentro da real experincia vivenciada o que estava em jogo. O no-reconhecimento desta possibilidade refora a ideia de que alguns fotgrafos manipularam a imagem do negro escravo ou liberto, explorando-a comercialmente, coisificando-os como verdadeiros modelos-objetos. BELTRAMIM, op. cit., p. 73. A citao feita pela pesquisadora corresponde a trecho de KOSSOY, Boris e Tucci Carneiro, Maria Luiza. Olhar Europeu - O Negro na Iconografia Brasileira do Sculo XIX. So Paulo: Edusp, 1994, p. 193.

  • 25

    gravuras de arte, ou ainda dedicando-se ao estudo sobre vincolas e produes de

    licor? Ou ento que suas fotografias tenham despertado o interesse no apenas do

    mercado vido por imagens de lugares exticos32, mas tambm de figuras e

    publicaes mais vinculadas a uma posio crtica sobre a escravido, como podem

    indicar as reprodues na Harpers Weekly conhecida por sua critica instituio

    escravista33 ou a presena de diversas imagens de sua autoria na coleo de

    Joaquim Nabuco?

    32 Essa questo ser retomada no Captulo 2. 33 Ver p. 84 deste estudo.

  • 26

    1.1. Leituras

    Cada autor legenda sua prpria maneira as fotos que reproduz em seu livro.34

    certo que a fotografia de Christiano Jr. presena garantida em todo

    estudo sobre a fotografia brasileira do sculo XIX. Em termos quantitativos e

    qualitativos, o olhar que o fotgrafo lana sobre os escravos perturbador. Mas as

    anlises exclusivas e detalhadas de sua obra no so to numerosas assim.

    Pode-se atribuir a descoberta desse conjunto de fotografias de escravos de

    sua autoria ao livro editado por Paulo Csar Azevedo e Maurcio Lissovsky h mais

    de trs dcadas, por ocasio das celebraes em torno do centenrio da abolio35.

    Segundo os pesquisadores, a publicao decorrente da localizao de cinquenta

    cartas de visita de trabalhadores negros, a maioria delas assinada por Christiano Jr.,

    presentes na coleo do Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional

    (Iphan).

    Alm dessas imagens, o livro rene ainda outras fotografias semelhantes do

    autor, presentes em outros acervos de destaque, como o Museu Histrico Nacional,

    o Museu Imperial de Petrpolis e a Mapoteca do Ministrio das Relaes

    Exteriores36. E traz tambm trs ensaios, assinados por Jacob Gorender, Manuela

    Carneiro da Cunha e Moniz Sodr, que refletem um interesse maior pelo tema do

    escravismo usando as imagens como confirmao ou ilustrao do que pelas

    34 MARESCA, Sylvain. As Figuras do Desconhecido. In Cadernos de Antropologia e Imagem

    Antropologia e Fotografia, Rio de Janeiro: UERJ, n. 2, p. 64, 1996. 35 AZEVEDO; LISSOVSKY (Orgs.), Escravos Brasileiros do Sculo XIX na Fotografia de

    Christiano Jr, op. cit. 36 A presena dispersa dessas fotografias em tantas colees tambm considerada por ns

    indcio de que ao menos parte desses clichs foram consumidos aqui, no Brasil.

  • 27

    possibilidades de leitura e interpretao dessas imagens finalmente trazidas a

    pblico.

    Aps a publicao da obra de Azevedo e Lissovsky comearam a surgir

    algumas outras tentativas de anlise desse material, sobretudo a partir de uma tica

    antropolgica e histrica. A tendncia da maioria dessa nova bibliografia em

    inserir a produo de Christiano Jr. num contexto homogneo e pautado quase que

    exclusivamente pelo interesse em alimentar um mercado externo vido por imagens

    genricas e exticas dos negros brasileiros (bem como de centenas de outros povos

    considerados inferiores aos olhos europeus) se respalda nas prprias palavras

    adotadas na publicidade que o fotgrafo fazia e encontra eco tambm em uma das

    obras mais amplas sobre a questo da produo de imagens no Brasil para

    alimentar a demanda externa por imagens exticas: Olhar Europeu - O Negro na

    Iconografia Brasileira do Sculo XIX, editada por Maria Luiza Tucci Carneiro e Boris

    Kossoy, em 1994, a partir de uma exposio realizada alguns anos antes37.

    Logo no incio dos anos 90, no entanto, o pesquisador norte-americano

    Robert Levine dedicou um estudo produo das fotos de negros de Christiano

    Jr.38, no qual antecipa uma primeira tentativa de olhar mais de perto para as

    imagens do fotgrafo, analisando-as detidamente, cotejando-as com as de outros

    autores e enaltecendo sua expressividade e qualidade ao afirmar que so os mais

    impressionantes retratos brasileiros de escravos e, em seu conjunto, o mais

    37 KOSSOY, Boris; TUCCI CARNEIRO, Maria Luiza. Olhar Europeu - O Negro na Iconografia

    Brasileira do Sculo XIX (op. cit.). A exposio itinerante teve incio na USP, em 1988, por ocasio das celebraes do centenrio da abolio, e teve reedies, a ltima delas em 1992, na cidade de Ouro Preto.

    38 LEVINE, Robert. Faces of Brazilian Slavery: The Cartes de Visite of Christiano Jnior. Op. cit., p. 127-159.

  • 28

    completo registro visual da escravido em uma locao urbana na Amrica

    Latina39.

