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Organiza Federación Psicoanalítica de América Latina Septiembre 13 al 17 de 2016 Cartagena, Colombia “CENA CORPORAL COMO TESTEMUNHO DE NAUFRÁGIO E TENTATIVA DE RESTITUIÇÃO IDENTITÁRIA” Rita Pia Herrera Delgado, Patricia Estela Arévalo Plá Eixo: O Corpo na clínica Palavras-Chave: Psicose- Identificações Corpo Delírio Resumo O presente trabalho teórico-clínico tem como objetivo a reflexão em torno ao corpo e a psicose. A partir da sintomatologia delirante vinculada ao corpo em um paciente diagnosticado com esquizofrenia e em tratamento de reabilitação psicossocial, tenta-se vincular estes aspectos com falhas na estruturação psíquica. A partir da leitura de um material clínico realizam-se diversas hipóteses em torno ao tema. Desenvolvimento Tentaremos, com um enfoque predominantemente clínico, lançar algumas perguntas como ponto de partida da experiência de trabalho com pacientes psicóticos, particularmente, os aspectos vinculados al corpo.

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Septiembre 13 al 17 de 2016 Cartagena, Colombia

“CENA CORPORAL COMO TESTEMUNHO DE NAUFRÁGIO E TENTATIVA

DE RESTITUIÇÃO IDENTITÁRIA”

Rita Pia Herrera Delgado, Patricia Estela Arévalo Plá

Eixo: O Corpo na clínica

Palavras-Chave: Psicose- Identificações – Corpo – Delírio

Resumo

O presente trabalho teórico-clínico tem como objetivo a reflexão em torno ao corpo e a

psicose.

A partir da sintomatologia delirante vinculada ao corpo em um paciente diagnosticado com

esquizofrenia e em tratamento de reabilitação psicossocial, tenta-se vincular estes aspectos

com falhas na estruturação psíquica.

A partir da leitura de um material clínico realizam-se diversas hipóteses em torno ao tema.

Desenvolvimento

Tentaremos, com um enfoque predominantemente clínico, lançar algumas perguntas

como ponto de partida da experiência de trabalho com pacientes psicóticos, particularmente,

os aspectos vinculados al corpo.

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Parece-nos pertinente fazer duas brevíssimas sinalizações. Por um lado, que

inevitavelmente cortaremos parte importante do material e este ficará fora destas

considerações. Por outro lado, nossa opção epistemológica: sendo que o pensar psicanalítico

centra-se –da mesma forma que em outras ciências, mesmo as chamadas “duras”- em um

objeto que se apresenta em sua opacidade, o operação de formular hipóteses, como Freud

mostra repetidamente (nota 1) implica uma operação intimamente relacionada com o delírio

(delirum: do latim, sair do sulco ao lavrar a terra). É assim como fecha a análise do caso

Schreber, dizendo: “Fica para o futuro decidir se a teoria contêm mais delírio do que eu

gostaria, ou o delírio, mais verdade do que outros acham hoje acreditável” Freud (1911/1910/

pág. 72) Para entender o delírio, é preciso permitir-se “delirar”? sair fora do sulco?

Tentar elaborar um pensamento próprio para depois submetê-lo ao intercâmbio com

outros, é um momento importante de resgate da loucura na qual inevitavelmente temos que

entrar, para poder trabalhar com estes pacientes.

Tentando dar resposta a algumas perguntas que surgem, relativas à psicose, devemos

pensar nos primeiros tempos do psiquismo, tempos nos quais –junto a outro e graças ao

auxílio desse outro- vai se estruturando. Nesse “à dois” é que o armado psíquico vai

surgindo. É nesses tempos em que poderão ocorrer certas falhas na construção do psiquismo,

que depois, frente a determinadas circunstâncias vitais, funcionará desse modo que

chamamos de psicótico.

