71
A CRÍTICA DA RAZÃO EM MICHEL DE MONTAIGNE FLORIVALDO FLORIANO FERREIRA Dissertação apresentada para cumprimento dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre em Filosofia, realizada sob a orientação científica da Profª Doutora Marta Mendonça MARÇO DE 2012

MARÇO DE 2012

  • Upload
    others

  • View
    1

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: MARÇO DE 2012

A CRIacuteTICA DA RAZAtildeO EM MICHEL DE MONTAIGNE

FLORIVALDO FLORIANO FERREIRA

Dissertaccedilatildeo apresentada para cumprimento dos requisitos necessaacuterios agrave obtenccedilatildeo do grau de Mestre em Filosofia realizada sob a orientaccedilatildeo cientiacutefica da Profordf Doutora

Marta Mendonccedila

MARCcedilO DE 2012

AGRADECIMENTOS

Agrave Profordf Doutora Marta Mendonccedila pela orientaccedilatildeo sempre atenta segura e criteriosa pelos seus comentaacuterios preciosos pelo incentivo pela dedicaccedilatildeo pelo estiacutemulo perseverante e por me ter sugerido o tema desta dissertaccedilatildeo

Agrave Monica minha esposa pois sem o seu sacrifiacutecio e apoio este trabalho permaneceria irrealizaacutevel

A todos os que directa ou indirectamente contribuiacuteram para este trabalho

2

A CRIacuteTICA DA RAZAtildeO EM MICHEL DE MONTAIGNE

FLORIVALDO FLORIANO FERREIRA

RESUMO

O trabalho que se segue eacute uma leitura e comentaacuterio do capiacutetulo ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo Livro II 12 de Michel de Montaigne Trata-se de apresentar a criacutetica da razatildeo abordada pelo autor Com o pretexto de defender as ideias de Sebond que em sua obra Teologia naturalis de quem tinha traduzido do latim para o francecircs que encontrava os fundamentos da feacute na razatildeo e punha o homem no primeiro niacutevel da criaccedilatildeo o ensaiacutesta apresenta de facto um pensamento muito pessoal Recusa-se a dar valor agrave razatildeo e potildee o homem no mesmo niacutevel dos animais Vai sustentar a tese de que a razatildeo natildeo tem um valor de absoluta superioridade conturbando desta forma toda a tradiccedilatildeo filosoacutefica que depositava toda a confianccedila na razatildeo sobretudo como instrumento do conhecimento

Esta dissertaccedilatildeo eacute desenvolvida em quatro etapas A primeira abordaraacute brevemente a concepccedilatildeo antropoloacutegica que subjaz na ldquoApologierdquo em segundo lugar pretende-se perceber com maior clarividecircncia os motivos que levaram o autor a criticar a razatildeo que eacute instrumentalizada na tarefa de justificaccedilatildeo das chamadas verdades religiosas em terceiro lugar trata-se da criacutetica da ciecircncia que eacute abordada no ensaio onde o autor quer derrubar a tola vaidade e sacudir os fundamentos sobre os quais se constroem as falsas ideias produzidas pela ciecircncia na quarta e uacuteltima etapa pretende-se abordar a tese da impossibilidade de se formular a partir da razatildeo um conjunto de normas regras e leis com validade objectiva a qualquer grupo humano

PALAVRAS-CHAVE Apologia cepticismo Essais homem Montaigne razatildeo

3

THE CRITIQUE OF REASON IN MICHEL DE MONTAIGNE

FLORIVALDO FLORIANO FERREIRA

ABSTRACT

The following thesis is an interpretation and comment of the chapter ldquoAn Apology for Raymond Sebondrdquo book II chapter 12 by Michel de Montaigne It presents a critique of the reason the author approached Using as a pretext to defend the ideas of Sebond who in his work Teologia naturalis that the author had translated from Latin into French that identified the fundamentals of faith in reason and put man on the first level of creation the essayist presents in fact a very personal idea He refuses to empower reason and places man on the same level as animals He supports the argument that reason is not superior contradicting in this way the entire philosophical tradition which placed all its trust on reason most importantly as an instrument to acquire knowledge

This thesis is structured in four parts The first briefly approaches the anthropological idea that underlies in ldquoApologyrdquo the second aims to understand more profoundly the reasons that determined the author to critique the reason that is instrumental in the justification of the so-called religious truths The third part deals with a critique of the science which is discussed in the essay where the author wants to overthrow the foolish vanity and shake the foundations on which are built the false ideas produced by science In the fourth and last part the thesis approaches the idea of the impossibility to formulate based on reason a set of norms rules and laws with objective validity for any human group

KEYWORDS Apology scepticism Essais man Montaigne reason

4

IacuteNDICE

Introduccedilatildeo 6

1 A ideia do homem na ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo 9

2 A criacutetica agrave razatildeo humana e a questatildeo da religiatildeo 19

3 A criacutetica agrave razatildeo e sua relaccedilatildeo com a ciecircncia 35

4 A criacutetica agrave razatildeo humana e o relativismo da moral 52

Consideraccedilotildees finais 64

Bibliografia 69

5

Introduccedilatildeo

O tema da razatildeo eacute muito caro a Montaigne e central na sua obra No presente

trabalho pretende-se abordaacute-lo a partir da ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo que faz

parte do segundo livro dos Essais Trata-se de um ensaio que eacute unanimemente

reconhecido como sendo uma das referecircncias mais importantes para quem pretenda

compreender em profundidade os aspectos mais relevantes da criacutetica ceacuteptica agrave razatildeo

humana desenvolvida por Montaigne

Com o pretexto de defender as ideias de Sebond1 Montaigne apresenta de facto

um pensamento totalmente pessoal independente do de Sebond Em vez de responder

agraves diversas objeccedilotildees dos adversaacuterios da Theologia naturalis Montaigne questiona de

uma forma muito incisiva o poder da razatildeo e ldquopotildee em xequerdquo este suposto poder A

criacutetica por ele desenvolvida natildeo se limitou a rebaixar a filosofia ldquoprofissionalrdquo a

suspeitar de todo o conhecimento produzido pela ciecircncia mas atacou tambeacutem

duramente a pretensatildeo humana de tudo querer conhecer atraveacutes da razatildeo pretensatildeo que

se estende inclusivamente a Deus atraveacutes das grandes construccedilotildees racionais da teologia

Como veremos a razatildeo natildeo tem para Montaigne um valor supremo nem eacute sinal de

absoluta superioridade Os limites do poder da razatildeo satildeo tatildeo evidentes que se

manifestam inclusivamente na incapacidade da razatildeo de raciocinar sobre si mesma

ldquo[A] Par ougrave la voulons nous mieux esprouver que par elle mesme Srsquoil ne la faut croire parlant de soy agrave peine sera-elle propre agrave juger des

1 Trata-se de Raymond Sebond Da vida de Sebond sabe-se muito pouco como diz Montaigne ldquo[A] tout ce que nous sccedilavons cest quil estoit Espaignolrdquo (Les Essais II 12 p 440) Especula-se que nasceu em 1385 em Barcelona Diz-se tambeacutem que foi estudante na universidade de Toulouse e que foi reitor daquela universidade Morreu em Toulouse em 1436 onde ensinava medicina e teologia Sua obra magna ldquoTheologia naturalis sive Liber creaturarumrdquo (Teologia natural ou livro das criaturas) escrita em 1434-1436 e publicada em 1487 foi reimpressa vaacuterias vezes ateacute aos meados do seacuteculo XVII Esta obra foi traduzida por Montaigne em 1569 a pedido de seu pai Pierre Eyquem senhor de Montaigne e antigo presidente da Cacircmara Municipal de Bordeaux que se interessava muito por ela conforme atestam os primeiros paraacutegrafos da ldquoApologierdquo Esta traduccedilatildeo foi o primeiro trabalho publicado e o que o lanccedilou no mundo literaacuterio ldquo[A] Je trouvay belles les imaginations de cet autheur la contexture de son ouvrage bien suyvie et son dessein plein de pieteacuterdquo (Les Essais II 12 p 440) Para as citaccedilotildees e referecircncias dos Ensaios utilizaremos a ediccedilatildeo de Villey-Saulnier Paris PUFQUADRIGE 2004 As citaccedilotildees seratildeo feitas da seguinte forma o nuacutemero em algarismos romanos indica o livro o primeiro nuacutemero em araacutebicos o capiacutetulo e o segundo nuacutemero em araacutebicos a paacutegina da ediccedilatildeo Les Essais foram publicados pela primeira vez em 1580 e eram constituiacutedos por dois livros apenas Pouco depois Montaigne fez vaacuterios acreacutescimos nestes livros e compocircs um terceiro e fez uma nova ediccedilatildeo em 1588 Em 1592 o autor morre e deixa um exemplar com vaacuterias adiccedilotildees manuscritas o chamado ldquoexemplar de Bordeauxrdquo destinado a uma nova ediccedilatildeo dos Essais Indicaremos as trecircs ldquocamadasrdquo do texto com as letras A (Ediccedilatildeo de 1580) B (Ediccedilatildeo de 1588) e C (adiccedilotildees posteriores a 1588 feitas ao exemplar de Bordeaux)

6

choses estrangeres si elle connoit quelque chose aumoins sera ce son estre et son domicile [hellip] la vraye raison et essentielle de qui nous desrobons le nom agrave fauces enseignes elle loge dans le sein de Dieu [hellip]rdquo2

Compreender as razotildees do cepticismo de Montaigne significa antes de mais

aprofundar os aspectos mais marcantes da sua antropologia Por isso comeccedilaremos por

abordar ainda que de forma breve a concepccedilatildeo antropoloacutegica que estaacute subjacente na

ldquoApologierdquo Com efeito a razatildeo ndash esse grande motivo de orgulho do homem e que eacute

considerada como um sinal da sua participaccedilatildeo no ser ndash passa a ser concebida por

Montaigne como um mero fruto da pretensatildeo e vaidade humanas para explicar crenccedilas

costumes etc Entre os alvos da criacutetica de Montaigne encontram-se aquelas teorias que

potildeem o homem no ldquotopo da piracircmiderdquo das criaturas do universo Enquanto Sebond

coloca o homem no topo da escala dos seres Montaigne recoloca-o no seio da natureza

e rebaixa-o ao niacutevel dos animais

Pretendemos deste modo compreender melhor as razotildees do ldquodestronamentordquo

realizado por Montaigne deste ser ldquotodo-poderosordquo que eacute o homem Ou o que eacute o

mesmo pretendemos compreender o ldquocepticismo da razatildeordquo que Montaigne assume

conscientemente com o intuito de rejeitar a pretensatildeo do homem de se considerar pela

interposiccedilatildeo da razatildeo no centro do universo

Em segundo lugar para compreender o lugar e o valor da razatildeo na obra de

Montaigne seraacute necessaacuterio investigar os motivos que levaram o autor a tecer uma

criacutetica tatildeo contundente da razatildeo humana aprofundando em concreto as relaccedilotildees que

esta criacutetica tem com a sua anaacutelise da religiatildeo Haacute que ter em conta no entanto que a

atitude de desconfianccedila da razatildeo natildeo conduziu Montaigne a pocircr em causa a feacute cristatilde

dado que em seu entender esta se situa num plano diferente natildeo sendo portanto

susceptiacutevel de ataque pelo seu espiacuterito criacutetico

A pertinecircncia desta questatildeo ressalta quando se tem em conta que o autor inicia o

seu texto a partir de uma motivaccedilatildeo teoloacutegica podemos conhecer racionalmente Deus

Montaigne dedica um nuacutemero significativo de paacuteginas a mostrar que os atributos

divinos natildeo satildeo alcanccedilaacuteveis pelos exerciacutecios racionais dos homens detentores das

ldquoverdades filosoacuteficasrdquo Como fideiacutesta Montaigne pensa que a verdade em religiatildeo se

baseia em uacuteltima instacircncia na feacute e natildeo no raciociacutenio ou na demonstraccedilatildeo Pretende-se

2 Les Essais II 12 p 541

7

compreender neste ponto com faz Montaigne a transiccedilatildeo da criacutetica teoloacutegica agrave criacutetica do

conhecimento em geral

Na mesma linha de compreensatildeo dos limites da razatildeo seraacute importante

aprofundar num terceiro momento a criacutetica da ciecircncia desenvolvida por Montaigne na

ldquoApologierdquo Montaigne quer derrubar a tola vaidade e sacudir viva e corajosamente os

fundamentos ridiacuteculos como ele mesmo diz sobre os quais se constroem as falsas

ideias produzidas pela ciecircncia

Encontramos tambeacutem nesta parte um nuacutemero significativo de citaccedilotildees de

filoacutesofos antigos que Montaigne referencia para justificar a sua criacutetica radical agrave ciecircncia

Para ele os mais famosos filoacutesofos representantes do saber humano natildeo conseguiram

dar as verdadeiras respostas agraves questotildees fundamentais do ser humano Quais satildeo as

verdades as certezas sobre o homem e sobre Deus que esses saacutebios filoacutesofos nos

legaram

Em quarto e uacuteltimo lugar seraacute importante considerar de que modo Montaigne

relaciona a razatildeo humana e a moral Naturalmente natildeo seraacute possiacutevel considerar

detidamente o tema da moral na ldquoApologierdquo trata-se apenas de procurar perceber por

que razatildeo o autor ldquodecretardquo a impossibilidade de fundamentar na razatildeo um conjunto de

regras normas e leis que dizem respeito agrave vida praacutetica de qualquer grupo humano

Procurar-se-aacute reconstituir os vaacuterios argumentos de Montaigne que justificam a sua

tomada de posiccedilatildeo relativista no acircmbito da moral

8

1 A ideia do homem na ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo

Quando nos colocamos diante do desafio de estudar os Essais de Michel de

Montaigne uma questatildeo que importa perceber melhor eacute o periacuteodo no qual o autor

escreveu a sua obra Mais especificamente estudar o humanismo renascentista tendo

em vista que o autor dos Essais eacute considerado como um pensador deste periacuteodo

Abordaremos no entanto apenas alguns aspectos importantes daquela eacutepoca

Montaigne viveu num periacuteodo em que emergia uma nova visatildeo do mundo em

que o homem passou a ser o centro das atenccedilotildees em todos os aspectos O geocentrismo

medieval que centrava suas atenccedilotildees na relaccedilatildeo com Deus foi substituiacutedo pela

glorificaccedilatildeo do humano As pessoas interessadas nesta ruptura com os ideais medievais

buscavam inspiraccedilatildeo nas obras greco-romanas para representarem o seu proacuteprio mundo

O humanismo renascentista concebe-se como um movimento intelectual de

valorizaccedilatildeo da antiguidade claacutessica Natildeo se tratava poreacutem apenas de copiar as

realizaccedilotildees do classicismo greco-romano Este movimento representou algo que pode

ser considerado como uma ldquoglorificaccedilatildeo do homemrdquo agora colocado no centro de todas

as indagaccedilotildees e preocupaccedilotildees consistia em sentido amplo numa tomada de posiccedilatildeo

antropocecircntrica em reacccedilatildeo ao teocentrismo que imperava na Idade Meacutedia

Os humanistas deixaram de aceitar os valores e maneiras de ser e viver da Idade

Meacutedia Por conseguinte o interesse pela antiguidade experimenta-se como um meio

para atingir um fim Os humanistas viam na antiguidade

ldquo[hellip] aquilo que correspondia aos desejos que sentiam [hellip] Pretendiam encontrar nos antigos o Homem considerado como o ser geral impessoal universal que existe sob a mesma forma em toda parte [hellip] O humanismo eacute uma teacutecnica da vida cotidianardquo3

A produccedilatildeo intelectual deste periacuteodo concebia-se natildeo como um retorno ao

passado mas como uma tentativa de buscar nos claacutessicos greco-romanos uma fonte de

inspiraccedilatildeo O humanismo renascentista aleacutem de representar uma forte reacccedilatildeo a todos

os padrotildees culturais medievais escolaacutesticos tendeu tambeacutem fortemente a contrapor a feacute

e a razatildeo

Na sua globalidade a reflexatildeo dos Essais tem como um dos seus objectivos

principais a caracterizaccedilatildeo do homem Nesta perspectiva Michel de Montaigne se

3 AA VV Histoacuteria das sociedades das sociedades modernas agraves sociedades atuais Rio de Janeiro Ao Livro Teacutecnico 1983 p 70

9

apresenta como um pensador humanista que viveu numa altura em que a visatildeo

antropocecircntrica era dominante No entanto ele procurou superar esta concepccedilatildeo de uma

maneira muito particular A concepccedilatildeo antropoloacutegica claacutessica renascentista enaltecia

radicalmente a ldquodignitas hominisrdquo4 colocando o homem no centro do universo

Montaigne assume uma postura significativamente diferente do espiacuterito humanista

renascentista despreza o tema da dignitas hominis e dedica-se agrave investigaccedilatildeo das coisas

concretas da vida

O humanismo de Montaigne ao contraacuterio do humanismo dominante alicerccedila-se

na ldquomiseria hominisrdquo5 Parte de plena consciecircncia dos limites da razatildeo humana no

sentido de que as suas faculdades natildeo tecircm condiccedilotildees para transcender estes mesmos

limites A razatildeo o grande orgulho do homem eacute concebida como uma estrateacutegia de

racionalizaccedilatildeo dos vaacuterios elementos da vida (costumes crenccedilas etc) que procura

transformar atribuindo-lhe uma verdade que natildeo consegue transcender a contingecircncia

Potildee-se assim em destaque ateacute que ponto a posiccedilatildeo de Montaigne contrasta com a visatildeo

de ldquodignitas hominisrdquo acima referida a mais comummente assumida na sua eacutepoca Para

ele o homem soacute pode ser o que eacute e imaginar de acordo com a sua medida

ldquo[C] Tout contentement des mortels est mortel [A] La reconnoissance de nos parens de nos enfants et de nos amis si elle nous peut toucher et chatouiller en lrsquoautre monde si nous tenons encore agrave un tel plaisir nous sommes dans les commoditez terrestres et finies Nous ne pouvons dignement concevoir la grandeur de ces hautes et divines promesses si nous les pouvons aucunement concevoir pour dignement les imaginer il

4 Para ilustrar as principais caracteriacutesticas desta concepccedilatildeo vale a pena citar um texto muito conhecido de um dos maiores representantes do humanismo renascentista Pico della Mirandola O texto em causa pode ser considerado como uma espeacutecie de manifesto do pensamento humanista renascentista em geral Pico exalta o homem entre todos os seres da natureza e dos ceacuteus como um ser potencialmente capaz de auto-criar-se de auto-projectar-se e de modelar-se a si mesmo com liberdade Pico ldquocoloca na boca de Deusrdquo algumas palavras endereccediladas imaginativamente ao homem receacutem-criado (Adatildeo) ldquo[hellip] Medium te munde posui ut circumspiceres inde commodius quicquid est in mundo Nec te caelestem neque terrenum neque mortalem neque immortalem fecimus ut tui ipsius quasi arbitrarius honorarius que plastes et fictor in quam malueris tute formam effingas Poteris in inferiora quae sunt bruta degenerare poteris in superiora quae sunt divina ex tui animi sententia regenerarirdquo (Coloquei-te no meio do mundo para que daiacute possas olhar melhor tudo o que haacute no mundo Natildeo te fizemos celeste nem terreno nem mortal nem imortal a fim de que tu aacuterbitro e soberano artiacutefice de ti mesmo te plasmasses e te informasses na forma que tivesses seguramente escolhido Poderaacutes degenerar ateacute aos seres que satildeo as bestas poderaacutes regenerar-te ateacute agraves realidades superiores que satildeo divinas por decisatildeo do teu acircnimo) In Pico de la Mirandola Giovanni Oratio de Hominis Dignitate Ediccedilatildeo bilingue Traduccedilatildeo e introduccedilatildeo de Maria de Lurdes Sirgado Ganho Lisboa Ediccedilotildees 70 2001 pp 56-57) 5Para uma apresentaccedilatildeo sinteacutetica e clara deste tema pode-se consultar Friedrich Hugo Montaigne Traduzido do alematildeo por Robert Rovini Paris Gallimard 1967 sobretudo as paacuteginas 133-136 Nesta mesma perspectiva na obra de Rui Bertrand Romatildeo A Apologia na balanccedila a reinvenccedilatildeo do pirronismo na Apologia de Raimundo Sabunde de Michel de Montaigne Lisboa Imprensa Nacional Casa da Moeda 2007 haacute uma reflexatildeo que merece ser lida (pp 79-82)

10

faut les imaginer inimaginables indicibles incomprehensibles [C] et parfaictement autres que celles de nostre miserable experiencerdquo6

Constatando esse limite da razatildeo humana Montaigne combate decididamente as

concepccedilotildees da ldquodignitas humanisrdquo que tecircm como escopo transformar o homem no fim

uacuteltimo da natureza Montaigne ao voltar-se para o homem concreto ao rebaixaacute-lo e

tiraacute-lo do seu pedestal na ldquoApologierdquo assume uma atitude ceacuteptica entendida como

uma forma de pensamento capaz de seguir a mudanccedila e de rejeitar ao mesmo tempo a

pretensatildeo do homem de se considerar por via da razatildeo no centro do universo

Cabe entatildeo perguntar seraacute que o homem ocupa realmente um lugar central nos

Essais A resposta a esta questatildeo eacute expressa de maneira bastante niacutetida na proacutepria

obra Friedrich no seu conhecido trabalho sobre Montaigne afirma

ldquo[A] On peut ouvrir les Essais ougrave lrsquoon veut toujours ils traitent de lrsquohommerdquo7

Haacute muitos outros temas desenvolvidos nos Essais Basta lanccedilar um raacutepido olhar

sobre os tiacutetulos dos vaacuterios ensaios que compotildeem os trecircs livros da obra para constatar a

quantidade enorme de assuntos tratados por Montaigne

Na sua busca incessante de resposta agrave questatildeo central antes referida merece ser

destacado o contacto de Montaigne com a obra de Sebond Theologia Naturalis que seraacute

a base da ldquoApologierdquo Entre muitas outras questotildees desenvolvidas nesta obra o teoacutelogo

catalatildeo tem como objectivo importante responder agrave questatildeo o que eacute o homem Citando

o proacuteprio Sebond Rui Bertrand Romatildeo afirma que haacute uma ideia baacutesica de ordem

hieraacuterquica observada na scala naturale em todos os seus 4 degraus

ldquoNo inferior estatildeo as coisas apenas providas de ser as coisas minerais no segundo as que tecircm ser e vida as vegetais no terceiro as animais em que ao ser e agrave vida se juntam os sentidos no uacuteltimo encontra-se a criatura humana acima da qual natildeo haacute na natureza nenhum outro ser pois o homem possui as qualidades de todas as demais criaturas simultaneamente e em conjunto tendo aleacutem delas a razatildeo e o livre-arbiacutetrio [hellip]rdquo8

Continua o autor mais adiante

ldquo[hellip] A caracteriacutestica dominante da teologia de Sebond consiste precisamente no lugar privilegiado que nela ocupa a referecircncia do homem natildeo apenas como objecto de conhecimento mas como meio da

6 Les Essais II 12 p518 7 Friedrich op cit p 105 8 Romatildeo Rui Bertrand op cit p 90

11

obtenccedilatildeo deste A reflexatildeo antropoloacutegica polariza o seu pensamento filosoacutefico e lhe contamina o sistema teoloacutegicordquo9

Eacute importante destacar aqui uma ideia desenvolvida por Ernst Cassirer na sua

obra Ensaio sobre o Homem10 Segundo este autor a questatildeo acerca do homem no

periacuteodo renascentista depara-se com a descoberta de um novo instrumento de

pensamento entra em cena o espiacuterito cientiacutefico no sentido moderno da palavra O que

agora se procura eacute uma teoria geral do homem baseada em observaccedilotildees empiacutericas e em

princiacutepios loacutegicos gerais A nova cosmologia o sistema heliocecircntrico copernicano

passa a ser a uacutenica base satilde e cientiacutefica para uma nova antropologia Nem a metafiacutesica

claacutessica nem a religiatildeo (com a sua estrutura teoacuterica fundada na teologia medieval)

estavam preparadas para esta tarefa lembra o autor Estas duas cosmologias concebem

o universo como uma ordem hieraacuterquica em que o homem ocupa o lugar mais alto A

pretensatildeo humana de ser o centro do universo perdeu o seu fundamento Cassirer afirma

ainda que o sistema de Copeacuternico se tornou um dos mais fortes instrumentos do

cepticismo filosoacutefico que se desenvolveu no seacuteculo XVI

Montaigne sendo um pensador livre que conseguiu libertar-se da concepccedilatildeo

antropoloacutegica medieval e renascentista tambeacutem natildeo necessitou de recorrer agraves ideias

cientiacuteficas vigentes na altura da redacccedilatildeo dos Essais Isto natildeo significa que tenha

ignorado por completo a teoria heliocecircntrica de Copeacuternico mas sim que como escreve

Conche

ldquoIl nrsquoa pas eu besoin de Copernic pour trouver ridicule la preacutetension de lrsquohomme de se faire centre du cosmos11

Antes de iniciar o seu longo relato (de mais ou menos uma meia centena de

paacuteginas) no qual compara os homens aos animais Montaigne faz uma afirmaccedilatildeo de

capital importacircncia que serve como uma espeacutecie de conclusatildeo antecipada daquilo que

afirma negativamente sobre o homem e sua relaccedilatildeo com o universo

ldquo[A] La presomption est nostre maladie naturelle et originelle La plus calamiteuse et fraile de toutes les creatures crsquoest lrsquohomme et quant et quant la plus orgueilleuse Elle se sent et se void logeacutee icy parmy la bourbe et le fient du monde attacheacutee et cloueacutee agrave la pire plus morte et croupie parti de lrsquounivers au dernier estage du logis et le plus esloigneacute de la voute celeste avec les animaux de la pire condition des trois (Les aeacuteriens les aquatiques et les terrestres) et se va plantant par

9 Idem p 113 10 Cassirer Ernst An essay on man Traduccedilatildeo portuguesa de Carlos Branco Ensaio sobre o homem Lisboa Guimaratildees Editores 1995 p24 11 Conche Marcel Montaigne et la philosophie Paris Puf 1996 p 7

12

imagination au dessus du cercle de la Lune et ramenant le ciel soubs ses pieds Crsquoest par la vaniteacute de cette mesme imagination qursquoil srsquoegale agrave Dieu qursquoil srsquoattribue les conditions divines qursquoil se trie soy mesme et separe de la presse des autres creatures taille les parts aux animaux ses confreres et compaignons et leur distribue telle portion de facultez et de forces que bon luy semble Comment cognoit il par lrsquoeffort de son intelligence les branles internes et secrets des animaux par quelle comparaison drsquoeux agrave nous conclue il la bestise qursquoil leur attribue [C] Quand je me joueuml agrave ma chatte qui sccedilait si elle passe son temps de moy plus que je ne fay drsquoellerdquo12

O homem quer ser senhor de todo o universo A sua atitude de querer ser uma

excepccedilatildeo na natureza natildeo passa de uma atitude ilusoacuteria O homem eacute segundo

Montaigne uma criatura como as outras que pode ser diferenciada natildeo pela capacidade

de raciocinar mas apenas pela presunccedilatildeo de querer destacar-se orgulhosamente

tornando-se ldquoo todo-poderosordquo face agraves outras criaturas Esta sua pretensatildeo de querer ser

a uacutenica criatura que pode conhecer e dominar o universo eacute radicalmente contestada por

Montaigne na ldquoApologierdquo Eacute com muita clarividecircncia que Conche reflectindo sobre

este tema afirma

ldquoOn voit pourquoi Montaigne srsquoefforce de retrouver chez lrsquoanimal ldquointelligencerdquo ldquodiscreacutetionrdquoldquojugementrdquoldquoratiocinationrdquo capaciteacute de ldquoconsulterrdquo de ldquoconcluirrdquo ldquoscience et prudencerdquo 13

Que tipo de competecircncia nossa natildeo reconhecemos nos actos dos animais Esta

questatildeo fundamental leva Montaigne a apresentar os seus relatos anedoacuteticos14 O

interesse da sua apologia dos animais eacute ldquo[hellip] paradoxalment lrsquohomme Montaigne

recherche lrsquohomme dans lrsquoanimal [hellip] crsquoest pour lutter contre lrsquoanthropocentrismerdquo15

Montaigne inicia a sua exposiccedilatildeo perguntando-se

ldquo[A] Est-il police regleacutee avec plus drsquoordre diversifieacutee agrave plus de charges et drsquooffices et plus constamment entretenueuml que celle des mouches agrave mielrdquo16

E faz questatildeo tambeacutem de descrever o engenho das andorinhas ao construiacuterem os

seus alojamentos e das aranhas ao confeccionarem as suas teias Diante destas obras

destes pequeninos animais Montaigne observa

12 Les Essais II 12 p 452 13 Conche Marcel Montaigne et la philosophie Paris Puf 1996 p 9 14 ldquoFidegravele aux proceacutedeacutes de compilation de son temps Montaigne accumule les exemples emprunteacutes agrave Pline agrave Plutarque agrave Arrien agrave Aulu-Gelle agrave Lucregravece agrave Virgile agrave Sextus Epiricusrdquo (cf Weiler Maurice Pour connaitre la penseacutee de Montaigne Bordas 1948 p 38) 15 Giocanti Sylvia Montaigne et les becirctes la becirctise et lrsquoanimal dans Les Essais de Montaigne Universiteacute de Toulouse 2011 p 1 16 Les Essais II 12 pp 454-455

13

ldquo[A] Nous reconnoissons assez en la pluspart de leurs ouvrages combien les animaux ont drsquoexcellence (supeacuterioriteacute) au dessus de nous et combien nostre art est foible agrave les imiterrdquo17

Quanto agrave capacidade de comunicaccedilatildeo Montaigne afirma que os animais

possuem este atributo Falamos com os catildees18 e eles respondem-nos Eacute evidente que

utilizamos uma outra linguagem para conversarmos com eles Montaigne observa que

tambeacutem entre noacutes humanos haacute diferenccedilas de linguagem de acordo com a diferenccedila de

regiotildees Estas diferenccedilas tambeacutem se encontram nos animais da mesma espeacutecie19

Segundo o nosso autor haacute certamente uma diferenccedila de ordem e de grau entre os

homens e os animais contudo ldquo[A] crsquoest soubs le visage drsquoune mesme naturerdquo20 Ao

constatar a peculiaridade do homem em face das outras criaturas Montaigne destaca o

facto de que o homem eacute detentor da liberdade de imaginaccedilatildeo No entanto

ldquo[A] ce desresglement de penseacutees luy representant ce qui est ce qui nrsquoest pas et ce qursquoil veut le faux et le veritable crsquoest un advantage qui luy est bien cher vendu et duquel il a bien peu agrave se glorifier car de lagrave naist la souce principale des maux qui le pressent pecheacute maladie irresolution (inconstance) trouble desespoirrdquo 21

Citando Lucreacutecio22 Montaigne deixa transparecer que o homem se prejudica a si

mesmo porque natildeo se manteacutem dentro dos limites da organizaccedilatildeo da natureza que se

manifesta de uma maneira inteligiacutevel e agraves vezes ateacute hostil submetendo o homem agrave

necessidade de leis que natildeo lhe satildeo suficientemente claras23

17 Les Essais II 12 p455 18 Les Essais II 12 p 458 19 Les Essais II 12 pp 458-459 20 Les Essais II 12 p459 21 Les Essais II 12 p 460 22ldquo[B] ldquores quaeque suo ritu procedit et ommes Foedere naturae certo discrimina servantrdquo (Chaque chose se deacuteveloppe agrave sa maniegravere et toutes conservent les diffeacuterences eacutetablies par lrsquoordre immuable de la nature) Cf Les Essais II 12 p 459 23 Expressando a sua visatildeo da natureza Montaigne observa que ao considerar que ela nos criou diferentes dos outros animais isto eacute nus sobre a terra nua atados cercados natildeo tendo com que armar-nos cobrir-nos [hellip] somos tentados a chamaacute-la de ldquotregraves injuste maracirctrerdquo Mas isto natildeo eacute assim A nossa organizaccedilatildeo do mundo natildeo eacute tatildeo disforme e desregrada A natureza abraccedilou universalmente todas as suas criaturas e natildeo haacute nenhuma que ela tenha provido plenamente de todos os meios necessaacuterios para a conservaccedilatildeo da existecircncia ldquo[C] crsquoest une mesme nature qui roule son coursrdquo(cf Les Essais II12 p467) Reflectindo sobre o tema da natureza nos Essais Pierre Villey afirma que ela se opotildee essencialmente agrave razatildeo humana e eacute natural tudo o que a razatildeo natildeo contaminou Afirma Villey ldquo[hellip] crsquoest chez les animaux et chez les sauvages qursquoon trouve les traces les moins corrompues de la nature Lrsquoeacutetat de nature dans cette conception radicale crsquoest lrsquoeacutetat de sauvagerie [hellip] Lrsquoadmiration pour les andiens crsquoest la forme paradoxale que prend chez lui de temps agrave autre son principe drsquoimitation de la naturerdquo (In Villey Pierre Les sources et lrsquoeacutevolution des essais de Montaigne - Tome second Paris Librairie Hachete 1908 p228) Isto natildeo quer dizer que devamos imitar os indiacutegenas por exemplo em todos os seus costumes tradiccedilotildees etc

14

Continuando a apologia dos animais Montaigne sugere que concebamos que os

animais natildeo obedecem a instintos de uma forma cega O relato que apresenta da raposa

da Traacutecia24 eacute um dos seus exemplos claacutessicos neste sentido Antes de se arriscar sobre a

aacutegua gelada a raposa aproxima o ouvido do gelo para ouvir de que profundidade sobre

o murmuacuterio da aacutegua a correr em baixo isto eacute ela ldquoraciocinardquo como fariacuteamos noacutes em

idecircnticas circunstacircncias o que faz barulho mexe o que mexe natildeo estaacute gelado o que natildeo

estaacute gelado eacute liacutequido e o liacutequido cede sob o peso Segundo Montaigne atribuir isto

simplesmente a uma vivacidade do sentido da audiccedilatildeo sem raciociacutenio e sem conclusatildeo

eacute uma quimera inconcebiacutevel

Segundo Montaigne natildeo eacute soacute o homem que sabe escolher o que eacute bom e o que

natildeo eacute bom para a sua vida e sobretudo para o socorro nas doenccedilas atraveacutes da ciecircncia e

do conhecimento construiacutedos por arte e por raciociacutenio

ldquo[A] Et quand nous voyons les chevres de Candie si elles ont receu un coup de traict aller entre un million drsquoherbes choisir le dictame pour leur guerison et la tortue quand elle a mangeacute de la vipere chercher incontinent de lrsquooriganum pour se purger et le dragon fourbir et esclairer ses yeux avecques du fenouil les cigouignes se donner elles mesmes des clysteres agrave tout de lrsquoeau de marine [hellip] pourquay ne disons nous de mesmes que crsquoest science et prudencerdquo25

Eacute faacutecil ver aqui quanto Montaigne deseja que o homem reconheccedila que os

animais possuem tambeacutem ciecircncia e sabedoria Em seu entender os animais tambeacutem satildeo

capazes de ser instruiacutedos agrave moda humana

ldquo[A] Les merles les corbeaux les pies les parroquets nous leur aprenons agrave parler [hellip] ils ont un discours au dedans qui les rend ainsi disciplinables et volontaires agrave aprendrerdquo26

Muitos animais aproximam-se da capacidade do homem e isto leva Montaigne a

afirmar

ldquo[A] qursquoil se trouve plus de difference de tel homme agrave tel homme que de tel animal agrave tel hommerdquo27

Podemos encontrar na ldquoApologierdquo muitos outros exemplos em que Montaigne

defende a ideia de que os animais possuem diversas capacidades semelhantes agraves dos

humanos28 Uma vez numerados todos estes atributos dos animais Montaigne afirma

24 Les Essais II 12 p 460 25 Les Essais II 12 pp 462-463 26 Les Essais II 12 p 463 27 Les Essais II 12 p 466

15

ldquo[A] La maniegravere de naistre drsquoengendrer nourrir agir mouvoir vivre et mourir des bestes estant si voisine de la nostre tout ce que nous retranchons de leurs causes motrices et que nous adjoustons agrave nostre condition au dessus de la leur cela ne peut aucunement partir du discours de nostre raisonrdquo29

Pierre Villey ao reflectir sobre estas comparaccedilotildees suscita uma questatildeo

relevante que natildeo eacute possiacutevel ignorar

ldquo[hellip] quand il exalte lrsquointeligence des animaux on peut se demander ce qursquoil en pense au justerdquo30

Natildeo querendo entrar na discussatildeo deste assunto - ateacute porque o proacuteprio

Montaigne natildeo o fez - eacute importante notar que se estes relatos montaigneanos fossem

tomados agrave letra natildeo nos faltariam motivos de troccedila Poderiacuteamos duvidar de muitas

afirmaccedilotildees acerca dos animais apresentadas por ele Fazendo um esforccedilo por deixar agrave

margem os exageros o humor e a liberdade literaacuteria do autor ndash que tecircm como objectivo

rebaixar o homem recolocando-o entre os animais e mostrando-lhe que a sua razatildeo

grande motivo de orgulho natildeo lhe garante um lugar no topo da piracircmide das criaturas ndash

o que importa destacar eacute que Montaigne pretende acentuar uma grande semelhanccedila

entre os homens e os animais

ldquo[A] Nous ne sommes ny au dessus ny au dessoubs du reste tout ce qui est sous le ciel dit le sage court une loy et fortune pareille [B] Indupedita suis fatalibus omnia vinclis (Toutes les choses sont enchaineacutes par les liens de leur propre destineacutee)rdquo31

28 Vejamos resumidamente outros atributos dos animais destacados pelo autor os catildees que servem aos cegos tanto nos campos como nas cidades catildees que representavam papeacuteis no teatro (p463) bois que serviam nos jardins reais de Susa (p464) nos espectaacuteculos de Roma viam-se elefantes treinados em movimentar-se e em danccedilar (p465) a pega que imitava com a voz tudo o que ouvia (p464) os elefantes que tecircm alguma participaccedilatildeo religiosa (p468) formigas que tecircm um jeito muito especial de comunicaccedilatildeo muacutetua (p469) o ouriccedilo que prevecirc a direcccedilatildeo do vento (p469) o camaleatildeo e o polvo que mudam de cor conforme a ocasiatildeo (p469) o voo dos paacutessaros que eacute resultado natildeo apenas da organizaccedilatildeo natural mas tambeacutem do entendimento consentimento e raciociacutenio (p469) os animais que servem seus donos sabem amaacute-los defendecirc-los (p461) o catildeo o cavalo sabem prezar amizade (p471) os animais satildeo muito mais regrados do que noacutes e se contecircm com muito mais moderaccedilatildeo nos limites que a natureza nos prescreveu (p472) os animais natildeo promovem a guerra (p473) o catildeo eacute mais fiel do que o homem (p476-7) quanto agrave gratidatildeo os animais tecircm esta capacidade (p477-8) os atuns tecircm conhecimentos geomeacutetricos astronoacutemicos e aritmeacuteticos (p479-480) o elefante tem a capacidade de arrependimento e reconhecimento dos erros (p480) o tigre tem capacidade de ser clemente (p480) enfim Montaigne atribui todas estas caracteriacutesticas e outras mais aos animais mostrando que elas satildeo erradamente consideradas como unicamente posse dos humanos 29 Les Essais II 12 p 470 30 Villey op cit p 186 31 Les Essais II 12 p 459

16

Desta perspectiva podemos compreender melhor a razatildeo do ldquodestronamentordquo

deste ser ldquotodo-poderosordquo que eacute o homem levado a cabo por Montaigne32

Depois de ter destacado a ideia de que o homem se assemelha aos animais e

vice-versa Montaigne sustenta que a forma corporal do homem eacute o que constitui a sua

peculiaridade face aos animais Eacute ela que ldquodefinerdquo a identidade do homem

ldquo[B] Ce nrsquoest donc pas par la raison par le discours et par lrsquoame que nous excellons sur les bestes crsquoest par nostre beauteacute nostre beau teint et nostre belle disposition de membres pour laquelle il nous faut mettre nostre intelligence nostre prudence et tout le reste agrave lrsquoabandonrdquo33

A sugestatildeo de Montaigne eacute que o homem natildeo pode ser pensado sem o seu corpo

elemento essencial de sua condiccedilatildeo humana O homem natildeo pode continuar a ser

concebido apenas como ser racional Montaigne potildee em causa a claacutessica concepccedilatildeo de

que soacute o homem eacute constituiacutedo de racionalidade O seu objectivo natildeo eacute encontrar uma

nova definiccedilatildeo do homem natildeo deseja decretar a inferioridade do homem nem tampouco

a sua superioridade face aos animais Natildeo tem em vista promover uma competiccedilatildeo

ridiacutecula entre os seres da natureza Montaigne sente-se incapaz de dar qualquer

definiccedilatildeo com o auxiacutelio da razatildeo humana Ignora qual eacute a essecircncia dos animais natildeo os

conhece Da mesma forma podemos dizer que agrave luz da ldquoApologierdquo Montaigne natildeo

consegue definir o homem Natildeo eacute possiacutevel elaborar juiacutezos constantes e uniformes nem

sobre o homem nem a partir dele

Dito de outra forma o ldquocepticismo da razatildeordquo que Montaigne assume

conscientemente visa rejeitar a pretensatildeo do homem de se considerar por via da razatildeo

no centro do universo

Montaigne com os seus ensaios quer ir directo agraves coisas e aos homens Eacute claro

que teve pouco contacto com o chamado movimento cientiacutefico do seu tempo Longe de

32 Friedrich ao analisar a questatildeo do lugar que segundo Montaigne corresponde ao homem diz ldquoA la question de savoir quelle place occupe lrsquohomme dans la totaliteacute du monde existent Montaigne ne donnera jamais la reacuteponse plotinienne selon laquelle il serait dans la chaicircne des ecirctres eacutemaneacutes un dernier maillon reacutetablissant la communication avec la source de lrsquoeacutemanation lrsquoUm primordial Ni la reacuteponse chreacutetienne selon laquelle lrsquohomme constituerait le couronnement terrestre de la creacuteation tout le creacutee lui eacutetant subordonneacute et Dieu eacutetant alleacute pour lui jusqursquoagrave se reacutesoudre agrave intervenir dans lrsquohistoire du salut Lrsquohomme de Montaigne est plutocirct un point dans lrsquounivers sans espoir que le destin ni la diviniteacute srsquointeacuteresse jamais agrave lui Il partage cette insignifiance de point avec le milieu dans lequel il vit patrie Eacutetat continent terre animaux et plantes Il nrsquoest plus un centre il est plongeacute dans la multitude de tout ce qui existe ignorant ce qui lrsquoen distingue et srsquoy sentant cheacutetif - bien preacuteserveacute pourtant au coeur de son insignifiance de son ignorance et deacutechargeacute de tout embarras Il y a au fond de cette penseacutee des ideacutees de Lucregravece Montaigne les transforme pour leur faire exprimer sa propre conscience de la vie dont il preacutecise les grandes lignes en la deacutelimitant par rapport aux affirmations posant la digniteacute de la nature humaine (cf op cit p131) 33 Les Essais II 12 p 486

17

toda a construccedilatildeo teoacuterica esforccedila-se por encontrar nele mesmo e nos outros o homem

tal como eacute sem o falso semblante que lhe acrescentam as pretensiosas doutrinas que o

definem pela sua relaccedilatildeo com o universo e com Deus

18

2 A criacutetica agrave razatildeo humana e a questatildeo da religiatildeo

Segundo Montaigne as pessoas que se gabam do conhecimento estatildeo sempre a

tentar explicar quais satildeo os atributos de Deus atraveacutes de complicados conceitos e

demonstraccedilotildees ininteligiacuteveis Em seu entender Deus e as verdades da religiatildeo satildeo

nitidamente questotildees de feacute e natildeo noccedilotildees filosoacuteficas Que isto eacute assim prova-o o facto de

que estas noccedilotildees satildeo sempre muito diversas e originam muita discoacuterdia entre os

inuacutemeros autores que delas se ocupam Uma coisa eacute Deus e outra coisa totalmente

diferente eacute o que pensam os homens a respeito de Deus

ldquo[A] Il ma tousjours sembleacute quagrave un homme Chrestien cette sorte de parler est pleine dindiscretion et dirreverence Dieu ne peut mourir Dieu ne se peut desdire Dieu ne peut faire cecy ou cela Je ne trouve pas bon denfermer ainsi la puissance divine soubs les loix de nostre parolle Et lapparence qui soffre agrave nous en ces propositions il la faudroit representer plus reveremment et plus religieusementrdquo34

ldquo[A] Dieu ne peut faire les mortels immortels ny revivre les trespassez ny que celuy qui a vescu nait point vescu celuy qui a eu des honneurs ne les ait point eus nayant autre droit sur le passeacute que de loubliance [hellip] Voylagrave ce quil dict et quun Chrestien devroit eviter de passer par sa bouche Lagrave ougrave au rebours il semble que les hommes recherchent cette fole fierteacute de langage pour ramener Dieu agrave leur mesure [hellip]nostre parole le dict mais nostre intelligence ne lrsquoapprehende pointrdquo35

Para compreender o lugar e o valor da razatildeo na ldquoApologierdquo eacute necessaacuterio

investigar os motivos que levaram o autor a tecer uma criacutetica tatildeo contundente da razatildeo

humana aprofundando em concreto as relaccedilotildees que esta criacutetica tem com a sua anaacutelise

da religiatildeo e com o poder de Deus expresso em todo o desenvolvimento do texto Para

esta abordagem teremos como base o preacircmbulo da ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo36

A ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo eacute o mais longo capiacutetulo da obra Les Essais

Neste texto Montaigne propotildee-se apresentar a ldquodefesa de um teoacutelogordquo do seacuteculo XVI

Montaigne comeccedila por caracterizar a situaccedilatildeo histoacuterica na qual a obra de

Sebond chegou agraves matildeos de seu pai por intermeacutedio do humanista Pierre Brunel (1499-

1546)37 Segundo Montaigne trata-se de um livro adequado para a eacutepoca Isto porque as

34 Les Essais II 12 p 527 35 Les Essais II 12 p 528 36 Cf Les Essais II 12 pp 438-449 Montaigne sobretudo nestas paacuteginas iniciais opotildee a religiatildeo agrave razatildeo humana demonstrando por um lado a incapacidade e os limites desta faculdade que eacute motivo de orgulho do homem e por outro esse ldquoinstrumentordquo de conhecimento ligado agrave graccedila divina que eacute a feacute 37 Montaigne admirava muito este humanista que gozava de grande reputaccedilatildeo na sua eacutepoca por causa de seu saber (Les Essais II 12 p 439)

19

novidades de Lutero comeccedilavam a estar em voga e a abalar em muitos lugares a antiga

crenccedila cristatilde38 Para Montaigne que era um pensador catoacutelico conservador a Reforma

Protestante era vista como algo perigoso para a religiatildeo estabelecida Globalmente natildeo

concordava com as contestaccedilotildees provocadas pelo espiacuterito da Reforma sobretudo porque

poderiam levar os homens agrave praacutetica do ateiacutesmo especialmente os menos doutos

Uma leitura do texto potildee de imediato em evidecircncia em que medida Montaigne se

distancia de Sebond em termos argumentativos Parafraseando Villey a defesa de

Sebond seraacute rapidamente esquecida39 Montaigne observa que surgiram entretanto

algumas objecccedilotildees ao livro de Sebond e anuncia no iniacutecio do ensaio o seu propoacutesito de

refutaacute-las Montaigne deseja defender Sebond destes dois tipos de adversaacuterios por um

lado os que consideram que os cristatildeos erram ao querer apoiar com razotildees humanas a

sua crenccedila que soacute se concebe por feacute e por uma inspiraccedilatildeo particular da graccedila divina

Estes satildeo os que subestimam a importacircncia da razatildeo Satildeo considerados fideiacutestas

pessoas que pensam que a verdade em religiatildeo estaacute em uacuteltima instacircncia baseada na feacute

em vez de no raciociacutenio ou na evidecircncia Por outro lado estatildeo os que dizem que os

argumentos de Sebond satildeo fracos e inadequados para demonstrar o que pretendem e se

dispotildeem a atacaacute-los facilmente Estes satildeo os que subestimam a importacircncia da feacute

Consideremos em primeiro lugar a atitude dos primeiros opositores Natildeo seria

correcto querer apoiar com razotildees humanas a crenccedila ldquo[A] qui ne se conccediloit que par foy

et par une inspiration particuliere de la grace divinerdquo40 Estes primeiros opositores de

Sebond satildeo os partidaacuterios da posiccedilatildeo ortodoxa catoacutelica Montaigne lembra que estes

teoacutelogos catoacutelicos satildeo movidos sobretudo por uma visatildeo piedosa

ldquo[A] En cette objection il semble quil y ait quelque zele de pieteacute et agrave cette cause nous faut-il avec autant plus de douceur et de respect essayer de satisfaire agrave ceux qui la mettent en avantrdquo41

Em face destas primeiras criacuteticas agrave obra do teoacutelogo catalatildeo Montaigne natildeo se

inibe de expressar as suas proacuteprias tomadas de posiccedilatildeo

ldquo[A]Toutefois je juge ainsi quagrave une chose si divine et si haultaine et surpassant de si loing lhumaine intelligence comme est cette veriteacute de laquelle il a pleu agrave la bonteacute de Dieu nous esclairer il est bien besoin quil nous preste encore son secours dune faveur extraordinaire et privilegeacutee pour la pouvoir concevoir et loger en nous et ne croy pas que

38 Cf Les Essais II 12 p 439 39 Villey op cit p 183 40 Les Essais II 12 p 440 41 Les Essais II 12 p 440

20

les moyens purement humains en soyent aucunement capables et sils lestoient tant dames rares et excellentes et si abondamment garnies de forces naturelles eacutes siecles anciens neussent pas failly par leur discours darriver agrave cette connoissance Cest la foy seule qui embrasse vivement et certainement les hauts mysteres de nostre Religionrdquo42

Ao abordar esta questatildeo Montaigne reconhece que natildeo estaacute capacitado para

levar a cabo tal empreendimento Esta seria uma tarefa mais adequada para um homem

versado em teologia assunto de que ele pessoalmente diz nada saber43 Mesmo assim

expressa uma vez mais a sua criacutetica radical aos que utilizam a razatildeo para apresentarem

argumentos apologeacuteticos em defesa das verdades sobre Deus e sobre a religiatildeo

Montaigne eacute um catoacutelico44 Sobre isto os Essais natildeo deixam duacutevida Natildeo eacute este o

momento de entrar na discussatildeo acerca de como viveu ou deixou de viver a sua

religiosidade O importante eacute que como catoacutelico aceita que haacute um Deus uacutenico criador

do ceacuteu e da terra Em vaacuterios momentos tanto na ldquoApologierdquo como em outros ensaios

Montaigne daacute a entender que a verdade estaacute em Deus e natildeo eacute propriedade dos homens

filoacutesofos ou teoacutelogos Noutras palavras a verdade eacute revelada e o homem sem o auxiacutelio

de Deus nunca a encontraria A razatildeo humana natildeo tem condiccedilotildees para elaborar

raciociacutenios crediacuteveis sobre estas verdades reveladas Para sustentar a tese que a razatildeo eacute

impotente neste domiacutenio Montaigne dedica um nuacutemero importante de paacuteginas em toda

a sua obra a desenvolver a ideia de que alguns filoacutesofos antigos reflectiram muito sobre

a possibilidade do conhecimento sobre Deus e fizeram afirmaccedilotildees que satildeo

absolutamente carentes de sentido Isto natildeo passou de uma ldquo[C] tintamarre de tant de

42 Les Essais II 12 p 440-441 43 ldquoCe seroit mieux la charge drsquoun homme verseacute en Theologie que de moy qui nrsquoy sccedilay rienrdquo(Les Essais II 12 p 440) 44 Montaigne declara-se catoacutelico foi um catoacutelico que durante toda a sua vida procurou cumprir os ritos lituacutergicos convencionais da Igreja Catoacutelica A sua posiccedilatildeo ceacuteptica parece enquadrar-se no fideiacutesmo como veremos Mas haacute que salientar que em algumas questotildees morais independentes das suas praacuteticas rituais ou seja na sua vida praacutetica Montaigne natildeo tem muito em consideraccedilatildeo a lista de exigecircncias eacuteticas do catolicismo romano Parece que falta agrave concepccedilatildeo religiosa de Montaigne algum sentimento religioso limita-se a uma espeacutecie de praacutetica do ritualismo exigido pela Igreja Catoacutelica Ele seria catoacutelico por uma questatildeo de conveniecircncia intelectual A sua praacutetica lituacutergica ritualiacutestica natildeo exerce grande influecircncia sobre o seu pensamento filosoacutefico Ele eacute um pensador completamente livre face agrave doutrina da Igreja E isto distingue-o substancialmente dos teoacutelogos que integram o corpo doutrinal na Igreja Montaigne pensava e exprimia estes pensamentos com plena liberdade Manifesta aleacutem disso alguma confianccedila na Igreja na religiatildeo na tradiccedilatildeo e nos costumes que contribuiacuteram para a sua formaccedilatildeo e que satildeo de alguma maneira parte constitutiva de sua identidade E na realidade quis apostar naquilo com o qual estava mais familiarizado ldquo[B] Nous sommes Chrestiens agrave mesme titre que nous sommes ou Perigordins ou Alemansrdquo(Les Essais II 12 p 445) No entanto quando comeccedilamos a estabelecer um maior contacto com os Essais percebemos que Montaigne natildeo eacute um catoacutelico que confie cegamente na doutrina da Igreja Muito pelo contraacuterio eacute extremamente consciente dos problemas do catolicismo e da sua doutrina bem como dos costumes em geral E acima de tudo tem perfeita consciecircncia de que a sua confianccedila eacute uma crenccedila e natildeo uma certeza filosoacutefica

21

cervelles philosophiquesrdquo45 Segundo Montaigne de todas as ideias humanas e antigas

no tocante agrave religiatildeo

ldquo[A]celle lagrave me semble avoir eu plus de vray-semblance et plus dexcuse qui reconnoissoit Dieu comme une puissance incomprehensible origine et conservatrice de toutes choses toute bonteacute toute perfection recevant et prenant en bonne part lhonneur et la reverence que les humains luy rendoient soubs quelque visage sous quelque nom et en quelque maniere que ce futrdquo46

Trata-se de belas afirmaccedilotildees que querem expressar quais satildeo os principais

atributos de Deus Satildeo uma tentativa racional que tem como meta explicar quem eacute Deus

Ao comentar esta passagem da ldquoApologierdquo Conche pergunta-se que significam estas

palavras E baseado na leitura que faz de Montaingne afirma que aplicadas a Deus

natildeo podemos saber o que realmente significam47

Montaigne questiona o facto de muitos homens pretenderem edificar um

discurso baseado na razatildeo para justificar as verdades reveladas as quais segundo ele soacute

poderatildeo encontrar os verdadeiros alicerces na feacute Vejamos como Conche

sinteticamente analisa esta questatildeo a partir da ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo

ldquoNous croyons penser Dieu En reacutealiteacute nous ne faisons que projeter hors de nous des qualiteacutes humaines que nos avons [hellip] Lrsquohomme ne peut concevoir Dieu qursquoagrave partir de lui-mecircme Or il y a entre lrsquohomme et Dieu un abicircme qualitatif Le Dieu dont on parle et duquel on raisonne nrsquoest qursquoun produit de lrsquoanthropomorphisme La raison loin de nous eacutelever agrave Dieu le ramegravene agrave notre mesure [hellip] En tout cela Dieu est encore conccedilu par analogie avec lrsquohomme et la puissance divine enfermeacutee ldquosous les lois de notre parolerdquo Assujettir Dieu agrave nos principes rationnels crsquoest lrsquoassujettir agrave la raison humaine Lrsquohomme ne peut penser au-delagrave de lui mecircme Du vrai Dieu on ne peut rien penser ni rien dire Il nrsquoy a pas drsquoideacutee de Dieu [hellip] La notion de Dieu nrsquoest pas une notion philosophiquerdquo48

Embora critique estes opositores de Sebond Montaigne afirma ao mesmo tempo

que o empenho em justificar a feacute pela razatildeo eacute uma iniciativa louvaacutevel Chega mesmo a

afirmar que esta tarefa poderia ser considerada como o uso mais honroso que o homem

cristatildeo poderia dar agrave razatildeo Por outras palavras eacute uma atitude nobre a que leva o cristatildeo

a querer embelezar perceber e ampliar a verdade de sua crenccedila por meio de todos os

estudos e reflexotildees Montaigne observa entretanto que eacute preciso fazer acompanhar a

45 Les Essais II 12 p 516 46 Les Essais II 12 p 513 47 Cf Conche Marcel Montaigne ou la conscience heureuse Paris Puf 2009 p 55 48 Idem pp 55-56

22

nossa feacute de toda a razatildeo que haacute em noacutes mas sempre com a ressalva de natildeo pensar que

seja de noacutes que ela depende nem que os nossos esforccedilos e argumentos possam atingir

uma tatildeo ldquo[A] supernaturelle et divine sciencerdquo49 O autor dos Essais insistiraacute muito

neste aspecto

ldquo[A] Si elle nentre chez nous par une infusion extraordinaire si elle y entre non seulement par discours mais encore par moyens humains elle ny est pas en sa digniteacute ny en sa splendeur Et certes je crain pourtant que nous ne la jouyssions que par cette voye Si nous tenions agrave Dieu par lentremise dune foy vive si nous tenions agrave Dieu par luy non par nous si nous avions un pied et un fondement divin les occasions humaines nauroient pas le pouvoir de nous esbranler comme elles ont [hellip]rdquo50

Sem duacutevida Montaigne ao questionar o poder da razatildeo humana procura

defender a feacute cristatilde Os argumentos tidos como ceacutepticos que estatildeo presentes na

ldquoApologierdquo tecircm como objectivo provar que soacute atraveacutes da intervenccedilatildeo divina e natildeo com

nossos proacuteprios meios racionais podemos ter acesso agrave verdade Apresenta vaacuterios

exemplos para que entendamos com mais clarividecircncia a sua reflexatildeo acerca deste

assunto

ldquo[C] Lrsquohomme est bien insenseacute Il ne sccedilauroit forger un ciron et forge des Dieux agrave douzainesrdquo51

O homem quer descrever Deus mas na verdade descreve-se a si mesmo Isto

demonstra a sua incapacidade e a sua falta de sabedoria

ldquo[B] Nous avons vie raison et liberteacute estimons la bonteacute la chariteacute et la justice ces qualitez sont donc en luy Somme le bastiment et le desbastiment les conditions de la diviniteacute se forgent par lhomme selon la relation agrave soy Quel patron et quel modele Estirons eslevons et grossissons les qualitez humaines tant quil nous Plaira enfle toy pauvre homme et encore et encore et encore Non si te ruperis inquit (ldquoNon pas mecircme quand tu cregraveverais dit-ilrdquo (Hor Sal II III 318) Crsquoest la fable de la grenouille qui veut se faire aussi grosse que le boeuf)rdquo52

Eacute interessante notar que ao mesmo tempo que pretende fazer a apologia da feacute cristatilde Montaigne critica os cristatildeos que natildeo satildeo ldquofieacuteisrdquo aos ensinamentos da Sagrada Escritura

ldquo[B] Voulez vous voir cela Comparez nos moeurs agrave un Mahometan agrave un Payen vous demeurez tousjours au dessoubs lagrave ougrave au regard de lavantage de nostre religion nous devrions luire en excellence dune extreme et incomparable distance et devroit on dire Sont ils si justes si

49 Les Essais II 12 p 441 50 Les Essais II 12 p 441 51 Les Essais II 12 p 530 52 Les Essais II 12 p 531

23

charitables si bons ils sont donq Chrestiens [C] La marque peculiegravere de nostre veriteacute devroit estre nostre vertu comme elle est aussi la plus celeste marque et la plus difficile et que cest la plus digne production de la veriteacuterdquo53

Para Montaigne os cristatildeos constituem uma espeacutecie de contratestemunho de sua

feacute Fazendo uma referecircncia ao texto da Sagrada Escritura algo muito raro nos Essais o

autor afirma que se tiveacutessemos um uacutenico pingo de feacute54 moveriacuteamos as montanhas de

seu lugar E neste sentido lembra-nos

ldquo[A] nos actions qui seroient guideacutees et accompaigneacutees de la diviniteacute ne seroient pas simplement humaines elles auroient quelque chose de miraculeux comme nostre croyancerdquo55

Para os que subestimam a importacircncia da razatildeo isto eacute para os primeiros

opositores de Sebond ou os fideiacutestas os cristatildeos erram ao quererem apoiar as suas

crenccedilas que soacute se concebem por meio da feacute e por inspiraccedilatildeo particular da graccedila divina

Estes satildeo os que pensam que a verdade em religiatildeo estaacute em uacuteltima instacircncia baseada na

feacute em vez de no raciociacutenio ou na evidecircncia Segundo Montaigne trata-se de uma

concepccedilatildeo bonita e ateacute piedosa Chega inclusivamente a exemplificar esta atitude e a

citar um caso de algueacutem que foi desviado dos erros da incredulidade atraveacutes da leitura

da obra de Sebond

ldquo[A] Je sccedilay un homme dauthoriteacute nourry aux lettres qui ma confesseacute avoir esteacute rameneacute des erreurs de la mescreance par lentremise des argumens de Sebond Et quand on les despouillera de cet ornement et du secours et approbation de la foy et quon les prendra pour fantasies pures humaines pour en combatre ceux qui sont precipitez aux espouvantables et horribles tenebres de lirreligion ils se trouveront encores lors aussi solides et autant fermes que nuls autres de mesme condition quon leur puisse opposer [hellip]rdquo56

53 Les Essais II 12 p 442 54 Provavelmente Montaigne estaacute a aludir a textos da Sagrada Escritura especialmente do Evangelho ldquoSi vraiment vous avez de la foi gros come une graine de moutarde vous diriez agrave ce sycomore ldquoDeacuteracine-toi et va te planter dans la merrdquo et il vous obeacuteiraitrdquo (Lc 17 6) Car en veacuteriteacute je vous le deacuteclare si un jour votre foi est semblable agrave un grain de moutarde vous diriez agrave cette montagne ldquoPasse drsquoici lagrave-basrdquo et elle y passera Rien ne vous sera impossiblerdquo (Mt 17 20) (In Nouveau Testament Traduction Oecumeacutenique de la Bible Paris PUF 1977 pp 91 e 253 55 Les Essais II 12 p 442 56 Les Essais II 12 p 447-448

24

No entanto mesmo tendo em consideraccedilatildeo a importacircncia da Teologia Natural

sebondiana Montaigne toma um certo partido pelo lado dos fideiacutestas57 seus opositores

Em seu entender a razatildeo humana natildeo eacute capaz de conduzir o homem agrave feacute

Montaigne num dado momento refere-se agraves guerras58 que oprimiam a sua

naccedilatildeo Ele propotildee uma possiacutevel explicaccedilatildeo destes tormentos que assolavam a Franccedila

que tem muito a ver com a questatildeo de fundo tratada na ldquoApologierdquo Escreve

ldquo[A] Les hommes y sont conducteurs et srsquoy servent de la religion ce devroit estre tout le contrairerdquo59

Assim se compreende por que razatildeo Montaigne aleacutem de criticar aqueles que

queriam instrumentalizar a razatildeo para justificar as verdades reveladas repudia a noccedilatildeo

daqueles que se dedicam excessivamente agrave religiatildeo e que tecircm como meta principal a

satisfaccedilatildeo das paixotildees e da vaidade

ldquo[C] Je voy cela evidemment que nous ne prestons volontiers agrave la devotion que les offices qui flattent noz passions Il nest point dhostiliteacute excellente comme la Chrestienne Nostre zele fait merveilles quand il va secondant nostre pente vers la haine la cruauteacute lambition lavarice la detraction la rebellion A contrepoil vers la bonteacute la benigniteacute la temperance si comme par miracle quelque rare complexion ne ly porte il ne va ny de pied ny daile Nostre religion est faicte pour extirper les vices elle les couvre les nourrit les incite [A] Il ne faut point faire barbe de foarre agrave Dieu (comme on dict) Si nous le croyons je ne dy pas par foy mais dune simple croyance voire (et je le dis agrave nostre grande confusion) si nous le croyons et cognoissions comme une autre histoire comme lun de nos compaignons nous laimerions au dessus de toutes autres choses pour linfinie bonteacute et beauteacute qui reluit en luy au moins marcheroit il en mesme reng de nostre affection que les richesses les plaisirs la gloire et nos amis raquo60

Montaigne demonstra uma certa irritaccedilatildeo em face da instrumentalizaccedilatildeo da

religiatildeo para certos objectivos particulares Em seu entender a devoccedilatildeo religiosa natildeo

57 Ao reflectir sobre o fideiacutesmo presente na ldquoApologierdquo Friedrich diz-nos que Montaigne assume um fideiacutesmo isento da nostalgia miacutestica O seu fideiacutesmo significa uma tomada de consciecircncia intelectual dos limites humanos limites estes que natildeo deseja ultrapassar Seu fideiacutesmo eacute de uma espeacutecie negativa isto eacute eacute a certeza da incerteza O mesmo autor observa ainda que a ldquoteologiardquo de Montaigne representa um desvio para ir ao conhecimento do homem no interior do mundo Montaigne precisa de se distanciar de Deus para se assegurar da pequenez do homem na qual ele vai se instalar (cf op cit p 117) 58 Tudo indica que Montaigne estaacute a falar das guerras civis e religiosas do seacuteculo XVI Citando o famoso historiador francecircs M de Chacircteaubriand Laschamps na sua monumental obra Michel de Montaigne editada em 1855 afirma que estas guerras ldquoont dureacute trente-neuf ans elles ont engendre les massacres de la Saint Bartheacutelemy verseacute le sang de plus de deux millions de Franccedilais et deacutevoreacute plus de trois milliards de notre monnaie actuelle Elles ont produit la saisie et la vente des biens de lrsquoEacuteglise et des particulieres frappeacute deux rois de mort violente Henri III et Henri IV et commenceacute le procegraves criminal du premier de ces deux roisrdquo (cf Laschamps F Bigorie de Michel de Montaigne Paris Libraire Editeur 1855 p 108) 59 Les Essais II 12 p 443 60 Les Essais II 12 p 444

25

pode ser usada para servir os propoacutesitos do oacutedio da crueldade da ambiccedilatildeo da rebeliatildeo

etc61

Embora natildeo seja teoacutelogo62 Montaigne eacute um pensador que procura respeitar

profundamente a missatildeo da teologia Mas importa salientar que esta missatildeo deve ser

entendida simplesmente como uma praacutetica de piedade e natildeo como uma racionalizaccedilatildeo e

sistematizaccedilatildeo das verdades reveladas pela feacute Neste sentido haacute uma enorme distacircncia

entre o autor dos Essais e os escolaacutesticos Para Montaigne a teologia eacute concebida como

uma espeacutecie de exerciacutecio espiritual dos cristatildeos sobretudo dos teoacutelogos atraveacutes da

razatildeo humana Exerciacutecio este que carece do poder de alcanccedilar a verdade

ldquo[A] Il en faut faire de mesme et accompaigner nostre foy de toute la raison qui est en nous mais tousjours avec cette reservation de nestimer pas que ce soit de nous quelle deacutepende ny que nos efforts et arguments puissent atteindre agrave une si supernaturelle et divine sciencerdquo 63

Para Montaigne as explicaccedilotildees (racionalizaccedilotildees) das verdades da religiatildeo

devem ser as pregaccedilotildees piedosas nos actos de culto por exemplo E esta eacute a tarefa

fundamental da qual a teologia deve ocupar-se Aleacutem disto Montaigne que eacute um

observador subtil e cuidadoso propotildee certas distinccedilotildees Vejamos o que Friedrich tem a

dizer sobre esta questatildeo

ldquo[hellip] sait bien entendu distinguer la vraie pieacuteteacute de la fausse Il bracircme ainsi les priegraveres meacutecaniques la malhonnecircteteacute des gens qui se signent au son de la cloche sans pour autant renoncer agrave la haine agrave lrsquoavarice agrave lrsquoinjustice comme si leur principe eacutetait aux vices leur heure son heure agrave Dieurdquo64

Desta perspectiva segundo Montaigne a religiatildeo deve ser entre outras coisas

como uma praacutetica da verdadeira piedade que se preocupa em instaurar no coraccedilatildeo do

homem o desejo de viver o amor a justiccedila etc renunciando a tudo aquilo que eacute mal e

que impede a realizaccedilatildeo da felicidade do homem no aqui e no agora Eacute por isto que natildeo

acredita numa religiatildeo que vive a prometer constantemente bens eternos que viratildeo a

tornar-se realidade num outro mundo diverso e posterior a este que conhecemos Para

exemplificar esta sua abordagem Montaigne refere na ldquoApologierdquo o filoacutesofo Antiacutestenes

Quando o iniciavam no misteacuterio de Orfeu dizendo-lhe o sacerdote que aqueles que se

devotavam a tal religiatildeo iam receber bens eternos e perfeitos apoacutes a morte aquele

61 Cf Les Essais II 12 p 444 62 Ver nota 43 63 Les Essais II 12 p 441 64 Friedrich op cit p 122

26

perguntou-lhe ldquose acreditas nisso por que entatildeo natildeo morres tu mesmordquo65 Eis um outro

exemplo que vale a pena citar

ldquo[C] Diogenes plus brusquement selon sa mode et hors de nostre propos au prestre qui le preschoit de mesme de se faire de son ordre pour parvenir aux biens de lautre monde Veux tu pas que je croye quAgesilauumls et Epaminondas si grands hommes seront miserables et que toy qui nes quun veau seras bien heureux par ce que tu es prestre rdquo66

Segundo Montaigne se acolhecircssemos essas grandes promessas de felicidades

eternas e supremas com a mesma autoridade com que acolhemos uma opiniatildeo

filosoacutefica natildeo teriacuteamos o horror agrave morte que temos

ldquo[A] Je veuil estre dissout dirions nous et estre aveques Jesus-Christrdquo67

Ao afirmar que

ldquo[A] La force du discours de Platon de lrsquoimmortaliteacute de lrsquoame poussa bien aucuns de ses disciples agrave la mort pour joiumlr plus promptement des esperances qursquoil leur donnoit [hellip]68

O autor da ldquoApologierdquo quer destacar a fragilidade da razatildeo que utiliza meios

puramente humanos para explicar ldquorealidadesrdquo que transcendem a vida concreta

Vejamos uma passagem em que o autor expressa nitidamente estas ideias

ldquo[A] Tout cela cest un signe tres-evident que nous ne recevons nostre religion quagrave nostre faccedilon et par nos mains et non autrement que comme les autres religions se reccediloyvent Nous nous sommes rencontrez au paiumls ou elle estoit en usage ougrave nous regardons son ancienneteacute ou lauthoriteacute des hommes qui lont maintenue ou creignons les menaces quellrsquoattache aux mescreans ou suyvons ses promesses Ces considerations lagrave doivent estre employeacutees agrave nostre creance mais comme subsidiaires ce sont liaisons humaines Une autre region dautres tesmoings pareilles promesses et menasses nous pourroyent imprimer par mesme voye une croyance contrairerdquo69

Apesar de ser catoacutelico parece sugerir na ldquoApologierdquo uma certa atitude de

indiferenccedila relativamente a toda e qualquer profissatildeo de feacute ou seja uma espeacutecie de

distanciamento no que diz respeito agraves diversas convicccedilotildees religiosas Montaigne chega

quase a reduzir a proacutepria crenccedila a uma questatildeo de costume a um acaso geograacutefico

65 Cf Les Essais II 12 p 444 66 Les Essais II 12 p 444 67 Les Essais II 12 p 445 68 Les Essais II 12 p 445 69 Les Essais II 12 p 445

27

[B] Nous sommes Chrestiens agrave mesme titre que nous sommes ou Perigordins ou Alemansrdquo70

Fazendo uma criacutetica aos diversos raciociacutenios que foram usados na histoacuteria do

pensamento filosoacutefico com o objectivo de argumentar de que forma o homem tem

acesso agrave religiatildeo Montaigne afirma que Platatildeo e os seus exemplos querem levar-nos a

concluir que somos conduzidos agrave crenccedila em Deus ou por amor ou por forccedila A sua

rejeiccedilatildeo dos argumentos da filosofia expressa-se de uma forma muito incisiva

ldquo[C] LAtheisme estant une proposition comme desnatureacutee et monstrueuse difficile aussi et malaiseacutee destablir en lesprit humain pour insolent et desregleacute quil puisse estre il sen est veu assez par vaniteacute et par fierteacute de concevoir des opinions non vulgaires et reformatrices du monde en affecter la profession par contenance qui sils sont asses fols ne sont pas assez forts pour lavoir planteacutee en leur conscience pourtantrdquo71

Aleacutem de apontar os limites das crenccedilas consideradas pagatildes bem como os

enganos de Platatildeo relativos aos motivos que levam o homem agrave praacutetica da religiatildeo

Montaigne critica um outro engano similar e importante de Platatildeo

ldquo[B] Lerreur du paganisme et lignorance de nostre sainte veriteacute laissa tomber cette grande ame de Platon (mais grande dhumaine grandeur seulement) encores en cet autre voisin abus que les enfans et les vieillars se trouvent plus susceptibles de religion comme si elle naissoit et tiroit son credit de nostre imbecilliteacuterdquo72

Segundo Montaigne a religiatildeo natildeo pode ser construiacuteda sobre o alicerce da razatildeo

humana como vimos Nem tampouco pode ser fundada nos argumentos platoacutenicos

acabados de referir Estes satildeo todos muito fraacutegeis A religiatildeo encontra as suas bases

verdadeiras na feacute A perspectiva proacutepria da filosofia supotildee um ateiacutesmo de meacutetodo como

observa Conche Caso contraacuterio ela jaacute natildeo seria filosofia ldquomais theacuteologie ou ideacuteologie

A qui est ainsi priveacute du secours de la gracircce divine Dieu est inconnaissablerdquo73

Montaigne recusa o ateiacutesmo de uma forma muito clara inclusive aquele conceituado

por Platatildeo

ldquo[A] Et ce que dit Plato74 quil est peu dhommes si fermes en latheisme quun dangier pressant ne ramene agrave la recognoissance de la divine puissance ce rolle ne touche point un vray Chrestien Cest agrave faire aux

70 Les essais II 12 p 445 71 Les Essais II 12 p 446 72 Les Essais II 12 p 446 73 Conche 1996 op cit p131 74 Tudo leva a crer que Montaigne se estaacute a referir a Platatildeo Preferimos conservar a mesma grafia da ediccedilatildeo dos Essais que estaacute a ser utilizada neste trabalho

28

religions mortelles et humaines destre receueumls par une humaine conduite Quelle foy doit ce estre que la laacutecheteacute et la foiblesse de coeur plantent en nous et establissent [C] Plaisante foy qui ne croid ce quelle croit que pour navoir le courage de le descroire Une vitieuse passion comme celle de linconstance et de lestonnement peut elle faire en nostre ame aucune production regleacutee75

Continuando a sua reflexatildeo no preacircmbulo da ldquoApologierdquo o autor ressalta qual eacute

a relaccedilatildeo fundamental que eacute necessaacuteria para estabelecer a uniatildeo do homem a Deus

partindo do caraacutecter superior da religiatildeo face ao ateiacutesmo Montaigne observa que o laccedilo

que deveria atar o nosso juiacutezo e a nossa vontade que deveria cingir a nossa alma e uni-

la ao criador

ldquo[A] ce devroit estre un neud prenant ses repliz et ses forces non pas de nos considerations de noz raisons et passions mais dune estreinte divine et supernaturelle nayant quune forme un visage et un lustre qui est lauthoriteacute de Dieu et sa grace Or nostre coeur et nostre ame estant regie et commandeacutee par la foy cest raison quelle tire au service de son dessain toutes noz autres pieces selon leur porteacuteerdquo76

Montaigne ao indicar como devemos manejar os instrumentos naturais e

humanos ou seja como devemos aplicar a razatildeo agrave nossa feacute afirma que Deus deixou nas

suas obras o cunho de sua divindade e deve-se apenas agrave nossa fraqueza que natildeo o

possamos perceber E afirma com admiraccedilatildeo que Sebond se empenhou neste digno

estudo

ldquo[A] Or nos raisons et nos discours humains cest comme la matiere lourde et sterile la grace de Dieu en est la formerdquo77

As acccedilotildees humanas permanecem inuacuteteis e vatildes se natildeo tecircm em conta o amor e a

obediecircncia a Deus

ldquo[A] ainsin est-il de nos imaginations et discours ils ont quelque corps mais une masse informe sans faccedilon et sans jour si la foy et grace de Dieu ny sont joinctesrdquo78

Quanto aos segundos opositores de Sebond ndash ou seja os que dizem que seus

argumentos satildeo fracos e inadequados para demonstrar o que ele pretende e por isso

dispotildeem-se a atacaacute-los facilmente ndash Montaigne vai rejeitar os argumentos por eles

apresentados nos quais se subestima a importacircncia da feacute A rejeiccedilatildeo dos argumentos

desta segunda categoria ocupa maior espaccedilo porque ldquo[A] Il faut secouer ceux cy un peu

75 Les Essais II 12 p 445 76 Les Essais II 12 p 446 77 Les Essais II 12 p 447 78 Les Essais II 12 p 447

29

plus rudement car ils sont plus dangereux et plus malitieux que les premiersrdquo79 Estes

ldquoracionalistasrdquo consideram que a razatildeo humana eacute auto-suficiente para conhecer

qualquer coisa e desprezam a feacute considerando-a como algo inuacutetil para um saacutebio

ldquo Le moyen que je prens pour rabatre cette frenaisie et qui me semble le plus propre crsquoest de froisser et fouler aux pieds lrsquoorgueil et humaine fierteacute leur faire sentir lrsquoinaniteacute la vaniteacute et deneantise de lrsquohomme leur arracher des points les chetives armes de leur raison leur faire baisser la teste et mordre la terre soubs lrsquoauthoriteacute et reverence de la majesteacute divine Crsquoest agrave elle seule qursquoapartient la science et la sapience elle seule qui peut estimer de soy quelque chose et agrave qui nous desrobons ce que nous nous contons et ce que nous nous prisons Ού γὰρ ἐᾱ φρονεῑν ὁ Θεὸϛ μέγα ἄλλον ἢ ἑαυτόν [ldquoCar Dieu ne permet pas qursquoun autre que Lui srsquoenorgueillisserdquo (Heacuterodote VII x)]rdquo80

Ao analisar as duas objecccedilotildees agrave Teologia natural de Sebond Montaigne tem

como principal finalidade - aleacutem do desenvolvimento do seu fideiacutesmo que potildee em

causa que a filosofia seja um meio para se chegar a Deus - destronar o homem do seu

pedestal como ldquosenhorrdquo entre todas as criaturas como vimos no primeiro capiacutetulo deste

trabalho Agrave luz destas objecccedilotildees se desenvolve tambeacutem em todo o texto da ldquoApologierdquo

uma grande quantidade de criacuteticas aos detractores do teoacutelogo catalatildeo que na verdade

mais natildeo eacute do que uma contestaccedilatildeo de Montaigne de tudo aquilo que faz do homem um

ser cheio de orgulho e de vaidade Montaigne chega agrave conclusatildeo que a razatildeo humana

natildeo pode conhecer os atributos de Deus A razatildeo natildeo tem condiccedilotildees para emitir juiacutezos

crediacuteveis a respeito destes atributos Ela natildeo estaacute revestida de um poder que lhe garanta

a elaboraccedilatildeo de raciociacutenios crediacuteveis acerca de Deus e das verdades da religiatildeo

Montaigne apresenta um resumo das principais ideias acerca de Deus que foram

surgindo na histoacuteria do pensamento filosoacutefico antigo e afirma que tudo isto natildeo passa de

uma balbuacuterdia (ldquotintamarrerdquo) de muitos ceacuterebros filosoacuteficos81

ldquo[C] Thales [hellip] estima Dieu un esprit qui fit deau toutes choses Anaximander que les Dieux estoyent des mourans et naissans agrave diverses saisons et que crsquoestoyent des mondes infinis en nombre Anaximenes que lair estoit Dieu [hellip] Anaxagoras le premier a tenu la description et maniere de toutes choses estre conduite par la force et raison dun esprit infini Alcmaeligon a donneacute la diviniteacute au soleil agrave la lune aux astres et agrave lame[hellip] Empedocles disoit estre des Dieux les quatre natures desquelles toutes choses sont faictes [hellip] Platon dissipe sa creance agrave divers visages Il dict au Timaeacutee le pere du monde ne se pouvoir

79 Les Essais II 12 p 448 80 Les Essais II 12 p 448 81 Cf Les Essais II 12 p 516

30

nommer aux loix quil ne se faut enquerir de son estre et ailleurs en ces mesmes livres il faict le monde le ciel les astres la terre et nos ames Dieux et reccediloit en outre ceux qui ont esteacute receuz par lancienne institution en chasque republique Xenophon rapporte un pareil trouble de la discipline de Socrates tantost quil ne se faut enquerir de la forme de Dieu et puis il luy faict establir que le Soleil est Dieu et lame Dieu quil ny en a quun et puis quil y en a plusieurs[hellip] Aristote asture que cest lesprit asture le monde asture il donne un autre maistre agrave ce monde et asture faict Dieu lardeur du ciel [hellip] Heraclides Ponticus ne fait que vaguer entre les advis et en fin prive Dieu de sentiment et le faict remuant de forme agrave autre et puis dict que cest le ciel et la terre[hellip] Zeno la loy naturelle commandant le bien et prohibant le mal laquelle loy est un animant et oste les Dieux accoustumez Jupiter Juno Vesta Diogenes Apolloniates que cest laage [hellip] Cleanthes tantost la raison tantost le monde tantost lame de Nature tantost la chaleur supreme entournant et envelopant tout [hellip] Chrysippus faisoit un amas confus de toutes les precedentes sentences et comptoit entre mille formes de Dieux quil faict les hommes aussi qui sont immortalisez Diagoras et Theodorus nioyent tout sec quil y eust des Dieux Epicurus faict les Dieux luisans transparens et perflables logez comme entre deux forts entre deux mondes agrave couvert des coups revestus dune humaine figure et de nos membres lesquels membres leur sont de nul usagerdquo82

Esta longa citaccedilatildeo da ldquoApologierdquo apresenta-nos a enorme quantidade de

teorizaccedilotildees que tecircm como base a razatildeo humana e que satildeo bastante diacutespares no tocante

agraves crenccedilas Isto potildee em evidecircncia que Montaigne natildeo acredita que o homem tenha

condiccedilotildees para compreender ou apresentar algo crediacutevel acerca de Deus Por isto o

homem exagera na sua criatividade intelectual ao inventar inuacutemeros atributos divinos

que frequentemente se assemelham aos seus proacuteprios atributos Em seu entender Deus

eacute absolutamente incompreensiacutevel Na leitura que de Montaigne faz Leveaux

ldquoLrsquoideacutee de Dieu existe chez lrsquohomme mais au delagrave de cette ideacutee simple drsquoune uniteacute absolue tout devient doute et confusion Alors se preacutesent des questions sans nombre auxquelles il est impossible de reacutepondre Crsquoest lagrave si je ne me trompe le ldquoque sais-jerdquordquo83

Montaigne afirma que haacute uma grande inconstacircncia variedade e mobilidade de

ideias acerca de Deus nas almas excelentes e admiraacuteveis dos filoacutesofos Mas classifica o

empenho destes como vatildeo pelo facto de quererem adivinhar Deus por meio das nossas

analogias e conjecturas Por natildeo podermos estender a vista ateacute ao seu trono glorioso

procuramos trazecirc-lo aqui para baixo para a nossa corrupccedilatildeo e miseacuteria Soacute a feacute tem

82 Les Essais II 12 pp 514-516 83 Leveaux Alphonse Eacutetude sur les Essais de Montaigne Paris Henri Plon Imprimeur-Eacutediteur 1870 p 213

31

condiccedilotildees de entender os misteacuterios da religiatildeo Sem ela os nossos esforccedilos de

demonstraccedilatildeo destes misteacuterios permanecem vazios e esteacutereis

ldquo[A] La participation que nous avons agrave la connoissance de la veriteacute quelle quelle soit ce nest pas par nos propres forces que nous lavons acquise Dieu nous a assez appris cela par les tesmoins quil a choisi du vulgaire simples et ignorans pour nous instruire de ses admirables secrets nostre foy ce nest pas nostre acquest cest un pur present de la liberaliteacute dautruy Ce nest pas par discours ou par nostre entendement que nous avons receu nostre religion cest par authoriteacute et par commandement estranger La foiblesse de nostre jugement nous y ayde plus que la force et nostre aveuglement plus que nostre cler-voyance Cest par lentremise de nostre ignorance plus que de nostre science que nous sommes sccedilavans de divin sccedilavoirrdquo84

Para o autor da ldquoApologierdquo o homem por si soacute eacute absolutamente impotente para

chegar a certezas acerca das questotildees relacionadas com a feacute Nesta perspectiva o autor

observa tambeacutem que natildeo eacute possiacutevel fazer afirmaccedilotildees seguras tendo como base a razatildeo

Por exemplo acerca da imortalidade da alma tema desde sempre muito caro agrave filosofia

os cristatildeos devem unicamente a Deus e ao benefiacutecio de sua graccedila a verdade de uma

crenccedila tatildeo nobre pois eacute apenas da sua liberalidade que o cristatildeo recebe o fruto da

imortalidade o qual lembra o autor consiste no gozo da beatitude eterna A razatildeo natildeo

consegue fazer nenhuma afirmaccedilatildeo crediacutevel sobre este tema Ela eacute incapaz uma vez que

a imortalidade eacute um ldquodadordquo da revelaccedilatildeo

ldquo[C] Confessons ingenuement que Dieu seul nous lrsquoa dict et la foy car leccedilon nrsquoest ce pas de nature et de nostre raisonrdquo85

Montaigne assumindo uma posiccedilatildeo fideiacutesta depois de ter feito o exame das

diversas opiniotildees sobre a alma86 faz um ldquoapelo agrave passividade da razatildeo e agrave aceitaccedilatildeo da

verdade religiosa sem tentar compreendecirc-la ldquoimortalidaderdquo eacute como ldquoDeusrdquo uma

palavra que natildeo pode ser preenchida A imortalidade afirmada pela feacute natildeo poderaacute ser

explorada por nenhuma forma de discurso humanordquo87

Esta atitude fideiacutesta e conservadora em termos religiosos deve-se em grande

parte agrave desilusatildeo de Montaigne face aos inuacutemeros sistemas filosoacuteficos que tentavam

84 Les Essais II 12 p 500 85 Les Essais II 12 p 554 86 Na ldquoApologierdquo haacute uma quantidade significativa de paacuteginas nas quais o autor expressa muitas opiniotildees sobre o tema da alma (cf Les Essais pp 542-547) 87 Birchal Telma de Souza O Eu nos Ensaios de Montaigne Belo Horizonte Editora UFMG 2007 pp 64-65

32

encontrar explicaccedilotildees racionais para todas as questotildees da vida inclusivamente para

aquelas que transcendem a vida real

ldquo[A] Car quelque apparence quil y ayt en la nouvelleteacute je ne change pas aiseacutement de peur que jay de perdre au change Et puis que je ne suis pas capable de choisir je pren le chois dautruy et me tien en lassiette ougrave Dieu ma mis Autrement je ne me sccedilauroy garder de rouler sans cesse Ainsi me suis-je par la grace de Dieu conserveacute entier sans agitation et trouble de conscience aux anciennes creances de nostre religion au travers de tant de sectes et de divisions que nostre siecle a produittesrdquo88

Segundo Leveaux Montaigne sintetiza seu pensamento em mateacuteria religiosa89

da seguinte maneira

ldquo[A] De toutes les opinions humaines et anciennes touchant la religion celle lagrave me semble avoir eu plus de vray-semblance et plus dexcuse qui recognoissoit Dieu comme une puissance incomprehensible origine et conservatrice de toutes choses toute bonteacute toute perfection recevant et prenant en bonne part lhonneur et la reverence que les humains luy rendoient soubs quelque visage sous quelque nom et en quelque maniere que ce fut [hellip]rdquo90

Haacute que reconhecer no entanto que eacute algo difiacutecil e delicado tirar grandes

conclusotildees acerca da religiatildeo embora o tema perpasse toda a ldquoApologie rdquo Montaigne

concebia a religiatildeo como um conjunto de praacuteticas e leis que tinham como finalidade

contribuir para que o homem natildeo agisse como um escravo da vaidade da razatildeo As

uacuteltimas palavras da ldquoApologierdquo onde o autor cita Plutarco pretendem servir como uma

espeacutecie de conclusatildeo de toda a reflexatildeo deste capiacutetulo Deixemos o proacuteprio Montaigne

falar

ldquo[A] Mais quest-ce donc qui est veritablement Ce qui est eternel cest agrave dire qui na jamais eu de naissance ny naura jamais fin agrave qui le temps napporte jamais aucune mutation Car cest chose mobile que le temps et qui apparoit comme en ombre avec la matiere coulante et fluante tousjours sans jamais demeurer stable ny permanenterdquo91

Contestando a atitude humana de querer elevar-se acima da humanidade que

pode ser tambeacutem entendida como um desejo absurdo de um ser despreziacutevel que tem a

88 Les Essais II 12 p 569 89 Cf Leveaux op cit p 213 90 Les Essais II 12 p 513 91 Les Essais II 12 p 603

33

presunccedilatildeo como doenccedila natural e original e que eacute a mais calamitosa de todas as

criaturas e ao mesmo tempo a mais orgulhosa92 Montaigne afirma

ldquo[A] O la vile chose dit-il et abjecte que lhomme sil ne sesleve au dessus de lhumaniteacute [C] Voila un bon mot et un utile desir mais pareillement absurde Car [A] de faire la poigneacutee plus grande que le poing la brasseacutee plus grande que le bras et desperer enjamber plus que de lestandueuml de nos jambes cela est impossible et monstrueux Ny que lhomme se monte au dessus de soy et de lhumaniteacute car il ne peut voir que de ses yeux ny saisir que de ses prises Il seslevera si Dieu lui preste extraordinairement la main Il seslevera abandonnant et renonccedilant agrave ses propres moyens et se laissant hausser et soubslever par les moyens purement celestesrdquo93

Montaigne termina a ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo colocando o homem no

seu devido lugar e afirmando que soacute atraveacutes do auxiacutelio de Deus e com a graccedila da feacute

cristatilde eacute que este ser tatildeo vaidoso poderaacute elevar-se acima da humanidade

ldquo[C] Cest agrave nostre foy Chrestienne non agrave sa vertu Stoique de pretendre agrave cette divine et miraculeuse metamorphoserdquo94

92 Cf nota 12 93 Les Essais II 12 p 604 94 Les Essais II 12 p 604

34

3 A criacutetica agrave razatildeo humana e sua relaccedilatildeo com a ciecircncia

Uma observaccedilatildeo que eacute importante destacar no iniacutecio deste capiacutetulo refere-se agrave

concepccedilatildeo montaigneana de ldquociecircnciardquo que se encontra na ldquoApologie de Raymond

Sebondrdquo Quando Montaigne na sua criacutetica radical agrave razatildeo humana se refere agrave ciecircncia

o que subjaz agraves suas reflexotildees natildeo eacute a concepccedilatildeo moderna de ciecircncia Ele natildeo alude ao

chamado ldquomeacutetodo cientiacutefico experimentalrdquo ateacute porque este meacutetodo ainda natildeo existia O

termo ldquociecircnciardquo natildeo tem o sentido que adquiriu depois da chamada Revoluccedilatildeo

Cientiacutefica do seacuteculo XVII Assim com o termo ciecircncia Montaigne refere-se ao conjunto

do conhecimento erudito de seu tempo

ldquoLa science du XVIᵉ siegravecle nrsquoest que philosophie Elle srsquoarrecircte aux mots jamais elle ne peacutenegravetre au fond des choses et ne suscite un effort critiquerdquo95

Sendo um pensador da uacuteltima fase do periacuteodo renascentista periacuteodo este em que

natildeo havia nenhuma diferenccedila essencial entre a filosofia e a ciecircncia Montaigne procura

expressar as suas ideias os seus ideais de sabedoria como tantos outros faziam isto eacute

quando se refere agrave ciecircncia estaacute a referir-se aos doutos e aos filoacutesofos em geral

Logo no iniacutecio da ldquoApologierdquo Montaigne faz questatildeo de afirmar que a ciecircncia eacute

algo muito uacutetil e grande e os que a menosprezam datildeo prova bastante de estupidez Sem

desprezar agrave partida todo o esforccedilo que muitos fazem para chegar a alcanccedilar o

conhecimento Montaigne por outro lado natildeo chega a estimar tanto a ciecircncia

ldquo[A] Comme Herillus le philosophe qui logeoit en elle le souverain bien et tenoit qursquoil fut en elle de nous rendre sages et contensrdquo96

Montaigne natildeo crecirc nisto nem tampouco no que outros disseram

ldquo[A] que la science est mere de toute vertu et que tout vice este produit par lrsquoignorancerdquo97

Segundo ele mesmo atesta a sua casa esteve habitualmente aberta agraves pessoas de

saber e o seu pai buscou com grande cuidado e despesa o conviacutevio dos homens doutos

ldquo[A] les recevant chez luy comme personnes sainctes et ayans quelque particuliere inspiration de sagesse divine [hellip]rdquo98

95 Villey opcit p 214 96 Les Essais II 12 p 438 97 Les Essais II 12 p 438 98 Les Essais II 12 pp 438-439

35

Embora respirando toda uma atmosfera intelectual que havia em sua casa

Montaigne afirma no entanto que gostava muito destes doutos frequentadores de sua

casa mas natildeo os adorava

Desde as primeiras afirmaccedilotildees de Montaigne na ldquoApologierdquo eacute possiacutevel perceber

ateacute que ponto ele tem dificuldade em aceitar os chamados filoacutesofos de profissatildeo Neste

famoso texto que eacute considerado por Villey ldquole reacutesumeacute du travail logique qui srsquoopegravere

chez Montaigne entre 1573 et 1579 ou 1580rdquo99 podemos encontrar paradoxalmente

por um lado uma valorizaccedilatildeo da razatildeo enquanto uacutenico modo de investigaccedilatildeo dos

doutos e por outro lado que a razatildeo eacute considerada como algo profundamente limitado

enquanto instrumento de acesso ao conhecimento

Montaigne dedica muitas paacuteginas a demonstrar que a ciecircncia fundada na razatildeo

eacute viacutetima da vaidade humana e deve ser contestada Isto pelo facto de que concebe a

ciecircncia como o esforccedilo que deve ser uacutetil agrave nossa felicidade

ldquo[A] la philosophie me doit mettre les armes agrave la main pour combatre la fortune qui me doit roidir le courrage pour fouler aux pieds toutes les advertitez humaines [hellip]rdquo100

O objectivo primeiro da filosofia eacute portanto a vida concreta A atitude vaidosa

da razatildeo na busca do conhecimento causa no homem

ldquo[A] lrsquoinconstance lrsquoirresolution lrsquoincertitude le deuil la superstition la solitude de choses agrave venir voire apres nostre vie lrsquoambition lrsquoavarice la jalousie lrsquoenvie les appetits desreglez foncenez et indomptables la guerre la mensonge la desloyauteacute la detraction et la curiositeacuterdquo101

Segundo Montaigne pagamos um preccedilo elevadiacutessimo por essa bela razatildeo de que

nos gloriamos e por conseguinte tambeacutem pela capacidade de julgar e conhecer

sobretudo se forem adquiridas agrave custa destas paixotildees

Montaigne natildeo vecirc muita necessidade praacutetica de querer mergulhar nos altos

conhecimentos em que a filosofia estaacute imersa Para que serve o conhecimento (fruto da

razatildeo enganadora) de muitas coisas Expressando a sua criacutetica agrave loacutegica aristoteacutelica

afirma ironicamente

ldquo[A] ont-ils tireacute de la Logique quelques consolation agrave la gouterdquo102

99 Villey op cit p 182 100 Les Essais II 12 p 494 101 Les Essais II 12 p 486 102 Les Essais II 12 p 487

36

Prosseguindo no mesmo registo iroacutenico pergunta se acaso se descobriu que a

voluptuosidade e a sauacutede satildeo mais deleitosas para quem conhece a astronomia e a

gramaacutetica e menos importunas agrave desonra e a pobreza103

Montaigne revela um significativo desprezo pelos filoacutesofos que satildeo escravos da

razatildeo e buscam tudo saber e fazer afirmaccedilotildees sobre todas as coisas Ao mesmo tempo

manifesta uma forte tendecircncia para valorizar o homem simples e ignorante

ldquo[A] Jrsquoay veu en mon temps cent artisans cent laboureurs plus sages et plus heureux que des recteurs de lrsquouniversiteacute et lesquels jrsquoaimerois mieux ressemblerrdquo104

Na sua apologia da ignoracircncia declara que o homem tem como quinhatildeo a

presunccedilatildeo e que a ignoracircncia nos eacute recomendada ateacute pela religiatildeo cristatildeldquo[A] La peste

de lrsquohomme crsquoest lrsquoopinion de sccedilavoirrdquo105

Para Montaigne eacute necessaacuterio derrubar a tola vaidade e sacudir de uma maneira

viva e corajosa os fundamentos ridiacuteculos sobre os quais se fundam as falsas ideias

Insiste continuamente no facto de que natildeo necessitamos do saber produzido pela

filosofia

ldquo[A] Crsquoestoit ce que disoit un senateur Romain des derniers siecles que leurs predecesseurs avoient lrsquoaleine puante agrave lrsquoair et lrsquoestomac musqueacute de bonne conscience et qursquoau rebours ceux de son temps se sentoient au dehors que le parfum puans au dedans toutes sorte de vices crsquoest agrave dire comme je pense qursquoils avoient beaucoup de sccedilavoir et de suffisance et grand faute de preudrsquohommierdquo106

O orgulho humano eacute visto pelo autor como algo que atrapalha fortemente na

busca natildeo do conhecimento filosoacutefico claacutessico mas da sabedoria Soacutecrates eacute

referenciado na ldquoApologierdquo entre outras coisas como um grande saacutebio107 Natildeo porque

ldquo[C] le Dieu de sagesse luy avoit attibueacute le surnom de sagerdquo108 mas porque ele mesmo

natildeo se considerava saacutebio e porque a sua melhor ciecircncia era a ciecircncia da ignoracircncia e a

sua melhor sabedoria a simplicidade de espiacuterito

103Cf Les Essais II 12 p 487 104 Les Essais II 12 p 487 105 Les Essais II 12 p 488 106 Les Essais II 12 p 498 107 Podemos encontrar uma quantidade significativa de estudos acerca da figura de Soacutecrates nos Ensaios Destacamos aqui um artigo escrito por Celso Martins Azar Filho cujo tiacutetulo eacute Montaigne e Soacutecrates cepticismo conhecimento e virtuderdquo que estaacute publicado na Revista Portuguesa de Filosofia Tomo LVIII do ano de 2002 Fasc 4 (pp 829-845) Com o seu artigo o autor propotildee-se examinar qual o lugar e a importacircncia deste filoacutesofo no pensamento de Montaigne 108 Les Essais II 12 p 498

37

O verdadeiro saacutebio segundo Montaigne eacute o homem que aprende que natildeo

aprendeu nada Refere-se a isto de uma maneira muito elucidativa

ldquo[A]Il est adnevenu aux gens veacuteritablement sccedilavans ce qui advient aux espics de bled ils vont srsquoeslevant et se haussant la teste droite et fiere tant qursquoil sont vuides mais quand ils sont pleins et grossis de grain en leur maturiteacute ils commencent agrave srsquohumilier et agrave baisser les cornes Pareillement les hommes ayant tout essayeacute et tout sondeacute nrsquoayant trouveacute en cet amas de science et provision de tant de choses diverses rien de massif et ferme et rien que vaniteacute ils ont renonceacute agrave leur presomption et reconneu leur condition naturellerdquo109

Depois de descrever sinteticamente os atributos do saacutebio Montaigne -

considerado como um pensador que popularizou o pirronismo praticando-o

pessoalmente sobretudo na ldquoApologierdquo - afirma que toda a filosofia estaacute distribuiacuteda por

trecircs geacuteneros A sua principal fonte eacute a ediccedilatildeo das obras de Sexto Empiacuterico que surge em

1569 Montaigne enumera estas trecircs filosofias da seguinte maneira haacute os dogmaacuteticos

os acadeacutemicos e os pirroacutenicos110 Os dogmaacuteticos afirmam que se pode ter acesso agrave

ciecircncia os acadeacutemicos natildeo estatildeo de acordo com os dogmaacuteticos isto eacute consideram que

natildeo se pode ter acesso agrave ciecircncia e os pirroacutenicos estatildeo ainda em busca da verdade Estes

declaram que os que pensam havecirc-la encontrado se enganam infinitamente Segundo

Montaigne os pirroacutenicos tecircm como ofiacutecio

ldquo[A] branler douter et enquerir ne srsquoasseurer de rien de rien ne se respondrerdquo111

Esta atitude condu-los segundo Montaigne agrave ataraxia que eacute uma condiccedilatildeo de

vida tranquila sossegada isenta das agitaccedilotildees que recebemos pela impressatildeo da opiniatildeo

e ciecircncia que julgamos ter das coisas Esta indiferenccedila pela ciecircncia liberta os pirroacutenicos

inclusivamente do espiacuterito de rivalidade quanto agrave sua doutrina debatem de maneira bem

pouco vigorosa Quando dizem que o pesado vai para baixo ficariam bastante

aborrecidos se acreditassem neles Sendo assim os pirroacutenicos segundo Montaigne

procuram que os contradigam para gerar ldquo[A] la dubitation et surceance (suspension)

de jugement qui est leur finrdquo112

Os pirroacutenicos satildeo partidaacuterios da duacutevida extrema Expotildeem as suas opiniotildees

apenas para combater aquelas em que pensam que acreditamos Diz Montaigne

109 Les Essais II 12 p 500 110 Les Essais II 12 p 502 111 Les Essais II 12 p 502 112 Les Essais II 12 p 503

38

ldquo[A] Si vous prenez la leur ils prendront aussi volontiers i la contraire agrave soutenir tout leur est un ils nrsquoy ont aucun chois Si vous establissez que la nege soit noire ils augumentent au rebours qursquoelle est blanche Si vous dites qursquoelle nrsquoest ny lrsquoun ny lrsquoautre crsquoest agrave eux agrave maintenir qursquoelle est tous les deux Si par certain jugement vous tenez que vous nrsquoen sccedilavez rien ils vous maintiedront que vous ne sccedilavez Oui et si par un axiome affirmatif vous asseurez que vous en doutez ils vous iront debattant que vous nrsquoen doutez pas ou que vous ne pouvez juger et etablir que vous en doutez Et par cette extremiteacute de doubte qui se secoue soy-mesme ils se separent et se divisent de plusieurs opinions de celles mesme qui ont maintenu en plusieurs faccedilons le double et lrsquoignorancerdquo113

[hellip] Leurs faccedilon de parler sont Je nrsquoestablis rien il nrsquoest non plus ainsi qursquoainsi ou que ny lrsquoun ny lrsquoautre je ne le comprens point les apparences sont eacutegales par tout la loy de parler et pour et contre est pareille [C] Rien ne semble vray qui ne puisse sembler faux [A] Leur mot sacramental crsquoest ἐπέχω crsquoest agrave dire je soutiens je ne bougerdquo114

Os pirroacutenicos servem-se de sua razatildeo para inquirir e debater mas natildeo para

decidir e escolher

Um outro aspecto que leva Montaigne a identificar-se com o pirronismo a uacutenica

filosofia por ele respeitada eacute a visatildeo pirroacutenica relativamente agraves acccedilotildees da vida Os seus

defensores prestam-se e acomodam-se agraves inclinaccedilotildees naturais ao impulso e agrave imposiccedilatildeo

das paixotildees agraves decisotildees das leis e dos costumes

ldquo[A] Ils laissent guider agrave ces choses lagrave leurs actions communes sans aucune opination ou jugement115

Neste sentido Montaigne defende o pirronismo sobretudo por causa de sua

virtude moral116 Sustenta que eacute importante fomentar o juiacutezo livre ou a suspensatildeo do

juiacutezo que eacute a atitude dos pirroacutenicos Por outro lado natildeo pode concordar com a posiccedilatildeo

dos que aceitam a arbitraacuteria submissatildeo a algum tipo de autoridade ou opiniatildeo (os

dogmaacuteticos) Importa salientar no entanto que o autor da ldquoApologierdquo consegue

distanciar-se dos pirroacutenicos que se recusam a fazer qualquer juiacutezo Montaigne por ser

um pensador livre inclusive dos argumentos pirroacutenicos natildeo suspende os seus proacuteprios

113 Les Essais II 12 p 503 114 Les Essais II 12 p 505 115 Les Essais II 12 p 505 116 Para Montaigne o pirronismo natildeo eacute uma doutrina ou um sistema filosoacutefico do qual ele eacute adepto Eacute sobretudo uma atitude de espiacuterito ou uma tendecircncia do pensamento Ele tem consciecircncia da dificuldade que esta filosofia encontra para consolidar-se em termos de coerecircncia loacutegica Se do ponto de vista loacutegico natildeo haacute soluccedilatildeo permanente satisfatoacuteria para o pirronismo ele torna-se uma opccedilatildeo eacutetica na medida em que possibilita aos seus adeptos ldquo[B] de maintenir leur liberteacute et considerer les choses sans obligation et servituderdquo (Les Essais II 12 p 504)

39

juiacutezos Muito pelo contraacuterio emite muitos Exprime as suas opiniotildees sem cessar Chega

ateacute a afirmar que a razatildeo eacute

ldquo[A] sa pierre de touche agrave toutes sortes drsquoessais mais certes crsquoest une touche pleine de fauceteacute drsquoerreur de foiblesse et defaillancerdquo117

Na ldquoApologierdquo Montaigne recorre aos tropos (segundo a designaccedilatildeo de Sexto

Empiacuterico) tomando-os como os principais argumentos contra a filosofia denominada

dogmaacutetica Estes argumentos ceacutepticos tecircm por finalidade provar que eacute impossiacutevel

alcanccedilar a verdade Fundamentado nas reflexotildees pirroacutenicas natildeo considera a ciecircncia

como um verdadeiro conhecimento O saber humano eacute considerado sem efeito por causa

de todo o tipo de divergecircncias que haacute entre os homens

Haacute segundo Montaigne uma imensa e infinita confusatildeo de opiniotildees entre os

filoacutesofos e tudo isto deve-se ao debate perpeacutetuo e universal acerca do conhecimento das

coisas Eles natildeo estatildeo de acordo em nada nem sequer em que o ceacuteu estaacute por cima das

nossas cabeccedilas118 afirma ironicamente E isto deve-se agrave falta de constacircncia do juiacutezo

Quantas vezes julgamos noacutes as coisas Quantas vezes alteramos as nossas opiniotildees

Nesta perspectiva percebemos a atitude relativista de Montaigne

ldquo[A] Ce que je tiens aujourdhuy et ce que je croy je le tiens et le croy de toute ma croyance tous mes utils et tous mes ressorts empoignent cette opinion et men respondent sur tout ce quils peuvent Je me sccedilaurois embrasser aucune veriteacute ny conserver avec plus de force que je fay cette cy Jy suis tout entier jy suis voyrement mais ne mest il pas advenu non une foi mais cent mais mille et tous les jours davoir embrasseacute quelqursquoautre chose agrave tout ces mesmes instrumens en cette mesme condition que depuis jaye jugeacutee fauce Au moins faut il devenir sage agrave ses propres despansrdquo119

Montaigne natildeo pretende condenar a tendecircncia agrave mudanccedila perene que eacute

constitutiva do homem O que ele pretende eacute que o homem se comporte de uma forma

mais moderada e discreta em face das mudanccedilas Sugere que nos tornemos saacutebios agrave

nossa proacutepria custa120

117 Les Essais II 12 p 540 118 Cf Les Essais II 12 p 563 119 Les Essais II 12 p 563 120 Conche na sua obra de introduccedilatildeo aos Essais intitulada Montaigne ou la conscience heureuse apresenta uma reflexatildeo muito sugestiva relativamente ao tema da sabedoria Para este autor os Essais sugerem-nos que compreendamos a filosofia como uma aprendizagem da sabedoria e natildeo do saber Em seu entender Montaigne natildeo tem nenhum interesse em elaborar um sistema filosoacutefico porque isto supotildee que uma verdade permanece o que ela eacute Um sistema filosoacutefico crecirc que haacute verdades e que elas satildeo acessiacuteveis por evidecircncia ou seja que a certeza posta agrave prova eacute realmente uma certeza de direito Estes princiacutepios satildeo sem valor para Montaigne eleja que este natildeo crecirc na possibilidade de confirmar as nossas certezas (cf Conche 2009 op cit 65)

40

O arauto do juiacutezo eacute o homem concreto que vive uma vida real Natildeo eacute um ser

abstracto Por isso Montaigne afirma

ldquo[A] Ce ne sont pas seulement les fievres les breuvages et les grands accidens qui renversent nostre jugement les moindres choses du monde le tournevirent [hellip] et par conseacutequent agrave peine se peut il rencontrer une seule heure en la vie ougrave nostre jugement se trouve en sa deueuml assiette nostre corps estant subject agrave tant de continuelles mutations et estofeacute de tant de sortes de ressorts que ( jen croy les medecins) combien il est malaiseacute quil ny en ayt tousjours quelquun qui tire de traversrdquo121

Vejamos uma definiccedilatildeo da razatildeo na ldquoApologierdquo

ldquo[A] la raison va tousjours torte et boiteuse et deshancheacutee et avec le mensonge comme avec la veriteacute Par ainsin il est malaiseacute de descouvrir son mescompte et desreglement Jappelle tousjours raison cette apparence de discours que chacun forge en soy cette raison de la condition de laquelle il y en peut avoir cent contraires autour dun mesme subject cest un instrument de plomb et de cire alongeable ployable et accommodable agrave tous biais et agrave toutes mesures il ne reste que la suffisance de le sccedilavoir contournerrdquo122

Atraveacutes desta concepccedilatildeo de razatildeo fica suficientemente clara a criacutetica destruidora

de Montaigne agrave filosofia dogmaacutetica que considera a razatildeo como uma faculdade que

permite ao homem ndash entre tantas outras atribuiccedilotildees ndash conhecer e acumular um saber uacutetil

e julgar sobre o bem e o mal

Envolvendo-se de uma maneira muito pessoal ndash como eacute caracteriacutestico do estilo

literaacuterio dos Essais ndash nesta reflexatildeo sobre a razatildeo Montaigne toma a liberdade de fazer

uma pequena descriccedilatildeo de sua personalidade Vale a pena citar algumas destas

passagens porque satildeo um reflexo do pensamento do autor

ldquo[A] Jay le pied si instable et si mal assis je le trouve si ayseacute agrave crouler et si prest au branle et ma veueuml si desregleacutee que agrave jun je me sens autre quapres le repas si ma santeacute me rid et la clarteacute dun beau jour me voylagrave honneste homme si jay un cor qui me presse lorteil me voylagrave renfroigneacute mal plaisant et inaccessible [hellip] Maintenant je suis agrave tout faire maintenant agrave rien faire ce qui mest plaisir agrave cette heure me sera quelque fois peine [hellip] Ou lhumeur melancholique me tient ou la choleriqu [hellip]Quand je prens des livres jauray apperceu en tel passage des graces excelentes et qui auront feru mon ame quun autre fois jy retombe jay beau le tourner et virer jay beau le plier et le manier cest une masse inconnue et informe pour moy [hellip] [B] [hellip] mon jugement ne tire pas tousjours avant il flotte il vaguerdquo123

121 Les Essais II 12 pp 564-565 122 Les Essais II 12 p 565 123 Les Essais II 12 pp 565-566

41

Montaigne daacute-se claramente conta de que natildeo encontramos seguranccedila nos

nossos juiacutezos As nossas paixotildees apresentam uma enorme quantidade de fantasias

Sobre isto natildeo podemos alcanccedilar nenhuma seguranccedila porque nos deparamos com

coisas muito instaacuteveis e moacuteveis Sustenta aleacutem disso que se os nossos juiacutezos estatildeo nas

matildeos ateacute mesmo da doenccedila e da perturbaccedilatildeo natildeo podemos esperar deles nada seguro

Foi a partir desta consciecircncia de sua volubilidade que Montaigne chegou a

estabelecer em si mesmo uma certa constacircncia de ideias a ponto de dificilmente alterar

as ideias primeiras e naturais como ele mesmo reconhece Afirma no entanto que natildeo

eacute capaz de decidir Por isso adopta as decisotildees de outrem e manteacutem-se na posiccedilatildeo em

que Deus o pocircs O seu ldquoconservadorismordquo124 religioso e ateacute poliacutetico manifesta-se

claramente nos Essais Mas ao mesmo tempo e este eacute o ponto que mais nos interessa

neste trabalho deixa transparecer que o homem eacute sempre convidado a estar aberto agraves

mudanccedilas

ldquo[A] Le ciel et les estoilles ont branleacute trois mille ans tout le monde lavoit ainsi creu jusques agrave ce que [C] Cleanthes le Samien ou selon Theophraste Nicetas Siracusien [A] savisa de maintenir que cestoit la terre qui se mouvoit [C] par le cercle oblique du Zodiaque tournant agrave lentour de son aixieu [A] et de nostre temps Copernicus a si bien fondeacute cette doctrine quil sen sert tres-regleacuteement agrave toutes les consequences Astronomiquesrdquo conclui o autor ldquosinon qursquoil ne nous doit chaloir le quel ce soit des deux Et qui sccedilait qursquoune tierce opinion drsquoicy agrave mille ans ne renverse les deux precedentesrdquo125

124 Trata-se de um termo que natildeo tinha na eacutepoca de Montaigne o mesmo significado que tem hoje isto eacute como oposto de ldquoprogressismordquo Montaigne estava inserido numa sociedade marcada por grandes inovaccedilotildees pretendidas pelos partidaacuterios da Reforma Protestante que se defendiam a ferro e fogo acirrando certezas antes adormecidas e impondo agrave Franccedila as mais seacuterias turbulecircncias ldquo[B] Je suis desgousteacute de la nouvelleteacute quelque visage qursquoelle porte et ay raison car jrsquoen ay veu des effets tres-dommageables Celle qui nous presse depuis tant drsquoans elle nrsquoa pas tout exploicteacute mais on peut dire avec apparence que par accident elle a tout produict et engendre voire et les maux et ruines qui se font depuis sans elle et contre elle crsquoest agrave elle agrave srsquoen prendre au nezrdquo (Les Essais I 23 p 119) Eacute nesta perspectiva que vaacuterios comentadores observam que Montaigne natildeo poderia ser um homem ldquorevolucionaacuteriordquo e sim algueacutem que achasse melhor defender uma confianccedila moderada no lento aperfeiccediloamento das instituiccedilotildees ldquo[C] Les Franccedilois mes contemporaneacutees sccedilavent bien qursquoen dire Toutes grandes mutations esbranlent lrsquoestat et le desordonnentrdquo (Les Essais III 9 p 958) Isto permite compreender melhor alguns dos motivos pelos quais Montaigne assume as posiccedilotildees poliacuteticas e religiosas ldquoconservadorasrdquo que estatildeo presentes nos Essais Muito interessante eacute uma afirmaccedilatildeo de Jean Lacouture na sua obra Montaigne agrave cheval ndash considerada como uma espeacutecie de biografia que denota um entusiasmo significativo e algo romanceado fundamentada numa documentaccedilatildeo importante ndash na qual o autor reflecte sobre esta questatildeo ldquoMontaigne eacute grande o bastante para poder ser avaliado sob outros aspectos que natildeo a obediecircncia agraves praacuteticas e costumes de seu tempo Quando se eacute capaz no que diz respeito agrave justiccedila agrave toleracircncia ao racismo e agrave colonizaccedilatildeo de estar muitos seacuteculos agrave frente dos costumes e ideias de seu tempo pode-se ser julgado sem que consideraccedilotildees de eacutepoca ou de moda sejam levadas em contardquo (In Lacouture Jean Montaigne agrave cheval (Montaigne a cavalo) Traduzido do francecircs por F Rangel Rio de JaneiroSatildeo Paulo Editora Record 1998 p 236) 125 Les Essais II 12 p 570

42

E para fundamentar ainda mais esta ideia cita Lucreacutecio

ldquo[A] Sic volvenda aeligtas commutat tempora rerum Quod fuit in pretio fit nullo denique honore Porro aliud succedit et egrave contemptibus exit Inque dies magis appetitur floreacutetque repertum Laudibus Et miro est mortales inter honore ( ldquoAinsi dans sa course le temps change les conditions des choses ce qui eacutetait appreacutecieacute tombe dans le meacutepris un autre objet remplace le premier et sort du discreacutedit de jour en jour on le recherce davantage la deacutecouverte nouvelle toutes les louanges et une incoyable estime parmi les hommes)rdquo126

Podemos inferir daqui que ldquoos princiacutepios eternosrdquo natildeo tecircm lugar na ldquoApologie

de Raymond Sebondrdquo Montaigne faz questatildeo de observar que antes de os princiacutepios

introduzidos por Aristoacuteteles ganharem creacutedito outros princiacutepios contentavam a razatildeo

humana Os princiacutepios aristoteacutelicos como todos os outros natildeo estatildeo mais livres de ser

expulsos do que estavam os dos seus antecessores

Segundo Montaigne o juiacutezo depende dos sentidos aos quais por sua vez natildeo

podemos dar creacutedito por vaacuterios motivos Vejamos com mais detalhes este aspecto Eacute

justamente nos sentidos que se encontra o maior fundamento e a prova de nossa

ignoracircncia Montaigne baseado na experiecircncia de vida lembra-nos que natildeo haacute sentido

ou aspecto nem recto nem amargo nem doce nem curvo que o espiacuterito humano natildeo

encontre nos escritos que decide esquadrinhar Os sentidos satildeo muito enganadores A

palavra mais liacutempida mais pura e mais perfeita pode tornar-se equiacutevoca Montaigne

refere-se especialmente ao Evangelho127 Fizeram ao longo da histoacuteria ldquotudo e mais

alguma coisardquo com este texto sagrado para os cristatildeos E que ocorreria se estendecircssemos

esta preocupaccedilatildeo de Montaigne aos gestos humanos que querem exprimir ideias ou

sentimentos nas vaacuterias dimensotildees da vida moral poliacutetica etc

ldquo[C] Est-il possible qursquoHomere aye voulu dire tout ce qursquoon luy faict direrdquo128 E com relaccedilatildeo a Platatildeo ldquo[C] Voyez demener et agiter Platon Chacun srsquohororant de lrsquoappliquer agrave soi le couche du costeacute qursquoil le veutrdquo129

Montaigne observa ainda que com frequecircncia eacute difiacutecil decidir-se porque haacute

demasiadas formas de interpretar um determinado assunto para que o homem consiga

encontrar alguma indicaccedilatildeo que lhe sirva para resolver a questatildeo

126 Les Essais II 12 p 570 127 Cf Les Essais II 12 p 585 128 Les Essais II 12 p 586 129 Les Essais II 12 p 587

43

Montaigne afirma que todo o conhecimento chega ateacute noacutes pelos sentidos [A] Ce

sont nos maistresrdquo130 Observa que a ciecircncia comeccedila pelos sentidos e a eles se reduz

Eles satildeo a base e os princiacutepios de toda a construccedilatildeo de nossa ciecircncia E considera que

natildeo haacute absurdo mais extremo do que sustentar que

ldquo[A] le feu nrsquoeschaufe point que la lumiere nrsquoesclaire point qursquoil nrsquoy a point de pesanteur au fer ny de fermeteacute qui sont notices que nous apportent les sens nycreance ou science en lrsquohomme qui se puisse comparer agrave celle-lagrave en certituderdquo131

Montaigne potildee em duacutevida que o homem esteja provido de todos os sentidos

naturais Chega inclusivamente a perguntar-se se natildeo nos falta algum sentido E afirma

que se isto ocorrer nem a nossa razatildeo pode descobrir a sua ausecircncia nem haacute nada agrave

margem dos sentidos que nos possa servir para os descobrir

ldquo[A]Ils font trestons la ligne extreme de nostre faculteacute [hellip] Il est impossible de faire concevoir agrave un homme naturellement aveugle qursquoil nrsquoy void pas impossible de luy faire desirer la veue et regretter son defautrdquo132

Sendo assim afirma que quando formamos uma verdade pela consulta e

cooperaccedilatildeo dos sentidos poderiacuteamos tambeacutem ser levados a considerar que poderia ser

necessaacuteria a convergecircncia e a contribuiccedilatildeo de oito ou dez sentidos para a captar

acertadamente e na sua essecircncia

Uma das criacuteticas fundamentais de Montaigne agrave ciecircncia incide precisamente no

facto de ela se basear nos sentidos Mas como vimos os sentidos satildeo muito incertos e

fraacutegeis Desta extrema dificuldade nascem muitas opiniotildees (ldquofantasiesrdquo)

ldquo[A]Que chaque subjet a en soy tout ce que nous y trouvons qursquoil nrsquoa rien de ce que nous y pensons trouver et celle de Epicuriens que le Soleil nrsquoest non plus grand que ce que nostre veueuml le juge [hellip] (A) que les apparences qui representent un corps grand agrave celuy qui en est voisin et plus petit agrave celuy qui en est esloigneacute sont toutes deux vrayes [hellip] [A]et resolument qursquoil nrsquoy a aucun tromperie aux sens qursquoil faut passer agrave leur mercy et chercher ailleurs des raisons pour excuser la difference et contradiction que nous y trouvons voyre inventer toute autre mensonge et resverie (ils en viennent jusques lagrave) plustot que drsquoaccuser les sens [hellip] [A] De toutes les absurditez la plus absurde [C] aux Epicuriens [A] est davouumler la force et effect des sensrdquo133

130 Les Essais II 12 p 587 131 Les Essais II 12 p 588 132 Les Essais II 12 p 589 133 Les Essais II 12 p 591

44

Segundo Montaigne natildeo podemos livrar-nos dos sentidos se queremos construir

o conhecimento Mas os sentidos satildeo incertos falsificaacuteveis e enganadores134 E entende

tambeacutem que se eacute verdade que os sentidos satildeo os nossos primeiros juiacutezes135 entatildeo natildeo

devemos limitar-nos a convocar apenas os nossos para o conselho pois no que se refere

aos sentidos os animais tecircm tanto direito quanto noacutes ou mais Montaigne observa ainda

que os sentidos do homem estatildeo em desacordo com os sentidos dos animais E eacute por isto

que

ldquo[A] Pour le jugement de lrsquoaction des sens il faudroit donc que nous en fussions premierement drsquoaccord avec les bestes secondement entre nous mesmes [hellip] et entrons en debat tous les coups de ce que lrsquoun oit void ou goute quelque chose autrement qursquoun autre et debatons autant que drsquoautre chose de la diversiteacute des images que le sens nous raportentrdquo136

Concluindo a exposiccedilatildeo acerca dos sentidos Montaigne lembra-nos que os

sentidos satildeo para algumas pessoas mais obscuros e mais velados enquanto que para

outras pessoas satildeo mais claros e apurados Em seu entender recebemos as coisas de

forma diferente de acordo com o que somos e com o que nos parece Mas se o parecer

nos eacute tatildeo incerto e controverso

ldquo[A] Ce nrsquoest plus miracle si on nous dict que nous pouvons avoueumlr que la neige nous apparoit blanche mais que drsquoestablir si de son essence elle est telle et agrave la veriteacute nous ne nous en sccedilaurions respondrerdquo137

Tendo em conta todos os atributos dos sentidos acima mencionados Montaigne

dificilmente poderia chegar a uma outra conclusatildeo

ldquo[A] ce commencement esbranleacute toute la science du monde srsquoen va necessairement agrave vau-lrsquoeaurdquo138

Referindo-se a Teofrasto Montaigne recorda-nos que este pensador dizia que o

conhecimento humano guiado pelos sentidos podia julgar sobre as causas das coisas

ateacute certo ponto Mas que ao chegar agraves causas extremas e primeiras tinha de deter-se a

embotar-se devido ou agrave sua fragilidade ou agrave dificuldade das coisas Montaigne afirma

134 Assim como os sentidos satildeo enganadores satildeo tambeacutem enganados ldquo[A] Cette mesme piperie que les sens apportent agrave nostre entendement ils la reccediloivent agrave leur tour Nostre ame par fois srsquoen revenche de mesme [C] ils mentent et se trompent agrave lrsquoenvy [A] Ce que nous voyons et oyons agitez de colere nous ne lrsquooyons pas tel qursquoil est [hellip] Lrsquoobject que nous aymons nous semble plus beau qursquoil est [hellip] [A] et plus laid celuy que nous avons agrave contre coeur [hellip] Nos sens sont non seulement alterez mais souvent hebelez du tout par les passions de lrsquoame Combien de choses voyons nous que nous nrsquoa appercevons pas si nous avons nostre esprit empescheacute ailleurs (Les Essais II 12 pp 495-496) 135 Cf Les Essais II 12 p 596 136 Les Essais II 12 p 598 137 Les Essais II 12 pp 598-599 138 Les Essais II 12 p 599

45

ldquo[A] Cest une opinion moyenne et douce que nostre suffisance nous peut conduire jusques agrave la cognoissance daucunes choses et quelle a certaines mesures de puissance outre lesquelles cest temeriteacute de lemployer Cette opinion est plausible et introduicte par gens de composition mais il est malaiseacute de donner bornes agrave nostre esprit il est curieux et avide et na point occasion de sarrester plus tost agrave mille pas quagrave cinquanterdquo139

Montaigne procura aqui justificar a sua tese de que o conhecimento empiacuterico ou

sensiacutevel natildeo tem condiccedilotildees para permitir captar princiacutepios e verdades universais A

razatildeo humana por ser um instrumento impotente natildeo consegue dar explicaccedilotildees

convincentes das grandes questotildees da humanidade Consegue apenas explicar algumas

poucas coisas Se a razatildeo eacute incapaz de dar respostas profundas e aceitaacuteveis agraves grandes

questotildees ndash como por exemplo agraves causas primeiras ndash ela eacute descartaacutevel e no que toca agrave

busca do conhecimento natildeo serve para quase nada Daiacute que Montaigne afirme que o

homem eacute capaz de todas as coisas e de nenhuma E se confessa a ignoracircncia das causas

primeiras e dos princiacutepios entatildeo que abandone tambeacutem prontamente todo o resto da sua

ciecircncia

Se a alma conhecesse alguma coisa comeccedilaria por se conhecer a si mesma

ldquo[A] et si elle sccedilavoit quelque chose elle se sccedilauroit premierement elle mesme et si elle sccedilavoit quelque chose hors drsquoelle ce seroit son corps et son estuy avant toute autre choserdquo140

Montaigne refere-se aqui especialmente ao chamado conhecimento da medicina

Para ele a medicina natildeo consegue sair do ciclo vicioso das discussotildees Ressalta o facto

de que ldquoles dieuxrdquo desta ciecircncia tambeacutem natildeo conseguem chegar a acordo algum Daiacute

mais uma vez a atitude pirroacutenica de Montaigne

ldquo[A] Si lrsquohomme ne se connoit comment connoit il ses fonctions et ses forcesrdquo141

O autor debate-se com o problema da verdade o que eacute a verdade Na

ldquoApologierdquo sustenta que a verdade eacute inacessiacutevel e flutuante Neste ponto Montaigne eacute

fiel ao cepticismo que tem como caracteriacutestica dominante a atitude de estar sempre em

busca da verdade num processo que ocorre sempre dentro de um eterno movimento e

nunca se fixa definitivamente em nenhum ponto

139 Les Essais II 12 p 560 140 Les Essais II 12 p 561 141 Les Essais II 12 p 561

46

ldquo[B] La veueuml de nostre jugement se rapporte agrave la veriteacute comme faict loeil du chat-huant agrave la splendeur du Soleil ainsi que dit Aristote Par ougrave le sccedilaurions nous mieux convaincre que par si grossiers aveuglemens en une si apparente lumiererdquo142

Esta concepccedilatildeo flutuante da verdade eacute uma caracteriacutestica distintiva natildeo soacute da

ldquoApologierdquo mas tambeacutem de outros ensaios montaigneanos O autor natildeo faz nenhuma

afirmaccedilatildeo definitiva sobre nenhuma questatildeo A sua preocupaccedilatildeo principal natildeo eacute

encontrar a soluccedilatildeo dos diversos problemas que envolvem o homem mas sim tentar

compreender-se a si proacuteprio ldquo[hellip] je suis moy-mesmes la matiere de mon livrerdquo143 Isto

exclui as verdades fixadas pela tradiccedilatildeo filosoacutefica e neste sentido o pensamento de

Montaigne desenvolve-se agrave margem do dogmatismo Rejeita os pedantes isto eacute aqueles

que acreditam que adquirem o conhecimento utilizando termos palavras ou frases

obscuros

Montaigne insiste na dimensatildeo instaacutevel e incerta do nosso conhecimento que

natildeo consegue alcanccedilar a verdade

ldquo[A] Toutes choses produites par nostre propre discours et suffisance autant vrayes que fauces sont subjectes agrave incertitude et debat Cest pour le chastiement de nostre fierteacute et instruction de nostre misere et incapaciteacute que Dieu produisit le trouble et la confusion de lancienne tour de Babel Tout ce que nous entreprenons sans son assistance tout ce que nous voyons sans la lampe de sa grace ce nest que vaniteacute et folie Lessence mesme de la veriteacute qui est uniforme et constante quand la fortune nous en donne la possession nous la corrompons et abastardissons par nostre foiblesserdquo144

A verdade deve ter ldquo[A] un visage pareil et universelrdquo145 Uma outra

caracteriacutestica da verdade salientada por Montaigne eacute que ela ldquo[A] ne se juge point par

authoriteacute et tesmoignage drsquoautruyrdquo146 Neste sentido a verdade eacute fundamentalmente

pessoal Observando cuidadosamente estes atributos da verdade podemos perceber por

que razatildeo Montaigne faz a seguinte afirmaccedilatildeo

ldquo[A] la veriteacute est engoufleacutee dans des profonds abysmes ougrave la veueuml humaine ne peut penetrerrdquo147

Dito de outro modo a verdade estaacute oculta em Deus e natildeo eacute propriamente dos

homens dos filoacutesofos dos doutos

142 Les Essais II 12 p 552 143 Les Essais Au lecteur p 3 144 Les Essais II 12 p 553 145 Les Essais II 12 pp 578-579 146 Les Essais II 12 p 507 147 Les Essais II 12 p 561

47

ldquo[A] Crsquoest agrave elle (la majesteacute divine) seule qursquoapartient la science et la sapiencerdquo148

A criacutetica montaigneana agrave razatildeo humana manifesta aqui a impossibilidade de se

ter um conhecimento crediacutevel em todos os domiacutenios da vida A razatildeo por ser

infinitamente limitada natildeo consegue chegar a ser uma faculdade que garanta a

descoberta e por conseguinte a sistematizaccedilatildeo da verdade que eacute algo moacutevel pessoal

temporal e tambeacutem paradoxal

Lendo os pensadores antigos Montaigne suscita uma questatildeo fundamental Em

seu entender haacute uma espeacutecie de distanciamento ou divoacutercio entre o conhecimento da

essecircncia e o conhecimento da aparecircncia Como eacute possiacutevel entatildeo observa Montaigne

que eles se deixam vencer pela verosimilhanccedila se natildeo conhecem a verdade Como eacute

possiacutevel que conheccedilam a aparecircncia de algo cuja essecircncia natildeo conhecem Diante destas

dificuldades o autor da ldquoApologierdquo sustenta

ldquo[A] Ou nous pouvons juger tout agrave faict ou tout agrave faict nous ne le pouvons pas Si noz facultez intellectuelles et sensibles sont sans fondement et sans pied si elles ne font que floter et vanter pour neant laissons nous emporter nostre jugement agrave aucune partie de leur operation quelque apparence quelle semble nous presenter et la plus seure assiette de nostre entendement et la plus heureuse ce seroit celle-lagrave ougrave il se maintiendroit rassis droit inflexible sans bransle et sans agitationrdquo149

Segundo Montaigne as coisas natildeo se alojam em noacutes com a sua forma e a sua

essecircncia Se assim fosse recebecirc-las-iacuteamos dessa forma O vinho seria o mesmo na boca

de quem quer que fosse Mas natildeo eacute o que acontece a filosofia causa uma infinita

confusatildeo de opiniotildees e um eterno debate sobre o conhecimento das coisas Deixemos o

proacuteprio autor falar

ldquo[A]Car cela est presuposeacute tres-veritablement que de aucune chose les hommes je dy les sccedilavans les mieux nais les plus suffisans ne sont daccord non pas que le ciel soit sur nostre teste car ceux qui doutent de tout doutent aussi de cela et ceux qui nient que nous puissions aucune chose comprendre disent que nous navons pas compris que le ciel soit sur nostre teste et ces deux opinions sont en nombre sans comparaison les plus fortesrdquo150

Montaigne reconhece que os seus juiacutezos acerca de tudo aquilo que eacute falso eou

verdadeiro ocorrem de uma maneira condicionada dependendo da sua situaccedilatildeo interior

148 Les Essais II 12 p 448 149 Les Essais II 12 p 562 150 Les Essais II 12 p 563

48

e exterior A sua posiccedilatildeo em face das diversas situaccedilotildees concretas da vida eacute muito

dependente das suas opiniotildees que podem ser hoje umas e outras diferentes ou ateacute

contraacuterias amanhatilde Em seu entender ateacute o proacuteprio ar que respiramos e a serenidade do

ceacuteu produzem em noacutes alguma alteraccedilatildeo Recorda um verso de Ciacutecero

ldquo[A] Tales sunt hominum mentes quali pater ipse Juppiter auctifera lustravit lampade terras (Les penseacutees des hommes changent avec les rayons feacutecundants du soleil que Jupiter leur envoie)rdquo151

Noutro ensaio do livro III intitulado ldquoDu repentirrdquo Montaigne depois de afirmar

que o mundo eacute movimento e que tudo nele muda continuadamente faz uma observaccedilatildeo

de grande importacircncia que pode ser inserida neste contexto

ldquo[B] Tant y a que je me contredits bien agrave lrsquoaventure mais la veriteacute comme disoit Demandes je ne la contredy point Si mon ame pouvoit prendre pied je ne mrsquoessaierois pas je me resoudrois elle est toujours en apprentissage et en espreuverdquo152

Montaigne questiona de forma radical todos os que se orgulham de sua razatildeo e

acreditam na certeza de todos os seus princiacutepios Utiliza a proacutepria razatildeo para arruinar a

razatildeo dos filoacutesofos profissionais ou seja os seguidores cegos da loacutegica aristoteacutelica Em

suma combate a razatildeo com a proacutepria razatildeo e nega o seu valor

No texto seguinte Montaigne faz uma espeacutecie de caracterizaccedilatildeo da

escolaacutestica153 e da loacutegica aristoteacutelica154 Eacute um texto fundamental da ldquoApologierdquo no

qual o autor se refere claramente agrave hierarquia filosoacutefica aristoteacutelica na qual

encontramos a metafiacutesica como ldquociecircncia mais correctardquo

ldquo[A] Il est bien aiseacute sur des fondemens avouez de bastir ce quon veut car selon la loy et ordonnance de ce commencement le reste des pieces du bastiment se conduit ayseacuteement sans se deacutementir Par cette voye nous trouvons nostre raison bien fondeacutee et discourons agrave boule veue car nos maistres praeligoccupent et gaignent avant main autant de lieu en nostre creance quil leur en faut pour conclurre apres ce quils veulent agrave la mode des Geometriens par leurs demandes avoueacutees le consentement et

151 Les Essais II 12 p 564 152 Les Essais III 2 p 805 153 Na eacutepoca em que Montaigne escreveu a ldquoApologierdquo a doutrina escolaacutestica era caracterizada por um excesso de formalismo e de abstracccedilatildeo o que o levou a demonstrar uma aversatildeo profunda por essa filosofia 154 Segundo Friedrich haacute na ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo alguns ldquofaibles tracesrdquo de uma leitura de Aristoacuteteles jaacute que naquela eacutepoca este pensador grego exercia a sua uacuteltima grande influecircncia sobre os humanistas Aristoacuteteles eacute para Montaigne a ldquoquintessencerdquo da autoridade magistral que obstaculiza a sua relaccedilatildeo livre com a tradiccedilatildeo ldquoSa doctrine nous sert de loy magistrale qui est agrave lrsquoaventure autant fause qursquoune autrerdquo (Les Essais II 12 p 521 a 279) Friedrich observa no entanto que natildeo eacute possiacutevel fixar exactamente em que medida Montaigne leu Aristoacuteteles e considera que natildeo se trata de uma leitura muito soacutelida (Cf Friedrich op cit p 67)

49

approbation que nous leurs prestons leur donnant dequoy nous trainer agrave gauche et agrave dextre et nous pyroueter agrave leur volonteacute Quiconque est creu de ses presuppositions il est nostre maistre et nostre Dieu il prendra le plant de ses fondemens si ample et si aiseacute que par iceux il nous pourra monter sil veut jusques aux nueumls En cette pratique et negotiation de science nous avons pris pour argent content le mot de Pythagoras que chaque expert doit estre creu en son art Le dialecticien se rapporte au grammairien de la signification des mots le Rhetoricien emprunte du Dialecticien les lieux des arguments le poete du musicien les mesures le geometrien de larithmeticien les proportions les metaphysiciens prennent pour fondement les conjectures de la physique Car chasque science a ses principes presupposez par ougrave le jugement humain est brideacute de toutes parts Si vous venez agrave choquer cette barriere en laquelle gist la principale erreur ils ont incontinent cette sentence en la bouche quil ne faut pas debattre contre ceux qui nient les principesrdquo155

Se a verdade ndash como tudo parece indicar ndash se daacute a conhecer atraveacutes das causas ndash

haveraacute que fazer referecircncia agraves quatro causas156 presentes na filosofia aristoteacutelica Se o

homem realmente conseguir conhecer estas causas teraacute um conhecimento ldquocientiacuteficordquo

da substacircncia que procura Por isso Montaigne quer invalidar a filosofia dita dogmaacutetica

de Aristoacuteteles rejeitando claramente a tese das quatro causas Em seu entender esta

teoria natildeo passa de um engano O autor da ldquoApologierdquo sugere que a teoria das quatro

causas soacute serve para prejudicar os homens que ludibriados pelo poder da razatildeo natildeo

cessam de correr atraacutes do conhecimento das causas que lhe eacute por seu turno inacessiacutevel

A verdade das causas estaacute acima de nossas capacidades racionais

Assumindo a postura pirroacutenica de Sexto Empiacuterico ndash que foi aliaacutes um aceacuterrimo

opositor de Aristoacuteteles ndash Montaigne procurou fazer algo semelhante Isto eacute procurou

atacar as bases da ciecircncia escolaacutestica (sobretudo preocupada em conciliar a razatildeo com a

feacute apoiando-se na filosofia grega principalmente a aristoteacutelica) e por conseguinte de

todos os outros sistemas dogmaacuteticos Numa perspectiva ceacuteptica sextiana Montaigne

trava uma batalha contra os princiacutepios da metafiacutesica tidos como os mais correctos Esta

visatildeo aristoteacutelica quer estabelecer uma ligaccedilatildeo entre o pensamento e o juiacutezo humanos e

os obriga a natildeo evitar as questotildees preacute-existentes Segundo Montaigne esta concepccedilatildeo

155 Les Essais II 12 p 540 156 Aristoacuteteles apresenta estas causas particularmente nos livros I e II da Metafiacutesica Satildeo elas causa material isto eacute aquilo de que eacute feita uma coisa por exemplo a mateacuteria do homem eacute a carne e os ossos a mateacuteria da mesa eacute a madeira e assim por diante causa formal isto eacute a forma ou essecircncia das coisas por exemplo o rio e o mar satildeo as formas da aacutegua um tapete eacute a forma assumida pela mateacuteria latilde com a acccedilatildeo do artiacutefice causa eficiente ou motriz isto eacute aquilo de que provecircm a mudanccedila e o movimento das coisas por exemplo o artiacutefice eacute a causa eficiente que faz a latilde receber a forma do tapete o gelo eacute a forma que faz os corpos quentes tornarem-se frios e causa final isto eacute a causa que constitui o fim ou o propoacutesito das coisas e acccedilotildees por exemplo o bem eacute a causa final da poliacutetica a felicidade eacute a causa final da acccedilatildeo eacutetica e assim por diante

50

tambeacutem natildeo potildee em evidecircncia o facto de que o conhecimento adquirido por este

processo fica enclausurado dentro de um ciacuterculo vicioso Deixemos o proacuteprio autor

falar

ldquo[A] Pour juger des apparences que nous recevons des subjets il nous faudroit un instrument judicatoire pour verifier cet instrument il nous y faut de la demonstration pour verifier la demonstration un instrument nous voila au rouet Puis que les sens ne peuvent arrester nostre dispute estans pleins eux-mesmes dincertitude il faut que ce soit la raison aucune raison ne sestablira sans une autre raison nous voylagrave agrave reculons jusques agrave linfiny Nostre fantasie ne sapplique pas aux choses estrangeres ains elle est conceue par lentremise des sens et les sens ne comprennent pas le subject estranger ains seulement leurs propres passions et par ainsi la fantasie et apparence nest pas du subject ains seulement de la passion et souffrance du sens laquelle passion et subject sont choses diverses parquoy qui juge par les apparences juge par chose autre que le subject [hellip]rdquo157

Os escolaacutesticos natildeo testaram as suas ideias atraveacutes dos factosldquoIls ne se

rapportent pas agrave lrsquoexpeacuterience ils nrsquoessaient jamais leurs opinions Leur travail consiste

uniquement agrave tirer des deacuteductions de principes et drsquoaxiomes qursquoils nrsquoexaminent jamais

Leurs principes sont faux les conseacutequences qursquoils en deacuteduisent sont donc fausses

neacutecessairement mais ils ne srsquoen soucient pas La meacutethode scolastique et logicienne

triomphe toujours et rend tous les efforts steacuterilesrdquo158 Montaigne daacute-se conta de que a

capacidade do homem de conhecer algo estaacute profundamente relacionada com a

contingecircncia e que esta mesma capacidade estaacute subordinada aos sentidos que satildeo

ldquomaintesfois maistres du discoursrdquo159 mas que ao mesmo tempo satildeo incertos e

falsificaacuteveis E portanto esta ciecircncia eacute incapaz de chegar a certezas crediacuteveis

157 Les Essais II 12 pp 600-601 158 Villey op cit pp 214-215 159 Les Essais II 12 p 592

51

4 A criacutetica agrave razatildeo humana e o relativismo da moral

Quando lemos a ldquoApologie de Raymond de Sebondrdquo aleacutem de nos depararmos

com problemas claacutessicos da filosofia como a criacutetica agrave teoria do conhecimento

deparamo-nos tambeacutem com o problema da moral de que o autor se ocupa de uma

maneira muito particular Natildeo apresentaremos neste capiacutetulo uma abordagem detalhada

e detida do tema da moral na ldquoApologierdquo Isto exigiria uma investigaccedilatildeo aprofundada e

de maior amplitude uma vez que o autor desenvolve neste texto muitos aspectos

importantes deste tema

Limitar-nos-emos a procurar perceber por que razatildeo o autor ldquodecretardquo a

impossibilidade de fundamentar na razatildeo humana um conjunto de normas ou leis que

dizem respeito agrave vida praacutetica de qualquer grupo humano Perseguindo este objectivo

procuraremos reconstruir os vaacuterios argumentos do ensaio que justificam a sua tomada

de posiccedilatildeo no acircmbito da moral160

Para contextualizar um pouco a questatildeo da moral nos Essais eacute importante

observar que no periacuteodo do humanismo renascentista se fazia sentir a necessidade de

emitir juiacutezos que fossem coerentes de se informar dos costumes dos homens tanto dos

antigos como dos povos que habitavam terras longiacutenquas Todos queriam rever a sua

ideia de homem Tratava-se de uma busca aberta e muitos ofereciam a sua contribuiccedilatildeo

como afirma Villey161 Tampouco Montaigne se demitiu desta tarefa Envolveu-se com

empenho na tarefa de perceber o que eacute o homem Para isto misturou muitas histoacuterias

antigas e contemporacircneas com inuacutemeras reflexotildees de viajantes que vinham de terras

distantes sobretudo daquelas que foram invadidas e ocupadas por europeus nelas

encontra uma confirmaccedilatildeo da tese segundo a qual a multiplicidade irreconciliaacutevel e a

diversidade mais ampla satildeo a uacutenica marca do ser As teses ceacutepticas de Montaigne

revelam-se de uma maneira particularmente radical no campo da moral neste acircmbito

adquiriraacute uma importacircncia capital a diversidade dos costumes como argumento contra a

moral ldquoracionalrdquo

160 Segundo Villey Montaigne toma consciecircncia do relativismo relativo ao conhecimento natildeo apenas nas noccedilotildees de metafiacutesica mas tambeacutem nas noccedilotildees de moral Neste ponto teraacute uma influecircncia muito importante sobretudo a sua leitura de Sexto Empiacuterico Nesta perspectiva Montaigne pode ser visto como um moralista O mesmo autor afirma que eacute principalmente nas ideias morais que podemos perceber nitidamente o relativismo montaigneano (cf Villey op cit pp188-189) 161 Cf Villey op cit p189

52

Na ldquoApologierdquo Montaigne deteacutem-se a considerar que todas as sociedades tecircm

necessidade das leis Ele tem perfeita consciecircncia de que sem leis nenhuma sociedade

poderaacute ter vida longa A obediecircncia agraves leis162 eacute uma condiccedilatildeo sine qua non para a

sobrevivecircncia de qualquer grupo social Montaigne natildeo leva a ingenuidade ao ponto de

negar pura e simplesmente a necessidade das leis e normas Neste sentido pensa como

Epicuro isto eacute considera que mesmo as piores leis nos satildeo tatildeo necessaacuterias que sem

elas os homens se devorariam uns aos outros163 No mesmo paraacutegrafo Montaigne

observa que tambeacutem Platatildeo distanciando-se pouco desta tese sustenta que sem leis

viveriacuteamos como animais selvagens e se empenha em provaacute-lo

ldquo[A] Nostre esprit est un util vagabond dangereux et temeraire il est malaiseacute dy joindre lordre et la mesure Et de mon temps ceux qui ont quelque rare excellence au dessus des autres et quelque vivaciteacute extraordinaire nous les voyons quasi tous desbordez en licence dopinions et de meurs Cest miracle sil sen rencontre un rassis et sociable On a raison de donner agrave lesprit humain les barrieres les plus contraintes quon peut En lestude comme au reste il luy faut compter et regler ses marches il luy faut tailler par art les limites de sa chasserdquo164

Ao citar Epicuro e Platatildeo o autor da ldquoApologierdquo manifesta a sua decepccedilatildeo

relativamente ao homem de sua eacutepoca Certamente estes pensadores trazem-lhe agrave

memoacuteria a situaccedilatildeo concreta em que estava mergulhada a sociedade francesa naquela

eacutepoca Lendo de uma forma atenta a sua obra eacute faacutecil comprovar que Montaigne era

consciente de tudo o que se passava no seu paiacutes guerras conflitos religiosos profundos

e actos de violecircncia deles derivados

Laschamp ao descrever algumas caracteriacutesticas do contexto no qual Montaigne

elabora a sua obra afirma

162 Haacute uma quantidade significativa de afirmaccedilotildees nos Essais acerca da necessidade do cumprimento da lei independentemente de esta ser ou natildeo justa Vejamos algumas ldquo [C] Il nrsquoest rien si lourdement et largement fautier que les loix ny si ordinairement [B] Quiconque leur obeyt pas justement par ougrave il doibt [hellip] [B]Or les loix se maintiennent en credit non par ce qursquoelles sont justes mais par ce qursquoelles sont loix Crsquoest le fondement mystique de leur authoriteacute elles nrsquoen ont poinct drsquoautrerdquo (Les Essais III 13 p 1072) Montaigne chega ateacute a afirmar que ldquo[A] ce bon et grand Socrates refusa de sauver sa vie par la desobeissance du magistrat voire drsquoun magistrat tres-injuste et tres-inique Car crsquoest la regle des regles et generale loy des loix que chacun observe celles du lieu ougrave il est [hellip]rdquo (Les Essais I 23 p 118) ldquo[A] Jen diray seulement encore cela que cest la seule humiliteacute et submission qui peut effectuer un homme de bien Il ne faut pas laisser au jugement de chacun la cognoissance de son devoir il le luy faut prescrire non pas le laisser choisir agrave son discours autrement selon limbecilliteacute et varieteacute infinie de nos raisons et opinions nous nous forgerions en fin des devoirs qui nous mettroient agrave nous manger les uns les autres comme dit Epicurusrdquo (Essais II 12 p 488) 163 Cf Les Essais II 12 p 558 164 Les Essais II 12 p 559

53

ldquoLes violences entre les dissidents eacutegalaient celles dont ils eacutetaient lrsquoobjet de la part de leurs adversaires Jamais lrsquoabus du raisonnement nrsquoavait eacuteteacute pousseacute plus loin jamais il nrsquoavait deacutechacircneacute tant de colegraveres jamais il nrsquoavait fait couler tant de larmes et tant de sangrdquo165

Assim se compreende melhor por que razatildeo Montaigne afirma que na sua

eacutepoca os que tecircm alguma rara excelecircncia acima dos outros e uma vivacidade

extraordinaacuteria os excedem em desregramento de ideias e de costumes e praticam acccedilotildees

que impedem a felicidade dos homens

Montaigne na qualidade de libre penseur natildeo poderia deixar de defender a

liberdade de pensamento Mas ao mesmo tempo sabe tambeacutem que se esta liberdade

estiver sujeita agrave vaidade da razatildeo muitas atitudes humanas inclusive religiosas como

vimos anteriormente poderatildeo tornar-se nocivas para o homem Ao descrever algumas

das caracteriacutesticas da liberdade de que davam prova os antigos na filosofia e ao fazer

um paralelo com a sociedade de sua eacutepoca afirma

ldquo[A] La liberteacute donq et gaillardise de ces esprits anciens produisoit en la philosophie et sciences humaines plusieurs sectes dopinions differentes chacun entreprenant de juger et de choisir pour prendre party Mais agrave present [C] que les hommes vont tous un train [hellip] et [A] que nous recevons les arts par civile authoriteacute et ordonnance [C] si que les escholes nont quun patron et pareille institution et discipline circonscrite on ne regarde plus ce que les monnoyes poisent et valent mais chacun agrave son tour les reccediloit selon le pris que lapprobation commune et le cours leur donneOn ne plaide pas de lalloy mais de lusage ainsi se mettent egallement toutes choses On reccediloit la medicine comme la Geometrie et les batelages les enchantemens les liaisons le commerce des esprits des trespassez les prognostications les domifications et jusques agrave cette ridicule poursuitte de la pierre philosophale tout se met sans contredictrdquo166

Montaigne escreve a sua obra mergulhado num clima onde reinava uma

ldquoanarchie dans les ideacutees et dans les faitsrdquo167 e coloca-se na atitude de ajudado pelos

costumes antigos julgar o seu tempo Segundo Villey eacute exactamente neste contexto

muito conturbado que Montaigne entra em contacto com o livro de Sexto Empiacuterico

ldquoVoilagrave ougrave lrsquoinfluence du milieu et sa propre dociliteacute aux faits lrsquoont conduit Presque toujours crsquoest la loi politique et morale agrave laquelle il est naturellement assujetti que lrsquoesprit eacuterige en loi absolue Montaigne a affranchi sa raison de cette contrainte naturelle il sait critiquer la loi

165 Laschamp op cit p 104 166 Les Essais II 12 pp 559-560 167 Laschamp op cit p 94

54

que son milieu lui impose crsquoest un pas drsquoune extrecircme importance qursquoil a fait lagrave vers lrsquoideacutee de relativiteacuterdquo168

Montaigne descreve alguns aspectos que comprovam o seu relativismo face aos

costumes de vaacuterios povos sobretudo quando os relaciona com os de Franccedila Com isto o

autor quer sugerir possivelmente que as crenccedilas os juiacutezos e as opiniotildees dos homens

estatildeo sujeitos agraves inconstacircncias perenes que haacute na vida concreta

ldquo[A] si le ciel les agite et les roule agrave sa poste quelle magistrale authoriteacute et permanante leur allons nous attribuant [hellip] [B] en maniere que ainsi que les fruicts naissent divers et les animaux les hommes naissent aussi plus et moins belliqueux justes temperans et dociles icy subjects au vin ailleurs au larecin ou agrave la paillardise icy enclins agrave superstition ailleurs agrave la mescreance [C] icy agrave la liberteacute icy agrave la servitude [hellip] [B] que deviennent toutes ces belles prerogatives dequoy nous nous allons flatants Puis quun homme sage se peut mesconter et cent hommes et plusieurs nations voire et lhumaine nature selon nous se mesconte plusieurs siecles en cecy ou en cela quelle seureteacute avons nous que par fois elle cesse de se mesconter [C] et quen ce siecle elle ne soit en mescomte [A] Il me semble entre autres tesmoignages de nostre imbecilliteacute que celui-cy ne merite pas destre oublieacute que par desir mesmes lhomme ne sccedilache trouver ce quil luy faut que non par jouyssance mais par imagination et par souhait nous ne puissions estre daccord de ce dequoy nous avons besoing pour nous contenter Laissons agrave nostre penseacutee tailler et coudre agrave son plaisir elle ne pourra pas seulement desirer ce qui luy est propre [C] et se satisfaire [hellip]rdquo169

Segundo Montaigne a verdade de uma teoria moral ndash como a de qualquer outro

conhecimento ndash soacute pode ser afirmada relativamente ao sujeito que estaacute implicado nesta

tarefa O homem que reflecte sobre a moral reflecte sobre si proacuteprio e natildeo sobre a

humanidade em geral Desta perspectiva podemos perceber por que razatildeo Montaigne

afirma que eacute ele proacuteprio a mateacuteria de seu livro170 Eacute o proacuteprio Montaigne que nos toca

ainda mais de perto do que o homem em geral

Montaigne observa que natildeo haacute entre os filoacutesofos combate tatildeo violento e tatildeo rude

como o que se trava acerca da questatildeo do soberano bem do homem

ldquo[A] Il nest point de combat si violent entre les philosophes et si aspre que celuy qui se dresse sur la question du souverain bien de lhommerdquo171

168 Villey op cit p 193 169 Les Essais II 12 pp 575-576 170 Cf nota 143 171 Les Essais II 12 p 577

55

Trata-se de uma questatildeo muito sensiacutevel para Montaigne Em se entender eacute inuacutetil

acrescentar mais uma seita agraves 288 que nasceram segundo o caacutelculo de Varron acerca

da questatildeo do soberano bem172

Montaigne inicia a ldquoApologierdquo afirmando que alguns filoacutesofos pensavam que o

soberano bem estava na ciecircncia173

Mas natildeo acreditava que fosse atraveacutes da ciecircncia174 (moral e filosoacutefica) que o

homem conseguiria ser mais saacutebio e mais feliz O autor natildeo se preocupa em fornecer

exactamente o ldquoendereccedilordquo do bem soberano Vejamos como apresenta algumas

indicaccedilotildees relativas agraves vaacuterias tentativas dos filoacutesofos para encontrarem o bem soberano

esse bem que varia conforme o indiviacuteduo

ldquo[A] Nature devroit ainsi respondre agrave leurs contestations et agrave leurs debats Les uns disent nostre bien estre loger en la vertu dautres en la volupteacute dautres au consentir agrave nature qui en la science [C] qui agrave navoir point de douleur [A] qui agrave ne se laisser emporter aux apparences (et agrave cette fantasie semble retirer cetautre [B] de lantien Pythagoras [hellip] [A] qui est la fin de la secte Pyrrhonienne) rdquo175

Fiel aos argumentos do pirronismo Montaigne sustenta que o soberano bem eacute a

ataraxia Segundo ele a sabedoria indica-nos que eacute necessaacuterio procurar manter na alma

um harmonioso equiliacutebrio A ataraxia foi sempre considerada pelos seguidores do

pirronismo como a coroaccedilatildeo da sua filosofia segundo Andreacute Verdan176 Vejamos

textualmente o que diz Sexto acerca da ataraxia como objectivo de sua doutrina ceacuteptica

filosoacutefica

ldquoIl est propos de dire ici quelque chose de la fin de la Sceptique La fin en geacuteneacuteral est ce pour quoi on fait ou on consideacutere toutes Choses crsquoest ce que lrsquoon ne recherche point pour quelque autre Chose crsquoest ce qui est la dernieacutere Chose que lrsquoon recherche Nous disons donc maintenant que la fin du Filosofe Sceptique est lrsquoAtaraxie ou lrsquoexemtion de trouble agrave lrsquoeacutegard des opinions [hellip] amp alors lrsquoAtaraxie ou lrsquoexemtion de trouble fut une suite heureuse quoique fortuite de cette suspension de son jugement agrave lrsquoeacutegard des opinions [hellip] celui qui opine Dogmatiquement amp qui eacutetablit qursquoil y a naturellement amp reacuteellement quelque bien amp quelque mal est toujours troubleacuterdquo177

172 Les Essais II 12 p 577 173 Cf nota 96 174 ldquoLa philosophie morale est viseacutee comme les autres sciences plus directement mecircme que les autres sciencesrdquo (Villey op cit p219) 175 Les Essais II 12 p578 176 Cf Verdan Andreacute Le scepticisme philosophique Paris-Montreacuteal Bordas 1971 p 57 177 Sextus Empiricus Les Hipotiposes ou Instituitions Pirroniennes Traduzido do grego por Claude Huart Amsterdam Barbier MDCCXXV pp15-16

56

Segundo Montaigne a filosofia natildeo pode oferecer uma base consistente agrave moral

que sirva como garantia da felicidade humana O homem eacute convidado a procurar

alicerces mais seguros e consistentes fora da filosofia

ldquo[C] Il ne nous faut guiere non plus doffices de regles et de loix de vivre en nostre communauteacute quil en faut aux grues et formis en la leur Et neantmoins nous voyons quelles sy conduisent tres-ordonneacutement sans erudition Si lhomme estoit sage il prenderoit le vray pris de chasque chose selon quelle seroit la plus utile et propre agrave sa vierdquo178

Assim o homem estaacute impedido por uma incapacidade que tem a sua origem

sobretudo na razatildeo de determinar tudo aquilo que pode em termos morais servir-lhe

para a construccedilatildeo de uma vida tranquila O homem natildeo sabe encontrar o que lhe eacute

necessaacuterio O desacordo nestes assuntos eacute inerente agrave proacutepria natureza do homem tal

como foi descrita pelo autor da ldquoApologierdquo

Trata-se de um desacordo com consequecircncias preocupantes jaacute que se eacute de noacutes

que depende a organizaccedilatildeo dos nossos costumes metemo-nos numa enorme

confusatildeo179 Aludindo ao parecer de Soacutecrates Montaigne defende que a razatildeo aconselha

cada um a obedecer a lei de seu paiacutes180

Entretanto Montaigne questiona-se seraacute que ldquo[A] nostre devoir nrsquoa autre regle

que fortuite181 A resposta reflecte mais uma vez o relativismo do autor que afirma

que a verdade deve ter uma face universal e uniforme mas que reconhece ao mesmo

tempo que de facto o homem impedido pela razatildeo e pelos sentidos (considerados pela

filosofia tradicional como fonte do conhecimento da verdade) natildeo tem condiccedilotildees de

encontrar uma base moral no discurso racional

ldquo[A] La droiture et la justice si lhomme en connoissoit qui eust corps et veritable essence il ne lattacheroit pas agrave la condition des coustumes de cette contreacutee ou de celle lagrave ce ne seroit pas de la fantasie des Perses ou des Indes que la vertu prendroit sa forme Il nest rien subject agrave plus continuelle agitation que les loix Deacutepuis que je suis nay jay veu trois et quatre fois rechanger celles des Anglois noz voisins non seulement en subject politique qui est celuy quon veut dispenser de constance mais au plus important subject qui puisse estre agrave sccedilavoir de la religion Dequoy jay honte et despit dautant plus que cest une nation agrave laquelle ceux de mon quartier ont eu autrefois une si priveacutee accointance quil

178 Les Essais II 12 p 487 179 Cf Les Essais II 12 p 578 180 Cf Les Essais II 12 p 478 181 Les Essais II 12 p 578

57

reste encore en ma maison aucunes traces de nostre ancien cousinagerdquo182

Reflectindo acerca da situaccedilatildeo concreta que o rodeava isto eacute a guerra as

injusticcedilas e outros males (causados pelo proacuteprio homem) que caracterizavam a Franccedila

de entatildeo Montaigne tem consciecircncia de que seguir as leis do paiacutes183 que satildeo

produzidas pela razatildeo humana eacute algo bastante problemaacutetico

Como moralista Montaigne natildeo deseja fazer a apologia de uma ldquoanarquiardquo em

termos morais muito pelo contraacuterio como vimos defende a importacircncia da lei na vida

quotidiana O que ele pretende defender eacute que todo o sistema que resulta de um

emaranhado de reflexotildees intelectuais natildeo leva a nada pelo facto de que tudo o que a

razatildeo produz estaacute sujeito agrave incerteza tanto a verdade como a falsidade

Ao criticar todo este processo Montaigne quer ressaltar a ideia de que a razatildeo eacute

um estorvo importante para a dinacircmica de construccedilatildeo da justiccedila e das leis morais

Esta tese poderia levar a pensar que Montaigne eacute um pensador que natildeo acredita

na verdade Mas ao ler a sua obra damo-nos conta que eacute um autor apaixonado pela

verdade Ele nunca afirmou que a verdade estava fora de alcance Ele quer encontrar a

verdade A sua proacutepria atitude filosoacutefica pode ser caracterizada como uma perene busca

da verdade O que lhe eacute peculiar nesta busca eacute o facto de questionar profundamente tudo

aquilo que eacute construiacutedo arbitrariamente pela filosofia dogmaacutetica sobretudo as grandes

elaboraccedilotildees teoacutericas e os complicados coacutedigos legais que em geral natildeo respeitam as

contingecircncias da vida

Esta razatildeo eacute por conseguinte a grande responsaacutevel pela contiacutenua agitaccedilatildeo das

leis Neste sentido o cepticismo de Montaigne no domiacutenio da moral estaacute em profunda

sintonia com todo o projecto da ldquoApologierdquo Assim como natildeo aceita as certezas teoacutericas

dos filoacutesofos e pensadores profissionais em mateacuteria de metafiacutesica e em tantos outros

assuntos tradicionalmente caros agrave filosofia rejeita tambeacutem com toda a determinaccedilatildeo a

produccedilatildeo filosoacutefica que eacute apresentada como ciecircncia moral Montaigne natildeo se cansa de

questionar o papel daqueles pensadores que em nome da filosofia se encarregam de

teorizar sobre as leis morais e a justiccedila Podemos dizer que o autor classifica esta

actividade como algo dispensaacutevel agrave vida Neste contexto o autor ressalta o problema da

contingecircncia e da sua relaccedilatildeo com a lei

182 Les Essais II 12 p 579 183 ldquo[B] Car nous avons en France plus de loix que tout le reste du monde ensemble [hellip] [C] Il y a peu de relation nos actions qui sont en perpetuelle mutation avec les loix fixes et immobile Les plus desirables ce sont les plus rares plus simples et generalesrdquo (Les Essais III 13 p 1066)

58

ldquo[A] Que nous dira donc en ceste necessiteacute la philosophie Que nous suyvons les loix de nostre pays Cest agrave dire cette mer flotante des opinions dun peuple ou dun Prince qui me peindront la justice dautant de couleurs et la reformeront en autant de visages quil y aura en eux de changemens de passion Je ne puis pas avoir le jugement si flexiblerdquo184

Algumas doutrinas filosoacuteficas impelem-nos ao cumprimento das leis do paiacutes

Mas como eacute isto possiacutevel se estas leis satildeo condicionadas pelas paixotildees de quem as fez

Em seguida Montaigne refere-se agrave relatividade das leis civis

ldquo[A] Quelle bonteacute est-ce que je voyois hyer en credit et demain plus [C]et que le trajet dune riviere fait crime Quelle veriteacute que ces montaignes bornent qui est mensonge au monde qui se tient au delagrave185

Diante deste quadro podemos perguntar-nos seraacute possiacutevel ter uma moral que

garanta a justiccedila para todos fazendo uso da razatildeo e utilizando as leis humanas que satildeo

sempre condicionadas pelas paixotildees as quais por sua vez estatildeo sujeitas a de tantas

mudanccedilas A resposta de Montaigne eacute negativa e eacute dada de forma iroacutenica

ldquo[A] Mais ils sont plaisans quand pour donner quelque certitude aux loix ils disent quil y en a aucunes fermes perpetuelles et immuables quils nomment naturelles qui sont empreintes en lhumain genre par la condition de leur propre essence Et de celles lagrave qui en fait le nombre de trois qui de quatre qui plus qui moins signe que cest une marque aussi douteuse que le resterdquo186

Aleacutem de constatar a relatividade das leis civis Montaigne natildeo deixa de afirmar

que haacute tambeacutem uma niacutetida relatividade nas leis naturais

ldquo[A] ils sont dis-je si miserables que de ces trois ou quatre loix choisies il nen y a une seule qui ne soit contredite et desadvoeumle non par une nation mais par plusieursrdquo187

Outra tese da ldquoApologierdquo que merece ser lembrada eacute que a razatildeo humana ndash

intrometendo-se em toda a parte para dominar baralhar e confundir a face das coisas

segundo sua vaidade e inconstacircncia ndash quer que acreditemos que haacute leis naturais como as

que se observam nas outras criaturas Mas isto natildeo passa de um equiacutevoco em noacutes as leis

naturais estatildeo perdidas

Montaigne natildeo mede as palavras quando o que estaacute em jogo eacute em seu entender

alguma coisa de capital importacircncia A falta de honestidade e a falsidade satildeo atributos

dos pensadores e elaboradores de leis na sociedade Neste contexto criticaraacute

violentamente a posiccedilatildeo de Platatildeo por exemplo Observa que quando este pensador

184 Les Essais II 12 p 579 185 Les Essais II 12 p 579 186 Les Essais II 12 p 580 187 Les Essais II 12 p 580

59

grego se torna legislador adopta um estilo imperioso e afirmativo e mistura-lhe

ousadamente as mais fantasiosas invenccedilotildees tatildeo uacuteteis para persuadir o povo como

ridiacuteculas para se persuadir a si mesmo Conclui a sua criacutetica a Platatildeo da seguinte forma

ldquo[C] Et pourtant en ses loix il a grand soing quon ne chante en publiq que des poeumlsies desquelles les fabuleuses feintes tendent agrave quelque utile fin et estant si facile dimprimer tous fantosmes en lesprit humain que cest injustice de ne le paistre plustost de mensonges profitables que de mensonges ou inutiles ou dommageables Il dict tout destroussement en sa Republique que pour le profit des hommes il est souvent besoin de les piper 188 rdquo

Na ldquoApologierdquo Montaigne manifesta em vaacuterias ocasiotildees o seu

descontentamento relativamente agraves teses dos filoacutesofos gregos

Considerando as reflexotildees precedentes acerca da moral tudo leva a crer que

Montaigne considera que as leis verdadeiras relativas agrave moral devem ter um caraacutecter

universal e natildeo particular

Montaigne apresenta uma lista de costumes diversificados de povos muito

diferentes que tecircm as suas tradiccedilotildees proacuteprias e que satildeo muitas vezes contraditoacuterias entre

si Isto servir-lhe-aacute para justificar a tese de que natildeo haacute coisa em que o mundo seja tatildeo

diverso como os costumes e leis

ldquo[A] Telle chose est icy abominable qui apporte recommandation ailleurs comme en Lacedemone la subtiliteacute de desrober Les mariages entre les proches sont capitalement defendus entre nous ils sont ailleurs en honneur [hellip]rdquo

ldquo[A] Le meurtre des enfans meurtre des peres communication de femmes trafique de voleries licence agrave toutes sortes de voluptez il nest rien en somme si extreme qui ne se trouve receu par lusage de quelque nationrdquo189

ldquo[A] Les subjets ont divers lustres et diverses considerations cest de lagrave que sengendre principalement la diversiteacute dopinions Une nation regarde un subject par un visage et sarreste agrave celuy lagrave lautre par un autre

Il nest rien si horrible agrave imaginer que de manger son pere Les peuples qui avoyent anciennement ceste coustume la prenoyent toutesfois pour tesmoignage de pieteacute et de bonne affection [hellip]rdquo

ldquo[A] Licurgus considera au larrecin la vivaciteacute diligence hardiesse et adresse quil y a agrave surprendre quelque chose de son voisin [hellip]rdquo ldquo[A] Dionysius le tyran offrit agrave Platon une robe agrave la mode de Perse longue damasquineacutee et parfumeacutee Platon la refusa disant questant nay homme il ne

188 Les Essais II 12 p 512 189 Les Essais II 12 p 580

60

se vestiroit pas volontiers de robbe de femme mais Aristippus laccepta avec ceste responce que nul accoustrement ne pouvoit corrompre un chaste couragerdquo190

ldquo[A] Nous portons les oreilles perceacutees les Grecs tenoient cela pour une marque de servitude Nous nous cachons pour jouir de nos femmes les Indiens le font en public Les Scythes immoloyent les estrangers en leurs temples ailleurs les temples servent de franchiserdquo191

Para Montaigne as razotildees sobre as quais cada povo funda a sua moral satildeo uma

resposta a situaccedilotildees contingentes e natildeo visam dar resposta a situaccedilotildees mais universais

vaacutelidas para todos os homens sem excepccedilatildeo Villey chega a afirmar que Montaigne

ldquocherche une justice et il trouve des justices et des justices contradictoiresrdquo192

Aleacutem de constatar a ausecircncia de um acordo entre as vaacuterias concepccedilotildees no que

diz respeito aos costumes de cada povo Montaigne - fiel agrave criacutetica aos sistemas

filosoacuteficos que perpassa toda a ldquoApologierdquo - destaca tambeacutem o facto de que natildeo haacute

sequer acordo entre os filoacutesofos que se ocupam particularmente em reflectir acerca de

dois temas muito caros agrave filosofia

ldquo[A] Quant agrave la liberteacute des opinions philosophiques touchant le vice et la vertu cest chose ougrave il nest besoing de sestendre et ougrave il se trouve plusieurs advis qui valent mieux teus que publiez [C]aux faibles espritsrdquo193

Segundo Montaigne os proacuteprios homens do saber adoptam atitudes

consideradas inaceitaacuteveis pelo facto de a sociedade as condenar Os exemplos ilustram

esta situaccedilatildeo de uma forma muito niacutetida e revelam quanto a razatildeo humana pode fazer

para encontrar explicaccedilotildees legitimadoras para todas as realidades relativas aos costumes

morais

ldquo[A] De lagrave disent aucuns que doster les bordels publiques cest non seulement espandre par tout la paillardise qui estoit assigneacutee agrave ce lieu lagrave mais encore esguillonner les hommes agrave ce vice par la malaisance [hellip] On demanda agrave un philosophe quon surprit agrave mesme ce quil faisoit Il respondit tout froidement Je plante un homme [hellip]rdquo194

ldquo[C] Car Diogenes exerccedilant en publiq sa masturbation faisoit souhait en presence du peuple assistant qursquoil peut ainsi saouler son ventre en le frottant [hellip] Ces philosophes icy donnoient extreme prix agrave la vertu et refusoient toutes autres disciplines que la moralerdquo195

190 Les Essais II 12 p 581 191 Les Essais II 12 p 582 192 Villey op cit p 197 193 Les Essais II 12 p 582 194 Les Essais II 12 p 584 195 Les Essais II 12 p 585

61

A relatividade das leis e costumes e a impossibilidade de se chegar a acordo

entre os povos tendo em vista estabelecer leis universais leva Montaigne a uma espeacutecie

de denuacutencia da praacutetica dos encarregados pela execuccedilatildeo das leis que jaacute por si satildeo tatildeo

questionaacuteveis Isto torna a lei supostamente universal ainda mais sujeita agrave rejeiccedilatildeo

segundo Montaigne Vale a pena recordar aqui o exemplo de que Montaigne ouviu

falar de um juiz que quando deparava com um seacuterio conflito entre Bartoldo e Baldo196

ou com alguma mateacuteria agitada por muitas contradiccedilotildees escrevia na margem de seu

livro ldquoQuestatildeo para o amigordquo Montaigne observa que neste caso a verdade era tatildeo

confusa e debatida que o juiz em causa poderia favorecer a parte que bem entendesse e

conclui

ldquo[A] Les advocats et les juges de nostre temps trouvent agrave toutes causes assez de biais pour les accommoder ougrave bon leur semble A une science si infinie deacutependant de lauthoriteacute de tant dopinions et dun subject si arbitraire il ne peut estre quil nen naisse une confusion extreme de jugemens Aussi nest-il guiere si cler proceacutes auquel les advis ne se trouvent divers Ce quune compaignie a jugeacute lautre le juge au contraire et elle mesmes au contraire une autre fois Dequoy nous voyons des exemples ordinaires par ceste licence qui tasche merveilleusement la cerimonieuse authoriteacute et lustre de nostre justice de ne sarrester aux arrests et courir des uns aux autres juges pour decider dune mesme causerdquo197

Eacute interessante destacar este exemplo tambeacutem porque Montaigne tinha

conhecimentos profundos da ciecircncia do direito conforme reconhece a maioria dos

comentadores da sua obra Como magistrat tinha conhecimento de causas nas quais se

manifestava aquilo contra o qual se opunha Isto vem confirmar ainda mais a posiccedilatildeo de

Montaigne face agrave sua incansaacutevel busca de leis universais que natildeo estivessem sujeitas agraves

constantes mutaccedilotildees de que a razatildeo humanaldquo[B] un pot agrave deux anses qursquoon peut saisir

agrave gauche et agrave dextrerdquo eacute responsaacutevel e que [A] fornit drsquoapparence agrave divers effectsrdquo198

Ao abordar a problemaacutetica da moral na ldquoApologierdquo Montaigne chega a algumas

conclusotildees que natildeo se distanciam fundamentalmente de todo o projecto do ensaio Isto

eacute defende que haacute um relativismo significativamente claro relativamente agrave moral Villey

faz algumas afirmaccedilotildees que resumem claramente esta problemaacutetica ldquoIl nrsquoy a pas de

souverain bien il nrsquoy a pas de loi naturelle toute obligation moralle est fortuite

196 Trata-se de dois juristas do seacuteculo XIV que no seacuteculo XV ainda tinham grande influecircncia 197 Les Essais II 12 p 582 198 Les Essais II 12 p 581

62

contingenterdquo199 E tudo isto deve-se agrave criacutetica destruidora da razatildeo humana que

Montaigne apresenta no texto Para ele a razatildeo quer julgar tudo quer elaborar leis

universais sem mesmo ter condiccedilotildees para semelhante empreendimento A razatildeo como

vimos eacute multiforme inconstante infinita Ela avanccedila sempre mesmo torta mesmo

manca mesmo desancada tanto com a mentira como com a verdade A razatildeo eacute um

instrumento de chumbo e de cera alongaacutevel dobraacutevel e adaptaacutevel a todas as

perspectivas e a todas as medidas200 Segundo Montaigne a razatildeo eacute ldquo[B] un miserable

fondement de nos regles et qui nous represente volontiers une tres-fauce image des

choses comme vainement nous concluons aujourdrsquohui lrsquoinclination et la decrepitude du

monde par les arguments que nous tirons de nostre propre foiblesse et decadencerdquo201

Em suma Montaigne tem consciecircncia de que eacute impossiacutevel chegar a qualquer

determinaccedilatildeo no domiacutenio da moral atraveacutes da razatildeo Por isto assume uma atitude

ceacuteptica em face desta questatildeo

199 Villey op cit p198 200 Cf nota 122 201 Les Essais III 6 p 908

63

Consideraccedilotildees finais

A leitura da ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo permitiu-nos esclarecer aspectos

importantes da criacutetica demolidora da razatildeo humana levada a cabo por Montaigne

Eacute claro que uma motivaccedilatildeo importante que levou Montaigne a escrever a

ldquoApologierdquo foi a obra do teoacutelogo catalatildeo Sebond Theologia Naturalis Eacute importante

destacar que o proacuteprio tiacutetulo do ensaio ldquoApologiehelliprdquo isto eacute elogio defesa natildeo reflecte

exactamente o seu propoacutesito que eacute a defesa de Sebond A anaacutelise do texto permite

captar algo de paradoxal Montaigne dispotildee-se a defender este teoacutelogo catalatildeo num

ensaio no qual ele proacuteprio se distancia claramente da doutrina de Sebond Neste

sentido haacute um significativo distanciamento entre o tiacutetulo do ensaio e o seu conteuacutedo O

ponto de partida de Montaigne eacute uma espeacutecie de declaraccedilatildeo de que as ideias de Sebond

satildeo convincentes mas imediatamente a seguir muda de opiniatildeo partindo de sua

concepccedilatildeo negativa do homem e natildeo acredita nos supostos poderes da razatildeo Dito de

outro modo Montaigne natildeo sustentava o propoacutesito da Theologia naturalis isto eacute a

pretensatildeo de apoiar a crenccedila dos leitores convidando-os a fazer um esforccedilo de adaptaccedilatildeo

dos instrumentos naturais e humanos considerados como dons de Deus especialmente

a razatildeo pondo-os ao serviccedilo da feacute

Montaigne ldquoaplauderdquo a atitude de Sebond202 Mas imediatamente a seguir critica

o teoacutelogo catalatildeo atacando os vaacuterios argumentos filosoacuteficos presentes na sua obra Na

raiz da sua criacutetica estaacute o facto de estes argumentos se fundamentarem numa visatildeo

antropocecircntrica da supremacia do homem como criatura privilegiada da criaccedilatildeo o

homem por ser detentor da razatildeo diferentemente dos outros animais tem uma

finalidade uma perfeiccedilatildeo e uma dignidade que merece ser exaltada Montaigne natildeo

aceita esta visatildeo que norteia tanto a obra de Sebond como o pensamento de todos

aqueles que faziam apologia da dignitas hominis Denuncia a presunccedilatildeo ilusoacuteria do

homem Desta perspectiva utiliza vaacuterios relatos anedoacuteticos de animais para justificar a

sua posiccedilatildeo E a conclusatildeo principal a que o conduz este percurso eacute que o homem natildeo

estaacute nem acima nem abaixo do resto dos seres naturais203 Dito de outro modo a

consideraccedilatildeo de que unicamente o homem eacute possuidor da razatildeo natildeo tem qualquer

relevacircncia segundo a ldquoApologierdquo

202 Cf nota 1 203 Cf nota 31

64

Da batalha travada por Montaigne contra os vaacuterios opositores da obra de

Sebond podemos destacar a posiccedilatildeo criacutetica que ele assume face aos presunccedilosos

racionalistas que diziam que os argumentos de Sebond eram fracos Diante destes

doutos Montaigne iraacute sustentar a tese de que o homem natildeo sabe nada Haacute que salientar

no entanto que o teoacutelogo catalatildeo estava em ldquocomunhatildeordquo com o pensamento apologeacutetico

de sua eacutepoca isto eacute recorreu agrave razatildeo para provar certos dogmas Para Montaigne o

principal perigo vem daqueles que atribuem super poderes agrave razatildeo Eacute por isso tambeacutem

que Montaigne sustenta que a razatildeo deve submeter-se agrave autoridade divina Esta

submissatildeo natildeo exclui a razatildeo mas considera-a como um meio de compreender o motivo

da feacute Esta feacute deve ser concebida como uma expectativa da graccedila sem a qual nada eacute

possiacutevel ao homem Segundo Montaigne natildeo somos capazes de perceber que toda a

certeza estaacute vedada ao homem reduzido a si proacuteprio204

Podemos perceber que a utilizaccedilatildeo da razatildeo para explicar as realidades da

religiatildeo natildeo tem sentido na ldquoApologierdquo Montaigne natildeo tem necessidade de fazer

apologia da feacute205 A sua perspectiva eacute unicamente humana e isto vai estruturar toda a

sua reflexatildeo na ldquoApologierdquo Quando se refere agrave graccedila como dom sobrenatural nem o

absoluto nem a graccedila actuam no interior de sua visatildeo antropoloacutegica A graccedila eacute

apresentada por Montaigne como uma metamorfose

ldquo[C] Crsquoest agrave nostre foy Chrestienne non agrave sa vertu Stoique de pretendre agrave cette divine et miraculeuse metamorphoserdquo206

Montaigne descobre em si proacuteprio o pirronismo atraveacutes da volubiliteacute207 presente

nas vaacuterias atitudes dos filoacutesofos Pocircs em duacutevida as diversas opiniotildees dos filoacutesofos

denunciando-as como contraditoacuterias criticou as doutrinas filosoacuteficas dogmaacuteticas mas

natildeo assumiu nenhuma doutrina definida Montaigne assume o pirronismo como meacutetodo

e natildeo como um adepto cego para enfrentar os problemas presentes na ldquoApologierdquo

O pirronismo eacute assumido por Montaigne como modo de pensamento e como

meacutetodo de vida Este pirronismo permite-lhe ter em conta na ldquoApologierdquo a incerteza de

204 Cf Nota 93 205 O autor esclarece esta questatildeo da seguinte maneira na ediccedilatildeo posterior a 1588 ldquo[C] Je propose les fantasies humaines et miennes simplement comme humaines fantasies [hellip] matiere dopinion non matiere de foy ce que je discours selon moy non ce que je croy selon Dieu comme les enfants proposent leurs essais intruisables non instruisants dune maniere laiumlque non clericale mais tresminusreligieuse tousjoursrdquo (Les Essais I 56 p 323) 206 Les Essais II 12 p 604 207 Les Essais II 12 p 569

65

nossos juiacutezos a incerteza que todos sentem em si208 em relaccedilatildeo ao conhecimento O

pirronismo faz desaparecer as ilusotildees da certeza e como ele natildeo se envolve nas

questotildees da ldquoirresolution infinierdquo209 procura uma seguranccedila na tranquilidade do

espiacuterito que com a do corpo constitui o soberano bem210 Ao assumir a atitude

pirroacutenica Montaigne natildeo se transforma num homem passivo num ldquopeso mortordquo Muito

pelo contraacuterio sustenta que devemos sempre levantar questotildees reconhecer a nossa

ignoracircncia face agraves vaacuterias resoluccedilotildees tomadas como certas pela presunccedilosa razatildeo

humana duvidar sempre e ter uma atitude de busca incessante de novas ideias

Isto significa que Montaigne defende a tese de que somos convidados a

considerar que os conhecimentos adquiridos devem ser sempre sustentados como

provisoacuterios e natildeo como verdades absolutas Isto natildeo exclui evidentemente o facto de

que podemos apresentar as nossas visotildees prismaacuteticas das coisas e ateacute sustentaacute-las se

assim for necessaacuterio

Na ldquoApologierdquo Montaigne assume uma atitude pirroacutenica sui generis Demonstra

constantemente uma reaccedilatildeo contra os dogmatismos Ele eacute um pensador que estaacute sempre

em busca Nunca cessa de investigar Estaacute sempre em debate consigo mesmo Neste

aspecto pode-se dizer que assume uma atitude diferente do pirronismo grego o qual

defendia a tese da impossibilidade de qualquer juiacutezo Natildeo estaacute preocupado em encontrar

um ldquoroacutetulo de marca registadardquo para suas reflexotildees filosoacuteficas Ou seja natildeo tinha como

objectivo elaborar uma apologia de uma doutrina a ser seguida por adeptos

Montaigne apresenta os seus juiacutezos com a sua razatildeo criacutetica sem ter

necessariamente que defender a tese de que a razatildeo humana ndash instrumento flexiacutevel

recurvaacutevel e adaptaacutevel a qualquer forma211- eacute sempre o guia prudente e seguro de uma

conduta correcta e perfeita Montaigne procura demonstrar racionalmente - e aqui

reside em seu entender o uso positivo da razatildeo ndash que natildeo haacute essecircncia nem verdade

absoluta acerca do homem e que de algumas coisas sempre agrave mercecirc do poder do tempo

noacutes soacute observamos as aparecircncias

ldquo[A] Finalment il nrsquoy a aucune constante existence ny de nostre estre ny de celuy des objects [hellip] Nous nrsquoavons aucune communication agrave lrsquoestre [hellip]rdquo212

208 Cf Les Essais II 12 p 563 209 Cf Les Essais II 12 p 561 210 Cf Les Essais II 12 p 488 211 Cf Les Essais II 12 p 539 212 Les Essais II 12 p 601

66

Montaigne duvida de todos os conhecimentos humanos recebidos por autoridade

e em confianccedila (agrave credit) como se fossem religiatildeo e lei213 tais conhecimentos natildeo

passam de falsas evidecircncias do quotidiano E isto vale sobretudo para todos os tipos de

produccedilatildeo racional que satildeo consequecircncia da vaidade humana

Montaigne esforccedila-se por investigar as opiniotildees dos outros e isto motiva-o a

formular um pensamento mais pessoal preocupado com o que eacute justo e a expandir o

seu proacuteprio conhecimento relativo e precaacuterio As suas investigaccedilotildees natildeo satildeo dogmaacuteticas

e soacute o comprometem a ele proacuteprio Eacute um pensador que estaacute sempre em busca que natildeo

tem a presunccedilatildeo de querer saber tudo sobre todas as coisas Mas ao mesmo tempo

podemos dizer que eacute um pensador que descobriu num mundo marcado por tantas

conturbaccedilotildees graccedilas agraves suas proacuteprias experiecircncias uma consciecircncia real e soacutelida da sua

existecircncia concreta no mundo Este facto levou-o a assumir a atitude de natildeo querer

ensinar nem dirigir a vida de ningueacutem Vale a pena citar a este respeito um pequeno

trecho de um outro ensaio que Montaigne escreveu provavelmente na mesma eacutepoca da

ldquoApologierdquo e que reflecte claramente a posiccedilatildeo por ele assumida e que pode ser

classificada natildeo como a de um filoacutesofo profissional detentor de verdades que devem ser

ensinadas aos outros mas como a de algueacutem que estaacute sempre em busca e natildeo se inibe de

expressar as suas opiniotildees

ldquo[A] Je dy librement mon advis de toutes choses voire et de celles qui surpassent agrave ladventure ma suffisance et que je ne tiens aucunement estre de ma jurisdiction Ce que jen opine cest aussi pour declarer la mesure de ma veueuml non la mesure des chosesrdquo214

Montaigne renuncia a tarefa de querer provar atraveacutes da razatildeo humana aquilo

que estaacute em uacuteltima instacircncia no domiacutenio da feacute Ele eacute um homem que crecirc em Deus

ldquo[A] Il a laisseacute en ces hauts ouvrages le caractere de sa diviniteacute et ne tient quagrave nostre imbecilliteacute que nous ne le puissions descouvrirrdquo215

Uma quantidade importante de pessoas no mundo proclama a existecircncia de

Deus Mas este Deus natildeo pode ser conhecido racionalmente pelo homem

ldquoIl sen faut tant que nos forces conccediloivent la hauteur divine que des ouvrages de nostre createur ceux-lagrave portent mieux sa marque et sont mieux siens que nous entendons le moinsrdquo216

213 Cf Les Essais II 12 p 539 214 Les Essais II 10 p 410 215 Les Essais II 12 pp 446-447 216 Les Essais II 12 p 499

67

Relativamente agrave moral Montaigne sustenta a tese de que a razatildeo humana natildeo

tem o poder de determinar quais satildeo os bons e os maus costumes as boas e as maacutes leis e

normas para qualquer grupo social

Diante da leitura que fizemos da ldquoApologierdquo onde Montaigne apresenta uma

criacutetica destruidora agrave razatildeo tirando-lhe quase todos os atributos recebidos durante toda a

histoacuteria da filosofia podemos portanto perguntar-nos qual eacute o papel da razatildeo humana

A resposta a esta questatildeo eacute muito complexa A criacutetica montaigneana agrave razatildeo natildeo se

limitou a menosprezar a ciecircncia (filosofia) a ldquoteologia racionalistardquo e as suas pretensotildees

de querer dar explicaccedilotildees sobre questotildees de feacute e de religiatildeo atacou tambeacutem

profundamente o espiacuterito humano negando-lhe capacidades que na maioria das vezes

satildeo atributos da pretensatildeo humana Para ilustrar mais claramente esta ideia seraacute

interessante fazer referecircncia a uma passagem ceacutelebre do livro III na qual Montaigne

conta uma pequena histoacuteria de um escravo chamado Esopo

Conta-nos o autor que Esopo estava exposto agrave venda com dois outros escravos

Um comprador indagou de um deles que sabia fazer este para se valorizar contou mil

maravilhas (monts et merveilles) O segundo disse mais ainda Quando chegou a sua

vez Esopo respondeu ldquonada eles jaacute pegaram em tudo eles sabem tudordquo Montaigne

observa que verificou o mesmo nas escolas de filosofia A arrogacircncia o orgulho (fierteacute)

dos que atribuiacuteram ao espiacuterito humano a capacidade de tudo saber levou os outros a

afirmar por despeito ou contradiccedilatildeo que o espiacuterito natildeo era capaz de coisa alguma

Estes exaltavam ao extremo a ignoracircncia tal como aqueles glorificavam absurdamente a

ciecircncia De modo que natildeo haacute como negar que o homem eacute imoderado em tudo e soacute cessa

quando forccedilado pela capacidade de ir aleacutem217

Em suma a ldquoApologierdquo nos apresenta um questionamento profundo em relaccedilatildeo

a todo o tipo de conhecimento fundado na razatildeo Arruiacutena os fundamentos deste

conhecimento produzido pelos homens do saber doutos e filoacutesofos antigos A estes

ldquosaacutebiosrdquo em geral que pensavam ser possuidores da verdade Montaigne dirige uma

criacutetica iroacutenica

laquo [C] Fiez vous agrave vostre philosophie vantez vous davoir trouveacute la feve au gasteau [hellip] raquo218

217 Cf Les Essais II 11 p 1035 218 Les Essais II 12 p 516 Esta citaccedilatildeo faz referecircncia agrave tradiccedilatildeo de na Epifania compartilhar um bolo contendo uma fava quem recebesse a fatia laquo premiada raquo era chamado laquo o rei da fava raquo Tratava-se de algo que figuradamente garantia uma espeacutecie de vantagem

68

Bibliografia

1 - Obras de Michel de Montaigne

Les Essais eacutedition conforme au texte de lrsquoexemplaire de Bordeaux par Pierre Villey

reacuteeacutediteacute sous la direction et avec un preacuteface de V-L Saulnier augmenteacute en 2004 drsquoune

preacuteface et drsquoun suppleacutement de Marcel Conche Paris QuadriguePUF 2004 (ediccedilatildeo de

referecircncia no nosso estudo)

Essais Livre second eacutedition preacutesenteacutee eacutetablie et annoteacutee par Emmanuel Naya

Delphine Reguig-Naya et Alexandre Tarrecircte Paris () Gallimard 2009

2 Estudos sobre Montaigne

AA VV Le dictionnaire des Essais de Montaigne Paris ( ) Eacuteditions Leacuteo Scheer

2011

AA VV Montaigne et la reacutevolution Philosophique du XVI siegravecle Bruxelles Eacuteditions

de lrsquoUniversiteacute de Bruxelles 1992

AUREacuteLIO Diogo Pires Montaigne e Espinosa toleracircncia ceacuteptica e toleracircncia

racionalista In O Cepticismo e Montaigne Rui Bertrand Romatildeo (org) Covilhatilde

Universidade da Beira Interior 2003 pp 141-160

BIRCHAL Telma de Souza O eu nos Ensaios de Montaigne Belo Horizonte Editora

UFMG 2007

BIGNOTTO Newton ldquoMontaigne Renascentistardquo Kriterion Revista do Departamento

de Filosofia da UFMG Belo Horizonte XXXIII 86 agodez 1992 p 29-41

BUTOR Michel Essais sur les essais Paris Gallimard 1968

CATALAN Eacutetienne Eacutetudes sur Montaigne analyse de sa philosophie Paris Hellier

Fregraveres Librairie Religieuse 1846

CHAMPION Edme Introduction aux Essais de Montaigne Paris Armand Colin amp Cie

Eacutediteurs 1900

COMPAGNON Antoine Nous Michel de Montaigne Paris Seuil 1980

CONCHE Marcel Montaigne et la philosophie Paris Puf 1996

69

_____________ Montaigne ou la conscience heureuse Paris PUF 2009

DUARTE Tiago Barros Skepticism and religion in Michel de Montaigne two

interpretations of apology for Raymond Sebond Intuitio Porto Alegre V2 ndash Nordm 3

Novembro 2009 pp 298-307

FILHO Celso Martins Azar Montaigne e Soacutecrates cepticismo conhecimento e

virtude In Revista Portuguesa de Filosofia Tomo LVIII Fasc 4 2002

FRIEDRICH Hugo Montaigne Traduzido do alematildeo por Robert Rovini Paris

Gallimard 1967

GIOCANTI Sylvia Montaigne et les becirctes La becirctise et lrsquoanimal dans les Essais de

Montaigne Universiteacute de Toulouse-II Le Mirail UMR 5037 (ENS-Lyon) 2011

HENDRICK Philip Montaigne and Sebond scepticism faith and imagination In O

Cepticismo e Montaigne Rui Bertrand Romatildeo (org) Covilhatilde Universidade da Beira

Interior 2003 pp 83-102

JEANSON Franccedilois Montaigne par lui-mecircme Paris Seuil 1951

LACOUTURE Jean Montaigne agrave cheval (Montaigne a cavalo) Traduzido por F

Rangel Rio de JaneiroSatildeo Paulo Editora Record 1998

LANUSSE Maxime Montaigne Paris Lecegravene Oudin et Cie Eacutediteurs 1895

LEVEAUX Alphonse Eacutetude sur les Essais de Montaigne Paris Henri Plon

Imprimeur-Eacutediteur 1870

MATHIEU-CASTELLANI Gisegravele Montaigne ou la veacuteriteacute du mensonge Genegraveve

Droz 2000

MONSIEUR L Le chistianisme de Montaigne Paris Imprimerie de Demonville 1819

_______ Montaigne lrsquoeacutecriture de lrsquoessai Paris PUF 1988

NAKAM Geacuteranrd Montaigne et son temps Paris Gallimard 1993

RIGOLOT Franccedilois Le texte de la renaissance des rheacutetoriqueurs agrave Montaigne

Genegraveve Droz 1982

_______ Les meacutetamorphoses de Montaigne Paris PUF 1988

RIVELINE Maurice Montaigne et lrsquoamitieacute Paris Librairie Feacutelix Alcan 1939

70

71

ROMAtildeO Rui Bertrand A apologia na balanccedila a reinvenccedilatildeo do pirrorismo na

Apologia de Raimundo Sabunde de Michel de Montaigne Lisboa Imprensa Nacional

Casa da Moeda 2007

SANTI Pedro Luiz Ribeiro de Montaigne e a reflexatildeo moral no seacuteculo XVI In Revista

Olhar ano 04 nordm 7 jan-jun 03 pp 76-85

STAROBINSKI Jean Montaigne en mouvement Paris Gallimard 1982

STROWSKI Fortunat Montaigne Paris Feacutelix Alcan Eacutediteurs 1906

VERDAN Andreacute Le scepticisme philosophique Paris-Montreacuteal Bordas 1971

VILLEY Pierre Les sources et lrsquoeacutevolution des essais de Montaigne Tome Premier

Paris Librairie Hachete 1908

______ Les sources et lrsquoeacutevolution des essais de Montaigne Tome Second Paris

Librairie Hachete 1908

______ Montaigne devant la posteacuteriteacute Paris Ancienne Librairie Furne ndash Boivin et Cie

Eacutediteurs 1935

WEILLER Maurice Pour connaitre la penseacutee de Montaigne Paris Bordas 1948

3 ndash Outras obras citadas

ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Livro I e II Traduccedilatildeo do grego por Vicenzo Coceo

Coleccedilatildeo Os Pensadores Satildeo Paulo Abril S A Cultural 1984

CASSIRER Ernst An essay on man Traduccedilatildeo portuguesa de Carlos Branco Ensaio

sobre o homem Lisboa Guimaratildees Editores 1995

Nouveau Testament Traduction Oecumeacutenique de la Bible Paris PUF 1977

SEXTUS EMPIRICUS Les hipotiposes ou instituitions pirroniennes Trad do grego

por Claude Huart Amsterdam Barbier MDCC XXV

AA VV Histoacuteria das sociedades das sociedades modernas agraves sociedades atuais Rio

de Janeiro Ao Livro Teacutecnico 1983

  • IacuteNDICE
Page 2: MARÇO DE 2012

AGRADECIMENTOS

Agrave Profordf Doutora Marta Mendonccedila pela orientaccedilatildeo sempre atenta segura e criteriosa pelos seus comentaacuterios preciosos pelo incentivo pela dedicaccedilatildeo pelo estiacutemulo perseverante e por me ter sugerido o tema desta dissertaccedilatildeo

Agrave Monica minha esposa pois sem o seu sacrifiacutecio e apoio este trabalho permaneceria irrealizaacutevel

A todos os que directa ou indirectamente contribuiacuteram para este trabalho

2

A CRIacuteTICA DA RAZAtildeO EM MICHEL DE MONTAIGNE

FLORIVALDO FLORIANO FERREIRA

RESUMO

O trabalho que se segue eacute uma leitura e comentaacuterio do capiacutetulo ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo Livro II 12 de Michel de Montaigne Trata-se de apresentar a criacutetica da razatildeo abordada pelo autor Com o pretexto de defender as ideias de Sebond que em sua obra Teologia naturalis de quem tinha traduzido do latim para o francecircs que encontrava os fundamentos da feacute na razatildeo e punha o homem no primeiro niacutevel da criaccedilatildeo o ensaiacutesta apresenta de facto um pensamento muito pessoal Recusa-se a dar valor agrave razatildeo e potildee o homem no mesmo niacutevel dos animais Vai sustentar a tese de que a razatildeo natildeo tem um valor de absoluta superioridade conturbando desta forma toda a tradiccedilatildeo filosoacutefica que depositava toda a confianccedila na razatildeo sobretudo como instrumento do conhecimento

Esta dissertaccedilatildeo eacute desenvolvida em quatro etapas A primeira abordaraacute brevemente a concepccedilatildeo antropoloacutegica que subjaz na ldquoApologierdquo em segundo lugar pretende-se perceber com maior clarividecircncia os motivos que levaram o autor a criticar a razatildeo que eacute instrumentalizada na tarefa de justificaccedilatildeo das chamadas verdades religiosas em terceiro lugar trata-se da criacutetica da ciecircncia que eacute abordada no ensaio onde o autor quer derrubar a tola vaidade e sacudir os fundamentos sobre os quais se constroem as falsas ideias produzidas pela ciecircncia na quarta e uacuteltima etapa pretende-se abordar a tese da impossibilidade de se formular a partir da razatildeo um conjunto de normas regras e leis com validade objectiva a qualquer grupo humano

PALAVRAS-CHAVE Apologia cepticismo Essais homem Montaigne razatildeo

3

THE CRITIQUE OF REASON IN MICHEL DE MONTAIGNE

FLORIVALDO FLORIANO FERREIRA

ABSTRACT

The following thesis is an interpretation and comment of the chapter ldquoAn Apology for Raymond Sebondrdquo book II chapter 12 by Michel de Montaigne It presents a critique of the reason the author approached Using as a pretext to defend the ideas of Sebond who in his work Teologia naturalis that the author had translated from Latin into French that identified the fundamentals of faith in reason and put man on the first level of creation the essayist presents in fact a very personal idea He refuses to empower reason and places man on the same level as animals He supports the argument that reason is not superior contradicting in this way the entire philosophical tradition which placed all its trust on reason most importantly as an instrument to acquire knowledge

This thesis is structured in four parts The first briefly approaches the anthropological idea that underlies in ldquoApologyrdquo the second aims to understand more profoundly the reasons that determined the author to critique the reason that is instrumental in the justification of the so-called religious truths The third part deals with a critique of the science which is discussed in the essay where the author wants to overthrow the foolish vanity and shake the foundations on which are built the false ideas produced by science In the fourth and last part the thesis approaches the idea of the impossibility to formulate based on reason a set of norms rules and laws with objective validity for any human group

KEYWORDS Apology scepticism Essais man Montaigne reason

4

IacuteNDICE

Introduccedilatildeo 6

1 A ideia do homem na ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo 9

2 A criacutetica agrave razatildeo humana e a questatildeo da religiatildeo 19

3 A criacutetica agrave razatildeo e sua relaccedilatildeo com a ciecircncia 35

4 A criacutetica agrave razatildeo humana e o relativismo da moral 52

Consideraccedilotildees finais 64

Bibliografia 69

5

Introduccedilatildeo

O tema da razatildeo eacute muito caro a Montaigne e central na sua obra No presente

trabalho pretende-se abordaacute-lo a partir da ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo que faz

parte do segundo livro dos Essais Trata-se de um ensaio que eacute unanimemente

reconhecido como sendo uma das referecircncias mais importantes para quem pretenda

compreender em profundidade os aspectos mais relevantes da criacutetica ceacuteptica agrave razatildeo

humana desenvolvida por Montaigne

Com o pretexto de defender as ideias de Sebond1 Montaigne apresenta de facto

um pensamento totalmente pessoal independente do de Sebond Em vez de responder

agraves diversas objeccedilotildees dos adversaacuterios da Theologia naturalis Montaigne questiona de

uma forma muito incisiva o poder da razatildeo e ldquopotildee em xequerdquo este suposto poder A

criacutetica por ele desenvolvida natildeo se limitou a rebaixar a filosofia ldquoprofissionalrdquo a

suspeitar de todo o conhecimento produzido pela ciecircncia mas atacou tambeacutem

duramente a pretensatildeo humana de tudo querer conhecer atraveacutes da razatildeo pretensatildeo que

se estende inclusivamente a Deus atraveacutes das grandes construccedilotildees racionais da teologia

Como veremos a razatildeo natildeo tem para Montaigne um valor supremo nem eacute sinal de

absoluta superioridade Os limites do poder da razatildeo satildeo tatildeo evidentes que se

manifestam inclusivamente na incapacidade da razatildeo de raciocinar sobre si mesma

ldquo[A] Par ougrave la voulons nous mieux esprouver que par elle mesme Srsquoil ne la faut croire parlant de soy agrave peine sera-elle propre agrave juger des

1 Trata-se de Raymond Sebond Da vida de Sebond sabe-se muito pouco como diz Montaigne ldquo[A] tout ce que nous sccedilavons cest quil estoit Espaignolrdquo (Les Essais II 12 p 440) Especula-se que nasceu em 1385 em Barcelona Diz-se tambeacutem que foi estudante na universidade de Toulouse e que foi reitor daquela universidade Morreu em Toulouse em 1436 onde ensinava medicina e teologia Sua obra magna ldquoTheologia naturalis sive Liber creaturarumrdquo (Teologia natural ou livro das criaturas) escrita em 1434-1436 e publicada em 1487 foi reimpressa vaacuterias vezes ateacute aos meados do seacuteculo XVII Esta obra foi traduzida por Montaigne em 1569 a pedido de seu pai Pierre Eyquem senhor de Montaigne e antigo presidente da Cacircmara Municipal de Bordeaux que se interessava muito por ela conforme atestam os primeiros paraacutegrafos da ldquoApologierdquo Esta traduccedilatildeo foi o primeiro trabalho publicado e o que o lanccedilou no mundo literaacuterio ldquo[A] Je trouvay belles les imaginations de cet autheur la contexture de son ouvrage bien suyvie et son dessein plein de pieteacuterdquo (Les Essais II 12 p 440) Para as citaccedilotildees e referecircncias dos Ensaios utilizaremos a ediccedilatildeo de Villey-Saulnier Paris PUFQUADRIGE 2004 As citaccedilotildees seratildeo feitas da seguinte forma o nuacutemero em algarismos romanos indica o livro o primeiro nuacutemero em araacutebicos o capiacutetulo e o segundo nuacutemero em araacutebicos a paacutegina da ediccedilatildeo Les Essais foram publicados pela primeira vez em 1580 e eram constituiacutedos por dois livros apenas Pouco depois Montaigne fez vaacuterios acreacutescimos nestes livros e compocircs um terceiro e fez uma nova ediccedilatildeo em 1588 Em 1592 o autor morre e deixa um exemplar com vaacuterias adiccedilotildees manuscritas o chamado ldquoexemplar de Bordeauxrdquo destinado a uma nova ediccedilatildeo dos Essais Indicaremos as trecircs ldquocamadasrdquo do texto com as letras A (Ediccedilatildeo de 1580) B (Ediccedilatildeo de 1588) e C (adiccedilotildees posteriores a 1588 feitas ao exemplar de Bordeaux)

6

choses estrangeres si elle connoit quelque chose aumoins sera ce son estre et son domicile [hellip] la vraye raison et essentielle de qui nous desrobons le nom agrave fauces enseignes elle loge dans le sein de Dieu [hellip]rdquo2

Compreender as razotildees do cepticismo de Montaigne significa antes de mais

aprofundar os aspectos mais marcantes da sua antropologia Por isso comeccedilaremos por

abordar ainda que de forma breve a concepccedilatildeo antropoloacutegica que estaacute subjacente na

ldquoApologierdquo Com efeito a razatildeo ndash esse grande motivo de orgulho do homem e que eacute

considerada como um sinal da sua participaccedilatildeo no ser ndash passa a ser concebida por

Montaigne como um mero fruto da pretensatildeo e vaidade humanas para explicar crenccedilas

costumes etc Entre os alvos da criacutetica de Montaigne encontram-se aquelas teorias que

potildeem o homem no ldquotopo da piracircmiderdquo das criaturas do universo Enquanto Sebond

coloca o homem no topo da escala dos seres Montaigne recoloca-o no seio da natureza

e rebaixa-o ao niacutevel dos animais

Pretendemos deste modo compreender melhor as razotildees do ldquodestronamentordquo

realizado por Montaigne deste ser ldquotodo-poderosordquo que eacute o homem Ou o que eacute o

mesmo pretendemos compreender o ldquocepticismo da razatildeordquo que Montaigne assume

conscientemente com o intuito de rejeitar a pretensatildeo do homem de se considerar pela

interposiccedilatildeo da razatildeo no centro do universo

Em segundo lugar para compreender o lugar e o valor da razatildeo na obra de

Montaigne seraacute necessaacuterio investigar os motivos que levaram o autor a tecer uma

criacutetica tatildeo contundente da razatildeo humana aprofundando em concreto as relaccedilotildees que

esta criacutetica tem com a sua anaacutelise da religiatildeo Haacute que ter em conta no entanto que a

atitude de desconfianccedila da razatildeo natildeo conduziu Montaigne a pocircr em causa a feacute cristatilde

dado que em seu entender esta se situa num plano diferente natildeo sendo portanto

susceptiacutevel de ataque pelo seu espiacuterito criacutetico

A pertinecircncia desta questatildeo ressalta quando se tem em conta que o autor inicia o

seu texto a partir de uma motivaccedilatildeo teoloacutegica podemos conhecer racionalmente Deus

Montaigne dedica um nuacutemero significativo de paacuteginas a mostrar que os atributos

divinos natildeo satildeo alcanccedilaacuteveis pelos exerciacutecios racionais dos homens detentores das

ldquoverdades filosoacuteficasrdquo Como fideiacutesta Montaigne pensa que a verdade em religiatildeo se

baseia em uacuteltima instacircncia na feacute e natildeo no raciociacutenio ou na demonstraccedilatildeo Pretende-se

2 Les Essais II 12 p 541

7

compreender neste ponto com faz Montaigne a transiccedilatildeo da criacutetica teoloacutegica agrave criacutetica do

conhecimento em geral

Na mesma linha de compreensatildeo dos limites da razatildeo seraacute importante

aprofundar num terceiro momento a criacutetica da ciecircncia desenvolvida por Montaigne na

ldquoApologierdquo Montaigne quer derrubar a tola vaidade e sacudir viva e corajosamente os

fundamentos ridiacuteculos como ele mesmo diz sobre os quais se constroem as falsas

ideias produzidas pela ciecircncia

Encontramos tambeacutem nesta parte um nuacutemero significativo de citaccedilotildees de

filoacutesofos antigos que Montaigne referencia para justificar a sua criacutetica radical agrave ciecircncia

Para ele os mais famosos filoacutesofos representantes do saber humano natildeo conseguiram

dar as verdadeiras respostas agraves questotildees fundamentais do ser humano Quais satildeo as

verdades as certezas sobre o homem e sobre Deus que esses saacutebios filoacutesofos nos

legaram

Em quarto e uacuteltimo lugar seraacute importante considerar de que modo Montaigne

relaciona a razatildeo humana e a moral Naturalmente natildeo seraacute possiacutevel considerar

detidamente o tema da moral na ldquoApologierdquo trata-se apenas de procurar perceber por

que razatildeo o autor ldquodecretardquo a impossibilidade de fundamentar na razatildeo um conjunto de

regras normas e leis que dizem respeito agrave vida praacutetica de qualquer grupo humano

Procurar-se-aacute reconstituir os vaacuterios argumentos de Montaigne que justificam a sua

tomada de posiccedilatildeo relativista no acircmbito da moral

8

1 A ideia do homem na ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo

Quando nos colocamos diante do desafio de estudar os Essais de Michel de

Montaigne uma questatildeo que importa perceber melhor eacute o periacuteodo no qual o autor

escreveu a sua obra Mais especificamente estudar o humanismo renascentista tendo

em vista que o autor dos Essais eacute considerado como um pensador deste periacuteodo

Abordaremos no entanto apenas alguns aspectos importantes daquela eacutepoca

Montaigne viveu num periacuteodo em que emergia uma nova visatildeo do mundo em

que o homem passou a ser o centro das atenccedilotildees em todos os aspectos O geocentrismo

medieval que centrava suas atenccedilotildees na relaccedilatildeo com Deus foi substituiacutedo pela

glorificaccedilatildeo do humano As pessoas interessadas nesta ruptura com os ideais medievais

buscavam inspiraccedilatildeo nas obras greco-romanas para representarem o seu proacuteprio mundo

O humanismo renascentista concebe-se como um movimento intelectual de

valorizaccedilatildeo da antiguidade claacutessica Natildeo se tratava poreacutem apenas de copiar as

realizaccedilotildees do classicismo greco-romano Este movimento representou algo que pode

ser considerado como uma ldquoglorificaccedilatildeo do homemrdquo agora colocado no centro de todas

as indagaccedilotildees e preocupaccedilotildees consistia em sentido amplo numa tomada de posiccedilatildeo

antropocecircntrica em reacccedilatildeo ao teocentrismo que imperava na Idade Meacutedia

Os humanistas deixaram de aceitar os valores e maneiras de ser e viver da Idade

Meacutedia Por conseguinte o interesse pela antiguidade experimenta-se como um meio

para atingir um fim Os humanistas viam na antiguidade

ldquo[hellip] aquilo que correspondia aos desejos que sentiam [hellip] Pretendiam encontrar nos antigos o Homem considerado como o ser geral impessoal universal que existe sob a mesma forma em toda parte [hellip] O humanismo eacute uma teacutecnica da vida cotidianardquo3

A produccedilatildeo intelectual deste periacuteodo concebia-se natildeo como um retorno ao

passado mas como uma tentativa de buscar nos claacutessicos greco-romanos uma fonte de

inspiraccedilatildeo O humanismo renascentista aleacutem de representar uma forte reacccedilatildeo a todos

os padrotildees culturais medievais escolaacutesticos tendeu tambeacutem fortemente a contrapor a feacute

e a razatildeo

Na sua globalidade a reflexatildeo dos Essais tem como um dos seus objectivos

principais a caracterizaccedilatildeo do homem Nesta perspectiva Michel de Montaigne se

3 AA VV Histoacuteria das sociedades das sociedades modernas agraves sociedades atuais Rio de Janeiro Ao Livro Teacutecnico 1983 p 70

9

apresenta como um pensador humanista que viveu numa altura em que a visatildeo

antropocecircntrica era dominante No entanto ele procurou superar esta concepccedilatildeo de uma

maneira muito particular A concepccedilatildeo antropoloacutegica claacutessica renascentista enaltecia

radicalmente a ldquodignitas hominisrdquo4 colocando o homem no centro do universo

Montaigne assume uma postura significativamente diferente do espiacuterito humanista

renascentista despreza o tema da dignitas hominis e dedica-se agrave investigaccedilatildeo das coisas

concretas da vida

O humanismo de Montaigne ao contraacuterio do humanismo dominante alicerccedila-se

na ldquomiseria hominisrdquo5 Parte de plena consciecircncia dos limites da razatildeo humana no

sentido de que as suas faculdades natildeo tecircm condiccedilotildees para transcender estes mesmos

limites A razatildeo o grande orgulho do homem eacute concebida como uma estrateacutegia de

racionalizaccedilatildeo dos vaacuterios elementos da vida (costumes crenccedilas etc) que procura

transformar atribuindo-lhe uma verdade que natildeo consegue transcender a contingecircncia

Potildee-se assim em destaque ateacute que ponto a posiccedilatildeo de Montaigne contrasta com a visatildeo

de ldquodignitas hominisrdquo acima referida a mais comummente assumida na sua eacutepoca Para

ele o homem soacute pode ser o que eacute e imaginar de acordo com a sua medida

ldquo[C] Tout contentement des mortels est mortel [A] La reconnoissance de nos parens de nos enfants et de nos amis si elle nous peut toucher et chatouiller en lrsquoautre monde si nous tenons encore agrave un tel plaisir nous sommes dans les commoditez terrestres et finies Nous ne pouvons dignement concevoir la grandeur de ces hautes et divines promesses si nous les pouvons aucunement concevoir pour dignement les imaginer il

4 Para ilustrar as principais caracteriacutesticas desta concepccedilatildeo vale a pena citar um texto muito conhecido de um dos maiores representantes do humanismo renascentista Pico della Mirandola O texto em causa pode ser considerado como uma espeacutecie de manifesto do pensamento humanista renascentista em geral Pico exalta o homem entre todos os seres da natureza e dos ceacuteus como um ser potencialmente capaz de auto-criar-se de auto-projectar-se e de modelar-se a si mesmo com liberdade Pico ldquocoloca na boca de Deusrdquo algumas palavras endereccediladas imaginativamente ao homem receacutem-criado (Adatildeo) ldquo[hellip] Medium te munde posui ut circumspiceres inde commodius quicquid est in mundo Nec te caelestem neque terrenum neque mortalem neque immortalem fecimus ut tui ipsius quasi arbitrarius honorarius que plastes et fictor in quam malueris tute formam effingas Poteris in inferiora quae sunt bruta degenerare poteris in superiora quae sunt divina ex tui animi sententia regenerarirdquo (Coloquei-te no meio do mundo para que daiacute possas olhar melhor tudo o que haacute no mundo Natildeo te fizemos celeste nem terreno nem mortal nem imortal a fim de que tu aacuterbitro e soberano artiacutefice de ti mesmo te plasmasses e te informasses na forma que tivesses seguramente escolhido Poderaacutes degenerar ateacute aos seres que satildeo as bestas poderaacutes regenerar-te ateacute agraves realidades superiores que satildeo divinas por decisatildeo do teu acircnimo) In Pico de la Mirandola Giovanni Oratio de Hominis Dignitate Ediccedilatildeo bilingue Traduccedilatildeo e introduccedilatildeo de Maria de Lurdes Sirgado Ganho Lisboa Ediccedilotildees 70 2001 pp 56-57) 5Para uma apresentaccedilatildeo sinteacutetica e clara deste tema pode-se consultar Friedrich Hugo Montaigne Traduzido do alematildeo por Robert Rovini Paris Gallimard 1967 sobretudo as paacuteginas 133-136 Nesta mesma perspectiva na obra de Rui Bertrand Romatildeo A Apologia na balanccedila a reinvenccedilatildeo do pirronismo na Apologia de Raimundo Sabunde de Michel de Montaigne Lisboa Imprensa Nacional Casa da Moeda 2007 haacute uma reflexatildeo que merece ser lida (pp 79-82)

10

faut les imaginer inimaginables indicibles incomprehensibles [C] et parfaictement autres que celles de nostre miserable experiencerdquo6

Constatando esse limite da razatildeo humana Montaigne combate decididamente as

concepccedilotildees da ldquodignitas humanisrdquo que tecircm como escopo transformar o homem no fim

uacuteltimo da natureza Montaigne ao voltar-se para o homem concreto ao rebaixaacute-lo e

tiraacute-lo do seu pedestal na ldquoApologierdquo assume uma atitude ceacuteptica entendida como

uma forma de pensamento capaz de seguir a mudanccedila e de rejeitar ao mesmo tempo a

pretensatildeo do homem de se considerar por via da razatildeo no centro do universo

Cabe entatildeo perguntar seraacute que o homem ocupa realmente um lugar central nos

Essais A resposta a esta questatildeo eacute expressa de maneira bastante niacutetida na proacutepria

obra Friedrich no seu conhecido trabalho sobre Montaigne afirma

ldquo[A] On peut ouvrir les Essais ougrave lrsquoon veut toujours ils traitent de lrsquohommerdquo7

Haacute muitos outros temas desenvolvidos nos Essais Basta lanccedilar um raacutepido olhar

sobre os tiacutetulos dos vaacuterios ensaios que compotildeem os trecircs livros da obra para constatar a

quantidade enorme de assuntos tratados por Montaigne

Na sua busca incessante de resposta agrave questatildeo central antes referida merece ser

destacado o contacto de Montaigne com a obra de Sebond Theologia Naturalis que seraacute

a base da ldquoApologierdquo Entre muitas outras questotildees desenvolvidas nesta obra o teoacutelogo

catalatildeo tem como objectivo importante responder agrave questatildeo o que eacute o homem Citando

o proacuteprio Sebond Rui Bertrand Romatildeo afirma que haacute uma ideia baacutesica de ordem

hieraacuterquica observada na scala naturale em todos os seus 4 degraus

ldquoNo inferior estatildeo as coisas apenas providas de ser as coisas minerais no segundo as que tecircm ser e vida as vegetais no terceiro as animais em que ao ser e agrave vida se juntam os sentidos no uacuteltimo encontra-se a criatura humana acima da qual natildeo haacute na natureza nenhum outro ser pois o homem possui as qualidades de todas as demais criaturas simultaneamente e em conjunto tendo aleacutem delas a razatildeo e o livre-arbiacutetrio [hellip]rdquo8

Continua o autor mais adiante

ldquo[hellip] A caracteriacutestica dominante da teologia de Sebond consiste precisamente no lugar privilegiado que nela ocupa a referecircncia do homem natildeo apenas como objecto de conhecimento mas como meio da

6 Les Essais II 12 p518 7 Friedrich op cit p 105 8 Romatildeo Rui Bertrand op cit p 90

11

obtenccedilatildeo deste A reflexatildeo antropoloacutegica polariza o seu pensamento filosoacutefico e lhe contamina o sistema teoloacutegicordquo9

Eacute importante destacar aqui uma ideia desenvolvida por Ernst Cassirer na sua

obra Ensaio sobre o Homem10 Segundo este autor a questatildeo acerca do homem no

periacuteodo renascentista depara-se com a descoberta de um novo instrumento de

pensamento entra em cena o espiacuterito cientiacutefico no sentido moderno da palavra O que

agora se procura eacute uma teoria geral do homem baseada em observaccedilotildees empiacutericas e em

princiacutepios loacutegicos gerais A nova cosmologia o sistema heliocecircntrico copernicano

passa a ser a uacutenica base satilde e cientiacutefica para uma nova antropologia Nem a metafiacutesica

claacutessica nem a religiatildeo (com a sua estrutura teoacuterica fundada na teologia medieval)

estavam preparadas para esta tarefa lembra o autor Estas duas cosmologias concebem

o universo como uma ordem hieraacuterquica em que o homem ocupa o lugar mais alto A

pretensatildeo humana de ser o centro do universo perdeu o seu fundamento Cassirer afirma

ainda que o sistema de Copeacuternico se tornou um dos mais fortes instrumentos do

cepticismo filosoacutefico que se desenvolveu no seacuteculo XVI

Montaigne sendo um pensador livre que conseguiu libertar-se da concepccedilatildeo

antropoloacutegica medieval e renascentista tambeacutem natildeo necessitou de recorrer agraves ideias

cientiacuteficas vigentes na altura da redacccedilatildeo dos Essais Isto natildeo significa que tenha

ignorado por completo a teoria heliocecircntrica de Copeacuternico mas sim que como escreve

Conche

ldquoIl nrsquoa pas eu besoin de Copernic pour trouver ridicule la preacutetension de lrsquohomme de se faire centre du cosmos11

Antes de iniciar o seu longo relato (de mais ou menos uma meia centena de

paacuteginas) no qual compara os homens aos animais Montaigne faz uma afirmaccedilatildeo de

capital importacircncia que serve como uma espeacutecie de conclusatildeo antecipada daquilo que

afirma negativamente sobre o homem e sua relaccedilatildeo com o universo

ldquo[A] La presomption est nostre maladie naturelle et originelle La plus calamiteuse et fraile de toutes les creatures crsquoest lrsquohomme et quant et quant la plus orgueilleuse Elle se sent et se void logeacutee icy parmy la bourbe et le fient du monde attacheacutee et cloueacutee agrave la pire plus morte et croupie parti de lrsquounivers au dernier estage du logis et le plus esloigneacute de la voute celeste avec les animaux de la pire condition des trois (Les aeacuteriens les aquatiques et les terrestres) et se va plantant par

9 Idem p 113 10 Cassirer Ernst An essay on man Traduccedilatildeo portuguesa de Carlos Branco Ensaio sobre o homem Lisboa Guimaratildees Editores 1995 p24 11 Conche Marcel Montaigne et la philosophie Paris Puf 1996 p 7

12

imagination au dessus du cercle de la Lune et ramenant le ciel soubs ses pieds Crsquoest par la vaniteacute de cette mesme imagination qursquoil srsquoegale agrave Dieu qursquoil srsquoattribue les conditions divines qursquoil se trie soy mesme et separe de la presse des autres creatures taille les parts aux animaux ses confreres et compaignons et leur distribue telle portion de facultez et de forces que bon luy semble Comment cognoit il par lrsquoeffort de son intelligence les branles internes et secrets des animaux par quelle comparaison drsquoeux agrave nous conclue il la bestise qursquoil leur attribue [C] Quand je me joueuml agrave ma chatte qui sccedilait si elle passe son temps de moy plus que je ne fay drsquoellerdquo12

O homem quer ser senhor de todo o universo A sua atitude de querer ser uma

excepccedilatildeo na natureza natildeo passa de uma atitude ilusoacuteria O homem eacute segundo

Montaigne uma criatura como as outras que pode ser diferenciada natildeo pela capacidade

de raciocinar mas apenas pela presunccedilatildeo de querer destacar-se orgulhosamente

tornando-se ldquoo todo-poderosordquo face agraves outras criaturas Esta sua pretensatildeo de querer ser

a uacutenica criatura que pode conhecer e dominar o universo eacute radicalmente contestada por

Montaigne na ldquoApologierdquo Eacute com muita clarividecircncia que Conche reflectindo sobre

este tema afirma

ldquoOn voit pourquoi Montaigne srsquoefforce de retrouver chez lrsquoanimal ldquointelligencerdquo ldquodiscreacutetionrdquoldquojugementrdquoldquoratiocinationrdquo capaciteacute de ldquoconsulterrdquo de ldquoconcluirrdquo ldquoscience et prudencerdquo 13

Que tipo de competecircncia nossa natildeo reconhecemos nos actos dos animais Esta

questatildeo fundamental leva Montaigne a apresentar os seus relatos anedoacuteticos14 O

interesse da sua apologia dos animais eacute ldquo[hellip] paradoxalment lrsquohomme Montaigne

recherche lrsquohomme dans lrsquoanimal [hellip] crsquoest pour lutter contre lrsquoanthropocentrismerdquo15

Montaigne inicia a sua exposiccedilatildeo perguntando-se

ldquo[A] Est-il police regleacutee avec plus drsquoordre diversifieacutee agrave plus de charges et drsquooffices et plus constamment entretenueuml que celle des mouches agrave mielrdquo16

E faz questatildeo tambeacutem de descrever o engenho das andorinhas ao construiacuterem os

seus alojamentos e das aranhas ao confeccionarem as suas teias Diante destas obras

destes pequeninos animais Montaigne observa

12 Les Essais II 12 p 452 13 Conche Marcel Montaigne et la philosophie Paris Puf 1996 p 9 14 ldquoFidegravele aux proceacutedeacutes de compilation de son temps Montaigne accumule les exemples emprunteacutes agrave Pline agrave Plutarque agrave Arrien agrave Aulu-Gelle agrave Lucregravece agrave Virgile agrave Sextus Epiricusrdquo (cf Weiler Maurice Pour connaitre la penseacutee de Montaigne Bordas 1948 p 38) 15 Giocanti Sylvia Montaigne et les becirctes la becirctise et lrsquoanimal dans Les Essais de Montaigne Universiteacute de Toulouse 2011 p 1 16 Les Essais II 12 pp 454-455

13

ldquo[A] Nous reconnoissons assez en la pluspart de leurs ouvrages combien les animaux ont drsquoexcellence (supeacuterioriteacute) au dessus de nous et combien nostre art est foible agrave les imiterrdquo17

Quanto agrave capacidade de comunicaccedilatildeo Montaigne afirma que os animais

possuem este atributo Falamos com os catildees18 e eles respondem-nos Eacute evidente que

utilizamos uma outra linguagem para conversarmos com eles Montaigne observa que

tambeacutem entre noacutes humanos haacute diferenccedilas de linguagem de acordo com a diferenccedila de

regiotildees Estas diferenccedilas tambeacutem se encontram nos animais da mesma espeacutecie19

Segundo o nosso autor haacute certamente uma diferenccedila de ordem e de grau entre os

homens e os animais contudo ldquo[A] crsquoest soubs le visage drsquoune mesme naturerdquo20 Ao

constatar a peculiaridade do homem em face das outras criaturas Montaigne destaca o

facto de que o homem eacute detentor da liberdade de imaginaccedilatildeo No entanto

ldquo[A] ce desresglement de penseacutees luy representant ce qui est ce qui nrsquoest pas et ce qursquoil veut le faux et le veritable crsquoest un advantage qui luy est bien cher vendu et duquel il a bien peu agrave se glorifier car de lagrave naist la souce principale des maux qui le pressent pecheacute maladie irresolution (inconstance) trouble desespoirrdquo 21

Citando Lucreacutecio22 Montaigne deixa transparecer que o homem se prejudica a si

mesmo porque natildeo se manteacutem dentro dos limites da organizaccedilatildeo da natureza que se

manifesta de uma maneira inteligiacutevel e agraves vezes ateacute hostil submetendo o homem agrave

necessidade de leis que natildeo lhe satildeo suficientemente claras23

17 Les Essais II 12 p455 18 Les Essais II 12 p 458 19 Les Essais II 12 pp 458-459 20 Les Essais II 12 p459 21 Les Essais II 12 p 460 22ldquo[B] ldquores quaeque suo ritu procedit et ommes Foedere naturae certo discrimina servantrdquo (Chaque chose se deacuteveloppe agrave sa maniegravere et toutes conservent les diffeacuterences eacutetablies par lrsquoordre immuable de la nature) Cf Les Essais II 12 p 459 23 Expressando a sua visatildeo da natureza Montaigne observa que ao considerar que ela nos criou diferentes dos outros animais isto eacute nus sobre a terra nua atados cercados natildeo tendo com que armar-nos cobrir-nos [hellip] somos tentados a chamaacute-la de ldquotregraves injuste maracirctrerdquo Mas isto natildeo eacute assim A nossa organizaccedilatildeo do mundo natildeo eacute tatildeo disforme e desregrada A natureza abraccedilou universalmente todas as suas criaturas e natildeo haacute nenhuma que ela tenha provido plenamente de todos os meios necessaacuterios para a conservaccedilatildeo da existecircncia ldquo[C] crsquoest une mesme nature qui roule son coursrdquo(cf Les Essais II12 p467) Reflectindo sobre o tema da natureza nos Essais Pierre Villey afirma que ela se opotildee essencialmente agrave razatildeo humana e eacute natural tudo o que a razatildeo natildeo contaminou Afirma Villey ldquo[hellip] crsquoest chez les animaux et chez les sauvages qursquoon trouve les traces les moins corrompues de la nature Lrsquoeacutetat de nature dans cette conception radicale crsquoest lrsquoeacutetat de sauvagerie [hellip] Lrsquoadmiration pour les andiens crsquoest la forme paradoxale que prend chez lui de temps agrave autre son principe drsquoimitation de la naturerdquo (In Villey Pierre Les sources et lrsquoeacutevolution des essais de Montaigne - Tome second Paris Librairie Hachete 1908 p228) Isto natildeo quer dizer que devamos imitar os indiacutegenas por exemplo em todos os seus costumes tradiccedilotildees etc

14

Continuando a apologia dos animais Montaigne sugere que concebamos que os

animais natildeo obedecem a instintos de uma forma cega O relato que apresenta da raposa

da Traacutecia24 eacute um dos seus exemplos claacutessicos neste sentido Antes de se arriscar sobre a

aacutegua gelada a raposa aproxima o ouvido do gelo para ouvir de que profundidade sobre

o murmuacuterio da aacutegua a correr em baixo isto eacute ela ldquoraciocinardquo como fariacuteamos noacutes em

idecircnticas circunstacircncias o que faz barulho mexe o que mexe natildeo estaacute gelado o que natildeo

estaacute gelado eacute liacutequido e o liacutequido cede sob o peso Segundo Montaigne atribuir isto

simplesmente a uma vivacidade do sentido da audiccedilatildeo sem raciociacutenio e sem conclusatildeo

eacute uma quimera inconcebiacutevel

Segundo Montaigne natildeo eacute soacute o homem que sabe escolher o que eacute bom e o que

natildeo eacute bom para a sua vida e sobretudo para o socorro nas doenccedilas atraveacutes da ciecircncia e

do conhecimento construiacutedos por arte e por raciociacutenio

ldquo[A] Et quand nous voyons les chevres de Candie si elles ont receu un coup de traict aller entre un million drsquoherbes choisir le dictame pour leur guerison et la tortue quand elle a mangeacute de la vipere chercher incontinent de lrsquooriganum pour se purger et le dragon fourbir et esclairer ses yeux avecques du fenouil les cigouignes se donner elles mesmes des clysteres agrave tout de lrsquoeau de marine [hellip] pourquay ne disons nous de mesmes que crsquoest science et prudencerdquo25

Eacute faacutecil ver aqui quanto Montaigne deseja que o homem reconheccedila que os

animais possuem tambeacutem ciecircncia e sabedoria Em seu entender os animais tambeacutem satildeo

capazes de ser instruiacutedos agrave moda humana

ldquo[A] Les merles les corbeaux les pies les parroquets nous leur aprenons agrave parler [hellip] ils ont un discours au dedans qui les rend ainsi disciplinables et volontaires agrave aprendrerdquo26

Muitos animais aproximam-se da capacidade do homem e isto leva Montaigne a

afirmar

ldquo[A] qursquoil se trouve plus de difference de tel homme agrave tel homme que de tel animal agrave tel hommerdquo27

Podemos encontrar na ldquoApologierdquo muitos outros exemplos em que Montaigne

defende a ideia de que os animais possuem diversas capacidades semelhantes agraves dos

humanos28 Uma vez numerados todos estes atributos dos animais Montaigne afirma

24 Les Essais II 12 p 460 25 Les Essais II 12 pp 462-463 26 Les Essais II 12 p 463 27 Les Essais II 12 p 466

15

ldquo[A] La maniegravere de naistre drsquoengendrer nourrir agir mouvoir vivre et mourir des bestes estant si voisine de la nostre tout ce que nous retranchons de leurs causes motrices et que nous adjoustons agrave nostre condition au dessus de la leur cela ne peut aucunement partir du discours de nostre raisonrdquo29

Pierre Villey ao reflectir sobre estas comparaccedilotildees suscita uma questatildeo

relevante que natildeo eacute possiacutevel ignorar

ldquo[hellip] quand il exalte lrsquointeligence des animaux on peut se demander ce qursquoil en pense au justerdquo30

Natildeo querendo entrar na discussatildeo deste assunto - ateacute porque o proacuteprio

Montaigne natildeo o fez - eacute importante notar que se estes relatos montaigneanos fossem

tomados agrave letra natildeo nos faltariam motivos de troccedila Poderiacuteamos duvidar de muitas

afirmaccedilotildees acerca dos animais apresentadas por ele Fazendo um esforccedilo por deixar agrave

margem os exageros o humor e a liberdade literaacuteria do autor ndash que tecircm como objectivo

rebaixar o homem recolocando-o entre os animais e mostrando-lhe que a sua razatildeo

grande motivo de orgulho natildeo lhe garante um lugar no topo da piracircmide das criaturas ndash

o que importa destacar eacute que Montaigne pretende acentuar uma grande semelhanccedila

entre os homens e os animais

ldquo[A] Nous ne sommes ny au dessus ny au dessoubs du reste tout ce qui est sous le ciel dit le sage court une loy et fortune pareille [B] Indupedita suis fatalibus omnia vinclis (Toutes les choses sont enchaineacutes par les liens de leur propre destineacutee)rdquo31

28 Vejamos resumidamente outros atributos dos animais destacados pelo autor os catildees que servem aos cegos tanto nos campos como nas cidades catildees que representavam papeacuteis no teatro (p463) bois que serviam nos jardins reais de Susa (p464) nos espectaacuteculos de Roma viam-se elefantes treinados em movimentar-se e em danccedilar (p465) a pega que imitava com a voz tudo o que ouvia (p464) os elefantes que tecircm alguma participaccedilatildeo religiosa (p468) formigas que tecircm um jeito muito especial de comunicaccedilatildeo muacutetua (p469) o ouriccedilo que prevecirc a direcccedilatildeo do vento (p469) o camaleatildeo e o polvo que mudam de cor conforme a ocasiatildeo (p469) o voo dos paacutessaros que eacute resultado natildeo apenas da organizaccedilatildeo natural mas tambeacutem do entendimento consentimento e raciociacutenio (p469) os animais que servem seus donos sabem amaacute-los defendecirc-los (p461) o catildeo o cavalo sabem prezar amizade (p471) os animais satildeo muito mais regrados do que noacutes e se contecircm com muito mais moderaccedilatildeo nos limites que a natureza nos prescreveu (p472) os animais natildeo promovem a guerra (p473) o catildeo eacute mais fiel do que o homem (p476-7) quanto agrave gratidatildeo os animais tecircm esta capacidade (p477-8) os atuns tecircm conhecimentos geomeacutetricos astronoacutemicos e aritmeacuteticos (p479-480) o elefante tem a capacidade de arrependimento e reconhecimento dos erros (p480) o tigre tem capacidade de ser clemente (p480) enfim Montaigne atribui todas estas caracteriacutesticas e outras mais aos animais mostrando que elas satildeo erradamente consideradas como unicamente posse dos humanos 29 Les Essais II 12 p 470 30 Villey op cit p 186 31 Les Essais II 12 p 459

16

Desta perspectiva podemos compreender melhor a razatildeo do ldquodestronamentordquo

deste ser ldquotodo-poderosordquo que eacute o homem levado a cabo por Montaigne32

Depois de ter destacado a ideia de que o homem se assemelha aos animais e

vice-versa Montaigne sustenta que a forma corporal do homem eacute o que constitui a sua

peculiaridade face aos animais Eacute ela que ldquodefinerdquo a identidade do homem

ldquo[B] Ce nrsquoest donc pas par la raison par le discours et par lrsquoame que nous excellons sur les bestes crsquoest par nostre beauteacute nostre beau teint et nostre belle disposition de membres pour laquelle il nous faut mettre nostre intelligence nostre prudence et tout le reste agrave lrsquoabandonrdquo33

A sugestatildeo de Montaigne eacute que o homem natildeo pode ser pensado sem o seu corpo

elemento essencial de sua condiccedilatildeo humana O homem natildeo pode continuar a ser

concebido apenas como ser racional Montaigne potildee em causa a claacutessica concepccedilatildeo de

que soacute o homem eacute constituiacutedo de racionalidade O seu objectivo natildeo eacute encontrar uma

nova definiccedilatildeo do homem natildeo deseja decretar a inferioridade do homem nem tampouco

a sua superioridade face aos animais Natildeo tem em vista promover uma competiccedilatildeo

ridiacutecula entre os seres da natureza Montaigne sente-se incapaz de dar qualquer

definiccedilatildeo com o auxiacutelio da razatildeo humana Ignora qual eacute a essecircncia dos animais natildeo os

conhece Da mesma forma podemos dizer que agrave luz da ldquoApologierdquo Montaigne natildeo

consegue definir o homem Natildeo eacute possiacutevel elaborar juiacutezos constantes e uniformes nem

sobre o homem nem a partir dele

Dito de outra forma o ldquocepticismo da razatildeordquo que Montaigne assume

conscientemente visa rejeitar a pretensatildeo do homem de se considerar por via da razatildeo

no centro do universo

Montaigne com os seus ensaios quer ir directo agraves coisas e aos homens Eacute claro

que teve pouco contacto com o chamado movimento cientiacutefico do seu tempo Longe de

32 Friedrich ao analisar a questatildeo do lugar que segundo Montaigne corresponde ao homem diz ldquoA la question de savoir quelle place occupe lrsquohomme dans la totaliteacute du monde existent Montaigne ne donnera jamais la reacuteponse plotinienne selon laquelle il serait dans la chaicircne des ecirctres eacutemaneacutes un dernier maillon reacutetablissant la communication avec la source de lrsquoeacutemanation lrsquoUm primordial Ni la reacuteponse chreacutetienne selon laquelle lrsquohomme constituerait le couronnement terrestre de la creacuteation tout le creacutee lui eacutetant subordonneacute et Dieu eacutetant alleacute pour lui jusqursquoagrave se reacutesoudre agrave intervenir dans lrsquohistoire du salut Lrsquohomme de Montaigne est plutocirct un point dans lrsquounivers sans espoir que le destin ni la diviniteacute srsquointeacuteresse jamais agrave lui Il partage cette insignifiance de point avec le milieu dans lequel il vit patrie Eacutetat continent terre animaux et plantes Il nrsquoest plus un centre il est plongeacute dans la multitude de tout ce qui existe ignorant ce qui lrsquoen distingue et srsquoy sentant cheacutetif - bien preacuteserveacute pourtant au coeur de son insignifiance de son ignorance et deacutechargeacute de tout embarras Il y a au fond de cette penseacutee des ideacutees de Lucregravece Montaigne les transforme pour leur faire exprimer sa propre conscience de la vie dont il preacutecise les grandes lignes en la deacutelimitant par rapport aux affirmations posant la digniteacute de la nature humaine (cf op cit p131) 33 Les Essais II 12 p 486

17

toda a construccedilatildeo teoacuterica esforccedila-se por encontrar nele mesmo e nos outros o homem

tal como eacute sem o falso semblante que lhe acrescentam as pretensiosas doutrinas que o

definem pela sua relaccedilatildeo com o universo e com Deus

18

2 A criacutetica agrave razatildeo humana e a questatildeo da religiatildeo

Segundo Montaigne as pessoas que se gabam do conhecimento estatildeo sempre a

tentar explicar quais satildeo os atributos de Deus atraveacutes de complicados conceitos e

demonstraccedilotildees ininteligiacuteveis Em seu entender Deus e as verdades da religiatildeo satildeo

nitidamente questotildees de feacute e natildeo noccedilotildees filosoacuteficas Que isto eacute assim prova-o o facto de

que estas noccedilotildees satildeo sempre muito diversas e originam muita discoacuterdia entre os

inuacutemeros autores que delas se ocupam Uma coisa eacute Deus e outra coisa totalmente

diferente eacute o que pensam os homens a respeito de Deus

ldquo[A] Il ma tousjours sembleacute quagrave un homme Chrestien cette sorte de parler est pleine dindiscretion et dirreverence Dieu ne peut mourir Dieu ne se peut desdire Dieu ne peut faire cecy ou cela Je ne trouve pas bon denfermer ainsi la puissance divine soubs les loix de nostre parolle Et lapparence qui soffre agrave nous en ces propositions il la faudroit representer plus reveremment et plus religieusementrdquo34

ldquo[A] Dieu ne peut faire les mortels immortels ny revivre les trespassez ny que celuy qui a vescu nait point vescu celuy qui a eu des honneurs ne les ait point eus nayant autre droit sur le passeacute que de loubliance [hellip] Voylagrave ce quil dict et quun Chrestien devroit eviter de passer par sa bouche Lagrave ougrave au rebours il semble que les hommes recherchent cette fole fierteacute de langage pour ramener Dieu agrave leur mesure [hellip]nostre parole le dict mais nostre intelligence ne lrsquoapprehende pointrdquo35

Para compreender o lugar e o valor da razatildeo na ldquoApologierdquo eacute necessaacuterio

investigar os motivos que levaram o autor a tecer uma criacutetica tatildeo contundente da razatildeo

humana aprofundando em concreto as relaccedilotildees que esta criacutetica tem com a sua anaacutelise

da religiatildeo e com o poder de Deus expresso em todo o desenvolvimento do texto Para

esta abordagem teremos como base o preacircmbulo da ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo36

A ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo eacute o mais longo capiacutetulo da obra Les Essais

Neste texto Montaigne propotildee-se apresentar a ldquodefesa de um teoacutelogordquo do seacuteculo XVI

Montaigne comeccedila por caracterizar a situaccedilatildeo histoacuterica na qual a obra de

Sebond chegou agraves matildeos de seu pai por intermeacutedio do humanista Pierre Brunel (1499-

1546)37 Segundo Montaigne trata-se de um livro adequado para a eacutepoca Isto porque as

34 Les Essais II 12 p 527 35 Les Essais II 12 p 528 36 Cf Les Essais II 12 pp 438-449 Montaigne sobretudo nestas paacuteginas iniciais opotildee a religiatildeo agrave razatildeo humana demonstrando por um lado a incapacidade e os limites desta faculdade que eacute motivo de orgulho do homem e por outro esse ldquoinstrumentordquo de conhecimento ligado agrave graccedila divina que eacute a feacute 37 Montaigne admirava muito este humanista que gozava de grande reputaccedilatildeo na sua eacutepoca por causa de seu saber (Les Essais II 12 p 439)

19

novidades de Lutero comeccedilavam a estar em voga e a abalar em muitos lugares a antiga

crenccedila cristatilde38 Para Montaigne que era um pensador catoacutelico conservador a Reforma

Protestante era vista como algo perigoso para a religiatildeo estabelecida Globalmente natildeo

concordava com as contestaccedilotildees provocadas pelo espiacuterito da Reforma sobretudo porque

poderiam levar os homens agrave praacutetica do ateiacutesmo especialmente os menos doutos

Uma leitura do texto potildee de imediato em evidecircncia em que medida Montaigne se

distancia de Sebond em termos argumentativos Parafraseando Villey a defesa de

Sebond seraacute rapidamente esquecida39 Montaigne observa que surgiram entretanto

algumas objecccedilotildees ao livro de Sebond e anuncia no iniacutecio do ensaio o seu propoacutesito de

refutaacute-las Montaigne deseja defender Sebond destes dois tipos de adversaacuterios por um

lado os que consideram que os cristatildeos erram ao querer apoiar com razotildees humanas a

sua crenccedila que soacute se concebe por feacute e por uma inspiraccedilatildeo particular da graccedila divina

Estes satildeo os que subestimam a importacircncia da razatildeo Satildeo considerados fideiacutestas

pessoas que pensam que a verdade em religiatildeo estaacute em uacuteltima instacircncia baseada na feacute

em vez de no raciociacutenio ou na evidecircncia Por outro lado estatildeo os que dizem que os

argumentos de Sebond satildeo fracos e inadequados para demonstrar o que pretendem e se

dispotildeem a atacaacute-los facilmente Estes satildeo os que subestimam a importacircncia da feacute

Consideremos em primeiro lugar a atitude dos primeiros opositores Natildeo seria

correcto querer apoiar com razotildees humanas a crenccedila ldquo[A] qui ne se conccediloit que par foy

et par une inspiration particuliere de la grace divinerdquo40 Estes primeiros opositores de

Sebond satildeo os partidaacuterios da posiccedilatildeo ortodoxa catoacutelica Montaigne lembra que estes

teoacutelogos catoacutelicos satildeo movidos sobretudo por uma visatildeo piedosa

ldquo[A] En cette objection il semble quil y ait quelque zele de pieteacute et agrave cette cause nous faut-il avec autant plus de douceur et de respect essayer de satisfaire agrave ceux qui la mettent en avantrdquo41

Em face destas primeiras criacuteticas agrave obra do teoacutelogo catalatildeo Montaigne natildeo se

inibe de expressar as suas proacuteprias tomadas de posiccedilatildeo

ldquo[A]Toutefois je juge ainsi quagrave une chose si divine et si haultaine et surpassant de si loing lhumaine intelligence comme est cette veriteacute de laquelle il a pleu agrave la bonteacute de Dieu nous esclairer il est bien besoin quil nous preste encore son secours dune faveur extraordinaire et privilegeacutee pour la pouvoir concevoir et loger en nous et ne croy pas que

38 Cf Les Essais II 12 p 439 39 Villey op cit p 183 40 Les Essais II 12 p 440 41 Les Essais II 12 p 440

20

les moyens purement humains en soyent aucunement capables et sils lestoient tant dames rares et excellentes et si abondamment garnies de forces naturelles eacutes siecles anciens neussent pas failly par leur discours darriver agrave cette connoissance Cest la foy seule qui embrasse vivement et certainement les hauts mysteres de nostre Religionrdquo42

Ao abordar esta questatildeo Montaigne reconhece que natildeo estaacute capacitado para

levar a cabo tal empreendimento Esta seria uma tarefa mais adequada para um homem

versado em teologia assunto de que ele pessoalmente diz nada saber43 Mesmo assim

expressa uma vez mais a sua criacutetica radical aos que utilizam a razatildeo para apresentarem

argumentos apologeacuteticos em defesa das verdades sobre Deus e sobre a religiatildeo

Montaigne eacute um catoacutelico44 Sobre isto os Essais natildeo deixam duacutevida Natildeo eacute este o

momento de entrar na discussatildeo acerca de como viveu ou deixou de viver a sua

religiosidade O importante eacute que como catoacutelico aceita que haacute um Deus uacutenico criador

do ceacuteu e da terra Em vaacuterios momentos tanto na ldquoApologierdquo como em outros ensaios

Montaigne daacute a entender que a verdade estaacute em Deus e natildeo eacute propriedade dos homens

filoacutesofos ou teoacutelogos Noutras palavras a verdade eacute revelada e o homem sem o auxiacutelio

de Deus nunca a encontraria A razatildeo humana natildeo tem condiccedilotildees para elaborar

raciociacutenios crediacuteveis sobre estas verdades reveladas Para sustentar a tese que a razatildeo eacute

impotente neste domiacutenio Montaigne dedica um nuacutemero importante de paacuteginas em toda

a sua obra a desenvolver a ideia de que alguns filoacutesofos antigos reflectiram muito sobre

a possibilidade do conhecimento sobre Deus e fizeram afirmaccedilotildees que satildeo

absolutamente carentes de sentido Isto natildeo passou de uma ldquo[C] tintamarre de tant de

42 Les Essais II 12 p 440-441 43 ldquoCe seroit mieux la charge drsquoun homme verseacute en Theologie que de moy qui nrsquoy sccedilay rienrdquo(Les Essais II 12 p 440) 44 Montaigne declara-se catoacutelico foi um catoacutelico que durante toda a sua vida procurou cumprir os ritos lituacutergicos convencionais da Igreja Catoacutelica A sua posiccedilatildeo ceacuteptica parece enquadrar-se no fideiacutesmo como veremos Mas haacute que salientar que em algumas questotildees morais independentes das suas praacuteticas rituais ou seja na sua vida praacutetica Montaigne natildeo tem muito em consideraccedilatildeo a lista de exigecircncias eacuteticas do catolicismo romano Parece que falta agrave concepccedilatildeo religiosa de Montaigne algum sentimento religioso limita-se a uma espeacutecie de praacutetica do ritualismo exigido pela Igreja Catoacutelica Ele seria catoacutelico por uma questatildeo de conveniecircncia intelectual A sua praacutetica lituacutergica ritualiacutestica natildeo exerce grande influecircncia sobre o seu pensamento filosoacutefico Ele eacute um pensador completamente livre face agrave doutrina da Igreja E isto distingue-o substancialmente dos teoacutelogos que integram o corpo doutrinal na Igreja Montaigne pensava e exprimia estes pensamentos com plena liberdade Manifesta aleacutem disso alguma confianccedila na Igreja na religiatildeo na tradiccedilatildeo e nos costumes que contribuiacuteram para a sua formaccedilatildeo e que satildeo de alguma maneira parte constitutiva de sua identidade E na realidade quis apostar naquilo com o qual estava mais familiarizado ldquo[B] Nous sommes Chrestiens agrave mesme titre que nous sommes ou Perigordins ou Alemansrdquo(Les Essais II 12 p 445) No entanto quando comeccedilamos a estabelecer um maior contacto com os Essais percebemos que Montaigne natildeo eacute um catoacutelico que confie cegamente na doutrina da Igreja Muito pelo contraacuterio eacute extremamente consciente dos problemas do catolicismo e da sua doutrina bem como dos costumes em geral E acima de tudo tem perfeita consciecircncia de que a sua confianccedila eacute uma crenccedila e natildeo uma certeza filosoacutefica

21

cervelles philosophiquesrdquo45 Segundo Montaigne de todas as ideias humanas e antigas

no tocante agrave religiatildeo

ldquo[A]celle lagrave me semble avoir eu plus de vray-semblance et plus dexcuse qui reconnoissoit Dieu comme une puissance incomprehensible origine et conservatrice de toutes choses toute bonteacute toute perfection recevant et prenant en bonne part lhonneur et la reverence que les humains luy rendoient soubs quelque visage sous quelque nom et en quelque maniere que ce futrdquo46

Trata-se de belas afirmaccedilotildees que querem expressar quais satildeo os principais

atributos de Deus Satildeo uma tentativa racional que tem como meta explicar quem eacute Deus

Ao comentar esta passagem da ldquoApologierdquo Conche pergunta-se que significam estas

palavras E baseado na leitura que faz de Montaingne afirma que aplicadas a Deus

natildeo podemos saber o que realmente significam47

Montaigne questiona o facto de muitos homens pretenderem edificar um

discurso baseado na razatildeo para justificar as verdades reveladas as quais segundo ele soacute

poderatildeo encontrar os verdadeiros alicerces na feacute Vejamos como Conche

sinteticamente analisa esta questatildeo a partir da ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo

ldquoNous croyons penser Dieu En reacutealiteacute nous ne faisons que projeter hors de nous des qualiteacutes humaines que nos avons [hellip] Lrsquohomme ne peut concevoir Dieu qursquoagrave partir de lui-mecircme Or il y a entre lrsquohomme et Dieu un abicircme qualitatif Le Dieu dont on parle et duquel on raisonne nrsquoest qursquoun produit de lrsquoanthropomorphisme La raison loin de nous eacutelever agrave Dieu le ramegravene agrave notre mesure [hellip] En tout cela Dieu est encore conccedilu par analogie avec lrsquohomme et la puissance divine enfermeacutee ldquosous les lois de notre parolerdquo Assujettir Dieu agrave nos principes rationnels crsquoest lrsquoassujettir agrave la raison humaine Lrsquohomme ne peut penser au-delagrave de lui mecircme Du vrai Dieu on ne peut rien penser ni rien dire Il nrsquoy a pas drsquoideacutee de Dieu [hellip] La notion de Dieu nrsquoest pas une notion philosophiquerdquo48

Embora critique estes opositores de Sebond Montaigne afirma ao mesmo tempo

que o empenho em justificar a feacute pela razatildeo eacute uma iniciativa louvaacutevel Chega mesmo a

afirmar que esta tarefa poderia ser considerada como o uso mais honroso que o homem

cristatildeo poderia dar agrave razatildeo Por outras palavras eacute uma atitude nobre a que leva o cristatildeo

a querer embelezar perceber e ampliar a verdade de sua crenccedila por meio de todos os

estudos e reflexotildees Montaigne observa entretanto que eacute preciso fazer acompanhar a

45 Les Essais II 12 p 516 46 Les Essais II 12 p 513 47 Cf Conche Marcel Montaigne ou la conscience heureuse Paris Puf 2009 p 55 48 Idem pp 55-56

22

nossa feacute de toda a razatildeo que haacute em noacutes mas sempre com a ressalva de natildeo pensar que

seja de noacutes que ela depende nem que os nossos esforccedilos e argumentos possam atingir

uma tatildeo ldquo[A] supernaturelle et divine sciencerdquo49 O autor dos Essais insistiraacute muito

neste aspecto

ldquo[A] Si elle nentre chez nous par une infusion extraordinaire si elle y entre non seulement par discours mais encore par moyens humains elle ny est pas en sa digniteacute ny en sa splendeur Et certes je crain pourtant que nous ne la jouyssions que par cette voye Si nous tenions agrave Dieu par lentremise dune foy vive si nous tenions agrave Dieu par luy non par nous si nous avions un pied et un fondement divin les occasions humaines nauroient pas le pouvoir de nous esbranler comme elles ont [hellip]rdquo50

Sem duacutevida Montaigne ao questionar o poder da razatildeo humana procura

defender a feacute cristatilde Os argumentos tidos como ceacutepticos que estatildeo presentes na

ldquoApologierdquo tecircm como objectivo provar que soacute atraveacutes da intervenccedilatildeo divina e natildeo com

nossos proacuteprios meios racionais podemos ter acesso agrave verdade Apresenta vaacuterios

exemplos para que entendamos com mais clarividecircncia a sua reflexatildeo acerca deste

assunto

ldquo[C] Lrsquohomme est bien insenseacute Il ne sccedilauroit forger un ciron et forge des Dieux agrave douzainesrdquo51

O homem quer descrever Deus mas na verdade descreve-se a si mesmo Isto

demonstra a sua incapacidade e a sua falta de sabedoria

ldquo[B] Nous avons vie raison et liberteacute estimons la bonteacute la chariteacute et la justice ces qualitez sont donc en luy Somme le bastiment et le desbastiment les conditions de la diviniteacute se forgent par lhomme selon la relation agrave soy Quel patron et quel modele Estirons eslevons et grossissons les qualitez humaines tant quil nous Plaira enfle toy pauvre homme et encore et encore et encore Non si te ruperis inquit (ldquoNon pas mecircme quand tu cregraveverais dit-ilrdquo (Hor Sal II III 318) Crsquoest la fable de la grenouille qui veut se faire aussi grosse que le boeuf)rdquo52

Eacute interessante notar que ao mesmo tempo que pretende fazer a apologia da feacute cristatilde Montaigne critica os cristatildeos que natildeo satildeo ldquofieacuteisrdquo aos ensinamentos da Sagrada Escritura

ldquo[B] Voulez vous voir cela Comparez nos moeurs agrave un Mahometan agrave un Payen vous demeurez tousjours au dessoubs lagrave ougrave au regard de lavantage de nostre religion nous devrions luire en excellence dune extreme et incomparable distance et devroit on dire Sont ils si justes si

49 Les Essais II 12 p 441 50 Les Essais II 12 p 441 51 Les Essais II 12 p 530 52 Les Essais II 12 p 531

23

charitables si bons ils sont donq Chrestiens [C] La marque peculiegravere de nostre veriteacute devroit estre nostre vertu comme elle est aussi la plus celeste marque et la plus difficile et que cest la plus digne production de la veriteacuterdquo53

Para Montaigne os cristatildeos constituem uma espeacutecie de contratestemunho de sua

feacute Fazendo uma referecircncia ao texto da Sagrada Escritura algo muito raro nos Essais o

autor afirma que se tiveacutessemos um uacutenico pingo de feacute54 moveriacuteamos as montanhas de

seu lugar E neste sentido lembra-nos

ldquo[A] nos actions qui seroient guideacutees et accompaigneacutees de la diviniteacute ne seroient pas simplement humaines elles auroient quelque chose de miraculeux comme nostre croyancerdquo55

Para os que subestimam a importacircncia da razatildeo isto eacute para os primeiros

opositores de Sebond ou os fideiacutestas os cristatildeos erram ao quererem apoiar as suas

crenccedilas que soacute se concebem por meio da feacute e por inspiraccedilatildeo particular da graccedila divina

Estes satildeo os que pensam que a verdade em religiatildeo estaacute em uacuteltima instacircncia baseada na

feacute em vez de no raciociacutenio ou na evidecircncia Segundo Montaigne trata-se de uma

concepccedilatildeo bonita e ateacute piedosa Chega inclusivamente a exemplificar esta atitude e a

citar um caso de algueacutem que foi desviado dos erros da incredulidade atraveacutes da leitura

da obra de Sebond

ldquo[A] Je sccedilay un homme dauthoriteacute nourry aux lettres qui ma confesseacute avoir esteacute rameneacute des erreurs de la mescreance par lentremise des argumens de Sebond Et quand on les despouillera de cet ornement et du secours et approbation de la foy et quon les prendra pour fantasies pures humaines pour en combatre ceux qui sont precipitez aux espouvantables et horribles tenebres de lirreligion ils se trouveront encores lors aussi solides et autant fermes que nuls autres de mesme condition quon leur puisse opposer [hellip]rdquo56

53 Les Essais II 12 p 442 54 Provavelmente Montaigne estaacute a aludir a textos da Sagrada Escritura especialmente do Evangelho ldquoSi vraiment vous avez de la foi gros come une graine de moutarde vous diriez agrave ce sycomore ldquoDeacuteracine-toi et va te planter dans la merrdquo et il vous obeacuteiraitrdquo (Lc 17 6) Car en veacuteriteacute je vous le deacuteclare si un jour votre foi est semblable agrave un grain de moutarde vous diriez agrave cette montagne ldquoPasse drsquoici lagrave-basrdquo et elle y passera Rien ne vous sera impossiblerdquo (Mt 17 20) (In Nouveau Testament Traduction Oecumeacutenique de la Bible Paris PUF 1977 pp 91 e 253 55 Les Essais II 12 p 442 56 Les Essais II 12 p 447-448

24

No entanto mesmo tendo em consideraccedilatildeo a importacircncia da Teologia Natural

sebondiana Montaigne toma um certo partido pelo lado dos fideiacutestas57 seus opositores

Em seu entender a razatildeo humana natildeo eacute capaz de conduzir o homem agrave feacute

Montaigne num dado momento refere-se agraves guerras58 que oprimiam a sua

naccedilatildeo Ele propotildee uma possiacutevel explicaccedilatildeo destes tormentos que assolavam a Franccedila

que tem muito a ver com a questatildeo de fundo tratada na ldquoApologierdquo Escreve

ldquo[A] Les hommes y sont conducteurs et srsquoy servent de la religion ce devroit estre tout le contrairerdquo59

Assim se compreende por que razatildeo Montaigne aleacutem de criticar aqueles que

queriam instrumentalizar a razatildeo para justificar as verdades reveladas repudia a noccedilatildeo

daqueles que se dedicam excessivamente agrave religiatildeo e que tecircm como meta principal a

satisfaccedilatildeo das paixotildees e da vaidade

ldquo[C] Je voy cela evidemment que nous ne prestons volontiers agrave la devotion que les offices qui flattent noz passions Il nest point dhostiliteacute excellente comme la Chrestienne Nostre zele fait merveilles quand il va secondant nostre pente vers la haine la cruauteacute lambition lavarice la detraction la rebellion A contrepoil vers la bonteacute la benigniteacute la temperance si comme par miracle quelque rare complexion ne ly porte il ne va ny de pied ny daile Nostre religion est faicte pour extirper les vices elle les couvre les nourrit les incite [A] Il ne faut point faire barbe de foarre agrave Dieu (comme on dict) Si nous le croyons je ne dy pas par foy mais dune simple croyance voire (et je le dis agrave nostre grande confusion) si nous le croyons et cognoissions comme une autre histoire comme lun de nos compaignons nous laimerions au dessus de toutes autres choses pour linfinie bonteacute et beauteacute qui reluit en luy au moins marcheroit il en mesme reng de nostre affection que les richesses les plaisirs la gloire et nos amis raquo60