    Em 2002, foi editada uma obra na Argentina sobre a produo do fotgrafo

    naquele pas40. Esse material confirma a importncia dada pelo fotgrafo

    realizao de projetos de amplo flego. Fartamente ilustrado, o livro perfaz a

    trajetria do fotgrafo desde o incio de sua carreira, no Brasil, at os anos finais na

    Argentina, contribuindo para delinear o perfil de empreendedor e autor com amplas

    reas de interesse, alm de demonstrar por meio de diversos exemplos o grande

    apuro tcnico de sua obra. Em 2009, Fabiana Beltramim defendeu na PUC-SP uma

    dissertao de mestrado dedicada a Christiano Jr., na qual reconstitui, a partir das

    imagens do autor, as experincias vividas em seu ateli. A leitura desse trabalho,

    que apresenta diversos pontos comuns com esta pesquisa, foi til como fonte de

    confirmao de dados e caminhos interpretativos. O trabalho de Sandra Koutsoukos

    sobre a representao do negro, que tambm trata amplamente de Christiano Jr.,

    tambm foi de grande utilidade para esta pesquisa41.

    Vrios outros ensaios sobre a obra do fotgrafo tambm vm sendo

    publicada nas ltimas dcadas, inseridos em estudos e coletneas mais

    abrangentes ou publicados em revistas especializadas, essencialmente focando

    estudos ou de fotografia ou de antropologia. Dentre eles podem-se citar a coletnea

    39 Aos nossos olhos, Christiano Jnior era to habilidoso em sua arte que suas fotografias de

    escravos capturam uma dimenso expressiva [...]. Muitos fotgrafos de origem europeia produziram conjuntos similares de typos de negros e escravos, notadamente os alemes Alberto Henschel e Rodolpho Lindermann em Salvador, mas o trabalho de Christiano Jnior foi o mais profundo. LEVINE, Op. cit., p. 129-131.

    40 ABEL, Alexander; PRIAMO, Luis. Recordando a Christiano. In: Un Pas en Transicin. Op. cit..Parte do material encontra-se disponvel em: .

    41 KOUTSOUKOS, Sandra Sofia Machado. No estdio do fotgrafo. Representao e auto-representao de negros livres, forros e escravos no Brasil da segunda metade do sculo XIX. Tese (Doutorado em Multimeios), Instituto de Artes, Unicamp, 2004.

  • 29

    publicada por George Ermakoff42 reunindo imagens fotogrficas de negros no Brasil

    do sculo XIX; o ensaio As Fronteiras da Cor: Imagem e representao social na

    sociedade escravista imperial, de Ana Maria Mauad43; e o livro organizado por

    Letcia Vidor Reis e Lilia Schwarcz intitulado Negras Imagens44. No campo da

    histria da fotografia, no se pode esquecer o trabalho de pesquisa e

    sistematizao levado a cabo por Boris Kossoy45, bem como uma srie de estudos

    de temtica mais especfica que auxiliam a iluminar toda essa produo,

    encaminhados por autores como Pedro Karp Vasquez, Maria Inez Turazzi e Lygia

    Segala46.

    Ao se analisar esse material, pode-se concluir que dentre as questes mais

    polmicas acerca da obra de Christiano Jr. no esto sua importncia histrica nem

    tampouco sua qualidade esttica. unnime a importncia de seu trabalho, no

    importa o ngulo a partir do qual sua fotografia (e aqui a referncia especfica

    quelas imagens que representam escravos) analisada. As guas se dividem com

    relao a um aspecto especfico, que tem alguns desdobramentos: o alinhamento

    de sua obra a uma estratgia puramente mercadolgica, no sentido de atender o

    mercado externo a partir da repetio acrtica de modelos exgenos baseados no

    interesse exclusivo pelo extico. 42 ERMAKOFF, George: O negro na fotografia brasileira do sculo XIX. Rio de Janeiro: George

    Ermakoff Casa Editorial, 2004. 43 MAUAD, Ana M. As Fronteiras da Cor: imagem e representao social na sociedade

    escravista imperial. Revista Locus, Juiz de Fora, v. 6, n. 2, 2001. 44 SCHWARCZ, Lilia M. e REIS, Letcia Vidor de Souza (orgs.), Negras Imagens. Ensaios

    sobre escravido e cultura. EDUSP/Estao Cincia, 1996. 45 Ver, por exemplo, KOSSOY, Boris. Dicionrio Histrico-Fotogrfico Brasileiro. So Paulo,

    IMS, 2002; e KOSSOY, Boris. Origens e Expanso da Fotografia no Brasil: Sculo XIX. Rio de Janeiro, Funarte, 1982.

    46 Ver VASQUEZ, Pedro Karp. A fotografia no Imprio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002; TURAZZI, Maria Inez. Poses e Trejeitos A Fotografia e as Exposies na Era do Espetculo (1839-1889). Rio de Janeiro: Funarte/Ministrio da Cultura, 1995; SEGALA, Lygia. Ensaio das Luzes sobre um Brasil Pitoresco: o projeto fotogrfico de Victor Frond. Op cit.

  • 30

    Em Olhar Escravo, ser olhado, por exemplo, Manuela Carneiro da Cunha

    afirma que as fotos de Christiano Jr. so tipicamente fotos de estrangeiro para

    estrangeiros exatamente porque se contrapem cegueira seletiva que passa,

    sob discreto silncio, a onipresena dos escravos47. Essa concluso deve-se

    constatao prvia de que: 1) os brasileiros tratam o tema com uma cegueira

    seletiva e portanto no aceitam dirigir um olhar mais atento para a questo; 2) a

    imagem que os estrangeiros tm do Brasil , contrariamente dos brasileiros,

    pautada pelo excesso de exotismo, o que os leva a insistir no aspecto africano da

    cidade baixa de Salvador ou na nudez das lavadeiras do Rio de Janeiro.