No encontro com o outro, o sujeito (infans desvalido), vai “se humanizando”. Esses

encontros irão deixando marcas e construindo psiquismo. É necessário um outro, adulto, que

esteja aí para cancelar o desprazer que gera o aumento da tensão, dando o alimento, e gerando

uma vivência de satisfação. Um outro que interpreta o estado da criança, cumprindo a função

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de dar sentido ao mundo, traduzindo eventualmente esse mundo para a criança. Freud nos

adverte sobre a importância dessa vivência e a vincula com o entendimento e a capacidade de

comunicação. Resume: “Se o indivíduo auxiliador operou o trabalho da ação específica no

mundo exterior no lugar do indivíduo desvalido, este é capaz de consumar sem mais no

interior de seu corpo a operação requerida para cancelar o estímulo endógeno. O todo

constitui, então, uma vivência de satisfação, que tem as mais profundas consequências para

o desenvolvimento das funções do indivíduo” (Op.cit p.363).

Através de que caminhos e vicissitudes o ser humano chega a se chamar de eu, a se

sentir eu? Se pensamos nas origens da estruturação do psiquismo e a constituição do Eu,

devemos pensar nas identificações. Em “Psicología de las masas y análisis del yo”, Freud diz:

“A psicanálise conhece a identificação como a primeira exteriorização de uma ligação afetiva

com outra pessoa” (p.99). Estas identificações são o primeiro laço com outro. Podemos

vincular estas identificações primárias com os laços que a criança estabelece com o indivíduo

auxiliador da vivência de satisfação?

Então, para responder à pergunta pelo Eu, dizemos que as identificações (primárias e

secundárias), são as que o vão constituindo. As identificações primárias respondem à

possibilidade de se identificar como ser humano e as secundárias respondem à identidade

sexual.

Nos pacientes psicóticos poderemos ver aspectos vinculados ao conflito edípico, mas

certamente isto não será o ponto central. O central estará mais vinculado ao ser, às

identificações primárias que respondem ao modelo oral canibalístico, no qual incorporar

equivale a ter o outro. Outra vertente importante para abordar o tema da constituição do Eu é

a do narcisismo. Em Introducción del Narcisismo, Freud descreve um narcisismo primário e

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normal e o vincula à constituição do Eu da seguinte maneira: “É um suposto necessário que

não esteja presente desde o começo no indivíduo uma unidade comparável ao Eu; o Eu tem

que ser desenvolvido. Agora, as pulsões auteróticas são iniciais, primordiais; portanto, algo

tem de ser acrescentado ao autoerotismo, uma nova ação psíquica, para que o narcisismo se

construa” (Freud, S.(1914) p. 75).

Fica assim expressa a importância do corpo em todo esse processo identitário. Como

veremos mais adiante no material clínico de um paciente, a vivência do próprio corpo parece

estar enraizada nestes tempos constitutivos. Em “El yo y el superyo” (p.27) Freud diz:

“ademais do influxo do sistema P, outro fator parece exercer uma ação eficaz sobre a gênese

do ego e sua separação do id. O próprio corpo e sobre tudo sua superfície é um lugar do qual

podem partir simultaneamente percepções internas e externas. É visto como um objeto

outro... (...) O ego é sobre tudo uma essência-corpo; não é só uma essência-superfície, mas,

ele mesmo a projeção de uma superfície”. Acrescenta: “Ou seja que o ego deriva, em última

instancia, de sensações corporais, principalmente as que partem da superfície do corpo. Cabe

considerá-lo como a projeção psíquica da superfície do corpo”. Isto nos leva a pensar no ego

como uma tipo de “unificação” que irá acontecendo nesses primeiros vínculos, onde a pele

que funciona como limite e continente, o olhar materno que vai narcisando , o “banho

sonoro” das palavras, darão essa unidade. Todas as percepções e intercâmbios irão dando

unidade a essa criança, que aos poucos poderá “se reconhecer” como “um diferenciado” do

mundo. É nesses tempos que essa unidade irá se gestando, se tudo correr bem. O material

clínico que veremos põe de manifesto as falhas deste processo.

