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    O Estado brasileiro um dos principais ato-res polticos no cenrio do pas e cumpriu histo-ricamente papis importantssimos na economia ena poltica nacionais. Inmeras facetas do Estado ede suas polticas foram objeto de anlise ao longodas ltimas dcadas. Entretanto, em uma situaocontraditria, conhecemos muito pouco dos deta-lhes do seu funcionamento. Em especial temosapenas escassa compreenso sobre os processosque organizam a sua heterogeneidade e as suasdinmicas internas.

    Um dos caminhos para a soluo desse pro-blema o desenvolvimento de anlises detalhadassobre os processos que estruturam internamenteas organizaes estatais, assim como as inseremno ambiente poltico mais amplo. Em perodorecente, estudos sobre polticas do Estado utili-zando anlise de redes tm contribudo nesta dire-o, ao propor a existncia de estruturas de mdioalcance constitudas por redes entre atores no inte-rior de instituies especficas. Essas estruturasconstituem um denso e complexo tecido relacio-

    nal interno ao Estado que emoldura a dinmicapoltica e influencia fortemente a formulao e aimplementao das polticas pblicas.

    A anlise de redes sociais um campo deestudo amplo e recente, embora pouco desenvol-

    vido no Brasil at o momento. Os raros estudosexistentes, entretanto, tm explorado de formaanaliticamente inovadora certos fenmenos, emespecial as dinmicas internas ao Estado e as rela-es entre ele e a sociedade mais ampla, no inte-

    REDES SOCIAIS E PODERNO ESTADO BRASILEIRO

    Aprendizados a partirdas polticas urbanas*

    Eduardo Cesar Marques

    * Trabalho originalmente apresentado no XXVIIIEncontro da Anpocs. Agradeo aos colegas, e emespecial ao comentador da seo, WashingtonBonfim, as observaes que ajudaram a tornar otexto mais claro e objetivo. Agradeo tambm ospertinentes e atenciosos comentrios de RenataBichir a verses preliminares deste artigo.

    RBCS Vol. 21 n. 60 fevereiro/2006

    Artigo recebido em fevereiro/2005Aprovado em dezembro/2005

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    rior de comunidades de poltica pblica especfi-cas. O presente artigo parte dos resultados obti-dos em estudos desenvolvidos por mim sobre pol-ticas urbanas em duas distintas metrpoles brasileiras

    (Marques, 2000, 2003).O artigo est estruturado em trs partes,alm dessa introduo e da concluso. Na prxi-ma seo, discuto os principais elementos concei-tuais mobilizados no trabalho a partir das literatu-ras pertinentes. Em seguida, apresento os principaisachados no que diz respeito estrutura interna aoEstado que denomino tecido do Estado. Na ter-ceira parte, discuto os avanos trazidos pela pers-pectiva para a compreenso dos padres de inter-mediao de interesses e das relaes entrepblico e privado no Brasil. Ao final, analiso o

    impacto dos resultados para a compreenso darelao entre poltica e polticas pblicas noBrasil, assim como para a complexa interaoentre duas das principais estruturas sociais redessociais e instituies polticas.

    Vises sobre o Estado e acontribuio das redes

    A literatura sobre o Estado no Brasil ampla

    e extensa. Apesar disso, pouco sabemos sobre oseu funcionamento concreto, ou sobre os deta-lhes das dinmicas que o cercam. At o incio dosanos de 1980, a literatura brasileira ateve-se an-lise das macro-caractersticas do Estado brasileiroe ao seu papel no desenvolvimento da nao, deuma ordem poltica moderna e de um certo capi-talismo de natureza perifrica e dependente, emestudos que vo desde os trabalhos clssicos deOliveira Viana e Raimundo Faoro, at os trabalhosde Luciano Martins, Bresser Pereira e FernandoHenrique Cardoso, j nos anos de 1970, como por

    exemplo Cardoso (1970, 1975) e Martins (1985).Essa nfase em interpretaes mais gerais eracompreensvel no campo intelectual no qual osautores se inseriam, assim como no contexto pol-tico que os cercava. Este corpo de literatura legou-nos um conhecimento significativo sobre macro-processos, que excelentes trabalhos posteriorescomo Nunes (1997) s vieram aprofundar. Poroutro lado, o estudo do funcionamento do apare-lho estatal e de suas relaes com o sistema pol-

    tico em termos mais amplos, assim como ainfluncia desse sobre as polticas desenvolvidaspelo Estado brasileiro, permaneceram analisadosde longe e de forma indireta.

    Os anos de 1980 marcaram o incio efetivodos estudos de polticas pblicas entre ns.Tambm inseridos em seu contexto social e polti-co, inmeros trabalhos esquadrinharam critica-mente as polticas pblicas e analisaram o legadohistrico, em especial do Estado Novo e dosgovernos militares, nas mais variadas reas, comoo sistema de proteo social, sade, previdncia,habitao etc., como Santos (1979), Draibe (1989),Oliveira e Teixeira (1985), Maricato (1987),

    Azevedo e Andrade (1981) e Melo (1989), porexemplo. Nesse momento, realizaram-se anlises

    que trouxeram luz caractersticas, interesses eprocessos presentes em cada poltica, apontandopara o desenvolvimento de um substancial conhe-cimento sobre o padro brasileiro de produo depolticas estatais, em especial sociais. Mesmo nesteconjunto de trabalhos, entretanto, raros foram oscasos em que as dinmicas internas ao Estado eassociadas diretamente constituio e ao proces-samento das polticas foram analisadas.

    Em contrapartida, os anos de 1990 viram pro-liferar uma literatura marcada por uma intensa

    fragmentao temtica, disciplinar e analtica. Istose deveu em parte ao desdobramento dos estudosda dcada anterior, associados especializaonos diversos setores de poltica. De uma maneiramais ampla, entretanto, isso ocorreu em virtudeda ausncia de dilogo com perspectivas tericasmais amplas que lhe fornecessem balizamentossobre o funcionamento do Estado, resultando emuma baixa capacidade de abstrao e uma exces-siva fragmentao emprica, como destacado porMelo (1999). O problema foi agravado pelo fatode as polticas pblicas representarem um local de

    encontro temtico de tradies disciplinares muitodistintas, e mesmo externas s cincias sociais,associadas a reas especficas de pesquisa. Oresultado de toda essa trajetria que o campo deestudos sobre o Estado no Brasil se encontraesgarado entre uma produo ampla com preo-cupaes tericas e macro-sociolgicas e umamirade de estudos de caso muito detalhados eespecficos, oriundos em grande parte de reasconcretas de poltica.1

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    Acredito que uma das principais tarefas parasuperarmos tal problema est na construo de pon-tes entre os modelos de interpretao do Estado e aanlise concreta de polticas especficas. Caminhos

    possveis para a execuo dessa tarefa dizem res-peito explorao sistemtica das dinmicas, dosmecanismos ou das estruturas de mdio alcanceque cercam a produo das polticas, como estra-tgias, instituies e padres de relao entre ato-res. Discuto aqui os avanos que nos traz a ltimadestas dimenses, relativa ao conjunto de relaesentre atores estatais, e entre esses e agentes exter-nos ao Estado, mas a ele ligados de inmeras for-mas. Essa estratgia analtica explora o conheci-mento detalhado dos padres de organizao nointerior do Estado e da sua insero no ambiente

    poltico e econmico que o cerca.O destaque das relaes, entretanto, no

    tem por objetivo sobrepujar a importncia de outrasdimenses e elementos j bastante discutidos pelasliteraturas internacional e nacional, embora no casobrasileiro esses tenham sido mais discutidos do queaplicados. Trata-se apenas de chamar atenopara a presena das estruturas relacionais na pol-tica, integrando-as aos elementos j presentes nodebate. Mais especificamente, avanaremos seconseguirmos reinserir os atores em seus contex-

    tos institucionais e relacionais, ou associar asestruturas de poder aos contextos institucionaisem suas estruturas relacionais. Considerando aimportncia desse ponto para os argumentosdesenvolvidos ao longo deste artigo, defino cadaum desses elementos a seguir a partir das litera-turas pertinentes.

    Atores

    Cada situao social conta com um conjunto

    de atores dotados de instrumentos de poder quedisputam os resultados do processo poltico emtermos da distribuio de benefcios escassos,assim como de poder poltico, que em ltima an-lise explica a possibilidade diferenciada de captu-ra daqueles benefcios. As vrias perspectivassobre o Estado e o poder diferem na maneiracomo tais elementos so combinados, assim comosobre o que deve ser o centro de nossas preocu-paes analticas. Do meu ponto de vista, essas

    perspectivas diferem principalmente com respeito nfase e aos processos que conseguem ilumi-nar, dadas as suas embocaduras tericas, encer-rando instrumentos analticos cujo uso pode ser

    mais ou menos apropriado (Santos, 1990).Para os pluralistas, o conjunto de atores pre-sente na poltica muito dinmico, e seus instru-mentos de poder e interesses so instveis (Dahl,1961). Neste contexto, a prpria idia de perma-nncia poltica implcita no destaque ao Estado,para alm dos governos, objeto de estranheza,sendo a ao dos grupos de interesse e as deci-ses concretas os centros de toda anlise poltica.Os resultados das lutas polticas seriam em grandeparte contigentes, embora a literatura tenha acei-tado crescentemente a existncia de grandes dis-

    paridades de poder entre os principais atores pre-sentes em sociedades marcadas pela desigualdadeeconmica (Dahl, 2001). No bojo dessas lutas, aocupao do governo via processo eleitoral expli-caria a maior parte das aes governamentais,marcadas pela alternncia de poder nas democra-cias representativas. Evidentemente, a nfase nestecaso est na dinmica e na mudana, sendo aseventuais coalizes polticas dominantes efme-ras e contingentes (Mollenkopf, 1992).

