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Marta do Nascimento Silva A Favela como expressão de conflitos no espaço urbano do Rio de Janeiro: o exemplo da Zona Sul carioca Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós- Graduação em Geografia do Departamento de Geografia do Centro de Ciências Sociais da PUC-Rio. Orientador: Prof. Dr. Alvaro Ferreira Rio de Janeiro Março de 2010

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Marta do Nascimento Silva

A Favela como expressão de conflitos no

espaço urbano do Rio de Janeiro:

o exemplo da Zona Sul carioca

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Geografia do Departamento de Geografia do Centro de Ciências Sociais da PUC-Rio.

Orientador: Prof. Dr. Alvaro Ferreira

Rio de Janeiro Março de 2010

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Marta do Nascimento Silva

A Favela como expressão de conflitos no

espaço urbano do Rio de Janeiro:

o exemplo da Zona Sul carioca

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Geografia do Departamento de Geografia do Centro de Ciências Sociais da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.

Prof. Alvaro Ferreira

Orientador Departamento de Geografia – PUC-Rio

Prof . João Rua Departamento de Geografia – PUC-Rio

Prof.ª Luciana Correa do Lago Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional - IPPUR

Prof.ª Mônica Herz Coordenadora Setorial do Centro de Ciências Sociais – PUC Rio

Rio de Janeiro, 31 de março de 2010

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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou

parcial sem autorização da universidade, da autora e do orientador.

Marta do Nascimento Silva

Graduou-se bacharel e licenciada em geografia pela UERJ

(Universidade do Estado do Rio de Janeiro) em 2007.

Ficha Catalográfica

CDD910

Silva, Marta do Nascimento A favela como expressão de conflitos no espaço urbano do Rio de Janeiro: o exemplo da zonal sul carioca / Marta do Nascimento Silva; orientador: Alvaro Ferreira. – Rio de Janeiro: PUC Departamento de Geografia, 2010. 157 f. : il.(color.) ; 30 cm 1. Dissertação (Mestrado em Geografia)–Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Geografia. Inclui referências bibliográficas 1. Geografia – Teses. 2. Reprodução do espaço urbano. 3.

Favela. 4. Luta de classes. 5. O direito à cidade. I. Ferreira,

Alvaro. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Geografia. III. Título.

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Agradecimentos Este trabalho foi fruto de grande esforço profissional e pessoal, devido a

dificuldade constante de trabalhar e estudar ao mesmo tempo, fato comum durante toda a

minha vida acadêmica. Por isso, hoje tenho a certeza de que sozinha tudo isto não seria

possível, que sem a compreensão e o apoio de familiares, amigos e professores nunca

teria concluído mais esta etapa.

Agradeço muitíssimo ao professor Alvaro Ferreira, meu orientador, que com

muita paciência, amizade e boa vontade, muito contribuiu para minha formação

acadêmica, me apresentando um “mundo” ao qual eu tinha pouco contato e com o qual

acabei me identificando muito: a dialética. Com todas as dificuldades e toda a sua

paciência, me ajudou a evoluir bastante, mesmo que ainda tenha um longo caminho pela

frente.

Ao professor João Rua, que me acompanha de longa data e sendo um dos

profissionais que mais admiro na carreira acadêmica, por estar sempre disponível e por

aceitar tão gentilmente o convite de compor a banca examinadora.

A professora Luciana Correa do Lago, pelas contribuições durante a qualificação

que muito ajudaram na organização do trabalho, pela atenção dada a pesquisa e o carinho

com o qual aceitou compor a banca.

A todos os professores do Mestrado em Geografia da PUC-Rio, Rogério, Felipe,

Ivaldo, Regina, Denise, enfim, que enriqueceram tanto esta caminhada. Aos funcionários

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do departamento de Geografia, em especial à Márcia e Edna, pela dedicação e o carinho

aos alunos.

À PUC-Rio, pela oportunidade de realização deste projeto a partir de uma bolsa

de estudos integral.

Muitos familiares e amigos participaram muito de perto da elaboração da pesquisa

e não existem palavras para descrever o quanto foram importantes. Aos meus pais, que

sempre me passaram a importância dos estudos e hoje tenho a consciência do quanto isso

mudou nossas vidas. Em especial a minha mãe, que sempre deu todo o apoio e me ajudou

muito, me “liberando” de muitos afazeres...

Meu marido Marcelo, que viveu essa fase “louca” comigo, participando desde o

início de tudo, opinando e ajudando a dar o rumo a pesquisa e inclusive participando dos

trabalhos de campo. Foram muitos finais de semana perdidos com leituras e campos, e

apesar de tudo você sempre esteve ao meu lado. Existe uma razão para você estar ao meu

lado, e agradeço a Deus todos os dias por isso.

Minha irmã Fernanda, que apesar de suas ocupações, sempre esteve presente,

ajudando, participando e torcendo.

A minha sogra Luciene, que foi mais que uma amiga neste momento, foi uma

mãe. Agradeço pelo empenho, pela ajuda e pela companhia nos árduos dias de PUC.

A amiga Andrea, pessoa especial que descobri após algum tempo de contato, e

hoje vejo que sua amizade foi fundamental nesta jornada, muito tempo de estudo, muitas

conversas e longas horas de viagem, mas que com você foram mais divertidas e felizes.

Hoje vejo que a distância, o cansaço, as inúmeras leituras, tinham uma razão de

ser: o meu amadurecimento profissional e pessoal, e o tão sonhado título. Apesar de tudo,

valeu a pena passar por tudo isso, por que vocês estavam ao meu lado. Obrigada.

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Resumo

Silva, Marta do Nascimento; Ferreira, Alvaro. A favela como expressão de

conflitos no espaço urbano do Rio de Janeiro: o exemplo da Zona Sul

Carioca. Rio de janeiro, 2010, 157p. Dissertação de Mestrado – Departamento de

Geografia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Este estudo é decorrente de uma inquietação a respeito de um tema bastante atual:

A favela. A existência de uma crise urbana e habitacional na atualidade traz à tona a

discussão sobre as favelas nas grandes metrópoles brasileiras, como uma das questões

mais importantes a serem discutidas no espaço urbano. Cada vez mais as favelas estão

evidenciadas na paisagem urbana, tornando-se necessário o entendimento da dinâmica

das áreas faveladas e também da sua relação com a metrópole. Temos aqui o objetivo de

mostrar a favela como a expressão de alguns conflitos no espaço urbano atual, utilizando

como exemplo a Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro, buscando apontar as principais

contradições que envolvem a presença das áreas faveladas em bairros voltados para

grupos sociais de alta renda na cidade. Buscamos, portanto, observar os elementos que

expressam estes conflitos e entender até que ponto esta população favelada participa do

cotidiano dos bairros em estudo, uma discussão que envolve, portanto, a questão do

direito à cidade. Entendemos que estes conflitos são também simbólicos e perpassam a

questão do estigma que envolve a favela e o favelado no Rio de Janeiro, por isso,

buscamos também exemplificar o quanto estes conflitos e contradições contribuem para

acirrar este estigma e a distância entre a favela e o bairro.

Palavras-chave Reprodução do espaço urbano; favela; cotidiano; luta de classes; o direito à cidade.

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Abstract

Silva, Marta do Nascimento; Ferreira, Alvaro.. The slum as an expression of

conflict in urban areas of Rio de Janeiro: the example of South Zone Carioca.

Rio de Janeiro, 2010, 157 p. MSc. Dissertation - Departamento de Geografia,

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

This study is due to a concern about a very current topic: the slum. The existence

of an urban and housing crisis in the news brings up the discussion on the slums in major

Brazilian cities, as one of the most important issues to be discussed in the urban space.

More and more are discussed in the slums in the urban landscape, making it necessary to

understand the dynamics of slum areas and also its relationship with the metropolis. Here

we have the objective of showing the slum as the expression of some conflicts in urban

areas, utilizing the example of the South Zone of Rio de Janeiro, pointing the main

contradictions involving the presence of the shantytowns in neighborhoods facing social

groups high income in the city. We seek, therefore, to observe the elements that express

these conflicts and to understand the extent to which this part of the slum population of

the districts daily in the study, a discussion that involves, therefore, the issue of right to

the city. We believe that these conflicts are also symbolic and run through the issue of

stigma surrounding the slum and the slum in Rio de Janeiro, so, we seek also illustrate

how these conflicts and contradictions contribute to exacerbate the stigma and the

distance between the slum and the neighborhood.