Montaigne demonstra uma certa irritaccedilatildeo em face da instrumentalizaccedilatildeo da

religiatildeo para certos objectivos particulares Em seu entender a devoccedilatildeo religiosa natildeo

57 Ao reflectir sobre o fideiacutesmo presente na ldquoApologierdquo Friedrich diz-nos que Montaigne assume um fideiacutesmo isento da nostalgia miacutestica O seu fideiacutesmo significa uma tomada de consciecircncia intelectual dos limites humanos limites estes que natildeo deseja ultrapassar Seu fideiacutesmo eacute de uma espeacutecie negativa isto eacute eacute a certeza da incerteza O mesmo autor observa ainda que a ldquoteologiardquo de Montaigne representa um desvio para ir ao conhecimento do homem no interior do mundo Montaigne precisa de se distanciar de Deus para se assegurar da pequenez do homem na qual ele vai se instalar (cf op cit p 117) 58 Tudo indica que Montaigne estaacute a falar das guerras civis e religiosas do seacuteculo XVI Citando o famoso historiador francecircs M de Chacircteaubriand Laschamps na sua monumental obra Michel de Montaigne editada em 1855 afirma que estas guerras ldquoont dureacute trente-neuf ans elles ont engendre les massacres de la Saint Bartheacutelemy verseacute le sang de plus de deux millions de Franccedilais et deacutevoreacute plus de trois milliards de notre monnaie actuelle Elles ont produit la saisie et la vente des biens de lrsquoEacuteglise et des particulieres frappeacute deux rois de mort violente Henri III et Henri IV et commenceacute le procegraves criminal du premier de ces deux roisrdquo (cf Laschamps F Bigorie de Michel de Montaigne Paris Libraire Editeur 1855 p 108) 59 Les Essais II 12 p 443 60 Les Essais II 12 p 444

25

pode ser usada para servir os propoacutesitos do oacutedio da crueldade da ambiccedilatildeo da rebeliatildeo

etc61

Embora natildeo seja teoacutelogo62 Montaigne eacute um pensador que procura respeitar

profundamente a missatildeo da teologia Mas importa salientar que esta missatildeo deve ser

entendida simplesmente como uma praacutetica de piedade e natildeo como uma racionalizaccedilatildeo e

sistematizaccedilatildeo das verdades reveladas pela feacute Neste sentido haacute uma enorme distacircncia

entre o autor dos Essais e os escolaacutesticos Para Montaigne a teologia eacute concebida como

uma espeacutecie de exerciacutecio espiritual dos cristatildeos sobretudo dos teoacutelogos atraveacutes da

razatildeo humana Exerciacutecio este que carece do poder de alcanccedilar a verdade

ldquo[A] Il en faut faire de mesme et accompaigner nostre foy de toute la raison qui est en nous mais tousjours avec cette reservation de nestimer pas que ce soit de nous quelle deacutepende ny que nos efforts et arguments puissent atteindre agrave une si supernaturelle et divine sciencerdquo 63

Para Montaigne as explicaccedilotildees (racionalizaccedilotildees) das verdades da religiatildeo

devem ser as pregaccedilotildees piedosas nos actos de culto por exemplo E esta eacute a tarefa

fundamental da qual a teologia deve ocupar-se Aleacutem disto Montaigne que eacute um

observador subtil e cuidadoso propotildee certas distinccedilotildees Vejamos o que Friedrich tem a

dizer sobre esta questatildeo

ldquo[hellip] sait bien entendu distinguer la vraie pieacuteteacute de la fausse Il bracircme ainsi les priegraveres meacutecaniques la malhonnecircteteacute des gens qui se signent au son de la cloche sans pour autant renoncer agrave la haine agrave lrsquoavarice agrave lrsquoinjustice comme si leur principe eacutetait aux vices leur heure son heure agrave Dieurdquo64

Desta perspectiva segundo Montaigne a religiatildeo deve ser entre outras coisas

como uma praacutetica da verdadeira piedade que se preocupa em instaurar no coraccedilatildeo do

homem o desejo de viver o amor a justiccedila etc renunciando a tudo aquilo que eacute mal e

que impede a realizaccedilatildeo da felicidade do homem no aqui e no agora Eacute por isto que natildeo

acredita numa religiatildeo que vive a prometer constantemente bens eternos que viratildeo a

tornar-se realidade num outro mundo diverso e posterior a este que conhecemos Para

exemplificar esta sua abordagem Montaigne refere na ldquoApologierdquo o filoacutesofo Antiacutestenes

Quando o iniciavam no misteacuterio de Orfeu dizendo-lhe o sacerdote que aqueles que se

devotavam a tal religiatildeo iam receber bens eternos e perfeitos apoacutes a morte aquele

61 Cf Les Essais II 12 p 444 62 Ver nota 43 63 Les Essais II 12 p 441 64 Friedrich op cit p 122

26

perguntou-lhe ldquose acreditas nisso por que entatildeo natildeo morres tu mesmordquo65 Eis um outro

exemplo que vale a pena citar

ldquo[C] Diogenes plus brusquement selon sa mode et hors de nostre propos au prestre qui le preschoit de mesme de se faire de son ordre pour parvenir aux biens de lautre monde Veux tu pas que je croye quAgesilauumls et Epaminondas si grands hommes seront miserables et que toy qui nes quun veau seras bien heureux par ce que tu es prestre rdquo66

Segundo Montaigne se acolhecircssemos essas grandes promessas de felicidades

eternas e supremas com a mesma autoridade com que acolhemos uma opiniatildeo

filosoacutefica natildeo teriacuteamos o horror agrave morte que temos

ldquo[A] Je veuil estre dissout dirions nous et estre aveques Jesus-Christrdquo67

Ao afirmar que

ldquo[A] La force du discours de Platon de lrsquoimmortaliteacute de lrsquoame poussa bien aucuns de ses disciples agrave la mort pour joiumlr plus promptement des esperances qursquoil leur donnoit [hellip]68

O autor da ldquoApologierdquo quer destacar a fragilidade da razatildeo que utiliza meios

puramente humanos para explicar ldquorealidadesrdquo que transcendem a vida concreta

Vejamos uma passagem em que o autor expressa nitidamente estas ideias

ldquo[A] Tout cela cest un signe tres-evident que nous ne recevons nostre religion quagrave nostre faccedilon et par nos mains et non autrement que comme les autres religions se reccediloyvent Nous nous sommes rencontrez au paiumls ou elle estoit en usage ougrave nous regardons son ancienneteacute ou lauthoriteacute des hommes qui lont maintenue ou creignons les menaces quellrsquoattache aux mescreans ou suyvons ses promesses Ces considerations lagrave doivent estre employeacutees agrave nostre creance mais comme subsidiaires ce sont liaisons humaines Une autre region dautres tesmoings pareilles promesses et menasses nous pourroyent imprimer par mesme voye une croyance contrairerdquo69

Apesar de ser catoacutelico parece sugerir na ldquoApologierdquo uma certa atitude de

indiferenccedila relativamente a toda e qualquer profissatildeo de feacute ou seja uma espeacutecie de

distanciamento no que diz respeito agraves diversas convicccedilotildees religiosas Montaigne chega

quase a reduzir a proacutepria crenccedila a uma questatildeo de costume a um acaso geograacutefico

65 Cf Les Essais II 12 p 444 66 Les Essais II 12 p 444 67 Les Essais II 12 p 445 68 Les Essais II 12 p 445 69 Les Essais II 12 p 445

27

[B] Nous sommes Chrestiens agrave mesme titre que nous sommes ou Perigordins ou Alemansrdquo70

Fazendo uma criacutetica aos diversos raciociacutenios que foram usados na histoacuteria do

pensamento filosoacutefico com o objectivo de argumentar de que forma o homem tem

acesso agrave religiatildeo Montaigne afirma que Platatildeo e os seus exemplos querem levar-nos a

concluir que somos conduzidos agrave crenccedila em Deus ou por amor ou por forccedila A sua

rejeiccedilatildeo dos argumentos da filosofia expressa-se de uma forma muito incisiva

ldquo[C] LAtheisme estant une proposition comme desnatureacutee et monstrueuse difficile aussi et malaiseacutee destablir en lesprit humain pour insolent et desregleacute quil puisse estre il sen est veu assez par vaniteacute et par fierteacute de concevoir des opinions non vulgaires et reformatrices du monde en affecter la profession par contenance qui sils sont asses fols ne sont pas assez forts pour lavoir planteacutee en leur conscience pourtantrdquo71

Aleacutem de apontar os limites das crenccedilas consideradas pagatildes bem como os

enganos de Platatildeo relativos aos motivos que levam o homem agrave praacutetica da religiatildeo

Montaigne critica um outro engano similar e importante de Platatildeo

ldquo[B] Lerreur du paganisme et lignorance de nostre sainte veriteacute laissa tomber cette grande ame de Platon (mais grande dhumaine grandeur seulement) encores en cet autre voisin abus que les enfans et les vieillars se trouvent plus susceptibles de religion comme si elle naissoit et tiroit son credit de nostre imbecilliteacuterdquo72

Segundo Montaigne a religiatildeo natildeo pode ser construiacuteda sobre o alicerce da razatildeo

humana como vimos Nem tampouco pode ser fundada nos argumentos platoacutenicos

acabados de referir Estes satildeo todos muito fraacutegeis A religiatildeo encontra as suas bases

verdadeiras na feacute A perspectiva proacutepria da filosofia supotildee um ateiacutesmo de meacutetodo como

observa Conche Caso contraacuterio ela jaacute natildeo seria filosofia ldquomais theacuteologie ou ideacuteologie

A qui est ainsi priveacute du secours de la gracircce divine Dieu est inconnaissablerdquo73

Montaigne recusa o ateiacutesmo de uma forma muito clara inclusive aquele conceituado

por Platatildeo

ldquo[A] Et ce que dit Plato74 quil est peu dhommes si fermes en latheisme quun dangier pressant ne ramene agrave la recognoissance de la divine puissance ce rolle ne touche point un vray Chrestien Cest agrave faire aux

70 Les essais II 12 p 445 71 Les Essais II 12 p 446 72 Les Essais II 12 p 446 73 Conche 1996 op cit p131 74 Tudo leva a crer que Montaigne se estaacute a referir a Platatildeo Preferimos conservar a mesma grafia da ediccedilatildeo dos Essais que estaacute a ser utilizada neste trabalho

28

religions mortelles et humaines destre receueumls par une humaine conduite Quelle foy doit ce estre que la laacutecheteacute et la foiblesse de coeur plantent en nous et establissent [C] Plaisante foy qui ne croid ce quelle croit que pour navoir le courage de le descroire Une vitieuse passion comme celle de linconstance et de lestonnement peut elle faire en nostre ame aucune production regleacutee75

Continuando a sua reflexatildeo no preacircmbulo da ldquoApologierdquo o autor ressalta qual eacute

a relaccedilatildeo fundamental que eacute necessaacuteria para estabelecer a uniatildeo do homem a Deus

partindo do caraacutecter superior da religiatildeo face ao ateiacutesmo Montaigne observa que o laccedilo

que deveria atar o nosso juiacutezo e a nossa vontade que deveria cingir a nossa alma e uni-

la ao criador

ldquo[A] ce devroit estre un neud prenant ses repliz et ses forces non pas de nos considerations de noz raisons et passions mais dune estreinte divine et supernaturelle nayant quune forme un visage et un lustre qui est lauthoriteacute de Dieu et sa grace Or nostre coeur et nostre ame estant regie et commandeacutee par la foy cest raison quelle tire au service de son dessain toutes noz autres pieces selon leur porteacuteerdquo76

Montaigne ao indicar como devemos manejar os instrumentos naturais e

humanos ou seja como devemos aplicar a razatildeo agrave nossa feacute afirma que Deus deixou nas

suas obras o cunho de sua divindade e deve-se apenas agrave nossa fraqueza que natildeo o

possamos perceber E afirma com admiraccedilatildeo que Sebond se empenhou neste digno

estudo

ldquo[A] Or nos raisons et nos discours humains cest comme la matiere lourde et sterile la grace de Dieu en est la formerdquo77

As acccedilotildees humanas permanecem inuacuteteis e vatildes se natildeo tecircm em conta o amor e a

obediecircncia a Deus

ldquo[A] ainsin est-il de nos imaginations et discours ils ont quelque corps mais une masse informe sans faccedilon et sans jour si la foy et grace de Dieu ny sont joinctesrdquo78

Quanto aos segundos opositores de Sebond ndash ou seja os que dizem que seus

argumentos satildeo fracos e inadequados para demonstrar o que ele pretende e por isso

dispotildeem-se a atacaacute-los facilmente ndash Montaigne vai rejeitar os argumentos por eles

apresentados nos quais se subestima a importacircncia da feacute A rejeiccedilatildeo dos argumentos

desta segunda categoria ocupa maior espaccedilo porque ldquo[A] Il faut secouer ceux cy un peu

75 Les Essais II 12 p 445 76 Les Essais II 12 p 446 77 Les Essais II 12 p 447 78 Les Essais II 12 p 447

29

plus rudement car ils sont plus dangereux et plus malitieux que les premiersrdquo79 Estes

ldquoracionalistasrdquo consideram que a razatildeo humana eacute auto-suficiente para conhecer

qualquer coisa e desprezam a feacute considerando-a como algo inuacutetil para um saacutebio

ldquo Le moyen que je prens pour rabatre cette frenaisie et qui me semble le plus propre crsquoest de froisser et fouler aux pieds lrsquoorgueil et humaine fierteacute leur faire sentir lrsquoinaniteacute la vaniteacute et deneantise de lrsquohomme leur arracher des points les chetives armes de leur raison leur faire baisser la teste et mordre la terre soubs lrsquoauthoriteacute et reverence de la majesteacute divine Crsquoest agrave elle seule qursquoapartient la science et la sapience elle seule qui peut estimer de soy quelque chose et agrave qui nous desrobons ce que nous nous contons et ce que nous nous prisons Ού γὰρ ἐᾱ φρονεῑν ὁ Θεὸϛ μέγα ἄλλον ἢ ἑαυτόν [ldquoCar Dieu ne permet pas qursquoun autre que Lui srsquoenorgueillisserdquo (Heacuterodote VII x)]rdquo80

Ao analisar as duas objecccedilotildees agrave Teologia natural de Sebond Montaigne tem

como principal finalidade - aleacutem do desenvolvimento do seu fideiacutesmo que potildee em

causa que a filosofia seja um meio para se chegar a Deus - destronar o homem do seu

pedestal como ldquosenhorrdquo entre todas as criaturas como vimos no primeiro capiacutetulo deste

trabalho Agrave luz destas objecccedilotildees se desenvolve tambeacutem em todo o texto da ldquoApologierdquo

uma grande quantidade de criacuteticas aos detractores do teoacutelogo catalatildeo que na verdade

mais natildeo eacute do que uma contestaccedilatildeo de Montaigne de tudo aquilo que faz do homem um

ser cheio de orgulho e de vaidade Montaigne chega agrave conclusatildeo que a razatildeo humana

natildeo pode conhecer os atributos de Deus A razatildeo natildeo tem condiccedilotildees para emitir juiacutezos

crediacuteveis a respeito destes atributos Ela natildeo estaacute revestida de um poder que lhe garanta

a elaboraccedilatildeo de raciociacutenios crediacuteveis acerca de Deus e das verdades da religiatildeo

Montaigne apresenta um resumo das principais ideias acerca de Deus que foram

surgindo na histoacuteria do pensamento filosoacutefico antigo e afirma que tudo isto natildeo passa de

uma balbuacuterdia (ldquotintamarrerdquo) de muitos ceacuterebros filosoacuteficos81

ldquo[C] Thales [hellip] estima Dieu un esprit qui fit deau toutes choses Anaximander que les Dieux estoyent des mourans et naissans agrave diverses saisons et que crsquoestoyent des mondes infinis en nombre Anaximenes que lair estoit Dieu [hellip] Anaxagoras le premier a tenu la description et maniere de toutes choses estre conduite par la force et raison dun esprit infini Alcmaeligon a donneacute la diviniteacute au soleil agrave la lune aux astres et agrave lame[hellip] Empedocles disoit estre des Dieux les quatre natures desquelles toutes choses sont faictes [hellip] Platon dissipe sa creance agrave divers visages Il dict au Timaeacutee le pere du monde ne se pouvoir

79 Les Essais II 12 p 448 80 Les Essais II 12 p 448 81 Cf Les Essais II 12 p 516

30

nommer aux loix quil ne se faut enquerir de son estre et ailleurs en ces mesmes livres il faict le monde le ciel les astres la terre et nos ames Dieux et reccediloit en outre ceux qui ont esteacute receuz par lancienne institution en chasque republique Xenophon rapporte un pareil trouble de la discipline de Socrates tantost quil ne se faut enquerir de la forme de Dieu et puis il luy faict establir que le Soleil est Dieu et lame Dieu quil ny en a quun et puis quil y en a plusieurs[hellip] Aristote asture que cest lesprit asture le monde asture il donne un autre maistre agrave ce monde et asture faict Dieu lardeur du ciel [hellip] Heraclides Ponticus ne fait que vaguer entre les advis et en fin prive Dieu de sentiment et le faict remuant de forme agrave autre et puis dict que cest le ciel et la terre[hellip] Zeno la loy naturelle commandant le bien et prohibant le mal laquelle loy est un animant et oste les Dieux accoustumez Jupiter Juno Vesta Diogenes Apolloniates que cest laage [hellip] Cleanthes tantost la raison tantost le monde tantost lame de Nature tantost la chaleur supreme entournant et envelopant tout [hellip] Chrysippus faisoit un amas confus de toutes les precedentes sentences et comptoit entre mille formes de Dieux quil faict les hommes aussi qui sont immortalisez Diagoras et Theodorus nioyent tout sec quil y eust des Dieux Epicurus faict les Dieux luisans transparens et perflables logez comme entre deux forts entre deux mondes agrave couvert des coups revestus dune humaine figure et de nos membres lesquels membres leur sont de nul usagerdquo82

Esta longa citaccedilatildeo da ldquoApologierdquo apresenta-nos a enorme quantidade de

teorizaccedilotildees que tecircm como base a razatildeo humana e que satildeo bastante diacutespares no tocante

agraves crenccedilas Isto potildee em evidecircncia que Montaigne natildeo acredita que o homem tenha

condiccedilotildees para compreender ou apresentar algo crediacutevel acerca de Deus Por isto o

homem exagera na sua criatividade intelectual ao inventar inuacutemeros atributos divinos

que frequentemente se assemelham aos seus proacuteprios atributos Em seu entender Deus

eacute absolutamente incompreensiacutevel Na leitura que de Montaigne faz Leveaux

ldquoLrsquoideacutee de Dieu existe chez lrsquohomme mais au delagrave de cette ideacutee simple drsquoune uniteacute absolue tout devient doute et confusion Alors se preacutesent des questions sans nombre auxquelles il est impossible de reacutepondre Crsquoest lagrave si je ne me trompe le ldquoque sais-jerdquordquo83

Montaigne afirma que haacute uma grande inconstacircncia variedade e mobilidade de

ideias acerca de Deus nas almas excelentes e admiraacuteveis dos filoacutesofos Mas classifica o

empenho destes como vatildeo pelo facto de quererem adivinhar Deus por meio das nossas

analogias e conjecturas Por natildeo podermos estender a vista ateacute ao seu trono glorioso

procuramos trazecirc-lo aqui para baixo para a nossa corrupccedilatildeo e miseacuteria Soacute a feacute tem

82 Les Essais II 12 pp 514-516 83 Leveaux Alphonse Eacutetude sur les Essais de Montaigne Paris Henri Plon Imprimeur-Eacutediteur 1870 p 213

31

condiccedilotildees de entender os misteacuterios da religiatildeo Sem ela os nossos esforccedilos de

demonstraccedilatildeo destes misteacuterios permanecem vazios e esteacutereis

ldquo[A] La participation que nous avons agrave la connoissance de la veriteacute quelle quelle soit ce nest pas par nos propres forces que nous lavons acquise Dieu nous a assez appris cela par les tesmoins quil a choisi du vulgaire simples et ignorans pour nous instruire de ses admirables secrets nostre foy ce nest pas nostre acquest cest un pur present de la liberaliteacute dautruy Ce nest pas par discours ou par nostre entendement que nous avons receu nostre religion cest par authoriteacute et par commandement estranger La foiblesse de nostre jugement nous y ayde plus que la force et nostre aveuglement plus que nostre cler-voyance Cest par lentremise de nostre ignorance plus que de nostre science que nous sommes sccedilavans de divin sccedilavoirrdquo84

Para o autor da ldquoApologierdquo o homem por si soacute eacute absolutamente impotente para

chegar a certezas acerca das questotildees relacionadas com a feacute Nesta perspectiva o autor

observa tambeacutem que natildeo eacute possiacutevel fazer afirmaccedilotildees seguras tendo como base a razatildeo

Por exemplo acerca da imortalidade da alma tema desde sempre muito caro agrave filosofia

os cristatildeos devem unicamente a Deus e ao benefiacutecio de sua graccedila a verdade de uma

crenccedila tatildeo nobre pois eacute apenas da sua liberalidade que o cristatildeo recebe o fruto da

imortalidade o qual lembra o autor consiste no gozo da beatitude eterna A razatildeo natildeo

consegue fazer nenhuma afirmaccedilatildeo crediacutevel sobre este tema Ela eacute incapaz uma vez que

a imortalidade eacute um ldquodadordquo da revelaccedilatildeo

ldquo[C] Confessons ingenuement que Dieu seul nous lrsquoa dict et la foy car leccedilon nrsquoest ce pas de nature et de nostre raisonrdquo85

Montaigne assumindo uma posiccedilatildeo fideiacutesta depois de ter feito o exame das

diversas opiniotildees sobre a alma86 faz um ldquoapelo agrave passividade da razatildeo e agrave aceitaccedilatildeo da

verdade religiosa sem tentar compreendecirc-la ldquoimortalidaderdquo eacute como ldquoDeusrdquo uma

palavra que natildeo pode ser preenchida A imortalidade afirmada pela feacute natildeo poderaacute ser

explorada por nenhuma forma de discurso humanordquo87

Esta atitude fideiacutesta e conservadora em termos religiosos deve-se em grande

parte agrave desilusatildeo de Montaigne face aos inuacutemeros sistemas filosoacuteficos que tentavam

84 Les Essais II 12 p 500 85 Les Essais II 12 p 554 86 Na ldquoApologierdquo haacute uma quantidade significativa de paacuteginas nas quais o autor expressa muitas opiniotildees sobre o tema da alma (cf Les Essais pp 542-547) 87 Birchal Telma de Souza O Eu nos Ensaios de Montaigne Belo Horizonte Editora UFMG 2007 pp 64-65

32

encontrar explicaccedilotildees racionais para todas as questotildees da vida inclusivamente para

aquelas que transcendem a vida real

ldquo[A] Car quelque apparence quil y ayt en la nouvelleteacute je ne change pas aiseacutement de peur que jay de perdre au change Et puis que je ne suis pas capable de choisir je pren le chois dautruy et me tien en lassiette ougrave Dieu ma mis Autrement je ne me sccedilauroy garder de rouler sans cesse Ainsi me suis-je par la grace de Dieu conserveacute entier sans agitation et trouble de conscience aux anciennes creances de nostre religion au travers de tant de sectes et de divisions que nostre siecle a produittesrdquo88

Segundo Leveaux Montaigne sintetiza seu pensamento em mateacuteria religiosa89

da seguinte maneira

ldquo[A] De toutes les opinions humaines et anciennes touchant la religion celle lagrave me semble avoir eu plus de vray-semblance et plus dexcuse qui recognoissoit Dieu comme une puissance incomprehensible origine et conservatrice de toutes choses toute bonteacute toute perfection recevant et prenant en bonne part lhonneur et la reverence que les humains luy rendoient soubs quelque visage sous quelque nom et en quelque maniere que ce fut [hellip]rdquo90

Haacute que reconhecer no entanto que eacute algo difiacutecil e delicado tirar grandes

conclusotildees acerca da religiatildeo embora o tema perpasse toda a ldquoApologie rdquo Montaigne

concebia a religiatildeo como um conjunto de praacuteticas e leis que tinham como finalidade

contribuir para que o homem natildeo agisse como um escravo da vaidade da razatildeo As

uacuteltimas palavras da ldquoApologierdquo onde o autor cita Plutarco pretendem servir como uma

espeacutecie de conclusatildeo de toda a reflexatildeo deste capiacutetulo Deixemos o proacuteprio Montaigne

falar

ldquo[A] Mais quest-ce donc qui est veritablement Ce qui est eternel cest agrave dire qui na jamais eu de naissance ny naura jamais fin agrave qui le temps napporte jamais aucune mutation Car cest chose mobile que le temps et qui apparoit comme en ombre avec la matiere coulante et fluante tousjours sans jamais demeurer stable ny permanenterdquo91

Contestando a atitude humana de querer elevar-se acima da humanidade que

pode ser tambeacutem entendida como um desejo absurdo de um ser despreziacutevel que tem a

88 Les Essais II 12 p 569 89 Cf Leveaux op cit p 213 90 Les Essais II 12 p 513 91 Les Essais II 12 p 603

33

presunccedilatildeo como doenccedila natural e original e que eacute a mais calamitosa de todas as

criaturas e ao mesmo tempo a mais orgulhosa92 Montaigne afirma

ldquo[A] O la vile chose dit-il et abjecte que lhomme sil ne sesleve au dessus de lhumaniteacute [C] Voila un bon mot et un utile desir mais pareillement absurde Car [A] de faire la poigneacutee plus grande que le poing la brasseacutee plus grande que le bras et desperer enjamber plus que de lestandueuml de nos jambes cela est impossible et monstrueux Ny que lhomme se monte au dessus de soy et de lhumaniteacute car il ne peut voir que de ses yeux ny saisir que de ses prises Il seslevera si Dieu lui preste extraordinairement la main Il seslevera abandonnant et renonccedilant agrave ses propres moyens et se laissant hausser et soubslever par les moyens purement celestesrdquo93

Montaigne termina a ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo colocando o homem no

seu devido lugar e afirmando que soacute atraveacutes do auxiacutelio de Deus e com a graccedila da feacute

cristatilde eacute que este ser tatildeo vaidoso poderaacute elevar-se acima da humanidade

ldquo[C] Cest agrave nostre foy Chrestienne non agrave sa vertu Stoique de pretendre agrave cette divine et miraculeuse metamorphoserdquo94

92 Cf nota 12 93 Les Essais II 12 p 604 94 Les Essais II 12 p 604

34

3 A criacutetica agrave razatildeo humana e sua relaccedilatildeo com a ciecircncia

Uma observaccedilatildeo que eacute importante destacar no iniacutecio deste capiacutetulo refere-se agrave

concepccedilatildeo montaigneana de ldquociecircnciardquo que se encontra na ldquoApologie de Raymond

Sebondrdquo Quando Montaigne na sua criacutetica radical agrave razatildeo humana se refere agrave ciecircncia

o que subjaz agraves suas reflexotildees natildeo eacute a concepccedilatildeo moderna de ciecircncia Ele natildeo alude ao

chamado ldquomeacutetodo cientiacutefico experimentalrdquo ateacute porque este meacutetodo ainda natildeo existia O

termo ldquociecircnciardquo natildeo tem o sentido que adquiriu depois da chamada Revoluccedilatildeo

Cientiacutefica do seacuteculo XVII Assim com o termo ciecircncia Montaigne refere-se ao conjunto

do conhecimento erudito de seu tempo

ldquoLa science du XVIᵉ siegravecle nrsquoest que philosophie Elle srsquoarrecircte aux mots jamais elle ne peacutenegravetre au fond des choses et ne suscite un effort critiquerdquo95

Sendo um pensador da uacuteltima fase do periacuteodo renascentista periacuteodo este em que

natildeo havia nenhuma diferenccedila essencial entre a filosofia e a ciecircncia Montaigne procura

expressar as suas ideias os seus ideais de sabedoria como tantos outros faziam isto eacute

quando se refere agrave ciecircncia estaacute a referir-se aos doutos e aos filoacutesofos em geral

Logo no iniacutecio da ldquoApologierdquo Montaigne faz questatildeo de afirmar que a ciecircncia eacute

algo muito uacutetil e grande e os que a menosprezam datildeo prova bastante de estupidez Sem

desprezar agrave partida todo o esforccedilo que muitos fazem para chegar a alcanccedilar o

conhecimento Montaigne por outro lado natildeo chega a estimar tanto a ciecircncia

ldquo[A] Comme Herillus le philosophe qui logeoit en elle le souverain bien et tenoit qursquoil fut en elle de nous rendre sages et contensrdquo96

Montaigne natildeo crecirc nisto nem tampouco no que outros disseram

ldquo[A] que la science est mere de toute vertu et que tout vice este produit par lrsquoignorancerdquo97

Segundo ele mesmo atesta a sua casa esteve habitualmente aberta agraves pessoas de

saber e o seu pai buscou com grande cuidado e despesa o conviacutevio dos homens doutos

ldquo[A] les recevant chez luy comme personnes sainctes et ayans quelque particuliere inspiration de sagesse divine [hellip]rdquo98

95 Villey opcit p 214 96 Les Essais II 12 p 438 97 Les Essais II 12 p 438 98 Les Essais II 12 pp 438-439

35

Embora respirando toda uma atmosfera intelectual que havia em sua casa

Montaigne afirma no entanto que gostava muito destes doutos frequentadores de sua

casa mas natildeo os adorava

Desde as primeiras afirmaccedilotildees de Montaigne na ldquoApologierdquo eacute possiacutevel perceber

ateacute que ponto ele tem dificuldade em aceitar os chamados filoacutesofos de profissatildeo Neste

famoso texto que eacute considerado por Villey ldquole reacutesumeacute du travail logique qui srsquoopegravere

chez Montaigne entre 1573 et 1579 ou 1580rdquo99 podemos encontrar paradoxalmente

por um lado uma valorizaccedilatildeo da razatildeo enquanto uacutenico modo de investigaccedilatildeo dos

doutos e por outro lado que a razatildeo eacute considerada como algo profundamente limitado

enquanto instrumento de acesso ao conhecimento

Montaigne dedica muitas paacuteginas a demonstrar que a ciecircncia fundada na razatildeo

eacute viacutetima da vaidade humana e deve ser contestada Isto pelo facto de que concebe a

ciecircncia como o esforccedilo que deve ser uacutetil agrave nossa felicidade

ldquo[A] la philosophie me doit mettre les armes agrave la main pour combatre la fortune qui me doit roidir le courrage pour fouler aux pieds toutes les advertitez humaines [hellip]rdquo100

O objectivo primeiro da filosofia eacute portanto a vida concreta A atitude vaidosa

da razatildeo na busca do conhecimento causa no homem

ldquo[A] lrsquoinconstance lrsquoirresolution lrsquoincertitude le deuil la superstition la solitude de choses agrave venir voire apres nostre vie lrsquoambition lrsquoavarice la jalousie lrsquoenvie les appetits desreglez foncenez et indomptables la guerre la mensonge la desloyauteacute la detraction et la curiositeacuterdquo101

Segundo Montaigne pagamos um preccedilo elevadiacutessimo por essa bela razatildeo de que

nos gloriamos e por conseguinte tambeacutem pela capacidade de julgar e conhecer

sobretudo se forem adquiridas agrave custa destas paixotildees

Montaigne natildeo vecirc muita necessidade praacutetica de querer mergulhar nos altos

conhecimentos em que a filosofia estaacute imersa Para que serve o conhecimento (fruto da

razatildeo enganadora) de muitas coisas Expressando a sua criacutetica agrave loacutegica aristoteacutelica

afirma ironicamente

ldquo[A] ont-ils tireacute de la Logique quelques consolation agrave la gouterdquo102

99 Villey op cit p 182 100 Les Essais II 12 p 494 101 Les Essais II 12 p 486 102 Les Essais II 12 p 487

36

Prosseguindo no mesmo registo iroacutenico pergunta se acaso se descobriu que a

voluptuosidade e a sauacutede satildeo mais deleitosas para quem conhece a astronomia e a

gramaacutetica e menos importunas agrave desonra e a pobreza103

Montaigne revela um significativo desprezo pelos filoacutesofos que satildeo escravos da

razatildeo e buscam tudo saber e fazer afirmaccedilotildees sobre todas as coisas Ao mesmo tempo

manifesta uma forte tendecircncia para valorizar o homem simples e ignorante

ldquo[A] Jrsquoay veu en mon temps cent artisans cent laboureurs plus sages et plus heureux que des recteurs de lrsquouniversiteacute et lesquels jrsquoaimerois mieux ressemblerrdquo104

Na sua apologia da ignoracircncia declara que o homem tem como quinhatildeo a

presunccedilatildeo e que a ignoracircncia nos eacute recomendada ateacute pela religiatildeo cristatildeldquo[A] La peste

de lrsquohomme crsquoest lrsquoopinion de sccedilavoirrdquo105

Para Montaigne eacute necessaacuterio derrubar a tola vaidade e sacudir de uma maneira

viva e corajosa os fundamentos ridiacuteculos sobre os quais se fundam as falsas ideias

Insiste continuamente no facto de que natildeo necessitamos do saber produzido pela

filosofia

ldquo[A] Crsquoestoit ce que disoit un senateur Romain des derniers siecles que leurs predecesseurs avoient lrsquoaleine puante agrave lrsquoair et lrsquoestomac musqueacute de bonne conscience et qursquoau rebours ceux de son temps se sentoient au dehors que le parfum puans au dedans toutes sorte de vices crsquoest agrave dire comme je pense qursquoils avoient beaucoup de sccedilavoir et de suffisance et grand faute de preudrsquohommierdquo106

O orgulho humano eacute visto pelo autor como algo que atrapalha fortemente na

busca natildeo do conhecimento filosoacutefico claacutessico mas da sabedoria Soacutecrates eacute

referenciado na ldquoApologierdquo entre outras coisas como um grande saacutebio107 Natildeo porque

ldquo[C] le Dieu de sagesse luy avoit attibueacute le surnom de sagerdquo108 mas porque ele mesmo

natildeo se considerava saacutebio e porque a sua melhor ciecircncia era a ciecircncia da ignoracircncia e a

sua melhor sabedoria a simplicidade de espiacuterito

103Cf Les Essais II 12 p 487 104 Les Essais II 12 p 487 105 Les Essais II 12 p 488 106 Les Essais II 12 p 498 107 Podemos encontrar uma quantidade significativa de estudos acerca da figura de Soacutecrates nos Ensaios Destacamos aqui um artigo escrito por Celso Martins Azar Filho cujo tiacutetulo eacute Montaigne e Soacutecrates cepticismo conhecimento e virtuderdquo que estaacute publicado na Revista Portuguesa de Filosofia Tomo LVIII do ano de 2002 Fasc 4 (pp 829-845) Com o seu artigo o autor propotildee-se examinar qual o lugar e a importacircncia deste filoacutesofo no pensamento de Montaigne 108 Les Essais II 12 p 498

37

O verdadeiro saacutebio segundo Montaigne eacute o homem que aprende que natildeo

aprendeu nada Refere-se a isto de uma maneira muito elucidativa

ldquo[A]Il est adnevenu aux gens veacuteritablement sccedilavans ce qui advient aux espics de bled ils vont srsquoeslevant et se haussant la teste droite et fiere tant qursquoil sont vuides mais quand ils sont pleins et grossis de grain en leur maturiteacute ils commencent agrave srsquohumilier et agrave baisser les cornes Pareillement les hommes ayant tout essayeacute et tout sondeacute nrsquoayant trouveacute en cet amas de science et provision de tant de choses diverses rien de massif et ferme et rien que vaniteacute ils ont renonceacute agrave leur presomption et reconneu leur condition naturellerdquo109

Depois de descrever sinteticamente os atributos do saacutebio Montaigne -

considerado como um pensador que popularizou o pirronismo praticando-o

pessoalmente sobretudo na ldquoApologierdquo - afirma que toda a filosofia estaacute distribuiacuteda por

trecircs geacuteneros A sua principal fonte eacute a ediccedilatildeo das obras de Sexto Empiacuterico que surge em

1569 Montaigne enumera estas trecircs filosofias da seguinte maneira haacute os dogmaacuteticos

os acadeacutemicos e os pirroacutenicos110 Os dogmaacuteticos afirmam que se pode ter acesso agrave

ciecircncia os acadeacutemicos natildeo estatildeo de acordo com os dogmaacuteticos isto eacute consideram que

natildeo se pode ter acesso agrave ciecircncia e os pirroacutenicos estatildeo ainda em busca da verdade Estes

declaram que os que pensam havecirc-la encontrado se enganam infinitamente Segundo

Montaigne os pirroacutenicos tecircm como ofiacutecio

ldquo[A] branler douter et enquerir ne srsquoasseurer de rien de rien ne se respondrerdquo111

Esta atitude condu-los segundo Montaigne agrave ataraxia que eacute uma condiccedilatildeo de

vida tranquila sossegada isenta das agitaccedilotildees que recebemos pela impressatildeo da opiniatildeo

e ciecircncia que julgamos ter das coisas Esta indiferenccedila pela ciecircncia liberta os pirroacutenicos

inclusivamente do espiacuterito de rivalidade quanto agrave sua doutrina debatem de maneira bem

pouco vigorosa Quando dizem que o pesado vai para baixo ficariam bastante

aborrecidos se acreditassem neles Sendo assim os pirroacutenicos segundo Montaigne

procuram que os contradigam para gerar ldquo[A] la dubitation et surceance (suspension)

de jugement qui est leur finrdquo112

Os pirroacutenicos satildeo partidaacuterios da duacutevida extrema Expotildeem as suas opiniotildees

apenas para combater aquelas em que pensam que acreditamos Diz Montaigne

109 Les Essais II 12 p 500 110 Les Essais II 12 p 502 111 Les Essais II 12 p 502 112 Les Essais II 12 p 503

38

ldquo[A] Si vous prenez la leur ils prendront aussi volontiers i la contraire agrave soutenir tout leur est un ils nrsquoy ont aucun chois Si vous establissez que la nege soit noire ils augumentent au rebours qursquoelle est blanche Si vous dites qursquoelle nrsquoest ny lrsquoun ny lrsquoautre crsquoest agrave eux agrave maintenir qursquoelle est tous les deux Si par certain jugement vous tenez que vous nrsquoen sccedilavez rien ils vous maintiedront que vous ne sccedilavez Oui et si par un axiome affirmatif vous asseurez que vous en doutez ils vous iront debattant que vous nrsquoen doutez pas ou que vous ne pouvez juger et etablir que vous en doutez Et par cette extremiteacute de doubte qui se secoue soy-mesme ils se separent et se divisent de plusieurs opinions de celles mesme qui ont maintenu en plusieurs faccedilons le double et lrsquoignorancerdquo113

[hellip] Leurs faccedilon de parler sont Je nrsquoestablis rien il nrsquoest non plus ainsi qursquoainsi ou que ny lrsquoun ny lrsquoautre je ne le comprens point les apparences sont eacutegales par tout la loy de parler et pour et contre est pareille [C] Rien ne semble vray qui ne puisse sembler faux [A] Leur mot sacramental crsquoest ἐπέχω crsquoest agrave dire je soutiens je ne bougerdquo114

Os pirroacutenicos servem-se de sua razatildeo para inquirir e debater mas natildeo para

decidir e escolher

Um outro aspecto que leva Montaigne a identificar-se com o pirronismo a uacutenica

filosofia por ele respeitada eacute a visatildeo pirroacutenica relativamente agraves acccedilotildees da vida Os seus

defensores prestam-se e acomodam-se agraves inclinaccedilotildees naturais ao impulso e agrave imposiccedilatildeo

das paixotildees agraves decisotildees das leis e dos costumes

ldquo[A] Ils laissent guider agrave ces choses lagrave leurs actions communes sans aucune opination ou jugement115

Neste sentido Montaigne defende o pirronismo sobretudo por causa de sua

virtude moral116 Sustenta que eacute importante fomentar o juiacutezo livre ou a suspensatildeo do

juiacutezo que eacute a atitude dos pirroacutenicos Por outro lado natildeo pode concordar com a posiccedilatildeo

dos que aceitam a arbitraacuteria submissatildeo a algum tipo de autoridade ou opiniatildeo (os

dogmaacuteticos) Importa salientar no entanto que o autor da ldquoApologierdquo consegue

distanciar-se dos pirroacutenicos que se recusam a fazer qualquer juiacutezo Montaigne por ser

um pensador livre inclusive dos argumentos pirroacutenicos natildeo suspende os seus proacuteprios

113 Les Essais II 12 p 503 114 Les Essais II 12 p 505 115 Les Essais II 12 p 505 116 Para Montaigne o pirronismo natildeo eacute uma doutrina ou um sistema filosoacutefico do qual ele eacute adepto Eacute sobretudo uma atitude de espiacuterito ou uma tendecircncia do pensamento Ele tem consciecircncia da dificuldade que esta filosofia encontra para consolidar-se em termos de coerecircncia loacutegica Se do ponto de vista loacutegico natildeo haacute soluccedilatildeo permanente satisfatoacuteria para o pirronismo ele torna-se uma opccedilatildeo eacutetica na medida em que possibilita aos seus adeptos ldquo[B] de maintenir leur liberteacute et considerer les choses sans obligation et servituderdquo (Les Essais II 12 p 504)

39

juiacutezos Muito pelo contraacuterio emite muitos Exprime as suas opiniotildees sem cessar Chega

ateacute a afirmar que a razatildeo eacute

ldquo[A] sa pierre de touche agrave toutes sortes drsquoessais mais certes crsquoest une touche pleine de fauceteacute drsquoerreur de foiblesse et defaillancerdquo117

Na ldquoApologierdquo Montaigne recorre aos tropos (segundo a designaccedilatildeo de Sexto

Empiacuterico) tomando-os como os principais argumentos contra a filosofia denominada

dogmaacutetica Estes argumentos ceacutepticos tecircm por finalidade provar que eacute impossiacutevel

alcanccedilar a verdade Fundamentado nas reflexotildees pirroacutenicas natildeo considera a ciecircncia

como um verdadeiro conhecimento O saber humano eacute considerado sem efeito por causa

de todo o tipo de divergecircncias que haacute entre os homens

Haacute segundo Montaigne uma imensa e infinita confusatildeo de opiniotildees entre os

filoacutesofos e tudo isto deve-se ao debate perpeacutetuo e universal acerca do conhecimento das

coisas Eles natildeo estatildeo de acordo em nada nem sequer em que o ceacuteu estaacute por cima das

nossas cabeccedilas118 afirma ironicamente E isto deve-se agrave falta de constacircncia do juiacutezo

Quantas vezes julgamos noacutes as coisas Quantas vezes alteramos as nossas opiniotildees

Nesta perspectiva percebemos a atitude relativista de Montaigne

ldquo[A] Ce que je tiens aujourdhuy et ce que je croy je le tiens et le croy de toute ma croyance tous mes utils et tous mes ressorts empoignent cette opinion et men respondent sur tout ce quils peuvent Je me sccedilaurois embrasser aucune veriteacute ny conserver avec plus de force que je fay cette cy Jy suis tout entier jy suis voyrement mais ne mest il pas advenu non une foi mais cent mais mille et tous les jours davoir embrasseacute quelqursquoautre chose agrave tout ces mesmes instrumens en cette mesme condition que depuis jaye jugeacutee fauce Au moins faut il devenir sage agrave ses propres despansrdquo119

Montaigne natildeo pretende condenar a tendecircncia agrave mudanccedila perene que eacute

constitutiva do homem O que ele pretende eacute que o homem se comporte de uma forma

mais moderada e discreta em face das mudanccedilas Sugere que nos tornemos saacutebios agrave

nossa proacutepria custa120

117 Les Essais II 12 p 540 118 Cf Les Essais II 12 p 563 119 Les Essais II 12 p 563 120 Conche na sua obra de introduccedilatildeo aos Essais intitulada Montaigne ou la conscience heureuse apresenta uma reflexatildeo muito sugestiva relativamente ao tema da sabedoria Para este autor os Essais sugerem-nos que compreendamos a filosofia como uma aprendizagem da sabedoria e natildeo do saber Em seu entender Montaigne natildeo tem nenhum interesse em elaborar um sistema filosoacutefico porque isto supotildee que uma verdade permanece o que ela eacute Um sistema filosoacutefico crecirc que haacute verdades e que elas satildeo acessiacuteveis por evidecircncia ou seja que a certeza posta agrave prova eacute realmente uma certeza de direito Estes princiacutepios satildeo sem valor para Montaigne eleja que este natildeo crecirc na possibilidade de confirmar as nossas certezas (cf Conche 2009 op cit 65)

40

O arauto do juiacutezo eacute o homem concreto que vive uma vida real Natildeo eacute um ser

abstracto Por isso Montaigne afirma

ldquo[A] Ce ne sont pas seulement les fievres les breuvages et les grands accidens qui renversent nostre jugement les moindres choses du monde le tournevirent [hellip] et par conseacutequent agrave peine se peut il rencontrer une seule heure en la vie ougrave nostre jugement se trouve en sa deueuml assiette nostre corps estant subject agrave tant de continuelles mutations et estofeacute de tant de sortes de ressorts que ( jen croy les medecins) combien il est malaiseacute quil ny en ayt tousjours quelquun qui tire de traversrdquo121

Vejamos uma definiccedilatildeo da razatildeo na ldquoApologierdquo

ldquo[A] la raison va tousjours torte et boiteuse et deshancheacutee et avec le mensonge comme avec la veriteacute Par ainsin il est malaiseacute de descouvrir son mescompte et desreglement Jappelle tousjours raison cette apparence de discours que chacun forge en soy cette raison de la condition de laquelle il y en peut avoir cent contraires autour dun mesme subject cest un instrument de plomb et de cire alongeable ployable et accommodable agrave tous biais et agrave toutes mesures il ne reste que la suffisance de le sccedilavoir contournerrdquo122

Atraveacutes desta concepccedilatildeo de razatildeo fica suficientemente clara a criacutetica destruidora

de Montaigne agrave filosofia dogmaacutetica que considera a razatildeo como uma faculdade que

permite ao homem ndash entre tantas outras atribuiccedilotildees ndash conhecer e acumular um saber uacutetil

e julgar sobre o bem e o mal

Envolvendo-se de uma maneira muito pessoal ndash como eacute caracteriacutestico do estilo

literaacuterio dos Essais ndash nesta reflexatildeo sobre a razatildeo Montaigne toma a liberdade de fazer

uma pequena descriccedilatildeo de sua personalidade Vale a pena citar algumas destas

passagens porque satildeo um reflexo do pensamento do autor

ldquo[A] Jay le pied si instable et si mal assis je le trouve si ayseacute agrave crouler et si prest au branle et ma veueuml si desregleacutee que agrave jun je me sens autre quapres le repas si ma santeacute me rid et la clarteacute dun beau jour me voylagrave honneste homme si jay un cor qui me presse lorteil me voylagrave renfroigneacute mal plaisant et inaccessible [hellip] Maintenant je suis agrave tout faire maintenant agrave rien faire ce qui mest plaisir agrave cette heure me sera quelque fois peine [hellip] Ou lhumeur melancholique me tient ou la choleriqu [hellip]Quand je prens des livres jauray apperceu en tel passage des graces excelentes et qui auront feru mon ame quun autre fois jy retombe jay beau le tourner et virer jay beau le plier et le manier cest une masse inconnue et informe pour moy [hellip] [B] [hellip] mon jugement ne tire pas tousjours avant il flotte il vaguerdquo123

121 Les Essais II 12 pp 564-565 122 Les Essais II 12 p 565 123 Les Essais II 12 pp 565-566

41

Montaigne daacute-se claramente conta de que natildeo encontramos seguranccedila nos

nossos juiacutezos As nossas paixotildees apresentam uma enorme quantidade de fantasias

Sobre isto natildeo podemos alcanccedilar nenhuma seguranccedila porque nos deparamos com

coisas muito instaacuteveis e moacuteveis Sustenta aleacutem disso que se os nossos juiacutezos estatildeo nas

matildeos ateacute mesmo da doenccedila e da perturbaccedilatildeo natildeo podemos esperar deles nada seguro

Foi a partir desta consciecircncia de sua volubilidade que Montaigne chegou a

estabelecer em si mesmo uma certa constacircncia de ideias a ponto de dificilmente alterar

as ideias primeiras e naturais como ele mesmo reconhece Afirma no entanto que natildeo

eacute capaz de decidir Por isso adopta as decisotildees de outrem e manteacutem-se na posiccedilatildeo em

que Deus o pocircs O seu ldquoconservadorismordquo124 religioso e ateacute poliacutetico manifesta-se

claramente nos Essais Mas ao mesmo tempo e este eacute o ponto que mais nos interessa

neste trabalho deixa transparecer que o homem eacute sempre convidado a estar aberto agraves

mudanccedilas

ldquo[A] Le ciel et les estoilles ont branleacute trois mille ans tout le monde lavoit ainsi creu jusques agrave ce que [C] Cleanthes le Samien ou selon Theophraste Nicetas Siracusien [A] savisa de maintenir que cestoit la terre qui se mouvoit [C] par le cercle oblique du Zodiaque tournant agrave lentour de son aixieu [A] et de nostre temps Copernicus a si bien fondeacute cette doctrine quil sen sert tres-regleacuteement agrave toutes les consequences Astronomiquesrdquo conclui o autor ldquosinon qursquoil ne nous doit chaloir le quel ce soit des deux Et qui sccedilait qursquoune tierce opinion drsquoicy agrave mille ans ne renverse les deux precedentesrdquo125

124 Trata-se de um termo que natildeo tinha na eacutepoca de Montaigne o mesmo significado que tem hoje isto eacute como oposto de ldquoprogressismordquo Montaigne estava inserido numa sociedade marcada por grandes inovaccedilotildees pretendidas pelos partidaacuterios da Reforma Protestante que se defendiam a ferro e fogo acirrando certezas antes adormecidas e impondo agrave Franccedila as mais seacuterias turbulecircncias ldquo[B] Je suis desgousteacute de la nouvelleteacute quelque visage qursquoelle porte et ay raison car jrsquoen ay veu des effets tres-dommageables Celle qui nous presse depuis tant drsquoans elle nrsquoa pas tout exploicteacute mais on peut dire avec apparence que par accident elle a tout produict et engendre voire et les maux et ruines qui se font depuis sans elle et contre elle crsquoest agrave elle agrave srsquoen prendre au nezrdquo (Les Essais I 23 p 119) Eacute nesta perspectiva que vaacuterios comentadores observam que Montaigne natildeo poderia ser um homem ldquorevolucionaacuteriordquo e sim algueacutem que achasse melhor defender uma confianccedila moderada no lento aperfeiccediloamento das instituiccedilotildees ldquo[C] Les Franccedilois mes contemporaneacutees sccedilavent bien qursquoen dire Toutes grandes mutations esbranlent lrsquoestat et le desordonnentrdquo (Les Essais III 9 p 958) Isto permite compreender melhor alguns dos motivos pelos quais Montaigne assume as posiccedilotildees poliacuteticas e religiosas ldquoconservadorasrdquo que estatildeo presentes nos Essais Muito interessante eacute uma afirmaccedilatildeo de Jean Lacouture na sua obra Montaigne agrave cheval ndash considerada como uma espeacutecie de biografia que denota um entusiasmo significativo e algo romanceado fundamentada numa documentaccedilatildeo importante ndash na qual o autor reflecte sobre esta questatildeo ldquoMontaigne eacute grande o bastante para poder ser avaliado sob outros aspectos que natildeo a obediecircncia agraves praacuteticas e costumes de seu tempo Quando se eacute capaz no que diz respeito agrave justiccedila agrave toleracircncia ao racismo e agrave colonizaccedilatildeo de estar muitos seacuteculos agrave frente dos costumes e ideias de seu tempo pode-se ser julgado sem que consideraccedilotildees de eacutepoca ou de moda sejam levadas em contardquo (In Lacouture Jean Montaigne agrave cheval (Montaigne a cavalo) Traduzido do francecircs por F Rangel Rio de JaneiroSatildeo Paulo Editora Record 1998 p 236) 125 Les Essais II 12 p 570

42

E para fundamentar ainda mais esta ideia cita Lucreacutecio

ldquo[A] Sic volvenda aeligtas commutat tempora rerum Quod fuit in pretio fit nullo denique honore Porro aliud succedit et egrave contemptibus exit Inque dies magis appetitur floreacutetque repertum Laudibus Et miro est mortales inter honore ( ldquoAinsi dans sa course le temps change les conditions des choses ce qui eacutetait appreacutecieacute tombe dans le meacutepris un autre objet remplace le premier et sort du discreacutedit de jour en jour on le recherce davantage la deacutecouverte nouvelle toutes les louanges et une incoyable estime parmi les hommes)rdquo126

Podemos inferir daqui que ldquoos princiacutepios eternosrdquo natildeo tecircm lugar na ldquoApologie

de Raymond Sebondrdquo Montaigne faz questatildeo de observar que antes de os princiacutepios

introduzidos por Aristoacuteteles ganharem creacutedito outros princiacutepios contentavam a razatildeo

humana Os princiacutepios aristoteacutelicos como todos os outros natildeo estatildeo mais livres de ser

expulsos do que estavam os dos seus antecessores

Segundo Montaigne o juiacutezo depende dos sentidos aos quais por sua vez natildeo

podemos dar creacutedito por vaacuterios motivos Vejamos com mais detalhes este aspecto Eacute

justamente nos sentidos que se encontra o maior fundamento e a prova de nossa

ignoracircncia Montaigne baseado na experiecircncia de vida lembra-nos que natildeo haacute sentido

ou aspecto nem recto nem amargo nem doce nem curvo que o espiacuterito humano natildeo

encontre nos escritos que decide esquadrinhar Os sentidos satildeo muito enganadores A

palavra mais liacutempida mais pura e mais perfeita pode tornar-se equiacutevoca Montaigne

refere-se especialmente ao Evangelho127 Fizeram ao longo da histoacuteria ldquotudo e mais

alguma coisardquo com este texto sagrado para os cristatildeos E que ocorreria se estendecircssemos

esta preocupaccedilatildeo de Montaigne aos gestos humanos que querem exprimir ideias ou

sentimentos nas vaacuterias dimensotildees da vida moral poliacutetica etc

ldquo[C] Est-il possible qursquoHomere aye voulu dire tout ce qursquoon luy faict direrdquo128 E com relaccedilatildeo a Platatildeo ldquo[C] Voyez demener et agiter Platon Chacun srsquohororant de lrsquoappliquer agrave soi le couche du costeacute qursquoil le veutrdquo129

Montaigne observa ainda que com frequecircncia eacute difiacutecil decidir-se porque haacute

demasiadas formas de interpretar um determinado assunto para que o homem consiga

encontrar alguma indicaccedilatildeo que lhe sirva para resolver a questatildeo

126 Les Essais II 12 p 570 127 Cf Les Essais II 12 p 585 128 Les Essais II 12 p 586 129 Les Essais II 12 p 587

43

Montaigne afirma que todo o conhecimento chega ateacute noacutes pelos sentidos [A] Ce

sont nos maistresrdquo130 Observa que a ciecircncia comeccedila pelos sentidos e a eles se reduz

Eles satildeo a base e os princiacutepios de toda a construccedilatildeo de nossa ciecircncia E considera que

natildeo haacute absurdo mais extremo do que sustentar que

ldquo[A] le feu nrsquoeschaufe point que la lumiere nrsquoesclaire point qursquoil nrsquoy a point de pesanteur au fer ny de fermeteacute qui sont notices que nous apportent les sens nycreance ou science en lrsquohomme qui se puisse comparer agrave celle-lagrave en certituderdquo131

Montaigne potildee em duacutevida que o homem esteja provido de todos os sentidos

naturais Chega inclusivamente a perguntar-se se natildeo nos falta algum sentido E afirma

que se isto ocorrer nem a nossa razatildeo pode descobrir a sua ausecircncia nem haacute nada agrave

margem dos sentidos que nos possa servir para os descobrir

ldquo[A]Ils font trestons la ligne extreme de nostre faculteacute [hellip] Il est impossible de faire concevoir agrave un homme naturellement aveugle qursquoil nrsquoy void pas impossible de luy faire desirer la veue et regretter son defautrdquo132

Sendo assim afirma que quando formamos uma verdade pela consulta e

cooperaccedilatildeo dos sentidos poderiacuteamos tambeacutem ser levados a considerar que poderia ser

necessaacuteria a convergecircncia e a contribuiccedilatildeo de oito ou dez sentidos para a captar

acertadamente e na sua essecircncia

Uma das criacuteticas fundamentais de Montaigne agrave ciecircncia incide precisamente no

facto de ela se basear nos sentidos Mas como vimos os sentidos satildeo muito incertos e

fraacutegeis Desta extrema dificuldade nascem muitas opiniotildees (ldquofantasiesrdquo)

ldquo[A]Que chaque subjet a en soy tout ce que nous y trouvons qursquoil nrsquoa rien de ce que nous y pensons trouver et celle de Epicuriens que le Soleil nrsquoest non plus grand que ce que nostre veueuml le juge [hellip] (A) que les apparences qui representent un corps grand agrave celuy qui en est voisin et plus petit agrave celuy qui en est esloigneacute sont toutes deux vrayes [hellip] [A]et resolument qursquoil nrsquoy a aucun tromperie aux sens qursquoil faut passer agrave leur mercy et chercher ailleurs des raisons pour excuser la difference et contradiction que nous y trouvons voyre inventer toute autre mensonge et resverie (ils en viennent jusques lagrave) plustot que drsquoaccuser les sens [hellip] [A] De toutes les absurditez la plus absurde [C] aux Epicuriens [A] est davouumler la force et effect des sensrdquo133

130 Les Essais II 12 p 587 131 Les Essais II 12 p 588 132 Les Essais II 12 p 589 133 Les Essais II 12 p 591

44

Segundo Montaigne natildeo podemos livrar-nos dos sentidos se queremos construir

o conhecimento Mas os sentidos satildeo incertos falsificaacuteveis e enganadores134 E entende

tambeacutem que se eacute verdade que os sentidos satildeo os nossos primeiros juiacutezes135 entatildeo natildeo

devemos limitar-nos a convocar apenas os nossos para o conselho pois no que se refere

aos sentidos os animais tecircm tanto direito quanto noacutes ou mais Montaigne observa ainda

que os sentidos do homem estatildeo em desacordo com os sentidos dos animais E eacute por isto

que

ldquo[A] Pour le jugement de lrsquoaction des sens il faudroit donc que nous en fussions premierement drsquoaccord avec les bestes secondement entre nous mesmes [hellip] et entrons en debat tous les coups de ce que lrsquoun oit void ou goute quelque chose autrement qursquoun autre et debatons autant que drsquoautre chose de la diversiteacute des images que le sens nous raportentrdquo136

Concluindo a exposiccedilatildeo acerca dos sentidos Montaigne lembra-nos que os

sentidos satildeo para algumas pessoas mais obscuros e mais velados enquanto que para

outras pessoas satildeo mais claros e apurados Em seu entender recebemos as coisas de

forma diferente de acordo com o que somos e com o que nos parece Mas se o parecer

nos eacute tatildeo incerto e controverso

ldquo[A] Ce nrsquoest plus miracle si on nous dict que nous pouvons avoueumlr que la neige nous apparoit blanche mais que drsquoestablir si de son essence elle est telle et agrave la veriteacute nous ne nous en sccedilaurions respondrerdquo137

Tendo em conta todos os atributos dos sentidos acima mencionados Montaigne

dificilmente poderia chegar a uma outra conclusatildeo

ldquo[A] ce commencement esbranleacute toute la science du monde srsquoen va necessairement agrave vau-lrsquoeaurdquo138

Referindo-se a Teofrasto Montaigne recorda-nos que este pensador dizia que o

conhecimento humano guiado pelos sentidos podia julgar sobre as causas das coisas

ateacute certo ponto Mas que ao chegar agraves causas extremas e primeiras tinha de deter-se a

embotar-se devido ou agrave sua fragilidade ou agrave dificuldade das coisas Montaigne afirma

134 Assim como os sentidos satildeo enganadores satildeo tambeacutem enganados ldquo[A] Cette mesme piperie que les sens apportent agrave nostre entendement ils la reccediloivent agrave leur tour Nostre ame par fois srsquoen revenche de mesme [C] ils mentent et se trompent agrave lrsquoenvy [A] Ce que nous voyons et oyons agitez de colere nous ne lrsquooyons pas tel qursquoil est [hellip] Lrsquoobject que nous aymons nous semble plus beau qursquoil est [hellip] [A] et plus laid celuy que nous avons agrave contre coeur [hellip] Nos sens sont non seulement alterez mais souvent hebelez du tout par les passions de lrsquoame Combien de choses voyons nous que nous nrsquoa appercevons pas si nous avons nostre esprit empescheacute ailleurs (Les Essais II 12 pp 495-496) 135 Cf Les Essais II 12 p 596 136 Les Essais II 12 p 598 137 Les Essais II 12 pp 598-599 138 Les Essais II 12 p 599

45

ldquo[A] Cest une opinion moyenne et douce que nostre suffisance nous peut conduire jusques agrave la cognoissance daucunes choses et quelle a certaines mesures de puissance outre lesquelles cest temeriteacute de lemployer Cette opinion est plausible et introduicte par gens de composition mais il est malaiseacute de donner bornes agrave nostre esprit il est curieux et avide et na point occasion de sarrester plus tost agrave mille pas quagrave cinquanterdquo139

Montaigne procura aqui justificar a sua tese de que o conhecimento empiacuterico ou

sensiacutevel natildeo tem condiccedilotildees para permitir captar princiacutepios e verdades universais A

razatildeo humana por ser um instrumento impotente natildeo consegue dar explicaccedilotildees

convincentes das grandes questotildees da humanidade Consegue apenas explicar algumas

poucas coisas Se a razatildeo eacute incapaz de dar respostas profundas e aceitaacuteveis agraves grandes

questotildees ndash como por exemplo agraves causas primeiras ndash ela eacute descartaacutevel e no que toca agrave

busca do conhecimento natildeo serve para quase nada Daiacute que Montaigne afirme que o

homem eacute capaz de todas as coisas e de nenhuma E se confessa a ignoracircncia das causas

primeiras e dos princiacutepios entatildeo que abandone tambeacutem prontamente todo o resto da sua

ciecircncia

Se a alma conhecesse alguma coisa comeccedilaria por se conhecer a si mesma

ldquo[A] et si elle sccedilavoit quelque chose elle se sccedilauroit premierement elle mesme et si elle sccedilavoit quelque chose hors drsquoelle ce seroit son corps et son estuy avant toute autre choserdquo140

Montaigne refere-se aqui especialmente ao chamado conhecimento da medicina

Para ele a medicina natildeo consegue sair do ciclo vicioso das discussotildees Ressalta o facto

de que ldquoles dieuxrdquo desta ciecircncia tambeacutem natildeo conseguem chegar a acordo algum Daiacute

mais uma vez a atitude pirroacutenica de Montaigne

ldquo[A] Si lrsquohomme ne se connoit comment connoit il ses fonctions et ses forcesrdquo141

O autor debate-se com o problema da verdade o que eacute a verdade Na

ldquoApologierdquo sustenta que a verdade eacute inacessiacutevel e flutuante Neste ponto Montaigne eacute

fiel ao cepticismo que tem como caracteriacutestica dominante a atitude de estar sempre em

busca da verdade num processo que ocorre sempre dentro de um eterno movimento e

nunca se fixa definitivamente em nenhum ponto

139 Les Essais II 12 p 560 140 Les Essais II 12 p 561 141 Les Essais II 12 p 561

46

ldquo[B] La veueuml de nostre jugement se rapporte agrave la veriteacute comme faict loeil du chat-huant agrave la splendeur du Soleil ainsi que dit Aristote Par ougrave le sccedilaurions nous mieux convaincre que par si grossiers aveuglemens en une si apparente lumiererdquo142

Esta concepccedilatildeo flutuante da verdade eacute uma caracteriacutestica distintiva natildeo soacute da

ldquoApologierdquo mas tambeacutem de outros ensaios montaigneanos O autor natildeo faz nenhuma

afirmaccedilatildeo definitiva sobre nenhuma questatildeo A sua preocupaccedilatildeo principal natildeo eacute

encontrar a soluccedilatildeo dos diversos problemas que envolvem o homem mas sim tentar

compreender-se a si proacuteprio ldquo[hellip] je suis moy-mesmes la matiere de mon livrerdquo143 Isto

exclui as verdades fixadas pela tradiccedilatildeo filosoacutefica e neste sentido o pensamento de

Montaigne desenvolve-se agrave margem do dogmatismo Rejeita os pedantes isto eacute aqueles

que acreditam que adquirem o conhecimento utilizando termos palavras ou frases

obscuros

Montaigne insiste na dimensatildeo instaacutevel e incerta do nosso conhecimento que

natildeo consegue alcanccedilar a verdade

ldquo[A] Toutes choses produites par nostre propre discours et suffisance autant vrayes que fauces sont subjectes agrave incertitude et debat Cest pour le chastiement de nostre fierteacute et instruction de nostre misere et incapaciteacute que Dieu produisit le trouble et la confusion de lancienne tour de Babel Tout ce que nous entreprenons sans son assistance tout ce que nous voyons sans la lampe de sa grace ce nest que vaniteacute et folie Lessence mesme de la veriteacute qui est uniforme et constante quand la fortune nous en donne la possession nous la corrompons et abastardissons par nostre foiblesserdquo144

A verdade deve ter ldquo[A] un visage pareil et universelrdquo145 Uma outra

caracteriacutestica da verdade salientada por Montaigne eacute que ela ldquo[A] ne se juge point par

authoriteacute et tesmoignage drsquoautruyrdquo146 Neste sentido a verdade eacute fundamentalmente

pessoal Observando cuidadosamente estes atributos da verdade podemos perceber por

que razatildeo Montaigne faz a seguinte afirmaccedilatildeo

ldquo[A] la veriteacute est engoufleacutee dans des profonds abysmes ougrave la veueuml humaine ne peut penetrerrdquo147

Dito de outro modo a verdade estaacute oculta em Deus e natildeo eacute propriamente dos

homens dos filoacutesofos dos doutos

142 Les Essais II 12 p 552 143 Les Essais Au lecteur p 3 144 Les Essais II 12 p 553 145 Les Essais II 12 pp 578-579 146 Les Essais II 12 p 507 147 Les Essais II 12 p 561

47

ldquo[A] Crsquoest agrave elle (la majesteacute divine) seule qursquoapartient la science et la sapiencerdquo148

A criacutetica montaigneana agrave razatildeo humana manifesta aqui a impossibilidade de se

ter um conhecimento crediacutevel em todos os domiacutenios da vida A razatildeo por ser

infinitamente limitada natildeo consegue chegar a ser uma faculdade que garanta a

descoberta e por conseguinte a sistematizaccedilatildeo da verdade que eacute algo moacutevel pessoal

temporal e tambeacutem paradoxal

Lendo os pensadores antigos Montaigne suscita uma questatildeo fundamental Em

seu entender haacute uma espeacutecie de distanciamento ou divoacutercio entre o conhecimento da

essecircncia e o conhecimento da aparecircncia Como eacute possiacutevel entatildeo observa Montaigne

que eles se deixam vencer pela verosimilhanccedila se natildeo conhecem a verdade Como eacute

possiacutevel que conheccedilam a aparecircncia de algo cuja essecircncia natildeo conhecem Diante destas

dificuldades o autor da ldquoApologierdquo sustenta

ldquo[A] Ou nous pouvons juger tout agrave faict ou tout agrave faict nous ne le pouvons pas Si noz facultez intellectuelles et sensibles sont sans fondement et sans pied si elles ne font que floter et vanter pour neant laissons nous emporter nostre jugement agrave aucune partie de leur operation quelque apparence quelle semble nous presenter et la plus seure assiette de nostre entendement et la plus heureuse ce seroit celle-lagrave ougrave il se maintiendroit rassis droit inflexible sans bransle et sans agitationrdquo149

Segundo Montaigne as coisas natildeo se alojam em noacutes com a sua forma e a sua

essecircncia Se assim fosse recebecirc-las-iacuteamos dessa forma O vinho seria o mesmo na boca

de quem quer que fosse Mas natildeo eacute o que acontece a filosofia causa uma infinita

confusatildeo de opiniotildees e um eterno debate sobre o conhecimento das coisas Deixemos o

proacuteprio autor falar

ldquo[A]Car cela est presuposeacute tres-veritablement que de aucune chose les hommes je dy les sccedilavans les mieux nais les plus suffisans ne sont daccord non pas que le ciel soit sur nostre teste car ceux qui doutent de tout doutent aussi de cela et ceux qui nient que nous puissions aucune chose comprendre disent que nous navons pas compris que le ciel soit sur nostre teste et ces deux opinions sont en nombre sans comparaison les plus fortesrdquo150

Montaigne reconhece que os seus juiacutezos acerca de tudo aquilo que eacute falso eou

verdadeiro ocorrem de uma maneira condicionada dependendo da sua situaccedilatildeo interior

148 Les Essais II 12 p 448 149 Les Essais II 12 p 562 150 Les Essais II 12 p 563

48

e exterior A sua posiccedilatildeo em face das diversas situaccedilotildees concretas da vida eacute muito

dependente das suas opiniotildees que podem ser hoje umas e outras diferentes ou ateacute

contraacuterias amanhatilde Em seu entender ateacute o proacuteprio ar que respiramos e a serenidade do

ceacuteu produzem em noacutes alguma alteraccedilatildeo Recorda um verso de Ciacutecero

ldquo[A] Tales sunt hominum mentes quali pater ipse Juppiter auctifera lustravit lampade terras (Les penseacutees des hommes changent avec les rayons feacutecundants du soleil que Jupiter leur envoie)rdquo151

Noutro ensaio do livro III intitulado ldquoDu repentirrdquo Montaigne depois de afirmar

que o mundo eacute movimento e que tudo nele muda continuadamente faz uma observaccedilatildeo

de grande importacircncia que pode ser inserida neste contexto

ldquo[B] Tant y a que je me contredits bien agrave lrsquoaventure mais la veriteacute comme disoit Demandes je ne la contredy point Si mon ame pouvoit prendre pied je ne mrsquoessaierois pas je me resoudrois elle est toujours en apprentissage et en espreuverdquo152

Montaigne questiona de forma radical todos os que se orgulham de sua razatildeo e

acreditam na certeza de todos os seus princiacutepios Utiliza a proacutepria razatildeo para arruinar a

razatildeo dos filoacutesofos profissionais ou seja os seguidores cegos da loacutegica aristoteacutelica Em

suma combate a razatildeo com a proacutepria razatildeo e nega o seu valor

No texto seguinte Montaigne faz uma espeacutecie de caracterizaccedilatildeo da

escolaacutestica153 e da loacutegica aristoteacutelica154 Eacute um texto fundamental da ldquoApologierdquo no

qual o autor se refere claramente agrave hierarquia filosoacutefica aristoteacutelica na qual

encontramos a metafiacutesica como ldquociecircncia mais correctardquo

ldquo[A] Il est bien aiseacute sur des fondemens avouez de bastir ce quon veut car selon la loy et ordonnance de ce commencement le reste des pieces du bastiment se conduit ayseacuteement sans se deacutementir Par cette voye nous trouvons nostre raison bien fondeacutee et discourons agrave boule veue car nos maistres praeligoccupent et gaignent avant main autant de lieu en nostre creance quil leur en faut pour conclurre apres ce quils veulent agrave la mode des Geometriens par leurs demandes avoueacutees le consentement et

151 Les Essais II 12 p 564 152 Les Essais III 2 p 805 153 Na eacutepoca em que Montaigne escreveu a ldquoApologierdquo a doutrina escolaacutestica era caracterizada por um excesso de formalismo e de abstracccedilatildeo o que o levou a demonstrar uma aversatildeo profunda por essa filosofia 154 Segundo Friedrich haacute na ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo alguns ldquofaibles tracesrdquo de uma leitura de Aristoacuteteles jaacute que naquela eacutepoca este pensador grego exercia a sua uacuteltima grande influecircncia sobre os humanistas Aristoacuteteles eacute para Montaigne a ldquoquintessencerdquo da autoridade magistral que obstaculiza a sua relaccedilatildeo livre com a tradiccedilatildeo ldquoSa doctrine nous sert de loy magistrale qui est agrave lrsquoaventure autant fause qursquoune autrerdquo (Les Essais II 12 p 521 a 279) Friedrich observa no entanto que natildeo eacute possiacutevel fixar exactamente em que medida Montaigne leu Aristoacuteteles e considera que natildeo se trata de uma leitura muito soacutelida (Cf Friedrich op cit p 67)

49

approbation que nous leurs prestons leur donnant dequoy nous trainer agrave gauche et agrave dextre et nous pyroueter agrave leur volonteacute Quiconque est creu de ses presuppositions il est nostre maistre et nostre Dieu il prendra le plant de ses fondemens si ample et si aiseacute que par iceux il nous pourra monter sil veut jusques aux nueumls En cette pratique et negotiation de science nous avons pris pour argent content le mot de Pythagoras que chaque expert doit estre creu en son art Le dialecticien se rapporte au grammairien de la signification des mots le Rhetoricien emprunte du Dialecticien les lieux des arguments le poete du musicien les mesures le geometrien de larithmeticien les proportions les metaphysiciens prennent pour fondement les conjectures de la physique Car chasque science a ses principes presupposez par ougrave le jugement humain est brideacute de toutes parts Si vous venez agrave choquer cette barriere en laquelle gist la principale erreur ils ont incontinent cette sentence en la bouche quil ne faut pas debattre contre ceux qui nient les principesrdquo155

Se a verdade ndash como tudo parece indicar ndash se daacute a conhecer atraveacutes das causas ndash

haveraacute que fazer referecircncia agraves quatro causas156 presentes na filosofia aristoteacutelica Se o

homem realmente conseguir conhecer estas causas teraacute um conhecimento ldquocientiacuteficordquo

da substacircncia que procura Por isso Montaigne quer invalidar a filosofia dita dogmaacutetica

de Aristoacuteteles rejeitando claramente a tese das quatro causas Em seu entender esta

teoria natildeo passa de um engano O autor da ldquoApologierdquo sugere que a teoria das quatro

causas soacute serve para prejudicar os homens que ludibriados pelo poder da razatildeo natildeo

cessam de correr atraacutes do conhecimento das causas que lhe eacute por seu turno inacessiacutevel

A verdade das causas estaacute acima de nossas capacidades racionais

Assumindo a postura pirroacutenica de Sexto Empiacuterico ndash que foi aliaacutes um aceacuterrimo

opositor de Aristoacuteteles ndash Montaigne procurou fazer algo semelhante Isto eacute procurou

atacar as bases da ciecircncia escolaacutestica (sobretudo preocupada em conciliar a razatildeo com a

feacute apoiando-se na filosofia grega principalmente a aristoteacutelica) e por conseguinte de

todos os outros sistemas dogmaacuteticos Numa perspectiva ceacuteptica sextiana Montaigne

trava uma batalha contra os princiacutepios da metafiacutesica tidos como os mais correctos Esta

visatildeo aristoteacutelica quer estabelecer uma ligaccedilatildeo entre o pensamento e o juiacutezo humanos e

os obriga a natildeo evitar as questotildees preacute-existentes Segundo Montaigne esta concepccedilatildeo

155 Les Essais II 12 p 540 156 Aristoacuteteles apresenta estas causas particularmente nos livros I e II da Metafiacutesica Satildeo elas causa material isto eacute aquilo de que eacute feita uma coisa por exemplo a mateacuteria do homem eacute a carne e os ossos a mateacuteria da mesa eacute a madeira e assim por diante causa formal isto eacute a forma ou essecircncia das coisas por exemplo o rio e o mar satildeo as formas da aacutegua um tapete eacute a forma assumida pela mateacuteria latilde com a acccedilatildeo do artiacutefice causa eficiente ou motriz isto eacute aquilo de que provecircm a mudanccedila e o movimento das coisas por exemplo o artiacutefice eacute a causa eficiente que faz a latilde receber a forma do tapete o gelo eacute a forma que faz os corpos quentes tornarem-se frios e causa final isto eacute a causa que constitui o fim ou o propoacutesito das coisas e acccedilotildees por exemplo o bem eacute a causa final da poliacutetica a felicidade eacute a causa final da acccedilatildeo eacutetica e assim por diante

50

tambeacutem natildeo potildee em evidecircncia o facto de que o conhecimento adquirido por este

processo fica enclausurado dentro de um ciacuterculo vicioso Deixemos o proacuteprio autor

falar

ldquo[A] Pour juger des apparences que nous recevons des subjets il nous faudroit un instrument judicatoire pour verifier cet instrument il nous y faut de la demonstration pour verifier la demonstration un instrument nous voila au rouet Puis que les sens ne peuvent arrester nostre dispute estans pleins eux-mesmes dincertitude il faut que ce soit la raison aucune raison ne sestablira sans une autre raison nous voylagrave agrave reculons jusques agrave linfiny Nostre fantasie ne sapplique pas aux choses estrangeres ains elle est conceue par lentremise des sens et les sens ne comprennent pas le subject estranger ains seulement leurs propres passions et par ainsi la fantasie et apparence nest pas du subject ains seulement de la passion et souffrance du sens laquelle passion et subject sont choses diverses parquoy qui juge par les apparences juge par chose autre que le subject [hellip]rdquo157

Os escolaacutesticos natildeo testaram as suas ideias atraveacutes dos factosldquoIls ne se

rapportent pas agrave lrsquoexpeacuterience ils nrsquoessaient jamais leurs opinions Leur travail consiste

uniquement agrave tirer des deacuteductions de principes et drsquoaxiomes qursquoils nrsquoexaminent jamais

Leurs principes sont faux les conseacutequences qursquoils en deacuteduisent sont donc fausses

neacutecessairement mais ils ne srsquoen soucient pas La meacutethode scolastique et logicienne

triomphe toujours et rend tous les efforts steacuterilesrdquo158 Montaigne daacute-se conta de que a

capacidade do homem de conhecer algo estaacute profundamente relacionada com a

contingecircncia e que esta mesma capacidade estaacute subordinada aos sentidos que satildeo

ldquomaintesfois maistres du discoursrdquo159 mas que ao mesmo tempo satildeo incertos e

falsificaacuteveis E portanto esta ciecircncia eacute incapaz de chegar a certezas crediacuteveis

157 Les Essais II 12 pp 600-601 158 Villey op cit pp 214-215 159 Les Essais II 12 p 592

51

4 A criacutetica agrave razatildeo humana e o relativismo da moral

Quando lemos a ldquoApologie de Raymond de Sebondrdquo aleacutem de nos depararmos

com problemas claacutessicos da filosofia como a criacutetica agrave teoria do conhecimento

deparamo-nos tambeacutem com o problema da moral de que o autor se ocupa de uma

maneira muito particular Natildeo apresentaremos neste capiacutetulo uma abordagem detalhada

e detida do tema da moral na ldquoApologierdquo Isto exigiria uma investigaccedilatildeo aprofundada e

de maior amplitude uma vez que o autor desenvolve neste texto muitos aspectos

importantes deste tema

Limitar-nos-emos a procurar perceber por que razatildeo o autor ldquodecretardquo a

impossibilidade de fundamentar na razatildeo humana um conjunto de normas ou leis que

dizem respeito agrave vida praacutetica de qualquer grupo humano Perseguindo este objectivo

procuraremos reconstruir os vaacuterios argumentos do ensaio que justificam a sua tomada

de posiccedilatildeo no acircmbito da moral160

Para contextualizar um pouco a questatildeo da moral nos Essais eacute importante

observar que no periacuteodo do humanismo renascentista se fazia sentir a necessidade de

emitir juiacutezos que fossem coerentes de se informar dos costumes dos homens tanto dos

antigos como dos povos que habitavam terras longiacutenquas Todos queriam rever a sua

ideia de homem Tratava-se de uma busca aberta e muitos ofereciam a sua contribuiccedilatildeo

como afirma Villey161 Tampouco Montaigne se demitiu desta tarefa Envolveu-se com

empenho na tarefa de perceber o que eacute o homem Para isto misturou muitas histoacuterias

antigas e contemporacircneas com inuacutemeras reflexotildees de viajantes que vinham de terras

distantes sobretudo daquelas que foram invadidas e ocupadas por europeus nelas

encontra uma confirmaccedilatildeo da tese segundo a qual a multiplicidade irreconciliaacutevel e a

diversidade mais ampla satildeo a uacutenica marca do ser As teses ceacutepticas de Montaigne

revelam-se de uma maneira particularmente radical no campo da moral neste acircmbito

adquiriraacute uma importacircncia capital a diversidade dos costumes como argumento contra a

moral ldquoracionalrdquo

160 Segundo Villey Montaigne toma consciecircncia do relativismo relativo ao conhecimento natildeo apenas nas noccedilotildees de metafiacutesica mas tambeacutem nas noccedilotildees de moral Neste ponto teraacute uma influecircncia muito importante sobretudo a sua leitura de Sexto Empiacuterico Nesta perspectiva Montaigne pode ser visto como um moralista O mesmo autor afirma que eacute principalmente nas ideias morais que podemos perceber nitidamente o relativismo montaigneano (cf Villey op cit pp188-189) 161 Cf Villey op cit p189

52

Na ldquoApologierdquo Montaigne deteacutem-se a considerar que todas as sociedades tecircm

necessidade das leis Ele tem perfeita consciecircncia de que sem leis nenhuma sociedade

poderaacute ter vida longa A obediecircncia agraves leis162 eacute uma condiccedilatildeo sine qua non para a

sobrevivecircncia de qualquer grupo social Montaigne natildeo leva a ingenuidade ao ponto de

negar pura e simplesmente a necessidade das leis e normas Neste sentido pensa como

Epicuro isto eacute considera que mesmo as piores leis nos satildeo tatildeo necessaacuterias que sem

elas os homens se devorariam uns aos outros163 No mesmo paraacutegrafo Montaigne

observa que tambeacutem Platatildeo distanciando-se pouco desta tese sustenta que sem leis

viveriacuteamos como animais selvagens e se empenha em provaacute-lo

ldquo[A] Nostre esprit est un util vagabond dangereux et temeraire il est malaiseacute dy joindre lordre et la mesure Et de mon temps ceux qui ont quelque rare excellence au dessus des autres et quelque vivaciteacute extraordinaire nous les voyons quasi tous desbordez en licence dopinions et de meurs Cest miracle sil sen rencontre un rassis et sociable On a raison de donner agrave lesprit humain les barrieres les plus contraintes quon peut En lestude comme au reste il luy faut compter et regler ses marches il luy faut tailler par art les limites de sa chasserdquo164

Ao citar Epicuro e Platatildeo o autor da ldquoApologierdquo manifesta a sua decepccedilatildeo

relativamente ao homem de sua eacutepoca Certamente estes pensadores trazem-lhe agrave

memoacuteria a situaccedilatildeo concreta em que estava mergulhada a sociedade francesa naquela

eacutepoca Lendo de uma forma atenta a sua obra eacute faacutecil comprovar que Montaigne era

consciente de tudo o que se passava no seu paiacutes guerras conflitos religiosos profundos

e actos de violecircncia deles derivados

Laschamp ao descrever algumas caracteriacutesticas do contexto no qual Montaigne

elabora a sua obra afirma

162 Haacute uma quantidade significativa de afirmaccedilotildees nos Essais acerca da necessidade do cumprimento da lei independentemente de esta ser ou natildeo justa Vejamos algumas ldquo [C] Il nrsquoest rien si lourdement et largement fautier que les loix ny si ordinairement [B] Quiconque leur obeyt pas justement par ougrave il doibt [hellip] [B]Or les loix se maintiennent en credit non par ce qursquoelles sont justes mais par ce qursquoelles sont loix Crsquoest le fondement mystique de leur authoriteacute elles nrsquoen ont poinct drsquoautrerdquo (Les Essais III 13 p 1072) Montaigne chega ateacute a afirmar que ldquo[A] ce bon et grand Socrates refusa de sauver sa vie par la desobeissance du magistrat voire drsquoun magistrat tres-injuste et tres-inique Car crsquoest la regle des regles et generale loy des loix que chacun observe celles du lieu ougrave il est [hellip]rdquo (Les Essais I 23 p 118) ldquo[A] Jen diray seulement encore cela que cest la seule humiliteacute et submission qui peut effectuer un homme de bien Il ne faut pas laisser au jugement de chacun la cognoissance de son devoir il le luy faut prescrire non pas le laisser choisir agrave son discours autrement selon limbecilliteacute et varieteacute infinie de nos raisons et opinions nous nous forgerions en fin des devoirs qui nous mettroient agrave nous manger les uns les autres comme dit Epicurusrdquo (Essais II 12 p 488) 163 Cf Les Essais II 12 p 558 164 Les Essais II 12 p 559

53

ldquoLes violences entre les dissidents eacutegalaient celles dont ils eacutetaient lrsquoobjet de la part de leurs adversaires Jamais lrsquoabus du raisonnement nrsquoavait eacuteteacute pousseacute plus loin jamais il nrsquoavait deacutechacircneacute tant de colegraveres jamais il nrsquoavait fait couler tant de larmes et tant de sangrdquo165

Assim se compreende melhor por que razatildeo Montaigne afirma que na sua

eacutepoca os que tecircm alguma rara excelecircncia acima dos outros e uma vivacidade

extraordinaacuteria os excedem em desregramento de ideias e de costumes e praticam acccedilotildees

que impedem a felicidade dos homens

Montaigne na qualidade de libre penseur natildeo poderia deixar de defender a

liberdade de pensamento Mas ao mesmo tempo sabe tambeacutem que se esta liberdade

estiver sujeita agrave vaidade da razatildeo muitas atitudes humanas inclusive religiosas como

vimos anteriormente poderatildeo tornar-se nocivas para o homem Ao descrever algumas

das caracteriacutesticas da liberdade de que davam prova os antigos na filosofia e ao fazer

um paralelo com a sociedade de sua eacutepoca afirma

ldquo[A] La liberteacute donq et gaillardise de ces esprits anciens produisoit en la philosophie et sciences humaines plusieurs sectes dopinions differentes chacun entreprenant de juger et de choisir pour prendre party Mais agrave present [C] que les hommes vont tous un train [hellip] et [A] que nous recevons les arts par civile authoriteacute et ordonnance [C] si que les escholes nont quun patron et pareille institution et discipline circonscrite on ne regarde plus ce que les monnoyes poisent et valent mais chacun agrave son tour les reccediloit selon le pris que lapprobation commune et le cours leur donneOn ne plaide pas de lalloy mais de lusage ainsi se mettent egallement toutes choses On reccediloit la medicine comme la Geometrie et les batelages les enchantemens les liaisons le commerce des esprits des trespassez les prognostications les domifications et jusques agrave cette ridicule poursuitte de la pierre philosophale tout se met sans contredictrdquo166

Montaigne escreve a sua obra mergulhado num clima onde reinava uma

ldquoanarchie dans les ideacutees et dans les faitsrdquo167 e coloca-se na atitude de ajudado pelos

costumes antigos julgar o seu tempo Segundo Villey eacute exactamente neste contexto

muito conturbado que Montaigne entra em contacto com o livro de Sexto Empiacuterico

ldquoVoilagrave ougrave lrsquoinfluence du milieu et sa propre dociliteacute aux faits lrsquoont conduit Presque toujours crsquoest la loi politique et morale agrave laquelle il est naturellement assujetti que lrsquoesprit eacuterige en loi absolue Montaigne a affranchi sa raison de cette contrainte naturelle il sait critiquer la loi

165 Laschamp op cit p 104 166 Les Essais II 12 pp 559-560 167 Laschamp op cit p 94

54

que son milieu lui impose crsquoest un pas drsquoune extrecircme importance qursquoil a fait lagrave vers lrsquoideacutee de relativiteacuterdquo168

Montaigne descreve alguns aspectos que comprovam o seu relativismo face aos

costumes de vaacuterios povos sobretudo quando os relaciona com os de Franccedila Com isto o

autor quer sugerir possivelmente que as crenccedilas os juiacutezos e as opiniotildees dos homens

estatildeo sujeitos agraves inconstacircncias perenes que haacute na vida concreta

ldquo[A] si le ciel les agite et les roule agrave sa poste quelle magistrale authoriteacute et permanante leur allons nous attribuant [hellip] [B] en maniere que ainsi que les fruicts naissent divers et les animaux les hommes naissent aussi plus et moins belliqueux justes temperans et dociles icy subjects au vin ailleurs au larecin ou agrave la paillardise icy enclins agrave superstition ailleurs agrave la mescreance [C] icy agrave la liberteacute icy agrave la servitude [hellip] [B] que deviennent toutes ces belles prerogatives dequoy nous nous allons flatants Puis quun homme sage se peut mesconter et cent hommes et plusieurs nations voire et lhumaine nature selon nous se mesconte plusieurs siecles en cecy ou en cela quelle seureteacute avons nous que par fois elle cesse de se mesconter [C] et quen ce siecle elle ne soit en mescomte [A] Il me semble entre autres tesmoignages de nostre imbecilliteacute que celui-cy ne merite pas destre oublieacute que par desir mesmes lhomme ne sccedilache trouver ce quil luy faut que non par jouyssance mais par imagination et par souhait nous ne puissions estre daccord de ce dequoy nous avons besoing pour nous contenter Laissons agrave nostre penseacutee tailler et coudre agrave son plaisir elle ne pourra pas seulement desirer ce qui luy est propre [C] et se satisfaire [hellip]rdquo169

Segundo Montaigne a verdade de uma teoria moral ndash como a de qualquer outro

conhecimento ndash soacute pode ser afirmada relativamente ao sujeito que estaacute implicado nesta

tarefa O homem que reflecte sobre a moral reflecte sobre si proacuteprio e natildeo sobre a

humanidade em geral Desta perspectiva podemos perceber por que razatildeo Montaigne

afirma que eacute ele proacuteprio a mateacuteria de seu livro170 Eacute o proacuteprio Montaigne que nos toca

ainda mais de perto do que o homem em geral

Montaigne observa que natildeo haacute entre os filoacutesofos combate tatildeo violento e tatildeo rude

como o que se trava acerca da questatildeo do soberano bem do homem

ldquo[A] Il nest point de combat si violent entre les philosophes et si aspre que celuy qui se dresse sur la question du souverain bien de lhommerdquo171

168 Villey op cit p 193 169 Les Essais II 12 pp 575-576 170 Cf nota 143 171 Les Essais II 12 p 577

55

Trata-se de uma questatildeo muito sensiacutevel para Montaigne Em se entender eacute inuacutetil

acrescentar mais uma seita agraves 288 que nasceram segundo o caacutelculo de Varron acerca

da questatildeo do soberano bem172

Montaigne inicia a ldquoApologierdquo afirmando que alguns filoacutesofos pensavam que o

soberano bem estava na ciecircncia173

Mas natildeo acreditava que fosse atraveacutes da ciecircncia174 (moral e filosoacutefica) que o

homem conseguiria ser mais saacutebio e mais feliz O autor natildeo se preocupa em fornecer

exactamente o ldquoendereccedilordquo do bem soberano Vejamos como apresenta algumas

indicaccedilotildees relativas agraves vaacuterias tentativas dos filoacutesofos para encontrarem o bem soberano

esse bem que varia conforme o indiviacuteduo

ldquo[A] Nature devroit ainsi respondre agrave leurs contestations et agrave leurs debats Les uns disent nostre bien estre loger en la vertu dautres en la volupteacute dautres au consentir agrave nature qui en la science [C] qui agrave navoir point de douleur [A] qui agrave ne se laisser emporter aux apparences (et agrave cette fantasie semble retirer cetautre [B] de lantien Pythagoras [hellip] [A] qui est la fin de la secte Pyrrhonienne) rdquo175

Fiel aos argumentos do pirronismo Montaigne sustenta que o soberano bem eacute a

ataraxia Segundo ele a sabedoria indica-nos que eacute necessaacuterio procurar manter na alma

um harmonioso equiliacutebrio A ataraxia foi sempre considerada pelos seguidores do

pirronismo como a coroaccedilatildeo da sua filosofia segundo Andreacute Verdan176 Vejamos

textualmente o que diz Sexto acerca da ataraxia como objectivo de sua doutrina ceacuteptica

filosoacutefica

ldquoIl est propos de dire ici quelque chose de la fin de la Sceptique La fin en geacuteneacuteral est ce pour quoi on fait ou on consideacutere toutes Choses crsquoest ce que lrsquoon ne recherche point pour quelque autre Chose crsquoest ce qui est la dernieacutere Chose que lrsquoon recherche Nous disons donc maintenant que la fin du Filosofe Sceptique est lrsquoAtaraxie ou lrsquoexemtion de trouble agrave lrsquoeacutegard des opinions [hellip] amp alors lrsquoAtaraxie ou lrsquoexemtion de trouble fut une suite heureuse quoique fortuite de cette suspension de son jugement agrave lrsquoeacutegard des opinions [hellip] celui qui opine Dogmatiquement amp qui eacutetablit qursquoil y a naturellement amp reacuteellement quelque bien amp quelque mal est toujours troubleacuterdquo177

172 Les Essais II 12 p 577 173 Cf nota 96 174 ldquoLa philosophie morale est viseacutee comme les autres sciences plus directement mecircme que les autres sciencesrdquo (Villey op cit p219) 175 Les Essais II 12 p578 176 Cf Verdan Andreacute Le scepticisme philosophique Paris-Montreacuteal Bordas 1971 p 57 177 Sextus Empiricus Les Hipotiposes ou Instituitions Pirroniennes Traduzido do grego por Claude Huart Amsterdam Barbier MDCCXXV pp15-16

56

Segundo Montaigne a filosofia natildeo pode oferecer uma base consistente agrave moral

que sirva como garantia da felicidade humana O homem eacute convidado a procurar

alicerces mais seguros e consistentes fora da filosofia

ldquo[C] Il ne nous faut guiere non plus doffices de regles et de loix de vivre en nostre communauteacute quil en faut aux grues et formis en la leur Et neantmoins nous voyons quelles sy conduisent tres-ordonneacutement sans erudition Si lhomme estoit sage il prenderoit le vray pris de chasque chose selon quelle seroit la plus utile et propre agrave sa vierdquo178

Assim o homem estaacute impedido por uma incapacidade que tem a sua origem

sobretudo na razatildeo de determinar tudo aquilo que pode em termos morais servir-lhe

para a construccedilatildeo de uma vida tranquila O homem natildeo sabe encontrar o que lhe eacute

necessaacuterio O desacordo nestes assuntos eacute inerente agrave proacutepria natureza do homem tal

como foi descrita pelo autor da ldquoApologierdquo

Trata-se de um desacordo com consequecircncias preocupantes jaacute que se eacute de noacutes

que depende a organizaccedilatildeo dos nossos costumes metemo-nos numa enorme

confusatildeo179 Aludindo ao parecer de Soacutecrates Montaigne defende que a razatildeo aconselha

cada um a obedecer a lei de seu paiacutes180

Entretanto Montaigne questiona-se seraacute que ldquo[A] nostre devoir nrsquoa autre regle

que fortuite181 A resposta reflecte mais uma vez o relativismo do autor que afirma

que a verdade deve ter uma face universal e uniforme mas que reconhece ao mesmo

tempo que de facto o homem impedido pela razatildeo e pelos sentidos (considerados pela

filosofia tradicional como fonte do conhecimento da verdade) natildeo tem condiccedilotildees de

encontrar uma base moral no discurso racional

ldquo[A] La droiture et la justice si lhomme en connoissoit qui eust corps et veritable essence il ne lattacheroit pas agrave la condition des coustumes de cette contreacutee ou de celle lagrave ce ne seroit pas de la fantasie des Perses ou des Indes que la vertu prendroit sa forme Il nest rien subject agrave plus continuelle agitation que les loix Deacutepuis que je suis nay jay veu trois et quatre fois rechanger celles des Anglois noz voisins non seulement en subject politique qui est celuy quon veut dispenser de constance mais au plus important subject qui puisse estre agrave sccedilavoir de la religion Dequoy jay honte et despit dautant plus que cest une nation agrave laquelle ceux de mon quartier ont eu autrefois une si priveacutee accointance quil

178 Les Essais II 12 p 487 179 Cf Les Essais II 12 p 578 180 Cf Les Essais II 12 p 478 181 Les Essais II 12 p 578

57

reste encore en ma maison aucunes traces de nostre ancien cousinagerdquo182

Reflectindo acerca da situaccedilatildeo concreta que o rodeava isto eacute a guerra as

injusticcedilas e outros males (causados pelo proacuteprio homem) que caracterizavam a Franccedila

de entatildeo Montaigne tem consciecircncia de que seguir as leis do paiacutes183 que satildeo

produzidas pela razatildeo humana eacute algo bastante problemaacutetico

Como moralista Montaigne natildeo deseja fazer a apologia de uma ldquoanarquiardquo em

termos morais muito pelo contraacuterio como vimos defende a importacircncia da lei na vida

quotidiana O que ele pretende defender eacute que todo o sistema que resulta de um

emaranhado de reflexotildees intelectuais natildeo leva a nada pelo facto de que tudo o que a

razatildeo produz estaacute sujeito agrave incerteza tanto a verdade como a falsidade

Ao criticar todo este processo Montaigne quer ressaltar a ideia de que a razatildeo eacute

um estorvo importante para a dinacircmica de construccedilatildeo da justiccedila e das leis morais

Esta tese poderia levar a pensar que Montaigne eacute um pensador que natildeo acredita

na verdade Mas ao ler a sua obra damo-nos conta que eacute um autor apaixonado pela

verdade Ele nunca afirmou que a verdade estava fora de alcance Ele quer encontrar a

verdade A sua proacutepria atitude filosoacutefica pode ser caracterizada como uma perene busca

da verdade O que lhe eacute peculiar nesta busca eacute o facto de questionar profundamente tudo

aquilo que eacute construiacutedo arbitrariamente pela filosofia dogmaacutetica sobretudo as grandes

elaboraccedilotildees teoacutericas e os complicados coacutedigos legais que em geral natildeo respeitam as

contingecircncias da vida

Esta razatildeo eacute por conseguinte a grande responsaacutevel pela contiacutenua agitaccedilatildeo das

leis Neste sentido o cepticismo de Montaigne no domiacutenio da moral estaacute em profunda

sintonia com todo o projecto da ldquoApologierdquo Assim como natildeo aceita as certezas teoacutericas

dos filoacutesofos e pensadores profissionais em mateacuteria de metafiacutesica e em tantos outros

assuntos tradicionalmente caros agrave filosofia rejeita tambeacutem com toda a determinaccedilatildeo a

produccedilatildeo filosoacutefica que eacute apresentada como ciecircncia moral Montaigne natildeo se cansa de

questionar o papel daqueles pensadores que em nome da filosofia se encarregam de

teorizar sobre as leis morais e a justiccedila Podemos dizer que o autor classifica esta

actividade como algo dispensaacutevel agrave vida Neste contexto o autor ressalta o problema da

contingecircncia e da sua relaccedilatildeo com a lei

182 Les Essais II 12 p 579 183 ldquo[B] Car nous avons en France plus de loix que tout le reste du monde ensemble [hellip] [C] Il y a peu de relation nos actions qui sont en perpetuelle mutation avec les loix fixes et immobile Les plus desirables ce sont les plus rares plus simples et generalesrdquo (Les Essais III 13 p 1066)

58

ldquo[A] Que nous dira donc en ceste necessiteacute la philosophie Que nous suyvons les loix de nostre pays Cest agrave dire cette mer flotante des opinions dun peuple ou dun Prince qui me peindront la justice dautant de couleurs et la reformeront en autant de visages quil y aura en eux de changemens de passion Je ne puis pas avoir le jugement si flexiblerdquo184

Algumas doutrinas filosoacuteficas impelem-nos ao cumprimento das leis do paiacutes

Mas como eacute isto possiacutevel se estas leis satildeo condicionadas pelas paixotildees de quem as fez

Em seguida Montaigne refere-se agrave relatividade das leis civis

ldquo[A] Quelle bonteacute est-ce que je voyois hyer en credit et demain plus [C]et que le trajet dune riviere fait crime Quelle veriteacute que ces montaignes bornent qui est mensonge au monde qui se tient au delagrave185

Diante deste quadro podemos perguntar-nos seraacute possiacutevel ter uma moral que

garanta a justiccedila para todos fazendo uso da razatildeo e utilizando as leis humanas que satildeo

sempre condicionadas pelas paixotildees as quais por sua vez estatildeo sujeitas a de tantas

mudanccedilas A resposta de Montaigne eacute negativa e eacute dada de forma iroacutenica

ldquo[A] Mais ils sont plaisans quand pour donner quelque certitude aux loix ils disent quil y en a aucunes fermes perpetuelles et immuables quils nomment naturelles qui sont empreintes en lhumain genre par la condition de leur propre essence Et de celles lagrave qui en fait le nombre de trois qui de quatre qui plus qui moins signe que cest une marque aussi douteuse que le resterdquo186

Aleacutem de constatar a relatividade das leis civis Montaigne natildeo deixa de afirmar

que haacute tambeacutem uma niacutetida relatividade nas leis naturais

ldquo[A] ils sont dis-je si miserables que de ces trois ou quatre loix choisies il nen y a une seule qui ne soit contredite et desadvoeumle non par une nation mais par plusieursrdquo187

Outra tese da ldquoApologierdquo que merece ser lembrada eacute que a razatildeo humana ndash

intrometendo-se em toda a parte para dominar baralhar e confundir a face das coisas

segundo sua vaidade e inconstacircncia ndash quer que acreditemos que haacute leis naturais como as

que se observam nas outras criaturas Mas isto natildeo passa de um equiacutevoco em noacutes as leis

naturais estatildeo perdidas

Montaigne natildeo mede as palavras quando o que estaacute em jogo eacute em seu entender

alguma coisa de capital importacircncia A falta de honestidade e a falsidade satildeo atributos

dos pensadores e elaboradores de leis na sociedade Neste contexto criticaraacute

violentamente a posiccedilatildeo de Platatildeo por exemplo Observa que quando este pensador

184 Les Essais II 12 p 579 185 Les Essais II 12 p 579 186 Les Essais II 12 p 580 187 Les Essais II 12 p 580

59

grego se torna legislador adopta um estilo imperioso e afirmativo e mistura-lhe

ousadamente as mais fantasiosas invenccedilotildees tatildeo uacuteteis para persuadir o povo como

ridiacuteculas para se persuadir a si mesmo Conclui a sua criacutetica a Platatildeo da seguinte forma

ldquo[C] Et pourtant en ses loix il a grand soing quon ne chante en publiq que des poeumlsies desquelles les fabuleuses feintes tendent agrave quelque utile fin et estant si facile dimprimer tous fantosmes en lesprit humain que cest injustice de ne le paistre plustost de mensonges profitables que de mensonges ou inutiles ou dommageables Il dict tout destroussement en sa Republique que pour le profit des hommes il est souvent besoin de les piper 188 rdquo

Na ldquoApologierdquo Montaigne manifesta em vaacuterias ocasiotildees o seu

descontentamento relativamente agraves teses dos filoacutesofos gregos

Considerando as reflexotildees precedentes acerca da moral tudo leva a crer que

Montaigne considera que as leis verdadeiras relativas agrave moral devem ter um caraacutecter

universal e natildeo particular

Montaigne apresenta uma lista de costumes diversificados de povos muito

diferentes que tecircm as suas tradiccedilotildees proacuteprias e que satildeo muitas vezes contraditoacuterias entre

si Isto servir-lhe-aacute para justificar a tese de que natildeo haacute coisa em que o mundo seja tatildeo

diverso como os costumes e leis

ldquo[A] Telle chose est icy abominable qui apporte recommandation ailleurs comme en Lacedemone la subtiliteacute de desrober Les mariages entre les proches sont capitalement defendus entre nous ils sont ailleurs en honneur [hellip]rdquo

ldquo[A] Le meurtre des enfans meurtre des peres communication de femmes trafique de voleries licence agrave toutes sortes de voluptez il nest rien en somme si extreme qui ne se trouve receu par lusage de quelque nationrdquo189

ldquo[A] Les subjets ont divers lustres et diverses considerations cest de lagrave que sengendre principalement la diversiteacute dopinions Une nation regarde un subject par un visage et sarreste agrave celuy lagrave lautre par un autre

Il nest rien si horrible agrave imaginer que de manger son pere Les peuples qui avoyent anciennement ceste coustume la prenoyent toutesfois pour tesmoignage de pieteacute et de bonne affection [hellip]rdquo

ldquo[A] Licurgus considera au larrecin la vivaciteacute diligence hardiesse et adresse quil y a agrave surprendre quelque chose de son voisin [hellip]rdquo ldquo[A] Dionysius le tyran offrit agrave Platon une robe agrave la mode de Perse longue damasquineacutee et parfumeacutee Platon la refusa disant questant nay homme il ne

188 Les Essais II 12 p 512 189 Les Essais II 12 p 580

60

se vestiroit pas volontiers de robbe de femme mais Aristippus laccepta avec ceste responce que nul accoustrement ne pouvoit corrompre un chaste couragerdquo190

ldquo[A] Nous portons les oreilles perceacutees les Grecs tenoient cela pour une marque de servitude Nous nous cachons pour jouir de nos femmes les Indiens le font en public Les Scythes immoloyent les estrangers en leurs temples ailleurs les temples servent de franchiserdquo191

Para Montaigne as razotildees sobre as quais cada povo funda a sua moral satildeo uma

resposta a situaccedilotildees contingentes e natildeo visam dar resposta a situaccedilotildees mais universais

vaacutelidas para todos os homens sem excepccedilatildeo Villey chega a afirmar que Montaigne

ldquocherche une justice et il trouve des justices et des justices contradictoiresrdquo192

Aleacutem de constatar a ausecircncia de um acordo entre as vaacuterias concepccedilotildees no que

diz respeito aos costumes de cada povo Montaigne - fiel agrave criacutetica aos sistemas

filosoacuteficos que perpassa toda a ldquoApologierdquo - destaca tambeacutem o facto de que natildeo haacute

sequer acordo entre os filoacutesofos que se ocupam particularmente em reflectir acerca de

dois temas muito caros agrave filosofia

ldquo[A] Quant agrave la liberteacute des opinions philosophiques touchant le vice et la vertu cest chose ougrave il nest besoing de sestendre et ougrave il se trouve plusieurs advis qui valent mieux teus que publiez [C]aux faibles espritsrdquo193

Segundo Montaigne os proacuteprios homens do saber adoptam atitudes

consideradas inaceitaacuteveis pelo facto de a sociedade as condenar Os exemplos ilustram

esta situaccedilatildeo de uma forma muito niacutetida e revelam quanto a razatildeo humana pode fazer

para encontrar explicaccedilotildees legitimadoras para todas as realidades relativas aos costumes

morais

ldquo[A] De lagrave disent aucuns que doster les bordels publiques cest non seulement espandre par tout la paillardise qui estoit assigneacutee agrave ce lieu lagrave mais encore esguillonner les hommes agrave ce vice par la malaisance [hellip] On demanda agrave un philosophe quon surprit agrave mesme ce quil faisoit Il respondit tout froidement Je plante un homme [hellip]rdquo194

ldquo[C] Car Diogenes exerccedilant en publiq sa masturbation faisoit souhait en presence du peuple assistant qursquoil peut ainsi saouler son ventre en le frottant [hellip] Ces philosophes icy donnoient extreme prix agrave la vertu et refusoient toutes autres disciplines que la moralerdquo195

190 Les Essais II 12 p 581 191 Les Essais II 12 p 582 192 Villey op cit p 197 193 Les Essais II 12 p 582 194 Les Essais II 12 p 584 195 Les Essais II 12 p 585

61

A relatividade das leis e costumes e a impossibilidade de se chegar a acordo

entre os povos tendo em vista estabelecer leis universais leva Montaigne a uma espeacutecie

de denuacutencia da praacutetica dos encarregados pela execuccedilatildeo das leis que jaacute por si satildeo tatildeo

questionaacuteveis Isto torna a lei supostamente universal ainda mais sujeita agrave rejeiccedilatildeo

segundo Montaigne Vale a pena recordar aqui o exemplo de que Montaigne ouviu

falar de um juiz que quando deparava com um seacuterio conflito entre Bartoldo e Baldo196

ou com alguma mateacuteria agitada por muitas contradiccedilotildees escrevia na margem de seu

livro ldquoQuestatildeo para o amigordquo Montaigne observa que neste caso a verdade era tatildeo

confusa e debatida que o juiz em causa poderia favorecer a parte que bem entendesse e

conclui

ldquo[A] Les advocats et les juges de nostre temps trouvent agrave toutes causes assez de biais pour les accommoder ougrave bon leur semble A une science si infinie deacutependant de lauthoriteacute de tant dopinions et dun subject si arbitraire il ne peut estre quil nen naisse une confusion extreme de jugemens Aussi nest-il guiere si cler proceacutes auquel les advis ne se trouvent divers Ce quune compaignie a jugeacute lautre le juge au contraire et elle mesmes au contraire une autre fois Dequoy nous voyons des exemples ordinaires par ceste licence qui tasche merveilleusement la cerimonieuse authoriteacute et lustre de nostre justice de ne sarrester aux arrests et courir des uns aux autres juges pour decider dune mesme causerdquo197

Eacute interessante destacar este exemplo tambeacutem porque Montaigne tinha

conhecimentos profundos da ciecircncia do direito conforme reconhece a maioria dos

comentadores da sua obra Como magistrat tinha conhecimento de causas nas quais se

manifestava aquilo contra o qual se opunha Isto vem confirmar ainda mais a posiccedilatildeo de

Montaigne face agrave sua incansaacutevel busca de leis universais que natildeo estivessem sujeitas agraves

constantes mutaccedilotildees de que a razatildeo humanaldquo[B] un pot agrave deux anses qursquoon peut saisir

agrave gauche et agrave dextrerdquo eacute responsaacutevel e que [A] fornit drsquoapparence agrave divers effectsrdquo198

Ao abordar a problemaacutetica da moral na ldquoApologierdquo Montaigne chega a algumas

conclusotildees que natildeo se distanciam fundamentalmente de todo o projecto do ensaio Isto

eacute defende que haacute um relativismo significativamente claro relativamente agrave moral Villey

faz algumas afirmaccedilotildees que resumem claramente esta problemaacutetica ldquoIl nrsquoy a pas de

souverain bien il nrsquoy a pas de loi naturelle toute obligation moralle est fortuite

196 Trata-se de dois juristas do seacuteculo XIV que no seacuteculo XV ainda tinham grande influecircncia 197 Les Essais II 12 p 582 198 Les Essais II 12 p 581

62

contingenterdquo199 E tudo isto deve-se agrave criacutetica destruidora da razatildeo humana que

Montaigne apresenta no texto Para ele a razatildeo quer julgar tudo quer elaborar leis

universais sem mesmo ter condiccedilotildees para semelhante empreendimento A razatildeo como

vimos eacute multiforme inconstante infinita Ela avanccedila sempre mesmo torta mesmo

manca mesmo desancada tanto com a mentira como com a verdade A razatildeo eacute um

instrumento de chumbo e de cera alongaacutevel dobraacutevel e adaptaacutevel a todas as

perspectivas e a todas as medidas200 Segundo Montaigne a razatildeo eacute ldquo[B] un miserable

fondement de nos regles et qui nous represente volontiers une tres-fauce image des

choses comme vainement nous concluons aujourdrsquohui lrsquoinclination et la decrepitude du

monde par les arguments que nous tirons de nostre propre foiblesse et decadencerdquo201

Em suma Montaigne tem consciecircncia de que eacute impossiacutevel chegar a qualquer

determinaccedilatildeo no domiacutenio da moral atraveacutes da razatildeo Por isto assume uma atitude

ceacuteptica em face desta questatildeo

199 Villey op cit p198 200 Cf nota 122 201 Les Essais III 6 p 908

63

Consideraccedilotildees finais

A leitura da ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo permitiu-nos esclarecer aspectos

importantes da criacutetica demolidora da razatildeo humana levada a cabo por Montaigne

Eacute claro que uma motivaccedilatildeo importante que levou Montaigne a escrever a

ldquoApologierdquo foi a obra do teoacutelogo catalatildeo Sebond Theologia Naturalis Eacute importante

destacar que o proacuteprio tiacutetulo do ensaio ldquoApologiehelliprdquo isto eacute elogio defesa natildeo reflecte

exactamente o seu propoacutesito que eacute a defesa de Sebond A anaacutelise do texto permite

captar algo de paradoxal Montaigne dispotildee-se a defender este teoacutelogo catalatildeo num

ensaio no qual ele proacuteprio se distancia claramente da doutrina de Sebond Neste

sentido haacute um significativo distanciamento entre o tiacutetulo do ensaio e o seu conteuacutedo O

ponto de partida de Montaigne eacute uma espeacutecie de declaraccedilatildeo de que as ideias de Sebond

satildeo convincentes mas imediatamente a seguir muda de opiniatildeo partindo de sua

concepccedilatildeo negativa do homem e natildeo acredita nos supostos poderes da razatildeo Dito de

outro modo Montaigne natildeo sustentava o propoacutesito da Theologia naturalis isto eacute a

pretensatildeo de apoiar a crenccedila dos leitores convidando-os a fazer um esforccedilo de adaptaccedilatildeo

dos instrumentos naturais e humanos considerados como dons de Deus especialmente

a razatildeo pondo-os ao serviccedilo da feacute

Montaigne ldquoaplauderdquo a atitude de Sebond202 Mas imediatamente a seguir critica

o teoacutelogo catalatildeo atacando os vaacuterios argumentos filosoacuteficos presentes na sua obra Na

raiz da sua criacutetica estaacute o facto de estes argumentos se fundamentarem numa visatildeo

antropocecircntrica da supremacia do homem como criatura privilegiada da criaccedilatildeo o

homem por ser detentor da razatildeo diferentemente dos outros animais tem uma

finalidade uma perfeiccedilatildeo e uma dignidade que merece ser exaltada Montaigne natildeo

aceita esta visatildeo que norteia tanto a obra de Sebond como o pensamento de todos

aqueles que faziam apologia da dignitas hominis Denuncia a presunccedilatildeo ilusoacuteria do

homem Desta perspectiva utiliza vaacuterios relatos anedoacuteticos de animais para justificar a

sua posiccedilatildeo E a conclusatildeo principal a que o conduz este percurso eacute que o homem natildeo

estaacute nem acima nem abaixo do resto dos seres naturais203 Dito de outro modo a

consideraccedilatildeo de que unicamente o homem eacute possuidor da razatildeo natildeo tem qualquer

relevacircncia segundo a ldquoApologierdquo

202 Cf nota 1 203 Cf nota 31

64

Da batalha travada por Montaigne contra os vaacuterios opositores da obra de

Sebond podemos destacar a posiccedilatildeo criacutetica que ele assume face aos presunccedilosos

racionalistas que diziam que os argumentos de Sebond eram fracos Diante destes

doutos Montaigne iraacute sustentar a tese de que o homem natildeo sabe nada Haacute que salientar

no entanto que o teoacutelogo catalatildeo estava em ldquocomunhatildeordquo com o pensamento apologeacutetico

de sua eacutepoca isto eacute recorreu agrave razatildeo para provar certos dogmas Para Montaigne o

principal perigo vem daqueles que atribuem super poderes agrave razatildeo Eacute por isso tambeacutem

que Montaigne sustenta que a razatildeo deve submeter-se agrave autoridade divina Esta

submissatildeo natildeo exclui a razatildeo mas considera-a como um meio de compreender o motivo

da feacute Esta feacute deve ser concebida como uma expectativa da graccedila sem a qual nada eacute

possiacutevel ao homem Segundo Montaigne natildeo somos capazes de perceber que toda a

certeza estaacute vedada ao homem reduzido a si proacuteprio204

Podemos perceber que a utilizaccedilatildeo da razatildeo para explicar as realidades da

religiatildeo natildeo tem sentido na ldquoApologierdquo Montaigne natildeo tem necessidade de fazer

apologia da feacute205 A sua perspectiva eacute unicamente humana e isto vai estruturar toda a

sua reflexatildeo na ldquoApologierdquo Quando se refere agrave graccedila como dom sobrenatural nem o

absoluto nem a graccedila actuam no interior de sua visatildeo antropoloacutegica A graccedila eacute

apresentada por Montaigne como uma metamorfose

ldquo[C] Crsquoest agrave nostre foy Chrestienne non agrave sa vertu Stoique de pretendre agrave cette divine et miraculeuse metamorphoserdquo206

Montaigne descobre em si proacuteprio o pirronismo atraveacutes da volubiliteacute207 presente

nas vaacuterias atitudes dos filoacutesofos Pocircs em duacutevida as diversas opiniotildees dos filoacutesofos

denunciando-as como contraditoacuterias criticou as doutrinas filosoacuteficas dogmaacuteticas mas

natildeo assumiu nenhuma doutrina definida Montaigne assume o pirronismo como meacutetodo

e natildeo como um adepto cego para enfrentar os problemas presentes na ldquoApologierdquo

O pirronismo eacute assumido por Montaigne como modo de pensamento e como

meacutetodo de vida Este pirronismo permite-lhe ter em conta na ldquoApologierdquo a incerteza de

204 Cf Nota 93 205 O autor esclarece esta questatildeo da seguinte maneira na ediccedilatildeo posterior a 1588 ldquo[C] Je propose les fantasies humaines et miennes simplement comme humaines fantasies [hellip] matiere dopinion non matiere de foy ce que je discours selon moy non ce que je croy selon Dieu comme les enfants proposent leurs essais intruisables non instruisants dune maniere laiumlque non clericale mais tresminusreligieuse tousjoursrdquo (Les Essais I 56 p 323) 206 Les Essais II 12 p 604 207 Les Essais II 12 p 569

65

nossos juiacutezos a incerteza que todos sentem em si208 em relaccedilatildeo ao conhecimento O

pirronismo faz desaparecer as ilusotildees da certeza e como ele natildeo se envolve nas

questotildees da ldquoirresolution infinierdquo209 procura uma seguranccedila na tranquilidade do

espiacuterito que com a do corpo constitui o soberano bem210 Ao assumir a atitude

pirroacutenica Montaigne natildeo se transforma num homem passivo num ldquopeso mortordquo Muito

pelo contraacuterio sustenta que devemos sempre levantar questotildees reconhecer a nossa

ignoracircncia face agraves vaacuterias resoluccedilotildees tomadas como certas pela presunccedilosa razatildeo

humana duvidar sempre e ter uma atitude de busca incessante de novas ideias

Isto significa que Montaigne defende a tese de que somos convidados a

considerar que os conhecimentos adquiridos devem ser sempre sustentados como

provisoacuterios e natildeo como verdades absolutas Isto natildeo exclui evidentemente o facto de

que podemos apresentar as nossas visotildees prismaacuteticas das coisas e ateacute sustentaacute-las se

assim for necessaacuterio

Na ldquoApologierdquo Montaigne assume uma atitude pirroacutenica sui generis Demonstra

constantemente uma reaccedilatildeo contra os dogmatismos Ele eacute um pensador que estaacute sempre

em busca Nunca cessa de investigar Estaacute sempre em debate consigo mesmo Neste

aspecto pode-se dizer que assume uma atitude diferente do pirronismo grego o qual

defendia a tese da impossibilidade de qualquer juiacutezo Natildeo estaacute preocupado em encontrar

um ldquoroacutetulo de marca registadardquo para suas reflexotildees filosoacuteficas Ou seja natildeo tinha como

objectivo elaborar uma apologia de uma doutrina a ser seguida por adeptos

Montaigne apresenta os seus juiacutezos com a sua razatildeo criacutetica sem ter

necessariamente que defender a tese de que a razatildeo humana ndash instrumento flexiacutevel

recurvaacutevel e adaptaacutevel a qualquer forma211- eacute sempre o guia prudente e seguro de uma

conduta correcta e perfeita Montaigne procura demonstrar racionalmente - e aqui

reside em seu entender o uso positivo da razatildeo ndash que natildeo haacute essecircncia nem verdade

absoluta acerca do homem e que de algumas coisas sempre agrave mercecirc do poder do tempo

noacutes soacute observamos as aparecircncias

ldquo[A] Finalment il nrsquoy a aucune constante existence ny de nostre estre ny de celuy des objects [hellip] Nous nrsquoavons aucune communication agrave lrsquoestre [hellip]rdquo212

208 Cf Les Essais II 12 p 563 209 Cf Les Essais II 12 p 561 210 Cf Les Essais II 12 p 488 211 Cf Les Essais II 12 p 539 212 Les Essais II 12 p 601

66

Montaigne duvida de todos os conhecimentos humanos recebidos por autoridade

e em confianccedila (agrave credit) como se fossem religiatildeo e lei213 tais conhecimentos natildeo

passam de falsas evidecircncias do quotidiano E isto vale sobretudo para todos os tipos de

produccedilatildeo racional que satildeo consequecircncia da vaidade humana

Montaigne esforccedila-se por investigar as opiniotildees dos outros e isto motiva-o a

formular um pensamento mais pessoal preocupado com o que eacute justo e a expandir o

seu proacuteprio conhecimento relativo e precaacuterio As suas investigaccedilotildees natildeo satildeo dogmaacuteticas

e soacute o comprometem a ele proacuteprio Eacute um pensador que estaacute sempre em busca que natildeo

tem a presunccedilatildeo de querer saber tudo sobre todas as coisas Mas ao mesmo tempo

podemos dizer que eacute um pensador que descobriu num mundo marcado por tantas

conturbaccedilotildees graccedilas agraves suas proacuteprias experiecircncias uma consciecircncia real e soacutelida da sua

existecircncia concreta no mundo Este facto levou-o a assumir a atitude de natildeo querer

ensinar nem dirigir a vida de ningueacutem Vale a pena citar a este respeito um pequeno

trecho de um outro ensaio que Montaigne escreveu provavelmente na mesma eacutepoca da

ldquoApologierdquo e que reflecte claramente a posiccedilatildeo por ele assumida e que pode ser

classificada natildeo como a de um filoacutesofo profissional detentor de verdades que devem ser

ensinadas aos outros mas como a de algueacutem que estaacute sempre em busca e natildeo se inibe de

expressar as suas opiniotildees

ldquo[A] Je dy librement mon advis de toutes choses voire et de celles qui surpassent agrave ladventure ma suffisance et que je ne tiens aucunement estre de ma jurisdiction Ce que jen opine cest aussi pour declarer la mesure de ma veueuml non la mesure des chosesrdquo214

Montaigne renuncia a tarefa de querer provar atraveacutes da razatildeo humana aquilo

que estaacute em uacuteltima instacircncia no domiacutenio da feacute Ele eacute um homem que crecirc em Deus

ldquo[A] Il a laisseacute en ces hauts ouvrages le caractere de sa diviniteacute et ne tient quagrave nostre imbecilliteacute que nous ne le puissions descouvrirrdquo215

Uma quantidade importante de pessoas no mundo proclama a existecircncia de

Deus Mas este Deus natildeo pode ser conhecido racionalmente pelo homem

ldquoIl sen faut tant que nos forces conccediloivent la hauteur divine que des ouvrages de nostre createur ceux-lagrave portent mieux sa marque et sont mieux siens que nous entendons le moinsrdquo216

213 Cf Les Essais II 12 p 539 214 Les Essais II 10 p 410 215 Les Essais II 12 pp 446-447 216 Les Essais II 12 p 499

67

Relativamente agrave moral Montaigne sustenta a tese de que a razatildeo humana natildeo

tem o poder de determinar quais satildeo os bons e os maus costumes as boas e as maacutes leis e

normas para qualquer grupo social

Diante da leitura que fizemos da ldquoApologierdquo onde Montaigne apresenta uma

criacutetica destruidora agrave razatildeo tirando-lhe quase todos os atributos recebidos durante toda a

histoacuteria da filosofia podemos portanto perguntar-nos qual eacute o papel da razatildeo humana

A resposta a esta questatildeo eacute muito complexa A criacutetica montaigneana agrave razatildeo natildeo se

limitou a menosprezar a ciecircncia (filosofia) a ldquoteologia racionalistardquo e as suas pretensotildees

de querer dar explicaccedilotildees sobre questotildees de feacute e de religiatildeo atacou tambeacutem

profundamente o espiacuterito humano negando-lhe capacidades que na maioria das vezes

satildeo atributos da pretensatildeo humana Para ilustrar mais claramente esta ideia seraacute

interessante fazer referecircncia a uma passagem ceacutelebre do livro III na qual Montaigne

conta uma pequena histoacuteria de um escravo chamado Esopo

Conta-nos o autor que Esopo estava exposto agrave venda com dois outros escravos

Um comprador indagou de um deles que sabia fazer este para se valorizar contou mil

maravilhas (monts et merveilles) O segundo disse mais ainda Quando chegou a sua

vez Esopo respondeu ldquonada eles jaacute pegaram em tudo eles sabem tudordquo Montaigne

observa que verificou o mesmo nas escolas de filosofia A arrogacircncia o orgulho (fierteacute)

dos que atribuiacuteram ao espiacuterito humano a capacidade de tudo saber levou os outros a

afirmar por despeito ou contradiccedilatildeo que o espiacuterito natildeo era capaz de coisa alguma

Estes exaltavam ao extremo a ignoracircncia tal como aqueles glorificavam absurdamente a

ciecircncia De modo que natildeo haacute como negar que o homem eacute imoderado em tudo e soacute cessa

quando forccedilado pela capacidade de ir aleacutem217

Em suma a ldquoApologierdquo nos apresenta um questionamento profundo em relaccedilatildeo

a todo o tipo de conhecimento fundado na razatildeo Arruiacutena os fundamentos deste

conhecimento produzido pelos homens do saber doutos e filoacutesofos antigos A estes

ldquosaacutebiosrdquo em geral que pensavam ser possuidores da verdade Montaigne dirige uma

criacutetica iroacutenica

laquo [C] Fiez vous agrave vostre philosophie vantez vous davoir trouveacute la feve au gasteau [hellip] raquo218

217 Cf Les Essais II 11 p 1035 218 Les Essais II 12 p 516 Esta citaccedilatildeo faz referecircncia agrave tradiccedilatildeo de na Epifania compartilhar um bolo contendo uma fava quem recebesse a fatia laquo premiada raquo era chamado laquo o rei da fava raquo Tratava-se de algo que figuradamente garantia uma espeacutecie de vantagem

68

Bibliografia

1 - Obras de Michel de Montaigne

Les Essais eacutedition conforme au texte de lrsquoexemplaire de Bordeaux par Pierre Villey

reacuteeacutediteacute sous la direction et avec un preacuteface de V-L Saulnier augmenteacute en 2004 drsquoune

preacuteface et drsquoun suppleacutement de Marcel Conche Paris QuadriguePUF 2004 (ediccedilatildeo de

referecircncia no nosso estudo)

Essais Livre second eacutedition preacutesenteacutee eacutetablie et annoteacutee par Emmanuel Naya

Delphine Reguig-Naya et Alexandre Tarrecircte Paris () Gallimard 2009

2 Estudos sobre Montaigne

AA VV Le dictionnaire des Essais de Montaigne Paris ( ) Eacuteditions Leacuteo Scheer

2011

AA VV Montaigne et la reacutevolution Philosophique du XVI siegravecle Bruxelles Eacuteditions

de lrsquoUniversiteacute de Bruxelles 1992

AUREacuteLIO Diogo Pires Montaigne e Espinosa toleracircncia ceacuteptica e toleracircncia

racionalista In O Cepticismo e Montaigne Rui Bertrand Romatildeo (org) Covilhatilde

Universidade da Beira Interior 2003 pp 141-160

BIRCHAL Telma de Souza O eu nos Ensaios de Montaigne Belo Horizonte Editora

UFMG 2007

BIGNOTTO Newton ldquoMontaigne Renascentistardquo Kriterion Revista do Departamento

de Filosofia da UFMG Belo Horizonte XXXIII 86 agodez 1992 p 29-41

BUTOR Michel Essais sur les essais Paris Gallimard 1968

CATALAN Eacutetienne Eacutetudes sur Montaigne analyse de sa philosophie Paris Hellier

Fregraveres Librairie Religieuse 1846

CHAMPION Edme Introduction aux Essais de Montaigne Paris Armand Colin amp Cie

Eacutediteurs 1900

COMPAGNON Antoine Nous Michel de Montaigne Paris Seuil 1980

CONCHE Marcel Montaigne et la philosophie Paris Puf 1996

69

_____________ Montaigne ou la conscience heureuse Paris PUF 2009

DUARTE Tiago Barros Skepticism and religion in Michel de Montaigne two

interpretations of apology for Raymond Sebond Intuitio Porto Alegre V2 ndash Nordm 3

Novembro 2009 pp 298-307

FILHO Celso Martins Azar Montaigne e Soacutecrates cepticismo conhecimento e

virtude In Revista Portuguesa de Filosofia Tomo LVIII Fasc 4 2002

FRIEDRICH Hugo Montaigne Traduzido do alematildeo por Robert Rovini Paris

Gallimard 1967

GIOCANTI Sylvia Montaigne et les becirctes La becirctise et lrsquoanimal dans les Essais de

Montaigne Universiteacute de Toulouse-II Le Mirail UMR 5037 (ENS-Lyon) 2011

HENDRICK Philip Montaigne and Sebond scepticism faith and imagination In O

Cepticismo e Montaigne Rui Bertrand Romatildeo (org) Covilhatilde Universidade da Beira

Interior 2003 pp 83-102

JEANSON Franccedilois Montaigne par lui-mecircme Paris Seuil 1951

LACOUTURE Jean Montaigne agrave cheval (Montaigne a cavalo) Traduzido por F

Rangel Rio de JaneiroSatildeo Paulo Editora Record 1998

LANUSSE Maxime Montaigne Paris Lecegravene Oudin et Cie Eacutediteurs 1895

LEVEAUX Alphonse Eacutetude sur les Essais de Montaigne Paris Henri Plon

Imprimeur-Eacutediteur 1870

MATHIEU-CASTELLANI Gisegravele Montaigne ou la veacuteriteacute du mensonge Genegraveve

Droz 2000

MONSIEUR L Le chistianisme de Montaigne Paris Imprimerie de Demonville 1819

_______ Montaigne lrsquoeacutecriture de lrsquoessai Paris PUF 1988

NAKAM Geacuteranrd Montaigne et son temps Paris Gallimard 1993

RIGOLOT Franccedilois Le texte de la renaissance des rheacutetoriqueurs agrave Montaigne

Genegraveve Droz 1982

_______ Les meacutetamorphoses de Montaigne Paris PUF 1988

RIVELINE Maurice Montaigne et lrsquoamitieacute Paris Librairie Feacutelix Alcan 1939

70

71

ROMAtildeO Rui Bertrand A apologia na balanccedila a reinvenccedilatildeo do pirrorismo na

Apologia de Raimundo Sabunde de Michel de Montaigne Lisboa Imprensa Nacional

Casa da Moeda 2007

SANTI Pedro Luiz Ribeiro de Montaigne e a reflexatildeo moral no seacuteculo XVI In Revista

Olhar ano 04 nordm 7 jan-jun 03 pp 76-85

STAROBINSKI Jean Montaigne en mouvement Paris Gallimard 1982

STROWSKI Fortunat Montaigne Paris Feacutelix Alcan Eacutediteurs 1906

VERDAN Andreacute Le scepticisme philosophique Paris-Montreacuteal Bordas 1971

VILLEY Pierre Les sources et lrsquoeacutevolution des essais de Montaigne Tome Premier

Paris Librairie Hachete 1908

______ Les sources et lrsquoeacutevolution des essais de Montaigne Tome Second Paris

Librairie Hachete 1908

______ Montaigne devant la posteacuteriteacute Paris Ancienne Librairie Furne ndash Boivin et Cie

Eacutediteurs 1935

WEILLER Maurice Pour connaitre la penseacutee de Montaigne Paris Bordas 1948

3 ndash Outras obras citadas

ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Livro I e II Traduccedilatildeo do grego por Vicenzo Coceo

Coleccedilatildeo Os Pensadores Satildeo Paulo Abril S A Cultural 1984

CASSIRER Ernst An essay on man Traduccedilatildeo portuguesa de Carlos Branco Ensaio

sobre o homem Lisboa Guimaratildees Editores 1995

Nouveau Testament Traduction Oecumeacutenique de la Bible Paris PUF 1977

SEXTUS EMPIRICUS Les hipotiposes ou instituitions pirroniennes Trad do grego

por Claude Huart Amsterdam Barbier MDCC XXV

AA VV Histoacuteria das sociedades das sociedades modernas agraves sociedades atuais Rio

de Janeiro Ao Livro Teacutecnico 1983

  • IacuteNDICE
Page 3: MARÇO DE 2012

A CRIacuteTICA DA RAZAtildeO EM MICHEL DE MONTAIGNE

FLORIVALDO FLORIANO FERREIRA

RESUMO

O trabalho que se segue eacute uma leitura e comentaacuterio do capiacutetulo ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo Livro II 12 de Michel de Montaigne Trata-se de apresentar a criacutetica da razatildeo abordada pelo autor Com o pretexto de defender as ideias de Sebond que em sua obra Teologia naturalis de quem tinha traduzido do latim para o francecircs que encontrava os fundamentos da feacute na razatildeo e punha o homem no primeiro niacutevel da criaccedilatildeo o ensaiacutesta apresenta de facto um pensamento muito pessoal Recusa-se a dar valor agrave razatildeo e potildee o homem no mesmo niacutevel dos animais Vai sustentar a tese de que a razatildeo natildeo tem um valor de absoluta superioridade conturbando desta forma toda a tradiccedilatildeo filosoacutefica que depositava toda a confianccedila na razatildeo sobretudo como instrumento do conhecimento

Esta dissertaccedilatildeo eacute desenvolvida em quatro etapas A primeira abordaraacute brevemente a concepccedilatildeo antropoloacutegica que subjaz na ldquoApologierdquo em segundo lugar pretende-se perceber com maior clarividecircncia os motivos que levaram o autor a criticar a razatildeo que eacute instrumentalizada na tarefa de justificaccedilatildeo das chamadas verdades religiosas em terceiro lugar trata-se da criacutetica da ciecircncia que eacute abordada no ensaio onde o autor quer derrubar a tola vaidade e sacudir os fundamentos sobre os quais se constroem as falsas ideias produzidas pela ciecircncia na quarta e uacuteltima etapa pretende-se abordar a tese da impossibilidade de se formular a partir da razatildeo um conjunto de normas regras e leis com validade objectiva a qualquer grupo humano

PALAVRAS-CHAVE Apologia cepticismo Essais homem Montaigne razatildeo

3

THE CRITIQUE OF REASON IN MICHEL DE MONTAIGNE

FLORIVALDO FLORIANO FERREIRA

ABSTRACT

The following thesis is an interpretation and comment of the chapter ldquoAn Apology for Raymond Sebondrdquo book II chapter 12 by Michel de Montaigne It presents a critique of the reason the author approached Using as a pretext to defend the ideas of Sebond who in his work Teologia naturalis that the author had translated from Latin into French that identified the fundamentals of faith in reason and put man on the first level of creation the essayist presents in fact a very personal idea He refuses to empower reason and places man on the same level as animals He supports the argument that reason is not superior contradicting in this way the entire philosophical tradition which placed all its trust on reason most importantly as an instrument to acquire knowledge

This thesis is structured in four parts The first briefly approaches the anthropological idea that underlies in ldquoApologyrdquo the second aims to understand more profoundly the reasons that determined the author to critique the reason that is instrumental in the justification of the so-called religious truths The third part deals with a critique of the science which is discussed in the essay where the author wants to overthrow the foolish vanity and shake the foundations on which are built the false ideas produced by science In the fourth and last part the thesis approaches the idea of the impossibility to formulate based on reason a set of norms rules and laws with objective validity for any human group

KEYWORDS Apology scepticism Essais man Montaigne reason

4

IacuteNDICE

Introduccedilatildeo 6

1 A ideia do homem na ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo 9

2 A criacutetica agrave razatildeo humana e a questatildeo da religiatildeo 19

3 A criacutetica agrave razatildeo e sua relaccedilatildeo com a ciecircncia 35

4 A criacutetica agrave razatildeo humana e o relativismo da moral 52

Consideraccedilotildees finais 64

Bibliografia 69

5

Introduccedilatildeo

O tema da razatildeo eacute muito caro a Montaigne e central na sua obra No presente

trabalho pretende-se abordaacute-lo a partir da ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo que faz

parte do segundo livro dos Essais Trata-se de um ensaio que eacute unanimemente

reconhecido como sendo uma das referecircncias mais importantes para quem pretenda

compreender em profundidade os aspectos mais relevantes da criacutetica ceacuteptica agrave razatildeo

humana desenvolvida por Montaigne

Com o pretexto de defender as ideias de Sebond1 Montaigne apresenta de facto

um pensamento totalmente pessoal independente do de Sebond Em vez de responder

agraves diversas objeccedilotildees dos adversaacuterios da Theologia naturalis Montaigne questiona de

uma forma muito incisiva o poder da razatildeo e ldquopotildee em xequerdquo este suposto poder A

criacutetica por ele desenvolvida natildeo se limitou a rebaixar a filosofia ldquoprofissionalrdquo a

suspeitar de todo o conhecimento produzido pela ciecircncia mas atacou tambeacutem

duramente a pretensatildeo humana de tudo querer conhecer atraveacutes da razatildeo pretensatildeo que

se estende inclusivamente a Deus atraveacutes das grandes construccedilotildees racionais da teologia

Como veremos a razatildeo natildeo tem para Montaigne um valor supremo nem eacute sinal de

absoluta superioridade Os limites do poder da razatildeo satildeo tatildeo evidentes que se

manifestam inclusivamente na incapacidade da razatildeo de raciocinar sobre si mesma

ldquo[A] Par ougrave la voulons nous mieux esprouver que par elle mesme Srsquoil ne la faut croire parlant de soy agrave peine sera-elle propre agrave juger des

1 Trata-se de Raymond Sebond Da vida de Sebond sabe-se muito pouco como diz Montaigne ldquo[A] tout ce que nous sccedilavons cest quil estoit Espaignolrdquo (Les Essais II 12 p 440) Especula-se que nasceu em 1385 em Barcelona Diz-se tambeacutem que foi estudante na universidade de Toulouse e que foi reitor daquela universidade Morreu em Toulouse em 1436 onde ensinava medicina e teologia Sua obra magna ldquoTheologia naturalis sive Liber creaturarumrdquo (Teologia natural ou livro das criaturas) escrita em 1434-1436 e publicada em 1487 foi reimpressa vaacuterias vezes ateacute aos meados do seacuteculo XVII Esta obra foi traduzida por Montaigne em 1569 a pedido de seu pai Pierre Eyquem senhor de Montaigne e antigo presidente da Cacircmara Municipal de Bordeaux que se interessava muito por ela conforme atestam os primeiros paraacutegrafos da ldquoApologierdquo Esta traduccedilatildeo foi o primeiro trabalho publicado e o que o lanccedilou no mundo literaacuterio ldquo[A] Je trouvay belles les imaginations de cet autheur la contexture de son ouvrage bien suyvie et son dessein plein de pieteacuterdquo (Les Essais II 12 p 440) Para as citaccedilotildees e referecircncias dos Ensaios utilizaremos a ediccedilatildeo de Villey-Saulnier Paris PUFQUADRIGE 2004 As citaccedilotildees seratildeo feitas da seguinte forma o nuacutemero em algarismos romanos indica o livro o primeiro nuacutemero em araacutebicos o capiacutetulo e o segundo nuacutemero em araacutebicos a paacutegina da ediccedilatildeo Les Essais foram publicados pela primeira vez em 1580 e eram constituiacutedos por dois livros apenas Pouco depois Montaigne fez vaacuterios acreacutescimos nestes livros e compocircs um terceiro e fez uma nova ediccedilatildeo em 1588 Em 1592 o autor morre e deixa um exemplar com vaacuterias adiccedilotildees manuscritas o chamado ldquoexemplar de Bordeauxrdquo destinado a uma nova ediccedilatildeo dos Essais Indicaremos as trecircs ldquocamadasrdquo do texto com as letras A (Ediccedilatildeo de 1580) B (Ediccedilatildeo de 1588) e C (adiccedilotildees posteriores a 1588 feitas ao exemplar de Bordeaux)

6

choses estrangeres si elle connoit quelque chose aumoins sera ce son estre et son domicile [hellip] la vraye raison et essentielle de qui nous desrobons le nom agrave fauces enseignes elle loge dans le sein de Dieu [hellip]rdquo2

Compreender as razotildees do cepticismo de Montaigne significa antes de mais

aprofundar os aspectos mais marcantes da sua antropologia Por isso comeccedilaremos por

abordar ainda que de forma breve a concepccedilatildeo antropoloacutegica que estaacute subjacente na

ldquoApologierdquo Com efeito a razatildeo ndash esse grande motivo de orgulho do homem e que eacute

considerada como um sinal da sua participaccedilatildeo no ser ndash passa a ser concebida por

Montaigne como um mero fruto da pretensatildeo e vaidade humanas para explicar crenccedilas

costumes etc Entre os alvos da criacutetica de Montaigne encontram-se aquelas teorias que

potildeem o homem no ldquotopo da piracircmiderdquo das criaturas do universo Enquanto Sebond

coloca o homem no topo da escala dos seres Montaigne recoloca-o no seio da natureza

e rebaixa-o ao niacutevel dos animais

Pretendemos deste modo compreender melhor as razotildees do ldquodestronamentordquo

realizado por Montaigne deste ser ldquotodo-poderosordquo que eacute o homem Ou o que eacute o

mesmo pretendemos compreender o ldquocepticismo da razatildeordquo que Montaigne assume

conscientemente com o intuito de rejeitar a pretensatildeo do homem de se considerar pela

interposiccedilatildeo da razatildeo no centro do universo

Em segundo lugar para compreender o lugar e o valor da razatildeo na obra de

Montaigne seraacute necessaacuterio investigar os motivos que levaram o autor a tecer uma

criacutetica tatildeo contundente da razatildeo humana aprofundando em concreto as relaccedilotildees que

esta criacutetica tem com a sua anaacutelise da religiatildeo Haacute que ter em conta no entanto que a

atitude de desconfianccedila da razatildeo natildeo conduziu Montaigne a pocircr em causa a feacute cristatilde

dado que em seu entender esta se situa num plano diferente natildeo sendo portanto

susceptiacutevel de ataque pelo seu espiacuterito criacutetico

A pertinecircncia desta questatildeo ressalta quando se tem em conta que o autor inicia o

seu texto a partir de uma motivaccedilatildeo teoloacutegica podemos conhecer racionalmente Deus

Montaigne dedica um nuacutemero significativo de paacuteginas a mostrar que os atributos

divinos natildeo satildeo alcanccedilaacuteveis pelos exerciacutecios racionais dos homens detentores das

ldquoverdades filosoacuteficasrdquo Como fideiacutesta Montaigne pensa que a verdade em religiatildeo se

baseia em uacuteltima instacircncia na feacute e natildeo no raciociacutenio ou na demonstraccedilatildeo Pretende-se

2 Les Essais II 12 p 541

7

compreender neste ponto com faz Montaigne a transiccedilatildeo da criacutetica teoloacutegica agrave criacutetica do

conhecimento em geral

Na mesma linha de compreensatildeo dos limites da razatildeo seraacute importante

aprofundar num terceiro momento a criacutetica da ciecircncia desenvolvida por Montaigne na

ldquoApologierdquo Montaigne quer derrubar a tola vaidade e sacudir viva e corajosamente os

fundamentos ridiacuteculos como ele mesmo diz sobre os quais se constroem as falsas

ideias produzidas pela ciecircncia

Encontramos tambeacutem nesta parte um nuacutemero significativo de citaccedilotildees de

filoacutesofos antigos que Montaigne referencia para justificar a sua criacutetica radical agrave ciecircncia

Para ele os mais famosos filoacutesofos representantes do saber humano natildeo conseguiram

dar as verdadeiras respostas agraves questotildees fundamentais do ser humano Quais satildeo as

verdades as certezas sobre o homem e sobre Deus que esses saacutebios filoacutesofos nos

legaram

Em quarto e uacuteltimo lugar seraacute importante considerar de que modo Montaigne

relaciona a razatildeo humana e a moral Naturalmente natildeo seraacute possiacutevel considerar

detidamente o tema da moral na ldquoApologierdquo trata-se apenas de procurar perceber por

que razatildeo o autor ldquodecretardquo a impossibilidade de fundamentar na razatildeo um conjunto de

regras normas e leis que dizem respeito agrave vida praacutetica de qualquer grupo humano

Procurar-se-aacute reconstituir os vaacuterios argumentos de Montaigne que justificam a sua

tomada de posiccedilatildeo relativista no acircmbito da moral

8

1 A ideia do homem na ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo

Quando nos colocamos diante do desafio de estudar os Essais de Michel de

Montaigne uma questatildeo que importa perceber melhor eacute o periacuteodo no qual o autor

escreveu a sua obra Mais especificamente estudar o humanismo renascentista tendo

em vista que o autor dos Essais eacute considerado como um pensador deste periacuteodo

Abordaremos no entanto apenas alguns aspectos importantes daquela eacutepoca

Montaigne viveu num periacuteodo em que emergia uma nova visatildeo do mundo em

que o homem passou a ser o centro das atenccedilotildees em todos os aspectos O geocentrismo

medieval que centrava suas atenccedilotildees na relaccedilatildeo com Deus foi substituiacutedo pela

glorificaccedilatildeo do humano As pessoas interessadas nesta ruptura com os ideais medievais

buscavam inspiraccedilatildeo nas obras greco-romanas para representarem o seu proacuteprio mundo

O humanismo renascentista concebe-se como um movimento intelectual de

valorizaccedilatildeo da antiguidade claacutessica Natildeo se tratava poreacutem apenas de copiar as

realizaccedilotildees do classicismo greco-romano Este movimento representou algo que pode

ser considerado como uma ldquoglorificaccedilatildeo do homemrdquo agora colocado no centro de todas

as indagaccedilotildees e preocupaccedilotildees consistia em sentido amplo numa tomada de posiccedilatildeo

antropocecircntrica em reacccedilatildeo ao teocentrismo que imperava na Idade Meacutedia

Os humanistas deixaram de aceitar os valores e maneiras de ser e viver da Idade

Meacutedia Por conseguinte o interesse pela antiguidade experimenta-se como um meio

para atingir um fim Os humanistas viam na antiguidade

ldquo[hellip] aquilo que correspondia aos desejos que sentiam [hellip] Pretendiam encontrar nos antigos o Homem considerado como o ser geral impessoal universal que existe sob a mesma forma em toda parte [hellip] O humanismo eacute uma teacutecnica da vida cotidianardquo3

A produccedilatildeo intelectual deste periacuteodo concebia-se natildeo como um retorno ao

passado mas como uma tentativa de buscar nos claacutessicos greco-romanos uma fonte de

inspiraccedilatildeo O humanismo renascentista aleacutem de representar uma forte reacccedilatildeo a todos

os padrotildees culturais medievais escolaacutesticos tendeu tambeacutem fortemente a contrapor a feacute

e a razatildeo

Na sua globalidade a reflexatildeo dos Essais tem como um dos seus objectivos

principais a caracterizaccedilatildeo do homem Nesta perspectiva Michel de Montaigne se

3 AA VV Histoacuteria das sociedades das sociedades modernas agraves sociedades atuais Rio de Janeiro Ao Livro Teacutecnico 1983 p 70

9

apresenta como um pensador humanista que viveu numa altura em que a visatildeo

antropocecircntrica era dominante No entanto ele procurou superar esta concepccedilatildeo de uma

maneira muito particular A concepccedilatildeo antropoloacutegica claacutessica renascentista enaltecia

radicalmente a ldquodignitas hominisrdquo4 colocando o homem no centro do universo

Montaigne assume uma postura significativamente diferente do espiacuterito humanista

renascentista despreza o tema da dignitas hominis e dedica-se agrave investigaccedilatildeo das coisas

concretas da vida

O humanismo de Montaigne ao contraacuterio do humanismo dominante alicerccedila-se

na ldquomiseria hominisrdquo5 Parte de plena consciecircncia dos limites da razatildeo humana no

sentido de que as suas faculdades natildeo tecircm condiccedilotildees para transcender estes mesmos

limites A razatildeo o grande orgulho do homem eacute concebida como uma estrateacutegia de

racionalizaccedilatildeo dos vaacuterios elementos da vida (costumes crenccedilas etc) que procura

transformar atribuindo-lhe uma verdade que natildeo consegue transcender a contingecircncia

Potildee-se assim em destaque ateacute que ponto a posiccedilatildeo de Montaigne contrasta com a visatildeo

de ldquodignitas hominisrdquo acima referida a mais comummente assumida na sua eacutepoca Para

ele o homem soacute pode ser o que eacute e imaginar de acordo com a sua medida

ldquo[C] Tout contentement des mortels est mortel [A] La reconnoissance de nos parens de nos enfants et de nos amis si elle nous peut toucher et chatouiller en lrsquoautre monde si nous tenons encore agrave un tel plaisir nous sommes dans les commoditez terrestres et finies Nous ne pouvons dignement concevoir la grandeur de ces hautes et divines promesses si nous les pouvons aucunement concevoir pour dignement les imaginer il

4 Para ilustrar as principais caracteriacutesticas desta concepccedilatildeo vale a pena citar um texto muito conhecido de um dos maiores representantes do humanismo renascentista Pico della Mirandola O texto em causa pode ser considerado como uma espeacutecie de manifesto do pensamento humanista renascentista em geral Pico exalta o homem entre todos os seres da natureza e dos ceacuteus como um ser potencialmente capaz de auto-criar-se de auto-projectar-se e de modelar-se a si mesmo com liberdade Pico ldquocoloca na boca de Deusrdquo algumas palavras endereccediladas imaginativamente ao homem receacutem-criado (Adatildeo) ldquo[hellip] Medium te munde posui ut circumspiceres inde commodius quicquid est in mundo Nec te caelestem neque terrenum neque mortalem neque immortalem fecimus ut tui ipsius quasi arbitrarius honorarius que plastes et fictor in quam malueris tute formam effingas Poteris in inferiora quae sunt bruta degenerare poteris in superiora quae sunt divina ex tui animi sententia regenerarirdquo (Coloquei-te no meio do mundo para que daiacute possas olhar melhor tudo o que haacute no mundo Natildeo te fizemos celeste nem terreno nem mortal nem imortal a fim de que tu aacuterbitro e soberano artiacutefice de ti mesmo te plasmasses e te informasses na forma que tivesses seguramente escolhido Poderaacutes degenerar ateacute aos seres que satildeo as bestas poderaacutes regenerar-te ateacute agraves realidades superiores que satildeo divinas por decisatildeo do teu acircnimo) In Pico de la Mirandola Giovanni Oratio de Hominis Dignitate Ediccedilatildeo bilingue Traduccedilatildeo e introduccedilatildeo de Maria de Lurdes Sirgado Ganho Lisboa Ediccedilotildees 70 2001 pp 56-57) 5Para uma apresentaccedilatildeo sinteacutetica e clara deste tema pode-se consultar Friedrich Hugo Montaigne Traduzido do alematildeo por Robert Rovini Paris Gallimard 1967 sobretudo as paacuteginas 133-136 Nesta mesma perspectiva na obra de Rui Bertrand Romatildeo A Apologia na balanccedila a reinvenccedilatildeo do pirronismo na Apologia de Raimundo Sabunde de Michel de Montaigne Lisboa Imprensa Nacional Casa da Moeda 2007 haacute uma reflexatildeo que merece ser lida (pp 79-82)

10

faut les imaginer inimaginables indicibles incomprehensibles [C] et parfaictement autres que celles de nostre miserable experiencerdquo6

Constatando esse limite da razatildeo humana Montaigne combate decididamente as

concepccedilotildees da ldquodignitas humanisrdquo que tecircm como escopo transformar o homem no fim

uacuteltimo da natureza Montaigne ao voltar-se para o homem concreto ao rebaixaacute-lo e

tiraacute-lo do seu pedestal na ldquoApologierdquo assume uma atitude ceacuteptica entendida como

uma forma de pensamento capaz de seguir a mudanccedila e de rejeitar ao mesmo tempo a

pretensatildeo do homem de se considerar por via da razatildeo no centro do universo

Cabe entatildeo perguntar seraacute que o homem ocupa realmente um lugar central nos

Essais A resposta a esta questatildeo eacute expressa de maneira bastante niacutetida na proacutepria

obra Friedrich no seu conhecido trabalho sobre Montaigne afirma

ldquo[A] On peut ouvrir les Essais ougrave lrsquoon veut toujours ils traitent de lrsquohommerdquo7

Haacute muitos outros temas desenvolvidos nos Essais Basta lanccedilar um raacutepido olhar

sobre os tiacutetulos dos vaacuterios ensaios que compotildeem os trecircs livros da obra para constatar a

quantidade enorme de assuntos tratados por Montaigne

Na sua busca incessante de resposta agrave questatildeo central antes referida merece ser

destacado o contacto de Montaigne com a obra de Sebond Theologia Naturalis que seraacute

a base da ldquoApologierdquo Entre muitas outras questotildees desenvolvidas nesta obra o teoacutelogo

catalatildeo tem como objectivo importante responder agrave questatildeo o que eacute o homem Citando

o proacuteprio Sebond Rui Bertrand Romatildeo afirma que haacute uma ideia baacutesica de ordem

hieraacuterquica observada na scala naturale em todos os seus 4 degraus

ldquoNo inferior estatildeo as coisas apenas providas de ser as coisas minerais no segundo as que tecircm ser e vida as vegetais no terceiro as animais em que ao ser e agrave vida se juntam os sentidos no uacuteltimo encontra-se a criatura humana acima da qual natildeo haacute na natureza nenhum outro ser pois o homem possui as qualidades de todas as demais criaturas simultaneamente e em conjunto tendo aleacutem delas a razatildeo e o livre-arbiacutetrio [hellip]rdquo8

Continua o autor mais adiante

ldquo[hellip] A caracteriacutestica dominante da teologia de Sebond consiste precisamente no lugar privilegiado que nela ocupa a referecircncia do homem natildeo apenas como objecto de conhecimento mas como meio da

6 Les Essais II 12 p518 7 Friedrich op cit p 105 8 Romatildeo Rui Bertrand op cit p 90

11

obtenccedilatildeo deste A reflexatildeo antropoloacutegica polariza o seu pensamento filosoacutefico e lhe contamina o sistema teoloacutegicordquo9

Eacute importante destacar aqui uma ideia desenvolvida por Ernst Cassirer na sua

obra Ensaio sobre o Homem10 Segundo este autor a questatildeo acerca do homem no

periacuteodo renascentista depara-se com a descoberta de um novo instrumento de

pensamento entra em cena o espiacuterito cientiacutefico no sentido moderno da palavra O que

agora se procura eacute uma teoria geral do homem baseada em observaccedilotildees empiacutericas e em

princiacutepios loacutegicos gerais A nova cosmologia o sistema heliocecircntrico copernicano

passa a ser a uacutenica base satilde e cientiacutefica para uma nova antropologia Nem a metafiacutesica

claacutessica nem a religiatildeo (com a sua estrutura teoacuterica fundada na teologia medieval)

estavam preparadas para esta tarefa lembra o autor Estas duas cosmologias concebem

o universo como uma ordem hieraacuterquica em que o homem ocupa o lugar mais alto A

pretensatildeo humana de ser o centro do universo perdeu o seu fundamento Cassirer afirma

ainda que o sistema de Copeacuternico se tornou um dos mais fortes instrumentos do

cepticismo filosoacutefico que se desenvolveu no seacuteculo XVI

Montaigne sendo um pensador livre que conseguiu libertar-se da concepccedilatildeo

antropoloacutegica medieval e renascentista tambeacutem natildeo necessitou de recorrer agraves ideias

cientiacuteficas vigentes na altura da redacccedilatildeo dos Essais Isto natildeo significa que tenha

ignorado por completo a teoria heliocecircntrica de Copeacuternico mas sim que como escreve

Conche

ldquoIl nrsquoa pas eu besoin de Copernic pour trouver ridicule la preacutetension de lrsquohomme de se faire centre du cosmos11

Antes de iniciar o seu longo relato (de mais ou menos uma meia centena de

paacuteginas) no qual compara os homens aos animais Montaigne faz uma afirmaccedilatildeo de

capital importacircncia que serve como uma espeacutecie de conclusatildeo antecipada daquilo que

afirma negativamente sobre o homem e sua relaccedilatildeo com o universo

ldquo[A] La presomption est nostre maladie naturelle et originelle La plus calamiteuse et fraile de toutes les creatures crsquoest lrsquohomme et quant et quant la plus orgueilleuse Elle se sent et se void logeacutee icy parmy la bourbe et le fient du monde attacheacutee et cloueacutee agrave la pire plus morte et croupie parti de lrsquounivers au dernier estage du logis et le plus esloigneacute de la voute celeste avec les animaux de la pire condition des trois (Les aeacuteriens les aquatiques et les terrestres) et se va plantant par

9 Idem p 113 10 Cassirer Ernst An essay on man Traduccedilatildeo portuguesa de Carlos Branco Ensaio sobre o homem Lisboa Guimaratildees Editores 1995 p24 11 Conche Marcel Montaigne et la philosophie Paris Puf 1996 p 7

12

imagination au dessus du cercle de la Lune et ramenant le ciel soubs ses pieds Crsquoest par la vaniteacute de cette mesme imagination qursquoil srsquoegale agrave Dieu qursquoil srsquoattribue les conditions divines qursquoil se trie soy mesme et separe de la presse des autres creatures taille les parts aux animaux ses confreres et compaignons et leur distribue telle portion de facultez et de forces que bon luy semble Comment cognoit il par lrsquoeffort de son intelligence les branles internes et secrets des animaux par quelle comparaison drsquoeux agrave nous conclue il la bestise qursquoil leur attribue [C] Quand je me joueuml agrave ma chatte qui sccedilait si elle passe son temps de moy plus que je ne fay drsquoellerdquo12

O homem quer ser senhor de todo o universo A sua atitude de querer ser uma

excepccedilatildeo na natureza natildeo passa de uma atitude ilusoacuteria O homem eacute segundo

Montaigne uma criatura como as outras que pode ser diferenciada natildeo pela capacidade

de raciocinar mas apenas pela presunccedilatildeo de querer destacar-se orgulhosamente

tornando-se ldquoo todo-poderosordquo face agraves outras criaturas Esta sua pretensatildeo de querer ser

a uacutenica criatura que pode conhecer e dominar o universo eacute radicalmente contestada por

Montaigne na ldquoApologierdquo Eacute com muita clarividecircncia que Conche reflectindo sobre

este tema afirma

ldquoOn voit pourquoi Montaigne srsquoefforce de retrouver chez lrsquoanimal ldquointelligencerdquo ldquodiscreacutetionrdquoldquojugementrdquoldquoratiocinationrdquo capaciteacute de ldquoconsulterrdquo de ldquoconcluirrdquo ldquoscience et prudencerdquo 13

Que tipo de competecircncia nossa natildeo reconhecemos nos actos dos animais Esta

questatildeo fundamental leva Montaigne a apresentar os seus relatos anedoacuteticos14 O

interesse da sua apologia dos animais eacute ldquo[hellip] paradoxalment lrsquohomme Montaigne

recherche lrsquohomme dans lrsquoanimal [hellip] crsquoest pour lutter contre lrsquoanthropocentrismerdquo15

Montaigne inicia a sua exposiccedilatildeo perguntando-se

ldquo[A] Est-il police regleacutee avec plus drsquoordre diversifieacutee agrave plus de charges et drsquooffices et plus constamment entretenueuml que celle des mouches agrave mielrdquo16

E faz questatildeo tambeacutem de descrever o engenho das andorinhas ao construiacuterem os

seus alojamentos e das aranhas ao confeccionarem as suas teias Diante destas obras

destes pequeninos animais Montaigne observa

12 Les Essais II 12 p 452 13 Conche Marcel Montaigne et la philosophie Paris Puf 1996 p 9 14 ldquoFidegravele aux proceacutedeacutes de compilation de son temps Montaigne accumule les exemples emprunteacutes agrave Pline agrave Plutarque agrave Arrien agrave Aulu-Gelle agrave Lucregravece agrave Virgile agrave Sextus Epiricusrdquo (cf Weiler Maurice Pour connaitre la penseacutee de Montaigne Bordas 1948 p 38) 15 Giocanti Sylvia Montaigne et les becirctes la becirctise et lrsquoanimal dans Les Essais de Montaigne Universiteacute de Toulouse 2011 p 1 16 Les Essais II 12 pp 454-455

13

ldquo[A] Nous reconnoissons assez en la pluspart de leurs ouvrages combien les animaux ont drsquoexcellence (supeacuterioriteacute) au dessus de nous et combien nostre art est foible agrave les imiterrdquo17

Quanto agrave capacidade de comunicaccedilatildeo Montaigne afirma que os animais

possuem este atributo Falamos com os catildees18 e eles respondem-nos Eacute evidente que

utilizamos uma outra linguagem para conversarmos com eles Montaigne observa que

tambeacutem entre noacutes humanos haacute diferenccedilas de linguagem de acordo com a diferenccedila de

regiotildees Estas diferenccedilas tambeacutem se encontram nos animais da mesma espeacutecie19

Segundo o nosso autor haacute certamente uma diferenccedila de ordem e de grau entre os

homens e os animais contudo ldquo[A] crsquoest soubs le visage drsquoune mesme naturerdquo20 Ao

constatar a peculiaridade do homem em face das outras criaturas Montaigne destaca o

facto de que o homem eacute detentor da liberdade de imaginaccedilatildeo No entanto

ldquo[A] ce desresglement de penseacutees luy representant ce qui est ce qui nrsquoest pas et ce qursquoil veut le faux et le veritable crsquoest un advantage qui luy est bien cher vendu et duquel il a bien peu agrave se glorifier car de lagrave naist la souce principale des maux qui le pressent pecheacute maladie irresolution (inconstance) trouble desespoirrdquo 21

Citando Lucreacutecio22 Montaigne deixa transparecer que o homem se prejudica a si

mesmo porque natildeo se manteacutem dentro dos limites da organizaccedilatildeo da natureza que se

manifesta de uma maneira inteligiacutevel e agraves vezes ateacute hostil submetendo o homem agrave

necessidade de leis que natildeo lhe satildeo suficientemente claras23

17 Les Essais II 12 p455 18 Les Essais II 12 p 458 19 Les Essais II 12 pp 458-459 20 Les Essais II 12 p459 21 Les Essais II 12 p 460 22ldquo[B] ldquores quaeque suo ritu procedit et ommes Foedere naturae certo discrimina servantrdquo (Chaque chose se deacuteveloppe agrave sa maniegravere et toutes conservent les diffeacuterences eacutetablies par lrsquoordre immuable de la nature) Cf Les Essais II 12 p 459 23 Expressando a sua visatildeo da natureza Montaigne observa que ao considerar que ela nos criou diferentes dos outros animais isto eacute nus sobre a terra nua atados cercados natildeo tendo com que armar-nos cobrir-nos [hellip] somos tentados a chamaacute-la de ldquotregraves injuste maracirctrerdquo Mas isto natildeo eacute assim A nossa organizaccedilatildeo do mundo natildeo eacute tatildeo disforme e desregrada A natureza abraccedilou universalmente todas as suas criaturas e natildeo haacute nenhuma que ela tenha provido plenamente de todos os meios necessaacuterios para a conservaccedilatildeo da existecircncia ldquo[C] crsquoest une mesme nature qui roule son coursrdquo(cf Les Essais II12 p467) Reflectindo sobre o tema da natureza nos Essais Pierre Villey afirma que ela se opotildee essencialmente agrave razatildeo humana e eacute natural tudo o que a razatildeo natildeo contaminou Afirma Villey ldquo[hellip] crsquoest chez les animaux et chez les sauvages qursquoon trouve les traces les moins corrompues de la nature Lrsquoeacutetat de nature dans cette conception radicale crsquoest lrsquoeacutetat de sauvagerie [hellip] Lrsquoadmiration pour les andiens crsquoest la forme paradoxale que prend chez lui de temps agrave autre son principe drsquoimitation de la naturerdquo (In Villey Pierre Les sources et lrsquoeacutevolution des essais de Montaigne - Tome second Paris Librairie Hachete 1908 p228) Isto natildeo quer dizer que devamos imitar os indiacutegenas por exemplo em todos os seus costumes tradiccedilotildees etc

14

Continuando a apologia dos animais Montaigne sugere que concebamos que os

animais natildeo obedecem a instintos de uma forma cega O relato que apresenta da raposa

da Traacutecia24 eacute um dos seus exemplos claacutessicos neste sentido Antes de se arriscar sobre a

aacutegua gelada a raposa aproxima o ouvido do gelo para ouvir de que profundidade sobre

o murmuacuterio da aacutegua a correr em baixo isto eacute ela ldquoraciocinardquo como fariacuteamos noacutes em

idecircnticas circunstacircncias o que faz barulho mexe o que mexe natildeo estaacute gelado o que natildeo

estaacute gelado eacute liacutequido e o liacutequido cede sob o peso Segundo Montaigne atribuir isto

simplesmente a uma vivacidade do sentido da audiccedilatildeo sem raciociacutenio e sem conclusatildeo

eacute uma quimera inconcebiacutevel

Segundo Montaigne natildeo eacute soacute o homem que sabe escolher o que eacute bom e o que

natildeo eacute bom para a sua vida e sobretudo para o socorro nas doenccedilas atraveacutes da ciecircncia e

do conhecimento construiacutedos por arte e por raciociacutenio

ldquo[A] Et quand nous voyons les chevres de Candie si elles ont receu un coup de traict aller entre un million drsquoherbes choisir le dictame pour leur guerison et la tortue quand elle a mangeacute de la vipere chercher incontinent de lrsquooriganum pour se purger et le dragon fourbir et esclairer ses yeux avecques du fenouil les cigouignes se donner elles mesmes des clysteres agrave tout de lrsquoeau de marine [hellip] pourquay ne disons nous de mesmes que crsquoest science et prudencerdquo25

Eacute faacutecil ver aqui quanto Montaigne deseja que o homem reconheccedila que os

animais possuem tambeacutem ciecircncia e sabedoria Em seu entender os animais tambeacutem satildeo

capazes de ser instruiacutedos agrave moda humana

ldquo[A] Les merles les corbeaux les pies les parroquets nous leur aprenons agrave parler [hellip] ils ont un discours au dedans qui les rend ainsi disciplinables et volontaires agrave aprendrerdquo26

Muitos animais aproximam-se da capacidade do homem e isto leva Montaigne a

afirmar

ldquo[A] qursquoil se trouve plus de difference de tel homme agrave tel homme que de tel animal agrave tel hommerdquo27

Podemos encontrar na ldquoApologierdquo muitos outros exemplos em que Montaigne

defende a ideia de que os animais possuem diversas capacidades semelhantes agraves dos

humanos28 Uma vez numerados todos estes atributos dos animais Montaigne afirma

24 Les Essais II 12 p 460 25 Les Essais II 12 pp 462-463 26 Les Essais II 12 p 463 27 Les Essais II 12 p 466

15

ldquo[A] La maniegravere de naistre drsquoengendrer nourrir agir mouvoir vivre et mourir des bestes estant si voisine de la nostre tout ce que nous retranchons de leurs causes motrices et que nous adjoustons agrave nostre condition au dessus de la leur cela ne peut aucunement partir du discours de nostre raisonrdquo29

Pierre Villey ao reflectir sobre estas comparaccedilotildees suscita uma questatildeo

relevante que natildeo eacute possiacutevel ignorar

ldquo[hellip] quand il exalte lrsquointeligence des animaux on peut se demander ce qursquoil en pense au justerdquo30

Natildeo querendo entrar na discussatildeo deste assunto - ateacute porque o proacuteprio

Montaigne natildeo o fez - eacute importante notar que se estes relatos montaigneanos fossem

tomados agrave letra natildeo nos faltariam motivos de troccedila Poderiacuteamos duvidar de muitas

afirmaccedilotildees acerca dos animais apresentadas por ele Fazendo um esforccedilo por deixar agrave

margem os exageros o humor e a liberdade literaacuteria do autor ndash que tecircm como objectivo

rebaixar o homem recolocando-o entre os animais e mostrando-lhe que a sua razatildeo

grande motivo de orgulho natildeo lhe garante um lugar no topo da piracircmide das criaturas ndash

o que importa destacar eacute que Montaigne pretende acentuar uma grande semelhanccedila

entre os homens e os animais

ldquo[A] Nous ne sommes ny au dessus ny au dessoubs du reste tout ce qui est sous le ciel dit le sage court une loy et fortune pareille [B] Indupedita suis fatalibus omnia vinclis (Toutes les choses sont enchaineacutes par les liens de leur propre destineacutee)rdquo31

28 Vejamos resumidamente outros atributos dos animais destacados pelo autor os catildees que servem aos cegos tanto nos campos como nas cidades catildees que representavam papeacuteis no teatro (p463) bois que serviam nos jardins reais de Susa (p464) nos espectaacuteculos de Roma viam-se elefantes treinados em movimentar-se e em danccedilar (p465) a pega que imitava com a voz tudo o que ouvia (p464) os elefantes que tecircm alguma participaccedilatildeo religiosa (p468) formigas que tecircm um jeito muito especial de comunicaccedilatildeo muacutetua (p469) o ouriccedilo que prevecirc a direcccedilatildeo do vento (p469) o camaleatildeo e o polvo que mudam de cor conforme a ocasiatildeo (p469) o voo dos paacutessaros que eacute resultado natildeo apenas da organizaccedilatildeo natural mas tambeacutem do entendimento consentimento e raciociacutenio (p469) os animais que servem seus donos sabem amaacute-los defendecirc-los (p461) o catildeo o cavalo sabem prezar amizade (p471) os animais satildeo muito mais regrados do que noacutes e se contecircm com muito mais moderaccedilatildeo nos limites que a natureza nos prescreveu (p472) os animais natildeo promovem a guerra (p473) o catildeo eacute mais fiel do que o homem (p476-7) quanto agrave gratidatildeo os animais tecircm esta capacidade (p477-8) os atuns tecircm conhecimentos geomeacutetricos astronoacutemicos e aritmeacuteticos (p479-480) o elefante tem a capacidade de arrependimento e reconhecimento dos erros (p480) o tigre tem capacidade de ser clemente (p480) enfim Montaigne atribui todas estas caracteriacutesticas e outras mais aos animais mostrando que elas satildeo erradamente consideradas como unicamente posse dos humanos 29 Les Essais II 12 p 470 30 Villey op cit p 186 31 Les Essais II 12 p 459

16

Desta perspectiva podemos compreender melhor a razatildeo do ldquodestronamentordquo

deste ser ldquotodo-poderosordquo que eacute o homem levado a cabo por Montaigne32

Depois de ter destacado a ideia de que o homem se assemelha aos animais e

vice-versa Montaigne sustenta que a forma corporal do homem eacute o que constitui a sua

peculiaridade face aos animais Eacute ela que ldquodefinerdquo a identidade do homem

ldquo[B] Ce nrsquoest donc pas par la raison par le discours et par lrsquoame que nous excellons sur les bestes crsquoest par nostre beauteacute nostre beau teint et nostre belle disposition de membres pour laquelle il nous faut mettre nostre intelligence nostre prudence et tout le reste agrave lrsquoabandonrdquo33

A sugestatildeo de Montaigne eacute que o homem natildeo pode ser pensado sem o seu corpo

elemento essencial de sua condiccedilatildeo humana O homem natildeo pode continuar a ser

concebido apenas como ser racional Montaigne potildee em causa a claacutessica concepccedilatildeo de

que soacute o homem eacute constituiacutedo de racionalidade O seu objectivo natildeo eacute encontrar uma

nova definiccedilatildeo do homem natildeo deseja decretar a inferioridade do homem nem tampouco

a sua superioridade face aos animais Natildeo tem em vista promover uma competiccedilatildeo

ridiacutecula entre os seres da natureza Montaigne sente-se incapaz de dar qualquer

definiccedilatildeo com o auxiacutelio da razatildeo humana Ignora qual eacute a essecircncia dos animais natildeo os

conhece Da mesma forma podemos dizer que agrave luz da ldquoApologierdquo Montaigne natildeo

consegue definir o homem Natildeo eacute possiacutevel elaborar juiacutezos constantes e uniformes nem

sobre o homem nem a partir dele

Dito de outra forma o ldquocepticismo da razatildeordquo que Montaigne assume

conscientemente visa rejeitar a pretensatildeo do homem de se considerar por via da razatildeo

no centro do universo

Montaigne com os seus ensaios quer ir directo agraves coisas e aos homens Eacute claro

que teve pouco contacto com o chamado movimento cientiacutefico do seu tempo Longe de

32 Friedrich ao analisar a questatildeo do lugar que segundo Montaigne corresponde ao homem diz ldquoA la question de savoir quelle place occupe lrsquohomme dans la totaliteacute du monde existent Montaigne ne donnera jamais la reacuteponse plotinienne selon laquelle il serait dans la chaicircne des ecirctres eacutemaneacutes un dernier maillon reacutetablissant la communication avec la source de lrsquoeacutemanation lrsquoUm primordial Ni la reacuteponse chreacutetienne selon laquelle lrsquohomme constituerait le couronnement terrestre de la creacuteation tout le creacutee lui eacutetant subordonneacute et Dieu eacutetant alleacute pour lui jusqursquoagrave se reacutesoudre agrave intervenir dans lrsquohistoire du salut Lrsquohomme de Montaigne est plutocirct un point dans lrsquounivers sans espoir que le destin ni la diviniteacute srsquointeacuteresse jamais agrave lui Il partage cette insignifiance de point avec le milieu dans lequel il vit patrie Eacutetat continent terre animaux et plantes Il nrsquoest plus un centre il est plongeacute dans la multitude de tout ce qui existe ignorant ce qui lrsquoen distingue et srsquoy sentant cheacutetif - bien preacuteserveacute pourtant au coeur de son insignifiance de son ignorance et deacutechargeacute de tout embarras Il y a au fond de cette penseacutee des ideacutees de Lucregravece Montaigne les transforme pour leur faire exprimer sa propre conscience de la vie dont il preacutecise les grandes lignes en la deacutelimitant par rapport aux affirmations posant la digniteacute de la nature humaine (cf op cit p131) 33 Les Essais II 12 p 486

17

toda a construccedilatildeo teoacuterica esforccedila-se por encontrar nele mesmo e nos outros o homem

tal como eacute sem o falso semblante que lhe acrescentam as pretensiosas doutrinas que o

definem pela sua relaccedilatildeo com o universo e com Deus

18

2 A criacutetica agrave razatildeo humana e a questatildeo da religiatildeo

Segundo Montaigne as pessoas que se gabam do conhecimento estatildeo sempre a

tentar explicar quais satildeo os atributos de Deus atraveacutes de complicados conceitos e

demonstraccedilotildees ininteligiacuteveis Em seu entender Deus e as verdades da religiatildeo satildeo

nitidamente questotildees de feacute e natildeo noccedilotildees filosoacuteficas Que isto eacute assim prova-o o facto de

que estas noccedilotildees satildeo sempre muito diversas e originam muita discoacuterdia entre os

inuacutemeros autores que delas se ocupam Uma coisa eacute Deus e outra coisa totalmente

diferente eacute o que pensam os homens a respeito de Deus

ldquo[A] Il ma tousjours sembleacute quagrave un homme Chrestien cette sorte de parler est pleine dindiscretion et dirreverence Dieu ne peut mourir Dieu ne se peut desdire Dieu ne peut faire cecy ou cela Je ne trouve pas bon denfermer ainsi la puissance divine soubs les loix de nostre parolle Et lapparence qui soffre agrave nous en ces propositions il la faudroit representer plus reveremment et plus religieusementrdquo34

ldquo[A] Dieu ne peut faire les mortels immortels ny revivre les trespassez ny que celuy qui a vescu nait point vescu celuy qui a eu des honneurs ne les ait point eus nayant autre droit sur le passeacute que de loubliance [hellip] Voylagrave ce quil dict et quun Chrestien devroit eviter de passer par sa bouche Lagrave ougrave au rebours il semble que les hommes recherchent cette fole fierteacute de langage pour ramener Dieu agrave leur mesure [hellip]nostre parole le dict mais nostre intelligence ne lrsquoapprehende pointrdquo35

Para compreender o lugar e o valor da razatildeo na ldquoApologierdquo eacute necessaacuterio

investigar os motivos que levaram o autor a tecer uma criacutetica tatildeo contundente da razatildeo

humana aprofundando em concreto as relaccedilotildees que esta criacutetica tem com a sua anaacutelise

da religiatildeo e com o poder de Deus expresso em todo o desenvolvimento do texto Para

esta abordagem teremos como base o preacircmbulo da ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo36

A ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo eacute o mais longo capiacutetulo da obra Les Essais

Neste texto Montaigne propotildee-se apresentar a ldquodefesa de um teoacutelogordquo do seacuteculo XVI

Montaigne comeccedila por caracterizar a situaccedilatildeo histoacuterica na qual a obra de

Sebond chegou agraves matildeos de seu pai por intermeacutedio do humanista Pierre Brunel (1499-

1546)37 Segundo Montaigne trata-se de um livro adequado para a eacutepoca Isto porque as

34 Les Essais II 12 p 527 35 Les Essais II 12 p 528 36 Cf Les Essais II 12 pp 438-449 Montaigne sobretudo nestas paacuteginas iniciais opotildee a religiatildeo agrave razatildeo humana demonstrando por um lado a incapacidade e os limites desta faculdade que eacute motivo de orgulho do homem e por outro esse ldquoinstrumentordquo de conhecimento ligado agrave graccedila divina que eacute a feacute 37 Montaigne admirava muito este humanista que gozava de grande reputaccedilatildeo na sua eacutepoca por causa de seu saber (Les Essais II 12 p 439)

19

novidades de Lutero comeccedilavam a estar em voga e a abalar em muitos lugares a antiga

crenccedila cristatilde38 Para Montaigne que era um pensador catoacutelico conservador a Reforma

Protestante era vista como algo perigoso para a religiatildeo estabelecida Globalmente natildeo

concordava com as contestaccedilotildees provocadas pelo espiacuterito da Reforma sobretudo porque

poderiam levar os homens agrave praacutetica do ateiacutesmo especialmente os menos doutos

Uma leitura do texto potildee de imediato em evidecircncia em que medida Montaigne se

distancia de Sebond em termos argumentativos Parafraseando Villey a defesa de

Sebond seraacute rapidamente esquecida39 Montaigne observa que surgiram entretanto

algumas objecccedilotildees ao livro de Sebond e anuncia no iniacutecio do ensaio o seu propoacutesito de

refutaacute-las Montaigne deseja defender Sebond destes dois tipos de adversaacuterios por um

lado os que consideram que os cristatildeos erram ao querer apoiar com razotildees humanas a

sua crenccedila que soacute se concebe por feacute e por uma inspiraccedilatildeo particular da graccedila divina

Estes satildeo os que subestimam a importacircncia da razatildeo Satildeo considerados fideiacutestas

pessoas que pensam que a verdade em religiatildeo estaacute em uacuteltima instacircncia baseada na feacute

em vez de no raciociacutenio ou na evidecircncia Por outro lado estatildeo os que dizem que os

argumentos de Sebond satildeo fracos e inadequados para demonstrar o que pretendem e se

dispotildeem a atacaacute-los facilmente Estes satildeo os que subestimam a importacircncia da feacute

Consideremos em primeiro lugar a atitude dos primeiros opositores Natildeo seria

correcto querer apoiar com razotildees humanas a crenccedila ldquo[A] qui ne se conccediloit que par foy

et par une inspiration particuliere de la grace divinerdquo40 Estes primeiros opositores de

Sebond satildeo os partidaacuterios da posiccedilatildeo ortodoxa catoacutelica Montaigne lembra que estes

teoacutelogos catoacutelicos satildeo movidos sobretudo por uma visatildeo piedosa

ldquo[A] En cette objection il semble quil y ait quelque zele de pieteacute et agrave cette cause nous faut-il avec autant plus de douceur et de respect essayer de satisfaire agrave ceux qui la mettent en avantrdquo41

Em face destas primeiras criacuteticas agrave obra do teoacutelogo catalatildeo Montaigne natildeo se

inibe de expressar as suas proacuteprias tomadas de posiccedilatildeo

ldquo[A]Toutefois je juge ainsi quagrave une chose si divine et si haultaine et surpassant de si loing lhumaine intelligence comme est cette veriteacute de laquelle il a pleu agrave la bonteacute de Dieu nous esclairer il est bien besoin quil nous preste encore son secours dune faveur extraordinaire et privilegeacutee pour la pouvoir concevoir et loger en nous et ne croy pas que

38 Cf Les Essais II 12 p 439 39 Villey op cit p 183 40 Les Essais II 12 p 440 41 Les Essais II 12 p 440

20

les moyens purement humains en soyent aucunement capables et sils lestoient tant dames rares et excellentes et si abondamment garnies de forces naturelles eacutes siecles anciens neussent pas failly par leur discours darriver agrave cette connoissance Cest la foy seule qui embrasse vivement et certainement les hauts mysteres de nostre Religionrdquo42

Ao abordar esta questatildeo Montaigne reconhece que natildeo estaacute capacitado para

levar a cabo tal empreendimento Esta seria uma tarefa mais adequada para um homem

versado em teologia assunto de que ele pessoalmente diz nada saber43 Mesmo assim

expressa uma vez mais a sua criacutetica radical aos que utilizam a razatildeo para apresentarem

argumentos apologeacuteticos em defesa das verdades sobre Deus e sobre a religiatildeo

Montaigne eacute um catoacutelico44 Sobre isto os Essais natildeo deixam duacutevida Natildeo eacute este o

momento de entrar na discussatildeo acerca de como viveu ou deixou de viver a sua

religiosidade O importante eacute que como catoacutelico aceita que haacute um Deus uacutenico criador

do ceacuteu e da terra Em vaacuterios momentos tanto na ldquoApologierdquo como em outros ensaios

Montaigne daacute a entender que a verdade estaacute em Deus e natildeo eacute propriedade dos homens

filoacutesofos ou teoacutelogos Noutras palavras a verdade eacute revelada e o homem sem o auxiacutelio

de Deus nunca a encontraria A razatildeo humana natildeo tem condiccedilotildees para elaborar

raciociacutenios crediacuteveis sobre estas verdades reveladas Para sustentar a tese que a razatildeo eacute

impotente neste domiacutenio Montaigne dedica um nuacutemero importante de paacuteginas em toda

a sua obra a desenvolver a ideia de que alguns filoacutesofos antigos reflectiram muito sobre

a possibilidade do conhecimento sobre Deus e fizeram afirmaccedilotildees que satildeo

absolutamente carentes de sentido Isto natildeo passou de uma ldquo[C] tintamarre de tant de

42 Les Essais II 12 p 440-441 43 ldquoCe seroit mieux la charge drsquoun homme verseacute en Theologie que de moy qui nrsquoy sccedilay rienrdquo(Les Essais II 12 p 440) 44 Montaigne declara-se catoacutelico foi um catoacutelico que durante toda a sua vida procurou cumprir os ritos lituacutergicos convencionais da Igreja Catoacutelica A sua posiccedilatildeo ceacuteptica parece enquadrar-se no fideiacutesmo como veremos Mas haacute que salientar que em algumas questotildees morais independentes das suas praacuteticas rituais ou seja na sua vida praacutetica Montaigne natildeo tem muito em consideraccedilatildeo a lista de exigecircncias eacuteticas do catolicismo romano Parece que falta agrave concepccedilatildeo religiosa de Montaigne algum sentimento religioso limita-se a uma espeacutecie de praacutetica do ritualismo exigido pela Igreja Catoacutelica Ele seria catoacutelico por uma questatildeo de conveniecircncia intelectual A sua praacutetica lituacutergica ritualiacutestica natildeo exerce grande influecircncia sobre o seu pensamento filosoacutefico Ele eacute um pensador completamente livre face agrave doutrina da Igreja E isto distingue-o substancialmente dos teoacutelogos que integram o corpo doutrinal na Igreja Montaigne pensava e exprimia estes pensamentos com plena liberdade Manifesta aleacutem disso alguma confianccedila na Igreja na religiatildeo na tradiccedilatildeo e nos costumes que contribuiacuteram para a sua formaccedilatildeo e que satildeo de alguma maneira parte constitutiva de sua identidade E na realidade quis apostar naquilo com o qual estava mais familiarizado ldquo[B] Nous sommes Chrestiens agrave mesme titre que nous sommes ou Perigordins ou Alemansrdquo(Les Essais II 12 p 445) No entanto quando comeccedilamos a estabelecer um maior contacto com os Essais percebemos que Montaigne natildeo eacute um catoacutelico que confie cegamente na doutrina da Igreja Muito pelo contraacuterio eacute extremamente consciente dos problemas do catolicismo e da sua doutrina bem como dos costumes em geral E acima de tudo tem perfeita consciecircncia de que a sua confianccedila eacute uma crenccedila e natildeo uma certeza filosoacutefica

21

cervelles philosophiquesrdquo45 Segundo Montaigne de todas as ideias humanas e antigas

no tocante agrave religiatildeo

ldquo[A]celle lagrave me semble avoir eu plus de vray-semblance et plus dexcuse qui reconnoissoit Dieu comme une puissance incomprehensible origine et conservatrice de toutes choses toute bonteacute toute perfection recevant et prenant en bonne part lhonneur et la reverence que les humains luy rendoient soubs quelque visage sous quelque nom et en quelque maniere que ce futrdquo46

Trata-se de belas afirmaccedilotildees que querem expressar quais satildeo os principais

atributos de Deus Satildeo uma tentativa racional que tem como meta explicar quem eacute Deus

Ao comentar esta passagem da ldquoApologierdquo Conche pergunta-se que significam estas

palavras E baseado na leitura que faz de Montaingne afirma que aplicadas a Deus

natildeo podemos saber o que realmente significam47

Montaigne questiona o facto de muitos homens pretenderem edificar um

discurso baseado na razatildeo para justificar as verdades reveladas as quais segundo ele soacute

poderatildeo encontrar os verdadeiros alicerces na feacute Vejamos como Conche

sinteticamente analisa esta questatildeo a partir da ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo

ldquoNous croyons penser Dieu En reacutealiteacute nous ne faisons que projeter hors de nous des qualiteacutes humaines que nos avons [hellip] Lrsquohomme ne peut concevoir Dieu qursquoagrave partir de lui-mecircme Or il y a entre lrsquohomme et Dieu un abicircme qualitatif Le Dieu dont on parle et duquel on raisonne nrsquoest qursquoun produit de lrsquoanthropomorphisme La raison loin de nous eacutelever agrave Dieu le ramegravene agrave notre mesure [hellip] En tout cela Dieu est encore conccedilu par analogie avec lrsquohomme et la puissance divine enfermeacutee ldquosous les lois de notre parolerdquo Assujettir Dieu agrave nos principes rationnels crsquoest lrsquoassujettir agrave la raison humaine Lrsquohomme ne peut penser au-delagrave de lui mecircme Du vrai Dieu on ne peut rien penser ni rien dire Il nrsquoy a pas drsquoideacutee de Dieu [hellip] La notion de Dieu nrsquoest pas une notion philosophiquerdquo48

Embora critique estes opositores de Sebond Montaigne afirma ao mesmo tempo

que o empenho em justificar a feacute pela razatildeo eacute uma iniciativa louvaacutevel Chega mesmo a

afirmar que esta tarefa poderia ser considerada como o uso mais honroso que o homem

cristatildeo poderia dar agrave razatildeo Por outras palavras eacute uma atitude nobre a que leva o cristatildeo

a querer embelezar perceber e ampliar a verdade de sua crenccedila por meio de todos os

estudos e reflexotildees Montaigne observa entretanto que eacute preciso fazer acompanhar a

45 Les Essais II 12 p 516 46 Les Essais II 12 p 513 47 Cf Conche Marcel Montaigne ou la conscience heureuse Paris Puf 2009 p 55 48 Idem pp 55-56

22

nossa feacute de toda a razatildeo que haacute em noacutes mas sempre com a ressalva de natildeo pensar que

seja de noacutes que ela depende nem que os nossos esforccedilos e argumentos possam atingir

uma tatildeo ldquo[A] supernaturelle et divine sciencerdquo49 O autor dos Essais insistiraacute muito

neste aspecto

ldquo[A] Si elle nentre chez nous par une infusion extraordinaire si elle y entre non seulement par discours mais encore par moyens humains elle ny est pas en sa digniteacute ny en sa splendeur Et certes je crain pourtant que nous ne la jouyssions que par cette voye Si nous tenions agrave Dieu par lentremise dune foy vive si nous tenions agrave Dieu par luy non par nous si nous avions un pied et un fondement divin les occasions humaines nauroient pas le pouvoir de nous esbranler comme elles ont [hellip]rdquo50

Sem duacutevida Montaigne ao questionar o poder da razatildeo humana procura

defender a feacute cristatilde Os argumentos tidos como ceacutepticos que estatildeo presentes na

ldquoApologierdquo tecircm como objectivo provar que soacute atraveacutes da intervenccedilatildeo divina e natildeo com

nossos proacuteprios meios racionais podemos ter acesso agrave verdade Apresenta vaacuterios

exemplos para que entendamos com mais clarividecircncia a sua reflexatildeo acerca deste

assunto

ldquo[C] Lrsquohomme est bien insenseacute Il ne sccedilauroit forger un ciron et forge des Dieux agrave douzainesrdquo51

O homem quer descrever Deus mas na verdade descreve-se a si mesmo Isto

demonstra a sua incapacidade e a sua falta de sabedoria

ldquo[B] Nous avons vie raison et liberteacute estimons la bonteacute la chariteacute et la justice ces qualitez sont donc en luy Somme le bastiment et le desbastiment les conditions de la diviniteacute se forgent par lhomme selon la relation agrave soy Quel patron et quel modele Estirons eslevons et grossissons les qualitez humaines tant quil nous Plaira enfle toy pauvre homme et encore et encore et encore Non si te ruperis inquit (ldquoNon pas mecircme quand tu cregraveverais dit-ilrdquo (Hor Sal II III 318) Crsquoest la fable de la grenouille qui veut se faire aussi grosse que le boeuf)rdquo52

Eacute interessante notar que ao mesmo tempo que pretende fazer a apologia da feacute cristatilde Montaigne critica os cristatildeos que natildeo satildeo ldquofieacuteisrdquo aos ensinamentos da Sagrada Escritura

ldquo[B] Voulez vous voir cela Comparez nos moeurs agrave un Mahometan agrave un Payen vous demeurez tousjours au dessoubs lagrave ougrave au regard de lavantage de nostre religion nous devrions luire en excellence dune extreme et incomparable distance et devroit on dire Sont ils si justes si

49 Les Essais II 12 p 441 50 Les Essais II 12 p 441 51 Les Essais II 12 p 530 52 Les Essais II 12 p 531

23

charitables si bons ils sont donq Chrestiens [C] La marque peculiegravere de nostre veriteacute devroit estre nostre vertu comme elle est aussi la plus celeste marque et la plus difficile et que cest la plus digne production de la veriteacuterdquo53

Para Montaigne os cristatildeos constituem uma espeacutecie de contratestemunho de sua

feacute Fazendo uma referecircncia ao texto da Sagrada Escritura algo muito raro nos Essais o

autor afirma que se tiveacutessemos um uacutenico pingo de feacute54 moveriacuteamos as montanhas de

seu lugar E neste sentido lembra-nos

ldquo[A] nos actions qui seroient guideacutees et accompaigneacutees de la diviniteacute ne seroient pas simplement humaines elles auroient quelque chose de miraculeux comme nostre croyancerdquo55

Para os que subestimam a importacircncia da razatildeo isto eacute para os primeiros

opositores de Sebond ou os fideiacutestas os cristatildeos erram ao quererem apoiar as suas

crenccedilas que soacute se concebem por meio da feacute e por inspiraccedilatildeo particular da graccedila divina

Estes satildeo os que pensam que a verdade em religiatildeo estaacute em uacuteltima instacircncia baseada na

feacute em vez de no raciociacutenio ou na evidecircncia Segundo Montaigne trata-se de uma

concepccedilatildeo bonita e ateacute piedosa Chega inclusivamente a exemplificar esta atitude e a

citar um caso de algueacutem que foi desviado dos erros da incredulidade atraveacutes da leitura

da obra de Sebond

ldquo[A] Je sccedilay un homme dauthoriteacute nourry aux lettres qui ma confesseacute avoir esteacute rameneacute des erreurs de la mescreance par lentremise des argumens de Sebond Et quand on les despouillera de cet ornement et du secours et approbation de la foy et quon les prendra pour fantasies pures humaines pour en combatre ceux qui sont precipitez aux espouvantables et horribles tenebres de lirreligion ils se trouveront encores lors aussi solides et autant fermes que nuls autres de mesme condition quon leur puisse opposer [hellip]rdquo56

53 Les Essais II 12 p 442 54 Provavelmente Montaigne estaacute a aludir a textos da Sagrada Escritura especialmente do Evangelho ldquoSi vraiment vous avez de la foi gros come une graine de moutarde vous diriez agrave ce sycomore ldquoDeacuteracine-toi et va te planter dans la merrdquo et il vous obeacuteiraitrdquo (Lc 17 6) Car en veacuteriteacute je vous le deacuteclare si un jour votre foi est semblable agrave un grain de moutarde vous diriez agrave cette montagne ldquoPasse drsquoici lagrave-basrdquo et elle y passera Rien ne vous sera impossiblerdquo (Mt 17 20) (In Nouveau Testament Traduction Oecumeacutenique de la Bible Paris PUF 1977 pp 91 e 253 55 Les Essais II 12 p 442 56 Les Essais II 12 p 447-448

24

No entanto mesmo tendo em consideraccedilatildeo a importacircncia da Teologia Natural

sebondiana Montaigne toma um certo partido pelo lado dos fideiacutestas57 seus opositores

Em seu entender a razatildeo humana natildeo eacute capaz de conduzir o homem agrave feacute

Montaigne num dado momento refere-se agraves guerras58 que oprimiam a sua

naccedilatildeo Ele propotildee uma possiacutevel explicaccedilatildeo destes tormentos que assolavam a Franccedila

que tem muito a ver com a questatildeo de fundo tratada na ldquoApologierdquo Escreve

ldquo[A] Les hommes y sont conducteurs et srsquoy servent de la religion ce devroit estre tout le contrairerdquo59

Assim se compreende por que razatildeo Montaigne aleacutem de criticar aqueles que

queriam instrumentalizar a razatildeo para justificar as verdades reveladas repudia a noccedilatildeo

daqueles que se dedicam excessivamente agrave religiatildeo e que tecircm como meta principal a

satisfaccedilatildeo das paixotildees e da vaidade

ldquo[C] Je voy cela evidemment que nous ne prestons volontiers agrave la devotion que les offices qui flattent noz passions Il nest point dhostiliteacute excellente comme la Chrestienne Nostre zele fait merveilles quand il va secondant nostre pente vers la haine la cruauteacute lambition lavarice la detraction la rebellion A contrepoil vers la bonteacute la benigniteacute la temperance si comme par miracle quelque rare complexion ne ly porte il ne va ny de pied ny daile Nostre religion est faicte pour extirper les vices elle les couvre les nourrit les incite [A] Il ne faut point faire barbe de foarre agrave Dieu (comme on dict) Si nous le croyons je ne dy pas par foy mais dune simple croyance voire (et je le dis agrave nostre grande confusion) si nous le croyons et cognoissions comme une autre histoire comme lun de nos compaignons nous laimerions au dessus de toutes autres choses pour linfinie bonteacute et beauteacute qui reluit en luy au moins marcheroit il en mesme reng de nostre affection que les richesses les plaisirs la gloire et nos amis raquo60

Montaigne demonstra uma certa irritaccedilatildeo em face da instrumentalizaccedilatildeo da

religiatildeo para certos objectivos particulares Em seu entender a devoccedilatildeo religiosa natildeo

57 Ao reflectir sobre o fideiacutesmo presente na ldquoApologierdquo Friedrich diz-nos que Montaigne assume um fideiacutesmo isento da nostalgia miacutestica O seu fideiacutesmo significa uma tomada de consciecircncia intelectual dos limites humanos limites estes que natildeo deseja ultrapassar Seu fideiacutesmo eacute de uma espeacutecie negativa isto eacute eacute a certeza da incerteza O mesmo autor observa ainda que a ldquoteologiardquo de Montaigne representa um desvio para ir ao conhecimento do homem no interior do mundo Montaigne precisa de se distanciar de Deus para se assegurar da pequenez do homem na qual ele vai se instalar (cf op cit p 117) 58 Tudo indica que Montaigne estaacute a falar das guerras civis e religiosas do seacuteculo XVI Citando o famoso historiador francecircs M de Chacircteaubriand Laschamps na sua monumental obra Michel de Montaigne editada em 1855 afirma que estas guerras ldquoont dureacute trente-neuf ans elles ont engendre les massacres de la Saint Bartheacutelemy verseacute le sang de plus de deux millions de Franccedilais et deacutevoreacute plus de trois milliards de notre monnaie actuelle Elles ont produit la saisie et la vente des biens de lrsquoEacuteglise et des particulieres frappeacute deux rois de mort violente Henri III et Henri IV et commenceacute le procegraves criminal du premier de ces deux roisrdquo (cf Laschamps F Bigorie de Michel de Montaigne Paris Libraire Editeur 1855 p 108) 59 Les Essais II 12 p 443 60 Les Essais II 12 p 444

25

pode ser usada para servir os propoacutesitos do oacutedio da crueldade da ambiccedilatildeo da rebeliatildeo

etc61

Embora natildeo seja teoacutelogo62 Montaigne eacute um pensador que procura respeitar

profundamente a missatildeo da teologia Mas importa salientar que esta missatildeo deve ser

entendida simplesmente como uma praacutetica de piedade e natildeo como uma racionalizaccedilatildeo e

sistematizaccedilatildeo das verdades reveladas pela feacute Neste sentido haacute uma enorme distacircncia

entre o autor dos Essais e os escolaacutesticos Para Montaigne a teologia eacute concebida como

uma espeacutecie de exerciacutecio espiritual dos cristatildeos sobretudo dos teoacutelogos atraveacutes da

razatildeo humana Exerciacutecio este que carece do poder de alcanccedilar a verdade

ldquo[A] Il en faut faire de mesme et accompaigner nostre foy de toute la raison qui est en nous mais tousjours avec cette reservation de nestimer pas que ce soit de nous quelle deacutepende ny que nos efforts et arguments puissent atteindre agrave une si supernaturelle et divine sciencerdquo 63

Para Montaigne as explicaccedilotildees (racionalizaccedilotildees) das verdades da religiatildeo

devem ser as pregaccedilotildees piedosas nos actos de culto por exemplo E esta eacute a tarefa

fundamental da qual a teologia deve ocupar-se Aleacutem disto Montaigne que eacute um

observador subtil e cuidadoso propotildee certas distinccedilotildees Vejamos o que Friedrich tem a

dizer sobre esta questatildeo

ldquo[hellip] sait bien entendu distinguer la vraie pieacuteteacute de la fausse Il bracircme ainsi les priegraveres meacutecaniques la malhonnecircteteacute des gens qui se signent au son de la cloche sans pour autant renoncer agrave la haine agrave lrsquoavarice agrave lrsquoinjustice comme si leur principe eacutetait aux vices leur heure son heure agrave Dieurdquo64

Desta perspectiva segundo Montaigne a religiatildeo deve ser entre outras coisas

como uma praacutetica da verdadeira piedade que se preocupa em instaurar no coraccedilatildeo do

homem o desejo de viver o amor a justiccedila etc renunciando a tudo aquilo que eacute mal e

que impede a realizaccedilatildeo da felicidade do homem no aqui e no agora Eacute por isto que natildeo

acredita numa religiatildeo que vive a prometer constantemente bens eternos que viratildeo a

tornar-se realidade num outro mundo diverso e posterior a este que conhecemos Para

exemplificar esta sua abordagem Montaigne refere na ldquoApologierdquo o filoacutesofo Antiacutestenes

Quando o iniciavam no misteacuterio de Orfeu dizendo-lhe o sacerdote que aqueles que se

devotavam a tal religiatildeo iam receber bens eternos e perfeitos apoacutes a morte aquele

61 Cf Les Essais II 12 p 444 62 Ver nota 43 63 Les Essais II 12 p 441 64 Friedrich op cit p 122

26

perguntou-lhe ldquose acreditas nisso por que entatildeo natildeo morres tu mesmordquo65 Eis um outro

exemplo que vale a pena citar

ldquo[C] Diogenes plus brusquement selon sa mode et hors de nostre propos au prestre qui le preschoit de mesme de se faire de son ordre pour parvenir aux biens de lautre monde Veux tu pas que je croye quAgesilauumls et Epaminondas si grands hommes seront miserables et que toy qui nes quun veau seras bien heureux par ce que tu es prestre rdquo66

Segundo Montaigne se acolhecircssemos essas grandes promessas de felicidades

eternas e supremas com a mesma autoridade com que acolhemos uma opiniatildeo

filosoacutefica natildeo teriacuteamos o horror agrave morte que temos

ldquo[A] Je veuil estre dissout dirions nous et estre aveques Jesus-Christrdquo67

Ao afirmar que

ldquo[A] La force du discours de Platon de lrsquoimmortaliteacute de lrsquoame poussa bien aucuns de ses disciples agrave la mort pour joiumlr plus promptement des esperances qursquoil leur donnoit [hellip]68

O autor da ldquoApologierdquo quer destacar a fragilidade da razatildeo que utiliza meios

puramente humanos para explicar ldquorealidadesrdquo que transcendem a vida concreta

Vejamos uma passagem em que o autor expressa nitidamente estas ideias

ldquo[A] Tout cela cest un signe tres-evident que nous ne recevons nostre religion quagrave nostre faccedilon et par nos mains et non autrement que comme les autres religions se reccediloyvent Nous nous sommes rencontrez au paiumls ou elle estoit en usage ougrave nous regardons son ancienneteacute ou lauthoriteacute des hommes qui lont maintenue ou creignons les menaces quellrsquoattache aux mescreans ou suyvons ses promesses Ces considerations lagrave doivent estre employeacutees agrave nostre creance mais comme subsidiaires ce sont liaisons humaines Une autre region dautres tesmoings pareilles promesses et menasses nous pourroyent imprimer par mesme voye une croyance contrairerdquo69

Apesar de ser catoacutelico parece sugerir na ldquoApologierdquo uma certa atitude de

indiferenccedila relativamente a toda e qualquer profissatildeo de feacute ou seja uma espeacutecie de

distanciamento no que diz respeito agraves diversas convicccedilotildees religiosas Montaigne chega

quase a reduzir a proacutepria crenccedila a uma questatildeo de costume a um acaso geograacutefico

65 Cf Les Essais II 12 p 444 66 Les Essais II 12 p 444 67 Les Essais II 12 p 445 68 Les Essais II 12 p 445 69 Les Essais II 12 p 445

27

[B] Nous sommes Chrestiens agrave mesme titre que nous sommes ou Perigordins ou Alemansrdquo70

Fazendo uma criacutetica aos diversos raciociacutenios que foram usados na histoacuteria do

pensamento filosoacutefico com o objectivo de argumentar de que forma o homem tem

acesso agrave religiatildeo Montaigne afirma que Platatildeo e os seus exemplos querem levar-nos a

concluir que somos conduzidos agrave crenccedila em Deus ou por amor ou por forccedila A sua

rejeiccedilatildeo dos argumentos da filosofia expressa-se de uma forma muito incisiva

ldquo[C] LAtheisme estant une proposition comme desnatureacutee et monstrueuse difficile aussi et malaiseacutee destablir en lesprit humain pour insolent et desregleacute quil puisse estre il sen est veu assez par vaniteacute et par fierteacute de concevoir des opinions non vulgaires et reformatrices du monde en affecter la profession par contenance qui sils sont asses fols ne sont pas assez forts pour lavoir planteacutee en leur conscience pourtantrdquo71

Aleacutem de apontar os limites das crenccedilas consideradas pagatildes bem como os

enganos de Platatildeo relativos aos motivos que levam o homem agrave praacutetica da religiatildeo

Montaigne critica um outro engano similar e importante de Platatildeo

ldquo[B] Lerreur du paganisme et lignorance de nostre sainte veriteacute laissa tomber cette grande ame de Platon (mais grande dhumaine grandeur seulement) encores en cet autre voisin abus que les enfans et les vieillars se trouvent plus susceptibles de religion comme si elle naissoit et tiroit son credit de nostre imbecilliteacuterdquo72

Segundo Montaigne a religiatildeo natildeo pode ser construiacuteda sobre o alicerce da razatildeo

humana como vimos Nem tampouco pode ser fundada nos argumentos platoacutenicos

acabados de referir Estes satildeo todos muito fraacutegeis A religiatildeo encontra as suas bases

verdadeiras na feacute A perspectiva proacutepria da filosofia supotildee um ateiacutesmo de meacutetodo como

observa Conche Caso contraacuterio ela jaacute natildeo seria filosofia ldquomais theacuteologie ou ideacuteologie

A qui est ainsi priveacute du secours de la gracircce divine Dieu est inconnaissablerdquo73

Montaigne recusa o ateiacutesmo de uma forma muito clara inclusive aquele conceituado

por Platatildeo

ldquo[A] Et ce que dit Plato74 quil est peu dhommes si fermes en latheisme quun dangier pressant ne ramene agrave la recognoissance de la divine puissance ce rolle ne touche point un vray Chrestien Cest agrave faire aux

70 Les essais II 12 p 445 71 Les Essais II 12 p 446 72 Les Essais II 12 p 446 73 Conche 1996 op cit p131 74 Tudo leva a crer que Montaigne se estaacute a referir a Platatildeo Preferimos conservar a mesma grafia da ediccedilatildeo dos Essais que estaacute a ser utilizada neste trabalho

28

religions mortelles et humaines destre receueumls par une humaine conduite Quelle foy doit ce estre que la laacutecheteacute et la foiblesse de coeur plantent en nous et establissent [C] Plaisante foy qui ne croid ce quelle croit que pour navoir le courage de le descroire Une vitieuse passion comme celle de linconstance et de lestonnement peut elle faire en nostre ame aucune production regleacutee75

Continuando a sua reflexatildeo no preacircmbulo da ldquoApologierdquo o autor ressalta qual eacute

a relaccedilatildeo fundamental que eacute necessaacuteria para estabelecer a uniatildeo do homem a Deus

partindo do caraacutecter superior da religiatildeo face ao ateiacutesmo Montaigne observa que o laccedilo

que deveria atar o nosso juiacutezo e a nossa vontade que deveria cingir a nossa alma e uni-

la ao criador

ldquo[A] ce devroit estre un neud prenant ses repliz et ses forces non pas de nos considerations de noz raisons et passions mais dune estreinte divine et supernaturelle nayant quune forme un visage et un lustre qui est lauthoriteacute de Dieu et sa grace Or nostre coeur et nostre ame estant regie et commandeacutee par la foy cest raison quelle tire au service de son dessain toutes noz autres pieces selon leur porteacuteerdquo76

Montaigne ao indicar como devemos manejar os instrumentos naturais e

humanos ou seja como devemos aplicar a razatildeo agrave nossa feacute afirma que Deus deixou nas

suas obras o cunho de sua divindade e deve-se apenas agrave nossa fraqueza que natildeo o

possamos perceber E afirma com admiraccedilatildeo que Sebond se empenhou neste digno

estudo

ldquo[A] Or nos raisons et nos discours humains cest comme la matiere lourde et sterile la grace de Dieu en est la formerdquo77

As acccedilotildees humanas permanecem inuacuteteis e vatildes se natildeo tecircm em conta o amor e a

obediecircncia a Deus

ldquo[A] ainsin est-il de nos imaginations et discours ils ont quelque corps mais une masse informe sans faccedilon et sans jour si la foy et grace de Dieu ny sont joinctesrdquo78

Quanto aos segundos opositores de Sebond ndash ou seja os que dizem que seus

argumentos satildeo fracos e inadequados para demonstrar o que ele pretende e por isso

dispotildeem-se a atacaacute-los facilmente ndash Montaigne vai rejeitar os argumentos por eles

apresentados nos quais se subestima a importacircncia da feacute A rejeiccedilatildeo dos argumentos

desta segunda categoria ocupa maior espaccedilo porque ldquo[A] Il faut secouer ceux cy un peu

75 Les Essais II 12 p 445 76 Les Essais II 12 p 446 77 Les Essais II 12 p 447 78 Les Essais II 12 p 447

29

plus rudement car ils sont plus dangereux et plus malitieux que les premiersrdquo79 Estes

ldquoracionalistasrdquo consideram que a razatildeo humana eacute auto-suficiente para conhecer

qualquer coisa e desprezam a feacute considerando-a como algo inuacutetil para um saacutebio

ldquo Le moyen que je prens pour rabatre cette frenaisie et qui me semble le plus propre crsquoest de froisser et fouler aux pieds lrsquoorgueil et humaine fierteacute leur faire sentir lrsquoinaniteacute la vaniteacute et deneantise de lrsquohomme leur arracher des points les chetives armes de leur raison leur faire baisser la teste et mordre la terre soubs lrsquoauthoriteacute et reverence de la majesteacute divine Crsquoest agrave elle seule qursquoapartient la science et la sapience elle seule qui peut estimer de soy quelque chose et agrave qui nous desrobons ce que nous nous contons et ce que nous nous prisons Ού γὰρ ἐᾱ φρονεῑν ὁ Θεὸϛ μέγα ἄλλον ἢ ἑαυτόν [ldquoCar Dieu ne permet pas qursquoun autre que Lui srsquoenorgueillisserdquo (Heacuterodote VII x)]rdquo80

Ao analisar as duas objecccedilotildees agrave Teologia natural de Sebond Montaigne tem

como principal finalidade - aleacutem do desenvolvimento do seu fideiacutesmo que potildee em

causa que a filosofia seja um meio para se chegar a Deus - destronar o homem do seu

pedestal como ldquosenhorrdquo entre todas as criaturas como vimos no primeiro capiacutetulo deste

trabalho Agrave luz destas objecccedilotildees se desenvolve tambeacutem em todo o texto da ldquoApologierdquo

uma grande quantidade de criacuteticas aos detractores do teoacutelogo catalatildeo que na verdade

mais natildeo eacute do que uma contestaccedilatildeo de Montaigne de tudo aquilo que faz do homem um

ser cheio de orgulho e de vaidade Montaigne chega agrave conclusatildeo que a razatildeo humana

natildeo pode conhecer os atributos de Deus A razatildeo natildeo tem condiccedilotildees para emitir juiacutezos

crediacuteveis a respeito destes atributos Ela natildeo estaacute revestida de um poder que lhe garanta

a elaboraccedilatildeo de raciociacutenios crediacuteveis acerca de Deus e das verdades da religiatildeo

Montaigne apresenta um resumo das principais ideias acerca de Deus que foram

surgindo na histoacuteria do pensamento filosoacutefico antigo e afirma que tudo isto natildeo passa de

uma balbuacuterdia (ldquotintamarrerdquo) de muitos ceacuterebros filosoacuteficos81

ldquo[C] Thales [hellip] estima Dieu un esprit qui fit deau toutes choses Anaximander que les Dieux estoyent des mourans et naissans agrave diverses saisons et que crsquoestoyent des mondes infinis en nombre Anaximenes que lair estoit Dieu [hellip] Anaxagoras le premier a tenu la description et maniere de toutes choses estre conduite par la force et raison dun esprit infini Alcmaeligon a donneacute la diviniteacute au soleil agrave la lune aux astres et agrave lame[hellip] Empedocles disoit estre des Dieux les quatre natures desquelles toutes choses sont faictes [hellip] Platon dissipe sa creance agrave divers visages Il dict au Timaeacutee le pere du monde ne se pouvoir

79 Les Essais II 12 p 448 80 Les Essais II 12 p 448 81 Cf Les Essais II 12 p 516

30

nommer aux loix quil ne se faut enquerir de son estre et ailleurs en ces mesmes livres il faict le monde le ciel les astres la terre et nos ames Dieux et reccediloit en outre ceux qui ont esteacute receuz par lancienne institution en chasque republique Xenophon rapporte un pareil trouble de la discipline de Socrates tantost quil ne se faut enquerir de la forme de Dieu et puis il luy faict establir que le Soleil est Dieu et lame Dieu quil ny en a quun et puis quil y en a plusieurs[hellip] Aristote asture que cest lesprit asture le monde asture il donne un autre maistre agrave ce monde et asture faict Dieu lardeur du ciel [hellip] Heraclides Ponticus ne fait que vaguer entre les advis et en fin prive Dieu de sentiment et le faict remuant de forme agrave autre et puis dict que cest le ciel et la terre[hellip] Zeno la loy naturelle commandant le bien et prohibant le mal laquelle loy est un animant et oste les Dieux accoustumez Jupiter Juno Vesta Diogenes Apolloniates que cest laage [hellip] Cleanthes tantost la raison tantost le monde tantost lame de Nature tantost la chaleur supreme entournant et envelopant tout [hellip] Chrysippus faisoit un amas confus de toutes les precedentes sentences et comptoit entre mille formes de Dieux quil faict les hommes aussi qui sont immortalisez Diagoras et Theodorus nioyent tout sec quil y eust des Dieux Epicurus faict les Dieux luisans transparens et perflables logez comme entre deux forts entre deux mondes agrave couvert des coups revestus dune humaine figure et de nos membres lesquels membres leur sont de nul usagerdquo82

Esta longa citaccedilatildeo da ldquoApologierdquo apresenta-nos a enorme quantidade de

teorizaccedilotildees que tecircm como base a razatildeo humana e que satildeo bastante diacutespares no tocante

agraves crenccedilas Isto potildee em evidecircncia que Montaigne natildeo acredita que o homem tenha

condiccedilotildees para compreender ou apresentar algo crediacutevel acerca de Deus Por isto o

homem exagera na sua criatividade intelectual ao inventar inuacutemeros atributos divinos

que frequentemente se assemelham aos seus proacuteprios atributos Em seu entender Deus

eacute absolutamente incompreensiacutevel Na leitura que de Montaigne faz Leveaux

ldquoLrsquoideacutee de Dieu existe chez lrsquohomme mais au delagrave de cette ideacutee simple drsquoune uniteacute absolue tout devient doute et confusion Alors se preacutesent des questions sans nombre auxquelles il est impossible de reacutepondre Crsquoest lagrave si je ne me trompe le ldquoque sais-jerdquordquo83

Montaigne afirma que haacute uma grande inconstacircncia variedade e mobilidade de

ideias acerca de Deus nas almas excelentes e admiraacuteveis dos filoacutesofos Mas classifica o

empenho destes como vatildeo pelo facto de quererem adivinhar Deus por meio das nossas

analogias e conjecturas Por natildeo podermos estender a vista ateacute ao seu trono glorioso

procuramos trazecirc-lo aqui para baixo para a nossa corrupccedilatildeo e miseacuteria Soacute a feacute tem

82 Les Essais II 12 pp 514-516 83 Leveaux Alphonse Eacutetude sur les Essais de Montaigne Paris Henri Plon Imprimeur-Eacutediteur 1870 p 213

31

condiccedilotildees de entender os misteacuterios da religiatildeo Sem ela os nossos esforccedilos de

demonstraccedilatildeo destes misteacuterios permanecem vazios e esteacutereis

ldquo[A] La participation que nous avons agrave la connoissance de la veriteacute quelle quelle soit ce nest pas par nos propres forces que nous lavons acquise Dieu nous a assez appris cela par les tesmoins quil a choisi du vulgaire simples et ignorans pour nous instruire de ses admirables secrets nostre foy ce nest pas nostre acquest cest un pur present de la liberaliteacute dautruy Ce nest pas par discours ou par nostre entendement que nous avons receu nostre religion cest par authoriteacute et par commandement estranger La foiblesse de nostre jugement nous y ayde plus que la force et nostre aveuglement plus que nostre cler-voyance Cest par lentremise de nostre ignorance plus que de nostre science que nous sommes sccedilavans de divin sccedilavoirrdquo84

Para o autor da ldquoApologierdquo o homem por si soacute eacute absolutamente impotente para

chegar a certezas acerca das questotildees relacionadas com a feacute Nesta perspectiva o autor

observa tambeacutem que natildeo eacute possiacutevel fazer afirmaccedilotildees seguras tendo como base a razatildeo

Por exemplo acerca da imortalidade da alma tema desde sempre muito caro agrave filosofia

os cristatildeos devem unicamente a Deus e ao benefiacutecio de sua graccedila a verdade de uma

crenccedila tatildeo nobre pois eacute apenas da sua liberalidade que o cristatildeo recebe o fruto da

imortalidade o qual lembra o autor consiste no gozo da beatitude eterna A razatildeo natildeo

consegue fazer nenhuma afirmaccedilatildeo crediacutevel sobre este tema Ela eacute incapaz uma vez que

a imortalidade eacute um ldquodadordquo da revelaccedilatildeo

ldquo[C] Confessons ingenuement que Dieu seul nous lrsquoa dict et la foy car leccedilon nrsquoest ce pas de nature et de nostre raisonrdquo85

Montaigne assumindo uma posiccedilatildeo fideiacutesta depois de ter feito o exame das

diversas opiniotildees sobre a alma86 faz um ldquoapelo agrave passividade da razatildeo e agrave aceitaccedilatildeo da

verdade religiosa sem tentar compreendecirc-la ldquoimortalidaderdquo eacute como ldquoDeusrdquo uma

palavra que natildeo pode ser preenchida A imortalidade afirmada pela feacute natildeo poderaacute ser

explorada por nenhuma forma de discurso humanordquo87

Esta atitude fideiacutesta e conservadora em termos religiosos deve-se em grande

parte agrave desilusatildeo de Montaigne face aos inuacutemeros sistemas filosoacuteficos que tentavam

84 Les Essais II 12 p 500 85 Les Essais II 12 p 554 86 Na ldquoApologierdquo haacute uma quantidade significativa de paacuteginas nas quais o autor expressa muitas opiniotildees sobre o tema da alma (cf Les Essais pp 542-547) 87 Birchal Telma de Souza O Eu nos Ensaios de Montaigne Belo Horizonte Editora UFMG 2007 pp 64-65

32

encontrar explicaccedilotildees racionais para todas as questotildees da vida inclusivamente para

aquelas que transcendem a vida real

ldquo[A] Car quelque apparence quil y ayt en la nouvelleteacute je ne change pas aiseacutement de peur que jay de perdre au change Et puis que je ne suis pas capable de choisir je pren le chois dautruy et me tien en lassiette ougrave Dieu ma mis Autrement je ne me sccedilauroy garder de rouler sans cesse Ainsi me suis-je par la grace de Dieu conserveacute entier sans agitation et trouble de conscience aux anciennes creances de nostre religion au travers de tant de sectes et de divisions que nostre siecle a produittesrdquo88

Segundo Leveaux Montaigne sintetiza seu pensamento em mateacuteria religiosa89

da seguinte maneira

ldquo[A] De toutes les opinions humaines et anciennes touchant la religion celle lagrave me semble avoir eu plus de vray-semblance et plus dexcuse qui recognoissoit Dieu comme une puissance incomprehensible origine et conservatrice de toutes choses toute bonteacute toute perfection recevant et prenant en bonne part lhonneur et la reverence que les humains luy rendoient soubs quelque visage sous quelque nom et en quelque maniere que ce fut [hellip]rdquo90

Haacute que reconhecer no entanto que eacute algo difiacutecil e delicado tirar grandes

conclusotildees acerca da religiatildeo embora o tema perpasse toda a ldquoApologie rdquo Montaigne

concebia a religiatildeo como um conjunto de praacuteticas e leis que tinham como finalidade

contribuir para que o homem natildeo agisse como um escravo da vaidade da razatildeo As

uacuteltimas palavras da ldquoApologierdquo onde o autor cita Plutarco pretendem servir como uma

espeacutecie de conclusatildeo de toda a reflexatildeo deste capiacutetulo Deixemos o proacuteprio Montaigne

falar

ldquo[A] Mais quest-ce donc qui est veritablement Ce qui est eternel cest agrave dire qui na jamais eu de naissance ny naura jamais fin agrave qui le temps napporte jamais aucune mutation Car cest chose mobile que le temps et qui apparoit comme en ombre avec la matiere coulante et fluante tousjours sans jamais demeurer stable ny permanenterdquo91

Contestando a atitude humana de querer elevar-se acima da humanidade que

pode ser tambeacutem entendida como um desejo absurdo de um ser despreziacutevel que tem a

88 Les Essais II 12 p 569 89 Cf Leveaux op cit p 213 90 Les Essais II 12 p 513 91 Les Essais II 12 p 603

33

presunccedilatildeo como doenccedila natural e original e que eacute a mais calamitosa de todas as

criaturas e ao mesmo tempo a mais orgulhosa92 Montaigne afirma

ldquo[A] O la vile chose dit-il et abjecte que lhomme sil ne sesleve au dessus de lhumaniteacute [C] Voila un bon mot et un utile desir mais pareillement absurde Car [A] de faire la poigneacutee plus grande que le poing la brasseacutee plus grande que le bras et desperer enjamber plus que de lestandueuml de nos jambes cela est impossible et monstrueux Ny que lhomme se monte au dessus de soy et de lhumaniteacute car il ne peut voir que de ses yeux ny saisir que de ses prises Il seslevera si Dieu lui preste extraordinairement la main Il seslevera abandonnant et renonccedilant agrave ses propres moyens et se laissant hausser et soubslever par les moyens purement celestesrdquo93

Montaigne termina a ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo colocando o homem no

seu devido lugar e afirmando que soacute atraveacutes do auxiacutelio de Deus e com a graccedila da feacute

cristatilde eacute que este ser tatildeo vaidoso poderaacute elevar-se acima da humanidade

ldquo[C] Cest agrave nostre foy Chrestienne non agrave sa vertu Stoique de pretendre agrave cette divine et miraculeuse metamorphoserdquo94

92 Cf nota 12 93 Les Essais II 12 p 604 94 Les Essais II 12 p 604

34

3 A criacutetica agrave razatildeo humana e sua relaccedilatildeo com a ciecircncia

Uma observaccedilatildeo que eacute importante destacar no iniacutecio deste capiacutetulo refere-se agrave

concepccedilatildeo montaigneana de ldquociecircnciardquo que se encontra na ldquoApologie de Raymond

Sebondrdquo Quando Montaigne na sua criacutetica radical agrave razatildeo humana se refere agrave ciecircncia

o que subjaz agraves suas reflexotildees natildeo eacute a concepccedilatildeo moderna de ciecircncia Ele natildeo alude ao

chamado ldquomeacutetodo cientiacutefico experimentalrdquo ateacute porque este meacutetodo ainda natildeo existia O

termo ldquociecircnciardquo natildeo tem o sentido que adquiriu depois da chamada Revoluccedilatildeo

Cientiacutefica do seacuteculo XVII Assim com o termo ciecircncia Montaigne refere-se ao conjunto

do conhecimento erudito de seu tempo

ldquoLa science du XVIᵉ siegravecle nrsquoest que philosophie Elle srsquoarrecircte aux mots jamais elle ne peacutenegravetre au fond des choses et ne suscite un effort critiquerdquo95

Sendo um pensador da uacuteltima fase do periacuteodo renascentista periacuteodo este em que

natildeo havia nenhuma diferenccedila essencial entre a filosofia e a ciecircncia Montaigne procura

expressar as suas ideias os seus ideais de sabedoria como tantos outros faziam isto eacute

quando se refere agrave ciecircncia estaacute a referir-se aos doutos e aos filoacutesofos em geral

Logo no iniacutecio da ldquoApologierdquo Montaigne faz questatildeo de afirmar que a ciecircncia eacute

algo muito uacutetil e grande e os que a menosprezam datildeo prova bastante de estupidez Sem

desprezar agrave partida todo o esforccedilo que muitos fazem para chegar a alcanccedilar o

conhecimento Montaigne por outro lado natildeo chega a estimar tanto a ciecircncia

ldquo[A] Comme Herillus le philosophe qui logeoit en elle le souverain bien et tenoit qursquoil fut en elle de nous rendre sages et contensrdquo96

Montaigne natildeo crecirc nisto nem tampouco no que outros disseram

ldquo[A] que la science est mere de toute vertu et que tout vice este produit par lrsquoignorancerdquo97

Segundo ele mesmo atesta a sua casa esteve habitualmente aberta agraves pessoas de

saber e o seu pai buscou com grande cuidado e despesa o conviacutevio dos homens doutos

ldquo[A] les recevant chez luy comme personnes sainctes et ayans quelque particuliere inspiration de sagesse divine [hellip]rdquo98

95 Villey opcit p 214 96 Les Essais II 12 p 438 97 Les Essais II 12 p 438 98 Les Essais II 12 pp 438-439

35

Embora respirando toda uma atmosfera intelectual que havia em sua casa

Montaigne afirma no entanto que gostava muito destes doutos frequentadores de sua

casa mas natildeo os adorava

Desde as primeiras afirmaccedilotildees de Montaigne na ldquoApologierdquo eacute possiacutevel perceber

ateacute que ponto ele tem dificuldade em aceitar os chamados filoacutesofos de profissatildeo Neste

famoso texto que eacute considerado por Villey ldquole reacutesumeacute du travail logique qui srsquoopegravere

chez Montaigne entre 1573 et 1579 ou 1580rdquo99 podemos encontrar paradoxalmente

por um lado uma valorizaccedilatildeo da razatildeo enquanto uacutenico modo de investigaccedilatildeo dos

doutos e por outro lado que a razatildeo eacute considerada como algo profundamente limitado

enquanto instrumento de acesso ao conhecimento

Montaigne dedica muitas paacuteginas a demonstrar que a ciecircncia fundada na razatildeo

eacute viacutetima da vaidade humana e deve ser contestada Isto pelo facto de que concebe a

ciecircncia como o esforccedilo que deve ser uacutetil agrave nossa felicidade

ldquo[A] la philosophie me doit mettre les armes agrave la main pour combatre la fortune qui me doit roidir le courrage pour fouler aux pieds toutes les advertitez humaines [hellip]rdquo100

O objectivo primeiro da filosofia eacute portanto a vida concreta A atitude vaidosa

da razatildeo na busca do conhecimento causa no homem

ldquo[A] lrsquoinconstance lrsquoirresolution lrsquoincertitude le deuil la superstition la solitude de choses agrave venir voire apres nostre vie lrsquoambition lrsquoavarice la jalousie lrsquoenvie les appetits desreglez foncenez et indomptables la guerre la mensonge la desloyauteacute la detraction et la curiositeacuterdquo101

Segundo Montaigne pagamos um preccedilo elevadiacutessimo por essa bela razatildeo de que

nos gloriamos e por conseguinte tambeacutem pela capacidade de julgar e conhecer

sobretudo se forem adquiridas agrave custa destas paixotildees

Montaigne natildeo vecirc muita necessidade praacutetica de querer mergulhar nos altos

conhecimentos em que a filosofia estaacute imersa Para que serve o conhecimento (fruto da

razatildeo enganadora) de muitas coisas Expressando a sua criacutetica agrave loacutegica aristoteacutelica

afirma ironicamente

ldquo[A] ont-ils tireacute de la Logique quelques consolation agrave la gouterdquo102

99 Villey op cit p 182 100 Les Essais II 12 p 494 101 Les Essais II 12 p 486 102 Les Essais II 12 p 487

36

Prosseguindo no mesmo registo iroacutenico pergunta se acaso se descobriu que a

voluptuosidade e a sauacutede satildeo mais deleitosas para quem conhece a astronomia e a

gramaacutetica e menos importunas agrave desonra e a pobreza103

Montaigne revela um significativo desprezo pelos filoacutesofos que satildeo escravos da

razatildeo e buscam tudo saber e fazer afirmaccedilotildees sobre todas as coisas Ao mesmo tempo

manifesta uma forte tendecircncia para valorizar o homem simples e ignorante

ldquo[A] Jrsquoay veu en mon temps cent artisans cent laboureurs plus sages et plus heureux que des recteurs de lrsquouniversiteacute et lesquels jrsquoaimerois mieux ressemblerrdquo104

Na sua apologia da ignoracircncia declara que o homem tem como quinhatildeo a

presunccedilatildeo e que a ignoracircncia nos eacute recomendada ateacute pela religiatildeo cristatildeldquo[A] La peste

de lrsquohomme crsquoest lrsquoopinion de sccedilavoirrdquo105

Para Montaigne eacute necessaacuterio derrubar a tola vaidade e sacudir de uma maneira

viva e corajosa os fundamentos ridiacuteculos sobre os quais se fundam as falsas ideias

Insiste continuamente no facto de que natildeo necessitamos do saber produzido pela

filosofia

ldquo[A] Crsquoestoit ce que disoit un senateur Romain des derniers siecles que leurs predecesseurs avoient lrsquoaleine puante agrave lrsquoair et lrsquoestomac musqueacute de bonne conscience et qursquoau rebours ceux de son temps se sentoient au dehors que le parfum puans au dedans toutes sorte de vices crsquoest agrave dire comme je pense qursquoils avoient beaucoup de sccedilavoir et de suffisance et grand faute de preudrsquohommierdquo106

O orgulho humano eacute visto pelo autor como algo que atrapalha fortemente na

busca natildeo do conhecimento filosoacutefico claacutessico mas da sabedoria Soacutecrates eacute

referenciado na ldquoApologierdquo entre outras coisas como um grande saacutebio107 Natildeo porque

ldquo[C] le Dieu de sagesse luy avoit attibueacute le surnom de sagerdquo108 mas porque ele mesmo

natildeo se considerava saacutebio e porque a sua melhor ciecircncia era a ciecircncia da ignoracircncia e a

sua melhor sabedoria a simplicidade de espiacuterito

103Cf Les Essais II 12 p 487 104 Les Essais II 12 p 487 105 Les Essais II 12 p 488 106 Les Essais II 12 p 498 107 Podemos encontrar uma quantidade significativa de estudos acerca da figura de Soacutecrates nos Ensaios Destacamos aqui um artigo escrito por Celso Martins Azar Filho cujo tiacutetulo eacute Montaigne e Soacutecrates cepticismo conhecimento e virtuderdquo que estaacute publicado na Revista Portuguesa de Filosofia Tomo LVIII do ano de 2002 Fasc 4 (pp 829-845) Com o seu artigo o autor propotildee-se examinar qual o lugar e a importacircncia deste filoacutesofo no pensamento de Montaigne 108 Les Essais II 12 p 498

37

O verdadeiro saacutebio segundo Montaigne eacute o homem que aprende que natildeo

aprendeu nada Refere-se a isto de uma maneira muito elucidativa

ldquo[A]Il est adnevenu aux gens veacuteritablement sccedilavans ce qui advient aux espics de bled ils vont srsquoeslevant et se haussant la teste droite et fiere tant qursquoil sont vuides mais quand ils sont pleins et grossis de grain en leur maturiteacute ils commencent agrave srsquohumilier et agrave baisser les cornes Pareillement les hommes ayant tout essayeacute et tout sondeacute nrsquoayant trouveacute en cet amas de science et provision de tant de choses diverses rien de massif et ferme et rien que vaniteacute ils ont renonceacute agrave leur presomption et reconneu leur condition naturellerdquo109

Depois de descrever sinteticamente os atributos do saacutebio Montaigne -

considerado como um pensador que popularizou o pirronismo praticando-o

pessoalmente sobretudo na ldquoApologierdquo - afirma que toda a filosofia estaacute distribuiacuteda por

trecircs geacuteneros A sua principal fonte eacute a ediccedilatildeo das obras de Sexto Empiacuterico que surge em

1569 Montaigne enumera estas trecircs filosofias da seguinte maneira haacute os dogmaacuteticos

os acadeacutemicos e os pirroacutenicos110 Os dogmaacuteticos afirmam que se pode ter acesso agrave

ciecircncia os acadeacutemicos natildeo estatildeo de acordo com os dogmaacuteticos isto eacute consideram que

natildeo se pode ter acesso agrave ciecircncia e os pirroacutenicos estatildeo ainda em busca da verdade Estes

declaram que os que pensam havecirc-la encontrado se enganam infinitamente Segundo

Montaigne os pirroacutenicos tecircm como ofiacutecio

ldquo[A] branler douter et enquerir ne srsquoasseurer de rien de rien ne se respondrerdquo111

Esta atitude condu-los segundo Montaigne agrave ataraxia que eacute uma condiccedilatildeo de

vida tranquila sossegada isenta das agitaccedilotildees que recebemos pela impressatildeo da opiniatildeo

e ciecircncia que julgamos ter das coisas Esta indiferenccedila pela ciecircncia liberta os pirroacutenicos

inclusivamente do espiacuterito de rivalidade quanto agrave sua doutrina debatem de maneira bem

pouco vigorosa Quando dizem que o pesado vai para baixo ficariam bastante

aborrecidos se acreditassem neles Sendo assim os pirroacutenicos segundo Montaigne

procuram que os contradigam para gerar ldquo[A] la dubitation et surceance (suspension)

de jugement qui est leur finrdquo112

Os pirroacutenicos satildeo partidaacuterios da duacutevida extrema Expotildeem as suas opiniotildees

apenas para combater aquelas em que pensam que acreditamos Diz Montaigne

109 Les Essais II 12 p 500 110 Les Essais II 12 p 502 111 Les Essais II 12 p 502 112 Les Essais II 12 p 503

38

ldquo[A] Si vous prenez la leur ils prendront aussi volontiers i la contraire agrave soutenir tout leur est un ils nrsquoy ont aucun chois Si vous establissez que la nege soit noire ils augumentent au rebours qursquoelle est blanche Si vous dites qursquoelle nrsquoest ny lrsquoun ny lrsquoautre crsquoest agrave eux agrave maintenir qursquoelle est tous les deux Si par certain jugement vous tenez que vous nrsquoen sccedilavez rien ils vous maintiedront que vous ne sccedilavez Oui et si par un axiome affirmatif vous asseurez que vous en doutez ils vous iront debattant que vous nrsquoen doutez pas ou que vous ne pouvez juger et etablir que vous en doutez Et par cette extremiteacute de doubte qui se secoue soy-mesme ils se separent et se divisent de plusieurs opinions de celles mesme qui ont maintenu en plusieurs faccedilons le double et lrsquoignorancerdquo113

[hellip] Leurs faccedilon de parler sont Je nrsquoestablis rien il nrsquoest non plus ainsi qursquoainsi ou que ny lrsquoun ny lrsquoautre je ne le comprens point les apparences sont eacutegales par tout la loy de parler et pour et contre est pareille [C] Rien ne semble vray qui ne puisse sembler faux [A] Leur mot sacramental crsquoest ἐπέχω crsquoest agrave dire je soutiens je ne bougerdquo114

Os pirroacutenicos servem-se de sua razatildeo para inquirir e debater mas natildeo para

decidir e escolher

Um outro aspecto que leva Montaigne a identificar-se com o pirronismo a uacutenica

filosofia por ele respeitada eacute a visatildeo pirroacutenica relativamente agraves acccedilotildees da vida Os seus

defensores prestam-se e acomodam-se agraves inclinaccedilotildees naturais ao impulso e agrave imposiccedilatildeo

das paixotildees agraves decisotildees das leis e dos costumes

ldquo[A] Ils laissent guider agrave ces choses lagrave leurs actions communes sans aucune opination ou jugement115

Neste sentido Montaigne defende o pirronismo sobretudo por causa de sua

virtude moral116 Sustenta que eacute importante fomentar o juiacutezo livre ou a suspensatildeo do

juiacutezo que eacute a atitude dos pirroacutenicos Por outro lado natildeo pode concordar com a posiccedilatildeo

dos que aceitam a arbitraacuteria submissatildeo a algum tipo de autoridade ou opiniatildeo (os

dogmaacuteticos) Importa salientar no entanto que o autor da ldquoApologierdquo consegue

distanciar-se dos pirroacutenicos que se recusam a fazer qualquer juiacutezo Montaigne por ser

um pensador livre inclusive dos argumentos pirroacutenicos natildeo suspende os seus proacuteprios

113 Les Essais II 12 p 503 114 Les Essais II 12 p 505 115 Les Essais II 12 p 505 116 Para Montaigne o pirronismo natildeo eacute uma doutrina ou um sistema filosoacutefico do qual ele eacute adepto Eacute sobretudo uma atitude de espiacuterito ou uma tendecircncia do pensamento Ele tem consciecircncia da dificuldade que esta filosofia encontra para consolidar-se em termos de coerecircncia loacutegica Se do ponto de vista loacutegico natildeo haacute soluccedilatildeo permanente satisfatoacuteria para o pirronismo ele torna-se uma opccedilatildeo eacutetica na medida em que possibilita aos seus adeptos ldquo[B] de maintenir leur liberteacute et considerer les choses sans obligation et servituderdquo (Les Essais II 12 p 504)

39

juiacutezos Muito pelo contraacuterio emite muitos Exprime as suas opiniotildees sem cessar Chega

ateacute a afirmar que a razatildeo eacute

ldquo[A] sa pierre de touche agrave toutes sortes drsquoessais mais certes crsquoest une touche pleine de fauceteacute drsquoerreur de foiblesse et defaillancerdquo117

Na ldquoApologierdquo Montaigne recorre aos tropos (segundo a designaccedilatildeo de Sexto

Empiacuterico) tomando-os como os principais argumentos contra a filosofia denominada

dogmaacutetica Estes argumentos ceacutepticos tecircm por finalidade provar que eacute impossiacutevel

alcanccedilar a verdade Fundamentado nas reflexotildees pirroacutenicas natildeo considera a ciecircncia

como um verdadeiro conhecimento O saber humano eacute considerado sem efeito por causa

de todo o tipo de divergecircncias que haacute entre os homens

Haacute segundo Montaigne uma imensa e infinita confusatildeo de opiniotildees entre os

filoacutesofos e tudo isto deve-se ao debate perpeacutetuo e universal acerca do conhecimento das

coisas Eles natildeo estatildeo de acordo em nada nem sequer em que o ceacuteu estaacute por cima das

nossas cabeccedilas118 afirma ironicamente E isto deve-se agrave falta de constacircncia do juiacutezo

Quantas vezes julgamos noacutes as coisas Quantas vezes alteramos as nossas opiniotildees

Nesta perspectiva percebemos a atitude relativista de Montaigne

ldquo[A] Ce que je tiens aujourdhuy et ce que je croy je le tiens et le croy de toute ma croyance tous mes utils et tous mes ressorts empoignent cette opinion et men respondent sur tout ce quils peuvent Je me sccedilaurois embrasser aucune veriteacute ny conserver avec plus de force que je fay cette cy Jy suis tout entier jy suis voyrement mais ne mest il pas advenu non une foi mais cent mais mille et tous les jours davoir embrasseacute quelqursquoautre chose agrave tout ces mesmes instrumens en cette mesme condition que depuis jaye jugeacutee fauce Au moins faut il devenir sage agrave ses propres despansrdquo119

Montaigne natildeo pretende condenar a tendecircncia agrave mudanccedila perene que eacute

constitutiva do homem O que ele pretende eacute que o homem se comporte de uma forma

mais moderada e discreta em face das mudanccedilas Sugere que nos tornemos saacutebios agrave

nossa proacutepria custa120

117 Les Essais II 12 p 540 118 Cf Les Essais II 12 p 563 119 Les Essais II 12 p 563 120 Conche na sua obra de introduccedilatildeo aos Essais intitulada Montaigne ou la conscience heureuse apresenta uma reflexatildeo muito sugestiva relativamente ao tema da sabedoria Para este autor os Essais sugerem-nos que compreendamos a filosofia como uma aprendizagem da sabedoria e natildeo do saber Em seu entender Montaigne natildeo tem nenhum interesse em elaborar um sistema filosoacutefico porque isto supotildee que uma verdade permanece o que ela eacute Um sistema filosoacutefico crecirc que haacute verdades e que elas satildeo acessiacuteveis por evidecircncia ou seja que a certeza posta agrave prova eacute realmente uma certeza de direito Estes princiacutepios satildeo sem valor para Montaigne eleja que este natildeo crecirc na possibilidade de confirmar as nossas certezas (cf Conche 2009 op cit 65)

40

O arauto do juiacutezo eacute o homem concreto que vive uma vida real Natildeo eacute um ser

abstracto Por isso Montaigne afirma

ldquo[A] Ce ne sont pas seulement les fievres les breuvages et les grands accidens qui renversent nostre jugement les moindres choses du monde le tournevirent [hellip] et par conseacutequent agrave peine se peut il rencontrer une seule heure en la vie ougrave nostre jugement se trouve en sa deueuml assiette nostre corps estant subject agrave tant de continuelles mutations et estofeacute de tant de sortes de ressorts que ( jen croy les medecins) combien il est malaiseacute quil ny en ayt tousjours quelquun qui tire de traversrdquo121

Vejamos uma definiccedilatildeo da razatildeo na ldquoApologierdquo

ldquo[A] la raison va tousjours torte et boiteuse et deshancheacutee et avec le mensonge comme avec la veriteacute Par ainsin il est malaiseacute de descouvrir son mescompte et desreglement Jappelle tousjours raison cette apparence de discours que chacun forge en soy cette raison de la condition de laquelle il y en peut avoir cent contraires autour dun mesme subject cest un instrument de plomb et de cire alongeable ployable et accommodable agrave tous biais et agrave toutes mesures il ne reste que la suffisance de le sccedilavoir contournerrdquo122

Atraveacutes desta concepccedilatildeo de razatildeo fica suficientemente clara a criacutetica destruidora

de Montaigne agrave filosofia dogmaacutetica que considera a razatildeo como uma faculdade que

permite ao homem ndash entre tantas outras atribuiccedilotildees ndash conhecer e acumular um saber uacutetil

e julgar sobre o bem e o mal

Envolvendo-se de uma maneira muito pessoal ndash como eacute caracteriacutestico do estilo

literaacuterio dos Essais ndash nesta reflexatildeo sobre a razatildeo Montaigne toma a liberdade de fazer

uma pequena descriccedilatildeo de sua personalidade Vale a pena citar algumas destas

passagens porque satildeo um reflexo do pensamento do autor

ldquo[A] Jay le pied si instable et si mal assis je le trouve si ayseacute agrave crouler et si prest au branle et ma veueuml si desregleacutee que agrave jun je me sens autre quapres le repas si ma santeacute me rid et la clarteacute dun beau jour me voylagrave honneste homme si jay un cor qui me presse lorteil me voylagrave renfroigneacute mal plaisant et inaccessible [hellip] Maintenant je suis agrave tout faire maintenant agrave rien faire ce qui mest plaisir agrave cette heure me sera quelque fois peine [hellip] Ou lhumeur melancholique me tient ou la choleriqu [hellip]Quand je prens des livres jauray apperceu en tel passage des graces excelentes et qui auront feru mon ame quun autre fois jy retombe jay beau le tourner et virer jay beau le plier et le manier cest une masse inconnue et informe pour moy [hellip] [B] [hellip] mon jugement ne tire pas tousjours avant il flotte il vaguerdquo123

121 Les Essais II 12 pp 564-565 122 Les Essais II 12 p 565 123 Les Essais II 12 pp 565-566

41

Montaigne daacute-se claramente conta de que natildeo encontramos seguranccedila nos

nossos juiacutezos As nossas paixotildees apresentam uma enorme quantidade de fantasias

Sobre isto natildeo podemos alcanccedilar nenhuma seguranccedila porque nos deparamos com

coisas muito instaacuteveis e moacuteveis Sustenta aleacutem disso que se os nossos juiacutezos estatildeo nas

matildeos ateacute mesmo da doenccedila e da perturbaccedilatildeo natildeo podemos esperar deles nada seguro

Foi a partir desta consciecircncia de sua volubilidade que Montaigne chegou a

estabelecer em si mesmo uma certa constacircncia de ideias a ponto de dificilmente alterar

as ideias primeiras e naturais como ele mesmo reconhece Afirma no entanto que natildeo

eacute capaz de decidir Por isso adopta as decisotildees de outrem e manteacutem-se na posiccedilatildeo em

que Deus o pocircs O seu ldquoconservadorismordquo124 religioso e ateacute poliacutetico manifesta-se

claramente nos Essais Mas ao mesmo tempo e este eacute o ponto que mais nos interessa

neste trabalho deixa transparecer que o homem eacute sempre convidado a estar aberto agraves

mudanccedilas

ldquo[A] Le ciel et les estoilles ont branleacute trois mille ans tout le monde lavoit ainsi creu jusques agrave ce que [C] Cleanthes le Samien ou selon Theophraste Nicetas Siracusien [A] savisa de maintenir que cestoit la terre qui se mouvoit [C] par le cercle oblique du Zodiaque tournant agrave lentour de son aixieu [A] et de nostre temps Copernicus a si bien fondeacute cette doctrine quil sen sert tres-regleacuteement agrave toutes les consequences Astronomiquesrdquo conclui o autor ldquosinon qursquoil ne nous doit chaloir le quel ce soit des deux Et qui sccedilait qursquoune tierce opinion drsquoicy agrave mille ans ne renverse les deux precedentesrdquo125

124 Trata-se de um termo que natildeo tinha na eacutepoca de Montaigne o mesmo significado que tem hoje isto eacute como oposto de ldquoprogressismordquo Montaigne estava inserido numa sociedade marcada por grandes inovaccedilotildees pretendidas pelos partidaacuterios da Reforma Protestante que se defendiam a ferro e fogo acirrando certezas antes adormecidas e impondo agrave Franccedila as mais seacuterias turbulecircncias ldquo[B] Je suis desgousteacute de la nouvelleteacute quelque visage qursquoelle porte et ay raison car jrsquoen ay veu des effets tres-dommageables Celle qui nous presse depuis tant drsquoans elle nrsquoa pas tout exploicteacute mais on peut dire avec apparence que par accident elle a tout produict et engendre voire et les maux et ruines qui se font depuis sans elle et contre elle crsquoest agrave elle agrave srsquoen prendre au nezrdquo (Les Essais I 23 p 119) Eacute nesta perspectiva que vaacuterios comentadores observam que Montaigne natildeo poderia ser um homem ldquorevolucionaacuteriordquo e sim algueacutem que achasse melhor defender uma confianccedila moderada no lento aperfeiccediloamento das instituiccedilotildees ldquo[C] Les Franccedilois mes contemporaneacutees sccedilavent bien qursquoen dire Toutes grandes mutations esbranlent lrsquoestat et le desordonnentrdquo (Les Essais III 9 p 958) Isto permite compreender melhor alguns dos motivos pelos quais Montaigne assume as posiccedilotildees poliacuteticas e religiosas ldquoconservadorasrdquo que estatildeo presentes nos Essais Muito interessante eacute uma afirmaccedilatildeo de Jean Lacouture na sua obra Montaigne agrave cheval ndash considerada como uma espeacutecie de biografia que denota um entusiasmo significativo e algo romanceado fundamentada numa documentaccedilatildeo importante ndash na qual o autor reflecte sobre esta questatildeo ldquoMontaigne eacute grande o bastante para poder ser avaliado sob outros aspectos que natildeo a obediecircncia agraves praacuteticas e costumes de seu tempo Quando se eacute capaz no que diz respeito agrave justiccedila agrave toleracircncia ao racismo e agrave colonizaccedilatildeo de estar muitos seacuteculos agrave frente dos costumes e ideias de seu tempo pode-se ser julgado sem que consideraccedilotildees de eacutepoca ou de moda sejam levadas em contardquo (In Lacouture Jean Montaigne agrave cheval (Montaigne a cavalo) Traduzido do francecircs por F Rangel Rio de JaneiroSatildeo Paulo Editora Record 1998 p 236) 125 Les Essais II 12 p 570

42

E para fundamentar ainda mais esta ideia cita Lucreacutecio

ldquo[A] Sic volvenda aeligtas commutat tempora rerum Quod fuit in pretio fit nullo denique honore Porro aliud succedit et egrave contemptibus exit Inque dies magis appetitur floreacutetque repertum Laudibus Et miro est mortales inter honore ( ldquoAinsi dans sa course le temps change les conditions des choses ce qui eacutetait appreacutecieacute tombe dans le meacutepris un autre objet remplace le premier et sort du discreacutedit de jour en jour on le recherce davantage la deacutecouverte nouvelle toutes les louanges et une incoyable estime parmi les hommes)rdquo126

Podemos inferir daqui que ldquoos princiacutepios eternosrdquo natildeo tecircm lugar na ldquoApologie

de Raymond Sebondrdquo Montaigne faz questatildeo de observar que antes de os princiacutepios

introduzidos por Aristoacuteteles ganharem creacutedito outros princiacutepios contentavam a razatildeo

humana Os princiacutepios aristoteacutelicos como todos os outros natildeo estatildeo mais livres de ser

expulsos do que estavam os dos seus antecessores

Segundo Montaigne o juiacutezo depende dos sentidos aos quais por sua vez natildeo

podemos dar creacutedito por vaacuterios motivos Vejamos com mais detalhes este aspecto Eacute

justamente nos sentidos que se encontra o maior fundamento e a prova de nossa

ignoracircncia Montaigne baseado na experiecircncia de vida lembra-nos que natildeo haacute sentido

ou aspecto nem recto nem amargo nem doce nem curvo que o espiacuterito humano natildeo

encontre nos escritos que decide esquadrinhar Os sentidos satildeo muito enganadores A

palavra mais liacutempida mais pura e mais perfeita pode tornar-se equiacutevoca Montaigne

refere-se especialmente ao Evangelho127 Fizeram ao longo da histoacuteria ldquotudo e mais

alguma coisardquo com este texto sagrado para os cristatildeos E que ocorreria se estendecircssemos

esta preocupaccedilatildeo de Montaigne aos gestos humanos que querem exprimir ideias ou

sentimentos nas vaacuterias dimensotildees da vida moral poliacutetica etc

ldquo[C] Est-il possible qursquoHomere aye voulu dire tout ce qursquoon luy faict direrdquo128 E com relaccedilatildeo a Platatildeo ldquo[C] Voyez demener et agiter Platon Chacun srsquohororant de lrsquoappliquer agrave soi le couche du costeacute qursquoil le veutrdquo129

Montaigne observa ainda que com frequecircncia eacute difiacutecil decidir-se porque haacute

demasiadas formas de interpretar um determinado assunto para que o homem consiga

encontrar alguma indicaccedilatildeo que lhe sirva para resolver a questatildeo

126 Les Essais II 12 p 570 127 Cf Les Essais II 12 p 585 128 Les Essais II 12 p 586 129 Les Essais II 12 p 587

43

Montaigne afirma que todo o conhecimento chega ateacute noacutes pelos sentidos [A] Ce

sont nos maistresrdquo130 Observa que a ciecircncia comeccedila pelos sentidos e a eles se reduz

Eles satildeo a base e os princiacutepios de toda a construccedilatildeo de nossa ciecircncia E considera que

natildeo haacute absurdo mais extremo do que sustentar que

ldquo[A] le feu nrsquoeschaufe point que la lumiere nrsquoesclaire point qursquoil nrsquoy a point de pesanteur au fer ny de fermeteacute qui sont notices que nous apportent les sens nycreance ou science en lrsquohomme qui se puisse comparer agrave celle-lagrave en certituderdquo131

Montaigne potildee em duacutevida que o homem esteja provido de todos os sentidos

naturais Chega inclusivamente a perguntar-se se natildeo nos falta algum sentido E afirma

que se isto ocorrer nem a nossa razatildeo pode descobrir a sua ausecircncia nem haacute nada agrave

margem dos sentidos que nos possa servir para os descobrir

ldquo[A]Ils font trestons la ligne extreme de nostre faculteacute [hellip] Il est impossible de faire concevoir agrave un homme naturellement aveugle qursquoil nrsquoy void pas impossible de luy faire desirer la veue et regretter son defautrdquo132

Sendo assim afirma que quando formamos uma verdade pela consulta e

cooperaccedilatildeo dos sentidos poderiacuteamos tambeacutem ser levados a considerar que poderia ser

necessaacuteria a convergecircncia e a contribuiccedilatildeo de oito ou dez sentidos para a captar

acertadamente e na sua essecircncia

Uma das criacuteticas fundamentais de Montaigne agrave ciecircncia incide precisamente no

facto de ela se basear nos sentidos Mas como vimos os sentidos satildeo muito incertos e

fraacutegeis Desta extrema dificuldade nascem muitas opiniotildees (ldquofantasiesrdquo)

ldquo[A]Que chaque subjet a en soy tout ce que nous y trouvons qursquoil nrsquoa rien de ce que nous y pensons trouver et celle de Epicuriens que le Soleil nrsquoest non plus grand que ce que nostre veueuml le juge [hellip] (A) que les apparences qui representent un corps grand agrave celuy qui en est voisin et plus petit agrave celuy qui en est esloigneacute sont toutes deux vrayes [hellip] [A]et resolument qursquoil nrsquoy a aucun tromperie aux sens qursquoil faut passer agrave leur mercy et chercher ailleurs des raisons pour excuser la difference et contradiction que nous y trouvons voyre inventer toute autre mensonge et resverie (ils en viennent jusques lagrave) plustot que drsquoaccuser les sens [hellip] [A] De toutes les absurditez la plus absurde [C] aux Epicuriens [A] est davouumler la force et effect des sensrdquo133

130 Les Essais II 12 p 587 131 Les Essais II 12 p 588 132 Les Essais II 12 p 589 133 Les Essais II 12 p 591

44

Segundo Montaigne natildeo podemos livrar-nos dos sentidos se queremos construir

o conhecimento Mas os sentidos satildeo incertos falsificaacuteveis e enganadores134 E entende

tambeacutem que se eacute verdade que os sentidos satildeo os nossos primeiros juiacutezes135 entatildeo natildeo

devemos limitar-nos a convocar apenas os nossos para o conselho pois no que se refere

aos sentidos os animais tecircm tanto direito quanto noacutes ou mais Montaigne observa ainda

que os sentidos do homem estatildeo em desacordo com os sentidos dos animais E eacute por isto

que

ldquo[A] Pour le jugement de lrsquoaction des sens il faudroit donc que nous en fussions premierement drsquoaccord avec les bestes secondement entre nous mesmes [hellip] et entrons en debat tous les coups de ce que lrsquoun oit void ou goute quelque chose autrement qursquoun autre et debatons autant que drsquoautre chose de la diversiteacute des images que le sens nous raportentrdquo136

Concluindo a exposiccedilatildeo acerca dos sentidos Montaigne lembra-nos que os

sentidos satildeo para algumas pessoas mais obscuros e mais velados enquanto que para

outras pessoas satildeo mais claros e apurados Em seu entender recebemos as coisas de

forma diferente de acordo com o que somos e com o que nos parece Mas se o parecer

nos eacute tatildeo incerto e controverso

ldquo[A] Ce nrsquoest plus miracle si on nous dict que nous pouvons avoueumlr que la neige nous apparoit blanche mais que drsquoestablir si de son essence elle est telle et agrave la veriteacute nous ne nous en sccedilaurions respondrerdquo137

Tendo em conta todos os atributos dos sentidos acima mencionados Montaigne

dificilmente poderia chegar a uma outra conclusatildeo

ldquo[A] ce commencement esbranleacute toute la science du monde srsquoen va necessairement agrave vau-lrsquoeaurdquo138

Referindo-se a Teofrasto Montaigne recorda-nos que este pensador dizia que o

conhecimento humano guiado pelos sentidos podia julgar sobre as causas das coisas

ateacute certo ponto Mas que ao chegar agraves causas extremas e primeiras tinha de deter-se a

embotar-se devido ou agrave sua fragilidade ou agrave dificuldade das coisas Montaigne afirma

134 Assim como os sentidos satildeo enganadores satildeo tambeacutem enganados ldquo[A] Cette mesme piperie que les sens apportent agrave nostre entendement ils la reccediloivent agrave leur tour Nostre ame par fois srsquoen revenche de mesme [C] ils mentent et se trompent agrave lrsquoenvy [A] Ce que nous voyons et oyons agitez de colere nous ne lrsquooyons pas tel qursquoil est [hellip] Lrsquoobject que nous aymons nous semble plus beau qursquoil est [hellip] [A] et plus laid celuy que nous avons agrave contre coeur [hellip] Nos sens sont non seulement alterez mais souvent hebelez du tout par les passions de lrsquoame Combien de choses voyons nous que nous nrsquoa appercevons pas si nous avons nostre esprit empescheacute ailleurs (Les Essais II 12 pp 495-496) 135 Cf Les Essais II 12 p 596 136 Les Essais II 12 p 598 137 Les Essais II 12 pp 598-599 138 Les Essais II 12 p 599

45

ldquo[A] Cest une opinion moyenne et douce que nostre suffisance nous peut conduire jusques agrave la cognoissance daucunes choses et quelle a certaines mesures de puissance outre lesquelles cest temeriteacute de lemployer Cette opinion est plausible et introduicte par gens de composition mais il est malaiseacute de donner bornes agrave nostre esprit il est curieux et avide et na point occasion de sarrester plus tost agrave mille pas quagrave cinquanterdquo139

Montaigne procura aqui justificar a sua tese de que o conhecimento empiacuterico ou

sensiacutevel natildeo tem condiccedilotildees para permitir captar princiacutepios e verdades universais A

razatildeo humana por ser um instrumento impotente natildeo consegue dar explicaccedilotildees

convincentes das grandes questotildees da humanidade Consegue apenas explicar algumas

poucas coisas Se a razatildeo eacute incapaz de dar respostas profundas e aceitaacuteveis agraves grandes

questotildees ndash como por exemplo agraves causas primeiras ndash ela eacute descartaacutevel e no que toca agrave

busca do conhecimento natildeo serve para quase nada Daiacute que Montaigne afirme que o

homem eacute capaz de todas as coisas e de nenhuma E se confessa a ignoracircncia das causas

primeiras e dos princiacutepios entatildeo que abandone tambeacutem prontamente todo o resto da sua

ciecircncia

Se a alma conhecesse alguma coisa comeccedilaria por se conhecer a si mesma

ldquo[A] et si elle sccedilavoit quelque chose elle se sccedilauroit premierement elle mesme et si elle sccedilavoit quelque chose hors drsquoelle ce seroit son corps et son estuy avant toute autre choserdquo140

Montaigne refere-se aqui especialmente ao chamado conhecimento da medicina

Para ele a medicina natildeo consegue sair do ciclo vicioso das discussotildees Ressalta o facto

de que ldquoles dieuxrdquo desta ciecircncia tambeacutem natildeo conseguem chegar a acordo algum Daiacute

mais uma vez a atitude pirroacutenica de Montaigne

ldquo[A] Si lrsquohomme ne se connoit comment connoit il ses fonctions et ses forcesrdquo141

O autor debate-se com o problema da verdade o que eacute a verdade Na

ldquoApologierdquo sustenta que a verdade eacute inacessiacutevel e flutuante Neste ponto Montaigne eacute

fiel ao cepticismo que tem como caracteriacutestica dominante a atitude de estar sempre em

busca da verdade num processo que ocorre sempre dentro de um eterno movimento e

nunca se fixa definitivamente em nenhum ponto

139 Les Essais II 12 p 560 140 Les Essais II 12 p 561 141 Les Essais II 12 p 561

46

ldquo[B] La veueuml de nostre jugement se rapporte agrave la veriteacute comme faict loeil du chat-huant agrave la splendeur du Soleil ainsi que dit Aristote Par ougrave le sccedilaurions nous mieux convaincre que par si grossiers aveuglemens en une si apparente lumiererdquo142

Esta concepccedilatildeo flutuante da verdade eacute uma caracteriacutestica distintiva natildeo soacute da

ldquoApologierdquo mas tambeacutem de outros ensaios montaigneanos O autor natildeo faz nenhuma

afirmaccedilatildeo definitiva sobre nenhuma questatildeo A sua preocupaccedilatildeo principal natildeo eacute

encontrar a soluccedilatildeo dos diversos problemas que envolvem o homem mas sim tentar

compreender-se a si proacuteprio ldquo[hellip] je suis moy-mesmes la matiere de mon livrerdquo143 Isto

exclui as verdades fixadas pela tradiccedilatildeo filosoacutefica e neste sentido o pensamento de

