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Organiza Federación Psicoanalítica de América Latina Septiembre 13 al 17 de 2016 Cartagena, Colombia “AUSÊNCIAS NO CORPO E NA EXISTÊNCIA: ALGUMAS REFLEXÕES PSICANALÍTICAS” Sandra Bear, Janet Alizo Eixo: O Corpo na clínica Palavras-chave: Defeito congênito, atrésia esofágica, psicanálise aplicada, angústia de morte, rêverie. Resumo Este trabalho pertence à área da psicanálise aplicada. Mostra a abordagem clínica realizada entre 2011-2015 com 20 mães de crianças com idades entre 5 meses e 8 anos, diagnosticadas com Atresia Esofágica, o qual é um defeito congênito do sistema digestivo, repercussão na forma de se alimentar para toda a vida. A informação provém da clínica, surgindo a hipótese e pensamento psicanalítico baseado na escuta e observação da díade mãe-filho. A ausência de um órgão necessário para a vida e a vulnerabilidade implícita, motiva a inquietude por compreender o efeito e representação na psique da mãe e o vínculo com seu filho, devido ao nível de sofrimento psíquico, à angústia de morte e às experiências subjetivas referidas do diagnóstico, até a resolução cirúrgica e depois dela. Do ponto de vista teórico, foram seguidas as ideias de Bion e outros autores. O rêverie destas mães se encontra seriamente perturbado, devido ao impacto emocional pela condição médica de suas crianças, a qual, desde o

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Septiembre 13 al 17 de 2016 Cartagena, Colombia

“AUSÊNCIAS NO CORPO E NA EXISTÊNCIA:

ALGUMAS REFLEXÕES PSICANALÍTICAS”

Sandra Bear, Janet Alizo

Eixo: O Corpo na clínica

Palavras-chave: Defeito congênito, atrésia esofágica, psicanálise aplicada, angústia de

morte, rêverie.

Resumo

Este trabalho pertence à área da psicanálise aplicada. Mostra a abordagem clínica realizada

entre 2011-2015 com 20 mães de crianças com idades entre 5 meses e 8 anos, diagnosticadas

com Atresia Esofágica, o qual é um defeito congênito do sistema digestivo, repercussão na

forma de se alimentar para toda a vida. A informação provém da clínica, surgindo a hipótese

e pensamento psicanalítico baseado na escuta e observação da díade mãe-filho. A ausência de

um órgão necessário para a vida e a vulnerabilidade implícita, motiva a inquietude por

compreender o efeito e representação na psique da mãe e o vínculo com seu filho, devido ao

nível de sofrimento psíquico, à angústia de morte e às experiências subjetivas referidas do

diagnóstico, até a resolução cirúrgica e depois dela. Do ponto de vista teórico, foram seguidas

as ideias de Bion e outros autores. O rêverie destas mães se encontra seriamente perturbado,

devido ao impacto emocional pela condição médica de suas crianças, a qual, desde o

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momento do nascimento, é incompatível com a vida, circunstância que implica ausências e

que leva perdas, o que requer um trabalho de luto, que é árduo de levar adiante pela

dificuldade de suportar a dor e a frustração.

Desenvolvimento

O presente trabalho pertence à área da Psicanalise Aplicada e está localizado no Eixo do

Corpo na Clínica. Ele está baseado na experiência clínica levada adiante em um centro de

saúde, a qual incluiu a atenção psicológica de famílias, cada uma com um filho diagnosticado

com Atrésia Esofágica.

A Atrésia Esofágica (AE) é uma malformação congênita ou defeito do desenvolvimento

pouco frequente, que consiste na interrupção da continuidade do esôfago, com ou sem

presença da fístula traqueio-esofágica, e que pode estar ligada ou não a outras malformações.

Embora é incompatível com a vida, com um tratamento cirúrgico oportuno, é possível a

supervivência do pequeno paciente.