Keywords

Reproduction of the urban; slum; everyday; class struggle; the right to the city.

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Sumário 1. Introdução 10

2. A produção e reprodução do espaço urbano 24

2.1 O papel do espaço: o espaço como fonte de poder social 28

2.2 Sobre a importância da forma 38

2.3 O Processo de produção e reprodução no espaço urbano 40

2.4 Apropriação e dominação no urbano: conflitos e contradições 43

2.5 A dimensão do cotidiano como categoria de análise 53

2.6 O direito à cidade 57

3. As favelas no Rio de Janeiro: origem e situação atual 60

3.1 O surgimento das favelas na paisagem carioca 61

3.2 A expansão das favelas: Subúrbio e Zona Sul 64

3.3 A Chegada do migrante 69

3.4 A favela ganha destaque no cenário carioca: A atuação do poder

público 72

4. Zona Sul: proximidade física, distância social 83

4.1 A formação das favelas na Zona Sul 85

4.1.1 A política de Remoções: a atuação do poder público na área

mais valorizada da cidade 89

4.2. As favelas na Zona Sul 97

4.3. Conflitos e contradições - A idéia de fronteira como contato: como

se dá a relação entre a cidade legal e a cidade ilegal 106

4.3.1 As áreas de contato entre o bairro e a favela 108

4.3.2 A natureza como fronteira – questão ambiental e a construção

de muros 120

4.3.3 A dinâmica da relação entre o bairro e a favela 124

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4.3.4 A estigmatização do favelado: favela como locus da violência 132

4.3.5 O controle a partir da força: das incursões policiais às Unidades

de Policias Pacificadoras 134

4.3.6 A “espetacularização” da pobreza: a favela como ponto turístico 138

Considerações finais 144

Referências 148

Anexos 154

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Introdução

Desde os primórdios do capitalismo comercial a sociedade como

um todo vivencia a existência de uma grave crise urbana, uma crise nas

formas de produção e reprodução do espaço urbano, crise esta baseada

nas questões de apropriação e dominação do espaço urbano. Esta crise

urbana ocorre em escala mundial, em sociedades ditas desenvolvidas e

principalmente nos países subdesenvolvidos. A produção e a reprodução

do espaço urbano pelo modo de produção capitalista permitem que

surjam novos aspectos da realidade urbana, ou mesmo que se evidencie

o que estava oculto. A dinâmica urbana, atualmente, exprime os conflitos

e contradições que permeiam a sociedade, principalmente o conflito entre

as classes, a luta dos diferentes atores sociais pela apropriação e

produção do espaço.

A produção do espaço nas sociedades capitalistas sempre esteve

marcada pela desigualdade nas relações sociais de produção, e é

principalmente no meio urbano, onde estão concentradas as grandes

massas populacionais, que esta desigualdade mais se evidencia

atualmente. Entendemos aqui que a sociedade urbana é marcada por

intensos conflitos que envolvem a produção do espaço, sendo este o

principal foco de nossa análise. Os conflitos que queremos salientar são

principalmente as disputas territoriais, a luta pelo espaço, baseadas nas

relações de apropriação e dominação do espaço urbano, o controle do

espaço funciona assim como um instrumento de dominação, de controle

das classes sociais mais desfavorecidas. A produção e a reprodução do

espaço são, assim, elementos fundamentais à reprodução do capital e da

sociedade como um todo, reprodução esta que se realiza no cotidiano.

Para realizar esta discussão, é necessário deixar claro o que

entendemos por cotidiano, luta de classes e reprodução do espaço, além

da questão da propriedade privada, categorias analíticas que vão nortear

a pesquisa. Estas categorias de análise foram escolhidas pela relevância

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no que tange ao objeto de estudo que pretendemos desenvolver aqui,

buscando analisar os conflitos e contradições existentes na organização e

distribuição das classes sociais no espaço urbano, na luta pela

reprodução do espaço que envolve as diferentes classes sociais nas

grandes cidades. A segregação, a partir da propriedade privada, a

constituição de espaços periféricos e pobres permite a reprodução das

relações de produção e das relações de classes (exploração), conforme

nos aponta Lefebvre (1994).

A atual tendência de internacionalização do capital e a evolução

técnica do capitalismo têm contribuído para gerar uma grande massa de

pobres urbanos, principalmente nos países periféricos. Os impactos desta

nova dinâmica do capital vão gerar um processo de favelização e de

pauperização cada vez mais acentuado, principalmente em cidades dos

países periféricos onde a questão habitacional não é levada como

prioridade. Apontar o impacto das transformações do capitalismo e os

conflitos que este impacto evidencia torna-se cada vez mais necessário

para o entendimento das questões urbanas.

A Geografia pode contribuir para um melhor entendimento da

discussão que envolve a análise da realidade urbana, e acreditamos que

a busca do entendimento das disputas territoriais e dos conflitos que

envolvem a apropriação no espaço urbano de uma grande cidade pode

contribuir para novas discussões sobre a dinâmica urbana. Para isto,

pretendemos realizar a análise da dinâmica urbana de uma grande cidade

brasileira, a cidade do Rio de Janeiro, e tendo como recorte espacial uma

área da cidade que apresenta grande valorização imobiliária, mas que

possui também grande número de favelas, a Zona Sul, na área litorânea

da cidade.

Partindo das idéias de Henri Lefebvre e David Harvey, dentre

outros, e baseados no materialismo histórico dialético, pretendemos

analisar a cidade do Rio de Janeiro a partir de certos conflitos que se

expressam no seu espaço urbano. Buscamos apontar que a presença de

favelas no Rio de Janeiro, especificamente nos bairros da Zona Sul da

cidade, se configura atualmente como expressão de importantes conflitos

e contradições no espaço urbano, entendendo aqui que as favelas não

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representam os únicos conflitos do espaço urbano, mas sim um dos mais

importantes, dentro de um contexto maior de um movimento de

valorização do solo urbano e da inexistência de políticas de habitação

realmente eficazes.

Entendemos o urbano como expressão da realidade, e a partir das

formas concretas do real, buscamos compreender os aspectos e

elementos contraditórios da realidade urbana. O materialismo dialético

nos fornece uma base material para a realização desta análise; partindo

das formas presentes no urbano, entendemos que as formas concretas

do real contribuem para corroborar as contradições e os conflitos da

sociedade atual, mas é fundamental também levar em consideração o

simbólico, o imaginário que estas formas representam. A análise,

portanto, está voltada para o empírico que está em foco em nossa

pesquisa, a Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro, mas entendendo que

esse local, assim como as favelas ali inseridas, fazem parte de uma lógica

maior, a lógica da reprodução do capital. Não são, portanto, organismos

isolados, separados, e sim parte de um sistema que gera intensos

conflitos e contradições que se expressam no espaço. A lógica espacial é

a mesma na favela e fora dela, e a presença das favelas no espaço

urbano está ligada a essa lógica.

A cidade do Rio de Janeiro é marcada pelo grande número de

favelas existente em seu território. Desde o início da formação da cidade,

as classes sociais de menor poder econômico procuraram ocupar áreas

não utilizadas ou desprezadas pelo capital imobiliário, primeiramente

ocupando áreas de encostas próximas às áreas centrais, depois se

dispersando para as áreas periféricas da cidade. É importante aqui

entender a evolução urbana da cidade do Rio de Janeiro, principalmente

dando enfoque ao movimento das classes sociais menos favorecidas no

espaço urbano. A cidade do Rio de Janeiro, como capital do Império e da

República, foi marcada pela presença de classes sociais antagônicas,

sempre tendo passado por problemas envolvendo a questão habitacional.

Já no século XIX, a cidade não oferecia moradias disponíveis suficientes

para a sua população pobre, tendo esta que residir em cortiços e

moradias afins, muitas vezes em situações insalubres e é a partir da

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política de demolição dos cortiços na área central da cidade que

iniciaremos a análise proposta.

A Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro é basicamente formada

por bairros tradicionalmente voltados para as classes mais abastadas, e

se diferencia bastante do restante da cidade pela qualidade da infra-

estrutura que oferece (econômica, política, cultural e de serviços), e pelo

cotidiano que essa estrutura possibilita.

