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Fepal - XXVI Congreso Latinoamericano de Psicoanálisis "El legado de Freud a 150 años de su nacimiento" Lima, Perú - Octubre 2006 1 O DELIRIO COMO UMA BIZARRA FORMA DE VIDA – A BUSCA DE INVARIANTES PARA A LOUCURA. FRAGMENTOS DE UMA PESQUISA (“RAZÃO E PSICANÁLISE”) Ney Marinho (SBPRJ) – 2006 1 – INTRODUÇÃO Dentro da proposta do Congresso de apresentar o desenvolvimento de pesquisas conceituais que membros da FEPAL estejam realizando, apresentamos um fragmento da investigação que desenvolvemos, desde 1999, no Departamento de Filosofia da PUC-Rio. Os resultados da pesquisa têm sido apresentados através de publicações acadêmicas (Marinho,N. 2001; 2006). A pesquisa se originou de três fontes principais: a prática clínica, o estudo da obra de W. R. Bion e a “crise da psicanálise”. Sempre chamou nossa atenção, no cotidiano do trabalho clínico, o peculiar e intenso sofrimento mental que os pacientes diagnosticados como psicóticos apresentavam, ao lado do limitado alcance da análise de tais pacientes embora os mesmos permanecessem longos períodos em tratamento. Do estudo de Bion extraímos sua sugestão que se estudasse a sigla R (razão) como um dos elementos da psicanálise (Bion,1963). Quanto à “crise da psicanálise”, entendemos fazer parte de uma crise de “longa duração”: a crise da modernidade, instigando-nos a investigar as vicissitudes da razão em nossos tempos, utilizando a

Marinho, Ney -trabajo- O DELIRIO COMO UMA BIZARRA …fepal.org/images/2006invest/marinho_ney_o_delirio.pdf · estudo da obra de W. R. Bion e a “crise da psicanálise”. Sempre

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O DELIRIO COMO UMA BIZARRA FORMA DE VIDA – A BUSCA DE

INVARIANTES PARA A LOUCURA. FRAGMENTOS DE UMA PESQUISA

(“RAZÃO E PSICANÁLISE”)

Ney Marinho (SBPRJ) – 2006

1 – INTRODUÇÃO

Dentro da proposta do Congresso de apresentar o desenvolvimento de

pesquisas conceituais que membros da FEPAL estejam realizando,

apresentamos um fragmento da investigação que desenvolvemos, desde 1999,

no Departamento de Filosofia da PUC-Rio. Os resultados da pesquisa têm sido

apresentados através de publicações acadêmicas (Marinho,N. 2001; 2006).

A pesquisa se originou de três fontes principais: a prática clínica, o

estudo da obra de W. R. Bion e a “crise da psicanálise”. Sempre chamou nossa

atenção, no cotidiano do trabalho clínico, o peculiar e intenso sofrimento mental

que os pacientes diagnosticados como psicóticos apresentavam, ao lado do

limitado alcance da análise de tais pacientes embora os mesmos

permanecessem longos períodos em tratamento. Do estudo de Bion extraímos

sua sugestão que se estudasse a sigla R (razão) como um dos elementos da

psicanálise (Bion,1963). Quanto à “crise da psicanálise”, entendemos fazer

parte de uma crise de “longa duração”: a crise da modernidade, instigando-nos

a investigar as vicissitudes da razão em nossos tempos, utilizando a

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psicanálise em sua dimensão de crítica da cultura. Até o presente momento

temos privilegiado as duas primeiras vertentes da pesquisa, apesar da última –

a dimensão cultural – acompanhar-nos sempre como um pano de fundo.

Relegamo-la a um próximo momento tanto por sua importância como por sua

complexidade.

Partimos de três questões:

1 – Que fundamentos epistemológicos garantiriam uma cientificidade ou

racionalidade à teoria psicanalítica?

2 – Seria a psicanálise um instrumento competente para a compreensão

do fenômeno psicótico, ou melhor, da loucura?

3 – Teria o estudo da loucura, sob o ponto de vista psicanalítico, alguma

contribuição a dar ao entendimento da razão e suas vicissitudes?

Ao mesmo tempo, durante toda a pesquisa procuramos selecionar

candidatos a invariantes do fenômeno da loucura, já buscando elementos para

esta possível terceira fase. Falamos em terceira fase, pois, a resposta a cada

questionamento acima mencionado se constituiu nas diferentes fases da

investigação. A escolha de um departamento de filosofia para realizarmos

nosso trabalho se prende ao fato de considerarmos que no estudo da loucura o

que está, fundamentalmente, em discussão são nossas concepções de

racionalidade/irracionalidade e caso não enfrentássemos tal questão, ou seja,

caso déssemos por assentada uma prática como racional sem lhe investigar os

possíveis fundamentos, estaríamos andando num círculo, sujeitos à

arbitrariedade na escolha de padrões de racionalidade. No mesmo sentido

adotamos o termo vago e abrangente de loucura para evitar uma delimitação

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“científica”, cuja precisão poderia deixar escapar a complexidade do fenômeno.

Tomamos o delírio como um paradigma da loucura e o Caso Schreber como

um campo de estudo, a fim de facilitar a interlocução, uma vez tratar-se de um

texto clássico de conhecimento geral.