    Para os adeptos da teoria das elites, ao con-

    trrio, os atores polticos vencedores seriam quasesempre os mesmos, e a poltica seria marcada porgrandes despropores de poder oriundas das desi-gualdades de riqueza, conhecimento e statuspre-sentes na prpria sociedade. Essa situao levaria ocorrncia dos mesmos resultados em quase todasas situaes sociais (Hunter, 1953). No que diz res-peito ao Estado, essa desproporo de poder seincrustaria nas instituies, levando perenizaodos interesses da elite, mesmo que de forma indi-reta e implcita (Domhnoff, 1979). O foco no esta-ria apenas na anlise de decises, mas no estudo

    do processo poltico mais amplo, onde ocorreria ainfluncia, como em Useem (1983). Para a teoriadas elites, portanto, a nfase no estudo do poderenvolveria no apenas o conflito aberto (como gos-tariam os pluralistas), mas tambm a falta de deci-ses, em um sentido similar ao construdo na crticade Bachrach e Baratz (1963) ao pluralismo expressona categoria mobilizao de vis. Em um sentidoamplo, uma parte importante da explicao da din-mica da poltica estaria nas mudanas que pode-

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    riam vir a ocorrer na estrutura econmica que for-nece instrumentos de poder, assim como na com-posio dos atores presentes na cena, como naslinhas de poder de Davis (1992).

    Sob o meu ponto de vista, parece serimprescindvel considerar tanto as estratgias dosatores e a contingncia dos resultados da poltica,como as despropores de poder ancoradas nosinstrumentos (mesmo que imateriais) de poderque introduzem fortes tendncias estabilidade.O resultado parece ser a criao de situaes que,embora sejam contingentes, apresentam certosresultados como muito mais provveis do queoutros (Przeworski, 1990). Sem abusarmos da pre-

    visibilidade, portanto, podemos chamar de estrutu-ra de poder a este conjunto articulado de atores,

    posies relativas de poder e instrumentos paraexerc-lo. Embora todas essas trs dimensessejam dinmicas e mutantes, apresentam inrcia epermanncia substanciais.

    Instituies, organizaes e polticas pblicas

    Como a literatura neo-institucionalista nosensinou j no incio dos anos de 1980, os atoresno atuam em um vcuo, onde contam apenas as

    suas posies de poder. Os atores situam-se emcontextos institucionais especficos compostospor regras de funcionamento da poltica estabele-cidas em normas informais, no direito positivo eem formatos organizacionais especficos (Skocpol,1985). O efeito desses trs conjuntos de elementosopera de forma similar, alterando resultados,influenciando estratgias e alianas e modificandoat mesmo o comportamento e as prefernciasdos agentes (Steinmo et al., 1992; Immergut,1998). No caso especfico do desenvolvimento depolticas pblicas, a importncia das normas

    legais e dos formatos institucionais e organizacio-nais fundamental (Skocpol, 1992). Esse conjun-to de regras legais e desenhos organizacionaiscompem o contexto institucional em que ocorreuma determinada dinmica poltica. Essa mesmaliteratura tambm nos chamou ateno para aimportncia das organizaes estatais como atorespolticos potenciais. Esses so dotados de interes-ses prprios e instrumentos de poder especficos.Na verdade, como esses agentes sempre se situam

    na cadeia de produo das polticas do Estado,ocupam uma posio de destaque em potencial,e devem ser trabalhados como os demais atoresdestacados anteriormente.

    Ao longo das ltimas cinco dcadas desen-volveu-se uma tradio analtica associada maisdiretamente ao estudo das polticas pblicas, con-formando o que alguns autores chamam depolicyanalysis (Ham e Hill, 1993). No pretendo demaneira alguma reproduzir aqui o longo e prof-cuo debate realizado sobre o tema nas ltimasdcadas, mas pontuar alguns elementos que nosajudam a localizar o avano que a anlise de redespermite com relao aos estudos mais tradicionaisde polticas pblicas. Remetemos os leitores inte-ressados em uma reviso mais sistemtica a obras

    como Parsons (1995) e Ham e Hill (1993).O desenvolvimento da policy analysisocor-

    reu paralelamente e em dilogo com as vrias teo-rias do Estado, mas sempre apresentou grandeproximidade com o pluralismo. Em termos gerais,inclui estudos mais acadmicos e outros compreocupaes muito orientadas para as polticas,o que por vezes produziu algumas confusesentre os aspectos normativos e analticos das pes-quisas (Minogue, 1983). Desde as suas primeirasformulaes, o processo de produo de polticas

    foi pensando como composto por etapas subse-qentes de um ciclo, como em Easton (1970),embora os nomes e os contedos das etapastenham variado significativamente ao longo dotempo.2A formulao mais disseminada do cicloo descreve como incluindo formao de agenda,formulao de alternativas, deciso, implementa-o, avaliao e finalizao, alm da possibilida-de de retroalimentao (Parsons, 1995). At osanos de 1970, a maior parte dos autores conside-rava o processo de deciso o momento-chave dociclo para a explicao das polticas. Neste, os

    agentes pblicos delimitariam os problemas aresolver, listariam as alternativas existentes e decidi-riam racionalmente a melhor alternativa (Lindblom,1979). Crticas subseqentes levaram elaboraode modelos alternativos de anlise mais sofisticados(Kingdon, 1984; Sabatier e Jenkins-Smith, 1993),assim como problematizao de vrios elemen-tos presentes nos modelos tradicionais. Entreesses merecem destaque o papel da racionalidadee/ou do incrementalismo nas decises (Lindblom,

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    1979; Smith e May, 1980; Gregory, 1989), a inter-penetrao das fases do ciclo (Sabatier e Jenkins-Smith, 1993), os processos (intrinsecamente pol-ticos) que influenciam a formao da agenda

    (Kingdon, 1984), assim como das idias (Sabatiere Jenkins-Smith, 1993; Hall, 1993) e o carter noautomtico e extremamente complexo da imple-mentao de polticas (Hjern e Porter, 1981;Hogwood e Gun, 1984; Lipszky, 1980). Emborano possamos discutir neste artigo os enormesavanos ocorridos no interior dessa tradio aolongo das duas ltimas dcadas, vale destacar acrescente considerao da heterogeneidade inter-na ao Estado, assim como a reafirmao constan-te do aspecto poltico dos processos envolvidosna produo das polticas pblicas.

    Para o que nos interessa centralmente aqui,essa literatura destacou cada vez mais a importn-cia do contexto e da interao entre agentes, noapenas na formulao, mas tambm na implemen-tao de polticas. Para Hjern e Porter (1981), porexemplo, a implementao no seria realizada poruma organizao focal isoladamente, mas porum agrupamento de atores, conformando o queos autores denominam estruturas de implementa-o conjuntos de organizaes que atuariamsobre um mesmo problema, participariam do pro-

    cesso por auto-seleo e interviriam todas aomesmo tempo sobre um certo conjunto de objetos.Esses autores, entretanto, no especificaram comoseriam essas estruturas de implementao, comofuncionariam e como influenciariam a poltica (eas polticas). Esse tema s comeou a ser tratadoquando uma parte dapolicy analysisincorporou aanlise de redes sociais (Heclo, 1978), introduzin-do matizes da teoria das elites nas cores predomi-nantemente pluralistas da tradio.

    Redes

    O ponto de partida da anlise de redes aconsiderao de que as redes sociais estruturam oscampos de diversas dimenses do social. A partirdos anos de 1960 e com mais vigor desde a dca-da de 1980, uma ampla literatura mostrou que os

    vnculos entre indivduos, entidades e organiza-es estruturam as mais variadas situaes sociais,influenciando o fluxo de bens materiais, idias,

    informao e poder (Scott, 1992; Freeman, 2002).Para alguns autores, construiu-se a partir de entouma sociologia relacional, concentrada nas rela-es sociais e no em atributos de decisores indi-

    viduais ou em estruturas concebidas previamente(Emirbayer, 1997). Essa perspectiva estaria situadaem um plano de anlise intermedirio, avanandona soluo das dificuldades analticas do trata-mento simultneo da ao e da estrutura sociais.O sentido de estrutura para a anlise de redes,portanto, no o mesmo das anlises estruturalis-tas anteriores, pois no caso das redes o formato eo contedo so levantados dedutivamente pelotrabalho emprico, no que Tilly (1992b) denomi-nou estruturalismo a posteriori.

    No caso das dinmicas polticas, a natureza

    intrinsecamente relacional do poder j sugere aspotencialidades trazidas pela perspectiva em estu-dos sobre movimentos sociais, polticas pblicas,partidos polticos, organizaes, esfera dos neg-cios e elites polticas, entre outros temas (Knoke,1990). As relaes e as posies nas redes consti-tuem estruturas relacionais que constrangemescolhas, do acesso diferenciado a bens e instru-mentos de poder, tornam certas alianas ou con-flitos mais ou menos provveis e influenciam osresultados da poltica. O estudo das redes permi-

    te integrar os atores em seus contextos relacionaisespecficos sem necessariamente abandonar ospressupostos ligados sua racionalidade, emboraesta ganhe contornos bastante distintos dos con-siderados comumente pelas literaturas de cinciapoltica e economia (Granovetter, 2000). inte-ressante observar que essa formulao aproximaa anlise de redes em termos tericos da com-preenso de formulaes do neo-institucionalis-mo, como o caso de Immergut (1998).

    A cincia poltica incorporou a anlise deredes principalmente em duas distintas linhas de tra-

    balho, de inspirao das teorias das elites e plura-lista. Na primeira, foram tematizadas as relaes nointerior das elites, discutindo a interpenetrao nomundo das empresas e as suas conexes com aesfera poltica. Embora as preocupaes se cen-trassem na estrutura do mundo dos negcios, asanlises apresentaram evidentes contribuiespara o entendimento do poder em nossas socie-dades, dialogando explcita e implicitamente comas explicaes marxista e elitista para os processos

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    de reproduo social. Nessa tradio inscrevem-sedesde o j clssico Mintz e Schwartz (1981) atMizruchi (1996) e Carroll e Fennema (2002), porexemplo. As elites polticas tambm foram estuda-

    das em si, embora por trabalhos de menor flegocomo, por exemplo, Gil-Mendieta e Schmidt(1996) e Del Alczar (2002).