Entendemos aqui a favela como uma das questões do urbano, uma

questão relativa à lógica da desigualdade e da segregação. A

revalorização do solo urbano fez aumentar ainda mais esta lógica,

aumentando o número de pessoas que vivem em favelas na atualidade.

Na Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro, com todo o simbolismo que

este local emana, o solo é visto como uma mercadoria bastante

valorizada, o espaço é consumido, assim como as amenidades1

presentes no local. A Zona Sul, além de toda a beleza natural, é a área

que recebe maior atenção por parte do poder público.

Temos como objetivo central, portanto, analisar os conflitos e

contradições que se expressam no espaço urbano da cidade do Rio de

Janeiro, mais especificamente em se tratando da presença de favelas nos

bairros da Zona Sul.

As questões que se colocam como fundamentais para o

entendimento desta dinâmica são:

a) Quais são os elementos que expressam a intenção dos atores

sociais dominantes em manter a lógica segregadora da/na Zona

Sul da cidade do Rio de Janeiro?

b) Como é a relação nas áreas onde as classes sociais se

misturam, na zona de fronteira entre o bairro e a favela?

1 “Entendemos por amenidades urbanas um conjunto de características específicas de uma

localidade com contribuição positiva ou negativa para a satisfação dos indivíduos. As amenidades

não estão restritas a características naturais, como áreas verdes, praias, clima etc. Também estão

incluídos na definição os bens (ou males) gerados pelo próprio homem, tais como trânsito,

poluição, oferta de entretenimento, segurança etc.” (HERMAN E HADDAD, 2005). Bartik (1996,

p 271), também contribui para esta discussão, afirmando que, quando as pessoas escolhem os

lugares que vão viver ou trabalhar, estão consumindo amenidades.

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c) Como nossa análise se baseia na categoria do cotidiano, até

que ponto essa população que habita as favelas da zona sul

participa do cotidiano dos bairros, do direito à cidade?

Para responder a estes questionamentos e atingir o objetivo aqui

proposto de apontar as favelas da Zona Sul como exemplo de expressão

dos conflitos entre as classes no espaço urbano, pretendemos discutir a

questão do direito à cidade, entendendo aqui este direito como o direito à

vida urbana e tudo que este cotidiano possibilita: acessibilidade, infra-

estrutura, lazer, etc. O direito à cidade também envolve o direito à

apropriação do espaço de moradia, apropriação no sentido de produzir

seu próprio espaço, de construção do espaço de acordo com as

necessidades dos atores sociais ali presentes (LEFEBVRE, 1991, p. 104).

Acreditamos estar na falta do direito à cidade, imposta aos moradores de

favelas, a disputa territorial que envolve a apropriação do espaço na Zona

Sul do Rio de Janeiro.

Para operacionalizar essa leitura da realidade urbana e o

entendimento dos diferentes conflitos que envolvem a presença das

favelas na Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro foram feitos

levantamentos de alguns dados para análise das condições de vida da

população desta área, tendo como fontes principais o IPP2 e o IBGE3,

além de um levantamento das bibliografias mais relevantes no processo

de construção teórica do objeto de estudo.

Diferentes autores nortearão a discussão sobre o espaço aqui

proposta. Dentro da perspectiva do materialismo histórico dialético, Henri

Lefebvre nos guiará na discussão do espaço como um instrumento

político, como produto social e também como uma dimensão influente nas

relações sociais. O autor analisa a cidade e o urbano buscando elucidar

as contradições existentes no espaço urbano, a reprodução do espaço

urbano como elemento que permite a reprodução da sociedade e da 2 O Instituto Pereira Passos é um órgão da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro,

vinculado à Secretaria Municipal de Desenvolvimento, responsável, entre outras coisas, pela

produção de informações estatísticas, geográficas e cartográficas da Cidade do Rio de Janeiro.

3 Os dados utilizados foram relativos ao CENSO 2000.

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manutenção das contradições atuais e o direito à cidade. Cabe aqui

ressaltar a importância da dimensão espacial no trabalho desse filósofo,

que coloca o espaço como tendo um papel ativo na sociedade. Na obra

de Lefebvre, o espaço deixa de ser visto somente como receptáculo e

ganha destaque, assim como a vida cotidiana. David Harvey também

analisa a cidade e o espaço apontando as contradições no espaço urbano

e contribui para este estudo com discussões sobre as relações de poder

no espaço e a justiça social. Buscamos em Milton Santos a discussão

sobre o espaço e sobre as formas-conteúdo, sobre a intencionalidade nas

ações e na reprodução do espaço. Ana Fani Alessandri Carlos também

nos traz uma importante discussão sobre a produção e a reprodução do

espaço urbano, entendendo o espaço como um produto social, como

produto não só da reprodução do capital, mas também, e principalmente,

dos conflitos e contradições entre as necessidades do capital e as

necessidades da sociedade como um todo. Edward Soja discute a

abordagem marxista nos estudos sobre política e espacialidade, nos

apresentando possíveis categorias analíticas de estudo.

A bibliografia sobre a favela é muito extensa. Diversos autores têm

as favelas como objeto de estudo e muitos na cidade do Rio de Janeiro,

dentre eles Mike Davis, que discute o processo de favelização do terceiro

mundo e aponta como causas a atuação do capital global; Maurício de

Almeida Abreu, que discute toda a evolução da cidade do Rio de Janeiro,

apresentando o processo histórico que deu forma e conteúdo ao espaço

urbano da cidade e o processo de formação das principais favelas na

Zona Sul Carioca; e Lícia do Prado Valladares, que discute o processo de

remoção de favelas na cidade do Rio de Janeiro e questões de identidade

e estigmatização do favelado.

Após levantamento bibliográfico, foram realizados diferentes

trabalhos de campo pelos bairros da Zona Sul da cidade do Rio de

Janeiro, com o objetivo de aproximar-nos da realidade e do cotidiano das

pessoas que vivenciam os bairros e as favelas da região. Foram visitadas

três favelas da Zona Sul, escolhidas pelas suas características

diferenciadas: a favela Santa Marta, a favela com as piores condições de

vida na Zona e que passa recentemente por uma ocupação policial; a

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favela Chácara do Céu, favela relativamente pequena e bastante isolada

no costão do morro Dois Irmãos; a favela da Rocinha, uma das maiores

favelas da América Latina e com importante dinâmica social e econômica.

Foram visitados também dois bairros, principalmente as áreas próximas

aos acessos de favela, o bairro do Flamengo e do Leme, onde foi possível

observar a dinâmica das áreas de contato entre os bairros e as favelas,

alem de conversar com moradores a respeito destas áreas de contato.

Como segunda etapa, realizamos alguns questionários abertos

para os atores envolvidos nesta dinâmica, moradores de bairros e favelas,

presidentes de associações de moradores de bairros e favelas, com

intuito de ouvir o que todos têm a dizer sobre seus problemas e suas

necessidades. Os trabalhos de campo e as entrevistas nos permitiram, de

forma bastante ampla, uma aproximação do cotidiano dos bairros em

análise.

Qualquer discussão da dinâmica urbana que envolva a questão

das áreas faveladas tem sempre muitas considerações importantes. Uma

delas é a dificuldade de se encontrar uma única definição oficial de favela

e das áreas faveladas, existindo várias definições de órgão oficiais. Para

definir as favelas que estarão presentes na pesquisa, utilizaremos a

delimitação das áreas feitas pelo IPP (Instituto Pereira Passos), sobre a

qual pretendemos construir um mapeamento das áreas faveladas. A

dificuldade de se obter dados oficiais realmente corretos é grande quando

se trata de favelas, além da grande divergência entre os dados oficiais,

que ocorre devido à diferença entre as metodologias utilizadas por

diferentes órgãos, como o IBGE e o IPP, que gera dados divergentes.