O presente trabalho, dadas as características de sua apresentação,

procurará mostrar apenas um fragmento do resultado de nosso trabalho, para

apreciação e discussão, precedido de um breve sumário do percurso até aqui

percorrido. Desejamos registrar que, ao partir das questões mencionadas,

evitamos na medida do possível qualquer idéia preconcebida, deixando que a

pesquisa nos conduzisse pelos caminhos que se ofereciam. Pelos motivos já

expostos, trabalhamos sempre a partir de dois vértices: o filosófico e o

psicanalítico. Desenvolvemos nossa investigação no ambiente da filosofia

anglo-saxã por ser o meio onde se movimenta a teoria de relações de objeto,

em sua vertente kleiniana e segundo o que entendemos da leitura de Bion.

Nossa escolha correspondeu também aos instrumentos de trabalho de

utilizamos ordinariamente, cientes de que outros colegas buscariam outras

fontes para suas investigações sobre o tema. Tivemos também que,

constantemente, limitar nossa pesquisa, restringindo-a aos autores mais

significativos para o debate, procurando evitar uma usual dispersão que

prejudica o aprofundamento da discussão, além de nossa reconhecida

incompetência para um estudo mais abrangente. Contudo, pensamos que

qualquer que seja a linha a ser seguida, pode haver um amplo diálogo sobre os

temas básicos a partir de diferentes vértices. Assim, privilegiamos Popper,

como a fonte do debate epistemológico anglo-saxão, de onde surgem duas

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avaliações filosóficas, importantes e antagônicas, acerca do empreendimento

psicanalítico: a de Grünbaum e a de Klimovsky. Em nossa avaliação, levamos

em consideração as críticas que a epistemologia popperiana recebeu por parte

de Imre Lakatos, Thomas Kuhn e Paul Feyerabend, assim como a alternativa

apresentada por Larry Laudan. Ao abandonarmos a tradição popperiana,

devido às suas insuficiências, aproximamo-nos da filosofia da linguagem.

Chegamos então à avaliação de Marcia Cavell – baseada nos trabalhos de

Donald Davidson e Ludwig Wittgenstein – onde encontramos um campo mais

promissor para o estudo dos problemas com que a psicanálise lida.

Consideramos a avaliação de Cavell um definitivo avanço no diálogo

psicanálise e filosofia, contrapondo-se exitosamente à muito difundida

apreciação de Grünbaum que apresenta, a nosso ver, falhas epistemológicas

de difícil superação. Procuramos – em linha semelhante à de Cavell – avançar

a investigação utilizando mais especificamente certas noções wittgensteinianas

e as oriundas das contribuições de Bion, por considerar que abrem espaço

para um debate mais abrangente dos problemas que a loucura levanta, tanto

no âmbito individual como em suas manifestações culturais.

2 – RESUMO DE UM PERCURSO

Iniciamos nossa pesquisa estudando a epistemologia de Karl Popper,

sua crítica ao indutivismo e sua proposta de um critério de diferenciação entre

ciência e pseudociência, através da noção de refutabilidade. Como é

conhecido, Popper considerava como científicos os empreendimentos capazes

de serem refutados, ou seja, passíveis de experiências cruciais que

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invalidariam suas hipóteses teóricas. Assim, a astrologia, a teoria da evolução

de Darwin e a psicanálise por não se prestarem a testes, seriam

pseudociências, ou melhor, não seriam ciências empíricas. Embora, com o

passar do tempo e as críticas que se acumularam à sua proposta, Popper

viesse a reconhecer como racionais tais empreendimentos, a rigor, nunca abriu

mão deste critério de demarcação. As principais críticas que recebeu partiram

de Imre Lakatos, Thomas Kuhn e Paul Feyerabend que questionaram a

possibilidade de identificação de teorias capazes de se prestarem a teste, uma

vez que uma teoria – como é o caso da teoria psicanalítica – é composta de

diversas teorias e, na história da ciência, foram vários os casos em que teorias

componentes foram refutadas, reformuladas, protegendo o núcleo central da

teoria maior que supostamente estaria sendo testada. Apesar de sua grande

consistência o critério popperiano se mostrou muito estreito para abarcar toda

uma gama de empreendimentos racionais, principalmente, no campo das

ciências humanas. Deste modo, o próprio Popper, veio a sugerir um método –

lógica situacional – para avaliação de teorias metafísicas (denominação que

dava a todas aquelas que não se prestavam a testes de refutação). Tal método

– a análise ou lógica situacional – muito simples e engenhoso, propõe que

perante uma situação problema, reconhecida pela comunidade científica, uma

teoria ofereça soluções capazes de serem corrigidas pela experiência, dando

origem a novos problemas e novas teorias, que eliminem os erros da anterior, e

assim sucessivamente. Popper chegou a aplicar tal metodologia ao estudo da

teoria de Darwin - de quem era um grande admirador - localizando-a assim

como um programa de pesquisa metafísica, ou seja: um empreendimento

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racional, criticável, embora não passível de refutação, não-empírico. Não lhe

ocorreu, contudo, aplicar tal método à psicanálise em relação à qual manteve

sempre uma atitude crítica. Entretanto, em nossa primeira fase da pesquisa,

utilizamos o método popperiano da análise situacional para mostrar como o

mesmo se aplica perfeitamente à teoria psicanalítica dos grupos. Para tanto

utilizamos a teoria de Freud e a de Bion, esta última como um

desenvolvimento, solucionando questões da primeira e oferecendo novos

problemas. Em conseqüência, consideramos como alguns comentadores de

Popper – como é o caso de Renée Bouveresse – que a teoria psicanalítica

seria um programa metafísico de pesquisa, utilizando a terminologia

popperiana. Julgamos este um importante passo, pois, supera-se a infindável

e, a nosso ver, estéril discussão quanto à cientificidade da psicanálise e passa-

se para um campo mais promissor da investigação da sua racionalidade.