    Uma segunda linha de trabalhos estudoudiretamente as polticas pblicas. Embora trabalhosanteriores j tivessem explorado a relao entrepolticas e redes, o marco para o estudo daspolicynetworks foi o livro The organizational state, deLaumman e Knoke (1987). O estudo partia, emespecial, de elementos presentes no pluralismo,mas pretendia desenvolver uma abordagem maisinformada sociologicamente sobre a com-

    portamento dos grupos de interesse (Laumman eKnoke, 1987, p.7). Nesse sentido, para alm dodestaque s interelaes entre interesses privados,burocracias e classe poltica, j enfocadas pelo plu-ralismo por meio da idia dos tringulos deferro (Fiorina, 1977), os estudos das policy net-workspropem que essas vinculaes sejam con-sideradas mais permanentes e menos orientadasa resultados especficos, na conformao do queHeinz et al. (1997, p. 8) chamam de atributosestruturais da influncia. Os canais dessa in-

    fluncia, entretanto, seriam baseados em relaesentre organizaes e no entre indivduos(Knoke et al., 1996).

    Cada rea de poltica seria tematizada comoum policy domain domnio de poltica , sub-sistema definido pelo reconhecimento mtuo dosatores envolvidos com a formulao e a defesa daimplementao de certas alternativas de polticarelativas a um determinado problema (Knoke,2003). Esses atores seriam tanto internos ao Estado,como originrios de fora dele, mas envolvidoscom as polticas pela ao de lobbye busca de

    influncia (Heinz et al. 1997), pela conexo entreos mundos da poltica e dos negcios (Laumannet al., 1992), associados ao funcionamento dearenas de representao como conselhos de pol-ticas (Schneider et al., 2003), ou envolvidos comexperincias de privatizao (Jordana e Sancho,2003). Essa literatura no discorda da naturezaracional dos clculos individuais, mas destaca apequena capacidade explicativa dessa concep-o, dado o contexto de grande interdependn-

    cia, optando por entender os processos de deci-so como ambguos e incrementais (Laumann eKnoke, 1987).3

    A utilizao da anlise de redes trouxe diver-

    sas contribuies importantes para o estudo daspolticas. Em primeiro lugar, permitiu que se dis-cutissem os efeitos da complexa interdependnciapresente na produo de polticas sobre a aosocial, considerando no apenas as ligaes emtorno dos atores (ou as suas interaes indivi-duais), mas tambm a estrutura dos vnculos e ospadres gerais em que esses esto inseridos. Taiselementos exercem fortes efeitos sobre a aoindividual e estratgica, influenciando a maneirapela qual a racionalidade limitada (Padget e

    Ansell, 1993). Em um sentido mais geral, o uso das

    redes permitiu a incorporao do contexto em quese d o desenvolvimento de uma determinadapoltica, levando produo de interpretaesmais sociolgicas do comportamento dos atores,como destacaram Laumman e Knoke (1987).

    Em segundo lugar, o estudo das redes permi-tiu incorporar fenmenos e relaes informais sanlises (Heclo, 1978), elemento central para acompreenso do padro difuso e pouco institucio-nalizado que caracteriza no apenas a influncia(Heinz et al., 1997), como tambm a prpria coe-

    so do Estado em muitas circunstncias (Schneider,1991). As relaes informais, nesse sentido, produ-zem tanto permeabilidade, como coeso estatal,como veremos ao longo das prximas sees.

    Por fim e de alcance mais amplo, a anlisede redes abriu novos horizontes para o estudo dopoder no Estado, indicando a existncia de cons-trangimentos e de permanncia nos contextos quecercam os atores. Como os padres de vnculo eas posies nas redes tornam mais ou menos pro-

    vveis alianas e coalizes estratgicas, e do aces-so diferenciado a informaes e recursos, as estru-

    turas das redes de polticas influenciam de maneiraimportante as dinmicas do poder no interior doEstado (Marques, 2000, 2003). A sua incorporaonas anlises ajuda a superar a interpretao de quea ao e as estratgias polticas so efmeras,assim como a nfase excessiva no processo dedeciso, conforme sugerido pelos modelos plura-listas de anlise. Essas dimenses tm sido muitopouco enfocadas mesmo pela literatura interna-cional depolicy networks.

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    Em nosso caso especfico, uma parte dos ele-mentos que se acumula no tempo e explica umaparcela importante das dinmicas polticas seexpressa no que chamo de tecido do Estado os

    padres de relao internos ao Estado e entre essee seu entorno poltico imediato. O estudo dasredes permite analisar como as aes do Estadocombinam transformao e inrcia. Por outro lado,a incorporao das redes permite superar a falsadicotomia ainda to comum em anlises recentesentre moderno e atraso nas gramticas do poderpresentes na poltica brasileira (Nunes, 1997).

    As trs estruturas discutidas ao longo dessaseo conjunto articulado de atores, instituies epadres de relao influenciam-se mutuamente

    de uma forma complexa ainda no compreendida,em especial no que se refere s redes. Entretanto,podemos dizer com certeza que a maneira pelaqual elas se associam varia de contexto para con-texto, mediado pelos atores presentes, pelos instru-mentos de poder a que tm acesso, pelos padresde relaes em que esto inseridos e, sobretudo,pela prpria dinmica poltica, incluindo estrat-gias, aes e resultados. Todas essas estruturas sodinmicas e historicamente construdas, visto queno apenas as estruturas de poder e as instituies

    se transformam continuamente (Davis, 1992), mastambm as coalizes polticas (Mollenkopf, 1992)e as redes dialogam sempre com a ao social(Pagget e Ansell, 1993). Apenas a realizao deum conjunto significativo de estudos empricoscomparativos poder permitir a compreenso dosdiferentes efeitos da associao desses elementosentre si.

    A influncia de tais estudos sobre a anlisede polticas pblicas no Brasil at o momento praticamente nula, exceto pelos trabalhos discuti-

    dos aqui. Na verdade, so muito raras as anlisesda sociologia e da cincia poltica de forma maisgeral que utilizam as redes como mtodo, com aexceo de pesquisas recentes como de LouiseNazareno (2005) e do excelente trabalho de Toledo(2005) sobre o campo dos empresrios em SoPaulo. Quase sempre quando se fala em redes, ouso meramente metafrico.4 O objetivo dassees que se seguem auxiliar no preenchi-mento dessa lacuna.

    O tecido relacional do Estado

    Para a aplicao do mtodo em nosso con-texto especfico, acredito que algumas especifici-

    dades precisam ser consideradas.5

    Em primeirolugar, no caso brasileiro os domnios da polticatendem a ser mais centrados nos rgos estatais,dada a fragilidade das organizaes da sociedadecivil quando comparadas com as existentes emsistemas polticos de caractersticas mais pluralis-tas. Essas organizaes estatais tendem ao mesmotempo a ser pouco institucionalizadas, assim comoa apresentar baixo insulamento e intensos proces-sos de migrao entre rgos e com o setor priva-do. A literatura tende usualmente a interpretaressa dimenso como sinal de fraqueza do Estado,

    mas acredito que no seja necessariamente assim.Isso porque uma parte substancial dos vnculosque constitui o tecido do Estado foi construdaexatamente pelos processos de migrao de fun-cionrios entre rgos. Assim, esse mesmo pro-cesso pode construir condies de coordenaoentre agncias, tornando o tecido do Estado maisdenso. A questo passa a ser quais condieslevam a cada um desses resultados, pergunta queapenas a realizao de inmeros estudos empri-cos pode responder.

    Em segundo lugar, diferentemente das anli-ses daspolicy networks, parto do princpio de quea unidade bsica das relaes (e da ao) so osindivduos, e no as organizaes. Embora nasredes sempre esteja presente uma dualidade entrepessoas e organizaes (Breiger e Mohr, 2004), aimportncia das relaes pessoais e a baixa insti-tucionalizao de inmeros procedimentos nofuncionamento da administrao pblica no Brasil,quando comparado com os pases centrais, torna-ria artificial e potencialmente enganosa uma an-lise baseada nas organizaes.

    Alm disso, considero que apenas uma partedos vnculos que organizam e explicam o tecidodo Estado foi construdo de forma intencional.Dado que a rede das polticas apenas uma partede redes mais amplas associadas vida dos indi-

    vduos envolvidos com sua produo, a maiorparte da rede foi produzida h bastante tempocom objetivos distintos dos mobilizados em umdeterminado momento, ou mesmo sem objetivoalgum. Isso ocorre embora os vnculos possam

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    ser operados ou acionados intencionalmente emcircunstncias especficas. Sob esse ponto de vista,portanto, os atores imersos nas redes podem atconstruir clculos estratgicos auto-interessados,

    mas esses no apenas sofrem modificao pelaspercepes e preferncias influenciadas pela rede(Granovetter, 2000), como tambm se caracteri-zam por formas complexas de racionalidade limi-tada no sentido dado por Elster (1994). Voltarei aesse ponto mais adiante, quando tratar da per-meabilidade do Estado.

    Portanto, os vnculos e as redes tendem a sermais resilientes e durveis no tempo do queusualmente se considera, especialmente em suaestrutura. As informaes empricas apresentadasnas prximas sees confirmam essa hiptese.

    Esse ponto de vista tende a colidir com uma partesubstancial da literatura nacional, em grande partebaseada em uma leitura instrumentalista da cate-goria anis burocrticos do poder de Cardoso(1970). Segundo essa leitura, os crculos de inte-ressados em determinadas polticas mobilizariamde forma intencional e relativamente transitria

    vnculos com parcelas das burocracias estatais deforma a obter determinados resultados em seuproveito. Proponho que o mecanismo seja consi-derado ao mesmo tempo mais duradouro e

    menos orientado a fins. Voltarei a esse ponto aofinal da segunda seo do artigo.O tecido do Estado produzido e transfor-

    mado pelas redes entre pessoas e organizaesque estruturam internamente as organizaes esta-tais e as inserem em seus ambientes mais amplos.No funcionamento concreto da poltica (e daspolticas), os contatos institucionais so canaliza-dos por contatos pessoais e institucionais que seapiam em padres de relaes preexistentes,assim como ajudam a recri-los. Essas estruturasde mdio alcance canalizam informaes, apoios,

    alianas e a formao de projetos, vises e per-cepes. Alm disso, esses padres de relaoinduzem vises de mundo (e da poltica), influen-ciam a formao de preferncias, constrangemescolhas, estratgias e alianas e alteram resulta-dos polticos. Em termos mais concretos, pode-mos dizer que o tecido do Estado composto poruma superposio de redes de relaes temticasque circunscrevem as comunidades ligadas a cadauma de suas aes. Essas redes incluem os diver-

    sos atores envolvidos com uma determinada pol-tica, como tcnicos do Estado, ou burocracias emum sentido mais geral, demandantes da poltica,contratantes da poltica e polticos e gestores que

    ocupam cargos eletivos e de livre indicao.Os resultados de duas pesquisas recentessobre polticas pblicas utilizando redes sociais(Marques, 2000, 2003) permitem sustentar vriosprocessos sobre o tecido do Estado brasileiro.