    A autora no explicita, no entanto, de que forma esse excesso de exotismo

    estaria presente nas imagens do autor. E no considera tambm uma possvel

    transformao de parte desse pblico, seja ele brasileiro, seja estrangeiro, em razo

    exatamente do crescente movimento em defesa da superao do modelo

    escravista. Alm disso, a autora deixa de lado a possibilidade de perceber o que se

    camufla por trs dessa cegueira coletiva, no enxergando na fotografia os

    elementos que supostamente contradizem a mera inteno mercadolgica do autor.

    Em ensaio sobre o tema da representao fotogrfica do escravo no Brasil,

    Ana Maria Mauad tambm no considera a possibilidade de investigao mais

    aprofundada do carter ambguo dessa produo entre uma tradio j

    sacramentada em solo europeu e a germinao de um processo endgeno de

    representao do trabalhador brasileiro , reiterando que nessas imagens a

    47 CUNHA, Manuela Carneiro da. Olhar Escravo, Ser Olhado. In: AZEVEDO; LISSOVSKY

    (Orgs.). Escravos Brasileiros do Sculo XIX na Fotografia de Christiano Jr, op. cit.

  • 31

    escravido era delineada, neste caso, pela esttica do extico48, sem mostrar de

    que forma isso ocorria nas encenaes de atividades quotidianas.

    Boris Kossoy e Maria Luiza Tucci Carneiro chegam a usar o termo projeto

    esttico-ideolgico no s para justificar o isolamento buscado pelo fotgrafo, mas

    tambm para reforar o carter meramente extico de sua coleo de tipos.

    Segundo eles, Christiano Jr. montou situaes colocando seu objeto de

    representao diante de um fundo artificial, transformando o negro fora de trabalho

    em escravo modelo fotogrfico49.

    No se trata aqui de negar que o intuito de Christiano Jr. seja atingir o

    mercado, interessado em imagens exticas da cultura negra fortemente presente

    nas ruas brasileiras. No entanto, a anlise dessas imagens e seu cotejamento com

    outros trabalhos semelhantes realizados no perodo50 parecem indicar a

    possibilidade de que, mesmo que o prprio Christiano Jr. afirme ter por objetivo

    atender essa demanda, sua obra no se enquadra exatamente na tpica produo

    feita com esse intuito.

    Fabiana Beltramim e Sandra Koutsoukos51 desenvolvem crticas a esse tipo

    de interpretao, predominante nas dcadas de 80 e 90. Ambas se opem

    tendncia de ver o trabalho de Christiano Jr. como mera configurao fotogrfica de

    uma imagem em sintonia com o apreo europeu pelo extico, e esta dissertao se

    alinha a essa posio. Restringir a anlise de sua obra a esse tipo de associao 48 MAUAD, Ana M. As Fronteiras da Cor, op. cit., p. 90. 49 KOSSOY; TUCCI CARNEIRO, op. cit., p. 111. 50 Como a srie de retratos produzidos por Stahl a pedido de Louis Agassiz (ver nota 109 e p.

    112 e ss. desta dissertao) ou a bela imagem de negra feita por Albert Henschel e que angariou inclusive uma premiao no Salo de Viena de 1873 (Fig. 51), que primam por destacar o exotismo e construir imagens pitorescas e um tanto artificiosas da paisagem e sobretudo do homem local.

    51 Ver KOUTSOUKOS, Sandra Sofia Machado. No estdio do fotgrafo, op. cit., tese na qual a autora dedica amplo espao ao trabalho de Christiano Jr.

  • 32

    parece reduzir o que ela contm de interessante, de rico, exatamente por sua

    ambiguidade, j que ao mesmo tempo documento histrico e obra fotogrfica de

    certo apuro artstico e tcnico, mesmo tendo servido como elemento material de

    grande circulao, produzido e comercializado para atender a uma demanda clara.

    Procurar-se-, ento, aps a exposio de um breve perfil biogrfico do fotgrafo,

    identificar nas obras propriamente ditas os elementos que permitem problematizar o

    trabalho de Christiano Jr., demonstrando via interpretao e anlise de imagem as

    diferenciaes contidas a.

  • 33

    1.2. Um empreendedor oitocentista

    No clebre anncio que faz publicar em 1866 no Almanak Laemmert52 (Fig.

    15), reproduzido na obra de Azevedo e Mauricio Lissovsky53 e considerado pea

    fundamental em todas as anlises subsequentes da obra de Christiano Jr., o

    fotgrafo aoriano no apenas afirma ter recebido recentemente um perfeito

    machinismo que tira doze retratos de uma s vez referindo-se ao sistema

    inventado pouco mais de uma dcada antes por Disdri e que se popularizou pelo

    mundo afora , como tambm explicita ao longo do texto algumas caractersticas

    que marcariam decisivamente sua carreira. Convm portanto dedicar um pouco de

    ateno pea publicitria, utilizando-a como ponto de partida para uma

    apresentao mais detalhada da vida e da obra do fotgrafo.

    Alm das imagens propriamente ditas, a publicidade dos negcios

    fotogrficos o que resta de mais concreto para o estudo da fotografia oitocentista.