Montaigne desenvolve-se agrave margem do dogmatismo Rejeita os pedantes isto eacute aqueles

que acreditam que adquirem o conhecimento utilizando termos palavras ou frases

obscuros

Montaigne insiste na dimensatildeo instaacutevel e incerta do nosso conhecimento que

natildeo consegue alcanccedilar a verdade

ldquo[A] Toutes choses produites par nostre propre discours et suffisance autant vrayes que fauces sont subjectes agrave incertitude et debat Cest pour le chastiement de nostre fierteacute et instruction de nostre misere et incapaciteacute que Dieu produisit le trouble et la confusion de lancienne tour de Babel Tout ce que nous entreprenons sans son assistance tout ce que nous voyons sans la lampe de sa grace ce nest que vaniteacute et folie Lessence mesme de la veriteacute qui est uniforme et constante quand la fortune nous en donne la possession nous la corrompons et abastardissons par nostre foiblesserdquo144

A verdade deve ter ldquo[A] un visage pareil et universelrdquo145 Uma outra

caracteriacutestica da verdade salientada por Montaigne eacute que ela ldquo[A] ne se juge point par

authoriteacute et tesmoignage drsquoautruyrdquo146 Neste sentido a verdade eacute fundamentalmente

pessoal Observando cuidadosamente estes atributos da verdade podemos perceber por

que razatildeo Montaigne faz a seguinte afirmaccedilatildeo

ldquo[A] la veriteacute est engoufleacutee dans des profonds abysmes ougrave la veueuml humaine ne peut penetrerrdquo147

Dito de outro modo a verdade estaacute oculta em Deus e natildeo eacute propriamente dos

homens dos filoacutesofos dos doutos

142 Les Essais II 12 p 552 143 Les Essais Au lecteur p 3 144 Les Essais II 12 p 553 145 Les Essais II 12 pp 578-579 146 Les Essais II 12 p 507 147 Les Essais II 12 p 561

47

ldquo[A] Crsquoest agrave elle (la majesteacute divine) seule qursquoapartient la science et la sapiencerdquo148

A criacutetica montaigneana agrave razatildeo humana manifesta aqui a impossibilidade de se

ter um conhecimento crediacutevel em todos os domiacutenios da vida A razatildeo por ser

infinitamente limitada natildeo consegue chegar a ser uma faculdade que garanta a

descoberta e por conseguinte a sistematizaccedilatildeo da verdade que eacute algo moacutevel pessoal

temporal e tambeacutem paradoxal

Lendo os pensadores antigos Montaigne suscita uma questatildeo fundamental Em

seu entender haacute uma espeacutecie de distanciamento ou divoacutercio entre o conhecimento da

essecircncia e o conhecimento da aparecircncia Como eacute possiacutevel entatildeo observa Montaigne

que eles se deixam vencer pela verosimilhanccedila se natildeo conhecem a verdade Como eacute

possiacutevel que conheccedilam a aparecircncia de algo cuja essecircncia natildeo conhecem Diante destas

dificuldades o autor da ldquoApologierdquo sustenta

ldquo[A] Ou nous pouvons juger tout agrave faict ou tout agrave faict nous ne le pouvons pas Si noz facultez intellectuelles et sensibles sont sans fondement et sans pied si elles ne font que floter et vanter pour neant laissons nous emporter nostre jugement agrave aucune partie de leur operation quelque apparence quelle semble nous presenter et la plus seure assiette de nostre entendement et la plus heureuse ce seroit celle-lagrave ougrave il se maintiendroit rassis droit inflexible sans bransle et sans agitationrdquo149

Segundo Montaigne as coisas natildeo se alojam em noacutes com a sua forma e a sua

essecircncia Se assim fosse recebecirc-las-iacuteamos dessa forma O vinho seria o mesmo na boca

de quem quer que fosse Mas natildeo eacute o que acontece a filosofia causa uma infinita

confusatildeo de opiniotildees e um eterno debate sobre o conhecimento das coisas Deixemos o

proacuteprio autor falar

ldquo[A]Car cela est presuposeacute tres-veritablement que de aucune chose les hommes je dy les sccedilavans les mieux nais les plus suffisans ne sont daccord non pas que le ciel soit sur nostre teste car ceux qui doutent de tout doutent aussi de cela et ceux qui nient que nous puissions aucune chose comprendre disent que nous navons pas compris que le ciel soit sur nostre teste et ces deux opinions sont en nombre sans comparaison les plus fortesrdquo150

Montaigne reconhece que os seus juiacutezos acerca de tudo aquilo que eacute falso eou

verdadeiro ocorrem de uma maneira condicionada dependendo da sua situaccedilatildeo interior

148 Les Essais II 12 p 448 149 Les Essais II 12 p 562 150 Les Essais II 12 p 563

48

e exterior A sua posiccedilatildeo em face das diversas situaccedilotildees concretas da vida eacute muito

dependente das suas opiniotildees que podem ser hoje umas e outras diferentes ou ateacute

contraacuterias amanhatilde Em seu entender ateacute o proacuteprio ar que respiramos e a serenidade do

ceacuteu produzem em noacutes alguma alteraccedilatildeo Recorda um verso de Ciacutecero

ldquo[A] Tales sunt hominum mentes quali pater ipse Juppiter auctifera lustravit lampade terras (Les penseacutees des hommes changent avec les rayons feacutecundants du soleil que Jupiter leur envoie)rdquo151

Noutro ensaio do livro III intitulado ldquoDu repentirrdquo Montaigne depois de afirmar

que o mundo eacute movimento e que tudo nele muda continuadamente faz uma observaccedilatildeo

de grande importacircncia que pode ser inserida neste contexto

ldquo[B] Tant y a que je me contredits bien agrave lrsquoaventure mais la veriteacute comme disoit Demandes je ne la contredy point Si mon ame pouvoit prendre pied je ne mrsquoessaierois pas je me resoudrois elle est toujours en apprentissage et en espreuverdquo152

Montaigne questiona de forma radical todos os que se orgulham de sua razatildeo e

acreditam na certeza de todos os seus princiacutepios Utiliza a proacutepria razatildeo para arruinar a

razatildeo dos filoacutesofos profissionais ou seja os seguidores cegos da loacutegica aristoteacutelica Em

suma combate a razatildeo com a proacutepria razatildeo e nega o seu valor

No texto seguinte Montaigne faz uma espeacutecie de caracterizaccedilatildeo da

escolaacutestica153 e da loacutegica aristoteacutelica154 Eacute um texto fundamental da ldquoApologierdquo no

qual o autor se refere claramente agrave hierarquia filosoacutefica aristoteacutelica na qual

encontramos a metafiacutesica como ldquociecircncia mais correctardquo

ldquo[A] Il est bien aiseacute sur des fondemens avouez de bastir ce quon veut car selon la loy et ordonnance de ce commencement le reste des pieces du bastiment se conduit ayseacuteement sans se deacutementir Par cette voye nous trouvons nostre raison bien fondeacutee et discourons agrave boule veue car nos maistres praeligoccupent et gaignent avant main autant de lieu en nostre creance quil leur en faut pour conclurre apres ce quils veulent agrave la mode des Geometriens par leurs demandes avoueacutees le consentement et

151 Les Essais II 12 p 564 152 Les Essais III 2 p 805 153 Na eacutepoca em que Montaigne escreveu a ldquoApologierdquo a doutrina escolaacutestica era caracterizada por um excesso de formalismo e de abstracccedilatildeo o que o levou a demonstrar uma aversatildeo profunda por essa filosofia 154 Segundo Friedrich haacute na ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo alguns ldquofaibles tracesrdquo de uma leitura de Aristoacuteteles jaacute que naquela eacutepoca este pensador grego exercia a sua uacuteltima grande influecircncia sobre os humanistas Aristoacuteteles eacute para Montaigne a ldquoquintessencerdquo da autoridade magistral que obstaculiza a sua relaccedilatildeo livre com a tradiccedilatildeo ldquoSa doctrine nous sert de loy magistrale qui est agrave lrsquoaventure autant fause qursquoune autrerdquo (Les Essais II 12 p 521 a 279) Friedrich observa no entanto que natildeo eacute possiacutevel fixar exactamente em que medida Montaigne leu Aristoacuteteles e considera que natildeo se trata de uma leitura muito soacutelida (Cf Friedrich op cit p 67)

49

approbation que nous leurs prestons leur donnant dequoy nous trainer agrave gauche et agrave dextre et nous pyroueter agrave leur volonteacute Quiconque est creu de ses presuppositions il est nostre maistre et nostre Dieu il prendra le plant de ses fondemens si ample et si aiseacute que par iceux il nous pourra monter sil veut jusques aux nueumls En cette pratique et negotiation de science nous avons pris pour argent content le mot de Pythagoras que chaque expert doit estre creu en son art Le dialecticien se rapporte au grammairien de la signification des mots le Rhetoricien emprunte du Dialecticien les lieux des arguments le poete du musicien les mesures le geometrien de larithmeticien les proportions les metaphysiciens prennent pour fondement les conjectures de la physique Car chasque science a ses principes presupposez par ougrave le jugement humain est brideacute de toutes parts Si vous venez agrave choquer cette barriere en laquelle gist la principale erreur ils ont incontinent cette sentence en la bouche quil ne faut pas debattre contre ceux qui nient les principesrdquo155

Se a verdade ndash como tudo parece indicar ndash se daacute a conhecer atraveacutes das causas ndash

haveraacute que fazer referecircncia agraves quatro causas156 presentes na filosofia aristoteacutelica Se o

homem realmente conseguir conhecer estas causas teraacute um conhecimento ldquocientiacuteficordquo

da substacircncia que procura Por isso Montaigne quer invalidar a filosofia dita dogmaacutetica

de Aristoacuteteles rejeitando claramente a tese das quatro causas Em seu entender esta

teoria natildeo passa de um engano O autor da ldquoApologierdquo sugere que a teoria das quatro

causas soacute serve para prejudicar os homens que ludibriados pelo poder da razatildeo natildeo

cessam de correr atraacutes do conhecimento das causas que lhe eacute por seu turno inacessiacutevel

A verdade das causas estaacute acima de nossas capacidades racionais

Assumindo a postura pirroacutenica de Sexto Empiacuterico ndash que foi aliaacutes um aceacuterrimo

opositor de Aristoacuteteles ndash Montaigne procurou fazer algo semelhante Isto eacute procurou

atacar as bases da ciecircncia escolaacutestica (sobretudo preocupada em conciliar a razatildeo com a

feacute apoiando-se na filosofia grega principalmente a aristoteacutelica) e por conseguinte de

todos os outros sistemas dogmaacuteticos Numa perspectiva ceacuteptica sextiana Montaigne

trava uma batalha contra os princiacutepios da metafiacutesica tidos como os mais correctos Esta

visatildeo aristoteacutelica quer estabelecer uma ligaccedilatildeo entre o pensamento e o juiacutezo humanos e

os obriga a natildeo evitar as questotildees preacute-existentes Segundo Montaigne esta concepccedilatildeo

155 Les Essais II 12 p 540 156 Aristoacuteteles apresenta estas causas particularmente nos livros I e II da Metafiacutesica Satildeo elas causa material isto eacute aquilo de que eacute feita uma coisa por exemplo a mateacuteria do homem eacute a carne e os ossos a mateacuteria da mesa eacute a madeira e assim por diante causa formal isto eacute a forma ou essecircncia das coisas por exemplo o rio e o mar satildeo as formas da aacutegua um tapete eacute a forma assumida pela mateacuteria latilde com a acccedilatildeo do artiacutefice causa eficiente ou motriz isto eacute aquilo de que provecircm a mudanccedila e o movimento das coisas por exemplo o artiacutefice eacute a causa eficiente que faz a latilde receber a forma do tapete o gelo eacute a forma que faz os corpos quentes tornarem-se frios e causa final isto eacute a causa que constitui o fim ou o propoacutesito das coisas e acccedilotildees por exemplo o bem eacute a causa final da poliacutetica a felicidade eacute a causa final da acccedilatildeo eacutetica e assim por diante

50

tambeacutem natildeo potildee em evidecircncia o facto de que o conhecimento adquirido por este

processo fica enclausurado dentro de um ciacuterculo vicioso Deixemos o proacuteprio autor

falar

ldquo[A] Pour juger des apparences que nous recevons des subjets il nous faudroit un instrument judicatoire pour verifier cet instrument il nous y faut de la demonstration pour verifier la demonstration un instrument nous voila au rouet Puis que les sens ne peuvent arrester nostre dispute estans pleins eux-mesmes dincertitude il faut que ce soit la raison aucune raison ne sestablira sans une autre raison nous voylagrave agrave reculons jusques agrave linfiny Nostre fantasie ne sapplique pas aux choses estrangeres ains elle est conceue par lentremise des sens et les sens ne comprennent pas le subject estranger ains seulement leurs propres passions et par ainsi la fantasie et apparence nest pas du subject ains seulement de la passion et souffrance du sens laquelle passion et subject sont choses diverses parquoy qui juge par les apparences juge par chose autre que le subject [hellip]rdquo157

Os escolaacutesticos natildeo testaram as suas ideias atraveacutes dos factosldquoIls ne se

rapportent pas agrave lrsquoexpeacuterience ils nrsquoessaient jamais leurs opinions Leur travail consiste

uniquement agrave tirer des deacuteductions de principes et drsquoaxiomes qursquoils nrsquoexaminent jamais

Leurs principes sont faux les conseacutequences qursquoils en deacuteduisent sont donc fausses

neacutecessairement mais ils ne srsquoen soucient pas La meacutethode scolastique et logicienne

triomphe toujours et rend tous les efforts steacuterilesrdquo158 Montaigne daacute-se conta de que a

capacidade do homem de conhecer algo estaacute profundamente relacionada com a

contingecircncia e que esta mesma capacidade estaacute subordinada aos sentidos que satildeo

ldquomaintesfois maistres du discoursrdquo159 mas que ao mesmo tempo satildeo incertos e

falsificaacuteveis E portanto esta ciecircncia eacute incapaz de chegar a certezas crediacuteveis

157 Les Essais II 12 pp 600-601 158 Villey op cit pp 214-215 159 Les Essais II 12 p 592

51

4 A criacutetica agrave razatildeo humana e o relativismo da moral

Quando lemos a ldquoApologie de Raymond de Sebondrdquo aleacutem de nos depararmos

com problemas claacutessicos da filosofia como a criacutetica agrave teoria do conhecimento

deparamo-nos tambeacutem com o problema da moral de que o autor se ocupa de uma

maneira muito particular Natildeo apresentaremos neste capiacutetulo uma abordagem detalhada

e detida do tema da moral na ldquoApologierdquo Isto exigiria uma investigaccedilatildeo aprofundada e

de maior amplitude uma vez que o autor desenvolve neste texto muitos aspectos

importantes deste tema

Limitar-nos-emos a procurar perceber por que razatildeo o autor ldquodecretardquo a

impossibilidade de fundamentar na razatildeo humana um conjunto de normas ou leis que

dizem respeito agrave vida praacutetica de qualquer grupo humano Perseguindo este objectivo

procuraremos reconstruir os vaacuterios argumentos do ensaio que justificam a sua tomada

de posiccedilatildeo no acircmbito da moral160

Para contextualizar um pouco a questatildeo da moral nos Essais eacute importante

observar que no periacuteodo do humanismo renascentista se fazia sentir a necessidade de

emitir juiacutezos que fossem coerentes de se informar dos costumes dos homens tanto dos

antigos como dos povos que habitavam terras longiacutenquas Todos queriam rever a sua

ideia de homem Tratava-se de uma busca aberta e muitos ofereciam a sua contribuiccedilatildeo

como afirma Villey161 Tampouco Montaigne se demitiu desta tarefa Envolveu-se com

empenho na tarefa de perceber o que eacute o homem Para isto misturou muitas histoacuterias

antigas e contemporacircneas com inuacutemeras reflexotildees de viajantes que vinham de terras

distantes sobretudo daquelas que foram invadidas e ocupadas por europeus nelas

encontra uma confirmaccedilatildeo da tese segundo a qual a multiplicidade irreconciliaacutevel e a

diversidade mais ampla satildeo a uacutenica marca do ser As teses ceacutepticas de Montaigne

revelam-se de uma maneira particularmente radical no campo da moral neste acircmbito

adquiriraacute uma importacircncia capital a diversidade dos costumes como argumento contra a

moral ldquoracionalrdquo

160 Segundo Villey Montaigne toma consciecircncia do relativismo relativo ao conhecimento natildeo apenas nas noccedilotildees de metafiacutesica mas tambeacutem nas noccedilotildees de moral Neste ponto teraacute uma influecircncia muito importante sobretudo a sua leitura de Sexto Empiacuterico Nesta perspectiva Montaigne pode ser visto como um moralista O mesmo autor afirma que eacute principalmente nas ideias morais que podemos perceber nitidamente o relativismo montaigneano (cf Villey op cit pp188-189) 161 Cf Villey op cit p189

52

Na ldquoApologierdquo Montaigne deteacutem-se a considerar que todas as sociedades tecircm

necessidade das leis Ele tem perfeita consciecircncia de que sem leis nenhuma sociedade

poderaacute ter vida longa A obediecircncia agraves leis162 eacute uma condiccedilatildeo sine qua non para a

sobrevivecircncia de qualquer grupo social Montaigne natildeo leva a ingenuidade ao ponto de

negar pura e simplesmente a necessidade das leis e normas Neste sentido pensa como

Epicuro isto eacute considera que mesmo as piores leis nos satildeo tatildeo necessaacuterias que sem

elas os homens se devorariam uns aos outros163 No mesmo paraacutegrafo Montaigne

observa que tambeacutem Platatildeo distanciando-se pouco desta tese sustenta que sem leis

viveriacuteamos como animais selvagens e se empenha em provaacute-lo

ldquo[A] Nostre esprit est un util vagabond dangereux et temeraire il est malaiseacute dy joindre lordre et la mesure Et de mon temps ceux qui ont quelque rare excellence au dessus des autres et quelque vivaciteacute extraordinaire nous les voyons quasi tous desbordez en licence dopinions et de meurs Cest miracle sil sen rencontre un rassis et sociable On a raison de donner agrave lesprit humain les barrieres les plus contraintes quon peut En lestude comme au reste il luy faut compter et regler ses marches il luy faut tailler par art les limites de sa chasserdquo164

Ao citar Epicuro e Platatildeo o autor da ldquoApologierdquo manifesta a sua decepccedilatildeo

relativamente ao homem de sua eacutepoca Certamente estes pensadores trazem-lhe agrave

memoacuteria a situaccedilatildeo concreta em que estava mergulhada a sociedade francesa naquela

eacutepoca Lendo de uma forma atenta a sua obra eacute faacutecil comprovar que Montaigne era

consciente de tudo o que se passava no seu paiacutes guerras conflitos religiosos profundos

e actos de violecircncia deles derivados

Laschamp ao descrever algumas caracteriacutesticas do contexto no qual Montaigne

elabora a sua obra afirma

162 Haacute uma quantidade significativa de afirmaccedilotildees nos Essais acerca da necessidade do cumprimento da lei independentemente de esta ser ou natildeo justa Vejamos algumas ldquo [C] Il nrsquoest rien si lourdement et largement fautier que les loix ny si ordinairement [B] Quiconque leur obeyt pas justement par ougrave il doibt [hellip] [B]Or les loix se maintiennent en credit non par ce qursquoelles sont justes mais par ce qursquoelles sont loix Crsquoest le fondement mystique de leur authoriteacute elles nrsquoen ont poinct drsquoautrerdquo (Les Essais III 13 p 1072) Montaigne chega ateacute a afirmar que ldquo[A] ce bon et grand Socrates refusa de sauver sa vie par la desobeissance du magistrat voire drsquoun magistrat tres-injuste et tres-inique Car crsquoest la regle des regles et generale loy des loix que chacun observe celles du lieu ougrave il est [hellip]rdquo (Les Essais I 23 p 118) ldquo[A] Jen diray seulement encore cela que cest la seule humiliteacute et submission qui peut effectuer un homme de bien Il ne faut pas laisser au jugement de chacun la cognoissance de son devoir il le luy faut prescrire non pas le laisser choisir agrave son discours autrement selon limbecilliteacute et varieteacute infinie de nos raisons et opinions nous nous forgerions en fin des devoirs qui nous mettroient agrave nous manger les uns les autres comme dit Epicurusrdquo (Essais II 12 p 488) 163 Cf Les Essais II 12 p 558 164 Les Essais II 12 p 559

53

ldquoLes violences entre les dissidents eacutegalaient celles dont ils eacutetaient lrsquoobjet de la part de leurs adversaires Jamais lrsquoabus du raisonnement nrsquoavait eacuteteacute pousseacute plus loin jamais il nrsquoavait deacutechacircneacute tant de colegraveres jamais il nrsquoavait fait couler tant de larmes et tant de sangrdquo165

Assim se compreende melhor por que razatildeo Montaigne afirma que na sua

eacutepoca os que tecircm alguma rara excelecircncia acima dos outros e uma vivacidade

extraordinaacuteria os excedem em desregramento de ideias e de costumes e praticam acccedilotildees

que impedem a felicidade dos homens

Montaigne na qualidade de libre penseur natildeo poderia deixar de defender a

liberdade de pensamento Mas ao mesmo tempo sabe tambeacutem que se esta liberdade

estiver sujeita agrave vaidade da razatildeo muitas atitudes humanas inclusive religiosas como

vimos anteriormente poderatildeo tornar-se nocivas para o homem Ao descrever algumas

das caracteriacutesticas da liberdade de que davam prova os antigos na filosofia e ao fazer

um paralelo com a sociedade de sua eacutepoca afirma

ldquo[A] La liberteacute donq et gaillardise de ces esprits anciens produisoit en la philosophie et sciences humaines plusieurs sectes dopinions differentes chacun entreprenant de juger et de choisir pour prendre party Mais agrave present [C] que les hommes vont tous un train [hellip] et [A] que nous recevons les arts par civile authoriteacute et ordonnance [C] si que les escholes nont quun patron et pareille institution et discipline circonscrite on ne regarde plus ce que les monnoyes poisent et valent mais chacun agrave son tour les reccediloit selon le pris que lapprobation commune et le cours leur donneOn ne plaide pas de lalloy mais de lusage ainsi se mettent egallement toutes choses On reccediloit la medicine comme la Geometrie et les batelages les enchantemens les liaisons le commerce des esprits des trespassez les prognostications les domifications et jusques agrave cette ridicule poursuitte de la pierre philosophale tout se met sans contredictrdquo166

Montaigne escreve a sua obra mergulhado num clima onde reinava uma

ldquoanarchie dans les ideacutees et dans les faitsrdquo167 e coloca-se na atitude de ajudado pelos

costumes antigos julgar o seu tempo Segundo Villey eacute exactamente neste contexto

muito conturbado que Montaigne entra em contacto com o livro de Sexto Empiacuterico

ldquoVoilagrave ougrave lrsquoinfluence du milieu et sa propre dociliteacute aux faits lrsquoont conduit Presque toujours crsquoest la loi politique et morale agrave laquelle il est naturellement assujetti que lrsquoesprit eacuterige en loi absolue Montaigne a affranchi sa raison de cette contrainte naturelle il sait critiquer la loi

165 Laschamp op cit p 104 166 Les Essais II 12 pp 559-560 167 Laschamp op cit p 94

54

que son milieu lui impose crsquoest un pas drsquoune extrecircme importance qursquoil a fait lagrave vers lrsquoideacutee de relativiteacuterdquo168

Montaigne descreve alguns aspectos que comprovam o seu relativismo face aos

costumes de vaacuterios povos sobretudo quando os relaciona com os de Franccedila Com isto o

autor quer sugerir possivelmente que as crenccedilas os juiacutezos e as opiniotildees dos homens

estatildeo sujeitos agraves inconstacircncias perenes que haacute na vida concreta

ldquo[A] si le ciel les agite et les roule agrave sa poste quelle magistrale authoriteacute et permanante leur allons nous attribuant [hellip] [B] en maniere que ainsi que les fruicts naissent divers et les animaux les hommes naissent aussi plus et moins belliqueux justes temperans et dociles icy subjects au vin ailleurs au larecin ou agrave la paillardise icy enclins agrave superstition ailleurs agrave la mescreance [C] icy agrave la liberteacute icy agrave la servitude [hellip] [B] que deviennent toutes ces belles prerogatives dequoy nous nous allons flatants Puis quun homme sage se peut mesconter et cent hommes et plusieurs nations voire et lhumaine nature selon nous se mesconte plusieurs siecles en cecy ou en cela quelle seureteacute avons nous que par fois elle cesse de se mesconter [C] et quen ce siecle elle ne soit en mescomte [A] Il me semble entre autres tesmoignages de nostre imbecilliteacute que celui-cy ne merite pas destre oublieacute que par desir mesmes lhomme ne sccedilache trouver ce quil luy faut que non par jouyssance mais par imagination et par souhait nous ne puissions estre daccord de ce dequoy nous avons besoing pour nous contenter Laissons agrave nostre penseacutee tailler et coudre agrave son plaisir elle ne pourra pas seulement desirer ce qui luy est propre [C] et se satisfaire [hellip]rdquo169

Segundo Montaigne a verdade de uma teoria moral ndash como a de qualquer outro

conhecimento ndash soacute pode ser afirmada relativamente ao sujeito que estaacute implicado nesta

tarefa O homem que reflecte sobre a moral reflecte sobre si proacuteprio e natildeo sobre a

humanidade em geral Desta perspectiva podemos perceber por que razatildeo Montaigne

afirma que eacute ele proacuteprio a mateacuteria de seu livro170 Eacute o proacuteprio Montaigne que nos toca

ainda mais de perto do que o homem em geral

Montaigne observa que natildeo haacute entre os filoacutesofos combate tatildeo violento e tatildeo rude

como o que se trava acerca da questatildeo do soberano bem do homem

ldquo[A] Il nest point de combat si violent entre les philosophes et si aspre que celuy qui se dresse sur la question du souverain bien de lhommerdquo171

168 Villey op cit p 193 169 Les Essais II 12 pp 575-576 170 Cf nota 143 171 Les Essais II 12 p 577

55

Trata-se de uma questatildeo muito sensiacutevel para Montaigne Em se entender eacute inuacutetil

acrescentar mais uma seita agraves 288 que nasceram segundo o caacutelculo de Varron acerca

da questatildeo do soberano bem172

Montaigne inicia a ldquoApologierdquo afirmando que alguns filoacutesofos pensavam que o

soberano bem estava na ciecircncia173

Mas natildeo acreditava que fosse atraveacutes da ciecircncia174 (moral e filosoacutefica) que o

homem conseguiria ser mais saacutebio e mais feliz O autor natildeo se preocupa em fornecer

exactamente o ldquoendereccedilordquo do bem soberano Vejamos como apresenta algumas

indicaccedilotildees relativas agraves vaacuterias tentativas dos filoacutesofos para encontrarem o bem soberano

esse bem que varia conforme o indiviacuteduo

ldquo[A] Nature devroit ainsi respondre agrave leurs contestations et agrave leurs debats Les uns disent nostre bien estre loger en la vertu dautres en la volupteacute dautres au consentir agrave nature qui en la science [C] qui agrave navoir point de douleur [A] qui agrave ne se laisser emporter aux apparences (et agrave cette fantasie semble retirer cetautre [B] de lantien Pythagoras [hellip] [A] qui est la fin de la secte Pyrrhonienne) rdquo175

Fiel aos argumentos do pirronismo Montaigne sustenta que o soberano bem eacute a

ataraxia Segundo ele a sabedoria indica-nos que eacute necessaacuterio procurar manter na alma

um harmonioso equiliacutebrio A ataraxia foi sempre considerada pelos seguidores do

pirronismo como a coroaccedilatildeo da sua filosofia segundo Andreacute Verdan176 Vejamos

textualmente o que diz Sexto acerca da ataraxia como objectivo de sua doutrina ceacuteptica

filosoacutefica

ldquoIl est propos de dire ici quelque chose de la fin de la Sceptique La fin en geacuteneacuteral est ce pour quoi on fait ou on consideacutere toutes Choses crsquoest ce que lrsquoon ne recherche point pour quelque autre Chose crsquoest ce qui est la dernieacutere Chose que lrsquoon recherche Nous disons donc maintenant que la fin du Filosofe Sceptique est lrsquoAtaraxie ou lrsquoexemtion de trouble agrave lrsquoeacutegard des opinions [hellip] amp alors lrsquoAtaraxie ou lrsquoexemtion de trouble fut une suite heureuse quoique fortuite de cette suspension de son jugement agrave lrsquoeacutegard des opinions [hellip] celui qui opine Dogmatiquement amp qui eacutetablit qursquoil y a naturellement amp reacuteellement quelque bien amp quelque mal est toujours troubleacuterdquo177

172 Les Essais II 12 p 577 173 Cf nota 96 174 ldquoLa philosophie morale est viseacutee comme les autres sciences plus directement mecircme que les autres sciencesrdquo (Villey op cit p219) 175 Les Essais II 12 p578 176 Cf Verdan Andreacute Le scepticisme philosophique Paris-Montreacuteal Bordas 1971 p 57 177 Sextus Empiricus Les Hipotiposes ou Instituitions Pirroniennes Traduzido do grego por Claude Huart Amsterdam Barbier MDCCXXV pp15-16

56

Segundo Montaigne a filosofia natildeo pode oferecer uma base consistente agrave moral

que sirva como garantia da felicidade humana O homem eacute convidado a procurar

alicerces mais seguros e consistentes fora da filosofia

ldquo[C] Il ne nous faut guiere non plus doffices de regles et de loix de vivre en nostre communauteacute quil en faut aux grues et formis en la leur Et neantmoins nous voyons quelles sy conduisent tres-ordonneacutement sans erudition Si lhomme estoit sage il prenderoit le vray pris de chasque chose selon quelle seroit la plus utile et propre agrave sa vierdquo178

Assim o homem estaacute impedido por uma incapacidade que tem a sua origem

sobretudo na razatildeo de determinar tudo aquilo que pode em termos morais servir-lhe

para a construccedilatildeo de uma vida tranquila O homem natildeo sabe encontrar o que lhe eacute

necessaacuterio O desacordo nestes assuntos eacute inerente agrave proacutepria natureza do homem tal

como foi descrita pelo autor da ldquoApologierdquo

Trata-se de um desacordo com consequecircncias preocupantes jaacute que se eacute de noacutes

que depende a organizaccedilatildeo dos nossos costumes metemo-nos numa enorme

confusatildeo179 Aludindo ao parecer de Soacutecrates Montaigne defende que a razatildeo aconselha

cada um a obedecer a lei de seu paiacutes180

Entretanto Montaigne questiona-se seraacute que ldquo[A] nostre devoir nrsquoa autre regle

que fortuite181 A resposta reflecte mais uma vez o relativismo do autor que afirma

que a verdade deve ter uma face universal e uniforme mas que reconhece ao mesmo

tempo que de facto o homem impedido pela razatildeo e pelos sentidos (considerados pela

filosofia tradicional como fonte do conhecimento da verdade) natildeo tem condiccedilotildees de

encontrar uma base moral no discurso racional

ldquo[A] La droiture et la justice si lhomme en connoissoit qui eust corps et veritable essence il ne lattacheroit pas agrave la condition des coustumes de cette contreacutee ou de celle lagrave ce ne seroit pas de la fantasie des Perses ou des Indes que la vertu prendroit sa forme Il nest rien subject agrave plus continuelle agitation que les loix Deacutepuis que je suis nay jay veu trois et quatre fois rechanger celles des Anglois noz voisins non seulement en subject politique qui est celuy quon veut dispenser de constance mais au plus important subject qui puisse estre agrave sccedilavoir de la religion Dequoy jay honte et despit dautant plus que cest une nation agrave laquelle ceux de mon quartier ont eu autrefois une si priveacutee accointance quil

178 Les Essais II 12 p 487 179 Cf Les Essais II 12 p 578 180 Cf Les Essais II 12 p 478 181 Les Essais II 12 p 578

57

reste encore en ma maison aucunes traces de nostre ancien cousinagerdquo182

Reflectindo acerca da situaccedilatildeo concreta que o rodeava isto eacute a guerra as

injusticcedilas e outros males (causados pelo proacuteprio homem) que caracterizavam a Franccedila

de entatildeo Montaigne tem consciecircncia de que seguir as leis do paiacutes183 que satildeo

produzidas pela razatildeo humana eacute algo bastante problemaacutetico

Como moralista Montaigne natildeo deseja fazer a apologia de uma ldquoanarquiardquo em

termos morais muito pelo contraacuterio como vimos defende a importacircncia da lei na vida

quotidiana O que ele pretende defender eacute que todo o sistema que resulta de um

emaranhado de reflexotildees intelectuais natildeo leva a nada pelo facto de que tudo o que a

razatildeo produz estaacute sujeito agrave incerteza tanto a verdade como a falsidade

Ao criticar todo este processo Montaigne quer ressaltar a ideia de que a razatildeo eacute

um estorvo importante para a dinacircmica de construccedilatildeo da justiccedila e das leis morais

Esta tese poderia levar a pensar que Montaigne eacute um pensador que natildeo acredita

na verdade Mas ao ler a sua obra damo-nos conta que eacute um autor apaixonado pela

verdade Ele nunca afirmou que a verdade estava fora de alcance Ele quer encontrar a

verdade A sua proacutepria atitude filosoacutefica pode ser caracterizada como uma perene busca

da verdade O que lhe eacute peculiar nesta busca eacute o facto de questionar profundamente tudo

aquilo que eacute construiacutedo arbitrariamente pela filosofia dogmaacutetica sobretudo as grandes

elaboraccedilotildees teoacutericas e os complicados coacutedigos legais que em geral natildeo respeitam as

contingecircncias da vida

Esta razatildeo eacute por conseguinte a grande responsaacutevel pela contiacutenua agitaccedilatildeo das

leis Neste sentido o cepticismo de Montaigne no domiacutenio da moral estaacute em profunda

sintonia com todo o projecto da ldquoApologierdquo Assim como natildeo aceita as certezas teoacutericas

dos filoacutesofos e pensadores profissionais em mateacuteria de metafiacutesica e em tantos outros

assuntos tradicionalmente caros agrave filosofia rejeita tambeacutem com toda a determinaccedilatildeo a

produccedilatildeo filosoacutefica que eacute apresentada como ciecircncia moral Montaigne natildeo se cansa de

questionar o papel daqueles pensadores que em nome da filosofia se encarregam de

teorizar sobre as leis morais e a justiccedila Podemos dizer que o autor classifica esta

actividade como algo dispensaacutevel agrave vida Neste contexto o autor ressalta o problema da

contingecircncia e da sua relaccedilatildeo com a lei

182 Les Essais II 12 p 579 183 ldquo[B] Car nous avons en France plus de loix que tout le reste du monde ensemble [hellip] [C] Il y a peu de relation nos actions qui sont en perpetuelle mutation avec les loix fixes et immobile Les plus desirables ce sont les plus rares plus simples et generalesrdquo (Les Essais III 13 p 1066)

58

ldquo[A] Que nous dira donc en ceste necessiteacute la philosophie Que nous suyvons les loix de nostre pays Cest agrave dire cette mer flotante des opinions dun peuple ou dun Prince qui me peindront la justice dautant de couleurs et la reformeront en autant de visages quil y aura en eux de changemens de passion Je ne puis pas avoir le jugement si flexiblerdquo184

Algumas doutrinas filosoacuteficas impelem-nos ao cumprimento das leis do paiacutes

Mas como eacute isto possiacutevel se estas leis satildeo condicionadas pelas paixotildees de quem as fez

Em seguida Montaigne refere-se agrave relatividade das leis civis

ldquo[A] Quelle bonteacute est-ce que je voyois hyer en credit et demain plus [C]et que le trajet dune riviere fait crime Quelle veriteacute que ces montaignes bornent qui est mensonge au monde qui se tient au delagrave185

Diante deste quadro podemos perguntar-nos seraacute possiacutevel ter uma moral que

garanta a justiccedila para todos fazendo uso da razatildeo e utilizando as leis humanas que satildeo

sempre condicionadas pelas paixotildees as quais por sua vez estatildeo sujeitas a de tantas

mudanccedilas A resposta de Montaigne eacute negativa e eacute dada de forma iroacutenica

ldquo[A] Mais ils sont plaisans quand pour donner quelque certitude aux loix ils disent quil y en a aucunes fermes perpetuelles et immuables quils nomment naturelles qui sont empreintes en lhumain genre par la condition de leur propre essence Et de celles lagrave qui en fait le nombre de trois qui de quatre qui plus qui moins signe que cest une marque aussi douteuse que le resterdquo186

Aleacutem de constatar a relatividade das leis civis Montaigne natildeo deixa de afirmar

que haacute tambeacutem uma niacutetida relatividade nas leis naturais

ldquo[A] ils sont dis-je si miserables que de ces trois ou quatre loix choisies il nen y a une seule qui ne soit contredite et desadvoeumle non par une nation mais par plusieursrdquo187

Outra tese da ldquoApologierdquo que merece ser lembrada eacute que a razatildeo humana ndash

intrometendo-se em toda a parte para dominar baralhar e confundir a face das coisas

segundo sua vaidade e inconstacircncia ndash quer que acreditemos que haacute leis naturais como as

que se observam nas outras criaturas Mas isto natildeo passa de um equiacutevoco em noacutes as leis

naturais estatildeo perdidas

Montaigne natildeo mede as palavras quando o que estaacute em jogo eacute em seu entender

alguma coisa de capital importacircncia A falta de honestidade e a falsidade satildeo atributos

dos pensadores e elaboradores de leis na sociedade Neste contexto criticaraacute

violentamente a posiccedilatildeo de Platatildeo por exemplo Observa que quando este pensador

184 Les Essais II 12 p 579 185 Les Essais II 12 p 579 186 Les Essais II 12 p 580 187 Les Essais II 12 p 580

59

grego se torna legislador adopta um estilo imperioso e afirmativo e mistura-lhe

ousadamente as mais fantasiosas invenccedilotildees tatildeo uacuteteis para persuadir o povo como

ridiacuteculas para se persuadir a si mesmo Conclui a sua criacutetica a Platatildeo da seguinte forma

ldquo[C] Et pourtant en ses loix il a grand soing quon ne chante en publiq que des poeumlsies desquelles les fabuleuses feintes tendent agrave quelque utile fin et estant si facile dimprimer tous fantosmes en lesprit humain que cest injustice de ne le paistre plustost de mensonges profitables que de mensonges ou inutiles ou dommageables Il dict tout destroussement en sa Republique que pour le profit des hommes il est souvent besoin de les piper 188 rdquo

Na ldquoApologierdquo Montaigne manifesta em vaacuterias ocasiotildees o seu

descontentamento relativamente agraves teses dos filoacutesofos gregos

Considerando as reflexotildees precedentes acerca da moral tudo leva a crer que

Montaigne considera que as leis verdadeiras relativas agrave moral devem ter um caraacutecter

universal e natildeo particular

Montaigne apresenta uma lista de costumes diversificados de povos muito

diferentes que tecircm as suas tradiccedilotildees proacuteprias e que satildeo muitas vezes contraditoacuterias entre

si Isto servir-lhe-aacute para justificar a tese de que natildeo haacute coisa em que o mundo seja tatildeo

diverso como os costumes e leis

ldquo[A] Telle chose est icy abominable qui apporte recommandation ailleurs comme en Lacedemone la subtiliteacute de desrober Les mariages entre les proches sont capitalement defendus entre nous ils sont ailleurs en honneur [hellip]rdquo

ldquo[A] Le meurtre des enfans meurtre des peres communication de femmes trafique de voleries licence agrave toutes sortes de voluptez il nest rien en somme si extreme qui ne se trouve receu par lusage de quelque nationrdquo189

ldquo[A] Les subjets ont divers lustres et diverses considerations cest de lagrave que sengendre principalement la diversiteacute dopinions Une nation regarde un subject par un visage et sarreste agrave celuy lagrave lautre par un autre

Il nest rien si horrible agrave imaginer que de manger son pere Les peuples qui avoyent anciennement ceste coustume la prenoyent toutesfois pour tesmoignage de pieteacute et de bonne affection [hellip]rdquo

ldquo[A] Licurgus considera au larrecin la vivaciteacute diligence hardiesse et adresse quil y a agrave surprendre quelque chose de son voisin [hellip]rdquo ldquo[A] Dionysius le tyran offrit agrave Platon une robe agrave la mode de Perse longue damasquineacutee et parfumeacutee Platon la refusa disant questant nay homme il ne

188 Les Essais II 12 p 512 189 Les Essais II 12 p 580

60

se vestiroit pas volontiers de robbe de femme mais Aristippus laccepta avec ceste responce que nul accoustrement ne pouvoit corrompre un chaste couragerdquo190

ldquo[A] Nous portons les oreilles perceacutees les Grecs tenoient cela pour une marque de servitude Nous nous cachons pour jouir de nos femmes les Indiens le font en public Les Scythes immoloyent les estrangers en leurs temples ailleurs les temples servent de franchiserdquo191

Para Montaigne as razotildees sobre as quais cada povo funda a sua moral satildeo uma

resposta a situaccedilotildees contingentes e natildeo visam dar resposta a situaccedilotildees mais universais

vaacutelidas para todos os homens sem excepccedilatildeo Villey chega a afirmar que Montaigne

ldquocherche une justice et il trouve des justices et des justices contradictoiresrdquo192

Aleacutem de constatar a ausecircncia de um acordo entre as vaacuterias concepccedilotildees no que

diz respeito aos costumes de cada povo Montaigne - fiel agrave criacutetica aos sistemas

filosoacuteficos que perpassa toda a ldquoApologierdquo - destaca tambeacutem o facto de que natildeo haacute

sequer acordo entre os filoacutesofos que se ocupam particularmente em reflectir acerca de

dois temas muito caros agrave filosofia

ldquo[A] Quant agrave la liberteacute des opinions philosophiques touchant le vice et la vertu cest chose ougrave il nest besoing de sestendre et ougrave il se trouve plusieurs advis qui valent mieux teus que publiez [C]aux faibles espritsrdquo193

Segundo Montaigne os proacuteprios homens do saber adoptam atitudes

consideradas inaceitaacuteveis pelo facto de a sociedade as condenar Os exemplos ilustram

esta situaccedilatildeo de uma forma muito niacutetida e revelam quanto a razatildeo humana pode fazer

para encontrar explicaccedilotildees legitimadoras para todas as realidades relativas aos costumes

morais

ldquo[A] De lagrave disent aucuns que doster les bordels publiques cest non seulement espandre par tout la paillardise qui estoit assigneacutee agrave ce lieu lagrave mais encore esguillonner les hommes agrave ce vice par la malaisance [hellip] On demanda agrave un philosophe quon surprit agrave mesme ce quil faisoit Il respondit tout froidement Je plante un homme [hellip]rdquo194

ldquo[C] Car Diogenes exerccedilant en publiq sa masturbation faisoit souhait en presence du peuple assistant qursquoil peut ainsi saouler son ventre en le frottant [hellip] Ces philosophes icy donnoient extreme prix agrave la vertu et refusoient toutes autres disciplines que la moralerdquo195

190 Les Essais II 12 p 581 191 Les Essais II 12 p 582 192 Villey op cit p 197 193 Les Essais II 12 p 582 194 Les Essais II 12 p 584 195 Les Essais II 12 p 585

61

A relatividade das leis e costumes e a impossibilidade de se chegar a acordo

entre os povos tendo em vista estabelecer leis universais leva Montaigne a uma espeacutecie

de denuacutencia da praacutetica dos encarregados pela execuccedilatildeo das leis que jaacute por si satildeo tatildeo

questionaacuteveis Isto torna a lei supostamente universal ainda mais sujeita agrave rejeiccedilatildeo

segundo Montaigne Vale a pena recordar aqui o exemplo de que Montaigne ouviu

falar de um juiz que quando deparava com um seacuterio conflito entre Bartoldo e Baldo196

ou com alguma mateacuteria agitada por muitas contradiccedilotildees escrevia na margem de seu

livro ldquoQuestatildeo para o amigordquo Montaigne observa que neste caso a verdade era tatildeo

confusa e debatida que o juiz em causa poderia favorecer a parte que bem entendesse e

conclui

ldquo[A] Les advocats et les juges de nostre temps trouvent agrave toutes causes assez de biais pour les accommoder ougrave bon leur semble A une science si infinie deacutependant de lauthoriteacute de tant dopinions et dun subject si arbitraire il ne peut estre quil nen naisse une confusion extreme de jugemens Aussi nest-il guiere si cler proceacutes auquel les advis ne se trouvent divers Ce quune compaignie a jugeacute lautre le juge au contraire et elle mesmes au contraire une autre fois Dequoy nous voyons des exemples ordinaires par ceste licence qui tasche merveilleusement la cerimonieuse authoriteacute et lustre de nostre justice de ne sarrester aux arrests et courir des uns aux autres juges pour decider dune mesme causerdquo197

Eacute interessante destacar este exemplo tambeacutem porque Montaigne tinha

conhecimentos profundos da ciecircncia do direito conforme reconhece a maioria dos

comentadores da sua obra Como magistrat tinha conhecimento de causas nas quais se

manifestava aquilo contra o qual se opunha Isto vem confirmar ainda mais a posiccedilatildeo de

Montaigne face agrave sua incansaacutevel busca de leis universais que natildeo estivessem sujeitas agraves

constantes mutaccedilotildees de que a razatildeo humanaldquo[B] un pot agrave deux anses qursquoon peut saisir

agrave gauche et agrave dextrerdquo eacute responsaacutevel e que [A] fornit drsquoapparence agrave divers effectsrdquo198

Ao abordar a problemaacutetica da moral na ldquoApologierdquo Montaigne chega a algumas

conclusotildees que natildeo se distanciam fundamentalmente de todo o projecto do ensaio Isto

eacute defende que haacute um relativismo significativamente claro relativamente agrave moral Villey

faz algumas afirmaccedilotildees que resumem claramente esta problemaacutetica ldquoIl nrsquoy a pas de

souverain bien il nrsquoy a pas de loi naturelle toute obligation moralle est fortuite

196 Trata-se de dois juristas do seacuteculo XIV que no seacuteculo XV ainda tinham grande influecircncia 197 Les Essais II 12 p 582 198 Les Essais II 12 p 581

62

contingenterdquo199 E tudo isto deve-se agrave criacutetica destruidora da razatildeo humana que

Montaigne apresenta no texto Para ele a razatildeo quer julgar tudo quer elaborar leis

universais sem mesmo ter condiccedilotildees para semelhante empreendimento A razatildeo como

vimos eacute multiforme inconstante infinita Ela avanccedila sempre mesmo torta mesmo

manca mesmo desancada tanto com a mentira como com a verdade A razatildeo eacute um

instrumento de chumbo e de cera alongaacutevel dobraacutevel e adaptaacutevel a todas as

perspectivas e a todas as medidas200 Segundo Montaigne a razatildeo eacute ldquo[B] un miserable

fondement de nos regles et qui nous represente volontiers une tres-fauce image des

choses comme vainement nous concluons aujourdrsquohui lrsquoinclination et la decrepitude du

monde par les arguments que nous tirons de nostre propre foiblesse et decadencerdquo201

Em suma Montaigne tem consciecircncia de que eacute impossiacutevel chegar a qualquer

determinaccedilatildeo no domiacutenio da moral atraveacutes da razatildeo Por isto assume uma atitude

ceacuteptica em face desta questatildeo

199 Villey op cit p198 200 Cf nota 122 201 Les Essais III 6 p 908

63

Consideraccedilotildees finais

A leitura da ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo permitiu-nos esclarecer aspectos

importantes da criacutetica demolidora da razatildeo humana levada a cabo por Montaigne

Eacute claro que uma motivaccedilatildeo importante que levou Montaigne a escrever a

ldquoApologierdquo foi a obra do teoacutelogo catalatildeo Sebond Theologia Naturalis Eacute importante

destacar que o proacuteprio tiacutetulo do ensaio ldquoApologiehelliprdquo isto eacute elogio defesa natildeo reflecte

exactamente o seu propoacutesito que eacute a defesa de Sebond A anaacutelise do texto permite

captar algo de paradoxal Montaigne dispotildee-se a defender este teoacutelogo catalatildeo num

ensaio no qual ele proacuteprio se distancia claramente da doutrina de Sebond Neste

sentido haacute um significativo distanciamento entre o tiacutetulo do ensaio e o seu conteuacutedo O

ponto de partida de Montaigne eacute uma espeacutecie de declaraccedilatildeo de que as ideias de Sebond

satildeo convincentes mas imediatamente a seguir muda de opiniatildeo partindo de sua

concepccedilatildeo negativa do homem e natildeo acredita nos supostos poderes da razatildeo Dito de

outro modo Montaigne natildeo sustentava o propoacutesito da Theologia naturalis isto eacute a

pretensatildeo de apoiar a crenccedila dos leitores convidando-os a fazer um esforccedilo de adaptaccedilatildeo

dos instrumentos naturais e humanos considerados como dons de Deus especialmente

a razatildeo pondo-os ao serviccedilo da feacute

Montaigne ldquoaplauderdquo a atitude de Sebond202 Mas imediatamente a seguir critica

o teoacutelogo catalatildeo atacando os vaacuterios argumentos filosoacuteficos presentes na sua obra Na

raiz da sua criacutetica estaacute o facto de estes argumentos se fundamentarem numa visatildeo

antropocecircntrica da supremacia do homem como criatura privilegiada da criaccedilatildeo o

homem por ser detentor da razatildeo diferentemente dos outros animais tem uma

finalidade uma perfeiccedilatildeo e uma dignidade que merece ser exaltada Montaigne natildeo

aceita esta visatildeo que norteia tanto a obra de Sebond como o pensamento de todos

aqueles que faziam apologia da dignitas hominis Denuncia a presunccedilatildeo ilusoacuteria do

homem Desta perspectiva utiliza vaacuterios relatos anedoacuteticos de animais para justificar a

sua posiccedilatildeo E a conclusatildeo principal a que o conduz este percurso eacute que o homem natildeo

estaacute nem acima nem abaixo do resto dos seres naturais203 Dito de outro modo a

consideraccedilatildeo de que unicamente o homem eacute possuidor da razatildeo natildeo tem qualquer

relevacircncia segundo a ldquoApologierdquo

202 Cf nota 1 203 Cf nota 31

64

Da batalha travada por Montaigne contra os vaacuterios opositores da obra de

Sebond podemos destacar a posiccedilatildeo criacutetica que ele assume face aos presunccedilosos

racionalistas que diziam que os argumentos de Sebond eram fracos Diante destes

doutos Montaigne iraacute sustentar a tese de que o homem natildeo sabe nada Haacute que salientar

no entanto que o teoacutelogo catalatildeo estava em ldquocomunhatildeordquo com o pensamento apologeacutetico

de sua eacutepoca isto eacute recorreu agrave razatildeo para provar certos dogmas Para Montaigne o

principal perigo vem daqueles que atribuem super poderes agrave razatildeo Eacute por isso tambeacutem

que Montaigne sustenta que a razatildeo deve submeter-se agrave autoridade divina Esta

submissatildeo natildeo exclui a razatildeo mas considera-a como um meio de compreender o motivo

da feacute Esta feacute deve ser concebida como uma expectativa da graccedila sem a qual nada eacute

possiacutevel ao homem Segundo Montaigne natildeo somos capazes de perceber que toda a

certeza estaacute vedada ao homem reduzido a si proacuteprio204

Podemos perceber que a utilizaccedilatildeo da razatildeo para explicar as realidades da

religiatildeo natildeo tem sentido na ldquoApologierdquo Montaigne natildeo tem necessidade de fazer

apologia da feacute205 A sua perspectiva eacute unicamente humana e isto vai estruturar toda a

sua reflexatildeo na ldquoApologierdquo Quando se refere agrave graccedila como dom sobrenatural nem o

absoluto nem a graccedila actuam no interior de sua visatildeo antropoloacutegica A graccedila eacute

apresentada por Montaigne como uma metamorfose

ldquo[C] Crsquoest agrave nostre foy Chrestienne non agrave sa vertu Stoique de pretendre agrave cette divine et miraculeuse metamorphoserdquo206

Montaigne descobre em si proacuteprio o pirronismo atraveacutes da volubiliteacute207 presente

nas vaacuterias atitudes dos filoacutesofos Pocircs em duacutevida as diversas opiniotildees dos filoacutesofos

denunciando-as como contraditoacuterias criticou as doutrinas filosoacuteficas dogmaacuteticas mas

natildeo assumiu nenhuma doutrina definida Montaigne assume o pirronismo como meacutetodo

e natildeo como um adepto cego para enfrentar os problemas presentes na ldquoApologierdquo

O pirronismo eacute assumido por Montaigne como modo de pensamento e como

meacutetodo de vida Este pirronismo permite-lhe ter em conta na ldquoApologierdquo a incerteza de

204 Cf Nota 93 205 O autor esclarece esta questatildeo da seguinte maneira na ediccedilatildeo posterior a 1588 ldquo[C] Je propose les fantasies humaines et miennes simplement comme humaines fantasies [hellip] matiere dopinion non matiere de foy ce que je discours selon moy non ce que je croy selon Dieu comme les enfants proposent leurs essais intruisables non instruisants dune maniere laiumlque non clericale mais tresminusreligieuse tousjoursrdquo (Les Essais I 56 p 323) 206 Les Essais II 12 p 604 207 Les Essais II 12 p 569

65

nossos juiacutezos a incerteza que todos sentem em si208 em relaccedilatildeo ao conhecimento O

pirronismo faz desaparecer as ilusotildees da certeza e como ele natildeo se envolve nas

questotildees da ldquoirresolution infinierdquo209 procura uma seguranccedila na tranquilidade do

espiacuterito que com a do corpo constitui o soberano bem210 Ao assumir a atitude

pirroacutenica Montaigne natildeo se transforma num homem passivo num ldquopeso mortordquo Muito

pelo contraacuterio sustenta que devemos sempre levantar questotildees reconhecer a nossa

ignoracircncia face agraves vaacuterias resoluccedilotildees tomadas como certas pela presunccedilosa razatildeo

humana duvidar sempre e ter uma atitude de busca incessante de novas ideias

Isto significa que Montaigne defende a tese de que somos convidados a

considerar que os conhecimentos adquiridos devem ser sempre sustentados como

provisoacuterios e natildeo como verdades absolutas Isto natildeo exclui evidentemente o facto de

que podemos apresentar as nossas visotildees prismaacuteticas das coisas e ateacute sustentaacute-las se

assim for necessaacuterio

Na ldquoApologierdquo Montaigne assume uma atitude pirroacutenica sui generis Demonstra

constantemente uma reaccedilatildeo contra os dogmatismos Ele eacute um pensador que estaacute sempre

em busca Nunca cessa de investigar Estaacute sempre em debate consigo mesmo Neste

aspecto pode-se dizer que assume uma atitude diferente do pirronismo grego o qual

defendia a tese da impossibilidade de qualquer juiacutezo Natildeo estaacute preocupado em encontrar

um ldquoroacutetulo de marca registadardquo para suas reflexotildees filosoacuteficas Ou seja natildeo tinha como

objectivo elaborar uma apologia de uma doutrina a ser seguida por adeptos

Montaigne apresenta os seus juiacutezos com a sua razatildeo criacutetica sem ter

necessariamente que defender a tese de que a razatildeo humana ndash instrumento flexiacutevel

recurvaacutevel e adaptaacutevel a qualquer forma211- eacute sempre o guia prudente e seguro de uma

conduta correcta e perfeita Montaigne procura demonstrar racionalmente - e aqui

reside em seu entender o uso positivo da razatildeo ndash que natildeo haacute essecircncia nem verdade

absoluta acerca do homem e que de algumas coisas sempre agrave mercecirc do poder do tempo

noacutes soacute observamos as aparecircncias

ldquo[A] Finalment il nrsquoy a aucune constante existence ny de nostre estre ny de celuy des objects [hellip] Nous nrsquoavons aucune communication agrave lrsquoestre [hellip]rdquo212

208 Cf Les Essais II 12 p 563 209 Cf Les Essais II 12 p 561 210 Cf Les Essais II 12 p 488 211 Cf Les Essais II 12 p 539 212 Les Essais II 12 p 601

66

Montaigne duvida de todos os conhecimentos humanos recebidos por autoridade

e em confianccedila (agrave credit) como se fossem religiatildeo e lei213 tais conhecimentos natildeo

passam de falsas evidecircncias do quotidiano E isto vale sobretudo para todos os tipos de

produccedilatildeo racional que satildeo consequecircncia da vaidade humana

Montaigne esforccedila-se por investigar as opiniotildees dos outros e isto motiva-o a

formular um pensamento mais pessoal preocupado com o que eacute justo e a expandir o

seu proacuteprio conhecimento relativo e precaacuterio As suas investigaccedilotildees natildeo satildeo dogmaacuteticas

e soacute o comprometem a ele proacuteprio Eacute um pensador que estaacute sempre em busca que natildeo

tem a presunccedilatildeo de querer saber tudo sobre todas as coisas Mas ao mesmo tempo

podemos dizer que eacute um pensador que descobriu num mundo marcado por tantas

conturbaccedilotildees graccedilas agraves suas proacuteprias experiecircncias uma consciecircncia real e soacutelida da sua

existecircncia concreta no mundo Este facto levou-o a assumir a atitude de natildeo querer

ensinar nem dirigir a vida de ningueacutem Vale a pena citar a este respeito um pequeno

trecho de um outro ensaio que Montaigne escreveu provavelmente na mesma eacutepoca da

ldquoApologierdquo e que reflecte claramente a posiccedilatildeo por ele assumida e que pode ser

classificada natildeo como a de um filoacutesofo profissional detentor de verdades que devem ser

ensinadas aos outros mas como a de algueacutem que estaacute sempre em busca e natildeo se inibe de

expressar as suas opiniotildees

ldquo[A] Je dy librement mon advis de toutes choses voire et de celles qui surpassent agrave ladventure ma suffisance et que je ne tiens aucunement estre de ma jurisdiction Ce que jen opine cest aussi pour declarer la mesure de ma veueuml non la mesure des chosesrdquo214

Montaigne renuncia a tarefa de querer provar atraveacutes da razatildeo humana aquilo

que estaacute em uacuteltima instacircncia no domiacutenio da feacute Ele eacute um homem que crecirc em Deus

ldquo[A] Il a laisseacute en ces hauts ouvrages le caractere de sa diviniteacute et ne tient quagrave nostre imbecilliteacute que nous ne le puissions descouvrirrdquo215

Uma quantidade importante de pessoas no mundo proclama a existecircncia de

Deus Mas este Deus natildeo pode ser conhecido racionalmente pelo homem

ldquoIl sen faut tant que nos forces conccediloivent la hauteur divine que des ouvrages de nostre createur ceux-lagrave portent mieux sa marque et sont mieux siens que nous entendons le moinsrdquo216

213 Cf Les Essais II 12 p 539 214 Les Essais II 10 p 410 215 Les Essais II 12 pp 446-447 216 Les Essais II 12 p 499

67

Relativamente agrave moral Montaigne sustenta a tese de que a razatildeo humana natildeo

tem o poder de determinar quais satildeo os bons e os maus costumes as boas e as maacutes leis e

normas para qualquer grupo social

Diante da leitura que fizemos da ldquoApologierdquo onde Montaigne apresenta uma

criacutetica destruidora agrave razatildeo tirando-lhe quase todos os atributos recebidos durante toda a

histoacuteria da filosofia podemos portanto perguntar-nos qual eacute o papel da razatildeo humana

A resposta a esta questatildeo eacute muito complexa A criacutetica montaigneana agrave razatildeo natildeo se

limitou a menosprezar a ciecircncia (filosofia) a ldquoteologia racionalistardquo e as suas pretensotildees

de querer dar explicaccedilotildees sobre questotildees de feacute e de religiatildeo atacou tambeacutem

profundamente o espiacuterito humano negando-lhe capacidades que na maioria das vezes

satildeo atributos da pretensatildeo humana Para ilustrar mais claramente esta ideia seraacute

interessante fazer referecircncia a uma passagem ceacutelebre do livro III na qual Montaigne

conta uma pequena histoacuteria de um escravo chamado Esopo

Conta-nos o autor que Esopo estava exposto agrave venda com dois outros escravos

Um comprador indagou de um deles que sabia fazer este para se valorizar contou mil

maravilhas (monts et merveilles) O segundo disse mais ainda Quando chegou a sua

vez Esopo respondeu ldquonada eles jaacute pegaram em tudo eles sabem tudordquo Montaigne

observa que verificou o mesmo nas escolas de filosofia A arrogacircncia o orgulho (fierteacute)

dos que atribuiacuteram ao espiacuterito humano a capacidade de tudo saber levou os outros a

afirmar por despeito ou contradiccedilatildeo que o espiacuterito natildeo era capaz de coisa alguma

Estes exaltavam ao extremo a ignoracircncia tal como aqueles glorificavam absurdamente a

ciecircncia De modo que natildeo haacute como negar que o homem eacute imoderado em tudo e soacute cessa

quando forccedilado pela capacidade de ir aleacutem217

Em suma a ldquoApologierdquo nos apresenta um questionamento profundo em relaccedilatildeo

a todo o tipo de conhecimento fundado na razatildeo Arruiacutena os fundamentos deste

conhecimento produzido pelos homens do saber doutos e filoacutesofos antigos A estes

ldquosaacutebiosrdquo em geral que pensavam ser possuidores da verdade Montaigne dirige uma

criacutetica iroacutenica

laquo [C] Fiez vous agrave vostre philosophie vantez vous davoir trouveacute la feve au gasteau [hellip] raquo218

217 Cf Les Essais II 11 p 1035 218 Les Essais II 12 p 516 Esta citaccedilatildeo faz referecircncia agrave tradiccedilatildeo de na Epifania compartilhar um bolo contendo uma fava quem recebesse a fatia laquo premiada raquo era chamado laquo o rei da fava raquo Tratava-se de algo que figuradamente garantia uma espeacutecie de vantagem

68

Bibliografia

1 - Obras de Michel de Montaigne

Les Essais eacutedition conforme au texte de lrsquoexemplaire de Bordeaux par Pierre Villey

reacuteeacutediteacute sous la direction et avec un preacuteface de V-L Saulnier augmenteacute en 2004 drsquoune

preacuteface et drsquoun suppleacutement de Marcel Conche Paris QuadriguePUF 2004 (ediccedilatildeo de

referecircncia no nosso estudo)

Essais Livre second eacutedition preacutesenteacutee eacutetablie et annoteacutee par Emmanuel Naya

Delphine Reguig-Naya et Alexandre Tarrecircte Paris () Gallimard 2009

2 Estudos sobre Montaigne

AA VV Le dictionnaire des Essais de Montaigne Paris ( ) Eacuteditions Leacuteo Scheer

2011

AA VV Montaigne et la reacutevolution Philosophique du XVI siegravecle Bruxelles Eacuteditions

de lrsquoUniversiteacute de Bruxelles 1992

AUREacuteLIO Diogo Pires Montaigne e Espinosa toleracircncia ceacuteptica e toleracircncia

racionalista In O Cepticismo e Montaigne Rui Bertrand Romatildeo (org) Covilhatilde

Universidade da Beira Interior 2003 pp 141-160

BIRCHAL Telma de Souza O eu nos Ensaios de Montaigne Belo Horizonte Editora

UFMG 2007

BIGNOTTO Newton ldquoMontaigne Renascentistardquo Kriterion Revista do Departamento

de Filosofia da UFMG Belo Horizonte XXXIII 86 agodez 1992 p 29-41

BUTOR Michel Essais sur les essais Paris Gallimard 1968

CATALAN Eacutetienne Eacutetudes sur Montaigne analyse de sa philosophie Paris Hellier

Fregraveres Librairie Religieuse 1846

CHAMPION Edme Introduction aux Essais de Montaigne Paris Armand Colin amp Cie

Eacutediteurs 1900

COMPAGNON Antoine Nous Michel de Montaigne Paris Seuil 1980

CONCHE Marcel Montaigne et la philosophie Paris Puf 1996

69

_____________ Montaigne ou la conscience heureuse Paris PUF 2009

DUARTE Tiago Barros Skepticism and religion in Michel de Montaigne two

interpretations of apology for Raymond Sebond Intuitio Porto Alegre V2 ndash Nordm 3

Novembro 2009 pp 298-307

FILHO Celso Martins Azar Montaigne e Soacutecrates cepticismo conhecimento e

virtude In Revista Portuguesa de Filosofia Tomo LVIII Fasc 4 2002

FRIEDRICH Hugo Montaigne Traduzido do alematildeo por Robert Rovini Paris

Gallimard 1967

GIOCANTI Sylvia Montaigne et les becirctes La becirctise et lrsquoanimal dans les Essais de

Montaigne Universiteacute de Toulouse-II Le Mirail UMR 5037 (ENS-Lyon) 2011

HENDRICK Philip Montaigne and Sebond scepticism faith and imagination In O

Cepticismo e Montaigne Rui Bertrand Romatildeo (org) Covilhatilde Universidade da Beira

Interior 2003 pp 83-102

JEANSON Franccedilois Montaigne par lui-mecircme Paris Seuil 1951

LACOUTURE Jean Montaigne agrave cheval (Montaigne a cavalo) Traduzido por F

Rangel Rio de JaneiroSatildeo Paulo Editora Record 1998

LANUSSE Maxime Montaigne Paris Lecegravene Oudin et Cie Eacutediteurs 1895

LEVEAUX Alphonse Eacutetude sur les Essais de Montaigne Paris Henri Plon

Imprimeur-Eacutediteur 1870

MATHIEU-CASTELLANI Gisegravele Montaigne ou la veacuteriteacute du mensonge Genegraveve

Droz 2000

MONSIEUR L Le chistianisme de Montaigne Paris Imprimerie de Demonville 1819

_______ Montaigne lrsquoeacutecriture de lrsquoessai Paris PUF 1988

NAKAM Geacuteranrd Montaigne et son temps Paris Gallimard 1993

RIGOLOT Franccedilois Le texte de la renaissance des rheacutetoriqueurs agrave Montaigne

Genegraveve Droz 1982

_______ Les meacutetamorphoses de Montaigne Paris PUF 1988

RIVELINE Maurice Montaigne et lrsquoamitieacute Paris Librairie Feacutelix Alcan 1939

70

71

ROMAtildeO Rui Bertrand A apologia na balanccedila a reinvenccedilatildeo do pirrorismo na

Apologia de Raimundo Sabunde de Michel de Montaigne Lisboa Imprensa Nacional

Casa da Moeda 2007

SANTI Pedro Luiz Ribeiro de Montaigne e a reflexatildeo moral no seacuteculo XVI In Revista

Olhar ano 04 nordm 7 jan-jun 03 pp 76-85

STAROBINSKI Jean Montaigne en mouvement Paris Gallimard 1982

STROWSKI Fortunat Montaigne Paris Feacutelix Alcan Eacutediteurs 1906

VERDAN Andreacute Le scepticisme philosophique Paris-Montreacuteal Bordas 1971

VILLEY Pierre Les sources et lrsquoeacutevolution des essais de Montaigne Tome Premier

Paris Librairie Hachete 1908

______ Les sources et lrsquoeacutevolution des essais de Montaigne Tome Second Paris

Librairie Hachete 1908

______ Montaigne devant la posteacuteriteacute Paris Ancienne Librairie Furne ndash Boivin et Cie

Eacutediteurs 1935

WEILLER Maurice Pour connaitre la penseacutee de Montaigne Paris Bordas 1948

3 ndash Outras obras citadas

ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Livro I e II Traduccedilatildeo do grego por Vicenzo Coceo

Coleccedilatildeo Os Pensadores Satildeo Paulo Abril S A Cultural 1984

CASSIRER Ernst An essay on man Traduccedilatildeo portuguesa de Carlos Branco Ensaio

sobre o homem Lisboa Guimaratildees Editores 1995

Nouveau Testament Traduction Oecumeacutenique de la Bible Paris PUF 1977

SEXTUS EMPIRICUS Les hipotiposes ou instituitions pirroniennes Trad do grego

por Claude Huart Amsterdam Barbier MDCC XXV

AA VV Histoacuteria das sociedades das sociedades modernas agraves sociedades atuais Rio

de Janeiro Ao Livro Teacutecnico 1983

  • IacuteNDICE
Page 4: MARÇO DE 2012

THE CRITIQUE OF REASON IN MICHEL DE MONTAIGNE

FLORIVALDO FLORIANO FERREIRA

ABSTRACT

The following thesis is an interpretation and comment of the chapter ldquoAn Apology for Raymond Sebondrdquo book II chapter 12 by Michel de Montaigne It presents a critique of the reason the author approached Using as a pretext to defend the ideas of Sebond who in his work Teologia naturalis that the author had translated from Latin into French that identified the fundamentals of faith in reason and put man on the first level of creation the essayist presents in fact a very personal idea He refuses to empower reason and places man on the same level as animals He supports the argument that reason is not superior contradicting in this way the entire philosophical tradition which placed all its trust on reason most importantly as an instrument to acquire knowledge

This thesis is structured in four parts The first briefly approaches the anthropological idea that underlies in ldquoApologyrdquo the second aims to understand more profoundly the reasons that determined the author to critique the reason that is instrumental in the justification of the so-called religious truths The third part deals with a critique of the science which is discussed in the essay where the author wants to overthrow the foolish vanity and shake the foundations on which are built the false ideas produced by science In the fourth and last part the thesis approaches the idea of the impossibility to formulate based on reason a set of norms rules and laws with objective validity for any human group

KEYWORDS Apology scepticism Essais man Montaigne reason

4

IacuteNDICE

Introduccedilatildeo 6

1 A ideia do homem na ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo 9

2 A criacutetica agrave razatildeo humana e a questatildeo da religiatildeo 19

3 A criacutetica agrave razatildeo e sua relaccedilatildeo com a ciecircncia 35

4 A criacutetica agrave razatildeo humana e o relativismo da moral 52

Consideraccedilotildees finais 64

Bibliografia 69

5

Introduccedilatildeo

O tema da razatildeo eacute muito caro a Montaigne e central na sua obra No presente

trabalho pretende-se abordaacute-lo a partir da ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo que faz

parte do segundo livro dos Essais Trata-se de um ensaio que eacute unanimemente

reconhecido como sendo uma das referecircncias mais importantes para quem pretenda

compreender em profundidade os aspectos mais relevantes da criacutetica ceacuteptica agrave razatildeo

humana desenvolvida por Montaigne

Com o pretexto de defender as ideias de Sebond1 Montaigne apresenta de facto

um pensamento totalmente pessoal independente do de Sebond Em vez de responder

agraves diversas objeccedilotildees dos adversaacuterios da Theologia naturalis Montaigne questiona de

uma forma muito incisiva o poder da razatildeo e ldquopotildee em xequerdquo este suposto poder A

criacutetica por ele desenvolvida natildeo se limitou a rebaixar a filosofia ldquoprofissionalrdquo a

suspeitar de todo o conhecimento produzido pela ciecircncia mas atacou tambeacutem

duramente a pretensatildeo humana de tudo querer conhecer atraveacutes da razatildeo pretensatildeo que

se estende inclusivamente a Deus atraveacutes das grandes construccedilotildees racionais da teologia

Como veremos a razatildeo natildeo tem para Montaigne um valor supremo nem eacute sinal de

absoluta superioridade Os limites do poder da razatildeo satildeo tatildeo evidentes que se

manifestam inclusivamente na incapacidade da razatildeo de raciocinar sobre si mesma

ldquo[A] Par ougrave la voulons nous mieux esprouver que par elle mesme Srsquoil ne la faut croire parlant de soy agrave peine sera-elle propre agrave juger des

1 Trata-se de Raymond Sebond Da vida de Sebond sabe-se muito pouco como diz Montaigne ldquo[A] tout ce que nous sccedilavons cest quil estoit Espaignolrdquo (Les Essais II 12 p 440) Especula-se que nasceu em 1385 em Barcelona Diz-se tambeacutem que foi estudante na universidade de Toulouse e que foi reitor daquela universidade Morreu em Toulouse em 1436 onde ensinava medicina e teologia Sua obra magna ldquoTheologia naturalis sive Liber creaturarumrdquo (Teologia natural ou livro das criaturas) escrita em 1434-1436 e publicada em 1487 foi reimpressa vaacuterias vezes ateacute aos meados do seacuteculo XVII Esta obra foi traduzida por Montaigne em 1569 a pedido de seu pai Pierre Eyquem senhor de Montaigne e antigo presidente da Cacircmara Municipal de Bordeaux que se interessava muito por ela conforme atestam os primeiros paraacutegrafos da ldquoApologierdquo Esta traduccedilatildeo foi o primeiro trabalho publicado e o que o lanccedilou no mundo literaacuterio ldquo[A] Je trouvay belles les imaginations de cet autheur la contexture de son ouvrage bien suyvie et son dessein plein de pieteacuterdquo (Les Essais II 12 p 440) Para as citaccedilotildees e referecircncias dos Ensaios utilizaremos a ediccedilatildeo de Villey-Saulnier Paris PUFQUADRIGE 2004 As citaccedilotildees seratildeo feitas da seguinte forma o nuacutemero em algarismos romanos indica o livro o primeiro nuacutemero em araacutebicos o capiacutetulo e o segundo nuacutemero em araacutebicos a paacutegina da ediccedilatildeo Les Essais foram publicados pela primeira vez em 1580 e eram constituiacutedos por dois livros apenas Pouco depois Montaigne fez vaacuterios acreacutescimos nestes livros e compocircs um terceiro e fez uma nova ediccedilatildeo em 1588 Em 1592 o autor morre e deixa um exemplar com vaacuterias adiccedilotildees manuscritas o chamado ldquoexemplar de Bordeauxrdquo destinado a uma nova ediccedilatildeo dos Essais Indicaremos as trecircs ldquocamadasrdquo do texto com as letras A (Ediccedilatildeo de 1580) B (Ediccedilatildeo de 1588) e C (adiccedilotildees posteriores a 1588 feitas ao exemplar de Bordeaux)

6

choses estrangeres si elle connoit quelque chose aumoins sera ce son estre et son domicile [hellip] la vraye raison et essentielle de qui nous desrobons le nom agrave fauces enseignes elle loge dans le sein de Dieu [hellip]rdquo2

Compreender as razotildees do cepticismo de Montaigne significa antes de mais

aprofundar os aspectos mais marcantes da sua antropologia Por isso comeccedilaremos por

abordar ainda que de forma breve a concepccedilatildeo antropoloacutegica que estaacute subjacente na

ldquoApologierdquo Com efeito a razatildeo ndash esse grande motivo de orgulho do homem e que eacute

considerada como um sinal da sua participaccedilatildeo no ser ndash passa a ser concebida por

Montaigne como um mero fruto da pretensatildeo e vaidade humanas para explicar crenccedilas

costumes etc Entre os alvos da criacutetica de Montaigne encontram-se aquelas teorias que

potildeem o homem no ldquotopo da piracircmiderdquo das criaturas do universo Enquanto Sebond

coloca o homem no topo da escala dos seres Montaigne recoloca-o no seio da natureza

e rebaixa-o ao niacutevel dos animais

Pretendemos deste modo compreender melhor as razotildees do ldquodestronamentordquo

realizado por Montaigne deste ser ldquotodo-poderosordquo que eacute o homem Ou o que eacute o

mesmo pretendemos compreender o ldquocepticismo da razatildeordquo que Montaigne assume

conscientemente com o intuito de rejeitar a pretensatildeo do homem de se considerar pela

interposiccedilatildeo da razatildeo no centro do universo

Em segundo lugar para compreender o lugar e o valor da razatildeo na obra de

Montaigne seraacute necessaacuterio investigar os motivos que levaram o autor a tecer uma

criacutetica tatildeo contundente da razatildeo humana aprofundando em concreto as relaccedilotildees que

esta criacutetica tem com a sua anaacutelise da religiatildeo Haacute que ter em conta no entanto que a

atitude de desconfianccedila da razatildeo natildeo conduziu Montaigne a pocircr em causa a feacute cristatilde

dado que em seu entender esta se situa num plano diferente natildeo sendo portanto

susceptiacutevel de ataque pelo seu espiacuterito criacutetico

A pertinecircncia desta questatildeo ressalta quando se tem em conta que o autor inicia o

seu texto a partir de uma motivaccedilatildeo teoloacutegica podemos conhecer racionalmente Deus

Montaigne dedica um nuacutemero significativo de paacuteginas a mostrar que os atributos

divinos natildeo satildeo alcanccedilaacuteveis pelos exerciacutecios racionais dos homens detentores das

ldquoverdades filosoacuteficasrdquo Como fideiacutesta Montaigne pensa que a verdade em religiatildeo se

baseia em uacuteltima instacircncia na feacute e natildeo no raciociacutenio ou na demonstraccedilatildeo Pretende-se

2 Les Essais II 12 p 541

7

compreender neste ponto com faz Montaigne a transiccedilatildeo da criacutetica teoloacutegica agrave criacutetica do

conhecimento em geral

Na mesma linha de compreensatildeo dos limites da razatildeo seraacute importante

aprofundar num terceiro momento a criacutetica da ciecircncia desenvolvida por Montaigne na

ldquoApologierdquo Montaigne quer derrubar a tola vaidade e sacudir viva e corajosamente os

fundamentos ridiacuteculos como ele mesmo diz sobre os quais se constroem as falsas

ideias produzidas pela ciecircncia

Encontramos tambeacutem nesta parte um nuacutemero significativo de citaccedilotildees de

filoacutesofos antigos que Montaigne referencia para justificar a sua criacutetica radical agrave ciecircncia

Para ele os mais famosos filoacutesofos representantes do saber humano natildeo conseguiram

dar as verdadeiras respostas agraves questotildees fundamentais do ser humano Quais satildeo as

verdades as certezas sobre o homem e sobre Deus que esses saacutebios filoacutesofos nos

legaram

Em quarto e uacuteltimo lugar seraacute importante considerar de que modo Montaigne

relaciona a razatildeo humana e a moral Naturalmente natildeo seraacute possiacutevel considerar

detidamente o tema da moral na ldquoApologierdquo trata-se apenas de procurar perceber por

que razatildeo o autor ldquodecretardquo a impossibilidade de fundamentar na razatildeo um conjunto de

regras normas e leis que dizem respeito agrave vida praacutetica de qualquer grupo humano

Procurar-se-aacute reconstituir os vaacuterios argumentos de Montaigne que justificam a sua

tomada de posiccedilatildeo relativista no acircmbito da moral

8

1 A ideia do homem na ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo

Quando nos colocamos diante do desafio de estudar os Essais de Michel de

Montaigne uma questatildeo que importa perceber melhor eacute o periacuteodo no qual o autor

escreveu a sua obra Mais especificamente estudar o humanismo renascentista tendo

em vista que o autor dos Essais eacute considerado como um pensador deste periacuteodo

Abordaremos no entanto apenas alguns aspectos importantes daquela eacutepoca

Montaigne viveu num periacuteodo em que emergia uma nova visatildeo do mundo em

que o homem passou a ser o centro das atenccedilotildees em todos os aspectos O geocentrismo

medieval que centrava suas atenccedilotildees na relaccedilatildeo com Deus foi substituiacutedo pela

glorificaccedilatildeo do humano As pessoas interessadas nesta ruptura com os ideais medievais

buscavam inspiraccedilatildeo nas obras greco-romanas para representarem o seu proacuteprio mundo

O humanismo renascentista concebe-se como um movimento intelectual de

valorizaccedilatildeo da antiguidade claacutessica Natildeo se tratava poreacutem apenas de copiar as

realizaccedilotildees do classicismo greco-romano Este movimento representou algo que pode

ser considerado como uma ldquoglorificaccedilatildeo do homemrdquo agora colocado no centro de todas

as indagaccedilotildees e preocupaccedilotildees consistia em sentido amplo numa tomada de posiccedilatildeo

antropocecircntrica em reacccedilatildeo ao teocentrismo que imperava na Idade Meacutedia

Os humanistas deixaram de aceitar os valores e maneiras de ser e viver da Idade

Meacutedia Por conseguinte o interesse pela antiguidade experimenta-se como um meio

para atingir um fim Os humanistas viam na antiguidade

ldquo[hellip] aquilo que correspondia aos desejos que sentiam [hellip] Pretendiam encontrar nos antigos o Homem considerado como o ser geral impessoal universal que existe sob a mesma forma em toda parte [hellip] O humanismo eacute uma teacutecnica da vida cotidianardquo3

A produccedilatildeo intelectual deste periacuteodo concebia-se natildeo como um retorno ao

passado mas como uma tentativa de buscar nos claacutessicos greco-romanos uma fonte de

inspiraccedilatildeo O humanismo renascentista aleacutem de representar uma forte reacccedilatildeo a todos

os padrotildees culturais medievais escolaacutesticos tendeu tambeacutem fortemente a contrapor a feacute

e a razatildeo

Na sua globalidade a reflexatildeo dos Essais tem como um dos seus objectivos

principais a caracterizaccedilatildeo do homem Nesta perspectiva Michel de Montaigne se

3 AA VV Histoacuteria das sociedades das sociedades modernas agraves sociedades atuais Rio de Janeiro Ao Livro Teacutecnico 1983 p 70

9

apresenta como um pensador humanista que viveu numa altura em que a visatildeo

antropocecircntrica era dominante No entanto ele procurou superar esta concepccedilatildeo de uma

maneira muito particular A concepccedilatildeo antropoloacutegica claacutessica renascentista enaltecia

radicalmente a ldquodignitas hominisrdquo4 colocando o homem no centro do universo

Montaigne assume uma postura significativamente diferente do espiacuterito humanista

renascentista despreza o tema da dignitas hominis e dedica-se agrave investigaccedilatildeo das coisas

concretas da vida

O humanismo de Montaigne ao contraacuterio do humanismo dominante alicerccedila-se

na ldquomiseria hominisrdquo5 Parte de plena consciecircncia dos limites da razatildeo humana no

sentido de que as suas faculdades natildeo tecircm condiccedilotildees para transcender estes mesmos

limites A razatildeo o grande orgulho do homem eacute concebida como uma estrateacutegia de

racionalizaccedilatildeo dos vaacuterios elementos da vida (costumes crenccedilas etc) que procura

transformar atribuindo-lhe uma verdade que natildeo consegue transcender a contingecircncia

Potildee-se assim em destaque ateacute que ponto a posiccedilatildeo de Montaigne contrasta com a visatildeo

de ldquodignitas hominisrdquo acima referida a mais comummente assumida na sua eacutepoca Para

ele o homem soacute pode ser o que eacute e imaginar de acordo com a sua medida

ldquo[C] Tout contentement des mortels est mortel [A] La reconnoissance de nos parens de nos enfants et de nos amis si elle nous peut toucher et chatouiller en lrsquoautre monde si nous tenons encore agrave un tel plaisir nous sommes dans les commoditez terrestres et finies Nous ne pouvons dignement concevoir la grandeur de ces hautes et divines promesses si nous les pouvons aucunement concevoir pour dignement les imaginer il

4 Para ilustrar as principais caracteriacutesticas desta concepccedilatildeo vale a pena citar um texto muito conhecido de um dos maiores representantes do humanismo renascentista Pico della Mirandola O texto em causa pode ser considerado como uma espeacutecie de manifesto do pensamento humanista renascentista em geral Pico exalta o homem entre todos os seres da natureza e dos ceacuteus como um ser potencialmente capaz de auto-criar-se de auto-projectar-se e de modelar-se a si mesmo com liberdade Pico ldquocoloca na boca de Deusrdquo algumas palavras endereccediladas imaginativamente ao homem receacutem-criado (Adatildeo) ldquo[hellip] Medium te munde posui ut circumspiceres inde commodius quicquid est in mundo Nec te caelestem neque terrenum neque mortalem neque immortalem fecimus ut tui ipsius quasi arbitrarius honorarius que plastes et fictor in quam malueris tute formam effingas Poteris in inferiora quae sunt bruta degenerare poteris in superiora quae sunt divina ex tui animi sententia regenerarirdquo (Coloquei-te no meio do mundo para que daiacute possas olhar melhor tudo o que haacute no mundo Natildeo te fizemos celeste nem terreno nem mortal nem imortal a fim de que tu aacuterbitro e soberano artiacutefice de ti mesmo te plasmasses e te informasses na forma que tivesses seguramente escolhido Poderaacutes degenerar ateacute aos seres que satildeo as bestas poderaacutes regenerar-te ateacute agraves realidades superiores que satildeo divinas por decisatildeo do teu acircnimo) In Pico de la Mirandola Giovanni Oratio de Hominis Dignitate Ediccedilatildeo bilingue Traduccedilatildeo e introduccedilatildeo de Maria de Lurdes Sirgado Ganho Lisboa Ediccedilotildees 70 2001 pp 56-57) 5Para uma apresentaccedilatildeo sinteacutetica e clara deste tema pode-se consultar Friedrich Hugo Montaigne Traduzido do alematildeo por Robert Rovini Paris Gallimard 1967 sobretudo as paacuteginas 133-136 Nesta mesma perspectiva na obra de Rui Bertrand Romatildeo A Apologia na balanccedila a reinvenccedilatildeo do pirronismo na Apologia de Raimundo Sabunde de Michel de Montaigne Lisboa Imprensa Nacional Casa da Moeda 2007 haacute uma reflexatildeo que merece ser lida (pp 79-82)

10

faut les imaginer inimaginables indicibles incomprehensibles [C] et parfaictement autres que celles de nostre miserable experiencerdquo6

Constatando esse limite da razatildeo humana Montaigne combate decididamente as

concepccedilotildees da ldquodignitas humanisrdquo que tecircm como escopo transformar o homem no fim

uacuteltimo da natureza Montaigne ao voltar-se para o homem concreto ao rebaixaacute-lo e

tiraacute-lo do seu pedestal na ldquoApologierdquo assume uma atitude ceacuteptica entendida como

uma forma de pensamento capaz de seguir a mudanccedila e de rejeitar ao mesmo tempo a

pretensatildeo do homem de se considerar por via da razatildeo no centro do universo

Cabe entatildeo perguntar seraacute que o homem ocupa realmente um lugar central nos

Essais A resposta a esta questatildeo eacute expressa de maneira bastante niacutetida na proacutepria

obra Friedrich no seu conhecido trabalho sobre Montaigne afirma

ldquo[A] On peut ouvrir les Essais ougrave lrsquoon veut toujours ils traitent de lrsquohommerdquo7

Haacute muitos outros temas desenvolvidos nos Essais Basta lanccedilar um raacutepido olhar

sobre os tiacutetulos dos vaacuterios ensaios que compotildeem os trecircs livros da obra para constatar a

quantidade enorme de assuntos tratados por Montaigne

Na sua busca incessante de resposta agrave questatildeo central antes referida merece ser

destacado o contacto de Montaigne com a obra de Sebond Theologia Naturalis que seraacute

a base da ldquoApologierdquo Entre muitas outras questotildees desenvolvidas nesta obra o teoacutelogo

catalatildeo tem como objectivo importante responder agrave questatildeo o que eacute o homem Citando

o proacuteprio Sebond Rui Bertrand Romatildeo afirma que haacute uma ideia baacutesica de ordem

hieraacuterquica observada na scala naturale em todos os seus 4 degraus

ldquoNo inferior estatildeo as coisas apenas providas de ser as coisas minerais no segundo as que tecircm ser e vida as vegetais no terceiro as animais em que ao ser e agrave vida se juntam os sentidos no uacuteltimo encontra-se a criatura humana acima da qual natildeo haacute na natureza nenhum outro ser pois o homem possui as qualidades de todas as demais criaturas simultaneamente e em conjunto tendo aleacutem delas a razatildeo e o livre-arbiacutetrio [hellip]rdquo8

Continua o autor mais adiante

ldquo[hellip] A caracteriacutestica dominante da teologia de Sebond consiste precisamente no lugar privilegiado que nela ocupa a referecircncia do homem natildeo apenas como objecto de conhecimento mas como meio da

6 Les Essais II 12 p518 7 Friedrich op cit p 105 8 Romatildeo Rui Bertrand op cit p 90

11

obtenccedilatildeo deste A reflexatildeo antropoloacutegica polariza o seu pensamento filosoacutefico e lhe contamina o sistema teoloacutegicordquo9

Eacute importante destacar aqui uma ideia desenvolvida por Ernst Cassirer na sua

obra Ensaio sobre o Homem10 Segundo este autor a questatildeo acerca do homem no

periacuteodo renascentista depara-se com a descoberta de um novo instrumento de

pensamento entra em cena o espiacuterito cientiacutefico no sentido moderno da palavra O que

agora se procura eacute uma teoria geral do homem baseada em observaccedilotildees empiacutericas e em

princiacutepios loacutegicos gerais A nova cosmologia o sistema heliocecircntrico copernicano

passa a ser a uacutenica base satilde e cientiacutefica para uma nova antropologia Nem a metafiacutesica

claacutessica nem a religiatildeo (com a sua estrutura teoacuterica fundada na teologia medieval)

estavam preparadas para esta tarefa lembra o autor Estas duas cosmologias concebem

o universo como uma ordem hieraacuterquica em que o homem ocupa o lugar mais alto A

pretensatildeo humana de ser o centro do universo perdeu o seu fundamento Cassirer afirma

ainda que o sistema de Copeacuternico se tornou um dos mais fortes instrumentos do

cepticismo filosoacutefico que se desenvolveu no seacuteculo XVI

Montaigne sendo um pensador livre que conseguiu libertar-se da concepccedilatildeo

antropoloacutegica medieval e renascentista tambeacutem natildeo necessitou de recorrer agraves ideias

cientiacuteficas vigentes na altura da redacccedilatildeo dos Essais Isto natildeo significa que tenha

ignorado por completo a teoria heliocecircntrica de Copeacuternico mas sim que como escreve

Conche

ldquoIl nrsquoa pas eu besoin de Copernic pour trouver ridicule la preacutetension de lrsquohomme de se faire centre du cosmos11

Antes de iniciar o seu longo relato (de mais ou menos uma meia centena de

paacuteginas) no qual compara os homens aos animais Montaigne faz uma afirmaccedilatildeo de

capital importacircncia que serve como uma espeacutecie de conclusatildeo antecipada daquilo que

afirma negativamente sobre o homem e sua relaccedilatildeo com o universo

ldquo[A] La presomption est nostre maladie naturelle et originelle La plus calamiteuse et fraile de toutes les creatures crsquoest lrsquohomme et quant et quant la plus orgueilleuse Elle se sent et se void logeacutee icy parmy la bourbe et le fient du monde attacheacutee et cloueacutee agrave la pire plus morte et croupie parti de lrsquounivers au dernier estage du logis et le plus esloigneacute de la voute celeste avec les animaux de la pire condition des trois (Les aeacuteriens les aquatiques et les terrestres) et se va plantant par

9 Idem p 113 10 Cassirer Ernst An essay on man Traduccedilatildeo portuguesa de Carlos Branco Ensaio sobre o homem Lisboa Guimaratildees Editores 1995 p24 11 Conche Marcel Montaigne et la philosophie Paris Puf 1996 p 7

12

imagination au dessus du cercle de la Lune et ramenant le ciel soubs ses pieds Crsquoest par la vaniteacute de cette mesme imagination qursquoil srsquoegale agrave Dieu qursquoil srsquoattribue les conditions divines qursquoil se trie soy mesme et separe de la presse des autres creatures taille les parts aux animaux ses confreres et compaignons et leur distribue telle portion de facultez et de forces que bon luy semble Comment cognoit il par lrsquoeffort de son intelligence les branles internes et secrets des animaux par quelle comparaison drsquoeux agrave nous conclue il la bestise qursquoil leur attribue [C] Quand je me joueuml agrave ma chatte qui sccedilait si elle passe son temps de moy plus que je ne fay drsquoellerdquo12

O homem quer ser senhor de todo o universo A sua atitude de querer ser uma

excepccedilatildeo na natureza natildeo passa de uma atitude ilusoacuteria O homem eacute segundo

Montaigne uma criatura como as outras que pode ser diferenciada natildeo pela capacidade

de raciocinar mas apenas pela presunccedilatildeo de querer destacar-se orgulhosamente

tornando-se ldquoo todo-poderosordquo face agraves outras criaturas Esta sua pretensatildeo de querer ser

a uacutenica criatura que pode conhecer e dominar o universo eacute radicalmente contestada por

Montaigne na ldquoApologierdquo Eacute com muita clarividecircncia que Conche reflectindo sobre

este tema afirma

ldquoOn voit pourquoi Montaigne srsquoefforce de retrouver chez lrsquoanimal ldquointelligencerdquo ldquodiscreacutetionrdquoldquojugementrdquoldquoratiocinationrdquo capaciteacute de ldquoconsulterrdquo de ldquoconcluirrdquo ldquoscience et prudencerdquo 13

Que tipo de competecircncia nossa natildeo reconhecemos nos actos dos animais Esta

questatildeo fundamental leva Montaigne a apresentar os seus relatos anedoacuteticos14 O

interesse da sua apologia dos animais eacute ldquo[hellip] paradoxalment lrsquohomme Montaigne

recherche lrsquohomme dans lrsquoanimal [hellip] crsquoest pour lutter contre lrsquoanthropocentrismerdquo15

Montaigne inicia a sua exposiccedilatildeo perguntando-se

ldquo[A] Est-il police regleacutee avec plus drsquoordre diversifieacutee agrave plus de charges et drsquooffices et plus constamment entretenueuml que celle des mouches agrave mielrdquo16

E faz questatildeo tambeacutem de descrever o engenho das andorinhas ao construiacuterem os

seus alojamentos e das aranhas ao confeccionarem as suas teias Diante destas obras

destes pequeninos animais Montaigne observa

12 Les Essais II 12 p 452 13 Conche Marcel Montaigne et la philosophie Paris Puf 1996 p 9 14 ldquoFidegravele aux proceacutedeacutes de compilation de son temps Montaigne accumule les exemples emprunteacutes agrave Pline agrave Plutarque agrave Arrien agrave Aulu-Gelle agrave Lucregravece agrave Virgile agrave Sextus Epiricusrdquo (cf Weiler Maurice Pour connaitre la penseacutee de Montaigne Bordas 1948 p 38) 15 Giocanti Sylvia Montaigne et les becirctes la becirctise et lrsquoanimal dans Les Essais de Montaigne Universiteacute de Toulouse 2011 p 1 16 Les Essais II 12 pp 454-455

13

ldquo[A] Nous reconnoissons assez en la pluspart de leurs ouvrages combien les animaux ont drsquoexcellence (supeacuterioriteacute) au dessus de nous et combien nostre art est foible agrave les imiterrdquo17

Quanto agrave capacidade de comunicaccedilatildeo Montaigne afirma que os animais

possuem este atributo Falamos com os catildees18 e eles respondem-nos Eacute evidente que

utilizamos uma outra linguagem para conversarmos com eles Montaigne observa que

tambeacutem entre noacutes humanos haacute diferenccedilas de linguagem de acordo com a diferenccedila de

regiotildees Estas diferenccedilas tambeacutem se encontram nos animais da mesma espeacutecie19

Segundo o nosso autor haacute certamente uma diferenccedila de ordem e de grau entre os

homens e os animais contudo ldquo[A] crsquoest soubs le visage drsquoune mesme naturerdquo20 Ao

constatar a peculiaridade do homem em face das outras criaturas Montaigne destaca o

facto de que o homem eacute detentor da liberdade de imaginaccedilatildeo No entanto

ldquo[A] ce desresglement de penseacutees luy representant ce qui est ce qui nrsquoest pas et ce qursquoil veut le faux et le veritable crsquoest un advantage qui luy est bien cher vendu et duquel il a bien peu agrave se glorifier car de lagrave naist la souce principale des maux qui le pressent pecheacute maladie irresolution (inconstance) trouble desespoirrdquo 21

Citando Lucreacutecio22 Montaigne deixa transparecer que o homem se prejudica a si

mesmo porque natildeo se manteacutem dentro dos limites da organizaccedilatildeo da natureza que se

manifesta de uma maneira inteligiacutevel e agraves vezes ateacute hostil submetendo o homem agrave

necessidade de leis que natildeo lhe satildeo suficientemente claras23

17 Les Essais II 12 p455 18 Les Essais II 12 p 458 19 Les Essais II 12 pp 458-459 20 Les Essais II 12 p459 21 Les Essais II 12 p 460 22ldquo[B] ldquores quaeque suo ritu procedit et ommes Foedere naturae certo discrimina servantrdquo (Chaque chose se deacuteveloppe agrave sa maniegravere et toutes conservent les diffeacuterences eacutetablies par lrsquoordre immuable de la nature) Cf Les Essais II 12 p 459 23 Expressando a sua visatildeo da natureza Montaigne observa que ao considerar que ela nos criou diferentes dos outros animais isto eacute nus sobre a terra nua atados cercados natildeo tendo com que armar-nos cobrir-nos [hellip] somos tentados a chamaacute-la de ldquotregraves injuste maracirctrerdquo Mas isto natildeo eacute assim A nossa organizaccedilatildeo do mundo natildeo eacute tatildeo disforme e desregrada A natureza abraccedilou universalmente todas as suas criaturas e natildeo haacute nenhuma que ela tenha provido plenamente de todos os meios necessaacuterios para a conservaccedilatildeo da existecircncia ldquo[C] crsquoest une mesme nature qui roule son coursrdquo(cf Les Essais II12 p467) Reflectindo sobre o tema da natureza nos Essais Pierre Villey afirma que ela se opotildee essencialmente agrave razatildeo humana e eacute natural tudo o que a razatildeo natildeo contaminou Afirma Villey ldquo[hellip] crsquoest chez les animaux et chez les sauvages qursquoon trouve les traces les moins corrompues de la nature Lrsquoeacutetat de nature dans cette conception radicale crsquoest lrsquoeacutetat de sauvagerie [hellip] Lrsquoadmiration pour les andiens crsquoest la forme paradoxale que prend chez lui de temps agrave autre son principe drsquoimitation de la naturerdquo (In Villey Pierre Les sources et lrsquoeacutevolution des essais de Montaigne - Tome second Paris Librairie Hachete 1908 p228) Isto natildeo quer dizer que devamos imitar os indiacutegenas por exemplo em todos os seus costumes tradiccedilotildees etc

14

Continuando a apologia dos animais Montaigne sugere que concebamos que os

animais natildeo obedecem a instintos de uma forma cega O relato que apresenta da raposa

da Traacutecia24 eacute um dos seus exemplos claacutessicos neste sentido Antes de se arriscar sobre a

aacutegua gelada a raposa aproxima o ouvido do gelo para ouvir de que profundidade sobre

o murmuacuterio da aacutegua a correr em baixo isto eacute ela ldquoraciocinardquo como fariacuteamos noacutes em

idecircnticas circunstacircncias o que faz barulho mexe o que mexe natildeo estaacute gelado o que natildeo

estaacute gelado eacute liacutequido e o liacutequido cede sob o peso Segundo Montaigne atribuir isto

simplesmente a uma vivacidade do sentido da audiccedilatildeo sem raciociacutenio e sem conclusatildeo

eacute uma quimera inconcebiacutevel

Segundo Montaigne natildeo eacute soacute o homem que sabe escolher o que eacute bom e o que

natildeo eacute bom para a sua vida e sobretudo para o socorro nas doenccedilas atraveacutes da ciecircncia e

do conhecimento construiacutedos por arte e por raciociacutenio

ldquo[A] Et quand nous voyons les chevres de Candie si elles ont receu un coup de traict aller entre un million drsquoherbes choisir le dictame pour leur guerison et la tortue quand elle a mangeacute de la vipere chercher incontinent de lrsquooriganum pour se purger et le dragon fourbir et esclairer ses yeux avecques du fenouil les cigouignes se donner elles mesmes des clysteres agrave tout de lrsquoeau de marine [hellip] pourquay ne disons nous de mesmes que crsquoest science et prudencerdquo25

Eacute faacutecil ver aqui quanto Montaigne deseja que o homem reconheccedila que os

animais possuem tambeacutem ciecircncia e sabedoria Em seu entender os animais tambeacutem satildeo

capazes de ser instruiacutedos agrave moda humana

ldquo[A] Les merles les corbeaux les pies les parroquets nous leur aprenons agrave parler [hellip] ils ont un discours au dedans qui les rend ainsi disciplinables et volontaires agrave aprendrerdquo26

Muitos animais aproximam-se da capacidade do homem e isto leva Montaigne a

afirmar

ldquo[A] qursquoil se trouve plus de difference de tel homme agrave tel homme que de tel animal agrave tel hommerdquo27

Podemos encontrar na ldquoApologierdquo muitos outros exemplos em que Montaigne

defende a ideia de que os animais possuem diversas capacidades semelhantes agraves dos

humanos28 Uma vez numerados todos estes atributos dos animais Montaigne afirma

24 Les Essais II 12 p 460 25 Les Essais II 12 pp 462-463 26 Les Essais II 12 p 463 27 Les Essais II 12 p 466

15

ldquo[A] La maniegravere de naistre drsquoengendrer nourrir agir mouvoir vivre et mourir des bestes estant si voisine de la nostre tout ce que nous retranchons de leurs causes motrices et que nous adjoustons agrave nostre condition au dessus de la leur cela ne peut aucunement partir du discours de nostre raisonrdquo29

Pierre Villey ao reflectir sobre estas comparaccedilotildees suscita uma questatildeo

relevante que natildeo eacute possiacutevel ignorar

ldquo[hellip] quand il exalte lrsquointeligence des animaux on peut se demander ce qursquoil en pense au justerdquo30

Natildeo querendo entrar na discussatildeo deste assunto - ateacute porque o proacuteprio

Montaigne natildeo o fez - eacute importante notar que se estes relatos montaigneanos fossem

tomados agrave letra natildeo nos faltariam motivos de troccedila Poderiacuteamos duvidar de muitas

afirmaccedilotildees acerca dos animais apresentadas por ele Fazendo um esforccedilo por deixar agrave

margem os exageros o humor e a liberdade literaacuteria do autor ndash que tecircm como objectivo

rebaixar o homem recolocando-o entre os animais e mostrando-lhe que a sua razatildeo

grande motivo de orgulho natildeo lhe garante um lugar no topo da piracircmide das criaturas ndash

o que importa destacar eacute que Montaigne pretende acentuar uma grande semelhanccedila

entre os homens e os animais

ldquo[A] Nous ne sommes ny au dessus ny au dessoubs du reste tout ce qui est sous le ciel dit le sage court une loy et fortune pareille [B] Indupedita suis fatalibus omnia vinclis (Toutes les choses sont enchaineacutes par les liens de leur propre destineacutee)rdquo31

28 Vejamos resumidamente outros atributos dos animais destacados pelo autor os catildees que servem aos cegos tanto nos campos como nas cidades catildees que representavam papeacuteis no teatro (p463) bois que serviam nos jardins reais de Susa (p464) nos espectaacuteculos de Roma viam-se elefantes treinados em movimentar-se e em danccedilar (p465) a pega que imitava com a voz tudo o que ouvia (p464) os elefantes que tecircm alguma participaccedilatildeo religiosa (p468) formigas que tecircm um jeito muito especial de comunicaccedilatildeo muacutetua (p469) o ouriccedilo que prevecirc a direcccedilatildeo do vento (p469) o camaleatildeo e o polvo que mudam de cor conforme a ocasiatildeo (p469) o voo dos paacutessaros que eacute resultado natildeo apenas da organizaccedilatildeo natural mas tambeacutem do entendimento consentimento e raciociacutenio (p469) os animais que servem seus donos sabem amaacute-los defendecirc-los (p461) o catildeo o cavalo sabem prezar amizade (p471) os animais satildeo muito mais regrados do que noacutes e se contecircm com muito mais moderaccedilatildeo nos limites que a natureza nos prescreveu (p472) os animais natildeo promovem a guerra (p473) o catildeo eacute mais fiel do que o homem (p476-7) quanto agrave gratidatildeo os animais tecircm esta capacidade (p477-8) os atuns tecircm conhecimentos geomeacutetricos astronoacutemicos e aritmeacuteticos (p479-480) o elefante tem a capacidade de arrependimento e reconhecimento dos erros (p480) o tigre tem capacidade de ser clemente (p480) enfim Montaigne atribui todas estas caracteriacutesticas e outras mais aos animais mostrando que elas satildeo erradamente consideradas como unicamente posse dos humanos 29 Les Essais II 12 p 470 30 Villey op cit p 186 31 Les Essais II 12 p 459

16

Desta perspectiva podemos compreender melhor a razatildeo do ldquodestronamentordquo

deste ser ldquotodo-poderosordquo que eacute o homem levado a cabo por Montaigne32

Depois de ter destacado a ideia de que o homem se assemelha aos animais e

vice-versa Montaigne sustenta que a forma corporal do homem eacute o que constitui a sua

peculiaridade face aos animais Eacute ela que ldquodefinerdquo a identidade do homem

ldquo[B] Ce nrsquoest donc pas par la raison par le discours et par lrsquoame que nous excellons sur les bestes crsquoest par nostre beauteacute nostre beau teint et nostre belle disposition de membres pour laquelle il nous faut mettre nostre intelligence nostre prudence et tout le reste agrave lrsquoabandonrdquo33

A sugestatildeo de Montaigne eacute que o homem natildeo pode ser pensado sem o seu corpo

elemento essencial de sua condiccedilatildeo humana O homem natildeo pode continuar a ser

concebido apenas como ser racional Montaigne potildee em causa a claacutessica concepccedilatildeo de

que soacute o homem eacute constituiacutedo de racionalidade O seu objectivo natildeo eacute encontrar uma

nova definiccedilatildeo do homem natildeo deseja decretar a inferioridade do homem nem tampouco

a sua superioridade face aos animais Natildeo tem em vista promover uma competiccedilatildeo

ridiacutecula entre os seres da natureza Montaigne sente-se incapaz de dar qualquer

definiccedilatildeo com o auxiacutelio da razatildeo humana Ignora qual eacute a essecircncia dos animais natildeo os

conhece Da mesma forma podemos dizer que agrave luz da ldquoApologierdquo Montaigne natildeo

consegue definir o homem Natildeo eacute possiacutevel elaborar juiacutezos constantes e uniformes nem

sobre o homem nem a partir dele

Dito de outra forma o ldquocepticismo da razatildeordquo que Montaigne assume

conscientemente visa rejeitar a pretensatildeo do homem de se considerar por via da razatildeo

no centro do universo

Montaigne com os seus ensaios quer ir directo agraves coisas e aos homens Eacute claro

que teve pouco contacto com o chamado movimento cientiacutefico do seu tempo Longe de

32 Friedrich ao analisar a questatildeo do lugar que segundo Montaigne corresponde ao homem diz ldquoA la question de savoir quelle place occupe lrsquohomme dans la totaliteacute du monde existent Montaigne ne donnera jamais la reacuteponse plotinienne selon laquelle il serait dans la chaicircne des ecirctres eacutemaneacutes un dernier maillon reacutetablissant la communication avec la source de lrsquoeacutemanation lrsquoUm primordial Ni la reacuteponse chreacutetienne selon laquelle lrsquohomme constituerait le couronnement terrestre de la creacuteation tout le creacutee lui eacutetant subordonneacute et Dieu eacutetant alleacute pour lui jusqursquoagrave se reacutesoudre agrave intervenir dans lrsquohistoire du salut Lrsquohomme de Montaigne est plutocirct un point dans lrsquounivers sans espoir que le destin ni la diviniteacute srsquointeacuteresse jamais agrave lui Il partage cette insignifiance de point avec le milieu dans lequel il vit patrie Eacutetat continent terre animaux et plantes Il nrsquoest plus un centre il est plongeacute dans la multitude de tout ce qui existe ignorant ce qui lrsquoen distingue et srsquoy sentant cheacutetif - bien preacuteserveacute pourtant au coeur de son insignifiance de son ignorance et deacutechargeacute de tout embarras Il y a au fond de cette penseacutee des ideacutees de Lucregravece Montaigne les transforme pour leur faire exprimer sa propre conscience de la vie dont il preacutecise les grandes lignes en la deacutelimitant par rapport aux affirmations posant la digniteacute de la nature humaine (cf op cit p131) 33 Les Essais II 12 p 486

17

toda a construccedilatildeo teoacuterica esforccedila-se por encontrar nele mesmo e nos outros o homem

tal como eacute sem o falso semblante que lhe acrescentam as pretensiosas doutrinas que o

definem pela sua relaccedilatildeo com o universo e com Deus

18

2 A criacutetica agrave razatildeo humana e a questatildeo da religiatildeo

Segundo Montaigne as pessoas que se gabam do conhecimento estatildeo sempre a

tentar explicar quais satildeo os atributos de Deus atraveacutes de complicados conceitos e

demonstraccedilotildees ininteligiacuteveis Em seu entender Deus e as verdades da religiatildeo satildeo

nitidamente questotildees de feacute e natildeo noccedilotildees filosoacuteficas Que isto eacute assim prova-o o facto de

que estas noccedilotildees satildeo sempre muito diversas e originam muita discoacuterdia entre os

inuacutemeros autores que delas se ocupam Uma coisa eacute Deus e outra coisa totalmente

diferente eacute o que pensam os homens a respeito de Deus

ldquo[A] Il ma tousjours sembleacute quagrave un homme Chrestien cette sorte de parler est pleine dindiscretion et dirreverence Dieu ne peut mourir Dieu ne se peut desdire Dieu ne peut faire cecy ou cela Je ne trouve pas bon denfermer ainsi la puissance divine soubs les loix de nostre parolle Et lapparence qui soffre agrave nous en ces propositions il la faudroit representer plus reveremment et plus religieusementrdquo34

ldquo[A] Dieu ne peut faire les mortels immortels ny revivre les trespassez ny que celuy qui a vescu nait point vescu celuy qui a eu des honneurs ne les ait point eus nayant autre droit sur le passeacute que de loubliance [hellip] Voylagrave ce quil dict et quun Chrestien devroit eviter de passer par sa bouche Lagrave ougrave au rebours il semble que les hommes recherchent cette fole fierteacute de langage pour ramener Dieu agrave leur mesure [hellip]nostre parole le dict mais nostre intelligence ne lrsquoapprehende pointrdquo35

Para compreender o lugar e o valor da razatildeo na ldquoApologierdquo eacute necessaacuterio

investigar os motivos que levaram o autor a tecer uma criacutetica tatildeo contundente da razatildeo

humana aprofundando em concreto as relaccedilotildees que esta criacutetica tem com a sua anaacutelise

da religiatildeo e com o poder de Deus expresso em todo o desenvolvimento do texto Para

esta abordagem teremos como base o preacircmbulo da ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo36

A ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo eacute o mais longo capiacutetulo da obra Les Essais

Neste texto Montaigne propotildee-se apresentar a ldquodefesa de um teoacutelogordquo do seacuteculo XVI

Montaigne comeccedila por caracterizar a situaccedilatildeo histoacuterica na qual a obra de

Sebond chegou agraves matildeos de seu pai por intermeacutedio do humanista Pierre Brunel (1499-

1546)37 Segundo Montaigne trata-se de um livro adequado para a eacutepoca Isto porque as

34 Les Essais II 12 p 527 35 Les Essais II 12 p 528 36 Cf Les Essais II 12 pp 438-449 Montaigne sobretudo nestas paacuteginas iniciais opotildee a religiatildeo agrave razatildeo humana demonstrando por um lado a incapacidade e os limites desta faculdade que eacute motivo de orgulho do homem e por outro esse ldquoinstrumentordquo de conhecimento ligado agrave graccedila divina que eacute a feacute 37 Montaigne admirava muito este humanista que gozava de grande reputaccedilatildeo na sua eacutepoca por causa de seu saber (Les Essais II 12 p 439)

19

novidades de Lutero comeccedilavam a estar em voga e a abalar em muitos lugares a antiga

crenccedila cristatilde38 Para Montaigne que era um pensador catoacutelico conservador a Reforma

Protestante era vista como algo perigoso para a religiatildeo estabelecida Globalmente natildeo

concordava com as contestaccedilotildees provocadas pelo espiacuterito da Reforma sobretudo porque

poderiam levar os homens agrave praacutetica do ateiacutesmo especialmente os menos doutos

Uma leitura do texto potildee de imediato em evidecircncia em que medida Montaigne se

distancia de Sebond em termos argumentativos Parafraseando Villey a defesa de

Sebond seraacute rapidamente esquecida39 Montaigne observa que surgiram entretanto

algumas objecccedilotildees ao livro de Sebond e anuncia no iniacutecio do ensaio o seu propoacutesito de

refutaacute-las Montaigne deseja defender Sebond destes dois tipos de adversaacuterios por um

lado os que consideram que os cristatildeos erram ao querer apoiar com razotildees humanas a

sua crenccedila que soacute se concebe por feacute e por uma inspiraccedilatildeo particular da graccedila divina

Estes satildeo os que subestimam a importacircncia da razatildeo Satildeo considerados fideiacutestas

pessoas que pensam que a verdade em religiatildeo estaacute em uacuteltima instacircncia baseada na feacute

em vez de no raciociacutenio ou na evidecircncia Por outro lado estatildeo os que dizem que os

argumentos de Sebond satildeo fracos e inadequados para demonstrar o que pretendem e se

dispotildeem a atacaacute-los facilmente Estes satildeo os que subestimam a importacircncia da feacute

Consideremos em primeiro lugar a atitude dos primeiros opositores Natildeo seria

correcto querer apoiar com razotildees humanas a crenccedila ldquo[A] qui ne se conccediloit que par foy

et par une inspiration particuliere de la grace divinerdquo40 Estes primeiros opositores de

Sebond satildeo os partidaacuterios da posiccedilatildeo ortodoxa catoacutelica Montaigne lembra que estes

teoacutelogos catoacutelicos satildeo movidos sobretudo por uma visatildeo piedosa

ldquo[A] En cette objection il semble quil y ait quelque zele de pieteacute et agrave cette cause nous faut-il avec autant plus de douceur et de respect essayer de satisfaire agrave ceux qui la mettent en avantrdquo41

Em face destas primeiras criacuteticas agrave obra do teoacutelogo catalatildeo Montaigne natildeo se

inibe de expressar as suas proacuteprias tomadas de posiccedilatildeo

ldquo[A]Toutefois je juge ainsi quagrave une chose si divine et si haultaine et surpassant de si loing lhumaine intelligence comme est cette veriteacute de laquelle il a pleu agrave la bonteacute de Dieu nous esclairer il est bien besoin quil nous preste encore son secours dune faveur extraordinaire et privilegeacutee pour la pouvoir concevoir et loger en nous et ne croy pas que

38 Cf Les Essais II 12 p 439 39 Villey op cit p 183 40 Les Essais II 12 p 440 41 Les Essais II 12 p 440

20

les moyens purement humains en soyent aucunement capables et sils lestoient tant dames rares et excellentes et si abondamment garnies de forces naturelles eacutes siecles anciens neussent pas failly par leur discours darriver agrave cette connoissance Cest la foy seule qui embrasse vivement et certainement les hauts mysteres de nostre Religionrdquo42

Ao abordar esta questatildeo Montaigne reconhece que natildeo estaacute capacitado para

levar a cabo tal empreendimento Esta seria uma tarefa mais adequada para um homem

versado em teologia assunto de que ele pessoalmente diz nada saber43 Mesmo assim

expressa uma vez mais a sua criacutetica radical aos que utilizam a razatildeo para apresentarem

argumentos apologeacuteticos em defesa das verdades sobre Deus e sobre a religiatildeo

Montaigne eacute um catoacutelico44 Sobre isto os Essais natildeo deixam duacutevida Natildeo eacute este o

momento de entrar na discussatildeo acerca de como viveu ou deixou de viver a sua

religiosidade O importante eacute que como catoacutelico aceita que haacute um Deus uacutenico criador

do ceacuteu e da terra Em vaacuterios momentos tanto na ldquoApologierdquo como em outros ensaios

Montaigne daacute a entender que a verdade estaacute em Deus e natildeo eacute propriedade dos homens

filoacutesofos ou teoacutelogos Noutras palavras a verdade eacute revelada e o homem sem o auxiacutelio

de Deus nunca a encontraria A razatildeo humana natildeo tem condiccedilotildees para elaborar

raciociacutenios crediacuteveis sobre estas verdades reveladas Para sustentar a tese que a razatildeo eacute

impotente neste domiacutenio Montaigne dedica um nuacutemero importante de paacuteginas em toda

a sua obra a desenvolver a ideia de que alguns filoacutesofos antigos reflectiram muito sobre

a possibilidade do conhecimento sobre Deus e fizeram afirmaccedilotildees que satildeo

absolutamente carentes de sentido Isto natildeo passou de uma ldquo[C] tintamarre de tant de

42 Les Essais II 12 p 440-441 43 ldquoCe seroit mieux la charge drsquoun homme verseacute en Theologie que de moy qui nrsquoy sccedilay rienrdquo(Les Essais II 12 p 440) 44 Montaigne declara-se catoacutelico foi um catoacutelico que durante toda a sua vida procurou cumprir os ritos lituacutergicos convencionais da Igreja Catoacutelica A sua posiccedilatildeo ceacuteptica parece enquadrar-se no fideiacutesmo como veremos Mas haacute que salientar que em algumas questotildees morais independentes das suas praacuteticas rituais ou seja na sua vida praacutetica Montaigne natildeo tem muito em consideraccedilatildeo a lista de exigecircncias eacuteticas do catolicismo romano Parece que falta agrave concepccedilatildeo religiosa de Montaigne algum sentimento religioso limita-se a uma espeacutecie de praacutetica do ritualismo exigido pela Igreja Catoacutelica Ele seria catoacutelico por uma questatildeo de conveniecircncia intelectual A sua praacutetica lituacutergica ritualiacutestica natildeo exerce grande influecircncia sobre o seu pensamento filosoacutefico Ele eacute um pensador completamente livre face agrave doutrina da Igreja E isto distingue-o substancialmente dos teoacutelogos que integram o corpo doutrinal na Igreja Montaigne pensava e exprimia estes pensamentos com plena liberdade Manifesta aleacutem disso alguma confianccedila na Igreja na religiatildeo na tradiccedilatildeo e nos costumes que contribuiacuteram para a sua formaccedilatildeo e que satildeo de alguma maneira parte constitutiva de sua identidade E na realidade quis apostar naquilo com o qual estava mais familiarizado ldquo[B] Nous sommes Chrestiens agrave mesme titre que nous sommes ou Perigordins ou Alemansrdquo(Les Essais II 12 p 445) No entanto quando comeccedilamos a estabelecer um maior contacto com os Essais percebemos que Montaigne natildeo eacute um catoacutelico que confie cegamente na doutrina da Igreja Muito pelo contraacuterio eacute extremamente consciente dos problemas do catolicismo e da sua doutrina bem como dos costumes em geral E acima de tudo tem perfeita consciecircncia de que a sua confianccedila eacute uma crenccedila e natildeo uma certeza filosoacutefica

21

cervelles philosophiquesrdquo45 Segundo Montaigne de todas as ideias humanas e antigas

no tocante agrave religiatildeo

ldquo[A]celle lagrave me semble avoir eu plus de vray-semblance et plus dexcuse qui reconnoissoit Dieu comme une puissance incomprehensible origine et conservatrice de toutes choses toute bonteacute toute perfection recevant et prenant en bonne part lhonneur et la reverence que les humains luy rendoient soubs quelque visage sous quelque nom et en quelque maniere que ce futrdquo46

Trata-se de belas afirmaccedilotildees que querem expressar quais satildeo os principais

atributos de Deus Satildeo uma tentativa racional que tem como meta explicar quem eacute Deus

Ao comentar esta passagem da ldquoApologierdquo Conche pergunta-se que significam estas

palavras E baseado na leitura que faz de Montaingne afirma que aplicadas a Deus

natildeo podemos saber o que realmente significam47

Montaigne questiona o facto de muitos homens pretenderem edificar um

discurso baseado na razatildeo para justificar as verdades reveladas as quais segundo ele soacute

poderatildeo encontrar os verdadeiros alicerces na feacute Vejamos como Conche

sinteticamente analisa esta questatildeo a partir da ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo

ldquoNous croyons penser Dieu En reacutealiteacute nous ne faisons que projeter hors de nous des qualiteacutes humaines que nos avons [hellip] Lrsquohomme ne peut concevoir Dieu qursquoagrave partir de lui-mecircme Or il y a entre lrsquohomme et Dieu un abicircme qualitatif Le Dieu dont on parle et duquel on raisonne nrsquoest qursquoun produit de lrsquoanthropomorphisme La raison loin de nous eacutelever agrave Dieu le ramegravene agrave notre mesure [hellip] En tout cela Dieu est encore conccedilu par analogie avec lrsquohomme et la puissance divine enfermeacutee ldquosous les lois de notre parolerdquo Assujettir Dieu agrave nos principes rationnels crsquoest lrsquoassujettir agrave la raison humaine Lrsquohomme ne peut penser au-delagrave de lui mecircme Du vrai Dieu on ne peut rien penser ni rien dire Il nrsquoy a pas drsquoideacutee de Dieu [hellip] La notion de Dieu nrsquoest pas une notion philosophiquerdquo48

Embora critique estes opositores de Sebond Montaigne afirma ao mesmo tempo

que o empenho em justificar a feacute pela razatildeo eacute uma iniciativa louvaacutevel Chega mesmo a

afirmar que esta tarefa poderia ser considerada como o uso mais honroso que o homem

cristatildeo poderia dar agrave razatildeo Por outras palavras eacute uma atitude nobre a que leva o cristatildeo

a querer embelezar perceber e ampliar a verdade de sua crenccedila por meio de todos os

estudos e reflexotildees Montaigne observa entretanto que eacute preciso fazer acompanhar a

45 Les Essais II 12 p 516 46 Les Essais II 12 p 513 47 Cf Conche Marcel Montaigne ou la conscience heureuse Paris Puf 2009 p 55 48 Idem pp 55-56

22

nossa feacute de toda a razatildeo que haacute em noacutes mas sempre com a ressalva de natildeo pensar que

seja de noacutes que ela depende nem que os nossos esforccedilos e argumentos possam atingir

uma tatildeo ldquo[A] supernaturelle et divine sciencerdquo49 O autor dos Essais insistiraacute muito

neste aspecto

ldquo[A] Si elle nentre chez nous par une infusion extraordinaire si elle y entre non seulement par discours mais encore par moyens humains elle ny est pas en sa digniteacute ny en sa splendeur Et certes je crain pourtant que nous ne la jouyssions que par cette voye Si nous tenions agrave Dieu par lentremise dune foy vive si nous tenions agrave Dieu par luy non par nous si nous avions un pied et un fondement divin les occasions humaines nauroient pas le pouvoir de nous esbranler comme elles ont [hellip]rdquo50

Sem duacutevida Montaigne ao questionar o poder da razatildeo humana procura

defender a feacute cristatilde Os argumentos tidos como ceacutepticos que estatildeo presentes na

ldquoApologierdquo tecircm como objectivo provar que soacute atraveacutes da intervenccedilatildeo divina e natildeo com

nossos proacuteprios meios racionais podemos ter acesso agrave verdade Apresenta vaacuterios

exemplos para que entendamos com mais clarividecircncia a sua reflexatildeo acerca deste

assunto

ldquo[C] Lrsquohomme est bien insenseacute Il ne sccedilauroit forger un ciron et forge des Dieux agrave douzainesrdquo51

O homem quer descrever Deus mas na verdade descreve-se a si mesmo Isto

demonstra a sua incapacidade e a sua falta de sabedoria

ldquo[B] Nous avons vie raison et liberteacute estimons la bonteacute la chariteacute et la justice ces qualitez sont donc en luy Somme le bastiment et le desbastiment les conditions de la diviniteacute se forgent par lhomme selon la relation agrave soy Quel patron et quel modele Estirons eslevons et grossissons les qualitez humaines tant quil nous Plaira enfle toy pauvre homme et encore et encore et encore Non si te ruperis inquit (ldquoNon pas mecircme quand tu cregraveverais dit-ilrdquo (Hor Sal II III 318) Crsquoest la fable de la grenouille qui veut se faire aussi grosse que le boeuf)rdquo52

Eacute interessante notar que ao mesmo tempo que pretende fazer a apologia da feacute cristatilde Montaigne critica os cristatildeos que natildeo satildeo ldquofieacuteisrdquo aos ensinamentos da Sagrada Escritura

ldquo[B] Voulez vous voir cela Comparez nos moeurs agrave un Mahometan agrave un Payen vous demeurez tousjours au dessoubs lagrave ougrave au regard de lavantage de nostre religion nous devrions luire en excellence dune extreme et incomparable distance et devroit on dire Sont ils si justes si

49 Les Essais II 12 p 441 50 Les Essais II 12 p 441 51 Les Essais II 12 p 530 52 Les Essais II 12 p 531

23

charitables si bons ils sont donq Chrestiens [C] La marque peculiegravere de nostre veriteacute devroit estre nostre vertu comme elle est aussi la plus celeste marque et la plus difficile et que cest la plus digne production de la veriteacuterdquo53

Para Montaigne os cristatildeos constituem uma espeacutecie de contratestemunho de sua

feacute Fazendo uma referecircncia ao texto da Sagrada Escritura algo muito raro nos Essais o

autor afirma que se tiveacutessemos um uacutenico pingo de feacute54 moveriacuteamos as montanhas de

seu lugar E neste sentido lembra-nos

ldquo[A] nos actions qui seroient guideacutees et accompaigneacutees de la diviniteacute ne seroient pas simplement humaines elles auroient quelque chose de miraculeux comme nostre croyancerdquo55

Para os que subestimam a importacircncia da razatildeo isto eacute para os primeiros

opositores de Sebond ou os fideiacutestas os cristatildeos erram ao quererem apoiar as suas

crenccedilas que soacute se concebem por meio da feacute e por inspiraccedilatildeo particular da graccedila divina

Estes satildeo os que pensam que a verdade em religiatildeo estaacute em uacuteltima instacircncia baseada na

feacute em vez de no raciociacutenio ou na evidecircncia Segundo Montaigne trata-se de uma

concepccedilatildeo bonita e ateacute piedosa Chega inclusivamente a exemplificar esta atitude e a

citar um caso de algueacutem que foi desviado dos erros da incredulidade atraveacutes da leitura

da obra de Sebond

ldquo[A] Je sccedilay un homme dauthoriteacute nourry aux lettres qui ma confesseacute avoir esteacute rameneacute des erreurs de la mescreance par lentremise des argumens de Sebond Et quand on les despouillera de cet ornement et du secours et approbation de la foy et quon les prendra pour fantasies pures humaines pour en combatre ceux qui sont precipitez aux espouvantables et horribles tenebres de lirreligion ils se trouveront encores lors aussi solides et autant fermes que nuls autres de mesme condition quon leur puisse opposer [hellip]rdquo56

53 Les Essais II 12 p 442 54 Provavelmente Montaigne estaacute a aludir a textos da Sagrada Escritura especialmente do Evangelho ldquoSi vraiment vous avez de la foi gros come une graine de moutarde vous diriez agrave ce sycomore ldquoDeacuteracine-toi et va te planter dans la merrdquo et il vous obeacuteiraitrdquo (Lc 17 6) Car en veacuteriteacute je vous le deacuteclare si un jour votre foi est semblable agrave un grain de moutarde vous diriez agrave cette montagne ldquoPasse drsquoici lagrave-basrdquo et elle y passera Rien ne vous sera impossiblerdquo (Mt 17 20) (In Nouveau Testament Traduction Oecumeacutenique de la Bible Paris PUF 1977 pp 91 e 253 55 Les Essais II 12 p 442 56 Les Essais II 12 p 447-448

24

No entanto mesmo tendo em consideraccedilatildeo a importacircncia da Teologia Natural

sebondiana Montaigne toma um certo partido pelo lado dos fideiacutestas57 seus opositores

Em seu entender a razatildeo humana natildeo eacute capaz de conduzir o homem agrave feacute

Montaigne num dado momento refere-se agraves guerras58 que oprimiam a sua

naccedilatildeo Ele propotildee uma possiacutevel explicaccedilatildeo destes tormentos que assolavam a Franccedila

que tem muito a ver com a questatildeo de fundo tratada na ldquoApologierdquo Escreve

ldquo[A] Les hommes y sont conducteurs et srsquoy servent de la religion ce devroit estre tout le contrairerdquo59

Assim se compreende por que razatildeo Montaigne aleacutem de criticar aqueles que

queriam instrumentalizar a razatildeo para justificar as verdades reveladas repudia a noccedilatildeo

daqueles que se dedicam excessivamente agrave religiatildeo e que tecircm como meta principal a

satisfaccedilatildeo das paixotildees e da vaidade

ldquo[C] Je voy cela evidemment que nous ne prestons volontiers agrave la devotion que les offices qui flattent noz passions Il nest point dhostiliteacute excellente comme la Chrestienne Nostre zele fait merveilles quand il va secondant nostre pente vers la haine la cruauteacute lambition lavarice la detraction la rebellion A contrepoil vers la bonteacute la benigniteacute la temperance si comme par miracle quelque rare complexion ne ly porte il ne va ny de pied ny daile Nostre religion est faicte pour extirper les vices elle les couvre les nourrit les incite [A] Il ne faut point faire barbe de foarre agrave Dieu (comme on dict) Si nous le croyons je ne dy pas par foy mais dune simple croyance voire (et je le dis agrave nostre grande confusion) si nous le croyons et cognoissions comme une autre histoire comme lun de nos compaignons nous laimerions au dessus de toutes autres choses pour linfinie bonteacute et beauteacute qui reluit en luy au moins marcheroit il en mesme reng de nostre affection que les richesses les plaisirs la gloire et nos amis raquo60

Montaigne demonstra uma certa irritaccedilatildeo em face da instrumentalizaccedilatildeo da

religiatildeo para certos objectivos particulares Em seu entender a devoccedilatildeo religiosa natildeo

57 Ao reflectir sobre o fideiacutesmo presente na ldquoApologierdquo Friedrich diz-nos que Montaigne assume um fideiacutesmo isento da nostalgia miacutestica O seu fideiacutesmo significa uma tomada de consciecircncia intelectual dos limites humanos limites estes que natildeo deseja ultrapassar Seu fideiacutesmo eacute de uma espeacutecie negativa isto eacute eacute a certeza da incerteza O mesmo autor observa ainda que a ldquoteologiardquo de Montaigne representa um desvio para ir ao conhecimento do homem no interior do mundo Montaigne precisa de se distanciar de Deus para se assegurar da pequenez do homem na qual ele vai se instalar (cf op cit p 117) 58 Tudo indica que Montaigne estaacute a falar das guerras civis e religiosas do seacuteculo XVI Citando o famoso historiador francecircs M de Chacircteaubriand Laschamps na sua monumental obra Michel de Montaigne editada em 1855 afirma que estas guerras ldquoont dureacute trente-neuf ans elles ont engendre les massacres de la Saint Bartheacutelemy verseacute le sang de plus de deux millions de Franccedilais et deacutevoreacute plus de trois milliards de notre monnaie actuelle Elles ont produit la saisie et la vente des biens de lrsquoEacuteglise et des particulieres frappeacute deux rois de mort violente Henri III et Henri IV et commenceacute le procegraves criminal du premier de ces deux roisrdquo (cf Laschamps F Bigorie de Michel de Montaigne Paris Libraire Editeur 1855 p 108) 59 Les Essais II 12 p 443 60 Les Essais II 12 p 444

25

pode ser usada para servir os propoacutesitos do oacutedio da crueldade da ambiccedilatildeo da rebeliatildeo

etc61

Embora natildeo seja teoacutelogo62 Montaigne eacute um pensador que procura respeitar

profundamente a missatildeo da teologia Mas importa salientar que esta missatildeo deve ser

entendida simplesmente como uma praacutetica de piedade e natildeo como uma racionalizaccedilatildeo e

sistematizaccedilatildeo das verdades reveladas pela feacute Neste sentido haacute uma enorme distacircncia

entre o autor dos Essais e os escolaacutesticos Para Montaigne a teologia eacute concebida como

uma espeacutecie de exerciacutecio espiritual dos cristatildeos sobretudo dos teoacutelogos atraveacutes da

razatildeo humana Exerciacutecio este que carece do poder de alcanccedilar a verdade

ldquo[A] Il en faut faire de mesme et accompaigner nostre foy de toute la raison qui est en nous mais tousjours avec cette reservation de nestimer pas que ce soit de nous quelle deacutepende ny que nos efforts et arguments puissent atteindre agrave une si supernaturelle et divine sciencerdquo 63

Para Montaigne as explicaccedilotildees (racionalizaccedilotildees) das verdades da religiatildeo

devem ser as pregaccedilotildees piedosas nos actos de culto por exemplo E esta eacute a tarefa

fundamental da qual a teologia deve ocupar-se Aleacutem disto Montaigne que eacute um

observador subtil e cuidadoso propotildee certas distinccedilotildees Vejamos o que Friedrich tem a

dizer sobre esta questatildeo

ldquo[hellip] sait bien entendu distinguer la vraie pieacuteteacute de la fausse Il bracircme ainsi les priegraveres meacutecaniques la malhonnecircteteacute des gens qui se signent au son de la cloche sans pour autant renoncer agrave la haine agrave lrsquoavarice agrave lrsquoinjustice comme si leur principe eacutetait aux vices leur heure son heure agrave Dieurdquo64

Desta perspectiva segundo Montaigne a religiatildeo deve ser entre outras coisas

como uma praacutetica da verdadeira piedade que se preocupa em instaurar no coraccedilatildeo do

homem o desejo de viver o amor a justiccedila etc renunciando a tudo aquilo que eacute mal e

que impede a realizaccedilatildeo da felicidade do homem no aqui e no agora Eacute por isto que natildeo

acredita numa religiatildeo que vive a prometer constantemente bens eternos que viratildeo a

tornar-se realidade num outro mundo diverso e posterior a este que conhecemos Para

exemplificar esta sua abordagem Montaigne refere na ldquoApologierdquo o filoacutesofo Antiacutestenes

Quando o iniciavam no misteacuterio de Orfeu dizendo-lhe o sacerdote que aqueles que se

devotavam a tal religiatildeo iam receber bens eternos e perfeitos apoacutes a morte aquele

61 Cf Les Essais II 12 p 444 62 Ver nota 43 63 Les Essais II 12 p 441 64 Friedrich op cit p 122

26

perguntou-lhe ldquose acreditas nisso por que entatildeo natildeo morres tu mesmordquo65 Eis um outro

exemplo que vale a pena citar

ldquo[C] Diogenes plus brusquement selon sa mode et hors de nostre propos au prestre qui le preschoit de mesme de se faire de son ordre pour parvenir aux biens de lautre monde Veux tu pas que je croye quAgesilauumls et Epaminondas si grands hommes seront miserables et que toy qui nes quun veau seras bien heureux par ce que tu es prestre rdquo66

Segundo Montaigne se acolhecircssemos essas grandes promessas de felicidades

eternas e supremas com a mesma autoridade com que acolhemos uma opiniatildeo

filosoacutefica natildeo teriacuteamos o horror agrave morte que temos

ldquo[A] Je veuil estre dissout dirions nous et estre aveques Jesus-Christrdquo67

Ao afirmar que

ldquo[A] La force du discours de Platon de lrsquoimmortaliteacute de lrsquoame poussa bien aucuns de ses disciples agrave la mort pour joiumlr plus promptement des esperances qursquoil leur donnoit [hellip]68

O autor da ldquoApologierdquo quer destacar a fragilidade da razatildeo que utiliza meios

puramente humanos para explicar ldquorealidadesrdquo que transcendem a vida concreta

Vejamos uma passagem em que o autor expressa nitidamente estas ideias

ldquo[A] Tout cela cest un signe tres-evident que nous ne recevons nostre religion quagrave nostre faccedilon et par nos mains et non autrement que comme les autres religions se reccediloyvent Nous nous sommes rencontrez au paiumls ou elle estoit en usage ougrave nous regardons son ancienneteacute ou lauthoriteacute des hommes qui lont maintenue ou creignons les menaces quellrsquoattache aux mescreans ou suyvons ses promesses Ces considerations lagrave doivent estre employeacutees agrave nostre creance mais comme subsidiaires ce sont liaisons humaines Une autre region dautres tesmoings pareilles promesses et menasses nous pourroyent imprimer par mesme voye une croyance contrairerdquo69

Apesar de ser catoacutelico parece sugerir na ldquoApologierdquo uma certa atitude de

indiferenccedila relativamente a toda e qualquer profissatildeo de feacute ou seja uma espeacutecie de

distanciamento no que diz respeito agraves diversas convicccedilotildees religiosas Montaigne chega

quase a reduzir a proacutepria crenccedila a uma questatildeo de costume a um acaso geograacutefico

65 Cf Les Essais II 12 p 444 66 Les Essais II 12 p 444 67 Les Essais II 12 p 445 68 Les Essais II 12 p 445 69 Les Essais II 12 p 445

27

[B] Nous sommes Chrestiens agrave mesme titre que nous sommes ou Perigordins ou Alemansrdquo70

Fazendo uma criacutetica aos diversos raciociacutenios que foram usados na histoacuteria do

pensamento filosoacutefico com o objectivo de argumentar de que forma o homem tem

acesso agrave religiatildeo Montaigne afirma que Platatildeo e os seus exemplos querem levar-nos a

concluir que somos conduzidos agrave crenccedila em Deus ou por amor ou por forccedila A sua

rejeiccedilatildeo dos argumentos da filosofia expressa-se de uma forma muito incisiva

ldquo[C] LAtheisme estant une proposition comme desnatureacutee et monstrueuse difficile aussi et malaiseacutee destablir en lesprit humain pour insolent et desregleacute quil puisse estre il sen est veu assez par vaniteacute et par fierteacute de concevoir des opinions non vulgaires et reformatrices du monde en affecter la profession par contenance qui sils sont asses fols ne sont pas assez forts pour lavoir planteacutee en leur conscience pourtantrdquo71

Aleacutem de apontar os limites das crenccedilas consideradas pagatildes bem como os

enganos de Platatildeo relativos aos motivos que levam o homem agrave praacutetica da religiatildeo

Montaigne critica um outro engano similar e importante de Platatildeo

ldquo[B] Lerreur du paganisme et lignorance de nostre sainte veriteacute laissa tomber cette grande ame de Platon (mais grande dhumaine grandeur seulement) encores en cet autre voisin abus que les enfans et les vieillars se trouvent plus susceptibles de religion comme si elle naissoit et tiroit son credit de nostre imbecilliteacuterdquo72

Segundo Montaigne a religiatildeo natildeo pode ser construiacuteda sobre o alicerce da razatildeo

humana como vimos Nem tampouco pode ser fundada nos argumentos platoacutenicos

acabados de referir Estes satildeo todos muito fraacutegeis A religiatildeo encontra as suas bases

verdadeiras na feacute A perspectiva proacutepria da filosofia supotildee um ateiacutesmo de meacutetodo como

observa Conche Caso contraacuterio ela jaacute natildeo seria filosofia ldquomais theacuteologie ou ideacuteologie

A qui est ainsi priveacute du secours de la gracircce divine Dieu est inconnaissablerdquo73

Montaigne recusa o ateiacutesmo de uma forma muito clara inclusive aquele conceituado

por Platatildeo

ldquo[A] Et ce que dit Plato74 quil est peu dhommes si fermes en latheisme quun dangier pressant ne ramene agrave la recognoissance de la divine puissance ce rolle ne touche point un vray Chrestien Cest agrave faire aux

70 Les essais II 12 p 445 71 Les Essais II 12 p 446 72 Les Essais II 12 p 446 73 Conche 1996 op cit p131 74 Tudo leva a crer que Montaigne se estaacute a referir a Platatildeo Preferimos conservar a mesma grafia da ediccedilatildeo dos Essais que estaacute a ser utilizada neste trabalho

28

religions mortelles et humaines destre receueumls par une humaine conduite Quelle foy doit ce estre que la laacutecheteacute et la foiblesse de coeur plantent en nous et establissent [C] Plaisante foy qui ne croid ce quelle croit que pour navoir le courage de le descroire Une vitieuse passion comme celle de linconstance et de lestonnement peut elle faire en nostre ame aucune production regleacutee75

Continuando a sua reflexatildeo no preacircmbulo da ldquoApologierdquo o autor ressalta qual eacute

a relaccedilatildeo fundamental que eacute necessaacuteria para estabelecer a uniatildeo do homem a Deus

partindo do caraacutecter superior da religiatildeo face ao ateiacutesmo Montaigne observa que o laccedilo

que deveria atar o nosso juiacutezo e a nossa vontade que deveria cingir a nossa alma e uni-

la ao criador

ldquo[A] ce devroit estre un neud prenant ses repliz et ses forces non pas de nos considerations de noz raisons et passions mais dune estreinte divine et supernaturelle nayant quune forme un visage et un lustre qui est lauthoriteacute de Dieu et sa grace Or nostre coeur et nostre ame estant regie et commandeacutee par la foy cest raison quelle tire au service de son dessain toutes noz autres pieces selon leur porteacuteerdquo76

Montaigne ao indicar como devemos manejar os instrumentos naturais e

humanos ou seja como devemos aplicar a razatildeo agrave nossa feacute afirma que Deus deixou nas

suas obras o cunho de sua divindade e deve-se apenas agrave nossa fraqueza que natildeo o

possamos perceber E afirma com admiraccedilatildeo que Sebond se empenhou neste digno

estudo

ldquo[A] Or nos raisons et nos discours humains cest comme la matiere lourde et sterile la grace de Dieu en est la formerdquo77

As acccedilotildees humanas permanecem inuacuteteis e vatildes se natildeo tecircm em conta o amor e a

obediecircncia a Deus

ldquo[A] ainsin est-il de nos imaginations et discours ils ont quelque corps mais une masse informe sans faccedilon et sans jour si la foy et grace de Dieu ny sont joinctesrdquo78

Quanto aos segundos opositores de Sebond ndash ou seja os que dizem que seus

argumentos satildeo fracos e inadequados para demonstrar o que ele pretende e por isso

dispotildeem-se a atacaacute-los facilmente ndash Montaigne vai rejeitar os argumentos por eles

apresentados nos quais se subestima a importacircncia da feacute A rejeiccedilatildeo dos argumentos

desta segunda categoria ocupa maior espaccedilo porque ldquo[A] Il faut secouer ceux cy un peu

75 Les Essais II 12 p 445 76 Les Essais II 12 p 446 77 Les Essais II 12 p 447 78 Les Essais II 12 p 447

29

plus rudement car ils sont plus dangereux et plus malitieux que les premiersrdquo79 Estes

ldquoracionalistasrdquo consideram que a razatildeo humana eacute auto-suficiente para conhecer

qualquer coisa e desprezam a feacute considerando-a como algo inuacutetil para um saacutebio

ldquo Le moyen que je prens pour rabatre cette frenaisie et qui me semble le plus propre crsquoest de froisser et fouler aux pieds lrsquoorgueil et humaine fierteacute leur faire sentir lrsquoinaniteacute la vaniteacute et deneantise de lrsquohomme leur arracher des points les chetives armes de leur raison leur faire baisser la teste et mordre la terre soubs lrsquoauthoriteacute et reverence de la majesteacute divine Crsquoest agrave elle seule qursquoapartient la science et la sapience elle seule qui peut estimer de soy quelque chose et agrave qui nous desrobons ce que nous nous contons et ce que nous nous prisons Ού γὰρ ἐᾱ φρονεῑν ὁ Θεὸϛ μέγα ἄλλον ἢ ἑαυτόν [ldquoCar Dieu ne permet pas qursquoun autre que Lui srsquoenorgueillisserdquo (Heacuterodote VII x)]rdquo80

Ao analisar as duas objecccedilotildees agrave Teologia natural de Sebond Montaigne tem

como principal finalidade - aleacutem do desenvolvimento do seu fideiacutesmo que potildee em

causa que a filosofia seja um meio para se chegar a Deus - destronar o homem do seu

pedestal como ldquosenhorrdquo entre todas as criaturas como vimos no primeiro capiacutetulo deste

trabalho Agrave luz destas objecccedilotildees se desenvolve tambeacutem em todo o texto da ldquoApologierdquo

uma grande quantidade de criacuteticas aos detractores do teoacutelogo catalatildeo que na verdade

mais natildeo eacute do que uma contestaccedilatildeo de Montaigne de tudo aquilo que faz do homem um

ser cheio de orgulho e de vaidade Montaigne chega agrave conclusatildeo que a razatildeo humana

natildeo pode conhecer os atributos de Deus A razatildeo natildeo tem condiccedilotildees para emitir juiacutezos

crediacuteveis a respeito destes atributos Ela natildeo estaacute revestida de um poder que lhe garanta

a elaboraccedilatildeo de raciociacutenios crediacuteveis acerca de Deus e das verdades da religiatildeo

Montaigne apresenta um resumo das principais ideias acerca de Deus que foram

surgindo na histoacuteria do pensamento filosoacutefico antigo e afirma que tudo isto natildeo passa de

uma balbuacuterdia (ldquotintamarrerdquo) de muitos ceacuterebros filosoacuteficos81

ldquo[C] Thales [hellip] estima Dieu un esprit qui fit deau toutes choses Anaximander que les Dieux estoyent des mourans et naissans agrave diverses saisons et que crsquoestoyent des mondes infinis en nombre Anaximenes que lair estoit Dieu [hellip] Anaxagoras le premier a tenu la description et maniere de toutes choses estre conduite par la force et raison dun esprit infini Alcmaeligon a donneacute la diviniteacute au soleil agrave la lune aux astres et agrave lame[hellip] Empedocles disoit estre des Dieux les quatre natures desquelles toutes choses sont faictes [hellip] Platon dissipe sa creance agrave divers visages Il dict au Timaeacutee le pere du monde ne se pouvoir

79 Les Essais II 12 p 448 80 Les Essais II 12 p 448 81 Cf Les Essais II 12 p 516

30

nommer aux loix quil ne se faut enquerir de son estre et ailleurs en ces mesmes livres il faict le monde le ciel les astres la terre et nos ames Dieux et reccediloit en outre ceux qui ont esteacute receuz par lancienne institution en chasque republique Xenophon rapporte un pareil trouble de la discipline de Socrates tantost quil ne se faut enquerir de la forme de Dieu et puis il luy faict establir que le Soleil est Dieu et lame Dieu quil ny en a quun et puis quil y en a plusieurs[hellip] Aristote asture que cest lesprit asture le monde asture il donne un autre maistre agrave ce monde et asture faict Dieu lardeur du ciel [hellip] Heraclides Ponticus ne fait que vaguer entre les advis et en fin prive Dieu de sentiment et le faict remuant de forme agrave autre et puis dict que cest le ciel et la terre[hellip] Zeno la loy naturelle commandant le bien et prohibant le mal laquelle loy est un animant et oste les Dieux accoustumez Jupiter Juno Vesta Diogenes Apolloniates que cest laage [hellip] Cleanthes tantost la raison tantost le monde tantost lame de Nature tantost la chaleur supreme entournant et envelopant tout [hellip] Chrysippus faisoit un amas confus de toutes les precedentes sentences et comptoit entre mille formes de Dieux quil faict les hommes aussi qui sont immortalisez Diagoras et Theodorus nioyent tout sec quil y eust des Dieux Epicurus faict les Dieux luisans transparens et perflables logez comme entre deux forts entre deux mondes agrave couvert des coups revestus dune humaine figure et de nos membres lesquels membres leur sont de nul usagerdquo82

Esta longa citaccedilatildeo da ldquoApologierdquo apresenta-nos a enorme quantidade de

teorizaccedilotildees que tecircm como base a razatildeo humana e que satildeo bastante diacutespares no tocante

agraves crenccedilas Isto potildee em evidecircncia que Montaigne natildeo acredita que o homem tenha

condiccedilotildees para compreender ou apresentar algo crediacutevel acerca de Deus Por isto o

homem exagera na sua criatividade intelectual ao inventar inuacutemeros atributos divinos

que frequentemente se assemelham aos seus proacuteprios atributos Em seu entender Deus

eacute absolutamente incompreensiacutevel Na leitura que de Montaigne faz Leveaux

ldquoLrsquoideacutee de Dieu existe chez lrsquohomme mais au delagrave de cette ideacutee simple drsquoune uniteacute absolue tout devient doute et confusion Alors se preacutesent des questions sans nombre auxquelles il est impossible de reacutepondre Crsquoest lagrave si je ne me trompe le ldquoque sais-jerdquordquo83

Montaigne afirma que haacute uma grande inconstacircncia variedade e mobilidade de

ideias acerca de Deus nas almas excelentes e admiraacuteveis dos filoacutesofos Mas classifica o

empenho destes como vatildeo pelo facto de quererem adivinhar Deus por meio das nossas

analogias e conjecturas Por natildeo podermos estender a vista ateacute ao seu trono glorioso

procuramos trazecirc-lo aqui para baixo para a nossa corrupccedilatildeo e miseacuteria Soacute a feacute tem

82 Les Essais II 12 pp 514-516 83 Leveaux Alphonse Eacutetude sur les Essais de Montaigne Paris Henri Plon Imprimeur-Eacutediteur 1870 p 213

31

condiccedilotildees de entender os misteacuterios da religiatildeo Sem ela os nossos esforccedilos de

demonstraccedilatildeo destes misteacuterios permanecem vazios e esteacutereis

ldquo[A] La participation que nous avons agrave la connoissance de la veriteacute quelle quelle soit ce nest pas par nos propres forces que nous lavons acquise Dieu nous a assez appris cela par les tesmoins quil a choisi du vulgaire simples et ignorans pour nous instruire de ses admirables secrets nostre foy ce nest pas nostre acquest cest un pur present de la liberaliteacute dautruy Ce nest pas par discours ou par nostre entendement que nous avons receu nostre religion cest par authoriteacute et par commandement estranger La foiblesse de nostre jugement nous y ayde plus que la force et nostre aveuglement plus que nostre cler-voyance Cest par lentremise de nostre ignorance plus que de nostre science que nous sommes sccedilavans de divin sccedilavoirrdquo84

Para o autor da ldquoApologierdquo o homem por si soacute eacute absolutamente impotente para

chegar a certezas acerca das questotildees relacionadas com a feacute Nesta perspectiva o autor

observa tambeacutem que natildeo eacute possiacutevel fazer afirmaccedilotildees seguras tendo como base a razatildeo

Por exemplo acerca da imortalidade da alma tema desde sempre muito caro agrave filosofia

os cristatildeos devem unicamente a Deus e ao benefiacutecio de sua graccedila a verdade de uma

crenccedila tatildeo nobre pois eacute apenas da sua liberalidade que o cristatildeo recebe o fruto da

imortalidade o qual lembra o autor consiste no gozo da beatitude eterna A razatildeo natildeo

consegue fazer nenhuma afirmaccedilatildeo crediacutevel sobre este tema Ela eacute incapaz uma vez que

a imortalidade eacute um ldquodadordquo da revelaccedilatildeo

ldquo[C] Confessons ingenuement que Dieu seul nous lrsquoa dict et la foy car leccedilon nrsquoest ce pas de nature et de nostre raisonrdquo85

Montaigne assumindo uma posiccedilatildeo fideiacutesta depois de ter feito o exame das

diversas opiniotildees sobre a alma86 faz um ldquoapelo agrave passividade da razatildeo e agrave aceitaccedilatildeo da

verdade religiosa sem tentar compreendecirc-la ldquoimortalidaderdquo eacute como ldquoDeusrdquo uma

palavra que natildeo pode ser preenchida A imortalidade afirmada pela feacute natildeo poderaacute ser

explorada por nenhuma forma de discurso humanordquo87

Esta atitude fideiacutesta e conservadora em termos religiosos deve-se em grande

parte agrave desilusatildeo de Montaigne face aos inuacutemeros sistemas filosoacuteficos que tentavam

84 Les Essais II 12 p 500 85 Les Essais II 12 p 554 86 Na ldquoApologierdquo haacute uma quantidade significativa de paacuteginas nas quais o autor expressa muitas opiniotildees sobre o tema da alma (cf Les Essais pp 542-547) 87 Birchal Telma de Souza O Eu nos Ensaios de Montaigne Belo Horizonte Editora UFMG 2007 pp 64-65

32

encontrar explicaccedilotildees racionais para todas as questotildees da vida inclusivamente para

aquelas que transcendem a vida real

ldquo[A] Car quelque apparence quil y ayt en la nouvelleteacute je ne change pas aiseacutement de peur que jay de perdre au change Et puis que je ne suis pas capable de choisir je pren le chois dautruy et me tien en lassiette ougrave Dieu ma mis Autrement je ne me sccedilauroy garder de rouler sans cesse Ainsi me suis-je par la grace de Dieu conserveacute entier sans agitation et trouble de conscience aux anciennes creances de nostre religion au travers de tant de sectes et de divisions que nostre siecle a produittesrdquo88

Segundo Leveaux Montaigne sintetiza seu pensamento em mateacuteria religiosa89

da seguinte maneira

ldquo[A] De toutes les opinions humaines et anciennes touchant la religion celle lagrave me semble avoir eu plus de vray-semblance et plus dexcuse qui recognoissoit Dieu comme une puissance incomprehensible origine et conservatrice de toutes choses toute bonteacute toute perfection recevant et prenant en bonne part lhonneur et la reverence que les humains luy rendoient soubs quelque visage sous quelque nom et en quelque maniere que ce fut [hellip]rdquo90

Haacute que reconhecer no entanto que eacute algo difiacutecil e delicado tirar grandes

conclusotildees acerca da religiatildeo embora o tema perpasse toda a ldquoApologie rdquo Montaigne

concebia a religiatildeo como um conjunto de praacuteticas e leis que tinham como finalidade

contribuir para que o homem natildeo agisse como um escravo da vaidade da razatildeo As

uacuteltimas palavras da ldquoApologierdquo onde o autor cita Plutarco pretendem servir como uma

espeacutecie de conclusatildeo de toda a reflexatildeo deste capiacutetulo Deixemos o proacuteprio Montaigne

falar

ldquo[A] Mais quest-ce donc qui est veritablement Ce qui est eternel cest agrave dire qui na jamais eu de naissance ny naura jamais fin agrave qui le temps napporte jamais aucune mutation Car cest chose mobile que le temps et qui apparoit comme en ombre avec la matiere coulante et fluante tousjours sans jamais demeurer stable ny permanenterdquo91

Contestando a atitude humana de querer elevar-se acima da humanidade que

pode ser tambeacutem entendida como um desejo absurdo de um ser despreziacutevel que tem a

88 Les Essais II 12 p 569 89 Cf Leveaux op cit p 213 90 Les Essais II 12 p 513 91 Les Essais II 12 p 603

33

presunccedilatildeo como doenccedila natural e original e que eacute a mais calamitosa de todas as

criaturas e ao mesmo tempo a mais orgulhosa92 Montaigne afirma

ldquo[A] O la vile chose dit-il et abjecte que lhomme sil ne sesleve au dessus de lhumaniteacute [C] Voila un bon mot et un utile desir mais pareillement absurde Car [A] de faire la poigneacutee plus grande que le poing la brasseacutee plus grande que le bras et desperer enjamber plus que de lestandueuml de nos jambes cela est impossible et monstrueux Ny que lhomme se monte au dessus de soy et de lhumaniteacute car il ne peut voir que de ses yeux ny saisir que de ses prises Il seslevera si Dieu lui preste extraordinairement la main Il seslevera abandonnant et renonccedilant agrave ses propres moyens et se laissant hausser et soubslever par les moyens purement celestesrdquo93

Montaigne termina a ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo colocando o homem no

seu devido lugar e afirmando que soacute atraveacutes do auxiacutelio de Deus e com a graccedila da feacute

cristatilde eacute que este ser tatildeo vaidoso poderaacute elevar-se acima da humanidade

ldquo[C] Cest agrave nostre foy Chrestienne non agrave sa vertu Stoique de pretendre agrave cette divine et miraculeuse metamorphoserdquo94

92 Cf nota 12 93 Les Essais II 12 p 604 94 Les Essais II 12 p 604

34

3 A criacutetica agrave razatildeo humana e sua relaccedilatildeo com a ciecircncia

Uma observaccedilatildeo que eacute importante destacar no iniacutecio deste capiacutetulo refere-se agrave

concepccedilatildeo montaigneana de ldquociecircnciardquo que se encontra na ldquoApologie de Raymond

Sebondrdquo Quando Montaigne na sua criacutetica radical agrave razatildeo humana se refere agrave ciecircncia

o que subjaz agraves suas reflexotildees natildeo eacute a concepccedilatildeo moderna de ciecircncia Ele natildeo alude ao

chamado ldquomeacutetodo cientiacutefico experimentalrdquo ateacute porque este meacutetodo ainda natildeo existia O

termo ldquociecircnciardquo natildeo tem o sentido que adquiriu depois da chamada Revoluccedilatildeo

Cientiacutefica do seacuteculo XVII Assim com o termo ciecircncia Montaigne refere-se ao conjunto

do conhecimento erudito de seu tempo

ldquoLa science du XVIᵉ siegravecle nrsquoest que philosophie Elle srsquoarrecircte aux mots jamais elle ne peacutenegravetre au fond des choses et ne suscite un effort critiquerdquo95

Sendo um pensador da uacuteltima fase do periacuteodo renascentista periacuteodo este em que

natildeo havia nenhuma diferenccedila essencial entre a filosofia e a ciecircncia Montaigne procura

expressar as suas ideias os seus ideais de sabedoria como tantos outros faziam isto eacute

quando se refere agrave ciecircncia estaacute a referir-se aos doutos e aos filoacutesofos em geral

Logo no iniacutecio da ldquoApologierdquo Montaigne faz questatildeo de afirmar que a ciecircncia eacute

algo muito uacutetil e grande e os que a menosprezam datildeo prova bastante de estupidez Sem

desprezar agrave partida todo o esforccedilo que muitos fazem para chegar a alcanccedilar o

conhecimento Montaigne por outro lado natildeo chega a estimar tanto a ciecircncia

ldquo[A] Comme Herillus le philosophe qui logeoit en elle le souverain bien et tenoit qursquoil fut en elle de nous rendre sages et contensrdquo96

Montaigne natildeo crecirc nisto nem tampouco no que outros disseram

ldquo[A] que la science est mere de toute vertu et que tout vice este produit par lrsquoignorancerdquo97

Segundo ele mesmo atesta a sua casa esteve habitualmente aberta agraves pessoas de

saber e o seu pai buscou com grande cuidado e despesa o conviacutevio dos homens doutos

ldquo[A] les recevant chez luy comme personnes sainctes et ayans quelque particuliere inspiration de sagesse divine [hellip]rdquo98

95 Villey opcit p 214 96 Les Essais II 12 p 438 97 Les Essais II 12 p 438 98 Les Essais II 12 pp 438-439

35

Embora respirando toda uma atmosfera intelectual que havia em sua casa

Montaigne afirma no entanto que gostava muito destes doutos frequentadores de sua

casa mas natildeo os adorava

Desde as primeiras afirmaccedilotildees de Montaigne na ldquoApologierdquo eacute possiacutevel perceber

ateacute que ponto ele tem dificuldade em aceitar os chamados filoacutesofos de profissatildeo Neste

famoso texto que eacute considerado por Villey ldquole reacutesumeacute du travail logique qui srsquoopegravere

chez Montaigne entre 1573 et 1579 ou 1580rdquo99 podemos encontrar paradoxalmente

por um lado uma valorizaccedilatildeo da razatildeo enquanto uacutenico modo de investigaccedilatildeo dos

doutos e por outro lado que a razatildeo eacute considerada como algo profundamente limitado

enquanto instrumento de acesso ao conhecimento

Montaigne dedica muitas paacuteginas a demonstrar que a ciecircncia fundada na razatildeo

eacute viacutetima da vaidade humana e deve ser contestada Isto pelo facto de que concebe a

ciecircncia como o esforccedilo que deve ser uacutetil agrave nossa felicidade

ldquo[A] la philosophie me doit mettre les armes agrave la main pour combatre la fortune qui me doit roidir le courrage pour fouler aux pieds toutes les advertitez humaines [hellip]rdquo100

O objectivo primeiro da filosofia eacute portanto a vida concreta A atitude vaidosa

da razatildeo na busca do conhecimento causa no homem

ldquo[A] lrsquoinconstance lrsquoirresolution lrsquoincertitude le deuil la superstition la solitude de choses agrave venir voire apres nostre vie lrsquoambition lrsquoavarice la jalousie lrsquoenvie les appetits desreglez foncenez et indomptables la guerre la mensonge la desloyauteacute la detraction et la curiositeacuterdquo101

Segundo Montaigne pagamos um preccedilo elevadiacutessimo por essa bela razatildeo de que

nos gloriamos e por conseguinte tambeacutem pela capacidade de julgar e conhecer

sobretudo se forem adquiridas agrave custa destas paixotildees

Montaigne natildeo vecirc muita necessidade praacutetica de querer mergulhar nos altos

conhecimentos em que a filosofia estaacute imersa Para que serve o conhecimento (fruto da

razatildeo enganadora) de muitas coisas Expressando a sua criacutetica agrave loacutegica aristoteacutelica

afirma ironicamente

ldquo[A] ont-ils tireacute de la Logique quelques consolation agrave la gouterdquo102

99 Villey op cit p 182 100 Les Essais II 12 p 494 101 Les Essais II 12 p 486 102 Les Essais II 12 p 487

36

Prosseguindo no mesmo registo iroacutenico pergunta se acaso se descobriu que a

voluptuosidade e a sauacutede satildeo mais deleitosas para quem conhece a astronomia e a

gramaacutetica e menos importunas agrave desonra e a pobreza103

Montaigne revela um significativo desprezo pelos filoacutesofos que satildeo escravos da

razatildeo e buscam tudo saber e fazer afirmaccedilotildees sobre todas as coisas Ao mesmo tempo

manifesta uma forte tendecircncia para valorizar o homem simples e ignorante

ldquo[A] Jrsquoay veu en mon temps cent artisans cent laboureurs plus sages et plus heureux que des recteurs de lrsquouniversiteacute et lesquels jrsquoaimerois mieux ressemblerrdquo104

Na sua apologia da ignoracircncia declara que o homem tem como quinhatildeo a

presunccedilatildeo e que a ignoracircncia nos eacute recomendada ateacute pela religiatildeo cristatildeldquo[A] La peste

de lrsquohomme crsquoest lrsquoopinion de sccedilavoirrdquo105

Para Montaigne eacute necessaacuterio derrubar a tola vaidade e sacudir de uma maneira

viva e corajosa os fundamentos ridiacuteculos sobre os quais se fundam as falsas ideias

Insiste continuamente no facto de que natildeo necessitamos do saber produzido pela

filosofia

ldquo[A] Crsquoestoit ce que disoit un senateur Romain des derniers siecles que leurs predecesseurs avoient lrsquoaleine puante agrave lrsquoair et lrsquoestomac musqueacute de bonne conscience et qursquoau rebours ceux de son temps se sentoient au dehors que le parfum puans au dedans toutes sorte de vices crsquoest agrave dire comme je pense qursquoils avoient beaucoup de sccedilavoir et de suffisance et grand faute de preudrsquohommierdquo106

O orgulho humano eacute visto pelo autor como algo que atrapalha fortemente na

busca natildeo do conhecimento filosoacutefico claacutessico mas da sabedoria Soacutecrates eacute

referenciado na ldquoApologierdquo entre outras coisas como um grande saacutebio107 Natildeo porque

ldquo[C] le Dieu de sagesse luy avoit attibueacute le surnom de sagerdquo108 mas porque ele mesmo

natildeo se considerava saacutebio e porque a sua melhor ciecircncia era a ciecircncia da ignoracircncia e a

sua melhor sabedoria a simplicidade de espiacuterito

103Cf Les Essais II 12 p 487 104 Les Essais II 12 p 487 105 Les Essais II 12 p 488 106 Les Essais II 12 p 498 107 Podemos encontrar uma quantidade significativa de estudos acerca da figura de Soacutecrates nos Ensaios Destacamos aqui um artigo escrito por Celso Martins Azar Filho cujo tiacutetulo eacute Montaigne e Soacutecrates cepticismo conhecimento e virtuderdquo que estaacute publicado na Revista Portuguesa de Filosofia Tomo LVIII do ano de 2002 Fasc 4 (pp 829-845) Com o seu artigo o autor propotildee-se examinar qual o lugar e a importacircncia deste filoacutesofo no pensamento de Montaigne 108 Les Essais II 12 p 498

37

O verdadeiro saacutebio segundo Montaigne eacute o homem que aprende que natildeo

aprendeu nada Refere-se a isto de uma maneira muito elucidativa

ldquo[A]Il est adnevenu aux gens veacuteritablement sccedilavans ce qui advient aux espics de bled ils vont srsquoeslevant et se haussant la teste droite et fiere tant qursquoil sont vuides mais quand ils sont pleins et grossis de grain en leur maturiteacute ils commencent agrave srsquohumilier et agrave baisser les cornes Pareillement les hommes ayant tout essayeacute et tout sondeacute nrsquoayant trouveacute en cet amas de science et provision de tant de choses diverses rien de massif et ferme et rien que vaniteacute ils ont renonceacute agrave leur presomption et reconneu leur condition naturellerdquo109

Depois de descrever sinteticamente os atributos do saacutebio Montaigne -

considerado como um pensador que popularizou o pirronismo praticando-o

pessoalmente sobretudo na ldquoApologierdquo - afirma que toda a filosofia estaacute distribuiacuteda por

trecircs geacuteneros A sua principal fonte eacute a ediccedilatildeo das obras de Sexto Empiacuterico que surge em

1569 Montaigne enumera estas trecircs filosofias da seguinte maneira haacute os dogmaacuteticos

os acadeacutemicos e os pirroacutenicos110 Os dogmaacuteticos afirmam que se pode ter acesso agrave

ciecircncia os acadeacutemicos natildeo estatildeo de acordo com os dogmaacuteticos isto eacute consideram que

natildeo se pode ter acesso agrave ciecircncia e os pirroacutenicos estatildeo ainda em busca da verdade Estes

declaram que os que pensam havecirc-la encontrado se enganam infinitamente Segundo

Montaigne os pirroacutenicos tecircm como ofiacutecio

ldquo[A] branler douter et enquerir ne srsquoasseurer de rien de rien ne se respondrerdquo111

Esta atitude condu-los segundo Montaigne agrave ataraxia que eacute uma condiccedilatildeo de

vida tranquila sossegada isenta das agitaccedilotildees que recebemos pela impressatildeo da opiniatildeo

e ciecircncia que julgamos ter das coisas Esta indiferenccedila pela ciecircncia liberta os pirroacutenicos

inclusivamente do espiacuterito de rivalidade quanto agrave sua doutrina debatem de maneira bem

pouco vigorosa Quando dizem que o pesado vai para baixo ficariam bastante

aborrecidos se acreditassem neles Sendo assim os pirroacutenicos segundo Montaigne

procuram que os contradigam para gerar ldquo[A] la dubitation et surceance (suspension)

de jugement qui est leur finrdquo112

Os pirroacutenicos satildeo partidaacuterios da duacutevida extrema Expotildeem as suas opiniotildees

apenas para combater aquelas em que pensam que acreditamos Diz Montaigne

109 Les Essais II 12 p 500 110 Les Essais II 12 p 502 111 Les Essais II 12 p 502 112 Les Essais II 12 p 503

38

ldquo[A] Si vous prenez la leur ils prendront aussi volontiers i la contraire agrave soutenir tout leur est un ils nrsquoy ont aucun chois Si vous establissez que la nege soit noire ils augumentent au rebours qursquoelle est blanche Si vous dites qursquoelle nrsquoest ny lrsquoun ny lrsquoautre crsquoest agrave eux agrave maintenir qursquoelle est tous les deux Si par certain jugement vous tenez que vous nrsquoen sccedilavez rien ils vous maintiedront que vous ne sccedilavez Oui et si par un axiome affirmatif vous asseurez que vous en doutez ils vous iront debattant que vous nrsquoen doutez pas ou que vous ne pouvez juger et etablir que vous en doutez Et par cette extremiteacute de doubte qui se secoue soy-mesme ils se separent et se divisent de plusieurs opinions de celles mesme qui ont maintenu en plusieurs faccedilons le double et lrsquoignorancerdquo113

[hellip] Leurs faccedilon de parler sont Je nrsquoestablis rien il nrsquoest non plus ainsi qursquoainsi ou que ny lrsquoun ny lrsquoautre je ne le comprens point les apparences sont eacutegales par tout la loy de parler et pour et contre est pareille [C] Rien ne semble vray qui ne puisse sembler faux [A] Leur mot sacramental crsquoest ἐπέχω crsquoest agrave dire je soutiens je ne bougerdquo114

Os pirroacutenicos servem-se de sua razatildeo para inquirir e debater mas natildeo para

decidir e escolher

Um outro aspecto que leva Montaigne a identificar-se com o pirronismo a uacutenica

filosofia por ele respeitada eacute a visatildeo pirroacutenica relativamente agraves acccedilotildees da vida Os seus

defensores prestam-se e acomodam-se agraves inclinaccedilotildees naturais ao impulso e agrave imposiccedilatildeo

das paixotildees agraves decisotildees das leis e dos costumes

ldquo[A] Ils laissent guider agrave ces choses lagrave leurs actions communes sans aucune opination ou jugement115

Neste sentido Montaigne defende o pirronismo sobretudo por causa de sua

virtude moral116 Sustenta que eacute importante fomentar o juiacutezo livre ou a suspensatildeo do

juiacutezo que eacute a atitude dos pirroacutenicos Por outro lado natildeo pode concordar com a posiccedilatildeo

dos que aceitam a arbitraacuteria submissatildeo a algum tipo de autoridade ou opiniatildeo (os

dogmaacuteticos) Importa salientar no entanto que o autor da ldquoApologierdquo consegue

distanciar-se dos pirroacutenicos que se recusam a fazer qualquer juiacutezo Montaigne por ser

um pensador livre inclusive dos argumentos pirroacutenicos natildeo suspende os seus proacuteprios

113 Les Essais II 12 p 503 114 Les Essais II 12 p 505 115 Les Essais II 12 p 505 116 Para Montaigne o pirronismo natildeo eacute uma doutrina ou um sistema filosoacutefico do qual ele eacute adepto Eacute sobretudo uma atitude de espiacuterito ou uma tendecircncia do pensamento Ele tem consciecircncia da dificuldade que esta filosofia encontra para consolidar-se em termos de coerecircncia loacutegica Se do ponto de vista loacutegico natildeo haacute soluccedilatildeo permanente satisfatoacuteria para o pirronismo ele torna-se uma opccedilatildeo eacutetica na medida em que possibilita aos seus adeptos ldquo[B] de maintenir leur liberteacute et considerer les choses sans obligation et servituderdquo (Les Essais II 12 p 504)

39

juiacutezos Muito pelo contraacuterio emite muitos Exprime as suas opiniotildees sem cessar Chega

ateacute a afirmar que a razatildeo eacute

ldquo[A] sa pierre de touche agrave toutes sortes drsquoessais mais certes crsquoest une touche pleine de fauceteacute drsquoerreur de foiblesse et defaillancerdquo117

Na ldquoApologierdquo Montaigne recorre aos tropos (segundo a designaccedilatildeo de Sexto

Empiacuterico) tomando-os como os principais argumentos contra a filosofia denominada

dogmaacutetica Estes argumentos ceacutepticos tecircm por finalidade provar que eacute impossiacutevel

alcanccedilar a verdade Fundamentado nas reflexotildees pirroacutenicas natildeo considera a ciecircncia

como um verdadeiro conhecimento O saber humano eacute considerado sem efeito por causa

de todo o tipo de divergecircncias que haacute entre os homens

Haacute segundo Montaigne uma imensa e infinita confusatildeo de opiniotildees entre os

filoacutesofos e tudo isto deve-se ao debate perpeacutetuo e universal acerca do conhecimento das

coisas Eles natildeo estatildeo de acordo em nada nem sequer em que o ceacuteu estaacute por cima das

nossas cabeccedilas118 afirma ironicamente E isto deve-se agrave falta de constacircncia do juiacutezo

Quantas vezes julgamos noacutes as coisas Quantas vezes alteramos as nossas opiniotildees

Nesta perspectiva percebemos a atitude relativista de Montaigne

ldquo[A] Ce que je tiens aujourdhuy et ce que je croy je le tiens et le croy de toute ma croyance tous mes utils et tous mes ressorts empoignent cette opinion et men respondent sur tout ce quils peuvent Je me sccedilaurois embrasser aucune veriteacute ny conserver avec plus de force que je fay cette cy Jy suis tout entier jy suis voyrement mais ne mest il pas advenu non une foi mais cent mais mille et tous les jours davoir embrasseacute quelqursquoautre chose agrave tout ces mesmes instrumens en cette mesme condition que depuis jaye jugeacutee fauce Au moins faut il devenir sage agrave ses propres despansrdquo119

Montaigne natildeo pretende condenar a tendecircncia agrave mudanccedila perene que eacute

constitutiva do homem O que ele pretende eacute que o homem se comporte de uma forma

mais moderada e discreta em face das mudanccedilas Sugere que nos tornemos saacutebios agrave

nossa proacutepria custa120

117 Les Essais II 12 p 540 118 Cf Les Essais II 12 p 563 119 Les Essais II 12 p 563 120 Conche na sua obra de introduccedilatildeo aos Essais intitulada Montaigne ou la conscience heureuse apresenta uma reflexatildeo muito sugestiva relativamente ao tema da sabedoria Para este autor os Essais sugerem-nos que compreendamos a filosofia como uma aprendizagem da sabedoria e natildeo do saber Em seu entender Montaigne natildeo tem nenhum interesse em elaborar um sistema filosoacutefico porque isto supotildee que uma verdade permanece o que ela eacute Um sistema filosoacutefico crecirc que haacute verdades e que elas satildeo acessiacuteveis por evidecircncia ou seja que a certeza posta agrave prova eacute realmente uma certeza de direito Estes princiacutepios satildeo sem valor para Montaigne eleja que este natildeo crecirc na possibilidade de confirmar as nossas certezas (cf Conche 2009 op cit 65)

40

O arauto do juiacutezo eacute o homem concreto que vive uma vida real Natildeo eacute um ser

abstracto Por isso Montaigne afirma

ldquo[A] Ce ne sont pas seulement les fievres les breuvages et les grands accidens qui renversent nostre jugement les moindres choses du monde le tournevirent [hellip] et par conseacutequent agrave peine se peut il rencontrer une seule heure en la vie ougrave nostre jugement se trouve en sa deueuml assiette nostre corps estant subject agrave tant de continuelles mutations et estofeacute de tant de sortes de ressorts que ( jen croy les medecins) combien il est malaiseacute quil ny en ayt tousjours quelquun qui tire de traversrdquo121

Vejamos uma definiccedilatildeo da razatildeo na ldquoApologierdquo

ldquo[A] la raison va tousjours torte et boiteuse et deshancheacutee et avec le mensonge comme avec la veriteacute Par ainsin il est malaiseacute de descouvrir son mescompte et desreglement Jappelle tousjours raison cette apparence de discours que chacun forge en soy cette raison de la condition de laquelle il y en peut avoir cent contraires autour dun mesme subject cest un instrument de plomb et de cire alongeable ployable et accommodable agrave tous biais et agrave toutes mesures il ne reste que la suffisance de le sccedilavoir contournerrdquo122

Atraveacutes desta concepccedilatildeo de razatildeo fica suficientemente clara a criacutetica destruidora

de Montaigne agrave filosofia dogmaacutetica que considera a razatildeo como uma faculdade que

permite ao homem ndash entre tantas outras atribuiccedilotildees ndash conhecer e acumular um saber uacutetil

e julgar sobre o bem e o mal

Envolvendo-se de uma maneira muito pessoal ndash como eacute caracteriacutestico do estilo

literaacuterio dos Essais ndash nesta reflexatildeo sobre a razatildeo Montaigne toma a liberdade de fazer

uma pequena descriccedilatildeo de sua personalidade Vale a pena citar algumas destas

passagens porque satildeo um reflexo do pensamento do autor

ldquo[A] Jay le pied si instable et si mal assis je le trouve si ayseacute agrave crouler et si prest au branle et ma veueuml si desregleacutee que agrave jun je me sens autre quapres le repas si ma santeacute me rid et la clarteacute dun beau jour me voylagrave honneste homme si jay un cor qui me presse lorteil me voylagrave renfroigneacute mal plaisant et inaccessible [hellip] Maintenant je suis agrave tout faire maintenant agrave rien faire ce qui mest plaisir agrave cette heure me sera quelque fois peine [hellip] Ou lhumeur melancholique me tient ou la choleriqu [hellip]Quand je prens des livres jauray apperceu en tel passage des graces excelentes et qui auront feru mon ame quun autre fois jy retombe jay beau le tourner et virer jay beau le plier et le manier cest une masse inconnue et informe pour moy [hellip] [B] [hellip] mon jugement ne tire pas tousjours avant il flotte il vaguerdquo123

121 Les Essais II 12 pp 564-565 122 Les Essais II 12 p 565 123 Les Essais II 12 pp 565-566

41

Montaigne daacute-se claramente conta de que natildeo encontramos seguranccedila nos

nossos juiacutezos As nossas paixotildees apresentam uma enorme quantidade de fantasias

Sobre isto natildeo podemos alcanccedilar nenhuma seguranccedila porque nos deparamos com

coisas muito instaacuteveis e moacuteveis Sustenta aleacutem disso que se os nossos juiacutezos estatildeo nas

matildeos ateacute mesmo da doenccedila e da perturbaccedilatildeo natildeo podemos esperar deles nada seguro

Foi a partir desta consciecircncia de sua volubilidade que Montaigne chegou a

estabelecer em si mesmo uma certa constacircncia de ideias a ponto de dificilmente alterar

as ideias primeiras e naturais como ele mesmo reconhece Afirma no entanto que natildeo

eacute capaz de decidir Por isso adopta as decisotildees de outrem e manteacutem-se na posiccedilatildeo em

que Deus o pocircs O seu ldquoconservadorismordquo124 religioso e ateacute poliacutetico manifesta-se

claramente nos Essais Mas ao mesmo tempo e este eacute o ponto que mais nos interessa

neste trabalho deixa transparecer que o homem eacute sempre convidado a estar aberto agraves

mudanccedilas

ldquo[A] Le ciel et les estoilles ont branleacute trois mille ans tout le monde lavoit ainsi creu jusques agrave ce que [C] Cleanthes le Samien ou selon Theophraste Nicetas Siracusien [A] savisa de maintenir que cestoit la terre qui se mouvoit [C] par le cercle oblique du Zodiaque tournant agrave lentour de son aixieu [A] et de nostre temps Copernicus a si bien fondeacute cette doctrine quil sen sert tres-regleacuteement agrave toutes les consequences Astronomiquesrdquo conclui o autor ldquosinon qursquoil ne nous doit chaloir le quel ce soit des deux Et qui sccedilait qursquoune tierce opinion drsquoicy agrave mille ans ne renverse les deux precedentesrdquo125

124 Trata-se de um termo que natildeo tinha na eacutepoca de Montaigne o mesmo significado que tem hoje isto eacute como oposto de ldquoprogressismordquo Montaigne estava inserido numa sociedade marcada por grandes inovaccedilotildees pretendidas pelos partidaacuterios da Reforma Protestante que se defendiam a ferro e fogo acirrando certezas antes adormecidas e impondo agrave Franccedila as mais seacuterias turbulecircncias ldquo[B] Je suis desgousteacute de la nouvelleteacute quelque visage qursquoelle porte et ay raison car jrsquoen ay veu des effets tres-dommageables Celle qui nous presse depuis tant drsquoans elle nrsquoa pas tout exploicteacute mais on peut dire avec apparence que par accident elle a tout produict et engendre voire et les maux et ruines qui se font depuis sans elle et contre elle crsquoest agrave elle agrave srsquoen prendre au nezrdquo (Les Essais I 23 p 119) Eacute nesta perspectiva que vaacuterios comentadores observam que Montaigne natildeo poderia ser um homem ldquorevolucionaacuteriordquo e sim algueacutem que achasse melhor defender uma confianccedila moderada no lento aperfeiccediloamento das instituiccedilotildees ldquo[C] Les Franccedilois mes contemporaneacutees sccedilavent bien qursquoen dire Toutes grandes mutations esbranlent lrsquoestat et le desordonnentrdquo (Les Essais III 9 p 958) Isto permite compreender melhor alguns dos motivos pelos quais Montaigne assume as posiccedilotildees poliacuteticas e religiosas ldquoconservadorasrdquo que estatildeo presentes nos Essais Muito interessante eacute uma afirmaccedilatildeo de Jean Lacouture na sua obra Montaigne agrave cheval ndash considerada como uma espeacutecie de biografia que denota um entusiasmo significativo e algo romanceado fundamentada numa documentaccedilatildeo importante ndash na qual o autor reflecte sobre esta questatildeo ldquoMontaigne eacute grande o bastante para poder ser avaliado sob outros aspectos que natildeo a obediecircncia agraves praacuteticas e costumes de seu tempo Quando se eacute capaz no que diz respeito agrave justiccedila agrave toleracircncia ao racismo e agrave colonizaccedilatildeo de estar muitos seacuteculos agrave frente dos costumes e ideias de seu tempo pode-se ser julgado sem que consideraccedilotildees de eacutepoca ou de moda sejam levadas em contardquo (In Lacouture Jean Montaigne agrave cheval (Montaigne a cavalo) Traduzido do francecircs por F Rangel Rio de JaneiroSatildeo Paulo Editora Record 1998 p 236) 125 Les Essais II 12 p 570

42

E para fundamentar ainda mais esta ideia cita Lucreacutecio

ldquo[A] Sic volvenda aeligtas commutat tempora rerum Quod fuit in pretio fit nullo denique honore Porro aliud succedit et egrave contemptibus exit Inque dies magis appetitur floreacutetque repertum Laudibus Et miro est mortales inter honore ( ldquoAinsi dans sa course le temps change les conditions des choses ce qui eacutetait appreacutecieacute tombe dans le meacutepris un autre objet remplace le premier et sort du discreacutedit de jour en jour on le recherce davantage la deacutecouverte nouvelle toutes les louanges et une incoyable estime parmi les hommes)rdquo126

Podemos inferir daqui que ldquoos princiacutepios eternosrdquo natildeo tecircm lugar na ldquoApologie

de Raymond Sebondrdquo Montaigne faz questatildeo de observar que antes de os princiacutepios

introduzidos por Aristoacuteteles ganharem creacutedito outros princiacutepios contentavam a razatildeo

humana Os princiacutepios aristoteacutelicos como todos os outros natildeo estatildeo mais livres de ser

expulsos do que estavam os dos seus antecessores

Segundo Montaigne o juiacutezo depende dos sentidos aos quais por sua vez natildeo

podemos dar creacutedito por vaacuterios motivos Vejamos com mais detalhes este aspecto Eacute

justamente nos sentidos que se encontra o maior fundamento e a prova de nossa

ignoracircncia Montaigne baseado na experiecircncia de vida lembra-nos que natildeo haacute sentido

ou aspecto nem recto nem amargo nem doce nem curvo que o espiacuterito humano natildeo

encontre nos escritos que decide esquadrinhar Os sentidos satildeo muito enganadores A

palavra mais liacutempida mais pura e mais perfeita pode tornar-se equiacutevoca Montaigne

refere-se especialmente ao Evangelho127 Fizeram ao longo da histoacuteria ldquotudo e mais

alguma coisardquo com este texto sagrado para os cristatildeos E que ocorreria se estendecircssemos

esta preocupaccedilatildeo de Montaigne aos gestos humanos que querem exprimir ideias ou

sentimentos nas vaacuterias dimensotildees da vida moral poliacutetica etc

ldquo[C] Est-il possible qursquoHomere aye voulu dire tout ce qursquoon luy faict direrdquo128 E com relaccedilatildeo a Platatildeo ldquo[C] Voyez demener et agiter Platon Chacun srsquohororant de lrsquoappliquer agrave soi le couche du costeacute qursquoil le veutrdquo129

Montaigne observa ainda que com frequecircncia eacute difiacutecil decidir-se porque haacute

demasiadas formas de interpretar um determinado assunto para que o homem consiga

encontrar alguma indicaccedilatildeo que lhe sirva para resolver a questatildeo

126 Les Essais II 12 p 570 127 Cf Les Essais II 12 p 585 128 Les Essais II 12 p 586 129 Les Essais II 12 p 587

43

Montaigne afirma que todo o conhecimento chega ateacute noacutes pelos sentidos [A] Ce

sont nos maistresrdquo130 Observa que a ciecircncia comeccedila pelos sentidos e a eles se reduz

Eles satildeo a base e os princiacutepios de toda a construccedilatildeo de nossa ciecircncia E considera que

natildeo haacute absurdo mais extremo do que sustentar que

ldquo[A] le feu nrsquoeschaufe point que la lumiere nrsquoesclaire point qursquoil nrsquoy a point de pesanteur au fer ny de fermeteacute qui sont notices que nous apportent les sens nycreance ou science en lrsquohomme qui se puisse comparer agrave celle-lagrave en certituderdquo131

Montaigne potildee em duacutevida que o homem esteja provido de todos os sentidos

naturais Chega inclusivamente a perguntar-se se natildeo nos falta algum sentido E afirma

que se isto ocorrer nem a nossa razatildeo pode descobrir a sua ausecircncia nem haacute nada agrave

margem dos sentidos que nos possa servir para os descobrir

ldquo[A]Ils font trestons la ligne extreme de nostre faculteacute [hellip] Il est impossible de faire concevoir agrave un homme naturellement aveugle qursquoil nrsquoy void pas impossible de luy faire desirer la veue et regretter son defautrdquo132

Sendo assim afirma que quando formamos uma verdade pela consulta e

cooperaccedilatildeo dos sentidos poderiacuteamos tambeacutem ser levados a considerar que poderia ser

necessaacuteria a convergecircncia e a contribuiccedilatildeo de oito ou dez sentidos para a captar

acertadamente e na sua essecircncia

Uma das criacuteticas fundamentais de Montaigne agrave ciecircncia incide precisamente no

facto de ela se basear nos sentidos Mas como vimos os sentidos satildeo muito incertos e

fraacutegeis Desta extrema dificuldade nascem muitas opiniotildees (ldquofantasiesrdquo)

ldquo[A]Que chaque subjet a en soy tout ce que nous y trouvons qursquoil nrsquoa rien de ce que nous y pensons trouver et celle de Epicuriens que le Soleil nrsquoest non plus grand que ce que nostre veueuml le juge [hellip] (A) que les apparences qui representent un corps grand agrave celuy qui en est voisin et plus petit agrave celuy qui en est esloigneacute sont toutes deux vrayes [hellip] [A]et resolument qursquoil nrsquoy a aucun tromperie aux sens qursquoil faut passer agrave leur mercy et chercher ailleurs des raisons pour excuser la difference et contradiction que nous y trouvons voyre inventer toute autre mensonge et resverie (ils en viennent jusques lagrave) plustot que drsquoaccuser les sens [hellip] [A] De toutes les absurditez la plus absurde [C] aux Epicuriens [A] est davouumler la force et effect des sensrdquo133

130 Les Essais II 12 p 587 131 Les Essais II 12 p 588 132 Les Essais II 12 p 589 133 Les Essais II 12 p 591

44

Segundo Montaigne natildeo podemos livrar-nos dos sentidos se queremos construir

o conhecimento Mas os sentidos satildeo incertos falsificaacuteveis e enganadores134 E entende

tambeacutem que se eacute verdade que os sentidos satildeo os nossos primeiros juiacutezes135 entatildeo natildeo

devemos limitar-nos a convocar apenas os nossos para o conselho pois no que se refere

aos sentidos os animais tecircm tanto direito quanto noacutes ou mais Montaigne observa ainda

que os sentidos do homem estatildeo em desacordo com os sentidos dos animais E eacute por isto

que

ldquo[A] Pour le jugement de lrsquoaction des sens il faudroit donc que nous en fussions premierement drsquoaccord avec les bestes secondement entre nous mesmes [hellip] et entrons en debat tous les coups de ce que lrsquoun oit void ou goute quelque chose autrement qursquoun autre et debatons autant que drsquoautre chose de la diversiteacute des images que le sens nous raportentrdquo136

Concluindo a exposiccedilatildeo acerca dos sentidos Montaigne lembra-nos que os

sentidos satildeo para algumas pessoas mais obscuros e mais velados enquanto que para

outras pessoas satildeo mais claros e apurados Em seu entender recebemos as coisas de

forma diferente de acordo com o que somos e com o que nos parece Mas se o parecer

nos eacute tatildeo incerto e controverso

ldquo[A] Ce nrsquoest plus miracle si on nous dict que nous pouvons avoueumlr que la neige nous apparoit blanche mais que drsquoestablir si de son essence elle est telle et agrave la veriteacute nous ne nous en sccedilaurions respondrerdquo137

Tendo em conta todos os atributos dos sentidos acima mencionados Montaigne

dificilmente poderia chegar a uma outra conclusatildeo

ldquo[A] ce commencement esbranleacute toute la science du monde srsquoen va necessairement agrave vau-lrsquoeaurdquo138

Referindo-se a Teofrasto Montaigne recorda-nos que este pensador dizia que o

conhecimento humano guiado pelos sentidos podia julgar sobre as causas das coisas

ateacute certo ponto Mas que ao chegar agraves causas extremas e primeiras tinha de deter-se a

embotar-se devido ou agrave sua fragilidade ou agrave dificuldade das coisas Montaigne afirma

134 Assim como os sentidos satildeo enganadores satildeo tambeacutem enganados ldquo[A] Cette mesme piperie que les sens apportent agrave nostre entendement ils la reccediloivent agrave leur tour Nostre ame par fois srsquoen revenche de mesme [C] ils mentent et se trompent agrave lrsquoenvy [A] Ce que nous voyons et oyons agitez de colere nous ne lrsquooyons pas tel qursquoil est [hellip] Lrsquoobject que nous aymons nous semble plus beau qursquoil est [hellip] [A] et plus laid celuy que nous avons agrave contre coeur [hellip] Nos sens sont non seulement alterez mais souvent hebelez du tout par les passions de lrsquoame Combien de choses voyons nous que nous nrsquoa appercevons pas si nous avons nostre esprit empescheacute ailleurs (Les Essais II 12 pp 495-496) 135 Cf Les Essais II 12 p 596 136 Les Essais II 12 p 598 137 Les Essais II 12 pp 598-599 138 Les Essais II 12 p 599

45

ldquo[A] Cest une opinion moyenne et douce que nostre suffisance nous peut conduire jusques agrave la cognoissance daucunes choses et quelle a certaines mesures de puissance outre lesquelles cest temeriteacute de lemployer Cette opinion est plausible et introduicte par gens de composition mais il est malaiseacute de donner bornes agrave nostre esprit il est curieux et avide et na point occasion de sarrester plus tost agrave mille pas quagrave cinquanterdquo139

Montaigne procura aqui justificar a sua tese de que o conhecimento empiacuterico ou

sensiacutevel natildeo tem condiccedilotildees para permitir captar princiacutepios e verdades universais A

razatildeo humana por ser um instrumento impotente natildeo consegue dar explicaccedilotildees

convincentes das grandes questotildees da humanidade Consegue apenas explicar algumas

poucas coisas Se a razatildeo eacute incapaz de dar respostas profundas e aceitaacuteveis agraves grandes

questotildees ndash como por exemplo agraves causas primeiras ndash ela eacute descartaacutevel e no que toca agrave

busca do conhecimento natildeo serve para quase nada Daiacute que Montaigne afirme que o

homem eacute capaz de todas as coisas e de nenhuma E se confessa a ignoracircncia das causas

primeiras e dos princiacutepios entatildeo que abandone tambeacutem prontamente todo o resto da sua

ciecircncia

Se a alma conhecesse alguma coisa comeccedilaria por se conhecer a si mesma

ldquo[A] et si elle sccedilavoit quelque chose elle se sccedilauroit premierement elle mesme et si elle sccedilavoit quelque chose hors drsquoelle ce seroit son corps et son estuy avant toute autre choserdquo140

Montaigne refere-se aqui especialmente ao chamado conhecimento da medicina

Para ele a medicina natildeo consegue sair do ciclo vicioso das discussotildees Ressalta o facto

de que ldquoles dieuxrdquo desta ciecircncia tambeacutem natildeo conseguem chegar a acordo algum Daiacute

mais uma vez a atitude pirroacutenica de Montaigne

ldquo[A] Si lrsquohomme ne se connoit comment connoit il ses fonctions et ses forcesrdquo141

O autor debate-se com o problema da verdade o que eacute a verdade Na

ldquoApologierdquo sustenta que a verdade eacute inacessiacutevel e flutuante Neste ponto Montaigne eacute

fiel ao cepticismo que tem como caracteriacutestica dominante a atitude de estar sempre em

busca da verdade num processo que ocorre sempre dentro de um eterno movimento e

nunca se fixa definitivamente em nenhum ponto

139 Les Essais II 12 p 560 140 Les Essais II 12 p 561 141 Les Essais II 12 p 561

46

ldquo[B] La veueuml de nostre jugement se rapporte agrave la veriteacute comme faict loeil du chat-huant agrave la splendeur du Soleil ainsi que dit Aristote Par ougrave le sccedilaurions nous mieux convaincre que par si grossiers aveuglemens en une si apparente lumiererdquo142

Esta concepccedilatildeo flutuante da verdade eacute uma caracteriacutestica distintiva natildeo soacute da

ldquoApologierdquo mas tambeacutem de outros ensaios montaigneanos O autor natildeo faz nenhuma

afirmaccedilatildeo definitiva sobre nenhuma questatildeo A sua preocupaccedilatildeo principal natildeo eacute

encontrar a soluccedilatildeo dos diversos problemas que envolvem o homem mas sim tentar

compreender-se a si proacuteprio ldquo[hellip] je suis moy-mesmes la matiere de mon livrerdquo143 Isto

exclui as verdades fixadas pela tradiccedilatildeo filosoacutefica e neste sentido o pensamento de

Montaigne desenvolve-se agrave margem do dogmatismo Rejeita os pedantes isto eacute aqueles

que acreditam que adquirem o conhecimento utilizando termos palavras ou frases

obscuros

Montaigne insiste na dimensatildeo instaacutevel e incerta do nosso conhecimento que

natildeo consegue alcanccedilar a verdade

ldquo[A] Toutes choses produites par nostre propre discours et suffisance autant vrayes que fauces sont subjectes agrave incertitude et debat Cest pour le chastiement de nostre fierteacute et instruction de nostre misere et incapaciteacute que Dieu produisit le trouble et la confusion de lancienne tour de Babel Tout ce que nous entreprenons sans son assistance tout ce que nous voyons sans la lampe de sa grace ce nest que vaniteacute et folie Lessence mesme de la veriteacute qui est uniforme et constante quand la fortune nous en donne la possession nous la corrompons et abastardissons par nostre foiblesserdquo144

A verdade deve ter ldquo[A] un visage pareil et universelrdquo145 Uma outra

caracteriacutestica da verdade salientada por Montaigne eacute que ela ldquo[A] ne se juge point par

authoriteacute et tesmoignage drsquoautruyrdquo146 Neste sentido a verdade eacute fundamentalmente

pessoal Observando cuidadosamente estes atributos da verdade podemos perceber por

que razatildeo Montaigne faz a seguinte afirmaccedilatildeo

ldquo[A] la veriteacute est engoufleacutee dans des profonds abysmes ougrave la veueuml humaine ne peut penetrerrdquo147

Dito de outro modo a verdade estaacute oculta em Deus e natildeo eacute propriamente dos

homens dos filoacutesofos dos doutos

142 Les Essais II 12 p 552 143 Les Essais Au lecteur p 3 144 Les Essais II 12 p 553 145 Les Essais II 12 pp 578-579 146 Les Essais II 12 p 507 147 Les Essais II 12 p 561

47

ldquo[A] Crsquoest agrave elle (la majesteacute divine) seule qursquoapartient la science et la sapiencerdquo148

A criacutetica montaigneana agrave razatildeo humana manifesta aqui a impossibilidade de se

ter um conhecimento crediacutevel em todos os domiacutenios da vida A razatildeo por ser

infinitamente limitada natildeo consegue chegar a ser uma faculdade que garanta a

descoberta e por conseguinte a sistematizaccedilatildeo da verdade que eacute algo moacutevel pessoal

temporal e tambeacutem paradoxal

Lendo os pensadores antigos Montaigne suscita uma questatildeo fundamental Em

seu entender haacute uma espeacutecie de distanciamento ou divoacutercio entre o conhecimento da

essecircncia e o conhecimento da aparecircncia Como eacute possiacutevel entatildeo observa Montaigne

que eles se deixam vencer pela verosimilhanccedila se natildeo conhecem a verdade Como eacute

possiacutevel que conheccedilam a aparecircncia de algo cuja essecircncia natildeo conhecem Diante destas

dificuldades o autor da ldquoApologierdquo sustenta

ldquo[A] Ou nous pouvons juger tout agrave faict ou tout agrave faict nous ne le pouvons pas Si noz facultez intellectuelles et sensibles sont sans fondement et sans pied si elles ne font que floter et vanter pour neant laissons nous emporter nostre jugement agrave aucune partie de leur operation quelque apparence quelle semble nous presenter et la plus seure assiette de nostre entendement et la plus heureuse ce seroit celle-lagrave ougrave il se maintiendroit rassis droit inflexible sans bransle et sans agitationrdquo149

Segundo Montaigne as coisas natildeo se alojam em noacutes com a sua forma e a sua

essecircncia Se assim fosse recebecirc-las-iacuteamos dessa forma O vinho seria o mesmo na boca

de quem quer que fosse Mas natildeo eacute o que acontece a filosofia causa uma infinita

confusatildeo de opiniotildees e um eterno debate sobre o conhecimento das coisas Deixemos o

proacuteprio autor falar

ldquo[A]Car cela est presuposeacute tres-veritablement que de aucune chose les hommes je dy les sccedilavans les mieux nais les plus suffisans ne sont daccord non pas que le ciel soit sur nostre teste car ceux qui doutent de tout doutent aussi de cela et ceux qui nient que nous puissions aucune chose comprendre disent que nous navons pas compris que le ciel soit sur nostre teste et ces deux opinions sont en nombre sans comparaison les plus fortesrdquo150

Montaigne reconhece que os seus juiacutezos acerca de tudo aquilo que eacute falso eou

verdadeiro ocorrem de uma maneira condicionada dependendo da sua situaccedilatildeo interior

148 Les Essais II 12 p 448 149 Les Essais II 12 p 562 150 Les Essais II 12 p 563

48

e exterior A sua posiccedilatildeo em face das diversas situaccedilotildees concretas da vida eacute muito

dependente das suas opiniotildees que podem ser hoje umas e outras diferentes ou ateacute

contraacuterias amanhatilde Em seu entender ateacute o proacuteprio ar que respiramos e a serenidade do

ceacuteu produzem em noacutes alguma alteraccedilatildeo Recorda um verso de Ciacutecero

ldquo[A] Tales sunt hominum mentes quali pater ipse Juppiter auctifera lustravit lampade terras (Les penseacutees des hommes changent avec les rayons feacutecundants du soleil que Jupiter leur envoie)rdquo151

Noutro ensaio do livro III intitulado ldquoDu repentirrdquo Montaigne depois de afirmar

que o mundo eacute movimento e que tudo nele muda continuadamente faz uma observaccedilatildeo

de grande importacircncia que pode ser inserida neste contexto

ldquo[B] Tant y a que je me contredits bien agrave lrsquoaventure mais la veriteacute comme disoit Demandes je ne la contredy point Si mon ame pouvoit prendre pied je ne mrsquoessaierois pas je me resoudrois elle est toujours en apprentissage et en espreuverdquo152

Montaigne questiona de forma radical todos os que se orgulham de sua razatildeo e

acreditam na certeza de todos os seus princiacutepios Utiliza a proacutepria razatildeo para arruinar a

razatildeo dos filoacutesofos profissionais ou seja os seguidores cegos da loacutegica aristoteacutelica Em

suma combate a razatildeo com a proacutepria razatildeo e nega o seu valor

No texto seguinte Montaigne faz uma espeacutecie de caracterizaccedilatildeo da

escolaacutestica153 e da loacutegica aristoteacutelica154 Eacute um texto fundamental da ldquoApologierdquo no

qual o autor se refere claramente agrave hierarquia filosoacutefica aristoteacutelica na qual

encontramos a metafiacutesica como ldquociecircncia mais correctardquo

ldquo[A] Il est bien aiseacute sur des fondemens avouez de bastir ce quon veut car selon la loy et ordonnance de ce commencement le reste des pieces du bastiment se conduit ayseacuteement sans se deacutementir Par cette voye nous trouvons nostre raison bien fondeacutee et discourons agrave boule veue car nos maistres praeligoccupent et gaignent avant main autant de lieu en nostre creance quil leur en faut pour conclurre apres ce quils veulent agrave la mode des Geometriens par leurs demandes avoueacutees le consentement et

151 Les Essais II 12 p 564 152 Les Essais III 2 p 805 153 Na eacutepoca em que Montaigne escreveu a ldquoApologierdquo a doutrina escolaacutestica era caracterizada por um excesso de formalismo e de abstracccedilatildeo o que o levou a demonstrar uma aversatildeo profunda por essa filosofia 154 Segundo Friedrich haacute na ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo alguns ldquofaibles tracesrdquo de uma leitura de Aristoacuteteles jaacute que naquela eacutepoca este pensador grego exercia a sua uacuteltima grande influecircncia sobre os humanistas Aristoacuteteles eacute para Montaigne a ldquoquintessencerdquo da autoridade magistral que obstaculiza a sua relaccedilatildeo livre com a tradiccedilatildeo ldquoSa doctrine nous sert de loy magistrale qui est agrave lrsquoaventure autant fause qursquoune autrerdquo (Les Essais II 12 p 521 a 279) Friedrich observa no entanto que natildeo eacute possiacutevel fixar exactamente em que medida Montaigne leu Aristoacuteteles e considera que natildeo se trata de uma leitura muito soacutelida (Cf Friedrich op cit p 67)

49

approbation que nous leurs prestons leur donnant dequoy nous trainer agrave gauche et agrave dextre et nous pyroueter agrave leur volonteacute Quiconque est creu de ses presuppositions il est nostre maistre et nostre Dieu il prendra le plant de ses fondemens si ample et si aiseacute que par iceux il nous pourra monter sil veut jusques aux nueumls En cette pratique et negotiation de science nous avons pris pour argent content le mot de Pythagoras que chaque expert doit estre creu en son art Le dialecticien se rapporte au grammairien de la signification des mots le Rhetoricien emprunte du Dialecticien les lieux des arguments le poete du musicien les mesures le geometrien de larithmeticien les proportions les metaphysiciens prennent pour fondement les conjectures de la physique Car chasque science a ses principes presupposez par ougrave le jugement humain est brideacute de toutes parts Si vous venez agrave choquer cette barriere en laquelle gist la principale erreur ils ont incontinent cette sentence en la bouche quil ne faut pas debattre contre ceux qui nient les principesrdquo155

Se a verdade ndash como tudo parece indicar ndash se daacute a conhecer atraveacutes das causas ndash

haveraacute que fazer referecircncia agraves quatro causas156 presentes na filosofia aristoteacutelica Se o

homem realmente conseguir conhecer estas causas teraacute um conhecimento ldquocientiacuteficordquo

da substacircncia que procura Por isso Montaigne quer invalidar a filosofia dita dogmaacutetica

de Aristoacuteteles rejeitando claramente a tese das quatro causas Em seu entender esta

teoria natildeo passa de um engano O autor da ldquoApologierdquo sugere que a teoria das quatro

causas soacute serve para prejudicar os homens que ludibriados pelo poder da razatildeo natildeo

cessam de correr atraacutes do conhecimento das causas que lhe eacute por seu turno inacessiacutevel

A verdade das causas estaacute acima de nossas capacidades racionais

Assumindo a postura pirroacutenica de Sexto Empiacuterico ndash que foi aliaacutes um aceacuterrimo

opositor de Aristoacuteteles ndash Montaigne procurou fazer algo semelhante Isto eacute procurou

atacar as bases da ciecircncia escolaacutestica (sobretudo preocupada em conciliar a razatildeo com a

feacute apoiando-se na filosofia grega principalmente a aristoteacutelica) e por conseguinte de

todos os outros sistemas dogmaacuteticos Numa perspectiva ceacuteptica sextiana Montaigne

trava uma batalha contra os princiacutepios da metafiacutesica tidos como os mais correctos Esta

visatildeo aristoteacutelica quer estabelecer uma ligaccedilatildeo entre o pensamento e o juiacutezo humanos e

os obriga a natildeo evitar as questotildees preacute-existentes Segundo Montaigne esta concepccedilatildeo

155 Les Essais II 12 p 540 156 Aristoacuteteles apresenta estas causas particularmente nos livros I e II da Metafiacutesica Satildeo elas causa material isto eacute aquilo de que eacute feita uma coisa por exemplo a mateacuteria do homem eacute a carne e os ossos a mateacuteria da mesa eacute a madeira e assim por diante causa formal isto eacute a forma ou essecircncia das coisas por exemplo o rio e o mar satildeo as formas da aacutegua um tapete eacute a forma assumida pela mateacuteria latilde com a acccedilatildeo do artiacutefice causa eficiente ou motriz isto eacute aquilo de que provecircm a mudanccedila e o movimento das coisas por exemplo o artiacutefice eacute a causa eficiente que faz a latilde receber a forma do tapete o gelo eacute a forma que faz os corpos quentes tornarem-se frios e causa final isto eacute a causa que constitui o fim ou o propoacutesito das coisas e acccedilotildees por exemplo o bem eacute a causa final da poliacutetica a felicidade eacute a causa final da acccedilatildeo eacutetica e assim por diante

50

tambeacutem natildeo potildee em evidecircncia o facto de que o conhecimento adquirido por este

processo fica enclausurado dentro de um ciacuterculo vicioso Deixemos o proacuteprio autor

falar

ldquo[A] Pour juger des apparences que nous recevons des subjets il nous faudroit un instrument judicatoire pour verifier cet instrument il nous y faut de la demonstration pour verifier la demonstration un instrument nous voila au rouet Puis que les sens ne peuvent arrester nostre dispute estans pleins eux-mesmes dincertitude il faut que ce soit la raison aucune raison ne sestablira sans une autre raison nous voylagrave agrave reculons jusques agrave linfiny Nostre fantasie ne sapplique pas aux choses estrangeres ains elle est conceue par lentremise des sens et les sens ne comprennent pas le subject estranger ains seulement leurs propres passions et par ainsi la fantasie et apparence nest pas du subject ains seulement de la passion et souffrance du sens laquelle passion et subject sont choses diverses parquoy qui juge par les apparences juge par chose autre que le subject [hellip]rdquo157

Os escolaacutesticos natildeo testaram as suas ideias atraveacutes dos factosldquoIls ne se

rapportent pas agrave lrsquoexpeacuterience ils nrsquoessaient jamais leurs opinions Leur travail consiste

uniquement agrave tirer des deacuteductions de principes et drsquoaxiomes qursquoils nrsquoexaminent jamais

Leurs principes sont faux les conseacutequences qursquoils en deacuteduisent sont donc fausses

neacutecessairement mais ils ne srsquoen soucient pas La meacutethode scolastique et logicienne

triomphe toujours et rend tous les efforts steacuterilesrdquo158 Montaigne daacute-se conta de que a

capacidade do homem de conhecer algo estaacute profundamente relacionada com a

contingecircncia e que esta mesma capacidade estaacute subordinada aos sentidos que satildeo

ldquomaintesfois maistres du discoursrdquo159 mas que ao mesmo tempo satildeo incertos e

falsificaacuteveis E portanto esta ciecircncia eacute incapaz de chegar a certezas crediacuteveis

157 Les Essais II 12 pp 600-601 158 Villey op cit pp 214-215 159 Les Essais II 12 p 592

51

4 A criacutetica agrave razatildeo humana e o relativismo da moral

Quando lemos a ldquoApologie de Raymond de Sebondrdquo aleacutem de nos depararmos

com problemas claacutessicos da filosofia como a criacutetica agrave teoria do conhecimento

deparamo-nos tambeacutem com o problema da moral de que o autor se ocupa de uma

maneira muito particular Natildeo apresentaremos neste capiacutetulo uma abordagem detalhada

e detida do tema da moral na ldquoApologierdquo Isto exigiria uma investigaccedilatildeo aprofundada e

de maior amplitude uma vez que o autor desenvolve neste texto muitos aspectos

importantes deste tema

Limitar-nos-emos a procurar perceber por que razatildeo o autor ldquodecretardquo a

impossibilidade de fundamentar na razatildeo humana um conjunto de normas ou leis que

dizem respeito agrave vida praacutetica de qualquer grupo humano Perseguindo este objectivo

procuraremos reconstruir os vaacuterios argumentos do ensaio que justificam a sua tomada

de posiccedilatildeo no acircmbito da moral160

Para contextualizar um pouco a questatildeo da moral nos Essais eacute importante

observar que no periacuteodo do humanismo renascentista se fazia sentir a necessidade de

emitir juiacutezos que fossem coerentes de se informar dos costumes dos homens tanto dos

antigos como dos povos que habitavam terras longiacutenquas Todos queriam rever a sua

ideia de homem Tratava-se de uma busca aberta e muitos ofereciam a sua contribuiccedilatildeo

como afirma Villey161 Tampouco Montaigne se demitiu desta tarefa Envolveu-se com

empenho na tarefa de perceber o que eacute o homem Para isto misturou muitas histoacuterias

antigas e contemporacircneas com inuacutemeras reflexotildees de viajantes que vinham de terras

distantes sobretudo daquelas que foram invadidas e ocupadas por europeus nelas

encontra uma confirmaccedilatildeo da tese segundo a qual a multiplicidade irreconciliaacutevel e a

diversidade mais ampla satildeo a uacutenica marca do ser As teses ceacutepticas de Montaigne

revelam-se de uma maneira particularmente radical no campo da moral neste acircmbito

adquiriraacute uma importacircncia capital a diversidade dos costumes como argumento contra a

moral ldquoracionalrdquo

160 Segundo Villey Montaigne toma consciecircncia do relativismo relativo ao conhecimento natildeo apenas nas noccedilotildees de metafiacutesica mas tambeacutem nas noccedilotildees de moral Neste ponto teraacute uma influecircncia muito importante sobretudo a sua leitura de Sexto Empiacuterico Nesta perspectiva Montaigne pode ser visto como um moralista O mesmo autor afirma que eacute principalmente nas ideias morais que podemos perceber nitidamente o relativismo montaigneano (cf Villey op cit pp188-189) 161 Cf Villey op cit p189

52

Na ldquoApologierdquo Montaigne deteacutem-se a considerar que todas as sociedades tecircm

necessidade das leis Ele tem perfeita consciecircncia de que sem leis nenhuma sociedade

poderaacute ter vida longa A obediecircncia agraves leis162 eacute uma condiccedilatildeo sine qua non para a

sobrevivecircncia de qualquer grupo social Montaigne natildeo leva a ingenuidade ao ponto de

negar pura e simplesmente a necessidade das leis e normas Neste sentido pensa como

Epicuro isto eacute considera que mesmo as piores leis nos satildeo tatildeo necessaacuterias que sem

elas os homens se devorariam uns aos outros163 No mesmo paraacutegrafo Montaigne

observa que tambeacutem Platatildeo distanciando-se pouco desta tese sustenta que sem leis

viveriacuteamos como animais selvagens e se empenha em provaacute-lo

ldquo[A] Nostre esprit est un util vagabond dangereux et temeraire il est malaiseacute dy joindre lordre et la mesure Et de mon temps ceux qui ont quelque rare excellence au dessus des autres et quelque vivaciteacute extraordinaire nous les voyons quasi tous desbordez en licence dopinions et de meurs Cest miracle sil sen rencontre un rassis et sociable On a raison de donner agrave lesprit humain les barrieres les plus contraintes quon peut En lestude comme au reste il luy faut compter et regler ses marches il luy faut tailler par art les limites de sa chasserdquo164

Ao citar Epicuro e Platatildeo o autor da ldquoApologierdquo manifesta a sua decepccedilatildeo

relativamente ao homem de sua eacutepoca Certamente estes pensadores trazem-lhe agrave

memoacuteria a situaccedilatildeo concreta em que estava mergulhada a sociedade francesa naquela

eacutepoca Lendo de uma forma atenta a sua obra eacute faacutecil comprovar que Montaigne era

consciente de tudo o que se passava no seu paiacutes guerras conflitos religiosos profundos

e actos de violecircncia deles derivados

Laschamp ao descrever algumas caracteriacutesticas do contexto no qual Montaigne

elabora a sua obra afirma

162 Haacute uma quantidade significativa de afirmaccedilotildees nos Essais acerca da necessidade do cumprimento da lei independentemente de esta ser ou natildeo justa Vejamos algumas ldquo [C] Il nrsquoest rien si lourdement et largement fautier que les loix ny si ordinairement [B] Quiconque leur obeyt pas justement par ougrave il doibt [hellip] [B]Or les loix se maintiennent en credit non par ce qursquoelles sont justes mais par ce qursquoelles sont loix Crsquoest le fondement mystique de leur authoriteacute elles nrsquoen ont poinct drsquoautrerdquo (Les Essais III 13 p 1072) Montaigne chega ateacute a afirmar que ldquo[A] ce bon et grand Socrates refusa de sauver sa vie par la desobeissance du magistrat voire drsquoun magistrat tres-injuste et tres-inique Car crsquoest la regle des regles et generale loy des loix que chacun observe celles du lieu ougrave il est [hellip]rdquo (Les Essais I 23 p 118) ldquo[A] Jen diray seulement encore cela que cest la seule humiliteacute et submission qui peut effectuer un homme de bien Il ne faut pas laisser au jugement de chacun la cognoissance de son devoir il le luy faut prescrire non pas le laisser choisir agrave son discours autrement selon limbecilliteacute et varieteacute infinie de nos raisons et opinions nous nous forgerions en fin des devoirs qui nous mettroient agrave nous manger les uns les autres comme dit Epicurusrdquo (Essais II 12 p 488) 163 Cf Les Essais II 12 p 558 164 Les Essais II 12 p 559

53

ldquoLes violences entre les dissidents eacutegalaient celles dont ils eacutetaient lrsquoobjet de la part de leurs adversaires Jamais lrsquoabus du raisonnement nrsquoavait eacuteteacute pousseacute plus loin jamais il nrsquoavait deacutechacircneacute tant de colegraveres jamais il nrsquoavait fait couler tant de larmes et tant de sangrdquo165

Assim se compreende melhor por que razatildeo Montaigne afirma que na sua

eacutepoca os que tecircm alguma rara excelecircncia acima dos outros e uma vivacidade

extraordinaacuteria os excedem em desregramento de ideias e de costumes e praticam acccedilotildees

que impedem a felicidade dos homens

Montaigne na qualidade de libre penseur natildeo poderia deixar de defender a

liberdade de pensamento Mas ao mesmo tempo sabe tambeacutem que se esta liberdade

estiver sujeita agrave vaidade da razatildeo muitas atitudes humanas inclusive religiosas como

vimos anteriormente poderatildeo tornar-se nocivas para o homem Ao descrever algumas

das caracteriacutesticas da liberdade de que davam prova os antigos na filosofia e ao fazer

um paralelo com a sociedade de sua eacutepoca afirma

ldquo[A] La liberteacute donq et gaillardise de ces esprits anciens produisoit en la philosophie et sciences humaines plusieurs sectes dopinions differentes chacun entreprenant de juger et de choisir pour prendre party Mais agrave present [C] que les hommes vont tous un train [hellip] et [A] que nous recevons les arts par civile authoriteacute et ordonnance [C] si que les escholes nont quun patron et pareille institution et discipline circonscrite on ne regarde plus ce que les monnoyes poisent et valent mais chacun agrave son tour les reccediloit selon le pris que lapprobation commune et le cours leur donneOn ne plaide pas de lalloy mais de lusage ainsi se mettent egallement toutes choses On reccediloit la medicine comme la Geometrie et les batelages les enchantemens les liaisons le commerce des esprits des trespassez les prognostications les domifications et jusques agrave cette ridicule poursuitte de la pierre philosophale tout se met sans contredictrdquo166

Montaigne escreve a sua obra mergulhado num clima onde reinava uma

ldquoanarchie dans les ideacutees et dans les faitsrdquo167 e coloca-se na atitude de ajudado pelos

costumes antigos julgar o seu tempo Segundo Villey eacute exactamente neste contexto

muito conturbado que Montaigne entra em contacto com o livro de Sexto Empiacuterico

ldquoVoilagrave ougrave lrsquoinfluence du milieu et sa propre dociliteacute aux faits lrsquoont conduit Presque toujours crsquoest la loi politique et morale agrave laquelle il est naturellement assujetti que lrsquoesprit eacuterige en loi absolue Montaigne a affranchi sa raison de cette contrainte naturelle il sait critiquer la loi

165 Laschamp op cit p 104 166 Les Essais II 12 pp 559-560 167 Laschamp op cit p 94

54

que son milieu lui impose crsquoest un pas drsquoune extrecircme importance qursquoil a fait lagrave vers lrsquoideacutee de relativiteacuterdquo168

Montaigne descreve alguns aspectos que comprovam o seu relativismo face aos

costumes de vaacuterios povos sobretudo quando os relaciona com os de Franccedila Com isto o

autor quer sugerir possivelmente que as crenccedilas os juiacutezos e as opiniotildees dos homens

estatildeo sujeitos agraves inconstacircncias perenes que haacute na vida concreta

ldquo[A] si le ciel les agite et les roule agrave sa poste quelle magistrale authoriteacute et permanante leur allons nous attribuant [hellip] [B] en maniere que ainsi que les fruicts naissent divers et les animaux les hommes naissent aussi plus et moins belliqueux justes temperans et dociles icy subjects au vin ailleurs au larecin ou agrave la paillardise icy enclins agrave superstition ailleurs agrave la mescreance [C] icy agrave la liberteacute icy agrave la servitude [hellip] [B] que deviennent toutes ces belles prerogatives dequoy nous nous allons flatants Puis quun homme sage se peut mesconter et cent hommes et plusieurs nations voire et lhumaine nature selon nous se mesconte plusieurs siecles en cecy ou en cela quelle seureteacute avons nous que par fois elle cesse de se mesconter [C] et quen ce siecle elle ne soit en mescomte [A] Il me semble entre autres tesmoignages de nostre imbecilliteacute que celui-cy ne merite pas destre oublieacute que par desir mesmes lhomme ne sccedilache trouver ce quil luy faut que non par jouyssance mais par imagination et par souhait nous ne puissions estre daccord de ce dequoy nous avons besoing pour nous contenter Laissons agrave nostre penseacutee tailler et coudre agrave son plaisir elle ne pourra pas seulement desirer ce qui luy est propre [C] et se satisfaire [hellip]rdquo169

Segundo Montaigne a verdade de uma teoria moral ndash como a de qualquer outro

conhecimento ndash soacute pode ser afirmada relativamente ao sujeito que estaacute implicado nesta

tarefa O homem que reflecte sobre a moral reflecte sobre si proacuteprio e natildeo sobre a

humanidade em geral Desta perspectiva podemos perceber por que razatildeo Montaigne

afirma que eacute ele proacuteprio a mateacuteria de seu livro170 Eacute o proacuteprio Montaigne que nos toca

ainda mais de perto do que o homem em geral

Montaigne observa que natildeo haacute entre os filoacutesofos combate tatildeo violento e tatildeo rude

como o que se trava acerca da questatildeo do soberano bem do homem

ldquo[A] Il nest point de combat si violent entre les philosophes et si aspre que celuy qui se dresse sur la question du souverain bien de lhommerdquo171

168 Villey op cit p 193 169 Les Essais II 12 pp 575-576 170 Cf nota 143 171 Les Essais II 12 p 577

55

Trata-se de uma questatildeo muito sensiacutevel para Montaigne Em se entender eacute inuacutetil

acrescentar mais uma seita agraves 288 que nasceram segundo o caacutelculo de Varron acerca

da questatildeo do soberano bem172

Montaigne inicia a ldquoApologierdquo afirmando que alguns filoacutesofos pensavam que o

soberano bem estava na ciecircncia173

Mas natildeo acreditava que fosse atraveacutes da ciecircncia174 (moral e filosoacutefica) que o

homem conseguiria ser mais saacutebio e mais feliz O autor natildeo se preocupa em fornecer

exactamente o ldquoendereccedilordquo do bem soberano Vejamos como apresenta algumas

indicaccedilotildees relativas agraves vaacuterias tentativas dos filoacutesofos para encontrarem o bem soberano

esse bem que varia conforme o indiviacuteduo

ldquo[A] Nature devroit ainsi respondre agrave leurs contestations et agrave leurs debats Les uns disent nostre bien estre loger en la vertu dautres en la volupteacute dautres au consentir agrave nature qui en la science [C] qui agrave navoir point de douleur [A] qui agrave ne se laisser emporter aux apparences (et agrave cette fantasie semble retirer cetautre [B] de lantien Pythagoras [hellip] [A] qui est la fin de la secte Pyrrhonienne) rdquo175

Fiel aos argumentos do pirronismo Montaigne sustenta que o soberano bem eacute a

ataraxia Segundo ele a sabedoria indica-nos que eacute necessaacuterio procurar manter na alma

um harmonioso equiliacutebrio A ataraxia foi sempre considerada pelos seguidores do

pirronismo como a coroaccedilatildeo da sua filosofia segundo Andreacute Verdan176 Vejamos

textualmente o que diz Sexto acerca da ataraxia como objectivo de sua doutrina ceacuteptica

filosoacutefica

ldquoIl est propos de dire ici quelque chose de la fin de la Sceptique La fin en geacuteneacuteral est ce pour quoi on fait ou on consideacutere toutes Choses crsquoest ce que lrsquoon ne recherche point pour quelque autre Chose crsquoest ce qui est la dernieacutere Chose que lrsquoon recherche Nous disons donc maintenant que la fin du Filosofe Sceptique est lrsquoAtaraxie ou lrsquoexemtion de trouble agrave lrsquoeacutegard des opinions [hellip] amp alors lrsquoAtaraxie ou lrsquoexemtion de trouble fut une suite heureuse quoique fortuite de cette suspension de son jugement agrave lrsquoeacutegard des opinions [hellip] celui qui opine Dogmatiquement amp qui eacutetablit qursquoil y a naturellement amp reacuteellement quelque bien amp quelque mal est toujours troubleacuterdquo177

172 Les Essais II 12 p 577 173 Cf nota 96 174 ldquoLa philosophie morale est viseacutee comme les autres sciences plus directement mecircme que les autres sciencesrdquo (Villey op cit p219) 175 Les Essais II 12 p578 176 Cf Verdan Andreacute Le scepticisme philosophique Paris-Montreacuteal Bordas 1971 p 57 177 Sextus Empiricus Les Hipotiposes ou Instituitions Pirroniennes Traduzido do grego por Claude Huart Amsterdam Barbier MDCCXXV pp15-16

56

Segundo Montaigne a filosofia natildeo pode oferecer uma base consistente agrave moral

que sirva como garantia da felicidade humana O homem eacute convidado a procurar

alicerces mais seguros e consistentes fora da filosofia

ldquo[C] Il ne nous faut guiere non plus doffices de regles et de loix de vivre en nostre communauteacute quil en faut aux grues et formis en la leur Et neantmoins nous voyons quelles sy conduisent tres-ordonneacutement sans erudition Si lhomme estoit sage il prenderoit le vray pris de chasque chose selon quelle seroit la plus utile et propre agrave sa vierdquo178

Assim o homem estaacute impedido por uma incapacidade que tem a sua origem

sobretudo na razatildeo de determinar tudo aquilo que pode em termos morais servir-lhe

para a construccedilatildeo de uma vida tranquila O homem natildeo sabe encontrar o que lhe eacute

necessaacuterio O desacordo nestes assuntos eacute inerente agrave proacutepria natureza do homem tal

como foi descrita pelo autor da ldquoApologierdquo

Trata-se de um desacordo com consequecircncias preocupantes jaacute que se eacute de noacutes

que depende a organizaccedilatildeo dos nossos costumes metemo-nos numa enorme

confusatildeo179 Aludindo ao parecer de Soacutecrates Montaigne defende que a razatildeo aconselha

cada um a obedecer a lei de seu paiacutes180

Entretanto Montaigne questiona-se seraacute que ldquo[A] nostre devoir nrsquoa autre regle

que fortuite181 A resposta reflecte mais uma vez o relativismo do autor que afirma

que a verdade deve ter uma face universal e uniforme mas que reconhece ao mesmo

tempo que de facto o homem impedido pela razatildeo e pelos sentidos (considerados pela

filosofia tradicional como fonte do conhecimento da verdade) natildeo tem condiccedilotildees de

encontrar uma base moral no discurso racional

ldquo[A] La droiture et la justice si lhomme en connoissoit qui eust corps et veritable essence il ne lattacheroit pas agrave la condition des coustumes de cette contreacutee ou de celle lagrave ce ne seroit pas de la fantasie des Perses ou des Indes que la vertu prendroit sa forme Il nest rien subject agrave plus continuelle agitation que les loix Deacutepuis que je suis nay jay veu trois et quatre fois rechanger celles des Anglois noz voisins non seulement en subject politique qui est celuy quon veut dispenser de constance mais au plus important subject qui puisse estre agrave sccedilavoir de la religion Dequoy jay honte et despit dautant plus que cest une nation agrave laquelle ceux de mon quartier ont eu autrefois une si priveacutee accointance quil

178 Les Essais II 12 p 487 179 Cf Les Essais II 12 p 578 180 Cf Les Essais II 12 p 478 181 Les Essais II 12 p 578

57

reste encore en ma maison aucunes traces de nostre ancien cousinagerdquo182

Reflectindo acerca da situaccedilatildeo concreta que o rodeava isto eacute a guerra as

injusticcedilas e outros males (causados pelo proacuteprio homem) que caracterizavam a Franccedila

de entatildeo Montaigne tem consciecircncia de que seguir as leis do paiacutes183 que satildeo

produzidas pela razatildeo humana eacute algo bastante problemaacutetico

Como moralista Montaigne natildeo deseja fazer a apologia de uma ldquoanarquiardquo em

termos morais muito pelo contraacuterio como vimos defende a importacircncia da lei na vida

quotidiana O que ele pretende defender eacute que todo o sistema que resulta de um

emaranhado de reflexotildees intelectuais natildeo leva a nada pelo facto de que tudo o que a

razatildeo produz estaacute sujeito agrave incerteza tanto a verdade como a falsidade

Ao criticar todo este processo Montaigne quer ressaltar a ideia de que a razatildeo eacute

um estorvo importante para a dinacircmica de construccedilatildeo da justiccedila e das leis morais

Esta tese poderia levar a pensar que Montaigne eacute um pensador que natildeo acredita

na verdade Mas ao ler a sua obra damo-nos conta que eacute um autor apaixonado pela

verdade Ele nunca afirmou que a verdade estava fora de alcance Ele quer encontrar a

verdade A sua proacutepria atitude filosoacutefica pode ser caracterizada como uma perene busca

da verdade O que lhe eacute peculiar nesta busca eacute o facto de questionar profundamente tudo

aquilo que eacute construiacutedo arbitrariamente pela filosofia dogmaacutetica sobretudo as grandes

elaboraccedilotildees teoacutericas e os complicados coacutedigos legais que em geral natildeo respeitam as

contingecircncias da vida

Esta razatildeo eacute por conseguinte a grande responsaacutevel pela contiacutenua agitaccedilatildeo das

leis Neste sentido o cepticismo de Montaigne no domiacutenio da moral estaacute em profunda

sintonia com todo o projecto da ldquoApologierdquo Assim como natildeo aceita as certezas teoacutericas

dos filoacutesofos e pensadores profissionais em mateacuteria de metafiacutesica e em tantos outros

assuntos tradicionalmente caros agrave filosofia rejeita tambeacutem com toda a determinaccedilatildeo a

produccedilatildeo filosoacutefica que eacute apresentada como ciecircncia moral Montaigne natildeo se cansa de

questionar o papel daqueles pensadores que em nome da filosofia se encarregam de

teorizar sobre as leis morais e a justiccedila Podemos dizer que o autor classifica esta

actividade como algo dispensaacutevel agrave vida Neste contexto o autor ressalta o problema da

contingecircncia e da sua relaccedilatildeo com a lei

182 Les Essais II 12 p 579 183 ldquo[B] Car nous avons en France plus de loix que tout le reste du monde ensemble [hellip] [C] Il y a peu de relation nos actions qui sont en perpetuelle mutation avec les loix fixes et immobile Les plus desirables ce sont les plus rares plus simples et generalesrdquo (Les Essais III 13 p 1066)

58

ldquo[A] Que nous dira donc en ceste necessiteacute la philosophie Que nous suyvons les loix de nostre pays Cest agrave dire cette mer flotante des opinions dun peuple ou dun Prince qui me peindront la justice dautant de couleurs et la reformeront en autant de visages quil y aura en eux de changemens de passion Je ne puis pas avoir le jugement si flexiblerdquo184

Algumas doutrinas filosoacuteficas impelem-nos ao cumprimento das leis do paiacutes

Mas como eacute isto possiacutevel se estas leis satildeo condicionadas pelas paixotildees de quem as fez

Em seguida Montaigne refere-se agrave relatividade das leis civis

ldquo[A] Quelle bonteacute est-ce que je voyois hyer en credit et demain plus [C]et que le trajet dune riviere fait crime Quelle veriteacute que ces montaignes bornent qui est mensonge au monde qui se tient au delagrave185

Diante deste quadro podemos perguntar-nos seraacute possiacutevel ter uma moral que

garanta a justiccedila para todos fazendo uso da razatildeo e utilizando as leis humanas que satildeo

sempre condicionadas pelas paixotildees as quais por sua vez estatildeo sujeitas a de tantas

mudanccedilas A resposta de Montaigne eacute negativa e eacute dada de forma iroacutenica

ldquo[A] Mais ils sont plaisans quand pour donner quelque certitude aux loix ils disent quil y en a aucunes fermes perpetuelles et immuables quils nomment naturelles qui sont empreintes en lhumain genre par la condition de leur propre essence Et de celles lagrave qui en fait le nombre de trois qui de quatre qui plus qui moins signe que cest une marque aussi douteuse que le resterdquo186

Aleacutem de constatar a relatividade das leis civis Montaigne natildeo deixa de afirmar

que haacute tambeacutem uma niacutetida relatividade nas leis naturais

ldquo[A] ils sont dis-je si miserables que de ces trois ou quatre loix choisies il nen y a une seule qui ne soit contredite et desadvoeumle non par une nation mais par plusieursrdquo187

Outra tese da ldquoApologierdquo que merece ser lembrada eacute que a razatildeo humana ndash

intrometendo-se em toda a parte para dominar baralhar e confundir a face das coisas

segundo sua vaidade e inconstacircncia ndash quer que acreditemos que haacute leis naturais como as

que se observam nas outras criaturas Mas isto natildeo passa de um equiacutevoco em noacutes as leis

naturais estatildeo perdidas

Montaigne natildeo mede as palavras quando o que estaacute em jogo eacute em seu entender

alguma coisa de capital importacircncia A falta de honestidade e a falsidade satildeo atributos

dos pensadores e elaboradores de leis na sociedade Neste contexto criticaraacute

violentamente a posiccedilatildeo de Platatildeo por exemplo Observa que quando este pensador

184 Les Essais II 12 p 579 185 Les Essais II 12 p 579 186 Les Essais II 12 p 580 187 Les Essais II 12 p 580

59

grego se torna legislador adopta um estilo imperioso e afirmativo e mistura-lhe

ousadamente as mais fantasiosas invenccedilotildees tatildeo uacuteteis para persuadir o povo como

ridiacuteculas para se persuadir a si mesmo Conclui a sua criacutetica a Platatildeo da seguinte forma

ldquo[C] Et pourtant en ses loix il a grand soing quon ne chante en publiq que des poeumlsies desquelles les fabuleuses feintes tendent agrave quelque utile fin et estant si facile dimprimer tous fantosmes en lesprit humain que cest injustice de ne le paistre plustost de mensonges profitables que de mensonges ou inutiles ou dommageables Il dict tout destroussement en sa Republique que pour le profit des hommes il est souvent besoin de les piper 188 rdquo

Na ldquoApologierdquo Montaigne manifesta em vaacuterias ocasiotildees o seu

descontentamento relativamente agraves teses dos filoacutesofos gregos

Considerando as reflexotildees precedentes acerca da moral tudo leva a crer que

Montaigne considera que as leis verdadeiras relativas agrave moral devem ter um caraacutecter

universal e natildeo particular

Montaigne apresenta uma lista de costumes diversificados de povos muito

diferentes que tecircm as suas tradiccedilotildees proacuteprias e que satildeo muitas vezes contraditoacuterias entre

si Isto servir-lhe-aacute para justificar a tese de que natildeo haacute coisa em que o mundo seja tatildeo

diverso como os costumes e leis

ldquo[A] Telle chose est icy abominable qui apporte recommandation ailleurs comme en Lacedemone la subtiliteacute de desrober Les mariages entre les proches sont capitalement defendus entre nous ils sont ailleurs en honneur [hellip]rdquo

ldquo[A] Le meurtre des enfans meurtre des peres communication de femmes trafique de voleries licence agrave toutes sortes de voluptez il nest rien en somme si extreme qui ne se trouve receu par lusage de quelque nationrdquo189

ldquo[A] Les subjets ont divers lustres et diverses considerations cest de lagrave que sengendre principalement la diversiteacute dopinions Une nation regarde un subject par un visage et sarreste agrave celuy lagrave lautre par un autre

Il nest rien si horrible agrave imaginer que de manger son pere Les peuples qui avoyent anciennement ceste coustume la prenoyent toutesfois pour tesmoignage de pieteacute et de bonne affection [hellip]rdquo

ldquo[A] Licurgus considera au larrecin la vivaciteacute diligence hardiesse et adresse quil y a agrave surprendre quelque chose de son voisin [hellip]rdquo ldquo[A] Dionysius le tyran offrit agrave Platon une robe agrave la mode de Perse longue damasquineacutee et parfumeacutee Platon la refusa disant questant nay homme il ne

188 Les Essais II 12 p 512 189 Les Essais II 12 p 580

60

se vestiroit pas volontiers de robbe de femme mais Aristippus laccepta avec ceste responce que nul accoustrement ne pouvoit corrompre un chaste couragerdquo190

ldquo[A] Nous portons les oreilles perceacutees les Grecs tenoient cela pour une marque de servitude Nous nous cachons pour jouir de nos femmes les Indiens le font en public Les Scythes immoloyent les estrangers en leurs temples ailleurs les temples servent de franchiserdquo191

Para Montaigne as razotildees sobre as quais cada povo funda a sua moral satildeo uma

resposta a situaccedilotildees contingentes e natildeo visam dar resposta a situaccedilotildees mais universais

vaacutelidas para todos os homens sem excepccedilatildeo Villey chega a afirmar que Montaigne

ldquocherche une justice et il trouve des justices et des justices contradictoiresrdquo192

Aleacutem de constatar a ausecircncia de um acordo entre as vaacuterias concepccedilotildees no que

diz respeito aos costumes de cada povo Montaigne - fiel agrave criacutetica aos sistemas

filosoacuteficos que perpassa toda a ldquoApologierdquo - destaca tambeacutem o facto de que natildeo haacute

sequer acordo entre os filoacutesofos que se ocupam particularmente em reflectir acerca de

dois temas muito caros agrave filosofia

ldquo[A] Quant agrave la liberteacute des opinions philosophiques touchant le vice et la vertu cest chose ougrave il nest besoing de sestendre et ougrave il se trouve plusieurs advis qui valent mieux teus que publiez [C]aux faibles espritsrdquo193

Segundo Montaigne os proacuteprios homens do saber adoptam atitudes

consideradas inaceitaacuteveis pelo facto de a sociedade as condenar Os exemplos ilustram

esta situaccedilatildeo de uma forma muito niacutetida e revelam quanto a razatildeo humana pode fazer

para encontrar explicaccedilotildees legitimadoras para todas as realidades relativas aos costumes

morais

ldquo[A] De lagrave disent aucuns que doster les bordels publiques cest non seulement espandre par tout la paillardise qui estoit assigneacutee agrave ce lieu lagrave mais encore esguillonner les hommes agrave ce vice par la malaisance [hellip] On demanda agrave un philosophe quon surprit agrave mesme ce quil faisoit Il respondit tout froidement Je plante un homme [hellip]rdquo194

ldquo[C] Car Diogenes exerccedilant en publiq sa masturbation faisoit souhait en presence du peuple assistant qursquoil peut ainsi saouler son ventre en le frottant [hellip] Ces philosophes icy donnoient extreme prix agrave la vertu et refusoient toutes autres disciplines que la moralerdquo195

190 Les Essais II 12 p 581 191 Les Essais II 12 p 582 192 Villey op cit p 197 193 Les Essais II 12 p 582 194 Les Essais II 12 p 584 195 Les Essais II 12 p 585

61

A relatividade das leis e costumes e a impossibilidade de se chegar a acordo

entre os povos tendo em vista estabelecer leis universais leva Montaigne a uma espeacutecie

de denuacutencia da praacutetica dos encarregados pela execuccedilatildeo das leis que jaacute por si satildeo tatildeo

questionaacuteveis Isto torna a lei supostamente universal ainda mais sujeita agrave rejeiccedilatildeo

segundo Montaigne Vale a pena recordar aqui o exemplo de que Montaigne ouviu

falar de um juiz que quando deparava com um seacuterio conflito entre Bartoldo e Baldo196

ou com alguma mateacuteria agitada por muitas contradiccedilotildees escrevia na margem de seu

livro ldquoQuestatildeo para o amigordquo Montaigne observa que neste caso a verdade era tatildeo

confusa e debatida que o juiz em causa poderia favorecer a parte que bem entendesse e

conclui

ldquo[A] Les advocats et les juges de nostre temps trouvent agrave toutes causes assez de biais pour les accommoder ougrave bon leur semble A une science si infinie deacutependant de lauthoriteacute de tant dopinions et dun subject si arbitraire il ne peut estre quil nen naisse une confusion extreme de jugemens Aussi nest-il guiere si cler proceacutes auquel les advis ne se trouvent divers Ce quune compaignie a jugeacute lautre le juge au contraire et elle mesmes au contraire une autre fois Dequoy nous voyons des exemples ordinaires par ceste licence qui tasche merveilleusement la cerimonieuse authoriteacute et lustre de nostre justice de ne sarrester aux arrests et courir des uns aux autres juges pour decider dune mesme causerdquo197

Eacute interessante destacar este exemplo tambeacutem porque Montaigne tinha

conhecimentos profundos da ciecircncia do direito conforme reconhece a maioria dos

comentadores da sua obra Como magistrat tinha conhecimento de causas nas quais se

manifestava aquilo contra o qual se opunha Isto vem confirmar ainda mais a posiccedilatildeo de

Montaigne face agrave sua incansaacutevel busca de leis universais que natildeo estivessem sujeitas agraves

constantes mutaccedilotildees de que a razatildeo humanaldquo[B] un pot agrave deux anses qursquoon peut saisir

agrave gauche et agrave dextrerdquo eacute responsaacutevel e que [A] fornit drsquoapparence agrave divers effectsrdquo198

Ao abordar a problemaacutetica da moral na ldquoApologierdquo Montaigne chega a algumas

conclusotildees que natildeo se distanciam fundamentalmente de todo o projecto do ensaio Isto

eacute defende que haacute um relativismo significativamente claro relativamente agrave moral Villey

faz algumas afirmaccedilotildees que resumem claramente esta problemaacutetica ldquoIl nrsquoy a pas de

souverain bien il nrsquoy a pas de loi naturelle toute obligation moralle est fortuite

196 Trata-se de dois juristas do seacuteculo XIV que no seacuteculo XV ainda tinham grande influecircncia 197 Les Essais II 12 p 582 198 Les Essais II 12 p 581

62

contingenterdquo199 E tudo isto deve-se agrave criacutetica destruidora da razatildeo humana que

Montaigne apresenta no texto Para ele a razatildeo quer julgar tudo quer elaborar leis

universais sem mesmo ter condiccedilotildees para semelhante empreendimento A razatildeo como

vimos eacute multiforme inconstante infinita Ela avanccedila sempre mesmo torta mesmo

manca mesmo desancada tanto com a mentira como com a verdade A razatildeo eacute um

instrumento de chumbo e de cera alongaacutevel dobraacutevel e adaptaacutevel a todas as

perspectivas e a todas as medidas200 Segundo Montaigne a razatildeo eacute ldquo[B] un miserable

fondement de nos regles et qui nous represente volontiers une tres-fauce image des

choses comme vainement nous concluons aujourdrsquohui lrsquoinclination et la decrepitude du

monde par les arguments que nous tirons de nostre propre foiblesse et decadencerdquo201

Em suma Montaigne tem consciecircncia de que eacute impossiacutevel chegar a qualquer

determinaccedilatildeo no domiacutenio da moral atraveacutes da razatildeo Por isto assume uma atitude

ceacuteptica em face desta questatildeo

199 Villey op cit p198 200 Cf nota 122 201 Les Essais III 6 p 908

63

Consideraccedilotildees finais

A leitura da ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo permitiu-nos esclarecer aspectos

importantes da criacutetica demolidora da razatildeo humana levada a cabo por Montaigne

Eacute claro que uma motivaccedilatildeo importante que levou Montaigne a escrever a

ldquoApologierdquo foi a obra do teoacutelogo catalatildeo Sebond Theologia Naturalis Eacute importante

destacar que o proacuteprio tiacutetulo do ensaio ldquoApologiehelliprdquo isto eacute elogio defesa natildeo reflecte

exactamente o seu propoacutesito que eacute a defesa de Sebond A anaacutelise do texto permite

captar algo de paradoxal Montaigne dispotildee-se a defender este teoacutelogo catalatildeo num

ensaio no qual ele proacuteprio se distancia claramente da doutrina de Sebond Neste

sentido haacute um significativo distanciamento entre o tiacutetulo do ensaio e o seu conteuacutedo O

ponto de partida de Montaigne eacute uma espeacutecie de declaraccedilatildeo de que as ideias de Sebond

satildeo convincentes mas imediatamente a seguir muda de opiniatildeo partindo de sua

concepccedilatildeo negativa do homem e natildeo acredita nos supostos poderes da razatildeo Dito de

outro modo Montaigne natildeo sustentava o propoacutesito da Theologia naturalis isto eacute a

pretensatildeo de apoiar a crenccedila dos leitores convidando-os a fazer um esforccedilo de adaptaccedilatildeo

dos instrumentos naturais e humanos considerados como dons de Deus especialmente

a razatildeo pondo-os ao serviccedilo da feacute

Montaigne ldquoaplauderdquo a atitude de Sebond202 Mas imediatamente a seguir critica

o teoacutelogo catalatildeo atacando os vaacuterios argumentos filosoacuteficos presentes na sua obra Na

raiz da sua criacutetica estaacute o facto de estes argumentos se fundamentarem numa visatildeo

antropocecircntrica da supremacia do homem como criatura privilegiada da criaccedilatildeo o

homem por ser detentor da razatildeo diferentemente dos outros animais tem uma

finalidade uma perfeiccedilatildeo e uma dignidade que merece ser exaltada Montaigne natildeo

aceita esta visatildeo que norteia tanto a obra de Sebond como o pensamento de todos

aqueles que faziam apologia da dignitas hominis Denuncia a presunccedilatildeo ilusoacuteria do

homem Desta perspectiva utiliza vaacuterios relatos anedoacuteticos de animais para justificar a

sua posiccedilatildeo E a conclusatildeo principal a que o conduz este percurso eacute que o homem natildeo

estaacute nem acima nem abaixo do resto dos seres naturais203 Dito de outro modo a

consideraccedilatildeo de que unicamente o homem eacute possuidor da razatildeo natildeo tem qualquer

relevacircncia segundo a ldquoApologierdquo

202 Cf nota 1 203 Cf nota 31

64

Da batalha travada por Montaigne contra os vaacuterios opositores da obra de

Sebond podemos destacar a posiccedilatildeo criacutetica que ele assume face aos presunccedilosos

racionalistas que diziam que os argumentos de Sebond eram fracos Diante destes

doutos Montaigne iraacute sustentar a tese de que o homem natildeo sabe nada Haacute que salientar

no entanto que o teoacutelogo catalatildeo estava em ldquocomunhatildeordquo com o pensamento apologeacutetico

de sua eacutepoca isto eacute recorreu agrave razatildeo para provar certos dogmas Para Montaigne o

principal perigo vem daqueles que atribuem super poderes agrave razatildeo Eacute por isso tambeacutem

que Montaigne sustenta que a razatildeo deve submeter-se agrave autoridade divina Esta

submissatildeo natildeo exclui a razatildeo mas considera-a como um meio de compreender o motivo

da feacute Esta feacute deve ser concebida como uma expectativa da graccedila sem a qual nada eacute

possiacutevel ao homem Segundo Montaigne natildeo somos capazes de perceber que toda a

certeza estaacute vedada ao homem reduzido a si proacuteprio204

Podemos perceber que a utilizaccedilatildeo da razatildeo para explicar as realidades da

religiatildeo natildeo tem sentido na ldquoApologierdquo Montaigne natildeo tem necessidade de fazer

apologia da feacute205 A sua perspectiva eacute unicamente humana e isto vai estruturar toda a

sua reflexatildeo na ldquoApologierdquo Quando se refere agrave graccedila como dom sobrenatural nem o

absoluto nem a graccedila actuam no interior de sua visatildeo antropoloacutegica A graccedila eacute

apresentada por Montaigne como uma metamorfose

ldquo[C] Crsquoest agrave nostre foy Chrestienne non agrave sa vertu Stoique de pretendre agrave cette divine et miraculeuse metamorphoserdquo206

Montaigne descobre em si proacuteprio o pirronismo atraveacutes da volubiliteacute207 presente

nas vaacuterias atitudes dos filoacutesofos Pocircs em duacutevida as diversas opiniotildees dos filoacutesofos

denunciando-as como contraditoacuterias criticou as doutrinas filosoacuteficas dogmaacuteticas mas

natildeo assumiu nenhuma doutrina definida Montaigne assume o pirronismo como meacutetodo

e natildeo como um adepto cego para enfrentar os problemas presentes na ldquoApologierdquo

O pirronismo eacute assumido por Montaigne como modo de pensamento e como

meacutetodo de vida Este pirronismo permite-lhe ter em conta na ldquoApologierdquo a incerteza de

204 Cf Nota 93 205 O autor esclarece esta questatildeo da seguinte maneira na ediccedilatildeo posterior a 1588 ldquo[C] Je propose les fantasies humaines et miennes simplement comme humaines fantasies [hellip] matiere dopinion non matiere de foy ce que je discours selon moy non ce que je croy selon Dieu comme les enfants proposent leurs essais intruisables non instruisants dune maniere laiumlque non clericale mais tresminusreligieuse tousjoursrdquo (Les Essais I 56 p 323) 206 Les Essais II 12 p 604 207 Les Essais II 12 p 569

65

nossos juiacutezos a incerteza que todos sentem em si208 em relaccedilatildeo ao conhecimento O

pirronismo faz desaparecer as ilusotildees da certeza e como ele natildeo se envolve nas

questotildees da ldquoirresolution infinierdquo209 procura uma seguranccedila na tranquilidade do

espiacuterito que com a do corpo constitui o soberano bem210 Ao assumir a atitude

pirroacutenica Montaigne natildeo se transforma num homem passivo num ldquopeso mortordquo Muito

pelo contraacuterio sustenta que devemos sempre levantar questotildees reconhecer a nossa

ignoracircncia face agraves vaacuterias resoluccedilotildees tomadas como certas pela presunccedilosa razatildeo

humana duvidar sempre e ter uma atitude de busca incessante de novas ideias

Isto significa que Montaigne defende a tese de que somos convidados a

considerar que os conhecimentos adquiridos devem ser sempre sustentados como

provisoacuterios e natildeo como verdades absolutas Isto natildeo exclui evidentemente o facto de

que podemos apresentar as nossas visotildees prismaacuteticas das coisas e ateacute sustentaacute-las se

assim for necessaacuterio

Na ldquoApologierdquo Montaigne assume uma atitude pirroacutenica sui generis Demonstra

constantemente uma reaccedilatildeo contra os dogmatismos Ele eacute um pensador que estaacute sempre

em busca Nunca cessa de investigar Estaacute sempre em debate consigo mesmo Neste

aspecto pode-se dizer que assume uma atitude diferente do pirronismo grego o qual

defendia a tese da impossibilidade de qualquer juiacutezo Natildeo estaacute preocupado em encontrar

um ldquoroacutetulo de marca registadardquo para suas reflexotildees filosoacuteficas Ou seja natildeo tinha como

objectivo elaborar uma apologia de uma doutrina a ser seguida por adeptos

Montaigne apresenta os seus juiacutezos com a sua razatildeo criacutetica sem ter

necessariamente que defender a tese de que a razatildeo humana ndash instrumento flexiacutevel

recurvaacutevel e adaptaacutevel a qualquer forma211- eacute sempre o guia prudente e seguro de uma

conduta correcta e perfeita Montaigne procura demonstrar racionalmente - e aqui

reside em seu entender o uso positivo da razatildeo ndash que natildeo haacute essecircncia nem verdade

absoluta acerca do homem e que de algumas coisas sempre agrave mercecirc do poder do tempo

noacutes soacute observamos as aparecircncias

ldquo[A] Finalment il nrsquoy a aucune constante existence ny de nostre estre ny de celuy des objects [hellip] Nous nrsquoavons aucune communication agrave lrsquoestre [hellip]rdquo212

208 Cf Les Essais II 12 p 563 209 Cf Les Essais II 12 p 561 210 Cf Les Essais II 12 p 488 211 Cf Les Essais II 12 p 539 212 Les Essais II 12 p 601

66

Montaigne duvida de todos os conhecimentos humanos recebidos por autoridade

e em confianccedila (agrave credit) como se fossem religiatildeo e lei213 tais conhecimentos natildeo

passam de falsas evidecircncias do quotidiano E isto vale sobretudo para todos os tipos de

produccedilatildeo racional que satildeo consequecircncia da vaidade humana

Montaigne esforccedila-se por investigar as opiniotildees dos outros e isto motiva-o a

formular um pensamento mais pessoal preocupado com o que eacute justo e a expandir o

seu proacuteprio conhecimento relativo e precaacuterio As suas investigaccedilotildees natildeo satildeo dogmaacuteticas

e soacute o comprometem a ele proacuteprio Eacute um pensador que estaacute sempre em busca que natildeo

tem a presunccedilatildeo de querer saber tudo sobre todas as coisas Mas ao mesmo tempo

podemos dizer que eacute um pensador que descobriu num mundo marcado por tantas

conturbaccedilotildees graccedilas agraves suas proacuteprias experiecircncias uma consciecircncia real e soacutelida da sua

existecircncia concreta no mundo Este facto levou-o a assumir a atitude de natildeo querer

ensinar nem dirigir a vida de ningueacutem Vale a pena citar a este respeito um pequeno

trecho de um outro ensaio que Montaigne escreveu provavelmente na mesma eacutepoca da

ldquoApologierdquo e que reflecte claramente a posiccedilatildeo por ele assumida e que pode ser

classificada natildeo como a de um filoacutesofo profissional detentor de verdades que devem ser

ensinadas aos outros mas como a de algueacutem que estaacute sempre em busca e natildeo se inibe de

expressar as suas opiniotildees

ldquo[A] Je dy librement mon advis de toutes choses voire et de celles qui surpassent agrave ladventure ma suffisance et que je ne tiens aucunement estre de ma jurisdiction Ce que jen opine cest aussi pour declarer la mesure de ma veueuml non la mesure des chosesrdquo214

Montaigne renuncia a tarefa de querer provar atraveacutes da razatildeo humana aquilo

que estaacute em uacuteltima instacircncia no domiacutenio da feacute Ele eacute um homem que crecirc em Deus

ldquo[A] Il a laisseacute en ces hauts ouvrages le caractere de sa diviniteacute et ne tient quagrave nostre imbecilliteacute que nous ne le puissions descouvrirrdquo215

Uma quantidade importante de pessoas no mundo proclama a existecircncia de

Deus Mas este Deus natildeo pode ser conhecido racionalmente pelo homem

ldquoIl sen faut tant que nos forces conccediloivent la hauteur divine que des ouvrages de nostre createur ceux-lagrave portent mieux sa marque et sont mieux siens que nous entendons le moinsrdquo216

213 Cf Les Essais II 12 p 539 214 Les Essais II 10 p 410 215 Les Essais II 12 pp 446-447 216 Les Essais II 12 p 499

67

Relativamente agrave moral Montaigne sustenta a tese de que a razatildeo humana natildeo

tem o poder de determinar quais satildeo os bons e os maus costumes as boas e as maacutes leis e

normas para qualquer grupo social

Diante da leitura que fizemos da ldquoApologierdquo onde Montaigne apresenta uma

criacutetica destruidora agrave razatildeo tirando-lhe quase todos os atributos recebidos durante toda a

histoacuteria da filosofia podemos portanto perguntar-nos qual eacute o papel da razatildeo humana

A resposta a esta questatildeo eacute muito complexa A criacutetica montaigneana agrave razatildeo natildeo se

limitou a menosprezar a ciecircncia (filosofia) a ldquoteologia racionalistardquo e as suas pretensotildees

de querer dar explicaccedilotildees sobre questotildees de feacute e de religiatildeo atacou tambeacutem

profundamente o espiacuterito humano negando-lhe capacidades que na maioria das vezes

satildeo atributos da pretensatildeo humana Para ilustrar mais claramente esta ideia seraacute

interessante fazer referecircncia a uma passagem ceacutelebre do livro III na qual Montaigne

conta uma pequena histoacuteria de um escravo chamado Esopo

Conta-nos o autor que Esopo estava exposto agrave venda com dois outros escravos

Um comprador indagou de um deles que sabia fazer este para se valorizar contou mil

maravilhas (monts et merveilles) O segundo disse mais ainda Quando chegou a sua

vez Esopo respondeu ldquonada eles jaacute pegaram em tudo eles sabem tudordquo Montaigne

observa que verificou o mesmo nas escolas de filosofia A arrogacircncia o orgulho (fierteacute)

dos que atribuiacuteram ao espiacuterito humano a capacidade de tudo saber levou os outros a

afirmar por despeito ou contradiccedilatildeo que o espiacuterito natildeo era capaz de coisa alguma

Estes exaltavam ao extremo a ignoracircncia tal como aqueles glorificavam absurdamente a

ciecircncia De modo que natildeo haacute como negar que o homem eacute imoderado em tudo e soacute cessa

quando forccedilado pela capacidade de ir aleacutem217

Em suma a ldquoApologierdquo nos apresenta um questionamento profundo em relaccedilatildeo

a todo o tipo de conhecimento fundado na razatildeo Arruiacutena os fundamentos deste

conhecimento produzido pelos homens do saber doutos e filoacutesofos antigos A estes

ldquosaacutebiosrdquo em geral que pensavam ser possuidores da verdade Montaigne dirige uma

criacutetica iroacutenica

laquo [C] Fiez vous agrave vostre philosophie vantez vous davoir trouveacute la feve au gasteau [hellip] raquo218

217 Cf Les Essais II 11 p 1035 218 Les Essais II 12 p 516 Esta citaccedilatildeo faz referecircncia agrave tradiccedilatildeo de na Epifania compartilhar um bolo contendo uma fava quem recebesse a fatia laquo premiada raquo era chamado laquo o rei da fava raquo Tratava-se de algo que figuradamente garantia uma espeacutecie de vantagem

68

Bibliografia

1 - Obras de Michel de Montaigne

Les Essais eacutedition conforme au texte de lrsquoexemplaire de Bordeaux par Pierre Villey

reacuteeacutediteacute sous la direction et avec un preacuteface de V-L Saulnier augmenteacute en 2004 drsquoune

preacuteface et drsquoun suppleacutement de Marcel Conche Paris QuadriguePUF 2004 (ediccedilatildeo de

referecircncia no nosso estudo)

Essais Livre second eacutedition preacutesenteacutee eacutetablie et annoteacutee par Emmanuel Naya

Delphine Reguig-Naya et Alexandre Tarrecircte Paris () Gallimard 2009

2 Estudos sobre Montaigne

AA VV Le dictionnaire des Essais de Montaigne Paris ( ) Eacuteditions Leacuteo Scheer

2011

AA VV Montaigne et la reacutevolution Philosophique du XVI siegravecle Bruxelles Eacuteditions

de lrsquoUniversiteacute de Bruxelles 1992

AUREacuteLIO Diogo Pires Montaigne e Espinosa toleracircncia ceacuteptica e toleracircncia

racionalista In O Cepticismo e Montaigne Rui Bertrand Romatildeo (org) Covilhatilde

Universidade da Beira Interior 2003 pp 141-160

BIRCHAL Telma de Souza O eu nos Ensaios de Montaigne Belo Horizonte Editora

UFMG 2007

BIGNOTTO Newton ldquoMontaigne Renascentistardquo Kriterion Revista do Departamento

de Filosofia da UFMG Belo Horizonte XXXIII 86 agodez 1992 p 29-41

BUTOR Michel Essais sur les essais Paris Gallimard 1968

CATALAN Eacutetienne Eacutetudes sur Montaigne analyse de sa philosophie Paris Hellier

Fregraveres Librairie Religieuse 1846

CHAMPION Edme Introduction aux Essais de Montaigne Paris Armand Colin amp Cie

Eacutediteurs 1900

COMPAGNON Antoine Nous Michel de Montaigne Paris Seuil 1980

CONCHE Marcel Montaigne et la philosophie Paris Puf 1996

69

_____________ Montaigne ou la conscience heureuse Paris PUF 2009

DUARTE Tiago Barros Skepticism and religion in Michel de Montaigne two

interpretations of apology for Raymond Sebond Intuitio Porto Alegre V2 ndash Nordm 3

Novembro 2009 pp 298-307

FILHO Celso Martins Azar Montaigne e Soacutecrates cepticismo conhecimento e

virtude In Revista Portuguesa de Filosofia Tomo LVIII Fasc 4 2002

FRIEDRICH Hugo Montaigne Traduzido do alematildeo por Robert Rovini Paris

Gallimard 1967

GIOCANTI Sylvia Montaigne et les becirctes La becirctise et lrsquoanimal dans les Essais de

Montaigne Universiteacute de Toulouse-II Le Mirail UMR 5037 (ENS-Lyon) 2011

HENDRICK Philip Montaigne and Sebond scepticism faith and imagination In O

Cepticismo e Montaigne Rui Bertrand Romatildeo (org) Covilhatilde Universidade da Beira

Interior 2003 pp 83-102

JEANSON Franccedilois Montaigne par lui-mecircme Paris Seuil 1951

LACOUTURE Jean Montaigne agrave cheval (Montaigne a cavalo) Traduzido por F

Rangel Rio de JaneiroSatildeo Paulo Editora Record 1998

LANUSSE Maxime Montaigne Paris Lecegravene Oudin et Cie Eacutediteurs 1895

LEVEAUX Alphonse Eacutetude sur les Essais de Montaigne Paris Henri Plon

Imprimeur-Eacutediteur 1870

MATHIEU-CASTELLANI Gisegravele Montaigne ou la veacuteriteacute du mensonge Genegraveve

Droz 2000

MONSIEUR L Le chistianisme de Montaigne Paris Imprimerie de Demonville 1819

_______ Montaigne lrsquoeacutecriture de lrsquoessai Paris PUF 1988

NAKAM Geacuteranrd Montaigne et son temps Paris Gallimard 1993

RIGOLOT Franccedilois Le texte de la renaissance des rheacutetoriqueurs agrave Montaigne

Genegraveve Droz 1982

_______ Les meacutetamorphoses de Montaigne Paris PUF 1988

RIVELINE Maurice Montaigne et lrsquoamitieacute Paris Librairie Feacutelix Alcan 1939

70

71

ROMAtildeO Rui Bertrand A apologia na balanccedila a reinvenccedilatildeo do pirrorismo na

Apologia de Raimundo Sabunde de Michel de Montaigne Lisboa Imprensa Nacional

Casa da Moeda 2007

SANTI Pedro Luiz Ribeiro de Montaigne e a reflexatildeo moral no seacuteculo XVI In Revista

Olhar ano 04 nordm 7 jan-jun 03 pp 76-85

STAROBINSKI Jean Montaigne en mouvement Paris Gallimard 1982

STROWSKI Fortunat Montaigne Paris Feacutelix Alcan Eacutediteurs 1906

VERDAN Andreacute Le scepticisme philosophique Paris-Montreacuteal Bordas 1971

VILLEY Pierre Les sources et lrsquoeacutevolution des essais de Montaigne Tome Premier