Outra consideração importante é a polêmica em torno da utilização

do termo favela, ao invés do termo “comunidade”. Comunidade ou

comunidade carente nos passa a idéia de uma interação do grupo com o

seu entorno, da identidade social de um grupo que vive em harmonia com

o seu espaço, que não cabe ser discutida aqui, pois o termo comunidade

tem um sentido muito amplo4. Neste estudo, utilizaremos sempre o termo

4 Sobre o conceito de comunidade D’Avila Neto (2004) , citando Simmel (1909) afirma

que “A concepção de comunidade, cujos laços de solidariedade, engendramento de iguais e

fraternos poderiam ser os elementos de nossa nostalgia de uma unidade perdida, tornar-se-ia o

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favela e áreas faveladas, é não é nossa preocupação explicitar

exatamente o que ele significa. O termo favela, para nós, representa o

espaço de uma população que vive sob determinadas formas de

habitação e determinadas considerações simbólicas e culturais,

antagônicas e complementares a classes sociais mais abastadas.

As características das favelas da área estudada também devem

ser levadas em consideração, principalmente quanto a heterogeneidade

das áreas estudadas. Ao mesmo tempo em que é na Zona Sul que se

encontra uma das maiores favelas da América Latina, a Rocinha, muitas

favelas são bem pequenas e antigas na área. Os movimentos sociais e a

representação política destas populações também serão levados em

consideração nas favelas da Zona Sul, principalmente em relação às

favelas maiores, sendo um aspecto muito importante na discussão

proposta. A questão ambiental também será considerada, visto a

existência de uma política de controle de favelas que serve a uma opinião

pública que cobra ações governamentais de remoção de populações

faveladas, uma política baseada na proteção de áreas florestais e no

controle de mananciais.

O desenvolvimento da sociedade como um todo só pode ser

concebido pela realização da sociedade urbana. Acreditamos que a

cidade deveria reunir os interesses de todos aqueles que a habitam e não

apenas refletir conflitos e contradições entre os atores sociais. Esperamos

que a análise desses conflitos possa servir para a tentativa da criação de

um espaço urbano mais justo, que garanta a todos o direito à cidade.

Neste sentido, concordamos com Harvey (1980, p. 125) quando afirma

que a Geografia pode contribuir na orientação do pensamento “para

formular conceitos e categorias, teorias e argumentos que possamos

aplicar a tarefa de possibilitar a mudança social humanizadora”, e não de

forma abstrata, mas de forma a buscar no real, na prática, “com respeito a

eventos e ações, tais como eles se desdobram em torno de nós”. oposto de uma sociedade fragmentada , perdida a unidade e desfeitos os laços”. Entendemos que a

utilização do eufemismo Comunidade para designar as favelas seria uma tentativa de caracterizar o

grupo que vive neste local diferenciando-o dos que não vivem lá, além de quebrar certos

estereótipos de que a favela seria o lugar da Malandragem e da violência, um mecanismo de defesa

da própria comunidade.

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Esperamos que a análise nos permita contribuir ainda para a busca

de uma nova visão da favela, livre de estigmas e integrada no contexto da

cidade, como o local escolhido como moradia do trabalhador pobre

urbano, e não como o local preferencial da violência e da marginalidade.

Para tentar acabar com este estigma, a busca pelos conflitos e

contradições pode contribuir, pois tentaremos mostrar aqui o quanto o

imaginário social pode contribuir para aumentar a desigualdade e a

distância social. Acreditamos também que acabar com o estigma

permitiria também ampliar a luta pelo direito à cidade.

A questão de uma definição metodológica para uma teoria

geográfica do urbano se coloca desde muito tempo. Muitos termos e

conceitos utilizados pela Geografia vêm de outras áreas do

conhecimento, principalmente da sociologia urbana. Mesmo assim, a

geografia urbana, avançou bastante nas últimas décadas, principalmente

com a introdução do método dialético.

A importância deste método para a Geografia consiste na prática

de não isolar o objeto considerado, no caso os fenômenos do urbano,

investigando as suas ligações, as suas relações constantes com outros

fenômenos (LEFEBVRE, 1974, p. 27). A importância da análise dialética

também está no fato de não realizar uma leitura fechada da realidade,

observando o fenômeno de forma isolada, mas observando a lógica da

reprodução do capital. A realidade contemporânea apresenta enormes

desafios para sua análise, desafios estes que precisamos superar, e

acreditamos que a análise dialética fornece importantes ferramentas para

o entendimento da realidade atual.

Karl Marx e Friedrich Engels nos fornecem a mais importante

contribuição deste método, sendo os primeiros efetivamente a pensar o

materialismo histórico dialético, partindo de idéias baseadas no

materialismo de Feuerbach e na dialética de Hegel. Para estes autores a

base de qualquer estudo deve ser a base material, a forma pela qual o

homem produz seus meios de existência, realizando uma crítica à filosofia

alemã, desvinculada da realidade.

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As premissas de que partimos não são bases arbitrárias, dogmas; são bases reais que só podemos abstrair na imaginação. São os indivíduos reais, sua ação e suas condições materiais de existência, tanto as que eles já encontraram prontas, como aquelas engendradas de sua própria ação. Essas bases são pois verificáveis por via puramente empírica (MARX E ENGELS, 1932, p. 10).

Para os autores, a historiografia deve levar em consideração as

bases naturais e de sua transformação pela ação do homem (MARX E

ENGELS, 1932, p. 10). Entendem que o homem representa na verdade

“um produto histórico, o resultado da atividade de toda uma série de

gerações”, visto que cada geração predecessora é também produtora do

seu espaço, já que modifica as relações de produção de acordo com a

modificação de suas necessidades (MARX E ENGELS, 1932, p. 43).

Quanto a produção simbólica, Marx e Engels acreditam que está

bastante ligada a produção da vida material, que as idéias e a consciência

do homem são subordinadas à produção material e às relações de

produção. Segundo eles, a “produção das idéias, das representações e

da consciência está, a princípio, direta e intimamente ligada à atividade

material e ao comércio material dos homens; ela é a linguagem da vida

real” (MARX E ENGELS, 1932, p. 18). Para entender a realidade do

homem, portanto, acreditam que devemos partir da vida real, da produção

material, passando também pela produção simbólica advinda da

materialidade existente. A vida material, a evolução da história material do

homem é marcada pelas relações de produção capitalistas, baseadas na

divisão do trabalho e na propriedade privada, e, portanto, a realidade está

marcada por intensos conflitos e contradições entre as diferentes classes.

Para Gurvich (apud QUEIROZ, 1978), observar os conflitos, buscá-

los no interior de fenômenos, mesmo aqueles que pareçam mais

equilibrados e em harmonia, é tarefa fundamental da dialética, sendo esta

o principal método de estudo deste autor para entender a realidade social.

A dialética serve como base, como um instrumento fundamental para

qualquer análise social, não sendo simplesmente a explicação. A

explicação estaria na história, na evolução histórica da sociedade e nos

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fenômenos intrínsecos a ela. Os fenômenos sociais estão sempre

apresentando contradições e conflitos,

a realidade socioeconômica, cultural e política é de diversidade infinita, com multiplicidade de aspectos que não podem nunca se harmonizar totalmente entre si, - pluridimensionalidade que, devido às suas próprias características, nem estaciona e nem se equilibra (GURVICH apud QUEIROZ, 1978, p.35).

Para Lefebvre (1974, p.26), o método dialético busca analisar uma

realidade objetiva, concreta, buscando entender as contradições que

estão presentes nessa realidade. Este autor afirma ainda que “após ter

distinguido os aspectos ou elementos contraditórios, sem negligenciar as

suas ligações, sem esquecer que se trata de uma realidade, Marx

reencontra-a na sua unidade, isto é, no conjunto de seu movimento”.

A dialética dá ênfase à pesquisa (investigação), seguida da

explanação. Portanto, fica clara a necessidade de análises empíricas para

se chegar às contradições e aos conflitos que sustentam a realidade

social, econômica e política atuais. É necessário ainda ter em mente a

importância de se chegar ao movimento da sociedade, das relações que

sustentam a sociedade urbana capitalista, conforme nos aponta Lefebvre

(1987, p. 238),

o método dialético busca captar a ligação, a unidade, o movimento que engendra os contraditórios, que os opõe, que faz com que se choquem, que os quebra ou os supera. Assim, no mundo moderno, o exame e a análise mostram que as condições econômicas – a própria estrutura das forças produtivas industriais – criam as contradições entre os grupos concorrentes, classes antagonistas, nações imperialistas. Portanto, convém estudar esse movimento, essa estrutura, suas exigências, com o objetivo de tentar resolver estas contradições.