    Evidentemente, no se pode fiar integralmente nas afirmaes contidas nesses

    textos que tm por objetivo atrair e convencer o pblico consumidor, criando muitas

    vezes uma persona que no necessariamente tem a ver com a pessoa e o trabalho

    profissional daquele que propagandeado. De qualquer forma, essa persona e suas

    afirmaes parecem ser de utilidade para descobrir o que Christiano Jr. julgava

    relevante, quais seus argumentos de convencimento e o que ele pretendia valorizar

    em sua obra, bem como para entender, em parte, o funcionamento desse mercado,

    responsvel pelo consumo e circulao das imagens.

    Nessa pea publicitria, a de maior destaque veiculada por Christiano Jr. em 52 Publicado anualmente entre 1844 e 1889, o Almanaque Laemmert a principal fonte sobre

    as atividades fotogrficas realizadas no pas, j que os profissionais costumavam noticiar em suas pginas.

    53 AZEVEDO; LISSOVSKY, op. cit.

  • 34

    seu perodo brasileiro, alguns tpicos chamam a ateno. Em primeiro lugar, ele

    nomeia em letras garrafais seu estabelecimento de Galeria Photographica e de

    Pintura, colocando-se claramente como um artista capaz de belas execues em

    dois diferentes campos de ao. A definio de artista uma referncia dupla,

    remetendo tanto ao carter artstico da obra de arte como aos dotes de Christiano

    Jr. na outra tcnica. Ao longo da pesquisa foi encontrada referncia a apenas uma

    tela assinada por Christiano Jr: um retrato do General San Martin (Fig. 16), pintado

    por volta de 1875, que pertence ao Museu Histrico Sarmiento54. Mas sabe-se como

    era usual nesse perodo a associao entre as tcnicas fotogrfica e pictrica nos

    estdios fotogrficos, para a realizao de cpias e coloraes 55.

    A sensibilidade artstica de Christiano Jr. chegou a ser louvada pelo clebre

    pintor Victor Meirelles em seu relatrio sobre a Exposio Nacional de 186656:

    54 A obra encontra-se reproduzida em Alexander e Priamo, op. cit., p. 31. Segundo os autores,

    ela reproduz uma gravura realizada por Narciso Desmadryl em 1857, que por sua vez usou como fonte um daguerretipo feito em Paris pouco antes da morte do militar. A tela pintada por Christiano Jr. encontra-se no Museu Histrico Sarmiento, em Buenos Aires.

    55 No Brasil, as parcerias mais conhecidas so aquelas estabelecida entre Stahl e German Wahnschaffe, artista-pintor alemo com quem ele trabalha por longos anos, tanto em Recife quanto no Rio, e a de Albert Henschel com o tambm alemo Karl Ernst Papf, anunciado como membro honorrio da Academia Real de Pintura de Dresde. Ver KOSSOY, Dicionrio Histrico-fotogrfico, So Paulo, IMS, 2002. p. 177.

    56 As Exposies Nacionais, organizadas e patrocinadas diretamente pelo imperador, funcionavam como uma espcie de preparao e seleo do material das provncias que seria remetido para as feiras mundiais das quais o Brasil participaria. [...] A Exposio Nacional de 1866 serviu seleo do material que faria parte da Exposio Internacional de Paris de 1867, em TORAL, Andr A. A imagem distorcida da fotografia. 19&20, Rio de Janeiro, v. IV, n. 1, jan. 2009. Disponvel em: . Christiano Jr. esteve na mostra acompanhado pelos fotgrafos de maior destaque no perodo, como demonstra a sntese a seguir: Na Exposio Nacional de 1866 foram apresentados trabalhos de quinze fotgrafos nacionais e estrangeiros, todos premiados com medalhas de prata, bronze e menes honrosas, entre eles: Jos Ferreira Guimares, Insley Pacheco, Christiano Junior, Carneiro & Gaspar, Stahl & Wahnschaffe e George Leuzinger, resume Maria Antonia Couto da Silva in As Relaes entre pintura e fotografia no Brasil do sculo XIX: Consideraes acerca do lbum Brasil Pitoresco de Charles Ribeyrolles e Victor Frond. Fnix Revista de Histria e Estudos Culturais , v. 4, ano IV, n. 2, Junho de 2007. Disponvel em: . Sobre o evento ver tambm o relatrio escrito por Victor Meirelles, que foi jri da mostra. MEIRELLES, Victor. Relatrio da II Exposio Nacional de 1866, in Boletim do Grupo de Estudos do Centro de Pesquisas em Arte & Fotografia, So Paulo: Departamento de Artes Plsticas ECA-USP, n. 1, 2006. Ver ainda TURAZZI, Maria Inez. Poses e Trejeitos A Fotografia e as Exposies na Era do Espetculo (1839-1889). Rio de Janeiro: Funarte/Ministrio da Cultura, 1995. p. 124 a 129.

  • 35

    Os trabalhos deste senhor no so menos dignos de ateno por algumas boas qualidades que contm. As reprodues das gravuras da obra ilustrada: os Lusadas, de Cames, publicada em 1817 por D. Jos Maria de Souza Botelho; Morgado de Matheus, etc., etc.: so bem copiadas, e no podemos deixar de louvar to feliz lembrana, bem como o servio que presta aos artistas e aos amadores das belas artes pela propagao dessas belas composies artsticas, devidas ao lpis dos clebres Gerard e Fragonard.57

    Chamam a ateno no comentrio do pintor acadmico, alm de sua clara

    defesa da fotografia e da gravura como meio de divulgao, as descries que ele

    faz das obras que Christiano Jr. exps na Exposio. Em vez de comparecer com

    trabalhos de carter mais autoral58, o aoriano leva trabalhos de reproduo e

    divulgao de obras alheias, clssicos da cultura europeia. Tal estratgia contrasta

    vivamente com o fato de, nesse mesmo perodo, ele ter resolvido enviar para a

    Exposio Internacional do Porto59 suas imagens de cenas e costumes de negros.