Paris Librairie Hachete 1908

______ Les sources et lrsquoeacutevolution des essais de Montaigne Tome Second Paris

Librairie Hachete 1908

______ Montaigne devant la posteacuteriteacute Paris Ancienne Librairie Furne ndash Boivin et Cie

Eacutediteurs 1935

WEILLER Maurice Pour connaitre la penseacutee de Montaigne Paris Bordas 1948

3 ndash Outras obras citadas

ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Livro I e II Traduccedilatildeo do grego por Vicenzo Coceo

Coleccedilatildeo Os Pensadores Satildeo Paulo Abril S A Cultural 1984

CASSIRER Ernst An essay on man Traduccedilatildeo portuguesa de Carlos Branco Ensaio

sobre o homem Lisboa Guimaratildees Editores 1995

Nouveau Testament Traduction Oecumeacutenique de la Bible Paris PUF 1977

SEXTUS EMPIRICUS Les hipotiposes ou instituitions pirroniennes Trad do grego

por Claude Huart Amsterdam Barbier MDCC XXV

AA VV Histoacuteria das sociedades das sociedades modernas agraves sociedades atuais Rio

de Janeiro Ao Livro Teacutecnico 1983

  • IacuteNDICE
Page 5: MARÇO DE 2012

IacuteNDICE

Introduccedilatildeo 6

1 A ideia do homem na ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo 9

2 A criacutetica agrave razatildeo humana e a questatildeo da religiatildeo 19

3 A criacutetica agrave razatildeo e sua relaccedilatildeo com a ciecircncia 35

4 A criacutetica agrave razatildeo humana e o relativismo da moral 52

Consideraccedilotildees finais 64

Bibliografia 69

5

Introduccedilatildeo

O tema da razatildeo eacute muito caro a Montaigne e central na sua obra No presente

trabalho pretende-se abordaacute-lo a partir da ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo que faz

parte do segundo livro dos Essais Trata-se de um ensaio que eacute unanimemente

reconhecido como sendo uma das referecircncias mais importantes para quem pretenda

compreender em profundidade os aspectos mais relevantes da criacutetica ceacuteptica agrave razatildeo

humana desenvolvida por Montaigne

Com o pretexto de defender as ideias de Sebond1 Montaigne apresenta de facto

um pensamento totalmente pessoal independente do de Sebond Em vez de responder

agraves diversas objeccedilotildees dos adversaacuterios da Theologia naturalis Montaigne questiona de

uma forma muito incisiva o poder da razatildeo e ldquopotildee em xequerdquo este suposto poder A

criacutetica por ele desenvolvida natildeo se limitou a rebaixar a filosofia ldquoprofissionalrdquo a

suspeitar de todo o conhecimento produzido pela ciecircncia mas atacou tambeacutem

duramente a pretensatildeo humana de tudo querer conhecer atraveacutes da razatildeo pretensatildeo que

se estende inclusivamente a Deus atraveacutes das grandes construccedilotildees racionais da teologia

Como veremos a razatildeo natildeo tem para Montaigne um valor supremo nem eacute sinal de

absoluta superioridade Os limites do poder da razatildeo satildeo tatildeo evidentes que se

manifestam inclusivamente na incapacidade da razatildeo de raciocinar sobre si mesma

ldquo[A] Par ougrave la voulons nous mieux esprouver que par elle mesme Srsquoil ne la faut croire parlant de soy agrave peine sera-elle propre agrave juger des

1 Trata-se de Raymond Sebond Da vida de Sebond sabe-se muito pouco como diz Montaigne ldquo[A] tout ce que nous sccedilavons cest quil estoit Espaignolrdquo (Les Essais II 12 p 440) Especula-se que nasceu em 1385 em Barcelona Diz-se tambeacutem que foi estudante na universidade de Toulouse e que foi reitor daquela universidade Morreu em Toulouse em 1436 onde ensinava medicina e teologia Sua obra magna ldquoTheologia naturalis sive Liber creaturarumrdquo (Teologia natural ou livro das criaturas) escrita em 1434-1436 e publicada em 1487 foi reimpressa vaacuterias vezes ateacute aos meados do seacuteculo XVII Esta obra foi traduzida por Montaigne em 1569 a pedido de seu pai Pierre Eyquem senhor de Montaigne e antigo presidente da Cacircmara Municipal de Bordeaux que se interessava muito por ela conforme atestam os primeiros paraacutegrafos da ldquoApologierdquo Esta traduccedilatildeo foi o primeiro trabalho publicado e o que o lanccedilou no mundo literaacuterio ldquo[A] Je trouvay belles les imaginations de cet autheur la contexture de son ouvrage bien suyvie et son dessein plein de pieteacuterdquo (Les Essais II 12 p 440) Para as citaccedilotildees e referecircncias dos Ensaios utilizaremos a ediccedilatildeo de Villey-Saulnier Paris PUFQUADRIGE 2004 As citaccedilotildees seratildeo feitas da seguinte forma o nuacutemero em algarismos romanos indica o livro o primeiro nuacutemero em araacutebicos o capiacutetulo e o segundo nuacutemero em araacutebicos a paacutegina da ediccedilatildeo Les Essais foram publicados pela primeira vez em 1580 e eram constituiacutedos por dois livros apenas Pouco depois Montaigne fez vaacuterios acreacutescimos nestes livros e compocircs um terceiro e fez uma nova ediccedilatildeo em 1588 Em 1592 o autor morre e deixa um exemplar com vaacuterias adiccedilotildees manuscritas o chamado ldquoexemplar de Bordeauxrdquo destinado a uma nova ediccedilatildeo dos Essais Indicaremos as trecircs ldquocamadasrdquo do texto com as letras A (Ediccedilatildeo de 1580) B (Ediccedilatildeo de 1588) e C (adiccedilotildees posteriores a 1588 feitas ao exemplar de Bordeaux)

6

choses estrangeres si elle connoit quelque chose aumoins sera ce son estre et son domicile [hellip] la vraye raison et essentielle de qui nous desrobons le nom agrave fauces enseignes elle loge dans le sein de Dieu [hellip]rdquo2

Compreender as razotildees do cepticismo de Montaigne significa antes de mais

aprofundar os aspectos mais marcantes da sua antropologia Por isso comeccedilaremos por

abordar ainda que de forma breve a concepccedilatildeo antropoloacutegica que estaacute subjacente na

ldquoApologierdquo Com efeito a razatildeo ndash esse grande motivo de orgulho do homem e que eacute

considerada como um sinal da sua participaccedilatildeo no ser ndash passa a ser concebida por

Montaigne como um mero fruto da pretensatildeo e vaidade humanas para explicar crenccedilas

costumes etc Entre os alvos da criacutetica de Montaigne encontram-se aquelas teorias que

potildeem o homem no ldquotopo da piracircmiderdquo das criaturas do universo Enquanto Sebond

coloca o homem no topo da escala dos seres Montaigne recoloca-o no seio da natureza

e rebaixa-o ao niacutevel dos animais

Pretendemos deste modo compreender melhor as razotildees do ldquodestronamentordquo

realizado por Montaigne deste ser ldquotodo-poderosordquo que eacute o homem Ou o que eacute o

mesmo pretendemos compreender o ldquocepticismo da razatildeordquo que Montaigne assume

conscientemente com o intuito de rejeitar a pretensatildeo do homem de se considerar pela

interposiccedilatildeo da razatildeo no centro do universo

Em segundo lugar para compreender o lugar e o valor da razatildeo na obra de

Montaigne seraacute necessaacuterio investigar os motivos que levaram o autor a tecer uma

criacutetica tatildeo contundente da razatildeo humana aprofundando em concreto as relaccedilotildees que

esta criacutetica tem com a sua anaacutelise da religiatildeo Haacute que ter em conta no entanto que a

atitude de desconfianccedila da razatildeo natildeo conduziu Montaigne a pocircr em causa a feacute cristatilde

dado que em seu entender esta se situa num plano diferente natildeo sendo portanto

susceptiacutevel de ataque pelo seu espiacuterito criacutetico

A pertinecircncia desta questatildeo ressalta quando se tem em conta que o autor inicia o

seu texto a partir de uma motivaccedilatildeo teoloacutegica podemos conhecer racionalmente Deus

Montaigne dedica um nuacutemero significativo de paacuteginas a mostrar que os atributos

divinos natildeo satildeo alcanccedilaacuteveis pelos exerciacutecios racionais dos homens detentores das

ldquoverdades filosoacuteficasrdquo Como fideiacutesta Montaigne pensa que a verdade em religiatildeo se

baseia em uacuteltima instacircncia na feacute e natildeo no raciociacutenio ou na demonstraccedilatildeo Pretende-se

2 Les Essais II 12 p 541

7

compreender neste ponto com faz Montaigne a transiccedilatildeo da criacutetica teoloacutegica agrave criacutetica do

conhecimento em geral

Na mesma linha de compreensatildeo dos limites da razatildeo seraacute importante

aprofundar num terceiro momento a criacutetica da ciecircncia desenvolvida por Montaigne na

ldquoApologierdquo Montaigne quer derrubar a tola vaidade e sacudir viva e corajosamente os

fundamentos ridiacuteculos como ele mesmo diz sobre os quais se constroem as falsas

ideias produzidas pela ciecircncia

Encontramos tambeacutem nesta parte um nuacutemero significativo de citaccedilotildees de

filoacutesofos antigos que Montaigne referencia para justificar a sua criacutetica radical agrave ciecircncia

Para ele os mais famosos filoacutesofos representantes do saber humano natildeo conseguiram

dar as verdadeiras respostas agraves questotildees fundamentais do ser humano Quais satildeo as

verdades as certezas sobre o homem e sobre Deus que esses saacutebios filoacutesofos nos

legaram

Em quarto e uacuteltimo lugar seraacute importante considerar de que modo Montaigne

relaciona a razatildeo humana e a moral Naturalmente natildeo seraacute possiacutevel considerar

detidamente o tema da moral na ldquoApologierdquo trata-se apenas de procurar perceber por

que razatildeo o autor ldquodecretardquo a impossibilidade de fundamentar na razatildeo um conjunto de

regras normas e leis que dizem respeito agrave vida praacutetica de qualquer grupo humano

Procurar-se-aacute reconstituir os vaacuterios argumentos de Montaigne que justificam a sua

tomada de posiccedilatildeo relativista no acircmbito da moral

8

1 A ideia do homem na ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo

Quando nos colocamos diante do desafio de estudar os Essais de Michel de

Montaigne uma questatildeo que importa perceber melhor eacute o periacuteodo no qual o autor

escreveu a sua obra Mais especificamente estudar o humanismo renascentista tendo

em vista que o autor dos Essais eacute considerado como um pensador deste periacuteodo

Abordaremos no entanto apenas alguns aspectos importantes daquela eacutepoca

Montaigne viveu num periacuteodo em que emergia uma nova visatildeo do mundo em

que o homem passou a ser o centro das atenccedilotildees em todos os aspectos O geocentrismo

medieval que centrava suas atenccedilotildees na relaccedilatildeo com Deus foi substituiacutedo pela

glorificaccedilatildeo do humano As pessoas interessadas nesta ruptura com os ideais medievais

buscavam inspiraccedilatildeo nas obras greco-romanas para representarem o seu proacuteprio mundo

O humanismo renascentista concebe-se como um movimento intelectual de

valorizaccedilatildeo da antiguidade claacutessica Natildeo se tratava poreacutem apenas de copiar as

realizaccedilotildees do classicismo greco-romano Este movimento representou algo que pode

ser considerado como uma ldquoglorificaccedilatildeo do homemrdquo agora colocado no centro de todas

as indagaccedilotildees e preocupaccedilotildees consistia em sentido amplo numa tomada de posiccedilatildeo

antropocecircntrica em reacccedilatildeo ao teocentrismo que imperava na Idade Meacutedia

Os humanistas deixaram de aceitar os valores e maneiras de ser e viver da Idade

Meacutedia Por conseguinte o interesse pela antiguidade experimenta-se como um meio

para atingir um fim Os humanistas viam na antiguidade

ldquo[hellip] aquilo que correspondia aos desejos que sentiam [hellip] Pretendiam encontrar nos antigos o Homem considerado como o ser geral impessoal universal que existe sob a mesma forma em toda parte [hellip] O humanismo eacute uma teacutecnica da vida cotidianardquo3

A produccedilatildeo intelectual deste periacuteodo concebia-se natildeo como um retorno ao

passado mas como uma tentativa de buscar nos claacutessicos greco-romanos uma fonte de

inspiraccedilatildeo O humanismo renascentista aleacutem de representar uma forte reacccedilatildeo a todos

os padrotildees culturais medievais escolaacutesticos tendeu tambeacutem fortemente a contrapor a feacute

e a razatildeo

Na sua globalidade a reflexatildeo dos Essais tem como um dos seus objectivos

principais a caracterizaccedilatildeo do homem Nesta perspectiva Michel de Montaigne se

3 AA VV Histoacuteria das sociedades das sociedades modernas agraves sociedades atuais Rio de Janeiro Ao Livro Teacutecnico 1983 p 70

9

apresenta como um pensador humanista que viveu numa altura em que a visatildeo

antropocecircntrica era dominante No entanto ele procurou superar esta concepccedilatildeo de uma

maneira muito particular A concepccedilatildeo antropoloacutegica claacutessica renascentista enaltecia

radicalmente a ldquodignitas hominisrdquo4 colocando o homem no centro do universo

Montaigne assume uma postura significativamente diferente do espiacuterito humanista

renascentista despreza o tema da dignitas hominis e dedica-se agrave investigaccedilatildeo das coisas

concretas da vida

O humanismo de Montaigne ao contraacuterio do humanismo dominante alicerccedila-se

na ldquomiseria hominisrdquo5 Parte de plena consciecircncia dos limites da razatildeo humana no

sentido de que as suas faculdades natildeo tecircm condiccedilotildees para transcender estes mesmos

limites A razatildeo o grande orgulho do homem eacute concebida como uma estrateacutegia de

racionalizaccedilatildeo dos vaacuterios elementos da vida (costumes crenccedilas etc) que procura

transformar atribuindo-lhe uma verdade que natildeo consegue transcender a contingecircncia

Potildee-se assim em destaque ateacute que ponto a posiccedilatildeo de Montaigne contrasta com a visatildeo

de ldquodignitas hominisrdquo acima referida a mais comummente assumida na sua eacutepoca Para

ele o homem soacute pode ser o que eacute e imaginar de acordo com a sua medida

ldquo[C] Tout contentement des mortels est mortel [A] La reconnoissance de nos parens de nos enfants et de nos amis si elle nous peut toucher et chatouiller en lrsquoautre monde si nous tenons encore agrave un tel plaisir nous sommes dans les commoditez terrestres et finies Nous ne pouvons dignement concevoir la grandeur de ces hautes et divines promesses si nous les pouvons aucunement concevoir pour dignement les imaginer il

4 Para ilustrar as principais caracteriacutesticas desta concepccedilatildeo vale a pena citar um texto muito conhecido de um dos maiores representantes do humanismo renascentista Pico della Mirandola O texto em causa pode ser considerado como uma espeacutecie de manifesto do pensamento humanista renascentista em geral Pico exalta o homem entre todos os seres da natureza e dos ceacuteus como um ser potencialmente capaz de auto-criar-se de auto-projectar-se e de modelar-se a si mesmo com liberdade Pico ldquocoloca na boca de Deusrdquo algumas palavras endereccediladas imaginativamente ao homem receacutem-criado (Adatildeo) ldquo[hellip] Medium te munde posui ut circumspiceres inde commodius quicquid est in mundo Nec te caelestem neque terrenum neque mortalem neque immortalem fecimus ut tui ipsius quasi arbitrarius honorarius que plastes et fictor in quam malueris tute formam effingas Poteris in inferiora quae sunt bruta degenerare poteris in superiora quae sunt divina ex tui animi sententia regenerarirdquo (Coloquei-te no meio do mundo para que daiacute possas olhar melhor tudo o que haacute no mundo Natildeo te fizemos celeste nem terreno nem mortal nem imortal a fim de que tu aacuterbitro e soberano artiacutefice de ti mesmo te plasmasses e te informasses na forma que tivesses seguramente escolhido Poderaacutes degenerar ateacute aos seres que satildeo as bestas poderaacutes regenerar-te ateacute agraves realidades superiores que satildeo divinas por decisatildeo do teu acircnimo) In Pico de la Mirandola Giovanni Oratio de Hominis Dignitate Ediccedilatildeo bilingue Traduccedilatildeo e introduccedilatildeo de Maria de Lurdes Sirgado Ganho Lisboa Ediccedilotildees 70 2001 pp 56-57) 5Para uma apresentaccedilatildeo sinteacutetica e clara deste tema pode-se consultar Friedrich Hugo Montaigne Traduzido do alematildeo por Robert Rovini Paris Gallimard 1967 sobretudo as paacuteginas 133-136 Nesta mesma perspectiva na obra de Rui Bertrand Romatildeo A Apologia na balanccedila a reinvenccedilatildeo do pirronismo na Apologia de Raimundo Sabunde de Michel de Montaigne Lisboa Imprensa Nacional Casa da Moeda 2007 haacute uma reflexatildeo que merece ser lida (pp 79-82)

10

faut les imaginer inimaginables indicibles incomprehensibles [C] et parfaictement autres que celles de nostre miserable experiencerdquo6

Constatando esse limite da razatildeo humana Montaigne combate decididamente as

concepccedilotildees da ldquodignitas humanisrdquo que tecircm como escopo transformar o homem no fim

uacuteltimo da natureza Montaigne ao voltar-se para o homem concreto ao rebaixaacute-lo e

tiraacute-lo do seu pedestal na ldquoApologierdquo assume uma atitude ceacuteptica entendida como

uma forma de pensamento capaz de seguir a mudanccedila e de rejeitar ao mesmo tempo a

pretensatildeo do homem de se considerar por via da razatildeo no centro do universo

Cabe entatildeo perguntar seraacute que o homem ocupa realmente um lugar central nos

Essais A resposta a esta questatildeo eacute expressa de maneira bastante niacutetida na proacutepria

obra Friedrich no seu conhecido trabalho sobre Montaigne afirma

ldquo[A] On peut ouvrir les Essais ougrave lrsquoon veut toujours ils traitent de lrsquohommerdquo7

Haacute muitos outros temas desenvolvidos nos Essais Basta lanccedilar um raacutepido olhar

sobre os tiacutetulos dos vaacuterios ensaios que compotildeem os trecircs livros da obra para constatar a

quantidade enorme de assuntos tratados por Montaigne

Na sua busca incessante de resposta agrave questatildeo central antes referida merece ser

destacado o contacto de Montaigne com a obra de Sebond Theologia Naturalis que seraacute

a base da ldquoApologierdquo Entre muitas outras questotildees desenvolvidas nesta obra o teoacutelogo

catalatildeo tem como objectivo importante responder agrave questatildeo o que eacute o homem Citando

o proacuteprio Sebond Rui Bertrand Romatildeo afirma que haacute uma ideia baacutesica de ordem

hieraacuterquica observada na scala naturale em todos os seus 4 degraus

ldquoNo inferior estatildeo as coisas apenas providas de ser as coisas minerais no segundo as que tecircm ser e vida as vegetais no terceiro as animais em que ao ser e agrave vida se juntam os sentidos no uacuteltimo encontra-se a criatura humana acima da qual natildeo haacute na natureza nenhum outro ser pois o homem possui as qualidades de todas as demais criaturas simultaneamente e em conjunto tendo aleacutem delas a razatildeo e o livre-arbiacutetrio [hellip]rdquo8

Continua o autor mais adiante

ldquo[hellip] A caracteriacutestica dominante da teologia de Sebond consiste precisamente no lugar privilegiado que nela ocupa a referecircncia do homem natildeo apenas como objecto de conhecimento mas como meio da

6 Les Essais II 12 p518 7 Friedrich op cit p 105 8 Romatildeo Rui Bertrand op cit p 90

11

obtenccedilatildeo deste A reflexatildeo antropoloacutegica polariza o seu pensamento filosoacutefico e lhe contamina o sistema teoloacutegicordquo9

Eacute importante destacar aqui uma ideia desenvolvida por Ernst Cassirer na sua

obra Ensaio sobre o Homem10 Segundo este autor a questatildeo acerca do homem no

periacuteodo renascentista depara-se com a descoberta de um novo instrumento de

pensamento entra em cena o espiacuterito cientiacutefico no sentido moderno da palavra O que

agora se procura eacute uma teoria geral do homem baseada em observaccedilotildees empiacutericas e em

princiacutepios loacutegicos gerais A nova cosmologia o sistema heliocecircntrico copernicano

passa a ser a uacutenica base satilde e cientiacutefica para uma nova antropologia Nem a metafiacutesica

claacutessica nem a religiatildeo (com a sua estrutura teoacuterica fundada na teologia medieval)

estavam preparadas para esta tarefa lembra o autor Estas duas cosmologias concebem

o universo como uma ordem hieraacuterquica em que o homem ocupa o lugar mais alto A

pretensatildeo humana de ser o centro do universo perdeu o seu fundamento Cassirer afirma

ainda que o sistema de Copeacuternico se tornou um dos mais fortes instrumentos do

cepticismo filosoacutefico que se desenvolveu no seacuteculo XVI

Montaigne sendo um pensador livre que conseguiu libertar-se da concepccedilatildeo

antropoloacutegica medieval e renascentista tambeacutem natildeo necessitou de recorrer agraves ideias

cientiacuteficas vigentes na altura da redacccedilatildeo dos Essais Isto natildeo significa que tenha

ignorado por completo a teoria heliocecircntrica de Copeacuternico mas sim que como escreve

Conche

ldquoIl nrsquoa pas eu besoin de Copernic pour trouver ridicule la preacutetension de lrsquohomme de se faire centre du cosmos11

Antes de iniciar o seu longo relato (de mais ou menos uma meia centena de

paacuteginas) no qual compara os homens aos animais Montaigne faz uma afirmaccedilatildeo de

capital importacircncia que serve como uma espeacutecie de conclusatildeo antecipada daquilo que

afirma negativamente sobre o homem e sua relaccedilatildeo com o universo

ldquo[A] La presomption est nostre maladie naturelle et originelle La plus calamiteuse et fraile de toutes les creatures crsquoest lrsquohomme et quant et quant la plus orgueilleuse Elle se sent et se void logeacutee icy parmy la bourbe et le fient du monde attacheacutee et cloueacutee agrave la pire plus morte et croupie parti de lrsquounivers au dernier estage du logis et le plus esloigneacute de la voute celeste avec les animaux de la pire condition des trois (Les aeacuteriens les aquatiques et les terrestres) et se va plantant par

9 Idem p 113 10 Cassirer Ernst An essay on man Traduccedilatildeo portuguesa de Carlos Branco Ensaio sobre o homem Lisboa Guimaratildees Editores 1995 p24 11 Conche Marcel Montaigne et la philosophie Paris Puf 1996 p 7

12

imagination au dessus du cercle de la Lune et ramenant le ciel soubs ses pieds Crsquoest par la vaniteacute de cette mesme imagination qursquoil srsquoegale agrave Dieu qursquoil srsquoattribue les conditions divines qursquoil se trie soy mesme et separe de la presse des autres creatures taille les parts aux animaux ses confreres et compaignons et leur distribue telle portion de facultez et de forces que bon luy semble Comment cognoit il par lrsquoeffort de son intelligence les branles internes et secrets des animaux par quelle comparaison drsquoeux agrave nous conclue il la bestise qursquoil leur attribue [C] Quand je me joueuml agrave ma chatte qui sccedilait si elle passe son temps de moy plus que je ne fay drsquoellerdquo12

O homem quer ser senhor de todo o universo A sua atitude de querer ser uma

excepccedilatildeo na natureza natildeo passa de uma atitude ilusoacuteria O homem eacute segundo

Montaigne uma criatura como as outras que pode ser diferenciada natildeo pela capacidade

de raciocinar mas apenas pela presunccedilatildeo de querer destacar-se orgulhosamente

tornando-se ldquoo todo-poderosordquo face agraves outras criaturas Esta sua pretensatildeo de querer ser

a uacutenica criatura que pode conhecer e dominar o universo eacute radicalmente contestada por

Montaigne na ldquoApologierdquo Eacute com muita clarividecircncia que Conche reflectindo sobre

este tema afirma

ldquoOn voit pourquoi Montaigne srsquoefforce de retrouver chez lrsquoanimal ldquointelligencerdquo ldquodiscreacutetionrdquoldquojugementrdquoldquoratiocinationrdquo capaciteacute de ldquoconsulterrdquo de ldquoconcluirrdquo ldquoscience et prudencerdquo 13

Que tipo de competecircncia nossa natildeo reconhecemos nos actos dos animais Esta

questatildeo fundamental leva Montaigne a apresentar os seus relatos anedoacuteticos14 O

interesse da sua apologia dos animais eacute ldquo[hellip] paradoxalment lrsquohomme Montaigne

recherche lrsquohomme dans lrsquoanimal [hellip] crsquoest pour lutter contre lrsquoanthropocentrismerdquo15

Montaigne inicia a sua exposiccedilatildeo perguntando-se

ldquo[A] Est-il police regleacutee avec plus drsquoordre diversifieacutee agrave plus de charges et drsquooffices et plus constamment entretenueuml que celle des mouches agrave mielrdquo16

E faz questatildeo tambeacutem de descrever o engenho das andorinhas ao construiacuterem os

seus alojamentos e das aranhas ao confeccionarem as suas teias Diante destas obras

destes pequeninos animais Montaigne observa

12 Les Essais II 12 p 452 13 Conche Marcel Montaigne et la philosophie Paris Puf 1996 p 9 14 ldquoFidegravele aux proceacutedeacutes de compilation de son temps Montaigne accumule les exemples emprunteacutes agrave Pline agrave Plutarque agrave Arrien agrave Aulu-Gelle agrave Lucregravece agrave Virgile agrave Sextus Epiricusrdquo (cf Weiler Maurice Pour connaitre la penseacutee de Montaigne Bordas 1948 p 38) 15 Giocanti Sylvia Montaigne et les becirctes la becirctise et lrsquoanimal dans Les Essais de Montaigne Universiteacute de Toulouse 2011 p 1 16 Les Essais II 12 pp 454-455

13

ldquo[A] Nous reconnoissons assez en la pluspart de leurs ouvrages combien les animaux ont drsquoexcellence (supeacuterioriteacute) au dessus de nous et combien nostre art est foible agrave les imiterrdquo17

Quanto agrave capacidade de comunicaccedilatildeo Montaigne afirma que os animais

possuem este atributo Falamos com os catildees18 e eles respondem-nos Eacute evidente que

utilizamos uma outra linguagem para conversarmos com eles Montaigne observa que

tambeacutem entre noacutes humanos haacute diferenccedilas de linguagem de acordo com a diferenccedila de

regiotildees Estas diferenccedilas tambeacutem se encontram nos animais da mesma espeacutecie19

Segundo o nosso autor haacute certamente uma diferenccedila de ordem e de grau entre os

homens e os animais contudo ldquo[A] crsquoest soubs le visage drsquoune mesme naturerdquo20 Ao

constatar a peculiaridade do homem em face das outras criaturas Montaigne destaca o

facto de que o homem eacute detentor da liberdade de imaginaccedilatildeo No entanto

ldquo[A] ce desresglement de penseacutees luy representant ce qui est ce qui nrsquoest pas et ce qursquoil veut le faux et le veritable crsquoest un advantage qui luy est bien cher vendu et duquel il a bien peu agrave se glorifier car de lagrave naist la souce principale des maux qui le pressent pecheacute maladie irresolution (inconstance) trouble desespoirrdquo 21

Citando Lucreacutecio22 Montaigne deixa transparecer que o homem se prejudica a si

mesmo porque natildeo se manteacutem dentro dos limites da organizaccedilatildeo da natureza que se

manifesta de uma maneira inteligiacutevel e agraves vezes ateacute hostil submetendo o homem agrave

necessidade de leis que natildeo lhe satildeo suficientemente claras23

17 Les Essais II 12 p455 18 Les Essais II 12 p 458 19 Les Essais II 12 pp 458-459 20 Les Essais II 12 p459 21 Les Essais II 12 p 460 22ldquo[B] ldquores quaeque suo ritu procedit et ommes Foedere naturae certo discrimina servantrdquo (Chaque chose se deacuteveloppe agrave sa maniegravere et toutes conservent les diffeacuterences eacutetablies par lrsquoordre immuable de la nature) Cf Les Essais II 12 p 459 23 Expressando a sua visatildeo da natureza Montaigne observa que ao considerar que ela nos criou diferentes dos outros animais isto eacute nus sobre a terra nua atados cercados natildeo tendo com que armar-nos cobrir-nos [hellip] somos tentados a chamaacute-la de ldquotregraves injuste maracirctrerdquo Mas isto natildeo eacute assim A nossa organizaccedilatildeo do mundo natildeo eacute tatildeo disforme e desregrada A natureza abraccedilou universalmente todas as suas criaturas e natildeo haacute nenhuma que ela tenha provido plenamente de todos os meios necessaacuterios para a conservaccedilatildeo da existecircncia ldquo[C] crsquoest une mesme nature qui roule son coursrdquo(cf Les Essais II12 p467) Reflectindo sobre o tema da natureza nos Essais Pierre Villey afirma que ela se opotildee essencialmente agrave razatildeo humana e eacute natural tudo o que a razatildeo natildeo contaminou Afirma Villey ldquo[hellip] crsquoest chez les animaux et chez les sauvages qursquoon trouve les traces les moins corrompues de la nature Lrsquoeacutetat de nature dans cette conception radicale crsquoest lrsquoeacutetat de sauvagerie [hellip] Lrsquoadmiration pour les andiens crsquoest la forme paradoxale que prend chez lui de temps agrave autre son principe drsquoimitation de la naturerdquo (In Villey Pierre Les sources et lrsquoeacutevolution des essais de Montaigne - Tome second Paris Librairie Hachete 1908 p228) Isto natildeo quer dizer que devamos imitar os indiacutegenas por exemplo em todos os seus costumes tradiccedilotildees etc

14

Continuando a apologia dos animais Montaigne sugere que concebamos que os

animais natildeo obedecem a instintos de uma forma cega O relato que apresenta da raposa

da Traacutecia24 eacute um dos seus exemplos claacutessicos neste sentido Antes de se arriscar sobre a

aacutegua gelada a raposa aproxima o ouvido do gelo para ouvir de que profundidade sobre

o murmuacuterio da aacutegua a correr em baixo isto eacute ela ldquoraciocinardquo como fariacuteamos noacutes em

idecircnticas circunstacircncias o que faz barulho mexe o que mexe natildeo estaacute gelado o que natildeo

estaacute gelado eacute liacutequido e o liacutequido cede sob o peso Segundo Montaigne atribuir isto

simplesmente a uma vivacidade do sentido da audiccedilatildeo sem raciociacutenio e sem conclusatildeo

eacute uma quimera inconcebiacutevel

Segundo Montaigne natildeo eacute soacute o homem que sabe escolher o que eacute bom e o que

natildeo eacute bom para a sua vida e sobretudo para o socorro nas doenccedilas atraveacutes da ciecircncia e

do conhecimento construiacutedos por arte e por raciociacutenio

ldquo[A] Et quand nous voyons les chevres de Candie si elles ont receu un coup de traict aller entre un million drsquoherbes choisir le dictame pour leur guerison et la tortue quand elle a mangeacute de la vipere chercher incontinent de lrsquooriganum pour se purger et le dragon fourbir et esclairer ses yeux avecques du fenouil les cigouignes se donner elles mesmes des clysteres agrave tout de lrsquoeau de marine [hellip] pourquay ne disons nous de mesmes que crsquoest science et prudencerdquo25

Eacute faacutecil ver aqui quanto Montaigne deseja que o homem reconheccedila que os

animais possuem tambeacutem ciecircncia e sabedoria Em seu entender os animais tambeacutem satildeo

capazes de ser instruiacutedos agrave moda humana

ldquo[A] Les merles les corbeaux les pies les parroquets nous leur aprenons agrave parler [hellip] ils ont un discours au dedans qui les rend ainsi disciplinables et volontaires agrave aprendrerdquo26

Muitos animais aproximam-se da capacidade do homem e isto leva Montaigne a

afirmar

ldquo[A] qursquoil se trouve plus de difference de tel homme agrave tel homme que de tel animal agrave tel hommerdquo27

Podemos encontrar na ldquoApologierdquo muitos outros exemplos em que Montaigne

defende a ideia de que os animais possuem diversas capacidades semelhantes agraves dos

humanos28 Uma vez numerados todos estes atributos dos animais Montaigne afirma

24 Les Essais II 12 p 460 25 Les Essais II 12 pp 462-463 26 Les Essais II 12 p 463 27 Les Essais II 12 p 466

15

ldquo[A] La maniegravere de naistre drsquoengendrer nourrir agir mouvoir vivre et mourir des bestes estant si voisine de la nostre tout ce que nous retranchons de leurs causes motrices et que nous adjoustons agrave nostre condition au dessus de la leur cela ne peut aucunement partir du discours de nostre raisonrdquo29

Pierre Villey ao reflectir sobre estas comparaccedilotildees suscita uma questatildeo

relevante que natildeo eacute possiacutevel ignorar

ldquo[hellip] quand il exalte lrsquointeligence des animaux on peut se demander ce qursquoil en pense au justerdquo30

Natildeo querendo entrar na discussatildeo deste assunto - ateacute porque o proacuteprio

Montaigne natildeo o fez - eacute importante notar que se estes relatos montaigneanos fossem

tomados agrave letra natildeo nos faltariam motivos de troccedila Poderiacuteamos duvidar de muitas

afirmaccedilotildees acerca dos animais apresentadas por ele Fazendo um esforccedilo por deixar agrave

margem os exageros o humor e a liberdade literaacuteria do autor ndash que tecircm como objectivo

rebaixar o homem recolocando-o entre os animais e mostrando-lhe que a sua razatildeo

grande motivo de orgulho natildeo lhe garante um lugar no topo da piracircmide das criaturas ndash

o que importa destacar eacute que Montaigne pretende acentuar uma grande semelhanccedila

entre os homens e os animais

ldquo[A] Nous ne sommes ny au dessus ny au dessoubs du reste tout ce qui est sous le ciel dit le sage court une loy et fortune pareille [B] Indupedita suis fatalibus omnia vinclis (Toutes les choses sont enchaineacutes par les liens de leur propre destineacutee)rdquo31

28 Vejamos resumidamente outros atributos dos animais destacados pelo autor os catildees que servem aos cegos tanto nos campos como nas cidades catildees que representavam papeacuteis no teatro (p463) bois que serviam nos jardins reais de Susa (p464) nos espectaacuteculos de Roma viam-se elefantes treinados em movimentar-se e em danccedilar (p465) a pega que imitava com a voz tudo o que ouvia (p464) os elefantes que tecircm alguma participaccedilatildeo religiosa (p468) formigas que tecircm um jeito muito especial de comunicaccedilatildeo muacutetua (p469) o ouriccedilo que prevecirc a direcccedilatildeo do vento (p469) o camaleatildeo e o polvo que mudam de cor conforme a ocasiatildeo (p469) o voo dos paacutessaros que eacute resultado natildeo apenas da organizaccedilatildeo natural mas tambeacutem do entendimento consentimento e raciociacutenio (p469) os animais que servem seus donos sabem amaacute-los defendecirc-los (p461) o catildeo o cavalo sabem prezar amizade (p471) os animais satildeo muito mais regrados do que noacutes e se contecircm com muito mais moderaccedilatildeo nos limites que a natureza nos prescreveu (p472) os animais natildeo promovem a guerra (p473) o catildeo eacute mais fiel do que o homem (p476-7) quanto agrave gratidatildeo os animais tecircm esta capacidade (p477-8) os atuns tecircm conhecimentos geomeacutetricos astronoacutemicos e aritmeacuteticos (p479-480) o elefante tem a capacidade de arrependimento e reconhecimento dos erros (p480) o tigre tem capacidade de ser clemente (p480) enfim Montaigne atribui todas estas caracteriacutesticas e outras mais aos animais mostrando que elas satildeo erradamente consideradas como unicamente posse dos humanos 29 Les Essais II 12 p 470 30 Villey op cit p 186 31 Les Essais II 12 p 459

16

Desta perspectiva podemos compreender melhor a razatildeo do ldquodestronamentordquo

deste ser ldquotodo-poderosordquo que eacute o homem levado a cabo por Montaigne32

Depois de ter destacado a ideia de que o homem se assemelha aos animais e

vice-versa Montaigne sustenta que a forma corporal do homem eacute o que constitui a sua

peculiaridade face aos animais Eacute ela que ldquodefinerdquo a identidade do homem

ldquo[B] Ce nrsquoest donc pas par la raison par le discours et par lrsquoame que nous excellons sur les bestes crsquoest par nostre beauteacute nostre beau teint et nostre belle disposition de membres pour laquelle il nous faut mettre nostre intelligence nostre prudence et tout le reste agrave lrsquoabandonrdquo33

A sugestatildeo de Montaigne eacute que o homem natildeo pode ser pensado sem o seu corpo

elemento essencial de sua condiccedilatildeo humana O homem natildeo pode continuar a ser

concebido apenas como ser racional Montaigne potildee em causa a claacutessica concepccedilatildeo de

que soacute o homem eacute constituiacutedo de racionalidade O seu objectivo natildeo eacute encontrar uma

nova definiccedilatildeo do homem natildeo deseja decretar a inferioridade do homem nem tampouco

a sua superioridade face aos animais Natildeo tem em vista promover uma competiccedilatildeo

ridiacutecula entre os seres da natureza Montaigne sente-se incapaz de dar qualquer

definiccedilatildeo com o auxiacutelio da razatildeo humana Ignora qual eacute a essecircncia dos animais natildeo os

conhece Da mesma forma podemos dizer que agrave luz da ldquoApologierdquo Montaigne natildeo

consegue definir o homem Natildeo eacute possiacutevel elaborar juiacutezos constantes e uniformes nem

sobre o homem nem a partir dele

Dito de outra forma o ldquocepticismo da razatildeordquo que Montaigne assume

conscientemente visa rejeitar a pretensatildeo do homem de se considerar por via da razatildeo

no centro do universo

Montaigne com os seus ensaios quer ir directo agraves coisas e aos homens Eacute claro

que teve pouco contacto com o chamado movimento cientiacutefico do seu tempo Longe de

32 Friedrich ao analisar a questatildeo do lugar que segundo Montaigne corresponde ao homem diz ldquoA la question de savoir quelle place occupe lrsquohomme dans la totaliteacute du monde existent Montaigne ne donnera jamais la reacuteponse plotinienne selon laquelle il serait dans la chaicircne des ecirctres eacutemaneacutes un dernier maillon reacutetablissant la communication avec la source de lrsquoeacutemanation lrsquoUm primordial Ni la reacuteponse chreacutetienne selon laquelle lrsquohomme constituerait le couronnement terrestre de la creacuteation tout le creacutee lui eacutetant subordonneacute et Dieu eacutetant alleacute pour lui jusqursquoagrave se reacutesoudre agrave intervenir dans lrsquohistoire du salut Lrsquohomme de Montaigne est plutocirct un point dans lrsquounivers sans espoir que le destin ni la diviniteacute srsquointeacuteresse jamais agrave lui Il partage cette insignifiance de point avec le milieu dans lequel il vit patrie Eacutetat continent terre animaux et plantes Il nrsquoest plus un centre il est plongeacute dans la multitude de tout ce qui existe ignorant ce qui lrsquoen distingue et srsquoy sentant cheacutetif - bien preacuteserveacute pourtant au coeur de son insignifiance de son ignorance et deacutechargeacute de tout embarras Il y a au fond de cette penseacutee des ideacutees de Lucregravece Montaigne les transforme pour leur faire exprimer sa propre conscience de la vie dont il preacutecise les grandes lignes en la deacutelimitant par rapport aux affirmations posant la digniteacute de la nature humaine (cf op cit p131) 33 Les Essais II 12 p 486

17

toda a construccedilatildeo teoacuterica esforccedila-se por encontrar nele mesmo e nos outros o homem

tal como eacute sem o falso semblante que lhe acrescentam as pretensiosas doutrinas que o

definem pela sua relaccedilatildeo com o universo e com Deus

18

2 A criacutetica agrave razatildeo humana e a questatildeo da religiatildeo

Segundo Montaigne as pessoas que se gabam do conhecimento estatildeo sempre a

tentar explicar quais satildeo os atributos de Deus atraveacutes de complicados conceitos e

demonstraccedilotildees ininteligiacuteveis Em seu entender Deus e as verdades da religiatildeo satildeo

nitidamente questotildees de feacute e natildeo noccedilotildees filosoacuteficas Que isto eacute assim prova-o o facto de

que estas noccedilotildees satildeo sempre muito diversas e originam muita discoacuterdia entre os

inuacutemeros autores que delas se ocupam Uma coisa eacute Deus e outra coisa totalmente

diferente eacute o que pensam os homens a respeito de Deus

ldquo[A] Il ma tousjours sembleacute quagrave un homme Chrestien cette sorte de parler est pleine dindiscretion et dirreverence Dieu ne peut mourir Dieu ne se peut desdire Dieu ne peut faire cecy ou cela Je ne trouve pas bon denfermer ainsi la puissance divine soubs les loix de nostre parolle Et lapparence qui soffre agrave nous en ces propositions il la faudroit representer plus reveremment et plus religieusementrdquo34

ldquo[A] Dieu ne peut faire les mortels immortels ny revivre les trespassez ny que celuy qui a vescu nait point vescu celuy qui a eu des honneurs ne les ait point eus nayant autre droit sur le passeacute que de loubliance [hellip] Voylagrave ce quil dict et quun Chrestien devroit eviter de passer par sa bouche Lagrave ougrave au rebours il semble que les hommes recherchent cette fole fierteacute de langage pour ramener Dieu agrave leur mesure [hellip]nostre parole le dict mais nostre intelligence ne lrsquoapprehende pointrdquo35

Para compreender o lugar e o valor da razatildeo na ldquoApologierdquo eacute necessaacuterio

investigar os motivos que levaram o autor a tecer uma criacutetica tatildeo contundente da razatildeo

humana aprofundando em concreto as relaccedilotildees que esta criacutetica tem com a sua anaacutelise

da religiatildeo e com o poder de Deus expresso em todo o desenvolvimento do texto Para

esta abordagem teremos como base o preacircmbulo da ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo36

A ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo eacute o mais longo capiacutetulo da obra Les Essais

Neste texto Montaigne propotildee-se apresentar a ldquodefesa de um teoacutelogordquo do seacuteculo XVI

Montaigne comeccedila por caracterizar a situaccedilatildeo histoacuterica na qual a obra de

Sebond chegou agraves matildeos de seu pai por intermeacutedio do humanista Pierre Brunel (1499-

1546)37 Segundo Montaigne trata-se de um livro adequado para a eacutepoca Isto porque as

34 Les Essais II 12 p 527 35 Les Essais II 12 p 528 36 Cf Les Essais II 12 pp 438-449 Montaigne sobretudo nestas paacuteginas iniciais opotildee a religiatildeo agrave razatildeo humana demonstrando por um lado a incapacidade e os limites desta faculdade que eacute motivo de orgulho do homem e por outro esse ldquoinstrumentordquo de conhecimento ligado agrave graccedila divina que eacute a feacute 37 Montaigne admirava muito este humanista que gozava de grande reputaccedilatildeo na sua eacutepoca por causa de seu saber (Les Essais II 12 p 439)

19

novidades de Lutero comeccedilavam a estar em voga e a abalar em muitos lugares a antiga

crenccedila cristatilde38 Para Montaigne que era um pensador catoacutelico conservador a Reforma

Protestante era vista como algo perigoso para a religiatildeo estabelecida Globalmente natildeo

concordava com as contestaccedilotildees provocadas pelo espiacuterito da Reforma sobretudo porque

poderiam levar os homens agrave praacutetica do ateiacutesmo especialmente os menos doutos

Uma leitura do texto potildee de imediato em evidecircncia em que medida Montaigne se

distancia de Sebond em termos argumentativos Parafraseando Villey a defesa de

Sebond seraacute rapidamente esquecida39 Montaigne observa que surgiram entretanto

algumas objecccedilotildees ao livro de Sebond e anuncia no iniacutecio do ensaio o seu propoacutesito de

refutaacute-las Montaigne deseja defender Sebond destes dois tipos de adversaacuterios por um

lado os que consideram que os cristatildeos erram ao querer apoiar com razotildees humanas a

sua crenccedila que soacute se concebe por feacute e por uma inspiraccedilatildeo particular da graccedila divina

Estes satildeo os que subestimam a importacircncia da razatildeo Satildeo considerados fideiacutestas

pessoas que pensam que a verdade em religiatildeo estaacute em uacuteltima instacircncia baseada na feacute

em vez de no raciociacutenio ou na evidecircncia Por outro lado estatildeo os que dizem que os

argumentos de Sebond satildeo fracos e inadequados para demonstrar o que pretendem e se

dispotildeem a atacaacute-los facilmente Estes satildeo os que subestimam a importacircncia da feacute

Consideremos em primeiro lugar a atitude dos primeiros opositores Natildeo seria

correcto querer apoiar com razotildees humanas a crenccedila ldquo[A] qui ne se conccediloit que par foy

et par une inspiration particuliere de la grace divinerdquo40 Estes primeiros opositores de

Sebond satildeo os partidaacuterios da posiccedilatildeo ortodoxa catoacutelica Montaigne lembra que estes

teoacutelogos catoacutelicos satildeo movidos sobretudo por uma visatildeo piedosa

ldquo[A] En cette objection il semble quil y ait quelque zele de pieteacute et agrave cette cause nous faut-il avec autant plus de douceur et de respect essayer de satisfaire agrave ceux qui la mettent en avantrdquo41

Em face destas primeiras criacuteticas agrave obra do teoacutelogo catalatildeo Montaigne natildeo se

inibe de expressar as suas proacuteprias tomadas de posiccedilatildeo

ldquo[A]Toutefois je juge ainsi quagrave une chose si divine et si haultaine et surpassant de si loing lhumaine intelligence comme est cette veriteacute de laquelle il a pleu agrave la bonteacute de Dieu nous esclairer il est bien besoin quil nous preste encore son secours dune faveur extraordinaire et privilegeacutee pour la pouvoir concevoir et loger en nous et ne croy pas que

38 Cf Les Essais II 12 p 439 39 Villey op cit p 183 40 Les Essais II 12 p 440 41 Les Essais II 12 p 440

20

les moyens purement humains en soyent aucunement capables et sils lestoient tant dames rares et excellentes et si abondamment garnies de forces naturelles eacutes siecles anciens neussent pas failly par leur discours darriver agrave cette connoissance Cest la foy seule qui embrasse vivement et certainement les hauts mysteres de nostre Religionrdquo42

Ao abordar esta questatildeo Montaigne reconhece que natildeo estaacute capacitado para

levar a cabo tal empreendimento Esta seria uma tarefa mais adequada para um homem

versado em teologia assunto de que ele pessoalmente diz nada saber43 Mesmo assim

expressa uma vez mais a sua criacutetica radical aos que utilizam a razatildeo para apresentarem

argumentos apologeacuteticos em defesa das verdades sobre Deus e sobre a religiatildeo

Montaigne eacute um catoacutelico44 Sobre isto os Essais natildeo deixam duacutevida Natildeo eacute este o

momento de entrar na discussatildeo acerca de como viveu ou deixou de viver a sua

religiosidade O importante eacute que como catoacutelico aceita que haacute um Deus uacutenico criador

do ceacuteu e da terra Em vaacuterios momentos tanto na ldquoApologierdquo como em outros ensaios

Montaigne daacute a entender que a verdade estaacute em Deus e natildeo eacute propriedade dos homens

filoacutesofos ou teoacutelogos Noutras palavras a verdade eacute revelada e o homem sem o auxiacutelio

de Deus nunca a encontraria A razatildeo humana natildeo tem condiccedilotildees para elaborar

raciociacutenios crediacuteveis sobre estas verdades reveladas Para sustentar a tese que a razatildeo eacute

impotente neste domiacutenio Montaigne dedica um nuacutemero importante de paacuteginas em toda

a sua obra a desenvolver a ideia de que alguns filoacutesofos antigos reflectiram muito sobre

a possibilidade do conhecimento sobre Deus e fizeram afirmaccedilotildees que satildeo

absolutamente carentes de sentido Isto natildeo passou de uma ldquo[C] tintamarre de tant de

42 Les Essais II 12 p 440-441 43 ldquoCe seroit mieux la charge drsquoun homme verseacute en Theologie que de moy qui nrsquoy sccedilay rienrdquo(Les Essais II 12 p 440) 44 Montaigne declara-se catoacutelico foi um catoacutelico que durante toda a sua vida procurou cumprir os ritos lituacutergicos convencionais da Igreja Catoacutelica A sua posiccedilatildeo ceacuteptica parece enquadrar-se no fideiacutesmo como veremos Mas haacute que salientar que em algumas questotildees morais independentes das suas praacuteticas rituais ou seja na sua vida praacutetica Montaigne natildeo tem muito em consideraccedilatildeo a lista de exigecircncias eacuteticas do catolicismo romano Parece que falta agrave concepccedilatildeo religiosa de Montaigne algum sentimento religioso limita-se a uma espeacutecie de praacutetica do ritualismo exigido pela Igreja Catoacutelica Ele seria catoacutelico por uma questatildeo de conveniecircncia intelectual A sua praacutetica lituacutergica ritualiacutestica natildeo exerce grande influecircncia sobre o seu pensamento filosoacutefico Ele eacute um pensador completamente livre face agrave doutrina da Igreja E isto distingue-o substancialmente dos teoacutelogos que integram o corpo doutrinal na Igreja Montaigne pensava e exprimia estes pensamentos com plena liberdade Manifesta aleacutem disso alguma confianccedila na Igreja na religiatildeo na tradiccedilatildeo e nos costumes que contribuiacuteram para a sua formaccedilatildeo e que satildeo de alguma maneira parte constitutiva de sua identidade E na realidade quis apostar naquilo com o qual estava mais familiarizado ldquo[B] Nous sommes Chrestiens agrave mesme titre que nous sommes ou Perigordins ou Alemansrdquo(Les Essais II 12 p 445) No entanto quando comeccedilamos a estabelecer um maior contacto com os Essais percebemos que Montaigne natildeo eacute um catoacutelico que confie cegamente na doutrina da Igreja Muito pelo contraacuterio eacute extremamente consciente dos problemas do catolicismo e da sua doutrina bem como dos costumes em geral E acima de tudo tem perfeita consciecircncia de que a sua confianccedila eacute uma crenccedila e natildeo uma certeza filosoacutefica

21

cervelles philosophiquesrdquo45 Segundo Montaigne de todas as ideias humanas e antigas

no tocante agrave religiatildeo

ldquo[A]celle lagrave me semble avoir eu plus de vray-semblance et plus dexcuse qui reconnoissoit Dieu comme une puissance incomprehensible origine et conservatrice de toutes choses toute bonteacute toute perfection recevant et prenant en bonne part lhonneur et la reverence que les humains luy rendoient soubs quelque visage sous quelque nom et en quelque maniere que ce futrdquo46

Trata-se de belas afirmaccedilotildees que querem expressar quais satildeo os principais

atributos de Deus Satildeo uma tentativa racional que tem como meta explicar quem eacute Deus

Ao comentar esta passagem da ldquoApologierdquo Conche pergunta-se que significam estas

palavras E baseado na leitura que faz de Montaingne afirma que aplicadas a Deus

natildeo podemos saber o que realmente significam47

Montaigne questiona o facto de muitos homens pretenderem edificar um

discurso baseado na razatildeo para justificar as verdades reveladas as quais segundo ele soacute

poderatildeo encontrar os verdadeiros alicerces na feacute Vejamos como Conche

sinteticamente analisa esta questatildeo a partir da ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo

ldquoNous croyons penser Dieu En reacutealiteacute nous ne faisons que projeter hors de nous des qualiteacutes humaines que nos avons [hellip] Lrsquohomme ne peut concevoir Dieu qursquoagrave partir de lui-mecircme Or il y a entre lrsquohomme et Dieu un abicircme qualitatif Le Dieu dont on parle et duquel on raisonne nrsquoest qursquoun produit de lrsquoanthropomorphisme La raison loin de nous eacutelever agrave Dieu le ramegravene agrave notre mesure [hellip] En tout cela Dieu est encore conccedilu par analogie avec lrsquohomme et la puissance divine enfermeacutee ldquosous les lois de notre parolerdquo Assujettir Dieu agrave nos principes rationnels crsquoest lrsquoassujettir agrave la raison humaine Lrsquohomme ne peut penser au-delagrave de lui mecircme Du vrai Dieu on ne peut rien penser ni rien dire Il nrsquoy a pas drsquoideacutee de Dieu [hellip] La notion de Dieu nrsquoest pas une notion philosophiquerdquo48

Embora critique estes opositores de Sebond Montaigne afirma ao mesmo tempo

que o empenho em justificar a feacute pela razatildeo eacute uma iniciativa louvaacutevel Chega mesmo a

afirmar que esta tarefa poderia ser considerada como o uso mais honroso que o homem

cristatildeo poderia dar agrave razatildeo Por outras palavras eacute uma atitude nobre a que leva o cristatildeo

a querer embelezar perceber e ampliar a verdade de sua crenccedila por meio de todos os

estudos e reflexotildees Montaigne observa entretanto que eacute preciso fazer acompanhar a

45 Les Essais II 12 p 516 46 Les Essais II 12 p 513 47 Cf Conche Marcel Montaigne ou la conscience heureuse Paris Puf 2009 p 55 48 Idem pp 55-56

22

nossa feacute de toda a razatildeo que haacute em noacutes mas sempre com a ressalva de natildeo pensar que

seja de noacutes que ela depende nem que os nossos esforccedilos e argumentos possam atingir

uma tatildeo ldquo[A] supernaturelle et divine sciencerdquo49 O autor dos Essais insistiraacute muito

neste aspecto

ldquo[A] Si elle nentre chez nous par une infusion extraordinaire si elle y entre non seulement par discours mais encore par moyens humains elle ny est pas en sa digniteacute ny en sa splendeur Et certes je crain pourtant que nous ne la jouyssions que par cette voye Si nous tenions agrave Dieu par lentremise dune foy vive si nous tenions agrave Dieu par luy non par nous si nous avions un pied et un fondement divin les occasions humaines nauroient pas le pouvoir de nous esbranler comme elles ont [hellip]rdquo50

Sem duacutevida Montaigne ao questionar o poder da razatildeo humana procura

defender a feacute cristatilde Os argumentos tidos como ceacutepticos que estatildeo presentes na

ldquoApologierdquo tecircm como objectivo provar que soacute atraveacutes da intervenccedilatildeo divina e natildeo com

nossos proacuteprios meios racionais podemos ter acesso agrave verdade Apresenta vaacuterios

exemplos para que entendamos com mais clarividecircncia a sua reflexatildeo acerca deste

assunto

ldquo[C] Lrsquohomme est bien insenseacute Il ne sccedilauroit forger un ciron et forge des Dieux agrave douzainesrdquo51

O homem quer descrever Deus mas na verdade descreve-se a si mesmo Isto

demonstra a sua incapacidade e a sua falta de sabedoria

ldquo[B] Nous avons vie raison et liberteacute estimons la bonteacute la chariteacute et la justice ces qualitez sont donc en luy Somme le bastiment et le desbastiment les conditions de la diviniteacute se forgent par lhomme selon la relation agrave soy Quel patron et quel modele Estirons eslevons et grossissons les qualitez humaines tant quil nous Plaira enfle toy pauvre homme et encore et encore et encore Non si te ruperis inquit (ldquoNon pas mecircme quand tu cregraveverais dit-ilrdquo (Hor Sal II III 318) Crsquoest la fable de la grenouille qui veut se faire aussi grosse que le boeuf)rdquo52

Eacute interessante notar que ao mesmo tempo que pretende fazer a apologia da feacute cristatilde Montaigne critica os cristatildeos que natildeo satildeo ldquofieacuteisrdquo aos ensinamentos da Sagrada Escritura

ldquo[B] Voulez vous voir cela Comparez nos moeurs agrave un Mahometan agrave un Payen vous demeurez tousjours au dessoubs lagrave ougrave au regard de lavantage de nostre religion nous devrions luire en excellence dune extreme et incomparable distance et devroit on dire Sont ils si justes si

49 Les Essais II 12 p 441 50 Les Essais II 12 p 441 51 Les Essais II 12 p 530 52 Les Essais II 12 p 531

23

charitables si bons ils sont donq Chrestiens [C] La marque peculiegravere de nostre veriteacute devroit estre nostre vertu comme elle est aussi la plus celeste marque et la plus difficile et que cest la plus digne production de la veriteacuterdquo53

Para Montaigne os cristatildeos constituem uma espeacutecie de contratestemunho de sua

feacute Fazendo uma referecircncia ao texto da Sagrada Escritura algo muito raro nos Essais o

autor afirma que se tiveacutessemos um uacutenico pingo de feacute54 moveriacuteamos as montanhas de

seu lugar E neste sentido lembra-nos

ldquo[A] nos actions qui seroient guideacutees et accompaigneacutees de la diviniteacute ne seroient pas simplement humaines elles auroient quelque chose de miraculeux comme nostre croyancerdquo55

Para os que subestimam a importacircncia da razatildeo isto eacute para os primeiros

opositores de Sebond ou os fideiacutestas os cristatildeos erram ao quererem apoiar as suas

crenccedilas que soacute se concebem por meio da feacute e por inspiraccedilatildeo particular da graccedila divina

Estes satildeo os que pensam que a verdade em religiatildeo estaacute em uacuteltima instacircncia baseada na

feacute em vez de no raciociacutenio ou na evidecircncia Segundo Montaigne trata-se de uma

concepccedilatildeo bonita e ateacute piedosa Chega inclusivamente a exemplificar esta atitude e a

citar um caso de algueacutem que foi desviado dos erros da incredulidade atraveacutes da leitura

da obra de Sebond

ldquo[A] Je sccedilay un homme dauthoriteacute nourry aux lettres qui ma confesseacute avoir esteacute rameneacute des erreurs de la mescreance par lentremise des argumens de Sebond Et quand on les despouillera de cet ornement et du secours et approbation de la foy et quon les prendra pour fantasies pures humaines pour en combatre ceux qui sont precipitez aux espouvantables et horribles tenebres de lirreligion ils se trouveront encores lors aussi solides et autant fermes que nuls autres de mesme condition quon leur puisse opposer [hellip]rdquo56

53 Les Essais II 12 p 442 54 Provavelmente Montaigne estaacute a aludir a textos da Sagrada Escritura especialmente do Evangelho ldquoSi vraiment vous avez de la foi gros come une graine de moutarde vous diriez agrave ce sycomore ldquoDeacuteracine-toi et va te planter dans la merrdquo et il vous obeacuteiraitrdquo (Lc 17 6) Car en veacuteriteacute je vous le deacuteclare si un jour votre foi est semblable agrave un grain de moutarde vous diriez agrave cette montagne ldquoPasse drsquoici lagrave-basrdquo et elle y passera Rien ne vous sera impossiblerdquo (Mt 17 20) (In Nouveau Testament Traduction Oecumeacutenique de la Bible Paris PUF 1977 pp 91 e 253 55 Les Essais II 12 p 442 56 Les Essais II 12 p 447-448

24

No entanto mesmo tendo em consideraccedilatildeo a importacircncia da Teologia Natural

sebondiana Montaigne toma um certo partido pelo lado dos fideiacutestas57 seus opositores

Em seu entender a razatildeo humana natildeo eacute capaz de conduzir o homem agrave feacute

Montaigne num dado momento refere-se agraves guerras58 que oprimiam a sua

naccedilatildeo Ele propotildee uma possiacutevel explicaccedilatildeo destes tormentos que assolavam a Franccedila

que tem muito a ver com a questatildeo de fundo tratada na ldquoApologierdquo Escreve

ldquo[A] Les hommes y sont conducteurs et srsquoy servent de la religion ce devroit estre tout le contrairerdquo59

Assim se compreende por que razatildeo Montaigne aleacutem de criticar aqueles que

queriam instrumentalizar a razatildeo para justificar as verdades reveladas repudia a noccedilatildeo

daqueles que se dedicam excessivamente agrave religiatildeo e que tecircm como meta principal a

satisfaccedilatildeo das paixotildees e da vaidade

ldquo[C] Je voy cela evidemment que nous ne prestons volontiers agrave la devotion que les offices qui flattent noz passions Il nest point dhostiliteacute excellente comme la Chrestienne Nostre zele fait merveilles quand il va secondant nostre pente vers la haine la cruauteacute lambition lavarice la detraction la rebellion A contrepoil vers la bonteacute la benigniteacute la temperance si comme par miracle quelque rare complexion ne ly porte il ne va ny de pied ny daile Nostre religion est faicte pour extirper les vices elle les couvre les nourrit les incite [A] Il ne faut point faire barbe de foarre agrave Dieu (comme on dict) Si nous le croyons je ne dy pas par foy mais dune simple croyance voire (et je le dis agrave nostre grande confusion) si nous le croyons et cognoissions comme une autre histoire comme lun de nos compaignons nous laimerions au dessus de toutes autres choses pour linfinie bonteacute et beauteacute qui reluit en luy au moins marcheroit il en mesme reng de nostre affection que les richesses les plaisirs la gloire et nos amis raquo60

Montaigne demonstra uma certa irritaccedilatildeo em face da instrumentalizaccedilatildeo da

religiatildeo para certos objectivos particulares Em seu entender a devoccedilatildeo religiosa natildeo

57 Ao reflectir sobre o fideiacutesmo presente na ldquoApologierdquo Friedrich diz-nos que Montaigne assume um fideiacutesmo isento da nostalgia miacutestica O seu fideiacutesmo significa uma tomada de consciecircncia intelectual dos limites humanos limites estes que natildeo deseja ultrapassar Seu fideiacutesmo eacute de uma espeacutecie negativa isto eacute eacute a certeza da incerteza O mesmo autor observa ainda que a ldquoteologiardquo de Montaigne representa um desvio para ir ao conhecimento do homem no interior do mundo Montaigne precisa de se distanciar de Deus para se assegurar da pequenez do homem na qual ele vai se instalar (cf op cit p 117) 58 Tudo indica que Montaigne estaacute a falar das guerras civis e religiosas do seacuteculo XVI Citando o famoso historiador francecircs M de Chacircteaubriand Laschamps na sua monumental obra Michel de Montaigne editada em 1855 afirma que estas guerras ldquoont dureacute trente-neuf ans elles ont engendre les massacres de la Saint Bartheacutelemy verseacute le sang de plus de deux millions de Franccedilais et deacutevoreacute plus de trois milliards de notre monnaie actuelle Elles ont produit la saisie et la vente des biens de lrsquoEacuteglise et des particulieres frappeacute deux rois de mort violente Henri III et Henri IV et commenceacute le procegraves criminal du premier de ces deux roisrdquo (cf Laschamps F Bigorie de Michel de Montaigne Paris Libraire Editeur 1855 p 108) 59 Les Essais II 12 p 443 60 Les Essais II 12 p 444

25

pode ser usada para servir os propoacutesitos do oacutedio da crueldade da ambiccedilatildeo da rebeliatildeo

etc61

Embora natildeo seja teoacutelogo62 Montaigne eacute um pensador que procura respeitar

profundamente a missatildeo da teologia Mas importa salientar que esta missatildeo deve ser

entendida simplesmente como uma praacutetica de piedade e natildeo como uma racionalizaccedilatildeo e

sistematizaccedilatildeo das verdades reveladas pela feacute Neste sentido haacute uma enorme distacircncia

entre o autor dos Essais e os escolaacutesticos Para Montaigne a teologia eacute concebida como

uma espeacutecie de exerciacutecio espiritual dos cristatildeos sobretudo dos teoacutelogos atraveacutes da

razatildeo humana Exerciacutecio este que carece do poder de alcanccedilar a verdade

ldquo[A] Il en faut faire de mesme et accompaigner nostre foy de toute la raison qui est en nous mais tousjours avec cette reservation de nestimer pas que ce soit de nous quelle deacutepende ny que nos efforts et arguments puissent atteindre agrave une si supernaturelle et divine sciencerdquo 63

Para Montaigne as explicaccedilotildees (racionalizaccedilotildees) das verdades da religiatildeo

devem ser as pregaccedilotildees piedosas nos actos de culto por exemplo E esta eacute a tarefa

fundamental da qual a teologia deve ocupar-se Aleacutem disto Montaigne que eacute um

observador subtil e cuidadoso propotildee certas distinccedilotildees Vejamos o que Friedrich tem a

dizer sobre esta questatildeo

ldquo[hellip] sait bien entendu distinguer la vraie pieacuteteacute de la fausse Il bracircme ainsi les priegraveres meacutecaniques la malhonnecircteteacute des gens qui se signent au son de la cloche sans pour autant renoncer agrave la haine agrave lrsquoavarice agrave lrsquoinjustice comme si leur principe eacutetait aux vices leur heure son heure agrave Dieurdquo64

Desta perspectiva segundo Montaigne a religiatildeo deve ser entre outras coisas

como uma praacutetica da verdadeira piedade que se preocupa em instaurar no coraccedilatildeo do

homem o desejo de viver o amor a justiccedila etc renunciando a tudo aquilo que eacute mal e

que impede a realizaccedilatildeo da felicidade do homem no aqui e no agora Eacute por isto que natildeo

acredita numa religiatildeo que vive a prometer constantemente bens eternos que viratildeo a

tornar-se realidade num outro mundo diverso e posterior a este que conhecemos Para

exemplificar esta sua abordagem Montaigne refere na ldquoApologierdquo o filoacutesofo Antiacutestenes

Quando o iniciavam no misteacuterio de Orfeu dizendo-lhe o sacerdote que aqueles que se

devotavam a tal religiatildeo iam receber bens eternos e perfeitos apoacutes a morte aquele

61 Cf Les Essais II 12 p 444 62 Ver nota 43 63 Les Essais II 12 p 441 64 Friedrich op cit p 122

26

perguntou-lhe ldquose acreditas nisso por que entatildeo natildeo morres tu mesmordquo65 Eis um outro

exemplo que vale a pena citar

ldquo[C] Diogenes plus brusquement selon sa mode et hors de nostre propos au prestre qui le preschoit de mesme de se faire de son ordre pour parvenir aux biens de lautre monde Veux tu pas que je croye quAgesilauumls et Epaminondas si grands hommes seront miserables et que toy qui nes quun veau seras bien heureux par ce que tu es prestre rdquo66

Segundo Montaigne se acolhecircssemos essas grandes promessas de felicidades

eternas e supremas com a mesma autoridade com que acolhemos uma opiniatildeo

filosoacutefica natildeo teriacuteamos o horror agrave morte que temos

ldquo[A] Je veuil estre dissout dirions nous et estre aveques Jesus-Christrdquo67

Ao afirmar que

ldquo[A] La force du discours de Platon de lrsquoimmortaliteacute de lrsquoame poussa bien aucuns de ses disciples agrave la mort pour joiumlr plus promptement des esperances qursquoil leur donnoit [hellip]68

O autor da ldquoApologierdquo quer destacar a fragilidade da razatildeo que utiliza meios

puramente humanos para explicar ldquorealidadesrdquo que transcendem a vida concreta

Vejamos uma passagem em que o autor expressa nitidamente estas ideias

ldquo[A] Tout cela cest un signe tres-evident que nous ne recevons nostre religion quagrave nostre faccedilon et par nos mains et non autrement que comme les autres religions se reccediloyvent Nous nous sommes rencontrez au paiumls ou elle estoit en usage ougrave nous regardons son ancienneteacute ou lauthoriteacute des hommes qui lont maintenue ou creignons les menaces quellrsquoattache aux mescreans ou suyvons ses promesses Ces considerations lagrave doivent estre employeacutees agrave nostre creance mais comme subsidiaires ce sont liaisons humaines Une autre region dautres tesmoings pareilles promesses et menasses nous pourroyent imprimer par mesme voye une croyance contrairerdquo69

Apesar de ser catoacutelico parece sugerir na ldquoApologierdquo uma certa atitude de

indiferenccedila relativamente a toda e qualquer profissatildeo de feacute ou seja uma espeacutecie de

distanciamento no que diz respeito agraves diversas convicccedilotildees religiosas Montaigne chega

quase a reduzir a proacutepria crenccedila a uma questatildeo de costume a um acaso geograacutefico

65 Cf Les Essais II 12 p 444 66 Les Essais II 12 p 444 67 Les Essais II 12 p 445 68 Les Essais II 12 p 445 69 Les Essais II 12 p 445

27

[B] Nous sommes Chrestiens agrave mesme titre que nous sommes ou Perigordins ou Alemansrdquo70

Fazendo uma criacutetica aos diversos raciociacutenios que foram usados na histoacuteria do

pensamento filosoacutefico com o objectivo de argumentar de que forma o homem tem

acesso agrave religiatildeo Montaigne afirma que Platatildeo e os seus exemplos querem levar-nos a

concluir que somos conduzidos agrave crenccedila em Deus ou por amor ou por forccedila A sua

rejeiccedilatildeo dos argumentos da filosofia expressa-se de uma forma muito incisiva

ldquo[C] LAtheisme estant une proposition comme desnatureacutee et monstrueuse difficile aussi et malaiseacutee destablir en lesprit humain pour insolent et desregleacute quil puisse estre il sen est veu assez par vaniteacute et par fierteacute de concevoir des opinions non vulgaires et reformatrices du monde en affecter la profession par contenance qui sils sont asses fols ne sont pas assez forts pour lavoir planteacutee en leur conscience pourtantrdquo71

Aleacutem de apontar os limites das crenccedilas consideradas pagatildes bem como os

enganos de Platatildeo relativos aos motivos que levam o homem agrave praacutetica da religiatildeo

Montaigne critica um outro engano similar e importante de Platatildeo

ldquo[B] Lerreur du paganisme et lignorance de nostre sainte veriteacute laissa tomber cette grande ame de Platon (mais grande dhumaine grandeur seulement) encores en cet autre voisin abus que les enfans et les vieillars se trouvent plus susceptibles de religion comme si elle naissoit et tiroit son credit de nostre imbecilliteacuterdquo72

Segundo Montaigne a religiatildeo natildeo pode ser construiacuteda sobre o alicerce da razatildeo

humana como vimos Nem tampouco pode ser fundada nos argumentos platoacutenicos

acabados de referir Estes satildeo todos muito fraacutegeis A religiatildeo encontra as suas bases

verdadeiras na feacute A perspectiva proacutepria da filosofia supotildee um ateiacutesmo de meacutetodo como

observa Conche Caso contraacuterio ela jaacute natildeo seria filosofia ldquomais theacuteologie ou ideacuteologie

A qui est ainsi priveacute du secours de la gracircce divine Dieu est inconnaissablerdquo73

Montaigne recusa o ateiacutesmo de uma forma muito clara inclusive aquele conceituado

por Platatildeo

ldquo[A] Et ce que dit Plato74 quil est peu dhommes si fermes en latheisme quun dangier pressant ne ramene agrave la recognoissance de la divine puissance ce rolle ne touche point un vray Chrestien Cest agrave faire aux

70 Les essais II 12 p 445 71 Les Essais II 12 p 446 72 Les Essais II 12 p 446 73 Conche 1996 op cit p131 74 Tudo leva a crer que Montaigne se estaacute a referir a Platatildeo Preferimos conservar a mesma grafia da ediccedilatildeo dos Essais que estaacute a ser utilizada neste trabalho

28

religions mortelles et humaines destre receueumls par une humaine conduite Quelle foy doit ce estre que la laacutecheteacute et la foiblesse de coeur plantent en nous et establissent [C] Plaisante foy qui ne croid ce quelle croit que pour navoir le courage de le descroire Une vitieuse passion comme celle de linconstance et de lestonnement peut elle faire en nostre ame aucune production regleacutee75

Continuando a sua reflexatildeo no preacircmbulo da ldquoApologierdquo o autor ressalta qual eacute

a relaccedilatildeo fundamental que eacute necessaacuteria para estabelecer a uniatildeo do homem a Deus

partindo do caraacutecter superior da religiatildeo face ao ateiacutesmo Montaigne observa que o laccedilo

que deveria atar o nosso juiacutezo e a nossa vontade que deveria cingir a nossa alma e uni-

la ao criador

ldquo[A] ce devroit estre un neud prenant ses repliz et ses forces non pas de nos considerations de noz raisons et passions mais dune estreinte divine et supernaturelle nayant quune forme un visage et un lustre qui est lauthoriteacute de Dieu et sa grace Or nostre coeur et nostre ame estant regie et commandeacutee par la foy cest raison quelle tire au service de son dessain toutes noz autres pieces selon leur porteacuteerdquo76

Montaigne ao indicar como devemos manejar os instrumentos naturais e

humanos ou seja como devemos aplicar a razatildeo agrave nossa feacute afirma que Deus deixou nas

suas obras o cunho de sua divindade e deve-se apenas agrave nossa fraqueza que natildeo o

possamos perceber E afirma com admiraccedilatildeo que Sebond se empenhou neste digno

estudo

ldquo[A] Or nos raisons et nos discours humains cest comme la matiere lourde et sterile la grace de Dieu en est la formerdquo77

As acccedilotildees humanas permanecem inuacuteteis e vatildes se natildeo tecircm em conta o amor e a

obediecircncia a Deus

ldquo[A] ainsin est-il de nos imaginations et discours ils ont quelque corps mais une masse informe sans faccedilon et sans jour si la foy et grace de Dieu ny sont joinctesrdquo78

Quanto aos segundos opositores de Sebond ndash ou seja os que dizem que seus

argumentos satildeo fracos e inadequados para demonstrar o que ele pretende e por isso

dispotildeem-se a atacaacute-los facilmente ndash Montaigne vai rejeitar os argumentos por eles

apresentados nos quais se subestima a importacircncia da feacute A rejeiccedilatildeo dos argumentos

desta segunda categoria ocupa maior espaccedilo porque ldquo[A] Il faut secouer ceux cy un peu

75 Les Essais II 12 p 445 76 Les Essais II 12 p 446 77 Les Essais II 12 p 447 78 Les Essais II 12 p 447

29

plus rudement car ils sont plus dangereux et plus malitieux que les premiersrdquo79 Estes

ldquoracionalistasrdquo consideram que a razatildeo humana eacute auto-suficiente para conhecer

qualquer coisa e desprezam a feacute considerando-a como algo inuacutetil para um saacutebio

ldquo Le moyen que je prens pour rabatre cette frenaisie et qui me semble le plus propre crsquoest de froisser et fouler aux pieds lrsquoorgueil et humaine fierteacute leur faire sentir lrsquoinaniteacute la vaniteacute et deneantise de lrsquohomme leur arracher des points les chetives armes de leur raison leur faire baisser la teste et mordre la terre soubs lrsquoauthoriteacute et reverence de la majesteacute divine Crsquoest agrave elle seule qursquoapartient la science et la sapience elle seule qui peut estimer de soy quelque chose et agrave qui nous desrobons ce que nous nous contons et ce que nous nous prisons Ού γὰρ ἐᾱ φρονεῑν ὁ Θεὸϛ μέγα ἄλλον ἢ ἑαυτόν [ldquoCar Dieu ne permet pas qursquoun autre que Lui srsquoenorgueillisserdquo (Heacuterodote VII x)]rdquo80

Ao analisar as duas objecccedilotildees agrave Teologia natural de Sebond Montaigne tem

como principal finalidade - aleacutem do desenvolvimento do seu fideiacutesmo que potildee em

causa que a filosofia seja um meio para se chegar a Deus - destronar o homem do seu

pedestal como ldquosenhorrdquo entre todas as criaturas como vimos no primeiro capiacutetulo deste

trabalho Agrave luz destas objecccedilotildees se desenvolve tambeacutem em todo o texto da ldquoApologierdquo

uma grande quantidade de criacuteticas aos detractores do teoacutelogo catalatildeo que na verdade

mais natildeo eacute do que uma contestaccedilatildeo de Montaigne de tudo aquilo que faz do homem um

ser cheio de orgulho e de vaidade Montaigne chega agrave conclusatildeo que a razatildeo humana

natildeo pode conhecer os atributos de Deus A razatildeo natildeo tem condiccedilotildees para emitir juiacutezos

crediacuteveis a respeito destes atributos Ela natildeo estaacute revestida de um poder que lhe garanta

a elaboraccedilatildeo de raciociacutenios crediacuteveis acerca de Deus e das verdades da religiatildeo

Montaigne apresenta um resumo das principais ideias acerca de Deus que foram

surgindo na histoacuteria do pensamento filosoacutefico antigo e afirma que tudo isto natildeo passa de

uma balbuacuterdia (ldquotintamarrerdquo) de muitos ceacuterebros filosoacuteficos81

ldquo[C] Thales [hellip] estima Dieu un esprit qui fit deau toutes choses Anaximander que les Dieux estoyent des mourans et naissans agrave diverses saisons et que crsquoestoyent des mondes infinis en nombre Anaximenes que lair estoit Dieu [hellip] Anaxagoras le premier a tenu la description et maniere de toutes choses estre conduite par la force et raison dun esprit infini Alcmaeligon a donneacute la diviniteacute au soleil agrave la lune aux astres et agrave lame[hellip] Empedocles disoit estre des Dieux les quatre natures desquelles toutes choses sont faictes [hellip] Platon dissipe sa creance agrave divers visages Il dict au Timaeacutee le pere du monde ne se pouvoir

79 Les Essais II 12 p 448 80 Les Essais II 12 p 448 81 Cf Les Essais II 12 p 516

30

nommer aux loix quil ne se faut enquerir de son estre et ailleurs en ces mesmes livres il faict le monde le ciel les astres la terre et nos ames Dieux et reccediloit en outre ceux qui ont esteacute receuz par lancienne institution en chasque republique Xenophon rapporte un pareil trouble de la discipline de Socrates tantost quil ne se faut enquerir de la forme de Dieu et puis il luy faict establir que le Soleil est Dieu et lame Dieu quil ny en a quun et puis quil y en a plusieurs[hellip] Aristote asture que cest lesprit asture le monde asture il donne un autre maistre agrave ce monde et asture faict Dieu lardeur du ciel [hellip] Heraclides Ponticus ne fait que vaguer entre les advis et en fin prive Dieu de sentiment et le faict remuant de forme agrave autre et puis dict que cest le ciel et la terre[hellip] Zeno la loy naturelle commandant le bien et prohibant le mal laquelle loy est un animant et oste les Dieux accoustumez Jupiter Juno Vesta Diogenes Apolloniates que cest laage [hellip] Cleanthes tantost la raison tantost le monde tantost lame de Nature tantost la chaleur supreme entournant et envelopant tout [hellip] Chrysippus faisoit un amas confus de toutes les precedentes sentences et comptoit entre mille formes de Dieux quil faict les hommes aussi qui sont immortalisez Diagoras et Theodorus nioyent tout sec quil y eust des Dieux Epicurus faict les Dieux luisans transparens et perflables logez comme entre deux forts entre deux mondes agrave couvert des coups revestus dune humaine figure et de nos membres lesquels membres leur sont de nul usagerdquo82

Esta longa citaccedilatildeo da ldquoApologierdquo apresenta-nos a enorme quantidade de

teorizaccedilotildees que tecircm como base a razatildeo humana e que satildeo bastante diacutespares no tocante

agraves crenccedilas Isto potildee em evidecircncia que Montaigne natildeo acredita que o homem tenha

condiccedilotildees para compreender ou apresentar algo crediacutevel acerca de Deus Por isto o

homem exagera na sua criatividade intelectual ao inventar inuacutemeros atributos divinos

que frequentemente se assemelham aos seus proacuteprios atributos Em seu entender Deus

eacute absolutamente incompreensiacutevel Na leitura que de Montaigne faz Leveaux

ldquoLrsquoideacutee de Dieu existe chez lrsquohomme mais au delagrave de cette ideacutee simple drsquoune uniteacute absolue tout devient doute et confusion Alors se preacutesent des questions sans nombre auxquelles il est impossible de reacutepondre Crsquoest lagrave si je ne me trompe le ldquoque sais-jerdquordquo83

Montaigne afirma que haacute uma grande inconstacircncia variedade e mobilidade de

ideias acerca de Deus nas almas excelentes e admiraacuteveis dos filoacutesofos Mas classifica o

empenho destes como vatildeo pelo facto de quererem adivinhar Deus por meio das nossas

analogias e conjecturas Por natildeo podermos estender a vista ateacute ao seu trono glorioso

procuramos trazecirc-lo aqui para baixo para a nossa corrupccedilatildeo e miseacuteria Soacute a feacute tem

82 Les Essais II 12 pp 514-516 83 Leveaux Alphonse Eacutetude sur les Essais de Montaigne Paris Henri Plon Imprimeur-Eacutediteur 1870 p 213

31

condiccedilotildees de entender os misteacuterios da religiatildeo Sem ela os nossos esforccedilos de

demonstraccedilatildeo destes misteacuterios permanecem vazios e esteacutereis

ldquo[A] La participation que nous avons agrave la connoissance de la veriteacute quelle quelle soit ce nest pas par nos propres forces que nous lavons acquise Dieu nous a assez appris cela par les tesmoins quil a choisi du vulgaire simples et ignorans pour nous instruire de ses admirables secrets nostre foy ce nest pas nostre acquest cest un pur present de la liberaliteacute dautruy Ce nest pas par discours ou par nostre entendement que nous avons receu nostre religion cest par authoriteacute et par commandement estranger La foiblesse de nostre jugement nous y ayde plus que la force et nostre aveuglement plus que nostre cler-voyance Cest par lentremise de nostre ignorance plus que de nostre science que nous sommes sccedilavans de divin sccedilavoirrdquo84

Para o autor da ldquoApologierdquo o homem por si soacute eacute absolutamente impotente para

chegar a certezas acerca das questotildees relacionadas com a feacute Nesta perspectiva o autor

observa tambeacutem que natildeo eacute possiacutevel fazer afirmaccedilotildees seguras tendo como base a razatildeo

Por exemplo acerca da imortalidade da alma tema desde sempre muito caro agrave filosofia

os cristatildeos devem unicamente a Deus e ao benefiacutecio de sua graccedila a verdade de uma

crenccedila tatildeo nobre pois eacute apenas da sua liberalidade que o cristatildeo recebe o fruto da

imortalidade o qual lembra o autor consiste no gozo da beatitude eterna A razatildeo natildeo

consegue fazer nenhuma afirmaccedilatildeo crediacutevel sobre este tema Ela eacute incapaz uma vez que

a imortalidade eacute um ldquodadordquo da revelaccedilatildeo

ldquo[C] Confessons ingenuement que Dieu seul nous lrsquoa dict et la foy car leccedilon nrsquoest ce pas de nature et de nostre raisonrdquo85

Montaigne assumindo uma posiccedilatildeo fideiacutesta depois de ter feito o exame das

diversas opiniotildees sobre a alma86 faz um ldquoapelo agrave passividade da razatildeo e agrave aceitaccedilatildeo da

verdade religiosa sem tentar compreendecirc-la ldquoimortalidaderdquo eacute como ldquoDeusrdquo uma

palavra que natildeo pode ser preenchida A imortalidade afirmada pela feacute natildeo poderaacute ser

explorada por nenhuma forma de discurso humanordquo87

Esta atitude fideiacutesta e conservadora em termos religiosos deve-se em grande

parte agrave desilusatildeo de Montaigne face aos inuacutemeros sistemas filosoacuteficos que tentavam

84 Les Essais II 12 p 500 85 Les Essais II 12 p 554 86 Na ldquoApologierdquo haacute uma quantidade significativa de paacuteginas nas quais o autor expressa muitas opiniotildees sobre o tema da alma (cf Les Essais pp 542-547) 87 Birchal Telma de Souza O Eu nos Ensaios de Montaigne Belo Horizonte Editora UFMG 2007 pp 64-65

32

encontrar explicaccedilotildees racionais para todas as questotildees da vida inclusivamente para

aquelas que transcendem a vida real

ldquo[A] Car quelque apparence quil y ayt en la nouvelleteacute je ne change pas aiseacutement de peur que jay de perdre au change Et puis que je ne suis pas capable de choisir je pren le chois dautruy et me tien en lassiette ougrave Dieu ma mis Autrement je ne me sccedilauroy garder de rouler sans cesse Ainsi me suis-je par la grace de Dieu conserveacute entier sans agitation et trouble de conscience aux anciennes creances de nostre religion au travers de tant de sectes et de divisions que nostre siecle a produittesrdquo88

Segundo Leveaux Montaigne sintetiza seu pensamento em mateacuteria religiosa89

da seguinte maneira

ldquo[A] De toutes les opinions humaines et anciennes touchant la religion celle lagrave me semble avoir eu plus de vray-semblance et plus dexcuse qui recognoissoit Dieu comme une puissance incomprehensible origine et conservatrice de toutes choses toute bonteacute toute perfection recevant et prenant en bonne part lhonneur et la reverence que les humains luy rendoient soubs quelque visage sous quelque nom et en quelque maniere que ce fut [hellip]rdquo90

Haacute que reconhecer no entanto que eacute algo difiacutecil e delicado tirar grandes

conclusotildees acerca da religiatildeo embora o tema perpasse toda a ldquoApologie rdquo Montaigne

concebia a religiatildeo como um conjunto de praacuteticas e leis que tinham como finalidade

contribuir para que o homem natildeo agisse como um escravo da vaidade da razatildeo As

uacuteltimas palavras da ldquoApologierdquo onde o autor cita Plutarco pretendem servir como uma

espeacutecie de conclusatildeo de toda a reflexatildeo deste capiacutetulo Deixemos o proacuteprio Montaigne

falar

ldquo[A] Mais quest-ce donc qui est veritablement Ce qui est eternel cest agrave dire qui na jamais eu de naissance ny naura jamais fin agrave qui le temps napporte jamais aucune mutation Car cest chose mobile que le temps et qui apparoit comme en ombre avec la matiere coulante et fluante tousjours sans jamais demeurer stable ny permanenterdquo91

Contestando a atitude humana de querer elevar-se acima da humanidade que

pode ser tambeacutem entendida como um desejo absurdo de um ser despreziacutevel que tem a

88 Les Essais II 12 p 569 89 Cf Leveaux op cit p 213 90 Les Essais II 12 p 513 91 Les Essais II 12 p 603

33

presunccedilatildeo como doenccedila natural e original e que eacute a mais calamitosa de todas as

criaturas e ao mesmo tempo a mais orgulhosa92 Montaigne afirma

ldquo[A] O la vile chose dit-il et abjecte que lhomme sil ne sesleve au dessus de lhumaniteacute [C] Voila un bon mot et un utile desir mais pareillement absurde Car [A] de faire la poigneacutee plus grande que le poing la brasseacutee plus grande que le bras et desperer enjamber plus que de lestandueuml de nos jambes cela est impossible et monstrueux Ny que lhomme se monte au dessus de soy et de lhumaniteacute car il ne peut voir que de ses yeux ny saisir que de ses prises Il seslevera si Dieu lui preste extraordinairement la main Il seslevera abandonnant et renonccedilant agrave ses propres moyens et se laissant hausser et soubslever par les moyens purement celestesrdquo93

Montaigne termina a ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo colocando o homem no

seu devido lugar e afirmando que soacute atraveacutes do auxiacutelio de Deus e com a graccedila da feacute

cristatilde eacute que este ser tatildeo vaidoso poderaacute elevar-se acima da humanidade

ldquo[C] Cest agrave nostre foy Chrestienne non agrave sa vertu Stoique de pretendre agrave cette divine et miraculeuse metamorphoserdquo94

92 Cf nota 12 93 Les Essais II 12 p 604 94 Les Essais II 12 p 604

34

3 A criacutetica agrave razatildeo humana e sua relaccedilatildeo com a ciecircncia

Uma observaccedilatildeo que eacute importante destacar no iniacutecio deste capiacutetulo refere-se agrave

concepccedilatildeo montaigneana de ldquociecircnciardquo que se encontra na ldquoApologie de Raymond

Sebondrdquo Quando Montaigne na sua criacutetica radical agrave razatildeo humana se refere agrave ciecircncia

o que subjaz agraves suas reflexotildees natildeo eacute a concepccedilatildeo moderna de ciecircncia Ele natildeo alude ao

chamado ldquomeacutetodo cientiacutefico experimentalrdquo ateacute porque este meacutetodo ainda natildeo existia O

termo ldquociecircnciardquo natildeo tem o sentido que adquiriu depois da chamada Revoluccedilatildeo

Cientiacutefica do seacuteculo XVII Assim com o termo ciecircncia Montaigne refere-se ao conjunto

do conhecimento erudito de seu tempo

ldquoLa science du XVIᵉ siegravecle nrsquoest que philosophie Elle srsquoarrecircte aux mots jamais elle ne peacutenegravetre au fond des choses et ne suscite un effort critiquerdquo95

Sendo um pensador da uacuteltima fase do periacuteodo renascentista periacuteodo este em que

natildeo havia nenhuma diferenccedila essencial entre a filosofia e a ciecircncia Montaigne procura

expressar as suas ideias os seus ideais de sabedoria como tantos outros faziam isto eacute

quando se refere agrave ciecircncia estaacute a referir-se aos doutos e aos filoacutesofos em geral

Logo no iniacutecio da ldquoApologierdquo Montaigne faz questatildeo de afirmar que a ciecircncia eacute

algo muito uacutetil e grande e os que a menosprezam datildeo prova bastante de estupidez Sem

desprezar agrave partida todo o esforccedilo que muitos fazem para chegar a alcanccedilar o

conhecimento Montaigne por outro lado natildeo chega a estimar tanto a ciecircncia

ldquo[A] Comme Herillus le philosophe qui logeoit en elle le souverain bien et tenoit qursquoil fut en elle de nous rendre sages et contensrdquo96

Montaigne natildeo crecirc nisto nem tampouco no que outros disseram

ldquo[A] que la science est mere de toute vertu et que tout vice este produit par lrsquoignorancerdquo97

Segundo ele mesmo atesta a sua casa esteve habitualmente aberta agraves pessoas de

saber e o seu pai buscou com grande cuidado e despesa o conviacutevio dos homens doutos

ldquo[A] les recevant chez luy comme personnes sainctes et ayans quelque particuliere inspiration de sagesse divine [hellip]rdquo98

95 Villey opcit p 214 96 Les Essais II 12 p 438 97 Les Essais II 12 p 438 98 Les Essais II 12 pp 438-439

35

Embora respirando toda uma atmosfera intelectual que havia em sua casa

Montaigne afirma no entanto que gostava muito destes doutos frequentadores de sua

casa mas natildeo os adorava

Desde as primeiras afirmaccedilotildees de Montaigne na ldquoApologierdquo eacute possiacutevel perceber

ateacute que ponto ele tem dificuldade em aceitar os chamados filoacutesofos de profissatildeo Neste

famoso texto que eacute considerado por Villey ldquole reacutesumeacute du travail logique qui srsquoopegravere

chez Montaigne entre 1573 et 1579 ou 1580rdquo99 podemos encontrar paradoxalmente

por um lado uma valorizaccedilatildeo da razatildeo enquanto uacutenico modo de investigaccedilatildeo dos

doutos e por outro lado que a razatildeo eacute considerada como algo profundamente limitado

enquanto instrumento de acesso ao conhecimento

Montaigne dedica muitas paacuteginas a demonstrar que a ciecircncia fundada na razatildeo

eacute viacutetima da vaidade humana e deve ser contestada Isto pelo facto de que concebe a

ciecircncia como o esforccedilo que deve ser uacutetil agrave nossa felicidade

ldquo[A] la philosophie me doit mettre les armes agrave la main pour combatre la fortune qui me doit roidir le courrage pour fouler aux pieds toutes les advertitez humaines [hellip]rdquo100

O objectivo primeiro da filosofia eacute portanto a vida concreta A atitude vaidosa

da razatildeo na busca do conhecimento causa no homem

ldquo[A] lrsquoinconstance lrsquoirresolution lrsquoincertitude le deuil la superstition la solitude de choses agrave venir voire apres nostre vie lrsquoambition lrsquoavarice la jalousie lrsquoenvie les appetits desreglez foncenez et indomptables la guerre la mensonge la desloyauteacute la detraction et la curiositeacuterdquo101

Segundo Montaigne pagamos um preccedilo elevadiacutessimo por essa bela razatildeo de que

nos gloriamos e por conseguinte tambeacutem pela capacidade de julgar e conhecer

sobretudo se forem adquiridas agrave custa destas paixotildees

Montaigne natildeo vecirc muita necessidade praacutetica de querer mergulhar nos altos

conhecimentos em que a filosofia estaacute imersa Para que serve o conhecimento (fruto da

razatildeo enganadora) de muitas coisas Expressando a sua criacutetica agrave loacutegica aristoteacutelica

afirma ironicamente

ldquo[A] ont-ils tireacute de la Logique quelques consolation agrave la gouterdquo102

99 Villey op cit p 182 100 Les Essais II 12 p 494 101 Les Essais II 12 p 486 102 Les Essais II 12 p 487

36

Prosseguindo no mesmo registo iroacutenico pergunta se acaso se descobriu que a

voluptuosidade e a sauacutede satildeo mais deleitosas para quem conhece a astronomia e a

gramaacutetica e menos importunas agrave desonra e a pobreza103

Montaigne revela um significativo desprezo pelos filoacutesofos que satildeo escravos da

razatildeo e buscam tudo saber e fazer afirmaccedilotildees sobre todas as coisas Ao mesmo tempo

manifesta uma forte tendecircncia para valorizar o homem simples e ignorante

ldquo[A] Jrsquoay veu en mon temps cent artisans cent laboureurs plus sages et plus heureux que des recteurs de lrsquouniversiteacute et lesquels jrsquoaimerois mieux ressemblerrdquo104

Na sua apologia da ignoracircncia declara que o homem tem como quinhatildeo a

presunccedilatildeo e que a ignoracircncia nos eacute recomendada ateacute pela religiatildeo cristatildeldquo[A] La peste

de lrsquohomme crsquoest lrsquoopinion de sccedilavoirrdquo105

Para Montaigne eacute necessaacuterio derrubar a tola vaidade e sacudir de uma maneira

viva e corajosa os fundamentos ridiacuteculos sobre os quais se fundam as falsas ideias

Insiste continuamente no facto de que natildeo necessitamos do saber produzido pela

filosofia

ldquo[A] Crsquoestoit ce que disoit un senateur Romain des derniers siecles que leurs predecesseurs avoient lrsquoaleine puante agrave lrsquoair et lrsquoestomac musqueacute de bonne conscience et qursquoau rebours ceux de son temps se sentoient au dehors que le parfum puans au dedans toutes sorte de vices crsquoest agrave dire comme je pense qursquoils avoient beaucoup de sccedilavoir et de suffisance et grand faute de preudrsquohommierdquo106

O orgulho humano eacute visto pelo autor como algo que atrapalha fortemente na

busca natildeo do conhecimento filosoacutefico claacutessico mas da sabedoria Soacutecrates eacute

referenciado na ldquoApologierdquo entre outras coisas como um grande saacutebio107 Natildeo porque

ldquo[C] le Dieu de sagesse luy avoit attibueacute le surnom de sagerdquo108 mas porque ele mesmo

natildeo se considerava saacutebio e porque a sua melhor ciecircncia era a ciecircncia da ignoracircncia e a

sua melhor sabedoria a simplicidade de espiacuterito

103Cf Les Essais II 12 p 487 104 Les Essais II 12 p 487 105 Les Essais II 12 p 488 106 Les Essais II 12 p 498 107 Podemos encontrar uma quantidade significativa de estudos acerca da figura de Soacutecrates nos Ensaios Destacamos aqui um artigo escrito por Celso Martins Azar Filho cujo tiacutetulo eacute Montaigne e Soacutecrates cepticismo conhecimento e virtuderdquo que estaacute publicado na Revista Portuguesa de Filosofia Tomo LVIII do ano de 2002 Fasc 4 (pp 829-845) Com o seu artigo o autor propotildee-se examinar qual o lugar e a importacircncia deste filoacutesofo no pensamento de Montaigne 108 Les Essais II 12 p 498

37

O verdadeiro saacutebio segundo Montaigne eacute o homem que aprende que natildeo

aprendeu nada Refere-se a isto de uma maneira muito elucidativa

ldquo[A]Il est adnevenu aux gens veacuteritablement sccedilavans ce qui advient aux espics de bled ils vont srsquoeslevant et se haussant la teste droite et fiere tant qursquoil sont vuides mais quand ils sont pleins et grossis de grain en leur maturiteacute ils commencent agrave srsquohumilier et agrave baisser les cornes Pareillement les hommes ayant tout essayeacute et tout sondeacute nrsquoayant trouveacute en cet amas de science et provision de tant de choses diverses rien de massif et ferme et rien que vaniteacute ils ont renonceacute agrave leur presomption et reconneu leur condition naturellerdquo109

Depois de descrever sinteticamente os atributos do saacutebio Montaigne -

considerado como um pensador que popularizou o pirronismo praticando-o

pessoalmente sobretudo na ldquoApologierdquo - afirma que toda a filosofia estaacute distribuiacuteda por

trecircs geacuteneros A sua principal fonte eacute a ediccedilatildeo das obras de Sexto Empiacuterico que surge em

1569 Montaigne enumera estas trecircs filosofias da seguinte maneira haacute os dogmaacuteticos

os acadeacutemicos e os pirroacutenicos110 Os dogmaacuteticos afirmam que se pode ter acesso agrave

ciecircncia os acadeacutemicos natildeo estatildeo de acordo com os dogmaacuteticos isto eacute consideram que

natildeo se pode ter acesso agrave ciecircncia e os pirroacutenicos estatildeo ainda em busca da verdade Estes

declaram que os que pensam havecirc-la encontrado se enganam infinitamente Segundo

Montaigne os pirroacutenicos tecircm como ofiacutecio

ldquo[A] branler douter et enquerir ne srsquoasseurer de rien de rien ne se respondrerdquo111

Esta atitude condu-los segundo Montaigne agrave ataraxia que eacute uma condiccedilatildeo de

vida tranquila sossegada isenta das agitaccedilotildees que recebemos pela impressatildeo da opiniatildeo

e ciecircncia que julgamos ter das coisas Esta indiferenccedila pela ciecircncia liberta os pirroacutenicos

inclusivamente do espiacuterito de rivalidade quanto agrave sua doutrina debatem de maneira bem

pouco vigorosa Quando dizem que o pesado vai para baixo ficariam bastante

aborrecidos se acreditassem neles Sendo assim os pirroacutenicos segundo Montaigne

procuram que os contradigam para gerar ldquo[A] la dubitation et surceance (suspension)

de jugement qui est leur finrdquo112

Os pirroacutenicos satildeo partidaacuterios da duacutevida extrema Expotildeem as suas opiniotildees

apenas para combater aquelas em que pensam que acreditamos Diz Montaigne

109 Les Essais II 12 p 500 110 Les Essais II 12 p 502 111 Les Essais II 12 p 502 112 Les Essais II 12 p 503

38

ldquo[A] Si vous prenez la leur ils prendront aussi volontiers i la contraire agrave soutenir tout leur est un ils nrsquoy ont aucun chois Si vous establissez que la nege soit noire ils augumentent au rebours qursquoelle est blanche Si vous dites qursquoelle nrsquoest ny lrsquoun ny lrsquoautre crsquoest agrave eux agrave maintenir qursquoelle est tous les deux Si par certain jugement vous tenez que vous nrsquoen sccedilavez rien ils vous maintiedront que vous ne sccedilavez Oui et si par un axiome affirmatif vous asseurez que vous en doutez ils vous iront debattant que vous nrsquoen doutez pas ou que vous ne pouvez juger et etablir que vous en doutez Et par cette extremiteacute de doubte qui se secoue soy-mesme ils se separent et se divisent de plusieurs opinions de celles mesme qui ont maintenu en plusieurs faccedilons le double et lrsquoignorancerdquo113

[hellip] Leurs faccedilon de parler sont Je nrsquoestablis rien il nrsquoest non plus ainsi qursquoainsi ou que ny lrsquoun ny lrsquoautre je ne le comprens point les apparences sont eacutegales par tout la loy de parler et pour et contre est pareille [C] Rien ne semble vray qui ne puisse sembler faux [A] Leur mot sacramental crsquoest ἐπέχω crsquoest agrave dire je soutiens je ne bougerdquo114

Os pirroacutenicos servem-se de sua razatildeo para inquirir e debater mas natildeo para

decidir e escolher

Um outro aspecto que leva Montaigne a identificar-se com o pirronismo a uacutenica

filosofia por ele respeitada eacute a visatildeo pirroacutenica relativamente agraves acccedilotildees da vida Os seus

defensores prestam-se e acomodam-se agraves inclinaccedilotildees naturais ao impulso e agrave imposiccedilatildeo

das paixotildees agraves decisotildees das leis e dos costumes

ldquo[A] Ils laissent guider agrave ces choses lagrave leurs actions communes sans aucune opination ou jugement115

Neste sentido Montaigne defende o pirronismo sobretudo por causa de sua

virtude moral116 Sustenta que eacute importante fomentar o juiacutezo livre ou a suspensatildeo do

juiacutezo que eacute a atitude dos pirroacutenicos Por outro lado natildeo pode concordar com a posiccedilatildeo

dos que aceitam a arbitraacuteria submissatildeo a algum tipo de autoridade ou opiniatildeo (os

dogmaacuteticos) Importa salientar no entanto que o autor da ldquoApologierdquo consegue

distanciar-se dos pirroacutenicos que se recusam a fazer qualquer juiacutezo Montaigne por ser

um pensador livre inclusive dos argumentos pirroacutenicos natildeo suspende os seus proacuteprios

113 Les Essais II 12 p 503 114 Les Essais II 12 p 505 115 Les Essais II 12 p 505 116 Para Montaigne o pirronismo natildeo eacute uma doutrina ou um sistema filosoacutefico do qual ele eacute adepto Eacute sobretudo uma atitude de espiacuterito ou uma tendecircncia do pensamento Ele tem consciecircncia da dificuldade que esta filosofia encontra para consolidar-se em termos de coerecircncia loacutegica Se do ponto de vista loacutegico natildeo haacute soluccedilatildeo permanente satisfatoacuteria para o pirronismo ele torna-se uma opccedilatildeo eacutetica na medida em que possibilita aos seus adeptos ldquo[B] de maintenir leur liberteacute et considerer les choses sans obligation et servituderdquo (Les Essais II 12 p 504)

39

juiacutezos Muito pelo contraacuterio emite muitos Exprime as suas opiniotildees sem cessar Chega

ateacute a afirmar que a razatildeo eacute

ldquo[A] sa pierre de touche agrave toutes sortes drsquoessais mais certes crsquoest une touche pleine de fauceteacute drsquoerreur de foiblesse et defaillancerdquo117

Na ldquoApologierdquo Montaigne recorre aos tropos (segundo a designaccedilatildeo de Sexto

Empiacuterico) tomando-os como os principais argumentos contra a filosofia denominada

dogmaacutetica Estes argumentos ceacutepticos tecircm por finalidade provar que eacute impossiacutevel

alcanccedilar a verdade Fundamentado nas reflexotildees pirroacutenicas natildeo considera a ciecircncia

como um verdadeiro conhecimento O saber humano eacute considerado sem efeito por causa

de todo o tipo de divergecircncias que haacute entre os homens

Haacute segundo Montaigne uma imensa e infinita confusatildeo de opiniotildees entre os

filoacutesofos e tudo isto deve-se ao debate perpeacutetuo e universal acerca do conhecimento das

coisas Eles natildeo estatildeo de acordo em nada nem sequer em que o ceacuteu estaacute por cima das

nossas cabeccedilas118 afirma ironicamente E isto deve-se agrave falta de constacircncia do juiacutezo

Quantas vezes julgamos noacutes as coisas Quantas vezes alteramos as nossas opiniotildees

Nesta perspectiva percebemos a atitude relativista de Montaigne

ldquo[A] Ce que je tiens aujourdhuy et ce que je croy je le tiens et le croy de toute ma croyance tous mes utils et tous mes ressorts empoignent cette opinion et men respondent sur tout ce quils peuvent Je me sccedilaurois embrasser aucune veriteacute ny conserver avec plus de force que je fay cette cy Jy suis tout entier jy suis voyrement mais ne mest il pas advenu non une foi mais cent mais mille et tous les jours davoir embrasseacute quelqursquoautre chose agrave tout ces mesmes instrumens en cette mesme condition que depuis jaye jugeacutee fauce Au moins faut il devenir sage agrave ses propres despansrdquo119

Montaigne natildeo pretende condenar a tendecircncia agrave mudanccedila perene que eacute

constitutiva do homem O que ele pretende eacute que o homem se comporte de uma forma

mais moderada e discreta em face das mudanccedilas Sugere que nos tornemos saacutebios agrave

nossa proacutepria custa120

117 Les Essais II 12 p 540 118 Cf Les Essais II 12 p 563 119 Les Essais II 12 p 563 120 Conche na sua obra de introduccedilatildeo aos Essais intitulada Montaigne ou la conscience heureuse apresenta uma reflexatildeo muito sugestiva relativamente ao tema da sabedoria Para este autor os Essais sugerem-nos que compreendamos a filosofia como uma aprendizagem da sabedoria e natildeo do saber Em seu entender Montaigne natildeo tem nenhum interesse em elaborar um sistema filosoacutefico porque isto supotildee que uma verdade permanece o que ela eacute Um sistema filosoacutefico crecirc que haacute verdades e que elas satildeo acessiacuteveis por evidecircncia ou seja que a certeza posta agrave prova eacute realmente uma certeza de direito Estes princiacutepios satildeo sem valor para Montaigne eleja que este natildeo crecirc na possibilidade de confirmar as nossas certezas (cf Conche 2009 op cit 65)

40

O arauto do juiacutezo eacute o homem concreto que vive uma vida real Natildeo eacute um ser

abstracto Por isso Montaigne afirma

ldquo[A] Ce ne sont pas seulement les fievres les breuvages et les grands accidens qui renversent nostre jugement les moindres choses du monde le tournevirent [hellip] et par conseacutequent agrave peine se peut il rencontrer une seule heure en la vie ougrave nostre jugement se trouve en sa deueuml assiette nostre corps estant subject agrave tant de continuelles mutations et estofeacute de tant de sortes de ressorts que ( jen croy les medecins) combien il est malaiseacute quil ny en ayt tousjours quelquun qui tire de traversrdquo121

Vejamos uma definiccedilatildeo da razatildeo na ldquoApologierdquo

ldquo[A] la raison va tousjours torte et boiteuse et deshancheacutee et avec le mensonge comme avec la veriteacute Par ainsin il est malaiseacute de descouvrir son mescompte et desreglement Jappelle tousjours raison cette apparence de discours que chacun forge en soy cette raison de la condition de laquelle il y en peut avoir cent contraires autour dun mesme subject cest un instrument de plomb et de cire alongeable ployable et accommodable agrave tous biais et agrave toutes mesures il ne reste que la suffisance de le sccedilavoir contournerrdquo122

Atraveacutes desta concepccedilatildeo de razatildeo fica suficientemente clara a criacutetica destruidora

de Montaigne agrave filosofia dogmaacutetica que considera a razatildeo como uma faculdade que

permite ao homem ndash entre tantas outras atribuiccedilotildees ndash conhecer e acumular um saber uacutetil

e julgar sobre o bem e o mal

Envolvendo-se de uma maneira muito pessoal ndash como eacute caracteriacutestico do estilo

literaacuterio dos Essais ndash nesta reflexatildeo sobre a razatildeo Montaigne toma a liberdade de fazer

uma pequena descriccedilatildeo de sua personalidade Vale a pena citar algumas destas

passagens porque satildeo um reflexo do pensamento do autor

ldquo[A] Jay le pied si instable et si mal assis je le trouve si ayseacute agrave crouler et si prest au branle et ma veueuml si desregleacutee que agrave jun je me sens autre quapres le repas si ma santeacute me rid et la clarteacute dun beau jour me voylagrave honneste homme si jay un cor qui me presse lorteil me voylagrave renfroigneacute mal plaisant et inaccessible [hellip] Maintenant je suis agrave tout faire maintenant agrave rien faire ce qui mest plaisir agrave cette heure me sera quelque fois peine [hellip] Ou lhumeur melancholique me tient ou la choleriqu [hellip]Quand je prens des livres jauray apperceu en tel passage des graces excelentes et qui auront feru mon ame quun autre fois jy retombe jay beau le tourner et virer jay beau le plier et le manier cest une masse inconnue et informe pour moy [hellip] [B] [hellip] mon jugement ne tire pas tousjours avant il flotte il vaguerdquo123

121 Les Essais II 12 pp 564-565 122 Les Essais II 12 p 565 123 Les Essais II 12 pp 565-566

41

Montaigne daacute-se claramente conta de que natildeo encontramos seguranccedila nos

nossos juiacutezos As nossas paixotildees apresentam uma enorme quantidade de fantasias

Sobre isto natildeo podemos alcanccedilar nenhuma seguranccedila porque nos deparamos com

coisas muito instaacuteveis e moacuteveis Sustenta aleacutem disso que se os nossos juiacutezos estatildeo nas

matildeos ateacute mesmo da doenccedila e da perturbaccedilatildeo natildeo podemos esperar deles nada seguro

Foi a partir desta consciecircncia de sua volubilidade que Montaigne chegou a

estabelecer em si mesmo uma certa constacircncia de ideias a ponto de dificilmente alterar

as ideias primeiras e naturais como ele mesmo reconhece Afirma no entanto que natildeo

eacute capaz de decidir Por isso adopta as decisotildees de outrem e manteacutem-se na posiccedilatildeo em

que Deus o pocircs O seu ldquoconservadorismordquo124 religioso e ateacute poliacutetico manifesta-se

claramente nos Essais Mas ao mesmo tempo e este eacute o ponto que mais nos interessa

neste trabalho deixa transparecer que o homem eacute sempre convidado a estar aberto agraves

mudanccedilas

ldquo[A] Le ciel et les estoilles ont branleacute trois mille ans tout le monde lavoit ainsi creu jusques agrave ce que [C] Cleanthes le Samien ou selon Theophraste Nicetas Siracusien [A] savisa de maintenir que cestoit la terre qui se mouvoit [C] par le cercle oblique du Zodiaque tournant agrave lentour de son aixieu [A] et de nostre temps Copernicus a si bien fondeacute cette doctrine quil sen sert tres-regleacuteement agrave toutes les consequences Astronomiquesrdquo conclui o autor ldquosinon qursquoil ne nous doit chaloir le quel ce soit des deux Et qui sccedilait qursquoune tierce opinion drsquoicy agrave mille ans ne renverse les deux precedentesrdquo125

124 Trata-se de um termo que natildeo tinha na eacutepoca de Montaigne o mesmo significado que tem hoje isto eacute como oposto de ldquoprogressismordquo Montaigne estava inserido numa sociedade marcada por grandes inovaccedilotildees pretendidas pelos partidaacuterios da Reforma Protestante que se defendiam a ferro e fogo acirrando certezas antes adormecidas e impondo agrave Franccedila as mais seacuterias turbulecircncias ldquo[B] Je suis desgousteacute de la nouvelleteacute quelque visage qursquoelle porte et ay raison car jrsquoen ay veu des effets tres-dommageables Celle qui nous presse depuis tant drsquoans elle nrsquoa pas tout exploicteacute mais on peut dire avec apparence que par accident elle a tout produict et engendre voire et les maux et ruines qui se font depuis sans elle et contre elle crsquoest agrave elle agrave srsquoen prendre au nezrdquo (Les Essais I 23 p 119) Eacute nesta perspectiva que vaacuterios comentadores observam que Montaigne natildeo poderia ser um homem ldquorevolucionaacuteriordquo e sim algueacutem que achasse melhor defender uma confianccedila moderada no lento aperfeiccediloamento das instituiccedilotildees ldquo[C] Les Franccedilois mes contemporaneacutees sccedilavent bien qursquoen dire Toutes grandes mutations esbranlent lrsquoestat et le desordonnentrdquo (Les Essais III 9 p 958) Isto permite compreender melhor alguns dos motivos pelos quais Montaigne assume as posiccedilotildees poliacuteticas e religiosas ldquoconservadorasrdquo que estatildeo presentes nos Essais Muito interessante eacute uma afirmaccedilatildeo de Jean Lacouture na sua obra Montaigne agrave cheval ndash considerada como uma espeacutecie de biografia que denota um entusiasmo significativo e algo romanceado fundamentada numa documentaccedilatildeo importante ndash na qual o autor reflecte sobre esta questatildeo ldquoMontaigne eacute grande o bastante para poder ser avaliado sob outros aspectos que natildeo a obediecircncia agraves praacuteticas e costumes de seu tempo Quando se eacute capaz no que diz respeito agrave justiccedila agrave toleracircncia ao racismo e agrave colonizaccedilatildeo de estar muitos seacuteculos agrave frente dos costumes e ideias de seu tempo pode-se ser julgado sem que consideraccedilotildees de eacutepoca ou de moda sejam levadas em contardquo (In Lacouture Jean Montaigne agrave cheval (Montaigne a cavalo) Traduzido do francecircs por F Rangel Rio de JaneiroSatildeo Paulo Editora Record 1998 p 236) 125 Les Essais II 12 p 570

42

E para fundamentar ainda mais esta ideia cita Lucreacutecio

ldquo[A] Sic volvenda aeligtas commutat tempora rerum Quod fuit in pretio fit nullo denique honore Porro aliud succedit et egrave contemptibus exit Inque dies magis appetitur floreacutetque repertum Laudibus Et miro est mortales inter honore ( ldquoAinsi dans sa course le temps change les conditions des choses ce qui eacutetait appreacutecieacute tombe dans le meacutepris un autre objet remplace le premier et sort du discreacutedit de jour en jour on le recherce davantage la deacutecouverte nouvelle toutes les louanges et une incoyable estime parmi les hommes)rdquo126

Podemos inferir daqui que ldquoos princiacutepios eternosrdquo natildeo tecircm lugar na ldquoApologie

de Raymond Sebondrdquo Montaigne faz questatildeo de observar que antes de os princiacutepios

introduzidos por Aristoacuteteles ganharem creacutedito outros princiacutepios contentavam a razatildeo

humana Os princiacutepios aristoteacutelicos como todos os outros natildeo estatildeo mais livres de ser

expulsos do que estavam os dos seus antecessores

Segundo Montaigne o juiacutezo depende dos sentidos aos quais por sua vez natildeo

podemos dar creacutedito por vaacuterios motivos Vejamos com mais detalhes este aspecto Eacute

justamente nos sentidos que se encontra o maior fundamento e a prova de nossa

ignoracircncia Montaigne baseado na experiecircncia de vida lembra-nos que natildeo haacute sentido

ou aspecto nem recto nem amargo nem doce nem curvo que o espiacuterito humano natildeo

encontre nos escritos que decide esquadrinhar Os sentidos satildeo muito enganadores A

palavra mais liacutempida mais pura e mais perfeita pode tornar-se equiacutevoca Montaigne

refere-se especialmente ao Evangelho127 Fizeram ao longo da histoacuteria ldquotudo e mais

alguma coisardquo com este texto sagrado para os cristatildeos E que ocorreria se estendecircssemos

esta preocupaccedilatildeo de Montaigne aos gestos humanos que querem exprimir ideias ou

sentimentos nas vaacuterias dimensotildees da vida moral poliacutetica etc

ldquo[C] Est-il possible qursquoHomere aye voulu dire tout ce qursquoon luy faict direrdquo128 E com relaccedilatildeo a Platatildeo ldquo[C] Voyez demener et agiter Platon Chacun srsquohororant de lrsquoappliquer agrave soi le couche du costeacute qursquoil le veutrdquo129

Montaigne observa ainda que com frequecircncia eacute difiacutecil decidir-se porque haacute

demasiadas formas de interpretar um determinado assunto para que o homem consiga

encontrar alguma indicaccedilatildeo que lhe sirva para resolver a questatildeo

126 Les Essais II 12 p 570 127 Cf Les Essais II 12 p 585 128 Les Essais II 12 p 586 129 Les Essais II 12 p 587

43

Montaigne afirma que todo o conhecimento chega ateacute noacutes pelos sentidos [A] Ce

sont nos maistresrdquo130 Observa que a ciecircncia comeccedila pelos sentidos e a eles se reduz

Eles satildeo a base e os princiacutepios de toda a construccedilatildeo de nossa ciecircncia E considera que

natildeo haacute absurdo mais extremo do que sustentar que

ldquo[A] le feu nrsquoeschaufe point que la lumiere nrsquoesclaire point qursquoil nrsquoy a point de pesanteur au fer ny de fermeteacute qui sont notices que nous apportent les sens nycreance ou science en lrsquohomme qui se puisse comparer agrave celle-lagrave en certituderdquo131

Montaigne potildee em duacutevida que o homem esteja provido de todos os sentidos

naturais Chega inclusivamente a perguntar-se se natildeo nos falta algum sentido E afirma

que se isto ocorrer nem a nossa razatildeo pode descobrir a sua ausecircncia nem haacute nada agrave

margem dos sentidos que nos possa servir para os descobrir

ldquo[A]Ils font trestons la ligne extreme de nostre faculteacute [hellip] Il est impossible de faire concevoir agrave un homme naturellement aveugle qursquoil nrsquoy void pas impossible de luy faire desirer la veue et regretter son defautrdquo132

Sendo assim afirma que quando formamos uma verdade pela consulta e

cooperaccedilatildeo dos sentidos poderiacuteamos tambeacutem ser levados a considerar que poderia ser

necessaacuteria a convergecircncia e a contribuiccedilatildeo de oito ou dez sentidos para a captar

acertadamente e na sua essecircncia

Uma das criacuteticas fundamentais de Montaigne agrave ciecircncia incide precisamente no

facto de ela se basear nos sentidos Mas como vimos os sentidos satildeo muito incertos e

fraacutegeis Desta extrema dificuldade nascem muitas opiniotildees (ldquofantasiesrdquo)

ldquo[A]Que chaque subjet a en soy tout ce que nous y trouvons qursquoil nrsquoa rien de ce que nous y pensons trouver et celle de Epicuriens que le Soleil nrsquoest non plus grand que ce que nostre veueuml le juge [hellip] (A) que les apparences qui representent un corps grand agrave celuy qui en est voisin et plus petit agrave celuy qui en est esloigneacute sont toutes deux vrayes [hellip] [A]et resolument qursquoil nrsquoy a aucun tromperie aux sens qursquoil faut passer agrave leur mercy et chercher ailleurs des raisons pour excuser la difference et contradiction que nous y trouvons voyre inventer toute autre mensonge et resverie (ils en viennent jusques lagrave) plustot que drsquoaccuser les sens [hellip] [A] De toutes les absurditez la plus absurde [C] aux Epicuriens [A] est davouumler la force et effect des sensrdquo133

130 Les Essais II 12 p 587 131 Les Essais II 12 p 588 132 Les Essais II 12 p 589 133 Les Essais II 12 p 591

44

Segundo Montaigne natildeo podemos livrar-nos dos sentidos se queremos construir

o conhecimento Mas os sentidos satildeo incertos falsificaacuteveis e enganadores134 E entende

tambeacutem que se eacute verdade que os sentidos satildeo os nossos primeiros juiacutezes135 entatildeo natildeo

devemos limitar-nos a convocar apenas os nossos para o conselho pois no que se refere

aos sentidos os animais tecircm tanto direito quanto noacutes ou mais Montaigne observa ainda

que os sentidos do homem estatildeo em desacordo com os sentidos dos animais E eacute por isto

que

ldquo[A] Pour le jugement de lrsquoaction des sens il faudroit donc que nous en fussions premierement drsquoaccord avec les bestes secondement entre nous mesmes [hellip] et entrons en debat tous les coups de ce que lrsquoun oit void ou goute quelque chose autrement qursquoun autre et debatons autant que drsquoautre chose de la diversiteacute des images que le sens nous raportentrdquo136

Concluindo a exposiccedilatildeo acerca dos sentidos Montaigne lembra-nos que os

sentidos satildeo para algumas pessoas mais obscuros e mais velados enquanto que para

outras pessoas satildeo mais claros e apurados Em seu entender recebemos as coisas de

forma diferente de acordo com o que somos e com o que nos parece Mas se o parecer

nos eacute tatildeo incerto e controverso

ldquo[A] Ce nrsquoest plus miracle si on nous dict que nous pouvons avoueumlr que la neige nous apparoit blanche mais que drsquoestablir si de son essence elle est telle et agrave la veriteacute nous ne nous en sccedilaurions respondrerdquo137

Tendo em conta todos os atributos dos sentidos acima mencionados Montaigne

dificilmente poderia chegar a uma outra conclusatildeo

ldquo[A] ce commencement esbranleacute toute la science du monde srsquoen va necessairement agrave vau-lrsquoeaurdquo138

Referindo-se a Teofrasto Montaigne recorda-nos que este pensador dizia que o

conhecimento humano guiado pelos sentidos podia julgar sobre as causas das coisas

ateacute certo ponto Mas que ao chegar agraves causas extremas e primeiras tinha de deter-se a

embotar-se devido ou agrave sua fragilidade ou agrave dificuldade das coisas Montaigne afirma

134 Assim como os sentidos satildeo enganadores satildeo tambeacutem enganados ldquo[A] Cette mesme piperie que les sens apportent agrave nostre entendement ils la reccediloivent agrave leur tour Nostre ame par fois srsquoen revenche de mesme [C] ils mentent et se trompent agrave lrsquoenvy [A] Ce que nous voyons et oyons agitez de colere nous ne lrsquooyons pas tel qursquoil est [hellip] Lrsquoobject que nous aymons nous semble plus beau qursquoil est [hellip] [A] et plus laid celuy que nous avons agrave contre coeur [hellip] Nos sens sont non seulement alterez mais souvent hebelez du tout par les passions de lrsquoame Combien de choses voyons nous que nous nrsquoa appercevons pas si nous avons nostre esprit empescheacute ailleurs (Les Essais II 12 pp 495-496) 135 Cf Les Essais II 12 p 596 136 Les Essais II 12 p 598 137 Les Essais II 12 pp 598-599 138 Les Essais II 12 p 599

45

ldquo[A] Cest une opinion moyenne et douce que nostre suffisance nous peut conduire jusques agrave la cognoissance daucunes choses et quelle a certaines mesures de puissance outre lesquelles cest temeriteacute de lemployer Cette opinion est plausible et introduicte par gens de composition mais il est malaiseacute de donner bornes agrave nostre esprit il est curieux et avide et na point occasion de sarrester plus tost agrave mille pas quagrave cinquanterdquo139

Montaigne procura aqui justificar a sua tese de que o conhecimento empiacuterico ou

sensiacutevel natildeo tem condiccedilotildees para permitir captar princiacutepios e verdades universais A

razatildeo humana por ser um instrumento impotente natildeo consegue dar explicaccedilotildees

convincentes das grandes questotildees da humanidade Consegue apenas explicar algumas

poucas coisas Se a razatildeo eacute incapaz de dar respostas profundas e aceitaacuteveis agraves grandes

questotildees ndash como por exemplo agraves causas primeiras ndash ela eacute descartaacutevel e no que toca agrave

busca do conhecimento natildeo serve para quase nada Daiacute que Montaigne afirme que o

homem eacute capaz de todas as coisas e de nenhuma E se confessa a ignoracircncia das causas

primeiras e dos princiacutepios entatildeo que abandone tambeacutem prontamente todo o resto da sua

ciecircncia

Se a alma conhecesse alguma coisa comeccedilaria por se conhecer a si mesma

ldquo[A] et si elle sccedilavoit quelque chose elle se sccedilauroit premierement elle mesme et si elle sccedilavoit quelque chose hors drsquoelle ce seroit son corps et son estuy avant toute autre choserdquo140

Montaigne refere-se aqui especialmente ao chamado conhecimento da medicina

Para ele a medicina natildeo consegue sair do ciclo vicioso das discussotildees Ressalta o facto

de que ldquoles dieuxrdquo desta ciecircncia tambeacutem natildeo conseguem chegar a acordo algum Daiacute

mais uma vez a atitude pirroacutenica de Montaigne

ldquo[A] Si lrsquohomme ne se connoit comment connoit il ses fonctions et ses forcesrdquo141

O autor debate-se com o problema da verdade o que eacute a verdade Na

ldquoApologierdquo sustenta que a verdade eacute inacessiacutevel e flutuante Neste ponto Montaigne eacute

fiel ao cepticismo que tem como caracteriacutestica dominante a atitude de estar sempre em

busca da verdade num processo que ocorre sempre dentro de um eterno movimento e

nunca se fixa definitivamente em nenhum ponto

139 Les Essais II 12 p 560 140 Les Essais II 12 p 561 141 Les Essais II 12 p 561

46

ldquo[B] La veueuml de nostre jugement se rapporte agrave la veriteacute comme faict loeil du chat-huant agrave la splendeur du Soleil ainsi que dit Aristote Par ougrave le sccedilaurions nous mieux convaincre que par si grossiers aveuglemens en une si apparente lumiererdquo142

Esta concepccedilatildeo flutuante da verdade eacute uma caracteriacutestica distintiva natildeo soacute da

ldquoApologierdquo mas tambeacutem de outros ensaios montaigneanos O autor natildeo faz nenhuma

afirmaccedilatildeo definitiva sobre nenhuma questatildeo A sua preocupaccedilatildeo principal natildeo eacute

encontrar a soluccedilatildeo dos diversos problemas que envolvem o homem mas sim tentar

compreender-se a si proacuteprio ldquo[hellip] je suis moy-mesmes la matiere de mon livrerdquo143 Isto

exclui as verdades fixadas pela tradiccedilatildeo filosoacutefica e neste sentido o pensamento de

Montaigne desenvolve-se agrave margem do dogmatismo Rejeita os pedantes isto eacute aqueles

que acreditam que adquirem o conhecimento utilizando termos palavras ou frases

obscuros

Montaigne insiste na dimensatildeo instaacutevel e incerta do nosso conhecimento que

natildeo consegue alcanccedilar a verdade

ldquo[A] Toutes choses produites par nostre propre discours et suffisance autant vrayes que fauces sont subjectes agrave incertitude et debat Cest pour le chastiement de nostre fierteacute et instruction de nostre misere et incapaciteacute que Dieu produisit le trouble et la confusion de lancienne tour de Babel Tout ce que nous entreprenons sans son assistance tout ce que nous voyons sans la lampe de sa grace ce nest que vaniteacute et folie Lessence mesme de la veriteacute qui est uniforme et constante quand la fortune nous en donne la possession nous la corrompons et abastardissons par nostre foiblesserdquo144

A verdade deve ter ldquo[A] un visage pareil et universelrdquo145 Uma outra

caracteriacutestica da verdade salientada por Montaigne eacute que ela ldquo[A] ne se juge point par

authoriteacute et tesmoignage drsquoautruyrdquo146 Neste sentido a verdade eacute fundamentalmente

pessoal Observando cuidadosamente estes atributos da verdade podemos perceber por

que razatildeo Montaigne faz a seguinte afirmaccedilatildeo

ldquo[A] la veriteacute est engoufleacutee dans des profonds abysmes ougrave la veueuml humaine ne peut penetrerrdquo147

Dito de outro modo a verdade estaacute oculta em Deus e natildeo eacute propriamente dos

homens dos filoacutesofos dos doutos

142 Les Essais II 12 p 552 143 Les Essais Au lecteur p 3 144 Les Essais II 12 p 553 145 Les Essais II 12 pp 578-579 146 Les Essais II 12 p 507 147 Les Essais II 12 p 561

47

ldquo[A] Crsquoest agrave elle (la majesteacute divine) seule qursquoapartient la science et la sapiencerdquo148

A criacutetica montaigneana agrave razatildeo humana manifesta aqui a impossibilidade de se

ter um conhecimento crediacutevel em todos os domiacutenios da vida A razatildeo por ser

infinitamente limitada natildeo consegue chegar a ser uma faculdade que garanta a

descoberta e por conseguinte a sistematizaccedilatildeo da verdade que eacute algo moacutevel pessoal

temporal e tambeacutem paradoxal

Lendo os pensadores antigos Montaigne suscita uma questatildeo fundamental Em

seu entender haacute uma espeacutecie de distanciamento ou divoacutercio entre o conhecimento da

essecircncia e o conhecimento da aparecircncia Como eacute possiacutevel entatildeo observa Montaigne

que eles se deixam vencer pela verosimilhanccedila se natildeo conhecem a verdade Como eacute

possiacutevel que conheccedilam a aparecircncia de algo cuja essecircncia natildeo conhecem Diante destas

dificuldades o autor da ldquoApologierdquo sustenta

ldquo[A] Ou nous pouvons juger tout agrave faict ou tout agrave faict nous ne le pouvons pas Si noz facultez intellectuelles et sensibles sont sans fondement et sans pied si elles ne font que floter et vanter pour neant laissons nous emporter nostre jugement agrave aucune partie de leur operation quelque apparence quelle semble nous presenter et la plus seure assiette de nostre entendement et la plus heureuse ce seroit celle-lagrave ougrave il se maintiendroit rassis droit inflexible sans bransle et sans agitationrdquo149

Segundo Montaigne as coisas natildeo se alojam em noacutes com a sua forma e a sua

essecircncia Se assim fosse recebecirc-las-iacuteamos dessa forma O vinho seria o mesmo na boca

de quem quer que fosse Mas natildeo eacute o que acontece a filosofia causa uma infinita

confusatildeo de opiniotildees e um eterno debate sobre o conhecimento das coisas Deixemos o

proacuteprio autor falar

ldquo[A]Car cela est presuposeacute tres-veritablement que de aucune chose les hommes je dy les sccedilavans les mieux nais les plus suffisans ne sont daccord non pas que le ciel soit sur nostre teste car ceux qui doutent de tout doutent aussi de cela et ceux qui nient que nous puissions aucune chose comprendre disent que nous navons pas compris que le ciel soit sur nostre teste et ces deux opinions sont en nombre sans comparaison les plus fortesrdquo150

Montaigne reconhece que os seus juiacutezos acerca de tudo aquilo que eacute falso eou

verdadeiro ocorrem de uma maneira condicionada dependendo da sua situaccedilatildeo interior

148 Les Essais II 12 p 448 149 Les Essais II 12 p 562 150 Les Essais II 12 p 563

48

e exterior A sua posiccedilatildeo em face das diversas situaccedilotildees concretas da vida eacute muito

dependente das suas opiniotildees que podem ser hoje umas e outras diferentes ou ateacute

contraacuterias amanhatilde Em seu entender ateacute o proacuteprio ar que respiramos e a serenidade do

ceacuteu produzem em noacutes alguma alteraccedilatildeo Recorda um verso de Ciacutecero

ldquo[A] Tales sunt hominum mentes quali pater ipse Juppiter auctifera lustravit lampade terras (Les penseacutees des hommes changent avec les rayons feacutecundants du soleil que Jupiter leur envoie)rdquo151

Noutro ensaio do livro III intitulado ldquoDu repentirrdquo Montaigne depois de afirmar

que o mundo eacute movimento e que tudo nele muda continuadamente faz uma observaccedilatildeo

de grande importacircncia que pode ser inserida neste contexto

ldquo[B] Tant y a que je me contredits bien agrave lrsquoaventure mais la veriteacute comme disoit Demandes je ne la contredy point Si mon ame pouvoit prendre pied je ne mrsquoessaierois pas je me resoudrois elle est toujours en apprentissage et en espreuverdquo152

Montaigne questiona de forma radical todos os que se orgulham de sua razatildeo e

acreditam na certeza de todos os seus princiacutepios Utiliza a proacutepria razatildeo para arruinar a

razatildeo dos filoacutesofos profissionais ou seja os seguidores cegos da loacutegica aristoteacutelica Em

suma combate a razatildeo com a proacutepria razatildeo e nega o seu valor

No texto seguinte Montaigne faz uma espeacutecie de caracterizaccedilatildeo da

escolaacutestica153 e da loacutegica aristoteacutelica154 Eacute um texto fundamental da ldquoApologierdquo no

qual o autor se refere claramente agrave hierarquia filosoacutefica aristoteacutelica na qual

encontramos a metafiacutesica como ldquociecircncia mais correctardquo

ldquo[A] Il est bien aiseacute sur des fondemens avouez de bastir ce quon veut car selon la loy et ordonnance de ce commencement le reste des pieces du bastiment se conduit ayseacuteement sans se deacutementir Par cette voye nous trouvons nostre raison bien fondeacutee et discourons agrave boule veue car nos maistres praeligoccupent et gaignent avant main autant de lieu en nostre creance quil leur en faut pour conclurre apres ce quils veulent agrave la mode des Geometriens par leurs demandes avoueacutees le consentement et

151 Les Essais II 12 p 564 152 Les Essais III 2 p 805 153 Na eacutepoca em que Montaigne escreveu a ldquoApologierdquo a doutrina escolaacutestica era caracterizada por um excesso de formalismo e de abstracccedilatildeo o que o levou a demonstrar uma aversatildeo profunda por essa filosofia 154 Segundo Friedrich haacute na ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo alguns ldquofaibles tracesrdquo de uma leitura de Aristoacuteteles jaacute que naquela eacutepoca este pensador grego exercia a sua uacuteltima grande influecircncia sobre os humanistas Aristoacuteteles eacute para Montaigne a ldquoquintessencerdquo da autoridade magistral que obstaculiza a sua relaccedilatildeo livre com a tradiccedilatildeo ldquoSa doctrine nous sert de loy magistrale qui est agrave lrsquoaventure autant fause qursquoune autrerdquo (Les Essais II 12 p 521 a 279) Friedrich observa no entanto que natildeo eacute possiacutevel fixar exactamente em que medida Montaigne leu Aristoacuteteles e considera que natildeo se trata de uma leitura muito soacutelida (Cf Friedrich op cit p 67)

49

approbation que nous leurs prestons leur donnant dequoy nous trainer agrave gauche et agrave dextre et nous pyroueter agrave leur volonteacute Quiconque est creu de ses presuppositions il est nostre maistre et nostre Dieu il prendra le plant de ses fondemens si ample et si aiseacute que par iceux il nous pourra monter sil veut jusques aux nueumls En cette pratique et negotiation de science nous avons pris pour argent content le mot de Pythagoras que chaque expert doit estre creu en son art Le dialecticien se rapporte au grammairien de la signification des mots le Rhetoricien emprunte du Dialecticien les lieux des arguments le poete du musicien les mesures le geometrien de larithmeticien les proportions les metaphysiciens prennent pour fondement les conjectures de la physique Car chasque science a ses principes presupposez par ougrave le jugement humain est brideacute de toutes parts Si vous venez agrave choquer cette barriere en laquelle gist la principale erreur ils ont incontinent cette sentence en la bouche quil ne faut pas debattre contre ceux qui nient les principesrdquo155

Se a verdade ndash como tudo parece indicar ndash se daacute a conhecer atraveacutes das causas ndash

haveraacute que fazer referecircncia agraves quatro causas156 presentes na filosofia aristoteacutelica Se o

homem realmente conseguir conhecer estas causas teraacute um conhecimento ldquocientiacuteficordquo

da substacircncia que procura Por isso Montaigne quer invalidar a filosofia dita dogmaacutetica

de Aristoacuteteles rejeitando claramente a tese das quatro causas Em seu entender esta

teoria natildeo passa de um engano O autor da ldquoApologierdquo sugere que a teoria das quatro

causas soacute serve para prejudicar os homens que ludibriados pelo poder da razatildeo natildeo

cessam de correr atraacutes do conhecimento das causas que lhe eacute por seu turno inacessiacutevel

A verdade das causas estaacute acima de nossas capacidades racionais

Assumindo a postura pirroacutenica de Sexto Empiacuterico ndash que foi aliaacutes um aceacuterrimo

opositor de Aristoacuteteles ndash Montaigne procurou fazer algo semelhante Isto eacute procurou

atacar as bases da ciecircncia escolaacutestica (sobretudo preocupada em conciliar a razatildeo com a

feacute apoiando-se na filosofia grega principalmente a aristoteacutelica) e por conseguinte de

todos os outros sistemas dogmaacuteticos Numa perspectiva ceacuteptica sextiana Montaigne

trava uma batalha contra os princiacutepios da metafiacutesica tidos como os mais correctos Esta

visatildeo aristoteacutelica quer estabelecer uma ligaccedilatildeo entre o pensamento e o juiacutezo humanos e

os obriga a natildeo evitar as questotildees preacute-existentes Segundo Montaigne esta concepccedilatildeo

155 Les Essais II 12 p 540 156 Aristoacuteteles apresenta estas causas particularmente nos livros I e II da Metafiacutesica Satildeo elas causa material isto eacute aquilo de que eacute feita uma coisa por exemplo a mateacuteria do homem eacute a carne e os ossos a mateacuteria da mesa eacute a madeira e assim por diante causa formal isto eacute a forma ou essecircncia das coisas por exemplo o rio e o mar satildeo as formas da aacutegua um tapete eacute a forma assumida pela mateacuteria latilde com a acccedilatildeo do artiacutefice causa eficiente ou motriz isto eacute aquilo de que provecircm a mudanccedila e o movimento das coisas por exemplo o artiacutefice eacute a causa eficiente que faz a latilde receber a forma do tapete o gelo eacute a forma que faz os corpos quentes tornarem-se frios e causa final isto eacute a causa que constitui o fim ou o propoacutesito das coisas e acccedilotildees por exemplo o bem eacute a causa final da poliacutetica a felicidade eacute a causa final da acccedilatildeo eacutetica e assim por diante

50

tambeacutem natildeo potildee em evidecircncia o facto de que o conhecimento adquirido por este

processo fica enclausurado dentro de um ciacuterculo vicioso Deixemos o proacuteprio autor

falar

ldquo[A] Pour juger des apparences que nous recevons des subjets il nous faudroit un instrument judicatoire pour verifier cet instrument il nous y faut de la demonstration pour verifier la demonstration un instrument nous voila au rouet Puis que les sens ne peuvent arrester nostre dispute estans pleins eux-mesmes dincertitude il faut que ce soit la raison aucune raison ne sestablira sans une autre raison nous voylagrave agrave reculons jusques agrave linfiny Nostre fantasie ne sapplique pas aux choses estrangeres ains elle est conceue par lentremise des sens et les sens ne comprennent pas le subject estranger ains seulement leurs propres passions et par ainsi la fantasie et apparence nest pas du subject ains seulement de la passion et souffrance du sens laquelle passion et subject sont choses diverses parquoy qui juge par les apparences juge par chose autre que le subject [hellip]rdquo157

Os escolaacutesticos natildeo testaram as suas ideias atraveacutes dos factosldquoIls ne se

rapportent pas agrave lrsquoexpeacuterience ils nrsquoessaient jamais leurs opinions Leur travail consiste

uniquement agrave tirer des deacuteductions de principes et drsquoaxiomes qursquoils nrsquoexaminent jamais

Leurs principes sont faux les conseacutequences qursquoils en deacuteduisent sont donc fausses

neacutecessairement mais ils ne srsquoen soucient pas La meacutethode scolastique et logicienne

triomphe toujours et rend tous les efforts steacuterilesrdquo158 Montaigne daacute-se conta de que a

capacidade do homem de conhecer algo estaacute profundamente relacionada com a

contingecircncia e que esta mesma capacidade estaacute subordinada aos sentidos que satildeo

ldquomaintesfois maistres du discoursrdquo159 mas que ao mesmo tempo satildeo incertos e

falsificaacuteveis E portanto esta ciecircncia eacute incapaz de chegar a certezas crediacuteveis

157 Les Essais II 12 pp 600-601 158 Villey op cit pp 214-215 159 Les Essais II 12 p 592

51

4 A criacutetica agrave razatildeo humana e o relativismo da moral

Quando lemos a ldquoApologie de Raymond de Sebondrdquo aleacutem de nos depararmos

com problemas claacutessicos da filosofia como a criacutetica agrave teoria do conhecimento

deparamo-nos tambeacutem com o problema da moral de que o autor se ocupa de uma

maneira muito particular Natildeo apresentaremos neste capiacutetulo uma abordagem detalhada

e detida do tema da moral na ldquoApologierdquo Isto exigiria uma investigaccedilatildeo aprofundada e

de maior amplitude uma vez que o autor desenvolve neste texto muitos aspectos

importantes deste tema

Limitar-nos-emos a procurar perceber por que razatildeo o autor ldquodecretardquo a

impossibilidade de fundamentar na razatildeo humana um conjunto de normas ou leis que

dizem respeito agrave vida praacutetica de qualquer grupo humano Perseguindo este objectivo

procuraremos reconstruir os vaacuterios argumentos do ensaio que justificam a sua tomada

de posiccedilatildeo no acircmbito da moral160

Para contextualizar um pouco a questatildeo da moral nos Essais eacute importante

observar que no periacuteodo do humanismo renascentista se fazia sentir a necessidade de

emitir juiacutezos que fossem coerentes de se informar dos costumes dos homens tanto dos

antigos como dos povos que habitavam terras longiacutenquas Todos queriam rever a sua

ideia de homem Tratava-se de uma busca aberta e muitos ofereciam a sua contribuiccedilatildeo

como afirma Villey161 Tampouco Montaigne se demitiu desta tarefa Envolveu-se com

empenho na tarefa de perceber o que eacute o homem Para isto misturou muitas histoacuterias

antigas e contemporacircneas com inuacutemeras reflexotildees de viajantes que vinham de terras

distantes sobretudo daquelas que foram invadidas e ocupadas por europeus nelas

encontra uma confirmaccedilatildeo da tese segundo a qual a multiplicidade irreconciliaacutevel e a

diversidade mais ampla satildeo a uacutenica marca do ser As teses ceacutepticas de Montaigne

revelam-se de uma maneira particularmente radical no campo da moral neste acircmbito

adquiriraacute uma importacircncia capital a diversidade dos costumes como argumento contra a

moral ldquoracionalrdquo

160 Segundo Villey Montaigne toma consciecircncia do relativismo relativo ao conhecimento natildeo apenas nas noccedilotildees de metafiacutesica mas tambeacutem nas noccedilotildees de moral Neste ponto teraacute uma influecircncia muito importante sobretudo a sua leitura de Sexto Empiacuterico Nesta perspectiva Montaigne pode ser visto como um moralista O mesmo autor afirma que eacute principalmente nas ideias morais que podemos perceber nitidamente o relativismo montaigneano (cf Villey op cit pp188-189) 161 Cf Villey op cit p189

52

Na ldquoApologierdquo Montaigne deteacutem-se a considerar que todas as sociedades tecircm

necessidade das leis Ele tem perfeita consciecircncia de que sem leis nenhuma sociedade

poderaacute ter vida longa A obediecircncia agraves leis162 eacute uma condiccedilatildeo sine qua non para a

sobrevivecircncia de qualquer grupo social Montaigne natildeo leva a ingenuidade ao ponto de

negar pura e simplesmente a necessidade das leis e normas Neste sentido pensa como

Epicuro isto eacute considera que mesmo as piores leis nos satildeo tatildeo necessaacuterias que sem

elas os homens se devorariam uns aos outros163 No mesmo paraacutegrafo Montaigne

observa que tambeacutem Platatildeo distanciando-se pouco desta tese sustenta que sem leis

viveriacuteamos como animais selvagens e se empenha em provaacute-lo

ldquo[A] Nostre esprit est un util vagabond dangereux et temeraire il est malaiseacute dy joindre lordre et la mesure Et de mon temps ceux qui ont quelque rare excellence au dessus des autres et quelque vivaciteacute extraordinaire nous les voyons quasi tous desbordez en licence dopinions et de meurs Cest miracle sil sen rencontre un rassis et sociable On a raison de donner agrave lesprit humain les barrieres les plus contraintes quon peut En lestude comme au reste il luy faut compter et regler ses marches il luy faut tailler par art les limites de sa chasserdquo164

Ao citar Epicuro e Platatildeo o autor da ldquoApologierdquo manifesta a sua decepccedilatildeo

relativamente ao homem de sua eacutepoca Certamente estes pensadores trazem-lhe agrave

memoacuteria a situaccedilatildeo concreta em que estava mergulhada a sociedade francesa naquela

eacutepoca Lendo de uma forma atenta a sua obra eacute faacutecil comprovar que Montaigne era

consciente de tudo o que se passava no seu paiacutes guerras conflitos religiosos profundos

e actos de violecircncia deles derivados

Laschamp ao descrever algumas caracteriacutesticas do contexto no qual Montaigne

elabora a sua obra afirma

162 Haacute uma quantidade significativa de afirmaccedilotildees nos Essais acerca da necessidade do cumprimento da lei independentemente de esta ser ou natildeo justa Vejamos algumas ldquo [C] Il nrsquoest rien si lourdement et largement fautier que les loix ny si ordinairement [B] Quiconque leur obeyt pas justement par ougrave il doibt [hellip] [B]Or les loix se maintiennent en credit non par ce qursquoelles sont justes mais par ce qursquoelles sont loix Crsquoest le fondement mystique de leur authoriteacute elles nrsquoen ont poinct drsquoautrerdquo (Les Essais III 13 p 1072) Montaigne chega ateacute a afirmar que ldquo[A] ce bon et grand Socrates refusa de sauver sa vie par la desobeissance du magistrat voire drsquoun magistrat tres-injuste et tres-inique Car crsquoest la regle des regles et generale loy des loix que chacun observe celles du lieu ougrave il est [hellip]rdquo (Les Essais I 23 p 118) ldquo[A] Jen diray seulement encore cela que cest la seule humiliteacute et submission qui peut effectuer un homme de bien Il ne faut pas laisser au jugement de chacun la cognoissance de son devoir il le luy faut prescrire non pas le laisser choisir agrave son discours autrement selon limbecilliteacute et varieteacute infinie de nos raisons et opinions nous nous forgerions en fin des devoirs qui nous mettroient agrave nous manger les uns les autres comme dit Epicurusrdquo (Essais II 12 p 488) 163 Cf Les Essais II 12 p 558 164 Les Essais II 12 p 559

53

ldquoLes violences entre les dissidents eacutegalaient celles dont ils eacutetaient lrsquoobjet de la part de leurs adversaires Jamais lrsquoabus du raisonnement nrsquoavait eacuteteacute pousseacute plus loin jamais il nrsquoavait deacutechacircneacute tant de colegraveres jamais il nrsquoavait fait couler tant de larmes et tant de sangrdquo165

Assim se compreende melhor por que razatildeo Montaigne afirma que na sua

eacutepoca os que tecircm alguma rara excelecircncia acima dos outros e uma vivacidade

extraordinaacuteria os excedem em desregramento de ideias e de costumes e praticam acccedilotildees

que impedem a felicidade dos homens

Montaigne na qualidade de libre penseur natildeo poderia deixar de defender a

liberdade de pensamento Mas ao mesmo tempo sabe tambeacutem que se esta liberdade

estiver sujeita agrave vaidade da razatildeo muitas atitudes humanas inclusive religiosas como

vimos anteriormente poderatildeo tornar-se nocivas para o homem Ao descrever algumas

das caracteriacutesticas da liberdade de que davam prova os antigos na filosofia e ao fazer

um paralelo com a sociedade de sua eacutepoca afirma

ldquo[A] La liberteacute donq et gaillardise de ces esprits anciens produisoit en la philosophie et sciences humaines plusieurs sectes dopinions differentes chacun entreprenant de juger et de choisir pour prendre party Mais agrave present [C] que les hommes vont tous un train [hellip] et [A] que nous recevons les arts par civile authoriteacute et ordonnance [C] si que les escholes nont quun patron et pareille institution et discipline circonscrite on ne regarde plus ce que les monnoyes poisent et valent mais chacun agrave son tour les reccediloit selon le pris que lapprobation commune et le cours leur donneOn ne plaide pas de lalloy mais de lusage ainsi se mettent egallement toutes choses On reccediloit la medicine comme la Geometrie et les batelages les enchantemens les liaisons le commerce des esprits des trespassez les prognostications les domifications et jusques agrave cette ridicule poursuitte de la pierre philosophale tout se met sans contredictrdquo166

Montaigne escreve a sua obra mergulhado num clima onde reinava uma

ldquoanarchie dans les ideacutees et dans les faitsrdquo167 e coloca-se na atitude de ajudado pelos

costumes antigos julgar o seu tempo Segundo Villey eacute exactamente neste contexto

muito conturbado que Montaigne entra em contacto com o livro de Sexto Empiacuterico

ldquoVoilagrave ougrave lrsquoinfluence du milieu et sa propre dociliteacute aux faits lrsquoont conduit Presque toujours crsquoest la loi politique et morale agrave laquelle il est naturellement assujetti que lrsquoesprit eacuterige en loi absolue Montaigne a affranchi sa raison de cette contrainte naturelle il sait critiquer la loi

165 Laschamp op cit p 104 166 Les Essais II 12 pp 559-560 167 Laschamp op cit p 94

54

que son milieu lui impose crsquoest un pas drsquoune extrecircme importance qursquoil a fait lagrave vers lrsquoideacutee de relativiteacuterdquo168

Montaigne descreve alguns aspectos que comprovam o seu relativismo face aos

costumes de vaacuterios povos sobretudo quando os relaciona com os de Franccedila Com isto o

autor quer sugerir possivelmente que as crenccedilas os juiacutezos e as opiniotildees dos homens

estatildeo sujeitos agraves inconstacircncias perenes que haacute na vida concreta

ldquo[A] si le ciel les agite et les roule agrave sa poste quelle magistrale authoriteacute et permanante leur allons nous attribuant [hellip] [B] en maniere que ainsi que les fruicts naissent divers et les animaux les hommes naissent aussi plus et moins belliqueux justes temperans et dociles icy subjects au vin ailleurs au larecin ou agrave la paillardise icy enclins agrave superstition ailleurs agrave la mescreance [C] icy agrave la liberteacute icy agrave la servitude [hellip] [B] que deviennent toutes ces belles prerogatives dequoy nous nous allons flatants Puis quun homme sage se peut mesconter et cent hommes et plusieurs nations voire et lhumaine nature selon nous se mesconte plusieurs siecles en cecy ou en cela quelle seureteacute avons nous que par fois elle cesse de se mesconter [C] et quen ce siecle elle ne soit en mescomte [A] Il me semble entre autres tesmoignages de nostre imbecilliteacute que celui-cy ne merite pas destre oublieacute que par desir mesmes lhomme ne sccedilache trouver ce quil luy faut que non par jouyssance mais par imagination et par souhait nous ne puissions estre daccord de ce dequoy nous avons besoing pour nous contenter Laissons agrave nostre penseacutee tailler et coudre agrave son plaisir elle ne pourra pas seulement desirer ce qui luy est propre [C] et se satisfaire [hellip]rdquo169

Segundo Montaigne a verdade de uma teoria moral ndash como a de qualquer outro

conhecimento ndash soacute pode ser afirmada relativamente ao sujeito que estaacute implicado nesta

tarefa O homem que reflecte sobre a moral reflecte sobre si proacuteprio e natildeo sobre a

humanidade em geral Desta perspectiva podemos perceber por que razatildeo Montaigne

afirma que eacute ele proacuteprio a mateacuteria de seu livro170 Eacute o proacuteprio Montaigne que nos toca

ainda mais de perto do que o homem em geral

Montaigne observa que natildeo haacute entre os filoacutesofos combate tatildeo violento e tatildeo rude

como o que se trava acerca da questatildeo do soberano bem do homem

ldquo[A] Il nest point de combat si violent entre les philosophes et si aspre que celuy qui se dresse sur la question du souverain bien de lhommerdquo171

168 Villey op cit p 193 169 Les Essais II 12 pp 575-576 170 Cf nota 143 171 Les Essais II 12 p 577

55

Trata-se de uma questatildeo muito sensiacutevel para Montaigne Em se entender eacute inuacutetil

acrescentar mais uma seita agraves 288 que nasceram segundo o caacutelculo de Varron acerca

da questatildeo do soberano bem172

Montaigne inicia a ldquoApologierdquo afirmando que alguns filoacutesofos pensavam que o

soberano bem estava na ciecircncia173

Mas natildeo acreditava que fosse atraveacutes da ciecircncia174 (moral e filosoacutefica) que o

homem conseguiria ser mais saacutebio e mais feliz O autor natildeo se preocupa em fornecer

exactamente o ldquoendereccedilordquo do bem soberano Vejamos como apresenta algumas

indicaccedilotildees relativas agraves vaacuterias tentativas dos filoacutesofos para encontrarem o bem soberano

esse bem que varia conforme o indiviacuteduo

ldquo[A] Nature devroit ainsi respondre agrave leurs contestations et agrave leurs debats Les uns disent nostre bien estre loger en la vertu dautres en la volupteacute dautres au consentir agrave nature qui en la science [C] qui agrave navoir point de douleur [A] qui agrave ne se laisser emporter aux apparences (et agrave cette fantasie semble retirer cetautre [B] de lantien Pythagoras [hellip] [A] qui est la fin de la secte Pyrrhonienne) rdquo175

Fiel aos argumentos do pirronismo Montaigne sustenta que o soberano bem eacute a

ataraxia Segundo ele a sabedoria indica-nos que eacute necessaacuterio procurar manter na alma

um harmonioso equiliacutebrio A ataraxia foi sempre considerada pelos seguidores do

pirronismo como a coroaccedilatildeo da sua filosofia segundo Andreacute Verdan176 Vejamos

textualmente o que diz Sexto acerca da ataraxia como objectivo de sua doutrina ceacuteptica

filosoacutefica

ldquoIl est propos de dire ici quelque chose de la fin de la Sceptique La fin en geacuteneacuteral est ce pour quoi on fait ou on consideacutere toutes Choses crsquoest ce que lrsquoon ne recherche point pour quelque autre Chose crsquoest ce qui est la dernieacutere Chose que lrsquoon recherche Nous disons donc maintenant que la fin du Filosofe Sceptique est lrsquoAtaraxie ou lrsquoexemtion de trouble agrave lrsquoeacutegard des opinions [hellip] amp alors lrsquoAtaraxie ou lrsquoexemtion de trouble fut une suite heureuse quoique fortuite de cette suspension de son jugement agrave lrsquoeacutegard des opinions [hellip] celui qui opine Dogmatiquement amp qui eacutetablit qursquoil y a naturellement amp reacuteellement quelque bien amp quelque mal est toujours troubleacuterdquo177

172 Les Essais II 12 p 577 173 Cf nota 96 174 ldquoLa philosophie morale est viseacutee comme les autres sciences plus directement mecircme que les autres sciencesrdquo (Villey op cit p219) 175 Les Essais II 12 p578 176 Cf Verdan Andreacute Le scepticisme philosophique Paris-Montreacuteal Bordas 1971 p 57 177 Sextus Empiricus Les Hipotiposes ou Instituitions Pirroniennes Traduzido do grego por Claude Huart Amsterdam Barbier MDCCXXV pp15-16

56

Segundo Montaigne a filosofia natildeo pode oferecer uma base consistente agrave moral

que sirva como garantia da felicidade humana O homem eacute convidado a procurar

alicerces mais seguros e consistentes fora da filosofia

ldquo[C] Il ne nous faut guiere non plus doffices de regles et de loix de vivre en nostre communauteacute quil en faut aux grues et formis en la leur Et neantmoins nous voyons quelles sy conduisent tres-ordonneacutement sans erudition Si lhomme estoit sage il prenderoit le vray pris de chasque chose selon quelle seroit la plus utile et propre agrave sa vierdquo178

Assim o homem estaacute impedido por uma incapacidade que tem a sua origem

sobretudo na razatildeo de determinar tudo aquilo que pode em termos morais servir-lhe

para a construccedilatildeo de uma vida tranquila O homem natildeo sabe encontrar o que lhe eacute

necessaacuterio O desacordo nestes assuntos eacute inerente agrave proacutepria natureza do homem tal

como foi descrita pelo autor da ldquoApologierdquo

Trata-se de um desacordo com consequecircncias preocupantes jaacute que se eacute de noacutes

que depende a organizaccedilatildeo dos nossos costumes metemo-nos numa enorme

confusatildeo179 Aludindo ao parecer de Soacutecrates Montaigne defende que a razatildeo aconselha

cada um a obedecer a lei de seu paiacutes180

Entretanto Montaigne questiona-se seraacute que ldquo[A] nostre devoir nrsquoa autre regle

que fortuite181 A resposta reflecte mais uma vez o relativismo do autor que afirma

que a verdade deve ter uma face universal e uniforme mas que reconhece ao mesmo

tempo que de facto o homem impedido pela razatildeo e pelos sentidos (considerados pela

filosofia tradicional como fonte do conhecimento da verdade) natildeo tem condiccedilotildees de

encontrar uma base moral no discurso racional

ldquo[A] La droiture et la justice si lhomme en connoissoit qui eust corps et veritable essence il ne lattacheroit pas agrave la condition des coustumes de cette contreacutee ou de celle lagrave ce ne seroit pas de la fantasie des Perses ou des Indes que la vertu prendroit sa forme Il nest rien subject agrave plus continuelle agitation que les loix Deacutepuis que je suis nay jay veu trois et quatre fois rechanger celles des Anglois noz voisins non seulement en subject politique qui est celuy quon veut dispenser de constance mais au plus important subject qui puisse estre agrave sccedilavoir de la religion Dequoy jay honte et despit dautant plus que cest une nation agrave laquelle ceux de mon quartier ont eu autrefois une si priveacutee accointance quil

178 Les Essais II 12 p 487 179 Cf Les Essais II 12 p 578 180 Cf Les Essais II 12 p 478 181 Les Essais II 12 p 578

57

reste encore en ma maison aucunes traces de nostre ancien cousinagerdquo182

Reflectindo acerca da situaccedilatildeo concreta que o rodeava isto eacute a guerra as

injusticcedilas e outros males (causados pelo proacuteprio homem) que caracterizavam a Franccedila

de entatildeo Montaigne tem consciecircncia de que seguir as leis do paiacutes183 que satildeo

produzidas pela razatildeo humana eacute algo bastante problemaacutetico

Como moralista Montaigne natildeo deseja fazer a apologia de uma ldquoanarquiardquo em

termos morais muito pelo contraacuterio como vimos defende a importacircncia da lei na vida

quotidiana O que ele pretende defender eacute que todo o sistema que resulta de um

emaranhado de reflexotildees intelectuais natildeo leva a nada pelo facto de que tudo o que a

razatildeo produz estaacute sujeito agrave incerteza tanto a verdade como a falsidade

Ao criticar todo este processo Montaigne quer ressaltar a ideia de que a razatildeo eacute

um estorvo importante para a dinacircmica de construccedilatildeo da justiccedila e das leis morais

Esta tese poderia levar a pensar que Montaigne eacute um pensador que natildeo acredita

na verdade Mas ao ler a sua obra damo-nos conta que eacute um autor apaixonado pela

verdade Ele nunca afirmou que a verdade estava fora de alcance Ele quer encontrar a

verdade A sua proacutepria atitude filosoacutefica pode ser caracterizada como uma perene busca

da verdade O que lhe eacute peculiar nesta busca eacute o facto de questionar profundamente tudo

aquilo que eacute construiacutedo arbitrariamente pela filosofia dogmaacutetica sobretudo as grandes

elaboraccedilotildees teoacutericas e os complicados coacutedigos legais que em geral natildeo respeitam as

contingecircncias da vida

Esta razatildeo eacute por conseguinte a grande responsaacutevel pela contiacutenua agitaccedilatildeo das

leis Neste sentido o cepticismo de Montaigne no domiacutenio da moral estaacute em profunda

sintonia com todo o projecto da ldquoApologierdquo Assim como natildeo aceita as certezas teoacutericas

dos filoacutesofos e pensadores profissionais em mateacuteria de metafiacutesica e em tantos outros

assuntos tradicionalmente caros agrave filosofia rejeita tambeacutem com toda a determinaccedilatildeo a

produccedilatildeo filosoacutefica que eacute apresentada como ciecircncia moral Montaigne natildeo se cansa de

questionar o papel daqueles pensadores que em nome da filosofia se encarregam de

teorizar sobre as leis morais e a justiccedila Podemos dizer que o autor classifica esta

actividade como algo dispensaacutevel agrave vida Neste contexto o autor ressalta o problema da

contingecircncia e da sua relaccedilatildeo com a lei

182 Les Essais II 12 p 579 183 ldquo[B] Car nous avons en France plus de loix que tout le reste du monde ensemble [hellip] [C] Il y a peu de relation nos actions qui sont en perpetuelle mutation avec les loix fixes et immobile Les plus desirables ce sont les plus rares plus simples et generalesrdquo (Les Essais III 13 p 1066)

58

ldquo[A] Que nous dira donc en ceste necessiteacute la philosophie Que nous suyvons les loix de nostre pays Cest agrave dire cette mer flotante des opinions dun peuple ou dun Prince qui me peindront la justice dautant de couleurs et la reformeront en autant de visages quil y aura en eux de changemens de passion Je ne puis pas avoir le jugement si flexiblerdquo184

Algumas doutrinas filosoacuteficas impelem-nos ao cumprimento das leis do paiacutes

Mas como eacute isto possiacutevel se estas leis satildeo condicionadas pelas paixotildees de quem as fez

Em seguida Montaigne refere-se agrave relatividade das leis civis

ldquo[A] Quelle bonteacute est-ce que je voyois hyer en credit et demain plus [C]et que le trajet dune riviere fait crime Quelle veriteacute que ces montaignes bornent qui est mensonge au monde qui se tient au delagrave185

Diante deste quadro podemos perguntar-nos seraacute possiacutevel ter uma moral que

garanta a justiccedila para todos fazendo uso da razatildeo e utilizando as leis humanas que satildeo

sempre condicionadas pelas paixotildees as quais por sua vez estatildeo sujeitas a de tantas

mudanccedilas A resposta de Montaigne eacute negativa e eacute dada de forma iroacutenica

ldquo[A] Mais ils sont plaisans quand pour donner quelque certitude aux loix ils disent quil y en a aucunes fermes perpetuelles et immuables quils nomment naturelles qui sont empreintes en lhumain genre par la condition de leur propre essence Et de celles lagrave qui en fait le nombre de trois qui de quatre qui plus qui moins signe que cest une marque aussi douteuse que le resterdquo186

Aleacutem de constatar a relatividade das leis civis Montaigne natildeo deixa de afirmar

que haacute tambeacutem uma niacutetida relatividade nas leis naturais

ldquo[A] ils sont dis-je si miserables que de ces trois ou quatre loix choisies il nen y a une seule qui ne soit contredite et desadvoeumle non par une nation mais par plusieursrdquo187

Outra tese da ldquoApologierdquo que merece ser lembrada eacute que a razatildeo humana ndash

intrometendo-se em toda a parte para dominar baralhar e confundir a face das coisas

segundo sua vaidade e inconstacircncia ndash quer que acreditemos que haacute leis naturais como as

que se observam nas outras criaturas Mas isto natildeo passa de um equiacutevoco em noacutes as leis

naturais estatildeo perdidas

Montaigne natildeo mede as palavras quando o que estaacute em jogo eacute em seu entender

alguma coisa de capital importacircncia A falta de honestidade e a falsidade satildeo atributos

dos pensadores e elaboradores de leis na sociedade Neste contexto criticaraacute

violentamente a posiccedilatildeo de Platatildeo por exemplo Observa que quando este pensador

184 Les Essais II 12 p 579 185 Les Essais II 12 p 579 186 Les Essais II 12 p 580 187 Les Essais II 12 p 580

59

grego se torna legislador adopta um estilo imperioso e afirmativo e mistura-lhe

ousadamente as mais fantasiosas invenccedilotildees tatildeo uacuteteis para persuadir o povo como

ridiacuteculas para se persuadir a si mesmo Conclui a sua criacutetica a Platatildeo da seguinte forma

ldquo[C] Et pourtant en ses loix il a grand soing quon ne chante en publiq que des poeumlsies desquelles les fabuleuses feintes tendent agrave quelque utile fin et estant si facile dimprimer tous fantosmes en lesprit humain que cest injustice de ne le paistre plustost de mensonges profitables que de mensonges ou inutiles ou dommageables Il dict tout destroussement en sa Republique que pour le profit des hommes il est souvent besoin de les piper 188 rdquo

Na ldquoApologierdquo Montaigne manifesta em vaacuterias ocasiotildees o seu

descontentamento relativamente agraves teses dos filoacutesofos gregos

Considerando as reflexotildees precedentes acerca da moral tudo leva a crer que

Montaigne considera que as leis verdadeiras relativas agrave moral devem ter um caraacutecter

universal e natildeo particular

Montaigne apresenta uma lista de costumes diversificados de povos muito

diferentes que tecircm as suas tradiccedilotildees proacuteprias e que satildeo muitas vezes contraditoacuterias entre

si Isto servir-lhe-aacute para justificar a tese de que natildeo haacute coisa em que o mundo seja tatildeo

diverso como os costumes e leis

ldquo[A] Telle chose est icy abominable qui apporte recommandation ailleurs comme en Lacedemone la subtiliteacute de desrober Les mariages entre les proches sont capitalement defendus entre nous ils sont ailleurs en honneur [hellip]rdquo

ldquo[A] Le meurtre des enfans meurtre des peres communication de femmes trafique de voleries licence agrave toutes sortes de voluptez il nest rien en somme si extreme qui ne se trouve receu par lusage de quelque nationrdquo189

ldquo[A] Les subjets ont divers lustres et diverses considerations cest de lagrave que sengendre principalement la diversiteacute dopinions Une nation regarde un subject par un visage et sarreste agrave celuy lagrave lautre par un autre

Il nest rien si horrible agrave imaginer que de manger son pere Les peuples qui avoyent anciennement ceste coustume la prenoyent toutesfois pour tesmoignage de pieteacute et de bonne affection [hellip]rdquo

ldquo[A] Licurgus considera au larrecin la vivaciteacute diligence hardiesse et adresse quil y a agrave surprendre quelque chose de son voisin [hellip]rdquo ldquo[A] Dionysius le tyran offrit agrave Platon une robe agrave la mode de Perse longue damasquineacutee et parfumeacutee Platon la refusa disant questant nay homme il ne

188 Les Essais II 12 p 512 189 Les Essais II 12 p 580

60

se vestiroit pas volontiers de robbe de femme mais Aristippus laccepta avec ceste responce que nul accoustrement ne pouvoit corrompre un chaste couragerdquo190

ldquo[A] Nous portons les oreilles perceacutees les Grecs tenoient cela pour une marque de servitude Nous nous cachons pour jouir de nos femmes les Indiens le font en public Les Scythes immoloyent les estrangers en leurs temples ailleurs les temples servent de franchiserdquo191

Para Montaigne as razotildees sobre as quais cada povo funda a sua moral satildeo uma

resposta a situaccedilotildees contingentes e natildeo visam dar resposta a situaccedilotildees mais universais

vaacutelidas para todos os homens sem excepccedilatildeo Villey chega a afirmar que Montaigne

ldquocherche une justice et il trouve des justices et des justices contradictoiresrdquo192

Aleacutem de constatar a ausecircncia de um acordo entre as vaacuterias concepccedilotildees no que

diz respeito aos costumes de cada povo Montaigne - fiel agrave criacutetica aos sistemas

filosoacuteficos que perpassa toda a ldquoApologierdquo - destaca tambeacutem o facto de que natildeo haacute

sequer acordo entre os filoacutesofos que se ocupam particularmente em reflectir acerca de

dois temas muito caros agrave filosofia

ldquo[A] Quant agrave la liberteacute des opinions philosophiques touchant le vice et la vertu cest chose ougrave il nest besoing de sestendre et ougrave il se trouve plusieurs advis qui valent mieux teus que publiez [C]aux faibles espritsrdquo193

Segundo Montaigne os proacuteprios homens do saber adoptam atitudes

consideradas inaceitaacuteveis pelo facto de a sociedade as condenar Os exemplos ilustram

esta situaccedilatildeo de uma forma muito niacutetida e revelam quanto a razatildeo humana pode fazer

para encontrar explicaccedilotildees legitimadoras para todas as realidades relativas aos costumes

morais

ldquo[A] De lagrave disent aucuns que doster les bordels publiques cest non seulement espandre par tout la paillardise qui estoit assigneacutee agrave ce lieu lagrave mais encore esguillonner les hommes agrave ce vice par la malaisance [hellip] On demanda agrave un philosophe quon surprit agrave mesme ce quil faisoit Il respondit tout froidement Je plante un homme [hellip]rdquo194

ldquo[C] Car Diogenes exerccedilant en publiq sa masturbation faisoit souhait en presence du peuple assistant qursquoil peut ainsi saouler son ventre en le frottant [hellip] Ces philosophes icy donnoient extreme prix agrave la vertu et refusoient toutes autres disciplines que la moralerdquo195

190 Les Essais II 12 p 581 191 Les Essais II 12 p 582 192 Villey op cit p 197 193 Les Essais II 12 p 582 194 Les Essais II 12 p 584 195 Les Essais II 12 p 585

61

A relatividade das leis e costumes e a impossibilidade de se chegar a acordo

entre os povos tendo em vista estabelecer leis universais leva Montaigne a uma espeacutecie

de denuacutencia da praacutetica dos encarregados pela execuccedilatildeo das leis que jaacute por si satildeo tatildeo

questionaacuteveis Isto torna a lei supostamente universal ainda mais sujeita agrave rejeiccedilatildeo

segundo Montaigne Vale a pena recordar aqui o exemplo de que Montaigne ouviu

falar de um juiz que quando deparava com um seacuterio conflito entre Bartoldo e Baldo196

ou com alguma mateacuteria agitada por muitas contradiccedilotildees escrevia na margem de seu

livro ldquoQuestatildeo para o amigordquo Montaigne observa que neste caso a verdade era tatildeo

confusa e debatida que o juiz em causa poderia favorecer a parte que bem entendesse e

conclui

ldquo[A] Les advocats et les juges de nostre temps trouvent agrave toutes causes assez de biais pour les accommoder ougrave bon leur semble A une science si infinie deacutependant de lauthoriteacute de tant dopinions et dun subject si arbitraire il ne peut estre quil nen naisse une confusion extreme de jugemens Aussi nest-il guiere si cler proceacutes auquel les advis ne se trouvent divers Ce quune compaignie a jugeacute lautre le juge au contraire et elle mesmes au contraire une autre fois Dequoy nous voyons des exemples ordinaires par ceste licence qui tasche merveilleusement la cerimonieuse authoriteacute et lustre de nostre justice de ne sarrester aux arrests et courir des uns aux autres juges pour decider dune mesme causerdquo197

Eacute interessante destacar este exemplo tambeacutem porque Montaigne tinha

conhecimentos profundos da ciecircncia do direito conforme reconhece a maioria dos

comentadores da sua obra Como magistrat tinha conhecimento de causas nas quais se

manifestava aquilo contra o qual se opunha Isto vem confirmar ainda mais a posiccedilatildeo de

Montaigne face agrave sua incansaacutevel busca de leis universais que natildeo estivessem sujeitas agraves

constantes mutaccedilotildees de que a razatildeo humanaldquo[B] un pot agrave deux anses qursquoon peut saisir

agrave gauche et agrave dextrerdquo eacute responsaacutevel e que [A] fornit drsquoapparence agrave divers effectsrdquo198

Ao abordar a problemaacutetica da moral na ldquoApologierdquo Montaigne chega a algumas

conclusotildees que natildeo se distanciam fundamentalmente de todo o projecto do ensaio Isto

eacute defende que haacute um relativismo significativamente claro relativamente agrave moral Villey

faz algumas afirmaccedilotildees que resumem claramente esta problemaacutetica ldquoIl nrsquoy a pas de

souverain bien il nrsquoy a pas de loi naturelle toute obligation moralle est fortuite

196 Trata-se de dois juristas do seacuteculo XIV que no seacuteculo XV ainda tinham grande influecircncia 197 Les Essais II 12 p 582 198 Les Essais II 12 p 581

62

contingenterdquo199 E tudo isto deve-se agrave criacutetica destruidora da razatildeo humana que

Montaigne apresenta no texto Para ele a razatildeo quer julgar tudo quer elaborar leis

universais sem mesmo ter condiccedilotildees para semelhante empreendimento A razatildeo como

vimos eacute multiforme inconstante infinita Ela avanccedila sempre mesmo torta mesmo

manca mesmo desancada tanto com a mentira como com a verdade A razatildeo eacute um

instrumento de chumbo e de cera alongaacutevel dobraacutevel e adaptaacutevel a todas as

perspectivas e a todas as medidas200 Segundo Montaigne a razatildeo eacute ldquo[B] un miserable

fondement de nos regles et qui nous represente volontiers une tres-fauce image des

choses comme vainement nous concluons aujourdrsquohui lrsquoinclination et la decrepitude du

monde par les arguments que nous tirons de nostre propre foiblesse et decadencerdquo201

Em suma Montaigne tem consciecircncia de que eacute impossiacutevel chegar a qualquer

determinaccedilatildeo no domiacutenio da moral atraveacutes da razatildeo Por isto assume uma atitude

ceacuteptica em face desta questatildeo

199 Villey op cit p198 200 Cf nota 122 201 Les Essais III 6 p 908

63

Consideraccedilotildees finais

A leitura da ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo permitiu-nos esclarecer aspectos

importantes da criacutetica demolidora da razatildeo humana levada a cabo por Montaigne

Eacute claro que uma motivaccedilatildeo importante que levou Montaigne a escrever a

ldquoApologierdquo foi a obra do teoacutelogo catalatildeo Sebond Theologia Naturalis Eacute importante

destacar que o proacuteprio tiacutetulo do ensaio ldquoApologiehelliprdquo isto eacute elogio defesa natildeo reflecte

exactamente o seu propoacutesito que eacute a defesa de Sebond A anaacutelise do texto permite

captar algo de paradoxal Montaigne dispotildee-se a defender este teoacutelogo catalatildeo num

ensaio no qual ele proacuteprio se distancia claramente da doutrina de Sebond Neste

sentido haacute um significativo distanciamento entre o tiacutetulo do ensaio e o seu conteuacutedo O

ponto de partida de Montaigne eacute uma espeacutecie de declaraccedilatildeo de que as ideias de Sebond

satildeo convincentes mas imediatamente a seguir muda de opiniatildeo partindo de sua

concepccedilatildeo negativa do homem e natildeo acredita nos supostos poderes da razatildeo Dito de

outro modo Montaigne natildeo sustentava o propoacutesito da Theologia naturalis isto eacute a

pretensatildeo de apoiar a crenccedila dos leitores convidando-os a fazer um esforccedilo de adaptaccedilatildeo

dos instrumentos naturais e humanos considerados como dons de Deus especialmente

a razatildeo pondo-os ao serviccedilo da feacute

Montaigne ldquoaplauderdquo a atitude de Sebond202 Mas imediatamente a seguir critica

o teoacutelogo catalatildeo atacando os vaacuterios argumentos filosoacuteficos presentes na sua obra Na

raiz da sua criacutetica estaacute o facto de estes argumentos se fundamentarem numa visatildeo

antropocecircntrica da supremacia do homem como criatura privilegiada da criaccedilatildeo o

homem por ser detentor da razatildeo diferentemente dos outros animais tem uma

finalidade uma perfeiccedilatildeo e uma dignidade que merece ser exaltada Montaigne natildeo

aceita esta visatildeo que norteia tanto a obra de Sebond como o pensamento de todos

aqueles que faziam apologia da dignitas hominis Denuncia a presunccedilatildeo ilusoacuteria do

homem Desta perspectiva utiliza vaacuterios relatos anedoacuteticos de animais para justificar a

sua posiccedilatildeo E a conclusatildeo principal a que o conduz este percurso eacute que o homem natildeo

estaacute nem acima nem abaixo do resto dos seres naturais203 Dito de outro modo a

consideraccedilatildeo de que unicamente o homem eacute possuidor da razatildeo natildeo tem qualquer

relevacircncia segundo a ldquoApologierdquo

202 Cf nota 1 203 Cf nota 31

64

Da batalha travada por Montaigne contra os vaacuterios opositores da obra de

Sebond podemos destacar a posiccedilatildeo criacutetica que ele assume face aos presunccedilosos

racionalistas que diziam que os argumentos de Sebond eram fracos Diante destes

doutos Montaigne iraacute sustentar a tese de que o homem natildeo sabe nada Haacute que salientar

no entanto que o teoacutelogo catalatildeo estava em ldquocomunhatildeordquo com o pensamento apologeacutetico

de sua eacutepoca isto eacute recorreu agrave razatildeo para provar certos dogmas Para Montaigne o

principal perigo vem daqueles que atribuem super poderes agrave razatildeo Eacute por isso tambeacutem

que Montaigne sustenta que a razatildeo deve submeter-se agrave autoridade divina Esta

submissatildeo natildeo exclui a razatildeo mas considera-a como um meio de compreender o motivo

da feacute Esta feacute deve ser concebida como uma expectativa da graccedila sem a qual nada eacute

possiacutevel ao homem Segundo Montaigne natildeo somos capazes de perceber que toda a

certeza estaacute vedada ao homem reduzido a si proacuteprio204

Podemos perceber que a utilizaccedilatildeo da razatildeo para explicar as realidades da

religiatildeo natildeo tem sentido na ldquoApologierdquo Montaigne natildeo tem necessidade de fazer

apologia da feacute205 A sua perspectiva eacute unicamente humana e isto vai estruturar toda a

sua reflexatildeo na ldquoApologierdquo Quando se refere agrave graccedila como dom sobrenatural nem o

absoluto nem a graccedila actuam no interior de sua visatildeo antropoloacutegica A graccedila eacute

apresentada por Montaigne como uma metamorfose

ldquo[C] Crsquoest agrave nostre foy Chrestienne non agrave sa vertu Stoique de pretendre agrave cette divine et miraculeuse metamorphoserdquo206

Montaigne descobre em si proacuteprio o pirronismo atraveacutes da volubiliteacute207 presente

nas vaacuterias atitudes dos filoacutesofos Pocircs em duacutevida as diversas opiniotildees dos filoacutesofos

denunciando-as como contraditoacuterias criticou as doutrinas filosoacuteficas dogmaacuteticas mas

natildeo assumiu nenhuma doutrina definida Montaigne assume o pirronismo como meacutetodo

e natildeo como um adepto cego para enfrentar os problemas presentes na ldquoApologierdquo

O pirronismo eacute assumido por Montaigne como modo de pensamento e como

meacutetodo de vida Este pirronismo permite-lhe ter em conta na ldquoApologierdquo a incerteza de

204 Cf Nota 93 205 O autor esclarece esta questatildeo da seguinte maneira na ediccedilatildeo posterior a 1588 ldquo[C] Je propose les fantasies humaines et miennes simplement comme humaines fantasies [hellip] matiere dopinion non matiere de foy ce que je discours selon moy non ce que je croy selon Dieu comme les enfants proposent leurs essais intruisables non instruisants dune maniere laiumlque non clericale mais tresminusreligieuse tousjoursrdquo (Les Essais I 56 p 323) 206 Les Essais II 12 p 604 207 Les Essais II 12 p 569

65

nossos juiacutezos a incerteza que todos sentem em si208 em relaccedilatildeo ao conhecimento O

pirronismo faz desaparecer as ilusotildees da certeza e como ele natildeo se envolve nas

questotildees da ldquoirresolution infinierdquo209 procura uma seguranccedila na tranquilidade do

espiacuterito que com a do corpo constitui o soberano bem210 Ao assumir a atitude

pirroacutenica Montaigne natildeo se transforma num homem passivo num ldquopeso mortordquo Muito

pelo contraacuterio sustenta que devemos sempre levantar questotildees reconhecer a nossa

ignoracircncia face agraves vaacuterias resoluccedilotildees tomadas como certas pela presunccedilosa razatildeo

humana duvidar sempre e ter uma atitude de busca incessante de novas ideias

Isto significa que Montaigne defende a tese de que somos convidados a

considerar que os conhecimentos adquiridos devem ser sempre sustentados como

provisoacuterios e natildeo como verdades absolutas Isto natildeo exclui evidentemente o facto de

que podemos apresentar as nossas visotildees prismaacuteticas das coisas e ateacute sustentaacute-las se

assim for necessaacuterio

Na ldquoApologierdquo Montaigne assume uma atitude pirroacutenica sui generis Demonstra

constantemente uma reaccedilatildeo contra os dogmatismos Ele eacute um pensador que estaacute sempre

em busca Nunca cessa de investigar Estaacute sempre em debate consigo mesmo Neste

aspecto pode-se dizer que assume uma atitude diferente do pirronismo grego o qual

defendia a tese da impossibilidade de qualquer juiacutezo Natildeo estaacute preocupado em encontrar

um ldquoroacutetulo de marca registadardquo para suas reflexotildees filosoacuteficas Ou seja natildeo tinha como

objectivo elaborar uma apologia de uma doutrina a ser seguida por adeptos

Montaigne apresenta os seus juiacutezos com a sua razatildeo criacutetica sem ter

necessariamente que defender a tese de que a razatildeo humana ndash instrumento flexiacutevel

recurvaacutevel e adaptaacutevel a qualquer forma211- eacute sempre o guia prudente e seguro de uma

conduta correcta e perfeita Montaigne procura demonstrar racionalmente - e aqui

reside em seu entender o uso positivo da razatildeo ndash que natildeo haacute essecircncia nem verdade

absoluta acerca do homem e que de algumas coisas sempre agrave mercecirc do poder do tempo

noacutes soacute observamos as aparecircncias

ldquo[A] Finalment il nrsquoy a aucune constante existence ny de nostre estre ny de celuy des objects [hellip] Nous nrsquoavons aucune communication agrave lrsquoestre [hellip]rdquo212

208 Cf Les Essais II 12 p 563 209 Cf Les Essais II 12 p 561 210 Cf Les Essais II 12 p 488 211 Cf Les Essais II 12 p 539 212 Les Essais II 12 p 601

66

Montaigne duvida de todos os conhecimentos humanos recebidos por autoridade

e em confianccedila (agrave credit) como se fossem religiatildeo e lei213 tais conhecimentos natildeo

passam de falsas evidecircncias do quotidiano E isto vale sobretudo para todos os tipos de

produccedilatildeo racional que satildeo consequecircncia da vaidade humana

Montaigne esforccedila-se por investigar as opiniotildees dos outros e isto motiva-o a

formular um pensamento mais pessoal preocupado com o que eacute justo e a expandir o

seu proacuteprio conhecimento relativo e precaacuterio As suas investigaccedilotildees natildeo satildeo dogmaacuteticas

e soacute o comprometem a ele proacuteprio Eacute um pensador que estaacute sempre em busca que natildeo

tem a presunccedilatildeo de querer saber tudo sobre todas as coisas Mas ao mesmo tempo

podemos dizer que eacute um pensador que descobriu num mundo marcado por tantas

conturbaccedilotildees graccedilas agraves suas proacuteprias experiecircncias uma consciecircncia real e soacutelida da sua

existecircncia concreta no mundo Este facto levou-o a assumir a atitude de natildeo querer

ensinar nem dirigir a vida de ningueacutem Vale a pena citar a este respeito um pequeno

trecho de um outro ensaio que Montaigne escreveu provavelmente na mesma eacutepoca da

ldquoApologierdquo e que reflecte claramente a posiccedilatildeo por ele assumida e que pode ser

classificada natildeo como a de um filoacutesofo profissional detentor de verdades que devem ser

ensinadas aos outros mas como a de algueacutem que estaacute sempre em busca e natildeo se inibe de

expressar as suas opiniotildees

ldquo[A] Je dy librement mon advis de toutes choses voire et de celles qui surpassent agrave ladventure ma suffisance et que je ne tiens aucunement estre de ma jurisdiction Ce que jen opine cest aussi pour declarer la mesure de ma veueuml non la mesure des chosesrdquo214

Montaigne renuncia a tarefa de querer provar atraveacutes da razatildeo humana aquilo

que estaacute em uacuteltima instacircncia no domiacutenio da feacute Ele eacute um homem que crecirc em Deus

ldquo[A] Il a laisseacute en ces hauts ouvrages le caractere de sa diviniteacute et ne tient quagrave nostre imbecilliteacute que nous ne le puissions descouvrirrdquo215

Uma quantidade importante de pessoas no mundo proclama a existecircncia de

Deus Mas este Deus natildeo pode ser conhecido racionalmente pelo homem

ldquoIl sen faut tant que nos forces conccediloivent la hauteur divine que des ouvrages de nostre createur ceux-lagrave portent mieux sa marque et sont mieux siens que nous entendons le moinsrdquo216

213 Cf Les Essais II 12 p 539 214 Les Essais II 10 p 410 215 Les Essais II 12 pp 446-447 216 Les Essais II 12 p 499

67

Relativamente agrave moral Montaigne sustenta a tese de que a razatildeo humana natildeo

tem o poder de determinar quais satildeo os bons e os maus costumes as boas e as maacutes leis e

normas para qualquer grupo social

Diante da leitura que fizemos da ldquoApologierdquo onde Montaigne apresenta uma

criacutetica destruidora agrave razatildeo tirando-lhe quase todos os atributos recebidos durante toda a

histoacuteria da filosofia podemos portanto perguntar-nos qual eacute o papel da razatildeo humana

A resposta a esta questatildeo eacute muito complexa A criacutetica montaigneana agrave razatildeo natildeo se

limitou a menosprezar a ciecircncia (filosofia) a ldquoteologia racionalistardquo e as suas pretensotildees

de querer dar explicaccedilotildees sobre questotildees de feacute e de religiatildeo atacou tambeacutem

profundamente o espiacuterito humano negando-lhe capacidades que na maioria das vezes

satildeo atributos da pretensatildeo humana Para ilustrar mais claramente esta ideia seraacute

interessante fazer referecircncia a uma passagem ceacutelebre do livro III na qual Montaigne

conta uma pequena histoacuteria de um escravo chamado Esopo

Conta-nos o autor que Esopo estava exposto agrave venda com dois outros escravos

Um comprador indagou de um deles que sabia fazer este para se valorizar contou mil

maravilhas (monts et merveilles) O segundo disse mais ainda Quando chegou a sua

vez Esopo respondeu ldquonada eles jaacute pegaram em tudo eles sabem tudordquo Montaigne

observa que verificou o mesmo nas escolas de filosofia A arrogacircncia o orgulho (fierteacute)

dos que atribuiacuteram ao espiacuterito humano a capacidade de tudo saber levou os outros a

afirmar por despeito ou contradiccedilatildeo que o espiacuterito natildeo era capaz de coisa alguma

Estes exaltavam ao extremo a ignoracircncia tal como aqueles glorificavam absurdamente a

ciecircncia De modo que natildeo haacute como negar que o homem eacute imoderado em tudo e soacute cessa

quando forccedilado pela capacidade de ir aleacutem217

Em suma a ldquoApologierdquo nos apresenta um questionamento profundo em relaccedilatildeo

a todo o tipo de conhecimento fundado na razatildeo Arruiacutena os fundamentos deste

conhecimento produzido pelos homens do saber doutos e filoacutesofos antigos A estes

ldquosaacutebiosrdquo em geral que pensavam ser possuidores da verdade Montaigne dirige uma

criacutetica iroacutenica

laquo [C] Fiez vous agrave vostre philosophie vantez vous davoir trouveacute la feve au gasteau [hellip] raquo218

217 Cf Les Essais II 11 p 1035 218 Les Essais II 12 p 516 Esta citaccedilatildeo faz referecircncia agrave tradiccedilatildeo de na Epifania compartilhar um bolo contendo uma fava quem recebesse a fatia laquo premiada raquo era chamado laquo o rei da fava raquo Tratava-se de algo que figuradamente garantia uma espeacutecie de vantagem

68

Bibliografia

1 - Obras de Michel de Montaigne

Les Essais eacutedition conforme au texte de lrsquoexemplaire de Bordeaux par Pierre Villey

reacuteeacutediteacute sous la direction et avec un preacuteface de V-L Saulnier augmenteacute en 2004 drsquoune

preacuteface et drsquoun suppleacutement de Marcel Conche Paris QuadriguePUF 2004 (ediccedilatildeo de

referecircncia no nosso estudo)

Essais Livre second eacutedition preacutesenteacutee eacutetablie et annoteacutee par Emmanuel Naya

Delphine Reguig-Naya et Alexandre Tarrecircte Paris () Gallimard 2009

2 Estudos sobre Montaigne

AA VV Le dictionnaire des Essais de Montaigne Paris ( ) Eacuteditions Leacuteo Scheer

2011

AA VV Montaigne et la reacutevolution Philosophique du XVI siegravecle Bruxelles Eacuteditions

de lrsquoUniversiteacute de Bruxelles 1992

AUREacuteLIO Diogo Pires Montaigne e Espinosa toleracircncia ceacuteptica e toleracircncia

racionalista In O Cepticismo e Montaigne Rui Bertrand Romatildeo (org) Covilhatilde

Universidade da Beira Interior 2003 pp 141-160

BIRCHAL Telma de Souza O eu nos Ensaios de Montaigne Belo Horizonte Editora

UFMG 2007

BIGNOTTO Newton ldquoMontaigne Renascentistardquo Kriterion Revista do Departamento

de Filosofia da UFMG Belo Horizonte XXXIII 86 agodez 1992 p 29-41

BUTOR Michel Essais sur les essais Paris Gallimard 1968

CATALAN Eacutetienne Eacutetudes sur Montaigne analyse de sa philosophie Paris Hellier

Fregraveres Librairie Religieuse 1846

CHAMPION Edme Introduction aux Essais de Montaigne Paris Armand Colin amp Cie

Eacutediteurs 1900

COMPAGNON Antoine Nous Michel de Montaigne Paris Seuil 1980

CONCHE Marcel Montaigne et la philosophie Paris Puf 1996

69

_____________ Montaigne ou la conscience heureuse Paris PUF 2009

DUARTE Tiago Barros Skepticism and religion in Michel de Montaigne two

interpretations of apology for Raymond Sebond Intuitio Porto Alegre V2 ndash Nordm 3

Novembro 2009 pp 298-307

FILHO Celso Martins Azar Montaigne e Soacutecrates cepticismo conhecimento e

virtude In Revista Portuguesa de Filosofia Tomo LVIII Fasc 4 2002

FRIEDRICH Hugo Montaigne Traduzido do alematildeo por Robert Rovini Paris

Gallimard 1967

GIOCANTI Sylvia Montaigne et les becirctes La becirctise et lrsquoanimal dans les Essais de

Montaigne Universiteacute de Toulouse-II Le Mirail UMR 5037 (ENS-Lyon) 2011

HENDRICK Philip Montaigne and Sebond scepticism faith and imagination In O

Cepticismo e Montaigne Rui Bertrand Romatildeo (org) Covilhatilde Universidade da Beira

Interior 2003 pp 83-102

JEANSON Franccedilois Montaigne par lui-mecircme Paris Seuil 1951

LACOUTURE Jean Montaigne agrave cheval (Montaigne a cavalo) Traduzido por F

Rangel Rio de JaneiroSatildeo Paulo Editora Record 1998

LANUSSE Maxime Montaigne Paris Lecegravene Oudin et Cie Eacutediteurs 1895

LEVEAUX Alphonse Eacutetude sur les Essais de Montaigne Paris Henri Plon

Imprimeur-Eacutediteur 1870

MATHIEU-CASTELLANI Gisegravele Montaigne ou la veacuteriteacute du mensonge Genegraveve

Droz 2000

MONSIEUR L Le chistianisme de Montaigne Paris Imprimerie de Demonville 1819

_______ Montaigne lrsquoeacutecriture de lrsquoessai Paris PUF 1988

NAKAM Geacuteranrd Montaigne et son temps Paris Gallimard 1993

RIGOLOT Franccedilois Le texte de la renaissance des rheacutetoriqueurs agrave Montaigne

Genegraveve Droz 1982

_______ Les meacutetamorphoses de Montaigne Paris PUF 1988

RIVELINE Maurice Montaigne et lrsquoamitieacute Paris Librairie Feacutelix Alcan 1939

70

71

ROMAtildeO Rui Bertrand A apologia na balanccedila a reinvenccedilatildeo do pirrorismo na

Apologia de Raimundo Sabunde de Michel de Montaigne Lisboa Imprensa Nacional

Casa da Moeda 2007

SANTI Pedro Luiz Ribeiro de Montaigne e a reflexatildeo moral no seacuteculo XVI In Revista

Olhar ano 04 nordm 7 jan-jun 03 pp 76-85

STAROBINSKI Jean Montaigne en mouvement Paris Gallimard 1982

STROWSKI Fortunat Montaigne Paris Feacutelix Alcan Eacutediteurs 1906

VERDAN Andreacute Le scepticisme philosophique Paris-Montreacuteal Bordas 1971

VILLEY Pierre Les sources et lrsquoeacutevolution des essais de Montaigne Tome Premier

Paris Librairie Hachete 1908

______ Les sources et lrsquoeacutevolution des essais de Montaigne Tome Second Paris

Librairie Hachete 1908

______ Montaigne devant la posteacuteriteacute Paris Ancienne Librairie Furne ndash Boivin et Cie

Eacutediteurs 1935

WEILLER Maurice Pour connaitre la penseacutee de Montaigne Paris Bordas 1948

3 ndash Outras obras citadas

ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Livro I e II Traduccedilatildeo do grego por Vicenzo Coceo

Coleccedilatildeo Os Pensadores Satildeo Paulo Abril S A Cultural 1984

CASSIRER Ernst An essay on man Traduccedilatildeo portuguesa de Carlos Branco Ensaio

sobre o homem Lisboa Guimaratildees Editores 1995

Nouveau Testament Traduction Oecumeacutenique de la Bible Paris PUF 1977

SEXTUS EMPIRICUS Les hipotiposes ou instituitions pirroniennes Trad do grego

por Claude Huart Amsterdam Barbier MDCC XXV

AA VV Histoacuteria das sociedades das sociedades modernas agraves sociedades atuais Rio

de Janeiro Ao Livro Teacutecnico 1983

  • IacuteNDICE
Page 6: MARÇO DE 2012

Introduccedilatildeo

O tema da razatildeo eacute muito caro a Montaigne e central na sua obra No presente

trabalho pretende-se abordaacute-lo a partir da ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo que faz

parte do segundo livro dos Essais Trata-se de um ensaio que eacute unanimemente

reconhecido como sendo uma das referecircncias mais importantes para quem pretenda

compreender em profundidade os aspectos mais relevantes da criacutetica ceacuteptica agrave razatildeo

humana desenvolvida por Montaigne

Com o pretexto de defender as ideias de Sebond1 Montaigne apresenta de facto

um pensamento totalmente pessoal independente do de Sebond Em vez de responder

agraves diversas objeccedilotildees dos adversaacuterios da Theologia naturalis Montaigne questiona de

uma forma muito incisiva o poder da razatildeo e ldquopotildee em xequerdquo este suposto poder A

criacutetica por ele desenvolvida natildeo se limitou a rebaixar a filosofia ldquoprofissionalrdquo a

suspeitar de todo o conhecimento produzido pela ciecircncia mas atacou tambeacutem

duramente a pretensatildeo humana de tudo querer conhecer atraveacutes da razatildeo pretensatildeo que

se estende inclusivamente a Deus atraveacutes das grandes construccedilotildees racionais da teologia

Como veremos a razatildeo natildeo tem para Montaigne um valor supremo nem eacute sinal de

absoluta superioridade Os limites do poder da razatildeo satildeo tatildeo evidentes que se

manifestam inclusivamente na incapacidade da razatildeo de raciocinar sobre si mesma

ldquo[A] Par ougrave la voulons nous mieux esprouver que par elle mesme Srsquoil ne la faut croire parlant de soy agrave peine sera-elle propre agrave juger des

1 Trata-se de Raymond Sebond Da vida de Sebond sabe-se muito pouco como diz Montaigne ldquo[A] tout ce que nous sccedilavons cest quil estoit Espaignolrdquo (Les Essais II 12 p 440) Especula-se que nasceu em 1385 em Barcelona Diz-se tambeacutem que foi estudante na universidade de Toulouse e que foi reitor daquela universidade Morreu em Toulouse em 1436 onde ensinava medicina e teologia Sua obra magna ldquoTheologia naturalis sive Liber creaturarumrdquo (Teologia natural ou livro das criaturas) escrita em 1434-1436 e publicada em 1487 foi reimpressa vaacuterias vezes ateacute aos meados do seacuteculo XVII Esta obra foi traduzida por Montaigne em 1569 a pedido de seu pai Pierre Eyquem senhor de Montaigne e antigo presidente da Cacircmara Municipal de Bordeaux que se interessava muito por ela conforme atestam os primeiros paraacutegrafos da ldquoApologierdquo Esta traduccedilatildeo foi o primeiro trabalho publicado e o que o lanccedilou no mundo literaacuterio ldquo[A] Je trouvay belles les imaginations de cet autheur la contexture de son ouvrage bien suyvie et son dessein plein de pieteacuterdquo (Les Essais II 12 p 440) Para as citaccedilotildees e referecircncias dos Ensaios utilizaremos a ediccedilatildeo de Villey-Saulnier Paris PUFQUADRIGE 2004 As citaccedilotildees seratildeo feitas da seguinte forma o nuacutemero em algarismos romanos indica o livro o primeiro nuacutemero em araacutebicos o capiacutetulo e o segundo nuacutemero em araacutebicos a paacutegina da ediccedilatildeo Les Essais foram publicados pela primeira vez em 1580 e eram constituiacutedos por dois livros apenas Pouco depois Montaigne fez vaacuterios acreacutescimos nestes livros e compocircs um terceiro e fez uma nova ediccedilatildeo em 1588 Em 1592 o autor morre e deixa um exemplar com vaacuterias adiccedilotildees manuscritas o chamado ldquoexemplar de Bordeauxrdquo destinado a uma nova ediccedilatildeo dos Essais Indicaremos as trecircs ldquocamadasrdquo do texto com as letras A (Ediccedilatildeo de 1580) B (Ediccedilatildeo de 1588) e C (adiccedilotildees posteriores a 1588 feitas ao exemplar de Bordeaux)

6

choses estrangeres si elle connoit quelque chose aumoins sera ce son estre et son domicile [hellip] la vraye raison et essentielle de qui nous desrobons le nom agrave fauces enseignes elle loge dans le sein de Dieu [hellip]rdquo2

Compreender as razotildees do cepticismo de Montaigne significa antes de mais

aprofundar os aspectos mais marcantes da sua antropologia Por isso comeccedilaremos por

abordar ainda que de forma breve a concepccedilatildeo antropoloacutegica que estaacute subjacente na

ldquoApologierdquo Com efeito a razatildeo ndash esse grande motivo de orgulho do homem e que eacute

considerada como um sinal da sua participaccedilatildeo no ser ndash passa a ser concebida por

Montaigne como um mero fruto da pretensatildeo e vaidade humanas para explicar crenccedilas

costumes etc Entre os alvos da criacutetica de Montaigne encontram-se aquelas teorias que

potildeem o homem no ldquotopo da piracircmiderdquo das criaturas do universo Enquanto Sebond

coloca o homem no topo da escala dos seres Montaigne recoloca-o no seio da natureza

e rebaixa-o ao niacutevel dos animais

Pretendemos deste modo compreender melhor as razotildees do ldquodestronamentordquo

realizado por Montaigne deste ser ldquotodo-poderosordquo que eacute o homem Ou o que eacute o

mesmo pretendemos compreender o ldquocepticismo da razatildeordquo que Montaigne assume

conscientemente com o intuito de rejeitar a pretensatildeo do homem de se considerar pela

interposiccedilatildeo da razatildeo no centro do universo

Em segundo lugar para compreender o lugar e o valor da razatildeo na obra de

Montaigne seraacute necessaacuterio investigar os motivos que levaram o autor a tecer uma

criacutetica tatildeo contundente da razatildeo humana aprofundando em concreto as relaccedilotildees que

esta criacutetica tem com a sua anaacutelise da religiatildeo Haacute que ter em conta no entanto que a

atitude de desconfianccedila da razatildeo natildeo conduziu Montaigne a pocircr em causa a feacute cristatilde

dado que em seu entender esta se situa num plano diferente natildeo sendo portanto

susceptiacutevel de ataque pelo seu espiacuterito criacutetico

A pertinecircncia desta questatildeo ressalta quando se tem em conta que o autor inicia o

seu texto a partir de uma motivaccedilatildeo teoloacutegica podemos conhecer racionalmente Deus

Montaigne dedica um nuacutemero significativo de paacuteginas a mostrar que os atributos

divinos natildeo satildeo alcanccedilaacuteveis pelos exerciacutecios racionais dos homens detentores das

ldquoverdades filosoacuteficasrdquo Como fideiacutesta Montaigne pensa que a verdade em religiatildeo se

baseia em uacuteltima instacircncia na feacute e natildeo no raciociacutenio ou na demonstraccedilatildeo Pretende-se

2 Les Essais II 12 p 541

7

compreender neste ponto com faz Montaigne a transiccedilatildeo da criacutetica teoloacutegica agrave criacutetica do

conhecimento em geral

Na mesma linha de compreensatildeo dos limites da razatildeo seraacute importante

aprofundar num terceiro momento a criacutetica da ciecircncia desenvolvida por Montaigne na

ldquoApologierdquo Montaigne quer derrubar a tola vaidade e sacudir viva e corajosamente os

fundamentos ridiacuteculos como ele mesmo diz sobre os quais se constroem as falsas

ideias produzidas pela ciecircncia

Encontramos tambeacutem nesta parte um nuacutemero significativo de citaccedilotildees de

filoacutesofos antigos que Montaigne referencia para justificar a sua criacutetica radical agrave ciecircncia

Para ele os mais famosos filoacutesofos representantes do saber humano natildeo conseguiram

dar as verdadeiras respostas agraves questotildees fundamentais do ser humano Quais satildeo as

verdades as certezas sobre o homem e sobre Deus que esses saacutebios filoacutesofos nos

legaram

Em quarto e uacuteltimo lugar seraacute importante considerar de que modo Montaigne

relaciona a razatildeo humana e a moral Naturalmente natildeo seraacute possiacutevel considerar

detidamente o tema da moral na ldquoApologierdquo trata-se apenas de procurar perceber por

que razatildeo o autor ldquodecretardquo a impossibilidade de fundamentar na razatildeo um conjunto de

regras normas e leis que dizem respeito agrave vida praacutetica de qualquer grupo humano

Procurar-se-aacute reconstituir os vaacuterios argumentos de Montaigne que justificam a sua

tomada de posiccedilatildeo relativista no acircmbito da moral

8

1 A ideia do homem na ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo

Quando nos colocamos diante do desafio de estudar os Essais de Michel de

Montaigne uma questatildeo que importa perceber melhor eacute o periacuteodo no qual o autor

escreveu a sua obra Mais especificamente estudar o humanismo renascentista tendo

em vista que o autor dos Essais eacute considerado como um pensador deste periacuteodo

Abordaremos no entanto apenas alguns aspectos importantes daquela eacutepoca

Montaigne viveu num periacuteodo em que emergia uma nova visatildeo do mundo em

que o homem passou a ser o centro das atenccedilotildees em todos os aspectos O geocentrismo

medieval que centrava suas atenccedilotildees na relaccedilatildeo com Deus foi substituiacutedo pela

glorificaccedilatildeo do humano As pessoas interessadas nesta ruptura com os ideais medievais

buscavam inspiraccedilatildeo nas obras greco-romanas para representarem o seu proacuteprio mundo

O humanismo renascentista concebe-se como um movimento intelectual de

valorizaccedilatildeo da antiguidade claacutessica Natildeo se tratava poreacutem apenas de copiar as

realizaccedilotildees do classicismo greco-romano Este movimento representou algo que pode

ser considerado como uma ldquoglorificaccedilatildeo do homemrdquo agora colocado no centro de todas

as indagaccedilotildees e preocupaccedilotildees consistia em sentido amplo numa tomada de posiccedilatildeo

antropocecircntrica em reacccedilatildeo ao teocentrismo que imperava na Idade Meacutedia

Os humanistas deixaram de aceitar os valores e maneiras de ser e viver da Idade

Meacutedia Por conseguinte o interesse pela antiguidade experimenta-se como um meio

para atingir um fim Os humanistas viam na antiguidade

ldquo[hellip] aquilo que correspondia aos desejos que sentiam [hellip] Pretendiam encontrar nos antigos o Homem considerado como o ser geral impessoal universal que existe sob a mesma forma em toda parte [hellip] O humanismo eacute uma teacutecnica da vida cotidianardquo3

A produccedilatildeo intelectual deste periacuteodo concebia-se natildeo como um retorno ao

passado mas como uma tentativa de buscar nos claacutessicos greco-romanos uma fonte de

inspiraccedilatildeo O humanismo renascentista aleacutem de representar uma forte reacccedilatildeo a todos

os padrotildees culturais medievais escolaacutesticos tendeu tambeacutem fortemente a contrapor a feacute

e a razatildeo

Na sua globalidade a reflexatildeo dos Essais tem como um dos seus objectivos

principais a caracterizaccedilatildeo do homem Nesta perspectiva Michel de Montaigne se

3 AA VV Histoacuteria das sociedades das sociedades modernas agraves sociedades atuais Rio de Janeiro Ao Livro Teacutecnico 1983 p 70

9

apresenta como um pensador humanista que viveu numa altura em que a visatildeo

antropocecircntrica era dominante No entanto ele procurou superar esta concepccedilatildeo de uma

maneira muito particular A concepccedilatildeo antropoloacutegica claacutessica renascentista enaltecia

radicalmente a ldquodignitas hominisrdquo4 colocando o homem no centro do universo

Montaigne assume uma postura significativamente diferente do espiacuterito humanista

renascentista despreza o tema da dignitas hominis e dedica-se agrave investigaccedilatildeo das coisas

concretas da vida

O humanismo de Montaigne ao contraacuterio do humanismo dominante alicerccedila-se

na ldquomiseria hominisrdquo5 Parte de plena consciecircncia dos limites da razatildeo humana no

sentido de que as suas faculdades natildeo tecircm condiccedilotildees para transcender estes mesmos

limites A razatildeo o grande orgulho do homem eacute concebida como uma estrateacutegia de

racionalizaccedilatildeo dos vaacuterios elementos da vida (costumes crenccedilas etc) que procura

transformar atribuindo-lhe uma verdade que natildeo consegue transcender a contingecircncia

Potildee-se assim em destaque ateacute que ponto a posiccedilatildeo de Montaigne contrasta com a visatildeo

de ldquodignitas hominisrdquo acima referida a mais comummente assumida na sua eacutepoca Para

ele o homem soacute pode ser o que eacute e imaginar de acordo com a sua medida

ldquo[C] Tout contentement des mortels est mortel [A] La reconnoissance de nos parens de nos enfants et de nos amis si elle nous peut toucher et chatouiller en lrsquoautre monde si nous tenons encore agrave un tel plaisir nous sommes dans les commoditez terrestres et finies Nous ne pouvons dignement concevoir la grandeur de ces hautes et divines promesses si nous les pouvons aucunement concevoir pour dignement les imaginer il

4 Para ilustrar as principais caracteriacutesticas desta concepccedilatildeo vale a pena citar um texto muito conhecido de um dos maiores representantes do humanismo renascentista Pico della Mirandola O texto em causa pode ser considerado como uma espeacutecie de manifesto do pensamento humanista renascentista em geral Pico exalta o homem entre todos os seres da natureza e dos ceacuteus como um ser potencialmente capaz de auto-criar-se de auto-projectar-se e de modelar-se a si mesmo com liberdade Pico ldquocoloca na boca de Deusrdquo algumas palavras endereccediladas imaginativamente ao homem receacutem-criado (Adatildeo) ldquo[hellip] Medium te munde posui ut circumspiceres inde commodius quicquid est in mundo Nec te caelestem neque terrenum neque mortalem neque immortalem fecimus ut tui ipsius quasi arbitrarius honorarius que plastes et fictor in quam malueris tute formam effingas Poteris in inferiora quae sunt bruta degenerare poteris in superiora quae sunt divina ex tui animi sententia regenerarirdquo (Coloquei-te no meio do mundo para que daiacute possas olhar melhor tudo o que haacute no mundo Natildeo te fizemos celeste nem terreno nem mortal nem imortal a fim de que tu aacuterbitro e soberano artiacutefice de ti mesmo te plasmasses e te informasses na forma que tivesses seguramente escolhido Poderaacutes degenerar ateacute aos seres que satildeo as bestas poderaacutes regenerar-te ateacute agraves realidades superiores que satildeo divinas por decisatildeo do teu acircnimo) In Pico de la Mirandola Giovanni Oratio de Hominis Dignitate Ediccedilatildeo bilingue Traduccedilatildeo e introduccedilatildeo de Maria de Lurdes Sirgado Ganho Lisboa Ediccedilotildees 70 2001 pp 56-57) 5Para uma apresentaccedilatildeo sinteacutetica e clara deste tema pode-se consultar Friedrich Hugo Montaigne Traduzido do alematildeo por Robert Rovini Paris Gallimard 1967 sobretudo as paacuteginas 133-136 Nesta mesma perspectiva na obra de Rui Bertrand Romatildeo A Apologia na balanccedila a reinvenccedilatildeo do pirronismo na Apologia de Raimundo Sabunde de Michel de Montaigne Lisboa Imprensa Nacional Casa da Moeda 2007 haacute uma reflexatildeo que merece ser lida (pp 79-82)

10

faut les imaginer inimaginables indicibles incomprehensibles [C] et parfaictement autres que celles de nostre miserable experiencerdquo6

Constatando esse limite da razatildeo humana Montaigne combate decididamente as

concepccedilotildees da ldquodignitas humanisrdquo que tecircm como escopo transformar o homem no fim

uacuteltimo da natureza Montaigne ao voltar-se para o homem concreto ao rebaixaacute-lo e

tiraacute-lo do seu pedestal na ldquoApologierdquo assume uma atitude ceacuteptica entendida como

uma forma de pensamento capaz de seguir a mudanccedila e de rejeitar ao mesmo tempo a

pretensatildeo do homem de se considerar por via da razatildeo no centro do universo

Cabe entatildeo perguntar seraacute que o homem ocupa realmente um lugar central nos

Essais A resposta a esta questatildeo eacute expressa de maneira bastante niacutetida na proacutepria

obra Friedrich no seu conhecido trabalho sobre Montaigne afirma

ldquo[A] On peut ouvrir les Essais ougrave lrsquoon veut toujours ils traitent de lrsquohommerdquo7

Haacute muitos outros temas desenvolvidos nos Essais Basta lanccedilar um raacutepido olhar

sobre os tiacutetulos dos vaacuterios ensaios que compotildeem os trecircs livros da obra para constatar a

quantidade enorme de assuntos tratados por Montaigne

Na sua busca incessante de resposta agrave questatildeo central antes referida merece ser

destacado o contacto de Montaigne com a obra de Sebond Theologia Naturalis que seraacute

a base da ldquoApologierdquo Entre muitas outras questotildees desenvolvidas nesta obra o teoacutelogo

catalatildeo tem como objectivo importante responder agrave questatildeo o que eacute o homem Citando

o proacuteprio Sebond Rui Bertrand Romatildeo afirma que haacute uma ideia baacutesica de ordem

hieraacuterquica observada na scala naturale em todos os seus 4 degraus

ldquoNo inferior estatildeo as coisas apenas providas de ser as coisas minerais no segundo as que tecircm ser e vida as vegetais no terceiro as animais em que ao ser e agrave vida se juntam os sentidos no uacuteltimo encontra-se a criatura humana acima da qual natildeo haacute na natureza nenhum outro ser pois o homem possui as qualidades de todas as demais criaturas simultaneamente e em conjunto tendo aleacutem delas a razatildeo e o livre-arbiacutetrio [hellip]rdquo8

Continua o autor mais adiante

ldquo[hellip] A caracteriacutestica dominante da teologia de Sebond consiste precisamente no lugar privilegiado que nela ocupa a referecircncia do homem natildeo apenas como objecto de conhecimento mas como meio da

6 Les Essais II 12 p518 7 Friedrich op cit p 105 8 Romatildeo Rui Bertrand op cit p 90

11

obtenccedilatildeo deste A reflexatildeo antropoloacutegica polariza o seu pensamento filosoacutefico e lhe contamina o sistema teoloacutegicordquo9

Eacute importante destacar aqui uma ideia desenvolvida por Ernst Cassirer na sua

obra Ensaio sobre o Homem10 Segundo este autor a questatildeo acerca do homem no

periacuteodo renascentista depara-se com a descoberta de um novo instrumento de

pensamento entra em cena o espiacuterito cientiacutefico no sentido moderno da palavra O que

agora se procura eacute uma teoria geral do homem baseada em observaccedilotildees empiacutericas e em

princiacutepios loacutegicos gerais A nova cosmologia o sistema heliocecircntrico copernicano

passa a ser a uacutenica base satilde e cientiacutefica para uma nova antropologia Nem a metafiacutesica

claacutessica nem a religiatildeo (com a sua estrutura teoacuterica fundada na teologia medieval)

estavam preparadas para esta tarefa lembra o autor Estas duas cosmologias concebem

o universo como uma ordem hieraacuterquica em que o homem ocupa o lugar mais alto A

pretensatildeo humana de ser o centro do universo perdeu o seu fundamento Cassirer afirma

ainda que o sistema de Copeacuternico se tornou um dos mais fortes instrumentos do

cepticismo filosoacutefico que se desenvolveu no seacuteculo XVI

Montaigne sendo um pensador livre que conseguiu libertar-se da concepccedilatildeo

antropoloacutegica medieval e renascentista tambeacutem natildeo necessitou de recorrer agraves ideias

cientiacuteficas vigentes na altura da redacccedilatildeo dos Essais Isto natildeo significa que tenha

ignorado por completo a teoria heliocecircntrica de Copeacuternico mas sim que como escreve

Conche

ldquoIl nrsquoa pas eu besoin de Copernic pour trouver ridicule la preacutetension de lrsquohomme de se faire centre du cosmos11

Antes de iniciar o seu longo relato (de mais ou menos uma meia centena de

paacuteginas) no qual compara os homens aos animais Montaigne faz uma afirmaccedilatildeo de

capital importacircncia que serve como uma espeacutecie de conclusatildeo antecipada daquilo que

afirma negativamente sobre o homem e sua relaccedilatildeo com o universo

ldquo[A] La presomption est nostre maladie naturelle et originelle La plus calamiteuse et fraile de toutes les creatures crsquoest lrsquohomme et quant et quant la plus orgueilleuse Elle se sent et se void logeacutee icy parmy la bourbe et le fient du monde attacheacutee et cloueacutee agrave la pire plus morte et croupie parti de lrsquounivers au dernier estage du logis et le plus esloigneacute de la voute celeste avec les animaux de la pire condition des trois (Les aeacuteriens les aquatiques et les terrestres) et se va plantant par

9 Idem p 113 10 Cassirer Ernst An essay on man Traduccedilatildeo portuguesa de Carlos Branco Ensaio sobre o homem Lisboa Guimaratildees Editores 1995 p24 11 Conche Marcel Montaigne et la philosophie Paris Puf 1996 p 7

12

imagination au dessus du cercle de la Lune et ramenant le ciel soubs ses pieds Crsquoest par la vaniteacute de cette mesme imagination qursquoil srsquoegale agrave Dieu qursquoil srsquoattribue les conditions divines qursquoil se trie soy mesme et separe de la presse des autres creatures taille les parts aux animaux ses confreres et compaignons et leur distribue telle portion de facultez et de forces que bon luy semble Comment cognoit il par lrsquoeffort de son intelligence les branles internes et secrets des animaux par quelle comparaison drsquoeux agrave nous conclue il la bestise qursquoil leur attribue [C] Quand je me joueuml agrave ma chatte qui sccedilait si elle passe son temps de moy plus que je ne fay drsquoellerdquo12

O homem quer ser senhor de todo o universo A sua atitude de querer ser uma

excepccedilatildeo na natureza natildeo passa de uma atitude ilusoacuteria O homem eacute segundo

Montaigne uma criatura como as outras que pode ser diferenciada natildeo pela capacidade

de raciocinar mas apenas pela presunccedilatildeo de querer destacar-se orgulhosamente

tornando-se ldquoo todo-poderosordquo face agraves outras criaturas Esta sua pretensatildeo de querer ser

a uacutenica criatura que pode conhecer e dominar o universo eacute radicalmente contestada por

Montaigne na ldquoApologierdquo Eacute com muita clarividecircncia que Conche reflectindo sobre

este tema afirma

ldquoOn voit pourquoi Montaigne srsquoefforce de retrouver chez lrsquoanimal ldquointelligencerdquo ldquodiscreacutetionrdquoldquojugementrdquoldquoratiocinationrdquo capaciteacute de ldquoconsulterrdquo de ldquoconcluirrdquo ldquoscience et prudencerdquo 13

Que tipo de competecircncia nossa natildeo reconhecemos nos actos dos animais Esta

questatildeo fundamental leva Montaigne a apresentar os seus relatos anedoacuteticos14 O

interesse da sua apologia dos animais eacute ldquo[hellip] paradoxalment lrsquohomme Montaigne

recherche lrsquohomme dans lrsquoanimal [hellip] crsquoest pour lutter contre lrsquoanthropocentrismerdquo15

Montaigne inicia a sua exposiccedilatildeo perguntando-se

ldquo[A] Est-il police regleacutee avec plus drsquoordre diversifieacutee agrave plus de charges et drsquooffices et plus constamment entretenueuml que celle des mouches agrave mielrdquo16

E faz questatildeo tambeacutem de descrever o engenho das andorinhas ao construiacuterem os

seus alojamentos e das aranhas ao confeccionarem as suas teias Diante destas obras

destes pequeninos animais Montaigne observa

12 Les Essais II 12 p 452 13 Conche Marcel Montaigne et la philosophie Paris Puf 1996 p 9 14 ldquoFidegravele aux proceacutedeacutes de compilation de son temps Montaigne accumule les exemples emprunteacutes agrave Pline agrave Plutarque agrave Arrien agrave Aulu-Gelle agrave Lucregravece agrave Virgile agrave Sextus Epiricusrdquo (cf Weiler Maurice Pour connaitre la penseacutee de Montaigne Bordas 1948 p 38) 15 Giocanti Sylvia Montaigne et les becirctes la becirctise et lrsquoanimal dans Les Essais de Montaigne Universiteacute de Toulouse 2011 p 1 16 Les Essais II 12 pp 454-455

13

ldquo[A] Nous reconnoissons assez en la pluspart de leurs ouvrages combien les animaux ont drsquoexcellence (supeacuterioriteacute) au dessus de nous et combien nostre art est foible agrave les imiterrdquo17

Quanto agrave capacidade de comunicaccedilatildeo Montaigne afirma que os animais

possuem este atributo Falamos com os catildees18 e eles respondem-nos Eacute evidente que

utilizamos uma outra linguagem para conversarmos com eles Montaigne observa que

tambeacutem entre noacutes humanos haacute diferenccedilas de linguagem de acordo com a diferenccedila de

regiotildees Estas diferenccedilas tambeacutem se encontram nos animais da mesma espeacutecie19

Segundo o nosso autor haacute certamente uma diferenccedila de ordem e de grau entre os

homens e os animais contudo ldquo[A] crsquoest soubs le visage drsquoune mesme naturerdquo20 Ao

constatar a peculiaridade do homem em face das outras criaturas Montaigne destaca o

facto de que o homem eacute detentor da liberdade de imaginaccedilatildeo No entanto

ldquo[A] ce desresglement de penseacutees luy representant ce qui est ce qui nrsquoest pas et ce qursquoil veut le faux et le veritable crsquoest un advantage qui luy est bien cher vendu et duquel il a bien peu agrave se glorifier car de lagrave naist la souce principale des maux qui le pressent pecheacute maladie irresolution (inconstance) trouble desespoirrdquo 21

Citando Lucreacutecio22 Montaigne deixa transparecer que o homem se prejudica a si

mesmo porque natildeo se manteacutem dentro dos limites da organizaccedilatildeo da natureza que se

manifesta de uma maneira inteligiacutevel e agraves vezes ateacute hostil submetendo o homem agrave

necessidade de leis que natildeo lhe satildeo suficientemente claras23

17 Les Essais II 12 p455 18 Les Essais II 12 p 458 19 Les Essais II 12 pp 458-459 20 Les Essais II 12 p459 21 Les Essais II 12 p 460 22ldquo[B] ldquores quaeque suo ritu procedit et ommes Foedere naturae certo discrimina servantrdquo (Chaque chose se deacuteveloppe agrave sa maniegravere et toutes conservent les diffeacuterences eacutetablies par lrsquoordre immuable de la nature) Cf Les Essais II 12 p 459 23 Expressando a sua visatildeo da natureza Montaigne observa que ao considerar que ela nos criou diferentes dos outros animais isto eacute nus sobre a terra nua atados cercados natildeo tendo com que armar-nos cobrir-nos [hellip] somos tentados a chamaacute-la de ldquotregraves injuste maracirctrerdquo Mas isto natildeo eacute assim A nossa organizaccedilatildeo do mundo natildeo eacute tatildeo disforme e desregrada A natureza abraccedilou universalmente todas as suas criaturas e natildeo haacute nenhuma que ela tenha provido plenamente de todos os meios necessaacuterios para a conservaccedilatildeo da existecircncia ldquo[C] crsquoest une mesme nature qui roule son coursrdquo(cf Les Essais II12 p467) Reflectindo sobre o tema da natureza nos Essais Pierre Villey afirma que ela se opotildee essencialmente agrave razatildeo humana e eacute natural tudo o que a razatildeo natildeo contaminou Afirma Villey ldquo[hellip] crsquoest chez les animaux et chez les sauvages qursquoon trouve les traces les moins corrompues de la nature Lrsquoeacutetat de nature dans cette conception radicale crsquoest lrsquoeacutetat de sauvagerie [hellip] Lrsquoadmiration pour les andiens crsquoest la forme paradoxale que prend chez lui de temps agrave autre son principe drsquoimitation de la naturerdquo (In Villey Pierre Les sources et lrsquoeacutevolution des essais de Montaigne - Tome second Paris Librairie Hachete 1908 p228) Isto natildeo quer dizer que devamos imitar os indiacutegenas por exemplo em todos os seus costumes tradiccedilotildees etc

14

Continuando a apologia dos animais Montaigne sugere que concebamos que os

animais natildeo obedecem a instintos de uma forma cega O relato que apresenta da raposa

da Traacutecia24 eacute um dos seus exemplos claacutessicos neste sentido Antes de se arriscar sobre a

aacutegua gelada a raposa aproxima o ouvido do gelo para ouvir de que profundidade sobre

o murmuacuterio da aacutegua a correr em baixo isto eacute ela ldquoraciocinardquo como fariacuteamos noacutes em

idecircnticas circunstacircncias o que faz barulho mexe o que mexe natildeo estaacute gelado o que natildeo

estaacute gelado eacute liacutequido e o liacutequido cede sob o peso Segundo Montaigne atribuir isto

simplesmente a uma vivacidade do sentido da audiccedilatildeo sem raciociacutenio e sem conclusatildeo

eacute uma quimera inconcebiacutevel

Segundo Montaigne natildeo eacute soacute o homem que sabe escolher o que eacute bom e o que

natildeo eacute bom para a sua vida e sobretudo para o socorro nas doenccedilas atraveacutes da ciecircncia e

do conhecimento construiacutedos por arte e por raciociacutenio

ldquo[A] Et quand nous voyons les chevres de Candie si elles ont receu un coup de traict aller entre un million drsquoherbes choisir le dictame pour leur guerison et la tortue quand elle a mangeacute de la vipere chercher incontinent de lrsquooriganum pour se purger et le dragon fourbir et esclairer ses yeux avecques du fenouil les cigouignes se donner elles mesmes des clysteres agrave tout de lrsquoeau de marine [hellip] pourquay ne disons nous de mesmes que crsquoest science et prudencerdquo25

Eacute faacutecil ver aqui quanto Montaigne deseja que o homem reconheccedila que os

animais possuem tambeacutem ciecircncia e sabedoria Em seu entender os animais tambeacutem satildeo

capazes de ser instruiacutedos agrave moda humana

ldquo[A] Les merles les corbeaux les pies les parroquets nous leur aprenons agrave parler [hellip] ils ont un discours au dedans qui les rend ainsi disciplinables et volontaires agrave aprendrerdquo26

Muitos animais aproximam-se da capacidade do homem e isto leva Montaigne a

afirmar

ldquo[A] qursquoil se trouve plus de difference de tel homme agrave tel homme que de tel animal agrave tel hommerdquo27

Podemos encontrar na ldquoApologierdquo muitos outros exemplos em que Montaigne

defende a ideia de que os animais possuem diversas capacidades semelhantes agraves dos

humanos28 Uma vez numerados todos estes atributos dos animais Montaigne afirma

24 Les Essais II 12 p 460 25 Les Essais II 12 pp 462-463 26 Les Essais II 12 p 463 27 Les Essais II 12 p 466

15

ldquo[A] La maniegravere de naistre drsquoengendrer nourrir agir mouvoir vivre et mourir des bestes estant si voisine de la nostre tout ce que nous retranchons de leurs causes motrices et que nous adjoustons agrave nostre condition au dessus de la leur cela ne peut aucunement partir du discours de nostre raisonrdquo29

Pierre Villey ao reflectir sobre estas comparaccedilotildees suscita uma questatildeo

relevante que natildeo eacute possiacutevel ignorar

ldquo[hellip] quand il exalte lrsquointeligence des animaux on peut se demander ce qursquoil en pense au justerdquo30

Natildeo querendo entrar na discussatildeo deste assunto - ateacute porque o proacuteprio

Montaigne natildeo o fez - eacute importante notar que se estes relatos montaigneanos fossem

tomados agrave letra natildeo nos faltariam motivos de troccedila Poderiacuteamos duvidar de muitas

afirmaccedilotildees acerca dos animais apresentadas por ele Fazendo um esforccedilo por deixar agrave

margem os exageros o humor e a liberdade literaacuteria do autor ndash que tecircm como objectivo

rebaixar o homem recolocando-o entre os animais e mostrando-lhe que a sua razatildeo

grande motivo de orgulho natildeo lhe garante um lugar no topo da piracircmide das criaturas ndash

o que importa destacar eacute que Montaigne pretende acentuar uma grande semelhanccedila

entre os homens e os animais

ldquo[A] Nous ne sommes ny au dessus ny au dessoubs du reste tout ce qui est sous le ciel dit le sage court une loy et fortune pareille [B] Indupedita suis fatalibus omnia vinclis (Toutes les choses sont enchaineacutes par les liens de leur propre destineacutee)rdquo31

28 Vejamos resumidamente outros atributos dos animais destacados pelo autor os catildees que servem aos cegos tanto nos campos como nas cidades catildees que representavam papeacuteis no teatro (p463) bois que serviam nos jardins reais de Susa (p464) nos espectaacuteculos de Roma viam-se elefantes treinados em movimentar-se e em danccedilar (p465) a pega que imitava com a voz tudo o que ouvia (p464) os elefantes que tecircm alguma participaccedilatildeo religiosa (p468) formigas que tecircm um jeito muito especial de comunicaccedilatildeo muacutetua (p469) o ouriccedilo que prevecirc a direcccedilatildeo do vento (p469) o camaleatildeo e o polvo que mudam de cor conforme a ocasiatildeo (p469) o voo dos paacutessaros que eacute resultado natildeo apenas da organizaccedilatildeo natural mas tambeacutem do entendimento consentimento e raciociacutenio (p469) os animais que servem seus donos sabem amaacute-los defendecirc-los (p461) o catildeo o cavalo sabem prezar amizade (p471) os animais satildeo muito mais regrados do que noacutes e se contecircm com muito mais moderaccedilatildeo nos limites que a natureza nos prescreveu (p472) os animais natildeo promovem a guerra (p473) o catildeo eacute mais fiel do que o homem (p476-7) quanto agrave gratidatildeo os animais tecircm esta capacidade (p477-8) os atuns tecircm conhecimentos geomeacutetricos astronoacutemicos e aritmeacuteticos (p479-480) o elefante tem a capacidade de arrependimento e reconhecimento dos erros (p480) o tigre tem capacidade de ser clemente (p480) enfim Montaigne atribui todas estas caracteriacutesticas e outras mais aos animais mostrando que elas satildeo erradamente consideradas como unicamente posse dos humanos 29 Les Essais II 12 p 470 30 Villey op cit p 186 31 Les Essais II 12 p 459

16

Desta perspectiva podemos compreender melhor a razatildeo do ldquodestronamentordquo

deste ser ldquotodo-poderosordquo que eacute o homem levado a cabo por Montaigne32

Depois de ter destacado a ideia de que o homem se assemelha aos animais e

vice-versa Montaigne sustenta que a forma corporal do homem eacute o que constitui a sua

peculiaridade face aos animais Eacute ela que ldquodefinerdquo a identidade do homem

ldquo[B] Ce nrsquoest donc pas par la raison par le discours et par lrsquoame que nous excellons sur les bestes crsquoest par nostre beauteacute nostre beau teint et nostre belle disposition de membres pour laquelle il nous faut mettre nostre intelligence nostre prudence et tout le reste agrave lrsquoabandonrdquo33

A sugestatildeo de Montaigne eacute que o homem natildeo pode ser pensado sem o seu corpo

elemento essencial de sua condiccedilatildeo humana O homem natildeo pode continuar a ser

concebido apenas como ser racional Montaigne potildee em causa a claacutessica concepccedilatildeo de

que soacute o homem eacute constituiacutedo de racionalidade O seu objectivo natildeo eacute encontrar uma

nova definiccedilatildeo do homem natildeo deseja decretar a inferioridade do homem nem tampouco

a sua superioridade face aos animais Natildeo tem em vista promover uma competiccedilatildeo

ridiacutecula entre os seres da natureza Montaigne sente-se incapaz de dar qualquer

definiccedilatildeo com o auxiacutelio da razatildeo humana Ignora qual eacute a essecircncia dos animais natildeo os

conhece Da mesma forma podemos dizer que agrave luz da ldquoApologierdquo Montaigne natildeo

consegue definir o homem Natildeo eacute possiacutevel elaborar juiacutezos constantes e uniformes nem

sobre o homem nem a partir dele

Dito de outra forma o ldquocepticismo da razatildeordquo que Montaigne assume

conscientemente visa rejeitar a pretensatildeo do homem de se considerar por via da razatildeo

no centro do universo

Montaigne com os seus ensaios quer ir directo agraves coisas e aos homens Eacute claro

que teve pouco contacto com o chamado movimento cientiacutefico do seu tempo Longe de

32 Friedrich ao analisar a questatildeo do lugar que segundo Montaigne corresponde ao homem diz ldquoA la question de savoir quelle place occupe lrsquohomme dans la totaliteacute du monde existent Montaigne ne donnera jamais la reacuteponse plotinienne selon laquelle il serait dans la chaicircne des ecirctres eacutemaneacutes un dernier maillon reacutetablissant la communication avec la source de lrsquoeacutemanation lrsquoUm primordial Ni la reacuteponse chreacutetienne selon laquelle lrsquohomme constituerait le couronnement terrestre de la creacuteation tout le creacutee lui eacutetant subordonneacute et Dieu eacutetant alleacute pour lui jusqursquoagrave se reacutesoudre agrave intervenir dans lrsquohistoire du salut Lrsquohomme de Montaigne est plutocirct un point dans lrsquounivers sans espoir que le destin ni la diviniteacute srsquointeacuteresse jamais agrave lui Il partage cette insignifiance de point avec le milieu dans lequel il vit patrie Eacutetat continent terre animaux et plantes Il nrsquoest plus un centre il est plongeacute dans la multitude de tout ce qui existe ignorant ce qui lrsquoen distingue et srsquoy sentant cheacutetif - bien preacuteserveacute pourtant au coeur de son insignifiance de son ignorance et deacutechargeacute de tout embarras Il y a au fond de cette penseacutee des ideacutees de Lucregravece Montaigne les transforme pour leur faire exprimer sa propre conscience de la vie dont il preacutecise les grandes lignes en la deacutelimitant par rapport aux affirmations posant la digniteacute de la nature humaine (cf op cit p131) 33 Les Essais II 12 p 486

17

toda a construccedilatildeo teoacuterica esforccedila-se por encontrar nele mesmo e nos outros o homem

tal como eacute sem o falso semblante que lhe acrescentam as pretensiosas doutrinas que o

definem pela sua relaccedilatildeo com o universo e com Deus

18

2 A criacutetica agrave razatildeo humana e a questatildeo da religiatildeo

Segundo Montaigne as pessoas que se gabam do conhecimento estatildeo sempre a

tentar explicar quais satildeo os atributos de Deus atraveacutes de complicados conceitos e

demonstraccedilotildees ininteligiacuteveis Em seu entender Deus e as verdades da religiatildeo satildeo

nitidamente questotildees de feacute e natildeo noccedilotildees filosoacuteficas Que isto eacute assim prova-o o facto de

que estas noccedilotildees satildeo sempre muito diversas e originam muita discoacuterdia entre os

inuacutemeros autores que delas se ocupam Uma coisa eacute Deus e outra coisa totalmente

diferente eacute o que pensam os homens a respeito de Deus

ldquo[A] Il ma tousjours sembleacute quagrave un homme Chrestien cette sorte de parler est pleine dindiscretion et dirreverence Dieu ne peut mourir Dieu ne se peut desdire Dieu ne peut faire cecy ou cela Je ne trouve pas bon denfermer ainsi la puissance divine soubs les loix de nostre parolle Et lapparence qui soffre agrave nous en ces propositions il la faudroit representer plus reveremment et plus religieusementrdquo34

ldquo[A] Dieu ne peut faire les mortels immortels ny revivre les trespassez ny que celuy qui a vescu nait point vescu celuy qui a eu des honneurs ne les ait point eus nayant autre droit sur le passeacute que de loubliance [hellip] Voylagrave ce quil dict et quun Chrestien devroit eviter de passer par sa bouche Lagrave ougrave au rebours il semble que les hommes recherchent cette fole fierteacute de langage pour ramener Dieu agrave leur mesure [hellip]nostre parole le dict mais nostre intelligence ne lrsquoapprehende pointrdquo35

Para compreender o lugar e o valor da razatildeo na ldquoApologierdquo eacute necessaacuterio

investigar os motivos que levaram o autor a tecer uma criacutetica tatildeo contundente da razatildeo

humana aprofundando em concreto as relaccedilotildees que esta criacutetica tem com a sua anaacutelise

da religiatildeo e com o poder de Deus expresso em todo o desenvolvimento do texto Para

esta abordagem teremos como base o preacircmbulo da ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo36

A ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo eacute o mais longo capiacutetulo da obra Les Essais

Neste texto Montaigne propotildee-se apresentar a ldquodefesa de um teoacutelogordquo do seacuteculo XVI

Montaigne comeccedila por caracterizar a situaccedilatildeo histoacuterica na qual a obra de

Sebond chegou agraves matildeos de seu pai por intermeacutedio do humanista Pierre Brunel (1499-

1546)37 Segundo Montaigne trata-se de um livro adequado para a eacutepoca Isto porque as

34 Les Essais II 12 p 527 35 Les Essais II 12 p 528 36 Cf Les Essais II 12 pp 438-449 Montaigne sobretudo nestas paacuteginas iniciais opotildee a religiatildeo agrave razatildeo humana demonstrando por um lado a incapacidade e os limites desta faculdade que eacute motivo de orgulho do homem e por outro esse ldquoinstrumentordquo de conhecimento ligado agrave graccedila divina que eacute a feacute 37 Montaigne admirava muito este humanista que gozava de grande reputaccedilatildeo na sua eacutepoca por causa de seu saber (Les Essais II 12 p 439)

19

novidades de Lutero comeccedilavam a estar em voga e a abalar em muitos lugares a antiga

crenccedila cristatilde38 Para Montaigne que era um pensador catoacutelico conservador a Reforma

Protestante era vista como algo perigoso para a religiatildeo estabelecida Globalmente natildeo

concordava com as contestaccedilotildees provocadas pelo espiacuterito da Reforma sobretudo porque

poderiam levar os homens agrave praacutetica do ateiacutesmo especialmente os menos doutos

Uma leitura do texto potildee de imediato em evidecircncia em que medida Montaigne se

distancia de Sebond em termos argumentativos Parafraseando Villey a defesa de

Sebond seraacute rapidamente esquecida39 Montaigne observa que surgiram entretanto

algumas objecccedilotildees ao livro de Sebond e anuncia no iniacutecio do ensaio o seu propoacutesito de

refutaacute-las Montaigne deseja defender Sebond destes dois tipos de adversaacuterios por um

lado os que consideram que os cristatildeos erram ao querer apoiar com razotildees humanas a

sua crenccedila que soacute se concebe por feacute e por uma inspiraccedilatildeo particular da graccedila divina

Estes satildeo os que subestimam a importacircncia da razatildeo Satildeo considerados fideiacutestas

pessoas que pensam que a verdade em religiatildeo estaacute em uacuteltima instacircncia baseada na feacute

em vez de no raciociacutenio ou na evidecircncia Por outro lado estatildeo os que dizem que os

argumentos de Sebond satildeo fracos e inadequados para demonstrar o que pretendem e se

dispotildeem a atacaacute-los facilmente Estes satildeo os que subestimam a importacircncia da feacute

Consideremos em primeiro lugar a atitude dos primeiros opositores Natildeo seria

correcto querer apoiar com razotildees humanas a crenccedila ldquo[A] qui ne se conccediloit que par foy

et par une inspiration particuliere de la grace divinerdquo40 Estes primeiros opositores de

Sebond satildeo os partidaacuterios da posiccedilatildeo ortodoxa catoacutelica Montaigne lembra que estes

teoacutelogos catoacutelicos satildeo movidos sobretudo por uma visatildeo piedosa

ldquo[A] En cette objection il semble quil y ait quelque zele de pieteacute et agrave cette cause nous faut-il avec autant plus de douceur et de respect essayer de satisfaire agrave ceux qui la mettent en avantrdquo41

Em face destas primeiras criacuteticas agrave obra do teoacutelogo catalatildeo Montaigne natildeo se

inibe de expressar as suas proacuteprias tomadas de posiccedilatildeo

ldquo[A]Toutefois je juge ainsi quagrave une chose si divine et si haultaine et surpassant de si loing lhumaine intelligence comme est cette veriteacute de laquelle il a pleu agrave la bonteacute de Dieu nous esclairer il est bien besoin quil nous preste encore son secours dune faveur extraordinaire et privilegeacutee pour la pouvoir concevoir et loger en nous et ne croy pas que

38 Cf Les Essais II 12 p 439 39 Villey op cit p 183 40 Les Essais II 12 p 440 41 Les Essais II 12 p 440

20

les moyens purement humains en soyent aucunement capables et sils lestoient tant dames rares et excellentes et si abondamment garnies de forces naturelles eacutes siecles anciens neussent pas failly par leur discours darriver agrave cette connoissance Cest la foy seule qui embrasse vivement et certainement les hauts mysteres de nostre Religionrdquo42

Ao abordar esta questatildeo Montaigne reconhece que natildeo estaacute capacitado para

levar a cabo tal empreendimento Esta seria uma tarefa mais adequada para um homem

versado em teologia assunto de que ele pessoalmente diz nada saber43 Mesmo assim

expressa uma vez mais a sua criacutetica radical aos que utilizam a razatildeo para apresentarem

argumentos apologeacuteticos em defesa das verdades sobre Deus e sobre a religiatildeo

Montaigne eacute um catoacutelico44 Sobre isto os Essais natildeo deixam duacutevida Natildeo eacute este o

momento de entrar na discussatildeo acerca de como viveu ou deixou de viver a sua

religiosidade O importante eacute que como catoacutelico aceita que haacute um Deus uacutenico criador

do ceacuteu e da terra Em vaacuterios momentos tanto na ldquoApologierdquo como em outros ensaios

Montaigne daacute a entender que a verdade estaacute em Deus e natildeo eacute propriedade dos homens

filoacutesofos ou teoacutelogos Noutras palavras a verdade eacute revelada e o homem sem o auxiacutelio

de Deus nunca a encontraria A razatildeo humana natildeo tem condiccedilotildees para elaborar

raciociacutenios crediacuteveis sobre estas verdades reveladas Para sustentar a tese que a razatildeo eacute

impotente neste domiacutenio Montaigne dedica um nuacutemero importante de paacuteginas em toda

a sua obra a desenvolver a ideia de que alguns filoacutesofos antigos reflectiram muito sobre

a possibilidade do conhecimento sobre Deus e fizeram afirmaccedilotildees que satildeo

absolutamente carentes de sentido Isto natildeo passou de uma ldquo[C] tintamarre de tant de

42 Les Essais II 12 p 440-441 43 ldquoCe seroit mieux la charge drsquoun homme verseacute en Theologie que de moy qui nrsquoy sccedilay rienrdquo(Les Essais II 12 p 440) 44 Montaigne declara-se catoacutelico foi um catoacutelico que durante toda a sua vida procurou cumprir os ritos lituacutergicos convencionais da Igreja Catoacutelica A sua posiccedilatildeo ceacuteptica parece enquadrar-se no fideiacutesmo como veremos Mas haacute que salientar que em algumas questotildees morais independentes das suas praacuteticas rituais ou seja na sua vida praacutetica Montaigne natildeo tem muito em consideraccedilatildeo a lista de exigecircncias eacuteticas do catolicismo romano Parece que falta agrave concepccedilatildeo religiosa de Montaigne algum sentimento religioso limita-se a uma espeacutecie de praacutetica do ritualismo exigido pela Igreja Catoacutelica Ele seria catoacutelico por uma questatildeo de conveniecircncia intelectual A sua praacutetica lituacutergica ritualiacutestica natildeo exerce grande influecircncia sobre o seu pensamento filosoacutefico Ele eacute um pensador completamente livre face agrave doutrina da Igreja E isto distingue-o substancialmente dos teoacutelogos que integram o corpo doutrinal na Igreja Montaigne pensava e exprimia estes pensamentos com plena liberdade Manifesta aleacutem disso alguma confianccedila na Igreja na religiatildeo na tradiccedilatildeo e nos costumes que contribuiacuteram para a sua formaccedilatildeo e que satildeo de alguma maneira parte constitutiva de sua identidade E na realidade quis apostar naquilo com o qual estava mais familiarizado ldquo[B] Nous sommes Chrestiens agrave mesme titre que nous sommes ou Perigordins ou Alemansrdquo(Les Essais II 12 p 445) No entanto quando comeccedilamos a estabelecer um maior contacto com os Essais percebemos que Montaigne natildeo eacute um catoacutelico que confie cegamente na doutrina da Igreja Muito pelo contraacuterio eacute extremamente consciente dos problemas do catolicismo e da sua doutrina bem como dos costumes em geral E acima de tudo tem perfeita consciecircncia de que a sua confianccedila eacute uma crenccedila e natildeo uma certeza filosoacutefica

21

cervelles philosophiquesrdquo45 Segundo Montaigne de todas as ideias humanas e antigas

no tocante agrave religiatildeo

ldquo[A]celle lagrave me semble avoir eu plus de vray-semblance et plus dexcuse qui reconnoissoit Dieu comme une puissance incomprehensible origine et conservatrice de toutes choses toute bonteacute toute perfection recevant et prenant en bonne part lhonneur et la reverence que les humains luy rendoient soubs quelque visage sous quelque nom et en quelque maniere que ce futrdquo46

Trata-se de belas afirmaccedilotildees que querem expressar quais satildeo os principais

atributos de Deus Satildeo uma tentativa racional que tem como meta explicar quem eacute Deus

Ao comentar esta passagem da ldquoApologierdquo Conche pergunta-se que significam estas

palavras E baseado na leitura que faz de Montaingne afirma que aplicadas a Deus

natildeo podemos saber o que realmente significam47

Montaigne questiona o facto de muitos homens pretenderem edificar um

discurso baseado na razatildeo para justificar as verdades reveladas as quais segundo ele soacute

poderatildeo encontrar os verdadeiros alicerces na feacute Vejamos como Conche

sinteticamente analisa esta questatildeo a partir da ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo

ldquoNous croyons penser Dieu En reacutealiteacute nous ne faisons que projeter hors de nous des qualiteacutes humaines que nos avons [hellip] Lrsquohomme ne peut concevoir Dieu qursquoagrave partir de lui-mecircme Or il y a entre lrsquohomme et Dieu un abicircme qualitatif Le Dieu dont on parle et duquel on raisonne nrsquoest qursquoun produit de lrsquoanthropomorphisme La raison loin de nous eacutelever agrave Dieu le ramegravene agrave notre mesure [hellip] En tout cela Dieu est encore conccedilu par analogie avec lrsquohomme et la puissance divine enfermeacutee ldquosous les lois de notre parolerdquo Assujettir Dieu agrave nos principes rationnels crsquoest lrsquoassujettir agrave la raison humaine Lrsquohomme ne peut penser au-delagrave de lui mecircme Du vrai Dieu on ne peut rien penser ni rien dire Il nrsquoy a pas drsquoideacutee de Dieu [hellip] La notion de Dieu nrsquoest pas une notion philosophiquerdquo48

Embora critique estes opositores de Sebond Montaigne afirma ao mesmo tempo

que o empenho em justificar a feacute pela razatildeo eacute uma iniciativa louvaacutevel Chega mesmo a

afirmar que esta tarefa poderia ser considerada como o uso mais honroso que o homem

cristatildeo poderia dar agrave razatildeo Por outras palavras eacute uma atitude nobre a que leva o cristatildeo

a querer embelezar perceber e ampliar a verdade de sua crenccedila por meio de todos os

estudos e reflexotildees Montaigne observa entretanto que eacute preciso fazer acompanhar a

45 Les Essais II 12 p 516 46 Les Essais II 12 p 513 47 Cf Conche Marcel Montaigne ou la conscience heureuse Paris Puf 2009 p 55 48 Idem pp 55-56

22

nossa feacute de toda a razatildeo que haacute em noacutes mas sempre com a ressalva de natildeo pensar que

seja de noacutes que ela depende nem que os nossos esforccedilos e argumentos possam atingir

uma tatildeo ldquo[A] supernaturelle et divine sciencerdquo49 O autor dos Essais insistiraacute muito

neste aspecto

ldquo[A] Si elle nentre chez nous par une infusion extraordinaire si elle y entre non seulement par discours mais encore par moyens humains elle ny est pas en sa digniteacute ny en sa splendeur Et certes je crain pourtant que nous ne la jouyssions que par cette voye Si nous tenions agrave Dieu par lentremise dune foy vive si nous tenions agrave Dieu par luy non par nous si nous avions un pied et un fondement divin les occasions humaines nauroient pas le pouvoir de nous esbranler comme elles ont [hellip]rdquo50

Sem duacutevida Montaigne ao questionar o poder da razatildeo humana procura

defender a feacute cristatilde Os argumentos tidos como ceacutepticos que estatildeo presentes na

ldquoApologierdquo tecircm como objectivo provar que soacute atraveacutes da intervenccedilatildeo divina e natildeo com

nossos proacuteprios meios racionais podemos ter acesso agrave verdade Apresenta vaacuterios

exemplos para que entendamos com mais clarividecircncia a sua reflexatildeo acerca deste

assunto

ldquo[C] Lrsquohomme est bien insenseacute Il ne sccedilauroit forger un ciron et forge des Dieux agrave douzainesrdquo51

O homem quer descrever Deus mas na verdade descreve-se a si mesmo Isto

demonstra a sua incapacidade e a sua falta de sabedoria

ldquo[B] Nous avons vie raison et liberteacute estimons la bonteacute la chariteacute et la justice ces qualitez sont donc en luy Somme le bastiment et le desbastiment les conditions de la diviniteacute se forgent par lhomme selon la relation agrave soy Quel patron et quel modele Estirons eslevons et grossissons les qualitez humaines tant quil nous Plaira enfle toy pauvre homme et encore et encore et encore Non si te ruperis inquit (ldquoNon pas mecircme quand tu cregraveverais dit-ilrdquo (Hor Sal II III 318) Crsquoest la fable de la grenouille qui veut se faire aussi grosse que le boeuf)rdquo52

Eacute interessante notar que ao mesmo tempo que pretende fazer a apologia da feacute cristatilde Montaigne critica os cristatildeos que natildeo satildeo ldquofieacuteisrdquo aos ensinamentos da Sagrada Escritura

ldquo[B] Voulez vous voir cela Comparez nos moeurs agrave un Mahometan agrave un Payen vous demeurez tousjours au dessoubs lagrave ougrave au regard de lavantage de nostre religion nous devrions luire en excellence dune extreme et incomparable distance et devroit on dire Sont ils si justes si

49 Les Essais II 12 p 441 50 Les Essais II 12 p 441 51 Les Essais II 12 p 530 52 Les Essais II 12 p 531

23

charitables si bons ils sont donq Chrestiens [C] La marque peculiegravere de nostre veriteacute devroit estre nostre vertu comme elle est aussi la plus celeste marque et la plus difficile et que cest la plus digne production de la veriteacuterdquo53

Para Montaigne os cristatildeos constituem uma espeacutecie de contratestemunho de sua

feacute Fazendo uma referecircncia ao texto da Sagrada Escritura algo muito raro nos Essais o

autor afirma que se tiveacutessemos um uacutenico pingo de feacute54 moveriacuteamos as montanhas de

seu lugar E neste sentido lembra-nos

ldquo[A] nos actions qui seroient guideacutees et accompaigneacutees de la diviniteacute ne seroient pas simplement humaines elles auroient quelque chose de miraculeux comme nostre croyancerdquo55

Para os que subestimam a importacircncia da razatildeo isto eacute para os primeiros

opositores de Sebond ou os fideiacutestas os cristatildeos erram ao quererem apoiar as suas

crenccedilas que soacute se concebem por meio da feacute e por inspiraccedilatildeo particular da graccedila divina

Estes satildeo os que pensam que a verdade em religiatildeo estaacute em uacuteltima instacircncia baseada na

feacute em vez de no raciociacutenio ou na evidecircncia Segundo Montaigne trata-se de uma

concepccedilatildeo bonita e ateacute piedosa Chega inclusivamente a exemplificar esta atitude e a

citar um caso de algueacutem que foi desviado dos erros da incredulidade atraveacutes da leitura

da obra de Sebond

ldquo[A] Je sccedilay un homme dauthoriteacute nourry aux lettres qui ma confesseacute avoir esteacute rameneacute des erreurs de la mescreance par lentremise des argumens de Sebond Et quand on les despouillera de cet ornement et du secours et approbation de la foy et quon les prendra pour fantasies pures humaines pour en combatre ceux qui sont precipitez aux espouvantables et horribles tenebres de lirreligion ils se trouveront encores lors aussi solides et autant fermes que nuls autres de mesme condition quon leur puisse opposer [hellip]rdquo56

53 Les Essais II 12 p 442 54 Provavelmente Montaigne estaacute a aludir a textos da Sagrada Escritura especialmente do Evangelho ldquoSi vraiment vous avez de la foi gros come une graine de moutarde vous diriez agrave ce sycomore ldquoDeacuteracine-toi et va te planter dans la merrdquo et il vous obeacuteiraitrdquo (Lc 17 6) Car en veacuteriteacute je vous le deacuteclare si un jour votre foi est semblable agrave un grain de moutarde vous diriez agrave cette montagne ldquoPasse drsquoici lagrave-basrdquo et elle y passera Rien ne vous sera impossiblerdquo (Mt 17 20) (In Nouveau Testament Traduction Oecumeacutenique de la Bible Paris PUF 1977 pp 91 e 253 55 Les Essais II 12 p 442 56 Les Essais II 12 p 447-448

24

No entanto mesmo tendo em consideraccedilatildeo a importacircncia da Teologia Natural

sebondiana Montaigne toma um certo partido pelo lado dos fideiacutestas57 seus opositores

Em seu entender a razatildeo humana natildeo eacute capaz de conduzir o homem agrave feacute

Montaigne num dado momento refere-se agraves guerras58 que oprimiam a sua

naccedilatildeo Ele propotildee uma possiacutevel explicaccedilatildeo destes tormentos que assolavam a Franccedila

que tem muito a ver com a questatildeo de fundo tratada na ldquoApologierdquo Escreve

ldquo[A] Les hommes y sont conducteurs et srsquoy servent de la religion ce devroit estre tout le contrairerdquo59

Assim se compreende por que razatildeo Montaigne aleacutem de criticar aqueles que

queriam instrumentalizar a razatildeo para justificar as verdades reveladas repudia a noccedilatildeo

daqueles que se dedicam excessivamente agrave religiatildeo e que tecircm como meta principal a

satisfaccedilatildeo das paixotildees e da vaidade

ldquo[C] Je voy cela evidemment que nous ne prestons volontiers agrave la devotion que les offices qui flattent noz passions Il nest point dhostiliteacute excellente comme la Chrestienne Nostre zele fait merveilles quand il va secondant nostre pente vers la haine la cruauteacute lambition lavarice la detraction la rebellion A contrepoil vers la bonteacute la benigniteacute la temperance si comme par miracle quelque rare complexion ne ly porte il ne va ny de pied ny daile Nostre religion est faicte pour extirper les vices elle les couvre les nourrit les incite [A] Il ne faut point faire barbe de foarre agrave Dieu (comme on dict) Si nous le croyons je ne dy pas par foy mais dune simple croyance voire (et je le dis agrave nostre grande confusion) si nous le croyons et cognoissions comme une autre histoire comme lun de nos compaignons nous laimerions au dessus de toutes autres choses pour linfinie bonteacute et beauteacute qui reluit en luy au moins marcheroit il en mesme reng de nostre affection que les richesses les plaisirs la gloire et nos amis raquo60

Montaigne demonstra uma certa irritaccedilatildeo em face da instrumentalizaccedilatildeo da

religiatildeo para certos objectivos particulares Em seu entender a devoccedilatildeo religiosa natildeo

57 Ao reflectir sobre o fideiacutesmo presente na ldquoApologierdquo Friedrich diz-nos que Montaigne assume um fideiacutesmo isento da nostalgia miacutestica O seu fideiacutesmo significa uma tomada de consciecircncia intelectual dos limites humanos limites estes que natildeo deseja ultrapassar Seu fideiacutesmo eacute de uma espeacutecie negativa isto eacute eacute a certeza da incerteza O mesmo autor observa ainda que a ldquoteologiardquo de Montaigne representa um desvio para ir ao conhecimento do homem no interior do mundo Montaigne precisa de se distanciar de Deus para se assegurar da pequenez do homem na qual ele vai se instalar (cf op cit p 117) 58 Tudo indica que Montaigne estaacute a falar das guerras civis e religiosas do seacuteculo XVI Citando o famoso historiador francecircs M de Chacircteaubriand Laschamps na sua monumental obra Michel de Montaigne editada em 1855 afirma que estas guerras ldquoont dureacute trente-neuf ans elles ont engendre les massacres de la Saint Bartheacutelemy verseacute le sang de plus de deux millions de Franccedilais et deacutevoreacute plus de trois milliards de notre monnaie actuelle Elles ont produit la saisie et la vente des biens de lrsquoEacuteglise et des particulieres frappeacute deux rois de mort violente Henri III et Henri IV et commenceacute le procegraves criminal du premier de ces deux roisrdquo (cf Laschamps F Bigorie de Michel de Montaigne Paris Libraire Editeur 1855 p 108) 59 Les Essais II 12 p 443 60 Les Essais II 12 p 444

25

pode ser usada para servir os propoacutesitos do oacutedio da crueldade da ambiccedilatildeo da rebeliatildeo

etc61

Embora natildeo seja teoacutelogo62 Montaigne eacute um pensador que procura respeitar

profundamente a missatildeo da teologia Mas importa salientar que esta missatildeo deve ser

entendida simplesmente como uma praacutetica de piedade e natildeo como uma racionalizaccedilatildeo e

sistematizaccedilatildeo das verdades reveladas pela feacute Neste sentido haacute uma enorme distacircncia

entre o autor dos Essais e os escolaacutesticos Para Montaigne a teologia eacute concebida como

uma espeacutecie de exerciacutecio espiritual dos cristatildeos sobretudo dos teoacutelogos atraveacutes da

razatildeo humana Exerciacutecio este que carece do poder de alcanccedilar a verdade

ldquo[A] Il en faut faire de mesme et accompaigner nostre foy de toute la raison qui est en nous mais tousjours avec cette reservation de nestimer pas que ce soit de nous quelle deacutepende ny que nos efforts et arguments puissent atteindre agrave une si supernaturelle et divine sciencerdquo 63

Para Montaigne as explicaccedilotildees (racionalizaccedilotildees) das verdades da religiatildeo

devem ser as pregaccedilotildees piedosas nos actos de culto por exemplo E esta eacute a tarefa

fundamental da qual a teologia deve ocupar-se Aleacutem disto Montaigne que eacute um

observador subtil e cuidadoso propotildee certas distinccedilotildees Vejamos o que Friedrich tem a

dizer sobre esta questatildeo

ldquo[hellip] sait bien entendu distinguer la vraie pieacuteteacute de la fausse Il bracircme ainsi les priegraveres meacutecaniques la malhonnecircteteacute des gens qui se signent au son de la cloche sans pour autant renoncer agrave la haine agrave lrsquoavarice agrave lrsquoinjustice comme si leur principe eacutetait aux vices leur heure son heure agrave Dieurdquo64

Desta perspectiva segundo Montaigne a religiatildeo deve ser entre outras coisas

como uma praacutetica da verdadeira piedade que se preocupa em instaurar no coraccedilatildeo do

homem o desejo de viver o amor a justiccedila etc renunciando a tudo aquilo que eacute mal e

que impede a realizaccedilatildeo da felicidade do homem no aqui e no agora Eacute por isto que natildeo

acredita numa religiatildeo que vive a prometer constantemente bens eternos que viratildeo a

tornar-se realidade num outro mundo diverso e posterior a este que conhecemos Para

exemplificar esta sua abordagem Montaigne refere na ldquoApologierdquo o filoacutesofo Antiacutestenes

Quando o iniciavam no misteacuterio de Orfeu dizendo-lhe o sacerdote que aqueles que se

devotavam a tal religiatildeo iam receber bens eternos e perfeitos apoacutes a morte aquele

61 Cf Les Essais II 12 p 444 62 Ver nota 43 63 Les Essais II 12 p 441 64 Friedrich op cit p 122

26

perguntou-lhe ldquose acreditas nisso por que entatildeo natildeo morres tu mesmordquo65 Eis um outro

exemplo que vale a pena citar

ldquo[C] Diogenes plus brusquement selon sa mode et hors de nostre propos au prestre qui le preschoit de mesme de se faire de son ordre pour parvenir aux biens de lautre monde Veux tu pas que je croye quAgesilauumls et Epaminondas si grands hommes seront miserables et que toy qui nes quun veau seras bien heureux par ce que tu es prestre rdquo66

Segundo Montaigne se acolhecircssemos essas grandes promessas de felicidades

eternas e supremas com a mesma autoridade com que acolhemos uma opiniatildeo

filosoacutefica natildeo teriacuteamos o horror agrave morte que temos

ldquo[A] Je veuil estre dissout dirions nous et estre aveques Jesus-Christrdquo67

Ao afirmar que

ldquo[A] La force du discours de Platon de lrsquoimmortaliteacute de lrsquoame poussa bien aucuns de ses disciples agrave la mort pour joiumlr plus promptement des esperances qursquoil leur donnoit [hellip]68

O autor da ldquoApologierdquo quer destacar a fragilidade da razatildeo que utiliza meios

puramente humanos para explicar ldquorealidadesrdquo que transcendem a vida concreta

Vejamos uma passagem em que o autor expressa nitidamente estas ideias

ldquo[A] Tout cela cest un signe tres-evident que nous ne recevons nostre religion quagrave nostre faccedilon et par nos mains et non autrement que comme les autres religions se reccediloyvent Nous nous sommes rencontrez au paiumls ou elle estoit en usage ougrave nous regardons son ancienneteacute ou lauthoriteacute des hommes qui lont maintenue ou creignons les menaces quellrsquoattache aux mescreans ou suyvons ses promesses Ces considerations lagrave doivent estre employeacutees agrave nostre creance mais comme subsidiaires ce sont liaisons humaines Une autre region dautres tesmoings pareilles promesses et menasses nous pourroyent imprimer par mesme voye une croyance contrairerdquo69

Apesar de ser catoacutelico parece sugerir na ldquoApologierdquo uma certa atitude de

indiferenccedila relativamente a toda e qualquer profissatildeo de feacute ou seja uma espeacutecie de

distanciamento no que diz respeito agraves diversas convicccedilotildees religiosas Montaigne chega

quase a reduzir a proacutepria crenccedila a uma questatildeo de costume a um acaso geograacutefico

65 Cf Les Essais II 12 p 444 66 Les Essais II 12 p 444 67 Les Essais II 12 p 445 68 Les Essais II 12 p 445 69 Les Essais II 12 p 445

27

[B] Nous sommes Chrestiens agrave mesme titre que nous sommes ou Perigordins ou Alemansrdquo70