As proposições feitas até aqui exemplificam um método de estudo

que nos serve aqui como a ferramenta de análise mais apropriada para o

entendimento da realidade urbana que pretendemos observar. A análise

da produção do espaço urbano a partir do método dialético, segundo

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Carlos (1994, p. 14) não é uma transposição de categorias marxistas para

a geografia, mas de sua superação, criando novas categorias de análise

propriamente geográficas. Para isto, torna-se importante “repensar a

geografia e a sua capacidade de analisar os fenômenos que se propõe.

Trata-se, em princípio, de entender a relação homem-natureza num outro

patamar, o que significa repensar o lugar do homem dentro da geografia e

o significado do espaço” (CARLOS, 1994, p.14).

A análise urbana marxista, via análise dialética, vem buscando

alternativas que busquem entender os fenômenos sociais em sua

totalidade. As abordagens marxistas mais comuns, o marxismo ortodoxo e

o estruturalismo, não forneceram as respostas que se esperavam diante

de toda a complexidade dos fenômenos urbanos. Desde a década de 50,

surgem autores que visam inserir uma perspectiva humanista nas leis

inexoráveis do marxismo.

A perspectiva humanista, segundo Gottdiener (1997, p. 116), busca

se estender “desde o nível de estruturas abstratas, como a economia e a

política, ao nível individual, comportamental da vida cotidiana alienada”. O

que se busca, na verdade é a inserção da dimensão subjetiva, do sujeito

individual, nas análises urbanas. Para estes autores, o entendimento do

espaço urbano em sua totalidade deve abarcar, sem sobrepor, o material

e o imaterial, o objetivo e o subjetivo, o sujeito, o objeto e as

representações.

A utilização do método dialético também enfatiza principalmente a

busca pela totalidade sem o afastamento do cotidiano, o olhar para os

conflitos sem se fixar neles, entendendo que eles fazem parte de um todo.

Entendemos aqui a favela como um dos conflitos do urbano, mas não o

único, o urbano é muito mais que isso. Conforme aponta Lefebvre (2008,

p. 54) “a totalidade não está presente imediatamente nesse texto escrito,

a Cidade. Há outros níveis de realidade que não transparecem (não são

transparentes) por definição”. Entendemos também que a pobreza urbana

não está só na favela, está muitas vezes dispersa por várias áreas da

cidade, e somente o olhar para as especificidades dos lugares nos

revelam aquilo que está escondido, fora dos padrões.

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Baseados nestas afirmações, estamos propondo aqui uma visão da

cidade como símbolo da lógica atual, de contradições que se mostram na

organização espacial das cidades. Na maioria das cidades, as

contradições e os conflitos são evidentes e ficam ainda mais claros

quando analisamos as formas espaciais e a organização do espaço

urbano, onde se observa a segregação de grupos sociais, a presença de

favelas, a distribuição irregular de equipamentos de infra-estrutura

urbana, de serviços e lazer.

Além das contradições que se evidenciam nas formas e na

organização espacial, é importante considerarmos o papel da questão

simbólica presente nas formas, o caráter subjetivo do espaço urbano, que

também influencia na própria formação da sociedade urbana, já que a

forma está imbricada de simbolismo. Para discutir esta visão da cidade

como símbolo de uma lógica atual, que expressa toda a contradição

presente na sociedade, é importante também entender o papel do espaço

na reprodução da sociedade.

Nossa pesquisa está estruturada em três capítulos além deste

introdutório e das considerações finais. No primeiro capítulo, intitulado a

produção e reprodução do espaço urbano, buscamos realizar uma análise

do papel do espaço na reprodução da sociedade, pensando em como a

produção do espaço pode contribuir para a manutenção de uma

sociedade desigual e segregadora. Realizamos um debate teórico sobre a

reprodução do espaço pela sociedade capitalista, mas sem nos afastar da

realidade da sociedade e do objeto de estudo.

No capítulo dois, intitulado as favelas do Rio de Janeiro: origem e

situação atual, realizamos um pequeno histórico sobre a origem e a

formação das favelas na cidade do Rio de Janeiro, assim como trazemos

dados oficiais sobre a situação atual do favelado na cidade. A intenção

aqui é situar a favela atual da Zona Sul no contesto de formação da

cidade, buscando justificativas do porquê da situação atual das favelas

permanecer pouco modificada em relação ao surgimento das favelas.

No capítulo três, intitulado, Zona Sul: proximidade física, distância

social, discutimos especificamente as contradições e conflitos gerados

pela presença de favelas na Zona Sul, como a chegada da favela na Zona

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Sul, entendida já como um conflito, assim como o período de remoções

de favelas concentradas nesta área da cidade. Discutimos ainda as áreas

de contato entre os bairros e as favelas, a estigmatização do favelado e a

espetacularização da pobreza. Todos esse elementos apontam para a

existência de conflitos e contradições na relação entre a favela e os

bairros onde estão inseridos.

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2. A produção e reprodução do espaço urbano

Enseada de Botafogo, Rio de Janeiro - 2009

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A análise que nos propomos aqui é a da produção e reprodução do

espaço dentro da perspectiva do materialismo histórico dialético,

buscando entender de que forma o espaço é produzido pela sociedade

urbana, partindo da concepção de que o espaço é produzido a partir de

relações sociais de produção marcadas pela atuação dos atores sociais.

Para isto, realizamos uma análise baseados no espaço urbano da cidade

do Rio de Janeiro, aproximando toda a discussão teórica da realidade

empírica observada. Entendemos aqui que é necessária esta construção

do pensamento de forma bastante reflexiva, buscando na teoria a análise

mais completa da realidade contemporânea, mas em nenhum momento

descolada da prática e da totalidade.

Para isto, utilizaremos como base as discussões de Henri Lefebvre,

David Harvey, Karl Marx e outros autores que discutem o urbano a partir

da visão dialética. Estes autores nortearão toda a pesquisa aqui

desenvolvida e fornecerão nossas bases teóricas pelas quais guiaremos o

nosso olhar para a realidade urbana da cidade do Rio de Janeiro.

O urbano, segundo Carlos (1994, p. 14), é entendido como

condição geral de realização do processo de reprodução do capital, além

de produto desse processo. O urbano, portanto, é visto aqui,

principalmente, como “produto de contradições emergentes do conflito

entre as necessidades da reprodução do capital e as necessidades da

sociedade como um todo”. A cidade do Rio de Janeiro, e especificamente

a Zona Sul da cidade, refletem bem esta realidade, um urbano marcado

pela contradição, pela intensa desigualdade e segregação, tendo como

expressão máxima a presença de áreas de favelas nos bairros em

estudo.

É importante aqui ressaltar que a presença de favelas nos bairros

voltados para classes média e média-alta não se configura como a única

expressão de conflitos de interesses entre o capital e o social nesta área

da cidade1, mas que colocamos as favelas aqui em evidencia como foco

1 Como exemplo podemos citar a questão da proteção ao patrimônio cultural e histórico

do Rio de Janeiro, no que se refere a documentos, obras e locais de valor histórico, artístico e

arqueológico, o que tem causado muitas discussões entre os interesses da população e os interesses

do Estado. Bairros tradicionais da Zona Sul têm passado pelo processo de tombamento de imóveis

particulares, como Flamengo, Botafogo, Catete, Glória, entre outros.

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da pesquisa. A paisagem da Zona Sul fica muito marcada por estas

desigualdades, e a favela se torna um símbolo destas na paisagem

urbana dos bairros da Zona Sul.

Foto 01 – Favela Pavão-Pavãozinho

Foto: Marta do Nascimento, novembro de 2009.

Vista da Avenida Atlântica, esquina da Rua Almirante Gonçalves. Destaque para a presença da favela Pavão-

Pavãozinho na encosta do morro, paisagem que pode ser vista da Praia de Copacabana e da Avenida Atlântica, principal

avenida do bairro de Copacabana, onde se localizam hotéis e restaurantes de luxo.