    Antes de discuti-los, entretanto, importante apre-sentar as duas pesquisas em linhas gerais.6 O dese-nho geral das duas investigaes foi similar, demaneira a permitir a comparao posterior dosresultados. O primeiro estudo analisou as polti-cas de saneamento bsico na regio metropolita-na do Rio de Janeiro, desenvolvidas por uma

    empresa pblica a concessionria estadual dosservios entre 1975 e 1996 (Cedae). Essa empresafoi constituda a partir da fuso de trs outrasempresas pblicas existentes no perodo anteriora 1975.7A segunda pesquisa analisou uma outrapoltica territorialmente localizada a de infra-estrutura urbana, desenvolvida por um rgo daadministrao direta do governo municipal de SoPaulo entre 1975 e 2000 (Secretaria de ViasPblicas SVP). Sob o ponto de vista do desenhoinstitucional, portanto, a primeira poltica foi

    desenvolvida por uma empresa pblica estadual etinha abrangncia metropolitana e a segunda foidesenvolvida por um rgo da administraodireta da prefeitura da capital e tinha abrangnciamunicipal. Essas caractersticas so importantes,pois as comparaes ensinam no apenas com assemelhanas entre os casos, mas tambm comsuas diferenas ante a variao das condies exis-tentes (Tilly, 1992a). Nesse sentido, como diversasdimenses e processos presentes nos governoslocais tambm influenciam polticas de outrosnveis de governo, a comparao permite discutir

    elementos mais gerais sobre o funcionamento doEstado no Brasil.

    Nas duas pesquisas foram realizados amploslevantamentos primrios sobre os investimentoscom fonte direta dos avisos de contratao publi-cados nos Dirios Oficiais, de forma a que sepudessem analisar as polticas no tempo e no espa-o. Posteriormente foram feitos levantamentosdocumentais e entrevistas para reproduzir asredes de relaes dos campos das duas polticas

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    pblicas. Esses levantamentos permitiram recons-truir analiticamente, usando as tcnicas de anlisede redes sociais, o conjunto de ligaes entre indi-

    vduos, entidades e empresas privadas, incluindo

    vrios tipos de vnculo.8

    Considerando o tipo derede analisada, as redes foram periodizadas porgovernos.9

    Em cada um dos estudos, foram cruzadasinmeras dinmicas das polticas com a investiga-o detalhada das redes, usando medidas e visua-lizaes. Os resultados que apresento a seguirretiram da comparao entre os dois casos liesmais gerais sobre o funcionamento do Estado emnvel local a partir dos padres encontrados nasduas redes e da importncia dessas para a expli-cao das polticas. Por conta do espao restrito

    deste artigo, as evidncias empricas utilizadas soapresentadas de maneira tpica, sendo o leitorremetido para os trabalhos originais para maioresdetalhes, inclusive relativos aos pressupostos e stcnicas utilizadas.

    Continuidade e ruptura no tecido do Estado

    De uma maneira geral, a presena das redesfornece um elemento de importante estabilidade

    nos campos ou nas comunidades de polticas,

    10

    ajudando a manter ao longo do tempo as capaci-dades administrativas e a memria tcnica. Na

    verdade, sob esse ponto de vista, a construo deredes densas em setores de poltica um dos ele-mentos constitutivos dos processos de produode burocracias capazes de implementar polticas,como nos sugeriu Schneider (1991).

    Embora esses processos estejam ligados estabilidade, no se pretende sustentar a pequenaimportncia dos processos polticos na construo dedinmica e transformao, mas exatamente o con-

    trrio. Como os processos de produo de polticasacontecem imersos nas redes que estruturam oEstado, h um grande potencial de influncia dasredes sobre as polticas, mas isso mediado porpelo menos dois outros elementos destacados naprimeira seo: as dinmicas polticas e os forma-tos institucionais que cercam as polticas sob estu-do. Discuto o primeiro elemento a seguir e deixoo segundo elemento para ser analisado ao finaldo artigo.

    As redes estruturam o interior do Estado, masa sua maior ou menor mobilizao ou influncia produto de decises de governo. isso que nosensina o caso de So Paulo, onde a rede da comu-

    nidade tinha grande proximidade com um deter-minado grupo poltico (de direita).11 Em governosde esquerda, optou-se por isolar a rede da polti-ca ao mximo, trazendo de fora do setor um con-junto significativo de tcnicos, que tentaram ope-rar a rede estabelecendo apenas alguns pontos decontato considerados estratgicos na comunida-de. Assim, embora as redes sejam fortemente iner-ciais e path dependent, as escolhas estratgicasdos atores podem buscar formas de contorn-las,se isso lhes parecer necessrio para alcanar seusobjetivos. Em suma, podemos afirmar que as redes

    representam estruturas sociais que introduzemestabilidades, embora essas no determinem osresultados da (na ou) poltica, razo pela qualdevemos articular analiticamente as dimensesressaltadas na primeira seo atores, instituiese redes.

    Construo institucional no tecido do Estado

    Um outro elemento a destacar diz respeito relao entre pessoas e organizaes. Como jafirmei, alguns autores optam explicitamente portrabalhar apenas com organizaes (Laumann eKnoke, 1987), mas considerando as dinmicassocial e poltica brasileiras, decidi por reconstruiras redes a partir de indivduos. Assim, nos doiscasos em discusso as unidades bsicas da aoreproduzidas como ns nas redes so pessoas. Separa uma parte da literatura nacional isso repre-senta a permanncia do atraso na vida polticabrasileira, parece-me mais proveitoso analitica-mente considerar essa dimenso constitutiva de

    nossa formao social e observar empiricamentesuas conseqncias. Quando o fazemos, somoslevados a crer que o que est em jogo no ne-cessariamente a irrelevncia das instituies. Narede do Rio de Janeiro, por exemplo, foi possvelobservar uma importncia cada vez maior dos vn-culos institucionais e de trabalho (Grfico 1). Issosugere que processos de construo institucionalno so necessariamente incompatveis com ambi-entes baseados fortemente em relaes pessoais.

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    Mais do que isso, o caso do Rio de Janeirosugere, na verdade, que a rede pode ser um impor-tante elemento dos processos de construo insti-tucional. Conforme j afirmado, a empresa encarre-gada da poltica neste caso foi constituda a partirda fuso de trs outras organizaes estatais pr-existentes. As entrevistas destacaram que o proces-so de fuso foi bastante difcil em termos polticos

    e de convivncia, mas ao longo do tempo se cons-tituiu uma nica organizao dotada de esprito decorpo, insulamento e cultura tcnica prpria. Osresultados da pesquisa indicaram que a rede cum-priu um papel significativo na estruturao da novaempresa. Na verdade, o processo paulatino de fuso

    das empresas implicou simultaneamente a fuso desuas redes respectivas (Tabela 1).

    Grfico 1Tipos de Vnculo ao Longo dos Governos Rio de Janeiro

    Fonte: Entrevistas com tcnicos da comunidade.

    Tabela 1Evoluo dos Vnculos Segundo Origem Rio de Janeiro

    GOVERNOS

    VNCULOS Antes de1975Chagas

    (1975/1982)Brizola I

    (1983/1986)Moreira

    (1987/1990)Brizola II(1991/1994)

    MarceloAlencar(1995/1998)

    Com membros da

    empresa original

    No 295 316 340 298 345 307

    % 82 68 62 57 55 52

    Com membros de outraNo 66 152 212 222 283 280

    % 18 32 38 43 45 48

    Total de Vnculos No 361 468 552 520 628 587

    Total de ns No 111 127 153 153 154 151

    Fonte: Entrevistas com membros da comunidade.

    Fonte: Entrevistas com tcnicos da comunidade.

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    Como se pode observar, ao longo do tempoa participao relativa dos vnculos com indiv-duos que trabalharam na empresa de origemtende a cair, e com ex-membros das outras empre-

    sas aumenta substantivamente. Mesmo assim, nofinal do perodo, a rede mantinha uma proporosignificativa de vnculos entre indivduos oriundosde suas empresas de origem, comprovando oaspecto fortemente dependente da trajetria dacomunidade e a relevncia dos vnculos na cons-tituio da nova organizao.

    As transformaes do tecido do Estado

    As redes de polticas esto em constante

    mudana, pelo lanamento e pela quebra de vncu-los, sendo as mudanas de governo momentos pro-pcios e concentrados para essa ocorrncia.Entretanto, h alguns processos sistemticos detransformao em curso nas redes. O mais impor-tante elemento temporal de longo prazo a destacardiz respeito dinmica geracional. Como seria de seesperar, a entrada e a sada de coortes na burocra-cia e na poltica impacta as redes, causando trans-formaes pela incluso e excluso de novosmembros e pela criao ou desmontagem de gru-

    pos de indivduos e entidades no seu interior. Osgrupos so conjuntos de indivduos e entidadescom intensos vnculos internos e similar padro derelacionamento com o restante da rede. Sob oponto de vista poltico, podem representar agre-gaes de vises comuns sobre a poltica, oumesmo unidades de ao coletiva. No interior dasredes, h sempre grupos mais ou menos centraisem termos de poder, no apenas pela localizaode quem ocupa cargos institucionais, mas tambmpela posio relativa dos grupos, que lhes garantemaior ou menor acesso ao conjunto (ou a partes

    especficas) do tecido relacional.Com o declnio das coortes mais velhas e o

    aparecimento de mais novas h uma tendnciademogrfica troca dos grupos mais importantes.No caso do Rio de Janeiro, isso significou umacerta perda de hegemonia na rede, com o declniodo grupo que controlava a poltica no incio doperodo estudado. Esse grupo teve um outro con-junto de indivduos como herdeiros, mas esses nomais representaram o grupo hegemnico na rede,