Fazendo uma criacutetica aos diversos raciociacutenios que foram usados na histoacuteria do

pensamento filosoacutefico com o objectivo de argumentar de que forma o homem tem

acesso agrave religiatildeo Montaigne afirma que Platatildeo e os seus exemplos querem levar-nos a

concluir que somos conduzidos agrave crenccedila em Deus ou por amor ou por forccedila A sua

rejeiccedilatildeo dos argumentos da filosofia expressa-se de uma forma muito incisiva

ldquo[C] LAtheisme estant une proposition comme desnatureacutee et monstrueuse difficile aussi et malaiseacutee destablir en lesprit humain pour insolent et desregleacute quil puisse estre il sen est veu assez par vaniteacute et par fierteacute de concevoir des opinions non vulgaires et reformatrices du monde en affecter la profession par contenance qui sils sont asses fols ne sont pas assez forts pour lavoir planteacutee en leur conscience pourtantrdquo71

Aleacutem de apontar os limites das crenccedilas consideradas pagatildes bem como os

enganos de Platatildeo relativos aos motivos que levam o homem agrave praacutetica da religiatildeo

Montaigne critica um outro engano similar e importante de Platatildeo

ldquo[B] Lerreur du paganisme et lignorance de nostre sainte veriteacute laissa tomber cette grande ame de Platon (mais grande dhumaine grandeur seulement) encores en cet autre voisin abus que les enfans et les vieillars se trouvent plus susceptibles de religion comme si elle naissoit et tiroit son credit de nostre imbecilliteacuterdquo72

Segundo Montaigne a religiatildeo natildeo pode ser construiacuteda sobre o alicerce da razatildeo

humana como vimos Nem tampouco pode ser fundada nos argumentos platoacutenicos

acabados de referir Estes satildeo todos muito fraacutegeis A religiatildeo encontra as suas bases

verdadeiras na feacute A perspectiva proacutepria da filosofia supotildee um ateiacutesmo de meacutetodo como

observa Conche Caso contraacuterio ela jaacute natildeo seria filosofia ldquomais theacuteologie ou ideacuteologie

A qui est ainsi priveacute du secours de la gracircce divine Dieu est inconnaissablerdquo73

Montaigne recusa o ateiacutesmo de uma forma muito clara inclusive aquele conceituado

por Platatildeo

ldquo[A] Et ce que dit Plato74 quil est peu dhommes si fermes en latheisme quun dangier pressant ne ramene agrave la recognoissance de la divine puissance ce rolle ne touche point un vray Chrestien Cest agrave faire aux

70 Les essais II 12 p 445 71 Les Essais II 12 p 446 72 Les Essais II 12 p 446 73 Conche 1996 op cit p131 74 Tudo leva a crer que Montaigne se estaacute a referir a Platatildeo Preferimos conservar a mesma grafia da ediccedilatildeo dos Essais que estaacute a ser utilizada neste trabalho

28

religions mortelles et humaines destre receueumls par une humaine conduite Quelle foy doit ce estre que la laacutecheteacute et la foiblesse de coeur plantent en nous et establissent [C] Plaisante foy qui ne croid ce quelle croit que pour navoir le courage de le descroire Une vitieuse passion comme celle de linconstance et de lestonnement peut elle faire en nostre ame aucune production regleacutee75

Continuando a sua reflexatildeo no preacircmbulo da ldquoApologierdquo o autor ressalta qual eacute

a relaccedilatildeo fundamental que eacute necessaacuteria para estabelecer a uniatildeo do homem a Deus

partindo do caraacutecter superior da religiatildeo face ao ateiacutesmo Montaigne observa que o laccedilo

que deveria atar o nosso juiacutezo e a nossa vontade que deveria cingir a nossa alma e uni-

la ao criador

ldquo[A] ce devroit estre un neud prenant ses repliz et ses forces non pas de nos considerations de noz raisons et passions mais dune estreinte divine et supernaturelle nayant quune forme un visage et un lustre qui est lauthoriteacute de Dieu et sa grace Or nostre coeur et nostre ame estant regie et commandeacutee par la foy cest raison quelle tire au service de son dessain toutes noz autres pieces selon leur porteacuteerdquo76

Montaigne ao indicar como devemos manejar os instrumentos naturais e

humanos ou seja como devemos aplicar a razatildeo agrave nossa feacute afirma que Deus deixou nas

suas obras o cunho de sua divindade e deve-se apenas agrave nossa fraqueza que natildeo o

possamos perceber E afirma com admiraccedilatildeo que Sebond se empenhou neste digno

estudo

ldquo[A] Or nos raisons et nos discours humains cest comme la matiere lourde et sterile la grace de Dieu en est la formerdquo77

As acccedilotildees humanas permanecem inuacuteteis e vatildes se natildeo tecircm em conta o amor e a

obediecircncia a Deus

ldquo[A] ainsin est-il de nos imaginations et discours ils ont quelque corps mais une masse informe sans faccedilon et sans jour si la foy et grace de Dieu ny sont joinctesrdquo78

Quanto aos segundos opositores de Sebond ndash ou seja os que dizem que seus

argumentos satildeo fracos e inadequados para demonstrar o que ele pretende e por isso

dispotildeem-se a atacaacute-los facilmente ndash Montaigne vai rejeitar os argumentos por eles

apresentados nos quais se subestima a importacircncia da feacute A rejeiccedilatildeo dos argumentos

desta segunda categoria ocupa maior espaccedilo porque ldquo[A] Il faut secouer ceux cy un peu

75 Les Essais II 12 p 445 76 Les Essais II 12 p 446 77 Les Essais II 12 p 447 78 Les Essais II 12 p 447

29

plus rudement car ils sont plus dangereux et plus malitieux que les premiersrdquo79 Estes

ldquoracionalistasrdquo consideram que a razatildeo humana eacute auto-suficiente para conhecer

qualquer coisa e desprezam a feacute considerando-a como algo inuacutetil para um saacutebio

ldquo Le moyen que je prens pour rabatre cette frenaisie et qui me semble le plus propre crsquoest de froisser et fouler aux pieds lrsquoorgueil et humaine fierteacute leur faire sentir lrsquoinaniteacute la vaniteacute et deneantise de lrsquohomme leur arracher des points les chetives armes de leur raison leur faire baisser la teste et mordre la terre soubs lrsquoauthoriteacute et reverence de la majesteacute divine Crsquoest agrave elle seule qursquoapartient la science et la sapience elle seule qui peut estimer de soy quelque chose et agrave qui nous desrobons ce que nous nous contons et ce que nous nous prisons Ού γὰρ ἐᾱ φρονεῑν ὁ Θεὸϛ μέγα ἄλλον ἢ ἑαυτόν [ldquoCar Dieu ne permet pas qursquoun autre que Lui srsquoenorgueillisserdquo (Heacuterodote VII x)]rdquo80

Ao analisar as duas objecccedilotildees agrave Teologia natural de Sebond Montaigne tem

como principal finalidade - aleacutem do desenvolvimento do seu fideiacutesmo que potildee em

causa que a filosofia seja um meio para se chegar a Deus - destronar o homem do seu

pedestal como ldquosenhorrdquo entre todas as criaturas como vimos no primeiro capiacutetulo deste

trabalho Agrave luz destas objecccedilotildees se desenvolve tambeacutem em todo o texto da ldquoApologierdquo

uma grande quantidade de criacuteticas aos detractores do teoacutelogo catalatildeo que na verdade

mais natildeo eacute do que uma contestaccedilatildeo de Montaigne de tudo aquilo que faz do homem um

ser cheio de orgulho e de vaidade Montaigne chega agrave conclusatildeo que a razatildeo humana

natildeo pode conhecer os atributos de Deus A razatildeo natildeo tem condiccedilotildees para emitir juiacutezos

crediacuteveis a respeito destes atributos Ela natildeo estaacute revestida de um poder que lhe garanta

a elaboraccedilatildeo de raciociacutenios crediacuteveis acerca de Deus e das verdades da religiatildeo

Montaigne apresenta um resumo das principais ideias acerca de Deus que foram

surgindo na histoacuteria do pensamento filosoacutefico antigo e afirma que tudo isto natildeo passa de

uma balbuacuterdia (ldquotintamarrerdquo) de muitos ceacuterebros filosoacuteficos81

ldquo[C] Thales [hellip] estima Dieu un esprit qui fit deau toutes choses Anaximander que les Dieux estoyent des mourans et naissans agrave diverses saisons et que crsquoestoyent des mondes infinis en nombre Anaximenes que lair estoit Dieu [hellip] Anaxagoras le premier a tenu la description et maniere de toutes choses estre conduite par la force et raison dun esprit infini Alcmaeligon a donneacute la diviniteacute au soleil agrave la lune aux astres et agrave lame[hellip] Empedocles disoit estre des Dieux les quatre natures desquelles toutes choses sont faictes [hellip] Platon dissipe sa creance agrave divers visages Il dict au Timaeacutee le pere du monde ne se pouvoir

79 Les Essais II 12 p 448 80 Les Essais II 12 p 448 81 Cf Les Essais II 12 p 516

30

nommer aux loix quil ne se faut enquerir de son estre et ailleurs en ces mesmes livres il faict le monde le ciel les astres la terre et nos ames Dieux et reccediloit en outre ceux qui ont esteacute receuz par lancienne institution en chasque republique Xenophon rapporte un pareil trouble de la discipline de Socrates tantost quil ne se faut enquerir de la forme de Dieu et puis il luy faict establir que le Soleil est Dieu et lame Dieu quil ny en a quun et puis quil y en a plusieurs[hellip] Aristote asture que cest lesprit asture le monde asture il donne un autre maistre agrave ce monde et asture faict Dieu lardeur du ciel [hellip] Heraclides Ponticus ne fait que vaguer entre les advis et en fin prive Dieu de sentiment et le faict remuant de forme agrave autre et puis dict que cest le ciel et la terre[hellip] Zeno la loy naturelle commandant le bien et prohibant le mal laquelle loy est un animant et oste les Dieux accoustumez Jupiter Juno Vesta Diogenes Apolloniates que cest laage [hellip] Cleanthes tantost la raison tantost le monde tantost lame de Nature tantost la chaleur supreme entournant et envelopant tout [hellip] Chrysippus faisoit un amas confus de toutes les precedentes sentences et comptoit entre mille formes de Dieux quil faict les hommes aussi qui sont immortalisez Diagoras et Theodorus nioyent tout sec quil y eust des Dieux Epicurus faict les Dieux luisans transparens et perflables logez comme entre deux forts entre deux mondes agrave couvert des coups revestus dune humaine figure et de nos membres lesquels membres leur sont de nul usagerdquo82

Esta longa citaccedilatildeo da ldquoApologierdquo apresenta-nos a enorme quantidade de

teorizaccedilotildees que tecircm como base a razatildeo humana e que satildeo bastante diacutespares no tocante

agraves crenccedilas Isto potildee em evidecircncia que Montaigne natildeo acredita que o homem tenha

condiccedilotildees para compreender ou apresentar algo crediacutevel acerca de Deus Por isto o

homem exagera na sua criatividade intelectual ao inventar inuacutemeros atributos divinos

que frequentemente se assemelham aos seus proacuteprios atributos Em seu entender Deus

eacute absolutamente incompreensiacutevel Na leitura que de Montaigne faz Leveaux

ldquoLrsquoideacutee de Dieu existe chez lrsquohomme mais au delagrave de cette ideacutee simple drsquoune uniteacute absolue tout devient doute et confusion Alors se preacutesent des questions sans nombre auxquelles il est impossible de reacutepondre Crsquoest lagrave si je ne me trompe le ldquoque sais-jerdquordquo83

Montaigne afirma que haacute uma grande inconstacircncia variedade e mobilidade de

ideias acerca de Deus nas almas excelentes e admiraacuteveis dos filoacutesofos Mas classifica o

empenho destes como vatildeo pelo facto de quererem adivinhar Deus por meio das nossas

analogias e conjecturas Por natildeo podermos estender a vista ateacute ao seu trono glorioso

procuramos trazecirc-lo aqui para baixo para a nossa corrupccedilatildeo e miseacuteria Soacute a feacute tem

82 Les Essais II 12 pp 514-516 83 Leveaux Alphonse Eacutetude sur les Essais de Montaigne Paris Henri Plon Imprimeur-Eacutediteur 1870 p 213

31

condiccedilotildees de entender os misteacuterios da religiatildeo Sem ela os nossos esforccedilos de

demonstraccedilatildeo destes misteacuterios permanecem vazios e esteacutereis

ldquo[A] La participation que nous avons agrave la connoissance de la veriteacute quelle quelle soit ce nest pas par nos propres forces que nous lavons acquise Dieu nous a assez appris cela par les tesmoins quil a choisi du vulgaire simples et ignorans pour nous instruire de ses admirables secrets nostre foy ce nest pas nostre acquest cest un pur present de la liberaliteacute dautruy Ce nest pas par discours ou par nostre entendement que nous avons receu nostre religion cest par authoriteacute et par commandement estranger La foiblesse de nostre jugement nous y ayde plus que la force et nostre aveuglement plus que nostre cler-voyance Cest par lentremise de nostre ignorance plus que de nostre science que nous sommes sccedilavans de divin sccedilavoirrdquo84

Para o autor da ldquoApologierdquo o homem por si soacute eacute absolutamente impotente para

chegar a certezas acerca das questotildees relacionadas com a feacute Nesta perspectiva o autor

observa tambeacutem que natildeo eacute possiacutevel fazer afirmaccedilotildees seguras tendo como base a razatildeo

Por exemplo acerca da imortalidade da alma tema desde sempre muito caro agrave filosofia

os cristatildeos devem unicamente a Deus e ao benefiacutecio de sua graccedila a verdade de uma

crenccedila tatildeo nobre pois eacute apenas da sua liberalidade que o cristatildeo recebe o fruto da

imortalidade o qual lembra o autor consiste no gozo da beatitude eterna A razatildeo natildeo

consegue fazer nenhuma afirmaccedilatildeo crediacutevel sobre este tema Ela eacute incapaz uma vez que

a imortalidade eacute um ldquodadordquo da revelaccedilatildeo

ldquo[C] Confessons ingenuement que Dieu seul nous lrsquoa dict et la foy car leccedilon nrsquoest ce pas de nature et de nostre raisonrdquo85

Montaigne assumindo uma posiccedilatildeo fideiacutesta depois de ter feito o exame das

diversas opiniotildees sobre a alma86 faz um ldquoapelo agrave passividade da razatildeo e agrave aceitaccedilatildeo da

verdade religiosa sem tentar compreendecirc-la ldquoimortalidaderdquo eacute como ldquoDeusrdquo uma

palavra que natildeo pode ser preenchida A imortalidade afirmada pela feacute natildeo poderaacute ser

explorada por nenhuma forma de discurso humanordquo87

Esta atitude fideiacutesta e conservadora em termos religiosos deve-se em grande

parte agrave desilusatildeo de Montaigne face aos inuacutemeros sistemas filosoacuteficos que tentavam

84 Les Essais II 12 p 500 85 Les Essais II 12 p 554 86 Na ldquoApologierdquo haacute uma quantidade significativa de paacuteginas nas quais o autor expressa muitas opiniotildees sobre o tema da alma (cf Les Essais pp 542-547) 87 Birchal Telma de Souza O Eu nos Ensaios de Montaigne Belo Horizonte Editora UFMG 2007 pp 64-65

32

encontrar explicaccedilotildees racionais para todas as questotildees da vida inclusivamente para

aquelas que transcendem a vida real

ldquo[A] Car quelque apparence quil y ayt en la nouvelleteacute je ne change pas aiseacutement de peur que jay de perdre au change Et puis que je ne suis pas capable de choisir je pren le chois dautruy et me tien en lassiette ougrave Dieu ma mis Autrement je ne me sccedilauroy garder de rouler sans cesse Ainsi me suis-je par la grace de Dieu conserveacute entier sans agitation et trouble de conscience aux anciennes creances de nostre religion au travers de tant de sectes et de divisions que nostre siecle a produittesrdquo88

Segundo Leveaux Montaigne sintetiza seu pensamento em mateacuteria religiosa89

da seguinte maneira

ldquo[A] De toutes les opinions humaines et anciennes touchant la religion celle lagrave me semble avoir eu plus de vray-semblance et plus dexcuse qui recognoissoit Dieu comme une puissance incomprehensible origine et conservatrice de toutes choses toute bonteacute toute perfection recevant et prenant en bonne part lhonneur et la reverence que les humains luy rendoient soubs quelque visage sous quelque nom et en quelque maniere que ce fut [hellip]rdquo90

Haacute que reconhecer no entanto que eacute algo difiacutecil e delicado tirar grandes

conclusotildees acerca da religiatildeo embora o tema perpasse toda a ldquoApologie rdquo Montaigne

concebia a religiatildeo como um conjunto de praacuteticas e leis que tinham como finalidade

contribuir para que o homem natildeo agisse como um escravo da vaidade da razatildeo As

uacuteltimas palavras da ldquoApologierdquo onde o autor cita Plutarco pretendem servir como uma

espeacutecie de conclusatildeo de toda a reflexatildeo deste capiacutetulo Deixemos o proacuteprio Montaigne

falar

ldquo[A] Mais quest-ce donc qui est veritablement Ce qui est eternel cest agrave dire qui na jamais eu de naissance ny naura jamais fin agrave qui le temps napporte jamais aucune mutation Car cest chose mobile que le temps et qui apparoit comme en ombre avec la matiere coulante et fluante tousjours sans jamais demeurer stable ny permanenterdquo91

Contestando a atitude humana de querer elevar-se acima da humanidade que

pode ser tambeacutem entendida como um desejo absurdo de um ser despreziacutevel que tem a

88 Les Essais II 12 p 569 89 Cf Leveaux op cit p 213 90 Les Essais II 12 p 513 91 Les Essais II 12 p 603

33

presunccedilatildeo como doenccedila natural e original e que eacute a mais calamitosa de todas as

criaturas e ao mesmo tempo a mais orgulhosa92 Montaigne afirma

ldquo[A] O la vile chose dit-il et abjecte que lhomme sil ne sesleve au dessus de lhumaniteacute [C] Voila un bon mot et un utile desir mais pareillement absurde Car [A] de faire la poigneacutee plus grande que le poing la brasseacutee plus grande que le bras et desperer enjamber plus que de lestandueuml de nos jambes cela est impossible et monstrueux Ny que lhomme se monte au dessus de soy et de lhumaniteacute car il ne peut voir que de ses yeux ny saisir que de ses prises Il seslevera si Dieu lui preste extraordinairement la main Il seslevera abandonnant et renonccedilant agrave ses propres moyens et se laissant hausser et soubslever par les moyens purement celestesrdquo93

Montaigne termina a ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo colocando o homem no

seu devido lugar e afirmando que soacute atraveacutes do auxiacutelio de Deus e com a graccedila da feacute

cristatilde eacute que este ser tatildeo vaidoso poderaacute elevar-se acima da humanidade

ldquo[C] Cest agrave nostre foy Chrestienne non agrave sa vertu Stoique de pretendre agrave cette divine et miraculeuse metamorphoserdquo94

92 Cf nota 12 93 Les Essais II 12 p 604 94 Les Essais II 12 p 604

34

3 A criacutetica agrave razatildeo humana e sua relaccedilatildeo com a ciecircncia

Uma observaccedilatildeo que eacute importante destacar no iniacutecio deste capiacutetulo refere-se agrave

concepccedilatildeo montaigneana de ldquociecircnciardquo que se encontra na ldquoApologie de Raymond

Sebondrdquo Quando Montaigne na sua criacutetica radical agrave razatildeo humana se refere agrave ciecircncia

o que subjaz agraves suas reflexotildees natildeo eacute a concepccedilatildeo moderna de ciecircncia Ele natildeo alude ao

chamado ldquomeacutetodo cientiacutefico experimentalrdquo ateacute porque este meacutetodo ainda natildeo existia O

termo ldquociecircnciardquo natildeo tem o sentido que adquiriu depois da chamada Revoluccedilatildeo

Cientiacutefica do seacuteculo XVII Assim com o termo ciecircncia Montaigne refere-se ao conjunto

do conhecimento erudito de seu tempo

ldquoLa science du XVIᵉ siegravecle nrsquoest que philosophie Elle srsquoarrecircte aux mots jamais elle ne peacutenegravetre au fond des choses et ne suscite un effort critiquerdquo95

Sendo um pensador da uacuteltima fase do periacuteodo renascentista periacuteodo este em que

natildeo havia nenhuma diferenccedila essencial entre a filosofia e a ciecircncia Montaigne procura

expressar as suas ideias os seus ideais de sabedoria como tantos outros faziam isto eacute

quando se refere agrave ciecircncia estaacute a referir-se aos doutos e aos filoacutesofos em geral

Logo no iniacutecio da ldquoApologierdquo Montaigne faz questatildeo de afirmar que a ciecircncia eacute

algo muito uacutetil e grande e os que a menosprezam datildeo prova bastante de estupidez Sem

desprezar agrave partida todo o esforccedilo que muitos fazem para chegar a alcanccedilar o

conhecimento Montaigne por outro lado natildeo chega a estimar tanto a ciecircncia

ldquo[A] Comme Herillus le philosophe qui logeoit en elle le souverain bien et tenoit qursquoil fut en elle de nous rendre sages et contensrdquo96

Montaigne natildeo crecirc nisto nem tampouco no que outros disseram

ldquo[A] que la science est mere de toute vertu et que tout vice este produit par lrsquoignorancerdquo97

Segundo ele mesmo atesta a sua casa esteve habitualmente aberta agraves pessoas de

saber e o seu pai buscou com grande cuidado e despesa o conviacutevio dos homens doutos

ldquo[A] les recevant chez luy comme personnes sainctes et ayans quelque particuliere inspiration de sagesse divine [hellip]rdquo98

95 Villey opcit p 214 96 Les Essais II 12 p 438 97 Les Essais II 12 p 438 98 Les Essais II 12 pp 438-439

35

Embora respirando toda uma atmosfera intelectual que havia em sua casa

Montaigne afirma no entanto que gostava muito destes doutos frequentadores de sua

casa mas natildeo os adorava

Desde as primeiras afirmaccedilotildees de Montaigne na ldquoApologierdquo eacute possiacutevel perceber

ateacute que ponto ele tem dificuldade em aceitar os chamados filoacutesofos de profissatildeo Neste

famoso texto que eacute considerado por Villey ldquole reacutesumeacute du travail logique qui srsquoopegravere

chez Montaigne entre 1573 et 1579 ou 1580rdquo99 podemos encontrar paradoxalmente

por um lado uma valorizaccedilatildeo da razatildeo enquanto uacutenico modo de investigaccedilatildeo dos

doutos e por outro lado que a razatildeo eacute considerada como algo profundamente limitado

enquanto instrumento de acesso ao conhecimento

Montaigne dedica muitas paacuteginas a demonstrar que a ciecircncia fundada na razatildeo

eacute viacutetima da vaidade humana e deve ser contestada Isto pelo facto de que concebe a

ciecircncia como o esforccedilo que deve ser uacutetil agrave nossa felicidade

ldquo[A] la philosophie me doit mettre les armes agrave la main pour combatre la fortune qui me doit roidir le courrage pour fouler aux pieds toutes les advertitez humaines [hellip]rdquo100

O objectivo primeiro da filosofia eacute portanto a vida concreta A atitude vaidosa

da razatildeo na busca do conhecimento causa no homem

ldquo[A] lrsquoinconstance lrsquoirresolution lrsquoincertitude le deuil la superstition la solitude de choses agrave venir voire apres nostre vie lrsquoambition lrsquoavarice la jalousie lrsquoenvie les appetits desreglez foncenez et indomptables la guerre la mensonge la desloyauteacute la detraction et la curiositeacuterdquo101

Segundo Montaigne pagamos um preccedilo elevadiacutessimo por essa bela razatildeo de que

nos gloriamos e por conseguinte tambeacutem pela capacidade de julgar e conhecer

sobretudo se forem adquiridas agrave custa destas paixotildees

Montaigne natildeo vecirc muita necessidade praacutetica de querer mergulhar nos altos

conhecimentos em que a filosofia estaacute imersa Para que serve o conhecimento (fruto da

razatildeo enganadora) de muitas coisas Expressando a sua criacutetica agrave loacutegica aristoteacutelica

afirma ironicamente

ldquo[A] ont-ils tireacute de la Logique quelques consolation agrave la gouterdquo102

99 Villey op cit p 182 100 Les Essais II 12 p 494 101 Les Essais II 12 p 486 102 Les Essais II 12 p 487

36

Prosseguindo no mesmo registo iroacutenico pergunta se acaso se descobriu que a

voluptuosidade e a sauacutede satildeo mais deleitosas para quem conhece a astronomia e a

gramaacutetica e menos importunas agrave desonra e a pobreza103

Montaigne revela um significativo desprezo pelos filoacutesofos que satildeo escravos da

razatildeo e buscam tudo saber e fazer afirmaccedilotildees sobre todas as coisas Ao mesmo tempo

manifesta uma forte tendecircncia para valorizar o homem simples e ignorante

ldquo[A] Jrsquoay veu en mon temps cent artisans cent laboureurs plus sages et plus heureux que des recteurs de lrsquouniversiteacute et lesquels jrsquoaimerois mieux ressemblerrdquo104

Na sua apologia da ignoracircncia declara que o homem tem como quinhatildeo a

presunccedilatildeo e que a ignoracircncia nos eacute recomendada ateacute pela religiatildeo cristatildeldquo[A] La peste

de lrsquohomme crsquoest lrsquoopinion de sccedilavoirrdquo105

Para Montaigne eacute necessaacuterio derrubar a tola vaidade e sacudir de uma maneira

viva e corajosa os fundamentos ridiacuteculos sobre os quais se fundam as falsas ideias

Insiste continuamente no facto de que natildeo necessitamos do saber produzido pela

filosofia

ldquo[A] Crsquoestoit ce que disoit un senateur Romain des derniers siecles que leurs predecesseurs avoient lrsquoaleine puante agrave lrsquoair et lrsquoestomac musqueacute de bonne conscience et qursquoau rebours ceux de son temps se sentoient au dehors que le parfum puans au dedans toutes sorte de vices crsquoest agrave dire comme je pense qursquoils avoient beaucoup de sccedilavoir et de suffisance et grand faute de preudrsquohommierdquo106

O orgulho humano eacute visto pelo autor como algo que atrapalha fortemente na

busca natildeo do conhecimento filosoacutefico claacutessico mas da sabedoria Soacutecrates eacute

referenciado na ldquoApologierdquo entre outras coisas como um grande saacutebio107 Natildeo porque

ldquo[C] le Dieu de sagesse luy avoit attibueacute le surnom de sagerdquo108 mas porque ele mesmo

natildeo se considerava saacutebio e porque a sua melhor ciecircncia era a ciecircncia da ignoracircncia e a

sua melhor sabedoria a simplicidade de espiacuterito

103Cf Les Essais II 12 p 487 104 Les Essais II 12 p 487 105 Les Essais II 12 p 488 106 Les Essais II 12 p 498 107 Podemos encontrar uma quantidade significativa de estudos acerca da figura de Soacutecrates nos Ensaios Destacamos aqui um artigo escrito por Celso Martins Azar Filho cujo tiacutetulo eacute Montaigne e Soacutecrates cepticismo conhecimento e virtuderdquo que estaacute publicado na Revista Portuguesa de Filosofia Tomo LVIII do ano de 2002 Fasc 4 (pp 829-845) Com o seu artigo o autor propotildee-se examinar qual o lugar e a importacircncia deste filoacutesofo no pensamento de Montaigne 108 Les Essais II 12 p 498

37

O verdadeiro saacutebio segundo Montaigne eacute o homem que aprende que natildeo

aprendeu nada Refere-se a isto de uma maneira muito elucidativa

ldquo[A]Il est adnevenu aux gens veacuteritablement sccedilavans ce qui advient aux espics de bled ils vont srsquoeslevant et se haussant la teste droite et fiere tant qursquoil sont vuides mais quand ils sont pleins et grossis de grain en leur maturiteacute ils commencent agrave srsquohumilier et agrave baisser les cornes Pareillement les hommes ayant tout essayeacute et tout sondeacute nrsquoayant trouveacute en cet amas de science et provision de tant de choses diverses rien de massif et ferme et rien que vaniteacute ils ont renonceacute agrave leur presomption et reconneu leur condition naturellerdquo109

Depois de descrever sinteticamente os atributos do saacutebio Montaigne -

considerado como um pensador que popularizou o pirronismo praticando-o

pessoalmente sobretudo na ldquoApologierdquo - afirma que toda a filosofia estaacute distribuiacuteda por

trecircs geacuteneros A sua principal fonte eacute a ediccedilatildeo das obras de Sexto Empiacuterico que surge em

1569 Montaigne enumera estas trecircs filosofias da seguinte maneira haacute os dogmaacuteticos

os acadeacutemicos e os pirroacutenicos110 Os dogmaacuteticos afirmam que se pode ter acesso agrave

ciecircncia os acadeacutemicos natildeo estatildeo de acordo com os dogmaacuteticos isto eacute consideram que

natildeo se pode ter acesso agrave ciecircncia e os pirroacutenicos estatildeo ainda em busca da verdade Estes

declaram que os que pensam havecirc-la encontrado se enganam infinitamente Segundo

Montaigne os pirroacutenicos tecircm como ofiacutecio

ldquo[A] branler douter et enquerir ne srsquoasseurer de rien de rien ne se respondrerdquo111

Esta atitude condu-los segundo Montaigne agrave ataraxia que eacute uma condiccedilatildeo de

vida tranquila sossegada isenta das agitaccedilotildees que recebemos pela impressatildeo da opiniatildeo

e ciecircncia que julgamos ter das coisas Esta indiferenccedila pela ciecircncia liberta os pirroacutenicos

inclusivamente do espiacuterito de rivalidade quanto agrave sua doutrina debatem de maneira bem

pouco vigorosa Quando dizem que o pesado vai para baixo ficariam bastante

aborrecidos se acreditassem neles Sendo assim os pirroacutenicos segundo Montaigne

procuram que os contradigam para gerar ldquo[A] la dubitation et surceance (suspension)

de jugement qui est leur finrdquo112

Os pirroacutenicos satildeo partidaacuterios da duacutevida extrema Expotildeem as suas opiniotildees

apenas para combater aquelas em que pensam que acreditamos Diz Montaigne

109 Les Essais II 12 p 500 110 Les Essais II 12 p 502 111 Les Essais II 12 p 502 112 Les Essais II 12 p 503

38

ldquo[A] Si vous prenez la leur ils prendront aussi volontiers i la contraire agrave soutenir tout leur est un ils nrsquoy ont aucun chois Si vous establissez que la nege soit noire ils augumentent au rebours qursquoelle est blanche Si vous dites qursquoelle nrsquoest ny lrsquoun ny lrsquoautre crsquoest agrave eux agrave maintenir qursquoelle est tous les deux Si par certain jugement vous tenez que vous nrsquoen sccedilavez rien ils vous maintiedront que vous ne sccedilavez Oui et si par un axiome affirmatif vous asseurez que vous en doutez ils vous iront debattant que vous nrsquoen doutez pas ou que vous ne pouvez juger et etablir que vous en doutez Et par cette extremiteacute de doubte qui se secoue soy-mesme ils se separent et se divisent de plusieurs opinions de celles mesme qui ont maintenu en plusieurs faccedilons le double et lrsquoignorancerdquo113

[hellip] Leurs faccedilon de parler sont Je nrsquoestablis rien il nrsquoest non plus ainsi qursquoainsi ou que ny lrsquoun ny lrsquoautre je ne le comprens point les apparences sont eacutegales par tout la loy de parler et pour et contre est pareille [C] Rien ne semble vray qui ne puisse sembler faux [A] Leur mot sacramental crsquoest ἐπέχω crsquoest agrave dire je soutiens je ne bougerdquo114

Os pirroacutenicos servem-se de sua razatildeo para inquirir e debater mas natildeo para

decidir e escolher

Um outro aspecto que leva Montaigne a identificar-se com o pirronismo a uacutenica

filosofia por ele respeitada eacute a visatildeo pirroacutenica relativamente agraves acccedilotildees da vida Os seus

defensores prestam-se e acomodam-se agraves inclinaccedilotildees naturais ao impulso e agrave imposiccedilatildeo

das paixotildees agraves decisotildees das leis e dos costumes

ldquo[A] Ils laissent guider agrave ces choses lagrave leurs actions communes sans aucune opination ou jugement115

Neste sentido Montaigne defende o pirronismo sobretudo por causa de sua

virtude moral116 Sustenta que eacute importante fomentar o juiacutezo livre ou a suspensatildeo do

juiacutezo que eacute a atitude dos pirroacutenicos Por outro lado natildeo pode concordar com a posiccedilatildeo

dos que aceitam a arbitraacuteria submissatildeo a algum tipo de autoridade ou opiniatildeo (os

dogmaacuteticos) Importa salientar no entanto que o autor da ldquoApologierdquo consegue

distanciar-se dos pirroacutenicos que se recusam a fazer qualquer juiacutezo Montaigne por ser

um pensador livre inclusive dos argumentos pirroacutenicos natildeo suspende os seus proacuteprios

113 Les Essais II 12 p 503 114 Les Essais II 12 p 505 115 Les Essais II 12 p 505 116 Para Montaigne o pirronismo natildeo eacute uma doutrina ou um sistema filosoacutefico do qual ele eacute adepto Eacute sobretudo uma atitude de espiacuterito ou uma tendecircncia do pensamento Ele tem consciecircncia da dificuldade que esta filosofia encontra para consolidar-se em termos de coerecircncia loacutegica Se do ponto de vista loacutegico natildeo haacute soluccedilatildeo permanente satisfatoacuteria para o pirronismo ele torna-se uma opccedilatildeo eacutetica na medida em que possibilita aos seus adeptos ldquo[B] de maintenir leur liberteacute et considerer les choses sans obligation et servituderdquo (Les Essais II 12 p 504)

39

juiacutezos Muito pelo contraacuterio emite muitos Exprime as suas opiniotildees sem cessar Chega

ateacute a afirmar que a razatildeo eacute

ldquo[A] sa pierre de touche agrave toutes sortes drsquoessais mais certes crsquoest une touche pleine de fauceteacute drsquoerreur de foiblesse et defaillancerdquo117

Na ldquoApologierdquo Montaigne recorre aos tropos (segundo a designaccedilatildeo de Sexto

Empiacuterico) tomando-os como os principais argumentos contra a filosofia denominada

dogmaacutetica Estes argumentos ceacutepticos tecircm por finalidade provar que eacute impossiacutevel

alcanccedilar a verdade Fundamentado nas reflexotildees pirroacutenicas natildeo considera a ciecircncia

como um verdadeiro conhecimento O saber humano eacute considerado sem efeito por causa

de todo o tipo de divergecircncias que haacute entre os homens

Haacute segundo Montaigne uma imensa e infinita confusatildeo de opiniotildees entre os

filoacutesofos e tudo isto deve-se ao debate perpeacutetuo e universal acerca do conhecimento das

coisas Eles natildeo estatildeo de acordo em nada nem sequer em que o ceacuteu estaacute por cima das

nossas cabeccedilas118 afirma ironicamente E isto deve-se agrave falta de constacircncia do juiacutezo

Quantas vezes julgamos noacutes as coisas Quantas vezes alteramos as nossas opiniotildees

Nesta perspectiva percebemos a atitude relativista de Montaigne

ldquo[A] Ce que je tiens aujourdhuy et ce que je croy je le tiens et le croy de toute ma croyance tous mes utils et tous mes ressorts empoignent cette opinion et men respondent sur tout ce quils peuvent Je me sccedilaurois embrasser aucune veriteacute ny conserver avec plus de force que je fay cette cy Jy suis tout entier jy suis voyrement mais ne mest il pas advenu non une foi mais cent mais mille et tous les jours davoir embrasseacute quelqursquoautre chose agrave tout ces mesmes instrumens en cette mesme condition que depuis jaye jugeacutee fauce Au moins faut il devenir sage agrave ses propres despansrdquo119

Montaigne natildeo pretende condenar a tendecircncia agrave mudanccedila perene que eacute

constitutiva do homem O que ele pretende eacute que o homem se comporte de uma forma

mais moderada e discreta em face das mudanccedilas Sugere que nos tornemos saacutebios agrave

nossa proacutepria custa120

117 Les Essais II 12 p 540 118 Cf Les Essais II 12 p 563 119 Les Essais II 12 p 563 120 Conche na sua obra de introduccedilatildeo aos Essais intitulada Montaigne ou la conscience heureuse apresenta uma reflexatildeo muito sugestiva relativamente ao tema da sabedoria Para este autor os Essais sugerem-nos que compreendamos a filosofia como uma aprendizagem da sabedoria e natildeo do saber Em seu entender Montaigne natildeo tem nenhum interesse em elaborar um sistema filosoacutefico porque isto supotildee que uma verdade permanece o que ela eacute Um sistema filosoacutefico crecirc que haacute verdades e que elas satildeo acessiacuteveis por evidecircncia ou seja que a certeza posta agrave prova eacute realmente uma certeza de direito Estes princiacutepios satildeo sem valor para Montaigne eleja que este natildeo crecirc na possibilidade de confirmar as nossas certezas (cf Conche 2009 op cit 65)

40

O arauto do juiacutezo eacute o homem concreto que vive uma vida real Natildeo eacute um ser

abstracto Por isso Montaigne afirma

ldquo[A] Ce ne sont pas seulement les fievres les breuvages et les grands accidens qui renversent nostre jugement les moindres choses du monde le tournevirent [hellip] et par conseacutequent agrave peine se peut il rencontrer une seule heure en la vie ougrave nostre jugement se trouve en sa deueuml assiette nostre corps estant subject agrave tant de continuelles mutations et estofeacute de tant de sortes de ressorts que ( jen croy les medecins) combien il est malaiseacute quil ny en ayt tousjours quelquun qui tire de traversrdquo121

Vejamos uma definiccedilatildeo da razatildeo na ldquoApologierdquo

ldquo[A] la raison va tousjours torte et boiteuse et deshancheacutee et avec le mensonge comme avec la veriteacute Par ainsin il est malaiseacute de descouvrir son mescompte et desreglement Jappelle tousjours raison cette apparence de discours que chacun forge en soy cette raison de la condition de laquelle il y en peut avoir cent contraires autour dun mesme subject cest un instrument de plomb et de cire alongeable ployable et accommodable agrave tous biais et agrave toutes mesures il ne reste que la suffisance de le sccedilavoir contournerrdquo122

Atraveacutes desta concepccedilatildeo de razatildeo fica suficientemente clara a criacutetica destruidora

de Montaigne agrave filosofia dogmaacutetica que considera a razatildeo como uma faculdade que

permite ao homem ndash entre tantas outras atribuiccedilotildees ndash conhecer e acumular um saber uacutetil

e julgar sobre o bem e o mal

Envolvendo-se de uma maneira muito pessoal ndash como eacute caracteriacutestico do estilo

literaacuterio dos Essais ndash nesta reflexatildeo sobre a razatildeo Montaigne toma a liberdade de fazer

uma pequena descriccedilatildeo de sua personalidade Vale a pena citar algumas destas

passagens porque satildeo um reflexo do pensamento do autor

ldquo[A] Jay le pied si instable et si mal assis je le trouve si ayseacute agrave crouler et si prest au branle et ma veueuml si desregleacutee que agrave jun je me sens autre quapres le repas si ma santeacute me rid et la clarteacute dun beau jour me voylagrave honneste homme si jay un cor qui me presse lorteil me voylagrave renfroigneacute mal plaisant et inaccessible [hellip] Maintenant je suis agrave tout faire maintenant agrave rien faire ce qui mest plaisir agrave cette heure me sera quelque fois peine [hellip] Ou lhumeur melancholique me tient ou la choleriqu [hellip]Quand je prens des livres jauray apperceu en tel passage des graces excelentes et qui auront feru mon ame quun autre fois jy retombe jay beau le tourner et virer jay beau le plier et le manier cest une masse inconnue et informe pour moy [hellip] [B] [hellip] mon jugement ne tire pas tousjours avant il flotte il vaguerdquo123

121 Les Essais II 12 pp 564-565 122 Les Essais II 12 p 565 123 Les Essais II 12 pp 565-566

41

Montaigne daacute-se claramente conta de que natildeo encontramos seguranccedila nos

nossos juiacutezos As nossas paixotildees apresentam uma enorme quantidade de fantasias

Sobre isto natildeo podemos alcanccedilar nenhuma seguranccedila porque nos deparamos com

coisas muito instaacuteveis e moacuteveis Sustenta aleacutem disso que se os nossos juiacutezos estatildeo nas

matildeos ateacute mesmo da doenccedila e da perturbaccedilatildeo natildeo podemos esperar deles nada seguro

Foi a partir desta consciecircncia de sua volubilidade que Montaigne chegou a

estabelecer em si mesmo uma certa constacircncia de ideias a ponto de dificilmente alterar

as ideias primeiras e naturais como ele mesmo reconhece Afirma no entanto que natildeo

eacute capaz de decidir Por isso adopta as decisotildees de outrem e manteacutem-se na posiccedilatildeo em

que Deus o pocircs O seu ldquoconservadorismordquo124 religioso e ateacute poliacutetico manifesta-se

claramente nos Essais Mas ao mesmo tempo e este eacute o ponto que mais nos interessa

neste trabalho deixa transparecer que o homem eacute sempre convidado a estar aberto agraves

mudanccedilas

ldquo[A] Le ciel et les estoilles ont branleacute trois mille ans tout le monde lavoit ainsi creu jusques agrave ce que [C] Cleanthes le Samien ou selon Theophraste Nicetas Siracusien [A] savisa de maintenir que cestoit la terre qui se mouvoit [C] par le cercle oblique du Zodiaque tournant agrave lentour de son aixieu [A] et de nostre temps Copernicus a si bien fondeacute cette doctrine quil sen sert tres-regleacuteement agrave toutes les consequences Astronomiquesrdquo conclui o autor ldquosinon qursquoil ne nous doit chaloir le quel ce soit des deux Et qui sccedilait qursquoune tierce opinion drsquoicy agrave mille ans ne renverse les deux precedentesrdquo125

124 Trata-se de um termo que natildeo tinha na eacutepoca de Montaigne o mesmo significado que tem hoje isto eacute como oposto de ldquoprogressismordquo Montaigne estava inserido numa sociedade marcada por grandes inovaccedilotildees pretendidas pelos partidaacuterios da Reforma Protestante que se defendiam a ferro e fogo acirrando certezas antes adormecidas e impondo agrave Franccedila as mais seacuterias turbulecircncias ldquo[B] Je suis desgousteacute de la nouvelleteacute quelque visage qursquoelle porte et ay raison car jrsquoen ay veu des effets tres-dommageables Celle qui nous presse depuis tant drsquoans elle nrsquoa pas tout exploicteacute mais on peut dire avec apparence que par accident elle a tout produict et engendre voire et les maux et ruines qui se font depuis sans elle et contre elle crsquoest agrave elle agrave srsquoen prendre au nezrdquo (Les Essais I 23 p 119) Eacute nesta perspectiva que vaacuterios comentadores observam que Montaigne natildeo poderia ser um homem ldquorevolucionaacuteriordquo e sim algueacutem que achasse melhor defender uma confianccedila moderada no lento aperfeiccediloamento das instituiccedilotildees ldquo[C] Les Franccedilois mes contemporaneacutees sccedilavent bien qursquoen dire Toutes grandes mutations esbranlent lrsquoestat et le desordonnentrdquo (Les Essais III 9 p 958) Isto permite compreender melhor alguns dos motivos pelos quais Montaigne assume as posiccedilotildees poliacuteticas e religiosas ldquoconservadorasrdquo que estatildeo presentes nos Essais Muito interessante eacute uma afirmaccedilatildeo de Jean Lacouture na sua obra Montaigne agrave cheval ndash considerada como uma espeacutecie de biografia que denota um entusiasmo significativo e algo romanceado fundamentada numa documentaccedilatildeo importante ndash na qual o autor reflecte sobre esta questatildeo ldquoMontaigne eacute grande o bastante para poder ser avaliado sob outros aspectos que natildeo a obediecircncia agraves praacuteticas e costumes de seu tempo Quando se eacute capaz no que diz respeito agrave justiccedila agrave toleracircncia ao racismo e agrave colonizaccedilatildeo de estar muitos seacuteculos agrave frente dos costumes e ideias de seu tempo pode-se ser julgado sem que consideraccedilotildees de eacutepoca ou de moda sejam levadas em contardquo (In Lacouture Jean Montaigne agrave cheval (Montaigne a cavalo) Traduzido do francecircs por F Rangel Rio de JaneiroSatildeo Paulo Editora Record 1998 p 236) 125 Les Essais II 12 p 570

42

E para fundamentar ainda mais esta ideia cita Lucreacutecio

ldquo[A] Sic volvenda aeligtas commutat tempora rerum Quod fuit in pretio fit nullo denique honore Porro aliud succedit et egrave contemptibus exit Inque dies magis appetitur floreacutetque repertum Laudibus Et miro est mortales inter honore ( ldquoAinsi dans sa course le temps change les conditions des choses ce qui eacutetait appreacutecieacute tombe dans le meacutepris un autre objet remplace le premier et sort du discreacutedit de jour en jour on le recherce davantage la deacutecouverte nouvelle toutes les louanges et une incoyable estime parmi les hommes)rdquo126

Podemos inferir daqui que ldquoos princiacutepios eternosrdquo natildeo tecircm lugar na ldquoApologie

de Raymond Sebondrdquo Montaigne faz questatildeo de observar que antes de os princiacutepios

introduzidos por Aristoacuteteles ganharem creacutedito outros princiacutepios contentavam a razatildeo

humana Os princiacutepios aristoteacutelicos como todos os outros natildeo estatildeo mais livres de ser

expulsos do que estavam os dos seus antecessores

Segundo Montaigne o juiacutezo depende dos sentidos aos quais por sua vez natildeo

podemos dar creacutedito por vaacuterios motivos Vejamos com mais detalhes este aspecto Eacute

justamente nos sentidos que se encontra o maior fundamento e a prova de nossa

ignoracircncia Montaigne baseado na experiecircncia de vida lembra-nos que natildeo haacute sentido

ou aspecto nem recto nem amargo nem doce nem curvo que o espiacuterito humano natildeo

encontre nos escritos que decide esquadrinhar Os sentidos satildeo muito enganadores A

palavra mais liacutempida mais pura e mais perfeita pode tornar-se equiacutevoca Montaigne

refere-se especialmente ao Evangelho127 Fizeram ao longo da histoacuteria ldquotudo e mais

alguma coisardquo com este texto sagrado para os cristatildeos E que ocorreria se estendecircssemos

esta preocupaccedilatildeo de Montaigne aos gestos humanos que querem exprimir ideias ou

sentimentos nas vaacuterias dimensotildees da vida moral poliacutetica etc

ldquo[C] Est-il possible qursquoHomere aye voulu dire tout ce qursquoon luy faict direrdquo128 E com relaccedilatildeo a Platatildeo ldquo[C] Voyez demener et agiter Platon Chacun srsquohororant de lrsquoappliquer agrave soi le couche du costeacute qursquoil le veutrdquo129

Montaigne observa ainda que com frequecircncia eacute difiacutecil decidir-se porque haacute

demasiadas formas de interpretar um determinado assunto para que o homem consiga

encontrar alguma indicaccedilatildeo que lhe sirva para resolver a questatildeo

126 Les Essais II 12 p 570 127 Cf Les Essais II 12 p 585 128 Les Essais II 12 p 586 129 Les Essais II 12 p 587

43

Montaigne afirma que todo o conhecimento chega ateacute noacutes pelos sentidos [A] Ce

sont nos maistresrdquo130 Observa que a ciecircncia comeccedila pelos sentidos e a eles se reduz

Eles satildeo a base e os princiacutepios de toda a construccedilatildeo de nossa ciecircncia E considera que

natildeo haacute absurdo mais extremo do que sustentar que

ldquo[A] le feu nrsquoeschaufe point que la lumiere nrsquoesclaire point qursquoil nrsquoy a point de pesanteur au fer ny de fermeteacute qui sont notices que nous apportent les sens nycreance ou science en lrsquohomme qui se puisse comparer agrave celle-lagrave en certituderdquo131

Montaigne potildee em duacutevida que o homem esteja provido de todos os sentidos

naturais Chega inclusivamente a perguntar-se se natildeo nos falta algum sentido E afirma

que se isto ocorrer nem a nossa razatildeo pode descobrir a sua ausecircncia nem haacute nada agrave

margem dos sentidos que nos possa servir para os descobrir

ldquo[A]Ils font trestons la ligne extreme de nostre faculteacute [hellip] Il est impossible de faire concevoir agrave un homme naturellement aveugle qursquoil nrsquoy void pas impossible de luy faire desirer la veue et regretter son defautrdquo132

Sendo assim afirma que quando formamos uma verdade pela consulta e

cooperaccedilatildeo dos sentidos poderiacuteamos tambeacutem ser levados a considerar que poderia ser

necessaacuteria a convergecircncia e a contribuiccedilatildeo de oito ou dez sentidos para a captar

acertadamente e na sua essecircncia

Uma das criacuteticas fundamentais de Montaigne agrave ciecircncia incide precisamente no

facto de ela se basear nos sentidos Mas como vimos os sentidos satildeo muito incertos e

fraacutegeis Desta extrema dificuldade nascem muitas opiniotildees (ldquofantasiesrdquo)

ldquo[A]Que chaque subjet a en soy tout ce que nous y trouvons qursquoil nrsquoa rien de ce que nous y pensons trouver et celle de Epicuriens que le Soleil nrsquoest non plus grand que ce que nostre veueuml le juge [hellip] (A) que les apparences qui representent un corps grand agrave celuy qui en est voisin et plus petit agrave celuy qui en est esloigneacute sont toutes deux vrayes [hellip] [A]et resolument qursquoil nrsquoy a aucun tromperie aux sens qursquoil faut passer agrave leur mercy et chercher ailleurs des raisons pour excuser la difference et contradiction que nous y trouvons voyre inventer toute autre mensonge et resverie (ils en viennent jusques lagrave) plustot que drsquoaccuser les sens [hellip] [A] De toutes les absurditez la plus absurde [C] aux Epicuriens [A] est davouumler la force et effect des sensrdquo133

130 Les Essais II 12 p 587 131 Les Essais II 12 p 588 132 Les Essais II 12 p 589 133 Les Essais II 12 p 591

44

Segundo Montaigne natildeo podemos livrar-nos dos sentidos se queremos construir

o conhecimento Mas os sentidos satildeo incertos falsificaacuteveis e enganadores134 E entende

tambeacutem que se eacute verdade que os sentidos satildeo os nossos primeiros juiacutezes135 entatildeo natildeo

devemos limitar-nos a convocar apenas os nossos para o conselho pois no que se refere

aos sentidos os animais tecircm tanto direito quanto noacutes ou mais Montaigne observa ainda

que os sentidos do homem estatildeo em desacordo com os sentidos dos animais E eacute por isto

que

ldquo[A] Pour le jugement de lrsquoaction des sens il faudroit donc que nous en fussions premierement drsquoaccord avec les bestes secondement entre nous mesmes [hellip] et entrons en debat tous les coups de ce que lrsquoun oit void ou goute quelque chose autrement qursquoun autre et debatons autant que drsquoautre chose de la diversiteacute des images que le sens nous raportentrdquo136

Concluindo a exposiccedilatildeo acerca dos sentidos Montaigne lembra-nos que os

sentidos satildeo para algumas pessoas mais obscuros e mais velados enquanto que para

outras pessoas satildeo mais claros e apurados Em seu entender recebemos as coisas de

forma diferente de acordo com o que somos e com o que nos parece Mas se o parecer

nos eacute tatildeo incerto e controverso

ldquo[A] Ce nrsquoest plus miracle si on nous dict que nous pouvons avoueumlr que la neige nous apparoit blanche mais que drsquoestablir si de son essence elle est telle et agrave la veriteacute nous ne nous en sccedilaurions respondrerdquo137

Tendo em conta todos os atributos dos sentidos acima mencionados Montaigne

dificilmente poderia chegar a uma outra conclusatildeo

ldquo[A] ce commencement esbranleacute toute la science du monde srsquoen va necessairement agrave vau-lrsquoeaurdquo138

Referindo-se a Teofrasto Montaigne recorda-nos que este pensador dizia que o

conhecimento humano guiado pelos sentidos podia julgar sobre as causas das coisas

ateacute certo ponto Mas que ao chegar agraves causas extremas e primeiras tinha de deter-se a

embotar-se devido ou agrave sua fragilidade ou agrave dificuldade das coisas Montaigne afirma

134 Assim como os sentidos satildeo enganadores satildeo tambeacutem enganados ldquo[A] Cette mesme piperie que les sens apportent agrave nostre entendement ils la reccediloivent agrave leur tour Nostre ame par fois srsquoen revenche de mesme [C] ils mentent et se trompent agrave lrsquoenvy [A] Ce que nous voyons et oyons agitez de colere nous ne lrsquooyons pas tel qursquoil est [hellip] Lrsquoobject que nous aymons nous semble plus beau qursquoil est [hellip] [A] et plus laid celuy que nous avons agrave contre coeur [hellip] Nos sens sont non seulement alterez mais souvent hebelez du tout par les passions de lrsquoame Combien de choses voyons nous que nous nrsquoa appercevons pas si nous avons nostre esprit empescheacute ailleurs (Les Essais II 12 pp 495-496) 135 Cf Les Essais II 12 p 596 136 Les Essais II 12 p 598 137 Les Essais II 12 pp 598-599 138 Les Essais II 12 p 599

45

ldquo[A] Cest une opinion moyenne et douce que nostre suffisance nous peut conduire jusques agrave la cognoissance daucunes choses et quelle a certaines mesures de puissance outre lesquelles cest temeriteacute de lemployer Cette opinion est plausible et introduicte par gens de composition mais il est malaiseacute de donner bornes agrave nostre esprit il est curieux et avide et na point occasion de sarrester plus tost agrave mille pas quagrave cinquanterdquo139

Montaigne procura aqui justificar a sua tese de que o conhecimento empiacuterico ou

sensiacutevel natildeo tem condiccedilotildees para permitir captar princiacutepios e verdades universais A

razatildeo humana por ser um instrumento impotente natildeo consegue dar explicaccedilotildees

convincentes das grandes questotildees da humanidade Consegue apenas explicar algumas

poucas coisas Se a razatildeo eacute incapaz de dar respostas profundas e aceitaacuteveis agraves grandes

questotildees ndash como por exemplo agraves causas primeiras ndash ela eacute descartaacutevel e no que toca agrave

busca do conhecimento natildeo serve para quase nada Daiacute que Montaigne afirme que o

homem eacute capaz de todas as coisas e de nenhuma E se confessa a ignoracircncia das causas

primeiras e dos princiacutepios entatildeo que abandone tambeacutem prontamente todo o resto da sua

ciecircncia

Se a alma conhecesse alguma coisa comeccedilaria por se conhecer a si mesma

ldquo[A] et si elle sccedilavoit quelque chose elle se sccedilauroit premierement elle mesme et si elle sccedilavoit quelque chose hors drsquoelle ce seroit son corps et son estuy avant toute autre choserdquo140

Montaigne refere-se aqui especialmente ao chamado conhecimento da medicina

Para ele a medicina natildeo consegue sair do ciclo vicioso das discussotildees Ressalta o facto

de que ldquoles dieuxrdquo desta ciecircncia tambeacutem natildeo conseguem chegar a acordo algum Daiacute

mais uma vez a atitude pirroacutenica de Montaigne

ldquo[A] Si lrsquohomme ne se connoit comment connoit il ses fonctions et ses forcesrdquo141

O autor debate-se com o problema da verdade o que eacute a verdade Na

ldquoApologierdquo sustenta que a verdade eacute inacessiacutevel e flutuante Neste ponto Montaigne eacute

fiel ao cepticismo que tem como caracteriacutestica dominante a atitude de estar sempre em

busca da verdade num processo que ocorre sempre dentro de um eterno movimento e

nunca se fixa definitivamente em nenhum ponto

139 Les Essais II 12 p 560 140 Les Essais II 12 p 561 141 Les Essais II 12 p 561

46

ldquo[B] La veueuml de nostre jugement se rapporte agrave la veriteacute comme faict loeil du chat-huant agrave la splendeur du Soleil ainsi que dit Aristote Par ougrave le sccedilaurions nous mieux convaincre que par si grossiers aveuglemens en une si apparente lumiererdquo142

Esta concepccedilatildeo flutuante da verdade eacute uma caracteriacutestica distintiva natildeo soacute da

ldquoApologierdquo mas tambeacutem de outros ensaios montaigneanos O autor natildeo faz nenhuma

afirmaccedilatildeo definitiva sobre nenhuma questatildeo A sua preocupaccedilatildeo principal natildeo eacute

encontrar a soluccedilatildeo dos diversos problemas que envolvem o homem mas sim tentar

compreender-se a si proacuteprio ldquo[hellip] je suis moy-mesmes la matiere de mon livrerdquo143 Isto

exclui as verdades fixadas pela tradiccedilatildeo filosoacutefica e neste sentido o pensamento de

Montaigne desenvolve-se agrave margem do dogmatismo Rejeita os pedantes isto eacute aqueles

que acreditam que adquirem o conhecimento utilizando termos palavras ou frases

obscuros

Montaigne insiste na dimensatildeo instaacutevel e incerta do nosso conhecimento que

natildeo consegue alcanccedilar a verdade

ldquo[A] Toutes choses produites par nostre propre discours et suffisance autant vrayes que fauces sont subjectes agrave incertitude et debat Cest pour le chastiement de nostre fierteacute et instruction de nostre misere et incapaciteacute que Dieu produisit le trouble et la confusion de lancienne tour de Babel Tout ce que nous entreprenons sans son assistance tout ce que nous voyons sans la lampe de sa grace ce nest que vaniteacute et folie Lessence mesme de la veriteacute qui est uniforme et constante quand la fortune nous en donne la possession nous la corrompons et abastardissons par nostre foiblesserdquo144

A verdade deve ter ldquo[A] un visage pareil et universelrdquo145 Uma outra

caracteriacutestica da verdade salientada por Montaigne eacute que ela ldquo[A] ne se juge point par

authoriteacute et tesmoignage drsquoautruyrdquo146 Neste sentido a verdade eacute fundamentalmente

pessoal Observando cuidadosamente estes atributos da verdade podemos perceber por

que razatildeo Montaigne faz a seguinte afirmaccedilatildeo

ldquo[A] la veriteacute est engoufleacutee dans des profonds abysmes ougrave la veueuml humaine ne peut penetrerrdquo147

Dito de outro modo a verdade estaacute oculta em Deus e natildeo eacute propriamente dos

homens dos filoacutesofos dos doutos

142 Les Essais II 12 p 552 143 Les Essais Au lecteur p 3 144 Les Essais II 12 p 553 145 Les Essais II 12 pp 578-579 146 Les Essais II 12 p 507 147 Les Essais II 12 p 561

47

ldquo[A] Crsquoest agrave elle (la majesteacute divine) seule qursquoapartient la science et la sapiencerdquo148

A criacutetica montaigneana agrave razatildeo humana manifesta aqui a impossibilidade de se

ter um conhecimento crediacutevel em todos os domiacutenios da vida A razatildeo por ser

infinitamente limitada natildeo consegue chegar a ser uma faculdade que garanta a

descoberta e por conseguinte a sistematizaccedilatildeo da verdade que eacute algo moacutevel pessoal

temporal e tambeacutem paradoxal

Lendo os pensadores antigos Montaigne suscita uma questatildeo fundamental Em

seu entender haacute uma espeacutecie de distanciamento ou divoacutercio entre o conhecimento da

essecircncia e o conhecimento da aparecircncia Como eacute possiacutevel entatildeo observa Montaigne

que eles se deixam vencer pela verosimilhanccedila se natildeo conhecem a verdade Como eacute

possiacutevel que conheccedilam a aparecircncia de algo cuja essecircncia natildeo conhecem Diante destas

dificuldades o autor da ldquoApologierdquo sustenta

ldquo[A] Ou nous pouvons juger tout agrave faict ou tout agrave faict nous ne le pouvons pas Si noz facultez intellectuelles et sensibles sont sans fondement et sans pied si elles ne font que floter et vanter pour neant laissons nous emporter nostre jugement agrave aucune partie de leur operation quelque apparence quelle semble nous presenter et la plus seure assiette de nostre entendement et la plus heureuse ce seroit celle-lagrave ougrave il se maintiendroit rassis droit inflexible sans bransle et sans agitationrdquo149

Segundo Montaigne as coisas natildeo se alojam em noacutes com a sua forma e a sua

essecircncia Se assim fosse recebecirc-las-iacuteamos dessa forma O vinho seria o mesmo na boca

de quem quer que fosse Mas natildeo eacute o que acontece a filosofia causa uma infinita

confusatildeo de opiniotildees e um eterno debate sobre o conhecimento das coisas Deixemos o

proacuteprio autor falar

ldquo[A]Car cela est presuposeacute tres-veritablement que de aucune chose les hommes je dy les sccedilavans les mieux nais les plus suffisans ne sont daccord non pas que le ciel soit sur nostre teste car ceux qui doutent de tout doutent aussi de cela et ceux qui nient que nous puissions aucune chose comprendre disent que nous navons pas compris que le ciel soit sur nostre teste et ces deux opinions sont en nombre sans comparaison les plus fortesrdquo150

Montaigne reconhece que os seus juiacutezos acerca de tudo aquilo que eacute falso eou

verdadeiro ocorrem de uma maneira condicionada dependendo da sua situaccedilatildeo interior

148 Les Essais II 12 p 448 149 Les Essais II 12 p 562 150 Les Essais II 12 p 563

48

e exterior A sua posiccedilatildeo em face das diversas situaccedilotildees concretas da vida eacute muito

dependente das suas opiniotildees que podem ser hoje umas e outras diferentes ou ateacute

contraacuterias amanhatilde Em seu entender ateacute o proacuteprio ar que respiramos e a serenidade do

ceacuteu produzem em noacutes alguma alteraccedilatildeo Recorda um verso de Ciacutecero

ldquo[A] Tales sunt hominum mentes quali pater ipse Juppiter auctifera lustravit lampade terras (Les penseacutees des hommes changent avec les rayons feacutecundants du soleil que Jupiter leur envoie)rdquo151

Noutro ensaio do livro III intitulado ldquoDu repentirrdquo Montaigne depois de afirmar

que o mundo eacute movimento e que tudo nele muda continuadamente faz uma observaccedilatildeo

de grande importacircncia que pode ser inserida neste contexto

ldquo[B] Tant y a que je me contredits bien agrave lrsquoaventure mais la veriteacute comme disoit Demandes je ne la contredy point Si mon ame pouvoit prendre pied je ne mrsquoessaierois pas je me resoudrois elle est toujours en apprentissage et en espreuverdquo152

Montaigne questiona de forma radical todos os que se orgulham de sua razatildeo e

acreditam na certeza de todos os seus princiacutepios Utiliza a proacutepria razatildeo para arruinar a

razatildeo dos filoacutesofos profissionais ou seja os seguidores cegos da loacutegica aristoteacutelica Em

suma combate a razatildeo com a proacutepria razatildeo e nega o seu valor

No texto seguinte Montaigne faz uma espeacutecie de caracterizaccedilatildeo da

escolaacutestica153 e da loacutegica aristoteacutelica154 Eacute um texto fundamental da ldquoApologierdquo no

qual o autor se refere claramente agrave hierarquia filosoacutefica aristoteacutelica na qual

encontramos a metafiacutesica como ldquociecircncia mais correctardquo

ldquo[A] Il est bien aiseacute sur des fondemens avouez de bastir ce quon veut car selon la loy et ordonnance de ce commencement le reste des pieces du bastiment se conduit ayseacuteement sans se deacutementir Par cette voye nous trouvons nostre raison bien fondeacutee et discourons agrave boule veue car nos maistres praeligoccupent et gaignent avant main autant de lieu en nostre creance quil leur en faut pour conclurre apres ce quils veulent agrave la mode des Geometriens par leurs demandes avoueacutees le consentement et

151 Les Essais II 12 p 564 152 Les Essais III 2 p 805 153 Na eacutepoca em que Montaigne escreveu a ldquoApologierdquo a doutrina escolaacutestica era caracterizada por um excesso de formalismo e de abstracccedilatildeo o que o levou a demonstrar uma aversatildeo profunda por essa filosofia 154 Segundo Friedrich haacute na ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo alguns ldquofaibles tracesrdquo de uma leitura de Aristoacuteteles jaacute que naquela eacutepoca este pensador grego exercia a sua uacuteltima grande influecircncia sobre os humanistas Aristoacuteteles eacute para Montaigne a ldquoquintessencerdquo da autoridade magistral que obstaculiza a sua relaccedilatildeo livre com a tradiccedilatildeo ldquoSa doctrine nous sert de loy magistrale qui est agrave lrsquoaventure autant fause qursquoune autrerdquo (Les Essais II 12 p 521 a 279) Friedrich observa no entanto que natildeo eacute possiacutevel fixar exactamente em que medida Montaigne leu Aristoacuteteles e considera que natildeo se trata de uma leitura muito soacutelida (Cf Friedrich op cit p 67)

49

approbation que nous leurs prestons leur donnant dequoy nous trainer agrave gauche et agrave dextre et nous pyroueter agrave leur volonteacute Quiconque est creu de ses presuppositions il est nostre maistre et nostre Dieu il prendra le plant de ses fondemens si ample et si aiseacute que par iceux il nous pourra monter sil veut jusques aux nueumls En cette pratique et negotiation de science nous avons pris pour argent content le mot de Pythagoras que chaque expert doit estre creu en son art Le dialecticien se rapporte au grammairien de la signification des mots le Rhetoricien emprunte du Dialecticien les lieux des arguments le poete du musicien les mesures le geometrien de larithmeticien les proportions les metaphysiciens prennent pour fondement les conjectures de la physique Car chasque science a ses principes presupposez par ougrave le jugement humain est brideacute de toutes parts Si vous venez agrave choquer cette barriere en laquelle gist la principale erreur ils ont incontinent cette sentence en la bouche quil ne faut pas debattre contre ceux qui nient les principesrdquo155

Se a verdade ndash como tudo parece indicar ndash se daacute a conhecer atraveacutes das causas ndash

haveraacute que fazer referecircncia agraves quatro causas156 presentes na filosofia aristoteacutelica Se o

homem realmente conseguir conhecer estas causas teraacute um conhecimento ldquocientiacuteficordquo

da substacircncia que procura Por isso Montaigne quer invalidar a filosofia dita dogmaacutetica

de Aristoacuteteles rejeitando claramente a tese das quatro causas Em seu entender esta

teoria natildeo passa de um engano O autor da ldquoApologierdquo sugere que a teoria das quatro

causas soacute serve para prejudicar os homens que ludibriados pelo poder da razatildeo natildeo

cessam de correr atraacutes do conhecimento das causas que lhe eacute por seu turno inacessiacutevel

A verdade das causas estaacute acima de nossas capacidades racionais

Assumindo a postura pirroacutenica de Sexto Empiacuterico ndash que foi aliaacutes um aceacuterrimo

opositor de Aristoacuteteles ndash Montaigne procurou fazer algo semelhante Isto eacute procurou

atacar as bases da ciecircncia escolaacutestica (sobretudo preocupada em conciliar a razatildeo com a

feacute apoiando-se na filosofia grega principalmente a aristoteacutelica) e por conseguinte de

todos os outros sistemas dogmaacuteticos Numa perspectiva ceacuteptica sextiana Montaigne

trava uma batalha contra os princiacutepios da metafiacutesica tidos como os mais correctos Esta

visatildeo aristoteacutelica quer estabelecer uma ligaccedilatildeo entre o pensamento e o juiacutezo humanos e

os obriga a natildeo evitar as questotildees preacute-existentes Segundo Montaigne esta concepccedilatildeo

155 Les Essais II 12 p 540 156 Aristoacuteteles apresenta estas causas particularmente nos livros I e II da Metafiacutesica Satildeo elas causa material isto eacute aquilo de que eacute feita uma coisa por exemplo a mateacuteria do homem eacute a carne e os ossos a mateacuteria da mesa eacute a madeira e assim por diante causa formal isto eacute a forma ou essecircncia das coisas por exemplo o rio e o mar satildeo as formas da aacutegua um tapete eacute a forma assumida pela mateacuteria latilde com a acccedilatildeo do artiacutefice causa eficiente ou motriz isto eacute aquilo de que provecircm a mudanccedila e o movimento das coisas por exemplo o artiacutefice eacute a causa eficiente que faz a latilde receber a forma do tapete o gelo eacute a forma que faz os corpos quentes tornarem-se frios e causa final isto eacute a causa que constitui o fim ou o propoacutesito das coisas e acccedilotildees por exemplo o bem eacute a causa final da poliacutetica a felicidade eacute a causa final da acccedilatildeo eacutetica e assim por diante

50

tambeacutem natildeo potildee em evidecircncia o facto de que o conhecimento adquirido por este

processo fica enclausurado dentro de um ciacuterculo vicioso Deixemos o proacuteprio autor

falar

ldquo[A] Pour juger des apparences que nous recevons des subjets il nous faudroit un instrument judicatoire pour verifier cet instrument il nous y faut de la demonstration pour verifier la demonstration un instrument nous voila au rouet Puis que les sens ne peuvent arrester nostre dispute estans pleins eux-mesmes dincertitude il faut que ce soit la raison aucune raison ne sestablira sans une autre raison nous voylagrave agrave reculons jusques agrave linfiny Nostre fantasie ne sapplique pas aux choses estrangeres ains elle est conceue par lentremise des sens et les sens ne comprennent pas le subject estranger ains seulement leurs propres passions et par ainsi la fantasie et apparence nest pas du subject ains seulement de la passion et souffrance du sens laquelle passion et subject sont choses diverses parquoy qui juge par les apparences juge par chose autre que le subject [hellip]rdquo157

Os escolaacutesticos natildeo testaram as suas ideias atraveacutes dos factosldquoIls ne se

rapportent pas agrave lrsquoexpeacuterience ils nrsquoessaient jamais leurs opinions Leur travail consiste

uniquement agrave tirer des deacuteductions de principes et drsquoaxiomes qursquoils nrsquoexaminent jamais

Leurs principes sont faux les conseacutequences qursquoils en deacuteduisent sont donc fausses

neacutecessairement mais ils ne srsquoen soucient pas La meacutethode scolastique et logicienne

triomphe toujours et rend tous les efforts steacuterilesrdquo158 Montaigne daacute-se conta de que a

capacidade do homem de conhecer algo estaacute profundamente relacionada com a

contingecircncia e que esta mesma capacidade estaacute subordinada aos sentidos que satildeo

ldquomaintesfois maistres du discoursrdquo159 mas que ao mesmo tempo satildeo incertos e

falsificaacuteveis E portanto esta ciecircncia eacute incapaz de chegar a certezas crediacuteveis

157 Les Essais II 12 pp 600-601 158 Villey op cit pp 214-215 159 Les Essais II 12 p 592

51

4 A criacutetica agrave razatildeo humana e o relativismo da moral

Quando lemos a ldquoApologie de Raymond de Sebondrdquo aleacutem de nos depararmos

com problemas claacutessicos da filosofia como a criacutetica agrave teoria do conhecimento

deparamo-nos tambeacutem com o problema da moral de que o autor se ocupa de uma

maneira muito particular Natildeo apresentaremos neste capiacutetulo uma abordagem detalhada

e detida do tema da moral na ldquoApologierdquo Isto exigiria uma investigaccedilatildeo aprofundada e

de maior amplitude uma vez que o autor desenvolve neste texto muitos aspectos

importantes deste tema

Limitar-nos-emos a procurar perceber por que razatildeo o autor ldquodecretardquo a

impossibilidade de fundamentar na razatildeo humana um conjunto de normas ou leis que

dizem respeito agrave vida praacutetica de qualquer grupo humano Perseguindo este objectivo

procuraremos reconstruir os vaacuterios argumentos do ensaio que justificam a sua tomada

de posiccedilatildeo no acircmbito da moral160

Para contextualizar um pouco a questatildeo da moral nos Essais eacute importante

observar que no periacuteodo do humanismo renascentista se fazia sentir a necessidade de

emitir juiacutezos que fossem coerentes de se informar dos costumes dos homens tanto dos

antigos como dos povos que habitavam terras longiacutenquas Todos queriam rever a sua

ideia de homem Tratava-se de uma busca aberta e muitos ofereciam a sua contribuiccedilatildeo

como afirma Villey161 Tampouco Montaigne se demitiu desta tarefa Envolveu-se com

empenho na tarefa de perceber o que eacute o homem Para isto misturou muitas histoacuterias

antigas e contemporacircneas com inuacutemeras reflexotildees de viajantes que vinham de terras

distantes sobretudo daquelas que foram invadidas e ocupadas por europeus nelas

encontra uma confirmaccedilatildeo da tese segundo a qual a multiplicidade irreconciliaacutevel e a

diversidade mais ampla satildeo a uacutenica marca do ser As teses ceacutepticas de Montaigne

revelam-se de uma maneira particularmente radical no campo da moral neste acircmbito

adquiriraacute uma importacircncia capital a diversidade dos costumes como argumento contra a

moral ldquoracionalrdquo

160 Segundo Villey Montaigne toma consciecircncia do relativismo relativo ao conhecimento natildeo apenas nas noccedilotildees de metafiacutesica mas tambeacutem nas noccedilotildees de moral Neste ponto teraacute uma influecircncia muito importante sobretudo a sua leitura de Sexto Empiacuterico Nesta perspectiva Montaigne pode ser visto como um moralista O mesmo autor afirma que eacute principalmente nas ideias morais que podemos perceber nitidamente o relativismo montaigneano (cf Villey op cit pp188-189) 161 Cf Villey op cit p189

52

Na ldquoApologierdquo Montaigne deteacutem-se a considerar que todas as sociedades tecircm

necessidade das leis Ele tem perfeita consciecircncia de que sem leis nenhuma sociedade

poderaacute ter vida longa A obediecircncia agraves leis162 eacute uma condiccedilatildeo sine qua non para a

sobrevivecircncia de qualquer grupo social Montaigne natildeo leva a ingenuidade ao ponto de

negar pura e simplesmente a necessidade das leis e normas Neste sentido pensa como

Epicuro isto eacute considera que mesmo as piores leis nos satildeo tatildeo necessaacuterias que sem

elas os homens se devorariam uns aos outros163 No mesmo paraacutegrafo Montaigne

observa que tambeacutem Platatildeo distanciando-se pouco desta tese sustenta que sem leis

viveriacuteamos como animais selvagens e se empenha em provaacute-lo

ldquo[A] Nostre esprit est un util vagabond dangereux et temeraire il est malaiseacute dy joindre lordre et la mesure Et de mon temps ceux qui ont quelque rare excellence au dessus des autres et quelque vivaciteacute extraordinaire nous les voyons quasi tous desbordez en licence dopinions et de meurs Cest miracle sil sen rencontre un rassis et sociable On a raison de donner agrave lesprit humain les barrieres les plus contraintes quon peut En lestude comme au reste il luy faut compter et regler ses marches il luy faut tailler par art les limites de sa chasserdquo164

Ao citar Epicuro e Platatildeo o autor da ldquoApologierdquo manifesta a sua decepccedilatildeo

relativamente ao homem de sua eacutepoca Certamente estes pensadores trazem-lhe agrave

memoacuteria a situaccedilatildeo concreta em que estava mergulhada a sociedade francesa naquela

eacutepoca Lendo de uma forma atenta a sua obra eacute faacutecil comprovar que Montaigne era

consciente de tudo o que se passava no seu paiacutes guerras conflitos religiosos profundos

e actos de violecircncia deles derivados

Laschamp ao descrever algumas caracteriacutesticas do contexto no qual Montaigne

elabora a sua obra afirma

162 Haacute uma quantidade significativa de afirmaccedilotildees nos Essais acerca da necessidade do cumprimento da lei independentemente de esta ser ou natildeo justa Vejamos algumas ldquo [C] Il nrsquoest rien si lourdement et largement fautier que les loix ny si ordinairement [B] Quiconque leur obeyt pas justement par ougrave il doibt [hellip] [B]Or les loix se maintiennent en credit non par ce qursquoelles sont justes mais par ce qursquoelles sont loix Crsquoest le fondement mystique de leur authoriteacute elles nrsquoen ont poinct drsquoautrerdquo (Les Essais III 13 p 1072) Montaigne chega ateacute a afirmar que ldquo[A] ce bon et grand Socrates refusa de sauver sa vie par la desobeissance du magistrat voire drsquoun magistrat tres-injuste et tres-inique Car crsquoest la regle des regles et generale loy des loix que chacun observe celles du lieu ougrave il est [hellip]rdquo (Les Essais I 23 p 118) ldquo[A] Jen diray seulement encore cela que cest la seule humiliteacute et submission qui peut effectuer un homme de bien Il ne faut pas laisser au jugement de chacun la cognoissance de son devoir il le luy faut prescrire non pas le laisser choisir agrave son discours autrement selon limbecilliteacute et varieteacute infinie de nos raisons et opinions nous nous forgerions en fin des devoirs qui nous mettroient agrave nous manger les uns les autres comme dit Epicurusrdquo (Essais II 12 p 488) 163 Cf Les Essais II 12 p 558 164 Les Essais II 12 p 559

53

ldquoLes violences entre les dissidents eacutegalaient celles dont ils eacutetaient lrsquoobjet de la part de leurs adversaires Jamais lrsquoabus du raisonnement nrsquoavait eacuteteacute pousseacute plus loin jamais il nrsquoavait deacutechacircneacute tant de colegraveres jamais il nrsquoavait fait couler tant de larmes et tant de sangrdquo165

Assim se compreende melhor por que razatildeo Montaigne afirma que na sua

eacutepoca os que tecircm alguma rara excelecircncia acima dos outros e uma vivacidade

extraordinaacuteria os excedem em desregramento de ideias e de costumes e praticam acccedilotildees

que impedem a felicidade dos homens

Montaigne na qualidade de libre penseur natildeo poderia deixar de defender a

liberdade de pensamento Mas ao mesmo tempo sabe tambeacutem que se esta liberdade

estiver sujeita agrave vaidade da razatildeo muitas atitudes humanas inclusive religiosas como

vimos anteriormente poderatildeo tornar-se nocivas para o homem Ao descrever algumas

das caracteriacutesticas da liberdade de que davam prova os antigos na filosofia e ao fazer

um paralelo com a sociedade de sua eacutepoca afirma

ldquo[A] La liberteacute donq et gaillardise de ces esprits anciens produisoit en la philosophie et sciences humaines plusieurs sectes dopinions differentes chacun entreprenant de juger et de choisir pour prendre party Mais agrave present [C] que les hommes vont tous un train [hellip] et [A] que nous recevons les arts par civile authoriteacute et ordonnance [C] si que les escholes nont quun patron et pareille institution et discipline circonscrite on ne regarde plus ce que les monnoyes poisent et valent mais chacun agrave son tour les reccediloit selon le pris que lapprobation commune et le cours leur donneOn ne plaide pas de lalloy mais de lusage ainsi se mettent egallement toutes choses On reccediloit la medicine comme la Geometrie et les batelages les enchantemens les liaisons le commerce des esprits des trespassez les prognostications les domifications et jusques agrave cette ridicule poursuitte de la pierre philosophale tout se met sans contredictrdquo166

Montaigne escreve a sua obra mergulhado num clima onde reinava uma

ldquoanarchie dans les ideacutees et dans les faitsrdquo167 e coloca-se na atitude de ajudado pelos

costumes antigos julgar o seu tempo Segundo Villey eacute exactamente neste contexto

muito conturbado que Montaigne entra em contacto com o livro de Sexto Empiacuterico

ldquoVoilagrave ougrave lrsquoinfluence du milieu et sa propre dociliteacute aux faits lrsquoont conduit Presque toujours crsquoest la loi politique et morale agrave laquelle il est naturellement assujetti que lrsquoesprit eacuterige en loi absolue Montaigne a affranchi sa raison de cette contrainte naturelle il sait critiquer la loi

165 Laschamp op cit p 104 166 Les Essais II 12 pp 559-560 167 Laschamp op cit p 94

54

que son milieu lui impose crsquoest un pas drsquoune extrecircme importance qursquoil a fait lagrave vers lrsquoideacutee de relativiteacuterdquo168

Montaigne descreve alguns aspectos que comprovam o seu relativismo face aos

costumes de vaacuterios povos sobretudo quando os relaciona com os de Franccedila Com isto o

autor quer sugerir possivelmente que as crenccedilas os juiacutezos e as opiniotildees dos homens

estatildeo sujeitos agraves inconstacircncias perenes que haacute na vida concreta

ldquo[A] si le ciel les agite et les roule agrave sa poste quelle magistrale authoriteacute et permanante leur allons nous attribuant [hellip] [B] en maniere que ainsi que les fruicts naissent divers et les animaux les hommes naissent aussi plus et moins belliqueux justes temperans et dociles icy subjects au vin ailleurs au larecin ou agrave la paillardise icy enclins agrave superstition ailleurs agrave la mescreance [C] icy agrave la liberteacute icy agrave la servitude [hellip] [B] que deviennent toutes ces belles prerogatives dequoy nous nous allons flatants Puis quun homme sage se peut mesconter et cent hommes et plusieurs nations voire et lhumaine nature selon nous se mesconte plusieurs siecles en cecy ou en cela quelle seureteacute avons nous que par fois elle cesse de se mesconter [C] et quen ce siecle elle ne soit en mescomte [A] Il me semble entre autres tesmoignages de nostre imbecilliteacute que celui-cy ne merite pas destre oublieacute que par desir mesmes lhomme ne sccedilache trouver ce quil luy faut que non par jouyssance mais par imagination et par souhait nous ne puissions estre daccord de ce dequoy nous avons besoing pour nous contenter Laissons agrave nostre penseacutee tailler et coudre agrave son plaisir elle ne pourra pas seulement desirer ce qui luy est propre [C] et se satisfaire [hellip]rdquo169

Segundo Montaigne a verdade de uma teoria moral ndash como a de qualquer outro

conhecimento ndash soacute pode ser afirmada relativamente ao sujeito que estaacute implicado nesta

tarefa O homem que reflecte sobre a moral reflecte sobre si proacuteprio e natildeo sobre a

humanidade em geral Desta perspectiva podemos perceber por que razatildeo Montaigne

afirma que eacute ele proacuteprio a mateacuteria de seu livro170 Eacute o proacuteprio Montaigne que nos toca

ainda mais de perto do que o homem em geral

Montaigne observa que natildeo haacute entre os filoacutesofos combate tatildeo violento e tatildeo rude

como o que se trava acerca da questatildeo do soberano bem do homem

ldquo[A] Il nest point de combat si violent entre les philosophes et si aspre que celuy qui se dresse sur la question du souverain bien de lhommerdquo171

168 Villey op cit p 193 169 Les Essais II 12 pp 575-576 170 Cf nota 143 171 Les Essais II 12 p 577

55

Trata-se de uma questatildeo muito sensiacutevel para Montaigne Em se entender eacute inuacutetil

acrescentar mais uma seita agraves 288 que nasceram segundo o caacutelculo de Varron acerca

da questatildeo do soberano bem172

Montaigne inicia a ldquoApologierdquo afirmando que alguns filoacutesofos pensavam que o

soberano bem estava na ciecircncia173

Mas natildeo acreditava que fosse atraveacutes da ciecircncia174 (moral e filosoacutefica) que o

homem conseguiria ser mais saacutebio e mais feliz O autor natildeo se preocupa em fornecer

exactamente o ldquoendereccedilordquo do bem soberano Vejamos como apresenta algumas

indicaccedilotildees relativas agraves vaacuterias tentativas dos filoacutesofos para encontrarem o bem soberano

esse bem que varia conforme o indiviacuteduo

ldquo[A] Nature devroit ainsi respondre agrave leurs contestations et agrave leurs debats Les uns disent nostre bien estre loger en la vertu dautres en la volupteacute dautres au consentir agrave nature qui en la science [C] qui agrave navoir point de douleur [A] qui agrave ne se laisser emporter aux apparences (et agrave cette fantasie semble retirer cetautre [B] de lantien Pythagoras [hellip] [A] qui est la fin de la secte Pyrrhonienne) rdquo175

Fiel aos argumentos do pirronismo Montaigne sustenta que o soberano bem eacute a

ataraxia Segundo ele a sabedoria indica-nos que eacute necessaacuterio procurar manter na alma

um harmonioso equiliacutebrio A ataraxia foi sempre considerada pelos seguidores do

pirronismo como a coroaccedilatildeo da sua filosofia segundo Andreacute Verdan176 Vejamos

textualmente o que diz Sexto acerca da ataraxia como objectivo de sua doutrina ceacuteptica

filosoacutefica

ldquoIl est propos de dire ici quelque chose de la fin de la Sceptique La fin en geacuteneacuteral est ce pour quoi on fait ou on consideacutere toutes Choses crsquoest ce que lrsquoon ne recherche point pour quelque autre Chose crsquoest ce qui est la dernieacutere Chose que lrsquoon recherche Nous disons donc maintenant que la fin du Filosofe Sceptique est lrsquoAtaraxie ou lrsquoexemtion de trouble agrave lrsquoeacutegard des opinions [hellip] amp alors lrsquoAtaraxie ou lrsquoexemtion de trouble fut une suite heureuse quoique fortuite de cette suspension de son jugement agrave lrsquoeacutegard des opinions [hellip] celui qui opine Dogmatiquement amp qui eacutetablit qursquoil y a naturellement amp reacuteellement quelque bien amp quelque mal est toujours troubleacuterdquo177

172 Les Essais II 12 p 577 173 Cf nota 96 174 ldquoLa philosophie morale est viseacutee comme les autres sciences plus directement mecircme que les autres sciencesrdquo (Villey op cit p219) 175 Les Essais II 12 p578 176 Cf Verdan Andreacute Le scepticisme philosophique Paris-Montreacuteal Bordas 1971 p 57 177 Sextus Empiricus Les Hipotiposes ou Instituitions Pirroniennes Traduzido do grego por Claude Huart Amsterdam Barbier MDCCXXV pp15-16

56

Segundo Montaigne a filosofia natildeo pode oferecer uma base consistente agrave moral

que sirva como garantia da felicidade humana O homem eacute convidado a procurar

alicerces mais seguros e consistentes fora da filosofia

ldquo[C] Il ne nous faut guiere non plus doffices de regles et de loix de vivre en nostre communauteacute quil en faut aux grues et formis en la leur Et neantmoins nous voyons quelles sy conduisent tres-ordonneacutement sans erudition Si lhomme estoit sage il prenderoit le vray pris de chasque chose selon quelle seroit la plus utile et propre agrave sa vierdquo178

Assim o homem estaacute impedido por uma incapacidade que tem a sua origem

sobretudo na razatildeo de determinar tudo aquilo que pode em termos morais servir-lhe

para a construccedilatildeo de uma vida tranquila O homem natildeo sabe encontrar o que lhe eacute

necessaacuterio O desacordo nestes assuntos eacute inerente agrave proacutepria natureza do homem tal

como foi descrita pelo autor da ldquoApologierdquo

Trata-se de um desacordo com consequecircncias preocupantes jaacute que se eacute de noacutes

que depende a organizaccedilatildeo dos nossos costumes metemo-nos numa enorme

confusatildeo179 Aludindo ao parecer de Soacutecrates Montaigne defende que a razatildeo aconselha

cada um a obedecer a lei de seu paiacutes180

Entretanto Montaigne questiona-se seraacute que ldquo[A] nostre devoir nrsquoa autre regle

que fortuite181 A resposta reflecte mais uma vez o relativismo do autor que afirma

que a verdade deve ter uma face universal e uniforme mas que reconhece ao mesmo

tempo que de facto o homem impedido pela razatildeo e pelos sentidos (considerados pela

filosofia tradicional como fonte do conhecimento da verdade) natildeo tem condiccedilotildees de

encontrar uma base moral no discurso racional

ldquo[A] La droiture et la justice si lhomme en connoissoit qui eust corps et veritable essence il ne lattacheroit pas agrave la condition des coustumes de cette contreacutee ou de celle lagrave ce ne seroit pas de la fantasie des Perses ou des Indes que la vertu prendroit sa forme Il nest rien subject agrave plus continuelle agitation que les loix Deacutepuis que je suis nay jay veu trois et quatre fois rechanger celles des Anglois noz voisins non seulement en subject politique qui est celuy quon veut dispenser de constance mais au plus important subject qui puisse estre agrave sccedilavoir de la religion Dequoy jay honte et despit dautant plus que cest une nation agrave laquelle ceux de mon quartier ont eu autrefois une si priveacutee accointance quil

178 Les Essais II 12 p 487 179 Cf Les Essais II 12 p 578 180 Cf Les Essais II 12 p 478 181 Les Essais II 12 p 578

57

reste encore en ma maison aucunes traces de nostre ancien cousinagerdquo182

Reflectindo acerca da situaccedilatildeo concreta que o rodeava isto eacute a guerra as

injusticcedilas e outros males (causados pelo proacuteprio homem) que caracterizavam a Franccedila

de entatildeo Montaigne tem consciecircncia de que seguir as leis do paiacutes183 que satildeo

produzidas pela razatildeo humana eacute algo bastante problemaacutetico

Como moralista Montaigne natildeo deseja fazer a apologia de uma ldquoanarquiardquo em

termos morais muito pelo contraacuterio como vimos defende a importacircncia da lei na vida

quotidiana O que ele pretende defender eacute que todo o sistema que resulta de um

emaranhado de reflexotildees intelectuais natildeo leva a nada pelo facto de que tudo o que a

razatildeo produz estaacute sujeito agrave incerteza tanto a verdade como a falsidade

Ao criticar todo este processo Montaigne quer ressaltar a ideia de que a razatildeo eacute

um estorvo importante para a dinacircmica de construccedilatildeo da justiccedila e das leis morais

Esta tese poderia levar a pensar que Montaigne eacute um pensador que natildeo acredita

na verdade Mas ao ler a sua obra damo-nos conta que eacute um autor apaixonado pela

verdade Ele nunca afirmou que a verdade estava fora de alcance Ele quer encontrar a

verdade A sua proacutepria atitude filosoacutefica pode ser caracterizada como uma perene busca

da verdade O que lhe eacute peculiar nesta busca eacute o facto de questionar profundamente tudo

aquilo que eacute construiacutedo arbitrariamente pela filosofia dogmaacutetica sobretudo as grandes

elaboraccedilotildees teoacutericas e os complicados coacutedigos legais que em geral natildeo respeitam as

contingecircncias da vida

Esta razatildeo eacute por conseguinte a grande responsaacutevel pela contiacutenua agitaccedilatildeo das

leis Neste sentido o cepticismo de Montaigne no domiacutenio da moral estaacute em profunda

sintonia com todo o projecto da ldquoApologierdquo Assim como natildeo aceita as certezas teoacutericas

dos filoacutesofos e pensadores profissionais em mateacuteria de metafiacutesica e em tantos outros

assuntos tradicionalmente caros agrave filosofia rejeita tambeacutem com toda a determinaccedilatildeo a

produccedilatildeo filosoacutefica que eacute apresentada como ciecircncia moral Montaigne natildeo se cansa de

questionar o papel daqueles pensadores que em nome da filosofia se encarregam de

teorizar sobre as leis morais e a justiccedila Podemos dizer que o autor classifica esta

actividade como algo dispensaacutevel agrave vida Neste contexto o autor ressalta o problema da

contingecircncia e da sua relaccedilatildeo com a lei

182 Les Essais II 12 p 579 183 ldquo[B] Car nous avons en France plus de loix que tout le reste du monde ensemble [hellip] [C] Il y a peu de relation nos actions qui sont en perpetuelle mutation avec les loix fixes et immobile Les plus desirables ce sont les plus rares plus simples et generalesrdquo (Les Essais III 13 p 1066)

58

ldquo[A] Que nous dira donc en ceste necessiteacute la philosophie Que nous suyvons les loix de nostre pays Cest agrave dire cette mer flotante des opinions dun peuple ou dun Prince qui me peindront la justice dautant de couleurs et la reformeront en autant de visages quil y aura en eux de changemens de passion Je ne puis pas avoir le jugement si flexiblerdquo184

Algumas doutrinas filosoacuteficas impelem-nos ao cumprimento das leis do paiacutes

Mas como eacute isto possiacutevel se estas leis satildeo condicionadas pelas paixotildees de quem as fez

Em seguida Montaigne refere-se agrave relatividade das leis civis

ldquo[A] Quelle bonteacute est-ce que je voyois hyer en credit et demain plus [C]et que le trajet dune riviere fait crime Quelle veriteacute que ces montaignes bornent qui est mensonge au monde qui se tient au delagrave185

Diante deste quadro podemos perguntar-nos seraacute possiacutevel ter uma moral que

garanta a justiccedila para todos fazendo uso da razatildeo e utilizando as leis humanas que satildeo

sempre condicionadas pelas paixotildees as quais por sua vez estatildeo sujeitas a de tantas

mudanccedilas A resposta de Montaigne eacute negativa e eacute dada de forma iroacutenica

ldquo[A] Mais ils sont plaisans quand pour donner quelque certitude aux loix ils disent quil y en a aucunes fermes perpetuelles et immuables quils nomment naturelles qui sont empreintes en lhumain genre par la condition de leur propre essence Et de celles lagrave qui en fait le nombre de trois qui de quatre qui plus qui moins signe que cest une marque aussi douteuse que le resterdquo186

Aleacutem de constatar a relatividade das leis civis Montaigne natildeo deixa de afirmar

que haacute tambeacutem uma niacutetida relatividade nas leis naturais

ldquo[A] ils sont dis-je si miserables que de ces trois ou quatre loix choisies il nen y a une seule qui ne soit contredite et desadvoeumle non par une nation mais par plusieursrdquo187

Outra tese da ldquoApologierdquo que merece ser lembrada eacute que a razatildeo humana ndash

intrometendo-se em toda a parte para dominar baralhar e confundir a face das coisas

segundo sua vaidade e inconstacircncia ndash quer que acreditemos que haacute leis naturais como as

que se observam nas outras criaturas Mas isto natildeo passa de um equiacutevoco em noacutes as leis

naturais estatildeo perdidas

Montaigne natildeo mede as palavras quando o que estaacute em jogo eacute em seu entender

alguma coisa de capital importacircncia A falta de honestidade e a falsidade satildeo atributos

dos pensadores e elaboradores de leis na sociedade Neste contexto criticaraacute

violentamente a posiccedilatildeo de Platatildeo por exemplo Observa que quando este pensador

184 Les Essais II 12 p 579 185 Les Essais II 12 p 579 186 Les Essais II 12 p 580 187 Les Essais II 12 p 580

59

grego se torna legislador adopta um estilo imperioso e afirmativo e mistura-lhe

ousadamente as mais fantasiosas invenccedilotildees tatildeo uacuteteis para persuadir o povo como

ridiacuteculas para se persuadir a si mesmo Conclui a sua criacutetica a Platatildeo da seguinte forma

ldquo[C] Et pourtant en ses loix il a grand soing quon ne chante en publiq que des poeumlsies desquelles les fabuleuses feintes tendent agrave quelque utile fin et estant si facile dimprimer tous fantosmes en lesprit humain que cest injustice de ne le paistre plustost de mensonges profitables que de mensonges ou inutiles ou dommageables Il dict tout destroussement en sa Republique que pour le profit des hommes il est souvent besoin de les piper 188 rdquo

Na ldquoApologierdquo Montaigne manifesta em vaacuterias ocasiotildees o seu

descontentamento relativamente agraves teses dos filoacutesofos gregos

Considerando as reflexotildees precedentes acerca da moral tudo leva a crer que

Montaigne considera que as leis verdadeiras relativas agrave moral devem ter um caraacutecter

universal e natildeo particular

Montaigne apresenta uma lista de costumes diversificados de povos muito

diferentes que tecircm as suas tradiccedilotildees proacuteprias e que satildeo muitas vezes contraditoacuterias entre

si Isto servir-lhe-aacute para justificar a tese de que natildeo haacute coisa em que o mundo seja tatildeo

diverso como os costumes e leis

ldquo[A] Telle chose est icy abominable qui apporte recommandation ailleurs comme en Lacedemone la subtiliteacute de desrober Les mariages entre les proches sont capitalement defendus entre nous ils sont ailleurs en honneur [hellip]rdquo

ldquo[A] Le meurtre des enfans meurtre des peres communication de femmes trafique de voleries licence agrave toutes sortes de voluptez il nest rien en somme si extreme qui ne se trouve receu par lusage de quelque nationrdquo189

ldquo[A] Les subjets ont divers lustres et diverses considerations cest de lagrave que sengendre principalement la diversiteacute dopinions Une nation regarde un subject par un visage et sarreste agrave celuy lagrave lautre par un autre

Il nest rien si horrible agrave imaginer que de manger son pere Les peuples qui avoyent anciennement ceste coustume la prenoyent toutesfois pour tesmoignage de pieteacute et de bonne affection [hellip]rdquo

ldquo[A] Licurgus considera au larrecin la vivaciteacute diligence hardiesse et adresse quil y a agrave surprendre quelque chose de son voisin [hellip]rdquo ldquo[A] Dionysius le tyran offrit agrave Platon une robe agrave la mode de Perse longue damasquineacutee et parfumeacutee Platon la refusa disant questant nay homme il ne

188 Les Essais II 12 p 512 189 Les Essais II 12 p 580

60

se vestiroit pas volontiers de robbe de femme mais Aristippus laccepta avec ceste responce que nul accoustrement ne pouvoit corrompre un chaste couragerdquo190

ldquo[A] Nous portons les oreilles perceacutees les Grecs tenoient cela pour une marque de servitude Nous nous cachons pour jouir de nos femmes les Indiens le font en public Les Scythes immoloyent les estrangers en leurs temples ailleurs les temples servent de franchiserdquo191

Para Montaigne as razotildees sobre as quais cada povo funda a sua moral satildeo uma

resposta a situaccedilotildees contingentes e natildeo visam dar resposta a situaccedilotildees mais universais

vaacutelidas para todos os homens sem excepccedilatildeo Villey chega a afirmar que Montaigne

ldquocherche une justice et il trouve des justices et des justices contradictoiresrdquo192

Aleacutem de constatar a ausecircncia de um acordo entre as vaacuterias concepccedilotildees no que

diz respeito aos costumes de cada povo Montaigne - fiel agrave criacutetica aos sistemas

filosoacuteficos que perpassa toda a ldquoApologierdquo - destaca tambeacutem o facto de que natildeo haacute

sequer acordo entre os filoacutesofos que se ocupam particularmente em reflectir acerca de

dois temas muito caros agrave filosofia

ldquo[A] Quant agrave la liberteacute des opinions philosophiques touchant le vice et la vertu cest chose ougrave il nest besoing de sestendre et ougrave il se trouve plusieurs advis qui valent mieux teus que publiez [C]aux faibles espritsrdquo193

Segundo Montaigne os proacuteprios homens do saber adoptam atitudes

consideradas inaceitaacuteveis pelo facto de a sociedade as condenar Os exemplos ilustram

esta situaccedilatildeo de uma forma muito niacutetida e revelam quanto a razatildeo humana pode fazer

para encontrar explicaccedilotildees legitimadoras para todas as realidades relativas aos costumes

morais

ldquo[A] De lagrave disent aucuns que doster les bordels publiques cest non seulement espandre par tout la paillardise qui estoit assigneacutee agrave ce lieu lagrave mais encore esguillonner les hommes agrave ce vice par la malaisance [hellip] On demanda agrave un philosophe quon surprit agrave mesme ce quil faisoit Il respondit tout froidement Je plante un homme [hellip]rdquo194

ldquo[C] Car Diogenes exerccedilant en publiq sa masturbation faisoit souhait en presence du peuple assistant qursquoil peut ainsi saouler son ventre en le frottant [hellip] Ces philosophes icy donnoient extreme prix agrave la vertu et refusoient toutes autres disciplines que la moralerdquo195

190 Les Essais II 12 p 581 191 Les Essais II 12 p 582 192 Villey op cit p 197 193 Les Essais II 12 p 582 194 Les Essais II 12 p 584 195 Les Essais II 12 p 585

61

A relatividade das leis e costumes e a impossibilidade de se chegar a acordo

entre os povos tendo em vista estabelecer leis universais leva Montaigne a uma espeacutecie

de denuacutencia da praacutetica dos encarregados pela execuccedilatildeo das leis que jaacute por si satildeo tatildeo

questionaacuteveis Isto torna a lei supostamente universal ainda mais sujeita agrave rejeiccedilatildeo

segundo Montaigne Vale a pena recordar aqui o exemplo de que Montaigne ouviu

falar de um juiz que quando deparava com um seacuterio conflito entre Bartoldo e Baldo196

ou com alguma mateacuteria agitada por muitas contradiccedilotildees escrevia na margem de seu

livro ldquoQuestatildeo para o amigordquo Montaigne observa que neste caso a verdade era tatildeo

confusa e debatida que o juiz em causa poderia favorecer a parte que bem entendesse e

conclui

ldquo[A] Les advocats et les juges de nostre temps trouvent agrave toutes causes assez de biais pour les accommoder ougrave bon leur semble A une science si infinie deacutependant de lauthoriteacute de tant dopinions et dun subject si arbitraire il ne peut estre quil nen naisse une confusion extreme de jugemens Aussi nest-il guiere si cler proceacutes auquel les advis ne se trouvent divers Ce quune compaignie a jugeacute lautre le juge au contraire et elle mesmes au contraire une autre fois Dequoy nous voyons des exemples ordinaires par ceste licence qui tasche merveilleusement la cerimonieuse authoriteacute et lustre de nostre justice de ne sarrester aux arrests et courir des uns aux autres juges pour decider dune mesme causerdquo197

Eacute interessante destacar este exemplo tambeacutem porque Montaigne tinha

conhecimentos profundos da ciecircncia do direito conforme reconhece a maioria dos

comentadores da sua obra Como magistrat tinha conhecimento de causas nas quais se

manifestava aquilo contra o qual se opunha Isto vem confirmar ainda mais a posiccedilatildeo de

Montaigne face agrave sua incansaacutevel busca de leis universais que natildeo estivessem sujeitas agraves

constantes mutaccedilotildees de que a razatildeo humanaldquo[B] un pot agrave deux anses qursquoon peut saisir

agrave gauche et agrave dextrerdquo eacute responsaacutevel e que [A] fornit drsquoapparence agrave divers effectsrdquo198

Ao abordar a problemaacutetica da moral na ldquoApologierdquo Montaigne chega a algumas

conclusotildees que natildeo se distanciam fundamentalmente de todo o projecto do ensaio Isto

eacute defende que haacute um relativismo significativamente claro relativamente agrave moral Villey

faz algumas afirmaccedilotildees que resumem claramente esta problemaacutetica ldquoIl nrsquoy a pas de

souverain bien il nrsquoy a pas de loi naturelle toute obligation moralle est fortuite

196 Trata-se de dois juristas do seacuteculo XIV que no seacuteculo XV ainda tinham grande influecircncia 197 Les Essais II 12 p 582 198 Les Essais II 12 p 581

62

contingenterdquo199 E tudo isto deve-se agrave criacutetica destruidora da razatildeo humana que

Montaigne apresenta no texto Para ele a razatildeo quer julgar tudo quer elaborar leis

universais sem mesmo ter condiccedilotildees para semelhante empreendimento A razatildeo como

vimos eacute multiforme inconstante infinita Ela avanccedila sempre mesmo torta mesmo

manca mesmo desancada tanto com a mentira como com a verdade A razatildeo eacute um

instrumento de chumbo e de cera alongaacutevel dobraacutevel e adaptaacutevel a todas as

perspectivas e a todas as medidas200 Segundo Montaigne a razatildeo eacute ldquo[B] un miserable

fondement de nos regles et qui nous represente volontiers une tres-fauce image des

choses comme vainement nous concluons aujourdrsquohui lrsquoinclination et la decrepitude du

monde par les arguments que nous tirons de nostre propre foiblesse et decadencerdquo201

Em suma Montaigne tem consciecircncia de que eacute impossiacutevel chegar a qualquer

determinaccedilatildeo no domiacutenio da moral atraveacutes da razatildeo Por isto assume uma atitude

ceacuteptica em face desta questatildeo

199 Villey op cit p198 200 Cf nota 122 201 Les Essais III 6 p 908

63

Consideraccedilotildees finais

A leitura da ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo permitiu-nos esclarecer aspectos

importantes da criacutetica demolidora da razatildeo humana levada a cabo por Montaigne

Eacute claro que uma motivaccedilatildeo importante que levou Montaigne a escrever a

ldquoApologierdquo foi a obra do teoacutelogo catalatildeo Sebond Theologia Naturalis Eacute importante

destacar que o proacuteprio tiacutetulo do ensaio ldquoApologiehelliprdquo isto eacute elogio defesa natildeo reflecte

exactamente o seu propoacutesito que eacute a defesa de Sebond A anaacutelise do texto permite

captar algo de paradoxal Montaigne dispotildee-se a defender este teoacutelogo catalatildeo num

ensaio no qual ele proacuteprio se distancia claramente da doutrina de Sebond Neste

sentido haacute um significativo distanciamento entre o tiacutetulo do ensaio e o seu conteuacutedo O

ponto de partida de Montaigne eacute uma espeacutecie de declaraccedilatildeo de que as ideias de Sebond

satildeo convincentes mas imediatamente a seguir muda de opiniatildeo partindo de sua

concepccedilatildeo negativa do homem e natildeo acredita nos supostos poderes da razatildeo Dito de

outro modo Montaigne natildeo sustentava o propoacutesito da Theologia naturalis isto eacute a

pretensatildeo de apoiar a crenccedila dos leitores convidando-os a fazer um esforccedilo de adaptaccedilatildeo

dos instrumentos naturais e humanos considerados como dons de Deus especialmente

a razatildeo pondo-os ao serviccedilo da feacute

Montaigne ldquoaplauderdquo a atitude de Sebond202 Mas imediatamente a seguir critica

o teoacutelogo catalatildeo atacando os vaacuterios argumentos filosoacuteficos presentes na sua obra Na

raiz da sua criacutetica estaacute o facto de estes argumentos se fundamentarem numa visatildeo

antropocecircntrica da supremacia do homem como criatura privilegiada da criaccedilatildeo o

homem por ser detentor da razatildeo diferentemente dos outros animais tem uma

finalidade uma perfeiccedilatildeo e uma dignidade que merece ser exaltada Montaigne natildeo

aceita esta visatildeo que norteia tanto a obra de Sebond como o pensamento de todos

aqueles que faziam apologia da dignitas hominis Denuncia a presunccedilatildeo ilusoacuteria do

homem Desta perspectiva utiliza vaacuterios relatos anedoacuteticos de animais para justificar a

sua posiccedilatildeo E a conclusatildeo principal a que o conduz este percurso eacute que o homem natildeo

estaacute nem acima nem abaixo do resto dos seres naturais203 Dito de outro modo a

consideraccedilatildeo de que unicamente o homem eacute possuidor da razatildeo natildeo tem qualquer

relevacircncia segundo a ldquoApologierdquo

202 Cf nota 1 203 Cf nota 31

64

Da batalha travada por Montaigne contra os vaacuterios opositores da obra de

Sebond podemos destacar a posiccedilatildeo criacutetica que ele assume face aos presunccedilosos

racionalistas que diziam que os argumentos de Sebond eram fracos Diante destes

doutos Montaigne iraacute sustentar a tese de que o homem natildeo sabe nada Haacute que salientar

no entanto que o teoacutelogo catalatildeo estava em ldquocomunhatildeordquo com o pensamento apologeacutetico

de sua eacutepoca isto eacute recorreu agrave razatildeo para provar certos dogmas Para Montaigne o

principal perigo vem daqueles que atribuem super poderes agrave razatildeo Eacute por isso tambeacutem

que Montaigne sustenta que a razatildeo deve submeter-se agrave autoridade divina Esta

submissatildeo natildeo exclui a razatildeo mas considera-a como um meio de compreender o motivo

da feacute Esta feacute deve ser concebida como uma expectativa da graccedila sem a qual nada eacute

possiacutevel ao homem Segundo Montaigne natildeo somos capazes de perceber que toda a

certeza estaacute vedada ao homem reduzido a si proacuteprio204

Podemos perceber que a utilizaccedilatildeo da razatildeo para explicar as realidades da

religiatildeo natildeo tem sentido na ldquoApologierdquo Montaigne natildeo tem necessidade de fazer

apologia da feacute205 A sua perspectiva eacute unicamente humana e isto vai estruturar toda a

sua reflexatildeo na ldquoApologierdquo Quando se refere agrave graccedila como dom sobrenatural nem o

absoluto nem a graccedila actuam no interior de sua visatildeo antropoloacutegica A graccedila eacute

apresentada por Montaigne como uma metamorfose

ldquo[C] Crsquoest agrave nostre foy Chrestienne non agrave sa vertu Stoique de pretendre agrave cette divine et miraculeuse metamorphoserdquo206

Montaigne descobre em si proacuteprio o pirronismo atraveacutes da volubiliteacute207 presente

nas vaacuterias atitudes dos filoacutesofos Pocircs em duacutevida as diversas opiniotildees dos filoacutesofos

denunciando-as como contraditoacuterias criticou as doutrinas filosoacuteficas dogmaacuteticas mas

natildeo assumiu nenhuma doutrina definida Montaigne assume o pirronismo como meacutetodo

e natildeo como um adepto cego para enfrentar os problemas presentes na ldquoApologierdquo

O pirronismo eacute assumido por Montaigne como modo de pensamento e como

meacutetodo de vida Este pirronismo permite-lhe ter em conta na ldquoApologierdquo a incerteza de

204 Cf Nota 93 205 O autor esclarece esta questatildeo da seguinte maneira na ediccedilatildeo posterior a 1588 ldquo[C] Je propose les fantasies humaines et miennes simplement comme humaines fantasies [hellip] matiere dopinion non matiere de foy ce que je discours selon moy non ce que je croy selon Dieu comme les enfants proposent leurs essais intruisables non instruisants dune maniere laiumlque non clericale mais tresminusreligieuse tousjoursrdquo (Les Essais I 56 p 323) 206 Les Essais II 12 p 604 207 Les Essais II 12 p 569

65

nossos juiacutezos a incerteza que todos sentem em si208 em relaccedilatildeo ao conhecimento O

pirronismo faz desaparecer as ilusotildees da certeza e como ele natildeo se envolve nas

questotildees da ldquoirresolution infinierdquo209 procura uma seguranccedila na tranquilidade do

espiacuterito que com a do corpo constitui o soberano bem210 Ao assumir a atitude

pirroacutenica Montaigne natildeo se transforma num homem passivo num ldquopeso mortordquo Muito

pelo contraacuterio sustenta que devemos sempre levantar questotildees reconhecer a nossa

ignoracircncia face agraves vaacuterias resoluccedilotildees tomadas como certas pela presunccedilosa razatildeo

humana duvidar sempre e ter uma atitude de busca incessante de novas ideias

Isto significa que Montaigne defende a tese de que somos convidados a

considerar que os conhecimentos adquiridos devem ser sempre sustentados como

provisoacuterios e natildeo como verdades absolutas Isto natildeo exclui evidentemente o facto de

que podemos apresentar as nossas visotildees prismaacuteticas das coisas e ateacute sustentaacute-las se

assim for necessaacuterio

Na ldquoApologierdquo Montaigne assume uma atitude pirroacutenica sui generis Demonstra

constantemente uma reaccedilatildeo contra os dogmatismos Ele eacute um pensador que estaacute sempre

em busca Nunca cessa de investigar Estaacute sempre em debate consigo mesmo Neste

aspecto pode-se dizer que assume uma atitude diferente do pirronismo grego o qual

defendia a tese da impossibilidade de qualquer juiacutezo Natildeo estaacute preocupado em encontrar

um ldquoroacutetulo de marca registadardquo para suas reflexotildees filosoacuteficas Ou seja natildeo tinha como

objectivo elaborar uma apologia de uma doutrina a ser seguida por adeptos

Montaigne apresenta os seus juiacutezos com a sua razatildeo criacutetica sem ter

necessariamente que defender a tese de que a razatildeo humana ndash instrumento flexiacutevel

recurvaacutevel e adaptaacutevel a qualquer forma211- eacute sempre o guia prudente e seguro de uma

conduta correcta e perfeita Montaigne procura demonstrar racionalmente - e aqui

reside em seu entender o uso positivo da razatildeo ndash que natildeo haacute essecircncia nem verdade

absoluta acerca do homem e que de algumas coisas sempre agrave mercecirc do poder do tempo

noacutes soacute observamos as aparecircncias

ldquo[A] Finalment il nrsquoy a aucune constante existence ny de nostre estre ny de celuy des objects [hellip] Nous nrsquoavons aucune communication agrave lrsquoestre [hellip]rdquo212

208 Cf Les Essais II 12 p 563 209 Cf Les Essais II 12 p 561 210 Cf Les Essais II 12 p 488 211 Cf Les Essais II 12 p 539 212 Les Essais II 12 p 601

66

Montaigne duvida de todos os conhecimentos humanos recebidos por autoridade

e em confianccedila (agrave credit) como se fossem religiatildeo e lei213 tais conhecimentos natildeo

passam de falsas evidecircncias do quotidiano E isto vale sobretudo para todos os tipos de

produccedilatildeo racional que satildeo consequecircncia da vaidade humana

Montaigne esforccedila-se por investigar as opiniotildees dos outros e isto motiva-o a

formular um pensamento mais pessoal preocupado com o que eacute justo e a expandir o

seu proacuteprio conhecimento relativo e precaacuterio As suas investigaccedilotildees natildeo satildeo dogmaacuteticas

e soacute o comprometem a ele proacuteprio Eacute um pensador que estaacute sempre em busca que natildeo

tem a presunccedilatildeo de querer saber tudo sobre todas as coisas Mas ao mesmo tempo

podemos dizer que eacute um pensador que descobriu num mundo marcado por tantas

conturbaccedilotildees graccedilas agraves suas proacuteprias experiecircncias uma consciecircncia real e soacutelida da sua

existecircncia concreta no mundo Este facto levou-o a assumir a atitude de natildeo querer

ensinar nem dirigir a vida de ningueacutem Vale a pena citar a este respeito um pequeno

trecho de um outro ensaio que Montaigne escreveu provavelmente na mesma eacutepoca da

ldquoApologierdquo e que reflecte claramente a posiccedilatildeo por ele assumida e que pode ser

classificada natildeo como a de um filoacutesofo profissional detentor de verdades que devem ser

ensinadas aos outros mas como a de algueacutem que estaacute sempre em busca e natildeo se inibe de

expressar as suas opiniotildees

ldquo[A] Je dy librement mon advis de toutes choses voire et de celles qui surpassent agrave ladventure ma suffisance et que je ne tiens aucunement estre de ma jurisdiction Ce que jen opine cest aussi pour declarer la mesure de ma veueuml non la mesure des chosesrdquo214

Montaigne renuncia a tarefa de querer provar atraveacutes da razatildeo humana aquilo

que estaacute em uacuteltima instacircncia no domiacutenio da feacute Ele eacute um homem que crecirc em Deus

ldquo[A] Il a laisseacute en ces hauts ouvrages le caractere de sa diviniteacute et ne tient quagrave nostre imbecilliteacute que nous ne le puissions descouvrirrdquo215

Uma quantidade importante de pessoas no mundo proclama a existecircncia de

Deus Mas este Deus natildeo pode ser conhecido racionalmente pelo homem

ldquoIl sen faut tant que nos forces conccediloivent la hauteur divine que des ouvrages de nostre createur ceux-lagrave portent mieux sa marque et sont mieux siens que nous entendons le moinsrdquo216

213 Cf Les Essais II 12 p 539 214 Les Essais II 10 p 410 215 Les Essais II 12 pp 446-447 216 Les Essais II 12 p 499

67

Relativamente agrave moral Montaigne sustenta a tese de que a razatildeo humana natildeo

tem o poder de determinar quais satildeo os bons e os maus costumes as boas e as maacutes leis e

normas para qualquer grupo social

Diante da leitura que fizemos da ldquoApologierdquo onde Montaigne apresenta uma

criacutetica destruidora agrave razatildeo tirando-lhe quase todos os atributos recebidos durante toda a

histoacuteria da filosofia podemos portanto perguntar-nos qual eacute o papel da razatildeo humana

A resposta a esta questatildeo eacute muito complexa A criacutetica montaigneana agrave razatildeo natildeo se

limitou a menosprezar a ciecircncia (filosofia) a ldquoteologia racionalistardquo e as suas pretensotildees

de querer dar explicaccedilotildees sobre questotildees de feacute e de religiatildeo atacou tambeacutem

profundamente o espiacuterito humano negando-lhe capacidades que na maioria das vezes

satildeo atributos da pretensatildeo humana Para ilustrar mais claramente esta ideia seraacute

interessante fazer referecircncia a uma passagem ceacutelebre do livro III na qual Montaigne

conta uma pequena histoacuteria de um escravo chamado Esopo

Conta-nos o autor que Esopo estava exposto agrave venda com dois outros escravos

Um comprador indagou de um deles que sabia fazer este para se valorizar contou mil

maravilhas (monts et merveilles) O segundo disse mais ainda Quando chegou a sua

vez Esopo respondeu ldquonada eles jaacute pegaram em tudo eles sabem tudordquo Montaigne

observa que verificou o mesmo nas escolas de filosofia A arrogacircncia o orgulho (fierteacute)

dos que atribuiacuteram ao espiacuterito humano a capacidade de tudo saber levou os outros a

afirmar por despeito ou contradiccedilatildeo que o espiacuterito natildeo era capaz de coisa alguma

Estes exaltavam ao extremo a ignoracircncia tal como aqueles glorificavam absurdamente a

ciecircncia De modo que natildeo haacute como negar que o homem eacute imoderado em tudo e soacute cessa

quando forccedilado pela capacidade de ir aleacutem217

Em suma a ldquoApologierdquo nos apresenta um questionamento profundo em relaccedilatildeo

a todo o tipo de conhecimento fundado na razatildeo Arruiacutena os fundamentos deste

conhecimento produzido pelos homens do saber doutos e filoacutesofos antigos A estes

ldquosaacutebiosrdquo em geral que pensavam ser possuidores da verdade Montaigne dirige uma

criacutetica iroacutenica

laquo [C] Fiez vous agrave vostre philosophie vantez vous davoir trouveacute la feve au gasteau [hellip] raquo218

217 Cf Les Essais II 11 p 1035 218 Les Essais II 12 p 516 Esta citaccedilatildeo faz referecircncia agrave tradiccedilatildeo de na Epifania compartilhar um bolo contendo uma fava quem recebesse a fatia laquo premiada raquo era chamado laquo o rei da fava raquo Tratava-se de algo que figuradamente garantia uma espeacutecie de vantagem

68

Bibliografia

1 - Obras de Michel de Montaigne

Les Essais eacutedition conforme au texte de lrsquoexemplaire de Bordeaux par Pierre Villey

reacuteeacutediteacute sous la direction et avec un preacuteface de V-L Saulnier augmenteacute en 2004 drsquoune

preacuteface et drsquoun suppleacutement de Marcel Conche Paris QuadriguePUF 2004 (ediccedilatildeo de

referecircncia no nosso estudo)

Essais Livre second eacutedition preacutesenteacutee eacutetablie et annoteacutee par Emmanuel Naya

Delphine Reguig-Naya et Alexandre Tarrecircte Paris () Gallimard 2009

2 Estudos sobre Montaigne

AA VV Le dictionnaire des Essais de Montaigne Paris ( ) Eacuteditions Leacuteo Scheer

2011

AA VV Montaigne et la reacutevolution Philosophique du XVI siegravecle Bruxelles Eacuteditions

de lrsquoUniversiteacute de Bruxelles 1992

AUREacuteLIO Diogo Pires Montaigne e Espinosa toleracircncia ceacuteptica e toleracircncia

racionalista In O Cepticismo e Montaigne Rui Bertrand Romatildeo (org) Covilhatilde

Universidade da Beira Interior 2003 pp 141-160

BIRCHAL Telma de Souza O eu nos Ensaios de Montaigne Belo Horizonte Editora

UFMG 2007

BIGNOTTO Newton ldquoMontaigne Renascentistardquo Kriterion Revista do Departamento

de Filosofia da UFMG Belo Horizonte XXXIII 86 agodez 1992 p 29-41

BUTOR Michel Essais sur les essais Paris Gallimard 1968

CATALAN Eacutetienne Eacutetudes sur Montaigne analyse de sa philosophie Paris Hellier

Fregraveres Librairie Religieuse 1846

CHAMPION Edme Introduction aux Essais de Montaigne Paris Armand Colin amp Cie

Eacutediteurs 1900

COMPAGNON Antoine Nous Michel de Montaigne Paris Seuil 1980

CONCHE Marcel Montaigne et la philosophie Paris Puf 1996

69

_____________ Montaigne ou la conscience heureuse Paris PUF 2009

DUARTE Tiago Barros Skepticism and religion in Michel de Montaigne two

interpretations of apology for Raymond Sebond Intuitio Porto Alegre V2 ndash Nordm 3

Novembro 2009 pp 298-307

FILHO Celso Martins Azar Montaigne e Soacutecrates cepticismo conhecimento e

virtude In Revista Portuguesa de Filosofia Tomo LVIII Fasc 4 2002

FRIEDRICH Hugo Montaigne Traduzido do alematildeo por Robert Rovini Paris

Gallimard 1967

GIOCANTI Sylvia Montaigne et les becirctes La becirctise et lrsquoanimal dans les Essais de

Montaigne Universiteacute de Toulouse-II Le Mirail UMR 5037 (ENS-Lyon) 2011

HENDRICK Philip Montaigne and Sebond scepticism faith and imagination In O

Cepticismo e Montaigne Rui Bertrand Romatildeo (org) Covilhatilde Universidade da Beira

Interior 2003 pp 83-102

JEANSON Franccedilois Montaigne par lui-mecircme Paris Seuil 1951

LACOUTURE Jean Montaigne agrave cheval (Montaigne a cavalo) Traduzido por F

Rangel Rio de JaneiroSatildeo Paulo Editora Record 1998

LANUSSE Maxime Montaigne Paris Lecegravene Oudin et Cie Eacutediteurs 1895

LEVEAUX Alphonse Eacutetude sur les Essais de Montaigne Paris Henri Plon

Imprimeur-Eacutediteur 1870

MATHIEU-CASTELLANI Gisegravele Montaigne ou la veacuteriteacute du mensonge Genegraveve

Droz 2000

MONSIEUR L Le chistianisme de Montaigne Paris Imprimerie de Demonville 1819

_______ Montaigne lrsquoeacutecriture de lrsquoessai Paris PUF 1988

NAKAM Geacuteranrd Montaigne et son temps Paris Gallimard 1993

RIGOLOT Franccedilois Le texte de la renaissance des rheacutetoriqueurs agrave Montaigne

Genegraveve Droz 1982

_______ Les meacutetamorphoses de Montaigne Paris PUF 1988

RIVELINE Maurice Montaigne et lrsquoamitieacute Paris Librairie Feacutelix Alcan 1939

70

71

ROMAtildeO Rui Bertrand A apologia na balanccedila a reinvenccedilatildeo do pirrorismo na

Apologia de Raimundo Sabunde de Michel de Montaigne Lisboa Imprensa Nacional

Casa da Moeda 2007

SANTI Pedro Luiz Ribeiro de Montaigne e a reflexatildeo moral no seacuteculo XVI In Revista

Olhar ano 04 nordm 7 jan-jun 03 pp 76-85

STAROBINSKI Jean Montaigne en mouvement Paris Gallimard 1982

STROWSKI Fortunat Montaigne Paris Feacutelix Alcan Eacutediteurs 1906

VERDAN Andreacute Le scepticisme philosophique Paris-Montreacuteal Bordas 1971

VILLEY Pierre Les sources et lrsquoeacutevolution des essais de Montaigne Tome Premier

Paris Librairie Hachete 1908

______ Les sources et lrsquoeacutevolution des essais de Montaigne Tome Second Paris

Librairie Hachete 1908

______ Montaigne devant la posteacuteriteacute Paris Ancienne Librairie Furne ndash Boivin et Cie

Eacutediteurs 1935

WEILLER Maurice Pour connaitre la penseacutee de Montaigne Paris Bordas 1948

3 ndash Outras obras citadas

ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Livro I e II Traduccedilatildeo do grego por Vicenzo Coceo

Coleccedilatildeo Os Pensadores Satildeo Paulo Abril S A Cultural 1984

CASSIRER Ernst An essay on man Traduccedilatildeo portuguesa de Carlos Branco Ensaio

sobre o homem Lisboa Guimaratildees Editores 1995

Nouveau Testament Traduction Oecumeacutenique de la Bible Paris PUF 1977

SEXTUS EMPIRICUS Les hipotiposes ou instituitions pirroniennes Trad do grego

por Claude Huart Amsterdam Barbier MDCC XXV

AA VV Histoacuteria das sociedades das sociedades modernas agraves sociedades atuais Rio

de Janeiro Ao Livro Teacutecnico 1983

  • IacuteNDICE
Page 7: MARÇO DE 2012

choses estrangeres si elle connoit quelque chose aumoins sera ce son estre et son domicile [hellip] la vraye raison et essentielle de qui nous desrobons le nom agrave fauces enseignes elle loge dans le sein de Dieu [hellip]rdquo2

Compreender as razotildees do cepticismo de Montaigne significa antes de mais

aprofundar os aspectos mais marcantes da sua antropologia Por isso comeccedilaremos por

abordar ainda que de forma breve a concepccedilatildeo antropoloacutegica que estaacute subjacente na

ldquoApologierdquo Com efeito a razatildeo ndash esse grande motivo de orgulho do homem e que eacute

considerada como um sinal da sua participaccedilatildeo no ser ndash passa a ser concebida por

Montaigne como um mero fruto da pretensatildeo e vaidade humanas para explicar crenccedilas

costumes etc Entre os alvos da criacutetica de Montaigne encontram-se aquelas teorias que

potildeem o homem no ldquotopo da piracircmiderdquo das criaturas do universo Enquanto Sebond

coloca o homem no topo da escala dos seres Montaigne recoloca-o no seio da natureza

e rebaixa-o ao niacutevel dos animais

Pretendemos deste modo compreender melhor as razotildees do ldquodestronamentordquo

realizado por Montaigne deste ser ldquotodo-poderosordquo que eacute o homem Ou o que eacute o

mesmo pretendemos compreender o ldquocepticismo da razatildeordquo que Montaigne assume

conscientemente com o intuito de rejeitar a pretensatildeo do homem de se considerar pela

interposiccedilatildeo da razatildeo no centro do universo

Em segundo lugar para compreender o lugar e o valor da razatildeo na obra de

Montaigne seraacute necessaacuterio investigar os motivos que levaram o autor a tecer uma

criacutetica tatildeo contundente da razatildeo humana aprofundando em concreto as relaccedilotildees que

esta criacutetica tem com a sua anaacutelise da religiatildeo Haacute que ter em conta no entanto que a

atitude de desconfianccedila da razatildeo natildeo conduziu Montaigne a pocircr em causa a feacute cristatilde

dado que em seu entender esta se situa num plano diferente natildeo sendo portanto

susceptiacutevel de ataque pelo seu espiacuterito criacutetico

A pertinecircncia desta questatildeo ressalta quando se tem em conta que o autor inicia o

seu texto a partir de uma motivaccedilatildeo teoloacutegica podemos conhecer racionalmente Deus

Montaigne dedica um nuacutemero significativo de paacuteginas a mostrar que os atributos

divinos natildeo satildeo alcanccedilaacuteveis pelos exerciacutecios racionais dos homens detentores das

ldquoverdades filosoacuteficasrdquo Como fideiacutesta Montaigne pensa que a verdade em religiatildeo se

baseia em uacuteltima instacircncia na feacute e natildeo no raciociacutenio ou na demonstraccedilatildeo Pretende-se

2 Les Essais II 12 p 541

7

compreender neste ponto com faz Montaigne a transiccedilatildeo da criacutetica teoloacutegica agrave criacutetica do

conhecimento em geral

Na mesma linha de compreensatildeo dos limites da razatildeo seraacute importante

aprofundar num terceiro momento a criacutetica da ciecircncia desenvolvida por Montaigne na

ldquoApologierdquo Montaigne quer derrubar a tola vaidade e sacudir viva e corajosamente os

fundamentos ridiacuteculos como ele mesmo diz sobre os quais se constroem as falsas

ideias produzidas pela ciecircncia

Encontramos tambeacutem nesta parte um nuacutemero significativo de citaccedilotildees de

filoacutesofos antigos que Montaigne referencia para justificar a sua criacutetica radical agrave ciecircncia

Para ele os mais famosos filoacutesofos representantes do saber humano natildeo conseguiram

dar as verdadeiras respostas agraves questotildees fundamentais do ser humano Quais satildeo as

verdades as certezas sobre o homem e sobre Deus que esses saacutebios filoacutesofos nos

legaram

Em quarto e uacuteltimo lugar seraacute importante considerar de que modo Montaigne

relaciona a razatildeo humana e a moral Naturalmente natildeo seraacute possiacutevel considerar

detidamente o tema da moral na ldquoApologierdquo trata-se apenas de procurar perceber por

que razatildeo o autor ldquodecretardquo a impossibilidade de fundamentar na razatildeo um conjunto de

regras normas e leis que dizem respeito agrave vida praacutetica de qualquer grupo humano

Procurar-se-aacute reconstituir os vaacuterios argumentos de Montaigne que justificam a sua

tomada de posiccedilatildeo relativista no acircmbito da moral

8

1 A ideia do homem na ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo

Quando nos colocamos diante do desafio de estudar os Essais de Michel de

Montaigne uma questatildeo que importa perceber melhor eacute o periacuteodo no qual o autor

escreveu a sua obra Mais especificamente estudar o humanismo renascentista tendo

em vista que o autor dos Essais eacute considerado como um pensador deste periacuteodo

Abordaremos no entanto apenas alguns aspectos importantes daquela eacutepoca

Montaigne viveu num periacuteodo em que emergia uma nova visatildeo do mundo em

que o homem passou a ser o centro das atenccedilotildees em todos os aspectos O geocentrismo

medieval que centrava suas atenccedilotildees na relaccedilatildeo com Deus foi substituiacutedo pela

glorificaccedilatildeo do humano As pessoas interessadas nesta ruptura com os ideais medievais

buscavam inspiraccedilatildeo nas obras greco-romanas para representarem o seu proacuteprio mundo

O humanismo renascentista concebe-se como um movimento intelectual de

valorizaccedilatildeo da antiguidade claacutessica Natildeo se tratava poreacutem apenas de copiar as

realizaccedilotildees do classicismo greco-romano Este movimento representou algo que pode

ser considerado como uma ldquoglorificaccedilatildeo do homemrdquo agora colocado no centro de todas

as indagaccedilotildees e preocupaccedilotildees consistia em sentido amplo numa tomada de posiccedilatildeo

antropocecircntrica em reacccedilatildeo ao teocentrismo que imperava na Idade Meacutedia

Os humanistas deixaram de aceitar os valores e maneiras de ser e viver da Idade

Meacutedia Por conseguinte o interesse pela antiguidade experimenta-se como um meio

para atingir um fim Os humanistas viam na antiguidade

ldquo[hellip] aquilo que correspondia aos desejos que sentiam [hellip] Pretendiam encontrar nos antigos o Homem considerado como o ser geral impessoal universal que existe sob a mesma forma em toda parte [hellip] O humanismo eacute uma teacutecnica da vida cotidianardquo3

A produccedilatildeo intelectual deste periacuteodo concebia-se natildeo como um retorno ao

passado mas como uma tentativa de buscar nos claacutessicos greco-romanos uma fonte de

inspiraccedilatildeo O humanismo renascentista aleacutem de representar uma forte reacccedilatildeo a todos

os padrotildees culturais medievais escolaacutesticos tendeu tambeacutem fortemente a contrapor a feacute

e a razatildeo

Na sua globalidade a reflexatildeo dos Essais tem como um dos seus objectivos

principais a caracterizaccedilatildeo do homem Nesta perspectiva Michel de Montaigne se

3 AA VV Histoacuteria das sociedades das sociedades modernas agraves sociedades atuais Rio de Janeiro Ao Livro Teacutecnico 1983 p 70

9

apresenta como um pensador humanista que viveu numa altura em que a visatildeo

antropocecircntrica era dominante No entanto ele procurou superar esta concepccedilatildeo de uma

maneira muito particular A concepccedilatildeo antropoloacutegica claacutessica renascentista enaltecia

radicalmente a ldquodignitas hominisrdquo4 colocando o homem no centro do universo

Montaigne assume uma postura significativamente diferente do espiacuterito humanista

renascentista despreza o tema da dignitas hominis e dedica-se agrave investigaccedilatildeo das coisas

concretas da vida

O humanismo de Montaigne ao contraacuterio do humanismo dominante alicerccedila-se

na ldquomiseria hominisrdquo5 Parte de plena consciecircncia dos limites da razatildeo humana no

sentido de que as suas faculdades natildeo tecircm condiccedilotildees para transcender estes mesmos

limites A razatildeo o grande orgulho do homem eacute concebida como uma estrateacutegia de

racionalizaccedilatildeo dos vaacuterios elementos da vida (costumes crenccedilas etc) que procura

transformar atribuindo-lhe uma verdade que natildeo consegue transcender a contingecircncia

Potildee-se assim em destaque ateacute que ponto a posiccedilatildeo de Montaigne contrasta com a visatildeo

de ldquodignitas hominisrdquo acima referida a mais comummente assumida na sua eacutepoca Para

ele o homem soacute pode ser o que eacute e imaginar de acordo com a sua medida

ldquo[C] Tout contentement des mortels est mortel [A] La reconnoissance de nos parens de nos enfants et de nos amis si elle nous peut toucher et chatouiller en lrsquoautre monde si nous tenons encore agrave un tel plaisir nous sommes dans les commoditez terrestres et finies Nous ne pouvons dignement concevoir la grandeur de ces hautes et divines promesses si nous les pouvons aucunement concevoir pour dignement les imaginer il

4 Para ilustrar as principais caracteriacutesticas desta concepccedilatildeo vale a pena citar um texto muito conhecido de um dos maiores representantes do humanismo renascentista Pico della Mirandola O texto em causa pode ser considerado como uma espeacutecie de manifesto do pensamento humanista renascentista em geral Pico exalta o homem entre todos os seres da natureza e dos ceacuteus como um ser potencialmente capaz de auto-criar-se de auto-projectar-se e de modelar-se a si mesmo com liberdade Pico ldquocoloca na boca de Deusrdquo algumas palavras endereccediladas imaginativamente ao homem receacutem-criado (Adatildeo) ldquo[hellip] Medium te munde posui ut circumspiceres inde commodius quicquid est in mundo Nec te caelestem neque terrenum neque mortalem neque immortalem fecimus ut tui ipsius quasi arbitrarius honorarius que plastes et fictor in quam malueris tute formam effingas Poteris in inferiora quae sunt bruta degenerare poteris in superiora quae sunt divina ex tui animi sententia regenerarirdquo (Coloquei-te no meio do mundo para que daiacute possas olhar melhor tudo o que haacute no mundo Natildeo te fizemos celeste nem terreno nem mortal nem imortal a fim de que tu aacuterbitro e soberano artiacutefice de ti mesmo te plasmasses e te informasses na forma que tivesses seguramente escolhido Poderaacutes degenerar ateacute aos seres que satildeo as bestas poderaacutes regenerar-te ateacute agraves realidades superiores que satildeo divinas por decisatildeo do teu acircnimo) In Pico de la Mirandola Giovanni Oratio de Hominis Dignitate Ediccedilatildeo bilingue Traduccedilatildeo e introduccedilatildeo de Maria de Lurdes Sirgado Ganho Lisboa Ediccedilotildees 70 2001 pp 56-57) 5Para uma apresentaccedilatildeo sinteacutetica e clara deste tema pode-se consultar Friedrich Hugo Montaigne Traduzido do alematildeo por Robert Rovini Paris Gallimard 1967 sobretudo as paacuteginas 133-136 Nesta mesma perspectiva na obra de Rui Bertrand Romatildeo A Apologia na balanccedila a reinvenccedilatildeo do pirronismo na Apologia de Raimundo Sabunde de Michel de Montaigne Lisboa Imprensa Nacional Casa da Moeda 2007 haacute uma reflexatildeo que merece ser lida (pp 79-82)

10

faut les imaginer inimaginables indicibles incomprehensibles [C] et parfaictement autres que celles de nostre miserable experiencerdquo6

Constatando esse limite da razatildeo humana Montaigne combate decididamente as

concepccedilotildees da ldquodignitas humanisrdquo que tecircm como escopo transformar o homem no fim

uacuteltimo da natureza Montaigne ao voltar-se para o homem concreto ao rebaixaacute-lo e

tiraacute-lo do seu pedestal na ldquoApologierdquo assume uma atitude ceacuteptica entendida como

uma forma de pensamento capaz de seguir a mudanccedila e de rejeitar ao mesmo tempo a

pretensatildeo do homem de se considerar por via da razatildeo no centro do universo

Cabe entatildeo perguntar seraacute que o homem ocupa realmente um lugar central nos

Essais A resposta a esta questatildeo eacute expressa de maneira bastante niacutetida na proacutepria

obra Friedrich no seu conhecido trabalho sobre Montaigne afirma

ldquo[A] On peut ouvrir les Essais ougrave lrsquoon veut toujours ils traitent de lrsquohommerdquo7

Haacute muitos outros temas desenvolvidos nos Essais Basta lanccedilar um raacutepido olhar

sobre os tiacutetulos dos vaacuterios ensaios que compotildeem os trecircs livros da obra para constatar a

quantidade enorme de assuntos tratados por Montaigne

Na sua busca incessante de resposta agrave questatildeo central antes referida merece ser

destacado o contacto de Montaigne com a obra de Sebond Theologia Naturalis que seraacute

a base da ldquoApologierdquo Entre muitas outras questotildees desenvolvidas nesta obra o teoacutelogo

catalatildeo tem como objectivo importante responder agrave questatildeo o que eacute o homem Citando

o proacuteprio Sebond Rui Bertrand Romatildeo afirma que haacute uma ideia baacutesica de ordem

hieraacuterquica observada na scala naturale em todos os seus 4 degraus

ldquoNo inferior estatildeo as coisas apenas providas de ser as coisas minerais no segundo as que tecircm ser e vida as vegetais no terceiro as animais em que ao ser e agrave vida se juntam os sentidos no uacuteltimo encontra-se a criatura humana acima da qual natildeo haacute na natureza nenhum outro ser pois o homem possui as qualidades de todas as demais criaturas simultaneamente e em conjunto tendo aleacutem delas a razatildeo e o livre-arbiacutetrio [hellip]rdquo8

Continua o autor mais adiante

ldquo[hellip] A caracteriacutestica dominante da teologia de Sebond consiste precisamente no lugar privilegiado que nela ocupa a referecircncia do homem natildeo apenas como objecto de conhecimento mas como meio da

6 Les Essais II 12 p518 7 Friedrich op cit p 105 8 Romatildeo Rui Bertrand op cit p 90

11

obtenccedilatildeo deste A reflexatildeo antropoloacutegica polariza o seu pensamento filosoacutefico e lhe contamina o sistema teoloacutegicordquo9

Eacute importante destacar aqui uma ideia desenvolvida por Ernst Cassirer na sua

obra Ensaio sobre o Homem10 Segundo este autor a questatildeo acerca do homem no

periacuteodo renascentista depara-se com a descoberta de um novo instrumento de

pensamento entra em cena o espiacuterito cientiacutefico no sentido moderno da palavra O que

agora se procura eacute uma teoria geral do homem baseada em observaccedilotildees empiacutericas e em

princiacutepios loacutegicos gerais A nova cosmologia o sistema heliocecircntrico copernicano

passa a ser a uacutenica base satilde e cientiacutefica para uma nova antropologia Nem a metafiacutesica

claacutessica nem a religiatildeo (com a sua estrutura teoacuterica fundada na teologia medieval)

estavam preparadas para esta tarefa lembra o autor Estas duas cosmologias concebem

o universo como uma ordem hieraacuterquica em que o homem ocupa o lugar mais alto A

pretensatildeo humana de ser o centro do universo perdeu o seu fundamento Cassirer afirma

ainda que o sistema de Copeacuternico se tornou um dos mais fortes instrumentos do

cepticismo filosoacutefico que se desenvolveu no seacuteculo XVI

Montaigne sendo um pensador livre que conseguiu libertar-se da concepccedilatildeo

antropoloacutegica medieval e renascentista tambeacutem natildeo necessitou de recorrer agraves ideias

cientiacuteficas vigentes na altura da redacccedilatildeo dos Essais Isto natildeo significa que tenha

ignorado por completo a teoria heliocecircntrica de Copeacuternico mas sim que como escreve

Conche

ldquoIl nrsquoa pas eu besoin de Copernic pour trouver ridicule la preacutetension de lrsquohomme de se faire centre du cosmos11

Antes de iniciar o seu longo relato (de mais ou menos uma meia centena de

paacuteginas) no qual compara os homens aos animais Montaigne faz uma afirmaccedilatildeo de

capital importacircncia que serve como uma espeacutecie de conclusatildeo antecipada daquilo que

afirma negativamente sobre o homem e sua relaccedilatildeo com o universo

ldquo[A] La presomption est nostre maladie naturelle et originelle La plus calamiteuse et fraile de toutes les creatures crsquoest lrsquohomme et quant et quant la plus orgueilleuse Elle se sent et se void logeacutee icy parmy la bourbe et le fient du monde attacheacutee et cloueacutee agrave la pire plus morte et croupie parti de lrsquounivers au dernier estage du logis et le plus esloigneacute de la voute celeste avec les animaux de la pire condition des trois (Les aeacuteriens les aquatiques et les terrestres) et se va plantant par

9 Idem p 113 10 Cassirer Ernst An essay on man Traduccedilatildeo portuguesa de Carlos Branco Ensaio sobre o homem Lisboa Guimaratildees Editores 1995 p24 11 Conche Marcel Montaigne et la philosophie Paris Puf 1996 p 7

12

imagination au dessus du cercle de la Lune et ramenant le ciel soubs ses pieds Crsquoest par la vaniteacute de cette mesme imagination qursquoil srsquoegale agrave Dieu qursquoil srsquoattribue les conditions divines qursquoil se trie soy mesme et separe de la presse des autres creatures taille les parts aux animaux ses confreres et compaignons et leur distribue telle portion de facultez et de forces que bon luy semble Comment cognoit il par lrsquoeffort de son intelligence les branles internes et secrets des animaux par quelle comparaison drsquoeux agrave nous conclue il la bestise qursquoil leur attribue [C] Quand je me joueuml agrave ma chatte qui sccedilait si elle passe son temps de moy plus que je ne fay drsquoellerdquo12

O homem quer ser senhor de todo o universo A sua atitude de querer ser uma

excepccedilatildeo na natureza natildeo passa de uma atitude ilusoacuteria O homem eacute segundo

Montaigne uma criatura como as outras que pode ser diferenciada natildeo pela capacidade

de raciocinar mas apenas pela presunccedilatildeo de querer destacar-se orgulhosamente

tornando-se ldquoo todo-poderosordquo face agraves outras criaturas Esta sua pretensatildeo de querer ser

a uacutenica criatura que pode conhecer e dominar o universo eacute radicalmente contestada por

Montaigne na ldquoApologierdquo Eacute com muita clarividecircncia que Conche reflectindo sobre

este tema afirma

ldquoOn voit pourquoi Montaigne srsquoefforce de retrouver chez lrsquoanimal ldquointelligencerdquo ldquodiscreacutetionrdquoldquojugementrdquoldquoratiocinationrdquo capaciteacute de ldquoconsulterrdquo de ldquoconcluirrdquo ldquoscience et prudencerdquo 13

Que tipo de competecircncia nossa natildeo reconhecemos nos actos dos animais Esta

questatildeo fundamental leva Montaigne a apresentar os seus relatos anedoacuteticos14 O

interesse da sua apologia dos animais eacute ldquo[hellip] paradoxalment lrsquohomme Montaigne

recherche lrsquohomme dans lrsquoanimal [hellip] crsquoest pour lutter contre lrsquoanthropocentrismerdquo15

Montaigne inicia a sua exposiccedilatildeo perguntando-se

ldquo[A] Est-il police regleacutee avec plus drsquoordre diversifieacutee agrave plus de charges et drsquooffices et plus constamment entretenueuml que celle des mouches agrave mielrdquo16

E faz questatildeo tambeacutem de descrever o engenho das andorinhas ao construiacuterem os

seus alojamentos e das aranhas ao confeccionarem as suas teias Diante destas obras

destes pequeninos animais Montaigne observa

12 Les Essais II 12 p 452 13 Conche Marcel Montaigne et la philosophie Paris Puf 1996 p 9 14 ldquoFidegravele aux proceacutedeacutes de compilation de son temps Montaigne accumule les exemples emprunteacutes agrave Pline agrave Plutarque agrave Arrien agrave Aulu-Gelle agrave Lucregravece agrave Virgile agrave Sextus Epiricusrdquo (cf Weiler Maurice Pour connaitre la penseacutee de Montaigne Bordas 1948 p 38) 15 Giocanti Sylvia Montaigne et les becirctes la becirctise et lrsquoanimal dans Les Essais de Montaigne Universiteacute de Toulouse 2011 p 1 16 Les Essais II 12 pp 454-455

13

ldquo[A] Nous reconnoissons assez en la pluspart de leurs ouvrages combien les animaux ont drsquoexcellence (supeacuterioriteacute) au dessus de nous et combien nostre art est foible agrave les imiterrdquo17

Quanto agrave capacidade de comunicaccedilatildeo Montaigne afirma que os animais

possuem este atributo Falamos com os catildees18 e eles respondem-nos Eacute evidente que

utilizamos uma outra linguagem para conversarmos com eles Montaigne observa que

tambeacutem entre noacutes humanos haacute diferenccedilas de linguagem de acordo com a diferenccedila de

regiotildees Estas diferenccedilas tambeacutem se encontram nos animais da mesma espeacutecie19

Segundo o nosso autor haacute certamente uma diferenccedila de ordem e de grau entre os

homens e os animais contudo ldquo[A] crsquoest soubs le visage drsquoune mesme naturerdquo20 Ao

constatar a peculiaridade do homem em face das outras criaturas Montaigne destaca o

facto de que o homem eacute detentor da liberdade de imaginaccedilatildeo No entanto

ldquo[A] ce desresglement de penseacutees luy representant ce qui est ce qui nrsquoest pas et ce qursquoil veut le faux et le veritable crsquoest un advantage qui luy est bien cher vendu et duquel il a bien peu agrave se glorifier car de lagrave naist la souce principale des maux qui le pressent pecheacute maladie irresolution (inconstance) trouble desespoirrdquo 21

Citando Lucreacutecio22 Montaigne deixa transparecer que o homem se prejudica a si

mesmo porque natildeo se manteacutem dentro dos limites da organizaccedilatildeo da natureza que se

manifesta de uma maneira inteligiacutevel e agraves vezes ateacute hostil submetendo o homem agrave

necessidade de leis que natildeo lhe satildeo suficientemente claras23

17 Les Essais II 12 p455 18 Les Essais II 12 p 458 19 Les Essais II 12 pp 458-459 20 Les Essais II 12 p459 21 Les Essais II 12 p 460 22ldquo[B] ldquores quaeque suo ritu procedit et ommes Foedere naturae certo discrimina servantrdquo (Chaque chose se deacuteveloppe agrave sa maniegravere et toutes conservent les diffeacuterences eacutetablies par lrsquoordre immuable de la nature) Cf Les Essais II 12 p 459 23 Expressando a sua visatildeo da natureza Montaigne observa que ao considerar que ela nos criou diferentes dos outros animais isto eacute nus sobre a terra nua atados cercados natildeo tendo com que armar-nos cobrir-nos [hellip] somos tentados a chamaacute-la de ldquotregraves injuste maracirctrerdquo Mas isto natildeo eacute assim A nossa organizaccedilatildeo do mundo natildeo eacute tatildeo disforme e desregrada A natureza abraccedilou universalmente todas as suas criaturas e natildeo haacute nenhuma que ela tenha provido plenamente de todos os meios necessaacuterios para a conservaccedilatildeo da existecircncia ldquo[C] crsquoest une mesme nature qui roule son coursrdquo(cf Les Essais II12 p467) Reflectindo sobre o tema da natureza nos Essais Pierre Villey afirma que ela se opotildee essencialmente agrave razatildeo humana e eacute natural tudo o que a razatildeo natildeo contaminou Afirma Villey ldquo[hellip] crsquoest chez les animaux et chez les sauvages qursquoon trouve les traces les moins corrompues de la nature Lrsquoeacutetat de nature dans cette conception radicale crsquoest lrsquoeacutetat de sauvagerie [hellip] Lrsquoadmiration pour les andiens crsquoest la forme paradoxale que prend chez lui de temps agrave autre son principe drsquoimitation de la naturerdquo (In Villey Pierre Les sources et lrsquoeacutevolution des essais de Montaigne - Tome second Paris Librairie Hachete 1908 p228) Isto natildeo quer dizer que devamos imitar os indiacutegenas por exemplo em todos os seus costumes tradiccedilotildees etc

14

Continuando a apologia dos animais Montaigne sugere que concebamos que os

animais natildeo obedecem a instintos de uma forma cega O relato que apresenta da raposa

da Traacutecia24 eacute um dos seus exemplos claacutessicos neste sentido Antes de se arriscar sobre a

aacutegua gelada a raposa aproxima o ouvido do gelo para ouvir de que profundidade sobre

o murmuacuterio da aacutegua a correr em baixo isto eacute ela ldquoraciocinardquo como fariacuteamos noacutes em

idecircnticas circunstacircncias o que faz barulho mexe o que mexe natildeo estaacute gelado o que natildeo

estaacute gelado eacute liacutequido e o liacutequido cede sob o peso Segundo Montaigne atribuir isto

simplesmente a uma vivacidade do sentido da audiccedilatildeo sem raciociacutenio e sem conclusatildeo

eacute uma quimera inconcebiacutevel

Segundo Montaigne natildeo eacute soacute o homem que sabe escolher o que eacute bom e o que

natildeo eacute bom para a sua vida e sobretudo para o socorro nas doenccedilas atraveacutes da ciecircncia e

do conhecimento construiacutedos por arte e por raciociacutenio

ldquo[A] Et quand nous voyons les chevres de Candie si elles ont receu un coup de traict aller entre un million drsquoherbes choisir le dictame pour leur guerison et la tortue quand elle a mangeacute de la vipere chercher incontinent de lrsquooriganum pour se purger et le dragon fourbir et esclairer ses yeux avecques du fenouil les cigouignes se donner elles mesmes des clysteres agrave tout de lrsquoeau de marine [hellip] pourquay ne disons nous de mesmes que crsquoest science et prudencerdquo25

Eacute faacutecil ver aqui quanto Montaigne deseja que o homem reconheccedila que os

animais possuem tambeacutem ciecircncia e sabedoria Em seu entender os animais tambeacutem satildeo

capazes de ser instruiacutedos agrave moda humana

ldquo[A] Les merles les corbeaux les pies les parroquets nous leur aprenons agrave parler [hellip] ils ont un discours au dedans qui les rend ainsi disciplinables et volontaires agrave aprendrerdquo26

Muitos animais aproximam-se da capacidade do homem e isto leva Montaigne a

afirmar

ldquo[A] qursquoil se trouve plus de difference de tel homme agrave tel homme que de tel animal agrave tel hommerdquo27

Podemos encontrar na ldquoApologierdquo muitos outros exemplos em que Montaigne

defende a ideia de que os animais possuem diversas capacidades semelhantes agraves dos

humanos28 Uma vez numerados todos estes atributos dos animais Montaigne afirma

24 Les Essais II 12 p 460 25 Les Essais II 12 pp 462-463 26 Les Essais II 12 p 463 27 Les Essais II 12 p 466

15

ldquo[A] La maniegravere de naistre drsquoengendrer nourrir agir mouvoir vivre et mourir des bestes estant si voisine de la nostre tout ce que nous retranchons de leurs causes motrices et que nous adjoustons agrave nostre condition au dessus de la leur cela ne peut aucunement partir du discours de nostre raisonrdquo29

Pierre Villey ao reflectir sobre estas comparaccedilotildees suscita uma questatildeo

relevante que natildeo eacute possiacutevel ignorar

ldquo[hellip] quand il exalte lrsquointeligence des animaux on peut se demander ce qursquoil en pense au justerdquo30

Natildeo querendo entrar na discussatildeo deste assunto - ateacute porque o proacuteprio

Montaigne natildeo o fez - eacute importante notar que se estes relatos montaigneanos fossem

tomados agrave letra natildeo nos faltariam motivos de troccedila Poderiacuteamos duvidar de muitas

afirmaccedilotildees acerca dos animais apresentadas por ele Fazendo um esforccedilo por deixar agrave

margem os exageros o humor e a liberdade literaacuteria do autor ndash que tecircm como objectivo

rebaixar o homem recolocando-o entre os animais e mostrando-lhe que a sua razatildeo

grande motivo de orgulho natildeo lhe garante um lugar no topo da piracircmide das criaturas ndash

o que importa destacar eacute que Montaigne pretende acentuar uma grande semelhanccedila

entre os homens e os animais

ldquo[A] Nous ne sommes ny au dessus ny au dessoubs du reste tout ce qui est sous le ciel dit le sage court une loy et fortune pareille [B] Indupedita suis fatalibus omnia vinclis (Toutes les choses sont enchaineacutes par les liens de leur propre destineacutee)rdquo31

28 Vejamos resumidamente outros atributos dos animais destacados pelo autor os catildees que servem aos cegos tanto nos campos como nas cidades catildees que representavam papeacuteis no teatro (p463) bois que serviam nos jardins reais de Susa (p464) nos espectaacuteculos de Roma viam-se elefantes treinados em movimentar-se e em danccedilar (p465) a pega que imitava com a voz tudo o que ouvia (p464) os elefantes que tecircm alguma participaccedilatildeo religiosa (p468) formigas que tecircm um jeito muito especial de comunicaccedilatildeo muacutetua (p469) o ouriccedilo que prevecirc a direcccedilatildeo do vento (p469) o camaleatildeo e o polvo que mudam de cor conforme a ocasiatildeo (p469) o voo dos paacutessaros que eacute resultado natildeo apenas da organizaccedilatildeo natural mas tambeacutem do entendimento consentimento e raciociacutenio (p469) os animais que servem seus donos sabem amaacute-los defendecirc-los (p461) o catildeo o cavalo sabem prezar amizade (p471) os animais satildeo muito mais regrados do que noacutes e se contecircm com muito mais moderaccedilatildeo nos limites que a natureza nos prescreveu (p472) os animais natildeo promovem a guerra (p473) o catildeo eacute mais fiel do que o homem (p476-7) quanto agrave gratidatildeo os animais tecircm esta capacidade (p477-8) os atuns tecircm conhecimentos geomeacutetricos astronoacutemicos e aritmeacuteticos (p479-480) o elefante tem a capacidade de arrependimento e reconhecimento dos erros (p480) o tigre tem capacidade de ser clemente (p480) enfim Montaigne atribui todas estas caracteriacutesticas e outras mais aos animais mostrando que elas satildeo erradamente consideradas como unicamente posse dos humanos 29 Les Essais II 12 p 470 30 Villey op cit p 186 31 Les Essais II 12 p 459

16

Desta perspectiva podemos compreender melhor a razatildeo do ldquodestronamentordquo

deste ser ldquotodo-poderosordquo que eacute o homem levado a cabo por Montaigne32

Depois de ter destacado a ideia de que o homem se assemelha aos animais e

vice-versa Montaigne sustenta que a forma corporal do homem eacute o que constitui a sua

peculiaridade face aos animais Eacute ela que ldquodefinerdquo a identidade do homem

ldquo[B] Ce nrsquoest donc pas par la raison par le discours et par lrsquoame que nous excellons sur les bestes crsquoest par nostre beauteacute nostre beau teint et nostre belle disposition de membres pour laquelle il nous faut mettre nostre intelligence nostre prudence et tout le reste agrave lrsquoabandonrdquo33

A sugestatildeo de Montaigne eacute que o homem natildeo pode ser pensado sem o seu corpo

elemento essencial de sua condiccedilatildeo humana O homem natildeo pode continuar a ser

concebido apenas como ser racional Montaigne potildee em causa a claacutessica concepccedilatildeo de

que soacute o homem eacute constituiacutedo de racionalidade O seu objectivo natildeo eacute encontrar uma

nova definiccedilatildeo do homem natildeo deseja decretar a inferioridade do homem nem tampouco

a sua superioridade face aos animais Natildeo tem em vista promover uma competiccedilatildeo

ridiacutecula entre os seres da natureza Montaigne sente-se incapaz de dar qualquer

definiccedilatildeo com o auxiacutelio da razatildeo humana Ignora qual eacute a essecircncia dos animais natildeo os

conhece Da mesma forma podemos dizer que agrave luz da ldquoApologierdquo Montaigne natildeo

consegue definir o homem Natildeo eacute possiacutevel elaborar juiacutezos constantes e uniformes nem

sobre o homem nem a partir dele

Dito de outra forma o ldquocepticismo da razatildeordquo que Montaigne assume

conscientemente visa rejeitar a pretensatildeo do homem de se considerar por via da razatildeo

no centro do universo

Montaigne com os seus ensaios quer ir directo agraves coisas e aos homens Eacute claro

que teve pouco contacto com o chamado movimento cientiacutefico do seu tempo Longe de

32 Friedrich ao analisar a questatildeo do lugar que segundo Montaigne corresponde ao homem diz ldquoA la question de savoir quelle place occupe lrsquohomme dans la totaliteacute du monde existent Montaigne ne donnera jamais la reacuteponse plotinienne selon laquelle il serait dans la chaicircne des ecirctres eacutemaneacutes un dernier maillon reacutetablissant la communication avec la source de lrsquoeacutemanation lrsquoUm primordial Ni la reacuteponse chreacutetienne selon laquelle lrsquohomme constituerait le couronnement terrestre de la creacuteation tout le creacutee lui eacutetant subordonneacute et Dieu eacutetant alleacute pour lui jusqursquoagrave se reacutesoudre agrave intervenir dans lrsquohistoire du salut Lrsquohomme de Montaigne est plutocirct un point dans lrsquounivers sans espoir que le destin ni la diviniteacute srsquointeacuteresse jamais agrave lui Il partage cette insignifiance de point avec le milieu dans lequel il vit patrie Eacutetat continent terre animaux et plantes Il nrsquoest plus un centre il est plongeacute dans la multitude de tout ce qui existe ignorant ce qui lrsquoen distingue et srsquoy sentant cheacutetif - bien preacuteserveacute pourtant au coeur de son insignifiance de son ignorance et deacutechargeacute de tout embarras Il y a au fond de cette penseacutee des ideacutees de Lucregravece Montaigne les transforme pour leur faire exprimer sa propre conscience de la vie dont il preacutecise les grandes lignes en la deacutelimitant par rapport aux affirmations posant la digniteacute de la nature humaine (cf op cit p131) 33 Les Essais II 12 p 486

17

toda a construccedilatildeo teoacuterica esforccedila-se por encontrar nele mesmo e nos outros o homem

tal como eacute sem o falso semblante que lhe acrescentam as pretensiosas doutrinas que o

definem pela sua relaccedilatildeo com o universo e com Deus

18

2 A criacutetica agrave razatildeo humana e a questatildeo da religiatildeo

Segundo Montaigne as pessoas que se gabam do conhecimento estatildeo sempre a

tentar explicar quais satildeo os atributos de Deus atraveacutes de complicados conceitos e

demonstraccedilotildees ininteligiacuteveis Em seu entender Deus e as verdades da religiatildeo satildeo

nitidamente questotildees de feacute e natildeo noccedilotildees filosoacuteficas Que isto eacute assim prova-o o facto de

que estas noccedilotildees satildeo sempre muito diversas e originam muita discoacuterdia entre os

inuacutemeros autores que delas se ocupam Uma coisa eacute Deus e outra coisa totalmente

diferente eacute o que pensam os homens a respeito de Deus

ldquo[A] Il ma tousjours sembleacute quagrave un homme Chrestien cette sorte de parler est pleine dindiscretion et dirreverence Dieu ne peut mourir Dieu ne se peut desdire Dieu ne peut faire cecy ou cela Je ne trouve pas bon denfermer ainsi la puissance divine soubs les loix de nostre parolle Et lapparence qui soffre agrave nous en ces propositions il la faudroit representer plus reveremment et plus religieusementrdquo34

ldquo[A] Dieu ne peut faire les mortels immortels ny revivre les trespassez ny que celuy qui a vescu nait point vescu celuy qui a eu des honneurs ne les ait point eus nayant autre droit sur le passeacute que de loubliance [hellip] Voylagrave ce quil dict et quun Chrestien devroit eviter de passer par sa bouche Lagrave ougrave au rebours il semble que les hommes recherchent cette fole fierteacute de langage pour ramener Dieu agrave leur mesure [hellip]nostre parole le dict mais nostre intelligence ne lrsquoapprehende pointrdquo35

Para compreender o lugar e o valor da razatildeo na ldquoApologierdquo eacute necessaacuterio

investigar os motivos que levaram o autor a tecer uma criacutetica tatildeo contundente da razatildeo

humana aprofundando em concreto as relaccedilotildees que esta criacutetica tem com a sua anaacutelise

da religiatildeo e com o poder de Deus expresso em todo o desenvolvimento do texto Para

esta abordagem teremos como base o preacircmbulo da ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo36

A ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo eacute o mais longo capiacutetulo da obra Les Essais

Neste texto Montaigne propotildee-se apresentar a ldquodefesa de um teoacutelogordquo do seacuteculo XVI

Montaigne comeccedila por caracterizar a situaccedilatildeo histoacuterica na qual a obra de

Sebond chegou agraves matildeos de seu pai por intermeacutedio do humanista Pierre Brunel (1499-

1546)37 Segundo Montaigne trata-se de um livro adequado para a eacutepoca Isto porque as

34 Les Essais II 12 p 527 35 Les Essais II 12 p 528 36 Cf Les Essais II 12 pp 438-449 Montaigne sobretudo nestas paacuteginas iniciais opotildee a religiatildeo agrave razatildeo humana demonstrando por um lado a incapacidade e os limites desta faculdade que eacute motivo de orgulho do homem e por outro esse ldquoinstrumentordquo de conhecimento ligado agrave graccedila divina que eacute a feacute 37 Montaigne admirava muito este humanista que gozava de grande reputaccedilatildeo na sua eacutepoca por causa de seu saber (Les Essais II 12 p 439)

19

novidades de Lutero comeccedilavam a estar em voga e a abalar em muitos lugares a antiga

crenccedila cristatilde38 Para Montaigne que era um pensador catoacutelico conservador a Reforma

Protestante era vista como algo perigoso para a religiatildeo estabelecida Globalmente natildeo

concordava com as contestaccedilotildees provocadas pelo espiacuterito da Reforma sobretudo porque

poderiam levar os homens agrave praacutetica do ateiacutesmo especialmente os menos doutos

Uma leitura do texto potildee de imediato em evidecircncia em que medida Montaigne se

distancia de Sebond em termos argumentativos Parafraseando Villey a defesa de

Sebond seraacute rapidamente esquecida39 Montaigne observa que surgiram entretanto

algumas objecccedilotildees ao livro de Sebond e anuncia no iniacutecio do ensaio o seu propoacutesito de

refutaacute-las Montaigne deseja defender Sebond destes dois tipos de adversaacuterios por um

lado os que consideram que os cristatildeos erram ao querer apoiar com razotildees humanas a

sua crenccedila que soacute se concebe por feacute e por uma inspiraccedilatildeo particular da graccedila divina

Estes satildeo os que subestimam a importacircncia da razatildeo Satildeo considerados fideiacutestas

pessoas que pensam que a verdade em religiatildeo estaacute em uacuteltima instacircncia baseada na feacute

em vez de no raciociacutenio ou na evidecircncia Por outro lado estatildeo os que dizem que os

argumentos de Sebond satildeo fracos e inadequados para demonstrar o que pretendem e se

dispotildeem a atacaacute-los facilmente Estes satildeo os que subestimam a importacircncia da feacute

Consideremos em primeiro lugar a atitude dos primeiros opositores Natildeo seria

correcto querer apoiar com razotildees humanas a crenccedila ldquo[A] qui ne se conccediloit que par foy

et par une inspiration particuliere de la grace divinerdquo40 Estes primeiros opositores de

Sebond satildeo os partidaacuterios da posiccedilatildeo ortodoxa catoacutelica Montaigne lembra que estes

teoacutelogos catoacutelicos satildeo movidos sobretudo por uma visatildeo piedosa

ldquo[A] En cette objection il semble quil y ait quelque zele de pieteacute et agrave cette cause nous faut-il avec autant plus de douceur et de respect essayer de satisfaire agrave ceux qui la mettent en avantrdquo41

Em face destas primeiras criacuteticas agrave obra do teoacutelogo catalatildeo Montaigne natildeo se

inibe de expressar as suas proacuteprias tomadas de posiccedilatildeo

ldquo[A]Toutefois je juge ainsi quagrave une chose si divine et si haultaine et surpassant de si loing lhumaine intelligence comme est cette veriteacute de laquelle il a pleu agrave la bonteacute de Dieu nous esclairer il est bien besoin quil nous preste encore son secours dune faveur extraordinaire et privilegeacutee pour la pouvoir concevoir et loger en nous et ne croy pas que

38 Cf Les Essais II 12 p 439 39 Villey op cit p 183 40 Les Essais II 12 p 440 41 Les Essais II 12 p 440

20

les moyens purement humains en soyent aucunement capables et sils lestoient tant dames rares et excellentes et si abondamment garnies de forces naturelles eacutes siecles anciens neussent pas failly par leur discours darriver agrave cette connoissance Cest la foy seule qui embrasse vivement et certainement les hauts mysteres de nostre Religionrdquo42

Ao abordar esta questatildeo Montaigne reconhece que natildeo estaacute capacitado para

levar a cabo tal empreendimento Esta seria uma tarefa mais adequada para um homem

versado em teologia assunto de que ele pessoalmente diz nada saber43 Mesmo assim

expressa uma vez mais a sua criacutetica radical aos que utilizam a razatildeo para apresentarem

argumentos apologeacuteticos em defesa das verdades sobre Deus e sobre a religiatildeo

Montaigne eacute um catoacutelico44 Sobre isto os Essais natildeo deixam duacutevida Natildeo eacute este o

momento de entrar na discussatildeo acerca de como viveu ou deixou de viver a sua

religiosidade O importante eacute que como catoacutelico aceita que haacute um Deus uacutenico criador

do ceacuteu e da terra Em vaacuterios momentos tanto na ldquoApologierdquo como em outros ensaios

Montaigne daacute a entender que a verdade estaacute em Deus e natildeo eacute propriedade dos homens

filoacutesofos ou teoacutelogos Noutras palavras a verdade eacute revelada e o homem sem o auxiacutelio

de Deus nunca a encontraria A razatildeo humana natildeo tem condiccedilotildees para elaborar

raciociacutenios crediacuteveis sobre estas verdades reveladas Para sustentar a tese que a razatildeo eacute

impotente neste domiacutenio Montaigne dedica um nuacutemero importante de paacuteginas em toda

a sua obra a desenvolver a ideia de que alguns filoacutesofos antigos reflectiram muito sobre

a possibilidade do conhecimento sobre Deus e fizeram afirmaccedilotildees que satildeo

absolutamente carentes de sentido Isto natildeo passou de uma ldquo[C] tintamarre de tant de

42 Les Essais II 12 p 440-441 43 ldquoCe seroit mieux la charge drsquoun homme verseacute en Theologie que de moy qui nrsquoy sccedilay rienrdquo(Les Essais II 12 p 440) 44 Montaigne declara-se catoacutelico foi um catoacutelico que durante toda a sua vida procurou cumprir os ritos lituacutergicos convencionais da Igreja Catoacutelica A sua posiccedilatildeo ceacuteptica parece enquadrar-se no fideiacutesmo como veremos Mas haacute que salientar que em algumas questotildees morais independentes das suas praacuteticas rituais ou seja na sua vida praacutetica Montaigne natildeo tem muito em consideraccedilatildeo a lista de exigecircncias eacuteticas do catolicismo romano Parece que falta agrave concepccedilatildeo religiosa de Montaigne algum sentimento religioso limita-se a uma espeacutecie de praacutetica do ritualismo exigido pela Igreja Catoacutelica Ele seria catoacutelico por uma questatildeo de conveniecircncia intelectual A sua praacutetica lituacutergica ritualiacutestica natildeo exerce grande influecircncia sobre o seu pensamento filosoacutefico Ele eacute um pensador completamente livre face agrave doutrina da Igreja E isto distingue-o substancialmente dos teoacutelogos que integram o corpo doutrinal na Igreja Montaigne pensava e exprimia estes pensamentos com plena liberdade Manifesta aleacutem disso alguma confianccedila na Igreja na religiatildeo na tradiccedilatildeo e nos costumes que contribuiacuteram para a sua formaccedilatildeo e que satildeo de alguma maneira parte constitutiva de sua identidade E na realidade quis apostar naquilo com o qual estava mais familiarizado ldquo[B] Nous sommes Chrestiens agrave mesme titre que nous sommes ou Perigordins ou Alemansrdquo(Les Essais II 12 p 445) No entanto quando comeccedilamos a estabelecer um maior contacto com os Essais percebemos que Montaigne natildeo eacute um catoacutelico que confie cegamente na doutrina da Igreja Muito pelo contraacuterio eacute extremamente consciente dos problemas do catolicismo e da sua doutrina bem como dos costumes em geral E acima de tudo tem perfeita consciecircncia de que a sua confianccedila eacute uma crenccedila e natildeo uma certeza filosoacutefica

21

cervelles philosophiquesrdquo45 Segundo Montaigne de todas as ideias humanas e antigas

no tocante agrave religiatildeo

ldquo[A]celle lagrave me semble avoir eu plus de vray-semblance et plus dexcuse qui reconnoissoit Dieu comme une puissance incomprehensible origine et conservatrice de toutes choses toute bonteacute toute perfection recevant et prenant en bonne part lhonneur et la reverence que les humains luy rendoient soubs quelque visage sous quelque nom et en quelque maniere que ce futrdquo46

Trata-se de belas afirmaccedilotildees que querem expressar quais satildeo os principais

atributos de Deus Satildeo uma tentativa racional que tem como meta explicar quem eacute Deus

Ao comentar esta passagem da ldquoApologierdquo Conche pergunta-se que significam estas

palavras E baseado na leitura que faz de Montaingne afirma que aplicadas a Deus

natildeo podemos saber o que realmente significam47

Montaigne questiona o facto de muitos homens pretenderem edificar um

discurso baseado na razatildeo para justificar as verdades reveladas as quais segundo ele soacute

poderatildeo encontrar os verdadeiros alicerces na feacute Vejamos como Conche

sinteticamente analisa esta questatildeo a partir da ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo

ldquoNous croyons penser Dieu En reacutealiteacute nous ne faisons que projeter hors de nous des qualiteacutes humaines que nos avons [hellip] Lrsquohomme ne peut concevoir Dieu qursquoagrave partir de lui-mecircme Or il y a entre lrsquohomme et Dieu un abicircme qualitatif Le Dieu dont on parle et duquel on raisonne nrsquoest qursquoun produit de lrsquoanthropomorphisme La raison loin de nous eacutelever agrave Dieu le ramegravene agrave notre mesure [hellip] En tout cela Dieu est encore conccedilu par analogie avec lrsquohomme et la puissance divine enfermeacutee ldquosous les lois de notre parolerdquo Assujettir Dieu agrave nos principes rationnels crsquoest lrsquoassujettir agrave la raison humaine Lrsquohomme ne peut penser au-delagrave de lui mecircme Du vrai Dieu on ne peut rien penser ni rien dire Il nrsquoy a pas drsquoideacutee de Dieu [hellip] La notion de Dieu nrsquoest pas une notion philosophiquerdquo48

Embora critique estes opositores de Sebond Montaigne afirma ao mesmo tempo

que o empenho em justificar a feacute pela razatildeo eacute uma iniciativa louvaacutevel Chega mesmo a

afirmar que esta tarefa poderia ser considerada como o uso mais honroso que o homem

cristatildeo poderia dar agrave razatildeo Por outras palavras eacute uma atitude nobre a que leva o cristatildeo

a querer embelezar perceber e ampliar a verdade de sua crenccedila por meio de todos os

estudos e reflexotildees Montaigne observa entretanto que eacute preciso fazer acompanhar a

45 Les Essais II 12 p 516 46 Les Essais II 12 p 513 47 Cf Conche Marcel Montaigne ou la conscience heureuse Paris Puf 2009 p 55 48 Idem pp 55-56

22

nossa feacute de toda a razatildeo que haacute em noacutes mas sempre com a ressalva de natildeo pensar que

seja de noacutes que ela depende nem que os nossos esforccedilos e argumentos possam atingir

uma tatildeo ldquo[A] supernaturelle et divine sciencerdquo49 O autor dos Essais insistiraacute muito

neste aspecto

ldquo[A] Si elle nentre chez nous par une infusion extraordinaire si elle y entre non seulement par discours mais encore par moyens humains elle ny est pas en sa digniteacute ny en sa splendeur Et certes je crain pourtant que nous ne la jouyssions que par cette voye Si nous tenions agrave Dieu par lentremise dune foy vive si nous tenions agrave Dieu par luy non par nous si nous avions un pied et un fondement divin les occasions humaines nauroient pas le pouvoir de nous esbranler comme elles ont [hellip]rdquo50

Sem duacutevida Montaigne ao questionar o poder da razatildeo humana procura

defender a feacute cristatilde Os argumentos tidos como ceacutepticos que estatildeo presentes na

ldquoApologierdquo tecircm como objectivo provar que soacute atraveacutes da intervenccedilatildeo divina e natildeo com

nossos proacuteprios meios racionais podemos ter acesso agrave verdade Apresenta vaacuterios

exemplos para que entendamos com mais clarividecircncia a sua reflexatildeo acerca deste

assunto

ldquo[C] Lrsquohomme est bien insenseacute Il ne sccedilauroit forger un ciron et forge des Dieux agrave douzainesrdquo51

O homem quer descrever Deus mas na verdade descreve-se a si mesmo Isto

demonstra a sua incapacidade e a sua falta de sabedoria

ldquo[B] Nous avons vie raison et liberteacute estimons la bonteacute la chariteacute et la justice ces qualitez sont donc en luy Somme le bastiment et le desbastiment les conditions de la diviniteacute se forgent par lhomme selon la relation agrave soy Quel patron et quel modele Estirons eslevons et grossissons les qualitez humaines tant quil nous Plaira enfle toy pauvre homme et encore et encore et encore Non si te ruperis inquit (ldquoNon pas mecircme quand tu cregraveverais dit-ilrdquo (Hor Sal II III 318) Crsquoest la fable de la grenouille qui veut se faire aussi grosse que le boeuf)rdquo52

Eacute interessante notar que ao mesmo tempo que pretende fazer a apologia da feacute cristatilde Montaigne critica os cristatildeos que natildeo satildeo ldquofieacuteisrdquo aos ensinamentos da Sagrada Escritura

ldquo[B] Voulez vous voir cela Comparez nos moeurs agrave un Mahometan agrave un Payen vous demeurez tousjours au dessoubs lagrave ougrave au regard de lavantage de nostre religion nous devrions luire en excellence dune extreme et incomparable distance et devroit on dire Sont ils si justes si

49 Les Essais II 12 p 441 50 Les Essais II 12 p 441 51 Les Essais II 12 p 530 52 Les Essais II 12 p 531

23

charitables si bons ils sont donq Chrestiens [C] La marque peculiegravere de nostre veriteacute devroit estre nostre vertu comme elle est aussi la plus celeste marque et la plus difficile et que cest la plus digne production de la veriteacuterdquo53

Para Montaigne os cristatildeos constituem uma espeacutecie de contratestemunho de sua

feacute Fazendo uma referecircncia ao texto da Sagrada Escritura algo muito raro nos Essais o

autor afirma que se tiveacutessemos um uacutenico pingo de feacute54 moveriacuteamos as montanhas de

seu lugar E neste sentido lembra-nos

ldquo[A] nos actions qui seroient guideacutees et accompaigneacutees de la diviniteacute ne seroient pas simplement humaines elles auroient quelque chose de miraculeux comme nostre croyancerdquo55

Para os que subestimam a importacircncia da razatildeo isto eacute para os primeiros

opositores de Sebond ou os fideiacutestas os cristatildeos erram ao quererem apoiar as suas

crenccedilas que soacute se concebem por meio da feacute e por inspiraccedilatildeo particular da graccedila divina

Estes satildeo os que pensam que a verdade em religiatildeo estaacute em uacuteltima instacircncia baseada na

feacute em vez de no raciociacutenio ou na evidecircncia Segundo Montaigne trata-se de uma

concepccedilatildeo bonita e ateacute piedosa Chega inclusivamente a exemplificar esta atitude e a

citar um caso de algueacutem que foi desviado dos erros da incredulidade atraveacutes da leitura

da obra de Sebond

ldquo[A] Je sccedilay un homme dauthoriteacute nourry aux lettres qui ma confesseacute avoir esteacute rameneacute des erreurs de la mescreance par lentremise des argumens de Sebond Et quand on les despouillera de cet ornement et du secours et approbation de la foy et quon les prendra pour fantasies pures humaines pour en combatre ceux qui sont precipitez aux espouvantables et horribles tenebres de lirreligion ils se trouveront encores lors aussi solides et autant fermes que nuls autres de mesme condition quon leur puisse opposer [hellip]rdquo56

53 Les Essais II 12 p 442 54 Provavelmente Montaigne estaacute a aludir a textos da Sagrada Escritura especialmente do Evangelho ldquoSi vraiment vous avez de la foi gros come une graine de moutarde vous diriez agrave ce sycomore ldquoDeacuteracine-toi et va te planter dans la merrdquo et il vous obeacuteiraitrdquo (Lc 17 6) Car en veacuteriteacute je vous le deacuteclare si un jour votre foi est semblable agrave un grain de moutarde vous diriez agrave cette montagne ldquoPasse drsquoici lagrave-basrdquo et elle y passera Rien ne vous sera impossiblerdquo (Mt 17 20) (In Nouveau Testament Traduction Oecumeacutenique de la Bible Paris PUF 1977 pp 91 e 253 55 Les Essais II 12 p 442 56 Les Essais II 12 p 447-448

24

No entanto mesmo tendo em consideraccedilatildeo a importacircncia da Teologia Natural

sebondiana Montaigne toma um certo partido pelo lado dos fideiacutestas57 seus opositores

Em seu entender a razatildeo humana natildeo eacute capaz de conduzir o homem agrave feacute

Montaigne num dado momento refere-se agraves guerras58 que oprimiam a sua

naccedilatildeo Ele propotildee uma possiacutevel explicaccedilatildeo destes tormentos que assolavam a Franccedila

que tem muito a ver com a questatildeo de fundo tratada na ldquoApologierdquo Escreve

ldquo[A] Les hommes y sont conducteurs et srsquoy servent de la religion ce devroit estre tout le contrairerdquo59

Assim se compreende por que razatildeo Montaigne aleacutem de criticar aqueles que

queriam instrumentalizar a razatildeo para justificar as verdades reveladas repudia a noccedilatildeo

daqueles que se dedicam excessivamente agrave religiatildeo e que tecircm como meta principal a

satisfaccedilatildeo das paixotildees e da vaidade

ldquo[C] Je voy cela evidemment que nous ne prestons volontiers agrave la devotion que les offices qui flattent noz passions Il nest point dhostiliteacute excellente comme la Chrestienne Nostre zele fait merveilles quand il va secondant nostre pente vers la haine la cruauteacute lambition lavarice la detraction la rebellion A contrepoil vers la bonteacute la benigniteacute la temperance si comme par miracle quelque rare complexion ne ly porte il ne va ny de pied ny daile Nostre religion est faicte pour extirper les vices elle les couvre les nourrit les incite [A] Il ne faut point faire barbe de foarre agrave Dieu (comme on dict) Si nous le croyons je ne dy pas par foy mais dune simple croyance voire (et je le dis agrave nostre grande confusion) si nous le croyons et cognoissions comme une autre histoire comme lun de nos compaignons nous laimerions au dessus de toutes autres choses pour linfinie bonteacute et beauteacute qui reluit en luy au moins marcheroit il en mesme reng de nostre affection que les richesses les plaisirs la gloire et nos amis raquo60

Montaigne demonstra uma certa irritaccedilatildeo em face da instrumentalizaccedilatildeo da

religiatildeo para certos objectivos particulares Em seu entender a devoccedilatildeo religiosa natildeo

57 Ao reflectir sobre o fideiacutesmo presente na ldquoApologierdquo Friedrich diz-nos que Montaigne assume um fideiacutesmo isento da nostalgia miacutestica O seu fideiacutesmo significa uma tomada de consciecircncia intelectual dos limites humanos limites estes que natildeo deseja ultrapassar Seu fideiacutesmo eacute de uma espeacutecie negativa isto eacute eacute a certeza da incerteza O mesmo autor observa ainda que a ldquoteologiardquo de Montaigne representa um desvio para ir ao conhecimento do homem no interior do mundo Montaigne precisa de se distanciar de Deus para se assegurar da pequenez do homem na qual ele vai se instalar (cf op cit p 117) 58 Tudo indica que Montaigne estaacute a falar das guerras civis e religiosas do seacuteculo XVI Citando o famoso historiador francecircs M de Chacircteaubriand Laschamps na sua monumental obra Michel de Montaigne editada em 1855 afirma que estas guerras ldquoont dureacute trente-neuf ans elles ont engendre les massacres de la Saint Bartheacutelemy verseacute le sang de plus de deux millions de Franccedilais et deacutevoreacute plus de trois milliards de notre monnaie actuelle Elles ont produit la saisie et la vente des biens de lrsquoEacuteglise et des particulieres frappeacute deux rois de mort violente Henri III et Henri IV et commenceacute le procegraves criminal du premier de ces deux roisrdquo (cf Laschamps F Bigorie de Michel de Montaigne Paris Libraire Editeur 1855 p 108) 59 Les Essais II 12 p 443 60 Les Essais II 12 p 444

25

pode ser usada para servir os propoacutesitos do oacutedio da crueldade da ambiccedilatildeo da rebeliatildeo

etc61

Embora natildeo seja teoacutelogo62 Montaigne eacute um pensador que procura respeitar

profundamente a missatildeo da teologia Mas importa salientar que esta missatildeo deve ser

entendida simplesmente como uma praacutetica de piedade e natildeo como uma racionalizaccedilatildeo e

sistematizaccedilatildeo das verdades reveladas pela feacute Neste sentido haacute uma enorme distacircncia

entre o autor dos Essais e os escolaacutesticos Para Montaigne a teologia eacute concebida como

uma espeacutecie de exerciacutecio espiritual dos cristatildeos sobretudo dos teoacutelogos atraveacutes da

razatildeo humana Exerciacutecio este que carece do poder de alcanccedilar a verdade

ldquo[A] Il en faut faire de mesme et accompaigner nostre foy de toute la raison qui est en nous mais tousjours avec cette reservation de nestimer pas que ce soit de nous quelle deacutepende ny que nos efforts et arguments puissent atteindre agrave une si supernaturelle et divine sciencerdquo 63

Para Montaigne as explicaccedilotildees (racionalizaccedilotildees) das verdades da religiatildeo

devem ser as pregaccedilotildees piedosas nos actos de culto por exemplo E esta eacute a tarefa

fundamental da qual a teologia deve ocupar-se Aleacutem disto Montaigne que eacute um

observador subtil e cuidadoso propotildee certas distinccedilotildees Vejamos o que Friedrich tem a

dizer sobre esta questatildeo

ldquo[hellip] sait bien entendu distinguer la vraie pieacuteteacute de la fausse Il bracircme ainsi les priegraveres meacutecaniques la malhonnecircteteacute des gens qui se signent au son de la cloche sans pour autant renoncer agrave la haine agrave lrsquoavarice agrave lrsquoinjustice comme si leur principe eacutetait aux vices leur heure son heure agrave Dieurdquo64

Desta perspectiva segundo Montaigne a religiatildeo deve ser entre outras coisas

como uma praacutetica da verdadeira piedade que se preocupa em instaurar no coraccedilatildeo do

homem o desejo de viver o amor a justiccedila etc renunciando a tudo aquilo que eacute mal e

que impede a realizaccedilatildeo da felicidade do homem no aqui e no agora Eacute por isto que natildeo

acredita numa religiatildeo que vive a prometer constantemente bens eternos que viratildeo a

tornar-se realidade num outro mundo diverso e posterior a este que conhecemos Para

exemplificar esta sua abordagem Montaigne refere na ldquoApologierdquo o filoacutesofo Antiacutestenes

Quando o iniciavam no misteacuterio de Orfeu dizendo-lhe o sacerdote que aqueles que se

devotavam a tal religiatildeo iam receber bens eternos e perfeitos apoacutes a morte aquele

61 Cf Les Essais II 12 p 444 62 Ver nota 43 63 Les Essais II 12 p 441 64 Friedrich op cit p 122

26

perguntou-lhe ldquose acreditas nisso por que entatildeo natildeo morres tu mesmordquo65 Eis um outro

exemplo que vale a pena citar

ldquo[C] Diogenes plus brusquement selon sa mode et hors de nostre propos au prestre qui le preschoit de mesme de se faire de son ordre pour parvenir aux biens de lautre monde Veux tu pas que je croye quAgesilauumls et Epaminondas si grands hommes seront miserables et que toy qui nes quun veau seras bien heureux par ce que tu es prestre rdquo66

Segundo Montaigne se acolhecircssemos essas grandes promessas de felicidades

eternas e supremas com a mesma autoridade com que acolhemos uma opiniatildeo

filosoacutefica natildeo teriacuteamos o horror agrave morte que temos

ldquo[A] Je veuil estre dissout dirions nous et estre aveques Jesus-Christrdquo67

Ao afirmar que

ldquo[A] La force du discours de Platon de lrsquoimmortaliteacute de lrsquoame poussa bien aucuns de ses disciples agrave la mort pour joiumlr plus promptement des esperances qursquoil leur donnoit [hellip]68

O autor da ldquoApologierdquo quer destacar a fragilidade da razatildeo que utiliza meios

puramente humanos para explicar ldquorealidadesrdquo que transcendem a vida concreta

Vejamos uma passagem em que o autor expressa nitidamente estas ideias

ldquo[A] Tout cela cest un signe tres-evident que nous ne recevons nostre religion quagrave nostre faccedilon et par nos mains et non autrement que comme les autres religions se reccediloyvent Nous nous sommes rencontrez au paiumls ou elle estoit en usage ougrave nous regardons son ancienneteacute ou lauthoriteacute des hommes qui lont maintenue ou creignons les menaces quellrsquoattache aux mescreans ou suyvons ses promesses Ces considerations lagrave doivent estre employeacutees agrave nostre creance mais comme subsidiaires ce sont liaisons humaines Une autre region dautres tesmoings pareilles promesses et menasses nous pourroyent imprimer par mesme voye une croyance contrairerdquo69

Apesar de ser catoacutelico parece sugerir na ldquoApologierdquo uma certa atitude de

indiferenccedila relativamente a toda e qualquer profissatildeo de feacute ou seja uma espeacutecie de

distanciamento no que diz respeito agraves diversas convicccedilotildees religiosas Montaigne chega

quase a reduzir a proacutepria crenccedila a uma questatildeo de costume a um acaso geograacutefico

65 Cf Les Essais II 12 p 444 66 Les Essais II 12 p 444 67 Les Essais II 12 p 445 68 Les Essais II 12 p 445 69 Les Essais II 12 p 445

27

[B] Nous sommes Chrestiens agrave mesme titre que nous sommes ou Perigordins ou Alemansrdquo70

Fazendo uma criacutetica aos diversos raciociacutenios que foram usados na histoacuteria do

pensamento filosoacutefico com o objectivo de argumentar de que forma o homem tem

acesso agrave religiatildeo Montaigne afirma que Platatildeo e os seus exemplos querem levar-nos a

concluir que somos conduzidos agrave crenccedila em Deus ou por amor ou por forccedila A sua

rejeiccedilatildeo dos argumentos da filosofia expressa-se de uma forma muito incisiva

ldquo[C] LAtheisme estant une proposition comme desnatureacutee et monstrueuse difficile aussi et malaiseacutee destablir en lesprit humain pour insolent et desregleacute quil puisse estre il sen est veu assez par vaniteacute et par fierteacute de concevoir des opinions non vulgaires et reformatrices du monde en affecter la profession par contenance qui sils sont asses fols ne sont pas assez forts pour lavoir planteacutee en leur conscience pourtantrdquo71

Aleacutem de apontar os limites das crenccedilas consideradas pagatildes bem como os

enganos de Platatildeo relativos aos motivos que levam o homem agrave praacutetica da religiatildeo

Montaigne critica um outro engano similar e importante de Platatildeo

ldquo[B] Lerreur du paganisme et lignorance de nostre sainte veriteacute laissa tomber cette grande ame de Platon (mais grande dhumaine grandeur seulement) encores en cet autre voisin abus que les enfans et les vieillars se trouvent plus susceptibles de religion comme si elle naissoit et tiroit son credit de nostre imbecilliteacuterdquo72

Segundo Montaigne a religiatildeo natildeo pode ser construiacuteda sobre o alicerce da razatildeo

humana como vimos Nem tampouco pode ser fundada nos argumentos platoacutenicos

acabados de referir Estes satildeo todos muito fraacutegeis A religiatildeo encontra as suas bases

verdadeiras na feacute A perspectiva proacutepria da filosofia supotildee um ateiacutesmo de meacutetodo como

observa Conche Caso contraacuterio ela jaacute natildeo seria filosofia ldquomais theacuteologie ou ideacuteologie

A qui est ainsi priveacute du secours de la gracircce divine Dieu est inconnaissablerdquo73

Montaigne recusa o ateiacutesmo de uma forma muito clara inclusive aquele conceituado

por Platatildeo

ldquo[A] Et ce que dit Plato74 quil est peu dhommes si fermes en latheisme quun dangier pressant ne ramene agrave la recognoissance de la divine puissance ce rolle ne touche point un vray Chrestien Cest agrave faire aux

70 Les essais II 12 p 445 71 Les Essais II 12 p 446 72 Les Essais II 12 p 446 73 Conche 1996 op cit p131 74 Tudo leva a crer que Montaigne se estaacute a referir a Platatildeo Preferimos conservar a mesma grafia da ediccedilatildeo dos Essais que estaacute a ser utilizada neste trabalho

28

religions mortelles et humaines destre receueumls par une humaine conduite Quelle foy doit ce estre que la laacutecheteacute et la foiblesse de coeur plantent en nous et establissent [C] Plaisante foy qui ne croid ce quelle croit que pour navoir le courage de le descroire Une vitieuse passion comme celle de linconstance et de lestonnement peut elle faire en nostre ame aucune production regleacutee75

Continuando a sua reflexatildeo no preacircmbulo da ldquoApologierdquo o autor ressalta qual eacute

a relaccedilatildeo fundamental que eacute necessaacuteria para estabelecer a uniatildeo do homem a Deus

partindo do caraacutecter superior da religiatildeo face ao ateiacutesmo Montaigne observa que o laccedilo

que deveria atar o nosso juiacutezo e a nossa vontade que deveria cingir a nossa alma e uni-

la ao criador

ldquo[A] ce devroit estre un neud prenant ses repliz et ses forces non pas de nos considerations de noz raisons et passions mais dune estreinte divine et supernaturelle nayant quune forme un visage et un lustre qui est lauthoriteacute de Dieu et sa grace Or nostre coeur et nostre ame estant regie et commandeacutee par la foy cest raison quelle tire au service de son dessain toutes noz autres pieces selon leur porteacuteerdquo76

Montaigne ao indicar como devemos manejar os instrumentos naturais e

humanos ou seja como devemos aplicar a razatildeo agrave nossa feacute afirma que Deus deixou nas

suas obras o cunho de sua divindade e deve-se apenas agrave nossa fraqueza que natildeo o

possamos perceber E afirma com admiraccedilatildeo que Sebond se empenhou neste digno

estudo

ldquo[A] Or nos raisons et nos discours humains cest comme la matiere lourde et sterile la grace de Dieu en est la formerdquo77

As acccedilotildees humanas permanecem inuacuteteis e vatildes se natildeo tecircm em conta o amor e a

obediecircncia a Deus

ldquo[A] ainsin est-il de nos imaginations et discours ils ont quelque corps mais une masse informe sans faccedilon et sans jour si la foy et grace de Dieu ny sont joinctesrdquo78

Quanto aos segundos opositores de Sebond ndash ou seja os que dizem que seus

argumentos satildeo fracos e inadequados para demonstrar o que ele pretende e por isso

dispotildeem-se a atacaacute-los facilmente ndash Montaigne vai rejeitar os argumentos por eles

apresentados nos quais se subestima a importacircncia da feacute A rejeiccedilatildeo dos argumentos

desta segunda categoria ocupa maior espaccedilo porque ldquo[A] Il faut secouer ceux cy un peu

75 Les Essais II 12 p 445 76 Les Essais II 12 p 446 77 Les Essais II 12 p 447 78 Les Essais II 12 p 447

29

plus rudement car ils sont plus dangereux et plus malitieux que les premiersrdquo79 Estes

ldquoracionalistasrdquo consideram que a razatildeo humana eacute auto-suficiente para conhecer

qualquer coisa e desprezam a feacute considerando-a como algo inuacutetil para um saacutebio

ldquo Le moyen que je prens pour rabatre cette frenaisie et qui me semble le plus propre crsquoest de froisser et fouler aux pieds lrsquoorgueil et humaine fierteacute leur faire sentir lrsquoinaniteacute la vaniteacute et deneantise de lrsquohomme leur arracher des points les chetives armes de leur raison leur faire baisser la teste et mordre la terre soubs lrsquoauthoriteacute et reverence de la majesteacute divine Crsquoest agrave elle seule qursquoapartient la science et la sapience elle seule qui peut estimer de soy quelque chose et agrave qui nous desrobons ce que nous nous contons et ce que nous nous prisons Ού γὰρ ἐᾱ φρονεῑν ὁ Θεὸϛ μέγα ἄλλον ἢ ἑαυτόν [ldquoCar Dieu ne permet pas qursquoun autre que Lui srsquoenorgueillisserdquo (Heacuterodote VII x)]rdquo80

Ao analisar as duas objecccedilotildees agrave Teologia natural de Sebond Montaigne tem

como principal finalidade - aleacutem do desenvolvimento do seu fideiacutesmo que potildee em

causa que a filosofia seja um meio para se chegar a Deus - destronar o homem do seu

pedestal como ldquosenhorrdquo entre todas as criaturas como vimos no primeiro capiacutetulo deste

trabalho Agrave luz destas objecccedilotildees se desenvolve tambeacutem em todo o texto da ldquoApologierdquo

uma grande quantidade de criacuteticas aos detractores do teoacutelogo catalatildeo que na verdade

mais natildeo eacute do que uma contestaccedilatildeo de Montaigne de tudo aquilo que faz do homem um

ser cheio de orgulho e de vaidade Montaigne chega agrave conclusatildeo que a razatildeo humana

natildeo pode conhecer os atributos de Deus A razatildeo natildeo tem condiccedilotildees para emitir juiacutezos

crediacuteveis a respeito destes atributos Ela natildeo estaacute revestida de um poder que lhe garanta

a elaboraccedilatildeo de raciociacutenios crediacuteveis acerca de Deus e das verdades da religiatildeo

Montaigne apresenta um resumo das principais ideias acerca de Deus que foram

surgindo na histoacuteria do pensamento filosoacutefico antigo e afirma que tudo isto natildeo passa de

uma balbuacuterdia (ldquotintamarrerdquo) de muitos ceacuterebros filosoacuteficos81

ldquo[C] Thales [hellip] estima Dieu un esprit qui fit deau toutes choses Anaximander que les Dieux estoyent des mourans et naissans agrave diverses saisons et que crsquoestoyent des mondes infinis en nombre Anaximenes que lair estoit Dieu [hellip] Anaxagoras le premier a tenu la description et maniere de toutes choses estre conduite par la force et raison dun esprit infini Alcmaeligon a donneacute la diviniteacute au soleil agrave la lune aux astres et agrave lame[hellip] Empedocles disoit estre des Dieux les quatre natures desquelles toutes choses sont faictes [hellip] Platon dissipe sa creance agrave divers visages Il dict au Timaeacutee le pere du monde ne se pouvoir

79 Les Essais II 12 p 448 80 Les Essais II 12 p 448 81 Cf Les Essais II 12 p 516

30

nommer aux loix quil ne se faut enquerir de son estre et ailleurs en ces mesmes livres il faict le monde le ciel les astres la terre et nos ames Dieux et reccediloit en outre ceux qui ont esteacute receuz par lancienne institution en chasque republique Xenophon rapporte un pareil trouble de la discipline de Socrates tantost quil ne se faut enquerir de la forme de Dieu et puis il luy faict establir que le Soleil est Dieu et lame Dieu quil ny en a quun et puis quil y en a plusieurs[hellip] Aristote asture que cest lesprit asture le monde asture il donne un autre maistre agrave ce monde et asture faict Dieu lardeur du ciel [hellip] Heraclides Ponticus ne fait que vaguer entre les advis et en fin prive Dieu de sentiment et le faict remuant de forme agrave autre et puis dict que cest le ciel et la terre[hellip] Zeno la loy naturelle commandant le bien et prohibant le mal laquelle loy est un animant et oste les Dieux accoustumez Jupiter Juno Vesta Diogenes Apolloniates que cest laage [hellip] Cleanthes tantost la raison tantost le monde tantost lame de Nature tantost la chaleur supreme entournant et envelopant tout [hellip] Chrysippus faisoit un amas confus de toutes les precedentes sentences et comptoit entre mille formes de Dieux quil faict les hommes aussi qui sont immortalisez Diagoras et Theodorus nioyent tout sec quil y eust des Dieux Epicurus faict les Dieux luisans transparens et perflables logez comme entre deux forts entre deux mondes agrave couvert des coups revestus dune humaine figure et de nos membres lesquels membres leur sont de nul usagerdquo82

Esta longa citaccedilatildeo da ldquoApologierdquo apresenta-nos a enorme quantidade de

teorizaccedilotildees que tecircm como base a razatildeo humana e que satildeo bastante diacutespares no tocante

agraves crenccedilas Isto potildee em evidecircncia que Montaigne natildeo acredita que o homem tenha

condiccedilotildees para compreender ou apresentar algo crediacutevel acerca de Deus Por isto o

homem exagera na sua criatividade intelectual ao inventar inuacutemeros atributos divinos

que frequentemente se assemelham aos seus proacuteprios atributos Em seu entender Deus

eacute absolutamente incompreensiacutevel Na leitura que de Montaigne faz Leveaux

ldquoLrsquoideacutee de Dieu existe chez lrsquohomme mais au delagrave de cette ideacutee simple drsquoune uniteacute absolue tout devient doute et confusion Alors se preacutesent des questions sans nombre auxquelles il est impossible de reacutepondre Crsquoest lagrave si je ne me trompe le ldquoque sais-jerdquordquo83

Montaigne afirma que haacute uma grande inconstacircncia variedade e mobilidade de

ideias acerca de Deus nas almas excelentes e admiraacuteveis dos filoacutesofos Mas classifica o

empenho destes como vatildeo pelo facto de quererem adivinhar Deus por meio das nossas

analogias e conjecturas Por natildeo podermos estender a vista ateacute ao seu trono glorioso

procuramos trazecirc-lo aqui para baixo para a nossa corrupccedilatildeo e miseacuteria Soacute a feacute tem

82 Les Essais II 12 pp 514-516 83 Leveaux Alphonse Eacutetude sur les Essais de Montaigne Paris Henri Plon Imprimeur-Eacutediteur 1870 p 213

31

condiccedilotildees de entender os misteacuterios da religiatildeo Sem ela os nossos esforccedilos de

demonstraccedilatildeo destes misteacuterios permanecem vazios e esteacutereis

ldquo[A] La participation que nous avons agrave la connoissance de la veriteacute quelle quelle soit ce nest pas par nos propres forces que nous lavons acquise Dieu nous a assez appris cela par les tesmoins quil a choisi du vulgaire simples et ignorans pour nous instruire de ses admirables secrets nostre foy ce nest pas nostre acquest cest un pur present de la liberaliteacute dautruy Ce nest pas par discours ou par nostre entendement que nous avons receu nostre religion cest par authoriteacute et par commandement estranger La foiblesse de nostre jugement nous y ayde plus que la force et nostre aveuglement plus que nostre cler-voyance Cest par lentremise de nostre ignorance plus que de nostre science que nous sommes sccedilavans de divin sccedilavoirrdquo84

Para o autor da ldquoApologierdquo o homem por si soacute eacute absolutamente impotente para

chegar a certezas acerca das questotildees relacionadas com a feacute Nesta perspectiva o autor

observa tambeacutem que natildeo eacute possiacutevel fazer afirmaccedilotildees seguras tendo como base a razatildeo

Por exemplo acerca da imortalidade da alma tema desde sempre muito caro agrave filosofia

os cristatildeos devem unicamente a Deus e ao benefiacutecio de sua graccedila a verdade de uma

crenccedila tatildeo nobre pois eacute apenas da sua liberalidade que o cristatildeo recebe o fruto da

imortalidade o qual lembra o autor consiste no gozo da beatitude eterna A razatildeo natildeo

consegue fazer nenhuma afirmaccedilatildeo crediacutevel sobre este tema Ela eacute incapaz uma vez que

a imortalidade eacute um ldquodadordquo da revelaccedilatildeo

ldquo[C] Confessons ingenuement que Dieu seul nous lrsquoa dict et la foy car leccedilon nrsquoest ce pas de nature et de nostre raisonrdquo85

Montaigne assumindo uma posiccedilatildeo fideiacutesta depois de ter feito o exame das

diversas opiniotildees sobre a alma86 faz um ldquoapelo agrave passividade da razatildeo e agrave aceitaccedilatildeo da

verdade religiosa sem tentar compreendecirc-la ldquoimortalidaderdquo eacute como ldquoDeusrdquo uma

palavra que natildeo pode ser preenchida A imortalidade afirmada pela feacute natildeo poderaacute ser

explorada por nenhuma forma de discurso humanordquo87

Esta atitude fideiacutesta e conservadora em termos religiosos deve-se em grande

parte agrave desilusatildeo de Montaigne face aos inuacutemeros sistemas filosoacuteficos que tentavam

84 Les Essais II 12 p 500 85 Les Essais II 12 p 554 86 Na ldquoApologierdquo haacute uma quantidade significativa de paacuteginas nas quais o autor expressa muitas opiniotildees sobre o tema da alma (cf Les Essais pp 542-547) 87 Birchal Telma de Souza O Eu nos Ensaios de Montaigne Belo Horizonte Editora UFMG 2007 pp 64-65

32

encontrar explicaccedilotildees racionais para todas as questotildees da vida inclusivamente para

aquelas que transcendem a vida real

ldquo[A] Car quelque apparence quil y ayt en la nouvelleteacute je ne change pas aiseacutement de peur que jay de perdre au change Et puis que je ne suis pas capable de choisir je pren le chois dautruy et me tien en lassiette ougrave Dieu ma mis Autrement je ne me sccedilauroy garder de rouler sans cesse Ainsi me suis-je par la grace de Dieu conserveacute entier sans agitation et trouble de conscience aux anciennes creances de nostre religion au travers de tant de sectes et de divisions que nostre siecle a produittesrdquo88

Segundo Leveaux Montaigne sintetiza seu pensamento em mateacuteria religiosa89

da seguinte maneira

ldquo[A] De toutes les opinions humaines et anciennes touchant la religion celle lagrave me semble avoir eu plus de vray-semblance et plus dexcuse qui recognoissoit Dieu comme une puissance incomprehensible origine et conservatrice de toutes choses toute bonteacute toute perfection recevant et prenant en bonne part lhonneur et la reverence que les humains luy rendoient soubs quelque visage sous quelque nom et en quelque maniere que ce fut [hellip]rdquo90

Haacute que reconhecer no entanto que eacute algo difiacutecil e delicado tirar grandes

conclusotildees acerca da religiatildeo embora o tema perpasse toda a ldquoApologie rdquo Montaigne

concebia a religiatildeo como um conjunto de praacuteticas e leis que tinham como finalidade

contribuir para que o homem natildeo agisse como um escravo da vaidade da razatildeo As

uacuteltimas palavras da ldquoApologierdquo onde o autor cita Plutarco pretendem servir como uma

espeacutecie de conclusatildeo de toda a reflexatildeo deste capiacutetulo Deixemos o proacuteprio Montaigne

falar

ldquo[A] Mais quest-ce donc qui est veritablement Ce qui est eternel cest agrave dire qui na jamais eu de naissance ny naura jamais fin agrave qui le temps napporte jamais aucune mutation Car cest chose mobile que le temps et qui apparoit comme en ombre avec la matiere coulante et fluante tousjours sans jamais demeurer stable ny permanenterdquo91

Contestando a atitude humana de querer elevar-se acima da humanidade que

pode ser tambeacutem entendida como um desejo absurdo de um ser despreziacutevel que tem a

88 Les Essais II 12 p 569 89 Cf Leveaux op cit p 213 90 Les Essais II 12 p 513 91 Les Essais II 12 p 603

33

presunccedilatildeo como doenccedila natural e original e que eacute a mais calamitosa de todas as

criaturas e ao mesmo tempo a mais orgulhosa92 Montaigne afirma

ldquo[A] O la vile chose dit-il et abjecte que lhomme sil ne sesleve au dessus de lhumaniteacute [C] Voila un bon mot et un utile desir mais pareillement absurde Car [A] de faire la poigneacutee plus grande que le poing la brasseacutee plus grande que le bras et desperer enjamber plus que de lestandueuml de nos jambes cela est impossible et monstrueux Ny que lhomme se monte au dessus de soy et de lhumaniteacute car il ne peut voir que de ses yeux ny saisir que de ses prises Il seslevera si Dieu lui preste extraordinairement la main Il seslevera abandonnant et renonccedilant agrave ses propres moyens et se laissant hausser et soubslever par les moyens purement celestesrdquo93

Montaigne termina a ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo colocando o homem no

seu devido lugar e afirmando que soacute atraveacutes do auxiacutelio de Deus e com a graccedila da feacute

cristatilde eacute que este ser tatildeo vaidoso poderaacute elevar-se acima da humanidade

ldquo[C] Cest agrave nostre foy Chrestienne non agrave sa vertu Stoique de pretendre agrave cette divine et miraculeuse metamorphoserdquo94

92 Cf nota 12 93 Les Essais II 12 p 604 94 Les Essais II 12 p 604

34

3 A criacutetica agrave razatildeo humana e sua relaccedilatildeo com a ciecircncia

Uma observaccedilatildeo que eacute importante destacar no iniacutecio deste capiacutetulo refere-se agrave

concepccedilatildeo montaigneana de ldquociecircnciardquo que se encontra na ldquoApologie de Raymond

Sebondrdquo Quando Montaigne na sua criacutetica radical agrave razatildeo humana se refere agrave ciecircncia

o que subjaz agraves suas reflexotildees natildeo eacute a concepccedilatildeo moderna de ciecircncia Ele natildeo alude ao

chamado ldquomeacutetodo cientiacutefico experimentalrdquo ateacute porque este meacutetodo ainda natildeo existia O

termo ldquociecircnciardquo natildeo tem o sentido que adquiriu depois da chamada Revoluccedilatildeo

Cientiacutefica do seacuteculo XVII Assim com o termo ciecircncia Montaigne refere-se ao conjunto

do conhecimento erudito de seu tempo

ldquoLa science du XVIᵉ siegravecle nrsquoest que philosophie Elle srsquoarrecircte aux mots jamais elle ne peacutenegravetre au fond des choses et ne suscite un effort critiquerdquo95

Sendo um pensador da uacuteltima fase do periacuteodo renascentista periacuteodo este em que

natildeo havia nenhuma diferenccedila essencial entre a filosofia e a ciecircncia Montaigne procura

expressar as suas ideias os seus ideais de sabedoria como tantos outros faziam isto eacute

quando se refere agrave ciecircncia estaacute a referir-se aos doutos e aos filoacutesofos em geral

Logo no iniacutecio da ldquoApologierdquo Montaigne faz questatildeo de afirmar que a ciecircncia eacute

algo muito uacutetil e grande e os que a menosprezam datildeo prova bastante de estupidez Sem

desprezar agrave partida todo o esforccedilo que muitos fazem para chegar a alcanccedilar o

conhecimento Montaigne por outro lado natildeo chega a estimar tanto a ciecircncia

ldquo[A] Comme Herillus le philosophe qui logeoit en elle le souverain bien et tenoit qursquoil fut en elle de nous rendre sages et contensrdquo96

Montaigne natildeo crecirc nisto nem tampouco no que outros disseram

ldquo[A] que la science est mere de toute vertu et que tout vice este produit par lrsquoignorancerdquo97

Segundo ele mesmo atesta a sua casa esteve habitualmente aberta agraves pessoas de

saber e o seu pai buscou com grande cuidado e despesa o conviacutevio dos homens doutos

ldquo[A] les recevant chez luy comme personnes sainctes et ayans quelque particuliere inspiration de sagesse divine [hellip]rdquo98

95 Villey opcit p 214 96 Les Essais II 12 p 438 97 Les Essais II 12 p 438 98 Les Essais II 12 pp 438-439

35

Embora respirando toda uma atmosfera intelectual que havia em sua casa

Montaigne afirma no entanto que gostava muito destes doutos frequentadores de sua

casa mas natildeo os adorava

Desde as primeiras afirmaccedilotildees de Montaigne na ldquoApologierdquo eacute possiacutevel perceber

ateacute que ponto ele tem dificuldade em aceitar os chamados filoacutesofos de profissatildeo Neste

famoso texto que eacute considerado por Villey ldquole reacutesumeacute du travail logique qui srsquoopegravere

chez Montaigne entre 1573 et 1579 ou 1580rdquo99 podemos encontrar paradoxalmente

por um lado uma valorizaccedilatildeo da razatildeo enquanto uacutenico modo de investigaccedilatildeo dos

doutos e por outro lado que a razatildeo eacute considerada como algo profundamente limitado

enquanto instrumento de acesso ao conhecimento

Montaigne dedica muitas paacuteginas a demonstrar que a ciecircncia fundada na razatildeo

eacute viacutetima da vaidade humana e deve ser contestada Isto pelo facto de que concebe a

ciecircncia como o esforccedilo que deve ser uacutetil agrave nossa felicidade

ldquo[A] la philosophie me doit mettre les armes agrave la main pour combatre la fortune qui me doit roidir le courrage pour fouler aux pieds toutes les advertitez humaines [hellip]rdquo100

O objectivo primeiro da filosofia eacute portanto a vida concreta A atitude vaidosa

da razatildeo na busca do conhecimento causa no homem

ldquo[A] lrsquoinconstance lrsquoirresolution lrsquoincertitude le deuil la superstition la solitude de choses agrave venir voire apres nostre vie lrsquoambition lrsquoavarice la jalousie lrsquoenvie les appetits desreglez foncenez et indomptables la guerre la mensonge la desloyauteacute la detraction et la curiositeacuterdquo101

Segundo Montaigne pagamos um preccedilo elevadiacutessimo por essa bela razatildeo de que

nos gloriamos e por conseguinte tambeacutem pela capacidade de julgar e conhecer

sobretudo se forem adquiridas agrave custa destas paixotildees

Montaigne natildeo vecirc muita necessidade praacutetica de querer mergulhar nos altos

conhecimentos em que a filosofia estaacute imersa Para que serve o conhecimento (fruto da

razatildeo enganadora) de muitas coisas Expressando a sua criacutetica agrave loacutegica aristoteacutelica

afirma ironicamente

ldquo[A] ont-ils tireacute de la Logique quelques consolation agrave la gouterdquo102

99 Villey op cit p 182 100 Les Essais II 12 p 494 101 Les Essais II 12 p 486 102 Les Essais II 12 p 487

36

Prosseguindo no mesmo registo iroacutenico pergunta se acaso se descobriu que a

voluptuosidade e a sauacutede satildeo mais deleitosas para quem conhece a astronomia e a

gramaacutetica e menos importunas agrave desonra e a pobreza103

Montaigne revela um significativo desprezo pelos filoacutesofos que satildeo escravos da

razatildeo e buscam tudo saber e fazer afirmaccedilotildees sobre todas as coisas Ao mesmo tempo

manifesta uma forte tendecircncia para valorizar o homem simples e ignorante

ldquo[A] Jrsquoay veu en mon temps cent artisans cent laboureurs plus sages et plus heureux que des recteurs de lrsquouniversiteacute et lesquels jrsquoaimerois mieux ressemblerrdquo104

Na sua apologia da ignoracircncia declara que o homem tem como quinhatildeo a

presunccedilatildeo e que a ignoracircncia nos eacute recomendada ateacute pela religiatildeo cristatildeldquo[A] La peste

de lrsquohomme crsquoest lrsquoopinion de sccedilavoirrdquo105

Para Montaigne eacute necessaacuterio derrubar a tola vaidade e sacudir de uma maneira

viva e corajosa os fundamentos ridiacuteculos sobre os quais se fundam as falsas ideias

Insiste continuamente no facto de que natildeo necessitamos do saber produzido pela

filosofia

ldquo[A] Crsquoestoit ce que disoit un senateur Romain des derniers siecles que leurs predecesseurs avoient lrsquoaleine puante agrave lrsquoair et lrsquoestomac musqueacute de bonne conscience et qursquoau rebours ceux de son temps se sentoient au dehors que le parfum puans au dedans toutes sorte de vices crsquoest agrave dire comme je pense qursquoils avoient beaucoup de sccedilavoir et de suffisance et grand faute de preudrsquohommierdquo106

O orgulho humano eacute visto pelo autor como algo que atrapalha fortemente na

busca natildeo do conhecimento filosoacutefico claacutessico mas da sabedoria Soacutecrates eacute

referenciado na ldquoApologierdquo entre outras coisas como um grande saacutebio107 Natildeo porque

ldquo[C] le Dieu de sagesse luy avoit attibueacute le surnom de sagerdquo108 mas porque ele mesmo

natildeo se considerava saacutebio e porque a sua melhor ciecircncia era a ciecircncia da ignoracircncia e a

sua melhor sabedoria a simplicidade de espiacuterito

103Cf Les Essais II 12 p 487 104 Les Essais II 12 p 487 105 Les Essais II 12 p 488 106 Les Essais II 12 p 498 107 Podemos encontrar uma quantidade significativa de estudos acerca da figura de Soacutecrates nos Ensaios Destacamos aqui um artigo escrito por Celso Martins Azar Filho cujo tiacutetulo eacute Montaigne e Soacutecrates cepticismo conhecimento e virtuderdquo que estaacute publicado na Revista Portuguesa de Filosofia Tomo LVIII do ano de 2002 Fasc 4 (pp 829-845) Com o seu artigo o autor propotildee-se examinar qual o lugar e a importacircncia deste filoacutesofo no pensamento de Montaigne 108 Les Essais II 12 p 498

37

O verdadeiro saacutebio segundo Montaigne eacute o homem que aprende que natildeo

aprendeu nada Refere-se a isto de uma maneira muito elucidativa

ldquo[A]Il est adnevenu aux gens veacuteritablement sccedilavans ce qui advient aux espics de bled ils vont srsquoeslevant et se haussant la teste droite et fiere tant qursquoil sont vuides mais quand ils sont pleins et grossis de grain en leur maturiteacute ils commencent agrave srsquohumilier et agrave baisser les cornes Pareillement les hommes ayant tout essayeacute et tout sondeacute nrsquoayant trouveacute en cet amas de science et provision de tant de choses diverses rien de massif et ferme et rien que vaniteacute ils ont renonceacute agrave leur presomption et reconneu leur condition naturellerdquo109

Depois de descrever sinteticamente os atributos do saacutebio Montaigne -

considerado como um pensador que popularizou o pirronismo praticando-o

pessoalmente sobretudo na ldquoApologierdquo - afirma que toda a filosofia estaacute distribuiacuteda por

trecircs geacuteneros A sua principal fonte eacute a ediccedilatildeo das obras de Sexto Empiacuterico que surge em

1569 Montaigne enumera estas trecircs filosofias da seguinte maneira haacute os dogmaacuteticos

os acadeacutemicos e os pirroacutenicos110 Os dogmaacuteticos afirmam que se pode ter acesso agrave

ciecircncia os acadeacutemicos natildeo estatildeo de acordo com os dogmaacuteticos isto eacute consideram que

natildeo se pode ter acesso agrave ciecircncia e os pirroacutenicos estatildeo ainda em busca da verdade Estes

declaram que os que pensam havecirc-la encontrado se enganam infinitamente Segundo

Montaigne os pirroacutenicos tecircm como ofiacutecio

ldquo[A] branler douter et enquerir ne srsquoasseurer de rien de rien ne se respondrerdquo111

Esta atitude condu-los segundo Montaigne agrave ataraxia que eacute uma condiccedilatildeo de

vida tranquila sossegada isenta das agitaccedilotildees que recebemos pela impressatildeo da opiniatildeo

e ciecircncia que julgamos ter das coisas Esta indiferenccedila pela ciecircncia liberta os pirroacutenicos

inclusivamente do espiacuterito de rivalidade quanto agrave sua doutrina debatem de maneira bem

pouco vigorosa Quando dizem que o pesado vai para baixo ficariam bastante

aborrecidos se acreditassem neles Sendo assim os pirroacutenicos segundo Montaigne

procuram que os contradigam para gerar ldquo[A] la dubitation et surceance (suspension)

de jugement qui est leur finrdquo112

Os pirroacutenicos satildeo partidaacuterios da duacutevida extrema Expotildeem as suas opiniotildees

apenas para combater aquelas em que pensam que acreditamos Diz Montaigne

109 Les Essais II 12 p 500 110 Les Essais II 12 p 502 111 Les Essais II 12 p 502 112 Les Essais II 12 p 503

38

ldquo[A] Si vous prenez la leur ils prendront aussi volontiers i la contraire agrave soutenir tout leur est un ils nrsquoy ont aucun chois Si vous establissez que la nege soit noire ils augumentent au rebours qursquoelle est blanche Si vous dites qursquoelle nrsquoest ny lrsquoun ny lrsquoautre crsquoest agrave eux agrave maintenir qursquoelle est tous les deux Si par certain jugement vous tenez que vous nrsquoen sccedilavez rien ils vous maintiedront que vous ne sccedilavez Oui et si par un axiome affirmatif vous asseurez que vous en doutez ils vous iront debattant que vous nrsquoen doutez pas ou que vous ne pouvez juger et etablir que vous en doutez Et par cette extremiteacute de doubte qui se secoue soy-mesme ils se separent et se divisent de plusieurs opinions de celles mesme qui ont maintenu en plusieurs faccedilons le double et lrsquoignorancerdquo113

[hellip] Leurs faccedilon de parler sont Je nrsquoestablis rien il nrsquoest non plus ainsi qursquoainsi ou que ny lrsquoun ny lrsquoautre je ne le comprens point les apparences sont eacutegales par tout la loy de parler et pour et contre est pareille [C] Rien ne semble vray qui ne puisse sembler faux [A] Leur mot sacramental crsquoest ἐπέχω crsquoest agrave dire je soutiens je ne bougerdquo114

Os pirroacutenicos servem-se de sua razatildeo para inquirir e debater mas natildeo para

decidir e escolher

Um outro aspecto que leva Montaigne a identificar-se com o pirronismo a uacutenica

filosofia por ele respeitada eacute a visatildeo pirroacutenica relativamente agraves acccedilotildees da vida Os seus

defensores prestam-se e acomodam-se agraves inclinaccedilotildees naturais ao impulso e agrave imposiccedilatildeo

das paixotildees agraves decisotildees das leis e dos costumes

ldquo[A] Ils laissent guider agrave ces choses lagrave leurs actions communes sans aucune opination ou jugement115

Neste sentido Montaigne defende o pirronismo sobretudo por causa de sua

virtude moral116 Sustenta que eacute importante fomentar o juiacutezo livre ou a suspensatildeo do

juiacutezo que eacute a atitude dos pirroacutenicos Por outro lado natildeo pode concordar com a posiccedilatildeo

dos que aceitam a arbitraacuteria submissatildeo a algum tipo de autoridade ou opiniatildeo (os

dogmaacuteticos) Importa salientar no entanto que o autor da ldquoApologierdquo consegue

distanciar-se dos pirroacutenicos que se recusam a fazer qualquer juiacutezo Montaigne por ser

um pensador livre inclusive dos argumentos pirroacutenicos natildeo suspende os seus proacuteprios

113 Les Essais II 12 p 503 114 Les Essais II 12 p 505 115 Les Essais II 12 p 505 116 Para Montaigne o pirronismo natildeo eacute uma doutrina ou um sistema filosoacutefico do qual ele eacute adepto Eacute sobretudo uma atitude de espiacuterito ou uma tendecircncia do pensamento Ele tem consciecircncia da dificuldade que esta filosofia encontra para consolidar-se em termos de coerecircncia loacutegica Se do ponto de vista loacutegico natildeo haacute soluccedilatildeo permanente satisfatoacuteria para o pirronismo ele torna-se uma opccedilatildeo eacutetica na medida em que possibilita aos seus adeptos ldquo[B] de maintenir leur liberteacute et considerer les choses sans obligation et servituderdquo (Les Essais II 12 p 504)

39

juiacutezos Muito pelo contraacuterio emite muitos Exprime as suas opiniotildees sem cessar Chega

ateacute a afirmar que a razatildeo eacute

ldquo[A] sa pierre de touche agrave toutes sortes drsquoessais mais certes crsquoest une touche pleine de fauceteacute drsquoerreur de foiblesse et defaillancerdquo117

Na ldquoApologierdquo Montaigne recorre aos tropos (segundo a designaccedilatildeo de Sexto

Empiacuterico) tomando-os como os principais argumentos contra a filosofia denominada

dogmaacutetica Estes argumentos ceacutepticos tecircm por finalidade provar que eacute impossiacutevel

alcanccedilar a verdade Fundamentado nas reflexotildees pirroacutenicas natildeo considera a ciecircncia

como um verdadeiro conhecimento O saber humano eacute considerado sem efeito por causa

de todo o tipo de divergecircncias que haacute entre os homens

Haacute segundo Montaigne uma imensa e infinita confusatildeo de opiniotildees entre os

filoacutesofos e tudo isto deve-se ao debate perpeacutetuo e universal acerca do conhecimento das

coisas Eles natildeo estatildeo de acordo em nada nem sequer em que o ceacuteu estaacute por cima das

nossas cabeccedilas118 afirma ironicamente E isto deve-se agrave falta de constacircncia do juiacutezo

Quantas vezes julgamos noacutes as coisas Quantas vezes alteramos as nossas opiniotildees

Nesta perspectiva percebemos a atitude relativista de Montaigne

ldquo[A] Ce que je tiens aujourdhuy et ce que je croy je le tiens et le croy de toute ma croyance tous mes utils et tous mes ressorts empoignent cette opinion et men respondent sur tout ce quils peuvent Je me sccedilaurois embrasser aucune veriteacute ny conserver avec plus de force que je fay cette cy Jy suis tout entier jy suis voyrement mais ne mest il pas advenu non une foi mais cent mais mille et tous les jours davoir embrasseacute quelqursquoautre chose agrave tout ces mesmes instrumens en cette mesme condition que depuis jaye jugeacutee fauce Au moins faut il devenir sage agrave ses propres despansrdquo119

Montaigne natildeo pretende condenar a tendecircncia agrave mudanccedila perene que eacute

constitutiva do homem O que ele pretende eacute que o homem se comporte de uma forma

mais moderada e discreta em face das mudanccedilas Sugere que nos tornemos saacutebios agrave

nossa proacutepria custa120

117 Les Essais II 12 p 540 118 Cf Les Essais II 12 p 563 119 Les Essais II 12 p 563 120 Conche na sua obra de introduccedilatildeo aos Essais intitulada Montaigne ou la conscience heureuse apresenta uma reflexatildeo muito sugestiva relativamente ao tema da sabedoria Para este autor os Essais sugerem-nos que compreendamos a filosofia como uma aprendizagem da sabedoria e natildeo do saber Em seu entender Montaigne natildeo tem nenhum interesse em elaborar um sistema filosoacutefico porque isto supotildee que uma verdade permanece o que ela eacute Um sistema filosoacutefico crecirc que haacute verdades e que elas satildeo acessiacuteveis por evidecircncia ou seja que a certeza posta agrave prova eacute realmente uma certeza de direito Estes princiacutepios satildeo sem valor para Montaigne eleja que este natildeo crecirc na possibilidade de confirmar as nossas certezas (cf Conche 2009 op cit 65)

40

O arauto do juiacutezo eacute o homem concreto que vive uma vida real Natildeo eacute um ser

abstracto Por isso Montaigne afirma

ldquo[A] Ce ne sont pas seulement les fievres les breuvages et les grands accidens qui renversent nostre jugement les moindres choses du monde le tournevirent [hellip] et par conseacutequent agrave peine se peut il rencontrer une seule heure en la vie ougrave nostre jugement se trouve en sa deueuml assiette nostre corps estant subject agrave tant de continuelles mutations et estofeacute de tant de sortes de ressorts que ( jen croy les medecins) combien il est malaiseacute quil ny en ayt tousjours quelquun qui tire de traversrdquo121

Vejamos uma definiccedilatildeo da razatildeo na ldquoApologierdquo

ldquo[A] la raison va tousjours torte et boiteuse et deshancheacutee et avec le mensonge comme avec la veriteacute Par ainsin il est malaiseacute de descouvrir son mescompte et desreglement Jappelle tousjours raison cette apparence de discours que chacun forge en soy cette raison de la condition de laquelle il y en peut avoir cent contraires autour dun mesme subject cest un instrument de plomb et de cire alongeable ployable et accommodable agrave tous biais et agrave toutes mesures il ne reste que la suffisance de le sccedilavoir contournerrdquo122

Atraveacutes desta concepccedilatildeo de razatildeo fica suficientemente clara a criacutetica destruidora

de Montaigne agrave filosofia dogmaacutetica que considera a razatildeo como uma faculdade que

permite ao homem ndash entre tantas outras atribuiccedilotildees ndash conhecer e acumular um saber uacutetil

e julgar sobre o bem e o mal

Envolvendo-se de uma maneira muito pessoal ndash como eacute caracteriacutestico do estilo

literaacuterio dos Essais ndash nesta reflexatildeo sobre a razatildeo Montaigne toma a liberdade de fazer

uma pequena descriccedilatildeo de sua personalidade Vale a pena citar algumas destas

passagens porque satildeo um reflexo do pensamento do autor

ldquo[A] Jay le pied si instable et si mal assis je le trouve si ayseacute agrave crouler et si prest au branle et ma veueuml si desregleacutee que agrave jun je me sens autre quapres le repas si ma santeacute me rid et la clarteacute dun beau jour me voylagrave honneste homme si jay un cor qui me presse lorteil me voylagrave renfroigneacute mal plaisant et inaccessible [hellip] Maintenant je suis agrave tout faire maintenant agrave rien faire ce qui mest plaisir agrave cette heure me sera quelque fois peine [hellip] Ou lhumeur melancholique me tient ou la choleriqu [hellip]Quand je prens des livres jauray apperceu en tel passage des graces excelentes et qui auront feru mon ame quun autre fois jy retombe jay beau le tourner et virer jay beau le plier et le manier cest une masse inconnue et informe pour moy [hellip] [B] [hellip] mon jugement ne tire pas tousjours avant il flotte il vaguerdquo123

121 Les Essais II 12 pp 564-565 122 Les Essais II 12 p 565 123 Les Essais II 12 pp 565-566

41

Montaigne daacute-se claramente conta de que natildeo encontramos seguranccedila nos

nossos juiacutezos As nossas paixotildees apresentam uma enorme quantidade de fantasias

Sobre isto natildeo podemos alcanccedilar nenhuma seguranccedila porque nos deparamos com

coisas muito instaacuteveis e moacuteveis Sustenta aleacutem disso que se os nossos juiacutezos estatildeo nas

matildeos ateacute mesmo da doenccedila e da perturbaccedilatildeo natildeo podemos esperar deles nada seguro

Foi a partir desta consciecircncia de sua volubilidade que Montaigne chegou a

estabelecer em si mesmo uma certa constacircncia de ideias a ponto de dificilmente alterar

as ideias primeiras e naturais como ele mesmo reconhece Afirma no entanto que natildeo

eacute capaz de decidir Por isso adopta as decisotildees de outrem e manteacutem-se na posiccedilatildeo em

que Deus o pocircs O seu ldquoconservadorismordquo124 religioso e ateacute poliacutetico manifesta-se

claramente nos Essais Mas ao mesmo tempo e este eacute o ponto que mais nos interessa

neste trabalho deixa transparecer que o homem eacute sempre convidado a estar aberto agraves

mudanccedilas

ldquo[A] Le ciel et les estoilles ont branleacute trois mille ans tout le monde lavoit ainsi creu jusques agrave ce que [C] Cleanthes le Samien ou selon Theophraste Nicetas Siracusien [A] savisa de maintenir que cestoit la terre qui se mouvoit [C] par le cercle oblique du Zodiaque tournant agrave lentour de son aixieu [A] et de nostre temps Copernicus a si bien fondeacute cette doctrine quil sen sert tres-regleacuteement agrave toutes les consequences Astronomiquesrdquo conclui o autor ldquosinon qursquoil ne nous doit chaloir le quel ce soit des deux Et qui sccedilait qursquoune tierce opinion drsquoicy agrave mille ans ne renverse les deux precedentesrdquo125

124 Trata-se de um termo que natildeo tinha na eacutepoca de Montaigne o mesmo significado que tem hoje isto eacute como oposto de ldquoprogressismordquo Montaigne estava inserido numa sociedade marcada por grandes inovaccedilotildees pretendidas pelos partidaacuterios da Reforma Protestante que se defendiam a ferro e fogo acirrando certezas antes adormecidas e impondo agrave Franccedila as mais seacuterias turbulecircncias ldquo[B] Je suis desgousteacute de la nouvelleteacute quelque visage qursquoelle porte et ay raison car jrsquoen ay veu des effets tres-dommageables Celle qui nous presse depuis tant drsquoans elle nrsquoa pas tout exploicteacute mais on peut dire avec apparence que par accident elle a tout produict et engendre voire et les maux et ruines qui se font depuis sans elle et contre elle crsquoest agrave elle agrave srsquoen prendre au nezrdquo (Les Essais I 23 p 119) Eacute nesta perspectiva que vaacuterios comentadores observam que Montaigne natildeo poderia ser um homem ldquorevolucionaacuteriordquo e sim algueacutem que achasse melhor defender uma confianccedila moderada no lento aperfeiccediloamento das instituiccedilotildees ldquo[C] Les Franccedilois mes contemporaneacutees sccedilavent bien qursquoen dire Toutes grandes mutations esbranlent lrsquoestat et le desordonnentrdquo (Les Essais III 9 p 958) Isto permite compreender melhor alguns dos motivos pelos quais Montaigne assume as posiccedilotildees poliacuteticas e religiosas ldquoconservadorasrdquo que estatildeo presentes nos Essais Muito interessante eacute uma afirmaccedilatildeo de Jean Lacouture na sua obra Montaigne agrave cheval ndash considerada como uma espeacutecie de biografia que denota um entusiasmo significativo e algo romanceado fundamentada numa documentaccedilatildeo importante ndash na qual o autor reflecte sobre esta questatildeo ldquoMontaigne eacute grande o bastante para poder ser avaliado sob outros aspectos que natildeo a obediecircncia agraves praacuteticas e costumes de seu tempo Quando se eacute capaz no que diz respeito agrave justiccedila agrave toleracircncia ao racismo e agrave colonizaccedilatildeo de estar muitos seacuteculos agrave frente dos costumes e ideias de seu tempo pode-se ser julgado sem que consideraccedilotildees de eacutepoca ou de moda sejam levadas em contardquo (In Lacouture Jean Montaigne agrave cheval (Montaigne a cavalo) Traduzido do francecircs por F Rangel Rio de JaneiroSatildeo Paulo Editora Record 1998 p 236) 125 Les Essais II 12 p 570

42

E para fundamentar ainda mais esta ideia cita Lucreacutecio

ldquo[A] Sic volvenda aeligtas commutat tempora rerum Quod fuit in pretio fit nullo denique honore Porro aliud succedit et egrave contemptibus exit Inque dies magis appetitur floreacutetque repertum Laudibus Et miro est mortales inter honore ( ldquoAinsi dans sa course le temps change les conditions des choses ce qui eacutetait appreacutecieacute tombe dans le meacutepris un autre objet remplace le premier et sort du discreacutedit de jour en jour on le recherce davantage la deacutecouverte nouvelle toutes les louanges et une incoyable estime parmi les hommes)rdquo126

Podemos inferir daqui que ldquoos princiacutepios eternosrdquo natildeo tecircm lugar na ldquoApologie

de Raymond Sebondrdquo Montaigne faz questatildeo de observar que antes de os princiacutepios

introduzidos por Aristoacuteteles ganharem creacutedito outros princiacutepios contentavam a razatildeo

humana Os princiacutepios aristoteacutelicos como todos os outros natildeo estatildeo mais livres de ser

expulsos do que estavam os dos seus antecessores

Segundo Montaigne o juiacutezo depende dos sentidos aos quais por sua vez natildeo

podemos dar creacutedito por vaacuterios motivos Vejamos com mais detalhes este aspecto Eacute

justamente nos sentidos que se encontra o maior fundamento e a prova de nossa

ignoracircncia Montaigne baseado na experiecircncia de vida lembra-nos que natildeo haacute sentido

ou aspecto nem recto nem amargo nem doce nem curvo que o espiacuterito humano natildeo

encontre nos escritos que decide esquadrinhar Os sentidos satildeo muito enganadores A

palavra mais liacutempida mais pura e mais perfeita pode tornar-se equiacutevoca Montaigne

refere-se especialmente ao Evangelho127 Fizeram ao longo da histoacuteria ldquotudo e mais

alguma coisardquo com este texto sagrado para os cristatildeos E que ocorreria se estendecircssemos

esta preocupaccedilatildeo de Montaigne aos gestos humanos que querem exprimir ideias ou

sentimentos nas vaacuterias dimensotildees da vida moral poliacutetica etc

ldquo[C] Est-il possible qursquoHomere aye voulu dire tout ce qursquoon luy faict direrdquo128 E com relaccedilatildeo a Platatildeo ldquo[C] Voyez demener et agiter Platon Chacun srsquohororant de lrsquoappliquer agrave soi le couche du costeacute qursquoil le veutrdquo129

Montaigne observa ainda que com frequecircncia eacute difiacutecil decidir-se porque haacute

demasiadas formas de interpretar um determinado assunto para que o homem consiga

encontrar alguma indicaccedilatildeo que lhe sirva para resolver a questatildeo

126 Les Essais II 12 p 570 127 Cf Les Essais II 12 p 585 128 Les Essais II 12 p 586 129 Les Essais II 12 p 587

43

Montaigne afirma que todo o conhecimento chega ateacute noacutes pelos sentidos [A] Ce

sont nos maistresrdquo130 Observa que a ciecircncia comeccedila pelos sentidos e a eles se reduz

Eles satildeo a base e os princiacutepios de toda a construccedilatildeo de nossa ciecircncia E considera que

natildeo haacute absurdo mais extremo do que sustentar que

ldquo[A] le feu nrsquoeschaufe point que la lumiere nrsquoesclaire point qursquoil nrsquoy a point de pesanteur au fer ny de fermeteacute qui sont notices que nous apportent les sens nycreance ou science en lrsquohomme qui se puisse comparer agrave celle-lagrave en certituderdquo131

Montaigne potildee em duacutevida que o homem esteja provido de todos os sentidos

naturais Chega inclusivamente a perguntar-se se natildeo nos falta algum sentido E afirma

que se isto ocorrer nem a nossa razatildeo pode descobrir a sua ausecircncia nem haacute nada agrave

margem dos sentidos que nos possa servir para os descobrir

ldquo[A]Ils font trestons la ligne extreme de nostre faculteacute [hellip] Il est impossible de faire concevoir agrave un homme naturellement aveugle qursquoil nrsquoy void pas impossible de luy faire desirer la veue et regretter son defautrdquo132

Sendo assim afirma que quando formamos uma verdade pela consulta e

cooperaccedilatildeo dos sentidos poderiacuteamos tambeacutem ser levados a considerar que poderia ser

necessaacuteria a convergecircncia e a contribuiccedilatildeo de oito ou dez sentidos para a captar

acertadamente e na sua essecircncia

Uma das criacuteticas fundamentais de Montaigne agrave ciecircncia incide precisamente no

facto de ela se basear nos sentidos Mas como vimos os sentidos satildeo muito incertos e

fraacutegeis Desta extrema dificuldade nascem muitas opiniotildees (ldquofantasiesrdquo)

ldquo[A]Que chaque subjet a en soy tout ce que nous y trouvons qursquoil nrsquoa rien de ce que nous y pensons trouver et celle de Epicuriens que le Soleil nrsquoest non plus grand que ce que nostre veueuml le juge [hellip] (A) que les apparences qui representent un corps grand agrave celuy qui en est voisin et plus petit agrave celuy qui en est esloigneacute sont toutes deux vrayes [hellip] [A]et resolument qursquoil nrsquoy a aucun tromperie aux sens qursquoil faut passer agrave leur mercy et chercher ailleurs des raisons pour excuser la difference et contradiction que nous y trouvons voyre inventer toute autre mensonge et resverie (ils en viennent jusques lagrave) plustot que drsquoaccuser les sens [hellip] [A] De toutes les absurditez la plus absurde [C] aux Epicuriens [A] est davouumler la force et effect des sensrdquo133

130 Les Essais II 12 p 587 131 Les Essais II 12 p 588 132 Les Essais II 12 p 589 133 Les Essais II 12 p 591

44

Segundo Montaigne natildeo podemos livrar-nos dos sentidos se queremos construir

o conhecimento Mas os sentidos satildeo incertos falsificaacuteveis e enganadores134 E entende

tambeacutem que se eacute verdade que os sentidos satildeo os nossos primeiros juiacutezes135 entatildeo natildeo

devemos limitar-nos a convocar apenas os nossos para o conselho pois no que se refere

aos sentidos os animais tecircm tanto direito quanto noacutes ou mais Montaigne observa ainda

que os sentidos do homem estatildeo em desacordo com os sentidos dos animais E eacute por isto

que

ldquo[A] Pour le jugement de lrsquoaction des sens il faudroit donc que nous en fussions premierement drsquoaccord avec les bestes secondement entre nous mesmes [hellip] et entrons en debat tous les coups de ce que lrsquoun oit void ou goute quelque chose autrement qursquoun autre et debatons autant que drsquoautre chose de la diversiteacute des images que le sens nous raportentrdquo136

Concluindo a exposiccedilatildeo acerca dos sentidos Montaigne lembra-nos que os

sentidos satildeo para algumas pessoas mais obscuros e mais velados enquanto que para

outras pessoas satildeo mais claros e apurados Em seu entender recebemos as coisas de

forma diferente de acordo com o que somos e com o que nos parece Mas se o parecer

nos eacute tatildeo incerto e controverso

ldquo[A] Ce nrsquoest plus miracle si on nous dict que nous pouvons avoueumlr que la neige nous apparoit blanche mais que drsquoestablir si de son essence elle est telle et agrave la veriteacute nous ne nous en sccedilaurions respondrerdquo137

Tendo em conta todos os atributos dos sentidos acima mencionados Montaigne

dificilmente poderia chegar a uma outra conclusatildeo

ldquo[A] ce commencement esbranleacute toute la science du monde srsquoen va necessairement agrave vau-lrsquoeaurdquo138

Referindo-se a Teofrasto Montaigne recorda-nos que este pensador dizia que o

conhecimento humano guiado pelos sentidos podia julgar sobre as causas das coisas

ateacute certo ponto Mas que ao chegar agraves causas extremas e primeiras tinha de deter-se a

embotar-se devido ou agrave sua fragilidade ou agrave dificuldade das coisas Montaigne afirma

134 Assim como os sentidos satildeo enganadores satildeo tambeacutem enganados ldquo[A] Cette mesme piperie que les sens apportent agrave nostre entendement ils la reccediloivent agrave leur tour Nostre ame par fois srsquoen revenche de mesme [C] ils mentent et se trompent agrave lrsquoenvy [A] Ce que nous voyons et oyons agitez de colere nous ne lrsquooyons pas tel qursquoil est [hellip] Lrsquoobject que nous aymons nous semble plus beau qursquoil est [hellip] [A] et plus laid celuy que nous avons agrave contre coeur [hellip] Nos sens sont non seulement alterez mais souvent hebelez du tout par les passions de lrsquoame Combien de choses voyons nous que nous nrsquoa appercevons pas si nous avons nostre esprit empescheacute ailleurs (Les Essais II 12 pp 495-496) 135 Cf Les Essais II 12 p 596 136 Les Essais II 12 p 598 137 Les Essais II 12 pp 598-599 138 Les Essais II 12 p 599

45

ldquo[A] Cest une opinion moyenne et douce que nostre suffisance nous peut conduire jusques agrave la cognoissance daucunes choses et quelle a certaines mesures de puissance outre lesquelles cest temeriteacute de lemployer Cette opinion est plausible et introduicte par gens de composition mais il est malaiseacute de donner bornes agrave nostre esprit il est curieux et avide et na point occasion de sarrester plus tost agrave mille pas quagrave cinquanterdquo139

Montaigne procura aqui justificar a sua tese de que o conhecimento empiacuterico ou

sensiacutevel natildeo tem condiccedilotildees para permitir captar princiacutepios e verdades universais A

razatildeo humana por ser um instrumento impotente natildeo consegue dar explicaccedilotildees

convincentes das grandes questotildees da humanidade Consegue apenas explicar algumas

poucas coisas Se a razatildeo eacute incapaz de dar respostas profundas e aceitaacuteveis agraves grandes

questotildees ndash como por exemplo agraves causas primeiras ndash ela eacute descartaacutevel e no que toca agrave

busca do conhecimento natildeo serve para quase nada Daiacute que Montaigne afirme que o

homem eacute capaz de todas as coisas e de nenhuma E se confessa a ignoracircncia das causas

primeiras e dos princiacutepios entatildeo que abandone tambeacutem prontamente todo o resto da sua

ciecircncia

Se a alma conhecesse alguma coisa comeccedilaria por se conhecer a si mesma

ldquo[A] et si elle sccedilavoit quelque chose elle se sccedilauroit premierement elle mesme et si elle sccedilavoit quelque chose hors drsquoelle ce seroit son corps et son estuy avant toute autre choserdquo140

Montaigne refere-se aqui especialmente ao chamado conhecimento da medicina

Para ele a medicina natildeo consegue sair do ciclo vicioso das discussotildees Ressalta o facto

de que ldquoles dieuxrdquo desta ciecircncia tambeacutem natildeo conseguem chegar a acordo algum Daiacute

mais uma vez a atitude pirroacutenica de Montaigne

ldquo[A] Si lrsquohomme ne se connoit comment connoit il ses fonctions et ses forcesrdquo141

O autor debate-se com o problema da verdade o que eacute a verdade Na

ldquoApologierdquo sustenta que a verdade eacute inacessiacutevel e flutuante Neste ponto Montaigne eacute

fiel ao cepticismo que tem como caracteriacutestica dominante a atitude de estar sempre em

busca da verdade num processo que ocorre sempre dentro de um eterno movimento e

nunca se fixa definitivamente em nenhum ponto

139 Les Essais II 12 p 560 140 Les Essais II 12 p 561 141 Les Essais II 12 p 561

46

ldquo[B] La veueuml de nostre jugement se rapporte agrave la veriteacute comme faict loeil du chat-huant agrave la splendeur du Soleil ainsi que dit Aristote Par ougrave le sccedilaurions nous mieux convaincre que par si grossiers aveuglemens en une si apparente lumiererdquo142

Esta concepccedilatildeo flutuante da verdade eacute uma caracteriacutestica distintiva natildeo soacute da

ldquoApologierdquo mas tambeacutem de outros ensaios montaigneanos O autor natildeo faz nenhuma

afirmaccedilatildeo definitiva sobre nenhuma questatildeo A sua preocupaccedilatildeo principal natildeo eacute

encontrar a soluccedilatildeo dos diversos problemas que envolvem o homem mas sim tentar

compreender-se a si proacuteprio ldquo[hellip] je suis moy-mesmes la matiere de mon livrerdquo143 Isto

exclui as verdades fixadas pela tradiccedilatildeo filosoacutefica e neste sentido o pensamento de

Montaigne desenvolve-se agrave margem do dogmatismo Rejeita os pedantes isto eacute aqueles

que acreditam que adquirem o conhecimento utilizando termos palavras ou frases

obscuros

Montaigne insiste na dimensatildeo instaacutevel e incerta do nosso conhecimento que

natildeo consegue alcanccedilar a verdade

ldquo[A] Toutes choses produites par nostre propre discours et suffisance autant vrayes que fauces sont subjectes agrave incertitude et debat Cest pour le chastiement de nostre fierteacute et instruction de nostre misere et incapaciteacute que Dieu produisit le trouble et la confusion de lancienne tour de Babel Tout ce que nous entreprenons sans son assistance tout ce que nous voyons sans la lampe de sa grace ce nest que vaniteacute et folie Lessence mesme de la veriteacute qui est uniforme et constante quand la fortune nous en donne la possession nous la corrompons et abastardissons par nostre foiblesserdquo144

A verdade deve ter ldquo[A] un visage pareil et universelrdquo145 Uma outra

caracteriacutestica da verdade salientada por Montaigne eacute que ela ldquo[A] ne se juge point par

authoriteacute et tesmoignage drsquoautruyrdquo146 Neste sentido a verdade eacute fundamentalmente

pessoal Observando cuidadosamente estes atributos da verdade podemos perceber por

que razatildeo Montaigne faz a seguinte afirmaccedilatildeo

ldquo[A] la veriteacute est engoufleacutee dans des profonds abysmes ougrave la veueuml humaine ne peut penetrerrdquo147

Dito de outro modo a verdade estaacute oculta em Deus e natildeo eacute propriamente dos

homens dos filoacutesofos dos doutos

142 Les Essais II 12 p 552 143 Les Essais Au lecteur p 3 144 Les Essais II 12 p 553 145 Les Essais II 12 pp 578-579 146 Les Essais II 12 p 507 147 Les Essais II 12 p 561

47

ldquo[A] Crsquoest agrave elle (la majesteacute divine) seule qursquoapartient la science et la sapiencerdquo148

A criacutetica montaigneana agrave razatildeo humana manifesta aqui a impossibilidade de se

ter um conhecimento crediacutevel em todos os domiacutenios da vida A razatildeo por ser

infinitamente limitada natildeo consegue chegar a ser uma faculdade que garanta a

descoberta e por conseguinte a sistematizaccedilatildeo da verdade que eacute algo moacutevel pessoal

temporal e tambeacutem paradoxal

Lendo os pensadores antigos Montaigne suscita uma questatildeo fundamental Em

seu entender haacute uma espeacutecie de distanciamento ou divoacutercio entre o conhecimento da

essecircncia e o conhecimento da aparecircncia Como eacute possiacutevel entatildeo observa Montaigne

que eles se deixam vencer pela verosimilhanccedila se natildeo conhecem a verdade Como eacute

possiacutevel que conheccedilam a aparecircncia de algo cuja essecircncia natildeo conhecem Diante destas

dificuldades o autor da ldquoApologierdquo sustenta

ldquo[A] Ou nous pouvons juger tout agrave faict ou tout agrave faict nous ne le pouvons pas Si noz facultez intellectuelles et sensibles sont sans fondement et sans pied si elles ne font que floter et vanter pour neant laissons nous emporter nostre jugement agrave aucune partie de leur operation quelque apparence quelle semble nous presenter et la plus seure assiette de nostre entendement et la plus heureuse ce seroit celle-lagrave ougrave il se maintiendroit rassis droit inflexible sans bransle et sans agitationrdquo149

Segundo Montaigne as coisas natildeo se alojam em noacutes com a sua forma e a sua

essecircncia Se assim fosse recebecirc-las-iacuteamos dessa forma O vinho seria o mesmo na boca

de quem quer que fosse Mas natildeo eacute o que acontece a filosofia causa uma infinita

confusatildeo de opiniotildees e um eterno debate sobre o conhecimento das coisas Deixemos o

proacuteprio autor falar

ldquo[A]Car cela est presuposeacute tres-veritablement que de aucune chose les hommes je dy les sccedilavans les mieux nais les plus suffisans ne sont daccord non pas que le ciel soit sur nostre teste car ceux qui doutent de tout doutent aussi de cela et ceux qui nient que nous puissions aucune chose comprendre disent que nous navons pas compris que le ciel soit sur nostre teste et ces deux opinions sont en nombre sans comparaison les plus fortesrdquo150

Montaigne reconhece que os seus juiacutezos acerca de tudo aquilo que eacute falso eou

verdadeiro ocorrem de uma maneira condicionada dependendo da sua situaccedilatildeo interior

148 Les Essais II 12 p 448 149 Les Essais II 12 p 562 150 Les Essais II 12 p 563

48

e exterior A sua posiccedilatildeo em face das diversas situaccedilotildees concretas da vida eacute muito

dependente das suas opiniotildees que podem ser hoje umas e outras diferentes ou ateacute

contraacuterias amanhatilde Em seu entender ateacute o proacuteprio ar que respiramos e a serenidade do

ceacuteu produzem em noacutes alguma alteraccedilatildeo Recorda um verso de Ciacutecero

ldquo[A] Tales sunt hominum mentes quali pater ipse Juppiter auctifera lustravit lampade terras (Les penseacutees des hommes changent avec les rayons feacutecundants du soleil que Jupiter leur envoie)rdquo151

Noutro ensaio do livro III intitulado ldquoDu repentirrdquo Montaigne depois de afirmar

que o mundo eacute movimento e que tudo nele muda continuadamente faz uma observaccedilatildeo

de grande importacircncia que pode ser inserida neste contexto

ldquo[B] Tant y a que je me contredits bien agrave lrsquoaventure mais la veriteacute comme disoit Demandes je ne la contredy point Si mon ame pouvoit prendre pied je ne mrsquoessaierois pas je me resoudrois elle est toujours en apprentissage et en espreuverdquo152

Montaigne questiona de forma radical todos os que se orgulham de sua razatildeo e

acreditam na certeza de todos os seus princiacutepios Utiliza a proacutepria razatildeo para arruinar a

razatildeo dos filoacutesofos profissionais ou seja os seguidores cegos da loacutegica aristoteacutelica Em

suma combate a razatildeo com a proacutepria razatildeo e nega o seu valor

No texto seguinte Montaigne faz uma espeacutecie de caracterizaccedilatildeo da

escolaacutestica153 e da loacutegica aristoteacutelica154 Eacute um texto fundamental da ldquoApologierdquo no

qual o autor se refere claramente agrave hierarquia filosoacutefica aristoteacutelica na qual

encontramos a metafiacutesica como ldquociecircncia mais correctardquo

ldquo[A] Il est bien aiseacute sur des fondemens avouez de bastir ce quon veut car selon la loy et ordonnance de ce commencement le reste des pieces du bastiment se conduit ayseacuteement sans se deacutementir Par cette voye nous trouvons nostre raison bien fondeacutee et discourons agrave boule veue car nos maistres praeligoccupent et gaignent avant main autant de lieu en nostre creance quil leur en faut pour conclurre apres ce quils veulent agrave la mode des Geometriens par leurs demandes avoueacutees le consentement et

151 Les Essais II 12 p 564 152 Les Essais III 2 p 805 153 Na eacutepoca em que Montaigne escreveu a ldquoApologierdquo a doutrina escolaacutestica era caracterizada por um excesso de formalismo e de abstracccedilatildeo o que o levou a demonstrar uma aversatildeo profunda por essa filosofia 154 Segundo Friedrich haacute na ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo alguns ldquofaibles tracesrdquo de uma leitura de Aristoacuteteles jaacute que naquela eacutepoca este pensador grego exercia a sua uacuteltima grande influecircncia sobre os humanistas Aristoacuteteles eacute para Montaigne a ldquoquintessencerdquo da autoridade magistral que obstaculiza a sua relaccedilatildeo livre com a tradiccedilatildeo ldquoSa doctrine nous sert de loy magistrale qui est agrave lrsquoaventure autant fause qursquoune autrerdquo (Les Essais II 12 p 521 a 279) Friedrich observa no entanto que natildeo eacute possiacutevel fixar exactamente em que medida Montaigne leu Aristoacuteteles e considera que natildeo se trata de uma leitura muito soacutelida (Cf Friedrich op cit p 67)

49

approbation que nous leurs prestons leur donnant dequoy nous trainer agrave gauche et agrave dextre et nous pyroueter agrave leur volonteacute Quiconque est creu de ses presuppositions il est nostre maistre et nostre Dieu il prendra le plant de ses fondemens si ample et si aiseacute que par iceux il nous pourra monter sil veut jusques aux nueumls En cette pratique et negotiation de science nous avons pris pour argent content le mot de Pythagoras que chaque expert doit estre creu en son art Le dialecticien se rapporte au grammairien de la signification des mots le Rhetoricien emprunte du Dialecticien les lieux des arguments le poete du musicien les mesures le geometrien de larithmeticien les proportions les metaphysiciens prennent pour fondement les conjectures de la physique Car chasque science a ses principes presupposez par ougrave le jugement humain est brideacute de toutes parts Si vous venez agrave choquer cette barriere en laquelle gist la principale erreur ils ont incontinent cette sentence en la bouche quil ne faut pas debattre contre ceux qui nient les principesrdquo155

Se a verdade ndash como tudo parece indicar ndash se daacute a conhecer atraveacutes das causas ndash

haveraacute que fazer referecircncia agraves quatro causas156 presentes na filosofia aristoteacutelica Se o

homem realmente conseguir conhecer estas causas teraacute um conhecimento ldquocientiacuteficordquo

da substacircncia que procura Por isso Montaigne quer invalidar a filosofia dita dogmaacutetica

de Aristoacuteteles rejeitando claramente a tese das quatro causas Em seu entender esta

teoria natildeo passa de um engano O autor da ldquoApologierdquo sugere que a teoria das quatro

causas soacute serve para prejudicar os homens que ludibriados pelo poder da razatildeo natildeo

cessam de correr atraacutes do conhecimento das causas que lhe eacute por seu turno inacessiacutevel

A verdade das causas estaacute acima de nossas capacidades racionais

Assumindo a postura pirroacutenica de Sexto Empiacuterico ndash que foi aliaacutes um aceacuterrimo

opositor de Aristoacuteteles ndash Montaigne procurou fazer algo semelhante Isto eacute procurou

atacar as bases da ciecircncia escolaacutestica (sobretudo preocupada em conciliar a razatildeo com a

feacute apoiando-se na filosofia grega principalmente a aristoteacutelica) e por conseguinte de

todos os outros sistemas dogmaacuteticos Numa perspectiva ceacuteptica sextiana Montaigne

trava uma batalha contra os princiacutepios da metafiacutesica tidos como os mais correctos Esta

visatildeo aristoteacutelica quer estabelecer uma ligaccedilatildeo entre o pensamento e o juiacutezo humanos e

os obriga a natildeo evitar as questotildees preacute-existentes Segundo Montaigne esta concepccedilatildeo

155 Les Essais II 12 p 540 156 Aristoacuteteles apresenta estas causas particularmente nos livros I e II da Metafiacutesica Satildeo elas causa material isto eacute aquilo de que eacute feita uma coisa por exemplo a mateacuteria do homem eacute a carne e os ossos a mateacuteria da mesa eacute a madeira e assim por diante causa formal isto eacute a forma ou essecircncia das coisas por exemplo o rio e o mar satildeo as formas da aacutegua um tapete eacute a forma assumida pela mateacuteria latilde com a acccedilatildeo do artiacutefice causa eficiente ou motriz isto eacute aquilo de que provecircm a mudanccedila e o movimento das coisas por exemplo o artiacutefice eacute a causa eficiente que faz a latilde receber a forma do tapete o gelo eacute a forma que faz os corpos quentes tornarem-se frios e causa final isto eacute a causa que constitui o fim ou o propoacutesito das coisas e acccedilotildees por exemplo o bem eacute a causa final da poliacutetica a felicidade eacute a causa final da acccedilatildeo eacutetica e assim por diante

50

tambeacutem natildeo potildee em evidecircncia o facto de que o conhecimento adquirido por este

processo fica enclausurado dentro de um ciacuterculo vicioso Deixemos o proacuteprio autor

falar

ldquo[A] Pour juger des apparences que nous recevons des subjets il nous faudroit un instrument judicatoire pour verifier cet instrument il nous y faut de la demonstration pour verifier la demonstration un instrument nous voila au rouet Puis que les sens ne peuvent arrester nostre dispute estans pleins eux-mesmes dincertitude il faut que ce soit la raison aucune raison ne sestablira sans une autre raison nous voylagrave agrave reculons jusques agrave linfiny Nostre fantasie ne sapplique pas aux choses estrangeres ains elle est conceue par lentremise des sens et les sens ne comprennent pas le subject estranger ains seulement leurs propres passions et par ainsi la fantasie et apparence nest pas du subject ains seulement de la passion et souffrance du sens laquelle passion et subject sont choses diverses parquoy qui juge par les apparences juge par chose autre que le subject [hellip]rdquo157

Os escolaacutesticos natildeo testaram as suas ideias atraveacutes dos factosldquoIls ne se

rapportent pas agrave lrsquoexpeacuterience ils nrsquoessaient jamais leurs opinions Leur travail consiste

uniquement agrave tirer des deacuteductions de principes et drsquoaxiomes qursquoils nrsquoexaminent jamais

Leurs principes sont faux les conseacutequences qursquoils en deacuteduisent sont donc fausses

neacutecessairement mais ils ne srsquoen soucient pas La meacutethode scolastique et logicienne

triomphe toujours et rend tous les efforts steacuterilesrdquo158 Montaigne daacute-se conta de que a

capacidade do homem de conhecer algo estaacute profundamente relacionada com a

contingecircncia e que esta mesma capacidade estaacute subordinada aos sentidos que satildeo

ldquomaintesfois maistres du discoursrdquo159 mas que ao mesmo tempo satildeo incertos e

falsificaacuteveis E portanto esta ciecircncia eacute incapaz de chegar a certezas crediacuteveis

157 Les Essais II 12 pp 600-601 158 Villey op cit pp 214-215 159 Les Essais II 12 p 592

51

4 A criacutetica agrave razatildeo humana e o relativismo da moral

Quando lemos a ldquoApologie de Raymond de Sebondrdquo aleacutem de nos depararmos

com problemas claacutessicos da filosofia como a criacutetica agrave teoria do conhecimento

deparamo-nos tambeacutem com o problema da moral de que o autor se ocupa de uma

maneira muito particular Natildeo apresentaremos neste capiacutetulo uma abordagem detalhada

e detida do tema da moral na ldquoApologierdquo Isto exigiria uma investigaccedilatildeo aprofundada e

de maior amplitude uma vez que o autor desenvolve neste texto muitos aspectos

importantes deste tema

Limitar-nos-emos a procurar perceber por que razatildeo o autor ldquodecretardquo a

impossibilidade de fundamentar na razatildeo humana um conjunto de normas ou leis que

dizem respeito agrave vida praacutetica de qualquer grupo humano Perseguindo este objectivo

procuraremos reconstruir os vaacuterios argumentos do ensaio que justificam a sua tomada

de posiccedilatildeo no acircmbito da moral160

Para contextualizar um pouco a questatildeo da moral nos Essais eacute importante

observar que no periacuteodo do humanismo renascentista se fazia sentir a necessidade de

emitir juiacutezos que fossem coerentes de se informar dos costumes dos homens tanto dos

antigos como dos povos que habitavam terras longiacutenquas Todos queriam rever a sua

ideia de homem Tratava-se de uma busca aberta e muitos ofereciam a sua contribuiccedilatildeo

como afirma Villey161 Tampouco Montaigne se demitiu desta tarefa Envolveu-se com

empenho na tarefa de perceber o que eacute o homem Para isto misturou muitas histoacuterias

antigas e contemporacircneas com inuacutemeras reflexotildees de viajantes que vinham de terras

distantes sobretudo daquelas que foram invadidas e ocupadas por europeus nelas

encontra uma confirmaccedilatildeo da tese segundo a qual a multiplicidade irreconciliaacutevel e a

diversidade mais ampla satildeo a uacutenica marca do ser As teses ceacutepticas de Montaigne

revelam-se de uma maneira particularmente radical no campo da moral neste acircmbito

adquiriraacute uma importacircncia capital a diversidade dos costumes como argumento contra a

moral ldquoracionalrdquo

160 Segundo Villey Montaigne toma consciecircncia do relativismo relativo ao conhecimento natildeo apenas nas noccedilotildees de metafiacutesica mas tambeacutem nas noccedilotildees de moral Neste ponto teraacute uma influecircncia muito importante sobretudo a sua leitura de Sexto Empiacuterico Nesta perspectiva Montaigne pode ser visto como um moralista O mesmo autor afirma que eacute principalmente nas ideias morais que podemos perceber nitidamente o relativismo montaigneano (cf Villey op cit pp188-189) 161 Cf Villey op cit p189