    E parece confirmar que, se considerava essas fotos dignas do interesse de viajantes

    que se recolhiam Europa, ele no acreditava que o mesmo material teria boa

    receptividade por aqui60.

    57 MEIRELLES, Op. cit., p. 10. 58 Como fazem por exemplo Georges Leuzinger, com paisagens de grande fidelidade e

    requinte plstico, ou Insley Pacheco, representado por retratos marcados pela nitidez e beleza das meias tintas (Ibid., p. 9 e 11).

    59 Ver mais detalhes na nota 88. nessa exposio que ele mostra os trabalhos hoje guardados no acervo do Museu Histrico Nacional (MHN).

    60 Volta a pergunta-chave: se a presena negra na sociedade brasileira era to intensa, por que sua presena to nfima nas representaes culturais, mesmo em plena crise do trabalho escravo? A resistncia do mercado uma resposta. Como especula Chiarelli, no Brasil, elevar o trabalhador a protagonista das composies pictricas significaria trazer o negro escravo para o primeiro plano das telas. Se tal proposta fosse praticada, quem as compraria, o imperador, a marinha, o exrcito, o colecionador com preocupaes sociais (se eles existissem no Brasil), o viajante interessado numa lembrana do pas?. Ver CHIARELLI, Tadeu. Memorial apresentado Escola de Comunicaes e Artes da Universidade de So Paulo como parte dos requisitos para a obteno do ttulo de Professor Titular junto ao Departamento de Artes Plsticas, rea: Histria, Crtica e Teoria da Arte. So Paulo, ECA/USP, 2010, p. 51-52. Christiano Jr. parece ter se feito a mesma pergunta e concludo que apenas o ltimo tpico fazia um certo sentido. Voltamos a discutir a questo do pacto de silncio em torno da escravido e da naturalizao das imagens do negro no Captulo 3, p. 188 e ss.

  • 36

    Voltando publicidade, nota-se que a variedade de tcnicas oferecidas pelo

    anncio considerada um importante atrativo, indcio de sofisticao do estdio,

    como se pode aferir pelo seguinte trecho: [...] desde a menor photographia (sem

    ser microscpica) at a maior, de tamanho natural [...], colorindo-se a oleo,

    aquarela, miniatura, pastel, etc., etc..

    Ao mesmo tempo que propagandeia a sofisticao artstica de seu

    empreendimento, o fotgrafo deixa evidente o carter comercial e industrial de sua

    empreitada, chegando a repetir no incio e no fim da pea publicitria a tabela de

    preos na qual se nota uma nfase evidente na quantidade. No se trata mais de

    uma nica imagem, mas de uma centena delas, s quais so atribudos diferentes

    usos (cartes de visita, boas festas, casamentos [...]), ou ento de um leque

    amplo de ofertas para alimentar colees. A este ltimo grupo, alis bem variado,

    que contempla desde os homens mais clebres da guerra atual, passando por

    outras figuras ilustres como a imagem do presidente norte-americano Abraham

    Lincoln (Fig. 17)61, que pertencem as imagens aqui analisadas e apresentadas

    como uma variada colleco de costumes e typos de pretos.

    H vrios outros exemplos desse tipo de oferta diversificada e inovadora do

    ponto de vista tecnolgico por parte do fotgrafo. No mesmo ano de 1866 ele teria

    divulgado a seguinte oferta no verso de uma de suas cartes de visite:

    [...] retratos em leno, costumes e tipos de ndios, cpias de gravuras de Morgado de Matheus reproduzidas de uma rarssima edio dOs Lusadas, retratos em porcelana e em marfim, retratos em vidro para ver por transparncias, vistas para estereoscpio (aparelho

    61 Um desses retratos do presidente norte-americano Abraham Lincoln encontra-se depositado no acervo do MHN. Trata-se provavelmente de uma reproduo de gravura feita por artista norte-americano, mas a hiptese ainda tem que ser comprovada. O fato de comercializar no apenas imagens de sua autoria mas tambm de outros autores, inclusive importadas como esta do estadista norte-americano, pode ser um indcio de relao comercial com algum fotgrafo ou instituio desse pas, o que explicaria tambm a presena de suas imagens retrabalhadas na Harpers Weekly.

  • 37

    binocular, no qual colocado um carto com duas fotografias da mesma cena, tiradas em ngulos ligeiramente diferentes para criar a iluso de tridimensionalidade), retratos de homens clebres, monarcas, guerreiros, literatos, etc.62

    O fato de esses dois reclames (o do Almanaque Laemmert e o citado acima)

    serem do ano de 1866 no mera coincidncia. possvel imaginar que o fotgrafo

    apostou num crescimento de sua presena no j competitivo mercado carioca desse

    perodo. No mesmo Almanak Laemmert ele comparece ao lado de outros 26

    fotgrafos no Captulo intitulado Artes, ofcios, etc., mas foi o nico a ter comprado

    uma pgina na seo de Notabilidades (uma espcie de ncleo publicitrio dentro

    da publicao).

    Christiano Jr. havia chegado capital do Imprio provavelmente em 1862 ou

    1863, vindo de Macei. Existem poucas informaes sobre sua trajetria antes

    disso. Ele teria nascido em 1832 em Santa Cruz das Flores (Aores), emigrado para

    o Brasil em 1855 acompanhado da mulher e de dois filhos, iniciando sua atividade

    fotogrfica em 1860 em Macei63.