São recém-nascidos que requerem urgentemente de várias intervenções cirúrgicas: uma

gastrostomia, para poderem ser alimentados por uma sonda que vai direto para o estômago e

evitar, dessa maneira, que morram de inanição; uma esofagostomia, que permite a

comunicação do esôfago com o exterior do pescoço, para a saída da saliva; e o fechamento da

fístula traqueio-esofágica (nos casos requeridos), para evitar as complicações médicas

próprias do passo da saliva à árvore respiratória e os possíveis afogamentos. Após este

processo, a mãe deve tentar que a criança ganhe o peso necessário para poder ser submetida à

resolução cirúrgica da AE, e é para isto que vão para o centro de saúde. Essa cirurgia consiste

em uma ascensão gástrica, a qual procura a união entre o esôfago e o estômago, para que a

criança possa se alimentar pela boca, ficando a câmara gástrica no tórax, isto é, que o

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estômago fica localizado no peito. É recomendável fazer esta intervenção antes do primeiro

ano de vida, mas, em muitos casos só foi possível realizá-la depois desse primeiro ano, e, em

outras crianças, muito depois, por ser uma intervenção muito custosa. Os escassos recursos

econômicos das famílias e a atual situação socioeconômica e de saúde de nosso país adiaram-

na. Uma vez feita a cirurgia e depois da alta hospitalar, estas crianças ficam –para toda a

vida- com cuidados especiais para poder comer (elas devem comer e beber poucas

quantidades muitas vezes por dia e muito devagar), pelo risco continuo de se afogar. Além

disso, elas podem requerer múltiplos procedimentos médicos depois disso, como, por

exemplo, dilatações esofágicas periódicas. Ainda assim, algumas crianças, infelizmente,

morrem por complicações médicas ou se afogam com comida ou líquidos, inclusive muito

tempo depois de ter sido intervindos.

No tocante à experiência clínica

A experiência clínica, na qual está baseada a apresentação, consistiu na realização de três

a cinco entrevistas pré e pós-cirúrgicas para cada grupo familiar (pai, mãe e filho ou mãe e

filho). Os objetivos dessas entrevistas familiares foram: preparar emocionalmente aos pais

para a intervenção cirúrgica de seu filho; determinar a presença de desorganização psíquica

ou angústia extrema nos adultos encarregados da criança, a qual impossibilitasse a delicada

atenção pré e pós-operatória requerida; pesquisar elementos do ambiente (deslocamento,

recursos econômicos, rede de suporte) que tornassem difícil o seguimento do plano médico.

Igualmente, de maneira simultânea e de acordo com a idade da criança, foi oferecido um

espaço de brinquedos, para tentar se aproximar a elas através da observação de seu estado

emocional e desempenho em outras áreas de seu desenvolvimento. A idade destas crianças

oscilava entre os 5 e os 8 anos de idade.

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No tocante a este trabalho

Para o objetivo do presente trabalho foram utilizadas as noções de vários psicanalistas

(W.R Bion, D. Winnicott, M. Mahler, e A. García) para, dessa maneira, tentar esclarecer um

pouco a prática clínica que foi levada adiante.

É esta uma tentativa de compreensão desde a psicanalise da vivência psicológica,

especialmente da mãe e do elo que cada uma delas tem com seu filho em circunstâncias tão

difíceis para a vida dos dois. Da mesma maneira, algumas hipóteses e perguntas serão

colocadas, no que diz respeito ao mundo mental destas crianças afetadas com Atrésia

Esofágica.

Reflexões Psicanalíticas

A função rêverie é um dos conceitos de W.R. Bion que surge na cabeça da psicanalista,

tanto na observação destas mães tentando atender, alimentar e oferecer atenção médica a seus

filhos com AE, quanto na aproximação e imersão nas vivências subjetivas e intensas de

ansiedade, medo e impotência referidas por essas mães. O rêverie é um conceito formulado

pelo Bion a partir da relação continente-conteúdo estabelecida entre a mãe e seu filho. Esta

relação implica que a mãe possa dar sentido ao projetado, quanto a sentimentos prazenteiros e

não prazenteiros, usando sua sensibilidade, experiência, seu aparelho de pensamento, bem

como aquilo que conhece de seu filho em um contexto determinado, e, além disso, que possa

entregá-lo de volta, de alguma maneira transformado, com a qualidade e a intensidade que

seu filho possa gerenciar.