O espaço urbano do capitalismo, portanto, reflete uma contradição

fundamental, que se expõe claramente na forma urbana: o conflito de

interesses entre o capital e o social. Salientamos aqui que o espaço

geográfico, é visto como produto de relações baseadas na divisão do

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trabalho, ou seja, na produção material do homem, na forma como o

homem busca na natureza os seus meios de existência (MARX, ENGELS,

1932, p. 11). Ocorre, portanto, em um determinado momento histórico,

fundamentado na acumulação técnico-cultural e em uma relação dialética

entre o velho e o novo, sendo este um processo de produção e

reprodução. Carlos (1994, p. 34) entende que

na discussão do espaço como produto social e histórico se faz necessário articular dois processos: o de produção e o de reprodução. Enquanto o primeiro se refere ao processo específico, o segundo considera a acumulação do capital através de sua reprodução, permitindo apreender a divisão do trabalho em seu movimento. A perspectiva da reprodução coloca a possibilidade de compreensão do geral.

A morfologia urbana da cidade do Rio de Janeiro é marcada por

essa contradição entre os interesses do capital e os interesses sociais.

Uma cidade que foi durante muito tempo o mais importante foco político

do país e onde todas as intervenções urbanas que ocorreram foram

voltadas para atender a grupos sociais abastados, não ocorrendo políticas

habitacionais eficazes para atender a demanda da população pobre e a

população que chegava à cidade. Esta falta de preocupação com a

questão habitacional deixa marcado na morfologia urbana um aparente

caos, uma desordem. Atualmente, misturam-se no espaço urbano áreas

abandonadas pelo capital e pelos investimentos do Estado,

principalmente na área central, áreas voltadas para uma população pobre,

áreas faveladas e áreas que refletem com grande expressão a riqueza e a

modernidade.

Para evidenciar a contradição na produção e reprodução do

espaço urbano em uma grande cidade como o Rio de Janeiro, é

necessário entender aqui algumas discussões que permeiam a produção

do espaço urbano, como o papel do espaço, o espaço como produto de

relações sociais, a influência da dimensão espacial na produção do

espaço, a apropriação e dominação no urbano, entre outras questões.

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2.1 - O papel do espaço: o espaço como fonte de poder social2

Nestas considerações torna-se importante enfatizar o papel da

dimensão espacial na reprodução da sociedade, a partir do que se

entende por espaço na perspectiva do materialismo dialético, onde cabe

buscar a forma, o conteúdo, o movimento, o simbólico e a contradição.

Nesta perspectiva, o espaço deixa de ser um receptáculo e passa a ter

um papel importante na reprodução da sociedade. As formas materiais

influenciam a práxis, e o controle das formas é fundamental para a prática

do poder e para a apropriação e domínio do espaço. O espaço, sua

materialidade e as significações que se constroem dessa materialidade

são a expressão da sociedade, mas também influenciam a reprodução da

sociedade.

Lefebvre (2008, p.26) vê o espaço como um produto social, que

assume uma realidade própria, de acordo com o modo de produção e a

sociedade presente. O espaço como produto serve como uma ferramenta

para a ação e para o pensamento, funcionando como um meio de

produção, de controle e de dominação. O autor vê o espaço como produto

da sociedade, o espaço sendo “um modo e um instrumento, um meio e

uma mediação. (...) O espaço é um instrumento político intencionalmente

manipulado, mesmo se a intenção se dissimula sob as aparências

coerentes da figura espacial”.

Nesta mesma direção, Soja (1983, p.38) apresenta uma concepção

materialista da espacialidade, utilizando-se do método dialético, vendo a

espacialidade como uma força importante na produção e reprodução das

relações sociais, sendo a espacialidade para ele a forma material das

relações sociais de produção, a expressão territorial concreta da divisão

do trabalho. Afirma que

2 A idéia de poder social está ligada a “capacidade ou a possibilidade de agir, de

produzir efeitos”; no caso mais específico, na “capacidade do homem em determinar a vida do

homem: poder do homem sobre o homem (...) a capacidade de um governo de dar ordens aos

cidadãos . O homem não é só sujeito, mas também objeto do poder social”. O poder social é

exercido a partir da vida em sociedade. “Não existe poder se não existe, ao lado do indivíduo ou

grupo que o exerce, outro indivíduo ou grupo que é induzido a comportar-se tal como aquele

deseja” ( BOBBIO et al, 1998, p. 933-934).

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O espaço social e político tornou-se cada vez mais reconhecido como uma força material (e não material, isto é, ideológico) influente, ordenando e reordenando as próprias relações sociais produtivas. Longe de ser um reflexo passivo, incidental, um “espelho”, a espacialidade tornou-se ativa como uma estrutura concreta e repositório de contradições e conflitos, um campo de luta e estratégia política. As relações sociais e espaciais, a divisão social e espacial do trabalho, a práxis social e espacial estão deste modo interativamente engajadas e concatenadas, ao invés de reduzidas a simples gênese-reflexo, causa inicial e efeito subseqüente.

Thrift (2007, p. 96) se volta para a construção de um conceito de

espaço que deixe claro a dimensão material, subjetiva e o movimento. O

autor nos apresenta o espaço como uma construção contínua que se dá

através da ordenação de coisas encontrando-se mutuamente de forma

mais ou menos organizada. O autor constrói uma visão relacional do

espaço, em que é visto como um receptáculo no qual o mundo avança,

mas também como co-produto dos processos, ressaltando a importância

de se entender o espaço como construção da sociedade e que

consequentemente tem influência sobre esta.

A cidade assim pode ser vista como uma produção contínua da

sociedade, que materializa na paisagem diferente períodos de reprodução

das relações sociais. Em grandes cidades, diferentes períodos de

reprodução do capital, de maior ou menor intensidade, estão refletidos na

paisagem e contribuem para criar novas relações sociais de produção.

Em diversas áreas da cidade do Rio de Janeiro é possível entender este

processo, locais onde o espaço foi amplamente apropriado pelo capital

em associação com o Estado, que é o caso da Zona Sul da cidade, e

outros onde a reprodução do espaço se desenrolou a parte, onde não

houve interesse do capital e, consequentemente, estiveram

completamente à parte de intervenções políticas. Conforme exemplifica

Kleiman (2002, p. 128), no Rio de Janeiro, o início da distribuição dos

investimentos em infra-estrutura foi muito desigual, sendo muito

concentrados nos espaços de camada de renda alta, principalmente em

termos de água e esgoto.

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Outra autora que também contribui para esta discussão é Massey

(2008, p. 89), quando afirma que o espaço deve ser entendido como uma

produção aberta e contínua, chamando a atenção para a incorporação da

idéia de movimento, de contínua construção do espaço. A autora entende

o espaço como “uma multiplicidade discreta, cujos elementos, porém,

estão, eles próprios, impregnados de temporalidade. Uma

contemporaneidade estática foi rejeitada em favor de uma multiplicidade

dinâmica”. Para Massey (2008, p. 94), também deve-se levar em

consideração as experiências, a construção subjetiva do espaço, e aponta

que a verdadeira relevância do espaço são “as múltiplas coletâneas de

outras trajetórias e a necessária mentalidade aberta de uma subjetividade

espacializada” .

Outro autor que aponta a importância da análise espacial no

processo de produção e reprodução das relações sociais é Santos (2008,

p. 63), que considera que “o espaço é formado por um conjunto

indissociável, solidário e também contraditório, de sistemas de objetos e

sistemas de ações, não considerados isoladamente, mas como o quadro

único no qual a história se dá”.

Fica claro nas idéias apresentadas acima como o autor vê o

espaço, sendo impossível separar as formas materiais das técnicas

aplicadas sobre elas e das ações do homem. O espaço para o autor é

sempre este conjunto, que está constantemente interagindo, com os

objetos condicionando as ações e as ações criando novos objetos e

dotando-os de funcionalidades.

A idéia de sistemas de objetos e sistemas de ações é bastante

abrangente. Os sistemas de objetos não são simplesmente as coisas que

existem, pois as coisas passam a ser objetos quando são dotadas de

intenção social, sendo produto de uma elaboração social, da técnica

atuando naquele momento histórico. Os sistemas de objetos são,

portanto, aqueles objetos utilizados pelo homem, com a intenção da

prática social, que estão em interação direta com a sua atuação, o que

acaba por incluir entre os objetos a natureza, quando esta torna-se objeto

de valor social, passível de ser utilizado.