A partir de Popper examinamos duas avaliações da psicanálise: a de

Adolf Grünbaum e a de Gregorio Klimovsky. A primeira, embora muito

minuciosa e difundida, padece de uma falha epistemológica que Lakatos

denominou de falseacionismo ingênuo ou dogmático que a compromete.

Considera Grünbaum que a teoria psicanalítica é passível de ser refutada – ao

contrário do que pensava Popper – e quando a mesma se oferece a testes: é

refutada. A avaliação de Klimovsky chega a conclusões opostas, considerando

que a psicanálise é passível de refutação e se sai tão bem como qualquer outra

ciência humana aos testes adequados à sua especificidade. Klimovsky

incorpora as críticas de Lakatos, utiliza o que denomina de método hipotético-

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dedutivo em sua versão complexa e desenvolve uma epistemologia mais

sofisticada, superando as deficiências de Grünbaum.

Contudo, há certas limitações na tradição epistemológica popperiana

que nos parecem insuperáveis para um aprofundamento da discussão filosófica

da psicanálise. Uma delas seria a recusa em admitir a importância da

linguagem no debate filosófico, transformando, por exemplo, todas as

afirmações na primeira pessoa em enunciados na terceira pessoa, passíveis de

um suposto tratamento objetivo. Outras limitações e dificuldades que levam a

impasses discutimos no primeiro de nossos textos mencionados. Nesta

primeira fase da pesquisa, encontramos na epistemologia de Larry Laudan uma

boa alternativa aos dilemas com que se debate a tradição anglo-saxã. Ao

definir o papel da ciência como uma “atividade de solucionar problemas”,

problemas empíricos e conceituais, consegue escapar de inúmeros impasses a

que as epistemologias já mencionadas levavam. Referimo-nos, sobretudo, à

crítica dos relativistas de que o empreendimento científico seria irracional,

sendo possível estabelecer qualquer critério para a escolha entre teorias rivais.

As escolhas seriam circunstanciais, predominando fatores sociológicos, não-

cognitivos. Laudan consegue preservar uma noção de racionalidade, sem

negar o movimento não linear da história da ciência. Liberta-se do jugo do

empirismo, embora, em seus textos, os exemplos de ciências humanas sejam

escassos. Pensamos ser promissora sua proposta de tradição de pesquisa

para tratar o estatuto epistemológico da psicanálise, superando certas

inconsistências de outras propostas, como a de programa de pesquisa

(Lakatos) ou paradigma (Kuhn). As tradições de pesquisa seriam amplos

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conjuntos de teorias, de certa forma comprometidas com visões de mundo,

dispostas a lidar com a solução de problemas empíricos e conceituais. Sob

este ângulo, por exemplo, o que ficou conhecido como a “crise da psicanálise”

poderia ser repensado em termos muito mais ricos do que o estreito limite de

avaliações empíricas.

Deste período retivemos, além da noção de tradição de pesquisa – em

substituição a de teoria – um candidato a invariante da loucura: a atitude

dogmática. Esta é uma interessante contribuição de Popper que, citando a

psicanálise, atribui à atitude dogmática o maior obstáculo à discussão racional

e aceita suas raízes neuróticas, segundo a teoria psicanalítica (Popper, 1972

[1963]: 79).

As severas limitações desta tradição epistemológica nos levaram a

buscar outros instrumentos de avaliação filosófica para a teoria psicanalítica.

Em conseqüência, encontramos no trabalho de Marcia Cavell uma nova e

potente articulação – entre a moderna filosofia da linguagem e a teoria de

relações de objeto – capaz de dar conta de questões que a psicanálise levanta,

até então afastadas de um escrutínio filosófico. O ponto que mais chamou

nossa atenção foi sua tese básica – exposta em sua obra maior: The

Psychoanalitic Mind – from Freud to Philosophy (Cavell, 1996) – “... assim

como a linguagem é uma atividade comunitária, da mesma forma a mente é um

fenômeno mais interpessoal do que estamos propensos a pensar”

(Cavell,1996:IX). Sua proposta está baseada, como já foi mencionado, nas

contribuições de Donald Davidson e Ludwig Wittgenstein quanto à noção de

significado. Tal noção desempenha papel central nas teorias de relação de

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objeto que também concorda com aqueles autores em que o significado é

sempre construído de forma intersubjetiva e contextual. Cavell consegue dar

conta de uma gama de questões que pareciam filosoficamente inabordáveis.