Daniel Gil (1988) em seu artigo “El yo y su identificación primaria” acrescenta neste

sentido: “...desde o autoerotismo (como reino das pulsões parciais) chega-se à unificação

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narcisista, onde o corpo aparece como unificado em um novo ato psíquico que dará

origem ao Eu” (p.40). Na hora de pensar nas origens da estruturação do aparelho psíquico e

com a finalidade deste trabalho, é importante incluir alguns conceitos de J.Laplanche. Este

autor retoma a ideia de sedução em Freud anterior à carta 69 aprofundando esta linha de

pensamento, e desenvolve a teoria da sedução generalizada.

O recém-nascido se encontra com um mundo a decifrar; o adulto é o decifrador mas

ao mesmo tempo que vai decifrando o mundo para o bebê, porta ele mesmo e propõe o que

Laplanche chama de mensagens enigmáticas. São mensagens que interrogam a criança antes

que ela possa compreende-las e dar resposta. Estas mensagens são inconscientes para o adulto

que as emite. Ao mesmo tempo que cobre as necessidades da criança emite mensagens

enigmáticas (sexuais, inconscientes) que conformam uma situação de sedução, à qual ele

também esteve exposto em suas origens.

Fala de dois tipos de repressão originaria, funcionando segundo a temporalidade do

après-coup: em um primeiro tempo ocorreria a implantação dos significantes enigmáticos,

seria o tempo do eu-corpo; o segundo tempo da repressão primária seria o da tradução e a

constituição do inconsciente. Este segundo tempo estaria vinculado com os alvores do ego

como instância: “metáfora do todo biológico” (...)... os tempos renovados da aparição do ego

é o que temos que chamar de narcisismo primário no sentido fundamental que Freud dá em

seu artigo inaugural, “Introducción del narcisismo” (p.135-6). A repressão secundária

funcionaria como “selo” da repressão primária, para que esta possa ser mantida.

Pensando em relação à “aparição da psicose” (que pode ser uma irrupção violenta ou

bem pode ser silenciosa e paulatina), acompanhamos Freud quando ele diz: “a ocasião para a

aparição de uma psicose é que a realidade objetiva tenha se tornado insuportavelmente

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dolorosa, ou bem que as pulsões tenham cobrado um reforço extraordinário” (Freud, 1940

/1938/,pág.204), Poderíamos pensar isto em relação ao momento mais frequente de início da

esquizofrenia? A adolescência, com seu reforço do pulsional, as mudanças corporais próprias

da etapa, ao mesmo tempo que o aumento das exigências da realidade (estudar, trabalhar, ser

“adulto”) fazem que o Eu, estruturado de uma forma frágil, deva por em marcha mecanismos

primitivos?

Nesse sentido e perante estas perguntas seria oportuno “escutar” R, um paciente de 33

anos que assiste à Instituição de reabilitação psicossocial, na qual uma das autoras trabalha

como psicóloga, coordenando grupos terapêuticos. R tem um diagnóstico de esquizofrenia

desde os 17 anos, assiste à instituição há vários anos. Seu aspecto físico, sua postura, seus

gestos, tudo nele transparece sua peculiaridade “louca”. Impactam seus “tics” e movimentos

corporais incompreensíveis. Nas sessões grupais bota o dedo no nariz, às vezes dorme, outras

levanta a roupa e olha a barriga. Quando olhamos, percebemos que R está em outro mundo,

em outros diálogos, visíveis mas incompreensíveis. Seus pais se separaram quando ele tinha

12 anos e seu pai (aparentemente paciente psiquiátrico) foi embora para o interior, onde

morreu há alguns anos. Atualmente ele vive com sua mãe.