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Nos sistemas de ações o autor chama a atenção para a

intencionalidade da ação. A ação é um processo dotado de propósito,

orientado pela práxis social, e “as práticas são atos regularizados, rotinas

ou quase rotinas, que participam da produção de uma ordem” (SANTOS,

2008, p. 79). O autor ressalta ainda que a ação está cada vez mais

estranha aos fins próprios do homem, sendo necessário diferenciar a

escala da realização da ação da escala de seu comando, ou seja, a

intencionalidade não está diretamente ligada a quem realiza a ação,

podendo partir de terceiros. O autor também enfatiza a importância de se

analisar os processos que formam o espaço, incorporando o movimento à

análise espacial.

Santos vê o espaço como uma totalidade que está sempre em

movimento, sempre se recriando, e formando uma nova totalidade. “É o

espaço que, afinal, permite a sociedade global realizar-se como

fenômeno” (SANTOS, 2008, p. 119).

Torna-se aqui importante retornarmos às idéias de Lefebvre, pois a

contribuição filosófica deste autor sobre uma teoria marxista do espaço

também é de grande relevância para a Geografia. Lefebvre defendeu a

idéia de uma teoria do espaço que estudasse a dimensão real e a

dimensão ideal do espaço, ou seja, o objetivo e o subjetivo, sendo

importante, portanto, considerar o imaginado na dimensão espacial.

Muitas das idéias de Milton Santos se aproximam bastante de Lefebvre,

que vê o espaço como fonte fundamental de poder social na vida

cotidiana, enfatizando o papel do capitalismo e da ideologia em torno dele

como os produtores do espaço. O autor nos apresenta uma importante

contribuição quando insere a dimensão simbólica, fornecendo uma

importante tríade conceitual para se analisar o espaço do homem, uma

contribuição das três dimensões do espaço: a prática espacial, que

engloba a produção e a reprodução da sociedade, o espaço percebido da

realidade cotidiana; as representações do espaço, que diz respeito às

relações de produção e a ordem que as impõe, é o espaço concebido,

relativo ao conhecimento e ao poder, nos remetendo a Santos (2008)

quando este fala de ações que são estranhas ao próprio homem; e os

espaços de representação, englobando os símbolos e os códigos,

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também ligados ao lado clandestino e subterrâneo da vida social, é o

espaço vivido através de símbolos que o acompanham (Lefebvre, 1994,

p. 33). A concepção dessas três dimensões do espaço nos serve como

análise, mas estes devem ser vistos sempre juntos, ocorrendo

simultaneamente. Para o autor, somente o entendimento destas três

dimensões do espaço – o percebido, o concebido e o vivido – nos confere

uma análise mais completa do espaço.

Lefebvre também considera o papel ativo e passivo do espaço na

reprodução da sociedade. O autor vê o espaço como o local passivo das

relações sociais e de seus desdobramentos, mas nos aponta que ele

também tem um papel “ativo”, pois serve como instrumento para as forças

hegemônicas; inclusive, como é produzido com intencionalidades, exerce

forte papel no cotidiano da sociedade. Trazendo estas considerações

para o empírico, podemos observar que no Brasil a posse da terra sempre

foi utilizada como ferramenta de controle das classes sociais mais

desfavorecidas, que dependiam da terra para garantir sua sobrevivência,

o que aponta intensa contradição na reprodução do espaço no país, visto

que a terra sempre esteve concentrada nas mãos de poucos

proprietários, que adquiriam assim grande importância política no local.

Historicamente, a formação espacial brasileira sempre esteve

baseada na posse da terra, e a transição para uma economia urbana vai

gerar intensos conflitos, mas que ainda estão ligados a mesma fonte: a

propriedade da terra, as mudanças nos meios rural e urbano e ao papel

do estado na regulação da terra. Segundo Moreira (2005, p.18-19), a

chegada da indústria na cidade trouxe diferentes reivindicações,

principalmente quanto à redistribuição da terra e o direito a moradia na

cidade. O surgimento de novos atores traz à tona diferentes discussões,

que vão acirrar a luta pela posse da terra no Brasil, tanto no meio rural

quanto no urbano

O espaço geográfico, portanto, engloba a materialidade, a

subjetividade, o real e o imaginado, os objetos e as ações, sempre vistos

de forma interligada, é esse o espaço que nos serve aqui, o espaço do

movimento das sociedades, e é nesta dimensão que pretendemos

analisar determinados conflitos e contradições que se desenrolam no

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espaço urbano da cidade do Rio de Janeiro. A subjetividade a que nos

referimos aqui é a materialidade dotada de significação, sendo assim

específica para cada grupo social, e essa relação

materialidade/subjetividade nos servirá como ponto de partida para

buscarmos entender o papel atual do espaço na sociedade e os conflitos

e contradições que estão expressos no espaço.

O espaço, conforme nos apontaram os autores, influencia a prática

social, e seu controle é fundamental para a prática do poder. O espaço,

sua materialidade e as significações que se constroem dessa

materialidade, colaboram para determinar a reprodução da sociedade.

No Rio de Janeiro, as formas na morfologia urbana e as

representações que se faz delas marcam uma sociedade desigual e

contribuem para a manutenção dessa desigualdade no imaginário social.

A estigmatização do favelado e da violência associada às áreas faveladas

contribuem para manter a dualização e os conflitos entre os diferentes

grupos sociais no cotidiano. A opinião pública, na forma da imprensa,

coloca hoje a favela como o grande problema urbano, e defende seu

controle de forma mais efetiva pelo Estado. Sobre a estigmatização da

favela associada a violência, Ribeiro (2004, p. 35) considera que

as representações sobre as causas da violência, ao atribuí-las à existência de um estado de anomia prevalecente nas favelas e bairros pobres, concorrem eficazmente para a construção de imagens coletivamente apropriadas que impedem as camadas populares de transformar o acesso aos valores da ordem igualitária em fermento para se constituírem em atores sociais legítimos. Ao mesmo tempo a adoção das classes médias de um comportamento de secessão urbana, traduzido na busca de fronteiras simbólicas e materiais que as separem do mundo das classes populares.

Na cidade do Rio de Janeiro, a questão da violência urbana ganha

enfoque cada vez maior e a associação das áreas faveladas como locus

da violência e da marginalidade contribui para aumentar a distância

simbólica entre a população urbana e a população favelada, entre a

chamada população do “asfalto” e da favela. Esta própria denominação já

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representa uma separação entre a cidade legal e a cidade ilegal, um

afastamento simbólico entre mundos com cotidianos tão diferenciados. O

que determina a reprodução desses espaços diferenciados é a forma

como cada grupo social vai se apropriar do espaço, ou a forma como o

espaço está sendo concebido.

A questão da apropriação da sociedade sobre seu espaço é

bastante relativa. Como vimos, a imposição de uma materialidade a um

determinado grupo não significa que aquele espaço tenha o mesmo

significado para todos os grupos. O que vai ser importante é se aquele

grupo se apropria realmente daquele espaço ou não, se as formas

presentes ali foram concebidas por e para eles, e é essa apropriação que

vai determinar sua importância na sociedade como um todo.

Conforme nos aponta Souza (1997, p. 26),

o espaço é a base de sobrevivência, fonte de poder e, por via da conseqüência, alvo de cobiça e desejo de apropriação e controle. A isso se deve adicionar a importância não apenas “instrumental”, militar ou econômica (...) de um espaço, mas também a sua relevância cultural para um grupo.

Diferentes espaços são apropriados de diferentes formas por

diferentes grupos, tanto grupos religiosos, étnicos, classes sociais, entre

outros. Cabe aqui retomar a Lefebvre no que tange à

diferenciação/relação entre as representações do espaço e as os espaços

de representação, entre o espaço que pode ser imposto e o que é

realmente vivido pelos indivíduos. Se o espaço é concebido pelas

mesmas pessoas que vão estar presentes neste espaço, o controle é

mais efetivo; conforme nos aponta Ferreira (2007, p. 203), “se as práticas

espaciais forem concebidas pelos moradores do lugar, desmancham-se

os fetiches, pois o espaço carrega em si a dominação por meio das

formas”.

Harvey (2005, p. 206) também dá enfoque a essa questão,

considerando como fato “as relações de poder sempre estarem

implicadas em práticas temporais e espaciais”. Os autores referenciados

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nos deixam clara a idéia de que o domínio do espaço é uma importante

fonte de poder social sobre a vida cotidiana.