Pensamos, sobretudo, na questão da aquisição da linguagem, do valor do

método da associação livre e do tema do irracionalismo, entre outras. Contribui,

inclusive, para uma melhor discussão das questões éticas sob o ponto de vista

psicanalítico, uma vez que a constituição do self é vista como inseparável de

uma genealogia da moral. Neste último caso utiliza noções oriundas de Melanie

Klein. Em que pese certas discordâncias com Cavell, julgamos que sua

avaliação filosófica é radicalmente original e, dada a sua minuciosidade,

mostra-se como um perfeito contraponto a de Grünbaum. Uma exposição e

exame do texto de Cavell se constitui no segundo capítulo de nossa tese:

Mente e Significado.

O passo seguinte que demos foi o de iniciar uma avaliação própria,

semelhante a de Cavell, mas utilizando mais amplamente certas noções de

Wittgenstein, associando-as a outras de Bion. A partir de Cavell começamos a

segunda fase da pesquisa. A esta altura já considerávamos respondida a

primeira questão (a teoria psicanalítica não seria uma ciência empírica, embora

seja um empreendimento racional, passível à crítica e reformulação pela

experiência). Entramos então em nosso segundo questionamento e tomamos

O Caso Schreber como campo de teste. Antes vejamos, sumariamente, as

principais noções wittgensteinianas e contribuições de Bion que utilizamos.

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3 – JOGOS DE LINGUAGEM/FORMA DE VIDA/CERTEZA, EM

WITTGENSTEIN

Embora a noção de forma de vida (Lebensform) tenha uma longa

história na psicologia, o uso que fazemos da mesma se prende exclusivamente

ao papel que desempenha na obra de Wittgenstein. Freqüentemente se atribui

a Spranger a introdução deste termo no debate psicológico, na Viena dos anos

20 do século passado. Sua obra – Lebensformen (o uso no plural é importante

para uma futura discussão) – foi um espetacular êxito editorial e correspondia à

tendência da época em criar tipologias. Tendência que, na psiquiatria, atingiu

seu clímax com Kretschmer. Outros comentadores remontam a Wundt – com

uma perspectiva um tanto diferente da de Spranger – a introdução deste

conceito. Contudo, na Viena da época, Lebensform fazia parte também dum

movimento mais amplo que atingia até o design – Loos – de modo a privilegiar

o modo de viver em lugar de imposições arbitrárias. Por exemplo: “O próprio

Loos tinha insistido em que o design de qualquer artefato significativo deve ser

determinado pelas ‘formas de cultura’ na qual ele é usado – a forma de uma

cadeira pelo modo como nos sentamos etc. – de modo que as mudanças no

design sejam necessariamente justificadas por mudanças em nossa maneira

de viver, e não o inverso.” (Janik & Toulmin, in A Viena de Wittgenstein,

1991:270). Entretanto, em Wittgenstein, a noção de “forma (s) de vida” irá

surgir por uma necessidade de sua própria concepção de significado e mesmo

do sentido do empreendimento filosófico.

Sua proposta é que o significado surgiria a partir dos jogos de linguagem

empregados na prática de todos nós, cujo êxito comunicativo asseguraria seu

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valor, esclareceria suas flutuações, evoluções, sempre subordinadas ao

contexto em que se insere. Assim, um gesto, um monossílabo, um poema, uma

fórmula matemática teriam significado dentro daquele jogo de linguagem, em

que ocorrem.

“Quantas espécies de frases existem? Afirmação, pergunta e comando, talvez ? Há inúmeras de tais espécies: inúmeras espécies diferentes de emprego daquilo que chamamos de ‘signo’, ‘palavras’, ‘frases’. E essa pluralidade não é nada fixo, um dado para sempre; mas novos tipos de linguagem, novos jogos de linguagem, como poderíamos dizer, nascem e outros envelhecem e são esquecidos. (Uma imagem aproximada disto pode nos dar as modificações da matemática). O termo ‘jogo de linguagem’ deve aqui salientar que o falar da linguagem é uma parte de uma atividade ou de uma forma de vida. ...” (Wittgenstein, 1968:23)

A concepção pragmática de significado, apresentada por Wittgenstein,

tem a rigor implicações filosóficas radicais, uma vez que a linguagem deixa de

ser um veículo de expressão de pensamentos para ser o próprio meio onde

estes existem e têm sentido. Há uma forte recusa a qualquer forma de

linguagem privada e, conseqüentemente, a qualquer veleidade de

conhecimento privado. Juntamente com a centralidade que a linguagem passa

a ocupar, o mesmo ocorre com a intersubjetividade, pois, é na prática social

que surge um mundo significativo. Algo semelhante ocorrerá a respeito da

fundamentação, da justificação, conceitos que sempre acompanharam na

tradição filosófica a noção de conhecimento, como crenças verdadeiras

justificadas.