“(…) Rêverie é aquele estado anímico que está aberto à recepção de qualquer

‘objeto’ por parte do objeto amado e, portanto, é capaz de receber as identificações

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projetivas do lactente, sejam elas sentidas pelo lactente como boas ou ruins. Em

resumo, o rêverie é fator da função alfa da mãe” (Bion, p.58-59, 1962).

Em nossa experiência, a função alfa da psicanalista, isto é, aquela função que transforma

as impressões sensoriais em elementos que podem ser pensados, bem como sua capacidade

de ouvir e conter, tornou mais fácil que as mães pudessem tolerar progressivamente a

vivência de vulnerabilidade e, em ocasiões, a desorganização psíquica perante a fragilidade

da vida do filho recém-nascido. Com a chegada da criança, no momento do parto, elas

percebem a realidade, elas se encontram com a dificuldade específica de seu filho: “Ele não

pode ser alimentado pela boca! ”, porque seu pequeno corpo vem incompleto, não há união

entre seu esôfago e seu estômago, “Algo está faltando! Como é que eu vou alimentá-lo?

Como é que eu vou saciar sua fome? Porque ele está com fome! ” A partir daí, começam os

sentimentos de impotência, ansiedade, incerteza, e, especialmente, de angústia perante a

possibilidade da morte da criança. Surgem intensos sentimentos contraditórios “eu lhe

amo...mas não assim! Por que minha criança? O que aconteceu? Que foi o que faliu? ” Os

pensamentos irrompem violentamente perante a incompreensão da condição congênita que

traz o bebê. Sabemos que esta ambivalência não é exclusiva na mãe de um bebê doente,

evidentemente não; as mães de bebês sãos também lidam com sentimentos ambivalentes, mas

em elas a angústia diminui enquanto se confirma que seu bebê está são. Agora bem, no caso

das mães atendidas, o caminho é outro, a realidade aumenta e confirma seus medos: seu

bebê vem com uma malformação anatômica que pode conduzir até a morte. Elas ficam

invadidas de angústia, sem poder conter ao bebê que chora continuamente, que se prende e

apega com ansiedade a elas e que se manifesta irritável: “Eu não sabia o que fazer, como

fazê-lo...não podia assimilá-lo...eu estava com muito medo, não sabia nem sequer o que tinha

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meu bebê... não queria que ninguém soubesse nada! ” Elas têm que lidar com elementos

estranhos ao corpo da criança, uma sonda que se torna em seu ‘salva-vidas’, que será a

prolongação de seu corpo, e um emplastro ou compressa de tela no pescoço, que servirá de

receptor da saliva e de qualquer fluido ou alimento que estiver na boca. O trabalho da

psicanalista incluiu oferecer um continente a estas mães, para tentar ajudá-las no processo

de lidar com as vivências difíceis de assimilar que elas estavam sofrendo. Isto foi realizado

de acordo com a função rêverie própria da díade mãe-filho. É provável que uma experiência

terapêutica de mais longa duração tivesse fortalecido a introjeção do modelo continente-

conteúdo, para que tal configuração no aparelho de pensamento das mães permitisse

compreender e integrar as impressões sensoriais e as experiências impactantes que elas

estavam experimentando.

Usando os termos de Bion, nestas mães, a preconcepção (a qual corresponde a um estado

de expectativa, a um elemento mental não saturado ainda por uma realização) da maternidade

oferecendo alimento para a alma e para o corpo através do peito, fica sem a correspondente

realização. Em vez disso, há um vazio e uma dor por esse vazio. Amamentar ao filho é

angustiante e elas costumam evitá-lo. Certamente, nenhum bebê chega ao mundo com um

‘manual de instruções’ que torne mais fácil a realização das múltiplas preconcepções

referidas à maternidade, mas na condição da AE predomina o desconcerto total. A equipe de

saúde oferece aulas de “emergência” à mãe para que ela possa alimentar a esse bebê, mas

“isto não é o que eu esperava, não são as histórias das amigas ou da família! ” Isto é algo

não conhecido. A fantasia que a mãe tem do que seria a relação com seu bebê recém-nascido

não se ajusta à realidade. “Não sei o que fazer, não sei como atendê-lo. Não deixava que

ninguém o tocasse...eu não dormia, nem comia! Acondicionei minha casa como se fosse uma