52

Na ldquoApologierdquo Montaigne deteacutem-se a considerar que todas as sociedades tecircm

necessidade das leis Ele tem perfeita consciecircncia de que sem leis nenhuma sociedade

poderaacute ter vida longa A obediecircncia agraves leis162 eacute uma condiccedilatildeo sine qua non para a

sobrevivecircncia de qualquer grupo social Montaigne natildeo leva a ingenuidade ao ponto de

negar pura e simplesmente a necessidade das leis e normas Neste sentido pensa como

Epicuro isto eacute considera que mesmo as piores leis nos satildeo tatildeo necessaacuterias que sem

elas os homens se devorariam uns aos outros163 No mesmo paraacutegrafo Montaigne

observa que tambeacutem Platatildeo distanciando-se pouco desta tese sustenta que sem leis

viveriacuteamos como animais selvagens e se empenha em provaacute-lo

ldquo[A] Nostre esprit est un util vagabond dangereux et temeraire il est malaiseacute dy joindre lordre et la mesure Et de mon temps ceux qui ont quelque rare excellence au dessus des autres et quelque vivaciteacute extraordinaire nous les voyons quasi tous desbordez en licence dopinions et de meurs Cest miracle sil sen rencontre un rassis et sociable On a raison de donner agrave lesprit humain les barrieres les plus contraintes quon peut En lestude comme au reste il luy faut compter et regler ses marches il luy faut tailler par art les limites de sa chasserdquo164

Ao citar Epicuro e Platatildeo o autor da ldquoApologierdquo manifesta a sua decepccedilatildeo

relativamente ao homem de sua eacutepoca Certamente estes pensadores trazem-lhe agrave

memoacuteria a situaccedilatildeo concreta em que estava mergulhada a sociedade francesa naquela

eacutepoca Lendo de uma forma atenta a sua obra eacute faacutecil comprovar que Montaigne era

consciente de tudo o que se passava no seu paiacutes guerras conflitos religiosos profundos

e actos de violecircncia deles derivados

Laschamp ao descrever algumas caracteriacutesticas do contexto no qual Montaigne

elabora a sua obra afirma

162 Haacute uma quantidade significativa de afirmaccedilotildees nos Essais acerca da necessidade do cumprimento da lei independentemente de esta ser ou natildeo justa Vejamos algumas ldquo [C] Il nrsquoest rien si lourdement et largement fautier que les loix ny si ordinairement [B] Quiconque leur obeyt pas justement par ougrave il doibt [hellip] [B]Or les loix se maintiennent en credit non par ce qursquoelles sont justes mais par ce qursquoelles sont loix Crsquoest le fondement mystique de leur authoriteacute elles nrsquoen ont poinct drsquoautrerdquo (Les Essais III 13 p 1072) Montaigne chega ateacute a afirmar que ldquo[A] ce bon et grand Socrates refusa de sauver sa vie par la desobeissance du magistrat voire drsquoun magistrat tres-injuste et tres-inique Car crsquoest la regle des regles et generale loy des loix que chacun observe celles du lieu ougrave il est [hellip]rdquo (Les Essais I 23 p 118) ldquo[A] Jen diray seulement encore cela que cest la seule humiliteacute et submission qui peut effectuer un homme de bien Il ne faut pas laisser au jugement de chacun la cognoissance de son devoir il le luy faut prescrire non pas le laisser choisir agrave son discours autrement selon limbecilliteacute et varieteacute infinie de nos raisons et opinions nous nous forgerions en fin des devoirs qui nous mettroient agrave nous manger les uns les autres comme dit Epicurusrdquo (Essais II 12 p 488) 163 Cf Les Essais II 12 p 558 164 Les Essais II 12 p 559

53

ldquoLes violences entre les dissidents eacutegalaient celles dont ils eacutetaient lrsquoobjet de la part de leurs adversaires Jamais lrsquoabus du raisonnement nrsquoavait eacuteteacute pousseacute plus loin jamais il nrsquoavait deacutechacircneacute tant de colegraveres jamais il nrsquoavait fait couler tant de larmes et tant de sangrdquo165

Assim se compreende melhor por que razatildeo Montaigne afirma que na sua

eacutepoca os que tecircm alguma rara excelecircncia acima dos outros e uma vivacidade

extraordinaacuteria os excedem em desregramento de ideias e de costumes e praticam acccedilotildees

que impedem a felicidade dos homens

Montaigne na qualidade de libre penseur natildeo poderia deixar de defender a

liberdade de pensamento Mas ao mesmo tempo sabe tambeacutem que se esta liberdade

estiver sujeita agrave vaidade da razatildeo muitas atitudes humanas inclusive religiosas como

vimos anteriormente poderatildeo tornar-se nocivas para o homem Ao descrever algumas

das caracteriacutesticas da liberdade de que davam prova os antigos na filosofia e ao fazer

um paralelo com a sociedade de sua eacutepoca afirma

ldquo[A] La liberteacute donq et gaillardise de ces esprits anciens produisoit en la philosophie et sciences humaines plusieurs sectes dopinions differentes chacun entreprenant de juger et de choisir pour prendre party Mais agrave present [C] que les hommes vont tous un train [hellip] et [A] que nous recevons les arts par civile authoriteacute et ordonnance [C] si que les escholes nont quun patron et pareille institution et discipline circonscrite on ne regarde plus ce que les monnoyes poisent et valent mais chacun agrave son tour les reccediloit selon le pris que lapprobation commune et le cours leur donneOn ne plaide pas de lalloy mais de lusage ainsi se mettent egallement toutes choses On reccediloit la medicine comme la Geometrie et les batelages les enchantemens les liaisons le commerce des esprits des trespassez les prognostications les domifications et jusques agrave cette ridicule poursuitte de la pierre philosophale tout se met sans contredictrdquo166

Montaigne escreve a sua obra mergulhado num clima onde reinava uma

ldquoanarchie dans les ideacutees et dans les faitsrdquo167 e coloca-se na atitude de ajudado pelos

costumes antigos julgar o seu tempo Segundo Villey eacute exactamente neste contexto

muito conturbado que Montaigne entra em contacto com o livro de Sexto Empiacuterico

ldquoVoilagrave ougrave lrsquoinfluence du milieu et sa propre dociliteacute aux faits lrsquoont conduit Presque toujours crsquoest la loi politique et morale agrave laquelle il est naturellement assujetti que lrsquoesprit eacuterige en loi absolue Montaigne a affranchi sa raison de cette contrainte naturelle il sait critiquer la loi

165 Laschamp op cit p 104 166 Les Essais II 12 pp 559-560 167 Laschamp op cit p 94

54

que son milieu lui impose crsquoest un pas drsquoune extrecircme importance qursquoil a fait lagrave vers lrsquoideacutee de relativiteacuterdquo168

Montaigne descreve alguns aspectos que comprovam o seu relativismo face aos

costumes de vaacuterios povos sobretudo quando os relaciona com os de Franccedila Com isto o

autor quer sugerir possivelmente que as crenccedilas os juiacutezos e as opiniotildees dos homens

estatildeo sujeitos agraves inconstacircncias perenes que haacute na vida concreta

ldquo[A] si le ciel les agite et les roule agrave sa poste quelle magistrale authoriteacute et permanante leur allons nous attribuant [hellip] [B] en maniere que ainsi que les fruicts naissent divers et les animaux les hommes naissent aussi plus et moins belliqueux justes temperans et dociles icy subjects au vin ailleurs au larecin ou agrave la paillardise icy enclins agrave superstition ailleurs agrave la mescreance [C] icy agrave la liberteacute icy agrave la servitude [hellip] [B] que deviennent toutes ces belles prerogatives dequoy nous nous allons flatants Puis quun homme sage se peut mesconter et cent hommes et plusieurs nations voire et lhumaine nature selon nous se mesconte plusieurs siecles en cecy ou en cela quelle seureteacute avons nous que par fois elle cesse de se mesconter [C] et quen ce siecle elle ne soit en mescomte [A] Il me semble entre autres tesmoignages de nostre imbecilliteacute que celui-cy ne merite pas destre oublieacute que par desir mesmes lhomme ne sccedilache trouver ce quil luy faut que non par jouyssance mais par imagination et par souhait nous ne puissions estre daccord de ce dequoy nous avons besoing pour nous contenter Laissons agrave nostre penseacutee tailler et coudre agrave son plaisir elle ne pourra pas seulement desirer ce qui luy est propre [C] et se satisfaire [hellip]rdquo169

Segundo Montaigne a verdade de uma teoria moral ndash como a de qualquer outro

conhecimento ndash soacute pode ser afirmada relativamente ao sujeito que estaacute implicado nesta

tarefa O homem que reflecte sobre a moral reflecte sobre si proacuteprio e natildeo sobre a

humanidade em geral Desta perspectiva podemos perceber por que razatildeo Montaigne

afirma que eacute ele proacuteprio a mateacuteria de seu livro170 Eacute o proacuteprio Montaigne que nos toca

ainda mais de perto do que o homem em geral

Montaigne observa que natildeo haacute entre os filoacutesofos combate tatildeo violento e tatildeo rude

como o que se trava acerca da questatildeo do soberano bem do homem

ldquo[A] Il nest point de combat si violent entre les philosophes et si aspre que celuy qui se dresse sur la question du souverain bien de lhommerdquo171

168 Villey op cit p 193 169 Les Essais II 12 pp 575-576 170 Cf nota 143 171 Les Essais II 12 p 577

55

Trata-se de uma questatildeo muito sensiacutevel para Montaigne Em se entender eacute inuacutetil

acrescentar mais uma seita agraves 288 que nasceram segundo o caacutelculo de Varron acerca

da questatildeo do soberano bem172

Montaigne inicia a ldquoApologierdquo afirmando que alguns filoacutesofos pensavam que o

soberano bem estava na ciecircncia173

Mas natildeo acreditava que fosse atraveacutes da ciecircncia174 (moral e filosoacutefica) que o

homem conseguiria ser mais saacutebio e mais feliz O autor natildeo se preocupa em fornecer

exactamente o ldquoendereccedilordquo do bem soberano Vejamos como apresenta algumas

indicaccedilotildees relativas agraves vaacuterias tentativas dos filoacutesofos para encontrarem o bem soberano

esse bem que varia conforme o indiviacuteduo

ldquo[A] Nature devroit ainsi respondre agrave leurs contestations et agrave leurs debats Les uns disent nostre bien estre loger en la vertu dautres en la volupteacute dautres au consentir agrave nature qui en la science [C] qui agrave navoir point de douleur [A] qui agrave ne se laisser emporter aux apparences (et agrave cette fantasie semble retirer cetautre [B] de lantien Pythagoras [hellip] [A] qui est la fin de la secte Pyrrhonienne) rdquo175

Fiel aos argumentos do pirronismo Montaigne sustenta que o soberano bem eacute a

ataraxia Segundo ele a sabedoria indica-nos que eacute necessaacuterio procurar manter na alma

um harmonioso equiliacutebrio A ataraxia foi sempre considerada pelos seguidores do

pirronismo como a coroaccedilatildeo da sua filosofia segundo Andreacute Verdan176 Vejamos

textualmente o que diz Sexto acerca da ataraxia como objectivo de sua doutrina ceacuteptica

filosoacutefica

ldquoIl est propos de dire ici quelque chose de la fin de la Sceptique La fin en geacuteneacuteral est ce pour quoi on fait ou on consideacutere toutes Choses crsquoest ce que lrsquoon ne recherche point pour quelque autre Chose crsquoest ce qui est la dernieacutere Chose que lrsquoon recherche Nous disons donc maintenant que la fin du Filosofe Sceptique est lrsquoAtaraxie ou lrsquoexemtion de trouble agrave lrsquoeacutegard des opinions [hellip] amp alors lrsquoAtaraxie ou lrsquoexemtion de trouble fut une suite heureuse quoique fortuite de cette suspension de son jugement agrave lrsquoeacutegard des opinions [hellip] celui qui opine Dogmatiquement amp qui eacutetablit qursquoil y a naturellement amp reacuteellement quelque bien amp quelque mal est toujours troubleacuterdquo177

172 Les Essais II 12 p 577 173 Cf nota 96 174 ldquoLa philosophie morale est viseacutee comme les autres sciences plus directement mecircme que les autres sciencesrdquo (Villey op cit p219) 175 Les Essais II 12 p578 176 Cf Verdan Andreacute Le scepticisme philosophique Paris-Montreacuteal Bordas 1971 p 57 177 Sextus Empiricus Les Hipotiposes ou Instituitions Pirroniennes Traduzido do grego por Claude Huart Amsterdam Barbier MDCCXXV pp15-16

56

Segundo Montaigne a filosofia natildeo pode oferecer uma base consistente agrave moral

que sirva como garantia da felicidade humana O homem eacute convidado a procurar

alicerces mais seguros e consistentes fora da filosofia

ldquo[C] Il ne nous faut guiere non plus doffices de regles et de loix de vivre en nostre communauteacute quil en faut aux grues et formis en la leur Et neantmoins nous voyons quelles sy conduisent tres-ordonneacutement sans erudition Si lhomme estoit sage il prenderoit le vray pris de chasque chose selon quelle seroit la plus utile et propre agrave sa vierdquo178

Assim o homem estaacute impedido por uma incapacidade que tem a sua origem

sobretudo na razatildeo de determinar tudo aquilo que pode em termos morais servir-lhe

para a construccedilatildeo de uma vida tranquila O homem natildeo sabe encontrar o que lhe eacute

necessaacuterio O desacordo nestes assuntos eacute inerente agrave proacutepria natureza do homem tal

como foi descrita pelo autor da ldquoApologierdquo

Trata-se de um desacordo com consequecircncias preocupantes jaacute que se eacute de noacutes

que depende a organizaccedilatildeo dos nossos costumes metemo-nos numa enorme

confusatildeo179 Aludindo ao parecer de Soacutecrates Montaigne defende que a razatildeo aconselha

cada um a obedecer a lei de seu paiacutes180

Entretanto Montaigne questiona-se seraacute que ldquo[A] nostre devoir nrsquoa autre regle

que fortuite181 A resposta reflecte mais uma vez o relativismo do autor que afirma

que a verdade deve ter uma face universal e uniforme mas que reconhece ao mesmo

tempo que de facto o homem impedido pela razatildeo e pelos sentidos (considerados pela

filosofia tradicional como fonte do conhecimento da verdade) natildeo tem condiccedilotildees de

encontrar uma base moral no discurso racional

ldquo[A] La droiture et la justice si lhomme en connoissoit qui eust corps et veritable essence il ne lattacheroit pas agrave la condition des coustumes de cette contreacutee ou de celle lagrave ce ne seroit pas de la fantasie des Perses ou des Indes que la vertu prendroit sa forme Il nest rien subject agrave plus continuelle agitation que les loix Deacutepuis que je suis nay jay veu trois et quatre fois rechanger celles des Anglois noz voisins non seulement en subject politique qui est celuy quon veut dispenser de constance mais au plus important subject qui puisse estre agrave sccedilavoir de la religion Dequoy jay honte et despit dautant plus que cest une nation agrave laquelle ceux de mon quartier ont eu autrefois une si priveacutee accointance quil

178 Les Essais II 12 p 487 179 Cf Les Essais II 12 p 578 180 Cf Les Essais II 12 p 478 181 Les Essais II 12 p 578

57

reste encore en ma maison aucunes traces de nostre ancien cousinagerdquo182

Reflectindo acerca da situaccedilatildeo concreta que o rodeava isto eacute a guerra as

injusticcedilas e outros males (causados pelo proacuteprio homem) que caracterizavam a Franccedila

de entatildeo Montaigne tem consciecircncia de que seguir as leis do paiacutes183 que satildeo

produzidas pela razatildeo humana eacute algo bastante problemaacutetico

Como moralista Montaigne natildeo deseja fazer a apologia de uma ldquoanarquiardquo em

termos morais muito pelo contraacuterio como vimos defende a importacircncia da lei na vida

quotidiana O que ele pretende defender eacute que todo o sistema que resulta de um

emaranhado de reflexotildees intelectuais natildeo leva a nada pelo facto de que tudo o que a

razatildeo produz estaacute sujeito agrave incerteza tanto a verdade como a falsidade

Ao criticar todo este processo Montaigne quer ressaltar a ideia de que a razatildeo eacute

um estorvo importante para a dinacircmica de construccedilatildeo da justiccedila e das leis morais

Esta tese poderia levar a pensar que Montaigne eacute um pensador que natildeo acredita

na verdade Mas ao ler a sua obra damo-nos conta que eacute um autor apaixonado pela

verdade Ele nunca afirmou que a verdade estava fora de alcance Ele quer encontrar a

verdade A sua proacutepria atitude filosoacutefica pode ser caracterizada como uma perene busca

da verdade O que lhe eacute peculiar nesta busca eacute o facto de questionar profundamente tudo

aquilo que eacute construiacutedo arbitrariamente pela filosofia dogmaacutetica sobretudo as grandes

elaboraccedilotildees teoacutericas e os complicados coacutedigos legais que em geral natildeo respeitam as

contingecircncias da vida

Esta razatildeo eacute por conseguinte a grande responsaacutevel pela contiacutenua agitaccedilatildeo das

leis Neste sentido o cepticismo de Montaigne no domiacutenio da moral estaacute em profunda

sintonia com todo o projecto da ldquoApologierdquo Assim como natildeo aceita as certezas teoacutericas

dos filoacutesofos e pensadores profissionais em mateacuteria de metafiacutesica e em tantos outros

assuntos tradicionalmente caros agrave filosofia rejeita tambeacutem com toda a determinaccedilatildeo a

produccedilatildeo filosoacutefica que eacute apresentada como ciecircncia moral Montaigne natildeo se cansa de

questionar o papel daqueles pensadores que em nome da filosofia se encarregam de

teorizar sobre as leis morais e a justiccedila Podemos dizer que o autor classifica esta

actividade como algo dispensaacutevel agrave vida Neste contexto o autor ressalta o problema da

contingecircncia e da sua relaccedilatildeo com a lei

182 Les Essais II 12 p 579 183 ldquo[B] Car nous avons en France plus de loix que tout le reste du monde ensemble [hellip] [C] Il y a peu de relation nos actions qui sont en perpetuelle mutation avec les loix fixes et immobile Les plus desirables ce sont les plus rares plus simples et generalesrdquo (Les Essais III 13 p 1066)

58

ldquo[A] Que nous dira donc en ceste necessiteacute la philosophie Que nous suyvons les loix de nostre pays Cest agrave dire cette mer flotante des opinions dun peuple ou dun Prince qui me peindront la justice dautant de couleurs et la reformeront en autant de visages quil y aura en eux de changemens de passion Je ne puis pas avoir le jugement si flexiblerdquo184

Algumas doutrinas filosoacuteficas impelem-nos ao cumprimento das leis do paiacutes

Mas como eacute isto possiacutevel se estas leis satildeo condicionadas pelas paixotildees de quem as fez

Em seguida Montaigne refere-se agrave relatividade das leis civis

ldquo[A] Quelle bonteacute est-ce que je voyois hyer en credit et demain plus [C]et que le trajet dune riviere fait crime Quelle veriteacute que ces montaignes bornent qui est mensonge au monde qui se tient au delagrave185

Diante deste quadro podemos perguntar-nos seraacute possiacutevel ter uma moral que

garanta a justiccedila para todos fazendo uso da razatildeo e utilizando as leis humanas que satildeo

sempre condicionadas pelas paixotildees as quais por sua vez estatildeo sujeitas a de tantas

mudanccedilas A resposta de Montaigne eacute negativa e eacute dada de forma iroacutenica

ldquo[A] Mais ils sont plaisans quand pour donner quelque certitude aux loix ils disent quil y en a aucunes fermes perpetuelles et immuables quils nomment naturelles qui sont empreintes en lhumain genre par la condition de leur propre essence Et de celles lagrave qui en fait le nombre de trois qui de quatre qui plus qui moins signe que cest une marque aussi douteuse que le resterdquo186

Aleacutem de constatar a relatividade das leis civis Montaigne natildeo deixa de afirmar

que haacute tambeacutem uma niacutetida relatividade nas leis naturais

ldquo[A] ils sont dis-je si miserables que de ces trois ou quatre loix choisies il nen y a une seule qui ne soit contredite et desadvoeumle non par une nation mais par plusieursrdquo187

Outra tese da ldquoApologierdquo que merece ser lembrada eacute que a razatildeo humana ndash

intrometendo-se em toda a parte para dominar baralhar e confundir a face das coisas

segundo sua vaidade e inconstacircncia ndash quer que acreditemos que haacute leis naturais como as

que se observam nas outras criaturas Mas isto natildeo passa de um equiacutevoco em noacutes as leis

naturais estatildeo perdidas

Montaigne natildeo mede as palavras quando o que estaacute em jogo eacute em seu entender

alguma coisa de capital importacircncia A falta de honestidade e a falsidade satildeo atributos

dos pensadores e elaboradores de leis na sociedade Neste contexto criticaraacute

violentamente a posiccedilatildeo de Platatildeo por exemplo Observa que quando este pensador

184 Les Essais II 12 p 579 185 Les Essais II 12 p 579 186 Les Essais II 12 p 580 187 Les Essais II 12 p 580

59

grego se torna legislador adopta um estilo imperioso e afirmativo e mistura-lhe

ousadamente as mais fantasiosas invenccedilotildees tatildeo uacuteteis para persuadir o povo como

ridiacuteculas para se persuadir a si mesmo Conclui a sua criacutetica a Platatildeo da seguinte forma

ldquo[C] Et pourtant en ses loix il a grand soing quon ne chante en publiq que des poeumlsies desquelles les fabuleuses feintes tendent agrave quelque utile fin et estant si facile dimprimer tous fantosmes en lesprit humain que cest injustice de ne le paistre plustost de mensonges profitables que de mensonges ou inutiles ou dommageables Il dict tout destroussement en sa Republique que pour le profit des hommes il est souvent besoin de les piper 188 rdquo

Na ldquoApologierdquo Montaigne manifesta em vaacuterias ocasiotildees o seu

descontentamento relativamente agraves teses dos filoacutesofos gregos

Considerando as reflexotildees precedentes acerca da moral tudo leva a crer que

Montaigne considera que as leis verdadeiras relativas agrave moral devem ter um caraacutecter

universal e natildeo particular

Montaigne apresenta uma lista de costumes diversificados de povos muito

diferentes que tecircm as suas tradiccedilotildees proacuteprias e que satildeo muitas vezes contraditoacuterias entre

si Isto servir-lhe-aacute para justificar a tese de que natildeo haacute coisa em que o mundo seja tatildeo

diverso como os costumes e leis

ldquo[A] Telle chose est icy abominable qui apporte recommandation ailleurs comme en Lacedemone la subtiliteacute de desrober Les mariages entre les proches sont capitalement defendus entre nous ils sont ailleurs en honneur [hellip]rdquo

ldquo[A] Le meurtre des enfans meurtre des peres communication de femmes trafique de voleries licence agrave toutes sortes de voluptez il nest rien en somme si extreme qui ne se trouve receu par lusage de quelque nationrdquo189

ldquo[A] Les subjets ont divers lustres et diverses considerations cest de lagrave que sengendre principalement la diversiteacute dopinions Une nation regarde un subject par un visage et sarreste agrave celuy lagrave lautre par un autre

Il nest rien si horrible agrave imaginer que de manger son pere Les peuples qui avoyent anciennement ceste coustume la prenoyent toutesfois pour tesmoignage de pieteacute et de bonne affection [hellip]rdquo

ldquo[A] Licurgus considera au larrecin la vivaciteacute diligence hardiesse et adresse quil y a agrave surprendre quelque chose de son voisin [hellip]rdquo ldquo[A] Dionysius le tyran offrit agrave Platon une robe agrave la mode de Perse longue damasquineacutee et parfumeacutee Platon la refusa disant questant nay homme il ne

188 Les Essais II 12 p 512 189 Les Essais II 12 p 580

60

se vestiroit pas volontiers de robbe de femme mais Aristippus laccepta avec ceste responce que nul accoustrement ne pouvoit corrompre un chaste couragerdquo190

ldquo[A] Nous portons les oreilles perceacutees les Grecs tenoient cela pour une marque de servitude Nous nous cachons pour jouir de nos femmes les Indiens le font en public Les Scythes immoloyent les estrangers en leurs temples ailleurs les temples servent de franchiserdquo191

Para Montaigne as razotildees sobre as quais cada povo funda a sua moral satildeo uma

resposta a situaccedilotildees contingentes e natildeo visam dar resposta a situaccedilotildees mais universais

vaacutelidas para todos os homens sem excepccedilatildeo Villey chega a afirmar que Montaigne

ldquocherche une justice et il trouve des justices et des justices contradictoiresrdquo192

Aleacutem de constatar a ausecircncia de um acordo entre as vaacuterias concepccedilotildees no que

diz respeito aos costumes de cada povo Montaigne - fiel agrave criacutetica aos sistemas

filosoacuteficos que perpassa toda a ldquoApologierdquo - destaca tambeacutem o facto de que natildeo haacute

sequer acordo entre os filoacutesofos que se ocupam particularmente em reflectir acerca de

dois temas muito caros agrave filosofia

ldquo[A] Quant agrave la liberteacute des opinions philosophiques touchant le vice et la vertu cest chose ougrave il nest besoing de sestendre et ougrave il se trouve plusieurs advis qui valent mieux teus que publiez [C]aux faibles espritsrdquo193

Segundo Montaigne os proacuteprios homens do saber adoptam atitudes

consideradas inaceitaacuteveis pelo facto de a sociedade as condenar Os exemplos ilustram

esta situaccedilatildeo de uma forma muito niacutetida e revelam quanto a razatildeo humana pode fazer

para encontrar explicaccedilotildees legitimadoras para todas as realidades relativas aos costumes

morais

ldquo[A] De lagrave disent aucuns que doster les bordels publiques cest non seulement espandre par tout la paillardise qui estoit assigneacutee agrave ce lieu lagrave mais encore esguillonner les hommes agrave ce vice par la malaisance [hellip] On demanda agrave un philosophe quon surprit agrave mesme ce quil faisoit Il respondit tout froidement Je plante un homme [hellip]rdquo194

ldquo[C] Car Diogenes exerccedilant en publiq sa masturbation faisoit souhait en presence du peuple assistant qursquoil peut ainsi saouler son ventre en le frottant [hellip] Ces philosophes icy donnoient extreme prix agrave la vertu et refusoient toutes autres disciplines que la moralerdquo195

190 Les Essais II 12 p 581 191 Les Essais II 12 p 582 192 Villey op cit p 197 193 Les Essais II 12 p 582 194 Les Essais II 12 p 584 195 Les Essais II 12 p 585

61

A relatividade das leis e costumes e a impossibilidade de se chegar a acordo

entre os povos tendo em vista estabelecer leis universais leva Montaigne a uma espeacutecie

de denuacutencia da praacutetica dos encarregados pela execuccedilatildeo das leis que jaacute por si satildeo tatildeo

questionaacuteveis Isto torna a lei supostamente universal ainda mais sujeita agrave rejeiccedilatildeo

segundo Montaigne Vale a pena recordar aqui o exemplo de que Montaigne ouviu

falar de um juiz que quando deparava com um seacuterio conflito entre Bartoldo e Baldo196

ou com alguma mateacuteria agitada por muitas contradiccedilotildees escrevia na margem de seu

livro ldquoQuestatildeo para o amigordquo Montaigne observa que neste caso a verdade era tatildeo

confusa e debatida que o juiz em causa poderia favorecer a parte que bem entendesse e

conclui

ldquo[A] Les advocats et les juges de nostre temps trouvent agrave toutes causes assez de biais pour les accommoder ougrave bon leur semble A une science si infinie deacutependant de lauthoriteacute de tant dopinions et dun subject si arbitraire il ne peut estre quil nen naisse une confusion extreme de jugemens Aussi nest-il guiere si cler proceacutes auquel les advis ne se trouvent divers Ce quune compaignie a jugeacute lautre le juge au contraire et elle mesmes au contraire une autre fois Dequoy nous voyons des exemples ordinaires par ceste licence qui tasche merveilleusement la cerimonieuse authoriteacute et lustre de nostre justice de ne sarrester aux arrests et courir des uns aux autres juges pour decider dune mesme causerdquo197

Eacute interessante destacar este exemplo tambeacutem porque Montaigne tinha

conhecimentos profundos da ciecircncia do direito conforme reconhece a maioria dos

comentadores da sua obra Como magistrat tinha conhecimento de causas nas quais se

manifestava aquilo contra o qual se opunha Isto vem confirmar ainda mais a posiccedilatildeo de

Montaigne face agrave sua incansaacutevel busca de leis universais que natildeo estivessem sujeitas agraves

constantes mutaccedilotildees de que a razatildeo humanaldquo[B] un pot agrave deux anses qursquoon peut saisir

agrave gauche et agrave dextrerdquo eacute responsaacutevel e que [A] fornit drsquoapparence agrave divers effectsrdquo198

Ao abordar a problemaacutetica da moral na ldquoApologierdquo Montaigne chega a algumas

conclusotildees que natildeo se distanciam fundamentalmente de todo o projecto do ensaio Isto

eacute defende que haacute um relativismo significativamente claro relativamente agrave moral Villey

faz algumas afirmaccedilotildees que resumem claramente esta problemaacutetica ldquoIl nrsquoy a pas de

souverain bien il nrsquoy a pas de loi naturelle toute obligation moralle est fortuite

196 Trata-se de dois juristas do seacuteculo XIV que no seacuteculo XV ainda tinham grande influecircncia 197 Les Essais II 12 p 582 198 Les Essais II 12 p 581

62

contingenterdquo199 E tudo isto deve-se agrave criacutetica destruidora da razatildeo humana que

Montaigne apresenta no texto Para ele a razatildeo quer julgar tudo quer elaborar leis

universais sem mesmo ter condiccedilotildees para semelhante empreendimento A razatildeo como

vimos eacute multiforme inconstante infinita Ela avanccedila sempre mesmo torta mesmo

manca mesmo desancada tanto com a mentira como com a verdade A razatildeo eacute um

instrumento de chumbo e de cera alongaacutevel dobraacutevel e adaptaacutevel a todas as

perspectivas e a todas as medidas200 Segundo Montaigne a razatildeo eacute ldquo[B] un miserable

fondement de nos regles et qui nous represente volontiers une tres-fauce image des

choses comme vainement nous concluons aujourdrsquohui lrsquoinclination et la decrepitude du

monde par les arguments que nous tirons de nostre propre foiblesse et decadencerdquo201

Em suma Montaigne tem consciecircncia de que eacute impossiacutevel chegar a qualquer

determinaccedilatildeo no domiacutenio da moral atraveacutes da razatildeo Por isto assume uma atitude

ceacuteptica em face desta questatildeo

199 Villey op cit p198 200 Cf nota 122 201 Les Essais III 6 p 908

63

Consideraccedilotildees finais

A leitura da ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo permitiu-nos esclarecer aspectos

importantes da criacutetica demolidora da razatildeo humana levada a cabo por Montaigne

Eacute claro que uma motivaccedilatildeo importante que levou Montaigne a escrever a

ldquoApologierdquo foi a obra do teoacutelogo catalatildeo Sebond Theologia Naturalis Eacute importante

destacar que o proacuteprio tiacutetulo do ensaio ldquoApologiehelliprdquo isto eacute elogio defesa natildeo reflecte

exactamente o seu propoacutesito que eacute a defesa de Sebond A anaacutelise do texto permite

captar algo de paradoxal Montaigne dispotildee-se a defender este teoacutelogo catalatildeo num

ensaio no qual ele proacuteprio se distancia claramente da doutrina de Sebond Neste

sentido haacute um significativo distanciamento entre o tiacutetulo do ensaio e o seu conteuacutedo O

ponto de partida de Montaigne eacute uma espeacutecie de declaraccedilatildeo de que as ideias de Sebond

satildeo convincentes mas imediatamente a seguir muda de opiniatildeo partindo de sua

concepccedilatildeo negativa do homem e natildeo acredita nos supostos poderes da razatildeo Dito de

outro modo Montaigne natildeo sustentava o propoacutesito da Theologia naturalis isto eacute a

pretensatildeo de apoiar a crenccedila dos leitores convidando-os a fazer um esforccedilo de adaptaccedilatildeo

dos instrumentos naturais e humanos considerados como dons de Deus especialmente

a razatildeo pondo-os ao serviccedilo da feacute

Montaigne ldquoaplauderdquo a atitude de Sebond202 Mas imediatamente a seguir critica

o teoacutelogo catalatildeo atacando os vaacuterios argumentos filosoacuteficos presentes na sua obra Na

raiz da sua criacutetica estaacute o facto de estes argumentos se fundamentarem numa visatildeo

antropocecircntrica da supremacia do homem como criatura privilegiada da criaccedilatildeo o

homem por ser detentor da razatildeo diferentemente dos outros animais tem uma

finalidade uma perfeiccedilatildeo e uma dignidade que merece ser exaltada Montaigne natildeo

aceita esta visatildeo que norteia tanto a obra de Sebond como o pensamento de todos

aqueles que faziam apologia da dignitas hominis Denuncia a presunccedilatildeo ilusoacuteria do

homem Desta perspectiva utiliza vaacuterios relatos anedoacuteticos de animais para justificar a

sua posiccedilatildeo E a conclusatildeo principal a que o conduz este percurso eacute que o homem natildeo

estaacute nem acima nem abaixo do resto dos seres naturais203 Dito de outro modo a

consideraccedilatildeo de que unicamente o homem eacute possuidor da razatildeo natildeo tem qualquer

relevacircncia segundo a ldquoApologierdquo

202 Cf nota 1 203 Cf nota 31

64

Da batalha travada por Montaigne contra os vaacuterios opositores da obra de

Sebond podemos destacar a posiccedilatildeo criacutetica que ele assume face aos presunccedilosos

racionalistas que diziam que os argumentos de Sebond eram fracos Diante destes

doutos Montaigne iraacute sustentar a tese de que o homem natildeo sabe nada Haacute que salientar

no entanto que o teoacutelogo catalatildeo estava em ldquocomunhatildeordquo com o pensamento apologeacutetico

de sua eacutepoca isto eacute recorreu agrave razatildeo para provar certos dogmas Para Montaigne o

principal perigo vem daqueles que atribuem super poderes agrave razatildeo Eacute por isso tambeacutem

que Montaigne sustenta que a razatildeo deve submeter-se agrave autoridade divina Esta

submissatildeo natildeo exclui a razatildeo mas considera-a como um meio de compreender o motivo

da feacute Esta feacute deve ser concebida como uma expectativa da graccedila sem a qual nada eacute

possiacutevel ao homem Segundo Montaigne natildeo somos capazes de perceber que toda a

certeza estaacute vedada ao homem reduzido a si proacuteprio204

Podemos perceber que a utilizaccedilatildeo da razatildeo para explicar as realidades da

religiatildeo natildeo tem sentido na ldquoApologierdquo Montaigne natildeo tem necessidade de fazer

apologia da feacute205 A sua perspectiva eacute unicamente humana e isto vai estruturar toda a

sua reflexatildeo na ldquoApologierdquo Quando se refere agrave graccedila como dom sobrenatural nem o

absoluto nem a graccedila actuam no interior de sua visatildeo antropoloacutegica A graccedila eacute

apresentada por Montaigne como uma metamorfose

ldquo[C] Crsquoest agrave nostre foy Chrestienne non agrave sa vertu Stoique de pretendre agrave cette divine et miraculeuse metamorphoserdquo206

Montaigne descobre em si proacuteprio o pirronismo atraveacutes da volubiliteacute207 presente

nas vaacuterias atitudes dos filoacutesofos Pocircs em duacutevida as diversas opiniotildees dos filoacutesofos

denunciando-as como contraditoacuterias criticou as doutrinas filosoacuteficas dogmaacuteticas mas

natildeo assumiu nenhuma doutrina definida Montaigne assume o pirronismo como meacutetodo

e natildeo como um adepto cego para enfrentar os problemas presentes na ldquoApologierdquo

O pirronismo eacute assumido por Montaigne como modo de pensamento e como

meacutetodo de vida Este pirronismo permite-lhe ter em conta na ldquoApologierdquo a incerteza de

204 Cf Nota 93 205 O autor esclarece esta questatildeo da seguinte maneira na ediccedilatildeo posterior a 1588 ldquo[C] Je propose les fantasies humaines et miennes simplement comme humaines fantasies [hellip] matiere dopinion non matiere de foy ce que je discours selon moy non ce que je croy selon Dieu comme les enfants proposent leurs essais intruisables non instruisants dune maniere laiumlque non clericale mais tresminusreligieuse tousjoursrdquo (Les Essais I 56 p 323) 206 Les Essais II 12 p 604 207 Les Essais II 12 p 569

65

nossos juiacutezos a incerteza que todos sentem em si208 em relaccedilatildeo ao conhecimento O

pirronismo faz desaparecer as ilusotildees da certeza e como ele natildeo se envolve nas

questotildees da ldquoirresolution infinierdquo209 procura uma seguranccedila na tranquilidade do

espiacuterito que com a do corpo constitui o soberano bem210 Ao assumir a atitude

pirroacutenica Montaigne natildeo se transforma num homem passivo num ldquopeso mortordquo Muito

pelo contraacuterio sustenta que devemos sempre levantar questotildees reconhecer a nossa

ignoracircncia face agraves vaacuterias resoluccedilotildees tomadas como certas pela presunccedilosa razatildeo

humana duvidar sempre e ter uma atitude de busca incessante de novas ideias

Isto significa que Montaigne defende a tese de que somos convidados a

considerar que os conhecimentos adquiridos devem ser sempre sustentados como

provisoacuterios e natildeo como verdades absolutas Isto natildeo exclui evidentemente o facto de

que podemos apresentar as nossas visotildees prismaacuteticas das coisas e ateacute sustentaacute-las se

assim for necessaacuterio

Na ldquoApologierdquo Montaigne assume uma atitude pirroacutenica sui generis Demonstra

constantemente uma reaccedilatildeo contra os dogmatismos Ele eacute um pensador que estaacute sempre

em busca Nunca cessa de investigar Estaacute sempre em debate consigo mesmo Neste

aspecto pode-se dizer que assume uma atitude diferente do pirronismo grego o qual

defendia a tese da impossibilidade de qualquer juiacutezo Natildeo estaacute preocupado em encontrar

um ldquoroacutetulo de marca registadardquo para suas reflexotildees filosoacuteficas Ou seja natildeo tinha como

objectivo elaborar uma apologia de uma doutrina a ser seguida por adeptos

Montaigne apresenta os seus juiacutezos com a sua razatildeo criacutetica sem ter

necessariamente que defender a tese de que a razatildeo humana ndash instrumento flexiacutevel

recurvaacutevel e adaptaacutevel a qualquer forma211- eacute sempre o guia prudente e seguro de uma

conduta correcta e perfeita Montaigne procura demonstrar racionalmente - e aqui

reside em seu entender o uso positivo da razatildeo ndash que natildeo haacute essecircncia nem verdade

absoluta acerca do homem e que de algumas coisas sempre agrave mercecirc do poder do tempo

noacutes soacute observamos as aparecircncias

ldquo[A] Finalment il nrsquoy a aucune constante existence ny de nostre estre ny de celuy des objects [hellip] Nous nrsquoavons aucune communication agrave lrsquoestre [hellip]rdquo212

208 Cf Les Essais II 12 p 563 209 Cf Les Essais II 12 p 561 210 Cf Les Essais II 12 p 488 211 Cf Les Essais II 12 p 539 212 Les Essais II 12 p 601

66

Montaigne duvida de todos os conhecimentos humanos recebidos por autoridade

e em confianccedila (agrave credit) como se fossem religiatildeo e lei213 tais conhecimentos natildeo

passam de falsas evidecircncias do quotidiano E isto vale sobretudo para todos os tipos de

produccedilatildeo racional que satildeo consequecircncia da vaidade humana

Montaigne esforccedila-se por investigar as opiniotildees dos outros e isto motiva-o a

formular um pensamento mais pessoal preocupado com o que eacute justo e a expandir o

seu proacuteprio conhecimento relativo e precaacuterio As suas investigaccedilotildees natildeo satildeo dogmaacuteticas

e soacute o comprometem a ele proacuteprio Eacute um pensador que estaacute sempre em busca que natildeo

tem a presunccedilatildeo de querer saber tudo sobre todas as coisas Mas ao mesmo tempo

podemos dizer que eacute um pensador que descobriu num mundo marcado por tantas

conturbaccedilotildees graccedilas agraves suas proacuteprias experiecircncias uma consciecircncia real e soacutelida da sua

existecircncia concreta no mundo Este facto levou-o a assumir a atitude de natildeo querer

ensinar nem dirigir a vida de ningueacutem Vale a pena citar a este respeito um pequeno

trecho de um outro ensaio que Montaigne escreveu provavelmente na mesma eacutepoca da

ldquoApologierdquo e que reflecte claramente a posiccedilatildeo por ele assumida e que pode ser

classificada natildeo como a de um filoacutesofo profissional detentor de verdades que devem ser

ensinadas aos outros mas como a de algueacutem que estaacute sempre em busca e natildeo se inibe de

expressar as suas opiniotildees

ldquo[A] Je dy librement mon advis de toutes choses voire et de celles qui surpassent agrave ladventure ma suffisance et que je ne tiens aucunement estre de ma jurisdiction Ce que jen opine cest aussi pour declarer la mesure de ma veueuml non la mesure des chosesrdquo214

Montaigne renuncia a tarefa de querer provar atraveacutes da razatildeo humana aquilo

que estaacute em uacuteltima instacircncia no domiacutenio da feacute Ele eacute um homem que crecirc em Deus

ldquo[A] Il a laisseacute en ces hauts ouvrages le caractere de sa diviniteacute et ne tient quagrave nostre imbecilliteacute que nous ne le puissions descouvrirrdquo215

Uma quantidade importante de pessoas no mundo proclama a existecircncia de

Deus Mas este Deus natildeo pode ser conhecido racionalmente pelo homem

ldquoIl sen faut tant que nos forces conccediloivent la hauteur divine que des ouvrages de nostre createur ceux-lagrave portent mieux sa marque et sont mieux siens que nous entendons le moinsrdquo216

213 Cf Les Essais II 12 p 539 214 Les Essais II 10 p 410 215 Les Essais II 12 pp 446-447 216 Les Essais II 12 p 499

67

Relativamente agrave moral Montaigne sustenta a tese de que a razatildeo humana natildeo

tem o poder de determinar quais satildeo os bons e os maus costumes as boas e as maacutes leis e

normas para qualquer grupo social

Diante da leitura que fizemos da ldquoApologierdquo onde Montaigne apresenta uma

criacutetica destruidora agrave razatildeo tirando-lhe quase todos os atributos recebidos durante toda a

histoacuteria da filosofia podemos portanto perguntar-nos qual eacute o papel da razatildeo humana

A resposta a esta questatildeo eacute muito complexa A criacutetica montaigneana agrave razatildeo natildeo se

limitou a menosprezar a ciecircncia (filosofia) a ldquoteologia racionalistardquo e as suas pretensotildees

de querer dar explicaccedilotildees sobre questotildees de feacute e de religiatildeo atacou tambeacutem

profundamente o espiacuterito humano negando-lhe capacidades que na maioria das vezes

satildeo atributos da pretensatildeo humana Para ilustrar mais claramente esta ideia seraacute

interessante fazer referecircncia a uma passagem ceacutelebre do livro III na qual Montaigne

conta uma pequena histoacuteria de um escravo chamado Esopo

Conta-nos o autor que Esopo estava exposto agrave venda com dois outros escravos

Um comprador indagou de um deles que sabia fazer este para se valorizar contou mil

maravilhas (monts et merveilles) O segundo disse mais ainda Quando chegou a sua

vez Esopo respondeu ldquonada eles jaacute pegaram em tudo eles sabem tudordquo Montaigne

observa que verificou o mesmo nas escolas de filosofia A arrogacircncia o orgulho (fierteacute)

dos que atribuiacuteram ao espiacuterito humano a capacidade de tudo saber levou os outros a

afirmar por despeito ou contradiccedilatildeo que o espiacuterito natildeo era capaz de coisa alguma

Estes exaltavam ao extremo a ignoracircncia tal como aqueles glorificavam absurdamente a

ciecircncia De modo que natildeo haacute como negar que o homem eacute imoderado em tudo e soacute cessa

quando forccedilado pela capacidade de ir aleacutem217

Em suma a ldquoApologierdquo nos apresenta um questionamento profundo em relaccedilatildeo

a todo o tipo de conhecimento fundado na razatildeo Arruiacutena os fundamentos deste

conhecimento produzido pelos homens do saber doutos e filoacutesofos antigos A estes

ldquosaacutebiosrdquo em geral que pensavam ser possuidores da verdade Montaigne dirige uma

criacutetica iroacutenica

laquo [C] Fiez vous agrave vostre philosophie vantez vous davoir trouveacute la feve au gasteau [hellip] raquo218

217 Cf Les Essais II 11 p 1035 218 Les Essais II 12 p 516 Esta citaccedilatildeo faz referecircncia agrave tradiccedilatildeo de na Epifania compartilhar um bolo contendo uma fava quem recebesse a fatia laquo premiada raquo era chamado laquo o rei da fava raquo Tratava-se de algo que figuradamente garantia uma espeacutecie de vantagem

68

Bibliografia

1 - Obras de Michel de Montaigne

Les Essais eacutedition conforme au texte de lrsquoexemplaire de Bordeaux par Pierre Villey

reacuteeacutediteacute sous la direction et avec un preacuteface de V-L Saulnier augmenteacute en 2004 drsquoune

preacuteface et drsquoun suppleacutement de Marcel Conche Paris QuadriguePUF 2004 (ediccedilatildeo de

referecircncia no nosso estudo)

Essais Livre second eacutedition preacutesenteacutee eacutetablie et annoteacutee par Emmanuel Naya

Delphine Reguig-Naya et Alexandre Tarrecircte Paris () Gallimard 2009

2 Estudos sobre Montaigne

AA VV Le dictionnaire des Essais de Montaigne Paris ( ) Eacuteditions Leacuteo Scheer

2011

AA VV Montaigne et la reacutevolution Philosophique du XVI siegravecle Bruxelles Eacuteditions

de lrsquoUniversiteacute de Bruxelles 1992

AUREacuteLIO Diogo Pires Montaigne e Espinosa toleracircncia ceacuteptica e toleracircncia

racionalista In O Cepticismo e Montaigne Rui Bertrand Romatildeo (org) Covilhatilde

Universidade da Beira Interior 2003 pp 141-160

BIRCHAL Telma de Souza O eu nos Ensaios de Montaigne Belo Horizonte Editora

UFMG 2007

BIGNOTTO Newton ldquoMontaigne Renascentistardquo Kriterion Revista do Departamento

de Filosofia da UFMG Belo Horizonte XXXIII 86 agodez 1992 p 29-41

BUTOR Michel Essais sur les essais Paris Gallimard 1968

CATALAN Eacutetienne Eacutetudes sur Montaigne analyse de sa philosophie Paris Hellier

Fregraveres Librairie Religieuse 1846

CHAMPION Edme Introduction aux Essais de Montaigne Paris Armand Colin amp Cie

Eacutediteurs 1900

COMPAGNON Antoine Nous Michel de Montaigne Paris Seuil 1980

CONCHE Marcel Montaigne et la philosophie Paris Puf 1996

69

_____________ Montaigne ou la conscience heureuse Paris PUF 2009

DUARTE Tiago Barros Skepticism and religion in Michel de Montaigne two

interpretations of apology for Raymond Sebond Intuitio Porto Alegre V2 ndash Nordm 3

Novembro 2009 pp 298-307

FILHO Celso Martins Azar Montaigne e Soacutecrates cepticismo conhecimento e

virtude In Revista Portuguesa de Filosofia Tomo LVIII Fasc 4 2002

FRIEDRICH Hugo Montaigne Traduzido do alematildeo por Robert Rovini Paris

Gallimard 1967

GIOCANTI Sylvia Montaigne et les becirctes La becirctise et lrsquoanimal dans les Essais de

Montaigne Universiteacute de Toulouse-II Le Mirail UMR 5037 (ENS-Lyon) 2011

HENDRICK Philip Montaigne and Sebond scepticism faith and imagination In O

Cepticismo e Montaigne Rui Bertrand Romatildeo (org) Covilhatilde Universidade da Beira

Interior 2003 pp 83-102

JEANSON Franccedilois Montaigne par lui-mecircme Paris Seuil 1951

LACOUTURE Jean Montaigne agrave cheval (Montaigne a cavalo) Traduzido por F

Rangel Rio de JaneiroSatildeo Paulo Editora Record 1998

LANUSSE Maxime Montaigne Paris Lecegravene Oudin et Cie Eacutediteurs 1895

LEVEAUX Alphonse Eacutetude sur les Essais de Montaigne Paris Henri Plon

Imprimeur-Eacutediteur 1870

MATHIEU-CASTELLANI Gisegravele Montaigne ou la veacuteriteacute du mensonge Genegraveve

Droz 2000

MONSIEUR L Le chistianisme de Montaigne Paris Imprimerie de Demonville 1819

_______ Montaigne lrsquoeacutecriture de lrsquoessai Paris PUF 1988

NAKAM Geacuteranrd Montaigne et son temps Paris Gallimard 1993

RIGOLOT Franccedilois Le texte de la renaissance des rheacutetoriqueurs agrave Montaigne

Genegraveve Droz 1982

_______ Les meacutetamorphoses de Montaigne Paris PUF 1988

RIVELINE Maurice Montaigne et lrsquoamitieacute Paris Librairie Feacutelix Alcan 1939

70

71

ROMAtildeO Rui Bertrand A apologia na balanccedila a reinvenccedilatildeo do pirrorismo na

Apologia de Raimundo Sabunde de Michel de Montaigne Lisboa Imprensa Nacional

Casa da Moeda 2007

SANTI Pedro Luiz Ribeiro de Montaigne e a reflexatildeo moral no seacuteculo XVI In Revista

Olhar ano 04 nordm 7 jan-jun 03 pp 76-85

STAROBINSKI Jean Montaigne en mouvement Paris Gallimard 1982

STROWSKI Fortunat Montaigne Paris Feacutelix Alcan Eacutediteurs 1906

VERDAN Andreacute Le scepticisme philosophique Paris-Montreacuteal Bordas 1971

VILLEY Pierre Les sources et lrsquoeacutevolution des essais de Montaigne Tome Premier

Paris Librairie Hachete 1908

______ Les sources et lrsquoeacutevolution des essais de Montaigne Tome Second Paris

Librairie Hachete 1908

______ Montaigne devant la posteacuteriteacute Paris Ancienne Librairie Furne ndash Boivin et Cie

Eacutediteurs 1935

WEILLER Maurice Pour connaitre la penseacutee de Montaigne Paris Bordas 1948

3 ndash Outras obras citadas

ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Livro I e II Traduccedilatildeo do grego por Vicenzo Coceo

Coleccedilatildeo Os Pensadores Satildeo Paulo Abril S A Cultural 1984

CASSIRER Ernst An essay on man Traduccedilatildeo portuguesa de Carlos Branco Ensaio

sobre o homem Lisboa Guimaratildees Editores 1995

Nouveau Testament Traduction Oecumeacutenique de la Bible Paris PUF 1977

SEXTUS EMPIRICUS Les hipotiposes ou instituitions pirroniennes Trad do grego

por Claude Huart Amsterdam Barbier MDCC XXV

AA VV Histoacuteria das sociedades das sociedades modernas agraves sociedades atuais Rio

de Janeiro Ao Livro Teacutecnico 1983

  • IacuteNDICE
Page 8: MARÇO DE 2012

compreender neste ponto com faz Montaigne a transiccedilatildeo da criacutetica teoloacutegica agrave criacutetica do

conhecimento em geral

Na mesma linha de compreensatildeo dos limites da razatildeo seraacute importante

aprofundar num terceiro momento a criacutetica da ciecircncia desenvolvida por Montaigne na

ldquoApologierdquo Montaigne quer derrubar a tola vaidade e sacudir viva e corajosamente os

fundamentos ridiacuteculos como ele mesmo diz sobre os quais se constroem as falsas

ideias produzidas pela ciecircncia

Encontramos tambeacutem nesta parte um nuacutemero significativo de citaccedilotildees de

filoacutesofos antigos que Montaigne referencia para justificar a sua criacutetica radical agrave ciecircncia

Para ele os mais famosos filoacutesofos representantes do saber humano natildeo conseguiram

dar as verdadeiras respostas agraves questotildees fundamentais do ser humano Quais satildeo as

verdades as certezas sobre o homem e sobre Deus que esses saacutebios filoacutesofos nos

legaram

Em quarto e uacuteltimo lugar seraacute importante considerar de que modo Montaigne

relaciona a razatildeo humana e a moral Naturalmente natildeo seraacute possiacutevel considerar

detidamente o tema da moral na ldquoApologierdquo trata-se apenas de procurar perceber por

que razatildeo o autor ldquodecretardquo a impossibilidade de fundamentar na razatildeo um conjunto de

regras normas e leis que dizem respeito agrave vida praacutetica de qualquer grupo humano

Procurar-se-aacute reconstituir os vaacuterios argumentos de Montaigne que justificam a sua

tomada de posiccedilatildeo relativista no acircmbito da moral

8

1 A ideia do homem na ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo

Quando nos colocamos diante do desafio de estudar os Essais de Michel de

Montaigne uma questatildeo que importa perceber melhor eacute o periacuteodo no qual o autor

escreveu a sua obra Mais especificamente estudar o humanismo renascentista tendo

em vista que o autor dos Essais eacute considerado como um pensador deste periacuteodo

Abordaremos no entanto apenas alguns aspectos importantes daquela eacutepoca

Montaigne viveu num periacuteodo em que emergia uma nova visatildeo do mundo em

que o homem passou a ser o centro das atenccedilotildees em todos os aspectos O geocentrismo

medieval que centrava suas atenccedilotildees na relaccedilatildeo com Deus foi substituiacutedo pela

glorificaccedilatildeo do humano As pessoas interessadas nesta ruptura com os ideais medievais

buscavam inspiraccedilatildeo nas obras greco-romanas para representarem o seu proacuteprio mundo

O humanismo renascentista concebe-se como um movimento intelectual de

valorizaccedilatildeo da antiguidade claacutessica Natildeo se tratava poreacutem apenas de copiar as

realizaccedilotildees do classicismo greco-romano Este movimento representou algo que pode

ser considerado como uma ldquoglorificaccedilatildeo do homemrdquo agora colocado no centro de todas

as indagaccedilotildees e preocupaccedilotildees consistia em sentido amplo numa tomada de posiccedilatildeo

antropocecircntrica em reacccedilatildeo ao teocentrismo que imperava na Idade Meacutedia

Os humanistas deixaram de aceitar os valores e maneiras de ser e viver da Idade

Meacutedia Por conseguinte o interesse pela antiguidade experimenta-se como um meio

para atingir um fim Os humanistas viam na antiguidade

ldquo[hellip] aquilo que correspondia aos desejos que sentiam [hellip] Pretendiam encontrar nos antigos o Homem considerado como o ser geral impessoal universal que existe sob a mesma forma em toda parte [hellip] O humanismo eacute uma teacutecnica da vida cotidianardquo3

A produccedilatildeo intelectual deste periacuteodo concebia-se natildeo como um retorno ao

passado mas como uma tentativa de buscar nos claacutessicos greco-romanos uma fonte de

inspiraccedilatildeo O humanismo renascentista aleacutem de representar uma forte reacccedilatildeo a todos

os padrotildees culturais medievais escolaacutesticos tendeu tambeacutem fortemente a contrapor a feacute

e a razatildeo

Na sua globalidade a reflexatildeo dos Essais tem como um dos seus objectivos

principais a caracterizaccedilatildeo do homem Nesta perspectiva Michel de Montaigne se

3 AA VV Histoacuteria das sociedades das sociedades modernas agraves sociedades atuais Rio de Janeiro Ao Livro Teacutecnico 1983 p 70

9

apresenta como um pensador humanista que viveu numa altura em que a visatildeo

antropocecircntrica era dominante No entanto ele procurou superar esta concepccedilatildeo de uma

maneira muito particular A concepccedilatildeo antropoloacutegica claacutessica renascentista enaltecia

radicalmente a ldquodignitas hominisrdquo4 colocando o homem no centro do universo

Montaigne assume uma postura significativamente diferente do espiacuterito humanista

renascentista despreza o tema da dignitas hominis e dedica-se agrave investigaccedilatildeo das coisas

concretas da vida

O humanismo de Montaigne ao contraacuterio do humanismo dominante alicerccedila-se

na ldquomiseria hominisrdquo5 Parte de plena consciecircncia dos limites da razatildeo humana no

sentido de que as suas faculdades natildeo tecircm condiccedilotildees para transcender estes mesmos

limites A razatildeo o grande orgulho do homem eacute concebida como uma estrateacutegia de

racionalizaccedilatildeo dos vaacuterios elementos da vida (costumes crenccedilas etc) que procura

transformar atribuindo-lhe uma verdade que natildeo consegue transcender a contingecircncia

Potildee-se assim em destaque ateacute que ponto a posiccedilatildeo de Montaigne contrasta com a visatildeo

de ldquodignitas hominisrdquo acima referida a mais comummente assumida na sua eacutepoca Para

ele o homem soacute pode ser o que eacute e imaginar de acordo com a sua medida

ldquo[C] Tout contentement des mortels est mortel [A] La reconnoissance de nos parens de nos enfants et de nos amis si elle nous peut toucher et chatouiller en lrsquoautre monde si nous tenons encore agrave un tel plaisir nous sommes dans les commoditez terrestres et finies Nous ne pouvons dignement concevoir la grandeur de ces hautes et divines promesses si nous les pouvons aucunement concevoir pour dignement les imaginer il

4 Para ilustrar as principais caracteriacutesticas desta concepccedilatildeo vale a pena citar um texto muito conhecido de um dos maiores representantes do humanismo renascentista Pico della Mirandola O texto em causa pode ser considerado como uma espeacutecie de manifesto do pensamento humanista renascentista em geral Pico exalta o homem entre todos os seres da natureza e dos ceacuteus como um ser potencialmente capaz de auto-criar-se de auto-projectar-se e de modelar-se a si mesmo com liberdade Pico ldquocoloca na boca de Deusrdquo algumas palavras endereccediladas imaginativamente ao homem receacutem-criado (Adatildeo) ldquo[hellip] Medium te munde posui ut circumspiceres inde commodius quicquid est in mundo Nec te caelestem neque terrenum neque mortalem neque immortalem fecimus ut tui ipsius quasi arbitrarius honorarius que plastes et fictor in quam malueris tute formam effingas Poteris in inferiora quae sunt bruta degenerare poteris in superiora quae sunt divina ex tui animi sententia regenerarirdquo (Coloquei-te no meio do mundo para que daiacute possas olhar melhor tudo o que haacute no mundo Natildeo te fizemos celeste nem terreno nem mortal nem imortal a fim de que tu aacuterbitro e soberano artiacutefice de ti mesmo te plasmasses e te informasses na forma que tivesses seguramente escolhido Poderaacutes degenerar ateacute aos seres que satildeo as bestas poderaacutes regenerar-te ateacute agraves realidades superiores que satildeo divinas por decisatildeo do teu acircnimo) In Pico de la Mirandola Giovanni Oratio de Hominis Dignitate Ediccedilatildeo bilingue Traduccedilatildeo e introduccedilatildeo de Maria de Lurdes Sirgado Ganho Lisboa Ediccedilotildees 70 2001 pp 56-57) 5Para uma apresentaccedilatildeo sinteacutetica e clara deste tema pode-se consultar Friedrich Hugo Montaigne Traduzido do alematildeo por Robert Rovini Paris Gallimard 1967 sobretudo as paacuteginas 133-136 Nesta mesma perspectiva na obra de Rui Bertrand Romatildeo A Apologia na balanccedila a reinvenccedilatildeo do pirronismo na Apologia de Raimundo Sabunde de Michel de Montaigne Lisboa Imprensa Nacional Casa da Moeda 2007 haacute uma reflexatildeo que merece ser lida (pp 79-82)

10

faut les imaginer inimaginables indicibles incomprehensibles [C] et parfaictement autres que celles de nostre miserable experiencerdquo6

Constatando esse limite da razatildeo humana Montaigne combate decididamente as

concepccedilotildees da ldquodignitas humanisrdquo que tecircm como escopo transformar o homem no fim

uacuteltimo da natureza Montaigne ao voltar-se para o homem concreto ao rebaixaacute-lo e

tiraacute-lo do seu pedestal na ldquoApologierdquo assume uma atitude ceacuteptica entendida como

uma forma de pensamento capaz de seguir a mudanccedila e de rejeitar ao mesmo tempo a

pretensatildeo do homem de se considerar por via da razatildeo no centro do universo

Cabe entatildeo perguntar seraacute que o homem ocupa realmente um lugar central nos

Essais A resposta a esta questatildeo eacute expressa de maneira bastante niacutetida na proacutepria

obra Friedrich no seu conhecido trabalho sobre Montaigne afirma

ldquo[A] On peut ouvrir les Essais ougrave lrsquoon veut toujours ils traitent de lrsquohommerdquo7

Haacute muitos outros temas desenvolvidos nos Essais Basta lanccedilar um raacutepido olhar

sobre os tiacutetulos dos vaacuterios ensaios que compotildeem os trecircs livros da obra para constatar a

quantidade enorme de assuntos tratados por Montaigne

Na sua busca incessante de resposta agrave questatildeo central antes referida merece ser

destacado o contacto de Montaigne com a obra de Sebond Theologia Naturalis que seraacute

a base da ldquoApologierdquo Entre muitas outras questotildees desenvolvidas nesta obra o teoacutelogo

catalatildeo tem como objectivo importante responder agrave questatildeo o que eacute o homem Citando

o proacuteprio Sebond Rui Bertrand Romatildeo afirma que haacute uma ideia baacutesica de ordem

hieraacuterquica observada na scala naturale em todos os seus 4 degraus

ldquoNo inferior estatildeo as coisas apenas providas de ser as coisas minerais no segundo as que tecircm ser e vida as vegetais no terceiro as animais em que ao ser e agrave vida se juntam os sentidos no uacuteltimo encontra-se a criatura humana acima da qual natildeo haacute na natureza nenhum outro ser pois o homem possui as qualidades de todas as demais criaturas simultaneamente e em conjunto tendo aleacutem delas a razatildeo e o livre-arbiacutetrio [hellip]rdquo8

Continua o autor mais adiante

ldquo[hellip] A caracteriacutestica dominante da teologia de Sebond consiste precisamente no lugar privilegiado que nela ocupa a referecircncia do homem natildeo apenas como objecto de conhecimento mas como meio da

6 Les Essais II 12 p518 7 Friedrich op cit p 105 8 Romatildeo Rui Bertrand op cit p 90

11

obtenccedilatildeo deste A reflexatildeo antropoloacutegica polariza o seu pensamento filosoacutefico e lhe contamina o sistema teoloacutegicordquo9

Eacute importante destacar aqui uma ideia desenvolvida por Ernst Cassirer na sua

obra Ensaio sobre o Homem10 Segundo este autor a questatildeo acerca do homem no

periacuteodo renascentista depara-se com a descoberta de um novo instrumento de

pensamento entra em cena o espiacuterito cientiacutefico no sentido moderno da palavra O que

agora se procura eacute uma teoria geral do homem baseada em observaccedilotildees empiacutericas e em

princiacutepios loacutegicos gerais A nova cosmologia o sistema heliocecircntrico copernicano

passa a ser a uacutenica base satilde e cientiacutefica para uma nova antropologia Nem a metafiacutesica

claacutessica nem a religiatildeo (com a sua estrutura teoacuterica fundada na teologia medieval)

estavam preparadas para esta tarefa lembra o autor Estas duas cosmologias concebem

o universo como uma ordem hieraacuterquica em que o homem ocupa o lugar mais alto A

pretensatildeo humana de ser o centro do universo perdeu o seu fundamento Cassirer afirma

ainda que o sistema de Copeacuternico se tornou um dos mais fortes instrumentos do

cepticismo filosoacutefico que se desenvolveu no seacuteculo XVI

Montaigne sendo um pensador livre que conseguiu libertar-se da concepccedilatildeo

antropoloacutegica medieval e renascentista tambeacutem natildeo necessitou de recorrer agraves ideias

cientiacuteficas vigentes na altura da redacccedilatildeo dos Essais Isto natildeo significa que tenha

ignorado por completo a teoria heliocecircntrica de Copeacuternico mas sim que como escreve

Conche

ldquoIl nrsquoa pas eu besoin de Copernic pour trouver ridicule la preacutetension de lrsquohomme de se faire centre du cosmos11

Antes de iniciar o seu longo relato (de mais ou menos uma meia centena de

paacuteginas) no qual compara os homens aos animais Montaigne faz uma afirmaccedilatildeo de

capital importacircncia que serve como uma espeacutecie de conclusatildeo antecipada daquilo que

afirma negativamente sobre o homem e sua relaccedilatildeo com o universo

ldquo[A] La presomption est nostre maladie naturelle et originelle La plus calamiteuse et fraile de toutes les creatures crsquoest lrsquohomme et quant et quant la plus orgueilleuse Elle se sent et se void logeacutee icy parmy la bourbe et le fient du monde attacheacutee et cloueacutee agrave la pire plus morte et croupie parti de lrsquounivers au dernier estage du logis et le plus esloigneacute de la voute celeste avec les animaux de la pire condition des trois (Les aeacuteriens les aquatiques et les terrestres) et se va plantant par

9 Idem p 113 10 Cassirer Ernst An essay on man Traduccedilatildeo portuguesa de Carlos Branco Ensaio sobre o homem Lisboa Guimaratildees Editores 1995 p24 11 Conche Marcel Montaigne et la philosophie Paris Puf 1996 p 7

12

imagination au dessus du cercle de la Lune et ramenant le ciel soubs ses pieds Crsquoest par la vaniteacute de cette mesme imagination qursquoil srsquoegale agrave Dieu qursquoil srsquoattribue les conditions divines qursquoil se trie soy mesme et separe de la presse des autres creatures taille les parts aux animaux ses confreres et compaignons et leur distribue telle portion de facultez et de forces que bon luy semble Comment cognoit il par lrsquoeffort de son intelligence les branles internes et secrets des animaux par quelle comparaison drsquoeux agrave nous conclue il la bestise qursquoil leur attribue [C] Quand je me joueuml agrave ma chatte qui sccedilait si elle passe son temps de moy plus que je ne fay drsquoellerdquo12

O homem quer ser senhor de todo o universo A sua atitude de querer ser uma

excepccedilatildeo na natureza natildeo passa de uma atitude ilusoacuteria O homem eacute segundo

Montaigne uma criatura como as outras que pode ser diferenciada natildeo pela capacidade

de raciocinar mas apenas pela presunccedilatildeo de querer destacar-se orgulhosamente

tornando-se ldquoo todo-poderosordquo face agraves outras criaturas Esta sua pretensatildeo de querer ser

a uacutenica criatura que pode conhecer e dominar o universo eacute radicalmente contestada por

Montaigne na ldquoApologierdquo Eacute com muita clarividecircncia que Conche reflectindo sobre

este tema afirma

ldquoOn voit pourquoi Montaigne srsquoefforce de retrouver chez lrsquoanimal ldquointelligencerdquo ldquodiscreacutetionrdquoldquojugementrdquoldquoratiocinationrdquo capaciteacute de ldquoconsulterrdquo de ldquoconcluirrdquo ldquoscience et prudencerdquo 13

Que tipo de competecircncia nossa natildeo reconhecemos nos actos dos animais Esta

questatildeo fundamental leva Montaigne a apresentar os seus relatos anedoacuteticos14 O

interesse da sua apologia dos animais eacute ldquo[hellip] paradoxalment lrsquohomme Montaigne

recherche lrsquohomme dans lrsquoanimal [hellip] crsquoest pour lutter contre lrsquoanthropocentrismerdquo15

Montaigne inicia a sua exposiccedilatildeo perguntando-se

ldquo[A] Est-il police regleacutee avec plus drsquoordre diversifieacutee agrave plus de charges et drsquooffices et plus constamment entretenueuml que celle des mouches agrave mielrdquo16

E faz questatildeo tambeacutem de descrever o engenho das andorinhas ao construiacuterem os

seus alojamentos e das aranhas ao confeccionarem as suas teias Diante destas obras

destes pequeninos animais Montaigne observa

12 Les Essais II 12 p 452 13 Conche Marcel Montaigne et la philosophie Paris Puf 1996 p 9 14 ldquoFidegravele aux proceacutedeacutes de compilation de son temps Montaigne accumule les exemples emprunteacutes agrave Pline agrave Plutarque agrave Arrien agrave Aulu-Gelle agrave Lucregravece agrave Virgile agrave Sextus Epiricusrdquo (cf Weiler Maurice Pour connaitre la penseacutee de Montaigne Bordas 1948 p 38) 15 Giocanti Sylvia Montaigne et les becirctes la becirctise et lrsquoanimal dans Les Essais de Montaigne Universiteacute de Toulouse 2011 p 1 16 Les Essais II 12 pp 454-455

13

ldquo[A] Nous reconnoissons assez en la pluspart de leurs ouvrages combien les animaux ont drsquoexcellence (supeacuterioriteacute) au dessus de nous et combien nostre art est foible agrave les imiterrdquo17

Quanto agrave capacidade de comunicaccedilatildeo Montaigne afirma que os animais

possuem este atributo Falamos com os catildees18 e eles respondem-nos Eacute evidente que

utilizamos uma outra linguagem para conversarmos com eles Montaigne observa que

tambeacutem entre noacutes humanos haacute diferenccedilas de linguagem de acordo com a diferenccedila de

regiotildees Estas diferenccedilas tambeacutem se encontram nos animais da mesma espeacutecie19

Segundo o nosso autor haacute certamente uma diferenccedila de ordem e de grau entre os

homens e os animais contudo ldquo[A] crsquoest soubs le visage drsquoune mesme naturerdquo20 Ao

constatar a peculiaridade do homem em face das outras criaturas Montaigne destaca o

facto de que o homem eacute detentor da liberdade de imaginaccedilatildeo No entanto

ldquo[A] ce desresglement de penseacutees luy representant ce qui est ce qui nrsquoest pas et ce qursquoil veut le faux et le veritable crsquoest un advantage qui luy est bien cher vendu et duquel il a bien peu agrave se glorifier car de lagrave naist la souce principale des maux qui le pressent pecheacute maladie irresolution (inconstance) trouble desespoirrdquo 21

Citando Lucreacutecio22 Montaigne deixa transparecer que o homem se prejudica a si

mesmo porque natildeo se manteacutem dentro dos limites da organizaccedilatildeo da natureza que se

manifesta de uma maneira inteligiacutevel e agraves vezes ateacute hostil submetendo o homem agrave

necessidade de leis que natildeo lhe satildeo suficientemente claras23

17 Les Essais II 12 p455 18 Les Essais II 12 p 458 19 Les Essais II 12 pp 458-459 20 Les Essais II 12 p459 21 Les Essais II 12 p 460 22ldquo[B] ldquores quaeque suo ritu procedit et ommes Foedere naturae certo discrimina servantrdquo (Chaque chose se deacuteveloppe agrave sa maniegravere et toutes conservent les diffeacuterences eacutetablies par lrsquoordre immuable de la nature) Cf Les Essais II 12 p 459 23 Expressando a sua visatildeo da natureza Montaigne observa que ao considerar que ela nos criou diferentes dos outros animais isto eacute nus sobre a terra nua atados cercados natildeo tendo com que armar-nos cobrir-nos [hellip] somos tentados a chamaacute-la de ldquotregraves injuste maracirctrerdquo Mas isto natildeo eacute assim A nossa organizaccedilatildeo do mundo natildeo eacute tatildeo disforme e desregrada A natureza abraccedilou universalmente todas as suas criaturas e natildeo haacute nenhuma que ela tenha provido plenamente de todos os meios necessaacuterios para a conservaccedilatildeo da existecircncia ldquo[C] crsquoest une mesme nature qui roule son coursrdquo(cf Les Essais II12 p467) Reflectindo sobre o tema da natureza nos Essais Pierre Villey afirma que ela se opotildee essencialmente agrave razatildeo humana e eacute natural tudo o que a razatildeo natildeo contaminou Afirma Villey ldquo[hellip] crsquoest chez les animaux et chez les sauvages qursquoon trouve les traces les moins corrompues de la nature Lrsquoeacutetat de nature dans cette conception radicale crsquoest lrsquoeacutetat de sauvagerie [hellip] Lrsquoadmiration pour les andiens crsquoest la forme paradoxale que prend chez lui de temps agrave autre son principe drsquoimitation de la naturerdquo (In Villey Pierre Les sources et lrsquoeacutevolution des essais de Montaigne - Tome second Paris Librairie Hachete 1908 p228) Isto natildeo quer dizer que devamos imitar os indiacutegenas por exemplo em todos os seus costumes tradiccedilotildees etc

14

Continuando a apologia dos animais Montaigne sugere que concebamos que os

animais natildeo obedecem a instintos de uma forma cega O relato que apresenta da raposa

da Traacutecia24 eacute um dos seus exemplos claacutessicos neste sentido Antes de se arriscar sobre a

aacutegua gelada a raposa aproxima o ouvido do gelo para ouvir de que profundidade sobre

o murmuacuterio da aacutegua a correr em baixo isto eacute ela ldquoraciocinardquo como fariacuteamos noacutes em

idecircnticas circunstacircncias o que faz barulho mexe o que mexe natildeo estaacute gelado o que natildeo

estaacute gelado eacute liacutequido e o liacutequido cede sob o peso Segundo Montaigne atribuir isto

simplesmente a uma vivacidade do sentido da audiccedilatildeo sem raciociacutenio e sem conclusatildeo

eacute uma quimera inconcebiacutevel

Segundo Montaigne natildeo eacute soacute o homem que sabe escolher o que eacute bom e o que

natildeo eacute bom para a sua vida e sobretudo para o socorro nas doenccedilas atraveacutes da ciecircncia e

do conhecimento construiacutedos por arte e por raciociacutenio

ldquo[A] Et quand nous voyons les chevres de Candie si elles ont receu un coup de traict aller entre un million drsquoherbes choisir le dictame pour leur guerison et la tortue quand elle a mangeacute de la vipere chercher incontinent de lrsquooriganum pour se purger et le dragon fourbir et esclairer ses yeux avecques du fenouil les cigouignes se donner elles mesmes des clysteres agrave tout de lrsquoeau de marine [hellip] pourquay ne disons nous de mesmes que crsquoest science et prudencerdquo25

Eacute faacutecil ver aqui quanto Montaigne deseja que o homem reconheccedila que os

animais possuem tambeacutem ciecircncia e sabedoria Em seu entender os animais tambeacutem satildeo

capazes de ser instruiacutedos agrave moda humana

ldquo[A] Les merles les corbeaux les pies les parroquets nous leur aprenons agrave parler [hellip] ils ont un discours au dedans qui les rend ainsi disciplinables et volontaires agrave aprendrerdquo26

Muitos animais aproximam-se da capacidade do homem e isto leva Montaigne a

afirmar

ldquo[A] qursquoil se trouve plus de difference de tel homme agrave tel homme que de tel animal agrave tel hommerdquo27

Podemos encontrar na ldquoApologierdquo muitos outros exemplos em que Montaigne

defende a ideia de que os animais possuem diversas capacidades semelhantes agraves dos

humanos28 Uma vez numerados todos estes atributos dos animais Montaigne afirma

24 Les Essais II 12 p 460 25 Les Essais II 12 pp 462-463 26 Les Essais II 12 p 463 27 Les Essais II 12 p 466

15

ldquo[A] La maniegravere de naistre drsquoengendrer nourrir agir mouvoir vivre et mourir des bestes estant si voisine de la nostre tout ce que nous retranchons de leurs causes motrices et que nous adjoustons agrave nostre condition au dessus de la leur cela ne peut aucunement partir du discours de nostre raisonrdquo29

Pierre Villey ao reflectir sobre estas comparaccedilotildees suscita uma questatildeo

relevante que natildeo eacute possiacutevel ignorar

ldquo[hellip] quand il exalte lrsquointeligence des animaux on peut se demander ce qursquoil en pense au justerdquo30

Natildeo querendo entrar na discussatildeo deste assunto - ateacute porque o proacuteprio

Montaigne natildeo o fez - eacute importante notar que se estes relatos montaigneanos fossem

tomados agrave letra natildeo nos faltariam motivos de troccedila Poderiacuteamos duvidar de muitas

afirmaccedilotildees acerca dos animais apresentadas por ele Fazendo um esforccedilo por deixar agrave

margem os exageros o humor e a liberdade literaacuteria do autor ndash que tecircm como objectivo

rebaixar o homem recolocando-o entre os animais e mostrando-lhe que a sua razatildeo

grande motivo de orgulho natildeo lhe garante um lugar no topo da piracircmide das criaturas ndash

o que importa destacar eacute que Montaigne pretende acentuar uma grande semelhanccedila

entre os homens e os animais

ldquo[A] Nous ne sommes ny au dessus ny au dessoubs du reste tout ce qui est sous le ciel dit le sage court une loy et fortune pareille [B] Indupedita suis fatalibus omnia vinclis (Toutes les choses sont enchaineacutes par les liens de leur propre destineacutee)rdquo31

28 Vejamos resumidamente outros atributos dos animais destacados pelo autor os catildees que servem aos cegos tanto nos campos como nas cidades catildees que representavam papeacuteis no teatro (p463) bois que serviam nos jardins reais de Susa (p464) nos espectaacuteculos de Roma viam-se elefantes treinados em movimentar-se e em danccedilar (p465) a pega que imitava com a voz tudo o que ouvia (p464) os elefantes que tecircm alguma participaccedilatildeo religiosa (p468) formigas que tecircm um jeito muito especial de comunicaccedilatildeo muacutetua (p469) o ouriccedilo que prevecirc a direcccedilatildeo do vento (p469) o camaleatildeo e o polvo que mudam de cor conforme a ocasiatildeo (p469) o voo dos paacutessaros que eacute resultado natildeo apenas da organizaccedilatildeo natural mas tambeacutem do entendimento consentimento e raciociacutenio (p469) os animais que servem seus donos sabem amaacute-los defendecirc-los (p461) o catildeo o cavalo sabem prezar amizade (p471) os animais satildeo muito mais regrados do que noacutes e se contecircm com muito mais moderaccedilatildeo nos limites que a natureza nos prescreveu (p472) os animais natildeo promovem a guerra (p473) o catildeo eacute mais fiel do que o homem (p476-7) quanto agrave gratidatildeo os animais tecircm esta capacidade (p477-8) os atuns tecircm conhecimentos geomeacutetricos astronoacutemicos e aritmeacuteticos (p479-480) o elefante tem a capacidade de arrependimento e reconhecimento dos erros (p480) o tigre tem capacidade de ser clemente (p480) enfim Montaigne atribui todas estas caracteriacutesticas e outras mais aos animais mostrando que elas satildeo erradamente consideradas como unicamente posse dos humanos 29 Les Essais II 12 p 470 30 Villey op cit p 186 31 Les Essais II 12 p 459

16

Desta perspectiva podemos compreender melhor a razatildeo do ldquodestronamentordquo

deste ser ldquotodo-poderosordquo que eacute o homem levado a cabo por Montaigne32

Depois de ter destacado a ideia de que o homem se assemelha aos animais e

vice-versa Montaigne sustenta que a forma corporal do homem eacute o que constitui a sua

peculiaridade face aos animais Eacute ela que ldquodefinerdquo a identidade do homem

ldquo[B] Ce nrsquoest donc pas par la raison par le discours et par lrsquoame que nous excellons sur les bestes crsquoest par nostre beauteacute nostre beau teint et nostre belle disposition de membres pour laquelle il nous faut mettre nostre intelligence nostre prudence et tout le reste agrave lrsquoabandonrdquo33

A sugestatildeo de Montaigne eacute que o homem natildeo pode ser pensado sem o seu corpo

elemento essencial de sua condiccedilatildeo humana O homem natildeo pode continuar a ser

concebido apenas como ser racional Montaigne potildee em causa a claacutessica concepccedilatildeo de

que soacute o homem eacute constituiacutedo de racionalidade O seu objectivo natildeo eacute encontrar uma

nova definiccedilatildeo do homem natildeo deseja decretar a inferioridade do homem nem tampouco

a sua superioridade face aos animais Natildeo tem em vista promover uma competiccedilatildeo

ridiacutecula entre os seres da natureza Montaigne sente-se incapaz de dar qualquer

definiccedilatildeo com o auxiacutelio da razatildeo humana Ignora qual eacute a essecircncia dos animais natildeo os

conhece Da mesma forma podemos dizer que agrave luz da ldquoApologierdquo Montaigne natildeo

consegue definir o homem Natildeo eacute possiacutevel elaborar juiacutezos constantes e uniformes nem

sobre o homem nem a partir dele

Dito de outra forma o ldquocepticismo da razatildeordquo que Montaigne assume

conscientemente visa rejeitar a pretensatildeo do homem de se considerar por via da razatildeo

no centro do universo

Montaigne com os seus ensaios quer ir directo agraves coisas e aos homens Eacute claro

que teve pouco contacto com o chamado movimento cientiacutefico do seu tempo Longe de

32 Friedrich ao analisar a questatildeo do lugar que segundo Montaigne corresponde ao homem diz ldquoA la question de savoir quelle place occupe lrsquohomme dans la totaliteacute du monde existent Montaigne ne donnera jamais la reacuteponse plotinienne selon laquelle il serait dans la chaicircne des ecirctres eacutemaneacutes un dernier maillon reacutetablissant la communication avec la source de lrsquoeacutemanation lrsquoUm primordial Ni la reacuteponse chreacutetienne selon laquelle lrsquohomme constituerait le couronnement terrestre de la creacuteation tout le creacutee lui eacutetant subordonneacute et Dieu eacutetant alleacute pour lui jusqursquoagrave se reacutesoudre agrave intervenir dans lrsquohistoire du salut Lrsquohomme de Montaigne est plutocirct un point dans lrsquounivers sans espoir que le destin ni la diviniteacute srsquointeacuteresse jamais agrave lui Il partage cette insignifiance de point avec le milieu dans lequel il vit patrie Eacutetat continent terre animaux et plantes Il nrsquoest plus un centre il est plongeacute dans la multitude de tout ce qui existe ignorant ce qui lrsquoen distingue et srsquoy sentant cheacutetif - bien preacuteserveacute pourtant au coeur de son insignifiance de son ignorance et deacutechargeacute de tout embarras Il y a au fond de cette penseacutee des ideacutees de Lucregravece Montaigne les transforme pour leur faire exprimer sa propre conscience de la vie dont il preacutecise les grandes lignes en la deacutelimitant par rapport aux affirmations posant la digniteacute de la nature humaine (cf op cit p131) 33 Les Essais II 12 p 486

17

toda a construccedilatildeo teoacuterica esforccedila-se por encontrar nele mesmo e nos outros o homem

tal como eacute sem o falso semblante que lhe acrescentam as pretensiosas doutrinas que o

definem pela sua relaccedilatildeo com o universo e com Deus

18

2 A criacutetica agrave razatildeo humana e a questatildeo da religiatildeo

Segundo Montaigne as pessoas que se gabam do conhecimento estatildeo sempre a

tentar explicar quais satildeo os atributos de Deus atraveacutes de complicados conceitos e

demonstraccedilotildees ininteligiacuteveis Em seu entender Deus e as verdades da religiatildeo satildeo

nitidamente questotildees de feacute e natildeo noccedilotildees filosoacuteficas Que isto eacute assim prova-o o facto de

que estas noccedilotildees satildeo sempre muito diversas e originam muita discoacuterdia entre os

inuacutemeros autores que delas se ocupam Uma coisa eacute Deus e outra coisa totalmente

diferente eacute o que pensam os homens a respeito de Deus

ldquo[A] Il ma tousjours sembleacute quagrave un homme Chrestien cette sorte de parler est pleine dindiscretion et dirreverence Dieu ne peut mourir Dieu ne se peut desdire Dieu ne peut faire cecy ou cela Je ne trouve pas bon denfermer ainsi la puissance divine soubs les loix de nostre parolle Et lapparence qui soffre agrave nous en ces propositions il la faudroit representer plus reveremment et plus religieusementrdquo34

ldquo[A] Dieu ne peut faire les mortels immortels ny revivre les trespassez ny que celuy qui a vescu nait point vescu celuy qui a eu des honneurs ne les ait point eus nayant autre droit sur le passeacute que de loubliance [hellip] Voylagrave ce quil dict et quun Chrestien devroit eviter de passer par sa bouche Lagrave ougrave au rebours il semble que les hommes recherchent cette fole fierteacute de langage pour ramener Dieu agrave leur mesure [hellip]nostre parole le dict mais nostre intelligence ne lrsquoapprehende pointrdquo35

Para compreender o lugar e o valor da razatildeo na ldquoApologierdquo eacute necessaacuterio

investigar os motivos que levaram o autor a tecer uma criacutetica tatildeo contundente da razatildeo

humana aprofundando em concreto as relaccedilotildees que esta criacutetica tem com a sua anaacutelise

da religiatildeo e com o poder de Deus expresso em todo o desenvolvimento do texto Para

esta abordagem teremos como base o preacircmbulo da ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo36

A ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo eacute o mais longo capiacutetulo da obra Les Essais

Neste texto Montaigne propotildee-se apresentar a ldquodefesa de um teoacutelogordquo do seacuteculo XVI

Montaigne comeccedila por caracterizar a situaccedilatildeo histoacuterica na qual a obra de

Sebond chegou agraves matildeos de seu pai por intermeacutedio do humanista Pierre Brunel (1499-

1546)37 Segundo Montaigne trata-se de um livro adequado para a eacutepoca Isto porque as

34 Les Essais II 12 p 527 35 Les Essais II 12 p 528 36 Cf Les Essais II 12 pp 438-449 Montaigne sobretudo nestas paacuteginas iniciais opotildee a religiatildeo agrave razatildeo humana demonstrando por um lado a incapacidade e os limites desta faculdade que eacute motivo de orgulho do homem e por outro esse ldquoinstrumentordquo de conhecimento ligado agrave graccedila divina que eacute a feacute 37 Montaigne admirava muito este humanista que gozava de grande reputaccedilatildeo na sua eacutepoca por causa de seu saber (Les Essais II 12 p 439)

19

novidades de Lutero comeccedilavam a estar em voga e a abalar em muitos lugares a antiga

crenccedila cristatilde38 Para Montaigne que era um pensador catoacutelico conservador a Reforma

Protestante era vista como algo perigoso para a religiatildeo estabelecida Globalmente natildeo

concordava com as contestaccedilotildees provocadas pelo espiacuterito da Reforma sobretudo porque

poderiam levar os homens agrave praacutetica do ateiacutesmo especialmente os menos doutos

Uma leitura do texto potildee de imediato em evidecircncia em que medida Montaigne se

distancia de Sebond em termos argumentativos Parafraseando Villey a defesa de

Sebond seraacute rapidamente esquecida39 Montaigne observa que surgiram entretanto

algumas objecccedilotildees ao livro de Sebond e anuncia no iniacutecio do ensaio o seu propoacutesito de

refutaacute-las Montaigne deseja defender Sebond destes dois tipos de adversaacuterios por um

lado os que consideram que os cristatildeos erram ao querer apoiar com razotildees humanas a

sua crenccedila que soacute se concebe por feacute e por uma inspiraccedilatildeo particular da graccedila divina

Estes satildeo os que subestimam a importacircncia da razatildeo Satildeo considerados fideiacutestas

pessoas que pensam que a verdade em religiatildeo estaacute em uacuteltima instacircncia baseada na feacute

em vez de no raciociacutenio ou na evidecircncia Por outro lado estatildeo os que dizem que os

argumentos de Sebond satildeo fracos e inadequados para demonstrar o que pretendem e se

dispotildeem a atacaacute-los facilmente Estes satildeo os que subestimam a importacircncia da feacute

Consideremos em primeiro lugar a atitude dos primeiros opositores Natildeo seria

correcto querer apoiar com razotildees humanas a crenccedila ldquo[A] qui ne se conccediloit que par foy

et par une inspiration particuliere de la grace divinerdquo40 Estes primeiros opositores de

Sebond satildeo os partidaacuterios da posiccedilatildeo ortodoxa catoacutelica Montaigne lembra que estes

teoacutelogos catoacutelicos satildeo movidos sobretudo por uma visatildeo piedosa

ldquo[A] En cette objection il semble quil y ait quelque zele de pieteacute et agrave cette cause nous faut-il avec autant plus de douceur et de respect essayer de satisfaire agrave ceux qui la mettent en avantrdquo41

Em face destas primeiras criacuteticas agrave obra do teoacutelogo catalatildeo Montaigne natildeo se

inibe de expressar as suas proacuteprias tomadas de posiccedilatildeo

ldquo[A]Toutefois je juge ainsi quagrave une chose si divine et si haultaine et surpassant de si loing lhumaine intelligence comme est cette veriteacute de laquelle il a pleu agrave la bonteacute de Dieu nous esclairer il est bien besoin quil nous preste encore son secours dune faveur extraordinaire et privilegeacutee pour la pouvoir concevoir et loger en nous et ne croy pas que

38 Cf Les Essais II 12 p 439 39 Villey op cit p 183 40 Les Essais II 12 p 440 41 Les Essais II 12 p 440

20

les moyens purement humains en soyent aucunement capables et sils lestoient tant dames rares et excellentes et si abondamment garnies de forces naturelles eacutes siecles anciens neussent pas failly par leur discours darriver agrave cette connoissance Cest la foy seule qui embrasse vivement et certainement les hauts mysteres de nostre Religionrdquo42

Ao abordar esta questatildeo Montaigne reconhece que natildeo estaacute capacitado para

levar a cabo tal empreendimento Esta seria uma tarefa mais adequada para um homem

versado em teologia assunto de que ele pessoalmente diz nada saber43 Mesmo assim

expressa uma vez mais a sua criacutetica radical aos que utilizam a razatildeo para apresentarem

argumentos apologeacuteticos em defesa das verdades sobre Deus e sobre a religiatildeo

Montaigne eacute um catoacutelico44 Sobre isto os Essais natildeo deixam duacutevida Natildeo eacute este o

momento de entrar na discussatildeo acerca de como viveu ou deixou de viver a sua

religiosidade O importante eacute que como catoacutelico aceita que haacute um Deus uacutenico criador

do ceacuteu e da terra Em vaacuterios momentos tanto na ldquoApologierdquo como em outros ensaios

Montaigne daacute a entender que a verdade estaacute em Deus e natildeo eacute propriedade dos homens

filoacutesofos ou teoacutelogos Noutras palavras a verdade eacute revelada e o homem sem o auxiacutelio

de Deus nunca a encontraria A razatildeo humana natildeo tem condiccedilotildees para elaborar

raciociacutenios crediacuteveis sobre estas verdades reveladas Para sustentar a tese que a razatildeo eacute

impotente neste domiacutenio Montaigne dedica um nuacutemero importante de paacuteginas em toda

a sua obra a desenvolver a ideia de que alguns filoacutesofos antigos reflectiram muito sobre

a possibilidade do conhecimento sobre Deus e fizeram afirmaccedilotildees que satildeo

absolutamente carentes de sentido Isto natildeo passou de uma ldquo[C] tintamarre de tant de

42 Les Essais II 12 p 440-441 43 ldquoCe seroit mieux la charge drsquoun homme verseacute en Theologie que de moy qui nrsquoy sccedilay rienrdquo(Les Essais II 12 p 440) 44 Montaigne declara-se catoacutelico foi um catoacutelico que durante toda a sua vida procurou cumprir os ritos lituacutergicos convencionais da Igreja Catoacutelica A sua posiccedilatildeo ceacuteptica parece enquadrar-se no fideiacutesmo como veremos Mas haacute que salientar que em algumas questotildees morais independentes das suas praacuteticas rituais ou seja na sua vida praacutetica Montaigne natildeo tem muito em consideraccedilatildeo a lista de exigecircncias eacuteticas do catolicismo romano Parece que falta agrave concepccedilatildeo religiosa de Montaigne algum sentimento religioso limita-se a uma espeacutecie de praacutetica do ritualismo exigido pela Igreja Catoacutelica Ele seria catoacutelico por uma questatildeo de conveniecircncia intelectual A sua praacutetica lituacutergica ritualiacutestica natildeo exerce grande influecircncia sobre o seu pensamento filosoacutefico Ele eacute um pensador completamente livre face agrave doutrina da Igreja E isto distingue-o substancialmente dos teoacutelogos que integram o corpo doutrinal na Igreja Montaigne pensava e exprimia estes pensamentos com plena liberdade Manifesta aleacutem disso alguma confianccedila na Igreja na religiatildeo na tradiccedilatildeo e nos costumes que contribuiacuteram para a sua formaccedilatildeo e que satildeo de alguma maneira parte constitutiva de sua identidade E na realidade quis apostar naquilo com o qual estava mais familiarizado ldquo[B] Nous sommes Chrestiens agrave mesme titre que nous sommes ou Perigordins ou Alemansrdquo(Les Essais II 12 p 445) No entanto quando comeccedilamos a estabelecer um maior contacto com os Essais percebemos que Montaigne natildeo eacute um catoacutelico que confie cegamente na doutrina da Igreja Muito pelo contraacuterio eacute extremamente consciente dos problemas do catolicismo e da sua doutrina bem como dos costumes em geral E acima de tudo tem perfeita consciecircncia de que a sua confianccedila eacute uma crenccedila e natildeo uma certeza filosoacutefica

21

cervelles philosophiquesrdquo45 Segundo Montaigne de todas as ideias humanas e antigas

no tocante agrave religiatildeo

ldquo[A]celle lagrave me semble avoir eu plus de vray-semblance et plus dexcuse qui reconnoissoit Dieu comme une puissance incomprehensible origine et conservatrice de toutes choses toute bonteacute toute perfection recevant et prenant en bonne part lhonneur et la reverence que les humains luy rendoient soubs quelque visage sous quelque nom et en quelque maniere que ce futrdquo46

Trata-se de belas afirmaccedilotildees que querem expressar quais satildeo os principais

atributos de Deus Satildeo uma tentativa racional que tem como meta explicar quem eacute Deus

Ao comentar esta passagem da ldquoApologierdquo Conche pergunta-se que significam estas

palavras E baseado na leitura que faz de Montaingne afirma que aplicadas a Deus

natildeo podemos saber o que realmente significam47

Montaigne questiona o facto de muitos homens pretenderem edificar um

discurso baseado na razatildeo para justificar as verdades reveladas as quais segundo ele soacute

poderatildeo encontrar os verdadeiros alicerces na feacute Vejamos como Conche

sinteticamente analisa esta questatildeo a partir da ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo

ldquoNous croyons penser Dieu En reacutealiteacute nous ne faisons que projeter hors de nous des qualiteacutes humaines que nos avons [hellip] Lrsquohomme ne peut concevoir Dieu qursquoagrave partir de lui-mecircme Or il y a entre lrsquohomme et Dieu un abicircme qualitatif Le Dieu dont on parle et duquel on raisonne nrsquoest qursquoun produit de lrsquoanthropomorphisme La raison loin de nous eacutelever agrave Dieu le ramegravene agrave notre mesure [hellip] En tout cela Dieu est encore conccedilu par analogie avec lrsquohomme et la puissance divine enfermeacutee ldquosous les lois de notre parolerdquo Assujettir Dieu agrave nos principes rationnels crsquoest lrsquoassujettir agrave la raison humaine Lrsquohomme ne peut penser au-delagrave de lui mecircme Du vrai Dieu on ne peut rien penser ni rien dire Il nrsquoy a pas drsquoideacutee de Dieu [hellip] La notion de Dieu nrsquoest pas une notion philosophiquerdquo48

Embora critique estes opositores de Sebond Montaigne afirma ao mesmo tempo

que o empenho em justificar a feacute pela razatildeo eacute uma iniciativa louvaacutevel Chega mesmo a

afirmar que esta tarefa poderia ser considerada como o uso mais honroso que o homem

cristatildeo poderia dar agrave razatildeo Por outras palavras eacute uma atitude nobre a que leva o cristatildeo

a querer embelezar perceber e ampliar a verdade de sua crenccedila por meio de todos os

estudos e reflexotildees Montaigne observa entretanto que eacute preciso fazer acompanhar a

45 Les Essais II 12 p 516 46 Les Essais II 12 p 513 47 Cf Conche Marcel Montaigne ou la conscience heureuse Paris Puf 2009 p 55 48 Idem pp 55-56

22

nossa feacute de toda a razatildeo que haacute em noacutes mas sempre com a ressalva de natildeo pensar que

seja de noacutes que ela depende nem que os nossos esforccedilos e argumentos possam atingir

uma tatildeo ldquo[A] supernaturelle et divine sciencerdquo49 O autor dos Essais insistiraacute muito

neste aspecto

ldquo[A] Si elle nentre chez nous par une infusion extraordinaire si elle y entre non seulement par discours mais encore par moyens humains elle ny est pas en sa digniteacute ny en sa splendeur Et certes je crain pourtant que nous ne la jouyssions que par cette voye Si nous tenions agrave Dieu par lentremise dune foy vive si nous tenions agrave Dieu par luy non par nous si nous avions un pied et un fondement divin les occasions humaines nauroient pas le pouvoir de nous esbranler comme elles ont [hellip]rdquo50

Sem duacutevida Montaigne ao questionar o poder da razatildeo humana procura

defender a feacute cristatilde Os argumentos tidos como ceacutepticos que estatildeo presentes na

ldquoApologierdquo tecircm como objectivo provar que soacute atraveacutes da intervenccedilatildeo divina e natildeo com

nossos proacuteprios meios racionais podemos ter acesso agrave verdade Apresenta vaacuterios

exemplos para que entendamos com mais clarividecircncia a sua reflexatildeo acerca deste

assunto

ldquo[C] Lrsquohomme est bien insenseacute Il ne sccedilauroit forger un ciron et forge des Dieux agrave douzainesrdquo51

O homem quer descrever Deus mas na verdade descreve-se a si mesmo Isto

demonstra a sua incapacidade e a sua falta de sabedoria

ldquo[B] Nous avons vie raison et liberteacute estimons la bonteacute la chariteacute et la justice ces qualitez sont donc en luy Somme le bastiment et le desbastiment les conditions de la diviniteacute se forgent par lhomme selon la relation agrave soy Quel patron et quel modele Estirons eslevons et grossissons les qualitez humaines tant quil nous Plaira enfle toy pauvre homme et encore et encore et encore Non si te ruperis inquit (ldquoNon pas mecircme quand tu cregraveverais dit-ilrdquo (Hor Sal II III 318) Crsquoest la fable de la grenouille qui veut se faire aussi grosse que le boeuf)rdquo52

Eacute interessante notar que ao mesmo tempo que pretende fazer a apologia da feacute cristatilde Montaigne critica os cristatildeos que natildeo satildeo ldquofieacuteisrdquo aos ensinamentos da Sagrada Escritura

ldquo[B] Voulez vous voir cela Comparez nos moeurs agrave un Mahometan agrave un Payen vous demeurez tousjours au dessoubs lagrave ougrave au regard de lavantage de nostre religion nous devrions luire en excellence dune extreme et incomparable distance et devroit on dire Sont ils si justes si

49 Les Essais II 12 p 441 50 Les Essais II 12 p 441 51 Les Essais II 12 p 530 52 Les Essais II 12 p 531

23

charitables si bons ils sont donq Chrestiens [C] La marque peculiegravere de nostre veriteacute devroit estre nostre vertu comme elle est aussi la plus celeste marque et la plus difficile et que cest la plus digne production de la veriteacuterdquo53

Para Montaigne os cristatildeos constituem uma espeacutecie de contratestemunho de sua

feacute Fazendo uma referecircncia ao texto da Sagrada Escritura algo muito raro nos Essais o

autor afirma que se tiveacutessemos um uacutenico pingo de feacute54 moveriacuteamos as montanhas de

seu lugar E neste sentido lembra-nos

ldquo[A] nos actions qui seroient guideacutees et accompaigneacutees de la diviniteacute ne seroient pas simplement humaines elles auroient quelque chose de miraculeux comme nostre croyancerdquo55

Para os que subestimam a importacircncia da razatildeo isto eacute para os primeiros

opositores de Sebond ou os fideiacutestas os cristatildeos erram ao quererem apoiar as suas

crenccedilas que soacute se concebem por meio da feacute e por inspiraccedilatildeo particular da graccedila divina

Estes satildeo os que pensam que a verdade em religiatildeo estaacute em uacuteltima instacircncia baseada na

feacute em vez de no raciociacutenio ou na evidecircncia Segundo Montaigne trata-se de uma

concepccedilatildeo bonita e ateacute piedosa Chega inclusivamente a exemplificar esta atitude e a

citar um caso de algueacutem que foi desviado dos erros da incredulidade atraveacutes da leitura

da obra de Sebond

ldquo[A] Je sccedilay un homme dauthoriteacute nourry aux lettres qui ma confesseacute avoir esteacute rameneacute des erreurs de la mescreance par lentremise des argumens de Sebond Et quand on les despouillera de cet ornement et du secours et approbation de la foy et quon les prendra pour fantasies pures humaines pour en combatre ceux qui sont precipitez aux espouvantables et horribles tenebres de lirreligion ils se trouveront encores lors aussi solides et autant fermes que nuls autres de mesme condition quon leur puisse opposer [hellip]rdquo56

53 Les Essais II 12 p 442 54 Provavelmente Montaigne estaacute a aludir a textos da Sagrada Escritura especialmente do Evangelho ldquoSi vraiment vous avez de la foi gros come une graine de moutarde vous diriez agrave ce sycomore ldquoDeacuteracine-toi et va te planter dans la merrdquo et il vous obeacuteiraitrdquo (Lc 17 6) Car en veacuteriteacute je vous le deacuteclare si un jour votre foi est semblable agrave un grain de moutarde vous diriez agrave cette montagne ldquoPasse drsquoici lagrave-basrdquo et elle y passera Rien ne vous sera impossiblerdquo (Mt 17 20) (In Nouveau Testament Traduction Oecumeacutenique de la Bible Paris PUF 1977 pp 91 e 253 55 Les Essais II 12 p 442 56 Les Essais II 12 p 447-448

24

No entanto mesmo tendo em consideraccedilatildeo a importacircncia da Teologia Natural

sebondiana Montaigne toma um certo partido pelo lado dos fideiacutestas57 seus opositores

Em seu entender a razatildeo humana natildeo eacute capaz de conduzir o homem agrave feacute

Montaigne num dado momento refere-se agraves guerras58 que oprimiam a sua

naccedilatildeo Ele propotildee uma possiacutevel explicaccedilatildeo destes tormentos que assolavam a Franccedila

que tem muito a ver com a questatildeo de fundo tratada na ldquoApologierdquo Escreve

ldquo[A] Les hommes y sont conducteurs et srsquoy servent de la religion ce devroit estre tout le contrairerdquo59

Assim se compreende por que razatildeo Montaigne aleacutem de criticar aqueles que

queriam instrumentalizar a razatildeo para justificar as verdades reveladas repudia a noccedilatildeo

daqueles que se dedicam excessivamente agrave religiatildeo e que tecircm como meta principal a

satisfaccedilatildeo das paixotildees e da vaidade

ldquo[C] Je voy cela evidemment que nous ne prestons volontiers agrave la devotion que les offices qui flattent noz passions Il nest point dhostiliteacute excellente comme la Chrestienne Nostre zele fait merveilles quand il va secondant nostre pente vers la haine la cruauteacute lambition lavarice la detraction la rebellion A contrepoil vers la bonteacute la benigniteacute la temperance si comme par miracle quelque rare complexion ne ly porte il ne va ny de pied ny daile Nostre religion est faicte pour extirper les vices elle les couvre les nourrit les incite [A] Il ne faut point faire barbe de foarre agrave Dieu (comme on dict) Si nous le croyons je ne dy pas par foy mais dune simple croyance voire (et je le dis agrave nostre grande confusion) si nous le croyons et cognoissions comme une autre histoire comme lun de nos compaignons nous laimerions au dessus de toutes autres choses pour linfinie bonteacute et beauteacute qui reluit en luy au moins marcheroit il en mesme reng de nostre affection que les richesses les plaisirs la gloire et nos amis raquo60

Montaigne demonstra uma certa irritaccedilatildeo em face da instrumentalizaccedilatildeo da

religiatildeo para certos objectivos particulares Em seu entender a devoccedilatildeo religiosa natildeo

57 Ao reflectir sobre o fideiacutesmo presente na ldquoApologierdquo Friedrich diz-nos que Montaigne assume um fideiacutesmo isento da nostalgia miacutestica O seu fideiacutesmo significa uma tomada de consciecircncia intelectual dos limites humanos limites estes que natildeo deseja ultrapassar Seu fideiacutesmo eacute de uma espeacutecie negativa isto eacute eacute a certeza da incerteza O mesmo autor observa ainda que a ldquoteologiardquo de Montaigne representa um desvio para ir ao conhecimento do homem no interior do mundo Montaigne precisa de se distanciar de Deus para se assegurar da pequenez do homem na qual ele vai se instalar (cf op cit p 117) 58 Tudo indica que Montaigne estaacute a falar das guerras civis e religiosas do seacuteculo XVI Citando o famoso historiador francecircs M de Chacircteaubriand Laschamps na sua monumental obra Michel de Montaigne editada em 1855 afirma que estas guerras ldquoont dureacute trente-neuf ans elles ont engendre les massacres de la Saint Bartheacutelemy verseacute le sang de plus de deux millions de Franccedilais et deacutevoreacute plus de trois milliards de notre monnaie actuelle Elles ont produit la saisie et la vente des biens de lrsquoEacuteglise et des particulieres frappeacute deux rois de mort violente Henri III et Henri IV et commenceacute le procegraves criminal du premier de ces deux roisrdquo (cf Laschamps F Bigorie de Michel de Montaigne Paris Libraire Editeur 1855 p 108) 59 Les Essais II 12 p 443 60 Les Essais II 12 p 444

25

pode ser usada para servir os propoacutesitos do oacutedio da crueldade da ambiccedilatildeo da rebeliatildeo

etc61

Embora natildeo seja teoacutelogo62 Montaigne eacute um pensador que procura respeitar

profundamente a missatildeo da teologia Mas importa salientar que esta missatildeo deve ser

entendida simplesmente como uma praacutetica de piedade e natildeo como uma racionalizaccedilatildeo e

sistematizaccedilatildeo das verdades reveladas pela feacute Neste sentido haacute uma enorme distacircncia

entre o autor dos Essais e os escolaacutesticos Para Montaigne a teologia eacute concebida como

uma espeacutecie de exerciacutecio espiritual dos cristatildeos sobretudo dos teoacutelogos atraveacutes da

razatildeo humana Exerciacutecio este que carece do poder de alcanccedilar a verdade

ldquo[A] Il en faut faire de mesme et accompaigner nostre foy de toute la raison qui est en nous mais tousjours avec cette reservation de nestimer pas que ce soit de nous quelle deacutepende ny que nos efforts et arguments puissent atteindre agrave une si supernaturelle et divine sciencerdquo 63

Para Montaigne as explicaccedilotildees (racionalizaccedilotildees) das verdades da religiatildeo

devem ser as pregaccedilotildees piedosas nos actos de culto por exemplo E esta eacute a tarefa

fundamental da qual a teologia deve ocupar-se Aleacutem disto Montaigne que eacute um

observador subtil e cuidadoso propotildee certas distinccedilotildees Vejamos o que Friedrich tem a

dizer sobre esta questatildeo

ldquo[hellip] sait bien entendu distinguer la vraie pieacuteteacute de la fausse Il bracircme ainsi les priegraveres meacutecaniques la malhonnecircteteacute des gens qui se signent au son de la cloche sans pour autant renoncer agrave la haine agrave lrsquoavarice agrave lrsquoinjustice comme si leur principe eacutetait aux vices leur heure son heure agrave Dieurdquo64

Desta perspectiva segundo Montaigne a religiatildeo deve ser entre outras coisas

como uma praacutetica da verdadeira piedade que se preocupa em instaurar no coraccedilatildeo do

homem o desejo de viver o amor a justiccedila etc renunciando a tudo aquilo que eacute mal e

que impede a realizaccedilatildeo da felicidade do homem no aqui e no agora Eacute por isto que natildeo

acredita numa religiatildeo que vive a prometer constantemente bens eternos que viratildeo a

tornar-se realidade num outro mundo diverso e posterior a este que conhecemos Para

exemplificar esta sua abordagem Montaigne refere na ldquoApologierdquo o filoacutesofo Antiacutestenes

Quando o iniciavam no misteacuterio de Orfeu dizendo-lhe o sacerdote que aqueles que se

devotavam a tal religiatildeo iam receber bens eternos e perfeitos apoacutes a morte aquele

61 Cf Les Essais II 12 p 444 62 Ver nota 43 63 Les Essais II 12 p 441 64 Friedrich op cit p 122

26

perguntou-lhe ldquose acreditas nisso por que entatildeo natildeo morres tu mesmordquo65 Eis um outro

exemplo que vale a pena citar

ldquo[C] Diogenes plus brusquement selon sa mode et hors de nostre propos au prestre qui le preschoit de mesme de se faire de son ordre pour parvenir aux biens de lautre monde Veux tu pas que je croye quAgesilauumls et Epaminondas si grands hommes seront miserables et que toy qui nes quun veau seras bien heureux par ce que tu es prestre rdquo66

Segundo Montaigne se acolhecircssemos essas grandes promessas de felicidades

eternas e supremas com a mesma autoridade com que acolhemos uma opiniatildeo

filosoacutefica natildeo teriacuteamos o horror agrave morte que temos

ldquo[A] Je veuil estre dissout dirions nous et estre aveques Jesus-Christrdquo67

Ao afirmar que

ldquo[A] La force du discours de Platon de lrsquoimmortaliteacute de lrsquoame poussa bien aucuns de ses disciples agrave la mort pour joiumlr plus promptement des esperances qursquoil leur donnoit [hellip]68

O autor da ldquoApologierdquo quer destacar a fragilidade da razatildeo que utiliza meios

puramente humanos para explicar ldquorealidadesrdquo que transcendem a vida concreta

Vejamos uma passagem em que o autor expressa nitidamente estas ideias

ldquo[A] Tout cela cest un signe tres-evident que nous ne recevons nostre religion quagrave nostre faccedilon et par nos mains et non autrement que comme les autres religions se reccediloyvent Nous nous sommes rencontrez au paiumls ou elle estoit en usage ougrave nous regardons son ancienneteacute ou lauthoriteacute des hommes qui lont maintenue ou creignons les menaces quellrsquoattache aux mescreans ou suyvons ses promesses Ces considerations lagrave doivent estre employeacutees agrave nostre creance mais comme subsidiaires ce sont liaisons humaines Une autre region dautres tesmoings pareilles promesses et menasses nous pourroyent imprimer par mesme voye une croyance contrairerdquo69

Apesar de ser catoacutelico parece sugerir na ldquoApologierdquo uma certa atitude de

indiferenccedila relativamente a toda e qualquer profissatildeo de feacute ou seja uma espeacutecie de

distanciamento no que diz respeito agraves diversas convicccedilotildees religiosas Montaigne chega

quase a reduzir a proacutepria crenccedila a uma questatildeo de costume a um acaso geograacutefico

65 Cf Les Essais II 12 p 444 66 Les Essais II 12 p 444 67 Les Essais II 12 p 445 68 Les Essais II 12 p 445 69 Les Essais II 12 p 445

27

[B] Nous sommes Chrestiens agrave mesme titre que nous sommes ou Perigordins ou Alemansrdquo70

Fazendo uma criacutetica aos diversos raciociacutenios que foram usados na histoacuteria do

pensamento filosoacutefico com o objectivo de argumentar de que forma o homem tem

acesso agrave religiatildeo Montaigne afirma que Platatildeo e os seus exemplos querem levar-nos a

concluir que somos conduzidos agrave crenccedila em Deus ou por amor ou por forccedila A sua

rejeiccedilatildeo dos argumentos da filosofia expressa-se de uma forma muito incisiva

ldquo[C] LAtheisme estant une proposition comme desnatureacutee et monstrueuse difficile aussi et malaiseacutee destablir en lesprit humain pour insolent et desregleacute quil puisse estre il sen est veu assez par vaniteacute et par fierteacute de concevoir des opinions non vulgaires et reformatrices du monde en affecter la profession par contenance qui sils sont asses fols ne sont pas assez forts pour lavoir planteacutee en leur conscience pourtantrdquo71

Aleacutem de apontar os limites das crenccedilas consideradas pagatildes bem como os

enganos de Platatildeo relativos aos motivos que levam o homem agrave praacutetica da religiatildeo

Montaigne critica um outro engano similar e importante de Platatildeo

ldquo[B] Lerreur du paganisme et lignorance de nostre sainte veriteacute laissa tomber cette grande ame de Platon (mais grande dhumaine grandeur seulement) encores en cet autre voisin abus que les enfans et les vieillars se trouvent plus susceptibles de religion comme si elle naissoit et tiroit son credit de nostre imbecilliteacuterdquo72

Segundo Montaigne a religiatildeo natildeo pode ser construiacuteda sobre o alicerce da razatildeo

humana como vimos Nem tampouco pode ser fundada nos argumentos platoacutenicos

acabados de referir Estes satildeo todos muito fraacutegeis A religiatildeo encontra as suas bases

verdadeiras na feacute A perspectiva proacutepria da filosofia supotildee um ateiacutesmo de meacutetodo como

observa Conche Caso contraacuterio ela jaacute natildeo seria filosofia ldquomais theacuteologie ou ideacuteologie

A qui est ainsi priveacute du secours de la gracircce divine Dieu est inconnaissablerdquo73

Montaigne recusa o ateiacutesmo de uma forma muito clara inclusive aquele conceituado

por Platatildeo

ldquo[A] Et ce que dit Plato74 quil est peu dhommes si fermes en latheisme quun dangier pressant ne ramene agrave la recognoissance de la divine puissance ce rolle ne touche point un vray Chrestien Cest agrave faire aux

70 Les essais II 12 p 445 71 Les Essais II 12 p 446 72 Les Essais II 12 p 446 73 Conche 1996 op cit p131 74 Tudo leva a crer que Montaigne se estaacute a referir a Platatildeo Preferimos conservar a mesma grafia da ediccedilatildeo dos Essais que estaacute a ser utilizada neste trabalho

28

religions mortelles et humaines destre receueumls par une humaine conduite Quelle foy doit ce estre que la laacutecheteacute et la foiblesse de coeur plantent en nous et establissent [C] Plaisante foy qui ne croid ce quelle croit que pour navoir le courage de le descroire Une vitieuse passion comme celle de linconstance et de lestonnement peut elle faire en nostre ame aucune production regleacutee75

Continuando a sua reflexatildeo no preacircmbulo da ldquoApologierdquo o autor ressalta qual eacute

a relaccedilatildeo fundamental que eacute necessaacuteria para estabelecer a uniatildeo do homem a Deus

partindo do caraacutecter superior da religiatildeo face ao ateiacutesmo Montaigne observa que o laccedilo

que deveria atar o nosso juiacutezo e a nossa vontade que deveria cingir a nossa alma e uni-

la ao criador

ldquo[A] ce devroit estre un neud prenant ses repliz et ses forces non pas de nos considerations de noz raisons et passions mais dune estreinte divine et supernaturelle nayant quune forme un visage et un lustre qui est lauthoriteacute de Dieu et sa grace Or nostre coeur et nostre ame estant regie et commandeacutee par la foy cest raison quelle tire au service de son dessain toutes noz autres pieces selon leur porteacuteerdquo76

Montaigne ao indicar como devemos manejar os instrumentos naturais e

humanos ou seja como devemos aplicar a razatildeo agrave nossa feacute afirma que Deus deixou nas

suas obras o cunho de sua divindade e deve-se apenas agrave nossa fraqueza que natildeo o

possamos perceber E afirma com admiraccedilatildeo que Sebond se empenhou neste digno

estudo

ldquo[A] Or nos raisons et nos discours humains cest comme la matiere lourde et sterile la grace de Dieu en est la formerdquo77

As acccedilotildees humanas permanecem inuacuteteis e vatildes se natildeo tecircm em conta o amor e a

obediecircncia a Deus

ldquo[A] ainsin est-il de nos imaginations et discours ils ont quelque corps mais une masse informe sans faccedilon et sans jour si la foy et grace de Dieu ny sont joinctesrdquo78

Quanto aos segundos opositores de Sebond ndash ou seja os que dizem que seus

argumentos satildeo fracos e inadequados para demonstrar o que ele pretende e por isso

dispotildeem-se a atacaacute-los facilmente ndash Montaigne vai rejeitar os argumentos por eles

apresentados nos quais se subestima a importacircncia da feacute A rejeiccedilatildeo dos argumentos

desta segunda categoria ocupa maior espaccedilo porque ldquo[A] Il faut secouer ceux cy un peu

75 Les Essais II 12 p 445 76 Les Essais II 12 p 446 77 Les Essais II 12 p 447 78 Les Essais II 12 p 447

29

plus rudement car ils sont plus dangereux et plus malitieux que les premiersrdquo79 Estes

ldquoracionalistasrdquo consideram que a razatildeo humana eacute auto-suficiente para conhecer

qualquer coisa e desprezam a feacute considerando-a como algo inuacutetil para um saacutebio

ldquo Le moyen que je prens pour rabatre cette frenaisie et qui me semble le plus propre crsquoest de froisser et fouler aux pieds lrsquoorgueil et humaine fierteacute leur faire sentir lrsquoinaniteacute la vaniteacute et deneantise de lrsquohomme leur arracher des points les chetives armes de leur raison leur faire baisser la teste et mordre la terre soubs lrsquoauthoriteacute et reverence de la majesteacute divine Crsquoest agrave elle seule qursquoapartient la science et la sapience elle seule qui peut estimer de soy quelque chose et agrave qui nous desrobons ce que nous nous contons et ce que nous nous prisons Ού γὰρ ἐᾱ φρονεῑν ὁ Θεὸϛ μέγα ἄλλον ἢ ἑαυτόν [ldquoCar Dieu ne permet pas qursquoun autre que Lui srsquoenorgueillisserdquo (Heacuterodote VII x)]rdquo80

Ao analisar as duas objecccedilotildees agrave Teologia natural de Sebond Montaigne tem

como principal finalidade - aleacutem do desenvolvimento do seu fideiacutesmo que potildee em

causa que a filosofia seja um meio para se chegar a Deus - destronar o homem do seu

pedestal como ldquosenhorrdquo entre todas as criaturas como vimos no primeiro capiacutetulo deste

trabalho Agrave luz destas objecccedilotildees se desenvolve tambeacutem em todo o texto da ldquoApologierdquo

uma grande quantidade de criacuteticas aos detractores do teoacutelogo catalatildeo que na verdade

mais natildeo eacute do que uma contestaccedilatildeo de Montaigne de tudo aquilo que faz do homem um

ser cheio de orgulho e de vaidade Montaigne chega agrave conclusatildeo que a razatildeo humana

natildeo pode conhecer os atributos de Deus A razatildeo natildeo tem condiccedilotildees para emitir juiacutezos

crediacuteveis a respeito destes atributos Ela natildeo estaacute revestida de um poder que lhe garanta

a elaboraccedilatildeo de raciociacutenios crediacuteveis acerca de Deus e das verdades da religiatildeo

Montaigne apresenta um resumo das principais ideias acerca de Deus que foram

surgindo na histoacuteria do pensamento filosoacutefico antigo e afirma que tudo isto natildeo passa de

uma balbuacuterdia (ldquotintamarrerdquo) de muitos ceacuterebros filosoacuteficos81

ldquo[C] Thales [hellip] estima Dieu un esprit qui fit deau toutes choses Anaximander que les Dieux estoyent des mourans et naissans agrave diverses saisons et que crsquoestoyent des mondes infinis en nombre Anaximenes que lair estoit Dieu [hellip] Anaxagoras le premier a tenu la description et maniere de toutes choses estre conduite par la force et raison dun esprit infini Alcmaeligon a donneacute la diviniteacute au soleil agrave la lune aux astres et agrave lame[hellip] Empedocles disoit estre des Dieux les quatre natures desquelles toutes choses sont faictes [hellip] Platon dissipe sa creance agrave divers visages Il dict au Timaeacutee le pere du monde ne se pouvoir

79 Les Essais II 12 p 448 80 Les Essais II 12 p 448 81 Cf Les Essais II 12 p 516

30

nommer aux loix quil ne se faut enquerir de son estre et ailleurs en ces mesmes livres il faict le monde le ciel les astres la terre et nos ames Dieux et reccediloit en outre ceux qui ont esteacute receuz par lancienne institution en chasque republique Xenophon rapporte un pareil trouble de la discipline de Socrates tantost quil ne se faut enquerir de la forme de Dieu et puis il luy faict establir que le Soleil est Dieu et lame Dieu quil ny en a quun et puis quil y en a plusieurs[hellip] Aristote asture que cest lesprit asture le monde asture il donne un autre maistre agrave ce monde et asture faict Dieu lardeur du ciel [hellip] Heraclides Ponticus ne fait que vaguer entre les advis et en fin prive Dieu de sentiment et le faict remuant de forme agrave autre et puis dict que cest le ciel et la terre[hellip] Zeno la loy naturelle commandant le bien et prohibant le mal laquelle loy est un animant et oste les Dieux accoustumez Jupiter Juno Vesta Diogenes Apolloniates que cest laage [hellip] Cleanthes tantost la raison tantost le monde tantost lame de Nature tantost la chaleur supreme entournant et envelopant tout [hellip] Chrysippus faisoit un amas confus de toutes les precedentes sentences et comptoit entre mille formes de Dieux quil faict les hommes aussi qui sont immortalisez Diagoras et Theodorus nioyent tout sec quil y eust des Dieux Epicurus faict les Dieux luisans transparens et perflables logez comme entre deux forts entre deux mondes agrave couvert des coups revestus dune humaine figure et de nos membres lesquels membres leur sont de nul usagerdquo82

Esta longa citaccedilatildeo da ldquoApologierdquo apresenta-nos a enorme quantidade de

teorizaccedilotildees que tecircm como base a razatildeo humana e que satildeo bastante diacutespares no tocante

agraves crenccedilas Isto potildee em evidecircncia que Montaigne natildeo acredita que o homem tenha

condiccedilotildees para compreender ou apresentar algo crediacutevel acerca de Deus Por isto o

homem exagera na sua criatividade intelectual ao inventar inuacutemeros atributos divinos

que frequentemente se assemelham aos seus proacuteprios atributos Em seu entender Deus

eacute absolutamente incompreensiacutevel Na leitura que de Montaigne faz Leveaux

ldquoLrsquoideacutee de Dieu existe chez lrsquohomme mais au delagrave de cette ideacutee simple drsquoune uniteacute absolue tout devient doute et confusion Alors se preacutesent des questions sans nombre auxquelles il est impossible de reacutepondre Crsquoest lagrave si je ne me trompe le ldquoque sais-jerdquordquo83

Montaigne afirma que haacute uma grande inconstacircncia variedade e mobilidade de

ideias acerca de Deus nas almas excelentes e admiraacuteveis dos filoacutesofos Mas classifica o

empenho destes como vatildeo pelo facto de quererem adivinhar Deus por meio das nossas

analogias e conjecturas Por natildeo podermos estender a vista ateacute ao seu trono glorioso

procuramos trazecirc-lo aqui para baixo para a nossa corrupccedilatildeo e miseacuteria Soacute a feacute tem

82 Les Essais II 12 pp 514-516 83 Leveaux Alphonse Eacutetude sur les Essais de Montaigne Paris Henri Plon Imprimeur-Eacutediteur 1870 p 213

31

condiccedilotildees de entender os misteacuterios da religiatildeo Sem ela os nossos esforccedilos de

demonstraccedilatildeo destes misteacuterios permanecem vazios e esteacutereis

ldquo[A] La participation que nous avons agrave la connoissance de la veriteacute quelle quelle soit ce nest pas par nos propres forces que nous lavons acquise Dieu nous a assez appris cela par les tesmoins quil a choisi du vulgaire simples et ignorans pour nous instruire de ses admirables secrets nostre foy ce nest pas nostre acquest cest un pur present de la liberaliteacute dautruy Ce nest pas par discours ou par nostre entendement que nous avons receu nostre religion cest par authoriteacute et par commandement estranger La foiblesse de nostre jugement nous y ayde plus que la force et nostre aveuglement plus que nostre cler-voyance Cest par lentremise de nostre ignorance plus que de nostre science que nous sommes sccedilavans de divin sccedilavoirrdquo84

Para o autor da ldquoApologierdquo o homem por si soacute eacute absolutamente impotente para

chegar a certezas acerca das questotildees relacionadas com a feacute Nesta perspectiva o autor

observa tambeacutem que natildeo eacute possiacutevel fazer afirmaccedilotildees seguras tendo como base a razatildeo

Por exemplo acerca da imortalidade da alma tema desde sempre muito caro agrave filosofia

os cristatildeos devem unicamente a Deus e ao benefiacutecio de sua graccedila a verdade de uma

crenccedila tatildeo nobre pois eacute apenas da sua liberalidade que o cristatildeo recebe o fruto da

imortalidade o qual lembra o autor consiste no gozo da beatitude eterna A razatildeo natildeo

consegue fazer nenhuma afirmaccedilatildeo crediacutevel sobre este tema Ela eacute incapaz uma vez que

a imortalidade eacute um ldquodadordquo da revelaccedilatildeo

ldquo[C] Confessons ingenuement que Dieu seul nous lrsquoa dict et la foy car leccedilon nrsquoest ce pas de nature et de nostre raisonrdquo85

Montaigne assumindo uma posiccedilatildeo fideiacutesta depois de ter feito o exame das

diversas opiniotildees sobre a alma86 faz um ldquoapelo agrave passividade da razatildeo e agrave aceitaccedilatildeo da

verdade religiosa sem tentar compreendecirc-la ldquoimortalidaderdquo eacute como ldquoDeusrdquo uma

palavra que natildeo pode ser preenchida A imortalidade afirmada pela feacute natildeo poderaacute ser

explorada por nenhuma forma de discurso humanordquo87

Esta atitude fideiacutesta e conservadora em termos religiosos deve-se em grande

parte agrave desilusatildeo de Montaigne face aos inuacutemeros sistemas filosoacuteficos que tentavam

84 Les Essais II 12 p 500 85 Les Essais II 12 p 554 86 Na ldquoApologierdquo haacute uma quantidade significativa de paacuteginas nas quais o autor expressa muitas opiniotildees sobre o tema da alma (cf Les Essais pp 542-547) 87 Birchal Telma de Souza O Eu nos Ensaios de Montaigne Belo Horizonte Editora UFMG 2007 pp 64-65

32

encontrar explicaccedilotildees racionais para todas as questotildees da vida inclusivamente para

aquelas que transcendem a vida real

ldquo[A] Car quelque apparence quil y ayt en la nouvelleteacute je ne change pas aiseacutement de peur que jay de perdre au change Et puis que je ne suis pas capable de choisir je pren le chois dautruy et me tien en lassiette ougrave Dieu ma mis Autrement je ne me sccedilauroy garder de rouler sans cesse Ainsi me suis-je par la grace de Dieu conserveacute entier sans agitation et trouble de conscience aux anciennes creances de nostre religion au travers de tant de sectes et de divisions que nostre siecle a produittesrdquo88

Segundo Leveaux Montaigne sintetiza seu pensamento em mateacuteria religiosa89

da seguinte maneira

ldquo[A] De toutes les opinions humaines et anciennes touchant la religion celle lagrave me semble avoir eu plus de vray-semblance et plus dexcuse qui recognoissoit Dieu comme une puissance incomprehensible origine et conservatrice de toutes choses toute bonteacute toute perfection recevant et prenant en bonne part lhonneur et la reverence que les humains luy rendoient soubs quelque visage sous quelque nom et en quelque maniere que ce fut [hellip]rdquo90

Haacute que reconhecer no entanto que eacute algo difiacutecil e delicado tirar grandes

conclusotildees acerca da religiatildeo embora o tema perpasse toda a ldquoApologie rdquo Montaigne

concebia a religiatildeo como um conjunto de praacuteticas e leis que tinham como finalidade

contribuir para que o homem natildeo agisse como um escravo da vaidade da razatildeo As

uacuteltimas palavras da ldquoApologierdquo onde o autor cita Plutarco pretendem servir como uma

espeacutecie de conclusatildeo de toda a reflexatildeo deste capiacutetulo Deixemos o proacuteprio Montaigne

falar

ldquo[A] Mais quest-ce donc qui est veritablement Ce qui est eternel cest agrave dire qui na jamais eu de naissance ny naura jamais fin agrave qui le temps napporte jamais aucune mutation Car cest chose mobile que le temps et qui apparoit comme en ombre avec la matiere coulante et fluante tousjours sans jamais demeurer stable ny permanenterdquo91

Contestando a atitude humana de querer elevar-se acima da humanidade que

pode ser tambeacutem entendida como um desejo absurdo de um ser despreziacutevel que tem a

88 Les Essais II 12 p 569 89 Cf Leveaux op cit p 213 90 Les Essais II 12 p 513 91 Les Essais II 12 p 603

33

presunccedilatildeo como doenccedila natural e original e que eacute a mais calamitosa de todas as

criaturas e ao mesmo tempo a mais orgulhosa92 Montaigne afirma

ldquo[A] O la vile chose dit-il et abjecte que lhomme sil ne sesleve au dessus de lhumaniteacute [C] Voila un bon mot et un utile desir mais pareillement absurde Car [A] de faire la poigneacutee plus grande que le poing la brasseacutee plus grande que le bras et desperer enjamber plus que de lestandueuml de nos jambes cela est impossible et monstrueux Ny que lhomme se monte au dessus de soy et de lhumaniteacute car il ne peut voir que de ses yeux ny saisir que de ses prises Il seslevera si Dieu lui preste extraordinairement la main Il seslevera abandonnant et renonccedilant agrave ses propres moyens et se laissant hausser et soubslever par les moyens purement celestesrdquo93

Montaigne termina a ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo colocando o homem no

seu devido lugar e afirmando que soacute atraveacutes do auxiacutelio de Deus e com a graccedila da feacute

cristatilde eacute que este ser tatildeo vaidoso poderaacute elevar-se acima da humanidade

ldquo[C] Cest agrave nostre foy Chrestienne non agrave sa vertu Stoique de pretendre agrave cette divine et miraculeuse metamorphoserdquo94

92 Cf nota 12 93 Les Essais II 12 p 604 94 Les Essais II 12 p 604

34

3 A criacutetica agrave razatildeo humana e sua relaccedilatildeo com a ciecircncia

Uma observaccedilatildeo que eacute importante destacar no iniacutecio deste capiacutetulo refere-se agrave

concepccedilatildeo montaigneana de ldquociecircnciardquo que se encontra na ldquoApologie de Raymond

Sebondrdquo Quando Montaigne na sua criacutetica radical agrave razatildeo humana se refere agrave ciecircncia

o que subjaz agraves suas reflexotildees natildeo eacute a concepccedilatildeo moderna de ciecircncia Ele natildeo alude ao

chamado ldquomeacutetodo cientiacutefico experimentalrdquo ateacute porque este meacutetodo ainda natildeo existia O

termo ldquociecircnciardquo natildeo tem o sentido que adquiriu depois da chamada Revoluccedilatildeo

Cientiacutefica do seacuteculo XVII Assim com o termo ciecircncia Montaigne refere-se ao conjunto

do conhecimento erudito de seu tempo

ldquoLa science du XVIᵉ siegravecle nrsquoest que philosophie Elle srsquoarrecircte aux mots jamais elle ne peacutenegravetre au fond des choses et ne suscite un effort critiquerdquo95

Sendo um pensador da uacuteltima fase do periacuteodo renascentista periacuteodo este em que

natildeo havia nenhuma diferenccedila essencial entre a filosofia e a ciecircncia Montaigne procura

expressar as suas ideias os seus ideais de sabedoria como tantos outros faziam isto eacute

quando se refere agrave ciecircncia estaacute a referir-se aos doutos e aos filoacutesofos em geral

Logo no iniacutecio da ldquoApologierdquo Montaigne faz questatildeo de afirmar que a ciecircncia eacute

algo muito uacutetil e grande e os que a menosprezam datildeo prova bastante de estupidez Sem

desprezar agrave partida todo o esforccedilo que muitos fazem para chegar a alcanccedilar o

conhecimento Montaigne por outro lado natildeo chega a estimar tanto a ciecircncia

ldquo[A] Comme Herillus le philosophe qui logeoit en elle le souverain bien et tenoit qursquoil fut en elle de nous rendre sages et contensrdquo96

Montaigne natildeo crecirc nisto nem tampouco no que outros disseram

ldquo[A] que la science est mere de toute vertu et que tout vice este produit par lrsquoignorancerdquo97

Segundo ele mesmo atesta a sua casa esteve habitualmente aberta agraves pessoas de

saber e o seu pai buscou com grande cuidado e despesa o conviacutevio dos homens doutos

ldquo[A] les recevant chez luy comme personnes sainctes et ayans quelque particuliere inspiration de sagesse divine [hellip]rdquo98

95 Villey opcit p 214 96 Les Essais II 12 p 438 97 Les Essais II 12 p 438 98 Les Essais II 12 pp 438-439

35

Embora respirando toda uma atmosfera intelectual que havia em sua casa

Montaigne afirma no entanto que gostava muito destes doutos frequentadores de sua

casa mas natildeo os adorava

Desde as primeiras afirmaccedilotildees de Montaigne na ldquoApologierdquo eacute possiacutevel perceber

ateacute que ponto ele tem dificuldade em aceitar os chamados filoacutesofos de profissatildeo Neste

famoso texto que eacute considerado por Villey ldquole reacutesumeacute du travail logique qui srsquoopegravere

chez Montaigne entre 1573 et 1579 ou 1580rdquo99 podemos encontrar paradoxalmente

por um lado uma valorizaccedilatildeo da razatildeo enquanto uacutenico modo de investigaccedilatildeo dos

doutos e por outro lado que a razatildeo eacute considerada como algo profundamente limitado

enquanto instrumento de acesso ao conhecimento

Montaigne dedica muitas paacuteginas a demonstrar que a ciecircncia fundada na razatildeo

eacute viacutetima da vaidade humana e deve ser contestada Isto pelo facto de que concebe a

ciecircncia como o esforccedilo que deve ser uacutetil agrave nossa felicidade

ldquo[A] la philosophie me doit mettre les armes agrave la main pour combatre la fortune qui me doit roidir le courrage pour fouler aux pieds toutes les advertitez humaines [hellip]rdquo100

O objectivo primeiro da filosofia eacute portanto a vida concreta A atitude vaidosa

da razatildeo na busca do conhecimento causa no homem

ldquo[A] lrsquoinconstance lrsquoirresolution lrsquoincertitude le deuil la superstition la solitude de choses agrave venir voire apres nostre vie lrsquoambition lrsquoavarice la jalousie lrsquoenvie les appetits desreglez foncenez et indomptables la guerre la mensonge la desloyauteacute la detraction et la curiositeacuterdquo101

Segundo Montaigne pagamos um preccedilo elevadiacutessimo por essa bela razatildeo de que

nos gloriamos e por conseguinte tambeacutem pela capacidade de julgar e conhecer

sobretudo se forem adquiridas agrave custa destas paixotildees

Montaigne natildeo vecirc muita necessidade praacutetica de querer mergulhar nos altos

conhecimentos em que a filosofia estaacute imersa Para que serve o conhecimento (fruto da

razatildeo enganadora) de muitas coisas Expressando a sua criacutetica agrave loacutegica aristoteacutelica

afirma ironicamente

ldquo[A] ont-ils tireacute de la Logique quelques consolation agrave la gouterdquo102

99 Villey op cit p 182 100 Les Essais II 12 p 494 101 Les Essais II 12 p 486 102 Les Essais II 12 p 487

36

Prosseguindo no mesmo registo iroacutenico pergunta se acaso se descobriu que a

voluptuosidade e a sauacutede satildeo mais deleitosas para quem conhece a astronomia e a

gramaacutetica e menos importunas agrave desonra e a pobreza103

Montaigne revela um significativo desprezo pelos filoacutesofos que satildeo escravos da

razatildeo e buscam tudo saber e fazer afirmaccedilotildees sobre todas as coisas Ao mesmo tempo

manifesta uma forte tendecircncia para valorizar o homem simples e ignorante

ldquo[A] Jrsquoay veu en mon temps cent artisans cent laboureurs plus sages et plus heureux que des recteurs de lrsquouniversiteacute et lesquels jrsquoaimerois mieux ressemblerrdquo104

Na sua apologia da ignoracircncia declara que o homem tem como quinhatildeo a

presunccedilatildeo e que a ignoracircncia nos eacute recomendada ateacute pela religiatildeo cristatildeldquo[A] La peste

de lrsquohomme crsquoest lrsquoopinion de sccedilavoirrdquo105

Para Montaigne eacute necessaacuterio derrubar a tola vaidade e sacudir de uma maneira

viva e corajosa os fundamentos ridiacuteculos sobre os quais se fundam as falsas ideias

Insiste continuamente no facto de que natildeo necessitamos do saber produzido pela

filosofia

ldquo[A] Crsquoestoit ce que disoit un senateur Romain des derniers siecles que leurs predecesseurs avoient lrsquoaleine puante agrave lrsquoair et lrsquoestomac musqueacute de bonne conscience et qursquoau rebours ceux de son temps se sentoient au dehors que le parfum puans au dedans toutes sorte de vices crsquoest agrave dire comme je pense qursquoils avoient beaucoup de sccedilavoir et de suffisance et grand faute de preudrsquohommierdquo106

O orgulho humano eacute visto pelo autor como algo que atrapalha fortemente na

busca natildeo do conhecimento filosoacutefico claacutessico mas da sabedoria Soacutecrates eacute

referenciado na ldquoApologierdquo entre outras coisas como um grande saacutebio107 Natildeo porque

ldquo[C] le Dieu de sagesse luy avoit attibueacute le surnom de sagerdquo108 mas porque ele mesmo

natildeo se considerava saacutebio e porque a sua melhor ciecircncia era a ciecircncia da ignoracircncia e a

sua melhor sabedoria a simplicidade de espiacuterito

103Cf Les Essais II 12 p 487 104 Les Essais II 12 p 487 105 Les Essais II 12 p 488 106 Les Essais II 12 p 498 107 Podemos encontrar uma quantidade significativa de estudos acerca da figura de Soacutecrates nos Ensaios Destacamos aqui um artigo escrito por Celso Martins Azar Filho cujo tiacutetulo eacute Montaigne e Soacutecrates cepticismo conhecimento e virtuderdquo que estaacute publicado na Revista Portuguesa de Filosofia Tomo LVIII do ano de 2002 Fasc 4 (pp 829-845) Com o seu artigo o autor propotildee-se examinar qual o lugar e a importacircncia deste filoacutesofo no pensamento de Montaigne 108 Les Essais II 12 p 498

37

O verdadeiro saacutebio segundo Montaigne eacute o homem que aprende que natildeo

aprendeu nada Refere-se a isto de uma maneira muito elucidativa

ldquo[A]Il est adnevenu aux gens veacuteritablement sccedilavans ce qui advient aux espics de bled ils vont srsquoeslevant et se haussant la teste droite et fiere tant qursquoil sont vuides mais quand ils sont pleins et grossis de grain en leur maturiteacute ils commencent agrave srsquohumilier et agrave baisser les cornes Pareillement les hommes ayant tout essayeacute et tout sondeacute nrsquoayant trouveacute en cet amas de science et provision de tant de choses diverses rien de massif et ferme et rien que vaniteacute ils ont renonceacute agrave leur presomption et reconneu leur condition naturellerdquo109

Depois de descrever sinteticamente os atributos do saacutebio Montaigne -

considerado como um pensador que popularizou o pirronismo praticando-o

pessoalmente sobretudo na ldquoApologierdquo - afirma que toda a filosofia estaacute distribuiacuteda por

trecircs geacuteneros A sua principal fonte eacute a ediccedilatildeo das obras de Sexto Empiacuterico que surge em

1569 Montaigne enumera estas trecircs filosofias da seguinte maneira haacute os dogmaacuteticos

os acadeacutemicos e os pirroacutenicos110 Os dogmaacuteticos afirmam que se pode ter acesso agrave

ciecircncia os acadeacutemicos natildeo estatildeo de acordo com os dogmaacuteticos isto eacute consideram que

natildeo se pode ter acesso agrave ciecircncia e os pirroacutenicos estatildeo ainda em busca da verdade Estes

declaram que os que pensam havecirc-la encontrado se enganam infinitamente Segundo

Montaigne os pirroacutenicos tecircm como ofiacutecio

ldquo[A] branler douter et enquerir ne srsquoasseurer de rien de rien ne se respondrerdquo111

Esta atitude condu-los segundo Montaigne agrave ataraxia que eacute uma condiccedilatildeo de

vida tranquila sossegada isenta das agitaccedilotildees que recebemos pela impressatildeo da opiniatildeo

e ciecircncia que julgamos ter das coisas Esta indiferenccedila pela ciecircncia liberta os pirroacutenicos

inclusivamente do espiacuterito de rivalidade quanto agrave sua doutrina debatem de maneira bem

pouco vigorosa Quando dizem que o pesado vai para baixo ficariam bastante

aborrecidos se acreditassem neles Sendo assim os pirroacutenicos segundo Montaigne

procuram que os contradigam para gerar ldquo[A] la dubitation et surceance (suspension)

de jugement qui est leur finrdquo112

Os pirroacutenicos satildeo partidaacuterios da duacutevida extrema Expotildeem as suas opiniotildees

apenas para combater aquelas em que pensam que acreditamos Diz Montaigne

109 Les Essais II 12 p 500 110 Les Essais II 12 p 502 111 Les Essais II 12 p 502 112 Les Essais II 12 p 503

38

ldquo[A] Si vous prenez la leur ils prendront aussi volontiers i la contraire agrave soutenir tout leur est un ils nrsquoy ont aucun chois Si vous establissez que la nege soit noire ils augumentent au rebours qursquoelle est blanche Si vous dites qursquoelle nrsquoest ny lrsquoun ny lrsquoautre crsquoest agrave eux agrave maintenir qursquoelle est tous les deux Si par certain jugement vous tenez que vous nrsquoen sccedilavez rien ils vous maintiedront que vous ne sccedilavez Oui et si par un axiome affirmatif vous asseurez que vous en doutez ils vous iront debattant que vous nrsquoen doutez pas ou que vous ne pouvez juger et etablir que vous en doutez Et par cette extremiteacute de doubte qui se secoue soy-mesme ils se separent et se divisent de plusieurs opinions de celles mesme qui ont maintenu en plusieurs faccedilons le double et lrsquoignorancerdquo113

[hellip] Leurs faccedilon de parler sont Je nrsquoestablis rien il nrsquoest non plus ainsi qursquoainsi ou que ny lrsquoun ny lrsquoautre je ne le comprens point les apparences sont eacutegales par tout la loy de parler et pour et contre est pareille [C] Rien ne semble vray qui ne puisse sembler faux [A] Leur mot sacramental crsquoest ἐπέχω crsquoest agrave dire je soutiens je ne bougerdquo114

Os pirroacutenicos servem-se de sua razatildeo para inquirir e debater mas natildeo para

decidir e escolher

Um outro aspecto que leva Montaigne a identificar-se com o pirronismo a uacutenica

filosofia por ele respeitada eacute a visatildeo pirroacutenica relativamente agraves acccedilotildees da vida Os seus

defensores prestam-se e acomodam-se agraves inclinaccedilotildees naturais ao impulso e agrave imposiccedilatildeo

das paixotildees agraves decisotildees das leis e dos costumes

ldquo[A] Ils laissent guider agrave ces choses lagrave leurs actions communes sans aucune opination ou jugement115

Neste sentido Montaigne defende o pirronismo sobretudo por causa de sua

virtude moral116 Sustenta que eacute importante fomentar o juiacutezo livre ou a suspensatildeo do

juiacutezo que eacute a atitude dos pirroacutenicos Por outro lado natildeo pode concordar com a posiccedilatildeo

dos que aceitam a arbitraacuteria submissatildeo a algum tipo de autoridade ou opiniatildeo (os

dogmaacuteticos) Importa salientar no entanto que o autor da ldquoApologierdquo consegue

distanciar-se dos pirroacutenicos que se recusam a fazer qualquer juiacutezo Montaigne por ser

um pensador livre inclusive dos argumentos pirroacutenicos natildeo suspende os seus proacuteprios

113 Les Essais II 12 p 503 114 Les Essais II 12 p 505 115 Les Essais II 12 p 505 116 Para Montaigne o pirronismo natildeo eacute uma doutrina ou um sistema filosoacutefico do qual ele eacute adepto Eacute sobretudo uma atitude de espiacuterito ou uma tendecircncia do pensamento Ele tem consciecircncia da dificuldade que esta filosofia encontra para consolidar-se em termos de coerecircncia loacutegica Se do ponto de vista loacutegico natildeo haacute soluccedilatildeo permanente satisfatoacuteria para o pirronismo ele torna-se uma opccedilatildeo eacutetica na medida em que possibilita aos seus adeptos ldquo[B] de maintenir leur liberteacute et considerer les choses sans obligation et servituderdquo (Les Essais II 12 p 504)

39

juiacutezos Muito pelo contraacuterio emite muitos Exprime as suas opiniotildees sem cessar Chega

ateacute a afirmar que a razatildeo eacute

ldquo[A] sa pierre de touche agrave toutes sortes drsquoessais mais certes crsquoest une touche pleine de fauceteacute drsquoerreur de foiblesse et defaillancerdquo117

Na ldquoApologierdquo Montaigne recorre aos tropos (segundo a designaccedilatildeo de Sexto

Empiacuterico) tomando-os como os principais argumentos contra a filosofia denominada

dogmaacutetica Estes argumentos ceacutepticos tecircm por finalidade provar que eacute impossiacutevel

alcanccedilar a verdade Fundamentado nas reflexotildees pirroacutenicas natildeo considera a ciecircncia

como um verdadeiro conhecimento O saber humano eacute considerado sem efeito por causa

de todo o tipo de divergecircncias que haacute entre os homens

Haacute segundo Montaigne uma imensa e infinita confusatildeo de opiniotildees entre os

filoacutesofos e tudo isto deve-se ao debate perpeacutetuo e universal acerca do conhecimento das

coisas Eles natildeo estatildeo de acordo em nada nem sequer em que o ceacuteu estaacute por cima das

nossas cabeccedilas118 afirma ironicamente E isto deve-se agrave falta de constacircncia do juiacutezo

Quantas vezes julgamos noacutes as coisas Quantas vezes alteramos as nossas opiniotildees

Nesta perspectiva percebemos a atitude relativista de Montaigne

ldquo[A] Ce que je tiens aujourdhuy et ce que je croy je le tiens et le croy de toute ma croyance tous mes utils et tous mes ressorts empoignent cette opinion et men respondent sur tout ce quils peuvent Je me sccedilaurois embrasser aucune veriteacute ny conserver avec plus de force que je fay cette cy Jy suis tout entier jy suis voyrement mais ne mest il pas advenu non une foi mais cent mais mille et tous les jours davoir embrasseacute quelqursquoautre chose agrave tout ces mesmes instrumens en cette mesme condition que depuis jaye jugeacutee fauce Au moins faut il devenir sage agrave ses propres despansrdquo119

Montaigne natildeo pretende condenar a tendecircncia agrave mudanccedila perene que eacute

constitutiva do homem O que ele pretende eacute que o homem se comporte de uma forma

mais moderada e discreta em face das mudanccedilas Sugere que nos tornemos saacutebios agrave

nossa proacutepria custa120

117 Les Essais II 12 p 540 118 Cf Les Essais II 12 p 563 119 Les Essais II 12 p 563 120 Conche na sua obra de introduccedilatildeo aos Essais intitulada Montaigne ou la conscience heureuse apresenta uma reflexatildeo muito sugestiva relativamente ao tema da sabedoria Para este autor os Essais sugerem-nos que compreendamos a filosofia como uma aprendizagem da sabedoria e natildeo do saber Em seu entender Montaigne natildeo tem nenhum interesse em elaborar um sistema filosoacutefico porque isto supotildee que uma verdade permanece o que ela eacute Um sistema filosoacutefico crecirc que haacute verdades e que elas satildeo acessiacuteveis por evidecircncia ou seja que a certeza posta agrave prova eacute realmente uma certeza de direito Estes princiacutepios satildeo sem valor para Montaigne eleja que este natildeo crecirc na possibilidade de confirmar as nossas certezas (cf Conche 2009 op cit 65)

40

O arauto do juiacutezo eacute o homem concreto que vive uma vida real Natildeo eacute um ser

abstracto Por isso Montaigne afirma

ldquo[A] Ce ne sont pas seulement les fievres les breuvages et les grands accidens qui renversent nostre jugement les moindres choses du monde le tournevirent [hellip] et par conseacutequent agrave peine se peut il rencontrer une seule heure en la vie ougrave nostre jugement se trouve en sa deueuml assiette nostre corps estant subject agrave tant de continuelles mutations et estofeacute de tant de sortes de ressorts que ( jen croy les medecins) combien il est malaiseacute quil ny en ayt tousjours quelquun qui tire de traversrdquo121

Vejamos uma definiccedilatildeo da razatildeo na ldquoApologierdquo

ldquo[A] la raison va tousjours torte et boiteuse et deshancheacutee et avec le mensonge comme avec la veriteacute Par ainsin il est malaiseacute de descouvrir son mescompte et desreglement Jappelle tousjours raison cette apparence de discours que chacun forge en soy cette raison de la condition de laquelle il y en peut avoir cent contraires autour dun mesme subject cest un instrument de plomb et de cire alongeable ployable et accommodable agrave tous biais et agrave toutes mesures il ne reste que la suffisance de le sccedilavoir contournerrdquo122

Atraveacutes desta concepccedilatildeo de razatildeo fica suficientemente clara a criacutetica destruidora

de Montaigne agrave filosofia dogmaacutetica que considera a razatildeo como uma faculdade que

permite ao homem ndash entre tantas outras atribuiccedilotildees ndash conhecer e acumular um saber uacutetil

e julgar sobre o bem e o mal

Envolvendo-se de uma maneira muito pessoal ndash como eacute caracteriacutestico do estilo

literaacuterio dos Essais ndash nesta reflexatildeo sobre a razatildeo Montaigne toma a liberdade de fazer

uma pequena descriccedilatildeo de sua personalidade Vale a pena citar algumas destas

passagens porque satildeo um reflexo do pensamento do autor

ldquo[A] Jay le pied si instable et si mal assis je le trouve si ayseacute agrave crouler et si prest au branle et ma veueuml si desregleacutee que agrave jun je me sens autre quapres le repas si ma santeacute me rid et la clarteacute dun beau jour me voylagrave honneste homme si jay un cor qui me presse lorteil me voylagrave renfroigneacute mal plaisant et inaccessible [hellip] Maintenant je suis agrave tout faire maintenant agrave rien faire ce qui mest plaisir agrave cette heure me sera quelque fois peine [hellip] Ou lhumeur melancholique me tient ou la choleriqu [hellip]Quand je prens des livres jauray apperceu en tel passage des graces excelentes et qui auront feru mon ame quun autre fois jy retombe jay beau le tourner et virer jay beau le plier et le manier cest une masse inconnue et informe pour moy [hellip] [B] [hellip] mon jugement ne tire pas tousjours avant il flotte il vaguerdquo123

121 Les Essais II 12 pp 564-565 122 Les Essais II 12 p 565 123 Les Essais II 12 pp 565-566

41

Montaigne daacute-se claramente conta de que natildeo encontramos seguranccedila nos

nossos juiacutezos As nossas paixotildees apresentam uma enorme quantidade de fantasias

Sobre isto natildeo podemos alcanccedilar nenhuma seguranccedila porque nos deparamos com

coisas muito instaacuteveis e moacuteveis Sustenta aleacutem disso que se os nossos juiacutezos estatildeo nas

matildeos ateacute mesmo da doenccedila e da perturbaccedilatildeo natildeo podemos esperar deles nada seguro

Foi a partir desta consciecircncia de sua volubilidade que Montaigne chegou a

estabelecer em si mesmo uma certa constacircncia de ideias a ponto de dificilmente alterar

as ideias primeiras e naturais como ele mesmo reconhece Afirma no entanto que natildeo

eacute capaz de decidir Por isso adopta as decisotildees de outrem e manteacutem-se na posiccedilatildeo em

que Deus o pocircs O seu ldquoconservadorismordquo124 religioso e ateacute poliacutetico manifesta-se

claramente nos Essais Mas ao mesmo tempo e este eacute o ponto que mais nos interessa

neste trabalho deixa transparecer que o homem eacute sempre convidado a estar aberto agraves

mudanccedilas

ldquo[A] Le ciel et les estoilles ont branleacute trois mille ans tout le monde lavoit ainsi creu jusques agrave ce que [C] Cleanthes le Samien ou selon Theophraste Nicetas Siracusien [A] savisa de maintenir que cestoit la terre qui se mouvoit [C] par le cercle oblique du Zodiaque tournant agrave lentour de son aixieu [A] et de nostre temps Copernicus a si bien fondeacute cette doctrine quil sen sert tres-regleacuteement agrave toutes les consequences Astronomiquesrdquo conclui o autor ldquosinon qursquoil ne nous doit chaloir le quel ce soit des deux Et qui sccedilait qursquoune tierce opinion drsquoicy agrave mille ans ne renverse les deux precedentesrdquo125

124 Trata-se de um termo que natildeo tinha na eacutepoca de Montaigne o mesmo significado que tem hoje isto eacute como oposto de ldquoprogressismordquo Montaigne estava inserido numa sociedade marcada por grandes inovaccedilotildees pretendidas pelos partidaacuterios da Reforma Protestante que se defendiam a ferro e fogo acirrando certezas antes adormecidas e impondo agrave Franccedila as mais seacuterias turbulecircncias ldquo[B] Je suis desgousteacute de la nouvelleteacute quelque visage qursquoelle porte et ay raison car jrsquoen ay veu des effets tres-dommageables Celle qui nous presse depuis tant drsquoans elle nrsquoa pas tout exploicteacute mais on peut dire avec apparence que par accident elle a tout produict et engendre voire et les maux et ruines qui se font depuis sans elle et contre elle crsquoest agrave elle agrave srsquoen prendre au nezrdquo (Les Essais I 23 p 119) Eacute nesta perspectiva que vaacuterios comentadores observam que Montaigne natildeo poderia ser um homem ldquorevolucionaacuteriordquo e sim algueacutem que achasse melhor defender uma confianccedila moderada no lento aperfeiccediloamento das instituiccedilotildees ldquo[C] Les Franccedilois mes contemporaneacutees sccedilavent bien qursquoen dire Toutes grandes mutations esbranlent lrsquoestat et le desordonnentrdquo (Les Essais III 9 p 958) Isto permite compreender melhor alguns dos motivos pelos quais Montaigne assume as posiccedilotildees poliacuteticas e religiosas ldquoconservadorasrdquo que estatildeo presentes nos Essais Muito interessante eacute uma afirmaccedilatildeo de Jean Lacouture na sua obra Montaigne agrave cheval ndash considerada como uma espeacutecie de biografia que denota um entusiasmo significativo e algo romanceado fundamentada numa documentaccedilatildeo importante ndash na qual o autor reflecte sobre esta questatildeo ldquoMontaigne eacute grande o bastante para poder ser avaliado sob outros aspectos que natildeo a obediecircncia agraves praacuteticas e costumes de seu tempo Quando se eacute capaz no que diz respeito agrave justiccedila agrave toleracircncia ao racismo e agrave colonizaccedilatildeo de estar muitos seacuteculos agrave frente dos costumes e ideias de seu tempo pode-se ser julgado sem que consideraccedilotildees de eacutepoca ou de moda sejam levadas em contardquo (In Lacouture Jean Montaigne agrave cheval (Montaigne a cavalo) Traduzido do francecircs por F Rangel Rio de JaneiroSatildeo Paulo Editora Record 1998 p 236) 125 Les Essais II 12 p 570

42

E para fundamentar ainda mais esta ideia cita Lucreacutecio

ldquo[A] Sic volvenda aeligtas commutat tempora rerum Quod fuit in pretio fit nullo denique honore Porro aliud succedit et egrave contemptibus exit Inque dies magis appetitur floreacutetque repertum Laudibus Et miro est mortales inter honore ( ldquoAinsi dans sa course le temps change les conditions des choses ce qui eacutetait appreacutecieacute tombe dans le meacutepris un autre objet remplace le premier et sort du discreacutedit de jour en jour on le recherce davantage la deacutecouverte nouvelle toutes les louanges et une incoyable estime parmi les hommes)rdquo126

Podemos inferir daqui que ldquoos princiacutepios eternosrdquo natildeo tecircm lugar na ldquoApologie

de Raymond Sebondrdquo Montaigne faz questatildeo de observar que antes de os princiacutepios

introduzidos por Aristoacuteteles ganharem creacutedito outros princiacutepios contentavam a razatildeo

humana Os princiacutepios aristoteacutelicos como todos os outros natildeo estatildeo mais livres de ser

expulsos do que estavam os dos seus antecessores

Segundo Montaigne o juiacutezo depende dos sentidos aos quais por sua vez natildeo

podemos dar creacutedito por vaacuterios motivos Vejamos com mais detalhes este aspecto Eacute

justamente nos sentidos que se encontra o maior fundamento e a prova de nossa

ignoracircncia Montaigne baseado na experiecircncia de vida lembra-nos que natildeo haacute sentido

ou aspecto nem recto nem amargo nem doce nem curvo que o espiacuterito humano natildeo

encontre nos escritos que decide esquadrinhar Os sentidos satildeo muito enganadores A

palavra mais liacutempida mais pura e mais perfeita pode tornar-se equiacutevoca Montaigne

refere-se especialmente ao Evangelho127 Fizeram ao longo da histoacuteria ldquotudo e mais

alguma coisardquo com este texto sagrado para os cristatildeos E que ocorreria se estendecircssemos

esta preocupaccedilatildeo de Montaigne aos gestos humanos que querem exprimir ideias ou

sentimentos nas vaacuterias dimensotildees da vida moral poliacutetica etc

ldquo[C] Est-il possible qursquoHomere aye voulu dire tout ce qursquoon luy faict direrdquo128 E com relaccedilatildeo a Platatildeo ldquo[C] Voyez demener et agiter Platon Chacun srsquohororant de lrsquoappliquer agrave soi le couche du costeacute qursquoil le veutrdquo129

Montaigne observa ainda que com frequecircncia eacute difiacutecil decidir-se porque haacute

demasiadas formas de interpretar um determinado assunto para que o homem consiga

encontrar alguma indicaccedilatildeo que lhe sirva para resolver a questatildeo

126 Les Essais II 12 p 570 127 Cf Les Essais II 12 p 585 128 Les Essais II 12 p 586 129 Les Essais II 12 p 587

43

Montaigne afirma que todo o conhecimento chega ateacute noacutes pelos sentidos [A] Ce

sont nos maistresrdquo130 Observa que a ciecircncia comeccedila pelos sentidos e a eles se reduz

Eles satildeo a base e os princiacutepios de toda a construccedilatildeo de nossa ciecircncia E considera que

natildeo haacute absurdo mais extremo do que sustentar que

ldquo[A] le feu nrsquoeschaufe point que la lumiere nrsquoesclaire point qursquoil nrsquoy a point de pesanteur au fer ny de fermeteacute qui sont notices que nous apportent les sens nycreance ou science en lrsquohomme qui se puisse comparer agrave celle-lagrave en certituderdquo131

Montaigne potildee em duacutevida que o homem esteja provido de todos os sentidos

naturais Chega inclusivamente a perguntar-se se natildeo nos falta algum sentido E afirma

que se isto ocorrer nem a nossa razatildeo pode descobrir a sua ausecircncia nem haacute nada agrave

margem dos sentidos que nos possa servir para os descobrir

ldquo[A]Ils font trestons la ligne extreme de nostre faculteacute [hellip] Il est impossible de faire concevoir agrave un homme naturellement aveugle qursquoil nrsquoy void pas impossible de luy faire desirer la veue et regretter son defautrdquo132

Sendo assim afirma que quando formamos uma verdade pela consulta e

cooperaccedilatildeo dos sentidos poderiacuteamos tambeacutem ser levados a considerar que poderia ser

necessaacuteria a convergecircncia e a contribuiccedilatildeo de oito ou dez sentidos para a captar

acertadamente e na sua essecircncia

Uma das criacuteticas fundamentais de Montaigne agrave ciecircncia incide precisamente no

facto de ela se basear nos sentidos Mas como vimos os sentidos satildeo muito incertos e

fraacutegeis Desta extrema dificuldade nascem muitas opiniotildees (ldquofantasiesrdquo)

ldquo[A]Que chaque subjet a en soy tout ce que nous y trouvons qursquoil nrsquoa rien de ce que nous y pensons trouver et celle de Epicuriens que le Soleil nrsquoest non plus grand que ce que nostre veueuml le juge [hellip] (A) que les apparences qui representent un corps grand agrave celuy qui en est voisin et plus petit agrave celuy qui en est esloigneacute sont toutes deux vrayes [hellip] [A]et resolument qursquoil nrsquoy a aucun tromperie aux sens qursquoil faut passer agrave leur mercy et chercher ailleurs des raisons pour excuser la difference et contradiction que nous y trouvons voyre inventer toute autre mensonge et resverie (ils en viennent jusques lagrave) plustot que drsquoaccuser les sens [hellip] [A] De toutes les absurditez la plus absurde [C] aux Epicuriens [A] est davouumler la force et effect des sensrdquo133

130 Les Essais II 12 p 587 131 Les Essais II 12 p 588 132 Les Essais II 12 p 589 133 Les Essais II 12 p 591

44

Segundo Montaigne natildeo podemos livrar-nos dos sentidos se queremos construir

o conhecimento Mas os sentidos satildeo incertos falsificaacuteveis e enganadores134 E entende

tambeacutem que se eacute verdade que os sentidos satildeo os nossos primeiros juiacutezes135 entatildeo natildeo

devemos limitar-nos a convocar apenas os nossos para o conselho pois no que se refere

aos sentidos os animais tecircm tanto direito quanto noacutes ou mais Montaigne observa ainda

que os sentidos do homem estatildeo em desacordo com os sentidos dos animais E eacute por isto

que

ldquo[A] Pour le jugement de lrsquoaction des sens il faudroit donc que nous en fussions premierement drsquoaccord avec les bestes secondement entre nous mesmes [hellip] et entrons en debat tous les coups de ce que lrsquoun oit void ou goute quelque chose autrement qursquoun autre et debatons autant que drsquoautre chose de la diversiteacute des images que le sens nous raportentrdquo136

Concluindo a exposiccedilatildeo acerca dos sentidos Montaigne lembra-nos que os

sentidos satildeo para algumas pessoas mais obscuros e mais velados enquanto que para

outras pessoas satildeo mais claros e apurados Em seu entender recebemos as coisas de

forma diferente de acordo com o que somos e com o que nos parece Mas se o parecer

nos eacute tatildeo incerto e controverso

ldquo[A] Ce nrsquoest plus miracle si on nous dict que nous pouvons avoueumlr que la neige nous apparoit blanche mais que drsquoestablir si de son essence elle est telle et agrave la veriteacute nous ne nous en sccedilaurions respondrerdquo137

Tendo em conta todos os atributos dos sentidos acima mencionados Montaigne

dificilmente poderia chegar a uma outra conclusatildeo

ldquo[A] ce commencement esbranleacute toute la science du monde srsquoen va necessairement agrave vau-lrsquoeaurdquo138

Referindo-se a Teofrasto Montaigne recorda-nos que este pensador dizia que o

conhecimento humano guiado pelos sentidos podia julgar sobre as causas das coisas

ateacute certo ponto Mas que ao chegar agraves causas extremas e primeiras tinha de deter-se a

embotar-se devido ou agrave sua fragilidade ou agrave dificuldade das coisas Montaigne afirma

134 Assim como os sentidos satildeo enganadores satildeo tambeacutem enganados ldquo[A] Cette mesme piperie que les sens apportent agrave nostre entendement ils la reccediloivent agrave leur tour Nostre ame par fois srsquoen revenche de mesme [C] ils mentent et se trompent agrave lrsquoenvy [A] Ce que nous voyons et oyons agitez de colere nous ne lrsquooyons pas tel qursquoil est [hellip] Lrsquoobject que nous aymons nous semble plus beau qursquoil est [hellip] [A] et plus laid celuy que nous avons agrave contre coeur [hellip] Nos sens sont non seulement alterez mais souvent hebelez du tout par les passions de lrsquoame Combien de choses voyons nous que nous nrsquoa appercevons pas si nous avons nostre esprit empescheacute ailleurs (Les Essais II 12 pp 495-496) 135 Cf Les Essais II 12 p 596 136 Les Essais II 12 p 598 137 Les Essais II 12 pp 598-599 138 Les Essais II 12 p 599

45

ldquo[A] Cest une opinion moyenne et douce que nostre suffisance nous peut conduire jusques agrave la cognoissance daucunes choses et quelle a certaines mesures de puissance outre lesquelles cest temeriteacute de lemployer Cette opinion est plausible et introduicte par gens de composition mais il est malaiseacute de donner bornes agrave nostre esprit il est curieux et avide et na point occasion de sarrester plus tost agrave mille pas quagrave cinquanterdquo139

Montaigne procura aqui justificar a sua tese de que o conhecimento empiacuterico ou

sensiacutevel natildeo tem condiccedilotildees para permitir captar princiacutepios e verdades universais A

razatildeo humana por ser um instrumento impotente natildeo consegue dar explicaccedilotildees

convincentes das grandes questotildees da humanidade Consegue apenas explicar algumas

poucas coisas Se a razatildeo eacute incapaz de dar respostas profundas e aceitaacuteveis agraves grandes

questotildees ndash como por exemplo agraves causas primeiras ndash ela eacute descartaacutevel e no que toca agrave

busca do conhecimento natildeo serve para quase nada Daiacute que Montaigne afirme que o

homem eacute capaz de todas as coisas e de nenhuma E se confessa a ignoracircncia das causas

primeiras e dos princiacutepios entatildeo que abandone tambeacutem prontamente todo o resto da sua

ciecircncia

Se a alma conhecesse alguma coisa comeccedilaria por se conhecer a si mesma

ldquo[A] et si elle sccedilavoit quelque chose elle se sccedilauroit premierement elle mesme et si elle sccedilavoit quelque chose hors drsquoelle ce seroit son corps et son estuy avant toute autre choserdquo140

Montaigne refere-se aqui especialmente ao chamado conhecimento da medicina

Para ele a medicina natildeo consegue sair do ciclo vicioso das discussotildees Ressalta o facto

de que ldquoles dieuxrdquo desta ciecircncia tambeacutem natildeo conseguem chegar a acordo algum Daiacute

mais uma vez a atitude pirroacutenica de Montaigne

ldquo[A] Si lrsquohomme ne se connoit comment connoit il ses fonctions et ses forcesrdquo141

O autor debate-se com o problema da verdade o que eacute a verdade Na

ldquoApologierdquo sustenta que a verdade eacute inacessiacutevel e flutuante Neste ponto Montaigne eacute

fiel ao cepticismo que tem como caracteriacutestica dominante a atitude de estar sempre em

busca da verdade num processo que ocorre sempre dentro de um eterno movimento e

nunca se fixa definitivamente em nenhum ponto

139 Les Essais II 12 p 560 140 Les Essais II 12 p 561 141 Les Essais II 12 p 561

46

ldquo[B] La veueuml de nostre jugement se rapporte agrave la veriteacute comme faict loeil du chat-huant agrave la splendeur du Soleil ainsi que dit Aristote Par ougrave le sccedilaurions nous mieux convaincre que par si grossiers aveuglemens en une si apparente lumiererdquo142

Esta concepccedilatildeo flutuante da verdade eacute uma caracteriacutestica distintiva natildeo soacute da

ldquoApologierdquo mas tambeacutem de outros ensaios montaigneanos O autor natildeo faz nenhuma

afirmaccedilatildeo definitiva sobre nenhuma questatildeo A sua preocupaccedilatildeo principal natildeo eacute

encontrar a soluccedilatildeo dos diversos problemas que envolvem o homem mas sim tentar

compreender-se a si proacuteprio ldquo[hellip] je suis moy-mesmes la matiere de mon livrerdquo143 Isto

exclui as verdades fixadas pela tradiccedilatildeo filosoacutefica e neste sentido o pensamento de

Montaigne desenvolve-se agrave margem do dogmatismo Rejeita os pedantes isto eacute aqueles

que acreditam que adquirem o conhecimento utilizando termos palavras ou frases

obscuros

Montaigne insiste na dimensatildeo instaacutevel e incerta do nosso conhecimento que

natildeo consegue alcanccedilar a verdade

ldquo[A] Toutes choses produites par nostre propre discours et suffisance autant vrayes que fauces sont subjectes agrave incertitude et debat Cest pour le chastiement de nostre fierteacute et instruction de nostre misere et incapaciteacute que Dieu produisit le trouble et la confusion de lancienne tour de Babel Tout ce que nous entreprenons sans son assistance tout ce que nous voyons sans la lampe de sa grace ce nest que vaniteacute et folie Lessence mesme de la veriteacute qui est uniforme et constante quand la fortune nous en donne la possession nous la corrompons et abastardissons par nostre foiblesserdquo144

A verdade deve ter ldquo[A] un visage pareil et universelrdquo145 Uma outra

caracteriacutestica da verdade salientada por Montaigne eacute que ela ldquo[A] ne se juge point par

authoriteacute et tesmoignage drsquoautruyrdquo146 Neste sentido a verdade eacute fundamentalmente

pessoal Observando cuidadosamente estes atributos da verdade podemos perceber por

que razatildeo Montaigne faz a seguinte afirmaccedilatildeo

ldquo[A] la veriteacute est engoufleacutee dans des profonds abysmes ougrave la veueuml humaine ne peut penetrerrdquo147

Dito de outro modo a verdade estaacute oculta em Deus e natildeo eacute propriamente dos

homens dos filoacutesofos dos doutos

142 Les Essais II 12 p 552 143 Les Essais Au lecteur p 3 144 Les Essais II 12 p 553 145 Les Essais II 12 pp 578-579 146 Les Essais II 12 p 507 147 Les Essais II 12 p 561

47

ldquo[A] Crsquoest agrave elle (la majesteacute divine) seule qursquoapartient la science et la sapiencerdquo148

A criacutetica montaigneana agrave razatildeo humana manifesta aqui a impossibilidade de se

ter um conhecimento crediacutevel em todos os domiacutenios da vida A razatildeo por ser

infinitamente limitada natildeo consegue chegar a ser uma faculdade que garanta a

descoberta e por conseguinte a sistematizaccedilatildeo da verdade que eacute algo moacutevel pessoal

temporal e tambeacutem paradoxal

Lendo os pensadores antigos Montaigne suscita uma questatildeo fundamental Em

seu entender haacute uma espeacutecie de distanciamento ou divoacutercio entre o conhecimento da

essecircncia e o conhecimento da aparecircncia Como eacute possiacutevel entatildeo observa Montaigne

que eles se deixam vencer pela verosimilhanccedila se natildeo conhecem a verdade Como eacute

possiacutevel que conheccedilam a aparecircncia de algo cuja essecircncia natildeo conhecem Diante destas

dificuldades o autor da ldquoApologierdquo sustenta

ldquo[A] Ou nous pouvons juger tout agrave faict ou tout agrave faict nous ne le pouvons pas Si noz facultez intellectuelles et sensibles sont sans fondement et sans pied si elles ne font que floter et vanter pour neant laissons nous emporter nostre jugement agrave aucune partie de leur operation quelque apparence quelle semble nous presenter et la plus seure assiette de nostre entendement et la plus heureuse ce seroit celle-lagrave ougrave il se maintiendroit rassis droit inflexible sans bransle et sans agitationrdquo149

Segundo Montaigne as coisas natildeo se alojam em noacutes com a sua forma e a sua

essecircncia Se assim fosse recebecirc-las-iacuteamos dessa forma O vinho seria o mesmo na boca

de quem quer que fosse Mas natildeo eacute o que acontece a filosofia causa uma infinita

confusatildeo de opiniotildees e um eterno debate sobre o conhecimento das coisas Deixemos o

proacuteprio autor falar

ldquo[A]Car cela est presuposeacute tres-veritablement que de aucune chose les hommes je dy les sccedilavans les mieux nais les plus suffisans ne sont daccord non pas que le ciel soit sur nostre teste car ceux qui doutent de tout doutent aussi de cela et ceux qui nient que nous puissions aucune chose comprendre disent que nous navons pas compris que le ciel soit sur nostre teste et ces deux opinions sont en nombre sans comparaison les plus fortesrdquo150

Montaigne reconhece que os seus juiacutezos acerca de tudo aquilo que eacute falso eou

verdadeiro ocorrem de uma maneira condicionada dependendo da sua situaccedilatildeo interior

148 Les Essais II 12 p 448 149 Les Essais II 12 p 562 150 Les Essais II 12 p 563

48

e exterior A sua posiccedilatildeo em face das diversas situaccedilotildees concretas da vida eacute muito

dependente das suas opiniotildees que podem ser hoje umas e outras diferentes ou ateacute

contraacuterias amanhatilde Em seu entender ateacute o proacuteprio ar que respiramos e a serenidade do

ceacuteu produzem em noacutes alguma alteraccedilatildeo Recorda um verso de Ciacutecero

ldquo[A] Tales sunt hominum mentes quali pater ipse Juppiter auctifera lustravit lampade terras (Les penseacutees des hommes changent avec les rayons feacutecundants du soleil que Jupiter leur envoie)rdquo151

Noutro ensaio do livro III intitulado ldquoDu repentirrdquo Montaigne depois de afirmar

que o mundo eacute movimento e que tudo nele muda continuadamente faz uma observaccedilatildeo

de grande importacircncia que pode ser inserida neste contexto

ldquo[B] Tant y a que je me contredits bien agrave lrsquoaventure mais la veriteacute comme disoit Demandes je ne la contredy point Si mon ame pouvoit prendre pied je ne mrsquoessaierois pas je me resoudrois elle est toujours en apprentissage et en espreuverdquo152

Montaigne questiona de forma radical todos os que se orgulham de sua razatildeo e

acreditam na certeza de todos os seus princiacutepios Utiliza a proacutepria razatildeo para arruinar a

razatildeo dos filoacutesofos profissionais ou seja os seguidores cegos da loacutegica aristoteacutelica Em

suma combate a razatildeo com a proacutepria razatildeo e nega o seu valor

No texto seguinte Montaigne faz uma espeacutecie de caracterizaccedilatildeo da

escolaacutestica153 e da loacutegica aristoteacutelica154 Eacute um texto fundamental da ldquoApologierdquo no

qual o autor se refere claramente agrave hierarquia filosoacutefica aristoteacutelica na qual

encontramos a metafiacutesica como ldquociecircncia mais correctardquo

ldquo[A] Il est bien aiseacute sur des fondemens avouez de bastir ce quon veut car selon la loy et ordonnance de ce commencement le reste des pieces du bastiment se conduit ayseacuteement sans se deacutementir Par cette voye nous trouvons nostre raison bien fondeacutee et discourons agrave boule veue car nos maistres praeligoccupent et gaignent avant main autant de lieu en nostre creance quil leur en faut pour conclurre apres ce quils veulent agrave la mode des Geometriens par leurs demandes avoueacutees le consentement et

151 Les Essais II 12 p 564 152 Les Essais III 2 p 805 153 Na eacutepoca em que Montaigne escreveu a ldquoApologierdquo a doutrina escolaacutestica era caracterizada por um excesso de formalismo e de abstracccedilatildeo o que o levou a demonstrar uma aversatildeo profunda por essa filosofia 154 Segundo Friedrich haacute na ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo alguns ldquofaibles tracesrdquo de uma leitura de Aristoacuteteles jaacute que naquela eacutepoca este pensador grego exercia a sua uacuteltima grande influecircncia sobre os humanistas Aristoacuteteles eacute para Montaigne a ldquoquintessencerdquo da autoridade magistral que obstaculiza a sua relaccedilatildeo livre com a tradiccedilatildeo ldquoSa doctrine nous sert de loy magistrale qui est agrave lrsquoaventure autant fause qursquoune autrerdquo (Les Essais II 12 p 521 a 279) Friedrich observa no entanto que natildeo eacute possiacutevel fixar exactamente em que medida Montaigne leu Aristoacuteteles e considera que natildeo se trata de uma leitura muito soacutelida (Cf Friedrich op cit p 67)

49

approbation que nous leurs prestons leur donnant dequoy nous trainer agrave gauche et agrave dextre et nous pyroueter agrave leur volonteacute Quiconque est creu de ses presuppositions il est nostre maistre et nostre Dieu il prendra le plant de ses fondemens si ample et si aiseacute que par iceux il nous pourra monter sil veut jusques aux nueumls En cette pratique et negotiation de science nous avons pris pour argent content le mot de Pythagoras que chaque expert doit estre creu en son art Le dialecticien se rapporte au grammairien de la signification des mots le Rhetoricien emprunte du Dialecticien les lieux des arguments le poete du musicien les mesures le geometrien de larithmeticien les proportions les metaphysiciens prennent pour fondement les conjectures de la physique Car chasque science a ses principes presupposez par ougrave le jugement humain est brideacute de toutes parts Si vous venez agrave choquer cette barriere en laquelle gist la principale erreur ils ont incontinent cette sentence en la bouche quil ne faut pas debattre contre ceux qui nient les principesrdquo155

Se a verdade ndash como tudo parece indicar ndash se daacute a conhecer atraveacutes das causas ndash

haveraacute que fazer referecircncia agraves quatro causas156 presentes na filosofia aristoteacutelica Se o

homem realmente conseguir conhecer estas causas teraacute um conhecimento ldquocientiacuteficordquo

da substacircncia que procura Por isso Montaigne quer invalidar a filosofia dita dogmaacutetica

de Aristoacuteteles rejeitando claramente a tese das quatro causas Em seu entender esta

teoria natildeo passa de um engano O autor da ldquoApologierdquo sugere que a teoria das quatro

causas soacute serve para prejudicar os homens que ludibriados pelo poder da razatildeo natildeo

cessam de correr atraacutes do conhecimento das causas que lhe eacute por seu turno inacessiacutevel

A verdade das causas estaacute acima de nossas capacidades racionais

Assumindo a postura pirroacutenica de Sexto Empiacuterico ndash que foi aliaacutes um aceacuterrimo

opositor de Aristoacuteteles ndash Montaigne procurou fazer algo semelhante Isto eacute procurou

atacar as bases da ciecircncia escolaacutestica (sobretudo preocupada em conciliar a razatildeo com a

feacute apoiando-se na filosofia grega principalmente a aristoteacutelica) e por conseguinte de

todos os outros sistemas dogmaacuteticos Numa perspectiva ceacuteptica sextiana Montaigne

trava uma batalha contra os princiacutepios da metafiacutesica tidos como os mais correctos Esta

visatildeo aristoteacutelica quer estabelecer uma ligaccedilatildeo entre o pensamento e o juiacutezo humanos e

os obriga a natildeo evitar as questotildees preacute-existentes Segundo Montaigne esta concepccedilatildeo

155 Les Essais II 12 p 540 156 Aristoacuteteles apresenta estas causas particularmente nos livros I e II da Metafiacutesica Satildeo elas causa material isto eacute aquilo de que eacute feita uma coisa por exemplo a mateacuteria do homem eacute a carne e os ossos a mateacuteria da mesa eacute a madeira e assim por diante causa formal isto eacute a forma ou essecircncia das coisas por exemplo o rio e o mar satildeo as formas da aacutegua um tapete eacute a forma assumida pela mateacuteria latilde com a acccedilatildeo do artiacutefice causa eficiente ou motriz isto eacute aquilo de que provecircm a mudanccedila e o movimento das coisas por exemplo o artiacutefice eacute a causa eficiente que faz a latilde receber a forma do tapete o gelo eacute a forma que faz os corpos quentes tornarem-se frios e causa final isto eacute a causa que constitui o fim ou o propoacutesito das coisas e acccedilotildees por exemplo o bem eacute a causa final da poliacutetica a felicidade eacute a causa final da acccedilatildeo eacutetica e assim por diante

50

tambeacutem natildeo potildee em evidecircncia o facto de que o conhecimento adquirido por este

processo fica enclausurado dentro de um ciacuterculo vicioso Deixemos o proacuteprio autor

falar

ldquo[A] Pour juger des apparences que nous recevons des subjets il nous faudroit un instrument judicatoire pour verifier cet instrument il nous y faut de la demonstration pour verifier la demonstration un instrument nous voila au rouet Puis que les sens ne peuvent arrester nostre dispute estans pleins eux-mesmes dincertitude il faut que ce soit la raison aucune raison ne sestablira sans une autre raison nous voylagrave agrave reculons jusques agrave linfiny Nostre fantasie ne sapplique pas aux choses estrangeres ains elle est conceue par lentremise des sens et les sens ne comprennent pas le subject estranger ains seulement leurs propres passions et par ainsi la fantasie et apparence nest pas du subject ains seulement de la passion et souffrance du sens laquelle passion et subject sont choses diverses parquoy qui juge par les apparences juge par chose autre que le subject [hellip]rdquo157

Os escolaacutesticos natildeo testaram as suas ideias atraveacutes dos factosldquoIls ne se

rapportent pas agrave lrsquoexpeacuterience ils nrsquoessaient jamais leurs opinions Leur travail consiste

uniquement agrave tirer des deacuteductions de principes et drsquoaxiomes qursquoils nrsquoexaminent jamais

Leurs principes sont faux les conseacutequences qursquoils en deacuteduisent sont donc fausses

neacutecessairement mais ils ne srsquoen soucient pas La meacutethode scolastique et logicienne

triomphe toujours et rend tous les efforts steacuterilesrdquo158 Montaigne daacute-se conta de que a

capacidade do homem de conhecer algo estaacute profundamente relacionada com a

contingecircncia e que esta mesma capacidade estaacute subordinada aos sentidos que satildeo

ldquomaintesfois maistres du discoursrdquo159 mas que ao mesmo tempo satildeo incertos e

falsificaacuteveis E portanto esta ciecircncia eacute incapaz de chegar a certezas crediacuteveis

157 Les Essais II 12 pp 600-601 158 Villey op cit pp 214-215 159 Les Essais II 12 p 592

51

4 A criacutetica agrave razatildeo humana e o relativismo da moral

Quando lemos a ldquoApologie de Raymond de Sebondrdquo aleacutem de nos depararmos

com problemas claacutessicos da filosofia como a criacutetica agrave teoria do conhecimento

deparamo-nos tambeacutem com o problema da moral de que o autor se ocupa de uma

maneira muito particular Natildeo apresentaremos neste capiacutetulo uma abordagem detalhada

e detida do tema da moral na ldquoApologierdquo Isto exigiria uma investigaccedilatildeo aprofundada e

de maior amplitude uma vez que o autor desenvolve neste texto muitos aspectos

importantes deste tema

Limitar-nos-emos a procurar perceber por que razatildeo o autor ldquodecretardquo a

impossibilidade de fundamentar na razatildeo humana um conjunto de normas ou leis que

dizem respeito agrave vida praacutetica de qualquer grupo humano Perseguindo este objectivo

procuraremos reconstruir os vaacuterios argumentos do ensaio que justificam a sua tomada

de posiccedilatildeo no acircmbito da moral160

Para contextualizar um pouco a questatildeo da moral nos Essais eacute importante

observar que no periacuteodo do humanismo renascentista se fazia sentir a necessidade de

emitir juiacutezos que fossem coerentes de se informar dos costumes dos homens tanto dos

antigos como dos povos que habitavam terras longiacutenquas Todos queriam rever a sua

ideia de homem Tratava-se de uma busca aberta e muitos ofereciam a sua contribuiccedilatildeo

como afirma Villey161 Tampouco Montaigne se demitiu desta tarefa Envolveu-se com

empenho na tarefa de perceber o que eacute o homem Para isto misturou muitas histoacuterias

antigas e contemporacircneas com inuacutemeras reflexotildees de viajantes que vinham de terras

distantes sobretudo daquelas que foram invadidas e ocupadas por europeus nelas

encontra uma confirmaccedilatildeo da tese segundo a qual a multiplicidade irreconciliaacutevel e a

diversidade mais ampla satildeo a uacutenica marca do ser As teses ceacutepticas de Montaigne

revelam-se de uma maneira particularmente radical no campo da moral neste acircmbito

adquiriraacute uma importacircncia capital a diversidade dos costumes como argumento contra a

moral ldquoracionalrdquo

160 Segundo Villey Montaigne toma consciecircncia do relativismo relativo ao conhecimento natildeo apenas nas noccedilotildees de metafiacutesica mas tambeacutem nas noccedilotildees de moral Neste ponto teraacute uma influecircncia muito importante sobretudo a sua leitura de Sexto Empiacuterico Nesta perspectiva Montaigne pode ser visto como um moralista O mesmo autor afirma que eacute principalmente nas ideias morais que podemos perceber nitidamente o relativismo montaigneano (cf Villey op cit pp188-189) 161 Cf Villey op cit p189

52

Na ldquoApologierdquo Montaigne deteacutem-se a considerar que todas as sociedades tecircm

necessidade das leis Ele tem perfeita consciecircncia de que sem leis nenhuma sociedade

poderaacute ter vida longa A obediecircncia agraves leis162 eacute uma condiccedilatildeo sine qua non para a

sobrevivecircncia de qualquer grupo social Montaigne natildeo leva a ingenuidade ao ponto de

negar pura e simplesmente a necessidade das leis e normas Neste sentido pensa como

Epicuro isto eacute considera que mesmo as piores leis nos satildeo tatildeo necessaacuterias que sem

elas os homens se devorariam uns aos outros163 No mesmo paraacutegrafo Montaigne

observa que tambeacutem Platatildeo distanciando-se pouco desta tese sustenta que sem leis

viveriacuteamos como animais selvagens e se empenha em provaacute-lo

ldquo[A] Nostre esprit est un util vagabond dangereux et temeraire il est malaiseacute dy joindre lordre et la mesure Et de mon temps ceux qui ont quelque rare excellence au dessus des autres et quelque vivaciteacute extraordinaire nous les voyons quasi tous desbordez en licence dopinions et de meurs Cest miracle sil sen rencontre un rassis et sociable On a raison de donner agrave lesprit humain les barrieres les plus contraintes quon peut En lestude comme au reste il luy faut compter et regler ses marches il luy faut tailler par art les limites de sa chasserdquo164

Ao citar Epicuro e Platatildeo o autor da ldquoApologierdquo manifesta a sua decepccedilatildeo

relativamente ao homem de sua eacutepoca Certamente estes pensadores trazem-lhe agrave

memoacuteria a situaccedilatildeo concreta em que estava mergulhada a sociedade francesa naquela

eacutepoca Lendo de uma forma atenta a sua obra eacute faacutecil comprovar que Montaigne era

consciente de tudo o que se passava no seu paiacutes guerras conflitos religiosos profundos

e actos de violecircncia deles derivados

Laschamp ao descrever algumas caracteriacutesticas do contexto no qual Montaigne

elabora a sua obra afirma

162 Haacute uma quantidade significativa de afirmaccedilotildees nos Essais acerca da necessidade do cumprimento da lei independentemente de esta ser ou natildeo justa Vejamos algumas ldquo [C] Il nrsquoest rien si lourdement et largement fautier que les loix ny si ordinairement [B] Quiconque leur obeyt pas justement par ougrave il doibt [hellip] [B]Or les loix se maintiennent en credit non par ce qursquoelles sont justes mais par ce qursquoelles sont loix Crsquoest le fondement mystique de leur authoriteacute elles nrsquoen ont poinct drsquoautrerdquo (Les Essais III 13 p 1072) Montaigne chega ateacute a afirmar que ldquo[A] ce bon et grand Socrates refusa de sauver sa vie par la desobeissance du magistrat voire drsquoun magistrat tres-injuste et tres-inique Car crsquoest la regle des regles et generale loy des loix que chacun observe celles du lieu ougrave il est [hellip]rdquo (Les Essais I 23 p 118) ldquo[A] Jen diray seulement encore cela que cest la seule humiliteacute et submission qui peut effectuer un homme de bien Il ne faut pas laisser au jugement de chacun la cognoissance de son devoir il le luy faut prescrire non pas le laisser choisir agrave son discours autrement selon limbecilliteacute et varieteacute infinie de nos raisons et opinions nous nous forgerions en fin des devoirs qui nous mettroient agrave nous manger les uns les autres comme dit Epicurusrdquo (Essais II 12 p 488) 163 Cf Les Essais II 12 p 558 164 Les Essais II 12 p 559

53

ldquoLes violences entre les dissidents eacutegalaient celles dont ils eacutetaient lrsquoobjet de la part de leurs adversaires Jamais lrsquoabus du raisonnement nrsquoavait eacuteteacute pousseacute plus loin jamais il nrsquoavait deacutechacircneacute tant de colegraveres jamais il nrsquoavait fait couler tant de larmes et tant de sangrdquo165

Assim se compreende melhor por que razatildeo Montaigne afirma que na sua

eacutepoca os que tecircm alguma rara excelecircncia acima dos outros e uma vivacidade

extraordinaacuteria os excedem em desregramento de ideias e de costumes e praticam acccedilotildees

que impedem a felicidade dos homens

Montaigne na qualidade de libre penseur natildeo poderia deixar de defender a

liberdade de pensamento Mas ao mesmo tempo sabe tambeacutem que se esta liberdade

estiver sujeita agrave vaidade da razatildeo muitas atitudes humanas inclusive religiosas como

vimos anteriormente poderatildeo tornar-se nocivas para o homem Ao descrever algumas

das caracteriacutesticas da liberdade de que davam prova os antigos na filosofia e ao fazer

um paralelo com a sociedade de sua eacutepoca afirma

ldquo[A] La liberteacute donq et gaillardise de ces esprits anciens produisoit en la philosophie et sciences humaines plusieurs sectes dopinions differentes chacun entreprenant de juger et de choisir pour prendre party Mais agrave present [C] que les hommes vont tous un train [hellip] et [A] que nous recevons les arts par civile authoriteacute et ordonnance [C] si que les escholes nont quun patron et pareille institution et discipline circonscrite on ne regarde plus ce que les monnoyes poisent et valent mais chacun agrave son tour les reccediloit selon le pris que lapprobation commune et le cours leur donneOn ne plaide pas de lalloy mais de lusage ainsi se mettent egallement toutes choses On reccediloit la medicine comme la Geometrie et les batelages les enchantemens les liaisons le commerce des esprits des trespassez les prognostications les domifications et jusques agrave cette ridicule poursuitte de la pierre philosophale tout se met sans contredictrdquo166

Montaigne escreve a sua obra mergulhado num clima onde reinava uma

ldquoanarchie dans les ideacutees et dans les faitsrdquo167 e coloca-se na atitude de ajudado pelos

costumes antigos julgar o seu tempo Segundo Villey eacute exactamente neste contexto

muito conturbado que Montaigne entra em contacto com o livro de Sexto Empiacuterico

ldquoVoilagrave ougrave lrsquoinfluence du milieu et sa propre dociliteacute aux faits lrsquoont conduit Presque toujours crsquoest la loi politique et morale agrave laquelle il est naturellement assujetti que lrsquoesprit eacuterige en loi absolue Montaigne a affranchi sa raison de cette contrainte naturelle il sait critiquer la loi

165 Laschamp op cit p 104 166 Les Essais II 12 pp 559-560 167 Laschamp op cit p 94

54

que son milieu lui impose crsquoest un pas drsquoune extrecircme importance qursquoil a fait lagrave vers lrsquoideacutee de relativiteacuterdquo168

Montaigne descreve alguns aspectos que comprovam o seu relativismo face aos

costumes de vaacuterios povos sobretudo quando os relaciona com os de Franccedila Com isto o

autor quer sugerir possivelmente que as crenccedilas os juiacutezos e as opiniotildees dos homens

estatildeo sujeitos agraves inconstacircncias perenes que haacute na vida concreta

ldquo[A] si le ciel les agite et les roule agrave sa poste quelle magistrale authoriteacute et permanante leur allons nous attribuant [hellip] [B] en maniere que ainsi que les fruicts naissent divers et les animaux les hommes naissent aussi plus et moins belliqueux justes temperans et dociles icy subjects au vin ailleurs au larecin ou agrave la paillardise icy enclins agrave superstition ailleurs agrave la mescreance [C] icy agrave la liberteacute icy agrave la servitude [hellip] [B] que deviennent toutes ces belles prerogatives dequoy nous nous allons flatants Puis quun homme sage se peut mesconter et cent hommes et plusieurs nations voire et lhumaine nature selon nous se mesconte plusieurs siecles en cecy ou en cela quelle seureteacute avons nous que par fois elle cesse de se mesconter [C] et quen ce siecle elle ne soit en mescomte [A] Il me semble entre autres tesmoignages de nostre imbecilliteacute que celui-cy ne merite pas destre oublieacute que par desir mesmes lhomme ne sccedilache trouver ce quil luy faut que non par jouyssance mais par imagination et par souhait nous ne puissions estre daccord de ce dequoy nous avons besoing pour nous contenter Laissons agrave nostre penseacutee tailler et coudre agrave son plaisir elle ne pourra pas seulement desirer ce qui luy est propre [C] et se satisfaire [hellip]rdquo169

Segundo Montaigne a verdade de uma teoria moral ndash como a de qualquer outro

conhecimento ndash soacute pode ser afirmada relativamente ao sujeito que estaacute implicado nesta

tarefa O homem que reflecte sobre a moral reflecte sobre si proacuteprio e natildeo sobre a

humanidade em geral Desta perspectiva podemos perceber por que razatildeo Montaigne

afirma que eacute ele proacuteprio a mateacuteria de seu livro170 Eacute o proacuteprio Montaigne que nos toca

ainda mais de perto do que o homem em geral

Montaigne observa que natildeo haacute entre os filoacutesofos combate tatildeo violento e tatildeo rude

como o que se trava acerca da questatildeo do soberano bem do homem

ldquo[A] Il nest point de combat si violent entre les philosophes et si aspre que celuy qui se dresse sur la question du souverain bien de lhommerdquo171

168 Villey op cit p 193 169 Les Essais II 12 pp 575-576 170 Cf nota 143 171 Les Essais II 12 p 577

55

Trata-se de uma questatildeo muito sensiacutevel para Montaigne Em se entender eacute inuacutetil

acrescentar mais uma seita agraves 288 que nasceram segundo o caacutelculo de Varron acerca

da questatildeo do soberano bem172

Montaigne inicia a ldquoApologierdquo afirmando que alguns filoacutesofos pensavam que o

soberano bem estava na ciecircncia173

Mas natildeo acreditava que fosse atraveacutes da ciecircncia174 (moral e filosoacutefica) que o

homem conseguiria ser mais saacutebio e mais feliz O autor natildeo se preocupa em fornecer

exactamente o ldquoendereccedilordquo do bem soberano Vejamos como apresenta algumas

indicaccedilotildees relativas agraves vaacuterias tentativas dos filoacutesofos para encontrarem o bem soberano

esse bem que varia conforme o indiviacuteduo

ldquo[A] Nature devroit ainsi respondre agrave leurs contestations et agrave leurs debats Les uns disent nostre bien estre loger en la vertu dautres en la volupteacute dautres au consentir agrave nature qui en la science [C] qui agrave navoir point de douleur [A] qui agrave ne se laisser emporter aux apparences (et agrave cette fantasie semble retirer cetautre [B] de lantien Pythagoras [hellip] [A] qui est la fin de la secte Pyrrhonienne) rdquo175

Fiel aos argumentos do pirronismo Montaigne sustenta que o soberano bem eacute a

ataraxia Segundo ele a sabedoria indica-nos que eacute necessaacuterio procurar manter na alma

um harmonioso equiliacutebrio A ataraxia foi sempre considerada pelos seguidores do

pirronismo como a coroaccedilatildeo da sua filosofia segundo Andreacute Verdan176 Vejamos

textualmente o que diz Sexto acerca da ataraxia como objectivo de sua doutrina ceacuteptica

filosoacutefica

ldquoIl est propos de dire ici quelque chose de la fin de la Sceptique La fin en geacuteneacuteral est ce pour quoi on fait ou on consideacutere toutes Choses crsquoest ce que lrsquoon ne recherche point pour quelque autre Chose crsquoest ce qui est la dernieacutere Chose que lrsquoon recherche Nous disons donc maintenant que la fin du Filosofe Sceptique est lrsquoAtaraxie ou lrsquoexemtion de trouble agrave lrsquoeacutegard des opinions [hellip] amp alors lrsquoAtaraxie ou lrsquoexemtion de trouble fut une suite heureuse quoique fortuite de cette suspension de son jugement agrave lrsquoeacutegard des opinions [hellip] celui qui opine Dogmatiquement amp qui eacutetablit qursquoil y a naturellement amp reacuteellement quelque bien amp quelque mal est toujours troubleacuterdquo177

172 Les Essais II 12 p 577 173 Cf nota 96 174 ldquoLa philosophie morale est viseacutee comme les autres sciences plus directement mecircme que les autres sciencesrdquo (Villey op cit p219) 175 Les Essais II 12 p578 176 Cf Verdan Andreacute Le scepticisme philosophique Paris-Montreacuteal Bordas 1971 p 57 177 Sextus Empiricus Les Hipotiposes ou Instituitions Pirroniennes Traduzido do grego por Claude Huart Amsterdam Barbier MDCCXXV pp15-16

56

Segundo Montaigne a filosofia natildeo pode oferecer uma base consistente agrave moral

que sirva como garantia da felicidade humana O homem eacute convidado a procurar

alicerces mais seguros e consistentes fora da filosofia

ldquo[C] Il ne nous faut guiere non plus doffices de regles et de loix de vivre en nostre communauteacute quil en faut aux grues et formis en la leur Et neantmoins nous voyons quelles sy conduisent tres-ordonneacutement sans erudition Si lhomme estoit sage il prenderoit le vray pris de chasque chose selon quelle seroit la plus utile et propre agrave sa vierdquo178

Assim o homem estaacute impedido por uma incapacidade que tem a sua origem

sobretudo na razatildeo de determinar tudo aquilo que pode em termos morais servir-lhe

para a construccedilatildeo de uma vida tranquila O homem natildeo sabe encontrar o que lhe eacute

necessaacuterio O desacordo nestes assuntos eacute inerente agrave proacutepria natureza do homem tal

como foi descrita pelo autor da ldquoApologierdquo

Trata-se de um desacordo com consequecircncias preocupantes jaacute que se eacute de noacutes

que depende a organizaccedilatildeo dos nossos costumes metemo-nos numa enorme

confusatildeo179 Aludindo ao parecer de Soacutecrates Montaigne defende que a razatildeo aconselha

cada um a obedecer a lei de seu paiacutes180

Entretanto Montaigne questiona-se seraacute que ldquo[A] nostre devoir nrsquoa autre regle

que fortuite181 A resposta reflecte mais uma vez o relativismo do autor que afirma

que a verdade deve ter uma face universal e uniforme mas que reconhece ao mesmo

tempo que de facto o homem impedido pela razatildeo e pelos sentidos (considerados pela

filosofia tradicional como fonte do conhecimento da verdade) natildeo tem condiccedilotildees de

encontrar uma base moral no discurso racional

ldquo[A] La droiture et la justice si lhomme en connoissoit qui eust corps et veritable essence il ne lattacheroit pas agrave la condition des coustumes de cette contreacutee ou de celle lagrave ce ne seroit pas de la fantasie des Perses ou des Indes que la vertu prendroit sa forme Il nest rien subject agrave plus continuelle agitation que les loix Deacutepuis que je suis nay jay veu trois et quatre fois rechanger celles des Anglois noz voisins non seulement en subject politique qui est celuy quon veut dispenser de constance mais au plus important subject qui puisse estre agrave sccedilavoir de la religion Dequoy jay honte et despit dautant plus que cest une nation agrave laquelle ceux de mon quartier ont eu autrefois une si priveacutee accointance quil

178 Les Essais II 12 p 487 179 Cf Les Essais II 12 p 578 180 Cf Les Essais II 12 p 478 181 Les Essais II 12 p 578

57

reste encore en ma maison aucunes traces de nostre ancien cousinagerdquo182

Reflectindo acerca da situaccedilatildeo concreta que o rodeava isto eacute a guerra as

injusticcedilas e outros males (causados pelo proacuteprio homem) que caracterizavam a Franccedila

de entatildeo Montaigne tem consciecircncia de que seguir as leis do paiacutes183 que satildeo

produzidas pela razatildeo humana eacute algo bastante problemaacutetico

Como moralista Montaigne natildeo deseja fazer a apologia de uma ldquoanarquiardquo em

termos morais muito pelo contraacuterio como vimos defende a importacircncia da lei na vida

quotidiana O que ele pretende defender eacute que todo o sistema que resulta de um

emaranhado de reflexotildees intelectuais natildeo leva a nada pelo facto de que tudo o que a

razatildeo produz estaacute sujeito agrave incerteza tanto a verdade como a falsidade

Ao criticar todo este processo Montaigne quer ressaltar a ideia de que a razatildeo eacute

um estorvo importante para a dinacircmica de construccedilatildeo da justiccedila e das leis morais

Esta tese poderia levar a pensar que Montaigne eacute um pensador que natildeo acredita

na verdade Mas ao ler a sua obra damo-nos conta que eacute um autor apaixonado pela

verdade Ele nunca afirmou que a verdade estava fora de alcance Ele quer encontrar a

verdade A sua proacutepria atitude filosoacutefica pode ser caracterizada como uma perene busca

da verdade O que lhe eacute peculiar nesta busca eacute o facto de questionar profundamente tudo

aquilo que eacute construiacutedo arbitrariamente pela filosofia dogmaacutetica sobretudo as grandes

elaboraccedilotildees teoacutericas e os complicados coacutedigos legais que em geral natildeo respeitam as

contingecircncias da vida

Esta razatildeo eacute por conseguinte a grande responsaacutevel pela contiacutenua agitaccedilatildeo das

leis Neste sentido o cepticismo de Montaigne no domiacutenio da moral estaacute em profunda

sintonia com todo o projecto da ldquoApologierdquo Assim como natildeo aceita as certezas teoacutericas

dos filoacutesofos e pensadores profissionais em mateacuteria de metafiacutesica e em tantos outros

assuntos tradicionalmente caros agrave filosofia rejeita tambeacutem com toda a determinaccedilatildeo a

produccedilatildeo filosoacutefica que eacute apresentada como ciecircncia moral Montaigne natildeo se cansa de

questionar o papel daqueles pensadores que em nome da filosofia se encarregam de

teorizar sobre as leis morais e a justiccedila Podemos dizer que o autor classifica esta

actividade como algo dispensaacutevel agrave vida Neste contexto o autor ressalta o problema da

contingecircncia e da sua relaccedilatildeo com a lei

182 Les Essais II 12 p 579 183 ldquo[B] Car nous avons en France plus de loix que tout le reste du monde ensemble [hellip] [C] Il y a peu de relation nos actions qui sont en perpetuelle mutation avec les loix fixes et immobile Les plus desirables ce sont les plus rares plus simples et generalesrdquo (Les Essais III 13 p 1066)

58

ldquo[A] Que nous dira donc en ceste necessiteacute la philosophie Que nous suyvons les loix de nostre pays Cest agrave dire cette mer flotante des opinions dun peuple ou dun Prince qui me peindront la justice dautant de couleurs et la reformeront en autant de visages quil y aura en eux de changemens de passion Je ne puis pas avoir le jugement si flexiblerdquo184

Algumas doutrinas filosoacuteficas impelem-nos ao cumprimento das leis do paiacutes

Mas como eacute isto possiacutevel se estas leis satildeo condicionadas pelas paixotildees de quem as fez

Em seguida Montaigne refere-se agrave relatividade das leis civis

ldquo[A] Quelle bonteacute est-ce que je voyois hyer en credit et demain plus [C]et que le trajet dune riviere fait crime Quelle veriteacute que ces montaignes bornent qui est mensonge au monde qui se tient au delagrave185

Diante deste quadro podemos perguntar-nos seraacute possiacutevel ter uma moral que

garanta a justiccedila para todos fazendo uso da razatildeo e utilizando as leis humanas que satildeo

sempre condicionadas pelas paixotildees as quais por sua vez estatildeo sujeitas a de tantas

mudanccedilas A resposta de Montaigne eacute negativa e eacute dada de forma iroacutenica

ldquo[A] Mais ils sont plaisans quand pour donner quelque certitude aux loix ils disent quil y en a aucunes fermes perpetuelles et immuables quils nomment naturelles qui sont empreintes en lhumain genre par la condition de leur propre essence Et de celles lagrave qui en fait le nombre de trois qui de quatre qui plus qui moins signe que cest une marque aussi douteuse que le resterdquo186

Aleacutem de constatar a relatividade das leis civis Montaigne natildeo deixa de afirmar

que haacute tambeacutem uma niacutetida relatividade nas leis naturais

ldquo[A] ils sont dis-je si miserables que de ces trois ou quatre loix choisies il nen y a une seule qui ne soit contredite et desadvoeumle non par une nation mais par plusieursrdquo187

Outra tese da ldquoApologierdquo que merece ser lembrada eacute que a razatildeo humana ndash

intrometendo-se em toda a parte para dominar baralhar e confundir a face das coisas

segundo sua vaidade e inconstacircncia ndash quer que acreditemos que haacute leis naturais como as

que se observam nas outras criaturas Mas isto natildeo passa de um equiacutevoco em noacutes as leis

naturais estatildeo perdidas

Montaigne natildeo mede as palavras quando o que estaacute em jogo eacute em seu entender

alguma coisa de capital importacircncia A falta de honestidade e a falsidade satildeo atributos

dos pensadores e elaboradores de leis na sociedade Neste contexto criticaraacute

violentamente a posiccedilatildeo de Platatildeo por exemplo Observa que quando este pensador

184 Les Essais II 12 p 579 185 Les Essais II 12 p 579 186 Les Essais II 12 p 580 187 Les Essais II 12 p 580

59

grego se torna legislador adopta um estilo imperioso e afirmativo e mistura-lhe

ousadamente as mais fantasiosas invenccedilotildees tatildeo uacuteteis para persuadir o povo como

ridiacuteculas para se persuadir a si mesmo Conclui a sua criacutetica a Platatildeo da seguinte forma

ldquo[C] Et pourtant en ses loix il a grand soing quon ne chante en publiq que des poeumlsies desquelles les fabuleuses feintes tendent agrave quelque utile fin et estant si facile dimprimer tous fantosmes en lesprit humain que cest injustice de ne le paistre plustost de mensonges profitables que de mensonges ou inutiles ou dommageables Il dict tout destroussement en sa Republique que pour le profit des hommes il est souvent besoin de les piper 188 rdquo

Na ldquoApologierdquo Montaigne manifesta em vaacuterias ocasiotildees o seu

descontentamento relativamente agraves teses dos filoacutesofos gregos

Considerando as reflexotildees precedentes acerca da moral tudo leva a crer que

Montaigne considera que as leis verdadeiras relativas agrave moral devem ter um caraacutecter

universal e natildeo particular

Montaigne apresenta uma lista de costumes diversificados de povos muito

diferentes que tecircm as suas tradiccedilotildees proacuteprias e que satildeo muitas vezes contraditoacuterias entre

si Isto servir-lhe-aacute para justificar a tese de que natildeo haacute coisa em que o mundo seja tatildeo

diverso como os costumes e leis

ldquo[A] Telle chose est icy abominable qui apporte recommandation ailleurs comme en Lacedemone la subtiliteacute de desrober Les mariages entre les proches sont capitalement defendus entre nous ils sont ailleurs en honneur [hellip]rdquo

ldquo[A] Le meurtre des enfans meurtre des peres communication de femmes trafique de voleries licence agrave toutes sortes de voluptez il nest rien en somme si extreme qui ne se trouve receu par lusage de quelque nationrdquo189

ldquo[A] Les subjets ont divers lustres et diverses considerations cest de lagrave que sengendre principalement la diversiteacute dopinions Une nation regarde un subject par un visage et sarreste agrave celuy lagrave lautre par un autre

Il nest rien si horrible agrave imaginer que de manger son pere Les peuples qui avoyent anciennement ceste coustume la prenoyent toutesfois pour tesmoignage de pieteacute et de bonne affection [hellip]rdquo

ldquo[A] Licurgus considera au larrecin la vivaciteacute diligence hardiesse et adresse quil y a agrave surprendre quelque chose de son voisin [hellip]rdquo ldquo[A] Dionysius le tyran offrit agrave Platon une robe agrave la mode de Perse longue damasquineacutee et parfumeacutee Platon la refusa disant questant nay homme il ne

188 Les Essais II 12 p 512 189 Les Essais II 12 p 580

60

se vestiroit pas volontiers de robbe de femme mais Aristippus laccepta avec ceste responce que nul accoustrement ne pouvoit corrompre un chaste couragerdquo190

ldquo[A] Nous portons les oreilles perceacutees les Grecs tenoient cela pour une marque de servitude Nous nous cachons pour jouir de nos femmes les Indiens le font en public Les Scythes immoloyent les estrangers en leurs temples ailleurs les temples servent de franchiserdquo191

Para Montaigne as razotildees sobre as quais cada povo funda a sua moral satildeo uma

resposta a situaccedilotildees contingentes e natildeo visam dar resposta a situaccedilotildees mais universais

vaacutelidas para todos os homens sem excepccedilatildeo Villey chega a afirmar que Montaigne

ldquocherche une justice et il trouve des justices et des justices contradictoiresrdquo192

Aleacutem de constatar a ausecircncia de um acordo entre as vaacuterias concepccedilotildees no que

diz respeito aos costumes de cada povo Montaigne - fiel agrave criacutetica aos sistemas

filosoacuteficos que perpassa toda a ldquoApologierdquo - destaca tambeacutem o facto de que natildeo haacute

sequer acordo entre os filoacutesofos que se ocupam particularmente em reflectir acerca de

dois temas muito caros agrave filosofia

ldquo[A] Quant agrave la liberteacute des opinions philosophiques touchant le vice et la vertu cest chose ougrave il nest besoing de sestendre et ougrave il se trouve plusieurs advis qui valent mieux teus que publiez [C]aux faibles espritsrdquo193

Segundo Montaigne os proacuteprios homens do saber adoptam atitudes

consideradas inaceitaacuteveis pelo facto de a sociedade as condenar Os exemplos ilustram

esta situaccedilatildeo de uma forma muito niacutetida e revelam quanto a razatildeo humana pode fazer

para encontrar explicaccedilotildees legitimadoras para todas as realidades relativas aos costumes

morais

ldquo[A] De lagrave disent aucuns que doster les bordels publiques cest non seulement espandre par tout la paillardise qui estoit assigneacutee agrave ce lieu lagrave mais encore esguillonner les hommes agrave ce vice par la malaisance [hellip] On demanda agrave un philosophe quon surprit agrave mesme ce quil faisoit Il respondit tout froidement Je plante un homme [hellip]rdquo194

ldquo[C] Car Diogenes exerccedilant en publiq sa masturbation faisoit souhait en presence du peuple assistant qursquoil peut ainsi saouler son ventre en le frottant [hellip] Ces philosophes icy donnoient extreme prix agrave la vertu et refusoient toutes autres disciplines que la moralerdquo195

190 Les Essais II 12 p 581 191 Les Essais II 12 p 582 192 Villey op cit p 197 193 Les Essais II 12 p 582 194 Les Essais II 12 p 584 195 Les Essais II 12 p 585

61

A relatividade das leis e costumes e a impossibilidade de se chegar a acordo

entre os povos tendo em vista estabelecer leis universais leva Montaigne a uma espeacutecie

de denuacutencia da praacutetica dos encarregados pela execuccedilatildeo das leis que jaacute por si satildeo tatildeo

questionaacuteveis Isto torna a lei supostamente universal ainda mais sujeita agrave rejeiccedilatildeo

segundo Montaigne Vale a pena recordar aqui o exemplo de que Montaigne ouviu

falar de um juiz que quando deparava com um seacuterio conflito entre Bartoldo e Baldo196

ou com alguma mateacuteria agitada por muitas contradiccedilotildees escrevia na margem de seu

livro ldquoQuestatildeo para o amigordquo Montaigne observa que neste caso a verdade era tatildeo

confusa e debatida que o juiz em causa poderia favorecer a parte que bem entendesse e

conclui

ldquo[A] Les advocats et les juges de nostre temps trouvent agrave toutes causes assez de biais pour les accommoder ougrave bon leur semble A une science si infinie deacutependant de lauthoriteacute de tant dopinions et dun subject si arbitraire il ne peut estre quil nen naisse une confusion extreme de jugemens Aussi nest-il guiere si cler proceacutes auquel les advis ne se trouvent divers Ce quune compaignie a jugeacute lautre le juge au contraire et elle mesmes au contraire une autre fois Dequoy nous voyons des exemples ordinaires par ceste licence qui tasche merveilleusement la cerimonieuse authoriteacute et lustre de nostre justice de ne sarrester aux arrests et courir des uns aux autres juges pour decider dune mesme causerdquo197

Eacute interessante destacar este exemplo tambeacutem porque Montaigne tinha

conhecimentos profundos da ciecircncia do direito conforme reconhece a maioria dos

comentadores da sua obra Como magistrat tinha conhecimento de causas nas quais se

manifestava aquilo contra o qual se opunha Isto vem confirmar ainda mais a posiccedilatildeo de

Montaigne face agrave sua incansaacutevel busca de leis universais que natildeo estivessem sujeitas agraves

constantes mutaccedilotildees de que a razatildeo humanaldquo[B] un pot agrave deux anses qursquoon peut saisir

agrave gauche et agrave dextrerdquo eacute responsaacutevel e que [A] fornit drsquoapparence agrave divers effectsrdquo198

Ao abordar a problemaacutetica da moral na ldquoApologierdquo Montaigne chega a algumas

conclusotildees que natildeo se distanciam fundamentalmente de todo o projecto do ensaio Isto

eacute defende que haacute um relativismo significativamente claro relativamente agrave moral Villey

faz algumas afirmaccedilotildees que resumem claramente esta problemaacutetica ldquoIl nrsquoy a pas de

souverain bien il nrsquoy a pas de loi naturelle toute obligation moralle est fortuite

196 Trata-se de dois juristas do seacuteculo XIV que no seacuteculo XV ainda tinham grande influecircncia 197 Les Essais II 12 p 582 198 Les Essais II 12 p 581

62

contingenterdquo199 E tudo isto deve-se agrave criacutetica destruidora da razatildeo humana que

Montaigne apresenta no texto Para ele a razatildeo quer julgar tudo quer elaborar leis

universais sem mesmo ter condiccedilotildees para semelhante empreendimento A razatildeo como

vimos eacute multiforme inconstante infinita Ela avanccedila sempre mesmo torta mesmo

manca mesmo desancada tanto com a mentira como com a verdade A razatildeo eacute um

instrumento de chumbo e de cera alongaacutevel dobraacutevel e adaptaacutevel a todas as

perspectivas e a todas as medidas200 Segundo Montaigne a razatildeo eacute ldquo[B] un miserable

fondement de nos regles et qui nous represente volontiers une tres-fauce image des

choses comme vainement nous concluons aujourdrsquohui lrsquoinclination et la decrepitude du

monde par les arguments que nous tirons de nostre propre foiblesse et decadencerdquo201

Em suma Montaigne tem consciecircncia de que eacute impossiacutevel chegar a qualquer

determinaccedilatildeo no domiacutenio da moral atraveacutes da razatildeo Por isto assume uma atitude

ceacuteptica em face desta questatildeo

199 Villey op cit p198 200 Cf nota 122 201 Les Essais III 6 p 908

63

Consideraccedilotildees finais

A leitura da ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo permitiu-nos esclarecer aspectos

importantes da criacutetica demolidora da razatildeo humana levada a cabo por Montaigne

Eacute claro que uma motivaccedilatildeo importante que levou Montaigne a escrever a

ldquoApologierdquo foi a obra do teoacutelogo catalatildeo Sebond Theologia Naturalis Eacute importante

destacar que o proacuteprio tiacutetulo do ensaio ldquoApologiehelliprdquo isto eacute elogio defesa natildeo reflecte

exactamente o seu propoacutesito que eacute a defesa de Sebond A anaacutelise do texto permite

captar algo de paradoxal Montaigne dispotildee-se a defender este teoacutelogo catalatildeo num

ensaio no qual ele proacuteprio se distancia claramente da doutrina de Sebond Neste

sentido haacute um significativo distanciamento entre o tiacutetulo do ensaio e o seu conteuacutedo O

ponto de partida de Montaigne eacute uma espeacutecie de declaraccedilatildeo de que as ideias de Sebond

satildeo convincentes mas imediatamente a seguir muda de opiniatildeo partindo de sua

concepccedilatildeo negativa do homem e natildeo acredita nos supostos poderes da razatildeo Dito de

outro modo Montaigne natildeo sustentava o propoacutesito da Theologia naturalis isto eacute a

pretensatildeo de apoiar a crenccedila dos leitores convidando-os a fazer um esforccedilo de adaptaccedilatildeo

dos instrumentos naturais e humanos considerados como dons de Deus especialmente

a razatildeo pondo-os ao serviccedilo da feacute

Montaigne ldquoaplauderdquo a atitude de Sebond202 Mas imediatamente a seguir critica

o teoacutelogo catalatildeo atacando os vaacuterios argumentos filosoacuteficos presentes na sua obra Na

raiz da sua criacutetica estaacute o facto de estes argumentos se fundamentarem numa visatildeo

antropocecircntrica da supremacia do homem como criatura privilegiada da criaccedilatildeo o

homem por ser detentor da razatildeo diferentemente dos outros animais tem uma

finalidade uma perfeiccedilatildeo e uma dignidade que merece ser exaltada Montaigne natildeo

aceita esta visatildeo que norteia tanto a obra de Sebond como o pensamento de todos

aqueles que faziam apologia da dignitas hominis Denuncia a presunccedilatildeo ilusoacuteria do

homem Desta perspectiva utiliza vaacuterios relatos anedoacuteticos de animais para justificar a

sua posiccedilatildeo E a conclusatildeo principal a que o conduz este percurso eacute que o homem natildeo

estaacute nem acima nem abaixo do resto dos seres naturais203 Dito de outro modo a

consideraccedilatildeo de que unicamente o homem eacute possuidor da razatildeo natildeo tem qualquer

relevacircncia segundo a ldquoApologierdquo

202 Cf nota 1 203 Cf nota 31

64

Da batalha travada por Montaigne contra os vaacuterios opositores da obra de

Sebond podemos destacar a posiccedilatildeo criacutetica que ele assume face aos presunccedilosos

racionalistas que diziam que os argumentos de Sebond eram fracos Diante destes

doutos Montaigne iraacute sustentar a tese de que o homem natildeo sabe nada Haacute que salientar

no entanto que o teoacutelogo catalatildeo estava em ldquocomunhatildeordquo com o pensamento apologeacutetico

de sua eacutepoca isto eacute recorreu agrave razatildeo para provar certos dogmas Para Montaigne o

principal perigo vem daqueles que atribuem super poderes agrave razatildeo Eacute por isso tambeacutem

que Montaigne sustenta que a razatildeo deve submeter-se agrave autoridade divina Esta

submissatildeo natildeo exclui a razatildeo mas considera-a como um meio de compreender o motivo

da feacute Esta feacute deve ser concebida como uma expectativa da graccedila sem a qual nada eacute

possiacutevel ao homem Segundo Montaigne natildeo somos capazes de perceber que toda a

certeza estaacute vedada ao homem reduzido a si proacuteprio204

Podemos perceber que a utilizaccedilatildeo da razatildeo para explicar as realidades da

religiatildeo natildeo tem sentido na ldquoApologierdquo Montaigne natildeo tem necessidade de fazer

apologia da feacute205 A sua perspectiva eacute unicamente humana e isto vai estruturar toda a

sua reflexatildeo na ldquoApologierdquo Quando se refere agrave graccedila como dom sobrenatural nem o

absoluto nem a graccedila actuam no interior de sua visatildeo antropoloacutegica A graccedila eacute

apresentada por Montaigne como uma metamorfose

ldquo[C] Crsquoest agrave nostre foy Chrestienne non agrave sa vertu Stoique de pretendre agrave cette divine et miraculeuse metamorphoserdquo206

Montaigne descobre em si proacuteprio o pirronismo atraveacutes da volubiliteacute207 presente

nas vaacuterias atitudes dos filoacutesofos Pocircs em duacutevida as diversas opiniotildees dos filoacutesofos

denunciando-as como contraditoacuterias criticou as doutrinas filosoacuteficas dogmaacuteticas mas

natildeo assumiu nenhuma doutrina definida Montaigne assume o pirronismo como meacutetodo

e natildeo como um adepto cego para enfrentar os problemas presentes na ldquoApologierdquo

O pirronismo eacute assumido por Montaigne como modo de pensamento e como

meacutetodo de vida Este pirronismo permite-lhe ter em conta na ldquoApologierdquo a incerteza de

204 Cf Nota 93 205 O autor esclarece esta questatildeo da seguinte maneira na ediccedilatildeo posterior a 1588 ldquo[C] Je propose les fantasies humaines et miennes simplement comme humaines fantasies [hellip] matiere dopinion non matiere de foy ce que je discours selon moy non ce que je croy selon Dieu comme les enfants proposent leurs essais intruisables non instruisants dune maniere laiumlque non clericale mais tresminusreligieuse tousjoursrdquo (Les Essais I 56 p 323) 206 Les Essais II 12 p 604 207 Les Essais II 12 p 569

65

nossos juiacutezos a incerteza que todos sentem em si208 em relaccedilatildeo ao conhecimento O

pirronismo faz desaparecer as ilusotildees da certeza e como ele natildeo se envolve nas

questotildees da ldquoirresolution infinierdquo209 procura uma seguranccedila na tranquilidade do

espiacuterito que com a do corpo constitui o soberano bem210 Ao assumir a atitude

pirroacutenica Montaigne natildeo se transforma num homem passivo num ldquopeso mortordquo Muito

pelo contraacuterio sustenta que devemos sempre levantar questotildees reconhecer a nossa

ignoracircncia face agraves vaacuterias resoluccedilotildees tomadas como certas pela presunccedilosa razatildeo

humana duvidar sempre e ter uma atitude de busca incessante de novas ideias

Isto significa que Montaigne defende a tese de que somos convidados a

considerar que os conhecimentos adquiridos devem ser sempre sustentados como

provisoacuterios e natildeo como verdades absolutas Isto natildeo exclui evidentemente o facto de

que podemos apresentar as nossas visotildees prismaacuteticas das coisas e ateacute sustentaacute-las se

assim for necessaacuterio

Na ldquoApologierdquo Montaigne assume uma atitude pirroacutenica sui generis Demonstra

constantemente uma reaccedilatildeo contra os dogmatismos Ele eacute um pensador que estaacute sempre

em busca Nunca cessa de investigar Estaacute sempre em debate consigo mesmo Neste

aspecto pode-se dizer que assume uma atitude diferente do pirronismo grego o qual

defendia a tese da impossibilidade de qualquer juiacutezo Natildeo estaacute preocupado em encontrar

um ldquoroacutetulo de marca registadardquo para suas reflexotildees filosoacuteficas Ou seja natildeo tinha como

objectivo elaborar uma apologia de uma doutrina a ser seguida por adeptos

Montaigne apresenta os seus juiacutezos com a sua razatildeo criacutetica sem ter

necessariamente que defender a tese de que a razatildeo humana ndash instrumento flexiacutevel

recurvaacutevel e adaptaacutevel a qualquer forma211- eacute sempre o guia prudente e seguro de uma

conduta correcta e perfeita Montaigne procura demonstrar racionalmente - e aqui

reside em seu entender o uso positivo da razatildeo ndash que natildeo haacute essecircncia nem verdade

absoluta acerca do homem e que de algumas coisas sempre agrave mercecirc do poder do tempo

noacutes soacute observamos as aparecircncias

ldquo[A] Finalment il nrsquoy a aucune constante existence ny de nostre estre ny de celuy des objects [hellip] Nous nrsquoavons aucune communication agrave lrsquoestre [hellip]rdquo212

208 Cf Les Essais II 12 p 563 209 Cf Les Essais II 12 p 561 210 Cf Les Essais II 12 p 488 211 Cf Les Essais II 12 p 539 212 Les Essais II 12 p 601

66

Montaigne duvida de todos os conhecimentos humanos recebidos por autoridade

e em confianccedila (agrave credit) como se fossem religiatildeo e lei213 tais conhecimentos natildeo

passam de falsas evidecircncias do quotidiano E isto vale sobretudo para todos os tipos de

produccedilatildeo racional que satildeo consequecircncia da vaidade humana

Montaigne esforccedila-se por investigar as opiniotildees dos outros e isto motiva-o a

formular um pensamento mais pessoal preocupado com o que eacute justo e a expandir o

seu proacuteprio conhecimento relativo e precaacuterio As suas investigaccedilotildees natildeo satildeo dogmaacuteticas

e soacute o comprometem a ele proacuteprio Eacute um pensador que estaacute sempre em busca que natildeo

tem a presunccedilatildeo de querer saber tudo sobre todas as coisas Mas ao mesmo tempo

podemos dizer que eacute um pensador que descobriu num mundo marcado por tantas

conturbaccedilotildees graccedilas agraves suas proacuteprias experiecircncias uma consciecircncia real e soacutelida da sua

existecircncia concreta no mundo Este facto levou-o a assumir a atitude de natildeo querer

ensinar nem dirigir a vida de ningueacutem Vale a pena citar a este respeito um pequeno

trecho de um outro ensaio que Montaigne escreveu provavelmente na mesma eacutepoca da

ldquoApologierdquo e que reflecte claramente a posiccedilatildeo por ele assumida e que pode ser

classificada natildeo como a de um filoacutesofo profissional detentor de verdades que devem ser

ensinadas aos outros mas como a de algueacutem que estaacute sempre em busca e natildeo se inibe de

expressar as suas opiniotildees

ldquo[A] Je dy librement mon advis de toutes choses voire et de celles qui surpassent agrave ladventure ma suffisance et que je ne tiens aucunement estre de ma jurisdiction Ce que jen opine cest aussi pour declarer la mesure de ma veueuml non la mesure des chosesrdquo214

Montaigne renuncia a tarefa de querer provar atraveacutes da razatildeo humana aquilo

que estaacute em uacuteltima instacircncia no domiacutenio da feacute Ele eacute um homem que crecirc em Deus

ldquo[A] Il a laisseacute en ces hauts ouvrages le caractere de sa diviniteacute et ne tient quagrave nostre imbecilliteacute que nous ne le puissions descouvrirrdquo215

Uma quantidade importante de pessoas no mundo proclama a existecircncia de

Deus Mas este Deus natildeo pode ser conhecido racionalmente pelo homem

ldquoIl sen faut tant que nos forces conccediloivent la hauteur divine que des ouvrages de nostre createur ceux-lagrave portent mieux sa marque et sont mieux siens que nous entendons le moinsrdquo216

213 Cf Les Essais II 12 p 539 214 Les Essais II 10 p 410 215 Les Essais II 12 pp 446-447 216 Les Essais II 12 p 499

67

Relativamente agrave moral Montaigne sustenta a tese de que a razatildeo humana natildeo

tem o poder de determinar quais satildeo os bons e os maus costumes as boas e as maacutes leis e

normas para qualquer grupo social

Diante da leitura que fizemos da ldquoApologierdquo onde Montaigne apresenta uma

criacutetica destruidora agrave razatildeo tirando-lhe quase todos os atributos recebidos durante toda a

histoacuteria da filosofia podemos portanto perguntar-nos qual eacute o papel da razatildeo humana

A resposta a esta questatildeo eacute muito complexa A criacutetica montaigneana agrave razatildeo natildeo se

limitou a menosprezar a ciecircncia (filosofia) a ldquoteologia racionalistardquo e as suas pretensotildees

de querer dar explicaccedilotildees sobre questotildees de feacute e de religiatildeo atacou tambeacutem

profundamente o espiacuterito humano negando-lhe capacidades que na maioria das vezes

satildeo atributos da pretensatildeo humana Para ilustrar mais claramente esta ideia seraacute

interessante fazer referecircncia a uma passagem ceacutelebre do livro III na qual Montaigne

conta uma pequena histoacuteria de um escravo chamado Esopo

Conta-nos o autor que Esopo estava exposto agrave venda com dois outros escravos

Um comprador indagou de um deles que sabia fazer este para se valorizar contou mil

maravilhas (monts et merveilles) O segundo disse mais ainda Quando chegou a sua

vez Esopo respondeu ldquonada eles jaacute pegaram em tudo eles sabem tudordquo Montaigne

observa que verificou o mesmo nas escolas de filosofia A arrogacircncia o orgulho (fierteacute)

dos que atribuiacuteram ao espiacuterito humano a capacidade de tudo saber levou os outros a

afirmar por despeito ou contradiccedilatildeo que o espiacuterito natildeo era capaz de coisa alguma

Estes exaltavam ao extremo a ignoracircncia tal como aqueles glorificavam absurdamente a

ciecircncia De modo que natildeo haacute como negar que o homem eacute imoderado em tudo e soacute cessa

quando forccedilado pela capacidade de ir aleacutem217

Em suma a ldquoApologierdquo nos apresenta um questionamento profundo em relaccedilatildeo

a todo o tipo de conhecimento fundado na razatildeo Arruiacutena os fundamentos deste

conhecimento produzido pelos homens do saber doutos e filoacutesofos antigos A estes

ldquosaacutebiosrdquo em geral que pensavam ser possuidores da verdade Montaigne dirige uma

criacutetica iroacutenica

laquo [C] Fiez vous agrave vostre philosophie vantez vous davoir trouveacute la feve au gasteau [hellip] raquo218

217 Cf Les Essais II 11 p 1035 218 Les Essais II 12 p 516 Esta citaccedilatildeo faz referecircncia agrave tradiccedilatildeo de na Epifania compartilhar um bolo contendo uma fava quem recebesse a fatia laquo premiada raquo era chamado laquo o rei da fava raquo Tratava-se de algo que figuradamente garantia uma espeacutecie de vantagem

68

Bibliografia

1 - Obras de Michel de Montaigne

Les Essais eacutedition conforme au texte de lrsquoexemplaire de Bordeaux par Pierre Villey

reacuteeacutediteacute sous la direction et avec un preacuteface de V-L Saulnier augmenteacute en 2004 drsquoune

preacuteface et drsquoun suppleacutement de Marcel Conche Paris QuadriguePUF 2004 (ediccedilatildeo de

referecircncia no nosso estudo)

Essais Livre second eacutedition preacutesenteacutee eacutetablie et annoteacutee par Emmanuel Naya

Delphine Reguig-Naya et Alexandre Tarrecircte Paris () Gallimard 2009

2 Estudos sobre Montaigne

AA VV Le dictionnaire des Essais de Montaigne Paris ( ) Eacuteditions Leacuteo Scheer

2011

AA VV Montaigne et la reacutevolution Philosophique du XVI siegravecle Bruxelles Eacuteditions

de lrsquoUniversiteacute de Bruxelles 1992

AUREacuteLIO Diogo Pires Montaigne e Espinosa toleracircncia ceacuteptica e toleracircncia

racionalista In O Cepticismo e Montaigne Rui Bertrand Romatildeo (org) Covilhatilde

Universidade da Beira Interior 2003 pp 141-160

BIRCHAL Telma de Souza O eu nos Ensaios de Montaigne Belo Horizonte Editora

UFMG 2007

BIGNOTTO Newton ldquoMontaigne Renascentistardquo Kriterion Revista do Departamento

de Filosofia da UFMG Belo Horizonte XXXIII 86 agodez 1992 p 29-41

BUTOR Michel Essais sur les essais Paris Gallimard 1968

CATALAN Eacutetienne Eacutetudes sur Montaigne analyse de sa philosophie Paris Hellier

Fregraveres Librairie Religieuse 1846

CHAMPION Edme Introduction aux Essais de Montaigne Paris Armand Colin amp Cie

Eacutediteurs 1900

COMPAGNON Antoine Nous Michel de Montaigne Paris Seuil 1980

CONCHE Marcel Montaigne et la philosophie Paris Puf 1996

69

_____________ Montaigne ou la conscience heureuse Paris PUF 2009

DUARTE Tiago Barros Skepticism and religion in Michel de Montaigne two

interpretations of apology for Raymond Sebond Intuitio Porto Alegre V2 ndash Nordm 3

Novembro 2009 pp 298-307

FILHO Celso Martins Azar Montaigne e Soacutecrates cepticismo conhecimento e

virtude In Revista Portuguesa de Filosofia Tomo LVIII Fasc 4 2002

FRIEDRICH Hugo Montaigne Traduzido do alematildeo por Robert Rovini Paris

Gallimard 1967

GIOCANTI Sylvia Montaigne et les becirctes La becirctise et lrsquoanimal dans les Essais de

Montaigne Universiteacute de Toulouse-II Le Mirail UMR 5037 (ENS-Lyon) 2011

HENDRICK Philip Montaigne and Sebond scepticism faith and imagination In O

Cepticismo e Montaigne Rui Bertrand Romatildeo (org) Covilhatilde Universidade da Beira

Interior 2003 pp 83-102

JEANSON Franccedilois Montaigne par lui-mecircme Paris Seuil 1951

LACOUTURE Jean Montaigne agrave cheval (Montaigne a cavalo) Traduzido por F

Rangel Rio de JaneiroSatildeo Paulo Editora Record 1998

LANUSSE Maxime Montaigne Paris Lecegravene Oudin et Cie Eacutediteurs 1895

LEVEAUX Alphonse Eacutetude sur les Essais de Montaigne Paris Henri Plon

Imprimeur-Eacutediteur 1870

MATHIEU-CASTELLANI Gisegravele Montaigne ou la veacuteriteacute du mensonge Genegraveve

Droz 2000

MONSIEUR L Le chistianisme de Montaigne Paris Imprimerie de Demonville 1819

_______ Montaigne lrsquoeacutecriture de lrsquoessai Paris PUF 1988

NAKAM Geacuteranrd Montaigne et son temps Paris Gallimard 1993

RIGOLOT Franccedilois Le texte de la renaissance des rheacutetoriqueurs agrave Montaigne

Genegraveve Droz 1982

_______ Les meacutetamorphoses de Montaigne Paris PUF 1988

RIVELINE Maurice Montaigne et lrsquoamitieacute Paris Librairie Feacutelix Alcan 1939

70

71

ROMAtildeO Rui Bertrand A apologia na balanccedila a reinvenccedilatildeo do pirrorismo na

Apologia de Raimundo Sabunde de Michel de Montaigne Lisboa Imprensa Nacional

Casa da Moeda 2007

SANTI Pedro Luiz Ribeiro de Montaigne e a reflexatildeo moral no seacuteculo XVI In Revista

Olhar ano 04 nordm 7 jan-jun 03 pp 76-85

STAROBINSKI Jean Montaigne en mouvement Paris Gallimard 1982

STROWSKI Fortunat Montaigne Paris Feacutelix Alcan Eacutediteurs 1906

VERDAN Andreacute Le scepticisme philosophique Paris-Montreacuteal Bordas 1971

VILLEY Pierre Les sources et lrsquoeacutevolution des essais de Montaigne Tome Premier

Paris Librairie Hachete 1908

______ Les sources et lrsquoeacutevolution des essais de Montaigne Tome Second Paris

Librairie Hachete 1908

______ Montaigne devant la posteacuteriteacute Paris Ancienne Librairie Furne ndash Boivin et Cie

Eacutediteurs 1935

WEILLER Maurice Pour connaitre la penseacutee de Montaigne Paris Bordas 1948

3 ndash Outras obras citadas

ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Livro I e II Traduccedilatildeo do grego por Vicenzo Coceo

Coleccedilatildeo Os Pensadores Satildeo Paulo Abril S A Cultural 1984

CASSIRER Ernst An essay on man Traduccedilatildeo portuguesa de Carlos Branco Ensaio

sobre o homem Lisboa Guimaratildees Editores 1995

Nouveau Testament Traduction Oecumeacutenique de la Bible Paris PUF 1977

SEXTUS EMPIRICUS Les hipotiposes ou instituitions pirroniennes Trad do grego

por Claude Huart Amsterdam Barbier MDCC XXV

AA VV Histoacuteria das sociedades das sociedades modernas agraves sociedades atuais Rio

de Janeiro Ao Livro Teacutecnico 1983

  • IacuteNDICE
Page 9: MARÇO DE 2012

1 A ideia do homem na ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo

Quando nos colocamos diante do desafio de estudar os Essais de Michel de

Montaigne uma questatildeo que importa perceber melhor eacute o periacuteodo no qual o autor

escreveu a sua obra Mais especificamente estudar o humanismo renascentista tendo

em vista que o autor dos Essais eacute considerado como um pensador deste periacuteodo

Abordaremos no entanto apenas alguns aspectos importantes daquela eacutepoca

Montaigne viveu num periacuteodo em que emergia uma nova visatildeo do mundo em

que o homem passou a ser o centro das atenccedilotildees em todos os aspectos O geocentrismo

medieval que centrava suas atenccedilotildees na relaccedilatildeo com Deus foi substituiacutedo pela

glorificaccedilatildeo do humano As pessoas interessadas nesta ruptura com os ideais medievais

buscavam inspiraccedilatildeo nas obras greco-romanas para representarem o seu proacuteprio mundo

O humanismo renascentista concebe-se como um movimento intelectual de

valorizaccedilatildeo da antiguidade claacutessica Natildeo se tratava poreacutem apenas de copiar as

realizaccedilotildees do classicismo greco-romano Este movimento representou algo que pode

ser considerado como uma ldquoglorificaccedilatildeo do homemrdquo agora colocado no centro de todas

as indagaccedilotildees e preocupaccedilotildees consistia em sentido amplo numa tomada de posiccedilatildeo

antropocecircntrica em reacccedilatildeo ao teocentrismo que imperava na Idade Meacutedia

Os humanistas deixaram de aceitar os valores e maneiras de ser e viver da Idade

Meacutedia Por conseguinte o interesse pela antiguidade experimenta-se como um meio

para atingir um fim Os humanistas viam na antiguidade

ldquo[hellip] aquilo que correspondia aos desejos que sentiam [hellip] Pretendiam encontrar nos antigos o Homem considerado como o ser geral impessoal universal que existe sob a mesma forma em toda parte [hellip] O humanismo eacute uma teacutecnica da vida cotidianardquo3

A produccedilatildeo intelectual deste periacuteodo concebia-se natildeo como um retorno ao

passado mas como uma tentativa de buscar nos claacutessicos greco-romanos uma fonte de

inspiraccedilatildeo O humanismo renascentista aleacutem de representar uma forte reacccedilatildeo a todos

os padrotildees culturais medievais escolaacutesticos tendeu tambeacutem fortemente a contrapor a feacute

e a razatildeo

Na sua globalidade a reflexatildeo dos Essais tem como um dos seus objectivos

principais a caracterizaccedilatildeo do homem Nesta perspectiva Michel de Montaigne se

3 AA VV Histoacuteria das sociedades das sociedades modernas agraves sociedades atuais Rio de Janeiro Ao Livro Teacutecnico 1983 p 70

9

apresenta como um pensador humanista que viveu numa altura em que a visatildeo

antropocecircntrica era dominante No entanto ele procurou superar esta concepccedilatildeo de uma

maneira muito particular A concepccedilatildeo antropoloacutegica claacutessica renascentista enaltecia

radicalmente a ldquodignitas hominisrdquo4 colocando o homem no centro do universo

Montaigne assume uma postura significativamente diferente do espiacuterito humanista

renascentista despreza o tema da dignitas hominis e dedica-se agrave investigaccedilatildeo das coisas

concretas da vida

O humanismo de Montaigne ao contraacuterio do humanismo dominante alicerccedila-se

na ldquomiseria hominisrdquo5 Parte de plena consciecircncia dos limites da razatildeo humana no

sentido de que as suas faculdades natildeo tecircm condiccedilotildees para transcender estes mesmos

limites A razatildeo o grande orgulho do homem eacute concebida como uma estrateacutegia de

racionalizaccedilatildeo dos vaacuterios elementos da vida (costumes crenccedilas etc) que procura

transformar atribuindo-lhe uma verdade que natildeo consegue transcender a contingecircncia

Potildee-se assim em destaque ateacute que ponto a posiccedilatildeo de Montaigne contrasta com a visatildeo

de ldquodignitas hominisrdquo acima referida a mais comummente assumida na sua eacutepoca Para

ele o homem soacute pode ser o que eacute e imaginar de acordo com a sua medida

ldquo[C] Tout contentement des mortels est mortel [A] La reconnoissance de nos parens de nos enfants et de nos amis si elle nous peut toucher et chatouiller en lrsquoautre monde si nous tenons encore agrave un tel plaisir nous sommes dans les commoditez terrestres et finies Nous ne pouvons dignement concevoir la grandeur de ces hautes et divines promesses si nous les pouvons aucunement concevoir pour dignement les imaginer il

4 Para ilustrar as principais caracteriacutesticas desta concepccedilatildeo vale a pena citar um texto muito conhecido de um dos maiores representantes do humanismo renascentista Pico della Mirandola O texto em causa pode ser considerado como uma espeacutecie de manifesto do pensamento humanista renascentista em geral Pico exalta o homem entre todos os seres da natureza e dos ceacuteus como um ser potencialmente capaz de auto-criar-se de auto-projectar-se e de modelar-se a si mesmo com liberdade Pico ldquocoloca na boca de Deusrdquo algumas palavras endereccediladas imaginativamente ao homem receacutem-criado (Adatildeo) ldquo[hellip] Medium te munde posui ut circumspiceres inde commodius quicquid est in mundo Nec te caelestem neque terrenum neque mortalem neque immortalem fecimus ut tui ipsius quasi arbitrarius honorarius que plastes et fictor in quam malueris tute formam effingas Poteris in inferiora quae sunt bruta degenerare poteris in superiora quae sunt divina ex tui animi sententia regenerarirdquo (Coloquei-te no meio do mundo para que daiacute possas olhar melhor tudo o que haacute no mundo Natildeo te fizemos celeste nem terreno nem mortal nem imortal a fim de que tu aacuterbitro e soberano artiacutefice de ti mesmo te plasmasses e te informasses na forma que tivesses seguramente escolhido Poderaacutes degenerar ateacute aos seres que satildeo as bestas poderaacutes regenerar-te ateacute agraves realidades superiores que satildeo divinas por decisatildeo do teu acircnimo) In Pico de la Mirandola Giovanni Oratio de Hominis Dignitate Ediccedilatildeo bilingue Traduccedilatildeo e introduccedilatildeo de Maria de Lurdes Sirgado Ganho Lisboa Ediccedilotildees 70 2001 pp 56-57) 5Para uma apresentaccedilatildeo sinteacutetica e clara deste tema pode-se consultar Friedrich Hugo Montaigne Traduzido do alematildeo por Robert Rovini Paris Gallimard 1967 sobretudo as paacuteginas 133-136 Nesta mesma perspectiva na obra de Rui Bertrand Romatildeo A Apologia na balanccedila a reinvenccedilatildeo do pirronismo na Apologia de Raimundo Sabunde de Michel de Montaigne Lisboa Imprensa Nacional Casa da Moeda 2007 haacute uma reflexatildeo que merece ser lida (pp 79-82)

10

faut les imaginer inimaginables indicibles incomprehensibles [C] et parfaictement autres que celles de nostre miserable experiencerdquo6

Constatando esse limite da razatildeo humana Montaigne combate decididamente as

concepccedilotildees da ldquodignitas humanisrdquo que tecircm como escopo transformar o homem no fim

uacuteltimo da natureza Montaigne ao voltar-se para o homem concreto ao rebaixaacute-lo e

tiraacute-lo do seu pedestal na ldquoApologierdquo assume uma atitude ceacuteptica entendida como

uma forma de pensamento capaz de seguir a mudanccedila e de rejeitar ao mesmo tempo a

pretensatildeo do homem de se considerar por via da razatildeo no centro do universo

Cabe entatildeo perguntar seraacute que o homem ocupa realmente um lugar central nos

Essais A resposta a esta questatildeo eacute expressa de maneira bastante niacutetida na proacutepria

obra Friedrich no seu conhecido trabalho sobre Montaigne afirma

ldquo[A] On peut ouvrir les Essais ougrave lrsquoon veut toujours ils traitent de lrsquohommerdquo7

Haacute muitos outros temas desenvolvidos nos Essais Basta lanccedilar um raacutepido olhar

sobre os tiacutetulos dos vaacuterios ensaios que compotildeem os trecircs livros da obra para constatar a

quantidade enorme de assuntos tratados por Montaigne

Na sua busca incessante de resposta agrave questatildeo central antes referida merece ser

destacado o contacto de Montaigne com a obra de Sebond Theologia Naturalis que seraacute

a base da ldquoApologierdquo Entre muitas outras questotildees desenvolvidas nesta obra o teoacutelogo

catalatildeo tem como objectivo importante responder agrave questatildeo o que eacute o homem Citando

o proacuteprio Sebond Rui Bertrand Romatildeo afirma que haacute uma ideia baacutesica de ordem

hieraacuterquica observada na scala naturale em todos os seus 4 degraus

ldquoNo inferior estatildeo as coisas apenas providas de ser as coisas minerais no segundo as que tecircm ser e vida as vegetais no terceiro as animais em que ao ser e agrave vida se juntam os sentidos no uacuteltimo encontra-se a criatura humana acima da qual natildeo haacute na natureza nenhum outro ser pois o homem possui as qualidades de todas as demais criaturas simultaneamente e em conjunto tendo aleacutem delas a razatildeo e o livre-arbiacutetrio [hellip]rdquo8

Continua o autor mais adiante

ldquo[hellip] A caracteriacutestica dominante da teologia de Sebond consiste precisamente no lugar privilegiado que nela ocupa a referecircncia do homem natildeo apenas como objecto de conhecimento mas como meio da

6 Les Essais II 12 p518 7 Friedrich op cit p 105 8 Romatildeo Rui Bertrand op cit p 90

11

obtenccedilatildeo deste A reflexatildeo antropoloacutegica polariza o seu pensamento filosoacutefico e lhe contamina o sistema teoloacutegicordquo9

Eacute importante destacar aqui uma ideia desenvolvida por Ernst Cassirer na sua

obra Ensaio sobre o Homem10 Segundo este autor a questatildeo acerca do homem no

periacuteodo renascentista depara-se com a descoberta de um novo instrumento de

pensamento entra em cena o espiacuterito cientiacutefico no sentido moderno da palavra O que

agora se procura eacute uma teoria geral do homem baseada em observaccedilotildees empiacutericas e em

princiacutepios loacutegicos gerais A nova cosmologia o sistema heliocecircntrico copernicano

passa a ser a uacutenica base satilde e cientiacutefica para uma nova antropologia Nem a metafiacutesica

claacutessica nem a religiatildeo (com a sua estrutura teoacuterica fundada na teologia medieval)

estavam preparadas para esta tarefa lembra o autor Estas duas cosmologias concebem

o universo como uma ordem hieraacuterquica em que o homem ocupa o lugar mais alto A

pretensatildeo humana de ser o centro do universo perdeu o seu fundamento Cassirer afirma

ainda que o sistema de Copeacuternico se tornou um dos mais fortes instrumentos do

cepticismo filosoacutefico que se desenvolveu no seacuteculo XVI

Montaigne sendo um pensador livre que conseguiu libertar-se da concepccedilatildeo

antropoloacutegica medieval e renascentista tambeacutem natildeo necessitou de recorrer agraves ideias

cientiacuteficas vigentes na altura da redacccedilatildeo dos Essais Isto natildeo significa que tenha

ignorado por completo a teoria heliocecircntrica de Copeacuternico mas sim que como escreve

Conche

ldquoIl nrsquoa pas eu besoin de Copernic pour trouver ridicule la preacutetension de lrsquohomme de se faire centre du cosmos11

Antes de iniciar o seu longo relato (de mais ou menos uma meia centena de

paacuteginas) no qual compara os homens aos animais Montaigne faz uma afirmaccedilatildeo de

capital importacircncia que serve como uma espeacutecie de conclusatildeo antecipada daquilo que

afirma negativamente sobre o homem e sua relaccedilatildeo com o universo

ldquo[A] La presomption est nostre maladie naturelle et originelle La plus calamiteuse et fraile de toutes les creatures crsquoest lrsquohomme et quant et quant la plus orgueilleuse Elle se sent et se void logeacutee icy parmy la bourbe et le fient du monde attacheacutee et cloueacutee agrave la pire plus morte et croupie parti de lrsquounivers au dernier estage du logis et le plus esloigneacute de la voute celeste avec les animaux de la pire condition des trois (Les aeacuteriens les aquatiques et les terrestres) et se va plantant par

9 Idem p 113 10 Cassirer Ernst An essay on man Traduccedilatildeo portuguesa de Carlos Branco Ensaio sobre o homem Lisboa Guimaratildees Editores 1995 p24 11 Conche Marcel Montaigne et la philosophie Paris Puf 1996 p 7

12

imagination au dessus du cercle de la Lune et ramenant le ciel soubs ses pieds Crsquoest par la vaniteacute de cette mesme imagination qursquoil srsquoegale agrave Dieu qursquoil srsquoattribue les conditions divines qursquoil se trie soy mesme et separe de la presse des autres creatures taille les parts aux animaux ses confreres et compaignons et leur distribue telle portion de facultez et de forces que bon luy semble Comment cognoit il par lrsquoeffort de son intelligence les branles internes et secrets des animaux par quelle comparaison drsquoeux agrave nous conclue il la bestise qursquoil leur attribue [C] Quand je me joueuml agrave ma chatte qui sccedilait si elle passe son temps de moy plus que je ne fay drsquoellerdquo12

O homem quer ser senhor de todo o universo A sua atitude de querer ser uma

excepccedilatildeo na natureza natildeo passa de uma atitude ilusoacuteria O homem eacute segundo

Montaigne uma criatura como as outras que pode ser diferenciada natildeo pela capacidade

de raciocinar mas apenas pela presunccedilatildeo de querer destacar-se orgulhosamente

tornando-se ldquoo todo-poderosordquo face agraves outras criaturas Esta sua pretensatildeo de querer ser

a uacutenica criatura que pode conhecer e dominar o universo eacute radicalmente contestada por

Montaigne na ldquoApologierdquo Eacute com muita clarividecircncia que Conche reflectindo sobre

este tema afirma

ldquoOn voit pourquoi Montaigne srsquoefforce de retrouver chez lrsquoanimal ldquointelligencerdquo ldquodiscreacutetionrdquoldquojugementrdquoldquoratiocinationrdquo capaciteacute de ldquoconsulterrdquo de ldquoconcluirrdquo ldquoscience et prudencerdquo 13

Que tipo de competecircncia nossa natildeo reconhecemos nos actos dos animais Esta

questatildeo fundamental leva Montaigne a apresentar os seus relatos anedoacuteticos14 O

interesse da sua apologia dos animais eacute ldquo[hellip] paradoxalment lrsquohomme Montaigne

recherche lrsquohomme dans lrsquoanimal [hellip] crsquoest pour lutter contre lrsquoanthropocentrismerdquo15

Montaigne inicia a sua exposiccedilatildeo perguntando-se

ldquo[A] Est-il police regleacutee avec plus drsquoordre diversifieacutee agrave plus de charges et drsquooffices et plus constamment entretenueuml que celle des mouches agrave mielrdquo16

E faz questatildeo tambeacutem de descrever o engenho das andorinhas ao construiacuterem os

seus alojamentos e das aranhas ao confeccionarem as suas teias Diante destas obras

destes pequeninos animais Montaigne observa

12 Les Essais II 12 p 452 13 Conche Marcel Montaigne et la philosophie Paris Puf 1996 p 9 14 ldquoFidegravele aux proceacutedeacutes de compilation de son temps Montaigne accumule les exemples emprunteacutes agrave Pline agrave Plutarque agrave Arrien agrave Aulu-Gelle agrave Lucregravece agrave Virgile agrave Sextus Epiricusrdquo (cf Weiler Maurice Pour connaitre la penseacutee de Montaigne Bordas 1948 p 38) 15 Giocanti Sylvia Montaigne et les becirctes la becirctise et lrsquoanimal dans Les Essais de Montaigne Universiteacute de Toulouse 2011 p 1 16 Les Essais II 12 pp 454-455

13

ldquo[A] Nous reconnoissons assez en la pluspart de leurs ouvrages combien les animaux ont drsquoexcellence (supeacuterioriteacute) au dessus de nous et combien nostre art est foible agrave les imiterrdquo17

Quanto agrave capacidade de comunicaccedilatildeo Montaigne afirma que os animais

possuem este atributo Falamos com os catildees18 e eles respondem-nos Eacute evidente que

utilizamos uma outra linguagem para conversarmos com eles Montaigne observa que

tambeacutem entre noacutes humanos haacute diferenccedilas de linguagem de acordo com a diferenccedila de

regiotildees Estas diferenccedilas tambeacutem se encontram nos animais da mesma espeacutecie19

Segundo o nosso autor haacute certamente uma diferenccedila de ordem e de grau entre os

homens e os animais contudo ldquo[A] crsquoest soubs le visage drsquoune mesme naturerdquo20 Ao

constatar a peculiaridade do homem em face das outras criaturas Montaigne destaca o

facto de que o homem eacute detentor da liberdade de imaginaccedilatildeo No entanto

ldquo[A] ce desresglement de penseacutees luy representant ce qui est ce qui nrsquoest pas et ce qursquoil veut le faux et le veritable crsquoest un advantage qui luy est bien cher vendu et duquel il a bien peu agrave se glorifier car de lagrave naist la souce principale des maux qui le pressent pecheacute maladie irresolution (inconstance) trouble desespoirrdquo 21

Citando Lucreacutecio22 Montaigne deixa transparecer que o homem se prejudica a si

mesmo porque natildeo se manteacutem dentro dos limites da organizaccedilatildeo da natureza que se

manifesta de uma maneira inteligiacutevel e agraves vezes ateacute hostil submetendo o homem agrave

necessidade de leis que natildeo lhe satildeo suficientemente claras23

17 Les Essais II 12 p455 18 Les Essais II 12 p 458 19 Les Essais II 12 pp 458-459 20 Les Essais II 12 p459 21 Les Essais II 12 p 460 22ldquo[B] ldquores quaeque suo ritu procedit et ommes Foedere naturae certo discrimina servantrdquo (Chaque chose se deacuteveloppe agrave sa maniegravere et toutes conservent les diffeacuterences eacutetablies par lrsquoordre immuable de la nature) Cf Les Essais II 12 p 459 23 Expressando a sua visatildeo da natureza Montaigne observa que ao considerar que ela nos criou diferentes dos outros animais isto eacute nus sobre a terra nua atados cercados natildeo tendo com que armar-nos cobrir-nos [hellip] somos tentados a chamaacute-la de ldquotregraves injuste maracirctrerdquo Mas isto natildeo eacute assim A nossa organizaccedilatildeo do mundo natildeo eacute tatildeo disforme e desregrada A natureza abraccedilou universalmente todas as suas criaturas e natildeo haacute nenhuma que ela tenha provido plenamente de todos os meios necessaacuterios para a conservaccedilatildeo da existecircncia ldquo[C] crsquoest une mesme nature qui roule son coursrdquo(cf Les Essais II12 p467) Reflectindo sobre o tema da natureza nos Essais Pierre Villey afirma que ela se opotildee essencialmente agrave razatildeo humana e eacute natural tudo o que a razatildeo natildeo contaminou Afirma Villey ldquo[hellip] crsquoest chez les animaux et chez les sauvages qursquoon trouve les traces les moins corrompues de la nature Lrsquoeacutetat de nature dans cette conception radicale crsquoest lrsquoeacutetat de sauvagerie [hellip] Lrsquoadmiration pour les andiens crsquoest la forme paradoxale que prend chez lui de temps agrave autre son principe drsquoimitation de la naturerdquo (In Villey Pierre Les sources et lrsquoeacutevolution des essais de Montaigne - Tome second Paris Librairie Hachete 1908 p228) Isto natildeo quer dizer que devamos imitar os indiacutegenas por exemplo em todos os seus costumes tradiccedilotildees etc

14

Continuando a apologia dos animais Montaigne sugere que concebamos que os

animais natildeo obedecem a instintos de uma forma cega O relato que apresenta da raposa

da Traacutecia24 eacute um dos seus exemplos claacutessicos neste sentido Antes de se arriscar sobre a

aacutegua gelada a raposa aproxima o ouvido do gelo para ouvir de que profundidade sobre

o murmuacuterio da aacutegua a correr em baixo isto eacute ela ldquoraciocinardquo como fariacuteamos noacutes em

idecircnticas circunstacircncias o que faz barulho mexe o que mexe natildeo estaacute gelado o que natildeo

estaacute gelado eacute liacutequido e o liacutequido cede sob o peso Segundo Montaigne atribuir isto

simplesmente a uma vivacidade do sentido da audiccedilatildeo sem raciociacutenio e sem conclusatildeo

eacute uma quimera inconcebiacutevel

Segundo Montaigne natildeo eacute soacute o homem que sabe escolher o que eacute bom e o que

natildeo eacute bom para a sua vida e sobretudo para o socorro nas doenccedilas atraveacutes da ciecircncia e

do conhecimento construiacutedos por arte e por raciociacutenio

ldquo[A] Et quand nous voyons les chevres de Candie si elles ont receu un coup de traict aller entre un million drsquoherbes choisir le dictame pour leur guerison et la tortue quand elle a mangeacute de la vipere chercher incontinent de lrsquooriganum pour se purger et le dragon fourbir et esclairer ses yeux avecques du fenouil les cigouignes se donner elles mesmes des clysteres agrave tout de lrsquoeau de marine [hellip] pourquay ne disons nous de mesmes que crsquoest science et prudencerdquo25

Eacute faacutecil ver aqui quanto Montaigne deseja que o homem reconheccedila que os

animais possuem tambeacutem ciecircncia e sabedoria Em seu entender os animais tambeacutem satildeo

capazes de ser instruiacutedos agrave moda humana

ldquo[A] Les merles les corbeaux les pies les parroquets nous leur aprenons agrave parler [hellip] ils ont un discours au dedans qui les rend ainsi disciplinables et volontaires agrave aprendrerdquo26

Muitos animais aproximam-se da capacidade do homem e isto leva Montaigne a

afirmar

ldquo[A] qursquoil se trouve plus de difference de tel homme agrave tel homme que de tel animal agrave tel hommerdquo27

Podemos encontrar na ldquoApologierdquo muitos outros exemplos em que Montaigne

defende a ideia de que os animais possuem diversas capacidades semelhantes agraves dos

humanos28 Uma vez numerados todos estes atributos dos animais Montaigne afirma

24 Les Essais II 12 p 460 25 Les Essais II 12 pp 462-463 26 Les Essais II 12 p 463 27 Les Essais II 12 p 466

15

ldquo[A] La maniegravere de naistre drsquoengendrer nourrir agir mouvoir vivre et mourir des bestes estant si voisine de la nostre tout ce que nous retranchons de leurs causes motrices et que nous adjoustons agrave nostre condition au dessus de la leur cela ne peut aucunement partir du discours de nostre raisonrdquo29