“Mas a fundamentação, a justificação da evidência tem um fim – mas o fim não é o facto de certas proposições se nos apresentarem como sendo verdadeiras, isto é, não se trata

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de uma espécie de ver da nossa parte; é o nosso actuar que está no fundo do jogo de linguagem.” (DC,204) “Se o verdadeiro é o que é fundamentado, então o fundamento não verdadeiro nem falso.” (DC,205)

Entendemos que esta proposta supera muitos dos impasses da

epistemologia anglo-saxã – com seus nunca resolvidos embates entre

relativistas e racionalistas ou correspondentistas e coerentistas – uma vez que,

juntamente com a noção de jogos de linguagem, surge como um pano de fundo

constitutivo a de forma(s) de vida. Os jogos obedecem a regras, mas estas não

são arbitrárias. Ou seja: a forma de vida na qual o jogo se desenvolve é o que

lhe dá sentido e evita a arbitrariedade. Não podemos estabelecer qualquer

jogo, ordenado por qualquer regra que não corresponda e atenda a uma

determinada forma de vida. Em conseqüência, esta última noção é que dará a

racionalidade do empreendimento. Racionalidade que se pretende universal,

por motivos lógicos e não psicológicos, ao mesmo tempo que admite outras

como coexistentes. Vemos, portanto, a proposta como pluralista e não como

uma nova modalidade de relativismo.

Wittgenstein dedicou seu último trabalho a uma reflexão sobre a certeza,

tema venerado pela tradição filosófica desde, pelo menos, Descartes. Contudo,

o escrutínio da noção de certeza muitas vezes foi relegado, dando margem a

importantes mal-entendidos que, no nosso campo de trabalho, assumem

peculiar importância. Lembremos que a certeza subjetiva (Leme Lopes,1982) é

da tríade jaspersiana característica do delírio o sintoma mais forte. Os outros

elementos seriam a impossibilidade de conteúdo e a irredutibilidade pela

argumentação lógica; porém, mesmo havendo plausibilidade do conteúdo (o

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que mais tarde foi descrito), a irredutibilidade que persiste, sustenta-se

justamente nessa certeza inquestionável.

Importante registrar que o afastamento de temas como os que a loucura

nos coloca, impediu por muito tempo uma discussão mais detida de

significativas diferenças, como as existentes entre “ter certeza” e “saber”.

Vejamos alguns parágrafos de Da Certeza:

“A quem é que alguém diz que sabe qualquer coisa ? A si mesmo ou a outra pessoa. Se o diz para si mesmo, como é que se distingue da afirmação de está seguro de que as coisas são assim ? Não há segurança subjectiva de que eu saiba qualquer coisa. A certeza é subjectiva, mas não o saber. Assim, se digo ‘Eu sei que tenho duas mãos’ e isso não for para expressar apenas a minha certeza subjectiva, então tenho de poder convencer-me de que estou certo. Mas não o posso fazer porque o ter duas mãos não é menos certo antes de ter olhado para elas do que depois. Mas podia dizer: ‘Eu ter duas mãos é uma crença inabalável’. Isso exprimiria o facto de que não estou disposto a aceitar qualquer invalidação desta proposição.” (DC,245 – grifo nosso) “’Cheguei aqui à raiz de todas as minhas convicções’. ‘Manterei esta opinião!’ Mas não será isto, precisamente, só porque estou plenamente convencido? – O que é: ‘estar plenamente convencido’?” (DC,246) “Como seria duvidar agora de que tenho duas mãos? Porque será que não o posso imaginar de modo algum? Em que acreditaria, se não acreditasse nisso? Até agora não tenho sistema algum que pudesse incluir essa dúvida.” (DC,247 – grifo nosso)

Todo o esforço de Wittgenstein, através de inúmeros exemplos, é o de

delinear o espaço lógico para a dúvida, para o erro, para as afirmações

inquestionáveis (lógicas) que configurariam uma gramática. É bom frisar que

nesta concepção filosófica nada é fixo, podendo proposições empíricas –

sujeitas à verificação pela experiência – tornarem-se metodológicas, não

passíveis de questionamento sem que todo o sistema seja posto em dúvida.

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No mundo de Schreber, por exemplo, ou, em sua peculiar

forma de vida, certas dúvidas não caberiam, o que nos causa natural

perplexidade. Se, frustrados com esta primeira incomunicabilidade, nos

afastarmos de seu discurso, perderemos a oportunidade de observar estarmos

diante de uma diferente gramática. Julgamos que perplexidade semelhante a

que experimentamos, ocorre também com o paciente, pelo menos, no período

inicial da doença (há várias menções neste sentido nas Memórias). Está ele

lutando contra os limites da linguagem, tentando expressar algo que, do ponto

de vista aqui defendido, não adquiriu significado, não pertence a um jogo de

linguagem do conhecimento, mas que ele acredita, tem certeza de existir.

Especulamos que o delírio cria esta ontologia bizarra, mas, até certo ponto,

tranqüilizadora. O “terror sem nome” passa a receber um nome, inédito e

inapropriado para a nossa usual gramática. Mas antes de falarmos de

Schreber, devemos apresentar algumas das contribuições de Bion que

associamos às de Wittgenstein para formular nossa hipótese do delírio como

uma bizarra forma de vida.

4 – OBJETOS BIZARROS, A TEORIA DAS TRANSFORMAÇÕES,

TRANSFORMAÇÃO EM ALUCINOSE, SEGUNDO BION

Ante a impossibilidade de uma exposição detalhada desses temas,

lembraríamos apenas que desde O Caso Schreber, Freud chama a atenção

para o mecanismo da projeção como sendo característico das psicoses.