    Nenhuma informao at o momento permite conhecer como se deu sua

    formao, seja no campo da pintura, seja no da fotografia.64 Um dos primeiros

    registros de sua atuao profissional um anncio de 186265. Em seguida

    transfere-se para o Rio de Janeiro e comea a anunciar seus servios em jornais e

    no j mencionado Almanak. Em 1864 associa-se a Fernando Antonio de Miranda. A 62 AZEVEDO; LISSOVSKY, op. cit., p. xii. 63 Informaes compiladas em FORJAZ, Jorge; MENDES, Antnio Ornelas. Genealogias das

    Quatro Ilhas - Faial, Pico, Flores, Corvo, Lisboa: Editora Dislivro Histrica, 2009, 4 vols. v. 2, p. 1009. 64 Segundo Forjaz (Ibid.), entrevistado por e-mail em 14 de maio de 2010, seguramente a

    formao de Christiano Jr. no campo fotogrfico no se deu nos Aores, posto que anteriormente a 1855 no havia nenhum profissional da rea atuando na Ilha das Flores. Quanto a uma provvel formao em Macei, as tentativas de descobrir junto a instituies locais (como a Fundao Pierre Chalita e o Centro Histrico e Geogrfico) dados sobre o fotgrafo em seu perodo de residncia por l foram infrutferas.

    65 KOSSOY, B, Dicionrio Histrico-fotogrfico, op. cit., p. 174.

  • 38

    sociedade dura pouco, sendo rompida em 1865, mas foi exatamente ela que

    permitiu a Lissovsky e Azevedo datarem a realizao da coleo de tipos de negros,

    em funo dos carimbos de identificao das imagens.

    O ano de 1866, como mencionado, marcante em sua trajetria. Alm de

    intensificar a propaganda provavelmente uma estratgia em busca de uma

    posio de destaque num mercado ainda pequeno, mas o maior do pas.66

    Christiano Jr. estabelece sociedade com Bernardo Jos Pacheco e participa da

    Segunda Exposio Nacional, realizada em 186667. Recebe apenas a medalha de

    bronze (ningum foi agraciado com o ouro), ficando fora da disputa por uma vaga

    como representante brasileiro na Exposio Universal de Paris do ano seguinte.

    Mantendo sua sociedade com Pacheco se mantendo at 1875, o fotgrafo

    deixa o Rio ainda em 1866 ou 1867, e parte para o sul do Brasil68, Uruguai69 e

    estabelece-se na Argentina, fixando-se em Buenos Aires70. Na bibliografia brasileira

    e argentina possvel inferir algumas hipteses no exclusivas para essa mudana:

    o esprito aventureiro de Christiano Jr.; o maior espao encontrado no mercado

    portenho, no to concorrido como o carioca; e indicaes mdicas. Esta ltima

    tese a nica respaldada por testemunho do prprio fotgrafo, que, em livro editado

    em 1899, escreveu:

    66 Alm disso, disputado por uma serie de outros fotgrafos de renome na cena carioca, que

    contavam com a vantagem de poder divulgar o fato de serem fotgrafos com o selo imperial, distino que ele no possua.

    67 Ver p. 34-35 deste estudo. 68 Segundo KOSSOY (op. cit., p. 175) h registros de que ele passou por Desterro (antigo

    nome de Florianpolis) antes de chegar ao pas vizinho. 69 Manteve na cidade de Mercedes um ateli em funcionamento por vrios anos,

    provavelmente administrado por um scio, como no caso do Rio. 70 Alexander e Priamo descrevem com detalhes as atividades do fotgrafo na Argentina. Op.

    cit., p. 23 e ss. H tambm uma verso on-line deste trabalho, disponvel em .

  • 39

    Em 1863, encontrando-me no Rio de Janeiro, devido supresso de uma herpes que tinha na perna me sobreveio uma inflamao do estmago e da lngua, que depois de alguns dias modificou-se, deixando-me uma dispepsia que at hoje me acompanha [] Assim continuei sofrendo at o ano 66, no qual por conselho de meu mdico vim a Buenos Aires, onde continuei doente porm com menos intensidade.71

    A atuao de Christiano Jr. na fotografia argentina foi pioneira, longa e

    produtiva. Segundo Alexander e Priamo, o exame de seus lbuns de trabalho

    depositados no Archivo General de la Nacin revela que apenas entre abril de 1873

    e setembro de 1875 seu estdio produziu mais de quatro mil fotos, ou seja atendeu

    cinco clientes por dia (Fig. 18)72. Christiano Jr. obteve grande reconhecimento: em

    1871 recebeu a medalha de ouro na Primeira Exposio Nacional com a srie de

    fotos Vistas y Costumbres de la Republica Argentina; em 1876 alcana novamente

    o primeiro prmio na segunda exposio anual da Sociedade Cientfica Argentina

    com uma coleo de Retratos y Vistas de Costumbres y Paisages. Apesar desse

    sucesso, veio a morrer pobre e quase cego em Assuno (Paraguai)73.

    Em 1878 vendeu seu estdio para Witcomb & Mackern. Segundo Robert M.

    Levine, a venda incluiu um acervo de 25 mil negativos em vidro74. Tinha ento 46

    anos, muito prestgio e um negcio estabelecido, administrado por seu filho,

    afirmam seus principais bigrafos na Argentina. Segundo eles, a venda e a

    71 Tratado prctico de vinicultura, destilera y licorera. Buenos Aires, edicin del autor,

    imprenta de G Kraft, p. 223, apud ALEXANDER; PRIAMO. Op. cit., p. 34. Esta obra tambm sinaliza a diversidade de interesses de Christiano Jr. que, alm de fotografia, dedicou-se tambm a outras iniciativas, tornando-se produtor de bebidas, proprietrio de duas casas de banho, editor de obras como o Almanaque Comercial e Gua de los Forasteros para 1877. Ibid., p. 27.