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clínica, pelo medo que eu tinha de que ele pudesse morrer. ” Algumas mães, muito poucas,

contaram com um familiar ou uma pessoa próxima a elas com conhecimentos de enfermaria,

o que, pelo menos, lhes assegurava uma melhor execução da técnica. Esta vivência tem sua

contraparte no bebê, que também não consegue fazer o encontro com a realização da

preconcepção de mamar para assegurar seu sustento para a vida biológica e afetiva. Em

ambos existe uma ausência com a qual é difícil tratar; são buracos no Ser.

Em seu trabalho sobre A Nada e a Existência, o Dr. Antonio García (2009) assinala a

importância de discriminar na análise quando é que os vazios se referem às ausências e

quando se referem às perdas, já que não se lida igual com um, do que com o outro. Na

ausência, o impacto emocional é muito maior e diferente do que na perda, e os sistemas

defensivos para mitigar as emoções inerentes são extraordinariamente mais intensos e

destrutivos (...). Não podemos lidar com um buraco da mesma maneira que lidamos com uma

perda (p.61).

Na perda, as emoções estão mais ligadas à tristeza e à saudade; na ausência, estão mais

ligadas ao vazio e ao sentimento da falta de algo, que nunca se teve, que não se conhece e

pelo qual é preciso fazer um trabalho de luto mais intenso, para, dessa maneira, ir tolerando a

dor e a frustração, no caso da mãe, de ter dado à luz a um bebê com um defeito congênito, ou,

no caso do filho, de ter nascido sem um trecho do esôfago, o que muda radicalmente a

maneira de viver dos dois.

Embora a mãe faça seu melhor esforço, ela igual fica invadida pelas circunstâncias,

impactada, confundida e superada por suas emoções. Ela precisa de grandes quantidades de

apoio exterior, requer de contenção, de escuta, de braços físicos e psíquicos que possam

sustentá-la. Algumas mães expressaram que se sentiram muito sozinhas na atenção de seu

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bebê, agoniadas, aflitas e extenuadas. “Meu maior medo é que meu filho pudesse morrer...

mas eu fiz frente a esse medo sozinha, sem ninguém, nem o pai, nem a minha família me

ajudou. ” Nesta solidão afetiva, sentindo que estão abandonadas elas e o bebê, nesta

circunstância de ameaça de morte da criança, observa-se e intui-se uma penosa tentativa de

comunicação primitiva destas mães com seu ambiente através das identificações projetivas.

Esta forma de comunicação tenta fazer sentir ao outro o que a pessoa está sofrendo, já que

não há palavras, nem representação mental que permita expressá-lo de uma maneira mais

evoluída psiquicamente. No entanto, o ambiente ou entorno, que pode ser o pai do bebê, a

família ou as amigas, parecem não se deixar encher por aquilo que estas mães estão

projetando; eles não as escutam. É provável que seja muita a impotência e o medo deles, de

sustentar física e psiquicamente a uma criança com uma mangueirinha no estômago, com um

buraquinho no pescoço, que chora frequentemente e que tem fluidos saindo de seu corpo.

Quando as identificações projetivas não são recolhidas pelo outro, o cadastro psíquico

que fica é de vazio lá fora... um vazio desorganizador que deixa a essas mães atropeladas por

sensações e impressões de que não conseguem identificar, atender, pensar, para poder –

seguindo o uso que podemos dar a cada um dos níveis do pensamento na Tabela de Bion-,

agir de uma maneira que sirva de contenção para elas e para seus filhos. É o “terror sem

nome” que descreve Bion.