Em certa oportunidade e devido a determinadas circunstâncias (basicamente, não

estava a psiquiatra que co-coordenava o grupo) ele pode contar suas preocupações, suas

visões. Duvidou muito antes de contá-las, repetia uma e outra vez que não sabia se fazê-lo,

que talvez nós não acreditássemos... Depois dessa primeira vez, na que contou vivências

realmente terríveis, aparições, vozes, insultos, etc., pode paulatinamente ir contando o que

acontecia com ele, e deixar de dormir no grupo. Creio que nesse momento foi habilitante ter

dito a ele que nós (os pacientes e a analista) acreditávamos que isso que ele contava, era o

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que estava vivendo. Este ponto é importante e tentaremos retornar a ele na análise do

material; a importância de ser escutado por alguém que o escuta de verdade, suspendendo o

julgamento com relação à realidade objetiva da sua história. Seria como dizer a ele: “nem

sim, nem não, mas o que você me conta é verdadeiro, em tanto que é a sua verdade”. Em

várias oportunidades ele anteporá: “você não vai acreditar”, “é incrível”, “eu não quero

mentir para você”. Permitir que ele possa falar disso que ele vive, acreditar que essa é sua

realidade, primeiros passos para ajudar R com seu sofrimento. Quando começa a receber o

olhar do outro, um olhar que lhe dá existência, processo que se sustêm com a permanência do

psicanalista ao seu lado e os espaços e cenários criados para a sua reabilitação. Os múltiplos

olhares também permitem que ele estabeleça uma relação diferente com seu corpo e possa

habitá-lo de outra maneira.

À continuação transcrevemos fragmentos de alguns encontros individuais com R., que

acreditamos que servirão para elaborar certas hipóteses em torno ao seu mundo.

P: Não são muito bonitas as coisas que tenho para contar... coisas que acontecem comigo...

A: para isso estamos aqui...

P: comprei uma máquina muito bonita para mim... Tenho problemas com a igreja, com deus,

ele me diz que tenho que passar somente seco (que tem que se barbear em seco) ... eu tenho

pensado, quem é deus? É cristo?... Com F escolhemos filmes para que ele me ame, mesmo

que seja um pouco... (deus lhe impõe os filmes que ele pode assistir e os que não pode)...

incrível, não me deixa ver filmes do Terminator...

A: Como você se dá conta disso?

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P: Fala na minha mente, de repente me insulta... quando vou à igreja sou mais uma pessoa...

É uma falta de respeito... não sei o que acontece com deus, quero tomar chimarrão e ele não

permite...

A: E por que será?

P: Não sei porque tenho que sacrificar algo... se eu faço a maionese caseira, tenho que

sacrificar outra coisa... não ir ao shopping center Nuevo Centro com minha mãe.

A: por que ele pede que você faça esses sacrifícios?

P: Não sei, coisa dele... tenho um monte de filmes e levanto um e ele já vai dizendo... me

insulta... sim, não sei o que fazer, se não vou à igreja se transforma em um animal, me

odeia... acho que é Cristo. Impossível dizer que quando fazem macumba pra ti, deus te

ajude... eu vi na igreja uma religião esquisita. Uma vez na igreja eu vi um volume que

apareceu e desapareceu... Se eu fico dormido por um segundo eu manifesto com um

demônio... eu não sei manifestar.

A: Manifestar?

P: uma coisa se manifesta em você... eu não quero ir à igreja, deus se zanga, me deixa as

mãos assim, faz apodrecer. (Ele mostra as mãos, eu digo que não vejo nada estranho, ele

parece não se importar) Todos temos um anjo da guarda, o meu me diz que não vá à igreja.

Dizem que um vento empurra os maus e morrem as pessoas. No último dia vai estar todo

mundo chorando e dizem eles que vão sair os demônios da terra.

A: E o que você pensa disso?

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P: Não quero ficar de mal com deus, dizem que se você é marcado com uma cruz com óleo,

ficam marcados os bons. Meu anjo da guarda me diz que não acontece nada, eu te pego em

um segundo...

A: Você leva muito a sério o que diz a bíblia...