Contudo, no correr de sua obra não esclarece em que consistiria a

peculiaridade da projeção psicótica, uma vez que nas neuroses também ocorre

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projeção. Sabemos que diversos autores procuraram dar conta desta questão –

como Melanie Klein e Lacan, por exemplo. Em nossa linha de trabalho,

seguimos as formulações de Bion – que partem da noção kleiniana de

identificação projetiva – expressas desde seus primeiros trabalhos (Bion,1956).

Assim, descreveu inicialmente os objetos bizarros como “... partículas do ego

expelidas que levam uma vida independente e sem controle ... ora contendo,

ora sendo contidas pelos objetos externos onde exercem suas funções, como

se a provação a que se submeteram servisse apenas para aumentar-lhes o

número e provocar nelas hostilidade contra a psique que as expulsou.” Tais

objetos que recebem estas projeções podem ser personalidades ou objetos

inanimados, daí o “gramofone que vê”, daí o mundo bizarro no qual o paciente

vive. Novos comentários sobre os objetos bizarros irão mostrar sua complexa

composição, com partes do super-ego, assim como sua desarmoniosa

configuração, pois, aglomeram-se e não se articulam, podendo os monstros

mitológicos serem bons representantes. É neste sentido que falamos de

bizarrice, característica que pode passar despercebida nos casos mais sutis

(lembremo-nos de certas queixas hipocondríacas renitentes que podem levar

até a cirurgias desnecessárias, ou, de certos processos de reivindicação de

heranças). Quanto à teoria das transformações, consideramo-la como uma

caesura na obra de Bion – uma passagem de suas tentativas epistemológicas

de dar conta da experiência analítica para a criação de um modelo próprio mais

propício para pensar a psicanálise, sem o abandono das velhas questões,

agora vistas de um novo ângulo. Neste sentido, extraímos da proposta bioniana

de transformação em alucinose a noção de regras capazes de dar sentido ao

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que antes seria puro nonsense. Recordamo-las apenas para usá-las na seção

seguinte:

“... As regras de transformação em alucinose devem ser estabelecidas por intermédio de observação clínica. Não tenho nenhuma dúvida de sua existência e podem ser delineadas pela observação de inveja, avidez, rivalidade, superioridade ‘moral’ e científica operando na alucinose. Ofereço provisoriamente as seguintes sugestões como exemplo de tais ‘regras’. A. Se um objeto é o ‘máximo’, ele dita ‘ação’; é superior em

todos os aspectos em relação a todos os outros objetos e é auto-suficiente e independente deles.

B. Objetos que podem ocupar tal posição incluem (a) Pai, (b) Mãe, (c) Analista, (d) Objetivo, objeto ou ambição, (e) Interpretação, (f) Idéias, sejam morais ou científicas.

C. A única relação entre dois objetos é a de superior para inferior.

D. Receber é melhor do que dar.” (Bion, 1977:133)

5 – O CASO SCHREBER COMO UM ESTUDO DE CASO

Em nossa pesquisa revisitamos Schreber, explorando diversos aspectos

do caso, utilizando noções oriundas de Cavell, Wittgenstein e Bion, com ênfase

nos seguintes pontos: O Irracionalismo Interno; O Delírio como uma Forma de

Vida; As Fontes Intersubjetivas do Delírio; O Método da Loucura; Bizarrice e

Nonsense no Delírio de Schreber; A Língua Fundamental e A “Verdade

Histórica” no Delírio de Schreber.

Procuramos fazer um exercício de articular os pontos de vista filosófico e

psicanalítico para a compreensão de um caso que, dada a sua riqueza, pede a

utilização de diversos vértices. Por outro lado, estávamos interessados em dar

conta da segunda questão que mencionamos na Introdução. Como, por motivo

de espaço, só poderemos apresentar conclusões, gostaríamos de deixar claro

que nenhuma delas é definitiva, mas são promissoras e indicativas de que o

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trabalho conjunto é inescapável. Daremos dois exemplos: discutir meramente

sob o ponto de vista filosófico o irracionalismo interno de Schreber – o

contraste entre seu delírio, suas Memórias e sua defesa da suspensão da

curatela – deixaria de lado o aspecto dinâmico da interação destes aspectos de

sua personalidade e não permitiria a compreensão de como se

“harmonizaram”, embora o mais correto seria dizer: como “conviveram”, pois, o

delírio tem uma dimensão de fracasso que não deve ser esquecida, sob pena

de ignorarmos também o seu peculiar sofrimento. E esta dinâmica é uma

contribuição própria da psicanálise. Outro exemplo: a afirmação de Freud de

que há método na loucura de Schreber ficaria insuficiente, presa a uma

circularidade de interpretações psicanalíticas, se não levássemos em

consideração as noções wittgensteinianas de jogos de linguagem, seguir

regras ou gramática. As regras de transformação em alucinose seriam boas

candidatas neste caso. Estamos cientes que tal articulação levanta sempre

novos problemas que devem ser enfrentados caso não desejemos fazer uma

falsa e apaziguadora sustentação filosófica para a psicanálise. No exemplo em

discussão, caso desejemos defender – como é nosso intuito – que o delírio de

Schreber segue regras, sendo, portanto, significativo, o que não lhe retira o

caráter de nonsense (lembremo-nos: “Quando se diz que uma frase não tem

sentido, não é que seu sentido, por assim dizer, não tenha sentido. Mas que

uma combinação de palavras é excluída da linguagem, é retirada de

circulação” Wittgenstein, IF,500), devemos indicar de que prática social aquela

linguagem – ou seus resquícios – se origina. Julgamos responder a esta

pertinente questão, apontando para as primitivas relações intersubjetivas,

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fontes do delírio, sendo que no caso temos o respaldo das importantes

pesquisas de Niederland e Baumeyer sobre o ambiente familiar de Schreber.