Pierre Villey ao reflectir sobre estas comparaccedilotildees suscita uma questatildeo

relevante que natildeo eacute possiacutevel ignorar

ldquo[hellip] quand il exalte lrsquointeligence des animaux on peut se demander ce qursquoil en pense au justerdquo30

Natildeo querendo entrar na discussatildeo deste assunto - ateacute porque o proacuteprio

Montaigne natildeo o fez - eacute importante notar que se estes relatos montaigneanos fossem

tomados agrave letra natildeo nos faltariam motivos de troccedila Poderiacuteamos duvidar de muitas

afirmaccedilotildees acerca dos animais apresentadas por ele Fazendo um esforccedilo por deixar agrave

margem os exageros o humor e a liberdade literaacuteria do autor ndash que tecircm como objectivo

rebaixar o homem recolocando-o entre os animais e mostrando-lhe que a sua razatildeo

grande motivo de orgulho natildeo lhe garante um lugar no topo da piracircmide das criaturas ndash

o que importa destacar eacute que Montaigne pretende acentuar uma grande semelhanccedila

entre os homens e os animais

ldquo[A] Nous ne sommes ny au dessus ny au dessoubs du reste tout ce qui est sous le ciel dit le sage court une loy et fortune pareille [B] Indupedita suis fatalibus omnia vinclis (Toutes les choses sont enchaineacutes par les liens de leur propre destineacutee)rdquo31

28 Vejamos resumidamente outros atributos dos animais destacados pelo autor os catildees que servem aos cegos tanto nos campos como nas cidades catildees que representavam papeacuteis no teatro (p463) bois que serviam nos jardins reais de Susa (p464) nos espectaacuteculos de Roma viam-se elefantes treinados em movimentar-se e em danccedilar (p465) a pega que imitava com a voz tudo o que ouvia (p464) os elefantes que tecircm alguma participaccedilatildeo religiosa (p468) formigas que tecircm um jeito muito especial de comunicaccedilatildeo muacutetua (p469) o ouriccedilo que prevecirc a direcccedilatildeo do vento (p469) o camaleatildeo e o polvo que mudam de cor conforme a ocasiatildeo (p469) o voo dos paacutessaros que eacute resultado natildeo apenas da organizaccedilatildeo natural mas tambeacutem do entendimento consentimento e raciociacutenio (p469) os animais que servem seus donos sabem amaacute-los defendecirc-los (p461) o catildeo o cavalo sabem prezar amizade (p471) os animais satildeo muito mais regrados do que noacutes e se contecircm com muito mais moderaccedilatildeo nos limites que a natureza nos prescreveu (p472) os animais natildeo promovem a guerra (p473) o catildeo eacute mais fiel do que o homem (p476-7) quanto agrave gratidatildeo os animais tecircm esta capacidade (p477-8) os atuns tecircm conhecimentos geomeacutetricos astronoacutemicos e aritmeacuteticos (p479-480) o elefante tem a capacidade de arrependimento e reconhecimento dos erros (p480) o tigre tem capacidade de ser clemente (p480) enfim Montaigne atribui todas estas caracteriacutesticas e outras mais aos animais mostrando que elas satildeo erradamente consideradas como unicamente posse dos humanos 29 Les Essais II 12 p 470 30 Villey op cit p 186 31 Les Essais II 12 p 459

16

Desta perspectiva podemos compreender melhor a razatildeo do ldquodestronamentordquo

deste ser ldquotodo-poderosordquo que eacute o homem levado a cabo por Montaigne32

Depois de ter destacado a ideia de que o homem se assemelha aos animais e

vice-versa Montaigne sustenta que a forma corporal do homem eacute o que constitui a sua

peculiaridade face aos animais Eacute ela que ldquodefinerdquo a identidade do homem

ldquo[B] Ce nrsquoest donc pas par la raison par le discours et par lrsquoame que nous excellons sur les bestes crsquoest par nostre beauteacute nostre beau teint et nostre belle disposition de membres pour laquelle il nous faut mettre nostre intelligence nostre prudence et tout le reste agrave lrsquoabandonrdquo33

A sugestatildeo de Montaigne eacute que o homem natildeo pode ser pensado sem o seu corpo

elemento essencial de sua condiccedilatildeo humana O homem natildeo pode continuar a ser

concebido apenas como ser racional Montaigne potildee em causa a claacutessica concepccedilatildeo de

que soacute o homem eacute constituiacutedo de racionalidade O seu objectivo natildeo eacute encontrar uma

nova definiccedilatildeo do homem natildeo deseja decretar a inferioridade do homem nem tampouco

a sua superioridade face aos animais Natildeo tem em vista promover uma competiccedilatildeo

ridiacutecula entre os seres da natureza Montaigne sente-se incapaz de dar qualquer

definiccedilatildeo com o auxiacutelio da razatildeo humana Ignora qual eacute a essecircncia dos animais natildeo os

conhece Da mesma forma podemos dizer que agrave luz da ldquoApologierdquo Montaigne natildeo

consegue definir o homem Natildeo eacute possiacutevel elaborar juiacutezos constantes e uniformes nem

sobre o homem nem a partir dele

Dito de outra forma o ldquocepticismo da razatildeordquo que Montaigne assume

conscientemente visa rejeitar a pretensatildeo do homem de se considerar por via da razatildeo

no centro do universo

Montaigne com os seus ensaios quer ir directo agraves coisas e aos homens Eacute claro

que teve pouco contacto com o chamado movimento cientiacutefico do seu tempo Longe de

32 Friedrich ao analisar a questatildeo do lugar que segundo Montaigne corresponde ao homem diz ldquoA la question de savoir quelle place occupe lrsquohomme dans la totaliteacute du monde existent Montaigne ne donnera jamais la reacuteponse plotinienne selon laquelle il serait dans la chaicircne des ecirctres eacutemaneacutes un dernier maillon reacutetablissant la communication avec la source de lrsquoeacutemanation lrsquoUm primordial Ni la reacuteponse chreacutetienne selon laquelle lrsquohomme constituerait le couronnement terrestre de la creacuteation tout le creacutee lui eacutetant subordonneacute et Dieu eacutetant alleacute pour lui jusqursquoagrave se reacutesoudre agrave intervenir dans lrsquohistoire du salut Lrsquohomme de Montaigne est plutocirct un point dans lrsquounivers sans espoir que le destin ni la diviniteacute srsquointeacuteresse jamais agrave lui Il partage cette insignifiance de point avec le milieu dans lequel il vit patrie Eacutetat continent terre animaux et plantes Il nrsquoest plus un centre il est plongeacute dans la multitude de tout ce qui existe ignorant ce qui lrsquoen distingue et srsquoy sentant cheacutetif - bien preacuteserveacute pourtant au coeur de son insignifiance de son ignorance et deacutechargeacute de tout embarras Il y a au fond de cette penseacutee des ideacutees de Lucregravece Montaigne les transforme pour leur faire exprimer sa propre conscience de la vie dont il preacutecise les grandes lignes en la deacutelimitant par rapport aux affirmations posant la digniteacute de la nature humaine (cf op cit p131) 33 Les Essais II 12 p 486

17

toda a construccedilatildeo teoacuterica esforccedila-se por encontrar nele mesmo e nos outros o homem

tal como eacute sem o falso semblante que lhe acrescentam as pretensiosas doutrinas que o

definem pela sua relaccedilatildeo com o universo e com Deus

18

2 A criacutetica agrave razatildeo humana e a questatildeo da religiatildeo

Segundo Montaigne as pessoas que se gabam do conhecimento estatildeo sempre a

tentar explicar quais satildeo os atributos de Deus atraveacutes de complicados conceitos e

demonstraccedilotildees ininteligiacuteveis Em seu entender Deus e as verdades da religiatildeo satildeo

nitidamente questotildees de feacute e natildeo noccedilotildees filosoacuteficas Que isto eacute assim prova-o o facto de

que estas noccedilotildees satildeo sempre muito diversas e originam muita discoacuterdia entre os

inuacutemeros autores que delas se ocupam Uma coisa eacute Deus e outra coisa totalmente

diferente eacute o que pensam os homens a respeito de Deus

ldquo[A] Il ma tousjours sembleacute quagrave un homme Chrestien cette sorte de parler est pleine dindiscretion et dirreverence Dieu ne peut mourir Dieu ne se peut desdire Dieu ne peut faire cecy ou cela Je ne trouve pas bon denfermer ainsi la puissance divine soubs les loix de nostre parolle Et lapparence qui soffre agrave nous en ces propositions il la faudroit representer plus reveremment et plus religieusementrdquo34

ldquo[A] Dieu ne peut faire les mortels immortels ny revivre les trespassez ny que celuy qui a vescu nait point vescu celuy qui a eu des honneurs ne les ait point eus nayant autre droit sur le passeacute que de loubliance [hellip] Voylagrave ce quil dict et quun Chrestien devroit eviter de passer par sa bouche Lagrave ougrave au rebours il semble que les hommes recherchent cette fole fierteacute de langage pour ramener Dieu agrave leur mesure [hellip]nostre parole le dict mais nostre intelligence ne lrsquoapprehende pointrdquo35

Para compreender o lugar e o valor da razatildeo na ldquoApologierdquo eacute necessaacuterio

investigar os motivos que levaram o autor a tecer uma criacutetica tatildeo contundente da razatildeo

humana aprofundando em concreto as relaccedilotildees que esta criacutetica tem com a sua anaacutelise

da religiatildeo e com o poder de Deus expresso em todo o desenvolvimento do texto Para

esta abordagem teremos como base o preacircmbulo da ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo36

A ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo eacute o mais longo capiacutetulo da obra Les Essais

Neste texto Montaigne propotildee-se apresentar a ldquodefesa de um teoacutelogordquo do seacuteculo XVI

Montaigne comeccedila por caracterizar a situaccedilatildeo histoacuterica na qual a obra de

Sebond chegou agraves matildeos de seu pai por intermeacutedio do humanista Pierre Brunel (1499-

1546)37 Segundo Montaigne trata-se de um livro adequado para a eacutepoca Isto porque as

34 Les Essais II 12 p 527 35 Les Essais II 12 p 528 36 Cf Les Essais II 12 pp 438-449 Montaigne sobretudo nestas paacuteginas iniciais opotildee a religiatildeo agrave razatildeo humana demonstrando por um lado a incapacidade e os limites desta faculdade que eacute motivo de orgulho do homem e por outro esse ldquoinstrumentordquo de conhecimento ligado agrave graccedila divina que eacute a feacute 37 Montaigne admirava muito este humanista que gozava de grande reputaccedilatildeo na sua eacutepoca por causa de seu saber (Les Essais II 12 p 439)

19

novidades de Lutero comeccedilavam a estar em voga e a abalar em muitos lugares a antiga

crenccedila cristatilde38 Para Montaigne que era um pensador catoacutelico conservador a Reforma

Protestante era vista como algo perigoso para a religiatildeo estabelecida Globalmente natildeo

concordava com as contestaccedilotildees provocadas pelo espiacuterito da Reforma sobretudo porque

poderiam levar os homens agrave praacutetica do ateiacutesmo especialmente os menos doutos

Uma leitura do texto potildee de imediato em evidecircncia em que medida Montaigne se

distancia de Sebond em termos argumentativos Parafraseando Villey a defesa de

Sebond seraacute rapidamente esquecida39 Montaigne observa que surgiram entretanto

algumas objecccedilotildees ao livro de Sebond e anuncia no iniacutecio do ensaio o seu propoacutesito de

refutaacute-las Montaigne deseja defender Sebond destes dois tipos de adversaacuterios por um

lado os que consideram que os cristatildeos erram ao querer apoiar com razotildees humanas a

sua crenccedila que soacute se concebe por feacute e por uma inspiraccedilatildeo particular da graccedila divina

Estes satildeo os que subestimam a importacircncia da razatildeo Satildeo considerados fideiacutestas

pessoas que pensam que a verdade em religiatildeo estaacute em uacuteltima instacircncia baseada na feacute

em vez de no raciociacutenio ou na evidecircncia Por outro lado estatildeo os que dizem que os

argumentos de Sebond satildeo fracos e inadequados para demonstrar o que pretendem e se

dispotildeem a atacaacute-los facilmente Estes satildeo os que subestimam a importacircncia da feacute

Consideremos em primeiro lugar a atitude dos primeiros opositores Natildeo seria

correcto querer apoiar com razotildees humanas a crenccedila ldquo[A] qui ne se conccediloit que par foy

et par une inspiration particuliere de la grace divinerdquo40 Estes primeiros opositores de

Sebond satildeo os partidaacuterios da posiccedilatildeo ortodoxa catoacutelica Montaigne lembra que estes

teoacutelogos catoacutelicos satildeo movidos sobretudo por uma visatildeo piedosa

ldquo[A] En cette objection il semble quil y ait quelque zele de pieteacute et agrave cette cause nous faut-il avec autant plus de douceur et de respect essayer de satisfaire agrave ceux qui la mettent en avantrdquo41

Em face destas primeiras criacuteticas agrave obra do teoacutelogo catalatildeo Montaigne natildeo se

inibe de expressar as suas proacuteprias tomadas de posiccedilatildeo

ldquo[A]Toutefois je juge ainsi quagrave une chose si divine et si haultaine et surpassant de si loing lhumaine intelligence comme est cette veriteacute de laquelle il a pleu agrave la bonteacute de Dieu nous esclairer il est bien besoin quil nous preste encore son secours dune faveur extraordinaire et privilegeacutee pour la pouvoir concevoir et loger en nous et ne croy pas que

38 Cf Les Essais II 12 p 439 39 Villey op cit p 183 40 Les Essais II 12 p 440 41 Les Essais II 12 p 440

20

les moyens purement humains en soyent aucunement capables et sils lestoient tant dames rares et excellentes et si abondamment garnies de forces naturelles eacutes siecles anciens neussent pas failly par leur discours darriver agrave cette connoissance Cest la foy seule qui embrasse vivement et certainement les hauts mysteres de nostre Religionrdquo42

Ao abordar esta questatildeo Montaigne reconhece que natildeo estaacute capacitado para

levar a cabo tal empreendimento Esta seria uma tarefa mais adequada para um homem

versado em teologia assunto de que ele pessoalmente diz nada saber43 Mesmo assim

expressa uma vez mais a sua criacutetica radical aos que utilizam a razatildeo para apresentarem

argumentos apologeacuteticos em defesa das verdades sobre Deus e sobre a religiatildeo

Montaigne eacute um catoacutelico44 Sobre isto os Essais natildeo deixam duacutevida Natildeo eacute este o

momento de entrar na discussatildeo acerca de como viveu ou deixou de viver a sua

religiosidade O importante eacute que como catoacutelico aceita que haacute um Deus uacutenico criador

do ceacuteu e da terra Em vaacuterios momentos tanto na ldquoApologierdquo como em outros ensaios

Montaigne daacute a entender que a verdade estaacute em Deus e natildeo eacute propriedade dos homens

filoacutesofos ou teoacutelogos Noutras palavras a verdade eacute revelada e o homem sem o auxiacutelio

de Deus nunca a encontraria A razatildeo humana natildeo tem condiccedilotildees para elaborar

raciociacutenios crediacuteveis sobre estas verdades reveladas Para sustentar a tese que a razatildeo eacute

impotente neste domiacutenio Montaigne dedica um nuacutemero importante de paacuteginas em toda

a sua obra a desenvolver a ideia de que alguns filoacutesofos antigos reflectiram muito sobre

a possibilidade do conhecimento sobre Deus e fizeram afirmaccedilotildees que satildeo

absolutamente carentes de sentido Isto natildeo passou de uma ldquo[C] tintamarre de tant de

42 Les Essais II 12 p 440-441 43 ldquoCe seroit mieux la charge drsquoun homme verseacute en Theologie que de moy qui nrsquoy sccedilay rienrdquo(Les Essais II 12 p 440) 44 Montaigne declara-se catoacutelico foi um catoacutelico que durante toda a sua vida procurou cumprir os ritos lituacutergicos convencionais da Igreja Catoacutelica A sua posiccedilatildeo ceacuteptica parece enquadrar-se no fideiacutesmo como veremos Mas haacute que salientar que em algumas questotildees morais independentes das suas praacuteticas rituais ou seja na sua vida praacutetica Montaigne natildeo tem muito em consideraccedilatildeo a lista de exigecircncias eacuteticas do catolicismo romano Parece que falta agrave concepccedilatildeo religiosa de Montaigne algum sentimento religioso limita-se a uma espeacutecie de praacutetica do ritualismo exigido pela Igreja Catoacutelica Ele seria catoacutelico por uma questatildeo de conveniecircncia intelectual A sua praacutetica lituacutergica ritualiacutestica natildeo exerce grande influecircncia sobre o seu pensamento filosoacutefico Ele eacute um pensador completamente livre face agrave doutrina da Igreja E isto distingue-o substancialmente dos teoacutelogos que integram o corpo doutrinal na Igreja Montaigne pensava e exprimia estes pensamentos com plena liberdade Manifesta aleacutem disso alguma confianccedila na Igreja na religiatildeo na tradiccedilatildeo e nos costumes que contribuiacuteram para a sua formaccedilatildeo e que satildeo de alguma maneira parte constitutiva de sua identidade E na realidade quis apostar naquilo com o qual estava mais familiarizado ldquo[B] Nous sommes Chrestiens agrave mesme titre que nous sommes ou Perigordins ou Alemansrdquo(Les Essais II 12 p 445) No entanto quando comeccedilamos a estabelecer um maior contacto com os Essais percebemos que Montaigne natildeo eacute um catoacutelico que confie cegamente na doutrina da Igreja Muito pelo contraacuterio eacute extremamente consciente dos problemas do catolicismo e da sua doutrina bem como dos costumes em geral E acima de tudo tem perfeita consciecircncia de que a sua confianccedila eacute uma crenccedila e natildeo uma certeza filosoacutefica

21

cervelles philosophiquesrdquo45 Segundo Montaigne de todas as ideias humanas e antigas

no tocante agrave religiatildeo

ldquo[A]celle lagrave me semble avoir eu plus de vray-semblance et plus dexcuse qui reconnoissoit Dieu comme une puissance incomprehensible origine et conservatrice de toutes choses toute bonteacute toute perfection recevant et prenant en bonne part lhonneur et la reverence que les humains luy rendoient soubs quelque visage sous quelque nom et en quelque maniere que ce futrdquo46

Trata-se de belas afirmaccedilotildees que querem expressar quais satildeo os principais

atributos de Deus Satildeo uma tentativa racional que tem como meta explicar quem eacute Deus

Ao comentar esta passagem da ldquoApologierdquo Conche pergunta-se que significam estas

palavras E baseado na leitura que faz de Montaingne afirma que aplicadas a Deus

natildeo podemos saber o que realmente significam47

Montaigne questiona o facto de muitos homens pretenderem edificar um

discurso baseado na razatildeo para justificar as verdades reveladas as quais segundo ele soacute

poderatildeo encontrar os verdadeiros alicerces na feacute Vejamos como Conche

sinteticamente analisa esta questatildeo a partir da ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo

ldquoNous croyons penser Dieu En reacutealiteacute nous ne faisons que projeter hors de nous des qualiteacutes humaines que nos avons [hellip] Lrsquohomme ne peut concevoir Dieu qursquoagrave partir de lui-mecircme Or il y a entre lrsquohomme et Dieu un abicircme qualitatif Le Dieu dont on parle et duquel on raisonne nrsquoest qursquoun produit de lrsquoanthropomorphisme La raison loin de nous eacutelever agrave Dieu le ramegravene agrave notre mesure [hellip] En tout cela Dieu est encore conccedilu par analogie avec lrsquohomme et la puissance divine enfermeacutee ldquosous les lois de notre parolerdquo Assujettir Dieu agrave nos principes rationnels crsquoest lrsquoassujettir agrave la raison humaine Lrsquohomme ne peut penser au-delagrave de lui mecircme Du vrai Dieu on ne peut rien penser ni rien dire Il nrsquoy a pas drsquoideacutee de Dieu [hellip] La notion de Dieu nrsquoest pas une notion philosophiquerdquo48

Embora critique estes opositores de Sebond Montaigne afirma ao mesmo tempo

que o empenho em justificar a feacute pela razatildeo eacute uma iniciativa louvaacutevel Chega mesmo a

afirmar que esta tarefa poderia ser considerada como o uso mais honroso que o homem

cristatildeo poderia dar agrave razatildeo Por outras palavras eacute uma atitude nobre a que leva o cristatildeo

a querer embelezar perceber e ampliar a verdade de sua crenccedila por meio de todos os

estudos e reflexotildees Montaigne observa entretanto que eacute preciso fazer acompanhar a

45 Les Essais II 12 p 516 46 Les Essais II 12 p 513 47 Cf Conche Marcel Montaigne ou la conscience heureuse Paris Puf 2009 p 55 48 Idem pp 55-56

22

nossa feacute de toda a razatildeo que haacute em noacutes mas sempre com a ressalva de natildeo pensar que

seja de noacutes que ela depende nem que os nossos esforccedilos e argumentos possam atingir

uma tatildeo ldquo[A] supernaturelle et divine sciencerdquo49 O autor dos Essais insistiraacute muito

neste aspecto

ldquo[A] Si elle nentre chez nous par une infusion extraordinaire si elle y entre non seulement par discours mais encore par moyens humains elle ny est pas en sa digniteacute ny en sa splendeur Et certes je crain pourtant que nous ne la jouyssions que par cette voye Si nous tenions agrave Dieu par lentremise dune foy vive si nous tenions agrave Dieu par luy non par nous si nous avions un pied et un fondement divin les occasions humaines nauroient pas le pouvoir de nous esbranler comme elles ont [hellip]rdquo50

Sem duacutevida Montaigne ao questionar o poder da razatildeo humana procura

defender a feacute cristatilde Os argumentos tidos como ceacutepticos que estatildeo presentes na

ldquoApologierdquo tecircm como objectivo provar que soacute atraveacutes da intervenccedilatildeo divina e natildeo com

nossos proacuteprios meios racionais podemos ter acesso agrave verdade Apresenta vaacuterios

exemplos para que entendamos com mais clarividecircncia a sua reflexatildeo acerca deste

assunto

ldquo[C] Lrsquohomme est bien insenseacute Il ne sccedilauroit forger un ciron et forge des Dieux agrave douzainesrdquo51

O homem quer descrever Deus mas na verdade descreve-se a si mesmo Isto

demonstra a sua incapacidade e a sua falta de sabedoria

ldquo[B] Nous avons vie raison et liberteacute estimons la bonteacute la chariteacute et la justice ces qualitez sont donc en luy Somme le bastiment et le desbastiment les conditions de la diviniteacute se forgent par lhomme selon la relation agrave soy Quel patron et quel modele Estirons eslevons et grossissons les qualitez humaines tant quil nous Plaira enfle toy pauvre homme et encore et encore et encore Non si te ruperis inquit (ldquoNon pas mecircme quand tu cregraveverais dit-ilrdquo (Hor Sal II III 318) Crsquoest la fable de la grenouille qui veut se faire aussi grosse que le boeuf)rdquo52

Eacute interessante notar que ao mesmo tempo que pretende fazer a apologia da feacute cristatilde Montaigne critica os cristatildeos que natildeo satildeo ldquofieacuteisrdquo aos ensinamentos da Sagrada Escritura

ldquo[B] Voulez vous voir cela Comparez nos moeurs agrave un Mahometan agrave un Payen vous demeurez tousjours au dessoubs lagrave ougrave au regard de lavantage de nostre religion nous devrions luire en excellence dune extreme et incomparable distance et devroit on dire Sont ils si justes si

49 Les Essais II 12 p 441 50 Les Essais II 12 p 441 51 Les Essais II 12 p 530 52 Les Essais II 12 p 531

23

charitables si bons ils sont donq Chrestiens [C] La marque peculiegravere de nostre veriteacute devroit estre nostre vertu comme elle est aussi la plus celeste marque et la plus difficile et que cest la plus digne production de la veriteacuterdquo53

Para Montaigne os cristatildeos constituem uma espeacutecie de contratestemunho de sua

feacute Fazendo uma referecircncia ao texto da Sagrada Escritura algo muito raro nos Essais o

autor afirma que se tiveacutessemos um uacutenico pingo de feacute54 moveriacuteamos as montanhas de

seu lugar E neste sentido lembra-nos

ldquo[A] nos actions qui seroient guideacutees et accompaigneacutees de la diviniteacute ne seroient pas simplement humaines elles auroient quelque chose de miraculeux comme nostre croyancerdquo55

Para os que subestimam a importacircncia da razatildeo isto eacute para os primeiros

opositores de Sebond ou os fideiacutestas os cristatildeos erram ao quererem apoiar as suas

crenccedilas que soacute se concebem por meio da feacute e por inspiraccedilatildeo particular da graccedila divina

Estes satildeo os que pensam que a verdade em religiatildeo estaacute em uacuteltima instacircncia baseada na

feacute em vez de no raciociacutenio ou na evidecircncia Segundo Montaigne trata-se de uma

concepccedilatildeo bonita e ateacute piedosa Chega inclusivamente a exemplificar esta atitude e a

citar um caso de algueacutem que foi desviado dos erros da incredulidade atraveacutes da leitura

da obra de Sebond

ldquo[A] Je sccedilay un homme dauthoriteacute nourry aux lettres qui ma confesseacute avoir esteacute rameneacute des erreurs de la mescreance par lentremise des argumens de Sebond Et quand on les despouillera de cet ornement et du secours et approbation de la foy et quon les prendra pour fantasies pures humaines pour en combatre ceux qui sont precipitez aux espouvantables et horribles tenebres de lirreligion ils se trouveront encores lors aussi solides et autant fermes que nuls autres de mesme condition quon leur puisse opposer [hellip]rdquo56

53 Les Essais II 12 p 442 54 Provavelmente Montaigne estaacute a aludir a textos da Sagrada Escritura especialmente do Evangelho ldquoSi vraiment vous avez de la foi gros come une graine de moutarde vous diriez agrave ce sycomore ldquoDeacuteracine-toi et va te planter dans la merrdquo et il vous obeacuteiraitrdquo (Lc 17 6) Car en veacuteriteacute je vous le deacuteclare si un jour votre foi est semblable agrave un grain de moutarde vous diriez agrave cette montagne ldquoPasse drsquoici lagrave-basrdquo et elle y passera Rien ne vous sera impossiblerdquo (Mt 17 20) (In Nouveau Testament Traduction Oecumeacutenique de la Bible Paris PUF 1977 pp 91 e 253 55 Les Essais II 12 p 442 56 Les Essais II 12 p 447-448

24

No entanto mesmo tendo em consideraccedilatildeo a importacircncia da Teologia Natural

sebondiana Montaigne toma um certo partido pelo lado dos fideiacutestas57 seus opositores

Em seu entender a razatildeo humana natildeo eacute capaz de conduzir o homem agrave feacute

Montaigne num dado momento refere-se agraves guerras58 que oprimiam a sua

naccedilatildeo Ele propotildee uma possiacutevel explicaccedilatildeo destes tormentos que assolavam a Franccedila

que tem muito a ver com a questatildeo de fundo tratada na ldquoApologierdquo Escreve

ldquo[A] Les hommes y sont conducteurs et srsquoy servent de la religion ce devroit estre tout le contrairerdquo59

Assim se compreende por que razatildeo Montaigne aleacutem de criticar aqueles que

queriam instrumentalizar a razatildeo para justificar as verdades reveladas repudia a noccedilatildeo

daqueles que se dedicam excessivamente agrave religiatildeo e que tecircm como meta principal a

satisfaccedilatildeo das paixotildees e da vaidade

ldquo[C] Je voy cela evidemment que nous ne prestons volontiers agrave la devotion que les offices qui flattent noz passions Il nest point dhostiliteacute excellente comme la Chrestienne Nostre zele fait merveilles quand il va secondant nostre pente vers la haine la cruauteacute lambition lavarice la detraction la rebellion A contrepoil vers la bonteacute la benigniteacute la temperance si comme par miracle quelque rare complexion ne ly porte il ne va ny de pied ny daile Nostre religion est faicte pour extirper les vices elle les couvre les nourrit les incite [A] Il ne faut point faire barbe de foarre agrave Dieu (comme on dict) Si nous le croyons je ne dy pas par foy mais dune simple croyance voire (et je le dis agrave nostre grande confusion) si nous le croyons et cognoissions comme une autre histoire comme lun de nos compaignons nous laimerions au dessus de toutes autres choses pour linfinie bonteacute et beauteacute qui reluit en luy au moins marcheroit il en mesme reng de nostre affection que les richesses les plaisirs la gloire et nos amis raquo60

Montaigne demonstra uma certa irritaccedilatildeo em face da instrumentalizaccedilatildeo da

religiatildeo para certos objectivos particulares Em seu entender a devoccedilatildeo religiosa natildeo

57 Ao reflectir sobre o fideiacutesmo presente na ldquoApologierdquo Friedrich diz-nos que Montaigne assume um fideiacutesmo isento da nostalgia miacutestica O seu fideiacutesmo significa uma tomada de consciecircncia intelectual dos limites humanos limites estes que natildeo deseja ultrapassar Seu fideiacutesmo eacute de uma espeacutecie negativa isto eacute eacute a certeza da incerteza O mesmo autor observa ainda que a ldquoteologiardquo de Montaigne representa um desvio para ir ao conhecimento do homem no interior do mundo Montaigne precisa de se distanciar de Deus para se assegurar da pequenez do homem na qual ele vai se instalar (cf op cit p 117) 58 Tudo indica que Montaigne estaacute a falar das guerras civis e religiosas do seacuteculo XVI Citando o famoso historiador francecircs M de Chacircteaubriand Laschamps na sua monumental obra Michel de Montaigne editada em 1855 afirma que estas guerras ldquoont dureacute trente-neuf ans elles ont engendre les massacres de la Saint Bartheacutelemy verseacute le sang de plus de deux millions de Franccedilais et deacutevoreacute plus de trois milliards de notre monnaie actuelle Elles ont produit la saisie et la vente des biens de lrsquoEacuteglise et des particulieres frappeacute deux rois de mort violente Henri III et Henri IV et commenceacute le procegraves criminal du premier de ces deux roisrdquo (cf Laschamps F Bigorie de Michel de Montaigne Paris Libraire Editeur 1855 p 108) 59 Les Essais II 12 p 443 60 Les Essais II 12 p 444

25

pode ser usada para servir os propoacutesitos do oacutedio da crueldade da ambiccedilatildeo da rebeliatildeo

etc61

Embora natildeo seja teoacutelogo62 Montaigne eacute um pensador que procura respeitar

profundamente a missatildeo da teologia Mas importa salientar que esta missatildeo deve ser

entendida simplesmente como uma praacutetica de piedade e natildeo como uma racionalizaccedilatildeo e

sistematizaccedilatildeo das verdades reveladas pela feacute Neste sentido haacute uma enorme distacircncia

entre o autor dos Essais e os escolaacutesticos Para Montaigne a teologia eacute concebida como

uma espeacutecie de exerciacutecio espiritual dos cristatildeos sobretudo dos teoacutelogos atraveacutes da

razatildeo humana Exerciacutecio este que carece do poder de alcanccedilar a verdade

ldquo[A] Il en faut faire de mesme et accompaigner nostre foy de toute la raison qui est en nous mais tousjours avec cette reservation de nestimer pas que ce soit de nous quelle deacutepende ny que nos efforts et arguments puissent atteindre agrave une si supernaturelle et divine sciencerdquo 63

Para Montaigne as explicaccedilotildees (racionalizaccedilotildees) das verdades da religiatildeo

devem ser as pregaccedilotildees piedosas nos actos de culto por exemplo E esta eacute a tarefa

fundamental da qual a teologia deve ocupar-se Aleacutem disto Montaigne que eacute um

observador subtil e cuidadoso propotildee certas distinccedilotildees Vejamos o que Friedrich tem a

dizer sobre esta questatildeo

ldquo[hellip] sait bien entendu distinguer la vraie pieacuteteacute de la fausse Il bracircme ainsi les priegraveres meacutecaniques la malhonnecircteteacute des gens qui se signent au son de la cloche sans pour autant renoncer agrave la haine agrave lrsquoavarice agrave lrsquoinjustice comme si leur principe eacutetait aux vices leur heure son heure agrave Dieurdquo64

Desta perspectiva segundo Montaigne a religiatildeo deve ser entre outras coisas

como uma praacutetica da verdadeira piedade que se preocupa em instaurar no coraccedilatildeo do

homem o desejo de viver o amor a justiccedila etc renunciando a tudo aquilo que eacute mal e

que impede a realizaccedilatildeo da felicidade do homem no aqui e no agora Eacute por isto que natildeo

acredita numa religiatildeo que vive a prometer constantemente bens eternos que viratildeo a

tornar-se realidade num outro mundo diverso e posterior a este que conhecemos Para

exemplificar esta sua abordagem Montaigne refere na ldquoApologierdquo o filoacutesofo Antiacutestenes

Quando o iniciavam no misteacuterio de Orfeu dizendo-lhe o sacerdote que aqueles que se

devotavam a tal religiatildeo iam receber bens eternos e perfeitos apoacutes a morte aquele

61 Cf Les Essais II 12 p 444 62 Ver nota 43 63 Les Essais II 12 p 441 64 Friedrich op cit p 122

26

perguntou-lhe ldquose acreditas nisso por que entatildeo natildeo morres tu mesmordquo65 Eis um outro

exemplo que vale a pena citar

ldquo[C] Diogenes plus brusquement selon sa mode et hors de nostre propos au prestre qui le preschoit de mesme de se faire de son ordre pour parvenir aux biens de lautre monde Veux tu pas que je croye quAgesilauumls et Epaminondas si grands hommes seront miserables et que toy qui nes quun veau seras bien heureux par ce que tu es prestre rdquo66

Segundo Montaigne se acolhecircssemos essas grandes promessas de felicidades

eternas e supremas com a mesma autoridade com que acolhemos uma opiniatildeo

filosoacutefica natildeo teriacuteamos o horror agrave morte que temos

ldquo[A] Je veuil estre dissout dirions nous et estre aveques Jesus-Christrdquo67

Ao afirmar que

ldquo[A] La force du discours de Platon de lrsquoimmortaliteacute de lrsquoame poussa bien aucuns de ses disciples agrave la mort pour joiumlr plus promptement des esperances qursquoil leur donnoit [hellip]68

O autor da ldquoApologierdquo quer destacar a fragilidade da razatildeo que utiliza meios

puramente humanos para explicar ldquorealidadesrdquo que transcendem a vida concreta

Vejamos uma passagem em que o autor expressa nitidamente estas ideias

ldquo[A] Tout cela cest un signe tres-evident que nous ne recevons nostre religion quagrave nostre faccedilon et par nos mains et non autrement que comme les autres religions se reccediloyvent Nous nous sommes rencontrez au paiumls ou elle estoit en usage ougrave nous regardons son ancienneteacute ou lauthoriteacute des hommes qui lont maintenue ou creignons les menaces quellrsquoattache aux mescreans ou suyvons ses promesses Ces considerations lagrave doivent estre employeacutees agrave nostre creance mais comme subsidiaires ce sont liaisons humaines Une autre region dautres tesmoings pareilles promesses et menasses nous pourroyent imprimer par mesme voye une croyance contrairerdquo69

Apesar de ser catoacutelico parece sugerir na ldquoApologierdquo uma certa atitude de

indiferenccedila relativamente a toda e qualquer profissatildeo de feacute ou seja uma espeacutecie de

distanciamento no que diz respeito agraves diversas convicccedilotildees religiosas Montaigne chega

quase a reduzir a proacutepria crenccedila a uma questatildeo de costume a um acaso geograacutefico

65 Cf Les Essais II 12 p 444 66 Les Essais II 12 p 444 67 Les Essais II 12 p 445 68 Les Essais II 12 p 445 69 Les Essais II 12 p 445

27

[B] Nous sommes Chrestiens agrave mesme titre que nous sommes ou Perigordins ou Alemansrdquo70

Fazendo uma criacutetica aos diversos raciociacutenios que foram usados na histoacuteria do

pensamento filosoacutefico com o objectivo de argumentar de que forma o homem tem

acesso agrave religiatildeo Montaigne afirma que Platatildeo e os seus exemplos querem levar-nos a

concluir que somos conduzidos agrave crenccedila em Deus ou por amor ou por forccedila A sua

rejeiccedilatildeo dos argumentos da filosofia expressa-se de uma forma muito incisiva

ldquo[C] LAtheisme estant une proposition comme desnatureacutee et monstrueuse difficile aussi et malaiseacutee destablir en lesprit humain pour insolent et desregleacute quil puisse estre il sen est veu assez par vaniteacute et par fierteacute de concevoir des opinions non vulgaires et reformatrices du monde en affecter la profession par contenance qui sils sont asses fols ne sont pas assez forts pour lavoir planteacutee en leur conscience pourtantrdquo71

Aleacutem de apontar os limites das crenccedilas consideradas pagatildes bem como os

enganos de Platatildeo relativos aos motivos que levam o homem agrave praacutetica da religiatildeo

Montaigne critica um outro engano similar e importante de Platatildeo

ldquo[B] Lerreur du paganisme et lignorance de nostre sainte veriteacute laissa tomber cette grande ame de Platon (mais grande dhumaine grandeur seulement) encores en cet autre voisin abus que les enfans et les vieillars se trouvent plus susceptibles de religion comme si elle naissoit et tiroit son credit de nostre imbecilliteacuterdquo72

Segundo Montaigne a religiatildeo natildeo pode ser construiacuteda sobre o alicerce da razatildeo

humana como vimos Nem tampouco pode ser fundada nos argumentos platoacutenicos

acabados de referir Estes satildeo todos muito fraacutegeis A religiatildeo encontra as suas bases

verdadeiras na feacute A perspectiva proacutepria da filosofia supotildee um ateiacutesmo de meacutetodo como

observa Conche Caso contraacuterio ela jaacute natildeo seria filosofia ldquomais theacuteologie ou ideacuteologie

A qui est ainsi priveacute du secours de la gracircce divine Dieu est inconnaissablerdquo73

Montaigne recusa o ateiacutesmo de uma forma muito clara inclusive aquele conceituado

por Platatildeo

ldquo[A] Et ce que dit Plato74 quil est peu dhommes si fermes en latheisme quun dangier pressant ne ramene agrave la recognoissance de la divine puissance ce rolle ne touche point un vray Chrestien Cest agrave faire aux

70 Les essais II 12 p 445 71 Les Essais II 12 p 446 72 Les Essais II 12 p 446 73 Conche 1996 op cit p131 74 Tudo leva a crer que Montaigne se estaacute a referir a Platatildeo Preferimos conservar a mesma grafia da ediccedilatildeo dos Essais que estaacute a ser utilizada neste trabalho

28

religions mortelles et humaines destre receueumls par une humaine conduite Quelle foy doit ce estre que la laacutecheteacute et la foiblesse de coeur plantent en nous et establissent [C] Plaisante foy qui ne croid ce quelle croit que pour navoir le courage de le descroire Une vitieuse passion comme celle de linconstance et de lestonnement peut elle faire en nostre ame aucune production regleacutee75

Continuando a sua reflexatildeo no preacircmbulo da ldquoApologierdquo o autor ressalta qual eacute

a relaccedilatildeo fundamental que eacute necessaacuteria para estabelecer a uniatildeo do homem a Deus

partindo do caraacutecter superior da religiatildeo face ao ateiacutesmo Montaigne observa que o laccedilo

que deveria atar o nosso juiacutezo e a nossa vontade que deveria cingir a nossa alma e uni-

la ao criador

ldquo[A] ce devroit estre un neud prenant ses repliz et ses forces non pas de nos considerations de noz raisons et passions mais dune estreinte divine et supernaturelle nayant quune forme un visage et un lustre qui est lauthoriteacute de Dieu et sa grace Or nostre coeur et nostre ame estant regie et commandeacutee par la foy cest raison quelle tire au service de son dessain toutes noz autres pieces selon leur porteacuteerdquo76

Montaigne ao indicar como devemos manejar os instrumentos naturais e

humanos ou seja como devemos aplicar a razatildeo agrave nossa feacute afirma que Deus deixou nas

suas obras o cunho de sua divindade e deve-se apenas agrave nossa fraqueza que natildeo o

possamos perceber E afirma com admiraccedilatildeo que Sebond se empenhou neste digno

estudo

ldquo[A] Or nos raisons et nos discours humains cest comme la matiere lourde et sterile la grace de Dieu en est la formerdquo77

As acccedilotildees humanas permanecem inuacuteteis e vatildes se natildeo tecircm em conta o amor e a

obediecircncia a Deus

ldquo[A] ainsin est-il de nos imaginations et discours ils ont quelque corps mais une masse informe sans faccedilon et sans jour si la foy et grace de Dieu ny sont joinctesrdquo78

Quanto aos segundos opositores de Sebond ndash ou seja os que dizem que seus

argumentos satildeo fracos e inadequados para demonstrar o que ele pretende e por isso

dispotildeem-se a atacaacute-los facilmente ndash Montaigne vai rejeitar os argumentos por eles

apresentados nos quais se subestima a importacircncia da feacute A rejeiccedilatildeo dos argumentos

desta segunda categoria ocupa maior espaccedilo porque ldquo[A] Il faut secouer ceux cy un peu

75 Les Essais II 12 p 445 76 Les Essais II 12 p 446 77 Les Essais II 12 p 447 78 Les Essais II 12 p 447

29

plus rudement car ils sont plus dangereux et plus malitieux que les premiersrdquo79 Estes

ldquoracionalistasrdquo consideram que a razatildeo humana eacute auto-suficiente para conhecer

qualquer coisa e desprezam a feacute considerando-a como algo inuacutetil para um saacutebio

ldquo Le moyen que je prens pour rabatre cette frenaisie et qui me semble le plus propre crsquoest de froisser et fouler aux pieds lrsquoorgueil et humaine fierteacute leur faire sentir lrsquoinaniteacute la vaniteacute et deneantise de lrsquohomme leur arracher des points les chetives armes de leur raison leur faire baisser la teste et mordre la terre soubs lrsquoauthoriteacute et reverence de la majesteacute divine Crsquoest agrave elle seule qursquoapartient la science et la sapience elle seule qui peut estimer de soy quelque chose et agrave qui nous desrobons ce que nous nous contons et ce que nous nous prisons Ού γὰρ ἐᾱ φρονεῑν ὁ Θεὸϛ μέγα ἄλλον ἢ ἑαυτόν [ldquoCar Dieu ne permet pas qursquoun autre que Lui srsquoenorgueillisserdquo (Heacuterodote VII x)]rdquo80

Ao analisar as duas objecccedilotildees agrave Teologia natural de Sebond Montaigne tem

como principal finalidade - aleacutem do desenvolvimento do seu fideiacutesmo que potildee em

causa que a filosofia seja um meio para se chegar a Deus - destronar o homem do seu

pedestal como ldquosenhorrdquo entre todas as criaturas como vimos no primeiro capiacutetulo deste

trabalho Agrave luz destas objecccedilotildees se desenvolve tambeacutem em todo o texto da ldquoApologierdquo

uma grande quantidade de criacuteticas aos detractores do teoacutelogo catalatildeo que na verdade

mais natildeo eacute do que uma contestaccedilatildeo de Montaigne de tudo aquilo que faz do homem um

ser cheio de orgulho e de vaidade Montaigne chega agrave conclusatildeo que a razatildeo humana

natildeo pode conhecer os atributos de Deus A razatildeo natildeo tem condiccedilotildees para emitir juiacutezos

crediacuteveis a respeito destes atributos Ela natildeo estaacute revestida de um poder que lhe garanta

a elaboraccedilatildeo de raciociacutenios crediacuteveis acerca de Deus e das verdades da religiatildeo

Montaigne apresenta um resumo das principais ideias acerca de Deus que foram

surgindo na histoacuteria do pensamento filosoacutefico antigo e afirma que tudo isto natildeo passa de

uma balbuacuterdia (ldquotintamarrerdquo) de muitos ceacuterebros filosoacuteficos81

ldquo[C] Thales [hellip] estima Dieu un esprit qui fit deau toutes choses Anaximander que les Dieux estoyent des mourans et naissans agrave diverses saisons et que crsquoestoyent des mondes infinis en nombre Anaximenes que lair estoit Dieu [hellip] Anaxagoras le premier a tenu la description et maniere de toutes choses estre conduite par la force et raison dun esprit infini Alcmaeligon a donneacute la diviniteacute au soleil agrave la lune aux astres et agrave lame[hellip] Empedocles disoit estre des Dieux les quatre natures desquelles toutes choses sont faictes [hellip] Platon dissipe sa creance agrave divers visages Il dict au Timaeacutee le pere du monde ne se pouvoir

79 Les Essais II 12 p 448 80 Les Essais II 12 p 448 81 Cf Les Essais II 12 p 516

30

nommer aux loix quil ne se faut enquerir de son estre et ailleurs en ces mesmes livres il faict le monde le ciel les astres la terre et nos ames Dieux et reccediloit en outre ceux qui ont esteacute receuz par lancienne institution en chasque republique Xenophon rapporte un pareil trouble de la discipline de Socrates tantost quil ne se faut enquerir de la forme de Dieu et puis il luy faict establir que le Soleil est Dieu et lame Dieu quil ny en a quun et puis quil y en a plusieurs[hellip] Aristote asture que cest lesprit asture le monde asture il donne un autre maistre agrave ce monde et asture faict Dieu lardeur du ciel [hellip] Heraclides Ponticus ne fait que vaguer entre les advis et en fin prive Dieu de sentiment et le faict remuant de forme agrave autre et puis dict que cest le ciel et la terre[hellip] Zeno la loy naturelle commandant le bien et prohibant le mal laquelle loy est un animant et oste les Dieux accoustumez Jupiter Juno Vesta Diogenes Apolloniates que cest laage [hellip] Cleanthes tantost la raison tantost le monde tantost lame de Nature tantost la chaleur supreme entournant et envelopant tout [hellip] Chrysippus faisoit un amas confus de toutes les precedentes sentences et comptoit entre mille formes de Dieux quil faict les hommes aussi qui sont immortalisez Diagoras et Theodorus nioyent tout sec quil y eust des Dieux Epicurus faict les Dieux luisans transparens et perflables logez comme entre deux forts entre deux mondes agrave couvert des coups revestus dune humaine figure et de nos membres lesquels membres leur sont de nul usagerdquo82

Esta longa citaccedilatildeo da ldquoApologierdquo apresenta-nos a enorme quantidade de

teorizaccedilotildees que tecircm como base a razatildeo humana e que satildeo bastante diacutespares no tocante

agraves crenccedilas Isto potildee em evidecircncia que Montaigne natildeo acredita que o homem tenha

condiccedilotildees para compreender ou apresentar algo crediacutevel acerca de Deus Por isto o

homem exagera na sua criatividade intelectual ao inventar inuacutemeros atributos divinos

que frequentemente se assemelham aos seus proacuteprios atributos Em seu entender Deus

eacute absolutamente incompreensiacutevel Na leitura que de Montaigne faz Leveaux

ldquoLrsquoideacutee de Dieu existe chez lrsquohomme mais au delagrave de cette ideacutee simple drsquoune uniteacute absolue tout devient doute et confusion Alors se preacutesent des questions sans nombre auxquelles il est impossible de reacutepondre Crsquoest lagrave si je ne me trompe le ldquoque sais-jerdquordquo83

Montaigne afirma que haacute uma grande inconstacircncia variedade e mobilidade de

ideias acerca de Deus nas almas excelentes e admiraacuteveis dos filoacutesofos Mas classifica o

empenho destes como vatildeo pelo facto de quererem adivinhar Deus por meio das nossas

analogias e conjecturas Por natildeo podermos estender a vista ateacute ao seu trono glorioso

procuramos trazecirc-lo aqui para baixo para a nossa corrupccedilatildeo e miseacuteria Soacute a feacute tem

82 Les Essais II 12 pp 514-516 83 Leveaux Alphonse Eacutetude sur les Essais de Montaigne Paris Henri Plon Imprimeur-Eacutediteur 1870 p 213

31

condiccedilotildees de entender os misteacuterios da religiatildeo Sem ela os nossos esforccedilos de

demonstraccedilatildeo destes misteacuterios permanecem vazios e esteacutereis

ldquo[A] La participation que nous avons agrave la connoissance de la veriteacute quelle quelle soit ce nest pas par nos propres forces que nous lavons acquise Dieu nous a assez appris cela par les tesmoins quil a choisi du vulgaire simples et ignorans pour nous instruire de ses admirables secrets nostre foy ce nest pas nostre acquest cest un pur present de la liberaliteacute dautruy Ce nest pas par discours ou par nostre entendement que nous avons receu nostre religion cest par authoriteacute et par commandement estranger La foiblesse de nostre jugement nous y ayde plus que la force et nostre aveuglement plus que nostre cler-voyance Cest par lentremise de nostre ignorance plus que de nostre science que nous sommes sccedilavans de divin sccedilavoirrdquo84

Para o autor da ldquoApologierdquo o homem por si soacute eacute absolutamente impotente para

chegar a certezas acerca das questotildees relacionadas com a feacute Nesta perspectiva o autor

observa tambeacutem que natildeo eacute possiacutevel fazer afirmaccedilotildees seguras tendo como base a razatildeo

Por exemplo acerca da imortalidade da alma tema desde sempre muito caro agrave filosofia

os cristatildeos devem unicamente a Deus e ao benefiacutecio de sua graccedila a verdade de uma

crenccedila tatildeo nobre pois eacute apenas da sua liberalidade que o cristatildeo recebe o fruto da

imortalidade o qual lembra o autor consiste no gozo da beatitude eterna A razatildeo natildeo

consegue fazer nenhuma afirmaccedilatildeo crediacutevel sobre este tema Ela eacute incapaz uma vez que

a imortalidade eacute um ldquodadordquo da revelaccedilatildeo

ldquo[C] Confessons ingenuement que Dieu seul nous lrsquoa dict et la foy car leccedilon nrsquoest ce pas de nature et de nostre raisonrdquo85

Montaigne assumindo uma posiccedilatildeo fideiacutesta depois de ter feito o exame das

diversas opiniotildees sobre a alma86 faz um ldquoapelo agrave passividade da razatildeo e agrave aceitaccedilatildeo da

verdade religiosa sem tentar compreendecirc-la ldquoimortalidaderdquo eacute como ldquoDeusrdquo uma

palavra que natildeo pode ser preenchida A imortalidade afirmada pela feacute natildeo poderaacute ser

explorada por nenhuma forma de discurso humanordquo87

Esta atitude fideiacutesta e conservadora em termos religiosos deve-se em grande

parte agrave desilusatildeo de Montaigne face aos inuacutemeros sistemas filosoacuteficos que tentavam

84 Les Essais II 12 p 500 85 Les Essais II 12 p 554 86 Na ldquoApologierdquo haacute uma quantidade significativa de paacuteginas nas quais o autor expressa muitas opiniotildees sobre o tema da alma (cf Les Essais pp 542-547) 87 Birchal Telma de Souza O Eu nos Ensaios de Montaigne Belo Horizonte Editora UFMG 2007 pp 64-65

32

encontrar explicaccedilotildees racionais para todas as questotildees da vida inclusivamente para

aquelas que transcendem a vida real

ldquo[A] Car quelque apparence quil y ayt en la nouvelleteacute je ne change pas aiseacutement de peur que jay de perdre au change Et puis que je ne suis pas capable de choisir je pren le chois dautruy et me tien en lassiette ougrave Dieu ma mis Autrement je ne me sccedilauroy garder de rouler sans cesse Ainsi me suis-je par la grace de Dieu conserveacute entier sans agitation et trouble de conscience aux anciennes creances de nostre religion au travers de tant de sectes et de divisions que nostre siecle a produittesrdquo88

Segundo Leveaux Montaigne sintetiza seu pensamento em mateacuteria religiosa89

da seguinte maneira

ldquo[A] De toutes les opinions humaines et anciennes touchant la religion celle lagrave me semble avoir eu plus de vray-semblance et plus dexcuse qui recognoissoit Dieu comme une puissance incomprehensible origine et conservatrice de toutes choses toute bonteacute toute perfection recevant et prenant en bonne part lhonneur et la reverence que les humains luy rendoient soubs quelque visage sous quelque nom et en quelque maniere que ce fut [hellip]rdquo90

Haacute que reconhecer no entanto que eacute algo difiacutecil e delicado tirar grandes

conclusotildees acerca da religiatildeo embora o tema perpasse toda a ldquoApologie rdquo Montaigne

concebia a religiatildeo como um conjunto de praacuteticas e leis que tinham como finalidade

contribuir para que o homem natildeo agisse como um escravo da vaidade da razatildeo As

uacuteltimas palavras da ldquoApologierdquo onde o autor cita Plutarco pretendem servir como uma

espeacutecie de conclusatildeo de toda a reflexatildeo deste capiacutetulo Deixemos o proacuteprio Montaigne

falar

ldquo[A] Mais quest-ce donc qui est veritablement Ce qui est eternel cest agrave dire qui na jamais eu de naissance ny naura jamais fin agrave qui le temps napporte jamais aucune mutation Car cest chose mobile que le temps et qui apparoit comme en ombre avec la matiere coulante et fluante tousjours sans jamais demeurer stable ny permanenterdquo91

Contestando a atitude humana de querer elevar-se acima da humanidade que

pode ser tambeacutem entendida como um desejo absurdo de um ser despreziacutevel que tem a

88 Les Essais II 12 p 569 89 Cf Leveaux op cit p 213 90 Les Essais II 12 p 513 91 Les Essais II 12 p 603

33

presunccedilatildeo como doenccedila natural e original e que eacute a mais calamitosa de todas as

criaturas e ao mesmo tempo a mais orgulhosa92 Montaigne afirma

ldquo[A] O la vile chose dit-il et abjecte que lhomme sil ne sesleve au dessus de lhumaniteacute [C] Voila un bon mot et un utile desir mais pareillement absurde Car [A] de faire la poigneacutee plus grande que le poing la brasseacutee plus grande que le bras et desperer enjamber plus que de lestandueuml de nos jambes cela est impossible et monstrueux Ny que lhomme se monte au dessus de soy et de lhumaniteacute car il ne peut voir que de ses yeux ny saisir que de ses prises Il seslevera si Dieu lui preste extraordinairement la main Il seslevera abandonnant et renonccedilant agrave ses propres moyens et se laissant hausser et soubslever par les moyens purement celestesrdquo93

Montaigne termina a ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo colocando o homem no

seu devido lugar e afirmando que soacute atraveacutes do auxiacutelio de Deus e com a graccedila da feacute

cristatilde eacute que este ser tatildeo vaidoso poderaacute elevar-se acima da humanidade

ldquo[C] Cest agrave nostre foy Chrestienne non agrave sa vertu Stoique de pretendre agrave cette divine et miraculeuse metamorphoserdquo94

92 Cf nota 12 93 Les Essais II 12 p 604 94 Les Essais II 12 p 604

34

3 A criacutetica agrave razatildeo humana e sua relaccedilatildeo com a ciecircncia

Uma observaccedilatildeo que eacute importante destacar no iniacutecio deste capiacutetulo refere-se agrave

concepccedilatildeo montaigneana de ldquociecircnciardquo que se encontra na ldquoApologie de Raymond

Sebondrdquo Quando Montaigne na sua criacutetica radical agrave razatildeo humana se refere agrave ciecircncia

o que subjaz agraves suas reflexotildees natildeo eacute a concepccedilatildeo moderna de ciecircncia Ele natildeo alude ao

chamado ldquomeacutetodo cientiacutefico experimentalrdquo ateacute porque este meacutetodo ainda natildeo existia O

termo ldquociecircnciardquo natildeo tem o sentido que adquiriu depois da chamada Revoluccedilatildeo

Cientiacutefica do seacuteculo XVII Assim com o termo ciecircncia Montaigne refere-se ao conjunto

do conhecimento erudito de seu tempo

ldquoLa science du XVIᵉ siegravecle nrsquoest que philosophie Elle srsquoarrecircte aux mots jamais elle ne peacutenegravetre au fond des choses et ne suscite un effort critiquerdquo95

Sendo um pensador da uacuteltima fase do periacuteodo renascentista periacuteodo este em que

natildeo havia nenhuma diferenccedila essencial entre a filosofia e a ciecircncia Montaigne procura

expressar as suas ideias os seus ideais de sabedoria como tantos outros faziam isto eacute

quando se refere agrave ciecircncia estaacute a referir-se aos doutos e aos filoacutesofos em geral

Logo no iniacutecio da ldquoApologierdquo Montaigne faz questatildeo de afirmar que a ciecircncia eacute

algo muito uacutetil e grande e os que a menosprezam datildeo prova bastante de estupidez Sem

desprezar agrave partida todo o esforccedilo que muitos fazem para chegar a alcanccedilar o

conhecimento Montaigne por outro lado natildeo chega a estimar tanto a ciecircncia

ldquo[A] Comme Herillus le philosophe qui logeoit en elle le souverain bien et tenoit qursquoil fut en elle de nous rendre sages et contensrdquo96

Montaigne natildeo crecirc nisto nem tampouco no que outros disseram

ldquo[A] que la science est mere de toute vertu et que tout vice este produit par lrsquoignorancerdquo97

Segundo ele mesmo atesta a sua casa esteve habitualmente aberta agraves pessoas de

saber e o seu pai buscou com grande cuidado e despesa o conviacutevio dos homens doutos

ldquo[A] les recevant chez luy comme personnes sainctes et ayans quelque particuliere inspiration de sagesse divine [hellip]rdquo98

95 Villey opcit p 214 96 Les Essais II 12 p 438 97 Les Essais II 12 p 438 98 Les Essais II 12 pp 438-439

35

Embora respirando toda uma atmosfera intelectual que havia em sua casa

Montaigne afirma no entanto que gostava muito destes doutos frequentadores de sua

casa mas natildeo os adorava

Desde as primeiras afirmaccedilotildees de Montaigne na ldquoApologierdquo eacute possiacutevel perceber

ateacute que ponto ele tem dificuldade em aceitar os chamados filoacutesofos de profissatildeo Neste

famoso texto que eacute considerado por Villey ldquole reacutesumeacute du travail logique qui srsquoopegravere

chez Montaigne entre 1573 et 1579 ou 1580rdquo99 podemos encontrar paradoxalmente

por um lado uma valorizaccedilatildeo da razatildeo enquanto uacutenico modo de investigaccedilatildeo dos

doutos e por outro lado que a razatildeo eacute considerada como algo profundamente limitado

enquanto instrumento de acesso ao conhecimento

Montaigne dedica muitas paacuteginas a demonstrar que a ciecircncia fundada na razatildeo

eacute viacutetima da vaidade humana e deve ser contestada Isto pelo facto de que concebe a

ciecircncia como o esforccedilo que deve ser uacutetil agrave nossa felicidade

ldquo[A] la philosophie me doit mettre les armes agrave la main pour combatre la fortune qui me doit roidir le courrage pour fouler aux pieds toutes les advertitez humaines [hellip]rdquo100

O objectivo primeiro da filosofia eacute portanto a vida concreta A atitude vaidosa

da razatildeo na busca do conhecimento causa no homem

ldquo[A] lrsquoinconstance lrsquoirresolution lrsquoincertitude le deuil la superstition la solitude de choses agrave venir voire apres nostre vie lrsquoambition lrsquoavarice la jalousie lrsquoenvie les appetits desreglez foncenez et indomptables la guerre la mensonge la desloyauteacute la detraction et la curiositeacuterdquo101

Segundo Montaigne pagamos um preccedilo elevadiacutessimo por essa bela razatildeo de que

nos gloriamos e por conseguinte tambeacutem pela capacidade de julgar e conhecer

sobretudo se forem adquiridas agrave custa destas paixotildees

Montaigne natildeo vecirc muita necessidade praacutetica de querer mergulhar nos altos

conhecimentos em que a filosofia estaacute imersa Para que serve o conhecimento (fruto da

razatildeo enganadora) de muitas coisas Expressando a sua criacutetica agrave loacutegica aristoteacutelica

afirma ironicamente

ldquo[A] ont-ils tireacute de la Logique quelques consolation agrave la gouterdquo102

99 Villey op cit p 182 100 Les Essais II 12 p 494 101 Les Essais II 12 p 486 102 Les Essais II 12 p 487

36

Prosseguindo no mesmo registo iroacutenico pergunta se acaso se descobriu que a

voluptuosidade e a sauacutede satildeo mais deleitosas para quem conhece a astronomia e a

gramaacutetica e menos importunas agrave desonra e a pobreza103

Montaigne revela um significativo desprezo pelos filoacutesofos que satildeo escravos da

razatildeo e buscam tudo saber e fazer afirmaccedilotildees sobre todas as coisas Ao mesmo tempo

manifesta uma forte tendecircncia para valorizar o homem simples e ignorante

ldquo[A] Jrsquoay veu en mon temps cent artisans cent laboureurs plus sages et plus heureux que des recteurs de lrsquouniversiteacute et lesquels jrsquoaimerois mieux ressemblerrdquo104

Na sua apologia da ignoracircncia declara que o homem tem como quinhatildeo a

presunccedilatildeo e que a ignoracircncia nos eacute recomendada ateacute pela religiatildeo cristatildeldquo[A] La peste

de lrsquohomme crsquoest lrsquoopinion de sccedilavoirrdquo105

Para Montaigne eacute necessaacuterio derrubar a tola vaidade e sacudir de uma maneira

viva e corajosa os fundamentos ridiacuteculos sobre os quais se fundam as falsas ideias

Insiste continuamente no facto de que natildeo necessitamos do saber produzido pela

filosofia

ldquo[A] Crsquoestoit ce que disoit un senateur Romain des derniers siecles que leurs predecesseurs avoient lrsquoaleine puante agrave lrsquoair et lrsquoestomac musqueacute de bonne conscience et qursquoau rebours ceux de son temps se sentoient au dehors que le parfum puans au dedans toutes sorte de vices crsquoest agrave dire comme je pense qursquoils avoient beaucoup de sccedilavoir et de suffisance et grand faute de preudrsquohommierdquo106

O orgulho humano eacute visto pelo autor como algo que atrapalha fortemente na

busca natildeo do conhecimento filosoacutefico claacutessico mas da sabedoria Soacutecrates eacute

referenciado na ldquoApologierdquo entre outras coisas como um grande saacutebio107 Natildeo porque

ldquo[C] le Dieu de sagesse luy avoit attibueacute le surnom de sagerdquo108 mas porque ele mesmo

natildeo se considerava saacutebio e porque a sua melhor ciecircncia era a ciecircncia da ignoracircncia e a

sua melhor sabedoria a simplicidade de espiacuterito

103Cf Les Essais II 12 p 487 104 Les Essais II 12 p 487 105 Les Essais II 12 p 488 106 Les Essais II 12 p 498 107 Podemos encontrar uma quantidade significativa de estudos acerca da figura de Soacutecrates nos Ensaios Destacamos aqui um artigo escrito por Celso Martins Azar Filho cujo tiacutetulo eacute Montaigne e Soacutecrates cepticismo conhecimento e virtuderdquo que estaacute publicado na Revista Portuguesa de Filosofia Tomo LVIII do ano de 2002 Fasc 4 (pp 829-845) Com o seu artigo o autor propotildee-se examinar qual o lugar e a importacircncia deste filoacutesofo no pensamento de Montaigne 108 Les Essais II 12 p 498

37

O verdadeiro saacutebio segundo Montaigne eacute o homem que aprende que natildeo

aprendeu nada Refere-se a isto de uma maneira muito elucidativa

ldquo[A]Il est adnevenu aux gens veacuteritablement sccedilavans ce qui advient aux espics de bled ils vont srsquoeslevant et se haussant la teste droite et fiere tant qursquoil sont vuides mais quand ils sont pleins et grossis de grain en leur maturiteacute ils commencent agrave srsquohumilier et agrave baisser les cornes Pareillement les hommes ayant tout essayeacute et tout sondeacute nrsquoayant trouveacute en cet amas de science et provision de tant de choses diverses rien de massif et ferme et rien que vaniteacute ils ont renonceacute agrave leur presomption et reconneu leur condition naturellerdquo109

Depois de descrever sinteticamente os atributos do saacutebio Montaigne -

considerado como um pensador que popularizou o pirronismo praticando-o

pessoalmente sobretudo na ldquoApologierdquo - afirma que toda a filosofia estaacute distribuiacuteda por

trecircs geacuteneros A sua principal fonte eacute a ediccedilatildeo das obras de Sexto Empiacuterico que surge em

1569 Montaigne enumera estas trecircs filosofias da seguinte maneira haacute os dogmaacuteticos

os acadeacutemicos e os pirroacutenicos110 Os dogmaacuteticos afirmam que se pode ter acesso agrave

ciecircncia os acadeacutemicos natildeo estatildeo de acordo com os dogmaacuteticos isto eacute consideram que

natildeo se pode ter acesso agrave ciecircncia e os pirroacutenicos estatildeo ainda em busca da verdade Estes

declaram que os que pensam havecirc-la encontrado se enganam infinitamente Segundo

Montaigne os pirroacutenicos tecircm como ofiacutecio

ldquo[A] branler douter et enquerir ne srsquoasseurer de rien de rien ne se respondrerdquo111

Esta atitude condu-los segundo Montaigne agrave ataraxia que eacute uma condiccedilatildeo de

vida tranquila sossegada isenta das agitaccedilotildees que recebemos pela impressatildeo da opiniatildeo

e ciecircncia que julgamos ter das coisas Esta indiferenccedila pela ciecircncia liberta os pirroacutenicos

inclusivamente do espiacuterito de rivalidade quanto agrave sua doutrina debatem de maneira bem

pouco vigorosa Quando dizem que o pesado vai para baixo ficariam bastante

aborrecidos se acreditassem neles Sendo assim os pirroacutenicos segundo Montaigne

procuram que os contradigam para gerar ldquo[A] la dubitation et surceance (suspension)

de jugement qui est leur finrdquo112

Os pirroacutenicos satildeo partidaacuterios da duacutevida extrema Expotildeem as suas opiniotildees

apenas para combater aquelas em que pensam que acreditamos Diz Montaigne

109 Les Essais II 12 p 500 110 Les Essais II 12 p 502 111 Les Essais II 12 p 502 112 Les Essais II 12 p 503

38

ldquo[A] Si vous prenez la leur ils prendront aussi volontiers i la contraire agrave soutenir tout leur est un ils nrsquoy ont aucun chois Si vous establissez que la nege soit noire ils augumentent au rebours qursquoelle est blanche Si vous dites qursquoelle nrsquoest ny lrsquoun ny lrsquoautre crsquoest agrave eux agrave maintenir qursquoelle est tous les deux Si par certain jugement vous tenez que vous nrsquoen sccedilavez rien ils vous maintiedront que vous ne sccedilavez Oui et si par un axiome affirmatif vous asseurez que vous en doutez ils vous iront debattant que vous nrsquoen doutez pas ou que vous ne pouvez juger et etablir que vous en doutez Et par cette extremiteacute de doubte qui se secoue soy-mesme ils se separent et se divisent de plusieurs opinions de celles mesme qui ont maintenu en plusieurs faccedilons le double et lrsquoignorancerdquo113

[hellip] Leurs faccedilon de parler sont Je nrsquoestablis rien il nrsquoest non plus ainsi qursquoainsi ou que ny lrsquoun ny lrsquoautre je ne le comprens point les apparences sont eacutegales par tout la loy de parler et pour et contre est pareille [C] Rien ne semble vray qui ne puisse sembler faux [A] Leur mot sacramental crsquoest ἐπέχω crsquoest agrave dire je soutiens je ne bougerdquo114

Os pirroacutenicos servem-se de sua razatildeo para inquirir e debater mas natildeo para

decidir e escolher

Um outro aspecto que leva Montaigne a identificar-se com o pirronismo a uacutenica

filosofia por ele respeitada eacute a visatildeo pirroacutenica relativamente agraves acccedilotildees da vida Os seus

defensores prestam-se e acomodam-se agraves inclinaccedilotildees naturais ao impulso e agrave imposiccedilatildeo

das paixotildees agraves decisotildees das leis e dos costumes

ldquo[A] Ils laissent guider agrave ces choses lagrave leurs actions communes sans aucune opination ou jugement115

Neste sentido Montaigne defende o pirronismo sobretudo por causa de sua

virtude moral116 Sustenta que eacute importante fomentar o juiacutezo livre ou a suspensatildeo do

juiacutezo que eacute a atitude dos pirroacutenicos Por outro lado natildeo pode concordar com a posiccedilatildeo

dos que aceitam a arbitraacuteria submissatildeo a algum tipo de autoridade ou opiniatildeo (os

dogmaacuteticos) Importa salientar no entanto que o autor da ldquoApologierdquo consegue

distanciar-se dos pirroacutenicos que se recusam a fazer qualquer juiacutezo Montaigne por ser

um pensador livre inclusive dos argumentos pirroacutenicos natildeo suspende os seus proacuteprios

113 Les Essais II 12 p 503 114 Les Essais II 12 p 505 115 Les Essais II 12 p 505 116 Para Montaigne o pirronismo natildeo eacute uma doutrina ou um sistema filosoacutefico do qual ele eacute adepto Eacute sobretudo uma atitude de espiacuterito ou uma tendecircncia do pensamento Ele tem consciecircncia da dificuldade que esta filosofia encontra para consolidar-se em termos de coerecircncia loacutegica Se do ponto de vista loacutegico natildeo haacute soluccedilatildeo permanente satisfatoacuteria para o pirronismo ele torna-se uma opccedilatildeo eacutetica na medida em que possibilita aos seus adeptos ldquo[B] de maintenir leur liberteacute et considerer les choses sans obligation et servituderdquo (Les Essais II 12 p 504)

39

juiacutezos Muito pelo contraacuterio emite muitos Exprime as suas opiniotildees sem cessar Chega

ateacute a afirmar que a razatildeo eacute

ldquo[A] sa pierre de touche agrave toutes sortes drsquoessais mais certes crsquoest une touche pleine de fauceteacute drsquoerreur de foiblesse et defaillancerdquo117

Na ldquoApologierdquo Montaigne recorre aos tropos (segundo a designaccedilatildeo de Sexto

Empiacuterico) tomando-os como os principais argumentos contra a filosofia denominada

dogmaacutetica Estes argumentos ceacutepticos tecircm por finalidade provar que eacute impossiacutevel

alcanccedilar a verdade Fundamentado nas reflexotildees pirroacutenicas natildeo considera a ciecircncia

como um verdadeiro conhecimento O saber humano eacute considerado sem efeito por causa

de todo o tipo de divergecircncias que haacute entre os homens

Haacute segundo Montaigne uma imensa e infinita confusatildeo de opiniotildees entre os

filoacutesofos e tudo isto deve-se ao debate perpeacutetuo e universal acerca do conhecimento das

coisas Eles natildeo estatildeo de acordo em nada nem sequer em que o ceacuteu estaacute por cima das

nossas cabeccedilas118 afirma ironicamente E isto deve-se agrave falta de constacircncia do juiacutezo

Quantas vezes julgamos noacutes as coisas Quantas vezes alteramos as nossas opiniotildees

Nesta perspectiva percebemos a atitude relativista de Montaigne

ldquo[A] Ce que je tiens aujourdhuy et ce que je croy je le tiens et le croy de toute ma croyance tous mes utils et tous mes ressorts empoignent cette opinion et men respondent sur tout ce quils peuvent Je me sccedilaurois embrasser aucune veriteacute ny conserver avec plus de force que je fay cette cy Jy suis tout entier jy suis voyrement mais ne mest il pas advenu non une foi mais cent mais mille et tous les jours davoir embrasseacute quelqursquoautre chose agrave tout ces mesmes instrumens en cette mesme condition que depuis jaye jugeacutee fauce Au moins faut il devenir sage agrave ses propres despansrdquo119

Montaigne natildeo pretende condenar a tendecircncia agrave mudanccedila perene que eacute

constitutiva do homem O que ele pretende eacute que o homem se comporte de uma forma

mais moderada e discreta em face das mudanccedilas Sugere que nos tornemos saacutebios agrave

nossa proacutepria custa120

117 Les Essais II 12 p 540 118 Cf Les Essais II 12 p 563 119 Les Essais II 12 p 563 120 Conche na sua obra de introduccedilatildeo aos Essais intitulada Montaigne ou la conscience heureuse apresenta uma reflexatildeo muito sugestiva relativamente ao tema da sabedoria Para este autor os Essais sugerem-nos que compreendamos a filosofia como uma aprendizagem da sabedoria e natildeo do saber Em seu entender Montaigne natildeo tem nenhum interesse em elaborar um sistema filosoacutefico porque isto supotildee que uma verdade permanece o que ela eacute Um sistema filosoacutefico crecirc que haacute verdades e que elas satildeo acessiacuteveis por evidecircncia ou seja que a certeza posta agrave prova eacute realmente uma certeza de direito Estes princiacutepios satildeo sem valor para Montaigne eleja que este natildeo crecirc na possibilidade de confirmar as nossas certezas (cf Conche 2009 op cit 65)

40

O arauto do juiacutezo eacute o homem concreto que vive uma vida real Natildeo eacute um ser

abstracto Por isso Montaigne afirma

ldquo[A] Ce ne sont pas seulement les fievres les breuvages et les grands accidens qui renversent nostre jugement les moindres choses du monde le tournevirent [hellip] et par conseacutequent agrave peine se peut il rencontrer une seule heure en la vie ougrave nostre jugement se trouve en sa deueuml assiette nostre corps estant subject agrave tant de continuelles mutations et estofeacute de tant de sortes de ressorts que ( jen croy les medecins) combien il est malaiseacute quil ny en ayt tousjours quelquun qui tire de traversrdquo121

Vejamos uma definiccedilatildeo da razatildeo na ldquoApologierdquo

ldquo[A] la raison va tousjours torte et boiteuse et deshancheacutee et avec le mensonge comme avec la veriteacute Par ainsin il est malaiseacute de descouvrir son mescompte et desreglement Jappelle tousjours raison cette apparence de discours que chacun forge en soy cette raison de la condition de laquelle il y en peut avoir cent contraires autour dun mesme subject cest un instrument de plomb et de cire alongeable ployable et accommodable agrave tous biais et agrave toutes mesures il ne reste que la suffisance de le sccedilavoir contournerrdquo122

Atraveacutes desta concepccedilatildeo de razatildeo fica suficientemente clara a criacutetica destruidora

de Montaigne agrave filosofia dogmaacutetica que considera a razatildeo como uma faculdade que

permite ao homem ndash entre tantas outras atribuiccedilotildees ndash conhecer e acumular um saber uacutetil

e julgar sobre o bem e o mal

Envolvendo-se de uma maneira muito pessoal ndash como eacute caracteriacutestico do estilo

literaacuterio dos Essais ndash nesta reflexatildeo sobre a razatildeo Montaigne toma a liberdade de fazer

uma pequena descriccedilatildeo de sua personalidade Vale a pena citar algumas destas

passagens porque satildeo um reflexo do pensamento do autor

ldquo[A] Jay le pied si instable et si mal assis je le trouve si ayseacute agrave crouler et si prest au branle et ma veueuml si desregleacutee que agrave jun je me sens autre quapres le repas si ma santeacute me rid et la clarteacute dun beau jour me voylagrave honneste homme si jay un cor qui me presse lorteil me voylagrave renfroigneacute mal plaisant et inaccessible [hellip] Maintenant je suis agrave tout faire maintenant agrave rien faire ce qui mest plaisir agrave cette heure me sera quelque fois peine [hellip] Ou lhumeur melancholique me tient ou la choleriqu [hellip]Quand je prens des livres jauray apperceu en tel passage des graces excelentes et qui auront feru mon ame quun autre fois jy retombe jay beau le tourner et virer jay beau le plier et le manier cest une masse inconnue et informe pour moy [hellip] [B] [hellip] mon jugement ne tire pas tousjours avant il flotte il vaguerdquo123

121 Les Essais II 12 pp 564-565 122 Les Essais II 12 p 565 123 Les Essais II 12 pp 565-566

41

Montaigne daacute-se claramente conta de que natildeo encontramos seguranccedila nos

nossos juiacutezos As nossas paixotildees apresentam uma enorme quantidade de fantasias

Sobre isto natildeo podemos alcanccedilar nenhuma seguranccedila porque nos deparamos com

coisas muito instaacuteveis e moacuteveis Sustenta aleacutem disso que se os nossos juiacutezos estatildeo nas

matildeos ateacute mesmo da doenccedila e da perturbaccedilatildeo natildeo podemos esperar deles nada seguro

Foi a partir desta consciecircncia de sua volubilidade que Montaigne chegou a

estabelecer em si mesmo uma certa constacircncia de ideias a ponto de dificilmente alterar

as ideias primeiras e naturais como ele mesmo reconhece Afirma no entanto que natildeo

eacute capaz de decidir Por isso adopta as decisotildees de outrem e manteacutem-se na posiccedilatildeo em

que Deus o pocircs O seu ldquoconservadorismordquo124 religioso e ateacute poliacutetico manifesta-se

claramente nos Essais Mas ao mesmo tempo e este eacute o ponto que mais nos interessa

neste trabalho deixa transparecer que o homem eacute sempre convidado a estar aberto agraves

mudanccedilas

ldquo[A] Le ciel et les estoilles ont branleacute trois mille ans tout le monde lavoit ainsi creu jusques agrave ce que [C] Cleanthes le Samien ou selon Theophraste Nicetas Siracusien [A] savisa de maintenir que cestoit la terre qui se mouvoit [C] par le cercle oblique du Zodiaque tournant agrave lentour de son aixieu [A] et de nostre temps Copernicus a si bien fondeacute cette doctrine quil sen sert tres-regleacuteement agrave toutes les consequences Astronomiquesrdquo conclui o autor ldquosinon qursquoil ne nous doit chaloir le quel ce soit des deux Et qui sccedilait qursquoune tierce opinion drsquoicy agrave mille ans ne renverse les deux precedentesrdquo125

124 Trata-se de um termo que natildeo tinha na eacutepoca de Montaigne o mesmo significado que tem hoje isto eacute como oposto de ldquoprogressismordquo Montaigne estava inserido numa sociedade marcada por grandes inovaccedilotildees pretendidas pelos partidaacuterios da Reforma Protestante que se defendiam a ferro e fogo acirrando certezas antes adormecidas e impondo agrave Franccedila as mais seacuterias turbulecircncias ldquo[B] Je suis desgousteacute de la nouvelleteacute quelque visage qursquoelle porte et ay raison car jrsquoen ay veu des effets tres-dommageables Celle qui nous presse depuis tant drsquoans elle nrsquoa pas tout exploicteacute mais on peut dire avec apparence que par accident elle a tout produict et engendre voire et les maux et ruines qui se font depuis sans elle et contre elle crsquoest agrave elle agrave srsquoen prendre au nezrdquo (Les Essais I 23 p 119) Eacute nesta perspectiva que vaacuterios comentadores observam que Montaigne natildeo poderia ser um homem ldquorevolucionaacuteriordquo e sim algueacutem que achasse melhor defender uma confianccedila moderada no lento aperfeiccediloamento das instituiccedilotildees ldquo[C] Les Franccedilois mes contemporaneacutees sccedilavent bien qursquoen dire Toutes grandes mutations esbranlent lrsquoestat et le desordonnentrdquo (Les Essais III 9 p 958) Isto permite compreender melhor alguns dos motivos pelos quais Montaigne assume as posiccedilotildees poliacuteticas e religiosas ldquoconservadorasrdquo que estatildeo presentes nos Essais Muito interessante eacute uma afirmaccedilatildeo de Jean Lacouture na sua obra Montaigne agrave cheval ndash considerada como uma espeacutecie de biografia que denota um entusiasmo significativo e algo romanceado fundamentada numa documentaccedilatildeo importante ndash na qual o autor reflecte sobre esta questatildeo ldquoMontaigne eacute grande o bastante para poder ser avaliado sob outros aspectos que natildeo a obediecircncia agraves praacuteticas e costumes de seu tempo Quando se eacute capaz no que diz respeito agrave justiccedila agrave toleracircncia ao racismo e agrave colonizaccedilatildeo de estar muitos seacuteculos agrave frente dos costumes e ideias de seu tempo pode-se ser julgado sem que consideraccedilotildees de eacutepoca ou de moda sejam levadas em contardquo (In Lacouture Jean Montaigne agrave cheval (Montaigne a cavalo) Traduzido do francecircs por F Rangel Rio de JaneiroSatildeo Paulo Editora Record 1998 p 236) 125 Les Essais II 12 p 570

42

E para fundamentar ainda mais esta ideia cita Lucreacutecio

ldquo[A] Sic volvenda aeligtas commutat tempora rerum Quod fuit in pretio fit nullo denique honore Porro aliud succedit et egrave contemptibus exit Inque dies magis appetitur floreacutetque repertum Laudibus Et miro est mortales inter honore ( ldquoAinsi dans sa course le temps change les conditions des choses ce qui eacutetait appreacutecieacute tombe dans le meacutepris un autre objet remplace le premier et sort du discreacutedit de jour en jour on le recherce davantage la deacutecouverte nouvelle toutes les louanges et une incoyable estime parmi les hommes)rdquo126

Podemos inferir daqui que ldquoos princiacutepios eternosrdquo natildeo tecircm lugar na ldquoApologie

de Raymond Sebondrdquo Montaigne faz questatildeo de observar que antes de os princiacutepios

introduzidos por Aristoacuteteles ganharem creacutedito outros princiacutepios contentavam a razatildeo

humana Os princiacutepios aristoteacutelicos como todos os outros natildeo estatildeo mais livres de ser

expulsos do que estavam os dos seus antecessores

Segundo Montaigne o juiacutezo depende dos sentidos aos quais por sua vez natildeo

podemos dar creacutedito por vaacuterios motivos Vejamos com mais detalhes este aspecto Eacute

justamente nos sentidos que se encontra o maior fundamento e a prova de nossa

ignoracircncia Montaigne baseado na experiecircncia de vida lembra-nos que natildeo haacute sentido

ou aspecto nem recto nem amargo nem doce nem curvo que o espiacuterito humano natildeo

encontre nos escritos que decide esquadrinhar Os sentidos satildeo muito enganadores A

palavra mais liacutempida mais pura e mais perfeita pode tornar-se equiacutevoca Montaigne

refere-se especialmente ao Evangelho127 Fizeram ao longo da histoacuteria ldquotudo e mais

alguma coisardquo com este texto sagrado para os cristatildeos E que ocorreria se estendecircssemos

esta preocupaccedilatildeo de Montaigne aos gestos humanos que querem exprimir ideias ou

sentimentos nas vaacuterias dimensotildees da vida moral poliacutetica etc

ldquo[C] Est-il possible qursquoHomere aye voulu dire tout ce qursquoon luy faict direrdquo128 E com relaccedilatildeo a Platatildeo ldquo[C] Voyez demener et agiter Platon Chacun srsquohororant de lrsquoappliquer agrave soi le couche du costeacute qursquoil le veutrdquo129

Montaigne observa ainda que com frequecircncia eacute difiacutecil decidir-se porque haacute

demasiadas formas de interpretar um determinado assunto para que o homem consiga

encontrar alguma indicaccedilatildeo que lhe sirva para resolver a questatildeo

126 Les Essais II 12 p 570 127 Cf Les Essais II 12 p 585 128 Les Essais II 12 p 586 129 Les Essais II 12 p 587

43

Montaigne afirma que todo o conhecimento chega ateacute noacutes pelos sentidos [A] Ce

sont nos maistresrdquo130 Observa que a ciecircncia comeccedila pelos sentidos e a eles se reduz

Eles satildeo a base e os princiacutepios de toda a construccedilatildeo de nossa ciecircncia E considera que

natildeo haacute absurdo mais extremo do que sustentar que

ldquo[A] le feu nrsquoeschaufe point que la lumiere nrsquoesclaire point qursquoil nrsquoy a point de pesanteur au fer ny de fermeteacute qui sont notices que nous apportent les sens nycreance ou science en lrsquohomme qui se puisse comparer agrave celle-lagrave en certituderdquo131

Montaigne potildee em duacutevida que o homem esteja provido de todos os sentidos

naturais Chega inclusivamente a perguntar-se se natildeo nos falta algum sentido E afirma

que se isto ocorrer nem a nossa razatildeo pode descobrir a sua ausecircncia nem haacute nada agrave

margem dos sentidos que nos possa servir para os descobrir

ldquo[A]Ils font trestons la ligne extreme de nostre faculteacute [hellip] Il est impossible de faire concevoir agrave un homme naturellement aveugle qursquoil nrsquoy void pas impossible de luy faire desirer la veue et regretter son defautrdquo132

Sendo assim afirma que quando formamos uma verdade pela consulta e

cooperaccedilatildeo dos sentidos poderiacuteamos tambeacutem ser levados a considerar que poderia ser

necessaacuteria a convergecircncia e a contribuiccedilatildeo de oito ou dez sentidos para a captar

acertadamente e na sua essecircncia

Uma das criacuteticas fundamentais de Montaigne agrave ciecircncia incide precisamente no

facto de ela se basear nos sentidos Mas como vimos os sentidos satildeo muito incertos e

fraacutegeis Desta extrema dificuldade nascem muitas opiniotildees (ldquofantasiesrdquo)

ldquo[A]Que chaque subjet a en soy tout ce que nous y trouvons qursquoil nrsquoa rien de ce que nous y pensons trouver et celle de Epicuriens que le Soleil nrsquoest non plus grand que ce que nostre veueuml le juge [hellip] (A) que les apparences qui representent un corps grand agrave celuy qui en est voisin et plus petit agrave celuy qui en est esloigneacute sont toutes deux vrayes [hellip] [A]et resolument qursquoil nrsquoy a aucun tromperie aux sens qursquoil faut passer agrave leur mercy et chercher ailleurs des raisons pour excuser la difference et contradiction que nous y trouvons voyre inventer toute autre mensonge et resverie (ils en viennent jusques lagrave) plustot que drsquoaccuser les sens [hellip] [A] De toutes les absurditez la plus absurde [C] aux Epicuriens [A] est davouumler la force et effect des sensrdquo133

130 Les Essais II 12 p 587 131 Les Essais II 12 p 588 132 Les Essais II 12 p 589 133 Les Essais II 12 p 591

44

Segundo Montaigne natildeo podemos livrar-nos dos sentidos se queremos construir

o conhecimento Mas os sentidos satildeo incertos falsificaacuteveis e enganadores134 E entende

tambeacutem que se eacute verdade que os sentidos satildeo os nossos primeiros juiacutezes135 entatildeo natildeo

devemos limitar-nos a convocar apenas os nossos para o conselho pois no que se refere

aos sentidos os animais tecircm tanto direito quanto noacutes ou mais Montaigne observa ainda

que os sentidos do homem estatildeo em desacordo com os sentidos dos animais E eacute por isto

que

ldquo[A] Pour le jugement de lrsquoaction des sens il faudroit donc que nous en fussions premierement drsquoaccord avec les bestes secondement entre nous mesmes [hellip] et entrons en debat tous les coups de ce que lrsquoun oit void ou goute quelque chose autrement qursquoun autre et debatons autant que drsquoautre chose de la diversiteacute des images que le sens nous raportentrdquo136

Concluindo a exposiccedilatildeo acerca dos sentidos Montaigne lembra-nos que os

sentidos satildeo para algumas pessoas mais obscuros e mais velados enquanto que para

outras pessoas satildeo mais claros e apurados Em seu entender recebemos as coisas de

forma diferente de acordo com o que somos e com o que nos parece Mas se o parecer

nos eacute tatildeo incerto e controverso

ldquo[A] Ce nrsquoest plus miracle si on nous dict que nous pouvons avoueumlr que la neige nous apparoit blanche mais que drsquoestablir si de son essence elle est telle et agrave la veriteacute nous ne nous en sccedilaurions respondrerdquo137

Tendo em conta todos os atributos dos sentidos acima mencionados Montaigne

dificilmente poderia chegar a uma outra conclusatildeo

ldquo[A] ce commencement esbranleacute toute la science du monde srsquoen va necessairement agrave vau-lrsquoeaurdquo138

Referindo-se a Teofrasto Montaigne recorda-nos que este pensador dizia que o

conhecimento humano guiado pelos sentidos podia julgar sobre as causas das coisas

ateacute certo ponto Mas que ao chegar agraves causas extremas e primeiras tinha de deter-se a

embotar-se devido ou agrave sua fragilidade ou agrave dificuldade das coisas Montaigne afirma

134 Assim como os sentidos satildeo enganadores satildeo tambeacutem enganados ldquo[A] Cette mesme piperie que les sens apportent agrave nostre entendement ils la reccediloivent agrave leur tour Nostre ame par fois srsquoen revenche de mesme [C] ils mentent et se trompent agrave lrsquoenvy [A] Ce que nous voyons et oyons agitez de colere nous ne lrsquooyons pas tel qursquoil est [hellip] Lrsquoobject que nous aymons nous semble plus beau qursquoil est [hellip] [A] et plus laid celuy que nous avons agrave contre coeur [hellip] Nos sens sont non seulement alterez mais souvent hebelez du tout par les passions de lrsquoame Combien de choses voyons nous que nous nrsquoa appercevons pas si nous avons nostre esprit empescheacute ailleurs (Les Essais II 12 pp 495-496) 135 Cf Les Essais II 12 p 596 136 Les Essais II 12 p 598 137 Les Essais II 12 pp 598-599 138 Les Essais II 12 p 599

45

ldquo[A] Cest une opinion moyenne et douce que nostre suffisance nous peut conduire jusques agrave la cognoissance daucunes choses et quelle a certaines mesures de puissance outre lesquelles cest temeriteacute de lemployer Cette opinion est plausible et introduicte par gens de composition mais il est malaiseacute de donner bornes agrave nostre esprit il est curieux et avide et na point occasion de sarrester plus tost agrave mille pas quagrave cinquanterdquo139

Montaigne procura aqui justificar a sua tese de que o conhecimento empiacuterico ou

sensiacutevel natildeo tem condiccedilotildees para permitir captar princiacutepios e verdades universais A

razatildeo humana por ser um instrumento impotente natildeo consegue dar explicaccedilotildees

convincentes das grandes questotildees da humanidade Consegue apenas explicar algumas

poucas coisas Se a razatildeo eacute incapaz de dar respostas profundas e aceitaacuteveis agraves grandes

questotildees ndash como por exemplo agraves causas primeiras ndash ela eacute descartaacutevel e no que toca agrave

busca do conhecimento natildeo serve para quase nada Daiacute que Montaigne afirme que o

homem eacute capaz de todas as coisas e de nenhuma E se confessa a ignoracircncia das causas

primeiras e dos princiacutepios entatildeo que abandone tambeacutem prontamente todo o resto da sua

ciecircncia

Se a alma conhecesse alguma coisa comeccedilaria por se conhecer a si mesma

ldquo[A] et si elle sccedilavoit quelque chose elle se sccedilauroit premierement elle mesme et si elle sccedilavoit quelque chose hors drsquoelle ce seroit son corps et son estuy avant toute autre choserdquo140

Montaigne refere-se aqui especialmente ao chamado conhecimento da medicina

Para ele a medicina natildeo consegue sair do ciclo vicioso das discussotildees Ressalta o facto

de que ldquoles dieuxrdquo desta ciecircncia tambeacutem natildeo conseguem chegar a acordo algum Daiacute

mais uma vez a atitude pirroacutenica de Montaigne

ldquo[A] Si lrsquohomme ne se connoit comment connoit il ses fonctions et ses forcesrdquo141

O autor debate-se com o problema da verdade o que eacute a verdade Na

ldquoApologierdquo sustenta que a verdade eacute inacessiacutevel e flutuante Neste ponto Montaigne eacute

fiel ao cepticismo que tem como caracteriacutestica dominante a atitude de estar sempre em

busca da verdade num processo que ocorre sempre dentro de um eterno movimento e

nunca se fixa definitivamente em nenhum ponto

139 Les Essais II 12 p 560 140 Les Essais II 12 p 561 141 Les Essais II 12 p 561

46

ldquo[B] La veueuml de nostre jugement se rapporte agrave la veriteacute comme faict loeil du chat-huant agrave la splendeur du Soleil ainsi que dit Aristote Par ougrave le sccedilaurions nous mieux convaincre que par si grossiers aveuglemens en une si apparente lumiererdquo142

Esta concepccedilatildeo flutuante da verdade eacute uma caracteriacutestica distintiva natildeo soacute da

ldquoApologierdquo mas tambeacutem de outros ensaios montaigneanos O autor natildeo faz nenhuma

afirmaccedilatildeo definitiva sobre nenhuma questatildeo A sua preocupaccedilatildeo principal natildeo eacute

encontrar a soluccedilatildeo dos diversos problemas que envolvem o homem mas sim tentar

compreender-se a si proacuteprio ldquo[hellip] je suis moy-mesmes la matiere de mon livrerdquo143 Isto

exclui as verdades fixadas pela tradiccedilatildeo filosoacutefica e neste sentido o pensamento de

Montaigne desenvolve-se agrave margem do dogmatismo Rejeita os pedantes isto eacute aqueles

que acreditam que adquirem o conhecimento utilizando termos palavras ou frases

obscuros

Montaigne insiste na dimensatildeo instaacutevel e incerta do nosso conhecimento que

natildeo consegue alcanccedilar a verdade

ldquo[A] Toutes choses produites par nostre propre discours et suffisance autant vrayes que fauces sont subjectes agrave incertitude et debat Cest pour le chastiement de nostre fierteacute et instruction de nostre misere et incapaciteacute que Dieu produisit le trouble et la confusion de lancienne tour de Babel Tout ce que nous entreprenons sans son assistance tout ce que nous voyons sans la lampe de sa grace ce nest que vaniteacute et folie Lessence mesme de la veriteacute qui est uniforme et constante quand la fortune nous en donne la possession nous la corrompons et abastardissons par nostre foiblesserdquo144

A verdade deve ter ldquo[A] un visage pareil et universelrdquo145 Uma outra

caracteriacutestica da verdade salientada por Montaigne eacute que ela ldquo[A] ne se juge point par

authoriteacute et tesmoignage drsquoautruyrdquo146 Neste sentido a verdade eacute fundamentalmente

pessoal Observando cuidadosamente estes atributos da verdade podemos perceber por

que razatildeo Montaigne faz a seguinte afirmaccedilatildeo

ldquo[A] la veriteacute est engoufleacutee dans des profonds abysmes ougrave la veueuml humaine ne peut penetrerrdquo147

Dito de outro modo a verdade estaacute oculta em Deus e natildeo eacute propriamente dos

homens dos filoacutesofos dos doutos

142 Les Essais II 12 p 552 143 Les Essais Au lecteur p 3 144 Les Essais II 12 p 553 145 Les Essais II 12 pp 578-579 146 Les Essais II 12 p 507 147 Les Essais II 12 p 561

47

ldquo[A] Crsquoest agrave elle (la majesteacute divine) seule qursquoapartient la science et la sapiencerdquo148

A criacutetica montaigneana agrave razatildeo humana manifesta aqui a impossibilidade de se

ter um conhecimento crediacutevel em todos os domiacutenios da vida A razatildeo por ser

infinitamente limitada natildeo consegue chegar a ser uma faculdade que garanta a

descoberta e por conseguinte a sistematizaccedilatildeo da verdade que eacute algo moacutevel pessoal

temporal e tambeacutem paradoxal

Lendo os pensadores antigos Montaigne suscita uma questatildeo fundamental Em

seu entender haacute uma espeacutecie de distanciamento ou divoacutercio entre o conhecimento da

essecircncia e o conhecimento da aparecircncia Como eacute possiacutevel entatildeo observa Montaigne

que eles se deixam vencer pela verosimilhanccedila se natildeo conhecem a verdade Como eacute

possiacutevel que conheccedilam a aparecircncia de algo cuja essecircncia natildeo conhecem Diante destas

dificuldades o autor da ldquoApologierdquo sustenta

ldquo[A] Ou nous pouvons juger tout agrave faict ou tout agrave faict nous ne le pouvons pas Si noz facultez intellectuelles et sensibles sont sans fondement et sans pied si elles ne font que floter et vanter pour neant laissons nous emporter nostre jugement agrave aucune partie de leur operation quelque apparence quelle semble nous presenter et la plus seure assiette de nostre entendement et la plus heureuse ce seroit celle-lagrave ougrave il se maintiendroit rassis droit inflexible sans bransle et sans agitationrdquo149

Segundo Montaigne as coisas natildeo se alojam em noacutes com a sua forma e a sua

essecircncia Se assim fosse recebecirc-las-iacuteamos dessa forma O vinho seria o mesmo na boca

de quem quer que fosse Mas natildeo eacute o que acontece a filosofia causa uma infinita

confusatildeo de opiniotildees e um eterno debate sobre o conhecimento das coisas Deixemos o

proacuteprio autor falar

ldquo[A]Car cela est presuposeacute tres-veritablement que de aucune chose les hommes je dy les sccedilavans les mieux nais les plus suffisans ne sont daccord non pas que le ciel soit sur nostre teste car ceux qui doutent de tout doutent aussi de cela et ceux qui nient que nous puissions aucune chose comprendre disent que nous navons pas compris que le ciel soit sur nostre teste et ces deux opinions sont en nombre sans comparaison les plus fortesrdquo150

Montaigne reconhece que os seus juiacutezos acerca de tudo aquilo que eacute falso eou

verdadeiro ocorrem de uma maneira condicionada dependendo da sua situaccedilatildeo interior

148 Les Essais II 12 p 448 149 Les Essais II 12 p 562 150 Les Essais II 12 p 563

48

e exterior A sua posiccedilatildeo em face das diversas situaccedilotildees concretas da vida eacute muito

dependente das suas opiniotildees que podem ser hoje umas e outras diferentes ou ateacute

contraacuterias amanhatilde Em seu entender ateacute o proacuteprio ar que respiramos e a serenidade do

ceacuteu produzem em noacutes alguma alteraccedilatildeo Recorda um verso de Ciacutecero

ldquo[A] Tales sunt hominum mentes quali pater ipse Juppiter auctifera lustravit lampade terras (Les penseacutees des hommes changent avec les rayons feacutecundants du soleil que Jupiter leur envoie)rdquo151

Noutro ensaio do livro III intitulado ldquoDu repentirrdquo Montaigne depois de afirmar

que o mundo eacute movimento e que tudo nele muda continuadamente faz uma observaccedilatildeo

de grande importacircncia que pode ser inserida neste contexto

ldquo[B] Tant y a que je me contredits bien agrave lrsquoaventure mais la veriteacute comme disoit Demandes je ne la contredy point Si mon ame pouvoit prendre pied je ne mrsquoessaierois pas je me resoudrois elle est toujours en apprentissage et en espreuverdquo152

Montaigne questiona de forma radical todos os que se orgulham de sua razatildeo e

acreditam na certeza de todos os seus princiacutepios Utiliza a proacutepria razatildeo para arruinar a

razatildeo dos filoacutesofos profissionais ou seja os seguidores cegos da loacutegica aristoteacutelica Em

suma combate a razatildeo com a proacutepria razatildeo e nega o seu valor

No texto seguinte Montaigne faz uma espeacutecie de caracterizaccedilatildeo da

escolaacutestica153 e da loacutegica aristoteacutelica154 Eacute um texto fundamental da ldquoApologierdquo no

qual o autor se refere claramente agrave hierarquia filosoacutefica aristoteacutelica na qual

encontramos a metafiacutesica como ldquociecircncia mais correctardquo

ldquo[A] Il est bien aiseacute sur des fondemens avouez de bastir ce quon veut car selon la loy et ordonnance de ce commencement le reste des pieces du bastiment se conduit ayseacuteement sans se deacutementir Par cette voye nous trouvons nostre raison bien fondeacutee et discourons agrave boule veue car nos maistres praeligoccupent et gaignent avant main autant de lieu en nostre creance quil leur en faut pour conclurre apres ce quils veulent agrave la mode des Geometriens par leurs demandes avoueacutees le consentement et

151 Les Essais II 12 p 564 152 Les Essais III 2 p 805 153 Na eacutepoca em que Montaigne escreveu a ldquoApologierdquo a doutrina escolaacutestica era caracterizada por um excesso de formalismo e de abstracccedilatildeo o que o levou a demonstrar uma aversatildeo profunda por essa filosofia 154 Segundo Friedrich haacute na ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo alguns ldquofaibles tracesrdquo de uma leitura de Aristoacuteteles jaacute que naquela eacutepoca este pensador grego exercia a sua uacuteltima grande influecircncia sobre os humanistas Aristoacuteteles eacute para Montaigne a ldquoquintessencerdquo da autoridade magistral que obstaculiza a sua relaccedilatildeo livre com a tradiccedilatildeo ldquoSa doctrine nous sert de loy magistrale qui est agrave lrsquoaventure autant fause qursquoune autrerdquo (Les Essais II 12 p 521 a 279) Friedrich observa no entanto que natildeo eacute possiacutevel fixar exactamente em que medida Montaigne leu Aristoacuteteles e considera que natildeo se trata de uma leitura muito soacutelida (Cf Friedrich op cit p 67)

49

approbation que nous leurs prestons leur donnant dequoy nous trainer agrave gauche et agrave dextre et nous pyroueter agrave leur volonteacute Quiconque est creu de ses presuppositions il est nostre maistre et nostre Dieu il prendra le plant de ses fondemens si ample et si aiseacute que par iceux il nous pourra monter sil veut jusques aux nueumls En cette pratique et negotiation de science nous avons pris pour argent content le mot de Pythagoras que chaque expert doit estre creu en son art Le dialecticien se rapporte au grammairien de la signification des mots le Rhetoricien emprunte du Dialecticien les lieux des arguments le poete du musicien les mesures le geometrien de larithmeticien les proportions les metaphysiciens prennent pour fondement les conjectures de la physique Car chasque science a ses principes presupposez par ougrave le jugement humain est brideacute de toutes parts Si vous venez agrave choquer cette barriere en laquelle gist la principale erreur ils ont incontinent cette sentence en la bouche quil ne faut pas debattre contre ceux qui nient les principesrdquo155

Se a verdade ndash como tudo parece indicar ndash se daacute a conhecer atraveacutes das causas ndash

haveraacute que fazer referecircncia agraves quatro causas156 presentes na filosofia aristoteacutelica Se o

homem realmente conseguir conhecer estas causas teraacute um conhecimento ldquocientiacuteficordquo

da substacircncia que procura Por isso Montaigne quer invalidar a filosofia dita dogmaacutetica

de Aristoacuteteles rejeitando claramente a tese das quatro causas Em seu entender esta

teoria natildeo passa de um engano O autor da ldquoApologierdquo sugere que a teoria das quatro

causas soacute serve para prejudicar os homens que ludibriados pelo poder da razatildeo natildeo

cessam de correr atraacutes do conhecimento das causas que lhe eacute por seu turno inacessiacutevel

A verdade das causas estaacute acima de nossas capacidades racionais

Assumindo a postura pirroacutenica de Sexto Empiacuterico ndash que foi aliaacutes um aceacuterrimo

opositor de Aristoacuteteles ndash Montaigne procurou fazer algo semelhante Isto eacute procurou

atacar as bases da ciecircncia escolaacutestica (sobretudo preocupada em conciliar a razatildeo com a

feacute apoiando-se na filosofia grega principalmente a aristoteacutelica) e por conseguinte de

todos os outros sistemas dogmaacuteticos Numa perspectiva ceacuteptica sextiana Montaigne

trava uma batalha contra os princiacutepios da metafiacutesica tidos como os mais correctos Esta

visatildeo aristoteacutelica quer estabelecer uma ligaccedilatildeo entre o pensamento e o juiacutezo humanos e

os obriga a natildeo evitar as questotildees preacute-existentes Segundo Montaigne esta concepccedilatildeo

155 Les Essais II 12 p 540 156 Aristoacuteteles apresenta estas causas particularmente nos livros I e II da Metafiacutesica Satildeo elas causa material isto eacute aquilo de que eacute feita uma coisa por exemplo a mateacuteria do homem eacute a carne e os ossos a mateacuteria da mesa eacute a madeira e assim por diante causa formal isto eacute a forma ou essecircncia das coisas por exemplo o rio e o mar satildeo as formas da aacutegua um tapete eacute a forma assumida pela mateacuteria latilde com a acccedilatildeo do artiacutefice causa eficiente ou motriz isto eacute aquilo de que provecircm a mudanccedila e o movimento das coisas por exemplo o artiacutefice eacute a causa eficiente que faz a latilde receber a forma do tapete o gelo eacute a forma que faz os corpos quentes tornarem-se frios e causa final isto eacute a causa que constitui o fim ou o propoacutesito das coisas e acccedilotildees por exemplo o bem eacute a causa final da poliacutetica a felicidade eacute a causa final da acccedilatildeo eacutetica e assim por diante

50

tambeacutem natildeo potildee em evidecircncia o facto de que o conhecimento adquirido por este

processo fica enclausurado dentro de um ciacuterculo vicioso Deixemos o proacuteprio autor

falar

ldquo[A] Pour juger des apparences que nous recevons des subjets il nous faudroit un instrument judicatoire pour verifier cet instrument il nous y faut de la demonstration pour verifier la demonstration un instrument nous voila au rouet Puis que les sens ne peuvent arrester nostre dispute estans pleins eux-mesmes dincertitude il faut que ce soit la raison aucune raison ne sestablira sans une autre raison nous voylagrave agrave reculons jusques agrave linfiny Nostre fantasie ne sapplique pas aux choses estrangeres ains elle est conceue par lentremise des sens et les sens ne comprennent pas le subject estranger ains seulement leurs propres passions et par ainsi la fantasie et apparence nest pas du subject ains seulement de la passion et souffrance du sens laquelle passion et subject sont choses diverses parquoy qui juge par les apparences juge par chose autre que le subject [hellip]rdquo157

Os escolaacutesticos natildeo testaram as suas ideias atraveacutes dos factosldquoIls ne se

rapportent pas agrave lrsquoexpeacuterience ils nrsquoessaient jamais leurs opinions Leur travail consiste

uniquement agrave tirer des deacuteductions de principes et drsquoaxiomes qursquoils nrsquoexaminent jamais

Leurs principes sont faux les conseacutequences qursquoils en deacuteduisent sont donc fausses

neacutecessairement mais ils ne srsquoen soucient pas La meacutethode scolastique et logicienne

triomphe toujours et rend tous les efforts steacuterilesrdquo158 Montaigne daacute-se conta de que a

capacidade do homem de conhecer algo estaacute profundamente relacionada com a

contingecircncia e que esta mesma capacidade estaacute subordinada aos sentidos que satildeo

ldquomaintesfois maistres du discoursrdquo159 mas que ao mesmo tempo satildeo incertos e

falsificaacuteveis E portanto esta ciecircncia eacute incapaz de chegar a certezas crediacuteveis

157 Les Essais II 12 pp 600-601 158 Villey op cit pp 214-215 159 Les Essais II 12 p 592

51

4 A criacutetica agrave razatildeo humana e o relativismo da moral

Quando lemos a ldquoApologie de Raymond de Sebondrdquo aleacutem de nos depararmos

com problemas claacutessicos da filosofia como a criacutetica agrave teoria do conhecimento

deparamo-nos tambeacutem com o problema da moral de que o autor se ocupa de uma

maneira muito particular Natildeo apresentaremos neste capiacutetulo uma abordagem detalhada

e detida do tema da moral na ldquoApologierdquo Isto exigiria uma investigaccedilatildeo aprofundada e

de maior amplitude uma vez que o autor desenvolve neste texto muitos aspectos

importantes deste tema

Limitar-nos-emos a procurar perceber por que razatildeo o autor ldquodecretardquo a

impossibilidade de fundamentar na razatildeo humana um conjunto de normas ou leis que

dizem respeito agrave vida praacutetica de qualquer grupo humano Perseguindo este objectivo

procuraremos reconstruir os vaacuterios argumentos do ensaio que justificam a sua tomada

de posiccedilatildeo no acircmbito da moral160

Para contextualizar um pouco a questatildeo da moral nos Essais eacute importante

observar que no periacuteodo do humanismo renascentista se fazia sentir a necessidade de

emitir juiacutezos que fossem coerentes de se informar dos costumes dos homens tanto dos

antigos como dos povos que habitavam terras longiacutenquas Todos queriam rever a sua

ideia de homem Tratava-se de uma busca aberta e muitos ofereciam a sua contribuiccedilatildeo

como afirma Villey161 Tampouco Montaigne se demitiu desta tarefa Envolveu-se com

empenho na tarefa de perceber o que eacute o homem Para isto misturou muitas histoacuterias

antigas e contemporacircneas com inuacutemeras reflexotildees de viajantes que vinham de terras

distantes sobretudo daquelas que foram invadidas e ocupadas por europeus nelas

encontra uma confirmaccedilatildeo da tese segundo a qual a multiplicidade irreconciliaacutevel e a

diversidade mais ampla satildeo a uacutenica marca do ser As teses ceacutepticas de Montaigne

revelam-se de uma maneira particularmente radical no campo da moral neste acircmbito

adquiriraacute uma importacircncia capital a diversidade dos costumes como argumento contra a

moral ldquoracionalrdquo

160 Segundo Villey Montaigne toma consciecircncia do relativismo relativo ao conhecimento natildeo apenas nas noccedilotildees de metafiacutesica mas tambeacutem nas noccedilotildees de moral Neste ponto teraacute uma influecircncia muito importante sobretudo a sua leitura de Sexto Empiacuterico Nesta perspectiva Montaigne pode ser visto como um moralista O mesmo autor afirma que eacute principalmente nas ideias morais que podemos perceber nitidamente o relativismo montaigneano (cf Villey op cit pp188-189) 161 Cf Villey op cit p189

52

Na ldquoApologierdquo Montaigne deteacutem-se a considerar que todas as sociedades tecircm

necessidade das leis Ele tem perfeita consciecircncia de que sem leis nenhuma sociedade

poderaacute ter vida longa A obediecircncia agraves leis162 eacute uma condiccedilatildeo sine qua non para a

sobrevivecircncia de qualquer grupo social Montaigne natildeo leva a ingenuidade ao ponto de

negar pura e simplesmente a necessidade das leis e normas Neste sentido pensa como

Epicuro isto eacute considera que mesmo as piores leis nos satildeo tatildeo necessaacuterias que sem

elas os homens se devorariam uns aos outros163 No mesmo paraacutegrafo Montaigne

observa que tambeacutem Platatildeo distanciando-se pouco desta tese sustenta que sem leis

viveriacuteamos como animais selvagens e se empenha em provaacute-lo

ldquo[A] Nostre esprit est un util vagabond dangereux et temeraire il est malaiseacute dy joindre lordre et la mesure Et de mon temps ceux qui ont quelque rare excellence au dessus des autres et quelque vivaciteacute extraordinaire nous les voyons quasi tous desbordez en licence dopinions et de meurs Cest miracle sil sen rencontre un rassis et sociable On a raison de donner agrave lesprit humain les barrieres les plus contraintes quon peut En lestude comme au reste il luy faut compter et regler ses marches il luy faut tailler par art les limites de sa chasserdquo164

Ao citar Epicuro e Platatildeo o autor da ldquoApologierdquo manifesta a sua decepccedilatildeo

relativamente ao homem de sua eacutepoca Certamente estes pensadores trazem-lhe agrave

memoacuteria a situaccedilatildeo concreta em que estava mergulhada a sociedade francesa naquela

eacutepoca Lendo de uma forma atenta a sua obra eacute faacutecil comprovar que Montaigne era

consciente de tudo o que se passava no seu paiacutes guerras conflitos religiosos profundos

e actos de violecircncia deles derivados

Laschamp ao descrever algumas caracteriacutesticas do contexto no qual Montaigne

elabora a sua obra afirma

162 Haacute uma quantidade significativa de afirmaccedilotildees nos Essais acerca da necessidade do cumprimento da lei independentemente de esta ser ou natildeo justa Vejamos algumas ldquo [C] Il nrsquoest rien si lourdement et largement fautier que les loix ny si ordinairement [B] Quiconque leur obeyt pas justement par ougrave il doibt [hellip] [B]Or les loix se maintiennent en credit non par ce qursquoelles sont justes mais par ce qursquoelles sont loix Crsquoest le fondement mystique de leur authoriteacute elles nrsquoen ont poinct drsquoautrerdquo (Les Essais III 13 p 1072) Montaigne chega ateacute a afirmar que ldquo[A] ce bon et grand Socrates refusa de sauver sa vie par la desobeissance du magistrat voire drsquoun magistrat tres-injuste et tres-inique Car crsquoest la regle des regles et generale loy des loix que chacun observe celles du lieu ougrave il est [hellip]rdquo (Les Essais I 23 p 118) ldquo[A] Jen diray seulement encore cela que cest la seule humiliteacute et submission qui peut effectuer un homme de bien Il ne faut pas laisser au jugement de chacun la cognoissance de son devoir il le luy faut prescrire non pas le laisser choisir agrave son discours autrement selon limbecilliteacute et varieteacute infinie de nos raisons et opinions nous nous forgerions en fin des devoirs qui nous mettroient agrave nous manger les uns les autres comme dit Epicurusrdquo (Essais II 12 p 488) 163 Cf Les Essais II 12 p 558 164 Les Essais II 12 p 559

53

ldquoLes violences entre les dissidents eacutegalaient celles dont ils eacutetaient lrsquoobjet de la part de leurs adversaires Jamais lrsquoabus du raisonnement nrsquoavait eacuteteacute pousseacute plus loin jamais il nrsquoavait deacutechacircneacute tant de colegraveres jamais il nrsquoavait fait couler tant de larmes et tant de sangrdquo165

Assim se compreende melhor por que razatildeo Montaigne afirma que na sua

eacutepoca os que tecircm alguma rara excelecircncia acima dos outros e uma vivacidade

extraordinaacuteria os excedem em desregramento de ideias e de costumes e praticam acccedilotildees

que impedem a felicidade dos homens

Montaigne na qualidade de libre penseur natildeo poderia deixar de defender a

liberdade de pensamento Mas ao mesmo tempo sabe tambeacutem que se esta liberdade

estiver sujeita agrave vaidade da razatildeo muitas atitudes humanas inclusive religiosas como

vimos anteriormente poderatildeo tornar-se nocivas para o homem Ao descrever algumas

das caracteriacutesticas da liberdade de que davam prova os antigos na filosofia e ao fazer

um paralelo com a sociedade de sua eacutepoca afirma

ldquo[A] La liberteacute donq et gaillardise de ces esprits anciens produisoit en la philosophie et sciences humaines plusieurs sectes dopinions differentes chacun entreprenant de juger et de choisir pour prendre party Mais agrave present [C] que les hommes vont tous un train [hellip] et [A] que nous recevons les arts par civile authoriteacute et ordonnance [C] si que les escholes nont quun patron et pareille institution et discipline circonscrite on ne regarde plus ce que les monnoyes poisent et valent mais chacun agrave son tour les reccediloit selon le pris que lapprobation commune et le cours leur donneOn ne plaide pas de lalloy mais de lusage ainsi se mettent egallement toutes choses On reccediloit la medicine comme la Geometrie et les batelages les enchantemens les liaisons le commerce des esprits des trespassez les prognostications les domifications et jusques agrave cette ridicule poursuitte de la pierre philosophale tout se met sans contredictrdquo166

Montaigne escreve a sua obra mergulhado num clima onde reinava uma

ldquoanarchie dans les ideacutees et dans les faitsrdquo167 e coloca-se na atitude de ajudado pelos

costumes antigos julgar o seu tempo Segundo Villey eacute exactamente neste contexto

muito conturbado que Montaigne entra em contacto com o livro de Sexto Empiacuterico

ldquoVoilagrave ougrave lrsquoinfluence du milieu et sa propre dociliteacute aux faits lrsquoont conduit Presque toujours crsquoest la loi politique et morale agrave laquelle il est naturellement assujetti que lrsquoesprit eacuterige en loi absolue Montaigne a affranchi sa raison de cette contrainte naturelle il sait critiquer la loi

165 Laschamp op cit p 104 166 Les Essais II 12 pp 559-560 167 Laschamp op cit p 94

54

que son milieu lui impose crsquoest un pas drsquoune extrecircme importance qursquoil a fait lagrave vers lrsquoideacutee de relativiteacuterdquo168

Montaigne descreve alguns aspectos que comprovam o seu relativismo face aos

costumes de vaacuterios povos sobretudo quando os relaciona com os de Franccedila Com isto o

autor quer sugerir possivelmente que as crenccedilas os juiacutezos e as opiniotildees dos homens

estatildeo sujeitos agraves inconstacircncias perenes que haacute na vida concreta

ldquo[A] si le ciel les agite et les roule agrave sa poste quelle magistrale authoriteacute et permanante leur allons nous attribuant [hellip] [B] en maniere que ainsi que les fruicts naissent divers et les animaux les hommes naissent aussi plus et moins belliqueux justes temperans et dociles icy subjects au vin ailleurs au larecin ou agrave la paillardise icy enclins agrave superstition ailleurs agrave la mescreance [C] icy agrave la liberteacute icy agrave la servitude [hellip] [B] que deviennent toutes ces belles prerogatives dequoy nous nous allons flatants Puis quun homme sage se peut mesconter et cent hommes et plusieurs nations voire et lhumaine nature selon nous se mesconte plusieurs siecles en cecy ou en cela quelle seureteacute avons nous que par fois elle cesse de se mesconter [C] et quen ce siecle elle ne soit en mescomte [A] Il me semble entre autres tesmoignages de nostre imbecilliteacute que celui-cy ne merite pas destre oublieacute que par desir mesmes lhomme ne sccedilache trouver ce quil luy faut que non par jouyssance mais par imagination et par souhait nous ne puissions estre daccord de ce dequoy nous avons besoing pour nous contenter Laissons agrave nostre penseacutee tailler et coudre agrave son plaisir elle ne pourra pas seulement desirer ce qui luy est propre [C] et se satisfaire [hellip]rdquo169

Segundo Montaigne a verdade de uma teoria moral ndash como a de qualquer outro

conhecimento ndash soacute pode ser afirmada relativamente ao sujeito que estaacute implicado nesta

tarefa O homem que reflecte sobre a moral reflecte sobre si proacuteprio e natildeo sobre a

humanidade em geral Desta perspectiva podemos perceber por que razatildeo Montaigne

afirma que eacute ele proacuteprio a mateacuteria de seu livro170 Eacute o proacuteprio Montaigne que nos toca

ainda mais de perto do que o homem em geral

Montaigne observa que natildeo haacute entre os filoacutesofos combate tatildeo violento e tatildeo rude

como o que se trava acerca da questatildeo do soberano bem do homem

ldquo[A] Il nest point de combat si violent entre les philosophes et si aspre que celuy qui se dresse sur la question du souverain bien de lhommerdquo171

168 Villey op cit p 193 169 Les Essais II 12 pp 575-576 170 Cf nota 143 171 Les Essais II 12 p 577

55

Trata-se de uma questatildeo muito sensiacutevel para Montaigne Em se entender eacute inuacutetil

acrescentar mais uma seita agraves 288 que nasceram segundo o caacutelculo de Varron acerca

da questatildeo do soberano bem172

Montaigne inicia a ldquoApologierdquo afirmando que alguns filoacutesofos pensavam que o

soberano bem estava na ciecircncia173

Mas natildeo acreditava que fosse atraveacutes da ciecircncia174 (moral e filosoacutefica) que o

homem conseguiria ser mais saacutebio e mais feliz O autor natildeo se preocupa em fornecer

exactamente o ldquoendereccedilordquo do bem soberano Vejamos como apresenta algumas

indicaccedilotildees relativas agraves vaacuterias tentativas dos filoacutesofos para encontrarem o bem soberano

esse bem que varia conforme o indiviacuteduo

ldquo[A] Nature devroit ainsi respondre agrave leurs contestations et agrave leurs debats Les uns disent nostre bien estre loger en la vertu dautres en la volupteacute dautres au consentir agrave nature qui en la science [C] qui agrave navoir point de douleur [A] qui agrave ne se laisser emporter aux apparences (et agrave cette fantasie semble retirer cetautre [B] de lantien Pythagoras [hellip] [A] qui est la fin de la secte Pyrrhonienne) rdquo175

Fiel aos argumentos do pirronismo Montaigne sustenta que o soberano bem eacute a

ataraxia Segundo ele a sabedoria indica-nos que eacute necessaacuterio procurar manter na alma

um harmonioso equiliacutebrio A ataraxia foi sempre considerada pelos seguidores do

pirronismo como a coroaccedilatildeo da sua filosofia segundo Andreacute Verdan176 Vejamos

textualmente o que diz Sexto acerca da ataraxia como objectivo de sua doutrina ceacuteptica

filosoacutefica

ldquoIl est propos de dire ici quelque chose de la fin de la Sceptique La fin en geacuteneacuteral est ce pour quoi on fait ou on consideacutere toutes Choses crsquoest ce que lrsquoon ne recherche point pour quelque autre Chose crsquoest ce qui est la dernieacutere Chose que lrsquoon recherche Nous disons donc maintenant que la fin du Filosofe Sceptique est lrsquoAtaraxie ou lrsquoexemtion de trouble agrave lrsquoeacutegard des opinions [hellip] amp alors lrsquoAtaraxie ou lrsquoexemtion de trouble fut une suite heureuse quoique fortuite de cette suspension de son jugement agrave lrsquoeacutegard des opinions [hellip] celui qui opine Dogmatiquement amp qui eacutetablit qursquoil y a naturellement amp reacuteellement quelque bien amp quelque mal est toujours troubleacuterdquo177

172 Les Essais II 12 p 577 173 Cf nota 96 174 ldquoLa philosophie morale est viseacutee comme les autres sciences plus directement mecircme que les autres sciencesrdquo (Villey op cit p219) 175 Les Essais II 12 p578 176 Cf Verdan Andreacute Le scepticisme philosophique Paris-Montreacuteal Bordas 1971 p 57 177 Sextus Empiricus Les Hipotiposes ou Instituitions Pirroniennes Traduzido do grego por Claude Huart Amsterdam Barbier MDCCXXV pp15-16

56

Segundo Montaigne a filosofia natildeo pode oferecer uma base consistente agrave moral

que sirva como garantia da felicidade humana O homem eacute convidado a procurar

alicerces mais seguros e consistentes fora da filosofia

ldquo[C] Il ne nous faut guiere non plus doffices de regles et de loix de vivre en nostre communauteacute quil en faut aux grues et formis en la leur Et neantmoins nous voyons quelles sy conduisent tres-ordonneacutement sans erudition Si lhomme estoit sage il prenderoit le vray pris de chasque chose selon quelle seroit la plus utile et propre agrave sa vierdquo178

Assim o homem estaacute impedido por uma incapacidade que tem a sua origem

sobretudo na razatildeo de determinar tudo aquilo que pode em termos morais servir-lhe

para a construccedilatildeo de uma vida tranquila O homem natildeo sabe encontrar o que lhe eacute

necessaacuterio O desacordo nestes assuntos eacute inerente agrave proacutepria natureza do homem tal

como foi descrita pelo autor da ldquoApologierdquo

Trata-se de um desacordo com consequecircncias preocupantes jaacute que se eacute de noacutes

que depende a organizaccedilatildeo dos nossos costumes metemo-nos numa enorme

confusatildeo179 Aludindo ao parecer de Soacutecrates Montaigne defende que a razatildeo aconselha

cada um a obedecer a lei de seu paiacutes180

Entretanto Montaigne questiona-se seraacute que ldquo[A] nostre devoir nrsquoa autre regle

que fortuite181 A resposta reflecte mais uma vez o relativismo do autor que afirma

que a verdade deve ter uma face universal e uniforme mas que reconhece ao mesmo

tempo que de facto o homem impedido pela razatildeo e pelos sentidos (considerados pela

filosofia tradicional como fonte do conhecimento da verdade) natildeo tem condiccedilotildees de

encontrar uma base moral no discurso racional

ldquo[A] La droiture et la justice si lhomme en connoissoit qui eust corps et veritable essence il ne lattacheroit pas agrave la condition des coustumes de cette contreacutee ou de celle lagrave ce ne seroit pas de la fantasie des Perses ou des Indes que la vertu prendroit sa forme Il nest rien subject agrave plus continuelle agitation que les loix Deacutepuis que je suis nay jay veu trois et quatre fois rechanger celles des Anglois noz voisins non seulement en subject politique qui est celuy quon veut dispenser de constance mais au plus important subject qui puisse estre agrave sccedilavoir de la religion Dequoy jay honte et despit dautant plus que cest une nation agrave laquelle ceux de mon quartier ont eu autrefois une si priveacutee accointance quil

178 Les Essais II 12 p 487 179 Cf Les Essais II 12 p 578 180 Cf Les Essais II 12 p 478 181 Les Essais II 12 p 578

57

reste encore en ma maison aucunes traces de nostre ancien cousinagerdquo182

Reflectindo acerca da situaccedilatildeo concreta que o rodeava isto eacute a guerra as

injusticcedilas e outros males (causados pelo proacuteprio homem) que caracterizavam a Franccedila

de entatildeo Montaigne tem consciecircncia de que seguir as leis do paiacutes183 que satildeo

produzidas pela razatildeo humana eacute algo bastante problemaacutetico

Como moralista Montaigne natildeo deseja fazer a apologia de uma ldquoanarquiardquo em

termos morais muito pelo contraacuterio como vimos defende a importacircncia da lei na vida

quotidiana O que ele pretende defender eacute que todo o sistema que resulta de um

emaranhado de reflexotildees intelectuais natildeo leva a nada pelo facto de que tudo o que a

razatildeo produz estaacute sujeito agrave incerteza tanto a verdade como a falsidade

Ao criticar todo este processo Montaigne quer ressaltar a ideia de que a razatildeo eacute

um estorvo importante para a dinacircmica de construccedilatildeo da justiccedila e das leis morais

Esta tese poderia levar a pensar que Montaigne eacute um pensador que natildeo acredita

na verdade Mas ao ler a sua obra damo-nos conta que eacute um autor apaixonado pela

verdade Ele nunca afirmou que a verdade estava fora de alcance Ele quer encontrar a

verdade A sua proacutepria atitude filosoacutefica pode ser caracterizada como uma perene busca

da verdade O que lhe eacute peculiar nesta busca eacute o facto de questionar profundamente tudo

aquilo que eacute construiacutedo arbitrariamente pela filosofia dogmaacutetica sobretudo as grandes

elaboraccedilotildees teoacutericas e os complicados coacutedigos legais que em geral natildeo respeitam as

contingecircncias da vida

Esta razatildeo eacute por conseguinte a grande responsaacutevel pela contiacutenua agitaccedilatildeo das

leis Neste sentido o cepticismo de Montaigne no domiacutenio da moral estaacute em profunda

sintonia com todo o projecto da ldquoApologierdquo Assim como natildeo aceita as certezas teoacutericas

dos filoacutesofos e pensadores profissionais em mateacuteria de metafiacutesica e em tantos outros

assuntos tradicionalmente caros agrave filosofia rejeita tambeacutem com toda a determinaccedilatildeo a

produccedilatildeo filosoacutefica que eacute apresentada como ciecircncia moral Montaigne natildeo se cansa de

questionar o papel daqueles pensadores que em nome da filosofia se encarregam de

teorizar sobre as leis morais e a justiccedila Podemos dizer que o autor classifica esta

actividade como algo dispensaacutevel agrave vida Neste contexto o autor ressalta o problema da

contingecircncia e da sua relaccedilatildeo com a lei

182 Les Essais II 12 p 579 183 ldquo[B] Car nous avons en France plus de loix que tout le reste du monde ensemble [hellip] [C] Il y a peu de relation nos actions qui sont en perpetuelle mutation avec les loix fixes et immobile Les plus desirables ce sont les plus rares plus simples et generalesrdquo (Les Essais III 13 p 1066)

58

ldquo[A] Que nous dira donc en ceste necessiteacute la philosophie Que nous suyvons les loix de nostre pays Cest agrave dire cette mer flotante des opinions dun peuple ou dun Prince qui me peindront la justice dautant de couleurs et la reformeront en autant de visages quil y aura en eux de changemens de passion Je ne puis pas avoir le jugement si flexiblerdquo184

Algumas doutrinas filosoacuteficas impelem-nos ao cumprimento das leis do paiacutes

Mas como eacute isto possiacutevel se estas leis satildeo condicionadas pelas paixotildees de quem as fez

Em seguida Montaigne refere-se agrave relatividade das leis civis

ldquo[A] Quelle bonteacute est-ce que je voyois hyer en credit et demain plus [C]et que le trajet dune riviere fait crime Quelle veriteacute que ces montaignes bornent qui est mensonge au monde qui se tient au delagrave185

Diante deste quadro podemos perguntar-nos seraacute possiacutevel ter uma moral que

garanta a justiccedila para todos fazendo uso da razatildeo e utilizando as leis humanas que satildeo

sempre condicionadas pelas paixotildees as quais por sua vez estatildeo sujeitas a de tantas

mudanccedilas A resposta de Montaigne eacute negativa e eacute dada de forma iroacutenica

ldquo[A] Mais ils sont plaisans quand pour donner quelque certitude aux loix ils disent quil y en a aucunes fermes perpetuelles et immuables quils nomment naturelles qui sont empreintes en lhumain genre par la condition de leur propre essence Et de celles lagrave qui en fait le nombre de trois qui de quatre qui plus qui moins signe que cest une marque aussi douteuse que le resterdquo186

Aleacutem de constatar a relatividade das leis civis Montaigne natildeo deixa de afirmar

que haacute tambeacutem uma niacutetida relatividade nas leis naturais

ldquo[A] ils sont dis-je si miserables que de ces trois ou quatre loix choisies il nen y a une seule qui ne soit contredite et desadvoeumle non par une nation mais par plusieursrdquo187

Outra tese da ldquoApologierdquo que merece ser lembrada eacute que a razatildeo humana ndash

intrometendo-se em toda a parte para dominar baralhar e confundir a face das coisas

segundo sua vaidade e inconstacircncia ndash quer que acreditemos que haacute leis naturais como as

que se observam nas outras criaturas Mas isto natildeo passa de um equiacutevoco em noacutes as leis

naturais estatildeo perdidas

Montaigne natildeo mede as palavras quando o que estaacute em jogo eacute em seu entender

alguma coisa de capital importacircncia A falta de honestidade e a falsidade satildeo atributos

dos pensadores e elaboradores de leis na sociedade Neste contexto criticaraacute

violentamente a posiccedilatildeo de Platatildeo por exemplo Observa que quando este pensador

184 Les Essais II 12 p 579 185 Les Essais II 12 p 579 186 Les Essais II 12 p 580 187 Les Essais II 12 p 580

59

grego se torna legislador adopta um estilo imperioso e afirmativo e mistura-lhe

ousadamente as mais fantasiosas invenccedilotildees tatildeo uacuteteis para persuadir o povo como

ridiacuteculas para se persuadir a si mesmo Conclui a sua criacutetica a Platatildeo da seguinte forma

ldquo[C] Et pourtant en ses loix il a grand soing quon ne chante en publiq que des poeumlsies desquelles les fabuleuses feintes tendent agrave quelque utile fin et estant si facile dimprimer tous fantosmes en lesprit humain que cest injustice de ne le paistre plustost de mensonges profitables que de mensonges ou inutiles ou dommageables Il dict tout destroussement en sa Republique que pour le profit des hommes il est souvent besoin de les piper 188 rdquo

Na ldquoApologierdquo Montaigne manifesta em vaacuterias ocasiotildees o seu

descontentamento relativamente agraves teses dos filoacutesofos gregos

Considerando as reflexotildees precedentes acerca da moral tudo leva a crer que

Montaigne considera que as leis verdadeiras relativas agrave moral devem ter um caraacutecter

universal e natildeo particular

Montaigne apresenta uma lista de costumes diversificados de povos muito

diferentes que tecircm as suas tradiccedilotildees proacuteprias e que satildeo muitas vezes contraditoacuterias entre

si Isto servir-lhe-aacute para justificar a tese de que natildeo haacute coisa em que o mundo seja tatildeo

diverso como os costumes e leis

ldquo[A] Telle chose est icy abominable qui apporte recommandation ailleurs comme en Lacedemone la subtiliteacute de desrober Les mariages entre les proches sont capitalement defendus entre nous ils sont ailleurs en honneur [hellip]rdquo

ldquo[A] Le meurtre des enfans meurtre des peres communication de femmes trafique de voleries licence agrave toutes sortes de voluptez il nest rien en somme si extreme qui ne se trouve receu par lusage de quelque nationrdquo189

ldquo[A] Les subjets ont divers lustres et diverses considerations cest de lagrave que sengendre principalement la diversiteacute dopinions Une nation regarde un subject par un visage et sarreste agrave celuy lagrave lautre par un autre

Il nest rien si horrible agrave imaginer que de manger son pere Les peuples qui avoyent anciennement ceste coustume la prenoyent toutesfois pour tesmoignage de pieteacute et de bonne affection [hellip]rdquo

ldquo[A] Licurgus considera au larrecin la vivaciteacute diligence hardiesse et adresse quil y a agrave surprendre quelque chose de son voisin [hellip]rdquo ldquo[A] Dionysius le tyran offrit agrave Platon une robe agrave la mode de Perse longue damasquineacutee et parfumeacutee Platon la refusa disant questant nay homme il ne

188 Les Essais II 12 p 512 189 Les Essais II 12 p 580

60

se vestiroit pas volontiers de robbe de femme mais Aristippus laccepta avec ceste responce que nul accoustrement ne pouvoit corrompre un chaste couragerdquo190

ldquo[A] Nous portons les oreilles perceacutees les Grecs tenoient cela pour une marque de servitude Nous nous cachons pour jouir de nos femmes les Indiens le font en public Les Scythes immoloyent les estrangers en leurs temples ailleurs les temples servent de franchiserdquo191

Para Montaigne as razotildees sobre as quais cada povo funda a sua moral satildeo uma

resposta a situaccedilotildees contingentes e natildeo visam dar resposta a situaccedilotildees mais universais

vaacutelidas para todos os homens sem excepccedilatildeo Villey chega a afirmar que Montaigne

ldquocherche une justice et il trouve des justices et des justices contradictoiresrdquo192

Aleacutem de constatar a ausecircncia de um acordo entre as vaacuterias concepccedilotildees no que

diz respeito aos costumes de cada povo Montaigne - fiel agrave criacutetica aos sistemas

filosoacuteficos que perpassa toda a ldquoApologierdquo - destaca tambeacutem o facto de que natildeo haacute

sequer acordo entre os filoacutesofos que se ocupam particularmente em reflectir acerca de

dois temas muito caros agrave filosofia

ldquo[A] Quant agrave la liberteacute des opinions philosophiques touchant le vice et la vertu cest chose ougrave il nest besoing de sestendre et ougrave il se trouve plusieurs advis qui valent mieux teus que publiez [C]aux faibles espritsrdquo193

Segundo Montaigne os proacuteprios homens do saber adoptam atitudes

consideradas inaceitaacuteveis pelo facto de a sociedade as condenar Os exemplos ilustram

esta situaccedilatildeo de uma forma muito niacutetida e revelam quanto a razatildeo humana pode fazer

para encontrar explicaccedilotildees legitimadoras para todas as realidades relativas aos costumes

morais

ldquo[A] De lagrave disent aucuns que doster les bordels publiques cest non seulement espandre par tout la paillardise qui estoit assigneacutee agrave ce lieu lagrave mais encore esguillonner les hommes agrave ce vice par la malaisance [hellip] On demanda agrave un philosophe quon surprit agrave mesme ce quil faisoit Il respondit tout froidement Je plante un homme [hellip]rdquo194

ldquo[C] Car Diogenes exerccedilant en publiq sa masturbation faisoit souhait en presence du peuple assistant qursquoil peut ainsi saouler son ventre en le frottant [hellip] Ces philosophes icy donnoient extreme prix agrave la vertu et refusoient toutes autres disciplines que la moralerdquo195

190 Les Essais II 12 p 581 191 Les Essais II 12 p 582 192 Villey op cit p 197 193 Les Essais II 12 p 582 194 Les Essais II 12 p 584 195 Les Essais II 12 p 585

61

A relatividade das leis e costumes e a impossibilidade de se chegar a acordo

entre os povos tendo em vista estabelecer leis universais leva Montaigne a uma espeacutecie

de denuacutencia da praacutetica dos encarregados pela execuccedilatildeo das leis que jaacute por si satildeo tatildeo

questionaacuteveis Isto torna a lei supostamente universal ainda mais sujeita agrave rejeiccedilatildeo

segundo Montaigne Vale a pena recordar aqui o exemplo de que Montaigne ouviu

falar de um juiz que quando deparava com um seacuterio conflito entre Bartoldo e Baldo196

ou com alguma mateacuteria agitada por muitas contradiccedilotildees escrevia na margem de seu

livro ldquoQuestatildeo para o amigordquo Montaigne observa que neste caso a verdade era tatildeo

confusa e debatida que o juiz em causa poderia favorecer a parte que bem entendesse e

conclui

ldquo[A] Les advocats et les juges de nostre temps trouvent agrave toutes causes assez de biais pour les accommoder ougrave bon leur semble A une science si infinie deacutependant de lauthoriteacute de tant dopinions et dun subject si arbitraire il ne peut estre quil nen naisse une confusion extreme de jugemens Aussi nest-il guiere si cler proceacutes auquel les advis ne se trouvent divers Ce quune compaignie a jugeacute lautre le juge au contraire et elle mesmes au contraire une autre fois Dequoy nous voyons des exemples ordinaires par ceste licence qui tasche merveilleusement la cerimonieuse authoriteacute et lustre de nostre justice de ne sarrester aux arrests et courir des uns aux autres juges pour decider dune mesme causerdquo197

Eacute interessante destacar este exemplo tambeacutem porque Montaigne tinha

conhecimentos profundos da ciecircncia do direito conforme reconhece a maioria dos

comentadores da sua obra Como magistrat tinha conhecimento de causas nas quais se

manifestava aquilo contra o qual se opunha Isto vem confirmar ainda mais a posiccedilatildeo de

Montaigne face agrave sua incansaacutevel busca de leis universais que natildeo estivessem sujeitas agraves

constantes mutaccedilotildees de que a razatildeo humanaldquo[B] un pot agrave deux anses qursquoon peut saisir

agrave gauche et agrave dextrerdquo eacute responsaacutevel e que [A] fornit drsquoapparence agrave divers effectsrdquo198

Ao abordar a problemaacutetica da moral na ldquoApologierdquo Montaigne chega a algumas

conclusotildees que natildeo se distanciam fundamentalmente de todo o projecto do ensaio Isto

eacute defende que haacute um relativismo significativamente claro relativamente agrave moral Villey

faz algumas afirmaccedilotildees que resumem claramente esta problemaacutetica ldquoIl nrsquoy a pas de

souverain bien il nrsquoy a pas de loi naturelle toute obligation moralle est fortuite

196 Trata-se de dois juristas do seacuteculo XIV que no seacuteculo XV ainda tinham grande influecircncia 197 Les Essais II 12 p 582 198 Les Essais II 12 p 581

62

contingenterdquo199 E tudo isto deve-se agrave criacutetica destruidora da razatildeo humana que

Montaigne apresenta no texto Para ele a razatildeo quer julgar tudo quer elaborar leis

universais sem mesmo ter condiccedilotildees para semelhante empreendimento A razatildeo como

vimos eacute multiforme inconstante infinita Ela avanccedila sempre mesmo torta mesmo

manca mesmo desancada tanto com a mentira como com a verdade A razatildeo eacute um

instrumento de chumbo e de cera alongaacutevel dobraacutevel e adaptaacutevel a todas as

perspectivas e a todas as medidas200 Segundo Montaigne a razatildeo eacute ldquo[B] un miserable

fondement de nos regles et qui nous represente volontiers une tres-fauce image des

choses comme vainement nous concluons aujourdrsquohui lrsquoinclination et la decrepitude du

monde par les arguments que nous tirons de nostre propre foiblesse et decadencerdquo201

Em suma Montaigne tem consciecircncia de que eacute impossiacutevel chegar a qualquer

determinaccedilatildeo no domiacutenio da moral atraveacutes da razatildeo Por isto assume uma atitude

ceacuteptica em face desta questatildeo

199 Villey op cit p198 200 Cf nota 122 201 Les Essais III 6 p 908

63

Consideraccedilotildees finais

A leitura da ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo permitiu-nos esclarecer aspectos

importantes da criacutetica demolidora da razatildeo humana levada a cabo por Montaigne

Eacute claro que uma motivaccedilatildeo importante que levou Montaigne a escrever a

ldquoApologierdquo foi a obra do teoacutelogo catalatildeo Sebond Theologia Naturalis Eacute importante

destacar que o proacuteprio tiacutetulo do ensaio ldquoApologiehelliprdquo isto eacute elogio defesa natildeo reflecte

exactamente o seu propoacutesito que eacute a defesa de Sebond A anaacutelise do texto permite

captar algo de paradoxal Montaigne dispotildee-se a defender este teoacutelogo catalatildeo num

ensaio no qual ele proacuteprio se distancia claramente da doutrina de Sebond Neste

sentido haacute um significativo distanciamento entre o tiacutetulo do ensaio e o seu conteuacutedo O

ponto de partida de Montaigne eacute uma espeacutecie de declaraccedilatildeo de que as ideias de Sebond

satildeo convincentes mas imediatamente a seguir muda de opiniatildeo partindo de sua

concepccedilatildeo negativa do homem e natildeo acredita nos supostos poderes da razatildeo Dito de

outro modo Montaigne natildeo sustentava o propoacutesito da Theologia naturalis isto eacute a

pretensatildeo de apoiar a crenccedila dos leitores convidando-os a fazer um esforccedilo de adaptaccedilatildeo

dos instrumentos naturais e humanos considerados como dons de Deus especialmente

a razatildeo pondo-os ao serviccedilo da feacute

Montaigne ldquoaplauderdquo a atitude de Sebond202 Mas imediatamente a seguir critica

o teoacutelogo catalatildeo atacando os vaacuterios argumentos filosoacuteficos presentes na sua obra Na

raiz da sua criacutetica estaacute o facto de estes argumentos se fundamentarem numa visatildeo

antropocecircntrica da supremacia do homem como criatura privilegiada da criaccedilatildeo o

homem por ser detentor da razatildeo diferentemente dos outros animais tem uma

finalidade uma perfeiccedilatildeo e uma dignidade que merece ser exaltada Montaigne natildeo

aceita esta visatildeo que norteia tanto a obra de Sebond como o pensamento de todos

aqueles que faziam apologia da dignitas hominis Denuncia a presunccedilatildeo ilusoacuteria do

homem Desta perspectiva utiliza vaacuterios relatos anedoacuteticos de animais para justificar a

sua posiccedilatildeo E a conclusatildeo principal a que o conduz este percurso eacute que o homem natildeo

estaacute nem acima nem abaixo do resto dos seres naturais203 Dito de outro modo a

consideraccedilatildeo de que unicamente o homem eacute possuidor da razatildeo natildeo tem qualquer

relevacircncia segundo a ldquoApologierdquo

202 Cf nota 1 203 Cf nota 31

64

Da batalha travada por Montaigne contra os vaacuterios opositores da obra de

Sebond podemos destacar a posiccedilatildeo criacutetica que ele assume face aos presunccedilosos

racionalistas que diziam que os argumentos de Sebond eram fracos Diante destes

doutos Montaigne iraacute sustentar a tese de que o homem natildeo sabe nada Haacute que salientar

no entanto que o teoacutelogo catalatildeo estava em ldquocomunhatildeordquo com o pensamento apologeacutetico

de sua eacutepoca isto eacute recorreu agrave razatildeo para provar certos dogmas Para Montaigne o

principal perigo vem daqueles que atribuem super poderes agrave razatildeo Eacute por isso tambeacutem

que Montaigne sustenta que a razatildeo deve submeter-se agrave autoridade divina Esta

submissatildeo natildeo exclui a razatildeo mas considera-a como um meio de compreender o motivo

da feacute Esta feacute deve ser concebida como uma expectativa da graccedila sem a qual nada eacute

possiacutevel ao homem Segundo Montaigne natildeo somos capazes de perceber que toda a

certeza estaacute vedada ao homem reduzido a si proacuteprio204

Podemos perceber que a utilizaccedilatildeo da razatildeo para explicar as realidades da

religiatildeo natildeo tem sentido na ldquoApologierdquo Montaigne natildeo tem necessidade de fazer

apologia da feacute205 A sua perspectiva eacute unicamente humana e isto vai estruturar toda a

sua reflexatildeo na ldquoApologierdquo Quando se refere agrave graccedila como dom sobrenatural nem o

absoluto nem a graccedila actuam no interior de sua visatildeo antropoloacutegica A graccedila eacute

apresentada por Montaigne como uma metamorfose

ldquo[C] Crsquoest agrave nostre foy Chrestienne non agrave sa vertu Stoique de pretendre agrave cette divine et miraculeuse metamorphoserdquo206

Montaigne descobre em si proacuteprio o pirronismo atraveacutes da volubiliteacute207 presente

nas vaacuterias atitudes dos filoacutesofos Pocircs em duacutevida as diversas opiniotildees dos filoacutesofos

denunciando-as como contraditoacuterias criticou as doutrinas filosoacuteficas dogmaacuteticas mas

natildeo assumiu nenhuma doutrina definida Montaigne assume o pirronismo como meacutetodo

e natildeo como um adepto cego para enfrentar os problemas presentes na ldquoApologierdquo

O pirronismo eacute assumido por Montaigne como modo de pensamento e como

meacutetodo de vida Este pirronismo permite-lhe ter em conta na ldquoApologierdquo a incerteza de

204 Cf Nota 93 205 O autor esclarece esta questatildeo da seguinte maneira na ediccedilatildeo posterior a 1588 ldquo[C] Je propose les fantasies humaines et miennes simplement comme humaines fantasies [hellip] matiere dopinion non matiere de foy ce que je discours selon moy non ce que je croy selon Dieu comme les enfants proposent leurs essais intruisables non instruisants dune maniere laiumlque non clericale mais tresminusreligieuse tousjoursrdquo (Les Essais I 56 p 323) 206 Les Essais II 12 p 604 207 Les Essais II 12 p 569

65

nossos juiacutezos a incerteza que todos sentem em si208 em relaccedilatildeo ao conhecimento O

pirronismo faz desaparecer as ilusotildees da certeza e como ele natildeo se envolve nas

questotildees da ldquoirresolution infinierdquo209 procura uma seguranccedila na tranquilidade do

espiacuterito que com a do corpo constitui o soberano bem210 Ao assumir a atitude

pirroacutenica Montaigne natildeo se transforma num homem passivo num ldquopeso mortordquo Muito

pelo contraacuterio sustenta que devemos sempre levantar questotildees reconhecer a nossa

ignoracircncia face agraves vaacuterias resoluccedilotildees tomadas como certas pela presunccedilosa razatildeo

humana duvidar sempre e ter uma atitude de busca incessante de novas ideias

Isto significa que Montaigne defende a tese de que somos convidados a

considerar que os conhecimentos adquiridos devem ser sempre sustentados como

provisoacuterios e natildeo como verdades absolutas Isto natildeo exclui evidentemente o facto de

que podemos apresentar as nossas visotildees prismaacuteticas das coisas e ateacute sustentaacute-las se

assim for necessaacuterio

Na ldquoApologierdquo Montaigne assume uma atitude pirroacutenica sui generis Demonstra

constantemente uma reaccedilatildeo contra os dogmatismos Ele eacute um pensador que estaacute sempre

em busca Nunca cessa de investigar Estaacute sempre em debate consigo mesmo Neste

aspecto pode-se dizer que assume uma atitude diferente do pirronismo grego o qual

defendia a tese da impossibilidade de qualquer juiacutezo Natildeo estaacute preocupado em encontrar

um ldquoroacutetulo de marca registadardquo para suas reflexotildees filosoacuteficas Ou seja natildeo tinha como

objectivo elaborar uma apologia de uma doutrina a ser seguida por adeptos

Montaigne apresenta os seus juiacutezos com a sua razatildeo criacutetica sem ter

necessariamente que defender a tese de que a razatildeo humana ndash instrumento flexiacutevel

recurvaacutevel e adaptaacutevel a qualquer forma211- eacute sempre o guia prudente e seguro de uma

conduta correcta e perfeita Montaigne procura demonstrar racionalmente - e aqui

reside em seu entender o uso positivo da razatildeo ndash que natildeo haacute essecircncia nem verdade

absoluta acerca do homem e que de algumas coisas sempre agrave mercecirc do poder do tempo

noacutes soacute observamos as aparecircncias

ldquo[A] Finalment il nrsquoy a aucune constante existence ny de nostre estre ny de celuy des objects [hellip] Nous nrsquoavons aucune communication agrave lrsquoestre [hellip]rdquo212

208 Cf Les Essais II 12 p 563 209 Cf Les Essais II 12 p 561 210 Cf Les Essais II 12 p 488 211 Cf Les Essais II 12 p 539 212 Les Essais II 12 p 601

66

Montaigne duvida de todos os conhecimentos humanos recebidos por autoridade

e em confianccedila (agrave credit) como se fossem religiatildeo e lei213 tais conhecimentos natildeo

passam de falsas evidecircncias do quotidiano E isto vale sobretudo para todos os tipos de

produccedilatildeo racional que satildeo consequecircncia da vaidade humana

Montaigne esforccedila-se por investigar as opiniotildees dos outros e isto motiva-o a

formular um pensamento mais pessoal preocupado com o que eacute justo e a expandir o

seu proacuteprio conhecimento relativo e precaacuterio As suas investigaccedilotildees natildeo satildeo dogmaacuteticas

e soacute o comprometem a ele proacuteprio Eacute um pensador que estaacute sempre em busca que natildeo

tem a presunccedilatildeo de querer saber tudo sobre todas as coisas Mas ao mesmo tempo

podemos dizer que eacute um pensador que descobriu num mundo marcado por tantas

conturbaccedilotildees graccedilas agraves suas proacuteprias experiecircncias uma consciecircncia real e soacutelida da sua

existecircncia concreta no mundo Este facto levou-o a assumir a atitude de natildeo querer

ensinar nem dirigir a vida de ningueacutem Vale a pena citar a este respeito um pequeno

trecho de um outro ensaio que Montaigne escreveu provavelmente na mesma eacutepoca da

ldquoApologierdquo e que reflecte claramente a posiccedilatildeo por ele assumida e que pode ser

classificada natildeo como a de um filoacutesofo profissional detentor de verdades que devem ser

ensinadas aos outros mas como a de algueacutem que estaacute sempre em busca e natildeo se inibe de

expressar as suas opiniotildees

ldquo[A] Je dy librement mon advis de toutes choses voire et de celles qui surpassent agrave ladventure ma suffisance et que je ne tiens aucunement estre de ma jurisdiction Ce que jen opine cest aussi pour declarer la mesure de ma veueuml non la mesure des chosesrdquo214

Montaigne renuncia a tarefa de querer provar atraveacutes da razatildeo humana aquilo

que estaacute em uacuteltima instacircncia no domiacutenio da feacute Ele eacute um homem que crecirc em Deus

ldquo[A] Il a laisseacute en ces hauts ouvrages le caractere de sa diviniteacute et ne tient quagrave nostre imbecilliteacute que nous ne le puissions descouvrirrdquo215

Uma quantidade importante de pessoas no mundo proclama a existecircncia de

Deus Mas este Deus natildeo pode ser conhecido racionalmente pelo homem

ldquoIl sen faut tant que nos forces conccediloivent la hauteur divine que des ouvrages de nostre createur ceux-lagrave portent mieux sa marque et sont mieux siens que nous entendons le moinsrdquo216

213 Cf Les Essais II 12 p 539 214 Les Essais II 10 p 410 215 Les Essais II 12 pp 446-447 216 Les Essais II 12 p 499

67

Relativamente agrave moral Montaigne sustenta a tese de que a razatildeo humana natildeo

tem o poder de determinar quais satildeo os bons e os maus costumes as boas e as maacutes leis e

normas para qualquer grupo social

Diante da leitura que fizemos da ldquoApologierdquo onde Montaigne apresenta uma

criacutetica destruidora agrave razatildeo tirando-lhe quase todos os atributos recebidos durante toda a

histoacuteria da filosofia podemos portanto perguntar-nos qual eacute o papel da razatildeo humana

A resposta a esta questatildeo eacute muito complexa A criacutetica montaigneana agrave razatildeo natildeo se

limitou a menosprezar a ciecircncia (filosofia) a ldquoteologia racionalistardquo e as suas pretensotildees

de querer dar explicaccedilotildees sobre questotildees de feacute e de religiatildeo atacou tambeacutem

profundamente o espiacuterito humano negando-lhe capacidades que na maioria das vezes

satildeo atributos da pretensatildeo humana Para ilustrar mais claramente esta ideia seraacute

interessante fazer referecircncia a uma passagem ceacutelebre do livro III na qual Montaigne

conta uma pequena histoacuteria de um escravo chamado Esopo

Conta-nos o autor que Esopo estava exposto agrave venda com dois outros escravos

Um comprador indagou de um deles que sabia fazer este para se valorizar contou mil

maravilhas (monts et merveilles) O segundo disse mais ainda Quando chegou a sua

vez Esopo respondeu ldquonada eles jaacute pegaram em tudo eles sabem tudordquo Montaigne

observa que verificou o mesmo nas escolas de filosofia A arrogacircncia o orgulho (fierteacute)

dos que atribuiacuteram ao espiacuterito humano a capacidade de tudo saber levou os outros a

afirmar por despeito ou contradiccedilatildeo que o espiacuterito natildeo era capaz de coisa alguma

Estes exaltavam ao extremo a ignoracircncia tal como aqueles glorificavam absurdamente a

ciecircncia De modo que natildeo haacute como negar que o homem eacute imoderado em tudo e soacute cessa

quando forccedilado pela capacidade de ir aleacutem217

Em suma a ldquoApologierdquo nos apresenta um questionamento profundo em relaccedilatildeo

a todo o tipo de conhecimento fundado na razatildeo Arruiacutena os fundamentos deste

conhecimento produzido pelos homens do saber doutos e filoacutesofos antigos A estes

ldquosaacutebiosrdquo em geral que pensavam ser possuidores da verdade Montaigne dirige uma

criacutetica iroacutenica

laquo [C] Fiez vous agrave vostre philosophie vantez vous davoir trouveacute la feve au gasteau [hellip] raquo218

217 Cf Les Essais II 11 p 1035 218 Les Essais II 12 p 516 Esta citaccedilatildeo faz referecircncia agrave tradiccedilatildeo de na Epifania compartilhar um bolo contendo uma fava quem recebesse a fatia laquo premiada raquo era chamado laquo o rei da fava raquo Tratava-se de algo que figuradamente garantia uma espeacutecie de vantagem

68

Bibliografia

1 - Obras de Michel de Montaigne

Les Essais eacutedition conforme au texte de lrsquoexemplaire de Bordeaux par Pierre Villey

reacuteeacutediteacute sous la direction et avec un preacuteface de V-L Saulnier augmenteacute en 2004 drsquoune

preacuteface et drsquoun suppleacutement de Marcel Conche Paris QuadriguePUF 2004 (ediccedilatildeo de

referecircncia no nosso estudo)

Essais Livre second eacutedition preacutesenteacutee eacutetablie et annoteacutee par Emmanuel Naya

Delphine Reguig-Naya et Alexandre Tarrecircte Paris () Gallimard 2009

2 Estudos sobre Montaigne

AA VV Le dictionnaire des Essais de Montaigne Paris ( ) Eacuteditions Leacuteo Scheer

2011

AA VV Montaigne et la reacutevolution Philosophique du XVI siegravecle Bruxelles Eacuteditions

de lrsquoUniversiteacute de Bruxelles 1992

AUREacuteLIO Diogo Pires Montaigne e Espinosa toleracircncia ceacuteptica e toleracircncia

racionalista In O Cepticismo e Montaigne Rui Bertrand Romatildeo (org) Covilhatilde

Universidade da Beira Interior 2003 pp 141-160

BIRCHAL Telma de Souza O eu nos Ensaios de Montaigne Belo Horizonte Editora

UFMG 2007

BIGNOTTO Newton ldquoMontaigne Renascentistardquo Kriterion Revista do Departamento

de Filosofia da UFMG Belo Horizonte XXXIII 86 agodez 1992 p 29-41

BUTOR Michel Essais sur les essais Paris Gallimard 1968

CATALAN Eacutetienne Eacutetudes sur Montaigne analyse de sa philosophie Paris Hellier

Fregraveres Librairie Religieuse 1846

CHAMPION Edme Introduction aux Essais de Montaigne Paris Armand Colin amp Cie

Eacutediteurs 1900

COMPAGNON Antoine Nous Michel de Montaigne Paris Seuil 1980

CONCHE Marcel Montaigne et la philosophie Paris Puf 1996

69

_____________ Montaigne ou la conscience heureuse Paris PUF 2009

DUARTE Tiago Barros Skepticism and religion in Michel de Montaigne two

interpretations of apology for Raymond Sebond Intuitio Porto Alegre V2 ndash Nordm 3

Novembro 2009 pp 298-307

FILHO Celso Martins Azar Montaigne e Soacutecrates cepticismo conhecimento e

virtude In Revista Portuguesa de Filosofia Tomo LVIII Fasc 4 2002

FRIEDRICH Hugo Montaigne Traduzido do alematildeo por Robert Rovini Paris

Gallimard 1967

GIOCANTI Sylvia Montaigne et les becirctes La becirctise et lrsquoanimal dans les Essais de

Montaigne Universiteacute de Toulouse-II Le Mirail UMR 5037 (ENS-Lyon) 2011

HENDRICK Philip Montaigne and Sebond scepticism faith and imagination In O

Cepticismo e Montaigne Rui Bertrand Romatildeo (org) Covilhatilde Universidade da Beira

Interior 2003 pp 83-102

JEANSON Franccedilois Montaigne par lui-mecircme Paris Seuil 1951

LACOUTURE Jean Montaigne agrave cheval (Montaigne a cavalo) Traduzido por F

Rangel Rio de JaneiroSatildeo Paulo Editora Record 1998

LANUSSE Maxime Montaigne Paris Lecegravene Oudin et Cie Eacutediteurs 1895

LEVEAUX Alphonse Eacutetude sur les Essais de Montaigne Paris Henri Plon

Imprimeur-Eacutediteur 1870

MATHIEU-CASTELLANI Gisegravele Montaigne ou la veacuteriteacute du mensonge Genegraveve

Droz 2000

MONSIEUR L Le chistianisme de Montaigne Paris Imprimerie de Demonville 1819

_______ Montaigne lrsquoeacutecriture de lrsquoessai Paris PUF 1988

NAKAM Geacuteranrd Montaigne et son temps Paris Gallimard 1993

RIGOLOT Franccedilois Le texte de la renaissance des rheacutetoriqueurs agrave Montaigne

Genegraveve Droz 1982

_______ Les meacutetamorphoses de Montaigne Paris PUF 1988

RIVELINE Maurice Montaigne et lrsquoamitieacute Paris Librairie Feacutelix Alcan 1939

70

71

ROMAtildeO Rui Bertrand A apologia na balanccedila a reinvenccedilatildeo do pirrorismo na

Apologia de Raimundo Sabunde de Michel de Montaigne Lisboa Imprensa Nacional

Casa da Moeda 2007

SANTI Pedro Luiz Ribeiro de Montaigne e a reflexatildeo moral no seacuteculo XVI In Revista

Olhar ano 04 nordm 7 jan-jun 03 pp 76-85

STAROBINSKI Jean Montaigne en mouvement Paris Gallimard 1982

STROWSKI Fortunat Montaigne Paris Feacutelix Alcan Eacutediteurs 1906

VERDAN Andreacute Le scepticisme philosophique Paris-Montreacuteal Bordas 1971

VILLEY Pierre Les sources et lrsquoeacutevolution des essais de Montaigne Tome Premier

Paris Librairie Hachete 1908

______ Les sources et lrsquoeacutevolution des essais de Montaigne Tome Second Paris

Librairie Hachete 1908

______ Montaigne devant la posteacuteriteacute Paris Ancienne Librairie Furne ndash Boivin et Cie

Eacutediteurs 1935

WEILLER Maurice Pour connaitre la penseacutee de Montaigne Paris Bordas 1948

3 ndash Outras obras citadas

ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Livro I e II Traduccedilatildeo do grego por Vicenzo Coceo

Coleccedilatildeo Os Pensadores Satildeo Paulo Abril S A Cultural 1984

CASSIRER Ernst An essay on man Traduccedilatildeo portuguesa de Carlos Branco Ensaio

sobre o homem Lisboa Guimaratildees Editores 1995

Nouveau Testament Traduction Oecumeacutenique de la Bible Paris PUF 1977

SEXTUS EMPIRICUS Les hipotiposes ou instituitions pirroniennes Trad do grego

por Claude Huart Amsterdam Barbier MDCC XXV

AA VV Histoacuteria das sociedades das sociedades modernas agraves sociedades atuais Rio

de Janeiro Ao Livro Teacutecnico 1983

  • IacuteNDICE
Page 10: MARÇO DE 2012

apresenta como um pensador humanista que viveu numa altura em que a visatildeo

antropocecircntrica era dominante No entanto ele procurou superar esta concepccedilatildeo de uma

maneira muito particular A concepccedilatildeo antropoloacutegica claacutessica renascentista enaltecia

radicalmente a ldquodignitas hominisrdquo4 colocando o homem no centro do universo

Montaigne assume uma postura significativamente diferente do espiacuterito humanista

renascentista despreza o tema da dignitas hominis e dedica-se agrave investigaccedilatildeo das coisas

concretas da vida

O humanismo de Montaigne ao contraacuterio do humanismo dominante alicerccedila-se

na ldquomiseria hominisrdquo5 Parte de plena consciecircncia dos limites da razatildeo humana no

sentido de que as suas faculdades natildeo tecircm condiccedilotildees para transcender estes mesmos

limites A razatildeo o grande orgulho do homem eacute concebida como uma estrateacutegia de

racionalizaccedilatildeo dos vaacuterios elementos da vida (costumes crenccedilas etc) que procura

transformar atribuindo-lhe uma verdade que natildeo consegue transcender a contingecircncia

Potildee-se assim em destaque ateacute que ponto a posiccedilatildeo de Montaigne contrasta com a visatildeo

de ldquodignitas hominisrdquo acima referida a mais comummente assumida na sua eacutepoca Para

ele o homem soacute pode ser o que eacute e imaginar de acordo com a sua medida

ldquo[C] Tout contentement des mortels est mortel [A] La reconnoissance de nos parens de nos enfants et de nos amis si elle nous peut toucher et chatouiller en lrsquoautre monde si nous tenons encore agrave un tel plaisir nous sommes dans les commoditez terrestres et finies Nous ne pouvons dignement concevoir la grandeur de ces hautes et divines promesses si nous les pouvons aucunement concevoir pour dignement les imaginer il

4 Para ilustrar as principais caracteriacutesticas desta concepccedilatildeo vale a pena citar um texto muito conhecido de um dos maiores representantes do humanismo renascentista Pico della Mirandola O texto em causa pode ser considerado como uma espeacutecie de manifesto do pensamento humanista renascentista em geral Pico exalta o homem entre todos os seres da natureza e dos ceacuteus como um ser potencialmente capaz de auto-criar-se de auto-projectar-se e de modelar-se a si mesmo com liberdade Pico ldquocoloca na boca de Deusrdquo algumas palavras endereccediladas imaginativamente ao homem receacutem-criado (Adatildeo) ldquo[hellip] Medium te munde posui ut circumspiceres inde commodius quicquid est in mundo Nec te caelestem neque terrenum neque mortalem neque immortalem fecimus ut tui ipsius quasi arbitrarius honorarius que plastes et fictor in quam malueris tute formam effingas Poteris in inferiora quae sunt bruta degenerare poteris in superiora quae sunt divina ex tui animi sententia regenerarirdquo (Coloquei-te no meio do mundo para que daiacute possas olhar melhor tudo o que haacute no mundo Natildeo te fizemos celeste nem terreno nem mortal nem imortal a fim de que tu aacuterbitro e soberano artiacutefice de ti mesmo te plasmasses e te informasses na forma que tivesses seguramente escolhido Poderaacutes degenerar ateacute aos seres que satildeo as bestas poderaacutes regenerar-te ateacute agraves realidades superiores que satildeo divinas por decisatildeo do teu acircnimo) In Pico de la Mirandola Giovanni Oratio de Hominis Dignitate Ediccedilatildeo bilingue Traduccedilatildeo e introduccedilatildeo de Maria de Lurdes Sirgado Ganho Lisboa Ediccedilotildees 70 2001 pp 56-57) 5Para uma apresentaccedilatildeo sinteacutetica e clara deste tema pode-se consultar Friedrich Hugo Montaigne Traduzido do alematildeo por Robert Rovini Paris Gallimard 1967 sobretudo as paacuteginas 133-136 Nesta mesma perspectiva na obra de Rui Bertrand Romatildeo A Apologia na balanccedila a reinvenccedilatildeo do pirronismo na Apologia de Raimundo Sabunde de Michel de Montaigne Lisboa Imprensa Nacional Casa da Moeda 2007 haacute uma reflexatildeo que merece ser lida (pp 79-82)

10

faut les imaginer inimaginables indicibles incomprehensibles [C] et parfaictement autres que celles de nostre miserable experiencerdquo6

Constatando esse limite da razatildeo humana Montaigne combate decididamente as

concepccedilotildees da ldquodignitas humanisrdquo que tecircm como escopo transformar o homem no fim

uacuteltimo da natureza Montaigne ao voltar-se para o homem concreto ao rebaixaacute-lo e

tiraacute-lo do seu pedestal na ldquoApologierdquo assume uma atitude ceacuteptica entendida como

uma forma de pensamento capaz de seguir a mudanccedila e de rejeitar ao mesmo tempo a

pretensatildeo do homem de se considerar por via da razatildeo no centro do universo

Cabe entatildeo perguntar seraacute que o homem ocupa realmente um lugar central nos

Essais A resposta a esta questatildeo eacute expressa de maneira bastante niacutetida na proacutepria

obra Friedrich no seu conhecido trabalho sobre Montaigne afirma

ldquo[A] On peut ouvrir les Essais ougrave lrsquoon veut toujours ils traitent de lrsquohommerdquo7

Haacute muitos outros temas desenvolvidos nos Essais Basta lanccedilar um raacutepido olhar

sobre os tiacutetulos dos vaacuterios ensaios que compotildeem os trecircs livros da obra para constatar a

quantidade enorme de assuntos tratados por Montaigne

Na sua busca incessante de resposta agrave questatildeo central antes referida merece ser

destacado o contacto de Montaigne com a obra de Sebond Theologia Naturalis que seraacute

a base da ldquoApologierdquo Entre muitas outras questotildees desenvolvidas nesta obra o teoacutelogo

catalatildeo tem como objectivo importante responder agrave questatildeo o que eacute o homem Citando

o proacuteprio Sebond Rui Bertrand Romatildeo afirma que haacute uma ideia baacutesica de ordem

hieraacuterquica observada na scala naturale em todos os seus 4 degraus

ldquoNo inferior estatildeo as coisas apenas providas de ser as coisas minerais no segundo as que tecircm ser e vida as vegetais no terceiro as animais em que ao ser e agrave vida se juntam os sentidos no uacuteltimo encontra-se a criatura humana acima da qual natildeo haacute na natureza nenhum outro ser pois o homem possui as qualidades de todas as demais criaturas simultaneamente e em conjunto tendo aleacutem delas a razatildeo e o livre-arbiacutetrio [hellip]rdquo8

Continua o autor mais adiante

ldquo[hellip] A caracteriacutestica dominante da teologia de Sebond consiste precisamente no lugar privilegiado que nela ocupa a referecircncia do homem natildeo apenas como objecto de conhecimento mas como meio da

6 Les Essais II 12 p518 7 Friedrich op cit p 105 8 Romatildeo Rui Bertrand op cit p 90

11

obtenccedilatildeo deste A reflexatildeo antropoloacutegica polariza o seu pensamento filosoacutefico e lhe contamina o sistema teoloacutegicordquo9

Eacute importante destacar aqui uma ideia desenvolvida por Ernst Cassirer na sua

obra Ensaio sobre o Homem10 Segundo este autor a questatildeo acerca do homem no

periacuteodo renascentista depara-se com a descoberta de um novo instrumento de

pensamento entra em cena o espiacuterito cientiacutefico no sentido moderno da palavra O que

agora se procura eacute uma teoria geral do homem baseada em observaccedilotildees empiacutericas e em

princiacutepios loacutegicos gerais A nova cosmologia o sistema heliocecircntrico copernicano

passa a ser a uacutenica base satilde e cientiacutefica para uma nova antropologia Nem a metafiacutesica

claacutessica nem a religiatildeo (com a sua estrutura teoacuterica fundada na teologia medieval)

estavam preparadas para esta tarefa lembra o autor Estas duas cosmologias concebem

o universo como uma ordem hieraacuterquica em que o homem ocupa o lugar mais alto A

pretensatildeo humana de ser o centro do universo perdeu o seu fundamento Cassirer afirma

ainda que o sistema de Copeacuternico se tornou um dos mais fortes instrumentos do

cepticismo filosoacutefico que se desenvolveu no seacuteculo XVI

Montaigne sendo um pensador livre que conseguiu libertar-se da concepccedilatildeo

antropoloacutegica medieval e renascentista tambeacutem natildeo necessitou de recorrer agraves ideias

cientiacuteficas vigentes na altura da redacccedilatildeo dos Essais Isto natildeo significa que tenha

ignorado por completo a teoria heliocecircntrica de Copeacuternico mas sim que como escreve

Conche

ldquoIl nrsquoa pas eu besoin de Copernic pour trouver ridicule la preacutetension de lrsquohomme de se faire centre du cosmos11

Antes de iniciar o seu longo relato (de mais ou menos uma meia centena de

paacuteginas) no qual compara os homens aos animais Montaigne faz uma afirmaccedilatildeo de

capital importacircncia que serve como uma espeacutecie de conclusatildeo antecipada daquilo que

afirma negativamente sobre o homem e sua relaccedilatildeo com o universo

ldquo[A] La presomption est nostre maladie naturelle et originelle La plus calamiteuse et fraile de toutes les creatures crsquoest lrsquohomme et quant et quant la plus orgueilleuse Elle se sent et se void logeacutee icy parmy la bourbe et le fient du monde attacheacutee et cloueacutee agrave la pire plus morte et croupie parti de lrsquounivers au dernier estage du logis et le plus esloigneacute de la voute celeste avec les animaux de la pire condition des trois (Les aeacuteriens les aquatiques et les terrestres) et se va plantant par

9 Idem p 113 10 Cassirer Ernst An essay on man Traduccedilatildeo portuguesa de Carlos Branco Ensaio sobre o homem Lisboa Guimaratildees Editores 1995 p24 11 Conche Marcel Montaigne et la philosophie Paris Puf 1996 p 7

12

imagination au dessus du cercle de la Lune et ramenant le ciel soubs ses pieds Crsquoest par la vaniteacute de cette mesme imagination qursquoil srsquoegale agrave Dieu qursquoil srsquoattribue les conditions divines qursquoil se trie soy mesme et separe de la presse des autres creatures taille les parts aux animaux ses confreres et compaignons et leur distribue telle portion de facultez et de forces que bon luy semble Comment cognoit il par lrsquoeffort de son intelligence les branles internes et secrets des animaux par quelle comparaison drsquoeux agrave nous conclue il la bestise qursquoil leur attribue [C] Quand je me joueuml agrave ma chatte qui sccedilait si elle passe son temps de moy plus que je ne fay drsquoellerdquo12

O homem quer ser senhor de todo o universo A sua atitude de querer ser uma

excepccedilatildeo na natureza natildeo passa de uma atitude ilusoacuteria O homem eacute segundo

Montaigne uma criatura como as outras que pode ser diferenciada natildeo pela capacidade

de raciocinar mas apenas pela presunccedilatildeo de querer destacar-se orgulhosamente

tornando-se ldquoo todo-poderosordquo face agraves outras criaturas Esta sua pretensatildeo de querer ser

a uacutenica criatura que pode conhecer e dominar o universo eacute radicalmente contestada por

Montaigne na ldquoApologierdquo Eacute com muita clarividecircncia que Conche reflectindo sobre

este tema afirma

ldquoOn voit pourquoi Montaigne srsquoefforce de retrouver chez lrsquoanimal ldquointelligencerdquo ldquodiscreacutetionrdquoldquojugementrdquoldquoratiocinationrdquo capaciteacute de ldquoconsulterrdquo de ldquoconcluirrdquo ldquoscience et prudencerdquo 13

Que tipo de competecircncia nossa natildeo reconhecemos nos actos dos animais Esta

questatildeo fundamental leva Montaigne a apresentar os seus relatos anedoacuteticos14 O

interesse da sua apologia dos animais eacute ldquo[hellip] paradoxalment lrsquohomme Montaigne

recherche lrsquohomme dans lrsquoanimal [hellip] crsquoest pour lutter contre lrsquoanthropocentrismerdquo15

Montaigne inicia a sua exposiccedilatildeo perguntando-se

ldquo[A] Est-il police regleacutee avec plus drsquoordre diversifieacutee agrave plus de charges et drsquooffices et plus constamment entretenueuml que celle des mouches agrave mielrdquo16

E faz questatildeo tambeacutem de descrever o engenho das andorinhas ao construiacuterem os

seus alojamentos e das aranhas ao confeccionarem as suas teias Diante destas obras

destes pequeninos animais Montaigne observa

12 Les Essais II 12 p 452 13 Conche Marcel Montaigne et la philosophie Paris Puf 1996 p 9 14 ldquoFidegravele aux proceacutedeacutes de compilation de son temps Montaigne accumule les exemples emprunteacutes agrave Pline agrave Plutarque agrave Arrien agrave Aulu-Gelle agrave Lucregravece agrave Virgile agrave Sextus Epiricusrdquo (cf Weiler Maurice Pour connaitre la penseacutee de Montaigne Bordas 1948 p 38) 15 Giocanti Sylvia Montaigne et les becirctes la becirctise et lrsquoanimal dans Les Essais de Montaigne Universiteacute de Toulouse 2011 p 1 16 Les Essais II 12 pp 454-455

13

ldquo[A] Nous reconnoissons assez en la pluspart de leurs ouvrages combien les animaux ont drsquoexcellence (supeacuterioriteacute) au dessus de nous et combien nostre art est foible agrave les imiterrdquo17

Quanto agrave capacidade de comunicaccedilatildeo Montaigne afirma que os animais

possuem este atributo Falamos com os catildees18 e eles respondem-nos Eacute evidente que

utilizamos uma outra linguagem para conversarmos com eles Montaigne observa que

tambeacutem entre noacutes humanos haacute diferenccedilas de linguagem de acordo com a diferenccedila de

regiotildees Estas diferenccedilas tambeacutem se encontram nos animais da mesma espeacutecie19

Segundo o nosso autor haacute certamente uma diferenccedila de ordem e de grau entre os

homens e os animais contudo ldquo[A] crsquoest soubs le visage drsquoune mesme naturerdquo20 Ao

constatar a peculiaridade do homem em face das outras criaturas Montaigne destaca o

facto de que o homem eacute detentor da liberdade de imaginaccedilatildeo No entanto

ldquo[A] ce desresglement de penseacutees luy representant ce qui est ce qui nrsquoest pas et ce qursquoil veut le faux et le veritable crsquoest un advantage qui luy est bien cher vendu et duquel il a bien peu agrave se glorifier car de lagrave naist la souce principale des maux qui le pressent pecheacute maladie irresolution (inconstance) trouble desespoirrdquo 21

Citando Lucreacutecio22 Montaigne deixa transparecer que o homem se prejudica a si

mesmo porque natildeo se manteacutem dentro dos limites da organizaccedilatildeo da natureza que se

manifesta de uma maneira inteligiacutevel e agraves vezes ateacute hostil submetendo o homem agrave

necessidade de leis que natildeo lhe satildeo suficientemente claras23

17 Les Essais II 12 p455 18 Les Essais II 12 p 458 19 Les Essais II 12 pp 458-459 20 Les Essais II 12 p459 21 Les Essais II 12 p 460 22ldquo[B] ldquores quaeque suo ritu procedit et ommes Foedere naturae certo discrimina servantrdquo (Chaque chose se deacuteveloppe agrave sa maniegravere et toutes conservent les diffeacuterences eacutetablies par lrsquoordre immuable de la nature) Cf Les Essais II 12 p 459 23 Expressando a sua visatildeo da natureza Montaigne observa que ao considerar que ela nos criou diferentes dos outros animais isto eacute nus sobre a terra nua atados cercados natildeo tendo com que armar-nos cobrir-nos [hellip] somos tentados a chamaacute-la de ldquotregraves injuste maracirctrerdquo Mas isto natildeo eacute assim A nossa organizaccedilatildeo do mundo natildeo eacute tatildeo disforme e desregrada A natureza abraccedilou universalmente todas as suas criaturas e natildeo haacute nenhuma que ela tenha provido plenamente de todos os meios necessaacuterios para a conservaccedilatildeo da existecircncia ldquo[C] crsquoest une mesme nature qui roule son coursrdquo(cf Les Essais II12 p467) Reflectindo sobre o tema da natureza nos Essais Pierre Villey afirma que ela se opotildee essencialmente agrave razatildeo humana e eacute natural tudo o que a razatildeo natildeo contaminou Afirma Villey ldquo[hellip] crsquoest chez les animaux et chez les sauvages qursquoon trouve les traces les moins corrompues de la nature Lrsquoeacutetat de nature dans cette conception radicale crsquoest lrsquoeacutetat de sauvagerie [hellip] Lrsquoadmiration pour les andiens crsquoest la forme paradoxale que prend chez lui de temps agrave autre son principe drsquoimitation de la naturerdquo (In Villey Pierre Les sources et lrsquoeacutevolution des essais de Montaigne - Tome second Paris Librairie Hachete 1908 p228) Isto natildeo quer dizer que devamos imitar os indiacutegenas por exemplo em todos os seus costumes tradiccedilotildees etc

14

Continuando a apologia dos animais Montaigne sugere que concebamos que os

animais natildeo obedecem a instintos de uma forma cega O relato que apresenta da raposa

da Traacutecia24 eacute um dos seus exemplos claacutessicos neste sentido Antes de se arriscar sobre a

aacutegua gelada a raposa aproxima o ouvido do gelo para ouvir de que profundidade sobre

o murmuacuterio da aacutegua a correr em baixo isto eacute ela ldquoraciocinardquo como fariacuteamos noacutes em

idecircnticas circunstacircncias o que faz barulho mexe o que mexe natildeo estaacute gelado o que natildeo

estaacute gelado eacute liacutequido e o liacutequido cede sob o peso Segundo Montaigne atribuir isto

simplesmente a uma vivacidade do sentido da audiccedilatildeo sem raciociacutenio e sem conclusatildeo

eacute uma quimera inconcebiacutevel

Segundo Montaigne natildeo eacute soacute o homem que sabe escolher o que eacute bom e o que

natildeo eacute bom para a sua vida e sobretudo para o socorro nas doenccedilas atraveacutes da ciecircncia e

do conhecimento construiacutedos por arte e por raciociacutenio

ldquo[A] Et quand nous voyons les chevres de Candie si elles ont receu un coup de traict aller entre un million drsquoherbes choisir le dictame pour leur guerison et la tortue quand elle a mangeacute de la vipere chercher incontinent de lrsquooriganum pour se purger et le dragon fourbir et esclairer ses yeux avecques du fenouil les cigouignes se donner elles mesmes des clysteres agrave tout de lrsquoeau de marine [hellip] pourquay ne disons nous de mesmes que crsquoest science et prudencerdquo25

Eacute faacutecil ver aqui quanto Montaigne deseja que o homem reconheccedila que os

animais possuem tambeacutem ciecircncia e sabedoria Em seu entender os animais tambeacutem satildeo

capazes de ser instruiacutedos agrave moda humana

ldquo[A] Les merles les corbeaux les pies les parroquets nous leur aprenons agrave parler [hellip] ils ont un discours au dedans qui les rend ainsi disciplinables et volontaires agrave aprendrerdquo26

Muitos animais aproximam-se da capacidade do homem e isto leva Montaigne a

afirmar

ldquo[A] qursquoil se trouve plus de difference de tel homme agrave tel homme que de tel animal agrave tel hommerdquo27

Podemos encontrar na ldquoApologierdquo muitos outros exemplos em que Montaigne

defende a ideia de que os animais possuem diversas capacidades semelhantes agraves dos

humanos28 Uma vez numerados todos estes atributos dos animais Montaigne afirma

24 Les Essais II 12 p 460 25 Les Essais II 12 pp 462-463 26 Les Essais II 12 p 463 27 Les Essais II 12 p 466

15

ldquo[A] La maniegravere de naistre drsquoengendrer nourrir agir mouvoir vivre et mourir des bestes estant si voisine de la nostre tout ce que nous retranchons de leurs causes motrices et que nous adjoustons agrave nostre condition au dessus de la leur cela ne peut aucunement partir du discours de nostre raisonrdquo29

Pierre Villey ao reflectir sobre estas comparaccedilotildees suscita uma questatildeo

relevante que natildeo eacute possiacutevel ignorar

ldquo[hellip] quand il exalte lrsquointeligence des animaux on peut se demander ce qursquoil en pense au justerdquo30

Natildeo querendo entrar na discussatildeo deste assunto - ateacute porque o proacuteprio

Montaigne natildeo o fez - eacute importante notar que se estes relatos montaigneanos fossem

tomados agrave letra natildeo nos faltariam motivos de troccedila Poderiacuteamos duvidar de muitas

afirmaccedilotildees acerca dos animais apresentadas por ele Fazendo um esforccedilo por deixar agrave

margem os exageros o humor e a liberdade literaacuteria do autor ndash que tecircm como objectivo

rebaixar o homem recolocando-o entre os animais e mostrando-lhe que a sua razatildeo

grande motivo de orgulho natildeo lhe garante um lugar no topo da piracircmide das criaturas ndash

o que importa destacar eacute que Montaigne pretende acentuar uma grande semelhanccedila

entre os homens e os animais

ldquo[A] Nous ne sommes ny au dessus ny au dessoubs du reste tout ce qui est sous le ciel dit le sage court une loy et fortune pareille [B] Indupedita suis fatalibus omnia vinclis (Toutes les choses sont enchaineacutes par les liens de leur propre destineacutee)rdquo31

28 Vejamos resumidamente outros atributos dos animais destacados pelo autor os catildees que servem aos cegos tanto nos campos como nas cidades catildees que representavam papeacuteis no teatro (p463) bois que serviam nos jardins reais de Susa (p464) nos espectaacuteculos de Roma viam-se elefantes treinados em movimentar-se e em danccedilar (p465) a pega que imitava com a voz tudo o que ouvia (p464) os elefantes que tecircm alguma participaccedilatildeo religiosa (p468) formigas que tecircm um jeito muito especial de comunicaccedilatildeo muacutetua (p469) o ouriccedilo que prevecirc a direcccedilatildeo do vento (p469) o camaleatildeo e o polvo que mudam de cor conforme a ocasiatildeo (p469) o voo dos paacutessaros que eacute resultado natildeo apenas da organizaccedilatildeo natural mas tambeacutem do entendimento consentimento e raciociacutenio (p469) os animais que servem seus donos sabem amaacute-los defendecirc-los (p461) o catildeo o cavalo sabem prezar amizade (p471) os animais satildeo muito mais regrados do que noacutes e se contecircm com muito mais moderaccedilatildeo nos limites que a natureza nos prescreveu (p472) os animais natildeo promovem a guerra (p473) o catildeo eacute mais fiel do que o homem (p476-7) quanto agrave gratidatildeo os animais tecircm esta capacidade (p477-8) os atuns tecircm conhecimentos geomeacutetricos astronoacutemicos e aritmeacuteticos (p479-480) o elefante tem a capacidade de arrependimento e reconhecimento dos erros (p480) o tigre tem capacidade de ser clemente (p480) enfim Montaigne atribui todas estas caracteriacutesticas e outras mais aos animais mostrando que elas satildeo erradamente consideradas como unicamente posse dos humanos 29 Les Essais II 12 p 470 30 Villey op cit p 186 31 Les Essais II 12 p 459

16

Desta perspectiva podemos compreender melhor a razatildeo do ldquodestronamentordquo

deste ser ldquotodo-poderosordquo que eacute o homem levado a cabo por Montaigne32

Depois de ter destacado a ideia de que o homem se assemelha aos animais e

vice-versa Montaigne sustenta que a forma corporal do homem eacute o que constitui a sua

peculiaridade face aos animais Eacute ela que ldquodefinerdquo a identidade do homem

ldquo[B] Ce nrsquoest donc pas par la raison par le discours et par lrsquoame que nous excellons sur les bestes crsquoest par nostre beauteacute nostre beau teint et nostre belle disposition de membres pour laquelle il nous faut mettre nostre intelligence nostre prudence et tout le reste agrave lrsquoabandonrdquo33

A sugestatildeo de Montaigne eacute que o homem natildeo pode ser pensado sem o seu corpo

elemento essencial de sua condiccedilatildeo humana O homem natildeo pode continuar a ser

concebido apenas como ser racional Montaigne potildee em causa a claacutessica concepccedilatildeo de

que soacute o homem eacute constituiacutedo de racionalidade O seu objectivo natildeo eacute encontrar uma

nova definiccedilatildeo do homem natildeo deseja decretar a inferioridade do homem nem tampouco

a sua superioridade face aos animais Natildeo tem em vista promover uma competiccedilatildeo

ridiacutecula entre os seres da natureza Montaigne sente-se incapaz de dar qualquer

definiccedilatildeo com o auxiacutelio da razatildeo humana Ignora qual eacute a essecircncia dos animais natildeo os

conhece Da mesma forma podemos dizer que agrave luz da ldquoApologierdquo Montaigne natildeo

consegue definir o homem Natildeo eacute possiacutevel elaborar juiacutezos constantes e uniformes nem

sobre o homem nem a partir dele

Dito de outra forma o ldquocepticismo da razatildeordquo que Montaigne assume

conscientemente visa rejeitar a pretensatildeo do homem de se considerar por via da razatildeo

no centro do universo

Montaigne com os seus ensaios quer ir directo agraves coisas e aos homens Eacute claro

que teve pouco contacto com o chamado movimento cientiacutefico do seu tempo Longe de

32 Friedrich ao analisar a questatildeo do lugar que segundo Montaigne corresponde ao homem diz ldquoA la question de savoir quelle place occupe lrsquohomme dans la totaliteacute du monde existent Montaigne ne donnera jamais la reacuteponse plotinienne selon laquelle il serait dans la chaicircne des ecirctres eacutemaneacutes un dernier maillon reacutetablissant la communication avec la source de lrsquoeacutemanation lrsquoUm primordial Ni la reacuteponse chreacutetienne selon laquelle lrsquohomme constituerait le couronnement terrestre de la creacuteation tout le creacutee lui eacutetant subordonneacute et Dieu eacutetant alleacute pour lui jusqursquoagrave se reacutesoudre agrave intervenir dans lrsquohistoire du salut Lrsquohomme de Montaigne est plutocirct un point dans lrsquounivers sans espoir que le destin ni la diviniteacute srsquointeacuteresse jamais agrave lui Il partage cette insignifiance de point avec le milieu dans lequel il vit patrie Eacutetat continent terre animaux et plantes Il nrsquoest plus un centre il est plongeacute dans la multitude de tout ce qui existe ignorant ce qui lrsquoen distingue et srsquoy sentant cheacutetif - bien preacuteserveacute pourtant au coeur de son insignifiance de son ignorance et deacutechargeacute de tout embarras Il y a au fond de cette penseacutee des ideacutees de Lucregravece Montaigne les transforme pour leur faire exprimer sa propre conscience de la vie dont il preacutecise les grandes lignes en la deacutelimitant par rapport aux affirmations posant la digniteacute de la nature humaine (cf op cit p131) 33 Les Essais II 12 p 486

17

toda a construccedilatildeo teoacuterica esforccedila-se por encontrar nele mesmo e nos outros o homem

tal como eacute sem o falso semblante que lhe acrescentam as pretensiosas doutrinas que o

definem pela sua relaccedilatildeo com o universo e com Deus

18

2 A criacutetica agrave razatildeo humana e a questatildeo da religiatildeo

Segundo Montaigne as pessoas que se gabam do conhecimento estatildeo sempre a

tentar explicar quais satildeo os atributos de Deus atraveacutes de complicados conceitos e

demonstraccedilotildees ininteligiacuteveis Em seu entender Deus e as verdades da religiatildeo satildeo

nitidamente questotildees de feacute e natildeo noccedilotildees filosoacuteficas Que isto eacute assim prova-o o facto de

que estas noccedilotildees satildeo sempre muito diversas e originam muita discoacuterdia entre os

inuacutemeros autores que delas se ocupam Uma coisa eacute Deus e outra coisa totalmente

diferente eacute o que pensam os homens a respeito de Deus

ldquo[A] Il ma tousjours sembleacute quagrave un homme Chrestien cette sorte de parler est pleine dindiscretion et dirreverence Dieu ne peut mourir Dieu ne se peut desdire Dieu ne peut faire cecy ou cela Je ne trouve pas bon denfermer ainsi la puissance divine soubs les loix de nostre parolle Et lapparence qui soffre agrave nous en ces propositions il la faudroit representer plus reveremment et plus religieusementrdquo34

ldquo[A] Dieu ne peut faire les mortels immortels ny revivre les trespassez ny que celuy qui a vescu nait point vescu celuy qui a eu des honneurs ne les ait point eus nayant autre droit sur le passeacute que de loubliance [hellip] Voylagrave ce quil dict et quun Chrestien devroit eviter de passer par sa bouche Lagrave ougrave au rebours il semble que les hommes recherchent cette fole fierteacute de langage pour ramener Dieu agrave leur mesure [hellip]nostre parole le dict mais nostre intelligence ne lrsquoapprehende pointrdquo35

Para compreender o lugar e o valor da razatildeo na ldquoApologierdquo eacute necessaacuterio

investigar os motivos que levaram o autor a tecer uma criacutetica tatildeo contundente da razatildeo

humana aprofundando em concreto as relaccedilotildees que esta criacutetica tem com a sua anaacutelise

da religiatildeo e com o poder de Deus expresso em todo o desenvolvimento do texto Para

esta abordagem teremos como base o preacircmbulo da ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo36

A ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo eacute o mais longo capiacutetulo da obra Les Essais

Neste texto Montaigne propotildee-se apresentar a ldquodefesa de um teoacutelogordquo do seacuteculo XVI

Montaigne comeccedila por caracterizar a situaccedilatildeo histoacuterica na qual a obra de

Sebond chegou agraves matildeos de seu pai por intermeacutedio do humanista Pierre Brunel (1499-

1546)37 Segundo Montaigne trata-se de um livro adequado para a eacutepoca Isto porque as

34 Les Essais II 12 p 527 35 Les Essais II 12 p 528 36 Cf Les Essais II 12 pp 438-449 Montaigne sobretudo nestas paacuteginas iniciais opotildee a religiatildeo agrave razatildeo humana demonstrando por um lado a incapacidade e os limites desta faculdade que eacute motivo de orgulho do homem e por outro esse ldquoinstrumentordquo de conhecimento ligado agrave graccedila divina que eacute a feacute 37 Montaigne admirava muito este humanista que gozava de grande reputaccedilatildeo na sua eacutepoca por causa de seu saber (Les Essais II 12 p 439)

19

novidades de Lutero comeccedilavam a estar em voga e a abalar em muitos lugares a antiga

crenccedila cristatilde38 Para Montaigne que era um pensador catoacutelico conservador a Reforma

Protestante era vista como algo perigoso para a religiatildeo estabelecida Globalmente natildeo

concordava com as contestaccedilotildees provocadas pelo espiacuterito da Reforma sobretudo porque

poderiam levar os homens agrave praacutetica do ateiacutesmo especialmente os menos doutos

Uma leitura do texto potildee de imediato em evidecircncia em que medida Montaigne se

distancia de Sebond em termos argumentativos Parafraseando Villey a defesa de

Sebond seraacute rapidamente esquecida39 Montaigne observa que surgiram entretanto

algumas objecccedilotildees ao livro de Sebond e anuncia no iniacutecio do ensaio o seu propoacutesito de

refutaacute-las Montaigne deseja defender Sebond destes dois tipos de adversaacuterios por um

lado os que consideram que os cristatildeos erram ao querer apoiar com razotildees humanas a

sua crenccedila que soacute se concebe por feacute e por uma inspiraccedilatildeo particular da graccedila divina

Estes satildeo os que subestimam a importacircncia da razatildeo Satildeo considerados fideiacutestas

pessoas que pensam que a verdade em religiatildeo estaacute em uacuteltima instacircncia baseada na feacute

em vez de no raciociacutenio ou na evidecircncia Por outro lado estatildeo os que dizem que os

argumentos de Sebond satildeo fracos e inadequados para demonstrar o que pretendem e se

dispotildeem a atacaacute-los facilmente Estes satildeo os que subestimam a importacircncia da feacute

Consideremos em primeiro lugar a atitude dos primeiros opositores Natildeo seria

correcto querer apoiar com razotildees humanas a crenccedila ldquo[A] qui ne se conccediloit que par foy

et par une inspiration particuliere de la grace divinerdquo40 Estes primeiros opositores de

Sebond satildeo os partidaacuterios da posiccedilatildeo ortodoxa catoacutelica Montaigne lembra que estes

teoacutelogos catoacutelicos satildeo movidos sobretudo por uma visatildeo piedosa

ldquo[A] En cette objection il semble quil y ait quelque zele de pieteacute et agrave cette cause nous faut-il avec autant plus de douceur et de respect essayer de satisfaire agrave ceux qui la mettent en avantrdquo41

Em face destas primeiras criacuteticas agrave obra do teoacutelogo catalatildeo Montaigne natildeo se

inibe de expressar as suas proacuteprias tomadas de posiccedilatildeo

ldquo[A]Toutefois je juge ainsi quagrave une chose si divine et si haultaine et surpassant de si loing lhumaine intelligence comme est cette veriteacute de laquelle il a pleu agrave la bonteacute de Dieu nous esclairer il est bien besoin quil nous preste encore son secours dune faveur extraordinaire et privilegeacutee pour la pouvoir concevoir et loger en nous et ne croy pas que

38 Cf Les Essais II 12 p 439 39 Villey op cit p 183 40 Les Essais II 12 p 440 41 Les Essais II 12 p 440

20

les moyens purement humains en soyent aucunement capables et sils lestoient tant dames rares et excellentes et si abondamment garnies de forces naturelles eacutes siecles anciens neussent pas failly par leur discours darriver agrave cette connoissance Cest la foy seule qui embrasse vivement et certainement les hauts mysteres de nostre Religionrdquo42

Ao abordar esta questatildeo Montaigne reconhece que natildeo estaacute capacitado para

levar a cabo tal empreendimento Esta seria uma tarefa mais adequada para um homem

versado em teologia assunto de que ele pessoalmente diz nada saber43 Mesmo assim

expressa uma vez mais a sua criacutetica radical aos que utilizam a razatildeo para apresentarem

argumentos apologeacuteticos em defesa das verdades sobre Deus e sobre a religiatildeo

Montaigne eacute um catoacutelico44 Sobre isto os Essais natildeo deixam duacutevida Natildeo eacute este o

momento de entrar na discussatildeo acerca de como viveu ou deixou de viver a sua

religiosidade O importante eacute que como catoacutelico aceita que haacute um Deus uacutenico criador

do ceacuteu e da terra Em vaacuterios momentos tanto na ldquoApologierdquo como em outros ensaios

Montaigne daacute a entender que a verdade estaacute em Deus e natildeo eacute propriedade dos homens

filoacutesofos ou teoacutelogos Noutras palavras a verdade eacute revelada e o homem sem o auxiacutelio

de Deus nunca a encontraria A razatildeo humana natildeo tem condiccedilotildees para elaborar

raciociacutenios crediacuteveis sobre estas verdades reveladas Para sustentar a tese que a razatildeo eacute

impotente neste domiacutenio Montaigne dedica um nuacutemero importante de paacuteginas em toda

a sua obra a desenvolver a ideia de que alguns filoacutesofos antigos reflectiram muito sobre

a possibilidade do conhecimento sobre Deus e fizeram afirmaccedilotildees que satildeo

absolutamente carentes de sentido Isto natildeo passou de uma ldquo[C] tintamarre de tant de

42 Les Essais II 12 p 440-441 43 ldquoCe seroit mieux la charge drsquoun homme verseacute en Theologie que de moy qui nrsquoy sccedilay rienrdquo(Les Essais II 12 p 440) 44 Montaigne declara-se catoacutelico foi um catoacutelico que durante toda a sua vida procurou cumprir os ritos lituacutergicos convencionais da Igreja Catoacutelica A sua posiccedilatildeo ceacuteptica parece enquadrar-se no fideiacutesmo como veremos Mas haacute que salientar que em algumas questotildees morais independentes das suas praacuteticas rituais ou seja na sua vida praacutetica Montaigne natildeo tem muito em consideraccedilatildeo a lista de exigecircncias eacuteticas do catolicismo romano Parece que falta agrave concepccedilatildeo religiosa de Montaigne algum sentimento religioso limita-se a uma espeacutecie de praacutetica do ritualismo exigido pela Igreja Catoacutelica Ele seria catoacutelico por uma questatildeo de conveniecircncia intelectual A sua praacutetica lituacutergica ritualiacutestica natildeo exerce grande influecircncia sobre o seu pensamento filosoacutefico Ele eacute um pensador completamente livre face agrave doutrina da Igreja E isto distingue-o substancialmente dos teoacutelogos que integram o corpo doutrinal na Igreja Montaigne pensava e exprimia estes pensamentos com plena liberdade Manifesta aleacutem disso alguma confianccedila na Igreja na religiatildeo na tradiccedilatildeo e nos costumes que contribuiacuteram para a sua formaccedilatildeo e que satildeo de alguma maneira parte constitutiva de sua identidade E na realidade quis apostar naquilo com o qual estava mais familiarizado ldquo[B] Nous sommes Chrestiens agrave mesme titre que nous sommes ou Perigordins ou Alemansrdquo(Les Essais II 12 p 445) No entanto quando comeccedilamos a estabelecer um maior contacto com os Essais percebemos que Montaigne natildeo eacute um catoacutelico que confie cegamente na doutrina da Igreja Muito pelo contraacuterio eacute extremamente consciente dos problemas do catolicismo e da sua doutrina bem como dos costumes em geral E acima de tudo tem perfeita consciecircncia de que a sua confianccedila eacute uma crenccedila e natildeo uma certeza filosoacutefica

21

cervelles philosophiquesrdquo45 Segundo Montaigne de todas as ideias humanas e antigas

no tocante agrave religiatildeo

ldquo[A]celle lagrave me semble avoir eu plus de vray-semblance et plus dexcuse qui reconnoissoit Dieu comme une puissance incomprehensible origine et conservatrice de toutes choses toute bonteacute toute perfection recevant et prenant en bonne part lhonneur et la reverence que les humains luy rendoient soubs quelque visage sous quelque nom et en quelque maniere que ce futrdquo46

Trata-se de belas afirmaccedilotildees que querem expressar quais satildeo os principais

atributos de Deus Satildeo uma tentativa racional que tem como meta explicar quem eacute Deus

Ao comentar esta passagem da ldquoApologierdquo Conche pergunta-se que significam estas

palavras E baseado na leitura que faz de Montaingne afirma que aplicadas a Deus

natildeo podemos saber o que realmente significam47

Montaigne questiona o facto de muitos homens pretenderem edificar um

discurso baseado na razatildeo para justificar as verdades reveladas as quais segundo ele soacute

poderatildeo encontrar os verdadeiros alicerces na feacute Vejamos como Conche

sinteticamente analisa esta questatildeo a partir da ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo

ldquoNous croyons penser Dieu En reacutealiteacute nous ne faisons que projeter hors de nous des qualiteacutes humaines que nos avons [hellip] Lrsquohomme ne peut concevoir Dieu qursquoagrave partir de lui-mecircme Or il y a entre lrsquohomme et Dieu un abicircme qualitatif Le Dieu dont on parle et duquel on raisonne nrsquoest qursquoun produit de lrsquoanthropomorphisme La raison loin de nous eacutelever agrave Dieu le ramegravene agrave notre mesure [hellip] En tout cela Dieu est encore conccedilu par analogie avec lrsquohomme et la puissance divine enfermeacutee ldquosous les lois de notre parolerdquo Assujettir Dieu agrave nos principes rationnels crsquoest lrsquoassujettir agrave la raison humaine Lrsquohomme ne peut penser au-delagrave de lui mecircme Du vrai Dieu on ne peut rien penser ni rien dire Il nrsquoy a pas drsquoideacutee de Dieu [hellip] La notion de Dieu nrsquoest pas une notion philosophiquerdquo48

Embora critique estes opositores de Sebond Montaigne afirma ao mesmo tempo

que o empenho em justificar a feacute pela razatildeo eacute uma iniciativa louvaacutevel Chega mesmo a

afirmar que esta tarefa poderia ser considerada como o uso mais honroso que o homem

cristatildeo poderia dar agrave razatildeo Por outras palavras eacute uma atitude nobre a que leva o cristatildeo

a querer embelezar perceber e ampliar a verdade de sua crenccedila por meio de todos os

estudos e reflexotildees Montaigne observa entretanto que eacute preciso fazer acompanhar a

45 Les Essais II 12 p 516 46 Les Essais II 12 p 513 47 Cf Conche Marcel Montaigne ou la conscience heureuse Paris Puf 2009 p 55 48 Idem pp 55-56

22

nossa feacute de toda a razatildeo que haacute em noacutes mas sempre com a ressalva de natildeo pensar que

seja de noacutes que ela depende nem que os nossos esforccedilos e argumentos possam atingir

uma tatildeo ldquo[A] supernaturelle et divine sciencerdquo49 O autor dos Essais insistiraacute muito

neste aspecto

ldquo[A] Si elle nentre chez nous par une infusion extraordinaire si elle y entre non seulement par discours mais encore par moyens humains elle ny est pas en sa digniteacute ny en sa splendeur Et certes je crain pourtant que nous ne la jouyssions que par cette voye Si nous tenions agrave Dieu par lentremise dune foy vive si nous tenions agrave Dieu par luy non par nous si nous avions un pied et un fondement divin les occasions humaines nauroient pas le pouvoir de nous esbranler comme elles ont [hellip]rdquo50

Sem duacutevida Montaigne ao questionar o poder da razatildeo humana procura

defender a feacute cristatilde Os argumentos tidos como ceacutepticos que estatildeo presentes na

ldquoApologierdquo tecircm como objectivo provar que soacute atraveacutes da intervenccedilatildeo divina e natildeo com

nossos proacuteprios meios racionais podemos ter acesso agrave verdade Apresenta vaacuterios

exemplos para que entendamos com mais clarividecircncia a sua reflexatildeo acerca deste

assunto

ldquo[C] Lrsquohomme est bien insenseacute Il ne sccedilauroit forger un ciron et forge des Dieux agrave douzainesrdquo51

O homem quer descrever Deus mas na verdade descreve-se a si mesmo Isto

demonstra a sua incapacidade e a sua falta de sabedoria

ldquo[B] Nous avons vie raison et liberteacute estimons la bonteacute la chariteacute et la justice ces qualitez sont donc en luy Somme le bastiment et le desbastiment les conditions de la diviniteacute se forgent par lhomme selon la relation agrave soy Quel patron et quel modele Estirons eslevons et grossissons les qualitez humaines tant quil nous Plaira enfle toy pauvre homme et encore et encore et encore Non si te ruperis inquit (ldquoNon pas mecircme quand tu cregraveverais dit-ilrdquo (Hor Sal II III 318) Crsquoest la fable de la grenouille qui veut se faire aussi grosse que le boeuf)rdquo52

Eacute interessante notar que ao mesmo tempo que pretende fazer a apologia da feacute cristatilde Montaigne critica os cristatildeos que natildeo satildeo ldquofieacuteisrdquo aos ensinamentos da Sagrada Escritura

ldquo[B] Voulez vous voir cela Comparez nos moeurs agrave un Mahometan agrave un Payen vous demeurez tousjours au dessoubs lagrave ougrave au regard de lavantage de nostre religion nous devrions luire en excellence dune extreme et incomparable distance et devroit on dire Sont ils si justes si

49 Les Essais II 12 p 441 50 Les Essais II 12 p 441 51 Les Essais II 12 p 530 52 Les Essais II 12 p 531

23

charitables si bons ils sont donq Chrestiens [C] La marque peculiegravere de nostre veriteacute devroit estre nostre vertu comme elle est aussi la plus celeste marque et la plus difficile et que cest la plus digne production de la veriteacuterdquo53

Para Montaigne os cristatildeos constituem uma espeacutecie de contratestemunho de sua

feacute Fazendo uma referecircncia ao texto da Sagrada Escritura algo muito raro nos Essais o

autor afirma que se tiveacutessemos um uacutenico pingo de feacute54 moveriacuteamos as montanhas de

seu lugar E neste sentido lembra-nos

ldquo[A] nos actions qui seroient guideacutees et accompaigneacutees de la diviniteacute ne seroient pas simplement humaines elles auroient quelque chose de miraculeux comme nostre croyancerdquo55

Para os que subestimam a importacircncia da razatildeo isto eacute para os primeiros

opositores de Sebond ou os fideiacutestas os cristatildeos erram ao quererem apoiar as suas

crenccedilas que soacute se concebem por meio da feacute e por inspiraccedilatildeo particular da graccedila divina

Estes satildeo os que pensam que a verdade em religiatildeo estaacute em uacuteltima instacircncia baseada na

feacute em vez de no raciociacutenio ou na evidecircncia Segundo Montaigne trata-se de uma

concepccedilatildeo bonita e ateacute piedosa Chega inclusivamente a exemplificar esta atitude e a

citar um caso de algueacutem que foi desviado dos erros da incredulidade atraveacutes da leitura

da obra de Sebond

ldquo[A] Je sccedilay un homme dauthoriteacute nourry aux lettres qui ma confesseacute avoir esteacute rameneacute des erreurs de la mescreance par lentremise des argumens de Sebond Et quand on les despouillera de cet ornement et du secours et approbation de la foy et quon les prendra pour fantasies pures humaines pour en combatre ceux qui sont precipitez aux espouvantables et horribles tenebres de lirreligion ils se trouveront encores lors aussi solides et autant fermes que nuls autres de mesme condition quon leur puisse opposer [hellip]rdquo56

53 Les Essais II 12 p 442 54 Provavelmente Montaigne estaacute a aludir a textos da Sagrada Escritura especialmente do Evangelho ldquoSi vraiment vous avez de la foi gros come une graine de moutarde vous diriez agrave ce sycomore ldquoDeacuteracine-toi et va te planter dans la merrdquo et il vous obeacuteiraitrdquo (Lc 17 6) Car en veacuteriteacute je vous le deacuteclare si un jour votre foi est semblable agrave un grain de moutarde vous diriez agrave cette montagne ldquoPasse drsquoici lagrave-basrdquo et elle y passera Rien ne vous sera impossiblerdquo (Mt 17 20) (In Nouveau Testament Traduction Oecumeacutenique de la Bible Paris PUF 1977 pp 91 e 253 55 Les Essais II 12 p 442 56 Les Essais II 12 p 447-448

24

No entanto mesmo tendo em consideraccedilatildeo a importacircncia da Teologia Natural

sebondiana Montaigne toma um certo partido pelo lado dos fideiacutestas57 seus opositores

Em seu entender a razatildeo humana natildeo eacute capaz de conduzir o homem agrave feacute

Montaigne num dado momento refere-se agraves guerras58 que oprimiam a sua

naccedilatildeo Ele propotildee uma possiacutevel explicaccedilatildeo destes tormentos que assolavam a Franccedila

que tem muito a ver com a questatildeo de fundo tratada na ldquoApologierdquo Escreve

ldquo[A] Les hommes y sont conducteurs et srsquoy servent de la religion ce devroit estre tout le contrairerdquo59

Assim se compreende por que razatildeo Montaigne aleacutem de criticar aqueles que

queriam instrumentalizar a razatildeo para justificar as verdades reveladas repudia a noccedilatildeo

daqueles que se dedicam excessivamente agrave religiatildeo e que tecircm como meta principal a

satisfaccedilatildeo das paixotildees e da vaidade

ldquo[C] Je voy cela evidemment que nous ne prestons volontiers agrave la devotion que les offices qui flattent noz passions Il nest point dhostiliteacute excellente comme la Chrestienne Nostre zele fait merveilles quand il va secondant nostre pente vers la haine la cruauteacute lambition lavarice la detraction la rebellion A contrepoil vers la bonteacute la benigniteacute la temperance si comme par miracle quelque rare complexion ne ly porte il ne va ny de pied ny daile Nostre religion est faicte pour extirper les vices elle les couvre les nourrit les incite [A] Il ne faut point faire barbe de foarre agrave Dieu (comme on dict) Si nous le croyons je ne dy pas par foy mais dune simple croyance voire (et je le dis agrave nostre grande confusion) si nous le croyons et cognoissions comme une autre histoire comme lun de nos compaignons nous laimerions au dessus de toutes autres choses pour linfinie bonteacute et beauteacute qui reluit en luy au moins marcheroit il en mesme reng de nostre affection que les richesses les plaisirs la gloire et nos amis raquo60

Montaigne demonstra uma certa irritaccedilatildeo em face da instrumentalizaccedilatildeo da

religiatildeo para certos objectivos particulares Em seu entender a devoccedilatildeo religiosa natildeo

57 Ao reflectir sobre o fideiacutesmo presente na ldquoApologierdquo Friedrich diz-nos que Montaigne assume um fideiacutesmo isento da nostalgia miacutestica O seu fideiacutesmo significa uma tomada de consciecircncia intelectual dos limites humanos limites estes que natildeo deseja ultrapassar Seu fideiacutesmo eacute de uma espeacutecie negativa isto eacute eacute a certeza da incerteza O mesmo autor observa ainda que a ldquoteologiardquo de Montaigne representa um desvio para ir ao conhecimento do homem no interior do mundo Montaigne precisa de se distanciar de Deus para se assegurar da pequenez do homem na qual ele vai se instalar (cf op cit p 117) 58 Tudo indica que Montaigne estaacute a falar das guerras civis e religiosas do seacuteculo XVI Citando o famoso historiador francecircs M de Chacircteaubriand Laschamps na sua monumental obra Michel de Montaigne editada em 1855 afirma que estas guerras ldquoont dureacute trente-neuf ans elles ont engendre les massacres de la Saint Bartheacutelemy verseacute le sang de plus de deux millions de Franccedilais et deacutevoreacute plus de trois milliards de notre monnaie actuelle Elles ont produit la saisie et la vente des biens de lrsquoEacuteglise et des particulieres frappeacute deux rois de mort violente Henri III et Henri IV et commenceacute le procegraves criminal du premier de ces deux roisrdquo (cf Laschamps F Bigorie de Michel de Montaigne Paris Libraire Editeur 1855 p 108) 59 Les Essais II 12 p 443 60 Les Essais II 12 p 444

25

pode ser usada para servir os propoacutesitos do oacutedio da crueldade da ambiccedilatildeo da rebeliatildeo

etc61

Embora natildeo seja teoacutelogo62 Montaigne eacute um pensador que procura respeitar

profundamente a missatildeo da teologia Mas importa salientar que esta missatildeo deve ser

entendida simplesmente como uma praacutetica de piedade e natildeo como uma racionalizaccedilatildeo e

sistematizaccedilatildeo das verdades reveladas pela feacute Neste sentido haacute uma enorme distacircncia

entre o autor dos Essais e os escolaacutesticos Para Montaigne a teologia eacute concebida como

uma espeacutecie de exerciacutecio espiritual dos cristatildeos sobretudo dos teoacutelogos atraveacutes da

razatildeo humana Exerciacutecio este que carece do poder de alcanccedilar a verdade

ldquo[A] Il en faut faire de mesme et accompaigner nostre foy de toute la raison qui est en nous mais tousjours avec cette reservation de nestimer pas que ce soit de nous quelle deacutepende ny que nos efforts et arguments puissent atteindre agrave une si supernaturelle et divine sciencerdquo 63

Para Montaigne as explicaccedilotildees (racionalizaccedilotildees) das verdades da religiatildeo

devem ser as pregaccedilotildees piedosas nos actos de culto por exemplo E esta eacute a tarefa

fundamental da qual a teologia deve ocupar-se Aleacutem disto Montaigne que eacute um

observador subtil e cuidadoso propotildee certas distinccedilotildees Vejamos o que Friedrich tem a

dizer sobre esta questatildeo

ldquo[hellip] sait bien entendu distinguer la vraie pieacuteteacute de la fausse Il bracircme ainsi les priegraveres meacutecaniques la malhonnecircteteacute des gens qui se signent au son de la cloche sans pour autant renoncer agrave la haine agrave lrsquoavarice agrave lrsquoinjustice comme si leur principe eacutetait aux vices leur heure son heure agrave Dieurdquo64

Desta perspectiva segundo Montaigne a religiatildeo deve ser entre outras coisas

como uma praacutetica da verdadeira piedade que se preocupa em instaurar no coraccedilatildeo do

homem o desejo de viver o amor a justiccedila etc renunciando a tudo aquilo que eacute mal e

que impede a realizaccedilatildeo da felicidade do homem no aqui e no agora Eacute por isto que natildeo

acredita numa religiatildeo que vive a prometer constantemente bens eternos que viratildeo a

tornar-se realidade num outro mundo diverso e posterior a este que conhecemos Para

exemplificar esta sua abordagem Montaigne refere na ldquoApologierdquo o filoacutesofo Antiacutestenes

Quando o iniciavam no misteacuterio de Orfeu dizendo-lhe o sacerdote que aqueles que se

devotavam a tal religiatildeo iam receber bens eternos e perfeitos apoacutes a morte aquele

61 Cf Les Essais II 12 p 444 62 Ver nota 43 63 Les Essais II 12 p 441 64 Friedrich op cit p 122

26

perguntou-lhe ldquose acreditas nisso por que entatildeo natildeo morres tu mesmordquo65 Eis um outro

exemplo que vale a pena citar

ldquo[C] Diogenes plus brusquement selon sa mode et hors de nostre propos au prestre qui le preschoit de mesme de se faire de son ordre pour parvenir aux biens de lautre monde Veux tu pas que je croye quAgesilauumls et Epaminondas si grands hommes seront miserables et que toy qui nes quun veau seras bien heureux par ce que tu es prestre rdquo66

Segundo Montaigne se acolhecircssemos essas grandes promessas de felicidades

eternas e supremas com a mesma autoridade com que acolhemos uma opiniatildeo

filosoacutefica natildeo teriacuteamos o horror agrave morte que temos

ldquo[A] Je veuil estre dissout dirions nous et estre aveques Jesus-Christrdquo67

Ao afirmar que

ldquo[A] La force du discours de Platon de lrsquoimmortaliteacute de lrsquoame poussa bien aucuns de ses disciples agrave la mort pour joiumlr plus promptement des esperances qursquoil leur donnoit [hellip]68

O autor da ldquoApologierdquo quer destacar a fragilidade da razatildeo que utiliza meios

puramente humanos para explicar ldquorealidadesrdquo que transcendem a vida concreta

Vejamos uma passagem em que o autor expressa nitidamente estas ideias

ldquo[A] Tout cela cest un signe tres-evident que nous ne recevons nostre religion quagrave nostre faccedilon et par nos mains et non autrement que comme les autres religions se reccediloyvent Nous nous sommes rencontrez au paiumls ou elle estoit en usage ougrave nous regardons son ancienneteacute ou lauthoriteacute des hommes qui lont maintenue ou creignons les menaces quellrsquoattache aux mescreans ou suyvons ses promesses Ces considerations lagrave doivent estre employeacutees agrave nostre creance mais comme subsidiaires ce sont liaisons humaines Une autre region dautres tesmoings pareilles promesses et menasses nous pourroyent imprimer par mesme voye une croyance contrairerdquo69

Apesar de ser catoacutelico parece sugerir na ldquoApologierdquo uma certa atitude de

indiferenccedila relativamente a toda e qualquer profissatildeo de feacute ou seja uma espeacutecie de

distanciamento no que diz respeito agraves diversas convicccedilotildees religiosas Montaigne chega

quase a reduzir a proacutepria crenccedila a uma questatildeo de costume a um acaso geograacutefico

65 Cf Les Essais II 12 p 444 66 Les Essais II 12 p 444 67 Les Essais II 12 p 445 68 Les Essais II 12 p 445 69 Les Essais II 12 p 445

27

[B] Nous sommes Chrestiens agrave mesme titre que nous sommes ou Perigordins ou Alemansrdquo70

Fazendo uma criacutetica aos diversos raciociacutenios que foram usados na histoacuteria do

pensamento filosoacutefico com o objectivo de argumentar de que forma o homem tem

acesso agrave religiatildeo Montaigne afirma que Platatildeo e os seus exemplos querem levar-nos a

concluir que somos conduzidos agrave crenccedila em Deus ou por amor ou por forccedila A sua

rejeiccedilatildeo dos argumentos da filosofia expressa-se de uma forma muito incisiva

ldquo[C] LAtheisme estant une proposition comme desnatureacutee et monstrueuse difficile aussi et malaiseacutee destablir en lesprit humain pour insolent et desregleacute quil puisse estre il sen est veu assez par vaniteacute et par fierteacute de concevoir des opinions non vulgaires et reformatrices du monde en affecter la profession par contenance qui sils sont asses fols ne sont pas assez forts pour lavoir planteacutee en leur conscience pourtantrdquo71

Aleacutem de apontar os limites das crenccedilas consideradas pagatildes bem como os

enganos de Platatildeo relativos aos motivos que levam o homem agrave praacutetica da religiatildeo

Montaigne critica um outro engano similar e importante de Platatildeo

ldquo[B] Lerreur du paganisme et lignorance de nostre sainte veriteacute laissa tomber cette grande ame de Platon (mais grande dhumaine grandeur seulement) encores en cet autre voisin abus que les enfans et les vieillars se trouvent plus susceptibles de religion comme si elle naissoit et tiroit son credit de nostre imbecilliteacuterdquo72

Segundo Montaigne a religiatildeo natildeo pode ser construiacuteda sobre o alicerce da razatildeo

humana como vimos Nem tampouco pode ser fundada nos argumentos platoacutenicos

acabados de referir Estes satildeo todos muito fraacutegeis A religiatildeo encontra as suas bases

verdadeiras na feacute A perspectiva proacutepria da filosofia supotildee um ateiacutesmo de meacutetodo como

observa Conche Caso contraacuterio ela jaacute natildeo seria filosofia ldquomais theacuteologie ou ideacuteologie

A qui est ainsi priveacute du secours de la gracircce divine Dieu est inconnaissablerdquo73

Montaigne recusa o ateiacutesmo de uma forma muito clara inclusive aquele conceituado

por Platatildeo

ldquo[A] Et ce que dit Plato74 quil est peu dhommes si fermes en latheisme quun dangier pressant ne ramene agrave la recognoissance de la divine puissance ce rolle ne touche point un vray Chrestien Cest agrave faire aux

70 Les essais II 12 p 445 71 Les Essais II 12 p 446 72 Les Essais II 12 p 446 73 Conche 1996 op cit p131 74 Tudo leva a crer que Montaigne se estaacute a referir a Platatildeo Preferimos conservar a mesma grafia da ediccedilatildeo dos Essais que estaacute a ser utilizada neste trabalho

28

religions mortelles et humaines destre receueumls par une humaine conduite Quelle foy doit ce estre que la laacutecheteacute et la foiblesse de coeur plantent en nous et establissent [C] Plaisante foy qui ne croid ce quelle croit que pour navoir le courage de le descroire Une vitieuse passion comme celle de linconstance et de lestonnement peut elle faire en nostre ame aucune production regleacutee75

Continuando a sua reflexatildeo no preacircmbulo da ldquoApologierdquo o autor ressalta qual eacute

a relaccedilatildeo fundamental que eacute necessaacuteria para estabelecer a uniatildeo do homem a Deus

partindo do caraacutecter superior da religiatildeo face ao ateiacutesmo Montaigne observa que o laccedilo

que deveria atar o nosso juiacutezo e a nossa vontade que deveria cingir a nossa alma e uni-

la ao criador

ldquo[A] ce devroit estre un neud prenant ses repliz et ses forces non pas de nos considerations de noz raisons et passions mais dune estreinte divine et supernaturelle nayant quune forme un visage et un lustre qui est lauthoriteacute de Dieu et sa grace Or nostre coeur et nostre ame estant regie et commandeacutee par la foy cest raison quelle tire au service de son dessain toutes noz autres pieces selon leur porteacuteerdquo76

Montaigne ao indicar como devemos manejar os instrumentos naturais e

humanos ou seja como devemos aplicar a razatildeo agrave nossa feacute afirma que Deus deixou nas

suas obras o cunho de sua divindade e deve-se apenas agrave nossa fraqueza que natildeo o

possamos perceber E afirma com admiraccedilatildeo que Sebond se empenhou neste digno

estudo

ldquo[A] Or nos raisons et nos discours humains cest comme la matiere lourde et sterile la grace de Dieu en est la formerdquo77

As acccedilotildees humanas permanecem inuacuteteis e vatildes se natildeo tecircm em conta o amor e a

obediecircncia a Deus

ldquo[A] ainsin est-il de nos imaginations et discours ils ont quelque corps mais une masse informe sans faccedilon et sans jour si la foy et grace de Dieu ny sont joinctesrdquo78

Quanto aos segundos opositores de Sebond ndash ou seja os que dizem que seus

argumentos satildeo fracos e inadequados para demonstrar o que ele pretende e por isso

dispotildeem-se a atacaacute-los facilmente ndash Montaigne vai rejeitar os argumentos por eles

apresentados nos quais se subestima a importacircncia da feacute A rejeiccedilatildeo dos argumentos

desta segunda categoria ocupa maior espaccedilo porque ldquo[A] Il faut secouer ceux cy un peu

75 Les Essais II 12 p 445 76 Les Essais II 12 p 446 77 Les Essais II 12 p 447 78 Les Essais II 12 p 447

29

plus rudement car ils sont plus dangereux et plus malitieux que les premiersrdquo79 Estes

ldquoracionalistasrdquo consideram que a razatildeo humana eacute auto-suficiente para conhecer

qualquer coisa e desprezam a feacute considerando-a como algo inuacutetil para um saacutebio

ldquo Le moyen que je prens pour rabatre cette frenaisie et qui me semble le plus propre crsquoest de froisser et fouler aux pieds lrsquoorgueil et humaine fierteacute leur faire sentir lrsquoinaniteacute la vaniteacute et deneantise de lrsquohomme leur arracher des points les chetives armes de leur raison leur faire baisser la teste et mordre la terre soubs lrsquoauthoriteacute et reverence de la majesteacute divine Crsquoest agrave elle seule qursquoapartient la science et la sapience elle seule qui peut estimer de soy quelque chose et agrave qui nous desrobons ce que nous nous contons et ce que nous nous prisons Ού γὰρ ἐᾱ φρονεῑν ὁ Θεὸϛ μέγα ἄλλον ἢ ἑαυτόν [ldquoCar Dieu ne permet pas qursquoun autre que Lui srsquoenorgueillisserdquo (Heacuterodote VII x)]rdquo80

Ao analisar as duas objecccedilotildees agrave Teologia natural de Sebond Montaigne tem

como principal finalidade - aleacutem do desenvolvimento do seu fideiacutesmo que potildee em

causa que a filosofia seja um meio para se chegar a Deus - destronar o homem do seu

pedestal como ldquosenhorrdquo entre todas as criaturas como vimos no primeiro capiacutetulo deste

trabalho Agrave luz destas objecccedilotildees se desenvolve tambeacutem em todo o texto da ldquoApologierdquo

uma grande quantidade de criacuteticas aos detractores do teoacutelogo catalatildeo que na verdade

mais natildeo eacute do que uma contestaccedilatildeo de Montaigne de tudo aquilo que faz do homem um

ser cheio de orgulho e de vaidade Montaigne chega agrave conclusatildeo que a razatildeo humana

natildeo pode conhecer os atributos de Deus A razatildeo natildeo tem condiccedilotildees para emitir juiacutezos

crediacuteveis a respeito destes atributos Ela natildeo estaacute revestida de um poder que lhe garanta

a elaboraccedilatildeo de raciociacutenios crediacuteveis acerca de Deus e das verdades da religiatildeo

Montaigne apresenta um resumo das principais ideias acerca de Deus que foram

surgindo na histoacuteria do pensamento filosoacutefico antigo e afirma que tudo isto natildeo passa de

uma balbuacuterdia (ldquotintamarrerdquo) de muitos ceacuterebros filosoacuteficos81

ldquo[C] Thales [hellip] estima Dieu un esprit qui fit deau toutes choses Anaximander que les Dieux estoyent des mourans et naissans agrave diverses saisons et que crsquoestoyent des mondes infinis en nombre Anaximenes que lair estoit Dieu [hellip] Anaxagoras le premier a tenu la description et maniere de toutes choses estre conduite par la force et raison dun esprit infini Alcmaeligon a donneacute la diviniteacute au soleil agrave la lune aux astres et agrave lame[hellip] Empedocles disoit estre des Dieux les quatre natures desquelles toutes choses sont faictes [hellip] Platon dissipe sa creance agrave divers visages Il dict au Timaeacutee le pere du monde ne se pouvoir

79 Les Essais II 12 p 448 80 Les Essais II 12 p 448 81 Cf Les Essais II 12 p 516

30

nommer aux loix quil ne se faut enquerir de son estre et ailleurs en ces mesmes livres il faict le monde le ciel les astres la terre et nos ames Dieux et reccediloit en outre ceux qui ont esteacute receuz par lancienne institution en chasque republique Xenophon rapporte un pareil trouble de la discipline de Socrates tantost quil ne se faut enquerir de la forme de Dieu et puis il luy faict establir que le Soleil est Dieu et lame Dieu quil ny en a quun et puis quil y en a plusieurs[hellip] Aristote asture que cest lesprit asture le monde asture il donne un autre maistre agrave ce monde et asture faict Dieu lardeur du ciel [hellip] Heraclides Ponticus ne fait que vaguer entre les advis et en fin prive Dieu de sentiment et le faict remuant de forme agrave autre et puis dict que cest le ciel et la terre[hellip] Zeno la loy naturelle commandant le bien et prohibant le mal laquelle loy est un animant et oste les Dieux accoustumez Jupiter Juno Vesta Diogenes Apolloniates que cest laage [hellip] Cleanthes tantost la raison tantost le monde tantost lame de Nature tantost la chaleur supreme entournant et envelopant tout [hellip] Chrysippus faisoit un amas confus de toutes les precedentes sentences et comptoit entre mille formes de Dieux quil faict les hommes aussi qui sont immortalisez Diagoras et Theodorus nioyent tout sec quil y eust des Dieux Epicurus faict les Dieux luisans transparens et perflables logez comme entre deux forts entre deux mondes agrave couvert des coups revestus dune humaine figure et de nos membres lesquels membres leur sont de nul usagerdquo82

Esta longa citaccedilatildeo da ldquoApologierdquo apresenta-nos a enorme quantidade de

teorizaccedilotildees que tecircm como base a razatildeo humana e que satildeo bastante diacutespares no tocante

agraves crenccedilas Isto potildee em evidecircncia que Montaigne natildeo acredita que o homem tenha

condiccedilotildees para compreender ou apresentar algo crediacutevel acerca de Deus Por isto o

homem exagera na sua criatividade intelectual ao inventar inuacutemeros atributos divinos

que frequentemente se assemelham aos seus proacuteprios atributos Em seu entender Deus

eacute absolutamente incompreensiacutevel Na leitura que de Montaigne faz Leveaux

ldquoLrsquoideacutee de Dieu existe chez lrsquohomme mais au delagrave de cette ideacutee simple drsquoune uniteacute absolue tout devient doute et confusion Alors se preacutesent des questions sans nombre auxquelles il est impossible de reacutepondre Crsquoest lagrave si je ne me trompe le ldquoque sais-jerdquordquo83

Montaigne afirma que haacute uma grande inconstacircncia variedade e mobilidade de

ideias acerca de Deus nas almas excelentes e admiraacuteveis dos filoacutesofos Mas classifica o

empenho destes como vatildeo pelo facto de quererem adivinhar Deus por meio das nossas

analogias e conjecturas Por natildeo podermos estender a vista ateacute ao seu trono glorioso

procuramos trazecirc-lo aqui para baixo para a nossa corrupccedilatildeo e miseacuteria Soacute a feacute tem

82 Les Essais II 12 pp 514-516 83 Leveaux Alphonse Eacutetude sur les Essais de Montaigne Paris Henri Plon Imprimeur-Eacutediteur 1870 p 213

31

condiccedilotildees de entender os misteacuterios da religiatildeo Sem ela os nossos esforccedilos de

demonstraccedilatildeo destes misteacuterios permanecem vazios e esteacutereis

ldquo[A] La participation que nous avons agrave la connoissance de la veriteacute quelle quelle soit ce nest pas par nos propres forces que nous lavons acquise Dieu nous a assez appris cela par les tesmoins quil a choisi du vulgaire simples et ignorans pour nous instruire de ses admirables secrets nostre foy ce nest pas nostre acquest cest un pur present de la liberaliteacute dautruy Ce nest pas par discours ou par nostre entendement que nous avons receu nostre religion cest par authoriteacute et par commandement estranger La foiblesse de nostre jugement nous y ayde plus que la force et nostre aveuglement plus que nostre cler-voyance Cest par lentremise de nostre ignorance plus que de nostre science que nous sommes sccedilavans de divin sccedilavoirrdquo84

Para o autor da ldquoApologierdquo o homem por si soacute eacute absolutamente impotente para

chegar a certezas acerca das questotildees relacionadas com a feacute Nesta perspectiva o autor

observa tambeacutem que natildeo eacute possiacutevel fazer afirmaccedilotildees seguras tendo como base a razatildeo

Por exemplo acerca da imortalidade da alma tema desde sempre muito caro agrave filosofia

os cristatildeos devem unicamente a Deus e ao benefiacutecio de sua graccedila a verdade de uma

crenccedila tatildeo nobre pois eacute apenas da sua liberalidade que o cristatildeo recebe o fruto da

imortalidade o qual lembra o autor consiste no gozo da beatitude eterna A razatildeo natildeo

consegue fazer nenhuma afirmaccedilatildeo crediacutevel sobre este tema Ela eacute incapaz uma vez que

a imortalidade eacute um ldquodadordquo da revelaccedilatildeo

ldquo[C] Confessons ingenuement que Dieu seul nous lrsquoa dict et la foy car leccedilon nrsquoest ce pas de nature et de nostre raisonrdquo85

Montaigne assumindo uma posiccedilatildeo fideiacutesta depois de ter feito o exame das

diversas opiniotildees sobre a alma86 faz um ldquoapelo agrave passividade da razatildeo e agrave aceitaccedilatildeo da

verdade religiosa sem tentar compreendecirc-la ldquoimortalidaderdquo eacute como ldquoDeusrdquo uma

palavra que natildeo pode ser preenchida A imortalidade afirmada pela feacute natildeo poderaacute ser

explorada por nenhuma forma de discurso humanordquo87

Esta atitude fideiacutesta e conservadora em termos religiosos deve-se em grande

parte agrave desilusatildeo de Montaigne face aos inuacutemeros sistemas filosoacuteficos que tentavam

84 Les Essais II 12 p 500 85 Les Essais II 12 p 554 86 Na ldquoApologierdquo haacute uma quantidade significativa de paacuteginas nas quais o autor expressa muitas opiniotildees sobre o tema da alma (cf Les Essais pp 542-547) 87 Birchal Telma de Souza O Eu nos Ensaios de Montaigne Belo Horizonte Editora UFMG 2007 pp 64-65

32

encontrar explicaccedilotildees racionais para todas as questotildees da vida inclusivamente para

aquelas que transcendem a vida real

ldquo[A] Car quelque apparence quil y ayt en la nouvelleteacute je ne change pas aiseacutement de peur que jay de perdre au change Et puis que je ne suis pas capable de choisir je pren le chois dautruy et me tien en lassiette ougrave Dieu ma mis Autrement je ne me sccedilauroy garder de rouler sans cesse Ainsi me suis-je par la grace de Dieu conserveacute entier sans agitation et trouble de conscience aux anciennes creances de nostre religion au travers de tant de sectes et de divisions que nostre siecle a produittesrdquo88

Segundo Leveaux Montaigne sintetiza seu pensamento em mateacuteria religiosa89

da seguinte maneira

ldquo[A] De toutes les opinions humaines et anciennes touchant la religion celle lagrave me semble avoir eu plus de vray-semblance et plus dexcuse qui recognoissoit Dieu comme une puissance incomprehensible origine et conservatrice de toutes choses toute bonteacute toute perfection recevant et prenant en bonne part lhonneur et la reverence que les humains luy rendoient soubs quelque visage sous quelque nom et en quelque maniere que ce fut [hellip]rdquo90

Haacute que reconhecer no entanto que eacute algo difiacutecil e delicado tirar grandes

conclusotildees acerca da religiatildeo embora o tema perpasse toda a ldquoApologie rdquo Montaigne

concebia a religiatildeo como um conjunto de praacuteticas e leis que tinham como finalidade

contribuir para que o homem natildeo agisse como um escravo da vaidade da razatildeo As

uacuteltimas palavras da ldquoApologierdquo onde o autor cita Plutarco pretendem servir como uma

espeacutecie de conclusatildeo de toda a reflexatildeo deste capiacutetulo Deixemos o proacuteprio Montaigne

falar

ldquo[A] Mais quest-ce donc qui est veritablement Ce qui est eternel cest agrave dire qui na jamais eu de naissance ny naura jamais fin agrave qui le temps napporte jamais aucune mutation Car cest chose mobile que le temps et qui apparoit comme en ombre avec la matiere coulante et fluante tousjours sans jamais demeurer stable ny permanenterdquo91

Contestando a atitude humana de querer elevar-se acima da humanidade que

pode ser tambeacutem entendida como um desejo absurdo de um ser despreziacutevel que tem a

88 Les Essais II 12 p 569 89 Cf Leveaux op cit p 213 90 Les Essais II 12 p 513 91 Les Essais II 12 p 603

33

presunccedilatildeo como doenccedila natural e original e que eacute a mais calamitosa de todas as

criaturas e ao mesmo tempo a mais orgulhosa92 Montaigne afirma

ldquo[A] O la vile chose dit-il et abjecte que lhomme sil ne sesleve au dessus de lhumaniteacute [C] Voila un bon mot et un utile desir mais pareillement absurde Car [A] de faire la poigneacutee plus grande que le poing la brasseacutee plus grande que le bras et desperer enjamber plus que de lestandueuml de nos jambes cela est impossible et monstrueux Ny que lhomme se monte au dessus de soy et de lhumaniteacute car il ne peut voir que de ses yeux ny saisir que de ses prises Il seslevera si Dieu lui preste extraordinairement la main Il seslevera abandonnant et renonccedilant agrave ses propres moyens et se laissant hausser et soubslever par les moyens purement celestesrdquo93

Montaigne termina a ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo colocando o homem no

seu devido lugar e afirmando que soacute atraveacutes do auxiacutelio de Deus e com a graccedila da feacute

cristatilde eacute que este ser tatildeo vaidoso poderaacute elevar-se acima da humanidade

ldquo[C] Cest agrave nostre foy Chrestienne non agrave sa vertu Stoique de pretendre agrave cette divine et miraculeuse metamorphoserdquo94

92 Cf nota 12 93 Les Essais II 12 p 604 94 Les Essais II 12 p 604

34

3 A criacutetica agrave razatildeo humana e sua relaccedilatildeo com a ciecircncia

Uma observaccedilatildeo que eacute importante destacar no iniacutecio deste capiacutetulo refere-se agrave

concepccedilatildeo montaigneana de ldquociecircnciardquo que se encontra na ldquoApologie de Raymond

Sebondrdquo Quando Montaigne na sua criacutetica radical agrave razatildeo humana se refere agrave ciecircncia

o que subjaz agraves suas reflexotildees natildeo eacute a concepccedilatildeo moderna de ciecircncia Ele natildeo alude ao

chamado ldquomeacutetodo cientiacutefico experimentalrdquo ateacute porque este meacutetodo ainda natildeo existia O

termo ldquociecircnciardquo natildeo tem o sentido que adquiriu depois da chamada Revoluccedilatildeo

Cientiacutefica do seacuteculo XVII Assim com o termo ciecircncia Montaigne refere-se ao conjunto

do conhecimento erudito de seu tempo

ldquoLa science du XVIᵉ siegravecle nrsquoest que philosophie Elle srsquoarrecircte aux mots jamais elle ne peacutenegravetre au fond des choses et ne suscite un effort critiquerdquo95

Sendo um pensador da uacuteltima fase do periacuteodo renascentista periacuteodo este em que

natildeo havia nenhuma diferenccedila essencial entre a filosofia e a ciecircncia Montaigne procura

expressar as suas ideias os seus ideais de sabedoria como tantos outros faziam isto eacute

quando se refere agrave ciecircncia estaacute a referir-se aos doutos e aos filoacutesofos em geral

Logo no iniacutecio da ldquoApologierdquo Montaigne faz questatildeo de afirmar que a ciecircncia eacute

algo muito uacutetil e grande e os que a menosprezam datildeo prova bastante de estupidez Sem

desprezar agrave partida todo o esforccedilo que muitos fazem para chegar a alcanccedilar o

conhecimento Montaigne por outro lado natildeo chega a estimar tanto a ciecircncia

ldquo[A] Comme Herillus le philosophe qui logeoit en elle le souverain bien et tenoit qursquoil fut en elle de nous rendre sages et contensrdquo96

Montaigne natildeo crecirc nisto nem tampouco no que outros disseram

ldquo[A] que la science est mere de toute vertu et que tout vice este produit par lrsquoignorancerdquo97

Segundo ele mesmo atesta a sua casa esteve habitualmente aberta agraves pessoas de

saber e o seu pai buscou com grande cuidado e despesa o conviacutevio dos homens doutos

ldquo[A] les recevant chez luy comme personnes sainctes et ayans quelque particuliere inspiration de sagesse divine [hellip]rdquo98

95 Villey opcit p 214 96 Les Essais II 12 p 438 97 Les Essais II 12 p 438 98 Les Essais II 12 pp 438-439

35

Embora respirando toda uma atmosfera intelectual que havia em sua casa

Montaigne afirma no entanto que gostava muito destes doutos frequentadores de sua

casa mas natildeo os adorava

Desde as primeiras afirmaccedilotildees de Montaigne na ldquoApologierdquo eacute possiacutevel perceber

ateacute que ponto ele tem dificuldade em aceitar os chamados filoacutesofos de profissatildeo Neste

famoso texto que eacute considerado por Villey ldquole reacutesumeacute du travail logique qui srsquoopegravere

chez Montaigne entre 1573 et 1579 ou 1580rdquo99 podemos encontrar paradoxalmente

por um lado uma valorizaccedilatildeo da razatildeo enquanto uacutenico modo de investigaccedilatildeo dos

doutos e por outro lado que a razatildeo eacute considerada como algo profundamente limitado

enquanto instrumento de acesso ao conhecimento

Montaigne dedica muitas paacuteginas a demonstrar que a ciecircncia fundada na razatildeo

eacute viacutetima da vaidade humana e deve ser contestada Isto pelo facto de que concebe a

ciecircncia como o esforccedilo que deve ser uacutetil agrave nossa felicidade

ldquo[A] la philosophie me doit mettre les armes agrave la main pour combatre la fortune qui me doit roidir le courrage pour fouler aux pieds toutes les advertitez humaines [hellip]rdquo100

O objectivo primeiro da filosofia eacute portanto a vida concreta A atitude vaidosa

da razatildeo na busca do conhecimento causa no homem

ldquo[A] lrsquoinconstance lrsquoirresolution lrsquoincertitude le deuil la superstition la solitude de choses agrave venir voire apres nostre vie lrsquoambition lrsquoavarice la jalousie lrsquoenvie les appetits desreglez foncenez et indomptables la guerre la mensonge la desloyauteacute la detraction et la curiositeacuterdquo101

Segundo Montaigne pagamos um preccedilo elevadiacutessimo por essa bela razatildeo de que

nos gloriamos e por conseguinte tambeacutem pela capacidade de julgar e conhecer

sobretudo se forem adquiridas agrave custa destas paixotildees

Montaigne natildeo vecirc muita necessidade praacutetica de querer mergulhar nos altos

conhecimentos em que a filosofia estaacute imersa Para que serve o conhecimento (fruto da

razatildeo enganadora) de muitas coisas Expressando a sua criacutetica agrave loacutegica aristoteacutelica

afirma ironicamente

ldquo[A] ont-ils tireacute de la Logique quelques consolation agrave la gouterdquo102

99 Villey op cit p 182 100 Les Essais II 12 p 494 101 Les Essais II 12 p 486 102 Les Essais II 12 p 487

36

Prosseguindo no mesmo registo iroacutenico pergunta se acaso se descobriu que a

voluptuosidade e a sauacutede satildeo mais deleitosas para quem conhece a astronomia e a

gramaacutetica e menos importunas agrave desonra e a pobreza103

Montaigne revela um significativo desprezo pelos filoacutesofos que satildeo escravos da

razatildeo e buscam tudo saber e fazer afirmaccedilotildees sobre todas as coisas Ao mesmo tempo

manifesta uma forte tendecircncia para valorizar o homem simples e ignorante

ldquo[A] Jrsquoay veu en mon temps cent artisans cent laboureurs plus sages et plus heureux que des recteurs de lrsquouniversiteacute et lesquels jrsquoaimerois mieux ressemblerrdquo104

Na sua apologia da ignoracircncia declara que o homem tem como quinhatildeo a

presunccedilatildeo e que a ignoracircncia nos eacute recomendada ateacute pela religiatildeo cristatildeldquo[A] La peste

de lrsquohomme crsquoest lrsquoopinion de sccedilavoirrdquo105

Para Montaigne eacute necessaacuterio derrubar a tola vaidade e sacudir de uma maneira

viva e corajosa os fundamentos ridiacuteculos sobre os quais se fundam as falsas ideias

Insiste continuamente no facto de que natildeo necessitamos do saber produzido pela

filosofia

ldquo[A] Crsquoestoit ce que disoit un senateur Romain des derniers siecles que leurs predecesseurs avoient lrsquoaleine puante agrave lrsquoair et lrsquoestomac musqueacute de bonne conscience et qursquoau rebours ceux de son temps se sentoient au dehors que le parfum puans au dedans toutes sorte de vices crsquoest agrave dire comme je pense qursquoils avoient beaucoup de sccedilavoir et de suffisance et grand faute de preudrsquohommierdquo106

O orgulho humano eacute visto pelo autor como algo que atrapalha fortemente na

busca natildeo do conhecimento filosoacutefico claacutessico mas da sabedoria Soacutecrates eacute

referenciado na ldquoApologierdquo entre outras coisas como um grande saacutebio107 Natildeo porque

ldquo[C] le Dieu de sagesse luy avoit attibueacute le surnom de sagerdquo108 mas porque ele mesmo

natildeo se considerava saacutebio e porque a sua melhor ciecircncia era a ciecircncia da ignoracircncia e a

sua melhor sabedoria a simplicidade de espiacuterito

103Cf Les Essais II 12 p 487 104 Les Essais II 12 p 487 105 Les Essais II 12 p 488 106 Les Essais II 12 p 498 107 Podemos encontrar uma quantidade significativa de estudos acerca da figura de Soacutecrates nos Ensaios Destacamos aqui um artigo escrito por Celso Martins Azar Filho cujo tiacutetulo eacute Montaigne e Soacutecrates cepticismo conhecimento e virtuderdquo que estaacute publicado na Revista Portuguesa de Filosofia Tomo LVIII do ano de 2002 Fasc 4 (pp 829-845) Com o seu artigo o autor propotildee-se examinar qual o lugar e a importacircncia deste filoacutesofo no pensamento de Montaigne 108 Les Essais II 12 p 498

37

O verdadeiro saacutebio segundo Montaigne eacute o homem que aprende que natildeo

aprendeu nada Refere-se a isto de uma maneira muito elucidativa

ldquo[A]Il est adnevenu aux gens veacuteritablement sccedilavans ce qui advient aux espics de bled ils vont srsquoeslevant et se haussant la teste droite et fiere tant qursquoil sont vuides mais quand ils sont pleins et grossis de grain en leur maturiteacute ils commencent agrave srsquohumilier et agrave baisser les cornes Pareillement les hommes ayant tout essayeacute et tout sondeacute nrsquoayant trouveacute en cet amas de science et provision de tant de choses diverses rien de massif et ferme et rien que vaniteacute ils ont renonceacute agrave leur presomption et reconneu leur condition naturellerdquo109

Depois de descrever sinteticamente os atributos do saacutebio Montaigne -

considerado como um pensador que popularizou o pirronismo praticando-o

pessoalmente sobretudo na ldquoApologierdquo - afirma que toda a filosofia estaacute distribuiacuteda por

trecircs geacuteneros A sua principal fonte eacute a ediccedilatildeo das obras de Sexto Empiacuterico que surge em

1569 Montaigne enumera estas trecircs filosofias da seguinte maneira haacute os dogmaacuteticos

os acadeacutemicos e os pirroacutenicos110 Os dogmaacuteticos afirmam que se pode ter acesso agrave

ciecircncia os acadeacutemicos natildeo estatildeo de acordo com os dogmaacuteticos isto eacute consideram que

natildeo se pode ter acesso agrave ciecircncia e os pirroacutenicos estatildeo ainda em busca da verdade Estes

declaram que os que pensam havecirc-la encontrado se enganam infinitamente Segundo

Montaigne os pirroacutenicos tecircm como ofiacutecio

ldquo[A] branler douter et enquerir ne srsquoasseurer de rien de rien ne se respondrerdquo111

Esta atitude condu-los segundo Montaigne agrave ataraxia que eacute uma condiccedilatildeo de

vida tranquila sossegada isenta das agitaccedilotildees que recebemos pela impressatildeo da opiniatildeo

e ciecircncia que julgamos ter das coisas Esta indiferenccedila pela ciecircncia liberta os pirroacutenicos

inclusivamente do espiacuterito de rivalidade quanto agrave sua doutrina debatem de maneira bem

pouco vigorosa Quando dizem que o pesado vai para baixo ficariam bastante

aborrecidos se acreditassem neles Sendo assim os pirroacutenicos segundo Montaigne

procuram que os contradigam para gerar ldquo[A] la dubitation et surceance (suspension)

de jugement qui est leur finrdquo112

Os pirroacutenicos satildeo partidaacuterios da duacutevida extrema Expotildeem as suas opiniotildees

apenas para combater aquelas em que pensam que acreditamos Diz Montaigne

109 Les Essais II 12 p 500 110 Les Essais II 12 p 502 111 Les Essais II 12 p 502 112 Les Essais II 12 p 503

38

ldquo[A] Si vous prenez la leur ils prendront aussi volontiers i la contraire agrave soutenir tout leur est un ils nrsquoy ont aucun chois Si vous establissez que la nege soit noire ils augumentent au rebours qursquoelle est blanche Si vous dites qursquoelle nrsquoest ny lrsquoun ny lrsquoautre crsquoest agrave eux agrave maintenir qursquoelle est tous les deux Si par certain jugement vous tenez que vous nrsquoen sccedilavez rien ils vous maintiedront que vous ne sccedilavez Oui et si par un axiome affirmatif vous asseurez que vous en doutez ils vous iront debattant que vous nrsquoen doutez pas ou que vous ne pouvez juger et etablir que vous en doutez Et par cette extremiteacute de doubte qui se secoue soy-mesme ils se separent et se divisent de plusieurs opinions de celles mesme qui ont maintenu en plusieurs faccedilons le double et lrsquoignorancerdquo113

[hellip] Leurs faccedilon de parler sont Je nrsquoestablis rien il nrsquoest non plus ainsi qursquoainsi ou que ny lrsquoun ny lrsquoautre je ne le comprens point les apparences sont eacutegales par tout la loy de parler et pour et contre est pareille [C] Rien ne semble vray qui ne puisse sembler faux [A] Leur mot sacramental crsquoest ἐπέχω crsquoest agrave dire je soutiens je ne bougerdquo114

Os pirroacutenicos servem-se de sua razatildeo para inquirir e debater mas natildeo para

decidir e escolher

Um outro aspecto que leva Montaigne a identificar-se com o pirronismo a uacutenica

filosofia por ele respeitada eacute a visatildeo pirroacutenica relativamente agraves acccedilotildees da vida Os seus

defensores prestam-se e acomodam-se agraves inclinaccedilotildees naturais ao impulso e agrave imposiccedilatildeo

das paixotildees agraves decisotildees das leis e dos costumes

ldquo[A] Ils laissent guider agrave ces choses lagrave leurs actions communes sans aucune opination ou jugement115

Neste sentido Montaigne defende o pirronismo sobretudo por causa de sua

virtude moral116 Sustenta que eacute importante fomentar o juiacutezo livre ou a suspensatildeo do

juiacutezo que eacute a atitude dos pirroacutenicos Por outro lado natildeo pode concordar com a posiccedilatildeo

dos que aceitam a arbitraacuteria submissatildeo a algum tipo de autoridade ou opiniatildeo (os

dogmaacuteticos) Importa salientar no entanto que o autor da ldquoApologierdquo consegue

distanciar-se dos pirroacutenicos que se recusam a fazer qualquer juiacutezo Montaigne por ser

um pensador livre inclusive dos argumentos pirroacutenicos natildeo suspende os seus proacuteprios

113 Les Essais II 12 p 503 114 Les Essais II 12 p 505 115 Les Essais II 12 p 505 116 Para Montaigne o pirronismo natildeo eacute uma doutrina ou um sistema filosoacutefico do qual ele eacute adepto Eacute sobretudo uma atitude de espiacuterito ou uma tendecircncia do pensamento Ele tem consciecircncia da dificuldade que esta filosofia encontra para consolidar-se em termos de coerecircncia loacutegica Se do ponto de vista loacutegico natildeo haacute soluccedilatildeo permanente satisfatoacuteria para o pirronismo ele torna-se uma opccedilatildeo eacutetica na medida em que possibilita aos seus adeptos ldquo[B] de maintenir leur liberteacute et considerer les choses sans obligation et servituderdquo (Les Essais II 12 p 504)

39

juiacutezos Muito pelo contraacuterio emite muitos Exprime as suas opiniotildees sem cessar Chega

ateacute a afirmar que a razatildeo eacute

ldquo[A] sa pierre de touche agrave toutes sortes drsquoessais mais certes crsquoest une touche pleine de fauceteacute drsquoerreur de foiblesse et defaillancerdquo117

Na ldquoApologierdquo Montaigne recorre aos tropos (segundo a designaccedilatildeo de Sexto

Empiacuterico) tomando-os como os principais argumentos contra a filosofia denominada

dogmaacutetica Estes argumentos ceacutepticos tecircm por finalidade provar que eacute impossiacutevel

alcanccedilar a verdade Fundamentado nas reflexotildees pirroacutenicas natildeo considera a ciecircncia

como um verdadeiro conhecimento O saber humano eacute considerado sem efeito por causa

de todo o tipo de divergecircncias que haacute entre os homens

Haacute segundo Montaigne uma imensa e infinita confusatildeo de opiniotildees entre os

filoacutesofos e tudo isto deve-se ao debate perpeacutetuo e universal acerca do conhecimento das

coisas Eles natildeo estatildeo de acordo em nada nem sequer em que o ceacuteu estaacute por cima das

nossas cabeccedilas118 afirma ironicamente E isto deve-se agrave falta de constacircncia do juiacutezo

Quantas vezes julgamos noacutes as coisas Quantas vezes alteramos as nossas opiniotildees

Nesta perspectiva percebemos a atitude relativista de Montaigne

ldquo[A] Ce que je tiens aujourdhuy et ce que je croy je le tiens et le croy de toute ma croyance tous mes utils et tous mes ressorts empoignent cette opinion et men respondent sur tout ce quils peuvent Je me sccedilaurois embrasser aucune veriteacute ny conserver avec plus de force que je fay cette cy Jy suis tout entier jy suis voyrement mais ne mest il pas advenu non une foi mais cent mais mille et tous les jours davoir embrasseacute quelqursquoautre chose agrave tout ces mesmes instrumens en cette mesme condition que depuis jaye jugeacutee fauce Au moins faut il devenir sage agrave ses propres despansrdquo119

Montaigne natildeo pretende condenar a tendecircncia agrave mudanccedila perene que eacute

constitutiva do homem O que ele pretende eacute que o homem se comporte de uma forma

mais moderada e discreta em face das mudanccedilas Sugere que nos tornemos saacutebios agrave

nossa proacutepria custa120

117 Les Essais II 12 p 540 118 Cf Les Essais II 12 p 563 119 Les Essais II 12 p 563 120 Conche na sua obra de introduccedilatildeo aos Essais intitulada Montaigne ou la conscience heureuse apresenta uma reflexatildeo muito sugestiva relativamente ao tema da sabedoria Para este autor os Essais sugerem-nos que compreendamos a filosofia como uma aprendizagem da sabedoria e natildeo do saber Em seu entender Montaigne natildeo tem nenhum interesse em elaborar um sistema filosoacutefico porque isto supotildee que uma verdade permanece o que ela eacute Um sistema filosoacutefico crecirc que haacute verdades e que elas satildeo acessiacuteveis por evidecircncia ou seja que a certeza posta agrave prova eacute realmente uma certeza de direito Estes princiacutepios satildeo sem valor para Montaigne eleja que este natildeo crecirc na possibilidade de confirmar as nossas certezas (cf Conche 2009 op cit 65)

40

O arauto do juiacutezo eacute o homem concreto que vive uma vida real Natildeo eacute um ser

abstracto Por isso Montaigne afirma

ldquo[A] Ce ne sont pas seulement les fievres les breuvages et les grands accidens qui renversent nostre jugement les moindres choses du monde le tournevirent [hellip] et par conseacutequent agrave peine se peut il rencontrer une seule heure en la vie ougrave nostre jugement se trouve en sa deueuml assiette nostre corps estant subject agrave tant de continuelles mutations et estofeacute de tant de sortes de ressorts que ( jen croy les medecins) combien il est malaiseacute quil ny en ayt tousjours quelquun qui tire de traversrdquo121

Vejamos uma definiccedilatildeo da razatildeo na ldquoApologierdquo

ldquo[A] la raison va tousjours torte et boiteuse et deshancheacutee et avec le mensonge comme avec la veriteacute Par ainsin il est malaiseacute de descouvrir son mescompte et desreglement Jappelle tousjours raison cette apparence de discours que chacun forge en soy cette raison de la condition de laquelle il y en peut avoir cent contraires autour dun mesme subject cest un instrument de plomb et de cire alongeable ployable et accommodable agrave tous biais et agrave toutes mesures il ne reste que la suffisance de le sccedilavoir contournerrdquo122

Atraveacutes desta concepccedilatildeo de razatildeo fica suficientemente clara a criacutetica destruidora

de Montaigne agrave filosofia dogmaacutetica que considera a razatildeo como uma faculdade que

permite ao homem ndash entre tantas outras atribuiccedilotildees ndash conhecer e acumular um saber uacutetil

e julgar sobre o bem e o mal

Envolvendo-se de uma maneira muito pessoal ndash como eacute caracteriacutestico do estilo

literaacuterio dos Essais ndash nesta reflexatildeo sobre a razatildeo Montaigne toma a liberdade de fazer

uma pequena descriccedilatildeo de sua personalidade Vale a pena citar algumas destas

passagens porque satildeo um reflexo do pensamento do autor

ldquo[A] Jay le pied si instable et si mal assis je le trouve si ayseacute agrave crouler et si prest au branle et ma veueuml si desregleacutee que agrave jun je me sens autre quapres le repas si ma santeacute me rid et la clarteacute dun beau jour me voylagrave honneste homme si jay un cor qui me presse lorteil me voylagrave renfroigneacute mal plaisant et inaccessible [hellip] Maintenant je suis agrave tout faire maintenant agrave rien faire ce qui mest plaisir agrave cette heure me sera quelque fois peine [hellip] Ou lhumeur melancholique me tient ou la choleriqu [hellip]Quand je prens des livres jauray apperceu en tel passage des graces excelentes et qui auront feru mon ame quun autre fois jy retombe jay beau le tourner et virer jay beau le plier et le manier cest une masse inconnue et informe pour moy [hellip] [B] [hellip] mon jugement ne tire pas tousjours avant il flotte il vaguerdquo123

121 Les Essais II 12 pp 564-565 122 Les Essais II 12 p 565 123 Les Essais II 12 pp 565-566

41

Montaigne daacute-se claramente conta de que natildeo encontramos seguranccedila nos

nossos juiacutezos As nossas paixotildees apresentam uma enorme quantidade de fantasias

Sobre isto natildeo podemos alcanccedilar nenhuma seguranccedila porque nos deparamos com

coisas muito instaacuteveis e moacuteveis Sustenta aleacutem disso que se os nossos juiacutezos estatildeo nas

matildeos ateacute mesmo da doenccedila e da perturbaccedilatildeo natildeo podemos esperar deles nada seguro

Foi a partir desta consciecircncia de sua volubilidade que Montaigne chegou a

estabelecer em si mesmo uma certa constacircncia de ideias a ponto de dificilmente alterar

as ideias primeiras e naturais como ele mesmo reconhece Afirma no entanto que natildeo

eacute capaz de decidir Por isso adopta as decisotildees de outrem e manteacutem-se na posiccedilatildeo em

que Deus o pocircs O seu ldquoconservadorismordquo124 religioso e ateacute poliacutetico manifesta-se

claramente nos Essais Mas ao mesmo tempo e este eacute o ponto que mais nos interessa

neste trabalho deixa transparecer que o homem eacute sempre convidado a estar aberto agraves

mudanccedilas

ldquo[A] Le ciel et les estoilles ont branleacute trois mille ans tout le monde lavoit ainsi creu jusques agrave ce que [C] Cleanthes le Samien ou selon Theophraste Nicetas Siracusien [A] savisa de maintenir que cestoit la terre qui se mouvoit [C] par le cercle oblique du Zodiaque tournant agrave lentour de son aixieu [A] et de nostre temps Copernicus a si bien fondeacute cette doctrine quil sen sert tres-regleacuteement agrave toutes les consequences Astronomiquesrdquo conclui o autor ldquosinon qursquoil ne nous doit chaloir le quel ce soit des deux Et qui sccedilait qursquoune tierce opinion drsquoicy agrave mille ans ne renverse les deux precedentesrdquo125

124 Trata-se de um termo que natildeo tinha na eacutepoca de Montaigne o mesmo significado que tem hoje isto eacute como oposto de ldquoprogressismordquo Montaigne estava inserido numa sociedade marcada por grandes inovaccedilotildees pretendidas pelos partidaacuterios da Reforma Protestante que se defendiam a ferro e fogo acirrando certezas antes adormecidas e impondo agrave Franccedila as mais seacuterias turbulecircncias ldquo[B] Je suis desgousteacute de la nouvelleteacute quelque visage qursquoelle porte et ay raison car jrsquoen ay veu des effets tres-dommageables Celle qui nous presse depuis tant drsquoans elle nrsquoa pas tout exploicteacute mais on peut dire avec apparence que par accident elle a tout produict et engendre voire et les maux et ruines qui se font depuis sans elle et contre elle crsquoest agrave elle agrave srsquoen prendre au nezrdquo (Les Essais I 23 p 119) Eacute nesta perspectiva que vaacuterios comentadores observam que Montaigne natildeo poderia ser um homem ldquorevolucionaacuteriordquo e sim algueacutem que achasse melhor defender uma confianccedila moderada no lento aperfeiccediloamento das instituiccedilotildees ldquo[C] Les Franccedilois mes contemporaneacutees sccedilavent bien qursquoen dire Toutes grandes mutations esbranlent lrsquoestat et le desordonnentrdquo (Les Essais III 9 p 958) Isto permite compreender melhor alguns dos motivos pelos quais Montaigne assume as posiccedilotildees poliacuteticas e religiosas ldquoconservadorasrdquo que estatildeo presentes nos Essais Muito interessante eacute uma afirmaccedilatildeo de Jean Lacouture na sua obra Montaigne agrave cheval ndash considerada como uma espeacutecie de biografia que denota um entusiasmo significativo e algo romanceado fundamentada numa documentaccedilatildeo importante ndash na qual o autor reflecte sobre esta questatildeo ldquoMontaigne eacute grande o bastante para poder ser avaliado sob outros aspectos que natildeo a obediecircncia agraves praacuteticas e costumes de seu tempo Quando se eacute capaz no que diz respeito agrave justiccedila agrave toleracircncia ao racismo e agrave colonizaccedilatildeo de estar muitos seacuteculos agrave frente dos costumes e ideias de seu tempo pode-se ser julgado sem que consideraccedilotildees de eacutepoca ou de moda sejam levadas em contardquo (In Lacouture Jean Montaigne agrave cheval (Montaigne a cavalo) Traduzido do francecircs por F Rangel Rio de JaneiroSatildeo Paulo Editora Record 1998 p 236) 125 Les Essais II 12 p 570