P: Eu não sou religioso

A: Mas você sempre está preocupado com isto

P: eu quero muito minha mãe, não posso manda-la à frente... eu, de repente, estou calado,

cozinhando, (deus) não quer que eu me deite, quando lavo os pratos, me diz que sou um filho

da puta... não sei porquê...não é que eu me faça de forçudo, em casa eu tenho um haltere e

fazia de vez em quando. Como eu não posso fazer muito parece que um demônio ou um anjo

não permitem, digo a verdade, os meus músculos inflam e um anjo apaga os meus músculos.

Eu disse pra minha mãe, ele não deixa...

A: Ele quer que você se sacrifique...

P: claro, isso, quer que eu faça a barba em seco, eu disse que não posso

A: Se você se barbeia com a máquina, o que acontece?

P: O desprezo (mostra as mãos) ... as mãos não apodrecem sozinhas...

A: Esse é o castigo?

P: muda a cor. Não sei se tem alguém que fala em minha contra, apodrece as minhas mãos,

depois de um tempo vai embora. Alguém diz pra ele “não serve pra nada”, fala mal de mim

pra ele e ele apodrece minhas mãos...

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A: Deus quer que você se sacrifique

P: Os filmes que eu mais gosto, parece que adivinhasse meu pensamento, os que eu mais

gosto, me diz que não posso... além disso quero ver com ela...deus acredita que eu não tenho

fé. Eu tenho fé no momento em que estou na igreja e depois ela vai embora... puta que pariu,

que eu não posso ter fé, e eu olho pro céu e peço que me deixe ter fé... eu a sinto como

cócegas no peito, e vou embora e não sinto mais nada... desculpe que eu diga, quando vou

embora me diz aqui você é um filho, fora você é lixo...

A: Já que você diz isso de ser um filho, me conte do seu vínculo com seu pai...

P: Éramos como irmãos, éramos como amigos... Eu não estou abusando com tudo o que

estou contando? ... outro dia fui com F a uma casa de massagens e acontece que não sinto...

eu tinha 14 anos e era a mesma coisa... não me permite...

A: por que deus está tão insistente com que você não desfrute e se sacrifique?

P: Além do mais tenho pesadelos com coisas esquisitas... quando eu era menor, 6 anos,

morando na outra casa de lá fiquei traumatizado eu... fiz xixi nas calcas... (com a minha

pergunta ele esclarece) fiz xixi e minha mãe me disse que “el vasco”, meu pai, ia dar um

jeito em mim, eu me enfiei no guarda roupas e depois vi um esqueleto negro, você não vai

acreditar no que estou dizendo...

Em outro encontro ele nos diz:

P: não ando muito bem... é incrível... não se diz isso, enfiei o pé na jaca de verdade... fui com

minha mãe, descemos num ponto na 8 de octubre (rua de Montevidéu), fomos buscar o

liquidificador no autorizado, em frente tem uma igreja... o tipo de igreja que eu ia antes,

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universal... deus enche o saco que eu vá de novo aí, porque proíbe os filmes e diz que se eu

voltar a ir posso ver os filmes...o meu coração se abre com a ideia de escutar música em

inglês... Quem é deus? É jesús de Nazaré? Não entendo... meu tio me deixou um livro que diz

que deus ama os ateus, e me ama... é o tio da minha mãe, ia antes na minha casa, lia a bíblia,

não demos mais bola pra ele... não foi mais porque não escutamos mais a sua oração... se

chateou, é fanático de deus... minhas mãos estão um pouco opacas (mostra as mãos) isto é o

desprezo de deus, não leve a mal... deus é puta barata, qualquer um menos eu... qualquer um

vai à igreja y ele o quer bem, menos eu... não sei como dizer...Eu não quero mentir para

você... eu tenho um haltere em casa, sei tirar músculo, outra coisa que ele proíbe... um anjo

ou demônio arruinou minha vida... apaga meus músculos.

A: O que deus tem a ver com isso?