    72 Ibid., p. 23. 73 Os autores argentinos atribuem as dificuldades financeiras no final da vida do fotgrafo aos

    pesados investimentos necessrios ao projeto de registrar as vistas e costumes argentinos, uma vez que ele no conseguia obter apoio financeiro e institucional suficiente.

    74 LEVINE, Robert M. Faces of Brazilian Slavery: the Cartes de Visite of Christiano Junior. Op. Cit., p. 130.

  • 40

    mudana de Buenos Aires teria sido motivada pelo ambicioso plano de realizar

    lbuns retratando vistas e costumes de cada provncia argentina (Figs. 19 e 20).

    O prprio Christiano Jr. explica seu projeto:

    No incio pensei em contratar um fotgrafo que fizesse esse trabalho, mas me convenci de que por melhor que fosse a escolha dessa pessoa, seria impossvel que ela pudesse compreender minhas ideias artsticas.75

    No incio de 1876 oferece ao pblico a subscrio da publicao, intitulada

    Album de vistas y costumbres de la Repblica Argentina. Apresenta-a como tendo

    12 tomadas de Buenos Aires e descries histricas em espanhol, francs, ingls e

    alemo, encadernao de fantasia e capas com alegorias em baixo relevo76. As

    fotos reunidas a vinham sendo feitas e comercializadas desde o ano anterior,

    seguindo uma estratgia usual poca de valorizar editorialmente produtos que j

    haviam sido ofertados de forma individualizada. No s Buenos Aires foi alvo de sua

    lente. Na viagem que inicia em 1879 passa por vrias cidades, como Crdoba, Rio

    Cuarto, Mendoza, etc. Ele escreve em 1876 para introduzir seu lbum Vistas da

    Provncia de Buenos Aires:

    Meu plano vasto e, quando estiver completo, a Repblica argentina no ter pedra nem rvore histrica, do Atlntico aos Andes, que no tenha sido submetida ao foco vivificador da cmara obscura.77

    Todo esse projeto de registrar em detalhes a paisagem e os costumes da

    Argentina, o material produzido pelo fotgrafo e as diversas declaraes feitas por

    ele sobre esse ambicioso trabalho contribuem para revelar, mesmo que a posteriori,

    algumas de suas convices acerca do papel do fotgrafo. Destacam-se como 75 A afirmao consta, segundo Alexander e Priamo, do formulrio de inscrio do lbum

    Vistas y Costumbres de la Repblica Argentina, 1882. Op. cit., p. 28. 76 Ibid., p. 24. 77 Ibid., p. 21.

  • 41

    elementos essenciais dessa viso novamente a nfase no carter artstico de tal

    empreitada e o aspecto totalizante do projeto, em sintonia de forma muito mais

    ambiciosa e potente com o que o fotgrafo havia desenvolvido no Rio de Janeiro

    em relao aos typos de africanos.

    Segundo Alexander e Priamo, o projeto de Christiano Jr. destacou-se em

    relao ao que se fazia na poca. Para constatar isso basta ver o tomo dedicado a

    Buenos Aires (sua ideia era destinar um tomo a cada provncia). Foi o primeiro

    deles, colocado venda em 1876. Continha 12 imagens e descries histricas em

    espanhol, francs, ingls e alemo, de autoria de terceiros: Era a primeira vez que

    se publicava no pas tal tipo de lbum fotogrfico; e ningum voltou a faz-lo no

    sculo XIX, a no ser o prprio Christiano78. Alm de destoarem das outras fotos

    de paisagens avulsas comercializadas no perodo, a obra se destacaria, segundo os

    autores, por distanciar-se do olhar voltado ao ambiente rural, mais usual:

    que seu olhar fotogrfico correspondia ao pensamento ilustrado da poca, que queria deixar rapidamente para trs a Argentina pastoril e colonial to bem documentada pelos fotgrafos da dcada precedente, sobretudo Esteban Gonnet e Benito Panunzi.79

    O comentrio acima indica, mesmo que indiretamente, que estamos diante

    de um fotgrafo no apenas interessado em atender cotidianamente um mercado j

    cativo80, mas tambm de um profissional com ambies artsticas e comerciais mais

    amplas, capaz de abandonar terrenos estabelecidos para buscar novas frentes de

    ao.

    78 Ver Alexander e Priamo, op. cit., p. 24. A empreitada faz lembrar algumas experincias do

    gnero no Brasil, como aquela realizada por Milito de Azevedo na cidade de So Paulo, apesar de no ter o mesmo intuito comparativo.

    79 Ibid., p. 25. 80 O nmero de retratos existentes de sua autoria confirmam seu sucesso no mercado

    portenho. Ver p. 39.