42

E para fundamentar ainda mais esta ideia cita Lucreacutecio

ldquo[A] Sic volvenda aeligtas commutat tempora rerum Quod fuit in pretio fit nullo denique honore Porro aliud succedit et egrave contemptibus exit Inque dies magis appetitur floreacutetque repertum Laudibus Et miro est mortales inter honore ( ldquoAinsi dans sa course le temps change les conditions des choses ce qui eacutetait appreacutecieacute tombe dans le meacutepris un autre objet remplace le premier et sort du discreacutedit de jour en jour on le recherce davantage la deacutecouverte nouvelle toutes les louanges et une incoyable estime parmi les hommes)rdquo126

Podemos inferir daqui que ldquoos princiacutepios eternosrdquo natildeo tecircm lugar na ldquoApologie

de Raymond Sebondrdquo Montaigne faz questatildeo de observar que antes de os princiacutepios

introduzidos por Aristoacuteteles ganharem creacutedito outros princiacutepios contentavam a razatildeo

humana Os princiacutepios aristoteacutelicos como todos os outros natildeo estatildeo mais livres de ser

expulsos do que estavam os dos seus antecessores

Segundo Montaigne o juiacutezo depende dos sentidos aos quais por sua vez natildeo

podemos dar creacutedito por vaacuterios motivos Vejamos com mais detalhes este aspecto Eacute

justamente nos sentidos que se encontra o maior fundamento e a prova de nossa

ignoracircncia Montaigne baseado na experiecircncia de vida lembra-nos que natildeo haacute sentido

ou aspecto nem recto nem amargo nem doce nem curvo que o espiacuterito humano natildeo

encontre nos escritos que decide esquadrinhar Os sentidos satildeo muito enganadores A

palavra mais liacutempida mais pura e mais perfeita pode tornar-se equiacutevoca Montaigne

refere-se especialmente ao Evangelho127 Fizeram ao longo da histoacuteria ldquotudo e mais

alguma coisardquo com este texto sagrado para os cristatildeos E que ocorreria se estendecircssemos

esta preocupaccedilatildeo de Montaigne aos gestos humanos que querem exprimir ideias ou

sentimentos nas vaacuterias dimensotildees da vida moral poliacutetica etc

ldquo[C] Est-il possible qursquoHomere aye voulu dire tout ce qursquoon luy faict direrdquo128 E com relaccedilatildeo a Platatildeo ldquo[C] Voyez demener et agiter Platon Chacun srsquohororant de lrsquoappliquer agrave soi le couche du costeacute qursquoil le veutrdquo129

Montaigne observa ainda que com frequecircncia eacute difiacutecil decidir-se porque haacute

demasiadas formas de interpretar um determinado assunto para que o homem consiga

encontrar alguma indicaccedilatildeo que lhe sirva para resolver a questatildeo

126 Les Essais II 12 p 570 127 Cf Les Essais II 12 p 585 128 Les Essais II 12 p 586 129 Les Essais II 12 p 587

43

Montaigne afirma que todo o conhecimento chega ateacute noacutes pelos sentidos [A] Ce

sont nos maistresrdquo130 Observa que a ciecircncia comeccedila pelos sentidos e a eles se reduz

Eles satildeo a base e os princiacutepios de toda a construccedilatildeo de nossa ciecircncia E considera que

natildeo haacute absurdo mais extremo do que sustentar que

ldquo[A] le feu nrsquoeschaufe point que la lumiere nrsquoesclaire point qursquoil nrsquoy a point de pesanteur au fer ny de fermeteacute qui sont notices que nous apportent les sens nycreance ou science en lrsquohomme qui se puisse comparer agrave celle-lagrave en certituderdquo131

Montaigne potildee em duacutevida que o homem esteja provido de todos os sentidos

naturais Chega inclusivamente a perguntar-se se natildeo nos falta algum sentido E afirma

que se isto ocorrer nem a nossa razatildeo pode descobrir a sua ausecircncia nem haacute nada agrave

margem dos sentidos que nos possa servir para os descobrir

ldquo[A]Ils font trestons la ligne extreme de nostre faculteacute [hellip] Il est impossible de faire concevoir agrave un homme naturellement aveugle qursquoil nrsquoy void pas impossible de luy faire desirer la veue et regretter son defautrdquo132

Sendo assim afirma que quando formamos uma verdade pela consulta e

cooperaccedilatildeo dos sentidos poderiacuteamos tambeacutem ser levados a considerar que poderia ser

necessaacuteria a convergecircncia e a contribuiccedilatildeo de oito ou dez sentidos para a captar

acertadamente e na sua essecircncia

Uma das criacuteticas fundamentais de Montaigne agrave ciecircncia incide precisamente no

facto de ela se basear nos sentidos Mas como vimos os sentidos satildeo muito incertos e

fraacutegeis Desta extrema dificuldade nascem muitas opiniotildees (ldquofantasiesrdquo)

ldquo[A]Que chaque subjet a en soy tout ce que nous y trouvons qursquoil nrsquoa rien de ce que nous y pensons trouver et celle de Epicuriens que le Soleil nrsquoest non plus grand que ce que nostre veueuml le juge [hellip] (A) que les apparences qui representent un corps grand agrave celuy qui en est voisin et plus petit agrave celuy qui en est esloigneacute sont toutes deux vrayes [hellip] [A]et resolument qursquoil nrsquoy a aucun tromperie aux sens qursquoil faut passer agrave leur mercy et chercher ailleurs des raisons pour excuser la difference et contradiction que nous y trouvons voyre inventer toute autre mensonge et resverie (ils en viennent jusques lagrave) plustot que drsquoaccuser les sens [hellip] [A] De toutes les absurditez la plus absurde [C] aux Epicuriens [A] est davouumler la force et effect des sensrdquo133

130 Les Essais II 12 p 587 131 Les Essais II 12 p 588 132 Les Essais II 12 p 589 133 Les Essais II 12 p 591

44

Segundo Montaigne natildeo podemos livrar-nos dos sentidos se queremos construir

o conhecimento Mas os sentidos satildeo incertos falsificaacuteveis e enganadores134 E entende

tambeacutem que se eacute verdade que os sentidos satildeo os nossos primeiros juiacutezes135 entatildeo natildeo

devemos limitar-nos a convocar apenas os nossos para o conselho pois no que se refere

aos sentidos os animais tecircm tanto direito quanto noacutes ou mais Montaigne observa ainda

que os sentidos do homem estatildeo em desacordo com os sentidos dos animais E eacute por isto

que

ldquo[A] Pour le jugement de lrsquoaction des sens il faudroit donc que nous en fussions premierement drsquoaccord avec les bestes secondement entre nous mesmes [hellip] et entrons en debat tous les coups de ce que lrsquoun oit void ou goute quelque chose autrement qursquoun autre et debatons autant que drsquoautre chose de la diversiteacute des images que le sens nous raportentrdquo136

Concluindo a exposiccedilatildeo acerca dos sentidos Montaigne lembra-nos que os

sentidos satildeo para algumas pessoas mais obscuros e mais velados enquanto que para

outras pessoas satildeo mais claros e apurados Em seu entender recebemos as coisas de

forma diferente de acordo com o que somos e com o que nos parece Mas se o parecer

nos eacute tatildeo incerto e controverso

ldquo[A] Ce nrsquoest plus miracle si on nous dict que nous pouvons avoueumlr que la neige nous apparoit blanche mais que drsquoestablir si de son essence elle est telle et agrave la veriteacute nous ne nous en sccedilaurions respondrerdquo137

Tendo em conta todos os atributos dos sentidos acima mencionados Montaigne

dificilmente poderia chegar a uma outra conclusatildeo

ldquo[A] ce commencement esbranleacute toute la science du monde srsquoen va necessairement agrave vau-lrsquoeaurdquo138

Referindo-se a Teofrasto Montaigne recorda-nos que este pensador dizia que o

conhecimento humano guiado pelos sentidos podia julgar sobre as causas das coisas

ateacute certo ponto Mas que ao chegar agraves causas extremas e primeiras tinha de deter-se a

embotar-se devido ou agrave sua fragilidade ou agrave dificuldade das coisas Montaigne afirma

134 Assim como os sentidos satildeo enganadores satildeo tambeacutem enganados ldquo[A] Cette mesme piperie que les sens apportent agrave nostre entendement ils la reccediloivent agrave leur tour Nostre ame par fois srsquoen revenche de mesme [C] ils mentent et se trompent agrave lrsquoenvy [A] Ce que nous voyons et oyons agitez de colere nous ne lrsquooyons pas tel qursquoil est [hellip] Lrsquoobject que nous aymons nous semble plus beau qursquoil est [hellip] [A] et plus laid celuy que nous avons agrave contre coeur [hellip] Nos sens sont non seulement alterez mais souvent hebelez du tout par les passions de lrsquoame Combien de choses voyons nous que nous nrsquoa appercevons pas si nous avons nostre esprit empescheacute ailleurs (Les Essais II 12 pp 495-496) 135 Cf Les Essais II 12 p 596 136 Les Essais II 12 p 598 137 Les Essais II 12 pp 598-599 138 Les Essais II 12 p 599

45

ldquo[A] Cest une opinion moyenne et douce que nostre suffisance nous peut conduire jusques agrave la cognoissance daucunes choses et quelle a certaines mesures de puissance outre lesquelles cest temeriteacute de lemployer Cette opinion est plausible et introduicte par gens de composition mais il est malaiseacute de donner bornes agrave nostre esprit il est curieux et avide et na point occasion de sarrester plus tost agrave mille pas quagrave cinquanterdquo139

Montaigne procura aqui justificar a sua tese de que o conhecimento empiacuterico ou

sensiacutevel natildeo tem condiccedilotildees para permitir captar princiacutepios e verdades universais A

razatildeo humana por ser um instrumento impotente natildeo consegue dar explicaccedilotildees

convincentes das grandes questotildees da humanidade Consegue apenas explicar algumas

poucas coisas Se a razatildeo eacute incapaz de dar respostas profundas e aceitaacuteveis agraves grandes

questotildees ndash como por exemplo agraves causas primeiras ndash ela eacute descartaacutevel e no que toca agrave

busca do conhecimento natildeo serve para quase nada Daiacute que Montaigne afirme que o

homem eacute capaz de todas as coisas e de nenhuma E se confessa a ignoracircncia das causas

primeiras e dos princiacutepios entatildeo que abandone tambeacutem prontamente todo o resto da sua

ciecircncia

Se a alma conhecesse alguma coisa comeccedilaria por se conhecer a si mesma

ldquo[A] et si elle sccedilavoit quelque chose elle se sccedilauroit premierement elle mesme et si elle sccedilavoit quelque chose hors drsquoelle ce seroit son corps et son estuy avant toute autre choserdquo140

Montaigne refere-se aqui especialmente ao chamado conhecimento da medicina

Para ele a medicina natildeo consegue sair do ciclo vicioso das discussotildees Ressalta o facto

de que ldquoles dieuxrdquo desta ciecircncia tambeacutem natildeo conseguem chegar a acordo algum Daiacute

mais uma vez a atitude pirroacutenica de Montaigne

ldquo[A] Si lrsquohomme ne se connoit comment connoit il ses fonctions et ses forcesrdquo141

O autor debate-se com o problema da verdade o que eacute a verdade Na

ldquoApologierdquo sustenta que a verdade eacute inacessiacutevel e flutuante Neste ponto Montaigne eacute

fiel ao cepticismo que tem como caracteriacutestica dominante a atitude de estar sempre em

busca da verdade num processo que ocorre sempre dentro de um eterno movimento e

nunca se fixa definitivamente em nenhum ponto

139 Les Essais II 12 p 560 140 Les Essais II 12 p 561 141 Les Essais II 12 p 561

46

ldquo[B] La veueuml de nostre jugement se rapporte agrave la veriteacute comme faict loeil du chat-huant agrave la splendeur du Soleil ainsi que dit Aristote Par ougrave le sccedilaurions nous mieux convaincre que par si grossiers aveuglemens en une si apparente lumiererdquo142

Esta concepccedilatildeo flutuante da verdade eacute uma caracteriacutestica distintiva natildeo soacute da

ldquoApologierdquo mas tambeacutem de outros ensaios montaigneanos O autor natildeo faz nenhuma

afirmaccedilatildeo definitiva sobre nenhuma questatildeo A sua preocupaccedilatildeo principal natildeo eacute

encontrar a soluccedilatildeo dos diversos problemas que envolvem o homem mas sim tentar

compreender-se a si proacuteprio ldquo[hellip] je suis moy-mesmes la matiere de mon livrerdquo143 Isto

exclui as verdades fixadas pela tradiccedilatildeo filosoacutefica e neste sentido o pensamento de

Montaigne desenvolve-se agrave margem do dogmatismo Rejeita os pedantes isto eacute aqueles

que acreditam que adquirem o conhecimento utilizando termos palavras ou frases

obscuros

Montaigne insiste na dimensatildeo instaacutevel e incerta do nosso conhecimento que

natildeo consegue alcanccedilar a verdade

ldquo[A] Toutes choses produites par nostre propre discours et suffisance autant vrayes que fauces sont subjectes agrave incertitude et debat Cest pour le chastiement de nostre fierteacute et instruction de nostre misere et incapaciteacute que Dieu produisit le trouble et la confusion de lancienne tour de Babel Tout ce que nous entreprenons sans son assistance tout ce que nous voyons sans la lampe de sa grace ce nest que vaniteacute et folie Lessence mesme de la veriteacute qui est uniforme et constante quand la fortune nous en donne la possession nous la corrompons et abastardissons par nostre foiblesserdquo144

A verdade deve ter ldquo[A] un visage pareil et universelrdquo145 Uma outra

caracteriacutestica da verdade salientada por Montaigne eacute que ela ldquo[A] ne se juge point par

authoriteacute et tesmoignage drsquoautruyrdquo146 Neste sentido a verdade eacute fundamentalmente

pessoal Observando cuidadosamente estes atributos da verdade podemos perceber por

que razatildeo Montaigne faz a seguinte afirmaccedilatildeo

ldquo[A] la veriteacute est engoufleacutee dans des profonds abysmes ougrave la veueuml humaine ne peut penetrerrdquo147

Dito de outro modo a verdade estaacute oculta em Deus e natildeo eacute propriamente dos

homens dos filoacutesofos dos doutos

142 Les Essais II 12 p 552 143 Les Essais Au lecteur p 3 144 Les Essais II 12 p 553 145 Les Essais II 12 pp 578-579 146 Les Essais II 12 p 507 147 Les Essais II 12 p 561

47

ldquo[A] Crsquoest agrave elle (la majesteacute divine) seule qursquoapartient la science et la sapiencerdquo148

A criacutetica montaigneana agrave razatildeo humana manifesta aqui a impossibilidade de se

ter um conhecimento crediacutevel em todos os domiacutenios da vida A razatildeo por ser

infinitamente limitada natildeo consegue chegar a ser uma faculdade que garanta a

descoberta e por conseguinte a sistematizaccedilatildeo da verdade que eacute algo moacutevel pessoal

temporal e tambeacutem paradoxal

Lendo os pensadores antigos Montaigne suscita uma questatildeo fundamental Em

seu entender haacute uma espeacutecie de distanciamento ou divoacutercio entre o conhecimento da

essecircncia e o conhecimento da aparecircncia Como eacute possiacutevel entatildeo observa Montaigne

que eles se deixam vencer pela verosimilhanccedila se natildeo conhecem a verdade Como eacute

possiacutevel que conheccedilam a aparecircncia de algo cuja essecircncia natildeo conhecem Diante destas

dificuldades o autor da ldquoApologierdquo sustenta

ldquo[A] Ou nous pouvons juger tout agrave faict ou tout agrave faict nous ne le pouvons pas Si noz facultez intellectuelles et sensibles sont sans fondement et sans pied si elles ne font que floter et vanter pour neant laissons nous emporter nostre jugement agrave aucune partie de leur operation quelque apparence quelle semble nous presenter et la plus seure assiette de nostre entendement et la plus heureuse ce seroit celle-lagrave ougrave il se maintiendroit rassis droit inflexible sans bransle et sans agitationrdquo149

Segundo Montaigne as coisas natildeo se alojam em noacutes com a sua forma e a sua

essecircncia Se assim fosse recebecirc-las-iacuteamos dessa forma O vinho seria o mesmo na boca

de quem quer que fosse Mas natildeo eacute o que acontece a filosofia causa uma infinita

confusatildeo de opiniotildees e um eterno debate sobre o conhecimento das coisas Deixemos o

proacuteprio autor falar

ldquo[A]Car cela est presuposeacute tres-veritablement que de aucune chose les hommes je dy les sccedilavans les mieux nais les plus suffisans ne sont daccord non pas que le ciel soit sur nostre teste car ceux qui doutent de tout doutent aussi de cela et ceux qui nient que nous puissions aucune chose comprendre disent que nous navons pas compris que le ciel soit sur nostre teste et ces deux opinions sont en nombre sans comparaison les plus fortesrdquo150

Montaigne reconhece que os seus juiacutezos acerca de tudo aquilo que eacute falso eou

verdadeiro ocorrem de uma maneira condicionada dependendo da sua situaccedilatildeo interior

148 Les Essais II 12 p 448 149 Les Essais II 12 p 562 150 Les Essais II 12 p 563

48

e exterior A sua posiccedilatildeo em face das diversas situaccedilotildees concretas da vida eacute muito

dependente das suas opiniotildees que podem ser hoje umas e outras diferentes ou ateacute

contraacuterias amanhatilde Em seu entender ateacute o proacuteprio ar que respiramos e a serenidade do

ceacuteu produzem em noacutes alguma alteraccedilatildeo Recorda um verso de Ciacutecero

ldquo[A] Tales sunt hominum mentes quali pater ipse Juppiter auctifera lustravit lampade terras (Les penseacutees des hommes changent avec les rayons feacutecundants du soleil que Jupiter leur envoie)rdquo151

Noutro ensaio do livro III intitulado ldquoDu repentirrdquo Montaigne depois de afirmar

que o mundo eacute movimento e que tudo nele muda continuadamente faz uma observaccedilatildeo

de grande importacircncia que pode ser inserida neste contexto

ldquo[B] Tant y a que je me contredits bien agrave lrsquoaventure mais la veriteacute comme disoit Demandes je ne la contredy point Si mon ame pouvoit prendre pied je ne mrsquoessaierois pas je me resoudrois elle est toujours en apprentissage et en espreuverdquo152

Montaigne questiona de forma radical todos os que se orgulham de sua razatildeo e

acreditam na certeza de todos os seus princiacutepios Utiliza a proacutepria razatildeo para arruinar a

razatildeo dos filoacutesofos profissionais ou seja os seguidores cegos da loacutegica aristoteacutelica Em

suma combate a razatildeo com a proacutepria razatildeo e nega o seu valor

No texto seguinte Montaigne faz uma espeacutecie de caracterizaccedilatildeo da

escolaacutestica153 e da loacutegica aristoteacutelica154 Eacute um texto fundamental da ldquoApologierdquo no

qual o autor se refere claramente agrave hierarquia filosoacutefica aristoteacutelica na qual

encontramos a metafiacutesica como ldquociecircncia mais correctardquo

ldquo[A] Il est bien aiseacute sur des fondemens avouez de bastir ce quon veut car selon la loy et ordonnance de ce commencement le reste des pieces du bastiment se conduit ayseacuteement sans se deacutementir Par cette voye nous trouvons nostre raison bien fondeacutee et discourons agrave boule veue car nos maistres praeligoccupent et gaignent avant main autant de lieu en nostre creance quil leur en faut pour conclurre apres ce quils veulent agrave la mode des Geometriens par leurs demandes avoueacutees le consentement et

151 Les Essais II 12 p 564 152 Les Essais III 2 p 805 153 Na eacutepoca em que Montaigne escreveu a ldquoApologierdquo a doutrina escolaacutestica era caracterizada por um excesso de formalismo e de abstracccedilatildeo o que o levou a demonstrar uma aversatildeo profunda por essa filosofia 154 Segundo Friedrich haacute na ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo alguns ldquofaibles tracesrdquo de uma leitura de Aristoacuteteles jaacute que naquela eacutepoca este pensador grego exercia a sua uacuteltima grande influecircncia sobre os humanistas Aristoacuteteles eacute para Montaigne a ldquoquintessencerdquo da autoridade magistral que obstaculiza a sua relaccedilatildeo livre com a tradiccedilatildeo ldquoSa doctrine nous sert de loy magistrale qui est agrave lrsquoaventure autant fause qursquoune autrerdquo (Les Essais II 12 p 521 a 279) Friedrich observa no entanto que natildeo eacute possiacutevel fixar exactamente em que medida Montaigne leu Aristoacuteteles e considera que natildeo se trata de uma leitura muito soacutelida (Cf Friedrich op cit p 67)

49

approbation que nous leurs prestons leur donnant dequoy nous trainer agrave gauche et agrave dextre et nous pyroueter agrave leur volonteacute Quiconque est creu de ses presuppositions il est nostre maistre et nostre Dieu il prendra le plant de ses fondemens si ample et si aiseacute que par iceux il nous pourra monter sil veut jusques aux nueumls En cette pratique et negotiation de science nous avons pris pour argent content le mot de Pythagoras que chaque expert doit estre creu en son art Le dialecticien se rapporte au grammairien de la signification des mots le Rhetoricien emprunte du Dialecticien les lieux des arguments le poete du musicien les mesures le geometrien de larithmeticien les proportions les metaphysiciens prennent pour fondement les conjectures de la physique Car chasque science a ses principes presupposez par ougrave le jugement humain est brideacute de toutes parts Si vous venez agrave choquer cette barriere en laquelle gist la principale erreur ils ont incontinent cette sentence en la bouche quil ne faut pas debattre contre ceux qui nient les principesrdquo155

Se a verdade ndash como tudo parece indicar ndash se daacute a conhecer atraveacutes das causas ndash

haveraacute que fazer referecircncia agraves quatro causas156 presentes na filosofia aristoteacutelica Se o

homem realmente conseguir conhecer estas causas teraacute um conhecimento ldquocientiacuteficordquo

da substacircncia que procura Por isso Montaigne quer invalidar a filosofia dita dogmaacutetica

de Aristoacuteteles rejeitando claramente a tese das quatro causas Em seu entender esta

teoria natildeo passa de um engano O autor da ldquoApologierdquo sugere que a teoria das quatro

causas soacute serve para prejudicar os homens que ludibriados pelo poder da razatildeo natildeo

cessam de correr atraacutes do conhecimento das causas que lhe eacute por seu turno inacessiacutevel

A verdade das causas estaacute acima de nossas capacidades racionais

Assumindo a postura pirroacutenica de Sexto Empiacuterico ndash que foi aliaacutes um aceacuterrimo

opositor de Aristoacuteteles ndash Montaigne procurou fazer algo semelhante Isto eacute procurou

atacar as bases da ciecircncia escolaacutestica (sobretudo preocupada em conciliar a razatildeo com a

feacute apoiando-se na filosofia grega principalmente a aristoteacutelica) e por conseguinte de

todos os outros sistemas dogmaacuteticos Numa perspectiva ceacuteptica sextiana Montaigne

trava uma batalha contra os princiacutepios da metafiacutesica tidos como os mais correctos Esta

visatildeo aristoteacutelica quer estabelecer uma ligaccedilatildeo entre o pensamento e o juiacutezo humanos e

os obriga a natildeo evitar as questotildees preacute-existentes Segundo Montaigne esta concepccedilatildeo

155 Les Essais II 12 p 540 156 Aristoacuteteles apresenta estas causas particularmente nos livros I e II da Metafiacutesica Satildeo elas causa material isto eacute aquilo de que eacute feita uma coisa por exemplo a mateacuteria do homem eacute a carne e os ossos a mateacuteria da mesa eacute a madeira e assim por diante causa formal isto eacute a forma ou essecircncia das coisas por exemplo o rio e o mar satildeo as formas da aacutegua um tapete eacute a forma assumida pela mateacuteria latilde com a acccedilatildeo do artiacutefice causa eficiente ou motriz isto eacute aquilo de que provecircm a mudanccedila e o movimento das coisas por exemplo o artiacutefice eacute a causa eficiente que faz a latilde receber a forma do tapete o gelo eacute a forma que faz os corpos quentes tornarem-se frios e causa final isto eacute a causa que constitui o fim ou o propoacutesito das coisas e acccedilotildees por exemplo o bem eacute a causa final da poliacutetica a felicidade eacute a causa final da acccedilatildeo eacutetica e assim por diante

50

tambeacutem natildeo potildee em evidecircncia o facto de que o conhecimento adquirido por este

processo fica enclausurado dentro de um ciacuterculo vicioso Deixemos o proacuteprio autor

falar

ldquo[A] Pour juger des apparences que nous recevons des subjets il nous faudroit un instrument judicatoire pour verifier cet instrument il nous y faut de la demonstration pour verifier la demonstration un instrument nous voila au rouet Puis que les sens ne peuvent arrester nostre dispute estans pleins eux-mesmes dincertitude il faut que ce soit la raison aucune raison ne sestablira sans une autre raison nous voylagrave agrave reculons jusques agrave linfiny Nostre fantasie ne sapplique pas aux choses estrangeres ains elle est conceue par lentremise des sens et les sens ne comprennent pas le subject estranger ains seulement leurs propres passions et par ainsi la fantasie et apparence nest pas du subject ains seulement de la passion et souffrance du sens laquelle passion et subject sont choses diverses parquoy qui juge par les apparences juge par chose autre que le subject [hellip]rdquo157

Os escolaacutesticos natildeo testaram as suas ideias atraveacutes dos factosldquoIls ne se

rapportent pas agrave lrsquoexpeacuterience ils nrsquoessaient jamais leurs opinions Leur travail consiste

uniquement agrave tirer des deacuteductions de principes et drsquoaxiomes qursquoils nrsquoexaminent jamais

Leurs principes sont faux les conseacutequences qursquoils en deacuteduisent sont donc fausses

neacutecessairement mais ils ne srsquoen soucient pas La meacutethode scolastique et logicienne

triomphe toujours et rend tous les efforts steacuterilesrdquo158 Montaigne daacute-se conta de que a

capacidade do homem de conhecer algo estaacute profundamente relacionada com a

contingecircncia e que esta mesma capacidade estaacute subordinada aos sentidos que satildeo

ldquomaintesfois maistres du discoursrdquo159 mas que ao mesmo tempo satildeo incertos e

falsificaacuteveis E portanto esta ciecircncia eacute incapaz de chegar a certezas crediacuteveis

157 Les Essais II 12 pp 600-601 158 Villey op cit pp 214-215 159 Les Essais II 12 p 592

51

4 A criacutetica agrave razatildeo humana e o relativismo da moral

Quando lemos a ldquoApologie de Raymond de Sebondrdquo aleacutem de nos depararmos

com problemas claacutessicos da filosofia como a criacutetica agrave teoria do conhecimento

deparamo-nos tambeacutem com o problema da moral de que o autor se ocupa de uma

maneira muito particular Natildeo apresentaremos neste capiacutetulo uma abordagem detalhada

e detida do tema da moral na ldquoApologierdquo Isto exigiria uma investigaccedilatildeo aprofundada e

de maior amplitude uma vez que o autor desenvolve neste texto muitos aspectos

importantes deste tema

Limitar-nos-emos a procurar perceber por que razatildeo o autor ldquodecretardquo a

impossibilidade de fundamentar na razatildeo humana um conjunto de normas ou leis que

dizem respeito agrave vida praacutetica de qualquer grupo humano Perseguindo este objectivo

procuraremos reconstruir os vaacuterios argumentos do ensaio que justificam a sua tomada

de posiccedilatildeo no acircmbito da moral160

Para contextualizar um pouco a questatildeo da moral nos Essais eacute importante

observar que no periacuteodo do humanismo renascentista se fazia sentir a necessidade de

emitir juiacutezos que fossem coerentes de se informar dos costumes dos homens tanto dos

antigos como dos povos que habitavam terras longiacutenquas Todos queriam rever a sua

ideia de homem Tratava-se de uma busca aberta e muitos ofereciam a sua contribuiccedilatildeo

como afirma Villey161 Tampouco Montaigne se demitiu desta tarefa Envolveu-se com

empenho na tarefa de perceber o que eacute o homem Para isto misturou muitas histoacuterias

antigas e contemporacircneas com inuacutemeras reflexotildees de viajantes que vinham de terras

distantes sobretudo daquelas que foram invadidas e ocupadas por europeus nelas

encontra uma confirmaccedilatildeo da tese segundo a qual a multiplicidade irreconciliaacutevel e a

diversidade mais ampla satildeo a uacutenica marca do ser As teses ceacutepticas de Montaigne

revelam-se de uma maneira particularmente radical no campo da moral neste acircmbito

adquiriraacute uma importacircncia capital a diversidade dos costumes como argumento contra a

moral ldquoracionalrdquo

160 Segundo Villey Montaigne toma consciecircncia do relativismo relativo ao conhecimento natildeo apenas nas noccedilotildees de metafiacutesica mas tambeacutem nas noccedilotildees de moral Neste ponto teraacute uma influecircncia muito importante sobretudo a sua leitura de Sexto Empiacuterico Nesta perspectiva Montaigne pode ser visto como um moralista O mesmo autor afirma que eacute principalmente nas ideias morais que podemos perceber nitidamente o relativismo montaigneano (cf Villey op cit pp188-189) 161 Cf Villey op cit p189

52

Na ldquoApologierdquo Montaigne deteacutem-se a considerar que todas as sociedades tecircm

necessidade das leis Ele tem perfeita consciecircncia de que sem leis nenhuma sociedade

poderaacute ter vida longa A obediecircncia agraves leis162 eacute uma condiccedilatildeo sine qua non para a

sobrevivecircncia de qualquer grupo social Montaigne natildeo leva a ingenuidade ao ponto de

negar pura e simplesmente a necessidade das leis e normas Neste sentido pensa como

Epicuro isto eacute considera que mesmo as piores leis nos satildeo tatildeo necessaacuterias que sem

elas os homens se devorariam uns aos outros163 No mesmo paraacutegrafo Montaigne

observa que tambeacutem Platatildeo distanciando-se pouco desta tese sustenta que sem leis

viveriacuteamos como animais selvagens e se empenha em provaacute-lo

ldquo[A] Nostre esprit est un util vagabond dangereux et temeraire il est malaiseacute dy joindre lordre et la mesure Et de mon temps ceux qui ont quelque rare excellence au dessus des autres et quelque vivaciteacute extraordinaire nous les voyons quasi tous desbordez en licence dopinions et de meurs Cest miracle sil sen rencontre un rassis et sociable On a raison de donner agrave lesprit humain les barrieres les plus contraintes quon peut En lestude comme au reste il luy faut compter et regler ses marches il luy faut tailler par art les limites de sa chasserdquo164

Ao citar Epicuro e Platatildeo o autor da ldquoApologierdquo manifesta a sua decepccedilatildeo

relativamente ao homem de sua eacutepoca Certamente estes pensadores trazem-lhe agrave

memoacuteria a situaccedilatildeo concreta em que estava mergulhada a sociedade francesa naquela

eacutepoca Lendo de uma forma atenta a sua obra eacute faacutecil comprovar que Montaigne era

consciente de tudo o que se passava no seu paiacutes guerras conflitos religiosos profundos

e actos de violecircncia deles derivados

Laschamp ao descrever algumas caracteriacutesticas do contexto no qual Montaigne

elabora a sua obra afirma

162 Haacute uma quantidade significativa de afirmaccedilotildees nos Essais acerca da necessidade do cumprimento da lei independentemente de esta ser ou natildeo justa Vejamos algumas ldquo [C] Il nrsquoest rien si lourdement et largement fautier que les loix ny si ordinairement [B] Quiconque leur obeyt pas justement par ougrave il doibt [hellip] [B]Or les loix se maintiennent en credit non par ce qursquoelles sont justes mais par ce qursquoelles sont loix Crsquoest le fondement mystique de leur authoriteacute elles nrsquoen ont poinct drsquoautrerdquo (Les Essais III 13 p 1072) Montaigne chega ateacute a afirmar que ldquo[A] ce bon et grand Socrates refusa de sauver sa vie par la desobeissance du magistrat voire drsquoun magistrat tres-injuste et tres-inique Car crsquoest la regle des regles et generale loy des loix que chacun observe celles du lieu ougrave il est [hellip]rdquo (Les Essais I 23 p 118) ldquo[A] Jen diray seulement encore cela que cest la seule humiliteacute et submission qui peut effectuer un homme de bien Il ne faut pas laisser au jugement de chacun la cognoissance de son devoir il le luy faut prescrire non pas le laisser choisir agrave son discours autrement selon limbecilliteacute et varieteacute infinie de nos raisons et opinions nous nous forgerions en fin des devoirs qui nous mettroient agrave nous manger les uns les autres comme dit Epicurusrdquo (Essais II 12 p 488) 163 Cf Les Essais II 12 p 558 164 Les Essais II 12 p 559

53

ldquoLes violences entre les dissidents eacutegalaient celles dont ils eacutetaient lrsquoobjet de la part de leurs adversaires Jamais lrsquoabus du raisonnement nrsquoavait eacuteteacute pousseacute plus loin jamais il nrsquoavait deacutechacircneacute tant de colegraveres jamais il nrsquoavait fait couler tant de larmes et tant de sangrdquo165

Assim se compreende melhor por que razatildeo Montaigne afirma que na sua

eacutepoca os que tecircm alguma rara excelecircncia acima dos outros e uma vivacidade

extraordinaacuteria os excedem em desregramento de ideias e de costumes e praticam acccedilotildees

que impedem a felicidade dos homens

Montaigne na qualidade de libre penseur natildeo poderia deixar de defender a

liberdade de pensamento Mas ao mesmo tempo sabe tambeacutem que se esta liberdade

estiver sujeita agrave vaidade da razatildeo muitas atitudes humanas inclusive religiosas como

vimos anteriormente poderatildeo tornar-se nocivas para o homem Ao descrever algumas

das caracteriacutesticas da liberdade de que davam prova os antigos na filosofia e ao fazer

um paralelo com a sociedade de sua eacutepoca afirma

ldquo[A] La liberteacute donq et gaillardise de ces esprits anciens produisoit en la philosophie et sciences humaines plusieurs sectes dopinions differentes chacun entreprenant de juger et de choisir pour prendre party Mais agrave present [C] que les hommes vont tous un train [hellip] et [A] que nous recevons les arts par civile authoriteacute et ordonnance [C] si que les escholes nont quun patron et pareille institution et discipline circonscrite on ne regarde plus ce que les monnoyes poisent et valent mais chacun agrave son tour les reccediloit selon le pris que lapprobation commune et le cours leur donneOn ne plaide pas de lalloy mais de lusage ainsi se mettent egallement toutes choses On reccediloit la medicine comme la Geometrie et les batelages les enchantemens les liaisons le commerce des esprits des trespassez les prognostications les domifications et jusques agrave cette ridicule poursuitte de la pierre philosophale tout se met sans contredictrdquo166

Montaigne escreve a sua obra mergulhado num clima onde reinava uma

ldquoanarchie dans les ideacutees et dans les faitsrdquo167 e coloca-se na atitude de ajudado pelos

costumes antigos julgar o seu tempo Segundo Villey eacute exactamente neste contexto

muito conturbado que Montaigne entra em contacto com o livro de Sexto Empiacuterico

ldquoVoilagrave ougrave lrsquoinfluence du milieu et sa propre dociliteacute aux faits lrsquoont conduit Presque toujours crsquoest la loi politique et morale agrave laquelle il est naturellement assujetti que lrsquoesprit eacuterige en loi absolue Montaigne a affranchi sa raison de cette contrainte naturelle il sait critiquer la loi

165 Laschamp op cit p 104 166 Les Essais II 12 pp 559-560 167 Laschamp op cit p 94

54

que son milieu lui impose crsquoest un pas drsquoune extrecircme importance qursquoil a fait lagrave vers lrsquoideacutee de relativiteacuterdquo168

Montaigne descreve alguns aspectos que comprovam o seu relativismo face aos

costumes de vaacuterios povos sobretudo quando os relaciona com os de Franccedila Com isto o

autor quer sugerir possivelmente que as crenccedilas os juiacutezos e as opiniotildees dos homens

estatildeo sujeitos agraves inconstacircncias perenes que haacute na vida concreta

ldquo[A] si le ciel les agite et les roule agrave sa poste quelle magistrale authoriteacute et permanante leur allons nous attribuant [hellip] [B] en maniere que ainsi que les fruicts naissent divers et les animaux les hommes naissent aussi plus et moins belliqueux justes temperans et dociles icy subjects au vin ailleurs au larecin ou agrave la paillardise icy enclins agrave superstition ailleurs agrave la mescreance [C] icy agrave la liberteacute icy agrave la servitude [hellip] [B] que deviennent toutes ces belles prerogatives dequoy nous nous allons flatants Puis quun homme sage se peut mesconter et cent hommes et plusieurs nations voire et lhumaine nature selon nous se mesconte plusieurs siecles en cecy ou en cela quelle seureteacute avons nous que par fois elle cesse de se mesconter [C] et quen ce siecle elle ne soit en mescomte [A] Il me semble entre autres tesmoignages de nostre imbecilliteacute que celui-cy ne merite pas destre oublieacute que par desir mesmes lhomme ne sccedilache trouver ce quil luy faut que non par jouyssance mais par imagination et par souhait nous ne puissions estre daccord de ce dequoy nous avons besoing pour nous contenter Laissons agrave nostre penseacutee tailler et coudre agrave son plaisir elle ne pourra pas seulement desirer ce qui luy est propre [C] et se satisfaire [hellip]rdquo169

Segundo Montaigne a verdade de uma teoria moral ndash como a de qualquer outro

conhecimento ndash soacute pode ser afirmada relativamente ao sujeito que estaacute implicado nesta

tarefa O homem que reflecte sobre a moral reflecte sobre si proacuteprio e natildeo sobre a

humanidade em geral Desta perspectiva podemos perceber por que razatildeo Montaigne

afirma que eacute ele proacuteprio a mateacuteria de seu livro170 Eacute o proacuteprio Montaigne que nos toca

ainda mais de perto do que o homem em geral

Montaigne observa que natildeo haacute entre os filoacutesofos combate tatildeo violento e tatildeo rude

como o que se trava acerca da questatildeo do soberano bem do homem

ldquo[A] Il nest point de combat si violent entre les philosophes et si aspre que celuy qui se dresse sur la question du souverain bien de lhommerdquo171

168 Villey op cit p 193 169 Les Essais II 12 pp 575-576 170 Cf nota 143 171 Les Essais II 12 p 577

55

Trata-se de uma questatildeo muito sensiacutevel para Montaigne Em se entender eacute inuacutetil

acrescentar mais uma seita agraves 288 que nasceram segundo o caacutelculo de Varron acerca

da questatildeo do soberano bem172

Montaigne inicia a ldquoApologierdquo afirmando que alguns filoacutesofos pensavam que o

soberano bem estava na ciecircncia173

Mas natildeo acreditava que fosse atraveacutes da ciecircncia174 (moral e filosoacutefica) que o

homem conseguiria ser mais saacutebio e mais feliz O autor natildeo se preocupa em fornecer

exactamente o ldquoendereccedilordquo do bem soberano Vejamos como apresenta algumas

indicaccedilotildees relativas agraves vaacuterias tentativas dos filoacutesofos para encontrarem o bem soberano

esse bem que varia conforme o indiviacuteduo

ldquo[A] Nature devroit ainsi respondre agrave leurs contestations et agrave leurs debats Les uns disent nostre bien estre loger en la vertu dautres en la volupteacute dautres au consentir agrave nature qui en la science [C] qui agrave navoir point de douleur [A] qui agrave ne se laisser emporter aux apparences (et agrave cette fantasie semble retirer cetautre [B] de lantien Pythagoras [hellip] [A] qui est la fin de la secte Pyrrhonienne) rdquo175

Fiel aos argumentos do pirronismo Montaigne sustenta que o soberano bem eacute a

ataraxia Segundo ele a sabedoria indica-nos que eacute necessaacuterio procurar manter na alma

um harmonioso equiliacutebrio A ataraxia foi sempre considerada pelos seguidores do

pirronismo como a coroaccedilatildeo da sua filosofia segundo Andreacute Verdan176 Vejamos

textualmente o que diz Sexto acerca da ataraxia como objectivo de sua doutrina ceacuteptica

filosoacutefica

ldquoIl est propos de dire ici quelque chose de la fin de la Sceptique La fin en geacuteneacuteral est ce pour quoi on fait ou on consideacutere toutes Choses crsquoest ce que lrsquoon ne recherche point pour quelque autre Chose crsquoest ce qui est la dernieacutere Chose que lrsquoon recherche Nous disons donc maintenant que la fin du Filosofe Sceptique est lrsquoAtaraxie ou lrsquoexemtion de trouble agrave lrsquoeacutegard des opinions [hellip] amp alors lrsquoAtaraxie ou lrsquoexemtion de trouble fut une suite heureuse quoique fortuite de cette suspension de son jugement agrave lrsquoeacutegard des opinions [hellip] celui qui opine Dogmatiquement amp qui eacutetablit qursquoil y a naturellement amp reacuteellement quelque bien amp quelque mal est toujours troubleacuterdquo177

172 Les Essais II 12 p 577 173 Cf nota 96 174 ldquoLa philosophie morale est viseacutee comme les autres sciences plus directement mecircme que les autres sciencesrdquo (Villey op cit p219) 175 Les Essais II 12 p578 176 Cf Verdan Andreacute Le scepticisme philosophique Paris-Montreacuteal Bordas 1971 p 57 177 Sextus Empiricus Les Hipotiposes ou Instituitions Pirroniennes Traduzido do grego por Claude Huart Amsterdam Barbier MDCCXXV pp15-16

56

Segundo Montaigne a filosofia natildeo pode oferecer uma base consistente agrave moral

que sirva como garantia da felicidade humana O homem eacute convidado a procurar

alicerces mais seguros e consistentes fora da filosofia

ldquo[C] Il ne nous faut guiere non plus doffices de regles et de loix de vivre en nostre communauteacute quil en faut aux grues et formis en la leur Et neantmoins nous voyons quelles sy conduisent tres-ordonneacutement sans erudition Si lhomme estoit sage il prenderoit le vray pris de chasque chose selon quelle seroit la plus utile et propre agrave sa vierdquo178

Assim o homem estaacute impedido por uma incapacidade que tem a sua origem

sobretudo na razatildeo de determinar tudo aquilo que pode em termos morais servir-lhe

para a construccedilatildeo de uma vida tranquila O homem natildeo sabe encontrar o que lhe eacute

necessaacuterio O desacordo nestes assuntos eacute inerente agrave proacutepria natureza do homem tal

como foi descrita pelo autor da ldquoApologierdquo

Trata-se de um desacordo com consequecircncias preocupantes jaacute que se eacute de noacutes

que depende a organizaccedilatildeo dos nossos costumes metemo-nos numa enorme

confusatildeo179 Aludindo ao parecer de Soacutecrates Montaigne defende que a razatildeo aconselha

cada um a obedecer a lei de seu paiacutes180

Entretanto Montaigne questiona-se seraacute que ldquo[A] nostre devoir nrsquoa autre regle

que fortuite181 A resposta reflecte mais uma vez o relativismo do autor que afirma

que a verdade deve ter uma face universal e uniforme mas que reconhece ao mesmo

tempo que de facto o homem impedido pela razatildeo e pelos sentidos (considerados pela

filosofia tradicional como fonte do conhecimento da verdade) natildeo tem condiccedilotildees de

encontrar uma base moral no discurso racional

ldquo[A] La droiture et la justice si lhomme en connoissoit qui eust corps et veritable essence il ne lattacheroit pas agrave la condition des coustumes de cette contreacutee ou de celle lagrave ce ne seroit pas de la fantasie des Perses ou des Indes que la vertu prendroit sa forme Il nest rien subject agrave plus continuelle agitation que les loix Deacutepuis que je suis nay jay veu trois et quatre fois rechanger celles des Anglois noz voisins non seulement en subject politique qui est celuy quon veut dispenser de constance mais au plus important subject qui puisse estre agrave sccedilavoir de la religion Dequoy jay honte et despit dautant plus que cest une nation agrave laquelle ceux de mon quartier ont eu autrefois une si priveacutee accointance quil

178 Les Essais II 12 p 487 179 Cf Les Essais II 12 p 578 180 Cf Les Essais II 12 p 478 181 Les Essais II 12 p 578

57

reste encore en ma maison aucunes traces de nostre ancien cousinagerdquo182

Reflectindo acerca da situaccedilatildeo concreta que o rodeava isto eacute a guerra as

injusticcedilas e outros males (causados pelo proacuteprio homem) que caracterizavam a Franccedila

de entatildeo Montaigne tem consciecircncia de que seguir as leis do paiacutes183 que satildeo

produzidas pela razatildeo humana eacute algo bastante problemaacutetico

Como moralista Montaigne natildeo deseja fazer a apologia de uma ldquoanarquiardquo em

termos morais muito pelo contraacuterio como vimos defende a importacircncia da lei na vida

quotidiana O que ele pretende defender eacute que todo o sistema que resulta de um

emaranhado de reflexotildees intelectuais natildeo leva a nada pelo facto de que tudo o que a

razatildeo produz estaacute sujeito agrave incerteza tanto a verdade como a falsidade

Ao criticar todo este processo Montaigne quer ressaltar a ideia de que a razatildeo eacute

um estorvo importante para a dinacircmica de construccedilatildeo da justiccedila e das leis morais

Esta tese poderia levar a pensar que Montaigne eacute um pensador que natildeo acredita

na verdade Mas ao ler a sua obra damo-nos conta que eacute um autor apaixonado pela

verdade Ele nunca afirmou que a verdade estava fora de alcance Ele quer encontrar a

verdade A sua proacutepria atitude filosoacutefica pode ser caracterizada como uma perene busca

da verdade O que lhe eacute peculiar nesta busca eacute o facto de questionar profundamente tudo

aquilo que eacute construiacutedo arbitrariamente pela filosofia dogmaacutetica sobretudo as grandes

elaboraccedilotildees teoacutericas e os complicados coacutedigos legais que em geral natildeo respeitam as

contingecircncias da vida

Esta razatildeo eacute por conseguinte a grande responsaacutevel pela contiacutenua agitaccedilatildeo das

leis Neste sentido o cepticismo de Montaigne no domiacutenio da moral estaacute em profunda

sintonia com todo o projecto da ldquoApologierdquo Assim como natildeo aceita as certezas teoacutericas

dos filoacutesofos e pensadores profissionais em mateacuteria de metafiacutesica e em tantos outros

assuntos tradicionalmente caros agrave filosofia rejeita tambeacutem com toda a determinaccedilatildeo a

produccedilatildeo filosoacutefica que eacute apresentada como ciecircncia moral Montaigne natildeo se cansa de

questionar o papel daqueles pensadores que em nome da filosofia se encarregam de

teorizar sobre as leis morais e a justiccedila Podemos dizer que o autor classifica esta

actividade como algo dispensaacutevel agrave vida Neste contexto o autor ressalta o problema da

contingecircncia e da sua relaccedilatildeo com a lei

182 Les Essais II 12 p 579 183 ldquo[B] Car nous avons en France plus de loix que tout le reste du monde ensemble [hellip] [C] Il y a peu de relation nos actions qui sont en perpetuelle mutation avec les loix fixes et immobile Les plus desirables ce sont les plus rares plus simples et generalesrdquo (Les Essais III 13 p 1066)

58

ldquo[A] Que nous dira donc en ceste necessiteacute la philosophie Que nous suyvons les loix de nostre pays Cest agrave dire cette mer flotante des opinions dun peuple ou dun Prince qui me peindront la justice dautant de couleurs et la reformeront en autant de visages quil y aura en eux de changemens de passion Je ne puis pas avoir le jugement si flexiblerdquo184

Algumas doutrinas filosoacuteficas impelem-nos ao cumprimento das leis do paiacutes

Mas como eacute isto possiacutevel se estas leis satildeo condicionadas pelas paixotildees de quem as fez

Em seguida Montaigne refere-se agrave relatividade das leis civis

ldquo[A] Quelle bonteacute est-ce que je voyois hyer en credit et demain plus [C]et que le trajet dune riviere fait crime Quelle veriteacute que ces montaignes bornent qui est mensonge au monde qui se tient au delagrave185

Diante deste quadro podemos perguntar-nos seraacute possiacutevel ter uma moral que

garanta a justiccedila para todos fazendo uso da razatildeo e utilizando as leis humanas que satildeo

sempre condicionadas pelas paixotildees as quais por sua vez estatildeo sujeitas a de tantas

mudanccedilas A resposta de Montaigne eacute negativa e eacute dada de forma iroacutenica

ldquo[A] Mais ils sont plaisans quand pour donner quelque certitude aux loix ils disent quil y en a aucunes fermes perpetuelles et immuables quils nomment naturelles qui sont empreintes en lhumain genre par la condition de leur propre essence Et de celles lagrave qui en fait le nombre de trois qui de quatre qui plus qui moins signe que cest une marque aussi douteuse que le resterdquo186

Aleacutem de constatar a relatividade das leis civis Montaigne natildeo deixa de afirmar

que haacute tambeacutem uma niacutetida relatividade nas leis naturais

ldquo[A] ils sont dis-je si miserables que de ces trois ou quatre loix choisies il nen y a une seule qui ne soit contredite et desadvoeumle non par une nation mais par plusieursrdquo187

Outra tese da ldquoApologierdquo que merece ser lembrada eacute que a razatildeo humana ndash

intrometendo-se em toda a parte para dominar baralhar e confundir a face das coisas

segundo sua vaidade e inconstacircncia ndash quer que acreditemos que haacute leis naturais como as

que se observam nas outras criaturas Mas isto natildeo passa de um equiacutevoco em noacutes as leis

naturais estatildeo perdidas

Montaigne natildeo mede as palavras quando o que estaacute em jogo eacute em seu entender

alguma coisa de capital importacircncia A falta de honestidade e a falsidade satildeo atributos

dos pensadores e elaboradores de leis na sociedade Neste contexto criticaraacute

violentamente a posiccedilatildeo de Platatildeo por exemplo Observa que quando este pensador

184 Les Essais II 12 p 579 185 Les Essais II 12 p 579 186 Les Essais II 12 p 580 187 Les Essais II 12 p 580

59

grego se torna legislador adopta um estilo imperioso e afirmativo e mistura-lhe

ousadamente as mais fantasiosas invenccedilotildees tatildeo uacuteteis para persuadir o povo como

ridiacuteculas para se persuadir a si mesmo Conclui a sua criacutetica a Platatildeo da seguinte forma

ldquo[C] Et pourtant en ses loix il a grand soing quon ne chante en publiq que des poeumlsies desquelles les fabuleuses feintes tendent agrave quelque utile fin et estant si facile dimprimer tous fantosmes en lesprit humain que cest injustice de ne le paistre plustost de mensonges profitables que de mensonges ou inutiles ou dommageables Il dict tout destroussement en sa Republique que pour le profit des hommes il est souvent besoin de les piper 188 rdquo

Na ldquoApologierdquo Montaigne manifesta em vaacuterias ocasiotildees o seu

descontentamento relativamente agraves teses dos filoacutesofos gregos

Considerando as reflexotildees precedentes acerca da moral tudo leva a crer que

Montaigne considera que as leis verdadeiras relativas agrave moral devem ter um caraacutecter

universal e natildeo particular

Montaigne apresenta uma lista de costumes diversificados de povos muito

diferentes que tecircm as suas tradiccedilotildees proacuteprias e que satildeo muitas vezes contraditoacuterias entre

si Isto servir-lhe-aacute para justificar a tese de que natildeo haacute coisa em que o mundo seja tatildeo

diverso como os costumes e leis

ldquo[A] Telle chose est icy abominable qui apporte recommandation ailleurs comme en Lacedemone la subtiliteacute de desrober Les mariages entre les proches sont capitalement defendus entre nous ils sont ailleurs en honneur [hellip]rdquo

ldquo[A] Le meurtre des enfans meurtre des peres communication de femmes trafique de voleries licence agrave toutes sortes de voluptez il nest rien en somme si extreme qui ne se trouve receu par lusage de quelque nationrdquo189

ldquo[A] Les subjets ont divers lustres et diverses considerations cest de lagrave que sengendre principalement la diversiteacute dopinions Une nation regarde un subject par un visage et sarreste agrave celuy lagrave lautre par un autre

Il nest rien si horrible agrave imaginer que de manger son pere Les peuples qui avoyent anciennement ceste coustume la prenoyent toutesfois pour tesmoignage de pieteacute et de bonne affection [hellip]rdquo

ldquo[A] Licurgus considera au larrecin la vivaciteacute diligence hardiesse et adresse quil y a agrave surprendre quelque chose de son voisin [hellip]rdquo ldquo[A] Dionysius le tyran offrit agrave Platon une robe agrave la mode de Perse longue damasquineacutee et parfumeacutee Platon la refusa disant questant nay homme il ne

188 Les Essais II 12 p 512 189 Les Essais II 12 p 580

60

se vestiroit pas volontiers de robbe de femme mais Aristippus laccepta avec ceste responce que nul accoustrement ne pouvoit corrompre un chaste couragerdquo190

ldquo[A] Nous portons les oreilles perceacutees les Grecs tenoient cela pour une marque de servitude Nous nous cachons pour jouir de nos femmes les Indiens le font en public Les Scythes immoloyent les estrangers en leurs temples ailleurs les temples servent de franchiserdquo191

Para Montaigne as razotildees sobre as quais cada povo funda a sua moral satildeo uma

resposta a situaccedilotildees contingentes e natildeo visam dar resposta a situaccedilotildees mais universais

vaacutelidas para todos os homens sem excepccedilatildeo Villey chega a afirmar que Montaigne

ldquocherche une justice et il trouve des justices et des justices contradictoiresrdquo192

Aleacutem de constatar a ausecircncia de um acordo entre as vaacuterias concepccedilotildees no que

diz respeito aos costumes de cada povo Montaigne - fiel agrave criacutetica aos sistemas

filosoacuteficos que perpassa toda a ldquoApologierdquo - destaca tambeacutem o facto de que natildeo haacute

sequer acordo entre os filoacutesofos que se ocupam particularmente em reflectir acerca de

dois temas muito caros agrave filosofia

ldquo[A] Quant agrave la liberteacute des opinions philosophiques touchant le vice et la vertu cest chose ougrave il nest besoing de sestendre et ougrave il se trouve plusieurs advis qui valent mieux teus que publiez [C]aux faibles espritsrdquo193

Segundo Montaigne os proacuteprios homens do saber adoptam atitudes

consideradas inaceitaacuteveis pelo facto de a sociedade as condenar Os exemplos ilustram

esta situaccedilatildeo de uma forma muito niacutetida e revelam quanto a razatildeo humana pode fazer

para encontrar explicaccedilotildees legitimadoras para todas as realidades relativas aos costumes

morais

ldquo[A] De lagrave disent aucuns que doster les bordels publiques cest non seulement espandre par tout la paillardise qui estoit assigneacutee agrave ce lieu lagrave mais encore esguillonner les hommes agrave ce vice par la malaisance [hellip] On demanda agrave un philosophe quon surprit agrave mesme ce quil faisoit Il respondit tout froidement Je plante un homme [hellip]rdquo194

ldquo[C] Car Diogenes exerccedilant en publiq sa masturbation faisoit souhait en presence du peuple assistant qursquoil peut ainsi saouler son ventre en le frottant [hellip] Ces philosophes icy donnoient extreme prix agrave la vertu et refusoient toutes autres disciplines que la moralerdquo195

190 Les Essais II 12 p 581 191 Les Essais II 12 p 582 192 Villey op cit p 197 193 Les Essais II 12 p 582 194 Les Essais II 12 p 584 195 Les Essais II 12 p 585

61

A relatividade das leis e costumes e a impossibilidade de se chegar a acordo

entre os povos tendo em vista estabelecer leis universais leva Montaigne a uma espeacutecie

de denuacutencia da praacutetica dos encarregados pela execuccedilatildeo das leis que jaacute por si satildeo tatildeo

questionaacuteveis Isto torna a lei supostamente universal ainda mais sujeita agrave rejeiccedilatildeo

segundo Montaigne Vale a pena recordar aqui o exemplo de que Montaigne ouviu

falar de um juiz que quando deparava com um seacuterio conflito entre Bartoldo e Baldo196

ou com alguma mateacuteria agitada por muitas contradiccedilotildees escrevia na margem de seu

livro ldquoQuestatildeo para o amigordquo Montaigne observa que neste caso a verdade era tatildeo

confusa e debatida que o juiz em causa poderia favorecer a parte que bem entendesse e

conclui

ldquo[A] Les advocats et les juges de nostre temps trouvent agrave toutes causes assez de biais pour les accommoder ougrave bon leur semble A une science si infinie deacutependant de lauthoriteacute de tant dopinions et dun subject si arbitraire il ne peut estre quil nen naisse une confusion extreme de jugemens Aussi nest-il guiere si cler proceacutes auquel les advis ne se trouvent divers Ce quune compaignie a jugeacute lautre le juge au contraire et elle mesmes au contraire une autre fois Dequoy nous voyons des exemples ordinaires par ceste licence qui tasche merveilleusement la cerimonieuse authoriteacute et lustre de nostre justice de ne sarrester aux arrests et courir des uns aux autres juges pour decider dune mesme causerdquo197

Eacute interessante destacar este exemplo tambeacutem porque Montaigne tinha

conhecimentos profundos da ciecircncia do direito conforme reconhece a maioria dos

comentadores da sua obra Como magistrat tinha conhecimento de causas nas quais se

manifestava aquilo contra o qual se opunha Isto vem confirmar ainda mais a posiccedilatildeo de

Montaigne face agrave sua incansaacutevel busca de leis universais que natildeo estivessem sujeitas agraves

constantes mutaccedilotildees de que a razatildeo humanaldquo[B] un pot agrave deux anses qursquoon peut saisir

agrave gauche et agrave dextrerdquo eacute responsaacutevel e que [A] fornit drsquoapparence agrave divers effectsrdquo198

Ao abordar a problemaacutetica da moral na ldquoApologierdquo Montaigne chega a algumas

conclusotildees que natildeo se distanciam fundamentalmente de todo o projecto do ensaio Isto

eacute defende que haacute um relativismo significativamente claro relativamente agrave moral Villey

faz algumas afirmaccedilotildees que resumem claramente esta problemaacutetica ldquoIl nrsquoy a pas de

souverain bien il nrsquoy a pas de loi naturelle toute obligation moralle est fortuite

196 Trata-se de dois juristas do seacuteculo XIV que no seacuteculo XV ainda tinham grande influecircncia 197 Les Essais II 12 p 582 198 Les Essais II 12 p 581

62

contingenterdquo199 E tudo isto deve-se agrave criacutetica destruidora da razatildeo humana que

Montaigne apresenta no texto Para ele a razatildeo quer julgar tudo quer elaborar leis

universais sem mesmo ter condiccedilotildees para semelhante empreendimento A razatildeo como

vimos eacute multiforme inconstante infinita Ela avanccedila sempre mesmo torta mesmo

manca mesmo desancada tanto com a mentira como com a verdade A razatildeo eacute um

instrumento de chumbo e de cera alongaacutevel dobraacutevel e adaptaacutevel a todas as

perspectivas e a todas as medidas200 Segundo Montaigne a razatildeo eacute ldquo[B] un miserable

fondement de nos regles et qui nous represente volontiers une tres-fauce image des

choses comme vainement nous concluons aujourdrsquohui lrsquoinclination et la decrepitude du

monde par les arguments que nous tirons de nostre propre foiblesse et decadencerdquo201

Em suma Montaigne tem consciecircncia de que eacute impossiacutevel chegar a qualquer

determinaccedilatildeo no domiacutenio da moral atraveacutes da razatildeo Por isto assume uma atitude

ceacuteptica em face desta questatildeo

199 Villey op cit p198 200 Cf nota 122 201 Les Essais III 6 p 908

63

Consideraccedilotildees finais

A leitura da ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo permitiu-nos esclarecer aspectos

importantes da criacutetica demolidora da razatildeo humana levada a cabo por Montaigne

Eacute claro que uma motivaccedilatildeo importante que levou Montaigne a escrever a

ldquoApologierdquo foi a obra do teoacutelogo catalatildeo Sebond Theologia Naturalis Eacute importante

destacar que o proacuteprio tiacutetulo do ensaio ldquoApologiehelliprdquo isto eacute elogio defesa natildeo reflecte

exactamente o seu propoacutesito que eacute a defesa de Sebond A anaacutelise do texto permite

captar algo de paradoxal Montaigne dispotildee-se a defender este teoacutelogo catalatildeo num

ensaio no qual ele proacuteprio se distancia claramente da doutrina de Sebond Neste

sentido haacute um significativo distanciamento entre o tiacutetulo do ensaio e o seu conteuacutedo O

ponto de partida de Montaigne eacute uma espeacutecie de declaraccedilatildeo de que as ideias de Sebond

satildeo convincentes mas imediatamente a seguir muda de opiniatildeo partindo de sua

concepccedilatildeo negativa do homem e natildeo acredita nos supostos poderes da razatildeo Dito de

outro modo Montaigne natildeo sustentava o propoacutesito da Theologia naturalis isto eacute a

pretensatildeo de apoiar a crenccedila dos leitores convidando-os a fazer um esforccedilo de adaptaccedilatildeo

dos instrumentos naturais e humanos considerados como dons de Deus especialmente

a razatildeo pondo-os ao serviccedilo da feacute

Montaigne ldquoaplauderdquo a atitude de Sebond202 Mas imediatamente a seguir critica

o teoacutelogo catalatildeo atacando os vaacuterios argumentos filosoacuteficos presentes na sua obra Na

raiz da sua criacutetica estaacute o facto de estes argumentos se fundamentarem numa visatildeo

antropocecircntrica da supremacia do homem como criatura privilegiada da criaccedilatildeo o

homem por ser detentor da razatildeo diferentemente dos outros animais tem uma

finalidade uma perfeiccedilatildeo e uma dignidade que merece ser exaltada Montaigne natildeo

aceita esta visatildeo que norteia tanto a obra de Sebond como o pensamento de todos

aqueles que faziam apologia da dignitas hominis Denuncia a presunccedilatildeo ilusoacuteria do

homem Desta perspectiva utiliza vaacuterios relatos anedoacuteticos de animais para justificar a

sua posiccedilatildeo E a conclusatildeo principal a que o conduz este percurso eacute que o homem natildeo

estaacute nem acima nem abaixo do resto dos seres naturais203 Dito de outro modo a

consideraccedilatildeo de que unicamente o homem eacute possuidor da razatildeo natildeo tem qualquer

relevacircncia segundo a ldquoApologierdquo

202 Cf nota 1 203 Cf nota 31

64

Da batalha travada por Montaigne contra os vaacuterios opositores da obra de

Sebond podemos destacar a posiccedilatildeo criacutetica que ele assume face aos presunccedilosos

racionalistas que diziam que os argumentos de Sebond eram fracos Diante destes

doutos Montaigne iraacute sustentar a tese de que o homem natildeo sabe nada Haacute que salientar

no entanto que o teoacutelogo catalatildeo estava em ldquocomunhatildeordquo com o pensamento apologeacutetico

de sua eacutepoca isto eacute recorreu agrave razatildeo para provar certos dogmas Para Montaigne o

principal perigo vem daqueles que atribuem super poderes agrave razatildeo Eacute por isso tambeacutem

que Montaigne sustenta que a razatildeo deve submeter-se agrave autoridade divina Esta

submissatildeo natildeo exclui a razatildeo mas considera-a como um meio de compreender o motivo

da feacute Esta feacute deve ser concebida como uma expectativa da graccedila sem a qual nada eacute

possiacutevel ao homem Segundo Montaigne natildeo somos capazes de perceber que toda a

certeza estaacute vedada ao homem reduzido a si proacuteprio204

Podemos perceber que a utilizaccedilatildeo da razatildeo para explicar as realidades da

religiatildeo natildeo tem sentido na ldquoApologierdquo Montaigne natildeo tem necessidade de fazer

apologia da feacute205 A sua perspectiva eacute unicamente humana e isto vai estruturar toda a

sua reflexatildeo na ldquoApologierdquo Quando se refere agrave graccedila como dom sobrenatural nem o

absoluto nem a graccedila actuam no interior de sua visatildeo antropoloacutegica A graccedila eacute

apresentada por Montaigne como uma metamorfose

ldquo[C] Crsquoest agrave nostre foy Chrestienne non agrave sa vertu Stoique de pretendre agrave cette divine et miraculeuse metamorphoserdquo206

Montaigne descobre em si proacuteprio o pirronismo atraveacutes da volubiliteacute207 presente

nas vaacuterias atitudes dos filoacutesofos Pocircs em duacutevida as diversas opiniotildees dos filoacutesofos

denunciando-as como contraditoacuterias criticou as doutrinas filosoacuteficas dogmaacuteticas mas

natildeo assumiu nenhuma doutrina definida Montaigne assume o pirronismo como meacutetodo

e natildeo como um adepto cego para enfrentar os problemas presentes na ldquoApologierdquo

O pirronismo eacute assumido por Montaigne como modo de pensamento e como

meacutetodo de vida Este pirronismo permite-lhe ter em conta na ldquoApologierdquo a incerteza de

204 Cf Nota 93 205 O autor esclarece esta questatildeo da seguinte maneira na ediccedilatildeo posterior a 1588 ldquo[C] Je propose les fantasies humaines et miennes simplement comme humaines fantasies [hellip] matiere dopinion non matiere de foy ce que je discours selon moy non ce que je croy selon Dieu comme les enfants proposent leurs essais intruisables non instruisants dune maniere laiumlque non clericale mais tresminusreligieuse tousjoursrdquo (Les Essais I 56 p 323) 206 Les Essais II 12 p 604 207 Les Essais II 12 p 569

65

nossos juiacutezos a incerteza que todos sentem em si208 em relaccedilatildeo ao conhecimento O

pirronismo faz desaparecer as ilusotildees da certeza e como ele natildeo se envolve nas

questotildees da ldquoirresolution infinierdquo209 procura uma seguranccedila na tranquilidade do

espiacuterito que com a do corpo constitui o soberano bem210 Ao assumir a atitude

pirroacutenica Montaigne natildeo se transforma num homem passivo num ldquopeso mortordquo Muito

pelo contraacuterio sustenta que devemos sempre levantar questotildees reconhecer a nossa

ignoracircncia face agraves vaacuterias resoluccedilotildees tomadas como certas pela presunccedilosa razatildeo

humana duvidar sempre e ter uma atitude de busca incessante de novas ideias

Isto significa que Montaigne defende a tese de que somos convidados a

considerar que os conhecimentos adquiridos devem ser sempre sustentados como

provisoacuterios e natildeo como verdades absolutas Isto natildeo exclui evidentemente o facto de

que podemos apresentar as nossas visotildees prismaacuteticas das coisas e ateacute sustentaacute-las se

assim for necessaacuterio

Na ldquoApologierdquo Montaigne assume uma atitude pirroacutenica sui generis Demonstra

constantemente uma reaccedilatildeo contra os dogmatismos Ele eacute um pensador que estaacute sempre

em busca Nunca cessa de investigar Estaacute sempre em debate consigo mesmo Neste

aspecto pode-se dizer que assume uma atitude diferente do pirronismo grego o qual

defendia a tese da impossibilidade de qualquer juiacutezo Natildeo estaacute preocupado em encontrar

um ldquoroacutetulo de marca registadardquo para suas reflexotildees filosoacuteficas Ou seja natildeo tinha como

objectivo elaborar uma apologia de uma doutrina a ser seguida por adeptos

Montaigne apresenta os seus juiacutezos com a sua razatildeo criacutetica sem ter

necessariamente que defender a tese de que a razatildeo humana ndash instrumento flexiacutevel

recurvaacutevel e adaptaacutevel a qualquer forma211- eacute sempre o guia prudente e seguro de uma

conduta correcta e perfeita Montaigne procura demonstrar racionalmente - e aqui

reside em seu entender o uso positivo da razatildeo ndash que natildeo haacute essecircncia nem verdade

absoluta acerca do homem e que de algumas coisas sempre agrave mercecirc do poder do tempo

noacutes soacute observamos as aparecircncias

ldquo[A] Finalment il nrsquoy a aucune constante existence ny de nostre estre ny de celuy des objects [hellip] Nous nrsquoavons aucune communication agrave lrsquoestre [hellip]rdquo212

208 Cf Les Essais II 12 p 563 209 Cf Les Essais II 12 p 561 210 Cf Les Essais II 12 p 488 211 Cf Les Essais II 12 p 539 212 Les Essais II 12 p 601

66

Montaigne duvida de todos os conhecimentos humanos recebidos por autoridade

e em confianccedila (agrave credit) como se fossem religiatildeo e lei213 tais conhecimentos natildeo

passam de falsas evidecircncias do quotidiano E isto vale sobretudo para todos os tipos de

produccedilatildeo racional que satildeo consequecircncia da vaidade humana

Montaigne esforccedila-se por investigar as opiniotildees dos outros e isto motiva-o a

formular um pensamento mais pessoal preocupado com o que eacute justo e a expandir o

seu proacuteprio conhecimento relativo e precaacuterio As suas investigaccedilotildees natildeo satildeo dogmaacuteticas

e soacute o comprometem a ele proacuteprio Eacute um pensador que estaacute sempre em busca que natildeo

tem a presunccedilatildeo de querer saber tudo sobre todas as coisas Mas ao mesmo tempo

podemos dizer que eacute um pensador que descobriu num mundo marcado por tantas

conturbaccedilotildees graccedilas agraves suas proacuteprias experiecircncias uma consciecircncia real e soacutelida da sua

existecircncia concreta no mundo Este facto levou-o a assumir a atitude de natildeo querer

ensinar nem dirigir a vida de ningueacutem Vale a pena citar a este respeito um pequeno

trecho de um outro ensaio que Montaigne escreveu provavelmente na mesma eacutepoca da

ldquoApologierdquo e que reflecte claramente a posiccedilatildeo por ele assumida e que pode ser

classificada natildeo como a de um filoacutesofo profissional detentor de verdades que devem ser

ensinadas aos outros mas como a de algueacutem que estaacute sempre em busca e natildeo se inibe de

expressar as suas opiniotildees

ldquo[A] Je dy librement mon advis de toutes choses voire et de celles qui surpassent agrave ladventure ma suffisance et que je ne tiens aucunement estre de ma jurisdiction Ce que jen opine cest aussi pour declarer la mesure de ma veueuml non la mesure des chosesrdquo214

Montaigne renuncia a tarefa de querer provar atraveacutes da razatildeo humana aquilo

que estaacute em uacuteltima instacircncia no domiacutenio da feacute Ele eacute um homem que crecirc em Deus

ldquo[A] Il a laisseacute en ces hauts ouvrages le caractere de sa diviniteacute et ne tient quagrave nostre imbecilliteacute que nous ne le puissions descouvrirrdquo215

Uma quantidade importante de pessoas no mundo proclama a existecircncia de

Deus Mas este Deus natildeo pode ser conhecido racionalmente pelo homem

ldquoIl sen faut tant que nos forces conccediloivent la hauteur divine que des ouvrages de nostre createur ceux-lagrave portent mieux sa marque et sont mieux siens que nous entendons le moinsrdquo216

213 Cf Les Essais II 12 p 539 214 Les Essais II 10 p 410 215 Les Essais II 12 pp 446-447 216 Les Essais II 12 p 499

67

Relativamente agrave moral Montaigne sustenta a tese de que a razatildeo humana natildeo

tem o poder de determinar quais satildeo os bons e os maus costumes as boas e as maacutes leis e

normas para qualquer grupo social

Diante da leitura que fizemos da ldquoApologierdquo onde Montaigne apresenta uma

criacutetica destruidora agrave razatildeo tirando-lhe quase todos os atributos recebidos durante toda a

histoacuteria da filosofia podemos portanto perguntar-nos qual eacute o papel da razatildeo humana

A resposta a esta questatildeo eacute muito complexa A criacutetica montaigneana agrave razatildeo natildeo se

limitou a menosprezar a ciecircncia (filosofia) a ldquoteologia racionalistardquo e as suas pretensotildees

de querer dar explicaccedilotildees sobre questotildees de feacute e de religiatildeo atacou tambeacutem

profundamente o espiacuterito humano negando-lhe capacidades que na maioria das vezes

satildeo atributos da pretensatildeo humana Para ilustrar mais claramente esta ideia seraacute

interessante fazer referecircncia a uma passagem ceacutelebre do livro III na qual Montaigne

conta uma pequena histoacuteria de um escravo chamado Esopo

Conta-nos o autor que Esopo estava exposto agrave venda com dois outros escravos

Um comprador indagou de um deles que sabia fazer este para se valorizar contou mil

maravilhas (monts et merveilles) O segundo disse mais ainda Quando chegou a sua

vez Esopo respondeu ldquonada eles jaacute pegaram em tudo eles sabem tudordquo Montaigne

observa que verificou o mesmo nas escolas de filosofia A arrogacircncia o orgulho (fierteacute)

dos que atribuiacuteram ao espiacuterito humano a capacidade de tudo saber levou os outros a

afirmar por despeito ou contradiccedilatildeo que o espiacuterito natildeo era capaz de coisa alguma

Estes exaltavam ao extremo a ignoracircncia tal como aqueles glorificavam absurdamente a

ciecircncia De modo que natildeo haacute como negar que o homem eacute imoderado em tudo e soacute cessa

quando forccedilado pela capacidade de ir aleacutem217

Em suma a ldquoApologierdquo nos apresenta um questionamento profundo em relaccedilatildeo

a todo o tipo de conhecimento fundado na razatildeo Arruiacutena os fundamentos deste

conhecimento produzido pelos homens do saber doutos e filoacutesofos antigos A estes

ldquosaacutebiosrdquo em geral que pensavam ser possuidores da verdade Montaigne dirige uma

criacutetica iroacutenica

laquo [C] Fiez vous agrave vostre philosophie vantez vous davoir trouveacute la feve au gasteau [hellip] raquo218

217 Cf Les Essais II 11 p 1035 218 Les Essais II 12 p 516 Esta citaccedilatildeo faz referecircncia agrave tradiccedilatildeo de na Epifania compartilhar um bolo contendo uma fava quem recebesse a fatia laquo premiada raquo era chamado laquo o rei da fava raquo Tratava-se de algo que figuradamente garantia uma espeacutecie de vantagem

68

Bibliografia

1 - Obras de Michel de Montaigne

Les Essais eacutedition conforme au texte de lrsquoexemplaire de Bordeaux par Pierre Villey

reacuteeacutediteacute sous la direction et avec un preacuteface de V-L Saulnier augmenteacute en 2004 drsquoune

preacuteface et drsquoun suppleacutement de Marcel Conche Paris QuadriguePUF 2004 (ediccedilatildeo de

referecircncia no nosso estudo)

Essais Livre second eacutedition preacutesenteacutee eacutetablie et annoteacutee par Emmanuel Naya

Delphine Reguig-Naya et Alexandre Tarrecircte Paris () Gallimard 2009

2 Estudos sobre Montaigne

AA VV Le dictionnaire des Essais de Montaigne Paris ( ) Eacuteditions Leacuteo Scheer

2011

AA VV Montaigne et la reacutevolution Philosophique du XVI siegravecle Bruxelles Eacuteditions

de lrsquoUniversiteacute de Bruxelles 1992

AUREacuteLIO Diogo Pires Montaigne e Espinosa toleracircncia ceacuteptica e toleracircncia

racionalista In O Cepticismo e Montaigne Rui Bertrand Romatildeo (org) Covilhatilde

Universidade da Beira Interior 2003 pp 141-160

BIRCHAL Telma de Souza O eu nos Ensaios de Montaigne Belo Horizonte Editora

UFMG 2007

BIGNOTTO Newton ldquoMontaigne Renascentistardquo Kriterion Revista do Departamento

de Filosofia da UFMG Belo Horizonte XXXIII 86 agodez 1992 p 29-41

BUTOR Michel Essais sur les essais Paris Gallimard 1968

CATALAN Eacutetienne Eacutetudes sur Montaigne analyse de sa philosophie Paris Hellier

Fregraveres Librairie Religieuse 1846

CHAMPION Edme Introduction aux Essais de Montaigne Paris Armand Colin amp Cie

Eacutediteurs 1900

COMPAGNON Antoine Nous Michel de Montaigne Paris Seuil 1980

CONCHE Marcel Montaigne et la philosophie Paris Puf 1996

69

_____________ Montaigne ou la conscience heureuse Paris PUF 2009

DUARTE Tiago Barros Skepticism and religion in Michel de Montaigne two

interpretations of apology for Raymond Sebond Intuitio Porto Alegre V2 ndash Nordm 3

Novembro 2009 pp 298-307

FILHO Celso Martins Azar Montaigne e Soacutecrates cepticismo conhecimento e

virtude In Revista Portuguesa de Filosofia Tomo LVIII Fasc 4 2002

FRIEDRICH Hugo Montaigne Traduzido do alematildeo por Robert Rovini Paris

Gallimard 1967

GIOCANTI Sylvia Montaigne et les becirctes La becirctise et lrsquoanimal dans les Essais de

Montaigne Universiteacute de Toulouse-II Le Mirail UMR 5037 (ENS-Lyon) 2011

HENDRICK Philip Montaigne and Sebond scepticism faith and imagination In O

Cepticismo e Montaigne Rui Bertrand Romatildeo (org) Covilhatilde Universidade da Beira

Interior 2003 pp 83-102

JEANSON Franccedilois Montaigne par lui-mecircme Paris Seuil 1951

LACOUTURE Jean Montaigne agrave cheval (Montaigne a cavalo) Traduzido por F

Rangel Rio de JaneiroSatildeo Paulo Editora Record 1998

LANUSSE Maxime Montaigne Paris Lecegravene Oudin et Cie Eacutediteurs 1895

LEVEAUX Alphonse Eacutetude sur les Essais de Montaigne Paris Henri Plon

Imprimeur-Eacutediteur 1870

MATHIEU-CASTELLANI Gisegravele Montaigne ou la veacuteriteacute du mensonge Genegraveve

Droz 2000

MONSIEUR L Le chistianisme de Montaigne Paris Imprimerie de Demonville 1819

_______ Montaigne lrsquoeacutecriture de lrsquoessai Paris PUF 1988

NAKAM Geacuteranrd Montaigne et son temps Paris Gallimard 1993

RIGOLOT Franccedilois Le texte de la renaissance des rheacutetoriqueurs agrave Montaigne

Genegraveve Droz 1982

_______ Les meacutetamorphoses de Montaigne Paris PUF 1988

RIVELINE Maurice Montaigne et lrsquoamitieacute Paris Librairie Feacutelix Alcan 1939

70

71

ROMAtildeO Rui Bertrand A apologia na balanccedila a reinvenccedilatildeo do pirrorismo na

Apologia de Raimundo Sabunde de Michel de Montaigne Lisboa Imprensa Nacional

Casa da Moeda 2007

SANTI Pedro Luiz Ribeiro de Montaigne e a reflexatildeo moral no seacuteculo XVI In Revista

Olhar ano 04 nordm 7 jan-jun 03 pp 76-85

STAROBINSKI Jean Montaigne en mouvement Paris Gallimard 1982

STROWSKI Fortunat Montaigne Paris Feacutelix Alcan Eacutediteurs 1906

VERDAN Andreacute Le scepticisme philosophique Paris-Montreacuteal Bordas 1971

VILLEY Pierre Les sources et lrsquoeacutevolution des essais de Montaigne Tome Premier

Paris Librairie Hachete 1908

______ Les sources et lrsquoeacutevolution des essais de Montaigne Tome Second Paris

Librairie Hachete 1908

______ Montaigne devant la posteacuteriteacute Paris Ancienne Librairie Furne ndash Boivin et Cie

Eacutediteurs 1935

WEILLER Maurice Pour connaitre la penseacutee de Montaigne Paris Bordas 1948

3 ndash Outras obras citadas

ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Livro I e II Traduccedilatildeo do grego por Vicenzo Coceo

Coleccedilatildeo Os Pensadores Satildeo Paulo Abril S A Cultural 1984

CASSIRER Ernst An essay on man Traduccedilatildeo portuguesa de Carlos Branco Ensaio

sobre o homem Lisboa Guimaratildees Editores 1995

Nouveau Testament Traduction Oecumeacutenique de la Bible Paris PUF 1977

SEXTUS EMPIRICUS Les hipotiposes ou instituitions pirroniennes Trad do grego

por Claude Huart Amsterdam Barbier MDCC XXV

AA VV Histoacuteria das sociedades das sociedades modernas agraves sociedades atuais Rio

de Janeiro Ao Livro Teacutecnico 1983

  • IacuteNDICE
Page 11: MARÇO DE 2012

faut les imaginer inimaginables indicibles incomprehensibles [C] et parfaictement autres que celles de nostre miserable experiencerdquo6

Constatando esse limite da razatildeo humana Montaigne combate decididamente as

concepccedilotildees da ldquodignitas humanisrdquo que tecircm como escopo transformar o homem no fim

uacuteltimo da natureza Montaigne ao voltar-se para o homem concreto ao rebaixaacute-lo e

tiraacute-lo do seu pedestal na ldquoApologierdquo assume uma atitude ceacuteptica entendida como

uma forma de pensamento capaz de seguir a mudanccedila e de rejeitar ao mesmo tempo a

pretensatildeo do homem de se considerar por via da razatildeo no centro do universo

Cabe entatildeo perguntar seraacute que o homem ocupa realmente um lugar central nos

Essais A resposta a esta questatildeo eacute expressa de maneira bastante niacutetida na proacutepria

obra Friedrich no seu conhecido trabalho sobre Montaigne afirma

ldquo[A] On peut ouvrir les Essais ougrave lrsquoon veut toujours ils traitent de lrsquohommerdquo7

Haacute muitos outros temas desenvolvidos nos Essais Basta lanccedilar um raacutepido olhar

sobre os tiacutetulos dos vaacuterios ensaios que compotildeem os trecircs livros da obra para constatar a

quantidade enorme de assuntos tratados por Montaigne

Na sua busca incessante de resposta agrave questatildeo central antes referida merece ser

destacado o contacto de Montaigne com a obra de Sebond Theologia Naturalis que seraacute

a base da ldquoApologierdquo Entre muitas outras questotildees desenvolvidas nesta obra o teoacutelogo

catalatildeo tem como objectivo importante responder agrave questatildeo o que eacute o homem Citando

o proacuteprio Sebond Rui Bertrand Romatildeo afirma que haacute uma ideia baacutesica de ordem

hieraacuterquica observada na scala naturale em todos os seus 4 degraus

ldquoNo inferior estatildeo as coisas apenas providas de ser as coisas minerais no segundo as que tecircm ser e vida as vegetais no terceiro as animais em que ao ser e agrave vida se juntam os sentidos no uacuteltimo encontra-se a criatura humana acima da qual natildeo haacute na natureza nenhum outro ser pois o homem possui as qualidades de todas as demais criaturas simultaneamente e em conjunto tendo aleacutem delas a razatildeo e o livre-arbiacutetrio [hellip]rdquo8

Continua o autor mais adiante

ldquo[hellip] A caracteriacutestica dominante da teologia de Sebond consiste precisamente no lugar privilegiado que nela ocupa a referecircncia do homem natildeo apenas como objecto de conhecimento mas como meio da

6 Les Essais II 12 p518 7 Friedrich op cit p 105 8 Romatildeo Rui Bertrand op cit p 90

11

obtenccedilatildeo deste A reflexatildeo antropoloacutegica polariza o seu pensamento filosoacutefico e lhe contamina o sistema teoloacutegicordquo9

Eacute importante destacar aqui uma ideia desenvolvida por Ernst Cassirer na sua

obra Ensaio sobre o Homem10 Segundo este autor a questatildeo acerca do homem no

periacuteodo renascentista depara-se com a descoberta de um novo instrumento de

pensamento entra em cena o espiacuterito cientiacutefico no sentido moderno da palavra O que

agora se procura eacute uma teoria geral do homem baseada em observaccedilotildees empiacutericas e em

princiacutepios loacutegicos gerais A nova cosmologia o sistema heliocecircntrico copernicano

passa a ser a uacutenica base satilde e cientiacutefica para uma nova antropologia Nem a metafiacutesica

claacutessica nem a religiatildeo (com a sua estrutura teoacuterica fundada na teologia medieval)

estavam preparadas para esta tarefa lembra o autor Estas duas cosmologias concebem

o universo como uma ordem hieraacuterquica em que o homem ocupa o lugar mais alto A

pretensatildeo humana de ser o centro do universo perdeu o seu fundamento Cassirer afirma

ainda que o sistema de Copeacuternico se tornou um dos mais fortes instrumentos do

cepticismo filosoacutefico que se desenvolveu no seacuteculo XVI

Montaigne sendo um pensador livre que conseguiu libertar-se da concepccedilatildeo

antropoloacutegica medieval e renascentista tambeacutem natildeo necessitou de recorrer agraves ideias

cientiacuteficas vigentes na altura da redacccedilatildeo dos Essais Isto natildeo significa que tenha

ignorado por completo a teoria heliocecircntrica de Copeacuternico mas sim que como escreve

Conche

ldquoIl nrsquoa pas eu besoin de Copernic pour trouver ridicule la preacutetension de lrsquohomme de se faire centre du cosmos11

Antes de iniciar o seu longo relato (de mais ou menos uma meia centena de

paacuteginas) no qual compara os homens aos animais Montaigne faz uma afirmaccedilatildeo de

capital importacircncia que serve como uma espeacutecie de conclusatildeo antecipada daquilo que

afirma negativamente sobre o homem e sua relaccedilatildeo com o universo

ldquo[A] La presomption est nostre maladie naturelle et originelle La plus calamiteuse et fraile de toutes les creatures crsquoest lrsquohomme et quant et quant la plus orgueilleuse Elle se sent et se void logeacutee icy parmy la bourbe et le fient du monde attacheacutee et cloueacutee agrave la pire plus morte et croupie parti de lrsquounivers au dernier estage du logis et le plus esloigneacute de la voute celeste avec les animaux de la pire condition des trois (Les aeacuteriens les aquatiques et les terrestres) et se va plantant par

9 Idem p 113 10 Cassirer Ernst An essay on man Traduccedilatildeo portuguesa de Carlos Branco Ensaio sobre o homem Lisboa Guimaratildees Editores 1995 p24 11 Conche Marcel Montaigne et la philosophie Paris Puf 1996 p 7

12

imagination au dessus du cercle de la Lune et ramenant le ciel soubs ses pieds Crsquoest par la vaniteacute de cette mesme imagination qursquoil srsquoegale agrave Dieu qursquoil srsquoattribue les conditions divines qursquoil se trie soy mesme et separe de la presse des autres creatures taille les parts aux animaux ses confreres et compaignons et leur distribue telle portion de facultez et de forces que bon luy semble Comment cognoit il par lrsquoeffort de son intelligence les branles internes et secrets des animaux par quelle comparaison drsquoeux agrave nous conclue il la bestise qursquoil leur attribue [C] Quand je me joueuml agrave ma chatte qui sccedilait si elle passe son temps de moy plus que je ne fay drsquoellerdquo12

O homem quer ser senhor de todo o universo A sua atitude de querer ser uma

excepccedilatildeo na natureza natildeo passa de uma atitude ilusoacuteria O homem eacute segundo

Montaigne uma criatura como as outras que pode ser diferenciada natildeo pela capacidade

de raciocinar mas apenas pela presunccedilatildeo de querer destacar-se orgulhosamente

tornando-se ldquoo todo-poderosordquo face agraves outras criaturas Esta sua pretensatildeo de querer ser

a uacutenica criatura que pode conhecer e dominar o universo eacute radicalmente contestada por

Montaigne na ldquoApologierdquo Eacute com muita clarividecircncia que Conche reflectindo sobre

este tema afirma

ldquoOn voit pourquoi Montaigne srsquoefforce de retrouver chez lrsquoanimal ldquointelligencerdquo ldquodiscreacutetionrdquoldquojugementrdquoldquoratiocinationrdquo capaciteacute de ldquoconsulterrdquo de ldquoconcluirrdquo ldquoscience et prudencerdquo 13

Que tipo de competecircncia nossa natildeo reconhecemos nos actos dos animais Esta

questatildeo fundamental leva Montaigne a apresentar os seus relatos anedoacuteticos14 O

interesse da sua apologia dos animais eacute ldquo[hellip] paradoxalment lrsquohomme Montaigne

recherche lrsquohomme dans lrsquoanimal [hellip] crsquoest pour lutter contre lrsquoanthropocentrismerdquo15

Montaigne inicia a sua exposiccedilatildeo perguntando-se

ldquo[A] Est-il police regleacutee avec plus drsquoordre diversifieacutee agrave plus de charges et drsquooffices et plus constamment entretenueuml que celle des mouches agrave mielrdquo16

E faz questatildeo tambeacutem de descrever o engenho das andorinhas ao construiacuterem os

seus alojamentos e das aranhas ao confeccionarem as suas teias Diante destas obras

destes pequeninos animais Montaigne observa

12 Les Essais II 12 p 452 13 Conche Marcel Montaigne et la philosophie Paris Puf 1996 p 9 14 ldquoFidegravele aux proceacutedeacutes de compilation de son temps Montaigne accumule les exemples emprunteacutes agrave Pline agrave Plutarque agrave Arrien agrave Aulu-Gelle agrave Lucregravece agrave Virgile agrave Sextus Epiricusrdquo (cf Weiler Maurice Pour connaitre la penseacutee de Montaigne Bordas 1948 p 38) 15 Giocanti Sylvia Montaigne et les becirctes la becirctise et lrsquoanimal dans Les Essais de Montaigne Universiteacute de Toulouse 2011 p 1 16 Les Essais II 12 pp 454-455

13

ldquo[A] Nous reconnoissons assez en la pluspart de leurs ouvrages combien les animaux ont drsquoexcellence (supeacuterioriteacute) au dessus de nous et combien nostre art est foible agrave les imiterrdquo17

Quanto agrave capacidade de comunicaccedilatildeo Montaigne afirma que os animais

possuem este atributo Falamos com os catildees18 e eles respondem-nos Eacute evidente que

utilizamos uma outra linguagem para conversarmos com eles Montaigne observa que

tambeacutem entre noacutes humanos haacute diferenccedilas de linguagem de acordo com a diferenccedila de

regiotildees Estas diferenccedilas tambeacutem se encontram nos animais da mesma espeacutecie19

Segundo o nosso autor haacute certamente uma diferenccedila de ordem e de grau entre os

homens e os animais contudo ldquo[A] crsquoest soubs le visage drsquoune mesme naturerdquo20 Ao

constatar a peculiaridade do homem em face das outras criaturas Montaigne destaca o

facto de que o homem eacute detentor da liberdade de imaginaccedilatildeo No entanto

ldquo[A] ce desresglement de penseacutees luy representant ce qui est ce qui nrsquoest pas et ce qursquoil veut le faux et le veritable crsquoest un advantage qui luy est bien cher vendu et duquel il a bien peu agrave se glorifier car de lagrave naist la souce principale des maux qui le pressent pecheacute maladie irresolution (inconstance) trouble desespoirrdquo 21

Citando Lucreacutecio22 Montaigne deixa transparecer que o homem se prejudica a si

mesmo porque natildeo se manteacutem dentro dos limites da organizaccedilatildeo da natureza que se

manifesta de uma maneira inteligiacutevel e agraves vezes ateacute hostil submetendo o homem agrave

necessidade de leis que natildeo lhe satildeo suficientemente claras23

17 Les Essais II 12 p455 18 Les Essais II 12 p 458 19 Les Essais II 12 pp 458-459 20 Les Essais II 12 p459 21 Les Essais II 12 p 460 22ldquo[B] ldquores quaeque suo ritu procedit et ommes Foedere naturae certo discrimina servantrdquo (Chaque chose se deacuteveloppe agrave sa maniegravere et toutes conservent les diffeacuterences eacutetablies par lrsquoordre immuable de la nature) Cf Les Essais II 12 p 459 23 Expressando a sua visatildeo da natureza Montaigne observa que ao considerar que ela nos criou diferentes dos outros animais isto eacute nus sobre a terra nua atados cercados natildeo tendo com que armar-nos cobrir-nos [hellip] somos tentados a chamaacute-la de ldquotregraves injuste maracirctrerdquo Mas isto natildeo eacute assim A nossa organizaccedilatildeo do mundo natildeo eacute tatildeo disforme e desregrada A natureza abraccedilou universalmente todas as suas criaturas e natildeo haacute nenhuma que ela tenha provido plenamente de todos os meios necessaacuterios para a conservaccedilatildeo da existecircncia ldquo[C] crsquoest une mesme nature qui roule son coursrdquo(cf Les Essais II12 p467) Reflectindo sobre o tema da natureza nos Essais Pierre Villey afirma que ela se opotildee essencialmente agrave razatildeo humana e eacute natural tudo o que a razatildeo natildeo contaminou Afirma Villey ldquo[hellip] crsquoest chez les animaux et chez les sauvages qursquoon trouve les traces les moins corrompues de la nature Lrsquoeacutetat de nature dans cette conception radicale crsquoest lrsquoeacutetat de sauvagerie [hellip] Lrsquoadmiration pour les andiens crsquoest la forme paradoxale que prend chez lui de temps agrave autre son principe drsquoimitation de la naturerdquo (In Villey Pierre Les sources et lrsquoeacutevolution des essais de Montaigne - Tome second Paris Librairie Hachete 1908 p228) Isto natildeo quer dizer que devamos imitar os indiacutegenas por exemplo em todos os seus costumes tradiccedilotildees etc

14

Continuando a apologia dos animais Montaigne sugere que concebamos que os

animais natildeo obedecem a instintos de uma forma cega O relato que apresenta da raposa

da Traacutecia24 eacute um dos seus exemplos claacutessicos neste sentido Antes de se arriscar sobre a

aacutegua gelada a raposa aproxima o ouvido do gelo para ouvir de que profundidade sobre

o murmuacuterio da aacutegua a correr em baixo isto eacute ela ldquoraciocinardquo como fariacuteamos noacutes em

idecircnticas circunstacircncias o que faz barulho mexe o que mexe natildeo estaacute gelado o que natildeo

estaacute gelado eacute liacutequido e o liacutequido cede sob o peso Segundo Montaigne atribuir isto

simplesmente a uma vivacidade do sentido da audiccedilatildeo sem raciociacutenio e sem conclusatildeo

eacute uma quimera inconcebiacutevel

Segundo Montaigne natildeo eacute soacute o homem que sabe escolher o que eacute bom e o que

natildeo eacute bom para a sua vida e sobretudo para o socorro nas doenccedilas atraveacutes da ciecircncia e

do conhecimento construiacutedos por arte e por raciociacutenio

ldquo[A] Et quand nous voyons les chevres de Candie si elles ont receu un coup de traict aller entre un million drsquoherbes choisir le dictame pour leur guerison et la tortue quand elle a mangeacute de la vipere chercher incontinent de lrsquooriganum pour se purger et le dragon fourbir et esclairer ses yeux avecques du fenouil les cigouignes se donner elles mesmes des clysteres agrave tout de lrsquoeau de marine [hellip] pourquay ne disons nous de mesmes que crsquoest science et prudencerdquo25

Eacute faacutecil ver aqui quanto Montaigne deseja que o homem reconheccedila que os

animais possuem tambeacutem ciecircncia e sabedoria Em seu entender os animais tambeacutem satildeo

capazes de ser instruiacutedos agrave moda humana

ldquo[A] Les merles les corbeaux les pies les parroquets nous leur aprenons agrave parler [hellip] ils ont un discours au dedans qui les rend ainsi disciplinables et volontaires agrave aprendrerdquo26

Muitos animais aproximam-se da capacidade do homem e isto leva Montaigne a

afirmar

ldquo[A] qursquoil se trouve plus de difference de tel homme agrave tel homme que de tel animal agrave tel hommerdquo27

Podemos encontrar na ldquoApologierdquo muitos outros exemplos em que Montaigne

defende a ideia de que os animais possuem diversas capacidades semelhantes agraves dos

humanos28 Uma vez numerados todos estes atributos dos animais Montaigne afirma

24 Les Essais II 12 p 460 25 Les Essais II 12 pp 462-463 26 Les Essais II 12 p 463 27 Les Essais II 12 p 466

15

ldquo[A] La maniegravere de naistre drsquoengendrer nourrir agir mouvoir vivre et mourir des bestes estant si voisine de la nostre tout ce que nous retranchons de leurs causes motrices et que nous adjoustons agrave nostre condition au dessus de la leur cela ne peut aucunement partir du discours de nostre raisonrdquo29

Pierre Villey ao reflectir sobre estas comparaccedilotildees suscita uma questatildeo

relevante que natildeo eacute possiacutevel ignorar

ldquo[hellip] quand il exalte lrsquointeligence des animaux on peut se demander ce qursquoil en pense au justerdquo30

Natildeo querendo entrar na discussatildeo deste assunto - ateacute porque o proacuteprio

Montaigne natildeo o fez - eacute importante notar que se estes relatos montaigneanos fossem

tomados agrave letra natildeo nos faltariam motivos de troccedila Poderiacuteamos duvidar de muitas

afirmaccedilotildees acerca dos animais apresentadas por ele Fazendo um esforccedilo por deixar agrave

margem os exageros o humor e a liberdade literaacuteria do autor ndash que tecircm como objectivo

rebaixar o homem recolocando-o entre os animais e mostrando-lhe que a sua razatildeo

grande motivo de orgulho natildeo lhe garante um lugar no topo da piracircmide das criaturas ndash

o que importa destacar eacute que Montaigne pretende acentuar uma grande semelhanccedila

entre os homens e os animais

ldquo[A] Nous ne sommes ny au dessus ny au dessoubs du reste tout ce qui est sous le ciel dit le sage court une loy et fortune pareille [B] Indupedita suis fatalibus omnia vinclis (Toutes les choses sont enchaineacutes par les liens de leur propre destineacutee)rdquo31

28 Vejamos resumidamente outros atributos dos animais destacados pelo autor os catildees que servem aos cegos tanto nos campos como nas cidades catildees que representavam papeacuteis no teatro (p463) bois que serviam nos jardins reais de Susa (p464) nos espectaacuteculos de Roma viam-se elefantes treinados em movimentar-se e em danccedilar (p465) a pega que imitava com a voz tudo o que ouvia (p464) os elefantes que tecircm alguma participaccedilatildeo religiosa (p468) formigas que tecircm um jeito muito especial de comunicaccedilatildeo muacutetua (p469) o ouriccedilo que prevecirc a direcccedilatildeo do vento (p469) o camaleatildeo e o polvo que mudam de cor conforme a ocasiatildeo (p469) o voo dos paacutessaros que eacute resultado natildeo apenas da organizaccedilatildeo natural mas tambeacutem do entendimento consentimento e raciociacutenio (p469) os animais que servem seus donos sabem amaacute-los defendecirc-los (p461) o catildeo o cavalo sabem prezar amizade (p471) os animais satildeo muito mais regrados do que noacutes e se contecircm com muito mais moderaccedilatildeo nos limites que a natureza nos prescreveu (p472) os animais natildeo promovem a guerra (p473) o catildeo eacute mais fiel do que o homem (p476-7) quanto agrave gratidatildeo os animais tecircm esta capacidade (p477-8) os atuns tecircm conhecimentos geomeacutetricos astronoacutemicos e aritmeacuteticos (p479-480) o elefante tem a capacidade de arrependimento e reconhecimento dos erros (p480) o tigre tem capacidade de ser clemente (p480) enfim Montaigne atribui todas estas caracteriacutesticas e outras mais aos animais mostrando que elas satildeo erradamente consideradas como unicamente posse dos humanos 29 Les Essais II 12 p 470 30 Villey op cit p 186 31 Les Essais II 12 p 459

16

Desta perspectiva podemos compreender melhor a razatildeo do ldquodestronamentordquo

deste ser ldquotodo-poderosordquo que eacute o homem levado a cabo por Montaigne32

Depois de ter destacado a ideia de que o homem se assemelha aos animais e

vice-versa Montaigne sustenta que a forma corporal do homem eacute o que constitui a sua

peculiaridade face aos animais Eacute ela que ldquodefinerdquo a identidade do homem

ldquo[B] Ce nrsquoest donc pas par la raison par le discours et par lrsquoame que nous excellons sur les bestes crsquoest par nostre beauteacute nostre beau teint et nostre belle disposition de membres pour laquelle il nous faut mettre nostre intelligence nostre prudence et tout le reste agrave lrsquoabandonrdquo33

A sugestatildeo de Montaigne eacute que o homem natildeo pode ser pensado sem o seu corpo

elemento essencial de sua condiccedilatildeo humana O homem natildeo pode continuar a ser

concebido apenas como ser racional Montaigne potildee em causa a claacutessica concepccedilatildeo de

que soacute o homem eacute constituiacutedo de racionalidade O seu objectivo natildeo eacute encontrar uma

nova definiccedilatildeo do homem natildeo deseja decretar a inferioridade do homem nem tampouco

a sua superioridade face aos animais Natildeo tem em vista promover uma competiccedilatildeo

ridiacutecula entre os seres da natureza Montaigne sente-se incapaz de dar qualquer

definiccedilatildeo com o auxiacutelio da razatildeo humana Ignora qual eacute a essecircncia dos animais natildeo os

conhece Da mesma forma podemos dizer que agrave luz da ldquoApologierdquo Montaigne natildeo

consegue definir o homem Natildeo eacute possiacutevel elaborar juiacutezos constantes e uniformes nem

sobre o homem nem a partir dele

Dito de outra forma o ldquocepticismo da razatildeordquo que Montaigne assume

conscientemente visa rejeitar a pretensatildeo do homem de se considerar por via da razatildeo

no centro do universo

Montaigne com os seus ensaios quer ir directo agraves coisas e aos homens Eacute claro

que teve pouco contacto com o chamado movimento cientiacutefico do seu tempo Longe de

32 Friedrich ao analisar a questatildeo do lugar que segundo Montaigne corresponde ao homem diz ldquoA la question de savoir quelle place occupe lrsquohomme dans la totaliteacute du monde existent Montaigne ne donnera jamais la reacuteponse plotinienne selon laquelle il serait dans la chaicircne des ecirctres eacutemaneacutes un dernier maillon reacutetablissant la communication avec la source de lrsquoeacutemanation lrsquoUm primordial Ni la reacuteponse chreacutetienne selon laquelle lrsquohomme constituerait le couronnement terrestre de la creacuteation tout le creacutee lui eacutetant subordonneacute et Dieu eacutetant alleacute pour lui jusqursquoagrave se reacutesoudre agrave intervenir dans lrsquohistoire du salut Lrsquohomme de Montaigne est plutocirct un point dans lrsquounivers sans espoir que le destin ni la diviniteacute srsquointeacuteresse jamais agrave lui Il partage cette insignifiance de point avec le milieu dans lequel il vit patrie Eacutetat continent terre animaux et plantes Il nrsquoest plus un centre il est plongeacute dans la multitude de tout ce qui existe ignorant ce qui lrsquoen distingue et srsquoy sentant cheacutetif - bien preacuteserveacute pourtant au coeur de son insignifiance de son ignorance et deacutechargeacute de tout embarras Il y a au fond de cette penseacutee des ideacutees de Lucregravece Montaigne les transforme pour leur faire exprimer sa propre conscience de la vie dont il preacutecise les grandes lignes en la deacutelimitant par rapport aux affirmations posant la digniteacute de la nature humaine (cf op cit p131) 33 Les Essais II 12 p 486

17

toda a construccedilatildeo teoacuterica esforccedila-se por encontrar nele mesmo e nos outros o homem

tal como eacute sem o falso semblante que lhe acrescentam as pretensiosas doutrinas que o

definem pela sua relaccedilatildeo com o universo e com Deus

18

2 A criacutetica agrave razatildeo humana e a questatildeo da religiatildeo

Segundo Montaigne as pessoas que se gabam do conhecimento estatildeo sempre a

tentar explicar quais satildeo os atributos de Deus atraveacutes de complicados conceitos e

demonstraccedilotildees ininteligiacuteveis Em seu entender Deus e as verdades da religiatildeo satildeo

nitidamente questotildees de feacute e natildeo noccedilotildees filosoacuteficas Que isto eacute assim prova-o o facto de

que estas noccedilotildees satildeo sempre muito diversas e originam muita discoacuterdia entre os

inuacutemeros autores que delas se ocupam Uma coisa eacute Deus e outra coisa totalmente

diferente eacute o que pensam os homens a respeito de Deus

ldquo[A] Il ma tousjours sembleacute quagrave un homme Chrestien cette sorte de parler est pleine dindiscretion et dirreverence Dieu ne peut mourir Dieu ne se peut desdire Dieu ne peut faire cecy ou cela Je ne trouve pas bon denfermer ainsi la puissance divine soubs les loix de nostre parolle Et lapparence qui soffre agrave nous en ces propositions il la faudroit representer plus reveremment et plus religieusementrdquo34

ldquo[A] Dieu ne peut faire les mortels immortels ny revivre les trespassez ny que celuy qui a vescu nait point vescu celuy qui a eu des honneurs ne les ait point eus nayant autre droit sur le passeacute que de loubliance [hellip] Voylagrave ce quil dict et quun Chrestien devroit eviter de passer par sa bouche Lagrave ougrave au rebours il semble que les hommes recherchent cette fole fierteacute de langage pour ramener Dieu agrave leur mesure [hellip]nostre parole le dict mais nostre intelligence ne lrsquoapprehende pointrdquo35

Para compreender o lugar e o valor da razatildeo na ldquoApologierdquo eacute necessaacuterio

investigar os motivos que levaram o autor a tecer uma criacutetica tatildeo contundente da razatildeo

humana aprofundando em concreto as relaccedilotildees que esta criacutetica tem com a sua anaacutelise

da religiatildeo e com o poder de Deus expresso em todo o desenvolvimento do texto Para

esta abordagem teremos como base o preacircmbulo da ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo36

A ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo eacute o mais longo capiacutetulo da obra Les Essais

Neste texto Montaigne propotildee-se apresentar a ldquodefesa de um teoacutelogordquo do seacuteculo XVI

Montaigne comeccedila por caracterizar a situaccedilatildeo histoacuterica na qual a obra de

Sebond chegou agraves matildeos de seu pai por intermeacutedio do humanista Pierre Brunel (1499-

1546)37 Segundo Montaigne trata-se de um livro adequado para a eacutepoca Isto porque as

34 Les Essais II 12 p 527 35 Les Essais II 12 p 528 36 Cf Les Essais II 12 pp 438-449 Montaigne sobretudo nestas paacuteginas iniciais opotildee a religiatildeo agrave razatildeo humana demonstrando por um lado a incapacidade e os limites desta faculdade que eacute motivo de orgulho do homem e por outro esse ldquoinstrumentordquo de conhecimento ligado agrave graccedila divina que eacute a feacute 37 Montaigne admirava muito este humanista que gozava de grande reputaccedilatildeo na sua eacutepoca por causa de seu saber (Les Essais II 12 p 439)

19

novidades de Lutero comeccedilavam a estar em voga e a abalar em muitos lugares a antiga

crenccedila cristatilde38 Para Montaigne que era um pensador catoacutelico conservador a Reforma

Protestante era vista como algo perigoso para a religiatildeo estabelecida Globalmente natildeo

concordava com as contestaccedilotildees provocadas pelo espiacuterito da Reforma sobretudo porque

poderiam levar os homens agrave praacutetica do ateiacutesmo especialmente os menos doutos

Uma leitura do texto potildee de imediato em evidecircncia em que medida Montaigne se

distancia de Sebond em termos argumentativos Parafraseando Villey a defesa de

Sebond seraacute rapidamente esquecida39 Montaigne observa que surgiram entretanto

algumas objecccedilotildees ao livro de Sebond e anuncia no iniacutecio do ensaio o seu propoacutesito de

refutaacute-las Montaigne deseja defender Sebond destes dois tipos de adversaacuterios por um

lado os que consideram que os cristatildeos erram ao querer apoiar com razotildees humanas a

sua crenccedila que soacute se concebe por feacute e por uma inspiraccedilatildeo particular da graccedila divina

Estes satildeo os que subestimam a importacircncia da razatildeo Satildeo considerados fideiacutestas

pessoas que pensam que a verdade em religiatildeo estaacute em uacuteltima instacircncia baseada na feacute

em vez de no raciociacutenio ou na evidecircncia Por outro lado estatildeo os que dizem que os

argumentos de Sebond satildeo fracos e inadequados para demonstrar o que pretendem e se

dispotildeem a atacaacute-los facilmente Estes satildeo os que subestimam a importacircncia da feacute

Consideremos em primeiro lugar a atitude dos primeiros opositores Natildeo seria

correcto querer apoiar com razotildees humanas a crenccedila ldquo[A] qui ne se conccediloit que par foy

et par une inspiration particuliere de la grace divinerdquo40 Estes primeiros opositores de

Sebond satildeo os partidaacuterios da posiccedilatildeo ortodoxa catoacutelica Montaigne lembra que estes

teoacutelogos catoacutelicos satildeo movidos sobretudo por uma visatildeo piedosa

ldquo[A] En cette objection il semble quil y ait quelque zele de pieteacute et agrave cette cause nous faut-il avec autant plus de douceur et de respect essayer de satisfaire agrave ceux qui la mettent en avantrdquo41

Em face destas primeiras criacuteticas agrave obra do teoacutelogo catalatildeo Montaigne natildeo se

inibe de expressar as suas proacuteprias tomadas de posiccedilatildeo

ldquo[A]Toutefois je juge ainsi quagrave une chose si divine et si haultaine et surpassant de si loing lhumaine intelligence comme est cette veriteacute de laquelle il a pleu agrave la bonteacute de Dieu nous esclairer il est bien besoin quil nous preste encore son secours dune faveur extraordinaire et privilegeacutee pour la pouvoir concevoir et loger en nous et ne croy pas que

38 Cf Les Essais II 12 p 439 39 Villey op cit p 183 40 Les Essais II 12 p 440 41 Les Essais II 12 p 440

20

les moyens purement humains en soyent aucunement capables et sils lestoient tant dames rares et excellentes et si abondamment garnies de forces naturelles eacutes siecles anciens neussent pas failly par leur discours darriver agrave cette connoissance Cest la foy seule qui embrasse vivement et certainement les hauts mysteres de nostre Religionrdquo42

Ao abordar esta questatildeo Montaigne reconhece que natildeo estaacute capacitado para

levar a cabo tal empreendimento Esta seria uma tarefa mais adequada para um homem

versado em teologia assunto de que ele pessoalmente diz nada saber43 Mesmo assim

expressa uma vez mais a sua criacutetica radical aos que utilizam a razatildeo para apresentarem

argumentos apologeacuteticos em defesa das verdades sobre Deus e sobre a religiatildeo

Montaigne eacute um catoacutelico44 Sobre isto os Essais natildeo deixam duacutevida Natildeo eacute este o

momento de entrar na discussatildeo acerca de como viveu ou deixou de viver a sua

religiosidade O importante eacute que como catoacutelico aceita que haacute um Deus uacutenico criador

do ceacuteu e da terra Em vaacuterios momentos tanto na ldquoApologierdquo como em outros ensaios

Montaigne daacute a entender que a verdade estaacute em Deus e natildeo eacute propriedade dos homens

filoacutesofos ou teoacutelogos Noutras palavras a verdade eacute revelada e o homem sem o auxiacutelio

de Deus nunca a encontraria A razatildeo humana natildeo tem condiccedilotildees para elaborar

raciociacutenios crediacuteveis sobre estas verdades reveladas Para sustentar a tese que a razatildeo eacute

impotente neste domiacutenio Montaigne dedica um nuacutemero importante de paacuteginas em toda

a sua obra a desenvolver a ideia de que alguns filoacutesofos antigos reflectiram muito sobre

a possibilidade do conhecimento sobre Deus e fizeram afirmaccedilotildees que satildeo

absolutamente carentes de sentido Isto natildeo passou de uma ldquo[C] tintamarre de tant de

42 Les Essais II 12 p 440-441 43 ldquoCe seroit mieux la charge drsquoun homme verseacute en Theologie que de moy qui nrsquoy sccedilay rienrdquo(Les Essais II 12 p 440) 44 Montaigne declara-se catoacutelico foi um catoacutelico que durante toda a sua vida procurou cumprir os ritos lituacutergicos convencionais da Igreja Catoacutelica A sua posiccedilatildeo ceacuteptica parece enquadrar-se no fideiacutesmo como veremos Mas haacute que salientar que em algumas questotildees morais independentes das suas praacuteticas rituais ou seja na sua vida praacutetica Montaigne natildeo tem muito em consideraccedilatildeo a lista de exigecircncias eacuteticas do catolicismo romano Parece que falta agrave concepccedilatildeo religiosa de Montaigne algum sentimento religioso limita-se a uma espeacutecie de praacutetica do ritualismo exigido pela Igreja Catoacutelica Ele seria catoacutelico por uma questatildeo de conveniecircncia intelectual A sua praacutetica lituacutergica ritualiacutestica natildeo exerce grande influecircncia sobre o seu pensamento filosoacutefico Ele eacute um pensador completamente livre face agrave doutrina da Igreja E isto distingue-o substancialmente dos teoacutelogos que integram o corpo doutrinal na Igreja Montaigne pensava e exprimia estes pensamentos com plena liberdade Manifesta aleacutem disso alguma confianccedila na Igreja na religiatildeo na tradiccedilatildeo e nos costumes que contribuiacuteram para a sua formaccedilatildeo e que satildeo de alguma maneira parte constitutiva de sua identidade E na realidade quis apostar naquilo com o qual estava mais familiarizado ldquo[B] Nous sommes Chrestiens agrave mesme titre que nous sommes ou Perigordins ou Alemansrdquo(Les Essais II 12 p 445) No entanto quando comeccedilamos a estabelecer um maior contacto com os Essais percebemos que Montaigne natildeo eacute um catoacutelico que confie cegamente na doutrina da Igreja Muito pelo contraacuterio eacute extremamente consciente dos problemas do catolicismo e da sua doutrina bem como dos costumes em geral E acima de tudo tem perfeita consciecircncia de que a sua confianccedila eacute uma crenccedila e natildeo uma certeza filosoacutefica

21

cervelles philosophiquesrdquo45 Segundo Montaigne de todas as ideias humanas e antigas

no tocante agrave religiatildeo

ldquo[A]celle lagrave me semble avoir eu plus de vray-semblance et plus dexcuse qui reconnoissoit Dieu comme une puissance incomprehensible origine et conservatrice de toutes choses toute bonteacute toute perfection recevant et prenant en bonne part lhonneur et la reverence que les humains luy rendoient soubs quelque visage sous quelque nom et en quelque maniere que ce futrdquo46

Trata-se de belas afirmaccedilotildees que querem expressar quais satildeo os principais

atributos de Deus Satildeo uma tentativa racional que tem como meta explicar quem eacute Deus

Ao comentar esta passagem da ldquoApologierdquo Conche pergunta-se que significam estas

palavras E baseado na leitura que faz de Montaingne afirma que aplicadas a Deus

natildeo podemos saber o que realmente significam47

Montaigne questiona o facto de muitos homens pretenderem edificar um

discurso baseado na razatildeo para justificar as verdades reveladas as quais segundo ele soacute

poderatildeo encontrar os verdadeiros alicerces na feacute Vejamos como Conche

sinteticamente analisa esta questatildeo a partir da ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo

ldquoNous croyons penser Dieu En reacutealiteacute nous ne faisons que projeter hors de nous des qualiteacutes humaines que nos avons [hellip] Lrsquohomme ne peut concevoir Dieu qursquoagrave partir de lui-mecircme Or il y a entre lrsquohomme et Dieu un abicircme qualitatif Le Dieu dont on parle et duquel on raisonne nrsquoest qursquoun produit de lrsquoanthropomorphisme La raison loin de nous eacutelever agrave Dieu le ramegravene agrave notre mesure [hellip] En tout cela Dieu est encore conccedilu par analogie avec lrsquohomme et la puissance divine enfermeacutee ldquosous les lois de notre parolerdquo Assujettir Dieu agrave nos principes rationnels crsquoest lrsquoassujettir agrave la raison humaine Lrsquohomme ne peut penser au-delagrave de lui mecircme Du vrai Dieu on ne peut rien penser ni rien dire Il nrsquoy a pas drsquoideacutee de Dieu [hellip] La notion de Dieu nrsquoest pas une notion philosophiquerdquo48

Embora critique estes opositores de Sebond Montaigne afirma ao mesmo tempo

que o empenho em justificar a feacute pela razatildeo eacute uma iniciativa louvaacutevel Chega mesmo a

afirmar que esta tarefa poderia ser considerada como o uso mais honroso que o homem

cristatildeo poderia dar agrave razatildeo Por outras palavras eacute uma atitude nobre a que leva o cristatildeo

a querer embelezar perceber e ampliar a verdade de sua crenccedila por meio de todos os

estudos e reflexotildees Montaigne observa entretanto que eacute preciso fazer acompanhar a

45 Les Essais II 12 p 516 46 Les Essais II 12 p 513 47 Cf Conche Marcel Montaigne ou la conscience heureuse Paris Puf 2009 p 55 48 Idem pp 55-56

22

nossa feacute de toda a razatildeo que haacute em noacutes mas sempre com a ressalva de natildeo pensar que

seja de noacutes que ela depende nem que os nossos esforccedilos e argumentos possam atingir

uma tatildeo ldquo[A] supernaturelle et divine sciencerdquo49 O autor dos Essais insistiraacute muito

neste aspecto

ldquo[A] Si elle nentre chez nous par une infusion extraordinaire si elle y entre non seulement par discours mais encore par moyens humains elle ny est pas en sa digniteacute ny en sa splendeur Et certes je crain pourtant que nous ne la jouyssions que par cette voye Si nous tenions agrave Dieu par lentremise dune foy vive si nous tenions agrave Dieu par luy non par nous si nous avions un pied et un fondement divin les occasions humaines nauroient pas le pouvoir de nous esbranler comme elles ont [hellip]rdquo50

Sem duacutevida Montaigne ao questionar o poder da razatildeo humana procura

defender a feacute cristatilde Os argumentos tidos como ceacutepticos que estatildeo presentes na

ldquoApologierdquo tecircm como objectivo provar que soacute atraveacutes da intervenccedilatildeo divina e natildeo com

nossos proacuteprios meios racionais podemos ter acesso agrave verdade Apresenta vaacuterios

exemplos para que entendamos com mais clarividecircncia a sua reflexatildeo acerca deste

assunto

ldquo[C] Lrsquohomme est bien insenseacute Il ne sccedilauroit forger un ciron et forge des Dieux agrave douzainesrdquo51

O homem quer descrever Deus mas na verdade descreve-se a si mesmo Isto

demonstra a sua incapacidade e a sua falta de sabedoria

ldquo[B] Nous avons vie raison et liberteacute estimons la bonteacute la chariteacute et la justice ces qualitez sont donc en luy Somme le bastiment et le desbastiment les conditions de la diviniteacute se forgent par lhomme selon la relation agrave soy Quel patron et quel modele Estirons eslevons et grossissons les qualitez humaines tant quil nous Plaira enfle toy pauvre homme et encore et encore et encore Non si te ruperis inquit (ldquoNon pas mecircme quand tu cregraveverais dit-ilrdquo (Hor Sal II III 318) Crsquoest la fable de la grenouille qui veut se faire aussi grosse que le boeuf)rdquo52

Eacute interessante notar que ao mesmo tempo que pretende fazer a apologia da feacute cristatilde Montaigne critica os cristatildeos que natildeo satildeo ldquofieacuteisrdquo aos ensinamentos da Sagrada Escritura

ldquo[B] Voulez vous voir cela Comparez nos moeurs agrave un Mahometan agrave un Payen vous demeurez tousjours au dessoubs lagrave ougrave au regard de lavantage de nostre religion nous devrions luire en excellence dune extreme et incomparable distance et devroit on dire Sont ils si justes si

49 Les Essais II 12 p 441 50 Les Essais II 12 p 441 51 Les Essais II 12 p 530 52 Les Essais II 12 p 531

23

charitables si bons ils sont donq Chrestiens [C] La marque peculiegravere de nostre veriteacute devroit estre nostre vertu comme elle est aussi la plus celeste marque et la plus difficile et que cest la plus digne production de la veriteacuterdquo53

Para Montaigne os cristatildeos constituem uma espeacutecie de contratestemunho de sua

feacute Fazendo uma referecircncia ao texto da Sagrada Escritura algo muito raro nos Essais o

autor afirma que se tiveacutessemos um uacutenico pingo de feacute54 moveriacuteamos as montanhas de

seu lugar E neste sentido lembra-nos

ldquo[A] nos actions qui seroient guideacutees et accompaigneacutees de la diviniteacute ne seroient pas simplement humaines elles auroient quelque chose de miraculeux comme nostre croyancerdquo55

Para os que subestimam a importacircncia da razatildeo isto eacute para os primeiros

opositores de Sebond ou os fideiacutestas os cristatildeos erram ao quererem apoiar as suas

crenccedilas que soacute se concebem por meio da feacute e por inspiraccedilatildeo particular da graccedila divina

Estes satildeo os que pensam que a verdade em religiatildeo estaacute em uacuteltima instacircncia baseada na

feacute em vez de no raciociacutenio ou na evidecircncia Segundo Montaigne trata-se de uma

concepccedilatildeo bonita e ateacute piedosa Chega inclusivamente a exemplificar esta atitude e a

citar um caso de algueacutem que foi desviado dos erros da incredulidade atraveacutes da leitura

da obra de Sebond

ldquo[A] Je sccedilay un homme dauthoriteacute nourry aux lettres qui ma confesseacute avoir esteacute rameneacute des erreurs de la mescreance par lentremise des argumens de Sebond Et quand on les despouillera de cet ornement et du secours et approbation de la foy et quon les prendra pour fantasies pures humaines pour en combatre ceux qui sont precipitez aux espouvantables et horribles tenebres de lirreligion ils se trouveront encores lors aussi solides et autant fermes que nuls autres de mesme condition quon leur puisse opposer [hellip]rdquo56

53 Les Essais II 12 p 442 54 Provavelmente Montaigne estaacute a aludir a textos da Sagrada Escritura especialmente do Evangelho ldquoSi vraiment vous avez de la foi gros come une graine de moutarde vous diriez agrave ce sycomore ldquoDeacuteracine-toi et va te planter dans la merrdquo et il vous obeacuteiraitrdquo (Lc 17 6) Car en veacuteriteacute je vous le deacuteclare si un jour votre foi est semblable agrave un grain de moutarde vous diriez agrave cette montagne ldquoPasse drsquoici lagrave-basrdquo et elle y passera Rien ne vous sera impossiblerdquo (Mt 17 20) (In Nouveau Testament Traduction Oecumeacutenique de la Bible Paris PUF 1977 pp 91 e 253 55 Les Essais II 12 p 442 56 Les Essais II 12 p 447-448

24

No entanto mesmo tendo em consideraccedilatildeo a importacircncia da Teologia Natural

sebondiana Montaigne toma um certo partido pelo lado dos fideiacutestas57 seus opositores

Em seu entender a razatildeo humana natildeo eacute capaz de conduzir o homem agrave feacute

Montaigne num dado momento refere-se agraves guerras58 que oprimiam a sua

naccedilatildeo Ele propotildee uma possiacutevel explicaccedilatildeo destes tormentos que assolavam a Franccedila

que tem muito a ver com a questatildeo de fundo tratada na ldquoApologierdquo Escreve

ldquo[A] Les hommes y sont conducteurs et srsquoy servent de la religion ce devroit estre tout le contrairerdquo59

Assim se compreende por que razatildeo Montaigne aleacutem de criticar aqueles que

queriam instrumentalizar a razatildeo para justificar as verdades reveladas repudia a noccedilatildeo

daqueles que se dedicam excessivamente agrave religiatildeo e que tecircm como meta principal a

satisfaccedilatildeo das paixotildees e da vaidade

ldquo[C] Je voy cela evidemment que nous ne prestons volontiers agrave la devotion que les offices qui flattent noz passions Il nest point dhostiliteacute excellente comme la Chrestienne Nostre zele fait merveilles quand il va secondant nostre pente vers la haine la cruauteacute lambition lavarice la detraction la rebellion A contrepoil vers la bonteacute la benigniteacute la temperance si comme par miracle quelque rare complexion ne ly porte il ne va ny de pied ny daile Nostre religion est faicte pour extirper les vices elle les couvre les nourrit les incite [A] Il ne faut point faire barbe de foarre agrave Dieu (comme on dict) Si nous le croyons je ne dy pas par foy mais dune simple croyance voire (et je le dis agrave nostre grande confusion) si nous le croyons et cognoissions comme une autre histoire comme lun de nos compaignons nous laimerions au dessus de toutes autres choses pour linfinie bonteacute et beauteacute qui reluit en luy au moins marcheroit il en mesme reng de nostre affection que les richesses les plaisirs la gloire et nos amis raquo60

Montaigne demonstra uma certa irritaccedilatildeo em face da instrumentalizaccedilatildeo da

religiatildeo para certos objectivos particulares Em seu entender a devoccedilatildeo religiosa natildeo

57 Ao reflectir sobre o fideiacutesmo presente na ldquoApologierdquo Friedrich diz-nos que Montaigne assume um fideiacutesmo isento da nostalgia miacutestica O seu fideiacutesmo significa uma tomada de consciecircncia intelectual dos limites humanos limites estes que natildeo deseja ultrapassar Seu fideiacutesmo eacute de uma espeacutecie negativa isto eacute eacute a certeza da incerteza O mesmo autor observa ainda que a ldquoteologiardquo de Montaigne representa um desvio para ir ao conhecimento do homem no interior do mundo Montaigne precisa de se distanciar de Deus para se assegurar da pequenez do homem na qual ele vai se instalar (cf op cit p 117) 58 Tudo indica que Montaigne estaacute a falar das guerras civis e religiosas do seacuteculo XVI Citando o famoso historiador francecircs M de Chacircteaubriand Laschamps na sua monumental obra Michel de Montaigne editada em 1855 afirma que estas guerras ldquoont dureacute trente-neuf ans elles ont engendre les massacres de la Saint Bartheacutelemy verseacute le sang de plus de deux millions de Franccedilais et deacutevoreacute plus de trois milliards de notre monnaie actuelle Elles ont produit la saisie et la vente des biens de lrsquoEacuteglise et des particulieres frappeacute deux rois de mort violente Henri III et Henri IV et commenceacute le procegraves criminal du premier de ces deux roisrdquo (cf Laschamps F Bigorie de Michel de Montaigne Paris Libraire Editeur 1855 p 108) 59 Les Essais II 12 p 443 60 Les Essais II 12 p 444

25

pode ser usada para servir os propoacutesitos do oacutedio da crueldade da ambiccedilatildeo da rebeliatildeo

etc61

Embora natildeo seja teoacutelogo62 Montaigne eacute um pensador que procura respeitar

profundamente a missatildeo da teologia Mas importa salientar que esta missatildeo deve ser

entendida simplesmente como uma praacutetica de piedade e natildeo como uma racionalizaccedilatildeo e

sistematizaccedilatildeo das verdades reveladas pela feacute Neste sentido haacute uma enorme distacircncia

entre o autor dos Essais e os escolaacutesticos Para Montaigne a teologia eacute concebida como

uma espeacutecie de exerciacutecio espiritual dos cristatildeos sobretudo dos teoacutelogos atraveacutes da

razatildeo humana Exerciacutecio este que carece do poder de alcanccedilar a verdade

ldquo[A] Il en faut faire de mesme et accompaigner nostre foy de toute la raison qui est en nous mais tousjours avec cette reservation de nestimer pas que ce soit de nous quelle deacutepende ny que nos efforts et arguments puissent atteindre agrave une si supernaturelle et divine sciencerdquo 63

Para Montaigne as explicaccedilotildees (racionalizaccedilotildees) das verdades da religiatildeo

devem ser as pregaccedilotildees piedosas nos actos de culto por exemplo E esta eacute a tarefa

fundamental da qual a teologia deve ocupar-se Aleacutem disto Montaigne que eacute um

observador subtil e cuidadoso propotildee certas distinccedilotildees Vejamos o que Friedrich tem a

dizer sobre esta questatildeo

ldquo[hellip] sait bien entendu distinguer la vraie pieacuteteacute de la fausse Il bracircme ainsi les priegraveres meacutecaniques la malhonnecircteteacute des gens qui se signent au son de la cloche sans pour autant renoncer agrave la haine agrave lrsquoavarice agrave lrsquoinjustice comme si leur principe eacutetait aux vices leur heure son heure agrave Dieurdquo64

Desta perspectiva segundo Montaigne a religiatildeo deve ser entre outras coisas

como uma praacutetica da verdadeira piedade que se preocupa em instaurar no coraccedilatildeo do

homem o desejo de viver o amor a justiccedila etc renunciando a tudo aquilo que eacute mal e

que impede a realizaccedilatildeo da felicidade do homem no aqui e no agora Eacute por isto que natildeo

acredita numa religiatildeo que vive a prometer constantemente bens eternos que viratildeo a

tornar-se realidade num outro mundo diverso e posterior a este que conhecemos Para

exemplificar esta sua abordagem Montaigne refere na ldquoApologierdquo o filoacutesofo Antiacutestenes

Quando o iniciavam no misteacuterio de Orfeu dizendo-lhe o sacerdote que aqueles que se

devotavam a tal religiatildeo iam receber bens eternos e perfeitos apoacutes a morte aquele

61 Cf Les Essais II 12 p 444 62 Ver nota 43 63 Les Essais II 12 p 441 64 Friedrich op cit p 122

26

perguntou-lhe ldquose acreditas nisso por que entatildeo natildeo morres tu mesmordquo65 Eis um outro

exemplo que vale a pena citar

ldquo[C] Diogenes plus brusquement selon sa mode et hors de nostre propos au prestre qui le preschoit de mesme de se faire de son ordre pour parvenir aux biens de lautre monde Veux tu pas que je croye quAgesilauumls et Epaminondas si grands hommes seront miserables et que toy qui nes quun veau seras bien heureux par ce que tu es prestre rdquo66

Segundo Montaigne se acolhecircssemos essas grandes promessas de felicidades

eternas e supremas com a mesma autoridade com que acolhemos uma opiniatildeo

filosoacutefica natildeo teriacuteamos o horror agrave morte que temos

ldquo[A] Je veuil estre dissout dirions nous et estre aveques Jesus-Christrdquo67

Ao afirmar que

ldquo[A] La force du discours de Platon de lrsquoimmortaliteacute de lrsquoame poussa bien aucuns de ses disciples agrave la mort pour joiumlr plus promptement des esperances qursquoil leur donnoit [hellip]68

O autor da ldquoApologierdquo quer destacar a fragilidade da razatildeo que utiliza meios

puramente humanos para explicar ldquorealidadesrdquo que transcendem a vida concreta

Vejamos uma passagem em que o autor expressa nitidamente estas ideias

ldquo[A] Tout cela cest un signe tres-evident que nous ne recevons nostre religion quagrave nostre faccedilon et par nos mains et non autrement que comme les autres religions se reccediloyvent Nous nous sommes rencontrez au paiumls ou elle estoit en usage ougrave nous regardons son ancienneteacute ou lauthoriteacute des hommes qui lont maintenue ou creignons les menaces quellrsquoattache aux mescreans ou suyvons ses promesses Ces considerations lagrave doivent estre employeacutees agrave nostre creance mais comme subsidiaires ce sont liaisons humaines Une autre region dautres tesmoings pareilles promesses et menasses nous pourroyent imprimer par mesme voye une croyance contrairerdquo69

Apesar de ser catoacutelico parece sugerir na ldquoApologierdquo uma certa atitude de

indiferenccedila relativamente a toda e qualquer profissatildeo de feacute ou seja uma espeacutecie de

distanciamento no que diz respeito agraves diversas convicccedilotildees religiosas Montaigne chega

quase a reduzir a proacutepria crenccedila a uma questatildeo de costume a um acaso geograacutefico

65 Cf Les Essais II 12 p 444 66 Les Essais II 12 p 444 67 Les Essais II 12 p 445 68 Les Essais II 12 p 445 69 Les Essais II 12 p 445

27

[B] Nous sommes Chrestiens agrave mesme titre que nous sommes ou Perigordins ou Alemansrdquo70

Fazendo uma criacutetica aos diversos raciociacutenios que foram usados na histoacuteria do

pensamento filosoacutefico com o objectivo de argumentar de que forma o homem tem

acesso agrave religiatildeo Montaigne afirma que Platatildeo e os seus exemplos querem levar-nos a

concluir que somos conduzidos agrave crenccedila em Deus ou por amor ou por forccedila A sua

rejeiccedilatildeo dos argumentos da filosofia expressa-se de uma forma muito incisiva

ldquo[C] LAtheisme estant une proposition comme desnatureacutee et monstrueuse difficile aussi et malaiseacutee destablir en lesprit humain pour insolent et desregleacute quil puisse estre il sen est veu assez par vaniteacute et par fierteacute de concevoir des opinions non vulgaires et reformatrices du monde en affecter la profession par contenance qui sils sont asses fols ne sont pas assez forts pour lavoir planteacutee en leur conscience pourtantrdquo71

Aleacutem de apontar os limites das crenccedilas consideradas pagatildes bem como os

enganos de Platatildeo relativos aos motivos que levam o homem agrave praacutetica da religiatildeo

Montaigne critica um outro engano similar e importante de Platatildeo

ldquo[B] Lerreur du paganisme et lignorance de nostre sainte veriteacute laissa tomber cette grande ame de Platon (mais grande dhumaine grandeur seulement) encores en cet autre voisin abus que les enfans et les vieillars se trouvent plus susceptibles de religion comme si elle naissoit et tiroit son credit de nostre imbecilliteacuterdquo72

Segundo Montaigne a religiatildeo natildeo pode ser construiacuteda sobre o alicerce da razatildeo

humana como vimos Nem tampouco pode ser fundada nos argumentos platoacutenicos

acabados de referir Estes satildeo todos muito fraacutegeis A religiatildeo encontra as suas bases

verdadeiras na feacute A perspectiva proacutepria da filosofia supotildee um ateiacutesmo de meacutetodo como

observa Conche Caso contraacuterio ela jaacute natildeo seria filosofia ldquomais theacuteologie ou ideacuteologie

A qui est ainsi priveacute du secours de la gracircce divine Dieu est inconnaissablerdquo73

Montaigne recusa o ateiacutesmo de uma forma muito clara inclusive aquele conceituado

por Platatildeo

ldquo[A] Et ce que dit Plato74 quil est peu dhommes si fermes en latheisme quun dangier pressant ne ramene agrave la recognoissance de la divine puissance ce rolle ne touche point un vray Chrestien Cest agrave faire aux

70 Les essais II 12 p 445 71 Les Essais II 12 p 446 72 Les Essais II 12 p 446 73 Conche 1996 op cit p131 74 Tudo leva a crer que Montaigne se estaacute a referir a Platatildeo Preferimos conservar a mesma grafia da ediccedilatildeo dos Essais que estaacute a ser utilizada neste trabalho

28

religions mortelles et humaines destre receueumls par une humaine conduite Quelle foy doit ce estre que la laacutecheteacute et la foiblesse de coeur plantent en nous et establissent [C] Plaisante foy qui ne croid ce quelle croit que pour navoir le courage de le descroire Une vitieuse passion comme celle de linconstance et de lestonnement peut elle faire en nostre ame aucune production regleacutee75

Continuando a sua reflexatildeo no preacircmbulo da ldquoApologierdquo o autor ressalta qual eacute

a relaccedilatildeo fundamental que eacute necessaacuteria para estabelecer a uniatildeo do homem a Deus

partindo do caraacutecter superior da religiatildeo face ao ateiacutesmo Montaigne observa que o laccedilo

que deveria atar o nosso juiacutezo e a nossa vontade que deveria cingir a nossa alma e uni-

la ao criador

ldquo[A] ce devroit estre un neud prenant ses repliz et ses forces non pas de nos considerations de noz raisons et passions mais dune estreinte divine et supernaturelle nayant quune forme un visage et un lustre qui est lauthoriteacute de Dieu et sa grace Or nostre coeur et nostre ame estant regie et commandeacutee par la foy cest raison quelle tire au service de son dessain toutes noz autres pieces selon leur porteacuteerdquo76

Montaigne ao indicar como devemos manejar os instrumentos naturais e

humanos ou seja como devemos aplicar a razatildeo agrave nossa feacute afirma que Deus deixou nas

suas obras o cunho de sua divindade e deve-se apenas agrave nossa fraqueza que natildeo o

possamos perceber E afirma com admiraccedilatildeo que Sebond se empenhou neste digno

estudo

ldquo[A] Or nos raisons et nos discours humains cest comme la matiere lourde et sterile la grace de Dieu en est la formerdquo77

As acccedilotildees humanas permanecem inuacuteteis e vatildes se natildeo tecircm em conta o amor e a

obediecircncia a Deus

ldquo[A] ainsin est-il de nos imaginations et discours ils ont quelque corps mais une masse informe sans faccedilon et sans jour si la foy et grace de Dieu ny sont joinctesrdquo78

Quanto aos segundos opositores de Sebond ndash ou seja os que dizem que seus

argumentos satildeo fracos e inadequados para demonstrar o que ele pretende e por isso

dispotildeem-se a atacaacute-los facilmente ndash Montaigne vai rejeitar os argumentos por eles

apresentados nos quais se subestima a importacircncia da feacute A rejeiccedilatildeo dos argumentos

desta segunda categoria ocupa maior espaccedilo porque ldquo[A] Il faut secouer ceux cy un peu

75 Les Essais II 12 p 445 76 Les Essais II 12 p 446 77 Les Essais II 12 p 447 78 Les Essais II 12 p 447

29

plus rudement car ils sont plus dangereux et plus malitieux que les premiersrdquo79 Estes

ldquoracionalistasrdquo consideram que a razatildeo humana eacute auto-suficiente para conhecer

qualquer coisa e desprezam a feacute considerando-a como algo inuacutetil para um saacutebio

ldquo Le moyen que je prens pour rabatre cette frenaisie et qui me semble le plus propre crsquoest de froisser et fouler aux pieds lrsquoorgueil et humaine fierteacute leur faire sentir lrsquoinaniteacute la vaniteacute et deneantise de lrsquohomme leur arracher des points les chetives armes de leur raison leur faire baisser la teste et mordre la terre soubs lrsquoauthoriteacute et reverence de la majesteacute divine Crsquoest agrave elle seule qursquoapartient la science et la sapience elle seule qui peut estimer de soy quelque chose et agrave qui nous desrobons ce que nous nous contons et ce que nous nous prisons Ού γὰρ ἐᾱ φρονεῑν ὁ Θεὸϛ μέγα ἄλλον ἢ ἑαυτόν [ldquoCar Dieu ne permet pas qursquoun autre que Lui srsquoenorgueillisserdquo (Heacuterodote VII x)]rdquo80

Ao analisar as duas objecccedilotildees agrave Teologia natural de Sebond Montaigne tem

como principal finalidade - aleacutem do desenvolvimento do seu fideiacutesmo que potildee em

causa que a filosofia seja um meio para se chegar a Deus - destronar o homem do seu

pedestal como ldquosenhorrdquo entre todas as criaturas como vimos no primeiro capiacutetulo deste

trabalho Agrave luz destas objecccedilotildees se desenvolve tambeacutem em todo o texto da ldquoApologierdquo

uma grande quantidade de criacuteticas aos detractores do teoacutelogo catalatildeo que na verdade

mais natildeo eacute do que uma contestaccedilatildeo de Montaigne de tudo aquilo que faz do homem um

ser cheio de orgulho e de vaidade Montaigne chega agrave conclusatildeo que a razatildeo humana

natildeo pode conhecer os atributos de Deus A razatildeo natildeo tem condiccedilotildees para emitir juiacutezos

crediacuteveis a respeito destes atributos Ela natildeo estaacute revestida de um poder que lhe garanta

a elaboraccedilatildeo de raciociacutenios crediacuteveis acerca de Deus e das verdades da religiatildeo

Montaigne apresenta um resumo das principais ideias acerca de Deus que foram

surgindo na histoacuteria do pensamento filosoacutefico antigo e afirma que tudo isto natildeo passa de

uma balbuacuterdia (ldquotintamarrerdquo) de muitos ceacuterebros filosoacuteficos81

ldquo[C] Thales [hellip] estima Dieu un esprit qui fit deau toutes choses Anaximander que les Dieux estoyent des mourans et naissans agrave diverses saisons et que crsquoestoyent des mondes infinis en nombre Anaximenes que lair estoit Dieu [hellip] Anaxagoras le premier a tenu la description et maniere de toutes choses estre conduite par la force et raison dun esprit infini Alcmaeligon a donneacute la diviniteacute au soleil agrave la lune aux astres et agrave lame[hellip] Empedocles disoit estre des Dieux les quatre natures desquelles toutes choses sont faictes [hellip] Platon dissipe sa creance agrave divers visages Il dict au Timaeacutee le pere du monde ne se pouvoir

79 Les Essais II 12 p 448 80 Les Essais II 12 p 448 81 Cf Les Essais II 12 p 516

30

nommer aux loix quil ne se faut enquerir de son estre et ailleurs en ces mesmes livres il faict le monde le ciel les astres la terre et nos ames Dieux et reccediloit en outre ceux qui ont esteacute receuz par lancienne institution en chasque republique Xenophon rapporte un pareil trouble de la discipline de Socrates tantost quil ne se faut enquerir de la forme de Dieu et puis il luy faict establir que le Soleil est Dieu et lame Dieu quil ny en a quun et puis quil y en a plusieurs[hellip] Aristote asture que cest lesprit asture le monde asture il donne un autre maistre agrave ce monde et asture faict Dieu lardeur du ciel [hellip] Heraclides Ponticus ne fait que vaguer entre les advis et en fin prive Dieu de sentiment et le faict remuant de forme agrave autre et puis dict que cest le ciel et la terre[hellip] Zeno la loy naturelle commandant le bien et prohibant le mal laquelle loy est un animant et oste les Dieux accoustumez Jupiter Juno Vesta Diogenes Apolloniates que cest laage [hellip] Cleanthes tantost la raison tantost le monde tantost lame de Nature tantost la chaleur supreme entournant et envelopant tout [hellip] Chrysippus faisoit un amas confus de toutes les precedentes sentences et comptoit entre mille formes de Dieux quil faict les hommes aussi qui sont immortalisez Diagoras et Theodorus nioyent tout sec quil y eust des Dieux Epicurus faict les Dieux luisans transparens et perflables logez comme entre deux forts entre deux mondes agrave couvert des coups revestus dune humaine figure et de nos membres lesquels membres leur sont de nul usagerdquo82

Esta longa citaccedilatildeo da ldquoApologierdquo apresenta-nos a enorme quantidade de

teorizaccedilotildees que tecircm como base a razatildeo humana e que satildeo bastante diacutespares no tocante

agraves crenccedilas Isto potildee em evidecircncia que Montaigne natildeo acredita que o homem tenha

condiccedilotildees para compreender ou apresentar algo crediacutevel acerca de Deus Por isto o

homem exagera na sua criatividade intelectual ao inventar inuacutemeros atributos divinos

que frequentemente se assemelham aos seus proacuteprios atributos Em seu entender Deus

eacute absolutamente incompreensiacutevel Na leitura que de Montaigne faz Leveaux

ldquoLrsquoideacutee de Dieu existe chez lrsquohomme mais au delagrave de cette ideacutee simple drsquoune uniteacute absolue tout devient doute et confusion Alors se preacutesent des questions sans nombre auxquelles il est impossible de reacutepondre Crsquoest lagrave si je ne me trompe le ldquoque sais-jerdquordquo83

Montaigne afirma que haacute uma grande inconstacircncia variedade e mobilidade de

ideias acerca de Deus nas almas excelentes e admiraacuteveis dos filoacutesofos Mas classifica o

empenho destes como vatildeo pelo facto de quererem adivinhar Deus por meio das nossas

analogias e conjecturas Por natildeo podermos estender a vista ateacute ao seu trono glorioso

procuramos trazecirc-lo aqui para baixo para a nossa corrupccedilatildeo e miseacuteria Soacute a feacute tem

82 Les Essais II 12 pp 514-516 83 Leveaux Alphonse Eacutetude sur les Essais de Montaigne Paris Henri Plon Imprimeur-Eacutediteur 1870 p 213

31

condiccedilotildees de entender os misteacuterios da religiatildeo Sem ela os nossos esforccedilos de

demonstraccedilatildeo destes misteacuterios permanecem vazios e esteacutereis

ldquo[A] La participation que nous avons agrave la connoissance de la veriteacute quelle quelle soit ce nest pas par nos propres forces que nous lavons acquise Dieu nous a assez appris cela par les tesmoins quil a choisi du vulgaire simples et ignorans pour nous instruire de ses admirables secrets nostre foy ce nest pas nostre acquest cest un pur present de la liberaliteacute dautruy Ce nest pas par discours ou par nostre entendement que nous avons receu nostre religion cest par authoriteacute et par commandement estranger La foiblesse de nostre jugement nous y ayde plus que la force et nostre aveuglement plus que nostre cler-voyance Cest par lentremise de nostre ignorance plus que de nostre science que nous sommes sccedilavans de divin sccedilavoirrdquo84

Para o autor da ldquoApologierdquo o homem por si soacute eacute absolutamente impotente para

chegar a certezas acerca das questotildees relacionadas com a feacute Nesta perspectiva o autor

observa tambeacutem que natildeo eacute possiacutevel fazer afirmaccedilotildees seguras tendo como base a razatildeo

Por exemplo acerca da imortalidade da alma tema desde sempre muito caro agrave filosofia

os cristatildeos devem unicamente a Deus e ao benefiacutecio de sua graccedila a verdade de uma

crenccedila tatildeo nobre pois eacute apenas da sua liberalidade que o cristatildeo recebe o fruto da

imortalidade o qual lembra o autor consiste no gozo da beatitude eterna A razatildeo natildeo

consegue fazer nenhuma afirmaccedilatildeo crediacutevel sobre este tema Ela eacute incapaz uma vez que

a imortalidade eacute um ldquodadordquo da revelaccedilatildeo

ldquo[C] Confessons ingenuement que Dieu seul nous lrsquoa dict et la foy car leccedilon nrsquoest ce pas de nature et de nostre raisonrdquo85

Montaigne assumindo uma posiccedilatildeo fideiacutesta depois de ter feito o exame das

diversas opiniotildees sobre a alma86 faz um ldquoapelo agrave passividade da razatildeo e agrave aceitaccedilatildeo da

verdade religiosa sem tentar compreendecirc-la ldquoimortalidaderdquo eacute como ldquoDeusrdquo uma

palavra que natildeo pode ser preenchida A imortalidade afirmada pela feacute natildeo poderaacute ser

explorada por nenhuma forma de discurso humanordquo87

Esta atitude fideiacutesta e conservadora em termos religiosos deve-se em grande

parte agrave desilusatildeo de Montaigne face aos inuacutemeros sistemas filosoacuteficos que tentavam

84 Les Essais II 12 p 500 85 Les Essais II 12 p 554 86 Na ldquoApologierdquo haacute uma quantidade significativa de paacuteginas nas quais o autor expressa muitas opiniotildees sobre o tema da alma (cf Les Essais pp 542-547) 87 Birchal Telma de Souza O Eu nos Ensaios de Montaigne Belo Horizonte Editora UFMG 2007 pp 64-65

32

encontrar explicaccedilotildees racionais para todas as questotildees da vida inclusivamente para

aquelas que transcendem a vida real

ldquo[A] Car quelque apparence quil y ayt en la nouvelleteacute je ne change pas aiseacutement de peur que jay de perdre au change Et puis que je ne suis pas capable de choisir je pren le chois dautruy et me tien en lassiette ougrave Dieu ma mis Autrement je ne me sccedilauroy garder de rouler sans cesse Ainsi me suis-je par la grace de Dieu conserveacute entier sans agitation et trouble de conscience aux anciennes creances de nostre religion au travers de tant de sectes et de divisions que nostre siecle a produittesrdquo88

Segundo Leveaux Montaigne sintetiza seu pensamento em mateacuteria religiosa89

da seguinte maneira

ldquo[A] De toutes les opinions humaines et anciennes touchant la religion celle lagrave me semble avoir eu plus de vray-semblance et plus dexcuse qui recognoissoit Dieu comme une puissance incomprehensible origine et conservatrice de toutes choses toute bonteacute toute perfection recevant et prenant en bonne part lhonneur et la reverence que les humains luy rendoient soubs quelque visage sous quelque nom et en quelque maniere que ce fut [hellip]rdquo90

Haacute que reconhecer no entanto que eacute algo difiacutecil e delicado tirar grandes

conclusotildees acerca da religiatildeo embora o tema perpasse toda a ldquoApologie rdquo Montaigne

concebia a religiatildeo como um conjunto de praacuteticas e leis que tinham como finalidade

contribuir para que o homem natildeo agisse como um escravo da vaidade da razatildeo As

uacuteltimas palavras da ldquoApologierdquo onde o autor cita Plutarco pretendem servir como uma

espeacutecie de conclusatildeo de toda a reflexatildeo deste capiacutetulo Deixemos o proacuteprio Montaigne

falar

ldquo[A] Mais quest-ce donc qui est veritablement Ce qui est eternel cest agrave dire qui na jamais eu de naissance ny naura jamais fin agrave qui le temps napporte jamais aucune mutation Car cest chose mobile que le temps et qui apparoit comme en ombre avec la matiere coulante et fluante tousjours sans jamais demeurer stable ny permanenterdquo91

Contestando a atitude humana de querer elevar-se acima da humanidade que

pode ser tambeacutem entendida como um desejo absurdo de um ser despreziacutevel que tem a

88 Les Essais II 12 p 569 89 Cf Leveaux op cit p 213 90 Les Essais II 12 p 513 91 Les Essais II 12 p 603

33

presunccedilatildeo como doenccedila natural e original e que eacute a mais calamitosa de todas as

criaturas e ao mesmo tempo a mais orgulhosa92 Montaigne afirma

ldquo[A] O la vile chose dit-il et abjecte que lhomme sil ne sesleve au dessus de lhumaniteacute [C] Voila un bon mot et un utile desir mais pareillement absurde Car [A] de faire la poigneacutee plus grande que le poing la brasseacutee plus grande que le bras et desperer enjamber plus que de lestandueuml de nos jambes cela est impossible et monstrueux Ny que lhomme se monte au dessus de soy et de lhumaniteacute car il ne peut voir que de ses yeux ny saisir que de ses prises Il seslevera si Dieu lui preste extraordinairement la main Il seslevera abandonnant et renonccedilant agrave ses propres moyens et se laissant hausser et soubslever par les moyens purement celestesrdquo93

Montaigne termina a ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo colocando o homem no

seu devido lugar e afirmando que soacute atraveacutes do auxiacutelio de Deus e com a graccedila da feacute

cristatilde eacute que este ser tatildeo vaidoso poderaacute elevar-se acima da humanidade

ldquo[C] Cest agrave nostre foy Chrestienne non agrave sa vertu Stoique de pretendre agrave cette divine et miraculeuse metamorphoserdquo94

92 Cf nota 12 93 Les Essais II 12 p 604 94 Les Essais II 12 p 604

34

3 A criacutetica agrave razatildeo humana e sua relaccedilatildeo com a ciecircncia

Uma observaccedilatildeo que eacute importante destacar no iniacutecio deste capiacutetulo refere-se agrave

concepccedilatildeo montaigneana de ldquociecircnciardquo que se encontra na ldquoApologie de Raymond

Sebondrdquo Quando Montaigne na sua criacutetica radical agrave razatildeo humana se refere agrave ciecircncia

o que subjaz agraves suas reflexotildees natildeo eacute a concepccedilatildeo moderna de ciecircncia Ele natildeo alude ao

chamado ldquomeacutetodo cientiacutefico experimentalrdquo ateacute porque este meacutetodo ainda natildeo existia O

termo ldquociecircnciardquo natildeo tem o sentido que adquiriu depois da chamada Revoluccedilatildeo

Cientiacutefica do seacuteculo XVII Assim com o termo ciecircncia Montaigne refere-se ao conjunto

do conhecimento erudito de seu tempo

ldquoLa science du XVIᵉ siegravecle nrsquoest que philosophie Elle srsquoarrecircte aux mots jamais elle ne peacutenegravetre au fond des choses et ne suscite un effort critiquerdquo95

Sendo um pensador da uacuteltima fase do periacuteodo renascentista periacuteodo este em que

natildeo havia nenhuma diferenccedila essencial entre a filosofia e a ciecircncia Montaigne procura

expressar as suas ideias os seus ideais de sabedoria como tantos outros faziam isto eacute

quando se refere agrave ciecircncia estaacute a referir-se aos doutos e aos filoacutesofos em geral

Logo no iniacutecio da ldquoApologierdquo Montaigne faz questatildeo de afirmar que a ciecircncia eacute

algo muito uacutetil e grande e os que a menosprezam datildeo prova bastante de estupidez Sem

desprezar agrave partida todo o esforccedilo que muitos fazem para chegar a alcanccedilar o

conhecimento Montaigne por outro lado natildeo chega a estimar tanto a ciecircncia

ldquo[A] Comme Herillus le philosophe qui logeoit en elle le souverain bien et tenoit qursquoil fut en elle de nous rendre sages et contensrdquo96

Montaigne natildeo crecirc nisto nem tampouco no que outros disseram

ldquo[A] que la science est mere de toute vertu et que tout vice este produit par lrsquoignorancerdquo97

Segundo ele mesmo atesta a sua casa esteve habitualmente aberta agraves pessoas de

saber e o seu pai buscou com grande cuidado e despesa o conviacutevio dos homens doutos

ldquo[A] les recevant chez luy comme personnes sainctes et ayans quelque particuliere inspiration de sagesse divine [hellip]rdquo98

95 Villey opcit p 214 96 Les Essais II 12 p 438 97 Les Essais II 12 p 438 98 Les Essais II 12 pp 438-439

35

Embora respirando toda uma atmosfera intelectual que havia em sua casa

Montaigne afirma no entanto que gostava muito destes doutos frequentadores de sua

casa mas natildeo os adorava

Desde as primeiras afirmaccedilotildees de Montaigne na ldquoApologierdquo eacute possiacutevel perceber

ateacute que ponto ele tem dificuldade em aceitar os chamados filoacutesofos de profissatildeo Neste

famoso texto que eacute considerado por Villey ldquole reacutesumeacute du travail logique qui srsquoopegravere

chez Montaigne entre 1573 et 1579 ou 1580rdquo99 podemos encontrar paradoxalmente

por um lado uma valorizaccedilatildeo da razatildeo enquanto uacutenico modo de investigaccedilatildeo dos

doutos e por outro lado que a razatildeo eacute considerada como algo profundamente limitado

enquanto instrumento de acesso ao conhecimento

Montaigne dedica muitas paacuteginas a demonstrar que a ciecircncia fundada na razatildeo

eacute viacutetima da vaidade humana e deve ser contestada Isto pelo facto de que concebe a

ciecircncia como o esforccedilo que deve ser uacutetil agrave nossa felicidade

ldquo[A] la philosophie me doit mettre les armes agrave la main pour combatre la fortune qui me doit roidir le courrage pour fouler aux pieds toutes les advertitez humaines [hellip]rdquo100

O objectivo primeiro da filosofia eacute portanto a vida concreta A atitude vaidosa

da razatildeo na busca do conhecimento causa no homem

ldquo[A] lrsquoinconstance lrsquoirresolution lrsquoincertitude le deuil la superstition la solitude de choses agrave venir voire apres nostre vie lrsquoambition lrsquoavarice la jalousie lrsquoenvie les appetits desreglez foncenez et indomptables la guerre la mensonge la desloyauteacute la detraction et la curiositeacuterdquo101

Segundo Montaigne pagamos um preccedilo elevadiacutessimo por essa bela razatildeo de que

nos gloriamos e por conseguinte tambeacutem pela capacidade de julgar e conhecer

sobretudo se forem adquiridas agrave custa destas paixotildees

Montaigne natildeo vecirc muita necessidade praacutetica de querer mergulhar nos altos

conhecimentos em que a filosofia estaacute imersa Para que serve o conhecimento (fruto da

razatildeo enganadora) de muitas coisas Expressando a sua criacutetica agrave loacutegica aristoteacutelica

afirma ironicamente

ldquo[A] ont-ils tireacute de la Logique quelques consolation agrave la gouterdquo102

99 Villey op cit p 182 100 Les Essais II 12 p 494 101 Les Essais II 12 p 486 102 Les Essais II 12 p 487

36

Prosseguindo no mesmo registo iroacutenico pergunta se acaso se descobriu que a

voluptuosidade e a sauacutede satildeo mais deleitosas para quem conhece a astronomia e a

gramaacutetica e menos importunas agrave desonra e a pobreza103

Montaigne revela um significativo desprezo pelos filoacutesofos que satildeo escravos da

razatildeo e buscam tudo saber e fazer afirmaccedilotildees sobre todas as coisas Ao mesmo tempo

manifesta uma forte tendecircncia para valorizar o homem simples e ignorante

ldquo[A] Jrsquoay veu en mon temps cent artisans cent laboureurs plus sages et plus heureux que des recteurs de lrsquouniversiteacute et lesquels jrsquoaimerois mieux ressemblerrdquo104

Na sua apologia da ignoracircncia declara que o homem tem como quinhatildeo a

presunccedilatildeo e que a ignoracircncia nos eacute recomendada ateacute pela religiatildeo cristatildeldquo[A] La peste

de lrsquohomme crsquoest lrsquoopinion de sccedilavoirrdquo105

Para Montaigne eacute necessaacuterio derrubar a tola vaidade e sacudir de uma maneira

viva e corajosa os fundamentos ridiacuteculos sobre os quais se fundam as falsas ideias

Insiste continuamente no facto de que natildeo necessitamos do saber produzido pela

filosofia

ldquo[A] Crsquoestoit ce que disoit un senateur Romain des derniers siecles que leurs predecesseurs avoient lrsquoaleine puante agrave lrsquoair et lrsquoestomac musqueacute de bonne conscience et qursquoau rebours ceux de son temps se sentoient au dehors que le parfum puans au dedans toutes sorte de vices crsquoest agrave dire comme je pense qursquoils avoient beaucoup de sccedilavoir et de suffisance et grand faute de preudrsquohommierdquo106

O orgulho humano eacute visto pelo autor como algo que atrapalha fortemente na

busca natildeo do conhecimento filosoacutefico claacutessico mas da sabedoria Soacutecrates eacute

referenciado na ldquoApologierdquo entre outras coisas como um grande saacutebio107 Natildeo porque

ldquo[C] le Dieu de sagesse luy avoit attibueacute le surnom de sagerdquo108 mas porque ele mesmo

natildeo se considerava saacutebio e porque a sua melhor ciecircncia era a ciecircncia da ignoracircncia e a

sua melhor sabedoria a simplicidade de espiacuterito

103Cf Les Essais II 12 p 487 104 Les Essais II 12 p 487 105 Les Essais II 12 p 488 106 Les Essais II 12 p 498 107 Podemos encontrar uma quantidade significativa de estudos acerca da figura de Soacutecrates nos Ensaios Destacamos aqui um artigo escrito por Celso Martins Azar Filho cujo tiacutetulo eacute Montaigne e Soacutecrates cepticismo conhecimento e virtuderdquo que estaacute publicado na Revista Portuguesa de Filosofia Tomo LVIII do ano de 2002 Fasc 4 (pp 829-845) Com o seu artigo o autor propotildee-se examinar qual o lugar e a importacircncia deste filoacutesofo no pensamento de Montaigne 108 Les Essais II 12 p 498

37

O verdadeiro saacutebio segundo Montaigne eacute o homem que aprende que natildeo

aprendeu nada Refere-se a isto de uma maneira muito elucidativa

ldquo[A]Il est adnevenu aux gens veacuteritablement sccedilavans ce qui advient aux espics de bled ils vont srsquoeslevant et se haussant la teste droite et fiere tant qursquoil sont vuides mais quand ils sont pleins et grossis de grain en leur maturiteacute ils commencent agrave srsquohumilier et agrave baisser les cornes Pareillement les hommes ayant tout essayeacute et tout sondeacute nrsquoayant trouveacute en cet amas de science et provision de tant de choses diverses rien de massif et ferme et rien que vaniteacute ils ont renonceacute agrave leur presomption et reconneu leur condition naturellerdquo109

Depois de descrever sinteticamente os atributos do saacutebio Montaigne -

considerado como um pensador que popularizou o pirronismo praticando-o

pessoalmente sobretudo na ldquoApologierdquo - afirma que toda a filosofia estaacute distribuiacuteda por

trecircs geacuteneros A sua principal fonte eacute a ediccedilatildeo das obras de Sexto Empiacuterico que surge em

1569 Montaigne enumera estas trecircs filosofias da seguinte maneira haacute os dogmaacuteticos

os acadeacutemicos e os pirroacutenicos110 Os dogmaacuteticos afirmam que se pode ter acesso agrave

ciecircncia os acadeacutemicos natildeo estatildeo de acordo com os dogmaacuteticos isto eacute consideram que

natildeo se pode ter acesso agrave ciecircncia e os pirroacutenicos estatildeo ainda em busca da verdade Estes

declaram que os que pensam havecirc-la encontrado se enganam infinitamente Segundo

Montaigne os pirroacutenicos tecircm como ofiacutecio

ldquo[A] branler douter et enquerir ne srsquoasseurer de rien de rien ne se respondrerdquo111

Esta atitude condu-los segundo Montaigne agrave ataraxia que eacute uma condiccedilatildeo de

vida tranquila sossegada isenta das agitaccedilotildees que recebemos pela impressatildeo da opiniatildeo

e ciecircncia que julgamos ter das coisas Esta indiferenccedila pela ciecircncia liberta os pirroacutenicos

inclusivamente do espiacuterito de rivalidade quanto agrave sua doutrina debatem de maneira bem

pouco vigorosa Quando dizem que o pesado vai para baixo ficariam bastante

aborrecidos se acreditassem neles Sendo assim os pirroacutenicos segundo Montaigne

procuram que os contradigam para gerar ldquo[A] la dubitation et surceance (suspension)

de jugement qui est leur finrdquo112

Os pirroacutenicos satildeo partidaacuterios da duacutevida extrema Expotildeem as suas opiniotildees

apenas para combater aquelas em que pensam que acreditamos Diz Montaigne

109 Les Essais II 12 p 500 110 Les Essais II 12 p 502 111 Les Essais II 12 p 502 112 Les Essais II 12 p 503

38

ldquo[A] Si vous prenez la leur ils prendront aussi volontiers i la contraire agrave soutenir tout leur est un ils nrsquoy ont aucun chois Si vous establissez que la nege soit noire ils augumentent au rebours qursquoelle est blanche Si vous dites qursquoelle nrsquoest ny lrsquoun ny lrsquoautre crsquoest agrave eux agrave maintenir qursquoelle est tous les deux Si par certain jugement vous tenez que vous nrsquoen sccedilavez rien ils vous maintiedront que vous ne sccedilavez Oui et si par un axiome affirmatif vous asseurez que vous en doutez ils vous iront debattant que vous nrsquoen doutez pas ou que vous ne pouvez juger et etablir que vous en doutez Et par cette extremiteacute de doubte qui se secoue soy-mesme ils se separent et se divisent de plusieurs opinions de celles mesme qui ont maintenu en plusieurs faccedilons le double et lrsquoignorancerdquo113

[hellip] Leurs faccedilon de parler sont Je nrsquoestablis rien il nrsquoest non plus ainsi qursquoainsi ou que ny lrsquoun ny lrsquoautre je ne le comprens point les apparences sont eacutegales par tout la loy de parler et pour et contre est pareille [C] Rien ne semble vray qui ne puisse sembler faux [A] Leur mot sacramental crsquoest ἐπέχω crsquoest agrave dire je soutiens je ne bougerdquo114

Os pirroacutenicos servem-se de sua razatildeo para inquirir e debater mas natildeo para

decidir e escolher

Um outro aspecto que leva Montaigne a identificar-se com o pirronismo a uacutenica

filosofia por ele respeitada eacute a visatildeo pirroacutenica relativamente agraves acccedilotildees da vida Os seus

defensores prestam-se e acomodam-se agraves inclinaccedilotildees naturais ao impulso e agrave imposiccedilatildeo

das paixotildees agraves decisotildees das leis e dos costumes

ldquo[A] Ils laissent guider agrave ces choses lagrave leurs actions communes sans aucune opination ou jugement115

Neste sentido Montaigne defende o pirronismo sobretudo por causa de sua

virtude moral116 Sustenta que eacute importante fomentar o juiacutezo livre ou a suspensatildeo do

juiacutezo que eacute a atitude dos pirroacutenicos Por outro lado natildeo pode concordar com a posiccedilatildeo

dos que aceitam a arbitraacuteria submissatildeo a algum tipo de autoridade ou opiniatildeo (os

dogmaacuteticos) Importa salientar no entanto que o autor da ldquoApologierdquo consegue

distanciar-se dos pirroacutenicos que se recusam a fazer qualquer juiacutezo Montaigne por ser

um pensador livre inclusive dos argumentos pirroacutenicos natildeo suspende os seus proacuteprios

113 Les Essais II 12 p 503 114 Les Essais II 12 p 505 115 Les Essais II 12 p 505 116 Para Montaigne o pirronismo natildeo eacute uma doutrina ou um sistema filosoacutefico do qual ele eacute adepto Eacute sobretudo uma atitude de espiacuterito ou uma tendecircncia do pensamento Ele tem consciecircncia da dificuldade que esta filosofia encontra para consolidar-se em termos de coerecircncia loacutegica Se do ponto de vista loacutegico natildeo haacute soluccedilatildeo permanente satisfatoacuteria para o pirronismo ele torna-se uma opccedilatildeo eacutetica na medida em que possibilita aos seus adeptos ldquo[B] de maintenir leur liberteacute et considerer les choses sans obligation et servituderdquo (Les Essais II 12 p 504)

39

juiacutezos Muito pelo contraacuterio emite muitos Exprime as suas opiniotildees sem cessar Chega

ateacute a afirmar que a razatildeo eacute

ldquo[A] sa pierre de touche agrave toutes sortes drsquoessais mais certes crsquoest une touche pleine de fauceteacute drsquoerreur de foiblesse et defaillancerdquo117

Na ldquoApologierdquo Montaigne recorre aos tropos (segundo a designaccedilatildeo de Sexto

Empiacuterico) tomando-os como os principais argumentos contra a filosofia denominada

dogmaacutetica Estes argumentos ceacutepticos tecircm por finalidade provar que eacute impossiacutevel

alcanccedilar a verdade Fundamentado nas reflexotildees pirroacutenicas natildeo considera a ciecircncia

como um verdadeiro conhecimento O saber humano eacute considerado sem efeito por causa

de todo o tipo de divergecircncias que haacute entre os homens

Haacute segundo Montaigne uma imensa e infinita confusatildeo de opiniotildees entre os

filoacutesofos e tudo isto deve-se ao debate perpeacutetuo e universal acerca do conhecimento das

coisas Eles natildeo estatildeo de acordo em nada nem sequer em que o ceacuteu estaacute por cima das

nossas cabeccedilas118 afirma ironicamente E isto deve-se agrave falta de constacircncia do juiacutezo

Quantas vezes julgamos noacutes as coisas Quantas vezes alteramos as nossas opiniotildees

Nesta perspectiva percebemos a atitude relativista de Montaigne

ldquo[A] Ce que je tiens aujourdhuy et ce que je croy je le tiens et le croy de toute ma croyance tous mes utils et tous mes ressorts empoignent cette opinion et men respondent sur tout ce quils peuvent Je me sccedilaurois embrasser aucune veriteacute ny conserver avec plus de force que je fay cette cy Jy suis tout entier jy suis voyrement mais ne mest il pas advenu non une foi mais cent mais mille et tous les jours davoir embrasseacute quelqursquoautre chose agrave tout ces mesmes instrumens en cette mesme condition que depuis jaye jugeacutee fauce Au moins faut il devenir sage agrave ses propres despansrdquo119

Montaigne natildeo pretende condenar a tendecircncia agrave mudanccedila perene que eacute

constitutiva do homem O que ele pretende eacute que o homem se comporte de uma forma

mais moderada e discreta em face das mudanccedilas Sugere que nos tornemos saacutebios agrave

nossa proacutepria custa120

117 Les Essais II 12 p 540 118 Cf Les Essais II 12 p 563 119 Les Essais II 12 p 563 120 Conche na sua obra de introduccedilatildeo aos Essais intitulada Montaigne ou la conscience heureuse apresenta uma reflexatildeo muito sugestiva relativamente ao tema da sabedoria Para este autor os Essais sugerem-nos que compreendamos a filosofia como uma aprendizagem da sabedoria e natildeo do saber Em seu entender Montaigne natildeo tem nenhum interesse em elaborar um sistema filosoacutefico porque isto supotildee que uma verdade permanece o que ela eacute Um sistema filosoacutefico crecirc que haacute verdades e que elas satildeo acessiacuteveis por evidecircncia ou seja que a certeza posta agrave prova eacute realmente uma certeza de direito Estes princiacutepios satildeo sem valor para Montaigne eleja que este natildeo crecirc na possibilidade de confirmar as nossas certezas (cf Conche 2009 op cit 65)

40

O arauto do juiacutezo eacute o homem concreto que vive uma vida real Natildeo eacute um ser

abstracto Por isso Montaigne afirma

ldquo[A] Ce ne sont pas seulement les fievres les breuvages et les grands accidens qui renversent nostre jugement les moindres choses du monde le tournevirent [hellip] et par conseacutequent agrave peine se peut il rencontrer une seule heure en la vie ougrave nostre jugement se trouve en sa deueuml assiette nostre corps estant subject agrave tant de continuelles mutations et estofeacute de tant de sortes de ressorts que ( jen croy les medecins) combien il est malaiseacute quil ny en ayt tousjours quelquun qui tire de traversrdquo121

Vejamos uma definiccedilatildeo da razatildeo na ldquoApologierdquo

ldquo[A] la raison va tousjours torte et boiteuse et deshancheacutee et avec le mensonge comme avec la veriteacute Par ainsin il est malaiseacute de descouvrir son mescompte et desreglement Jappelle tousjours raison cette apparence de discours que chacun forge en soy cette raison de la condition de laquelle il y en peut avoir cent contraires autour dun mesme subject cest un instrument de plomb et de cire alongeable ployable et accommodable agrave tous biais et agrave toutes mesures il ne reste que la suffisance de le sccedilavoir contournerrdquo122

Atraveacutes desta concepccedilatildeo de razatildeo fica suficientemente clara a criacutetica destruidora

de Montaigne agrave filosofia dogmaacutetica que considera a razatildeo como uma faculdade que

permite ao homem ndash entre tantas outras atribuiccedilotildees ndash conhecer e acumular um saber uacutetil

e julgar sobre o bem e o mal

Envolvendo-se de uma maneira muito pessoal ndash como eacute caracteriacutestico do estilo

literaacuterio dos Essais ndash nesta reflexatildeo sobre a razatildeo Montaigne toma a liberdade de fazer

uma pequena descriccedilatildeo de sua personalidade Vale a pena citar algumas destas

passagens porque satildeo um reflexo do pensamento do autor

ldquo[A] Jay le pied si instable et si mal assis je le trouve si ayseacute agrave crouler et si prest au branle et ma veueuml si desregleacutee que agrave jun je me sens autre quapres le repas si ma santeacute me rid et la clarteacute dun beau jour me voylagrave honneste homme si jay un cor qui me presse lorteil me voylagrave renfroigneacute mal plaisant et inaccessible [hellip] Maintenant je suis agrave tout faire maintenant agrave rien faire ce qui mest plaisir agrave cette heure me sera quelque fois peine [hellip] Ou lhumeur melancholique me tient ou la choleriqu [hellip]Quand je prens des livres jauray apperceu en tel passage des graces excelentes et qui auront feru mon ame quun autre fois jy retombe jay beau le tourner et virer jay beau le plier et le manier cest une masse inconnue et informe pour moy [hellip] [B] [hellip] mon jugement ne tire pas tousjours avant il flotte il vaguerdquo123

121 Les Essais II 12 pp 564-565 122 Les Essais II 12 p 565 123 Les Essais II 12 pp 565-566

41

Montaigne daacute-se claramente conta de que natildeo encontramos seguranccedila nos

nossos juiacutezos As nossas paixotildees apresentam uma enorme quantidade de fantasias

Sobre isto natildeo podemos alcanccedilar nenhuma seguranccedila porque nos deparamos com

coisas muito instaacuteveis e moacuteveis Sustenta aleacutem disso que se os nossos juiacutezos estatildeo nas

matildeos ateacute mesmo da doenccedila e da perturbaccedilatildeo natildeo podemos esperar deles nada seguro

Foi a partir desta consciecircncia de sua volubilidade que Montaigne chegou a

estabelecer em si mesmo uma certa constacircncia de ideias a ponto de dificilmente alterar

as ideias primeiras e naturais como ele mesmo reconhece Afirma no entanto que natildeo

eacute capaz de decidir Por isso adopta as decisotildees de outrem e manteacutem-se na posiccedilatildeo em

que Deus o pocircs O seu ldquoconservadorismordquo124 religioso e ateacute poliacutetico manifesta-se

claramente nos Essais Mas ao mesmo tempo e este eacute o ponto que mais nos interessa

neste trabalho deixa transparecer que o homem eacute sempre convidado a estar aberto agraves

mudanccedilas

ldquo[A] Le ciel et les estoilles ont branleacute trois mille ans tout le monde lavoit ainsi creu jusques agrave ce que [C] Cleanthes le Samien ou selon Theophraste Nicetas Siracusien [A] savisa de maintenir que cestoit la terre qui se mouvoit [C] par le cercle oblique du Zodiaque tournant agrave lentour de son aixieu [A] et de nostre temps Copernicus a si bien fondeacute cette doctrine quil sen sert tres-regleacuteement agrave toutes les consequences Astronomiquesrdquo conclui o autor ldquosinon qursquoil ne nous doit chaloir le quel ce soit des deux Et qui sccedilait qursquoune tierce opinion drsquoicy agrave mille ans ne renverse les deux precedentesrdquo125

124 Trata-se de um termo que natildeo tinha na eacutepoca de Montaigne o mesmo significado que tem hoje isto eacute como oposto de ldquoprogressismordquo Montaigne estava inserido numa sociedade marcada por grandes inovaccedilotildees pretendidas pelos partidaacuterios da Reforma Protestante que se defendiam a ferro e fogo acirrando certezas antes adormecidas e impondo agrave Franccedila as mais seacuterias turbulecircncias ldquo[B] Je suis desgousteacute de la nouvelleteacute quelque visage qursquoelle porte et ay raison car jrsquoen ay veu des effets tres-dommageables Celle qui nous presse depuis tant drsquoans elle nrsquoa pas tout exploicteacute mais on peut dire avec apparence que par accident elle a tout produict et engendre voire et les maux et ruines qui se font depuis sans elle et contre elle crsquoest agrave elle agrave srsquoen prendre au nezrdquo (Les Essais I 23 p 119) Eacute nesta perspectiva que vaacuterios comentadores observam que Montaigne natildeo poderia ser um homem ldquorevolucionaacuteriordquo e sim algueacutem que achasse melhor defender uma confianccedila moderada no lento aperfeiccediloamento das instituiccedilotildees ldquo[C] Les Franccedilois mes contemporaneacutees sccedilavent bien qursquoen dire Toutes grandes mutations esbranlent lrsquoestat et le desordonnentrdquo (Les Essais III 9 p 958) Isto permite compreender melhor alguns dos motivos pelos quais Montaigne assume as posiccedilotildees poliacuteticas e religiosas ldquoconservadorasrdquo que estatildeo presentes nos Essais Muito interessante eacute uma afirmaccedilatildeo de Jean Lacouture na sua obra Montaigne agrave cheval ndash considerada como uma espeacutecie de biografia que denota um entusiasmo significativo e algo romanceado fundamentada numa documentaccedilatildeo importante ndash na qual o autor reflecte sobre esta questatildeo ldquoMontaigne eacute grande o bastante para poder ser avaliado sob outros aspectos que natildeo a obediecircncia agraves praacuteticas e costumes de seu tempo Quando se eacute capaz no que diz respeito agrave justiccedila agrave toleracircncia ao racismo e agrave colonizaccedilatildeo de estar muitos seacuteculos agrave frente dos costumes e ideias de seu tempo pode-se ser julgado sem que consideraccedilotildees de eacutepoca ou de moda sejam levadas em contardquo (In Lacouture Jean Montaigne agrave cheval (Montaigne a cavalo) Traduzido do francecircs por F Rangel Rio de JaneiroSatildeo Paulo Editora Record 1998 p 236) 125 Les Essais II 12 p 570

42

E para fundamentar ainda mais esta ideia cita Lucreacutecio

ldquo[A] Sic volvenda aeligtas commutat tempora rerum Quod fuit in pretio fit nullo denique honore Porro aliud succedit et egrave contemptibus exit Inque dies magis appetitur floreacutetque repertum Laudibus Et miro est mortales inter honore ( ldquoAinsi dans sa course le temps change les conditions des choses ce qui eacutetait appreacutecieacute tombe dans le meacutepris un autre objet remplace le premier et sort du discreacutedit de jour en jour on le recherce davantage la deacutecouverte nouvelle toutes les louanges et une incoyable estime parmi les hommes)rdquo126

Podemos inferir daqui que ldquoos princiacutepios eternosrdquo natildeo tecircm lugar na ldquoApologie

de Raymond Sebondrdquo Montaigne faz questatildeo de observar que antes de os princiacutepios

introduzidos por Aristoacuteteles ganharem creacutedito outros princiacutepios contentavam a razatildeo

humana Os princiacutepios aristoteacutelicos como todos os outros natildeo estatildeo mais livres de ser

expulsos do que estavam os dos seus antecessores

Segundo Montaigne o juiacutezo depende dos sentidos aos quais por sua vez natildeo

podemos dar creacutedito por vaacuterios motivos Vejamos com mais detalhes este aspecto Eacute

justamente nos sentidos que se encontra o maior fundamento e a prova de nossa

ignoracircncia Montaigne baseado na experiecircncia de vida lembra-nos que natildeo haacute sentido

ou aspecto nem recto nem amargo nem doce nem curvo que o espiacuterito humano natildeo

encontre nos escritos que decide esquadrinhar Os sentidos satildeo muito enganadores A

palavra mais liacutempida mais pura e mais perfeita pode tornar-se equiacutevoca Montaigne

refere-se especialmente ao Evangelho127 Fizeram ao longo da histoacuteria ldquotudo e mais

alguma coisardquo com este texto sagrado para os cristatildeos E que ocorreria se estendecircssemos

esta preocupaccedilatildeo de Montaigne aos gestos humanos que querem exprimir ideias ou

sentimentos nas vaacuterias dimensotildees da vida moral poliacutetica etc

ldquo[C] Est-il possible qursquoHomere aye voulu dire tout ce qursquoon luy faict direrdquo128 E com relaccedilatildeo a Platatildeo ldquo[C] Voyez demener et agiter Platon Chacun srsquohororant de lrsquoappliquer agrave soi le couche du costeacute qursquoil le veutrdquo129

Montaigne observa ainda que com frequecircncia eacute difiacutecil decidir-se porque haacute

demasiadas formas de interpretar um determinado assunto para que o homem consiga

encontrar alguma indicaccedilatildeo que lhe sirva para resolver a questatildeo

126 Les Essais II 12 p 570 127 Cf Les Essais II 12 p 585 128 Les Essais II 12 p 586 129 Les Essais II 12 p 587

43

Montaigne afirma que todo o conhecimento chega ateacute noacutes pelos sentidos [A] Ce

sont nos maistresrdquo130 Observa que a ciecircncia comeccedila pelos sentidos e a eles se reduz

Eles satildeo a base e os princiacutepios de toda a construccedilatildeo de nossa ciecircncia E considera que

natildeo haacute absurdo mais extremo do que sustentar que

ldquo[A] le feu nrsquoeschaufe point que la lumiere nrsquoesclaire point qursquoil nrsquoy a point de pesanteur au fer ny de fermeteacute qui sont notices que nous apportent les sens nycreance ou science en lrsquohomme qui se puisse comparer agrave celle-lagrave en certituderdquo131

Montaigne potildee em duacutevida que o homem esteja provido de todos os sentidos

naturais Chega inclusivamente a perguntar-se se natildeo nos falta algum sentido E afirma

que se isto ocorrer nem a nossa razatildeo pode descobrir a sua ausecircncia nem haacute nada agrave

margem dos sentidos que nos possa servir para os descobrir

ldquo[A]Ils font trestons la ligne extreme de nostre faculteacute [hellip] Il est impossible de faire concevoir agrave un homme naturellement aveugle qursquoil nrsquoy void pas impossible de luy faire desirer la veue et regretter son defautrdquo132

Sendo assim afirma que quando formamos uma verdade pela consulta e

cooperaccedilatildeo dos sentidos poderiacuteamos tambeacutem ser levados a considerar que poderia ser

necessaacuteria a convergecircncia e a contribuiccedilatildeo de oito ou dez sentidos para a captar

acertadamente e na sua essecircncia

Uma das criacuteticas fundamentais de Montaigne agrave ciecircncia incide precisamente no

facto de ela se basear nos sentidos Mas como vimos os sentidos satildeo muito incertos e

fraacutegeis Desta extrema dificuldade nascem muitas opiniotildees (ldquofantasiesrdquo)

ldquo[A]Que chaque subjet a en soy tout ce que nous y trouvons qursquoil nrsquoa rien de ce que nous y pensons trouver et celle de Epicuriens que le Soleil nrsquoest non plus grand que ce que nostre veueuml le juge [hellip] (A) que les apparences qui representent un corps grand agrave celuy qui en est voisin et plus petit agrave celuy qui en est esloigneacute sont toutes deux vrayes [hellip] [A]et resolument qursquoil nrsquoy a aucun tromperie aux sens qursquoil faut passer agrave leur mercy et chercher ailleurs des raisons pour excuser la difference et contradiction que nous y trouvons voyre inventer toute autre mensonge et resverie (ils en viennent jusques lagrave) plustot que drsquoaccuser les sens [hellip] [A] De toutes les absurditez la plus absurde [C] aux Epicuriens [A] est davouumler la force et effect des sensrdquo133

130 Les Essais II 12 p 587 131 Les Essais II 12 p 588 132 Les Essais II 12 p 589 133 Les Essais II 12 p 591

44

Segundo Montaigne natildeo podemos livrar-nos dos sentidos se queremos construir

o conhecimento Mas os sentidos satildeo incertos falsificaacuteveis e enganadores134 E entende

tambeacutem que se eacute verdade que os sentidos satildeo os nossos primeiros juiacutezes135 entatildeo natildeo

devemos limitar-nos a convocar apenas os nossos para o conselho pois no que se refere

aos sentidos os animais tecircm tanto direito quanto noacutes ou mais Montaigne observa ainda

que os sentidos do homem estatildeo em desacordo com os sentidos dos animais E eacute por isto

que

ldquo[A] Pour le jugement de lrsquoaction des sens il faudroit donc que nous en fussions premierement drsquoaccord avec les bestes secondement entre nous mesmes [hellip] et entrons en debat tous les coups de ce que lrsquoun oit void ou goute quelque chose autrement qursquoun autre et debatons autant que drsquoautre chose de la diversiteacute des images que le sens nous raportentrdquo136

Concluindo a exposiccedilatildeo acerca dos sentidos Montaigne lembra-nos que os

sentidos satildeo para algumas pessoas mais obscuros e mais velados enquanto que para

outras pessoas satildeo mais claros e apurados Em seu entender recebemos as coisas de

forma diferente de acordo com o que somos e com o que nos parece Mas se o parecer

nos eacute tatildeo incerto e controverso

ldquo[A] Ce nrsquoest plus miracle si on nous dict que nous pouvons avoueumlr que la neige nous apparoit blanche mais que drsquoestablir si de son essence elle est telle et agrave la veriteacute nous ne nous en sccedilaurions respondrerdquo137

Tendo em conta todos os atributos dos sentidos acima mencionados Montaigne

dificilmente poderia chegar a uma outra conclusatildeo

ldquo[A] ce commencement esbranleacute toute la science du monde srsquoen va necessairement agrave vau-lrsquoeaurdquo138

Referindo-se a Teofrasto Montaigne recorda-nos que este pensador dizia que o

conhecimento humano guiado pelos sentidos podia julgar sobre as causas das coisas

ateacute certo ponto Mas que ao chegar agraves causas extremas e primeiras tinha de deter-se a

embotar-se devido ou agrave sua fragilidade ou agrave dificuldade das coisas Montaigne afirma

134 Assim como os sentidos satildeo enganadores satildeo tambeacutem enganados ldquo[A] Cette mesme piperie que les sens apportent agrave nostre entendement ils la reccediloivent agrave leur tour Nostre ame par fois srsquoen revenche de mesme [C] ils mentent et se trompent agrave lrsquoenvy [A] Ce que nous voyons et oyons agitez de colere nous ne lrsquooyons pas tel qursquoil est [hellip] Lrsquoobject que nous aymons nous semble plus beau qursquoil est [hellip] [A] et plus laid celuy que nous avons agrave contre coeur [hellip] Nos sens sont non seulement alterez mais souvent hebelez du tout par les passions de lrsquoame Combien de choses voyons nous que nous nrsquoa appercevons pas si nous avons nostre esprit empescheacute ailleurs (Les Essais II 12 pp 495-496) 135 Cf Les Essais II 12 p 596 136 Les Essais II 12 p 598 137 Les Essais II 12 pp 598-599 138 Les Essais II 12 p 599

45

ldquo[A] Cest une opinion moyenne et douce que nostre suffisance nous peut conduire jusques agrave la cognoissance daucunes choses et quelle a certaines mesures de puissance outre lesquelles cest temeriteacute de lemployer Cette opinion est plausible et introduicte par gens de composition mais il est malaiseacute de donner bornes agrave nostre esprit il est curieux et avide et na point occasion de sarrester plus tost agrave mille pas quagrave cinquanterdquo139

Montaigne procura aqui justificar a sua tese de que o conhecimento empiacuterico ou

sensiacutevel natildeo tem condiccedilotildees para permitir captar princiacutepios e verdades universais A

razatildeo humana por ser um instrumento impotente natildeo consegue dar explicaccedilotildees

convincentes das grandes questotildees da humanidade Consegue apenas explicar algumas

poucas coisas Se a razatildeo eacute incapaz de dar respostas profundas e aceitaacuteveis agraves grandes

questotildees ndash como por exemplo agraves causas primeiras ndash ela eacute descartaacutevel e no que toca agrave

busca do conhecimento natildeo serve para quase nada Daiacute que Montaigne afirme que o

homem eacute capaz de todas as coisas e de nenhuma E se confessa a ignoracircncia das causas

primeiras e dos princiacutepios entatildeo que abandone tambeacutem prontamente todo o resto da sua

ciecircncia

Se a alma conhecesse alguma coisa comeccedilaria por se conhecer a si mesma

ldquo[A] et si elle sccedilavoit quelque chose elle se sccedilauroit premierement elle mesme et si elle sccedilavoit quelque chose hors drsquoelle ce seroit son corps et son estuy avant toute autre choserdquo140

Montaigne refere-se aqui especialmente ao chamado conhecimento da medicina

Para ele a medicina natildeo consegue sair do ciclo vicioso das discussotildees Ressalta o facto

de que ldquoles dieuxrdquo desta ciecircncia tambeacutem natildeo conseguem chegar a acordo algum Daiacute

mais uma vez a atitude pirroacutenica de Montaigne

ldquo[A] Si lrsquohomme ne se connoit comment connoit il ses fonctions et ses forcesrdquo141

O autor debate-se com o problema da verdade o que eacute a verdade Na

ldquoApologierdquo sustenta que a verdade eacute inacessiacutevel e flutuante Neste ponto Montaigne eacute

fiel ao cepticismo que tem como caracteriacutestica dominante a atitude de estar sempre em

busca da verdade num processo que ocorre sempre dentro de um eterno movimento e

nunca se fixa definitivamente em nenhum ponto

139 Les Essais II 12 p 560 140 Les Essais II 12 p 561 141 Les Essais II 12 p 561

46

ldquo[B] La veueuml de nostre jugement se rapporte agrave la veriteacute comme faict loeil du chat-huant agrave la splendeur du Soleil ainsi que dit Aristote Par ougrave le sccedilaurions nous mieux convaincre que par si grossiers aveuglemens en une si apparente lumiererdquo142

Esta concepccedilatildeo flutuante da verdade eacute uma caracteriacutestica distintiva natildeo soacute da

ldquoApologierdquo mas tambeacutem de outros ensaios montaigneanos O autor natildeo faz nenhuma

afirmaccedilatildeo definitiva sobre nenhuma questatildeo A sua preocupaccedilatildeo principal natildeo eacute

encontrar a soluccedilatildeo dos diversos problemas que envolvem o homem mas sim tentar

compreender-se a si proacuteprio ldquo[hellip] je suis moy-mesmes la matiere de mon livrerdquo143 Isto

exclui as verdades fixadas pela tradiccedilatildeo filosoacutefica e neste sentido o pensamento de

Montaigne desenvolve-se agrave margem do dogmatismo Rejeita os pedantes isto eacute aqueles

que acreditam que adquirem o conhecimento utilizando termos palavras ou frases

obscuros

Montaigne insiste na dimensatildeo instaacutevel e incerta do nosso conhecimento que

natildeo consegue alcanccedilar a verdade

ldquo[A] Toutes choses produites par nostre propre discours et suffisance autant vrayes que fauces sont subjectes agrave incertitude et debat Cest pour le chastiement de nostre fierteacute et instruction de nostre misere et incapaciteacute que Dieu produisit le trouble et la confusion de lancienne tour de Babel Tout ce que nous entreprenons sans son assistance tout ce que nous voyons sans la lampe de sa grace ce nest que vaniteacute et folie Lessence mesme de la veriteacute qui est uniforme et constante quand la fortune nous en donne la possession nous la corrompons et abastardissons par nostre foiblesserdquo144

A verdade deve ter ldquo[A] un visage pareil et universelrdquo145 Uma outra

caracteriacutestica da verdade salientada por Montaigne eacute que ela ldquo[A] ne se juge point par

authoriteacute et tesmoignage drsquoautruyrdquo146 Neste sentido a verdade eacute fundamentalmente

pessoal Observando cuidadosamente estes atributos da verdade podemos perceber por

que razatildeo Montaigne faz a seguinte afirmaccedilatildeo

ldquo[A] la veriteacute est engoufleacutee dans des profonds abysmes ougrave la veueuml humaine ne peut penetrerrdquo147

Dito de outro modo a verdade estaacute oculta em Deus e natildeo eacute propriamente dos

homens dos filoacutesofos dos doutos

142 Les Essais II 12 p 552 143 Les Essais Au lecteur p 3 144 Les Essais II 12 p 553 145 Les Essais II 12 pp 578-579 146 Les Essais II 12 p 507 147 Les Essais II 12 p 561

47

ldquo[A] Crsquoest agrave elle (la majesteacute divine) seule qursquoapartient la science et la sapiencerdquo148

A criacutetica montaigneana agrave razatildeo humana manifesta aqui a impossibilidade de se

ter um conhecimento crediacutevel em todos os domiacutenios da vida A razatildeo por ser

infinitamente limitada natildeo consegue chegar a ser uma faculdade que garanta a

descoberta e por conseguinte a sistematizaccedilatildeo da verdade que eacute algo moacutevel pessoal

temporal e tambeacutem paradoxal

Lendo os pensadores antigos Montaigne suscita uma questatildeo fundamental Em

seu entender haacute uma espeacutecie de distanciamento ou divoacutercio entre o conhecimento da

essecircncia e o conhecimento da aparecircncia Como eacute possiacutevel entatildeo observa Montaigne

que eles se deixam vencer pela verosimilhanccedila se natildeo conhecem a verdade Como eacute

possiacutevel que conheccedilam a aparecircncia de algo cuja essecircncia natildeo conhecem Diante destas

dificuldades o autor da ldquoApologierdquo sustenta

ldquo[A] Ou nous pouvons juger tout agrave faict ou tout agrave faict nous ne le pouvons pas Si noz facultez intellectuelles et sensibles sont sans fondement et sans pied si elles ne font que floter et vanter pour neant laissons nous emporter nostre jugement agrave aucune partie de leur operation quelque apparence quelle semble nous presenter et la plus seure assiette de nostre entendement et la plus heureuse ce seroit celle-lagrave ougrave il se maintiendroit rassis droit inflexible sans bransle et sans agitationrdquo149

Segundo Montaigne as coisas natildeo se alojam em noacutes com a sua forma e a sua

essecircncia Se assim fosse recebecirc-las-iacuteamos dessa forma O vinho seria o mesmo na boca

de quem quer que fosse Mas natildeo eacute o que acontece a filosofia causa uma infinita

confusatildeo de opiniotildees e um eterno debate sobre o conhecimento das coisas Deixemos o

proacuteprio autor falar

ldquo[A]Car cela est presuposeacute tres-veritablement que de aucune chose les hommes je dy les sccedilavans les mieux nais les plus suffisans ne sont daccord non pas que le ciel soit sur nostre teste car ceux qui doutent de tout doutent aussi de cela et ceux qui nient que nous puissions aucune chose comprendre disent que nous navons pas compris que le ciel soit sur nostre teste et ces deux opinions sont en nombre sans comparaison les plus fortesrdquo150

Montaigne reconhece que os seus juiacutezos acerca de tudo aquilo que eacute falso eou

verdadeiro ocorrem de uma maneira condicionada dependendo da sua situaccedilatildeo interior

148 Les Essais II 12 p 448 149 Les Essais II 12 p 562 150 Les Essais II 12 p 563

48

e exterior A sua posiccedilatildeo em face das diversas situaccedilotildees concretas da vida eacute muito

dependente das suas opiniotildees que podem ser hoje umas e outras diferentes ou ateacute

contraacuterias amanhatilde Em seu entender ateacute o proacuteprio ar que respiramos e a serenidade do

ceacuteu produzem em noacutes alguma alteraccedilatildeo Recorda um verso de Ciacutecero

ldquo[A] Tales sunt hominum mentes quali pater ipse Juppiter auctifera lustravit lampade terras (Les penseacutees des hommes changent avec les rayons feacutecundants du soleil que Jupiter leur envoie)rdquo151

Noutro ensaio do livro III intitulado ldquoDu repentirrdquo Montaigne depois de afirmar

que o mundo eacute movimento e que tudo nele muda continuadamente faz uma observaccedilatildeo

de grande importacircncia que pode ser inserida neste contexto

ldquo[B] Tant y a que je me contredits bien agrave lrsquoaventure mais la veriteacute comme disoit Demandes je ne la contredy point Si mon ame pouvoit prendre pied je ne mrsquoessaierois pas je me resoudrois elle est toujours en apprentissage et en espreuverdquo152

Montaigne questiona de forma radical todos os que se orgulham de sua razatildeo e

acreditam na certeza de todos os seus princiacutepios Utiliza a proacutepria razatildeo para arruinar a

razatildeo dos filoacutesofos profissionais ou seja os seguidores cegos da loacutegica aristoteacutelica Em

suma combate a razatildeo com a proacutepria razatildeo e nega o seu valor

No texto seguinte Montaigne faz uma espeacutecie de caracterizaccedilatildeo da

escolaacutestica153 e da loacutegica aristoteacutelica154 Eacute um texto fundamental da ldquoApologierdquo no

qual o autor se refere claramente agrave hierarquia filosoacutefica aristoteacutelica na qual

encontramos a metafiacutesica como ldquociecircncia mais correctardquo

ldquo[A] Il est bien aiseacute sur des fondemens avouez de bastir ce quon veut car selon la loy et ordonnance de ce commencement le reste des pieces du bastiment se conduit ayseacuteement sans se deacutementir Par cette voye nous trouvons nostre raison bien fondeacutee et discourons agrave boule veue car nos maistres praeligoccupent et gaignent avant main autant de lieu en nostre creance quil leur en faut pour conclurre apres ce quils veulent agrave la mode des Geometriens par leurs demandes avoueacutees le consentement et

151 Les Essais II 12 p 564 152 Les Essais III 2 p 805 153 Na eacutepoca em que Montaigne escreveu a ldquoApologierdquo a doutrina escolaacutestica era caracterizada por um excesso de formalismo e de abstracccedilatildeo o que o levou a demonstrar uma aversatildeo profunda por essa filosofia 154 Segundo Friedrich haacute na ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo alguns ldquofaibles tracesrdquo de uma leitura de Aristoacuteteles jaacute que naquela eacutepoca este pensador grego exercia a sua uacuteltima grande influecircncia sobre os humanistas Aristoacuteteles eacute para Montaigne a ldquoquintessencerdquo da autoridade magistral que obstaculiza a sua relaccedilatildeo livre com a tradiccedilatildeo ldquoSa doctrine nous sert de loy magistrale qui est agrave lrsquoaventure autant fause qursquoune autrerdquo (Les Essais II 12 p 521 a 279) Friedrich observa no entanto que natildeo eacute possiacutevel fixar exactamente em que medida Montaigne leu Aristoacuteteles e considera que natildeo se trata de uma leitura muito soacutelida (Cf Friedrich op cit p 67)

49

approbation que nous leurs prestons leur donnant dequoy nous trainer agrave gauche et agrave dextre et nous pyroueter agrave leur volonteacute Quiconque est creu de ses presuppositions il est nostre maistre et nostre Dieu il prendra le plant de ses fondemens si ample et si aiseacute que par iceux il nous pourra monter sil veut jusques aux nueumls En cette pratique et negotiation de science nous avons pris pour argent content le mot de Pythagoras que chaque expert doit estre creu en son art Le dialecticien se rapporte au grammairien de la signification des mots le Rhetoricien emprunte du Dialecticien les lieux des arguments le poete du musicien les mesures le geometrien de larithmeticien les proportions les metaphysiciens prennent pour fondement les conjectures de la physique Car chasque science a ses principes presupposez par ougrave le jugement humain est brideacute de toutes parts Si vous venez agrave choquer cette barriere en laquelle gist la principale erreur ils ont incontinent cette sentence en la bouche quil ne faut pas debattre contre ceux qui nient les principesrdquo155

Se a verdade ndash como tudo parece indicar ndash se daacute a conhecer atraveacutes das causas ndash

haveraacute que fazer referecircncia agraves quatro causas156 presentes na filosofia aristoteacutelica Se o

homem realmente conseguir conhecer estas causas teraacute um conhecimento ldquocientiacuteficordquo

da substacircncia que procura Por isso Montaigne quer invalidar a filosofia dita dogmaacutetica

de Aristoacuteteles rejeitando claramente a tese das quatro causas Em seu entender esta

teoria natildeo passa de um engano O autor da ldquoApologierdquo sugere que a teoria das quatro

causas soacute serve para prejudicar os homens que ludibriados pelo poder da razatildeo natildeo

cessam de correr atraacutes do conhecimento das causas que lhe eacute por seu turno inacessiacutevel

A verdade das causas estaacute acima de nossas capacidades racionais

Assumindo a postura pirroacutenica de Sexto Empiacuterico ndash que foi aliaacutes um aceacuterrimo

opositor de Aristoacuteteles ndash Montaigne procurou fazer algo semelhante Isto eacute procurou

atacar as bases da ciecircncia escolaacutestica (sobretudo preocupada em conciliar a razatildeo com a

feacute apoiando-se na filosofia grega principalmente a aristoteacutelica) e por conseguinte de

todos os outros sistemas dogmaacuteticos Numa perspectiva ceacuteptica sextiana Montaigne

trava uma batalha contra os princiacutepios da metafiacutesica tidos como os mais correctos Esta

visatildeo aristoteacutelica quer estabelecer uma ligaccedilatildeo entre o pensamento e o juiacutezo humanos e

os obriga a natildeo evitar as questotildees preacute-existentes Segundo Montaigne esta concepccedilatildeo

155 Les Essais II 12 p 540 156 Aristoacuteteles apresenta estas causas particularmente nos livros I e II da Metafiacutesica Satildeo elas causa material isto eacute aquilo de que eacute feita uma coisa por exemplo a mateacuteria do homem eacute a carne e os ossos a mateacuteria da mesa eacute a madeira e assim por diante causa formal isto eacute a forma ou essecircncia das coisas por exemplo o rio e o mar satildeo as formas da aacutegua um tapete eacute a forma assumida pela mateacuteria latilde com a acccedilatildeo do artiacutefice causa eficiente ou motriz isto eacute aquilo de que provecircm a mudanccedila e o movimento das coisas por exemplo o artiacutefice eacute a causa eficiente que faz a latilde receber a forma do tapete o gelo eacute a forma que faz os corpos quentes tornarem-se frios e causa final isto eacute a causa que constitui o fim ou o propoacutesito das coisas e acccedilotildees por exemplo o bem eacute a causa final da poliacutetica a felicidade eacute a causa final da acccedilatildeo eacutetica e assim por diante

50

tambeacutem natildeo potildee em evidecircncia o facto de que o conhecimento adquirido por este

processo fica enclausurado dentro de um ciacuterculo vicioso Deixemos o proacuteprio autor

falar

ldquo[A] Pour juger des apparences que nous recevons des subjets il nous faudroit un instrument judicatoire pour verifier cet instrument il nous y faut de la demonstration pour verifier la demonstration un instrument nous voila au rouet Puis que les sens ne peuvent arrester nostre dispute estans pleins eux-mesmes dincertitude il faut que ce soit la raison aucune raison ne sestablira sans une autre raison nous voylagrave agrave reculons jusques agrave linfiny Nostre fantasie ne sapplique pas aux choses estrangeres ains elle est conceue par lentremise des sens et les sens ne comprennent pas le subject estranger ains seulement leurs propres passions et par ainsi la fantasie et apparence nest pas du subject ains seulement de la passion et souffrance du sens laquelle passion et subject sont choses diverses parquoy qui juge par les apparences juge par chose autre que le subject [hellip]rdquo157

Os escolaacutesticos natildeo testaram as suas ideias atraveacutes dos factosldquoIls ne se

rapportent pas agrave lrsquoexpeacuterience ils nrsquoessaient jamais leurs opinions Leur travail consiste

uniquement agrave tirer des deacuteductions de principes et drsquoaxiomes qursquoils nrsquoexaminent jamais

Leurs principes sont faux les conseacutequences qursquoils en deacuteduisent sont donc fausses

neacutecessairement mais ils ne srsquoen soucient pas La meacutethode scolastique et logicienne

triomphe toujours et rend tous les efforts steacuterilesrdquo158 Montaigne daacute-se conta de que a

capacidade do homem de conhecer algo estaacute profundamente relacionada com a

contingecircncia e que esta mesma capacidade estaacute subordinada aos sentidos que satildeo

ldquomaintesfois maistres du discoursrdquo159 mas que ao mesmo tempo satildeo incertos e

falsificaacuteveis E portanto esta ciecircncia eacute incapaz de chegar a certezas crediacuteveis

157 Les Essais II 12 pp 600-601 158 Villey op cit pp 214-215 159 Les Essais II 12 p 592

51

4 A criacutetica agrave razatildeo humana e o relativismo da moral

Quando lemos a ldquoApologie de Raymond de Sebondrdquo aleacutem de nos depararmos

com problemas claacutessicos da filosofia como a criacutetica agrave teoria do conhecimento

deparamo-nos tambeacutem com o problema da moral de que o autor se ocupa de uma

maneira muito particular Natildeo apresentaremos neste capiacutetulo uma abordagem detalhada

e detida do tema da moral na ldquoApologierdquo Isto exigiria uma investigaccedilatildeo aprofundada e

de maior amplitude uma vez que o autor desenvolve neste texto muitos aspectos

importantes deste tema

Limitar-nos-emos a procurar perceber por que razatildeo o autor ldquodecretardquo a

impossibilidade de fundamentar na razatildeo humana um conjunto de normas ou leis que

dizem respeito agrave vida praacutetica de qualquer grupo humano Perseguindo este objectivo

procuraremos reconstruir os vaacuterios argumentos do ensaio que justificam a sua tomada

de posiccedilatildeo no acircmbito da moral160

Para contextualizar um pouco a questatildeo da moral nos Essais eacute importante

observar que no periacuteodo do humanismo renascentista se fazia sentir a necessidade de

emitir juiacutezos que fossem coerentes de se informar dos costumes dos homens tanto dos

antigos como dos povos que habitavam terras longiacutenquas Todos queriam rever a sua

ideia de homem Tratava-se de uma busca aberta e muitos ofereciam a sua contribuiccedilatildeo

como afirma Villey161 Tampouco Montaigne se demitiu desta tarefa Envolveu-se com

empenho na tarefa de perceber o que eacute o homem Para isto misturou muitas histoacuterias

antigas e contemporacircneas com inuacutemeras reflexotildees de viajantes que vinham de terras

distantes sobretudo daquelas que foram invadidas e ocupadas por europeus nelas

encontra uma confirmaccedilatildeo da tese segundo a qual a multiplicidade irreconciliaacutevel e a

diversidade mais ampla satildeo a uacutenica marca do ser As teses ceacutepticas de Montaigne

revelam-se de uma maneira particularmente radical no campo da moral neste acircmbito

adquiriraacute uma importacircncia capital a diversidade dos costumes como argumento contra a

moral ldquoracionalrdquo

160 Segundo Villey Montaigne toma consciecircncia do relativismo relativo ao conhecimento natildeo apenas nas noccedilotildees de metafiacutesica mas tambeacutem nas noccedilotildees de moral Neste ponto teraacute uma influecircncia muito importante sobretudo a sua leitura de Sexto Empiacuterico Nesta perspectiva Montaigne pode ser visto como um moralista O mesmo autor afirma que eacute principalmente nas ideias morais que podemos perceber nitidamente o relativismo montaigneano (cf Villey op cit pp188-189) 161 Cf Villey op cit p189

52

Na ldquoApologierdquo Montaigne deteacutem-se a considerar que todas as sociedades tecircm

necessidade das leis Ele tem perfeita consciecircncia de que sem leis nenhuma sociedade

poderaacute ter vida longa A obediecircncia agraves leis162 eacute uma condiccedilatildeo sine qua non para a

sobrevivecircncia de qualquer grupo social Montaigne natildeo leva a ingenuidade ao ponto de

negar pura e simplesmente a necessidade das leis e normas Neste sentido pensa como

Epicuro isto eacute considera que mesmo as piores leis nos satildeo tatildeo necessaacuterias que sem

elas os homens se devorariam uns aos outros163 No mesmo paraacutegrafo Montaigne

observa que tambeacutem Platatildeo distanciando-se pouco desta tese sustenta que sem leis

viveriacuteamos como animais selvagens e se empenha em provaacute-lo

ldquo[A] Nostre esprit est un util vagabond dangereux et temeraire il est malaiseacute dy joindre lordre et la mesure Et de mon temps ceux qui ont quelque rare excellence au dessus des autres et quelque vivaciteacute extraordinaire nous les voyons quasi tous desbordez en licence dopinions et de meurs Cest miracle sil sen rencontre un rassis et sociable On a raison de donner agrave lesprit humain les barrieres les plus contraintes quon peut En lestude comme au reste il luy faut compter et regler ses marches il luy faut tailler par art les limites de sa chasserdquo164

Ao citar Epicuro e Platatildeo o autor da ldquoApologierdquo manifesta a sua decepccedilatildeo

relativamente ao homem de sua eacutepoca Certamente estes pensadores trazem-lhe agrave

memoacuteria a situaccedilatildeo concreta em que estava mergulhada a sociedade francesa naquela

eacutepoca Lendo de uma forma atenta a sua obra eacute faacutecil comprovar que Montaigne era

consciente de tudo o que se passava no seu paiacutes guerras conflitos religiosos profundos

e actos de violecircncia deles derivados

Laschamp ao descrever algumas caracteriacutesticas do contexto no qual Montaigne

elabora a sua obra afirma

162 Haacute uma quantidade significativa de afirmaccedilotildees nos Essais acerca da necessidade do cumprimento da lei independentemente de esta ser ou natildeo justa Vejamos algumas ldquo [C] Il nrsquoest rien si lourdement et largement fautier que les loix ny si ordinairement [B] Quiconque leur obeyt pas justement par ougrave il doibt [hellip] [B]Or les loix se maintiennent en credit non par ce qursquoelles sont justes mais par ce qursquoelles sont loix Crsquoest le fondement mystique de leur authoriteacute elles nrsquoen ont poinct drsquoautrerdquo (Les Essais III 13 p 1072) Montaigne chega ateacute a afirmar que ldquo[A] ce bon et grand Socrates refusa de sauver sa vie par la desobeissance du magistrat voire drsquoun magistrat tres-injuste et tres-inique Car crsquoest la regle des regles et generale loy des loix que chacun observe celles du lieu ougrave il est [hellip]rdquo (Les Essais I 23 p 118) ldquo[A] Jen diray seulement encore cela que cest la seule humiliteacute et submission qui peut effectuer un homme de bien Il ne faut pas laisser au jugement de chacun la cognoissance de son devoir il le luy faut prescrire non pas le laisser choisir agrave son discours autrement selon limbecilliteacute et varieteacute infinie de nos raisons et opinions nous nous forgerions en fin des devoirs qui nous mettroient agrave nous manger les uns les autres comme dit Epicurusrdquo (Essais II 12 p 488) 163 Cf Les Essais II 12 p 558 164 Les Essais II 12 p 559

53

ldquoLes violences entre les dissidents eacutegalaient celles dont ils eacutetaient lrsquoobjet de la part de leurs adversaires Jamais lrsquoabus du raisonnement nrsquoavait eacuteteacute pousseacute plus loin jamais il nrsquoavait deacutechacircneacute tant de colegraveres jamais il nrsquoavait fait couler tant de larmes et tant de sangrdquo165

Assim se compreende melhor por que razatildeo Montaigne afirma que na sua

eacutepoca os que tecircm alguma rara excelecircncia acima dos outros e uma vivacidade

extraordinaacuteria os excedem em desregramento de ideias e de costumes e praticam acccedilotildees

que impedem a felicidade dos homens

Montaigne na qualidade de libre penseur natildeo poderia deixar de defender a

liberdade de pensamento Mas ao mesmo tempo sabe tambeacutem que se esta liberdade

estiver sujeita agrave vaidade da razatildeo muitas atitudes humanas inclusive religiosas como

vimos anteriormente poderatildeo tornar-se nocivas para o homem Ao descrever algumas

das caracteriacutesticas da liberdade de que davam prova os antigos na filosofia e ao fazer

um paralelo com a sociedade de sua eacutepoca afirma

ldquo[A] La liberteacute donq et gaillardise de ces esprits anciens produisoit en la philosophie et sciences humaines plusieurs sectes dopinions differentes chacun entreprenant de juger et de choisir pour prendre party Mais agrave present [C] que les hommes vont tous un train [hellip] et [A] que nous recevons les arts par civile authoriteacute et ordonnance [C] si que les escholes nont quun patron et pareille institution et discipline circonscrite on ne regarde plus ce que les monnoyes poisent et valent mais chacun agrave son tour les reccediloit selon le pris que lapprobation commune et le cours leur donneOn ne plaide pas de lalloy mais de lusage ainsi se mettent egallement toutes choses On reccediloit la medicine comme la Geometrie et les batelages les enchantemens les liaisons le commerce des esprits des trespassez les prognostications les domifications et jusques agrave cette ridicule poursuitte de la pierre philosophale tout se met sans contredictrdquo166

Montaigne escreve a sua obra mergulhado num clima onde reinava uma

ldquoanarchie dans les ideacutees et dans les faitsrdquo167 e coloca-se na atitude de ajudado pelos

costumes antigos julgar o seu tempo Segundo Villey eacute exactamente neste contexto

muito conturbado que Montaigne entra em contacto com o livro de Sexto Empiacuterico

ldquoVoilagrave ougrave lrsquoinfluence du milieu et sa propre dociliteacute aux faits lrsquoont conduit Presque toujours crsquoest la loi politique et morale agrave laquelle il est naturellement assujetti que lrsquoesprit eacuterige en loi absolue Montaigne a affranchi sa raison de cette contrainte naturelle il sait critiquer la loi

165 Laschamp op cit p 104 166 Les Essais II 12 pp 559-560 167 Laschamp op cit p 94

54

que son milieu lui impose crsquoest un pas drsquoune extrecircme importance qursquoil a fait lagrave vers lrsquoideacutee de relativiteacuterdquo168

Montaigne descreve alguns aspectos que comprovam o seu relativismo face aos

costumes de vaacuterios povos sobretudo quando os relaciona com os de Franccedila Com isto o

autor quer sugerir possivelmente que as crenccedilas os juiacutezos e as opiniotildees dos homens

estatildeo sujeitos agraves inconstacircncias perenes que haacute na vida concreta

ldquo[A] si le ciel les agite et les roule agrave sa poste quelle magistrale authoriteacute et permanante leur allons nous attribuant [hellip] [B] en maniere que ainsi que les fruicts naissent divers et les animaux les hommes naissent aussi plus et moins belliqueux justes temperans et dociles icy subjects au vin ailleurs au larecin ou agrave la paillardise icy enclins agrave superstition ailleurs agrave la mescreance [C] icy agrave la liberteacute icy agrave la servitude [hellip] [B] que deviennent toutes ces belles prerogatives dequoy nous nous allons flatants Puis quun homme sage se peut mesconter et cent hommes et plusieurs nations voire et lhumaine nature selon nous se mesconte plusieurs siecles en cecy ou en cela quelle seureteacute avons nous que par fois elle cesse de se mesconter [C] et quen ce siecle elle ne soit en mescomte [A] Il me semble entre autres tesmoignages de nostre imbecilliteacute que celui-cy ne merite pas destre oublieacute que par desir mesmes lhomme ne sccedilache trouver ce quil luy faut que non par jouyssance mais par imagination et par souhait nous ne puissions estre daccord de ce dequoy nous avons besoing pour nous contenter Laissons agrave nostre penseacutee tailler et coudre agrave son plaisir elle ne pourra pas seulement desirer ce qui luy est propre [C] et se satisfaire [hellip]rdquo169

Segundo Montaigne a verdade de uma teoria moral ndash como a de qualquer outro

conhecimento ndash soacute pode ser afirmada relativamente ao sujeito que estaacute implicado nesta

tarefa O homem que reflecte sobre a moral reflecte sobre si proacuteprio e natildeo sobre a

humanidade em geral Desta perspectiva podemos perceber por que razatildeo Montaigne

afirma que eacute ele proacuteprio a mateacuteria de seu livro170 Eacute o proacuteprio Montaigne que nos toca

ainda mais de perto do que o homem em geral

Montaigne observa que natildeo haacute entre os filoacutesofos combate tatildeo violento e tatildeo rude

como o que se trava acerca da questatildeo do soberano bem do homem

ldquo[A] Il nest point de combat si violent entre les philosophes et si aspre que celuy qui se dresse sur la question du souverain bien de lhommerdquo171

168 Villey op cit p 193 169 Les Essais II 12 pp 575-576 170 Cf nota 143 171 Les Essais II 12 p 577

55

Trata-se de uma questatildeo muito sensiacutevel para Montaigne Em se entender eacute inuacutetil

acrescentar mais uma seita agraves 288 que nasceram segundo o caacutelculo de Varron acerca

da questatildeo do soberano bem172

Montaigne inicia a ldquoApologierdquo afirmando que alguns filoacutesofos pensavam que o

soberano bem estava na ciecircncia173

Mas natildeo acreditava que fosse atraveacutes da ciecircncia174 (moral e filosoacutefica) que o

homem conseguiria ser mais saacutebio e mais feliz O autor natildeo se preocupa em fornecer

exactamente o ldquoendereccedilordquo do bem soberano Vejamos como apresenta algumas

indicaccedilotildees relativas agraves vaacuterias tentativas dos filoacutesofos para encontrarem o bem soberano

esse bem que varia conforme o indiviacuteduo

ldquo[A] Nature devroit ainsi respondre agrave leurs contestations et agrave leurs debats Les uns disent nostre bien estre loger en la vertu dautres en la volupteacute dautres au consentir agrave nature qui en la science [C] qui agrave navoir point de douleur [A] qui agrave ne se laisser emporter aux apparences (et agrave cette fantasie semble retirer cetautre [B] de lantien Pythagoras [hellip] [A] qui est la fin de la secte Pyrrhonienne) rdquo175

Fiel aos argumentos do pirronismo Montaigne sustenta que o soberano bem eacute a

ataraxia Segundo ele a sabedoria indica-nos que eacute necessaacuterio procurar manter na alma

um harmonioso equiliacutebrio A ataraxia foi sempre considerada pelos seguidores do

pirronismo como a coroaccedilatildeo da sua filosofia segundo Andreacute Verdan176 Vejamos

textualmente o que diz Sexto acerca da ataraxia como objectivo de sua doutrina ceacuteptica

filosoacutefica

ldquoIl est propos de dire ici quelque chose de la fin de la Sceptique La fin en geacuteneacuteral est ce pour quoi on fait ou on consideacutere toutes Choses crsquoest ce que lrsquoon ne recherche point pour quelque autre Chose crsquoest ce qui est la dernieacutere Chose que lrsquoon recherche Nous disons donc maintenant que la fin du Filosofe Sceptique est lrsquoAtaraxie ou lrsquoexemtion de trouble agrave lrsquoeacutegard des opinions [hellip] amp alors lrsquoAtaraxie ou lrsquoexemtion de trouble fut une suite heureuse quoique fortuite de cette suspension de son jugement agrave lrsquoeacutegard des opinions [hellip] celui qui opine Dogmatiquement amp qui eacutetablit qursquoil y a naturellement amp reacuteellement quelque bien amp quelque mal est toujours troubleacuterdquo177

172 Les Essais II 12 p 577 173 Cf nota 96 174 ldquoLa philosophie morale est viseacutee comme les autres sciences plus directement mecircme que les autres sciencesrdquo (Villey op cit p219) 175 Les Essais II 12 p578 176 Cf Verdan Andreacute Le scepticisme philosophique Paris-Montreacuteal Bordas 1971 p 57 177 Sextus Empiricus Les Hipotiposes ou Instituitions Pirroniennes Traduzido do grego por Claude Huart Amsterdam Barbier MDCCXXV pp15-16

56

Segundo Montaigne a filosofia natildeo pode oferecer uma base consistente agrave moral

que sirva como garantia da felicidade humana O homem eacute convidado a procurar

alicerces mais seguros e consistentes fora da filosofia

ldquo[C] Il ne nous faut guiere non plus doffices de regles et de loix de vivre en nostre communauteacute quil en faut aux grues et formis en la leur Et neantmoins nous voyons quelles sy conduisent tres-ordonneacutement sans erudition Si lhomme estoit sage il prenderoit le vray pris de chasque chose selon quelle seroit la plus utile et propre agrave sa vierdquo178

Assim o homem estaacute impedido por uma incapacidade que tem a sua origem

sobretudo na razatildeo de determinar tudo aquilo que pode em termos morais servir-lhe

para a construccedilatildeo de uma vida tranquila O homem natildeo sabe encontrar o que lhe eacute

necessaacuterio O desacordo nestes assuntos eacute inerente agrave proacutepria natureza do homem tal

como foi descrita pelo autor da ldquoApologierdquo

Trata-se de um desacordo com consequecircncias preocupantes jaacute que se eacute de noacutes

que depende a organizaccedilatildeo dos nossos costumes metemo-nos numa enorme

confusatildeo179 Aludindo ao parecer de Soacutecrates Montaigne defende que a razatildeo aconselha

cada um a obedecer a lei de seu paiacutes180

Entretanto Montaigne questiona-se seraacute que ldquo[A] nostre devoir nrsquoa autre regle

que fortuite181 A resposta reflecte mais uma vez o relativismo do autor que afirma

que a verdade deve ter uma face universal e uniforme mas que reconhece ao mesmo

tempo que de facto o homem impedido pela razatildeo e pelos sentidos (considerados pela

filosofia tradicional como fonte do conhecimento da verdade) natildeo tem condiccedilotildees de

encontrar uma base moral no discurso racional

ldquo[A] La droiture et la justice si lhomme en connoissoit qui eust corps et veritable essence il ne lattacheroit pas agrave la condition des coustumes de cette contreacutee ou de celle lagrave ce ne seroit pas de la fantasie des Perses ou des Indes que la vertu prendroit sa forme Il nest rien subject agrave plus continuelle agitation que les loix Deacutepuis que je suis nay jay veu trois et quatre fois rechanger celles des Anglois noz voisins non seulement en subject politique qui est celuy quon veut dispenser de constance mais au plus important subject qui puisse estre agrave sccedilavoir de la religion Dequoy jay honte et despit dautant plus que cest une nation agrave laquelle ceux de mon quartier ont eu autrefois une si priveacutee accointance quil

178 Les Essais II 12 p 487 179 Cf Les Essais II 12 p 578 180 Cf Les Essais II 12 p 478 181 Les Essais II 12 p 578

57

reste encore en ma maison aucunes traces de nostre ancien cousinagerdquo182

Reflectindo acerca da situaccedilatildeo concreta que o rodeava isto eacute a guerra as

injusticcedilas e outros males (causados pelo proacuteprio homem) que caracterizavam a Franccedila

de entatildeo Montaigne tem consciecircncia de que seguir as leis do paiacutes183 que satildeo

produzidas pela razatildeo humana eacute algo bastante problemaacutetico

Como moralista Montaigne natildeo deseja fazer a apologia de uma ldquoanarquiardquo em

termos morais muito pelo contraacuterio como vimos defende a importacircncia da lei na vida

quotidiana O que ele pretende defender eacute que todo o sistema que resulta de um

emaranhado de reflexotildees intelectuais natildeo leva a nada pelo facto de que tudo o que a

razatildeo produz estaacute sujeito agrave incerteza tanto a verdade como a falsidade

Ao criticar todo este processo Montaigne quer ressaltar a ideia de que a razatildeo eacute

um estorvo importante para a dinacircmica de construccedilatildeo da justiccedila e das leis morais

Esta tese poderia levar a pensar que Montaigne eacute um pensador que natildeo acredita

na verdade Mas ao ler a sua obra damo-nos conta que eacute um autor apaixonado pela

verdade Ele nunca afirmou que a verdade estava fora de alcance Ele quer encontrar a

verdade A sua proacutepria atitude filosoacutefica pode ser caracterizada como uma perene busca

da verdade O que lhe eacute peculiar nesta busca eacute o facto de questionar profundamente tudo

aquilo que eacute construiacutedo arbitrariamente pela filosofia dogmaacutetica sobretudo as grandes

elaboraccedilotildees teoacutericas e os complicados coacutedigos legais que em geral natildeo respeitam as

contingecircncias da vida

Esta razatildeo eacute por conseguinte a grande responsaacutevel pela contiacutenua agitaccedilatildeo das

leis Neste sentido o cepticismo de Montaigne no domiacutenio da moral estaacute em profunda

sintonia com todo o projecto da ldquoApologierdquo Assim como natildeo aceita as certezas teoacutericas

dos filoacutesofos e pensadores profissionais em mateacuteria de metafiacutesica e em tantos outros

assuntos tradicionalmente caros agrave filosofia rejeita tambeacutem com toda a determinaccedilatildeo a

produccedilatildeo filosoacutefica que eacute apresentada como ciecircncia moral Montaigne natildeo se cansa de

questionar o papel daqueles pensadores que em nome da filosofia se encarregam de

teorizar sobre as leis morais e a justiccedila Podemos dizer que o autor classifica esta

actividade como algo dispensaacutevel agrave vida Neste contexto o autor ressalta o problema da

contingecircncia e da sua relaccedilatildeo com a lei

182 Les Essais II 12 p 579 183 ldquo[B] Car nous avons en France plus de loix que tout le reste du monde ensemble [hellip] [C] Il y a peu de relation nos actions qui sont en perpetuelle mutation avec les loix fixes et immobile Les plus desirables ce sont les plus rares plus simples et generalesrdquo (Les Essais III 13 p 1066)

58

ldquo[A] Que nous dira donc en ceste necessiteacute la philosophie Que nous suyvons les loix de nostre pays Cest agrave dire cette mer flotante des opinions dun peuple ou dun Prince qui me peindront la justice dautant de couleurs et la reformeront en autant de visages quil y aura en eux de changemens de passion Je ne puis pas avoir le jugement si flexiblerdquo184

Algumas doutrinas filosoacuteficas impelem-nos ao cumprimento das leis do paiacutes

Mas como eacute isto possiacutevel se estas leis satildeo condicionadas pelas paixotildees de quem as fez

Em seguida Montaigne refere-se agrave relatividade das leis civis

ldquo[A] Quelle bonteacute est-ce que je voyois hyer en credit et demain plus [C]et que le trajet dune riviere fait crime Quelle veriteacute que ces montaignes bornent qui est mensonge au monde qui se tient au delagrave185

Diante deste quadro podemos perguntar-nos seraacute possiacutevel ter uma moral que

garanta a justiccedila para todos fazendo uso da razatildeo e utilizando as leis humanas que satildeo

sempre condicionadas pelas paixotildees as quais por sua vez estatildeo sujeitas a de tantas

mudanccedilas A resposta de Montaigne eacute negativa e eacute dada de forma iroacutenica

ldquo[A] Mais ils sont plaisans quand pour donner quelque certitude aux loix ils disent quil y en a aucunes fermes perpetuelles et immuables quils nomment naturelles qui sont empreintes en lhumain genre par la condition de leur propre essence Et de celles lagrave qui en fait le nombre de trois qui de quatre qui plus qui moins signe que cest une marque aussi douteuse que le resterdquo186

Aleacutem de constatar a relatividade das leis civis Montaigne natildeo deixa de afirmar

que haacute tambeacutem uma niacutetida relatividade nas leis naturais

ldquo[A] ils sont dis-je si miserables que de ces trois ou quatre loix choisies il nen y a une seule qui ne soit contredite et desadvoeumle non par une nation mais par plusieursrdquo187

Outra tese da ldquoApologierdquo que merece ser lembrada eacute que a razatildeo humana ndash

intrometendo-se em toda a parte para dominar baralhar e confundir a face das coisas

segundo sua vaidade e inconstacircncia ndash quer que acreditemos que haacute leis naturais como as

que se observam nas outras criaturas Mas isto natildeo passa de um equiacutevoco em noacutes as leis

naturais estatildeo perdidas

Montaigne natildeo mede as palavras quando o que estaacute em jogo eacute em seu entender

alguma coisa de capital importacircncia A falta de honestidade e a falsidade satildeo atributos

dos pensadores e elaboradores de leis na sociedade Neste contexto criticaraacute

violentamente a posiccedilatildeo de Platatildeo por exemplo Observa que quando este pensador

184 Les Essais II 12 p 579 185 Les Essais II 12 p 579 186 Les Essais II 12 p 580 187 Les Essais II 12 p 580

59

grego se torna legislador adopta um estilo imperioso e afirmativo e mistura-lhe

ousadamente as mais fantasiosas invenccedilotildees tatildeo uacuteteis para persuadir o povo como

ridiacuteculas para se persuadir a si mesmo Conclui a sua criacutetica a Platatildeo da seguinte forma

ldquo[C] Et pourtant en ses loix il a grand soing quon ne chante en publiq que des poeumlsies desquelles les fabuleuses feintes tendent agrave quelque utile fin et estant si facile dimprimer tous fantosmes en lesprit humain que cest injustice de ne le paistre plustost de mensonges profitables que de mensonges ou inutiles ou dommageables Il dict tout destroussement en sa Republique que pour le profit des hommes il est souvent besoin de les piper 188 rdquo

Na ldquoApologierdquo Montaigne manifesta em vaacuterias ocasiotildees o seu

descontentamento relativamente agraves teses dos filoacutesofos gregos

Considerando as reflexotildees precedentes acerca da moral tudo leva a crer que

Montaigne considera que as leis verdadeiras relativas agrave moral devem ter um caraacutecter

universal e natildeo particular

Montaigne apresenta uma lista de costumes diversificados de povos muito

diferentes que tecircm as suas tradiccedilotildees proacuteprias e que satildeo muitas vezes contraditoacuterias entre

si Isto servir-lhe-aacute para justificar a tese de que natildeo haacute coisa em que o mundo seja tatildeo

diverso como os costumes e leis

ldquo[A] Telle chose est icy abominable qui apporte recommandation ailleurs comme en Lacedemone la subtiliteacute de desrober Les mariages entre les proches sont capitalement defendus entre nous ils sont ailleurs en honneur [hellip]rdquo

ldquo[A] Le meurtre des enfans meurtre des peres communication de femmes trafique de voleries licence agrave toutes sortes de voluptez il nest rien en somme si extreme qui ne se trouve receu par lusage de quelque nationrdquo189

ldquo[A] Les subjets ont divers lustres et diverses considerations cest de lagrave que sengendre principalement la diversiteacute dopinions Une nation regarde un subject par un visage et sarreste agrave celuy lagrave lautre par un autre

Il nest rien si horrible agrave imaginer que de manger son pere Les peuples qui avoyent anciennement ceste coustume la prenoyent toutesfois pour tesmoignage de pieteacute et de bonne affection [hellip]rdquo

ldquo[A] Licurgus considera au larrecin la vivaciteacute diligence hardiesse et adresse quil y a agrave surprendre quelque chose de son voisin [hellip]rdquo ldquo[A] Dionysius le tyran offrit agrave Platon une robe agrave la mode de Perse longue damasquineacutee et parfumeacutee Platon la refusa disant questant nay homme il ne

188 Les Essais II 12 p 512 189 Les Essais II 12 p 580

60

se vestiroit pas volontiers de robbe de femme mais Aristippus laccepta avec ceste responce que nul accoustrement ne pouvoit corrompre un chaste couragerdquo190

ldquo[A] Nous portons les oreilles perceacutees les Grecs tenoient cela pour une marque de servitude Nous nous cachons pour jouir de nos femmes les Indiens le font en public Les Scythes immoloyent les estrangers en leurs temples ailleurs les temples servent de franchiserdquo191

Para Montaigne as razotildees sobre as quais cada povo funda a sua moral satildeo uma

resposta a situaccedilotildees contingentes e natildeo visam dar resposta a situaccedilotildees mais universais

vaacutelidas para todos os homens sem excepccedilatildeo Villey chega a afirmar que Montaigne

ldquocherche une justice et il trouve des justices et des justices contradictoiresrdquo192

Aleacutem de constatar a ausecircncia de um acordo entre as vaacuterias concepccedilotildees no que

diz respeito aos costumes de cada povo Montaigne - fiel agrave criacutetica aos sistemas

filosoacuteficos que perpassa toda a ldquoApologierdquo - destaca tambeacutem o facto de que natildeo haacute

sequer acordo entre os filoacutesofos que se ocupam particularmente em reflectir acerca de

dois temas muito caros agrave filosofia

ldquo[A] Quant agrave la liberteacute des opinions philosophiques touchant le vice et la vertu cest chose ougrave il nest besoing de sestendre et ougrave il se trouve plusieurs advis qui valent mieux teus que publiez [C]aux faibles espritsrdquo193

Segundo Montaigne os proacuteprios homens do saber adoptam atitudes

consideradas inaceitaacuteveis pelo facto de a sociedade as condenar Os exemplos ilustram

esta situaccedilatildeo de uma forma muito niacutetida e revelam quanto a razatildeo humana pode fazer

para encontrar explicaccedilotildees legitimadoras para todas as realidades relativas aos costumes

morais

ldquo[A] De lagrave disent aucuns que doster les bordels publiques cest non seulement espandre par tout la paillardise qui estoit assigneacutee agrave ce lieu lagrave mais encore esguillonner les hommes agrave ce vice par la malaisance [hellip] On demanda agrave un philosophe quon surprit agrave mesme ce quil faisoit Il respondit tout froidement Je plante un homme [hellip]rdquo194

ldquo[C] Car Diogenes exerccedilant en publiq sa masturbation faisoit souhait en presence du peuple assistant qursquoil peut ainsi saouler son ventre en le frottant [hellip] Ces philosophes icy donnoient extreme prix agrave la vertu et refusoient toutes autres disciplines que la moralerdquo195

190 Les Essais II 12 p 581 191 Les Essais II 12 p 582 192 Villey op cit p 197 193 Les Essais II 12 p 582 194 Les Essais II 12 p 584 195 Les Essais II 12 p 585

61

A relatividade das leis e costumes e a impossibilidade de se chegar a acordo

entre os povos tendo em vista estabelecer leis universais leva Montaigne a uma espeacutecie

de denuacutencia da praacutetica dos encarregados pela execuccedilatildeo das leis que jaacute por si satildeo tatildeo

questionaacuteveis Isto torna a lei supostamente universal ainda mais sujeita agrave rejeiccedilatildeo

segundo Montaigne Vale a pena recordar aqui o exemplo de que Montaigne ouviu

falar de um juiz que quando deparava com um seacuterio conflito entre Bartoldo e Baldo196

ou com alguma mateacuteria agitada por muitas contradiccedilotildees escrevia na margem de seu

livro ldquoQuestatildeo para o amigordquo Montaigne observa que neste caso a verdade era tatildeo

confusa e debatida que o juiz em causa poderia favorecer a parte que bem entendesse e

conclui

ldquo[A] Les advocats et les juges de nostre temps trouvent agrave toutes causes assez de biais pour les accommoder ougrave bon leur semble A une science si infinie deacutependant de lauthoriteacute de tant dopinions et dun subject si arbitraire il ne peut estre quil nen naisse une confusion extreme de jugemens Aussi nest-il guiere si cler proceacutes auquel les advis ne se trouvent divers Ce quune compaignie a jugeacute lautre le juge au contraire et elle mesmes au contraire une autre fois Dequoy nous voyons des exemples ordinaires par ceste licence qui tasche merveilleusement la cerimonieuse authoriteacute et lustre de nostre justice de ne sarrester aux arrests et courir des uns aux autres juges pour decider dune mesme causerdquo197

Eacute interessante destacar este exemplo tambeacutem porque Montaigne tinha

conhecimentos profundos da ciecircncia do direito conforme reconhece a maioria dos

comentadores da sua obra Como magistrat tinha conhecimento de causas nas quais se

manifestava aquilo contra o qual se opunha Isto vem confirmar ainda mais a posiccedilatildeo de

Montaigne face agrave sua incansaacutevel busca de leis universais que natildeo estivessem sujeitas agraves

constantes mutaccedilotildees de que a razatildeo humanaldquo[B] un pot agrave deux anses qursquoon peut saisir

agrave gauche et agrave dextrerdquo eacute responsaacutevel e que [A] fornit drsquoapparence agrave divers effectsrdquo198

Ao abordar a problemaacutetica da moral na ldquoApologierdquo Montaigne chega a algumas

conclusotildees que natildeo se distanciam fundamentalmente de todo o projecto do ensaio Isto

eacute defende que haacute um relativismo significativamente claro relativamente agrave moral Villey

faz algumas afirmaccedilotildees que resumem claramente esta problemaacutetica ldquoIl nrsquoy a pas de

souverain bien il nrsquoy a pas de loi naturelle toute obligation moralle est fortuite

196 Trata-se de dois juristas do seacuteculo XIV que no seacuteculo XV ainda tinham grande influecircncia 197 Les Essais II 12 p 582 198 Les Essais II 12 p 581

62

contingenterdquo199 E tudo isto deve-se agrave criacutetica destruidora da razatildeo humana que

Montaigne apresenta no texto Para ele a razatildeo quer julgar tudo quer elaborar leis

universais sem mesmo ter condiccedilotildees para semelhante empreendimento A razatildeo como

vimos eacute multiforme inconstante infinita Ela avanccedila sempre mesmo torta mesmo

manca mesmo desancada tanto com a mentira como com a verdade A razatildeo eacute um

instrumento de chumbo e de cera alongaacutevel dobraacutevel e adaptaacutevel a todas as

perspectivas e a todas as medidas200 Segundo Montaigne a razatildeo eacute ldquo[B] un miserable

fondement de nos regles et qui nous represente volontiers une tres-fauce image des

choses comme vainement nous concluons aujourdrsquohui lrsquoinclination et la decrepitude du

monde par les arguments que nous tirons de nostre propre foiblesse et decadencerdquo201

Em suma Montaigne tem consciecircncia de que eacute impossiacutevel chegar a qualquer

determinaccedilatildeo no domiacutenio da moral atraveacutes da razatildeo Por isto assume uma atitude

ceacuteptica em face desta questatildeo

199 Villey op cit p198 200 Cf nota 122 201 Les Essais III 6 p 908

63

Consideraccedilotildees finais

A leitura da ldquoApologie de Raymond Sebondrdquo permitiu-nos esclarecer aspectos

importantes da criacutetica demolidora da razatildeo humana levada a cabo por Montaigne

Eacute claro que uma motivaccedilatildeo importante que levou Montaigne a escrever a

ldquoApologierdquo foi a obra do teoacutelogo catalatildeo Sebond Theologia Naturalis Eacute importante

destacar que o proacuteprio tiacutetulo do ensaio ldquoApologiehelliprdquo isto eacute elogio defesa natildeo reflecte

exactamente o seu propoacutesito que eacute a defesa de Sebond A anaacutelise do texto permite

captar algo de paradoxal Montaigne dispotildee-se a defender este teoacutelogo catalatildeo num

ensaio no qual ele proacuteprio se distancia claramente da doutrina de Sebond Neste

sentido haacute um significativo distanciamento entre o tiacutetulo do ensaio e o seu conteuacutedo O

ponto de partida de Montaigne eacute uma espeacutecie de declaraccedilatildeo de que as ideias de Sebond

satildeo convincentes mas imediatamente a seguir muda de opiniatildeo partindo de sua

concepccedilatildeo negativa do homem e natildeo acredita nos supostos poderes da razatildeo Dito de

outro modo Montaigne natildeo sustentava o propoacutesito da Theologia naturalis isto eacute a

pretensatildeo de apoiar a crenccedila dos leitores convidando-os a fazer um esforccedilo de adaptaccedilatildeo

dos instrumentos naturais e humanos considerados como dons de Deus especialmente

a razatildeo pondo-os ao serviccedilo da feacute

Montaigne ldquoaplauderdquo a atitude de Sebond202 Mas imediatamente a seguir critica

o teoacutelogo catalatildeo atacando os vaacuterios argumentos filosoacuteficos presentes na sua obra Na

raiz da sua criacutetica estaacute o facto de estes argumentos se fundamentarem numa visatildeo

antropocecircntrica da supremacia do homem como criatura privilegiada da criaccedilatildeo o

homem por ser detentor da razatildeo diferentemente dos outros animais tem uma

finalidade uma perfeiccedilatildeo e uma dignidade que merece ser exaltada Montaigne natildeo

aceita esta visatildeo que norteia tanto a obra de Sebond como o pensamento de todos

aqueles que faziam apologia da dignitas hominis Denuncia a presunccedilatildeo ilusoacuteria do

homem Desta perspectiva utiliza vaacuterios relatos anedoacuteticos de animais para justificar a

sua posiccedilatildeo E a conclusatildeo principal a que o conduz este percurso eacute que o homem natildeo

estaacute nem acima nem abaixo do resto dos seres naturais203 Dito de outro modo a

consideraccedilatildeo de que unicamente o homem eacute possuidor da razatildeo natildeo tem qualquer

relevacircncia segundo a ldquoApologierdquo

202 Cf nota 1 203 Cf nota 31

64

Da batalha travada por Montaigne contra os vaacuterios opositores da obra de

Sebond podemos destacar a posiccedilatildeo criacutetica que ele assume face aos presunccedilosos

racionalistas que diziam que os argumentos de Sebond eram fracos Diante destes

doutos Montaigne iraacute sustentar a tese de que o homem natildeo sabe nada Haacute que salientar

no entanto que o teoacutelogo catalatildeo estava em ldquocomunhatildeordquo com o pensamento apologeacutetico

de sua eacutepoca isto eacute recorreu agrave razatildeo para provar certos dogmas Para Montaigne o

principal perigo vem daqueles que atribuem super poderes agrave razatildeo Eacute por isso tambeacutem

que Montaigne sustenta que a razatildeo deve submeter-se agrave autoridade divina Esta

submissatildeo natildeo exclui a razatildeo mas considera-a como um meio de compreender o motivo

da feacute Esta feacute deve ser concebida como uma expectativa da graccedila sem a qual nada eacute

possiacutevel ao homem Segundo Montaigne natildeo somos capazes de perceber que toda a

certeza estaacute vedada ao homem reduzido a si proacuteprio204

Podemos perceber que a utilizaccedilatildeo da razatildeo para explicar as realidades da

religiatildeo natildeo tem sentido na ldquoApologierdquo Montaigne natildeo tem necessidade de fazer

apologia da feacute205 A sua perspectiva eacute unicamente humana e isto vai estruturar toda a

sua reflexatildeo na ldquoApologierdquo Quando se refere agrave graccedila como dom sobrenatural nem o

absoluto nem a graccedila actuam no interior de sua visatildeo antropoloacutegica A graccedila eacute

apresentada por Montaigne como uma metamorfose

ldquo[C] Crsquoest agrave nostre foy Chrestienne non agrave sa vertu Stoique de pretendre agrave cette divine et miraculeuse metamorphoserdquo206

Montaigne descobre em si proacuteprio o pirronismo atraveacutes da volubiliteacute207 presente

nas vaacuterias atitudes dos filoacutesofos Pocircs em duacutevida as diversas opiniotildees dos filoacutesofos

denunciando-as como contraditoacuterias criticou as doutrinas filosoacuteficas dogmaacuteticas mas

natildeo assumiu nenhuma doutrina definida Montaigne assume o pirronismo como meacutetodo

e natildeo como um adepto cego para enfrentar os problemas presentes na ldquoApologierdquo

O pirronismo eacute assumido por Montaigne como modo de pensamento e como

meacutetodo de vida Este pirronismo permite-lhe ter em conta na ldquoApologierdquo a incerteza de

204 Cf Nota 93 205 O autor esclarece esta questatildeo da seguinte maneira na ediccedilatildeo posterior a 1588 ldquo[C] Je propose les fantasies humaines et miennes simplement comme humaines fantasies [hellip] matiere dopinion non matiere de foy ce que je discours selon moy non ce que je croy selon Dieu comme les enfants proposent leurs essais intruisables non instruisants dune maniere laiumlque non clericale mais tresminusreligieuse tousjoursrdquo (Les Essais I 56 p 323) 206 Les Essais II 12 p 604 207 Les Essais II 12 p 569

65

nossos juiacutezos a incerteza que todos sentem em si208 em relaccedilatildeo ao conhecimento O

pirronismo faz desaparecer as ilusotildees da certeza e como ele natildeo se envolve nas

questotildees da ldquoirresolution infinierdquo209 procura uma seguranccedila na tranquilidade do

espiacuterito que com a do corpo constitui o soberano bem210 Ao assumir a atitude

pirroacutenica Montaigne natildeo se transforma num homem passivo num ldquopeso mortordquo Muito

pelo contraacuterio sustenta que devemos sempre levantar questotildees reconhecer a nossa

ignoracircncia face agraves vaacuterias resoluccedilotildees tomadas como certas pela presunccedilosa razatildeo

humana duvidar sempre e ter uma atitude de busca incessante de novas ideias

Isto significa que Montaigne defende a tese de que somos convidados a

considerar que os conhecimentos adquiridos devem ser sempre sustentados como

provisoacuterios e natildeo como verdades absolutas Isto natildeo exclui evidentemente o facto de

que podemos apresentar as nossas visotildees prismaacuteticas das coisas e ateacute sustentaacute-las se

assim for necessaacuterio

Na ldquoApologierdquo Montaigne assume uma atitude pirroacutenica sui generis Demonstra

constantemente uma reaccedilatildeo contra os dogmatismos Ele eacute um pensador que estaacute sempre

em busca Nunca cessa de investigar Estaacute sempre em debate consigo mesmo Neste

aspecto pode-se dizer que assume uma atitude diferente do pirronismo grego o qual

defendia a tese da impossibilidade de qualquer juiacutezo Natildeo estaacute preocupado em encontrar

um ldquoroacutetulo de marca registadardquo para suas reflexotildees filosoacuteficas Ou seja natildeo tinha como

objectivo elaborar uma apologia de uma doutrina a ser seguida por adeptos

Montaigne apresenta os seus juiacutezos com a sua razatildeo criacutetica sem ter

necessariamente que defender a tese de que a razatildeo humana ndash instrumento flexiacutevel

recurvaacutevel e adaptaacutevel a qualquer forma211- eacute sempre o guia prudente e seguro de uma

conduta correcta e perfeita Montaigne procura demonstrar racionalmente - e aqui

reside em seu entender o uso positivo da razatildeo ndash que natildeo haacute essecircncia nem verdade

absoluta acerca do homem e que de algumas coisas sempre agrave mercecirc do poder do tempo

noacutes soacute observamos as aparecircncias

ldquo[A] Finalment il nrsquoy a aucune constante existence ny de nostre estre ny de celuy des objects [hellip] Nous nrsquoavons aucune communication agrave lrsquoestre [hellip]rdquo212

208 Cf Les Essais II 12 p 563 209 Cf Les Essais II 12 p 561 210 Cf Les Essais II 12 p 488 211 Cf Les Essais II 12 p 539 212 Les Essais II 12 p 601

66

Montaigne duvida de todos os conhecimentos humanos recebidos por autoridade

e em confianccedila (agrave credit) como se fossem religiatildeo e lei213 tais conhecimentos natildeo

passam de falsas evidecircncias do quotidiano E isto vale sobretudo para todos os tipos de

produccedilatildeo racional que satildeo consequecircncia da vaidade humana

Montaigne esforccedila-se por investigar as opiniotildees dos outros e isto motiva-o a

formular um pensamento mais pessoal preocupado com o que eacute justo e a expandir o

seu proacuteprio conhecimento relativo e precaacuterio As suas investigaccedilotildees natildeo satildeo dogmaacuteticas

e soacute o comprometem a ele proacuteprio Eacute um pensador que estaacute sempre em busca que natildeo

tem a presunccedilatildeo de querer saber tudo sobre todas as coisas Mas ao mesmo tempo

podemos dizer que eacute um pensador que descobriu num mundo marcado por tantas

conturbaccedilotildees graccedilas agraves suas proacuteprias experiecircncias uma consciecircncia real e soacutelida da sua

existecircncia concreta no mundo Este facto levou-o a assumir a atitude de natildeo querer

ensinar nem dirigir a vida de ningueacutem Vale a pena citar a este respeito um pequeno

trecho de um outro ensaio que Montaigne escreveu provavelmente na mesma eacutepoca da

ldquoApologierdquo e que reflecte claramente a posiccedilatildeo por ele assumida e que pode ser

classificada natildeo como a de um filoacutesofo profissional detentor de verdades que devem ser

ensinadas aos outros mas como a de algueacutem que estaacute sempre em busca e natildeo se inibe de

expressar as suas opiniotildees

ldquo[A] Je dy librement mon advis de toutes choses voire et de celles qui surpassent agrave ladventure ma suffisance et que je ne tiens aucunement estre de ma jurisdiction Ce que jen opine cest aussi pour declarer la mesure de ma veueuml non la mesure des chosesrdquo214

Montaigne renuncia a tarefa de querer provar atraveacutes da razatildeo humana aquilo

que estaacute em uacuteltima instacircncia no domiacutenio da feacute Ele eacute um homem que crecirc em Deus

ldquo[A] Il a laisseacute en ces hauts ouvrages le caractere de sa diviniteacute et ne tient quagrave nostre imbecilliteacute que nous ne le puissions descouvrirrdquo215

Uma quantidade importante de pessoas no mundo proclama a existecircncia de

Deus Mas este Deus natildeo pode ser conhecido racionalmente pelo homem

ldquoIl sen faut tant que nos forces conccediloivent la hauteur divine que des ouvrages de nostre createur ceux-lagrave portent mieux sa marque et sont mieux siens que nous entendons le moinsrdquo216

213 Cf Les Essais II 12 p 539 214 Les Essais II 10 p 410 215 Les Essais II 12 pp 446-447 216 Les Essais II 12 p 499

67

Relativamente agrave moral Montaigne sustenta a tese de que a razatildeo humana natildeo

tem o poder de determinar quais satildeo os bons e os maus costumes as boas e as maacutes leis e

normas para qualquer grupo social

Diante da leitura que fizemos da ldquoApologierdquo onde Montaigne apresenta uma

criacutetica destruidora agrave razatildeo tirando-lhe quase todos os atributos recebidos durante toda a

histoacuteria da filosofia podemos portanto perguntar-nos qual eacute o papel da razatildeo humana

A resposta a esta questatildeo eacute muito complexa A criacutetica montaigneana agrave razatildeo natildeo se

limitou a menosprezar a ciecircncia (filosofia) a ldquoteologia racionalistardquo e as suas pretensotildees

de querer dar explicaccedilotildees sobre questotildees de feacute e de religiatildeo atacou tambeacutem

profundamente o espiacuterito humano negando-lhe capacidades que na maioria das vezes

satildeo atributos da pretensatildeo humana Para ilustrar mais claramente esta ideia seraacute

interessante fazer referecircncia a uma passagem ceacutelebre do livro III na qual Montaigne

conta uma pequena histoacuteria de um escravo chamado Esopo

Conta-nos o autor que Esopo estava exposto agrave venda com dois outros escravos

Um comprador indagou de um deles que sabia fazer este para se valorizar contou mil

maravilhas (monts et merveilles) O segundo disse mais ainda Quando chegou a sua

vez Esopo respondeu ldquonada eles jaacute pegaram em tudo eles sabem tudordquo Montaigne

observa que verificou o mesmo nas escolas de filosofia A arrogacircncia o orgulho (fierteacute)

dos que atribuiacuteram ao espiacuterito humano a capacidade de tudo saber levou os outros a

afirmar por despeito ou contradiccedilatildeo que o espiacuterito natildeo era capaz de coisa alguma

Estes exaltavam ao extremo a ignoracircncia tal como aqueles glorificavam absurdamente a

ciecircncia De modo que natildeo haacute como negar que o homem eacute imoderado em tudo e soacute cessa

quando forccedilado pela capacidade de ir aleacutem217

Em suma a ldquoApologierdquo nos apresenta um questionamento profundo em relaccedilatildeo

a todo o tipo de conhecimento fundado na razatildeo Arruiacutena os fundamentos deste

conhecimento produzido pelos homens do saber doutos e filoacutesofos antigos A estes

ldquosaacutebiosrdquo em geral que pensavam ser possuidores da verdade Montaigne dirige uma

criacutetica iroacutenica

laquo [C] Fiez vous agrave vostre philosophie vantez vous davoir trouveacute la feve au gasteau [hellip] raquo218

217 Cf Les Essais II 11 p 1035 218 Les Essais II 12 p 516 Esta citaccedilatildeo faz referecircncia agrave tradiccedilatildeo de na Epifania compartilhar um bolo contendo uma fava quem recebesse a fatia laquo premiada raquo era chamado laquo o rei da fava raquo Tratava-se de algo que figuradamente garantia uma espeacutecie de vantagem

68

Bibliografia

1 - Obras de Michel de Montaigne

Les Essais eacutedition conforme au texte de lrsquoexemplaire de Bordeaux par Pierre Villey

reacuteeacutediteacute sous la direction et avec un preacuteface de V-L Saulnier augmenteacute en 2004 drsquoune

preacuteface et drsquoun suppleacutement de Marcel Conche Paris QuadriguePUF 2004 (ediccedilatildeo de

referecircncia no nosso estudo)

Essais Livre second eacutedition preacutesenteacutee eacutetablie et annoteacutee par Emmanuel Naya

Delphine Reguig-Naya et Alexandre Tarrecircte Paris () Gallimard 2009

2 Estudos sobre Montaigne

AA VV Le dictionnaire des Essais de Montaigne Paris ( ) Eacuteditions Leacuteo Scheer

2011

AA VV Montaigne et la reacutevolution Philosophique du XVI siegravecle Bruxelles Eacuteditions

de lrsquoUniversiteacute de Bruxelles 1992

AUREacuteLIO Diogo Pires Montaigne e Espinosa toleracircncia ceacuteptica e toleracircncia

racionalista In O Cepticismo e Montaigne Rui Bertrand Romatildeo (org) Covilhatilde

Universidade da Beira Interior 2003 pp 141-160

BIRCHAL Telma de Souza O eu nos Ensaios de Montaigne Belo Horizonte Editora

UFMG 2007

BIGNOTTO Newton ldquoMontaigne Renascentistardquo Kriterion Revista do Departamento

de Filosofia da UFMG Belo Horizonte XXXIII 86 agodez 1992 p 29-41

BUTOR Michel Essais sur les essais Paris Gallimard 1968

CATALAN Eacutetienne Eacutetudes sur Montaigne analyse de sa philosophie Paris Hellier

Fregraveres Librairie Religieuse 1846

CHAMPION Edme Introduction aux Essais de Montaigne Paris Armand Colin amp Cie

Eacutediteurs 1900

COMPAGNON Antoine Nous Michel de Montaigne Paris Seuil 1980

CONCHE Marcel Montaigne et la philosophie Paris Puf 1996

69

_____________ Montaigne ou la conscience heureuse Paris PUF 2009

DUARTE Tiago Barros Skepticism and religion in Michel de Montaigne two

interpretations of apology for Raymond Sebond Intuitio Porto Alegre V2 ndash Nordm 3

Novembro 2009 pp 298-307

FILHO Celso Martins Azar Montaigne e Soacutecrates cepticismo conhecimento e

virtude In Revista Portuguesa de Filosofia Tomo LVIII Fasc 4 2002

FRIEDRICH Hugo Montaigne Traduzido do alematildeo por Robert Rovini Paris

Gallimard 1967

GIOCANTI Sylvia Montaigne et les becirctes La becirctise et lrsquoanimal dans les Essais de

Montaigne Universiteacute de Toulouse-II Le Mirail UMR 5037 (ENS-Lyon) 2011

HENDRICK Philip Montaigne and Sebond scepticism faith and imagination In O

Cepticismo e Montaigne Rui Bertrand Romatildeo (org) Covilhatilde Universidade da Beira

Interior 2003 pp 83-102

JEANSON Franccedilois Montaigne par lui-mecircme Paris Seuil 1951

LACOUTURE Jean Montaigne agrave cheval (Montaigne a cavalo) Traduzido por F

Rangel Rio de JaneiroSatildeo Paulo Editora Record 1998

LANUSSE Maxime Montaigne Paris Lecegravene Oudin et Cie Eacutediteurs 1895

LEVEAUX Alphonse Eacutetude sur les Essais de Montaigne Paris Henri Plon

Imprimeur-Eacutediteur 1870

MATHIEU-CASTELLANI Gisegravele Montaigne ou la veacuteriteacute du mensonge Genegraveve

Droz 2000

MONSIEUR L Le chistianisme de Montaigne Paris Imprimerie de Demonville 1819

_______ Montaigne lrsquoeacutecriture de lrsquoessai Paris PUF 1988

NAKAM Geacuteranrd Montaigne et son temps Paris Gallimard 1993

RIGOLOT Franccedilois Le texte de la renaissance des rheacutetoriqueurs agrave Montaigne

Genegraveve Droz 1982

_______ Les meacutetamorphoses de Montaigne Paris PUF 1988

RIVELINE Maurice Montaigne et lrsquoamitieacute Paris Librairie Feacutelix Alcan 1939

70

71

ROMAtildeO Rui Bertrand A apologia na balanccedila a reinvenccedilatildeo do pirrorismo na

Apologia de Raimundo Sabunde de Michel de Montaigne Lisboa Imprensa Nacional

Casa da Moeda 2007

SANTI Pedro Luiz Ribeiro de Montaigne e a reflexatildeo moral no seacuteculo XVI In Revista

Olhar ano 04 nordm 7 jan-jun 03 pp 76-85

STAROBINSKI Jean Montaigne en mouvement Paris Gallimard 1982

STROWSKI Fortunat Montaigne Paris Feacutelix Alcan Eacutediteurs 1906

VERDAN Andreacute Le scepticisme philosophique Paris-Montreacuteal Bordas 1971

VILLEY Pierre Les sources et lrsquoeacutevolution des essais de Montaigne Tome Premier

Paris Librairie Hachete 1908

______ Les sources et lrsquoeacutevolution des essais de Montaigne Tome Second Paris

Librairie Hachete 1908

______ Montaigne devant la posteacuteriteacute Paris Ancienne Librairie Furne ndash Boivin et Cie

Eacutediteurs 1935

WEILLER Maurice Pour connaitre la penseacutee de Montaigne Paris Bordas 1948

3 ndash Outras obras citadas

ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Livro I e II Traduccedilatildeo do grego por Vicenzo Coceo

Coleccedilatildeo Os Pensadores Satildeo Paulo Abril S A Cultural 1984

CASSIRER Ernst An essay on man Traduccedilatildeo portuguesa de Carlos Branco Ensaio

sobre o homem Lisboa Guimaratildees Editores 1995

Nouveau Testament Traduction Oecumeacutenique de la Bible Paris PUF 1977

SEXTUS EMPIRICUS Les hipotiposes ou instituitions pirroniennes Trad do grego

por Claude Huart Amsterdam Barbier MDCC XXV

AA VV Histoacuteria das sociedades das sociedades modernas agraves sociedades atuais Rio

de Janeiro Ao Livro Teacutecnico 1983

  • IacuteNDICE
Page 12: MARÇO DE 2012
Page 13: MARÇO DE 2012
Page 14: MARÇO DE 2012
Page 15: MARÇO DE 2012
Page 16: MARÇO DE 2012
Page 17: MARÇO DE 2012
Page 18: MARÇO DE 2012
Page 19: MARÇO DE 2012
Page 20: MARÇO DE 2012
Page 21: MARÇO DE 2012
Page 22: MARÇO DE 2012
Page 23: MARÇO DE 2012
Page 24: MARÇO DE 2012
Page 25: MARÇO DE 2012
Page 26: MARÇO DE 2012
Page 27: MARÇO DE 2012
Page 28: MARÇO DE 2012
Page 29: MARÇO DE 2012
Page 30: MARÇO DE 2012
Page 31: MARÇO DE 2012
Page 32: MARÇO DE 2012
Page 33: MARÇO DE 2012
Page 34: MARÇO DE 2012
Page 35: MARÇO DE 2012
Page 36: MARÇO DE 2012
Page 37: MARÇO DE 2012
Page 38: MARÇO DE 2012
Page 39: MARÇO DE 2012
Page 40: MARÇO DE 2012
Page 41: MARÇO DE 2012
Page 42: MARÇO DE 2012
Page 43: MARÇO DE 2012
Page 44: MARÇO DE 2012
Page 45: MARÇO DE 2012
Page 46: MARÇO DE 2012
Page 47: MARÇO DE 2012
Page 48: MARÇO DE 2012
Page 49: MARÇO DE 2012
Page 50: MARÇO DE 2012
Page 51: MARÇO DE 2012
Page 52: MARÇO DE 2012
Page 53: MARÇO DE 2012
Page 54: MARÇO DE 2012
Page 55: MARÇO DE 2012
Page 56: MARÇO DE 2012
Page 57: MARÇO DE 2012
Page 58: MARÇO DE 2012
Page 59: MARÇO DE 2012
Page 60: MARÇO DE 2012
Page 61: MARÇO DE 2012
Page 62: MARÇO DE 2012
Page 63: MARÇO DE 2012
Page 64: MARÇO DE 2012
Page 65: MARÇO DE 2012
Page 66: MARÇO DE 2012
Page 67: MARÇO DE 2012
Page 68: MARÇO DE 2012
Page 69: MARÇO DE 2012
Page 70: MARÇO DE 2012
Page 71: MARÇO DE 2012