P: Faz o mesmo caso ao que me tira os músculos... vou pela rua e me diz “você é um filho da

puta”... tenho uma parente que se chama Ana, eu escuto o murmurinho da voz dela no ar, o

que eu penso, ela repete no ar... do lado da minha casa tem um colégio, ela fala no

murmurinho, eu a vejo no fim do ano, a mãe dela é prima do meu pai... eu digo cala a boca,

para que me deixe tranquilo...

A: É a mesma coisa quando você escuta a voz de Ana que quando escuta a voz de deus?

P: Sim, é a mesma coisa...

A: o que acontece se você enfrentar deus?

P: Ele despreza minhas mãos... nos primeiros dias tive fé e pude comprar uma cortina e

colocar um pôster, mas ele se entediou da minha fé... se meu deus me diz, “tá bom, cole o

pôster mas não permito a máquina elétrica”, o que que eu falo pra ele?

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A: O que é mais importante para você?

P: A máquina elétrica

A: então troque-a por isso

P: Bom conselho... minha mãe hoje chega às 5, tinha médico (?) não sei, tinha taquicardia. O

que tem com minha mãe é que podemos assistir aos filmes.

A: deus permite?

P: algumas vezes sim... vou ser sincero com você, não quero ficar de mal com deus... o meu

anjo da guarda me diz nos sonhos, confie em mim, eu salvo você, deus não vai matar você...

tenho sonhos, pesadelos esquisitos, intrigas, quando acordo, feliz porque era um pesadelo.

Outro dia em casa, uma aparição, uma coisa estranha... vi uma nuvem que se mexia, ontem

à noite vi uma nuvem, acendi a luz e fui à cozinha (mostra a barriga) você vê que está clara,

deus clareou a pele.

A: escurece suas mãos

P: sim, é de não se acreditar, é incrível... o bom que tem que vou na casa de F e G, assistimos

a filmes, a mãe faz manjares...

Na hora de analisar o que aconteceu, a princípio nós nos perguntamos pelo vínculo de

R com a analista. Pareceria que R. quer cuidar do vínculo com a analista, estão a sós, não está

o grupo (que funciona como sustento e proteção): “Não são muito bonitas as coisas que

tenho para te dizer” (na realidade, quase tudo que ele diz nestes encontros já foi dito no

grupo, não é novidade). É como se ele se perguntasse: agora que eu vou contar estas coisas

pra você: você vai continuar me escutando, me querendo bem? Em outro momento ele

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pergunta se não está abusando da analista contando essas coisas. Medo de causar-lhe dano

com seus conteúdos terríficos?

Se bem há muitas linhas interpretativas que poderíamos tomar do material, preferimos

colocar o foco no relativo ao tema em questão.

O elemento delirante que aparece com mais força é sua relação com deus; parece ser

um objeto interno que o possui, o habita. Escuta sua voz, permanentemente fala com ele

(“fala em minha mente”), o insulta, dá ordens, proíbe coisas. Conhece seus pensamentos.

R. recebe passivamente a invasão das vozes, as palavras, às que dá um estatuto de

certeza, certeza que enuncia sua verdade. Poderíamos pensar que o delírio e as alucinações

são uma tentativa de reconstrução do seu mundo destruído? Nesse sentido, Juan Carlo Plá, dá

uma possível resposta quando diz: (...) o sintoma é um testemunho aberto, despedaçado,

impossibilitado de dizer, mas ali onde o outro não diz nada. Ali onde o outro é silêncio, o

psicótico coloca seu Eros, ama seu delírio como a si próprio. (Seminario “Del destino y el

destinar”, México, 4 de maio de 1991). Em R. o corpo fala com seus sintomas, vivências e

sensações, vemos a presença do corpo na construção do delírio.

R. se pergunta: “Quem é deus? É Cristo?” “Creio que é Cristo” É o pai, é o filho?.

Aqui poderíamos dizer que se observam as dificuldades em torno às identificações. Assim

como ele não consegue identificar quem é deus, deus não o reconhece. Os castigos que deus

lhe impõe: deixar de amá-lo, não reconhecê-lo, apodrecer suas mãos, transformá-lo numa

fera, em um demônio, em definitiva, põem em jogo sua condição de ser humano. Algo do

nível das identificações primárias parece estar em jogo.