Nas entrevistas, as mães expressaram aterrorizadas seu impacto pela situação. Elas se

perguntavam... “O que é isto? Como é que eu faço? Eu tenho que levar meu bebê para a

casa assim, com essa mangueirinha? Estou com muito medo de não saber fazê-lo

corretamente ou de não saber o que fazer, por exemplo, se a mangueirinha fica tapada,

obstruída, infetada! ” São mães permanentemente preocupadas, sofrendo intensamente por

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medo a que seu bebê não se alimente bem e possa morrer de desnutrição ou afogado. “Às

vezes eu sinto que não posso com tanto... eu só estava com vontade de chorar... sentia

angústia, medo, impotência” ... “minha maior angústia é que ele não se afogue com a

saliva”. É sua responsabilidade alimentá-lo, mas não pela boca. As crianças maiores

também expressaram sua ansiedade de se afogar com a comida. Observou-se como algumas

mamães com recursos para conter seu bebê, imersas em um contexto externo mais

favorecedor, após ultrapassada a etapa de emergência, tiravam o leite materno e

introduziam-no pela sonda da gastrostomia do filho, e, além disso, colocavam a criança no

peito para que ele mamasse, o que ofereceria o calor afetivo através do contato, ainda

quando o leite não chegasse até o estômago do bebê e saísse pela abertura no pescoço. A

experiência de sugar, apesar das circunstâncias, e, mais na frente, de mastigar a comida, é

recomendada para evitar que apresentem logo da intervenção cirúrgica, dificuldades na

deglutição. No entanto, como foi mencionado anteriormente, esta experiência, que é a mais

recomendável no nível médico, é diferente e não encaixa com a preconcepção de se prender

ao peito da mãe. No que diz respeito a isto, ficamos interessados em conhecer como a

existência da criança ficou marcada por esta experiência particular de alimentação. São

crianças que indubitavelmente experimentam a Fase Oral, mas nos perguntamos sobre as

necessidades orais delas, sobre as caraterísticas desta fase nestas crianças. A imagem de

uma mãe injetando o alimento por uma sonda fica muito longe da imagem de amamentar,

daquilo que é natural; e aquelas mães que conseguiam introduzir o peito na boca de seu

filho, embora o leite não ficasse no corpo, manifestaram estar mais preocupadas por “fazê-

lo bem. ”

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Do ponto de vista de Winnicott, nestes casos a “preocupação maternal primária” está

focalizada em manter a vida do filho; o tempo, a casa, a mente, tudo é organizado para que o

bebê coma e não morra... para que não se afogue e não morra. A ameaça de morte estrutura a

rotina e a psique materna ao redor da defesa da vida. É o instinto de vida identificado por

Freud em pleno apogeu em mães e filhos. Este impulso para a vida é tão potente, que nas

entrevistas se observaram crianças com vontade de explorar, com capacidade para brincar,

para se divertir, para imaginar e criar... com vontade e força para viver e não apenas para

sobreviver.

As mães tinham “demasiadas coisas novas por aprender! ” Elas devem assimilar de

maneira imediata e urgente uma linguagem e uns métodos desconhecidos para elas e para

seu ambiente familiar. O médico indica: “Você tem que fazer isto agora! ”, somado ao terror

de que “senão ele vai morrer! ”. Winnicott (1967) define a “preocupação maternal

primária” como a “capacidade da mãe de ter um alto grau de adaptação às necessidades de

seu bebê” (p.28). É essa faculdade na mãe, depois de estar um pouco mais recuperada física

e psiquicamente, o que lhe permite aprender rapidamente estas tarefas nunca antes

imaginadas. Quase todas as mães se tornam peritas na limpeza da sonda, na determinação

do nível de fome e saciedade, outras inclusive são especialistas aspirando o excesso de

saliva, nos casos em que não foi realizada a esofagostomia na criança recém-nascida, e

quando os filhos crescem, são especialistas em lhes ensinar como mastigar e cuspir o

alimento.