    mas apenas um dos dois grupos que polarizaram arede no restante do perodo. O outro grupo quepolarizou no tinha nenhuma relao com esses, enasceu em associao com a ocupao de cargos

    institucionais e vnculos com polticos.No caso de So Paulo, ilustrado pelo Grfico2, diferentemente, foi possvel observar uma tran-sio geracional suave de um primeiro grupo for-mador e hegemnico no seu incio para dois outrs outros grupos que surgem a partir daquele,mas se constituem como um conjunto articuladode sub-grupos do centro mais denso e hegemni-co da rede. Para a anlise do efeitos das geraes,os tcnicos foram classificados pelas geraes aque pertencem, considerando: gerao 1 gera-o mais antiga, com pessoas hoje na faixa dos 80

    anos, j aposentados, sem alguma participaoativa; gerao 2 funcionrios aposentados, nacasa dos 70 anos, com alguns ainda em atividade;gerao 3 pessoas em torno de 60 anos e em

    vias de aposentadoria; gerao 4 pessoas em ati-vidade, em torno dos 50 anos; gerao 5 pessoasmais jovens em atividade, na faixa dos 40 anos.Como podemos ver, no caso de So Paulo, foipossvel observar uma inflexo parcial na composi-o geracional em um dado perodo, para alm datendncia demogrfica j observada. Nesse momen-

    to, que corresponde ao governo Maluf no incio dosanos de 1990, muitos indivduos das primeiras gera-es da poltica retornaram os centros de decisoda poltica, o que indica que a dinmica geracio-nal nas polticas tambm est associada dinmi-ca poltica e s decises tomadas pelos ocupantesdos cargos institucionais.

    Sob esse ponto de vista, portanto, emboracertos indivduos possam representar os herdeirospolticos e profissionais de outros, a passagem dacentralidade na poltica implica na transmisso dediversos ativos, alguns deles relacionais e liga-

    dos s posies que ocupam nos padres de vncu-lo internos s organizaes e com o ambiente pol-tico mais amplo. No caso de So Paulo, essatransmisso ocorreu, mas no caso do Rio de Janeiro,no. Esse parece ser um importante elemento expli-cativo da estabilidade nas estruturas de poder emorganizaes e na poltica. Tal dimenso visvelem trabalhos etnogrficos de cunho relacionalsobre elites, mas que no utilizam as redesmetodologicamente, como Kuschnir (2000) e

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    Pedroso de Lima (2003), sobre a transfernciade herana poltico-eleitoral e empresarial, res-pectivamente.

    Com relao s transformaes nas redes, umoutro ponto merece destaque. Embora o assuntoenvolva alguma complexidade tcnica, tentareiapresent-lo da forma mais simples possvel, pois

    refora bastante o argumento da tendncia esta-bilidade. At recentemente, a literatura de redessociais indicava como principais elementos pro-motores de estabilidade a grande quantidade de

    vnculos e ns herdados de perodos anteriores,tornando o volume desses em um determinadoperodo bastante pequeno em termos relativos.Recentemente, os influentes trabalhos de Watts(1999) e de Watts e Strogast (1998) abriram umanova forma para interpretar a continuidade nasredes. Watts demonstrou que a introduo de alea-

    toriedade nos vnculos de uma rede regular (comouma trelia, em seu exemplo mais extremo) tendea reduzir a presena de agrupamentos densos, aomesmo tempo em que eleva a conectividade mdia(ou reduz a distncia mais curta entre os pontosmais extremos). O principal achado do autor, entre-tanto, est no fato de que, medida em que seintroduz aleatoriedade nos vnculos (e a rede ficamais longe da trelia), a conectividade tende a seelevar muito mais rapidamente do que a queda

    dos agrupamentos, sugerindo que para uma gran-de quantidade de redes (chamadas pelo autor desmall world), conectividades muito altas (ou dis-tncias mdias pequenas) tendem a coexistir compequenos graus de aleatoriedade. Essas caracters-ticas tendem a se manter no tempo de formapouco alterada.

    A principal conseqncia prtica dessa cons-tatao que as redes tendem a mudar pouco noapenas pela pequena presena de mudanas ocor-ridas em cada perodo, mas tambm porque helementos na sua estrutura que tendem a manteras caractersticas gerais, mesmo em momentos deintensa transformao de vnculos. Em contrapar-tida, um pequeno grau de aleatoriedade tende agerar aumentos muito grandes de conectividade.12

    A aplicao dos resultados de Watts s redesda engenharia urbana em So Paulo e comuni-

    dade do saneamento no Rio de Janeiro sugereque estamos diante de dois casos de small worldnetworks. Uma rede de tipo small worldquan-do a presena mdia de agrupamentos ainda bastante elevada (se comparada a uma rede intei-ramente aleatria de igual tamanho), mas a suaconectividade bastante grande, ou a distnciamdia entre os pontos mais extremos pelo cami-nho mais curto pequena (quando comparadacom igual rede terica). Portanto, se dividirmos

    Grfico 2 - So PauloGerao dos Indivduos na Rede por Governo

    Fonte: Entrevistas com tcnicos da comunidade.

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    indicadores dessas dimenses (agrupamento econectividade) da rede aleatria pelo de nossasredes empricas, encontraremos um valor prxi-mo de 0 para o primeiro (visto que os agrupa-

    mentos da rede emprica so muito mais intensosdo que na rede terica) e prximo de 1 para osegundo (visto que a distncia mdia mxima relativamente igual entre elas). No nosso caso,apenas para concretizar o argumento:

    a) A relao entre o ndice de agrupamento(cluster coefficient) da rede aleatria (teri-ca) e de nossas redes de: Cedae (primeirogov. Brizola) 0,11; Cedae (gov. Marcelo

    Alencar) 0,07; SVP (gov. Erundina) 0,04;e SVP (gov. Pitta) 0,05.

    b) A relao entre as distncias da rede aleat-ria (terica) e de nossas redes de: Cedae(primeiro gov. Brizola) 0,74; Cedae (gov.Marcelo Alencar) 0,92; SVP (gov.Erundina) 0,84; e SVP (gov. Pitta) 0,86.

    As principais conseqncias disso dizem res-peito s elevadas conectividades destas redes e ssuas resistncias mudana, principalmente emsuas estruturas gerais. Quanto ao estudo do Estado,esses dados sugerem que o tecido do Estado tende

    a gerar um padro intenso de conectividade e queessa parece ser bastante resistente a mudanas.Isso pode acrescentar novos argumentos na expli-cao da dificuldade encontrada por reformas emreas do Estado e em burocracias em diversas con-dies sociais, assim como explicar uma parte datendncia estabilidade das organizaes. Almdisso, mesmo que alteraes importantes sejamintroduzidas na rede de uma determinada comu-nidade de polticas, as mudanas tendero a terefeito principalmente local (em vez de estrutural).Tais mudanas podem ser suficientes para permi-

    tir a alterao radical dos contedos das polticasimplementadas, caso as mudanas sejam opera-das nos locais adequados, mas tendem a no sereproduzir no tempo, e a situao tende a voltar anterior quando os esforos externos cessarem.Como veremos, isso que aconteceu no caso deSo Paulo.

    A desconsiderao do tecido do Estado,como na maior parte da tradio dapolicy analy-sis, leva incompreenso dessa dimenso das

    polticas, sugerindo constrangimentos mais redu-zidos aos atores e uma menor inrcia mudananas organizaes e na poltica do que os empiri-camente observados.

    As fronteiras das comunidades de poltica

    Como vimos, embora as redes estejam sem-pre se transformando, isto acontece em um con-texto de elevada inrcia e tendncia estabilida-de. De forma similar, as redes apresentamcontornos mutveis no interior de comunidadesou campos, o que torna a delimitao de suasfronteiras uma outra dimenso extremamenteimportante. A rigor, se estamos tratando de con-

    juntos de vnculos de diversos tipos construdosao longo da vida dos indivduos, todo o mbitosocial constitui-se em uma nica rede com densi-dades e especializaes temticas nas suas distin-tas partes, o que tornaria impossvel implementarum estudo centrado em redes. Por essa razo,precisamos delimitar a regio da rede total quecorresponde sociedade inteira (ou parte dotecido do Estado) no interior da qual um deter-minado processo sob estudo ocorre. A soluopara essa questo est nas escolhas analticas do

    pesquisador que deve ser coerente com os pon-tos de partida tericos adotados. Isso funda-mental, pois a anlise de redes permite o desen-

    volvimento de estudos sem a delimitao prviadas fronteiras do campo e, em especial, sem aconsiderao de que as fronteiras institucionaisdo Estado coincidam com as fronteiras analticasdo campo relevante para a compreenso dasaes estatais.

    Os resultados das pesquisas indicam que nocaso das polticas pblicas existe uma vinculaoentre os limites da rede e o tipo de desenho ins-

    titucional presente no rgo pblico. No caso doRio de Janeiro, onde a poltica era desenvolvidapor uma empresa pblica com padro de carreiraespecfico, receitas prprias, esprito de corpodesenvolvido e elevado insulamento, a rede coin-cidia quase que completamente com os limites daprpria empresa. Mesmo as associaes societ-rias presentes no setor eram pautadas pela empre-sa estatal, tinham como seus principais membrosfuncionrios ligados empresa e repercutiam

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    questes e dinmicas oriundas do interior dorgo estatal. A fronteira nesse caso estava limita-da pelo prprio elemento institucional, ou porseu papel no funcionamento da poltica.

    A situao encontrada em So Paulo nopodia ser mais diversa. Neste caso, trata-se de umrgo da administrao direta sem carreira oureceita prprias e com baixo insulamento. As fron-teiras da rede no coincidiam com o prpriorgo, mas o transcendiam em muito. Na verdade,as informaes empricas sugeriram que a redecorrespondia ao campo mais amplo da engenha-ria urbana em So Paulo, englobando tcnicosque circulam por vrias secretarias afins. Almdisso, quando se observou a trajetria dos ocu-pantes dos cargos mais importantes, constatou-se

    a existncia de uma rede de gestores prximos aocampo da direita do espectro poltico, que cruza-

    va transversalmente governos em vrios rgosvinculados rea de engenharia urbana em geral.Esse elemento visvel na Tabela 2, que apresen-ta os ocupantes de cargos importantes comuns amais de um governo. Efeito praticamente idntico

    verifica-se com os ocupantes de administraesregionais.13

    Como podemos ver, os nicos governos queno apresentam um conjunto elevado de gestorescomuns so as administraes Erundina e Covas.