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Por outra parte, não lhe permite ser homem, toma seu corpo inabilitando o mesmo

para sentir prazer sexual, não permite ter músculos, (ser como Schwarzenegger), tudo isso

mais vinculado com as identificações secundárias. Aspectos vinculados com os tempos

edípicos, mas como “traços”; o central está no primário, nos tempos do ser.

No começo deus é o grande perseguidor, mas também fala de um tio, talvez

representante de deus e da bíblia, a quem ele e sua mãe não deram atenção e foi embora

(igual ao seu pai?)deixando-o preso no vínculo com sua mãe. Por outra parte, antes ele ia à

igreja e acreditava; depois de um tempo deixou de acreditar. Esse é seu problema: não

acredita, não tem fé, por isso deus não o ama e não permite fazer nada. R. quer que deus o

ame, o reconheça, o valorize. Para ele é importante ser reconhecido por deus, que ele perceba

que tem fé e que se submete aos seus mandados: “com F. escolhemos filmes para que ele me

queira bem” Sente que deus ama qualquer um, mas não o ama: “Deus é puta barata, ama

qualquer um”. Freud diz em Schreber: “...a pessoa agora odiada e temida por causa de sua

perseguição é alguém que alguma vez foi amado e venerado. A perseguição estatuída no

delírio –afirmamos- serve sobre tudo para justificar a mudança de sentimento no interior do

doente” (pág.39)

Quando deus lhe apodrece as mãos, ele diz que isso é desprezo. Sente-se desprezado

por deus, inferiorizado. Podemos pensar que estão em jogo os ideais vinculados aos tempos

do narcisismo primário e a aspiração a recobrá-lo. O Eu se mede com o Eu ideal e se sente

sempre por baixo destas aspirações impossíveis de alcançar: “alguém lhe diz (a deus, sobre

R.) não serve pra nada” “aqui você é um filho, fora você é lixo”

O vínculo de R. com deus parece recriar o vínculo do Eu imaturo dos começos com a

onipotência materna, antes de que conseguisse a unificação corporal. Podemos pensar deus,

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seu perseguidor, como o sub-rogado de uma figura paterna? O pai aparece em duas

oportunidades. Na primeira, diz que eram como irmãos, como amigos. A outra oportunidade

é quando ele relata que fez xixi nas calças e sua mãe o ameaçou com ele (“el vasco”), nessa

oportunidade, aos 6 anos aparece o medo do castigo e uma “visão” assustadora: um

esqueleto negro. Podemos postular a existência de um pai interno que oscila entre não ser um

pai e um que é “terrível”?

Vemos no delírio de R. aspectos vinculados com o corporal, as mãos que apodrecem,

a barriga que fica clara, os músculos que desinflam, não poder sentir prazer sexual. Como

víamos acima, a constituição do Eu está intimamente vinculada com a unificação corporal.

Então, frente a estas dificuldades de R. podemos deduzir que há aspectos de seu Eu que se

encontram em precário equilíbrio, que a unidade de seu Eu é vivida por ele como frágil e que

todos estes transtornos são expressão disso, em uma dupla vertente que mostra essa

precariedade ao mesmo tempo que é uma tentativa de reparação.

Poderíamos pensar que R. nos transfere seu enigma sobre si mesmo através de seu

corpo, como um texto a decifrar?

Notas

Nota 1: Em Esquema de psicanálise diz: “As formações delirantes dos doentes aparecem

como uns equivalentes das construções que nós edificamos nos tratamentos analíticos,

tentativas de explicar e de restaurar” (pág.270)

Referências

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descrito autobiograficamente (1911[1910]). En OC Tomo XII Amorrortu Ed. 1993

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Organiza Federación Psicoanalítica de América Latina

Septiembre 13 al 17 de 2016 Cartagena, Colombia

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En: RUP. 87