  • 42

    Tambm convm mencionar nesta sucinta biografia do artista os escritos que

    Christiano Jr. realiza ao final da vida e publica em srie no jornal La Provincia, de

    Corrientes81, destacando-se, entre outras coisas, a impressionante sintonia

    identificada entre uma crnica assinada por ele e publicada em 1902 e a obra de

    Alusio Azevedo, sobretudo os romances O Cortio e O Mulato. Nesse texto o

    fotgrafo expe, com ironia cida, uma viso crtica da sociedade brasileira, mais

    especificamente dos portugueses; condena explicitamente o sistema escravista e

    adota um estilo de escrita bem particular, criando uma narrativa em primeira pessoa,

    ao mesmo tempo enxuta e direta caractersticas que tambm pontuam, como j foi

    afirmado, sua produo fotogrfica.82

    Chama a ateno, por exemplo, a importncia dada aos trajes como

    definidores fundamentais de relaes sociais83, importncia que vem com o sinal

    invertido, j que, segundo ele, o imigrante portugus que se apresenta bem vestido

    mal recebido, enquanto aquele que se submete, que porta smbolos de

    81 Ele se instala na cidade em 1901 e publica uma srie de oito artigos no jornal de oposio

    La Provincia. A anlise deste material, que foi gentilmente cedido por Luis Priamo, foi de grande auxlio para a pesquisa, sobretudo daquele intitulado Brasil de 1855 a 1870, dedicado a Guillermo Rojas e publicado em 5/4/1902.

    82 Em outro artigo publicado no mesmo peridico, ele trata de sua infncia nos Aores. Ali, no meio do Oceano Atlntico, a trezentas lguas do pequeno reino de Portugal, do qual provncia, existe um grupo de nove ilhas, conhecidas como grupo das Aores; separadas do grupo central em direo a Noroeste se levantam duas montanhas escarpadas, rodeadas de precipcios que causam vertigem e sem porto de abrigo para o navegante. Estas so as ilhas de Flores e Corvo, que com folga poderiam caber dentro de alguma das fazendas dessa provncia [...]. Assim comea o fotgrafo, num texto agradvel e marcado por um olhar atento e afetivo em relao paisagem de sua terra natal. Na crnica publicada em primeiro de janeiro de 1902 e dedicada a seu neto Augusto. ele fala de seu nascimento, das brincadeiras de criana e adolescncia. E tambm deixa claro ter uma viso muito negativa, um tanto amarga, da sociedade que encontra aps abandonar a Ilha das Flores. Sobre seus conterrneos, diz que so felizes porque ignoram muitas das misrias que corroem as grandes sociedades, so mais felizes porque no conhecem as necessidades que eu conheo, no sofreram tantos revezes da fortuna, enganaes, desenganos ou ingratides como as que me perseguem at hoje. Se fosse possvel voltar aos 23 anos, e saber o que me aconteceria nesse mundo, ficaria em minha ilha, entre os camponeses, vivendo uma pobreza honrada mas com o esprito tranquilo.

    83 Elemento central tanto nas representaes de tipos e costumes, como nos exerccios de representao costumbrista, e tambm na categorizao dos indivduos nas representaes de carter naturalista. Sobre esse aspecto, ver Captulo 2.

  • 43

    inferioridade como o tamanco, o que conquista poder e dinheiro, mesmo que por

    meios ilcitos, como o trfico negreiro e a compra de aliados, na corte e na

    imprensa. Servilismo, falta de personalidade e ascenso social estariam, segundo

    ele explicita com veio irnico, bem prximos no Brasil da dcada de 1860.

    Alm das caractersticas apontadas acima, saltam aos olhos as semelhanas

    evidentes entre essa pequena narrativa e o romance O cortio. A figura do imigrante

    portugus que consegue ascender socialmente descrita por Christiano Jr. se

    assemelha de tal maneira de Joo Romo, o explorador abjeto conformado por

    Azevedo, que no se deve descartar a possibilidade de que o fotgrafo tenha tido

    acesso ao romance entre seu ano de publicao 1888 e a publicao da crnica

    em 1902.

    Da mesma maneira que Romo, o portugus mal vestido de Jr. trabalha

    pesado; sobe na escala social ao conseguir a mo de uma moa de boa sociedade

    vez ou outra, se caa nas graas do patro e este tinha filhas, o casava com uma

    delas (muitas vezes com a que menos gostava)84; como Romo, tambm no tinha

    escrpulos, e como ele tambm obteve vantagens da explorao de escravos e no

    resistiu tentao de conquistar para si honras e ttulos:

    Uma vez casado, tendo um capital proveniente de suas poupanas e do dote da sinhazinha, pensa em desligar-se do sogro, e um dia,

    84 Op. cit. Neste caso do casamento, a identificao se d com outro romance de Azevedo, O Mulato. Mais especificamente com o personagem Jos Dias, que o pai de Ana Rosa queria para genro e scio. Havia, empregado no armazm do pai de Ana Rosa, um rapaz portugus, de nome Lus Dias; muito ativo, econmico, discreto, trabalhador, com uma bonita letra, e muito estimado na Praa. [...] Mas a coisa era que o diabo do homem, apesar das suas prsperas circunstncias, impunha certa lstima, impressionava com o seu eterno ar de piedade, de splica, de resignao e humildade. Fazia pena, incutia d em quem o visse, to submisso, to passivo, to pobre rapaz to besta de carga. [...] Manuel Pedro via, com efeito, naquela criatura, trabalhadora e passiva como um boi de carga e econmico como um usurrio, o homem mais no caso de fazer a felicidade da filha. Queria-o para genro e para scio; dizia a todos os colegas que o seu Dias apenas retirava por ano, para as suas despesas, a quarta parte do ordenado. Ver AZEVEDO, Aluisio. O Mulato. Fonte Digital Ministrio da Cultura Fundao BIBLIOTECA NACIONAL, Departamento Nacional do Livro. Disponvel em .

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    deixando o balco do armazm de secos e molhados ou o depsito de carne seca, se dedica a grandes negcios