Não ignoramos, contudo, que por mais terrorífica que tenha sido aquela forma

de vida schreberiana, pelo menos, uma de suas irmãs – Klara – teve um bom

desenvolvimento emocional, segundo as mesmas pesquisas. Tudo isso pede

mais investigação.

A idéia de ver o delírio como uma bizarra forma de vida surgiu da própria

pesquisa e não tem pretensão alguma além de propor uma outra forma de ver

as coisas. A vantagem que encontramos neste enfoque seria não só a de

superar velhos debates quanto à apropriação da loucura pela medicina,

psiquiatria ou pela própria psicanálise, mas, em particular, de colocar novas

questões que julgamos promissoras para a aproximação de uma manifestação

que é um milenar desafio. Referimo-nos à busca, ou, reconhecimento de um

solo comum capaz de tornar possível o diálogo com a loucura, melhor ainda,

com o louco, uma vez que colocamos a racionalidade no agente, não em suas

afirmações – que se podem até tornar racionais em novos contextos – mas

com sua prática, sua maneira de relacionar-se. Freqüentemente nesta tradição

filosófica se coloca a discussão do solo comum no encontro de um conjunto de

crenças em comum que permitiria a divergência, o conflito, mas no

reconhecimento de uma linguagem. Entretanto, pensamos que a psicanálise

tem algo a oferecer neste terreno, a partir suas teorias sobre os afetos, as

relações pré-verbais – que se constituem na primeira linguagem – e ocorre-

nos, a título de exemplo, a teoria dos vínculos de Bion, capaz de lançar luz ao

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sentido que as comunicações podem adquirir, às distorções a que estão

sujeitas e ao constante caráter performativo da linguagem.

5 – IMPLICAÇÕES E DESENVOLVIMENTOS

É natural que se pergunte, após esta sumaríssima exposição, qual a

vantagem desta aproximação ao fenômeno da loucura? Nós mesmos nos

perguntamos várias vezes. Vemos algumas.

Julgamos que com ela podemos retirar a loucura dos subúrbios da

filosofia, trazendo-a para o seu devido espaço lógico como vizinha da razão.

Não vemos originalidade na proposta, exceto na sugestão de tomar a noção

wittgensteiniana de forma(s) de vida como veículo de tal mudança. Nisto só

encontramos companhia em pesquisa semelhante que realizou Hans Rudi

Fischer (1991), citado por um autorizado comentador de Wittgenstein, Newton

Garver, que nos chama a atenção para o aspecto de normalidade que

usualmente acompanha a noção de forma de vida, vista como o

“comportamento comum da humanidade”; porém, faz parte também de tal

comportamento a guerra que Montaigne já considerava a “doença da

humanidade”. Assim, consideramos que nossa interpretação da loucura como

uma forma de vida, esteja mais próxima dos “fatos da vida”, da referência a

“esta complicada forma de vida” e, sobretudo, das afirmações que Wittgenstein

faz quando fala da móvel cerca que separa o com sentido (consentido) do sem

sentido. Nesta linha de pensamento concordamos com Luis Claudio Figueiredo

(2005) que o fazer sentido é uma atividade, acrescentando que o fazer delírio

(ou loucura) também é uma atividade. O afastamento da razão da loucura é

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uma fonte de equívocos e de falsos problemas. O sem sentido e o com sentido

estão em permanente interação, caso pensemos numa razão sadia (feliz

expressão de HiIlary Putnam). Por razão sadia entendemos aquela atividade

capaz de acolher qualquer pensamento, qualquer sentimento, integrando-os

num permanente diálogo. Toda exclusão – ensina-nos a clínica – é um

empobrecimento, um ato de violência. Tanto a loucura quanto a sanidade não

escapam desta tentação totalitária. Canetti (1983) descreve com perspicácia o

mito do único sobrevivente, que aparece no delírio de Schreber. Uma visão

solipsista que encontra seus equivalentes em outros mitos – tão cultuados ao

longo da história – como os de supremacia racial, povo eleito, elites culturais ou

civilizatórias. Por outro lado, concordamos também com Santner (1997) que, ao

contrário de Canetti, vê em Schreber, a luta contra a opressão totalitária: sua

loucura seria uma desesperada denúncia do submetido. As duas

interpretações, a rigor, não se excluem. Tratam do homem e de sua loucura,

impossível dissociá-los.

Outra vantagem: o reconhecimento de nosso solo comum (esta

complicada forma de vida: o comportamento comum da humanidade); o

afastamento de falsas opções quer racionalistas (loucura como uma entidade

em oposição à razão) quer relativistas (loucura como um construto histórico-

social); uma atitude mais promissora quanto a uma comunicabilidade

necessariamente difícil mas não impossível; assim como menos idealizada

quanto ao que entendemos por comportamento racional e comportamento

irracional ou louco. Certamente há gradações importantes entre estes

extremos, como a irreflexão ou insensatez (ver: Marinho, N. 2000).