    A diferena fica ainda maior se eliminarmos osindivduos que permaneceram durante o primeiroano do governo seguinte. Eles tm uma presenaresidual em quase todos os governos, menos nas

    associaes do governo Erundina com Jnio caide dez para trs indivduos, com Maluf cai decinco para um, com Pitta cai de trs para zero ecom Covas cai de seis para cinco. A nica outra

    reduo ocorreu entre os governos Jnio e Covas,que passou de dez para nove indivduoscomuns.14

    Os campos de poltica no tecido do Estado

    Como vimos, devemos construir analitica-mente as fronteiras e delimitar as redes no interiordos campos, considerando o assunto em estudo.Observemos um pouco mais de perto os camposonde as redes se localizam, destacando sua con-

    formao, seu feitio e sua estrutura interna. Emtermos gerais, no interior do tecido do Estado(entendido amplamente) conformam-se camposde poltica especficos, associados a redes centra-das em determinadas temticas polticas. Taiscampos incluem conjuntos de atores que partici-pam de comunidades de polticas no interior dasquais se estabelecem conflitos, alianas e aosocial em termos gerais. A conformao dessescampos influencia as dinmicas, razo pela qual oestudo do tecido do Estado ajuda a compreendera poltica e as polticas a ela associadas.

    Sob esse ponto de vista, foram encontradasmais uma vez duas situaes distintas nas pesqui-sas realizadas no Rio de Janeiro e em So Paulo.No primeiro caso, os dados indicaram a existn-

    GOVERNOS Setbal % Reynaldo % Curiati % Covas % Jnio % Erundina % Maluf % Pitta %

    Setbal 10 4,6 8 3,6 1 0,5 1 0,5 1 0,5 1 0,5

    Reynaldo 10 4,6 17 7,7 6 2,7 3 1,4 1 0,5 1 0,5

    Curiati 8 3,6 17 7,7 6 2,7 3 1,4 1 0,5 1 0,5Covas 1 0,5 6 2,7 6 2,7 10 4,6 6 2,7 4 1,8 1 0,5

    Jnio 1 0,5 3 1,4 3 1,4 10 4,6 10 4,6 4 1,8 2 0,9

    Erundina 6 2,7 10 4,6 5 2,3 3 1,4

    Maluf 1 0,5 1 0,5 1 0,5 4 1,8 4 1,8 5 2,3 16 7,3

    Pitta 1 0,5 1 0,5 1 0,5 1 0,5 2 0,9 3 1,4 16 7,3

    Total 22 10,0 38 17,3 36 16,4 34 15,5 33 15,0 24 10,9 32 14,6 25 11,4

    Tabela 2Indivduos em Cargos Comuns na Engenharia Urbana So Paulo (*)

    (*) Foram considerados os principais cargos de SVP, Emurb e SSO.

    Fonte: Fundao Seade e Dirios Oficiais do Municpio de So Paulo.

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    cia de uma rede bastante polarizada, com gruposfortes e importantes controlando regies distintasda rede e disputando poder entre si, polarizandoa comunidade. Os dois grupos mais importantes

    incluam principalmente indivduos oriundos dasduas principais empresas do perodo anterior. Nomeio da rede localizavam-se grupos com peque-na importncia nas disputas pelo poder, mas tam-bm indivduos e grupos envolvidos com amediao poltica na comunidade.

    No caso de So Paulo, a rede da comunida-de apresentou polarizao interna muito baixa,tendo, na verdade, um nico centro, associado aum conjunto de gestores pblicos de um mesmogrupo, que se revezava no controle dos cargosinstitucionais mais importantes da poltica. Essa

    estruturao centrfuga da rede repetiu o padrodo funcionamento da prpria poltica e pde serobservada na complexidade da rede ao longo dosgovernos. A rede de So Paulo tambm era bemmais complexa do que a do Rio de Janeiro, comopode ser visto nos sociogramas a seguir relativosao primeiro governo Brizola 1982/1986 (Rio de

    Janeiro) e ao governo Reynaldo de Barros 1979/1981 (So Paulo).15 O padro geral mantm-se nos demais governos de cada cidade.

    Figura 1Rede da Comunidade no Governo Brizola

    (1982/1986) Rio de Janeiro

    Figura 2Rede da Comunidade nos Governos

    Setbal/Reynaldo/Curiati So Paulo

    O poder e o tecido do Estado

    Como j foi discutido anteriormente, os gru-pos lutam pela hegemonia da poltica (e das pol-ticas) no interior dos tecidos do Estado associadoss comunidades de polticas. Conseqentemente,

    ao longo dos governos os membros dos diversosgrupos ocupam cargos de forma diferenciada,segundo o desenrolar das disputas polticas inter-nas e de acordo com as relaes que conseguemestabelecer com os detentores do poder institu-cional. Uma primeira dimenso da relao entreas redes e o poder, portanto, diz respeito aos gru-pos de afinidade e apoio, que na rede se apresen-tam como conjuntos de indivduos com relaesintensas entre si e insero similar no conjunto darede.

    Grupos, cargos e poder na rede

    No caso analisado no Rio de Janeiro, onde apoltica apresentava maior alternncia poltica e a re-de maior polarizao, os cargos mais importantestenderam a oscilar entre os dois plos da rede acada grande mudana poltica que se verificavanos cargos-chave do executivo.16 Isso pode ser

    visto nas figuras a seguir, que representam a redenos governos Leonel Brizola (1982/1986) eFonte: Entrevistas com membros da comunidade.

    Fonte: Entrevistas com membros da comunidade.

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    Moreira Franco (1987/1990), com o destaque dosocupantes dos cargos mais importantes. As figurasso sociogramas com os vnculos ocultados (parapermitir a visualizao) e com os indivduos loca-

    lizados segundo uma tcnica estatstica que reduzo vis do pesquisador na apresentao da rede.17

    Figura 3Rede da Comunidade com Grupos e Diretorias

    Governo Brizola 1983/1986

    Governo Moreira Franco 1995/1998

    Na Figuras, os tcnicos sem cargo aparecemcomo pontos simples e os ocupantes de cargossegundo os smbolos indicados na legenda. Comopodemos observar, entre os dois governos, as

    posies da diretoria e dos cargos de destaqueoscilam de um lado do campo ao outro. O mesmopadro se repete com os demais governos, e todaa vez que ocorre uma mudana no grupo polticoque ocupa o governo, a diretoria da empresalocaliza-se no lado oposto do governo anterior.

    No caso de So Paulo, ao contrrio, a locali-zao das diretorias na rede praticamente no sealterou ao longo do tempo, e o controle dos gru-pos hegemnicos sobre os cargos mais importan-tes foi muito significativo, exceto em governos deesquerda, como podemos ver na Tabela 3.18

    De acordo com a tabela, os mesmos gruposocupam os cargos mais importantes na maiorparte dos governos, controlando a poltica. Asexcees so os dois governos poltica e ideolo-gicamente adversrios do campo que exercehegemonia sobre a poltica local (e a rede) noperodo Covas e Erundina. Esse resultado refor-a a interpretao anterior da Tabela 2 e sugereque esses dois governos escolheram no apoiar aimplementao de suas polticas na rede do setor,importando pedaos inteiros da rede de fora e osconectando apenas topicamente em locais espec-ficos da comunidade, principalmente no grupodos tcnicos. Se o argumento a respeito dassmallworld networksapresentado anteriormente estivercorreto, o efeito dessa estratgia sobre a redetende a ser apenas local. Isto quer dizer que aestratgia ajuda a implementar polticas diferentesdo que a que seria defendida por partes impor-tantes da comunidade de polticas, neutralizandoa burocracia localizada em posies mais centrais

    PREFEITOS

    GRUPOS Setbal Reynaldo Curiati Covas Jnio Erundina Maluf Pitta

    HEGEMNICOS (3) No 6 8 7 6 9 6 13 17

    % 50,0 67,0 64,0 43,0 56,0 27,0 76,0 81,0

    DE TCNICOS (1) No 0 0 0 4 3 11 2 3

    % 0,0 0,0 0,0 29,0 19,0 50,0 12,0 14,0

    Tabela 3Participao dos Grupos em Cargos Importantes do Setor So Paulo(*)

    (*) Foram considerados os cargos de secretrio, chefe de gabinete, superintendente, diretor e presidente, quando seaplicava nos seguintes rgos: SVP, SSO, Emurb, Cohab.Fonte: Fundao Seade, Dirios Oficiais do Municpio de So Paulo e entrevistas.

    Fonte: Entrevistas com membros da comunidade.

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    no tecido do Estado, mas tende a ter influnciapequena sobre a transformao da comunidadeem si, gerando poucos impactos ao longo dotempo quando os esforos externos cessam.

    Como as redes estruturam o relacionamentoentre agentes no tecido do Estado, a gesto dasorganizaes estatais inclui uma constante nego-ciao entre quem de dentro (e controla conhe-cimento, contatos e posies na rede) e quem vemde fora. As diferenas na estruturao do campodas polticas associam-se com a maneira pela qualas redes se integram nos ambientes polticos maisamplos. H trs atores polticos que potencialmen-te influenciam as polticas de fora do Estado:demandantes das polticas, empresas privadas epolticos (detentores de poder institucional e de

    comando formal sobre as organizaes). Merecedestaque especialmente a relao entre os terceirose as redes.19

    Os detentores do poder institucional preci-sam de pontos de apoio no interior da comunida-de para implementar polticas segundo os seusprojetos. No caso do Rio de Janeiro, que como

    vimos apresentava uma rede bastante insulada ecom elevada polarizao interna, foi possvelobservar uma associao tambm polarizada eoscilante entre os grupos polticos que controla-

    vam o poder executivo e a rede da comunidade.No primeiro momento de contato entre um deter-minado grupo poltico e a poltica pblica consi-derada, seus membros estabeleceram contatos comgrupos no interior da rede no controlados previa-mente por seus adversrios. Quando esse mesmogrupo voltou ao poder, acionou novamente os mes-mos contatos e grupos na rede, resultando na vin-culao de cada grupo poltico a uma parte da rede.Como tanto a rede quanto a poltica local se mos-traram polarizadas, a associao entre grupos polti-cos e grupos na rede se deu de forma pendular de

    um governo para outro, s vezes se instalando emum lado da rede e no governo seguinte, do lado

    oposto. Foi essa a dinmica observada nos socio-gramas dos governos Leonel Brizola e Moreira Fran-co apresentados na seo anterior.