Não contamos com estudos longitudinais que permitam conhecer a vida destas crianças

enquanto elas vão crescendo. Contudo, é possível intuir que as ausências, produto das

preconcepções que ficaram sem realização, a incompletude física e o rêverie perturbado das

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mães pelo terror sem nome que lhes invade, deixaram impressões sensoriais e experiências

emocionais que não têm representação mental, que não podem se integrar ao aparelho

psíquico e ao Ser, pelo que ficam inseridas ou arraigadas como elementos beta, para utilizar o

termo de Bion. Esses elementos, por sua natureza, tentam ser evacuados desde dentro e até

agora pudessem estar se evidenciando nas crianças em seus choros frequentes, em sua

irritabilidade, sua dificuldade para dormir e na fome desaforada que chega até o afogamento,

depois das intervenções cirúrgicas. Foram descritas crianças que depois de serem operadas

expressaram sentir “muita fome”. Por sua parte, as mães disseram que: “Ele come de tudo e

muito, sofre de fome, não fica satisfeito! Acorda pelas noites para comer...eu tenho que ficar

muito atenta, não posso deixá-lo sozinho, fico com medo de que coma qualquer coisa e que

se afogue. ” Outra maneira de compreender o apetite voraz é como uma “fome de viver, de se

comer o mundo”, depois de que o esôfago e estômago ficam unidos e lhes é permitido

engolir. Entre a população de crianças observada, a maioria apresentou muitos destes

sintomas ou condutas; ainda assim, também pudessem haver outras crianças que não tenham

a suficiente tolerância à frustração de não ter trazido para a vida um aparelho digestivo

completo, o que facilitaria a digestão dos alimentos e a elaboração da vivência psíquica.

No que diz respeito ao elo mãe-filho, observou-se na figura materna um vínculo coberto

de superproteção e hipervigilância, e nos filhos um apego inseguro e dependente da figura

cuidadora, que se manifesta na ansiedade de separação. Do vértice do pensamento do Bion,

predominam os vínculos L (Love-Amor) e K (Knowledge-Conhecimento). A necessidade de

K nas mães é intensa, sensata e indispensável, e responde à realidade que exige dela que

conheça e aprenda como tratar com um filho com esta condição.

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Da perspectiva do Mahler, pudéssemos entender que, devido à realidade física que se

impõe como incompatível com a vida e que precisa de múltiplos procedimentos médicos e

cuidados por longo tempo, os caminhos do “nascimento psicológico” através do processo de

separação-individuação, parecem ficar perturbados. O caminho da individuação, que conduz

à evolução da autonomia intrapsíquica, fica afetado e podemos encontrar retraso no

desenvolvimento psicomotor e na linguagem, na maioria dos casos. Por sua vez, o caminho

da separação, que conduz à diferenciação e aos limites com a mãe, fica entorpecido pela

necessidade iminente e real do apego à mãe, quem é a pessoa encarregada da satisfação de

suas necessidades e de propiciar as atenções médicas imprescindíveis por um tempo mais

longo do que se fosse uma criança sem esta malformação. Observou-se como a mãe fica

quase completamente voltada à criança doente e abandona o trabalho e/ou o estudo. Com o

tempo, começa o surgimento de problemas entre o casal, começam as reclamações de

atenção por parte dos irmãos, as crianças ficam no quarto dos pais em co-sleeping por muito

tempo e, embora todos participem mais ou menos equilibradamente e colaborem na atenção

da criança com AE, surgem conflitos na dinâmica e nos vínculos familiares. Uma queixa

bastante generalizada nestas mães é sentir que estão aflitas e afobadas mentalmente pelo

futuro de seu filho.

Assim como o caminho é longo e se vislumbra ainda mais longo quanto aos

procedimentos médicos, também será longo o caminho que conduz até a posição depressiva,

a qual leva até a integração das experiências, a diminuição da ansiedade persecutória e da

projeção das vivências infelizes e que implicará fazer um luto e tolerar a frustração, a culpa, a

ausência... enfim, renunciar à ilusão de ter dado à luz a uma criança sã. A maioria das mães

no tocante às suas expectativas diziam o seguinte: “Eu quero vê-lo comendo normalmente,

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que ele seja uma criança normal, que possa ir para a escola. ” A negação da dor e da

incerteza desorganizadora, leva a que muitas destas mães procurem refúgio tanto nas

possibilidades que oferece a intervenção cirúrgica, as ciências médicas e as tecnologias

modernas, quanto na religião. Perante as limitações físicas, familiares e econômicas, é

preciso contar com enormes recursos psíquicos e força do ego para fazer frente de maneira

relativamente bem-sucedida à verdade-realidade do longo processo que lhes é imposto.

Difícil destino esse.

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