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Resumindo, pensamos que a implicação primeira é o humilde

reconhecimento de nosso solo comum, tema que pede mais pesquisa. Outras

seriam: a necessidade de uma articulação do conceito – forma(s) de vida – em

seu emprego clínico e sua utilização para uma crítica da cultura (fizemos um

exercício a respeito, tomando o tema da guerra como objeto de investigação.

Ver: Marinho, N. 2003); além de um amplo campo de trabalho em conjunto que

se abre com as contribuições de Wittgenstein (1980, 1986) à filosofia da

psicologia que são paralelas a investigações de psicanalistas ligados à teoria

de relações de objeto, como Meltzer (1986) e Thorner (1981), referimo-nos a

conceitos como: cego para o significado, atmosfera (na constituição do

significado), atitude, além da questão muito debatida sobre o interno e o

externo, na vida mental (ver: Jordan Moore, 2005).

Os candidatos a invariantes da loucura que se apresentaram nesta

segunda fase foram: pretensão a um conhecimento privado; peculiar (bizarra)

forma de vida; peculiar certeza; irracionalismo interno um; peculiar sofrimento

mental; particular e persistente (crônica) maneira de ver as coisas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

(Nota: no texto utilizamos as abreviaturas, IF para Investigações Filosóficas e

DC para Da Certeza; assim como mantivemos a grafia das traduções

utilizadas. Nos textos de nossa autoria se pode encontrar uma bibliografia

detalhada dos textos utilizados na pesquisa, muitos não mencionados nesta

breve apresentação. Algumas expressões em itálico são próprias de

Wittgenstein, não sendo possível sua exposição apenas as registramos como

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indicações aos interessados. Os nossos trabalhos podem ser encontrados no

site da SBPRJ: www.sbprj.org.br).

Bion, W. R. (1956) Desenvolvimento do Pensamento Esquizofrênico, in

Estudos Psicanalíticos Revisados (Second Thoughts), Rio: Imago, 1994.

____. (1963). Os Elementos da Psicanálise. Rio: Zahar, 1966.

____. (1965). Transformações. Rio: Imago, 2004.

Canetti, E. Massa e Poder. São Paulo: Melhoramentos, 1983.

Cavell, M. The Psychoanalytic Mind, from Freud to Philosophy. Cambridge:

Harvard University Press, 1996.

Figueiredo, L. C. A Questão do Sentido, a intersubjetividade e as teorias de

relações de objeto. Trabalho apresentado no Painel: Psicanálise e

Filosofia – Implicações da Teoria de Relações de Objeto. 44º.

Congresso Internacional de Psicanálise (IPA). Rio, 2005.

Fischer, H. R. Sprache und Lebensform. Heidelberg: Auer, 1991.

Freud, S. (1911c) Psycho-Analytic Notes on an Autobiographical Account of a

Case of Paranoia (Dementia Paranoides). S.E. XII.

Janik, A. & Toulmin, S. A Viena de Wittgenstein. Rio: Campus, 1991.

Jordán Moore, J. F. Realidad extena/realidad interna: dicotomia real?, in

Verdad, Realidad y el Psicoanalista: contribuciones latinoamericanas al

psicoanálisis. London: API, 2005.

Marinho, N. A psicanálise entre o passado e o futuro – notas sobre o “pensar”

em Hannah Arendt e W. R. Bion. Revista Brasileira de Psicanálise, v. 34

(3): 475-494, 2000.

____. Discussão da Racionalidade da Teoria Psicanalítica a partir da

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Epistemologia de Karl Popper – Avaliações, Impasses, Alternativas.

Dissertação de Mestrado. Departamento de Filosofia PUC-Rio, 2001.

____. Sobre a Guerra e a Paz. A Aporia Freudiana. In, Trieb, vol. 2 no. 2,

setembro, Rio, 2003.

____. Razão e Psicanálise. “O Caso Schreber (Freud,1911)”, Revisitado a

partir das Contribuições de Marcia Cavell e Ludwig Wittgenstein. Tese

de Doutorado. Departamento de Filosofia PUC-Rio, 2006.

Meltzer, D. The Limits of Language. In, Studies in Extended Metapsychology.

London: Clunie Press, 1986.

Popper, K. (1963) Conjecturas e Refutações. Brasília: Ed. Universidade de

Brasília, 1972.

Santner, E. L. A Alemanha de Schreber. Rio: Jorge Zahar. 1997.

Schreber, D. P. Memórias de um Doente dos Nervos. Rio: Edições Graal, 1984.

(Trad. Marilene Carone).

Thorner, H. Either/Or. A Contribution to the problem of symbolization and

sublimation. In, International Journal of Psychoanalysis, 62, 379-502,

1981.

Wittgenstein, L. Investigações Filosóficas. São Paulo: Nova Cultural, 1991.

____. Da Certeza. Lisboa: Edições 70, 1990.

____. Remarks on the Philosophy of Psychology. Oxford: Basil Blackwell, 1980.

____. Últimos escritos sobre Filosofia de la Psicologia. Lo Interno y lo Externo.

Madrid: Editorial Tecnos, 1996.

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