    No caso de So Paulo, diferentemente, os gru-

    pos que exerceram hegemonia sobre a poltica aolongo do perodo pesquisado apresentavam colora-es poltico-ideolgicas ntidas, assim como rela-es polticas de longo curso com o grupo polticoque exerceu hegemonia sobre a poltica municipalna maior parte do perodo. Essas duas dimensesprovavelmente foram reforadas com o controlesucessivo da administrao pelo mesmo grupo pol-tico e com a operao da poltica pblica sendocontinuada por um determinado grupo da rede.

    Nesse caso, portanto, a ligao entre osdetentores dos cargos institucionais mais impor-

    tantes no executivo e indivduos e grupos na redeteve carter mais permanente e estvel, ocupandotodo o centro da rede. Nos dois momentos emque grupos polticos que se opunham ao hege-mnico venceram as eleies majoritrias e pas-saram a controlar o executivo municipal, optou-sepor trazer de fora da comunidade conjuntos intei-ros de tcnicos, conectados rede de maneiraefmera e tpica, usando uma das nicas regiesno associada de forma direta rede de gestoresde direita a que me referi anteriormente. Essadimenso confirmada se compararmos as medi-das de centralidade dos secretrios por governo(Tabela 4). As centralidades mdias de alcanceso estatsticas simples das redes, sendo quequanto maior a medida, mais elevada a centrali-dade e maior a regio da rede alcanada pelos

    vnculos de um determinado indivduo.Portanto, se redes do tiposmall worldapre-

    sentam elevada estabilidade em suas caractersti-cas estruturais gerais, a relao entre o tecido doEstado e a dinmica do poder pode variar bas-tante com mudanas relativamente pequenas,

    possibilitando mudanas de vulto nas polticas.Este efeito extremamente importante, mas tende

    GOVERNOSReynaldo Covas Jnio Erundina Maluf Pitta

    Do secretrio 87 78 114 69 94 97Do chefe de gabinete 80 80 112 67 94 99

    Tabela 4Centralidade de Alcance de Indivduos Escolhidos So Paulo

    Fonte: Entrevistas com membros da comunidade.

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    a ser local e no se reproduzir no tempo. No casopaulistano, o efeito local esteve associado ocu-pao de posies centrais na rede pelos deten-tores dos cargos mais importantes em governos

    de direita e de posies fortemente perifricas emgovernos de esquerda. Isso pode ser observadona comparao dos sociogramas dos governosErundina (PT) e Maluf (PDS/PPB) a seguir, emque a diretoria do governo Erundina se associoua um tramo perifrico da rede, ao contrrio dogoverno Maluf. Os demais governos seguem omesmo padro ao longo do perodo. Como a rede

    de So Paulo muito complexa, ocultei os vncu-los fracos nesses sociogramas.20

    As duas situaes do Rio de Janeiro e deSo Paulo podem ser retratadas por diferentes

    configuraes de uma mesma lgica, que denomi-nei troca de poderes (Marques, 2000). A gesto doEstado importa no controle de pelo menos doisgrandes tipos de poder distintos.21 O primeiroadvm da ocupao dos cargos institucionais, estbaseado na lei e nos ordenamentos administrati-

    vos e diz respeito capacidade de dar ordens ecomandos sobre a mquina pblica. Esse tipo fun-damental para o exerccio do poder, mas no sufi-ciente, pois uma parcela significativa da capacidadede operacionalizao das polticas est nas mos dasagncias estatais, das burocracias e dos tcnicos do

    Estado, no apenas na implementao, mas tam-bm na formulao de polticas. Isso nos leva auma outra forma de poder vinculada ocupaode determinadas posies nas redes do campo depolticas. Denominei esse tipo poder posicional,sustentando que ele se encontra inscrito nas redessociais que compem os campos de poltica. Sobo ponto de vista poltico,22 os chefes do executivotrocam cargos institucionais (poder institucional)por posies com os membros das burocracias(poder posicional), o que significa para esses lti-

    mos a obteno de salrios mais elevados, maiorstatus etc. Os tcnicos do Estado, por sua vez,emprestam suas posies e padres de vnculo,possibilitando a implementao das polticas pelamobilizao de regies inteiras da rede no sentidode implementar aes do Estado presentes noprograma dos detentores de cargos institucionaismais expressivos. Mais adiante discuto a relaodesse programa (e dos polticos eleitos) com arede.

    Afirmo que a dinmica em curso nos doiscasos a mesma, pois tanto no Rio de Janeiro

    como em So Paulo os detentores dos cargos ele-tivos dialogaram com grupos nas comunidadesespecficas para a obteno e a conquista de pon-tos de apoio nas redes. Os diferentes resultadosdesse processo nas duas cidades dizem respeitos diferenas nas configuraes das redes, nosambientes institucionais e nas estruturas de poderlocal. Essas diferenas levaram a que, em um caso,a rede fosse polarizada e a relao com o poderinstitucional fosse pendular (Rio de Janeiro), no

    Fonte: Entrevistas com membros da comunidade.

    Fonte: Entrevistas com membros da comunidade.

    Figura 4Sociogramas por Governo com os Vnculos

    Fracos Ocultados So Paulo

    (Regies destacadas so ocupadaspor cargos importantes)

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    outro, a rede estivesse muito associada a umdeterminado grupo poltico e os outros grupostivessem que operar quase que por fora da rede(So Paulo).

    Portanto, a realizao de polticas pressupeo controle, ou ao menos a forte considerao dotecido do Estado por parte dos atores. Esse ponto fundamental e foi negligenciado pela maior parteda tradio da policy analisys, assim como pelasprincipais teorias do Estado discutidas na primeiraseo.

    As redes na interface entre o pblico e o privado

    Se as redes nos explicam muito sobre a con-

    formao do tecido do Estado, tambm ocupamum importante papel na ligao entre ele e gruposexternos, vinculados tanto a interesses organizadoscomo a atores individuais isolados. Em outras pala-

    vras, as redes explicam uma parte significativa dasrelaes entre pblico e privado no Brasil, na con-formao do que denominei permeabilidade(Marques, 2000). Esse aspecto j foi tematizado poruma ampla literatura, que inclui inmeros autores,entre os quais Cardoso (1975) continua sendo umadas mais importantes referncias com suas idias

    de crculos de interessados e de anis burocrti-cos do poder. No cabe aqui discutir detalhada-mente as categorias, mas acredito que uma descri-o geral da idia de permeabilidade do Estadoseja esclarecedora.23Ao contrrio dos conceitos deprivatizao do Estado e de anis burocrticos, apermeabilidade do Estado aponta para uma carac-terstica potencial, perene no tempo e presente emtodos os campos de ao do Estado. Na verdade, apermeabilidade apenas a especificao do efeitodas redes presentes em todas as dimenses sociaispara os locais onde ocorre o encontro (ou a super-

    posio) do Estado com o privado. O seu funcio-namento potencial apia-se predominantementeem vnculos no intencionais, construdos ao longodas trajetrias dos indivduos e das organizaes emarcado por intensa dependncia da trajetria,embora seja possvel delimitar regies especficasdas redes produzidas de forma intencional e orien-tada a lesar o Estado.

    Sob o ponto de vista da permeabilidade,novamente os casos do Rio de Janeiro e de So

    Paulo diferem significativamente, mas quando le-vamos em conta as diferenas institucionais, rela-cionais e da configurao dos atores, possvelcompor um quadro mais amplo que nos esclarece

    sobre os mecanismos de influncia na relao entrepblico e privado veiculados pelas redes. Assimcomo as demais dimenses discutidas at omomento, os resultados guardam algo da especifi-cidade dos casos que nos estudos apresentadosdizem respeito ao funcionamento do mercado localde obras pblicas.

    A grande maioria das obras realizadas naimplantao das polticas de infra-estrutura urba-na contratada com empresas privadas, sendo quea escolha das empresas vencedoras realizadasegundo os procedimentos das licitaes pblicas.

    Assim, uma forma bastante interessante de anali-sarmos a permeabilidade nesse tipo de poltica investigando se o padro de vitria de empreitei-ras tem relao com as posies ocupadas porelas nas redes polticas, ou com outras variveisno relacionais. Para isso, nos dois casos estuda-dos levantei todos os contratos assinados comempreiteiras para a realizao de obras e serviosde engenharia, cerca de 800 no Rio de Janeiro epouco mais de 5.500 em So Paulo. Em seguida,localizei a posio das empresas mais importantes

    nas redes de relaes das duas comunidades emcada governo a partir de informaes obtidas ementrevistas, calculando para elas uma srie demedidas de centralidade na rede. As medidas decentralidade, os volumes de vitrias (sempre em

    volume de recursos) e outras variveis no rela-cionais foram submetidos a anlise quantitativa deforma a testar a influncia e as caractersticas dapermeabilidade.24

    No caso do Rio de Janeiro, a anlise estats-tica dos resultados indicou que a distncia narede entre uma determinada empresa e os deten-

    tores dos cargos institucionais no influenciava nopadro de vitria. De forma similar, o capital dasempresas no apresentou associao estatsticarelevante com os padres de vitria. Nesse caso,portanto, nem o porte da empresa, nem sua rela-o com polticos importavam. A exceo obser-

    vada disse respeito a um conjunto muito peque-no de contratos de valor muito elevado assinadocom empresas de grande capital societrio. Paraesse conjunto de outliers, a proximidade das em-

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    presas com os ocupantes dos cargos institucionaismais importantes influenciava o padro de vitria.Para o conjunto dos contratos e das empresas, entre-tanto, o que mais influenciava esse padro era a ocu-

    pao de certo tipo de posio de especial acesso ainformaes no interior da rede construda aolongo dos anos. Essas empresas so pertencentestpicas do setor, apresentam porte mdio e tende-ram a vencer mais nos momentos em que as suasposies na comunidade lhes forneciam volumesignificativo de informaes sobre os processosem curso. Esse padro percorreu todo o perodoestudado, confirmando que a permeabilidade mais difusa, no intencional e resiliente do que acategoria anis burocrticos nos leva a crer.

    No caso de So Paulo, por sua vez, encon-

    trei um padro diferente para governos de direitae de esquerda, sendo, portanto, o posicionamen-to poltico-ideolgico do prefeito uma varivelinterveniente importante. Nos governos de direi-ta, as vitrias das empreiteiras mostraram-se influ-enciadas tanto por elementos relacionais comoligados ao tamanho de cada empresa. Em primei-ro lugar, a proximidade na rede com o ncleo dopoder institucional prefeito e secretrio influen-ciava positivamente o volume de vitrias. Almdisso, quando empresas ocupavam posies que

    lhes forneciam muitos vnculos primrios e secun-drios25 tendiam a ter um volume de vitria maiselevado. O mesmo resultado no se repetiu quan-do apenas os vnculos primrios foram submetidos anlise, sugerindo que o importante para asempresas nesse caso se relacionar com muitosindivduos ou empresas, mas tambm com nsimportantes e bem relacionados. Por fim, em gover-nos de direita o capital social tendia a influenciarpositivamente as vitrias, premiando as maioresempresas com ganhos mais elevados.

    Em administraes de esquerda nenhuma

    varivel associada rede se mostrou significativa.Entre os elementos estudados, apenas o capitaldas empresas influenciava positivamente o volu-me de vitrias, embora de uma forma menosintensa do que em governos de direita. Ou seja,o retorno em vitrias por unidade de capital mos-trou-se bem mais elevado em governos de direitado que em administraes de esquerda.

    Como vimos anteriormente, a rede paulista-na apresentava grande proximidade com o campo

    da direita em nvel local, e os administradores deesquerda tentaram neutralizar a rede no funcio-namento da poltica, trazendo de fora da comuni-dade quase todos os ocupantes de cargos importan-

    tes e conectando-os de forma pontual e perifrica narede. Assim, a ausncia de influncia das posies narede sobre as vitrias em licitaes em governos deesquerda est nos informando, na verdade, dosucesso da estratgia desses governos de neutrali-zar os gestores de direita que exerciam a hege-monia na comunidade e eram fortemente conec-tados ao mundo das empresas. Como j frisei, asredes influenciam os resultados, mas as escolhas eas estratgias dos atores tambm importam.

    Uma maneira de visualizarmos graficamenteesse resultado quantitativo observando os socio-

    gramas a seguir. A Figura 5 apresenta os sociogra-mas dos governos Setbal e Erundina com os vn-culos ocultados e empresas privadas e diretorias

    Fonte: Entrevistas com membros da comunidade.

    Figura 5Diretorias e Empresas So Paulo

    Setbal/Reynaldo/Curiati

    Erundina

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    indicadas. Os tcnicos correspondem aos pontosmais claros, as empresas aos pontos pretos e osocupantes de cargos importantes em cada gestoso apresentados como estrelas. Como podemos

    ver, em governos de direita as diretorias encon-tram-se nas regies ocupadas preferencialmentepelas empresas privadas, ao passo que em gover-nos de esquerda os ocupantes de cargos impor-tantes se encontram fora dessa regio da rede e,portanto, longe das empresas na comunidade. Osdemais governos seguem o mesmo padro.

    guisa de concluso: o tecido do Estado, pro-jetos e instituies

    Vimos ao longo deste artigo as principaiscaractersticas do tecido do Estado e de que manei-ra a sua considerao altera nossa compreensodas polticas estatais. De uma forma geral, a anli-se de redes conduz para alm da simples conside-rao de que o Estado composto por atores,permitindo inseri-los em seus contextos relacio-nais especficos. Ao faz-lo, as redes influenciamestratgias, conflitos e alianas e tornam certosresultados mais provveis do que outros, de formaanloga ao j amplamente destacado pela literatu-

    ra com relao s instituies. Nesse sentido, aconsiderao do tecido do Estado permite com-preender de forma mais complexa a interdepen-dncia e o contexto na poltica, incorporar a infor-malidade que marca diversas dimenses dasdinmicas do poder e analisar mais precisamenteelementos de estabilidade e inrcia que cercam aspolticas (e a poltica).

    Como vimos, o tecido do Estado tem efeitosdiferenciados nas dinmicas polticas dependen-do da forma pelas quais os padres de relaesse relacionam com os desenhos institucionais e as

    diferentes configuraes de atores presentes emcada caso. A associao entre esses trs elemen-tos produz importantes impactos sobre a poltica.Sumarizo a seguir os principais elementos trata-dos, dialogando com a literatura apresentada naprimeira seo.

    As evidncias apresentadas sugerem que asredes estruturam o Estado internamente de ma-neira fortemente dependente da trajetria, aocontrrio da viso do pluralismo sobre a poltica.

    Essa estrutura, assim como a extenso da suainfluncia so impactados em grande parte pelosatores presentes. Assim, apesar dessa tendncia estabilidade, as redes so continuamente recons-

    trudas por atores organizacionais e individuais. Aimportncia desses ltimos parece-me fundamen-tal, seja pela relevncia das relaes pessoais entrens, seja pelo fato de o tecido do Estado no serconstrudo de forma intencional e momentnea,mas se associa s trajetrias de longo curso dosindivduos, o que tem escapado tradio daspolicy networks. Por outro lado, ao contrrio doque se costuma afirmar, as relaes pessoaispodem ser um importante elemento no processode construo institucional, visto que tendem acriar coeso ao tecer internamente o campo das

    polticas. Essa coeso no homognea e leva constituio de grupos que disputam o controlesobre as polticas de forma mais ou menos pola-rizada, dependendo da configurao do tecido doEstado. Nesse sentido, trata-se de uma das dimen-ses que transforma a configurao de atores emuma estrutura de poder, no restrita aqui aocampo socioeconmico tematizado pela teoriadas elites.

    Os grupos assim constitudos associam-secom os detentores do poder institucional de

    maneira negociada, fornecendo-lhes o poder posi-cional imprescindvel para a gesto do Estado epara a implementao de polticas em troca depoder oriundo da investidura dos cargos. Acreditoque esse seja um dos elementos-chave das polti-cas no tematizado pela tradio dapolicy analy-sis, embora tenha sido apenas enunciado poralguns autores, como vimos. A forma que essanegociao toma em cada caso particular dependeda estrutura de poder e dos formatos institucionaispresentes, sugerindo que uma mesma estruturarelacional pode ter resultados muito diferentes

    quando associada a conjuntos de atores e dese-nhos institucionais distintos. Apenas a realizaode diversos estudos comparativos permitir com-preender completamente essa associao.

    Por outro lado, o tecido do Estado tambmestrutura a relao entre os campos do pblico edo privado, respondendo por uma parte impor-tante da sua permeabilidade. Essa parece sermuito mais complexa, resiliente e produto doacaso do que vises instrumentalistas anteriores

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    permitiam sustentar. Neste aspecto, embora otecido do Estado no defina resultados, os cons-trange e os condiciona fortemente. Como vimos,as escolhas polticas importam, e as estratgias dos

    ocupantes dos principais cargos institucionaisinfluenciam a maneira pela qual a permeabilidadeocorre, mantidas as demais condies institucio-nais e polticas.

    Dois outros elementos que de algumamaneira perpassam todos os achados de pesquisaapresentados ao longo deste artigo devem seracrescentados nessa concluso. Refiro-me primei-ramente relao entre o tecido do Estado e aimplantao dos projetos polticos, isto , os con-tedos concretos das polticas pblicas. Se ver-dade que em regimes democrticos preferncias

    de poltica e/ou projetos so produzidos no (epelo) processo eleitoral, tambm fato que aspolticas do Estado devem ser implementadas nodia-a-dia do funcionamento das organizaes esta-tais e na sua relao com a sociedade. A implan-tao das polticas sofre a influncia das redes (etambm das instituies, como destacado pela lite-ratura), seja pela necessidade de implant-las con-cretamente (o que envolve a negociao de poderposicional j descrita), seja pela existncia de pro-jetos e preferncias de polticas de setores da

    burocracia. Isso tende a acontecer de forma maisou menos intensa dependendo da configuraodos atores, da conformao do tecido do Estadoe do formato institucional das agncias estatais.Os primeiros dois elementos j foram discutidosfartamente ao longo do texto, mas o terceiromerece ainda um ltimo destaque.

    A questo diz respeito relao entre o teci-do do Estado e a dimenso institucional. Esse ele-mento fundamental e, a meu ver, representauma das fronteiras do conhecimento na rea. Asua completa compreenso necessita da realiza-

    o de muitas pesquisas, mas podemos adiantaraqui a relao sugerida pela comparao entre osdois casos estudados. Aparentemente, as redes ten-dem a apresentar maior importncia e a influenciarmais intensamente as polticas quando as organi-zaes estatais envolvidas so mais insuladas e acomunidade de polticas, mais forte. No caso doRio de Janeiro, onde a poltica era implementadapor uma empresa estatal com carreira profissionale receitas prprias, a relao entre os detentores

    do poder institucional e os grupos no interior darede tendeu a ser de maior negociao. No casode So Paulo, onde as polticas eram implemen-tadas por um rgo da administrao direta, sem

    insulamento ou esprito de corpo e com intensopadro de migrao para fora e para dentro dacomunidade, o desenho organizacional enfraque-ceu a rede, e os projetos tenderam a ser emana-dos muito mais fortemente de fora da comunida-de de polticas. Assim, podemos especular que aestratgia dos governos de esquerda de isolar osgrupos hegemnicos da rede paulistana no teriasido bem-sucedida se o formato institucional dessemaior fora comunidade. Em organizaes maisinsuladas os projetos a serem implantados tendema dialogar mais com os defendidos pelos grupos da

    comunidade no interior da rede, e em rgos maisabertos as polticas implantadas tendem a expres-sar mais fortemente os projetos vindos de fora.

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