Essa discussão a respeito do espaço como fonte de poder social é

profunda e muitos autores já se dedicaram a esse tema, em que muito se

discute o papel do capitalismo como poder hegemônico mundial sobre o

espaço. O que concordamos aqui é que o domínio do espaço é

fundamental no cotidiano dos grupos e que em geral ele é imposto pelos

grupos dominantes por meio das formas e dos usos impostos às formas,

mas ao mesmo tempo existem alguns exemplos de resistência de grupos

quanto ao que é imposto a eles; e essa resistência pode vir a se

materializar por meio da criação de novas formas ou das novas funções e

usos atribuídas às formas já existentes. Aqui podemos citar como

exemplo as diferentes formas de apropriação ilegal de moradias na

cidade, como as favelas, a invasão de prédios públicos, os movimentos

sociais, entre outros, que representam uma forma de resistência ao que

está sendo concebido no espaço. O espaço, portanto, é construído e

reconstruído pela experiência cotidiana das pessoas, tendo estas também

sua reprodução influenciada pelo próprio espaço.

Esta última afirmação nos aponta uma outra questão que pode aqui

ser pensada: como se constroem essas experiências cotidianas, a

vivência do lugar? Em uma visão mais geral, mais global, a reprodução do

espaço parece seguir uma lógica, a lógica da acumulação capitalista e da

segregação de grupos excluídos desta lógica, e se observa esse fato

principalmente nas grandes cidades capitalistas. Mas quando buscamos

analisar a dinâmica dos lugares, vemos que apresentam características

distintas, que os caracterizam como um lugar específico, e que se

relacionam de forma diferente com a lógica global de acumulação

capitalista. Conforme afirma Massey (2000, p. 179), “há muito mais coisas

determinando nossa vivência do espaço do que o 'capital' ”, acreditamos

que a experiência cotidiana dos lugares sofra variações de acordo com as

características de cada grupo ali presente.

A análise da relação global-local pode contribuir para que

possamos entender o papel do espaço hoje, se entendermos que o

espaço deve ser visto como uma totalidade que se presta a análise, para

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que possamos conhecer o movimento do universal para o particular e do

particular para o universal (Santos, 2008, p. 115) e assim compreender a

lógica que forma os espaços, percebendo a sua influência na experiência

cotidiana das pessoas.

Para Santos (2008, p. 314), “cada lugar é, a sua maneira, o mundo.

(...) Mas, também, cada lugar, irrecusavelmente imerso numa comunhão

com o mundo, torna-se exponencialmente diferente dos demais. A uma

maior globalidade corresponde uma maior individualidade”. Para esse

autor e também para Massey (2000, p. 185), é preciso não tratar nem

especificamente do local, nem especificamente do global, pois todos os

lugares contêm uma carga histórica mas também recebem influências

externas, que vão se “encaixar” em cada local de acordo com as

características presentes ali. A individualidade de cada lugar vem de sua

ligação com o global e com os outros lugares. Estas especificidades vão

se expressar na produção e reprodução dos espaços urbanos na

atualidade, e vão interferir no cotidiano das diferentes sociedades

urbanas, sujeitas a processos e transformações globais e locais.

A experiência cotidiana, o simbólico e as representações que

surgem na cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, são fundamentais para

entender a lógica da reprodução do espaço urbano, marcado pela

ideologia da cidade-cenário, vendida para o mundo todo como “cidade

maravilhosa”, servindo para a apropriação turística da cidade, que deixa

oculta a desigualdade e a injustiça social. Somente a partir do

entendimento desta simbologia da cidade é possível entender

determinados processos que ocorrem na cidade. Trata-se, portanto, do

entendimento de que a cidade do Rio de Janeiro está inserida em um

contexto, em uma lógica dentro da reprodução do capital que não é a

lógica da industrialização, e que a reprodução do espaço na cidade se dá

a partir da relação entre esse contexto mundial e as especificidades do

local.

Entender o espaço como atuante nas relações sociais, como uma

ferramenta de poder, significa entender o espaço como político. O objetivo

aqui é que esta discussão teórica nos forneça a base para uma discussão

empírica em uma grande cidade de um país subdesenvolvido, o Rio de

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Janeiro, que possa contribuir para o debate sobre a reprodução do

espaço nas metrópoles. Entendemos que atualmente as grandes cidades

vivenciam fortemente as contradições e o conflito, onde o espaço ganha

alto valor de troca e onde o controle e a apropriação dos espaços se torna

fundamental (FERREIRA, 2007). Buscamos até agora entender o papel

do espaço como componente fundamental da reprodução da sociedade,

como fonte de poder social dos grupos que detém o seu controle, e ainda

que este espaço é formado a partir de relações entre elementos internos

e externos a sua realidade.

Lefebvre (2008, p.82) e Santos (2008, p. 63) nos apontam que o

espaço é um produto social, construído coletivamente por atores sociais

que possuem intencionalidades. O espaço é a expressão da sociedade

que o produz, os espaços produzidos pela sociedade capitalista moderna

vão contribuir então para a manutenção de toda a desigualdade existente

nela, todos os conflitos e contradições, reflexos das relações de produção

e da luta de classes. Nas cidades atuais a apropriação e a dominação do

espaço se dão de forma completamente desigual, com as relações de

produção e a luta de classes se estendendo à luta pelo espaço, pela sua

apropriação. Na cidade do Rio de Janeiro, conforme já foi citado aqui,

esta desigualdade está completamente aparente na paisagem, pois o

processo de segregação social se sobrepôs ao processo de segregação

espacial, já que grupos sociais distintos sempre ocuparam os mesmos

bairros, desde o início da formação da cidade. Portanto, concordamos

com Lefebvre (1991, p. 53) quando afirma que “a cidade e o urbano não

podem ser compreendidos sem as instituições oriundas das relações de

classe e de propriedade”.

Para Carlos (1994, p. 24), o espaço é condição e é produto, tanto

da reprodução do capital quanto das relações sociais. A sociedade produz

o espaço e com ele todo um modo de vida. Esta afirmação fica bastante

clara quando voltamos a análise para as cidades atuais, forma máxima de

reprodução do espaço, de um modo de vida urbano. Harvey (1980, p. 17)

chama ainda a atenção para as formas, afirmando que uma vez criadas,

as formas espaciais tendem a institucionalizar e as vezes “determinar o

futuro desenvolvimento do processo social”.

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2.2 – Sobre a importância da forma

Para a compreensão do que estamos nos propondo aqui cabe uma

definição do que entendemos por cidade e por urbano. A cidade seria a

organização espacial, a forma, um conjunto de elementos ordenados. O

urbano estaria mais ligado a um tipo de sociedade, sendo a expressão de

idéias, éticas, valores, estética hoje na cidade; a cidade, portanto, é

datada. O urbano, ou a cultura urbana, se realiza como práxis na cidade,

através das atividades políticas econômicas e culturais, o urbano reúne

todos os elementos da vida social (LEFEBVRE, 2008, p. 84).

Devemos entender, portanto, que cidade e urbano não são

sinônimos. O urbano deve ser entendido como um modo de vida, ligado a

uma certa divisão do trabalho, uma forma social, enquanto a cidade seria

a materialização dessa forma (HARVEY, 1980, p. 175). O urbano deixa de

ser a simples oposição ao rural e passa a designar a sociedade que

constitui uma realidade que engloba e transcende a cidade enquanto

lugar (CARLOS, 2005, p. 191). Para Pechman (1991, p. 126) “o urbano

representa um novo sistema de idéias”. O urbano contemporâneo

representa, portanto, novas formas de idéias, pensamentos e ações, uma

nova forma de vida, que não mais se relacionam diretamente com o

modelo antigo de cidade, o urbano deixa de estar completamente

relacionado a forma da cidade para estar além dela, como uma ideologia.

O autor deixa clara esta ideologia quando afirma que “onde existe a

cidade não existe necessariamente o urbano; mas onde existe o urbano

existe a cidade”.

O urbano, portanto, expressa um conceito de grande abrangência,

pois está além das fronteiras da cidade. Rodrigues (2007) nos fornece

também uma definição bastante ampla do que entendemos por urbano e

por cidade, quando diz que

o urbano é um conceito, pois qualifica um modo de vida que atinge a maioria da sociedade. As atividades urbanas extrapolam limites de cidades como no agronegócio, nas atividades turísticas, nas áreas inundadas para produção de energia hidroelétrica, e muitas outras atividades. Cidade é

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uma definição. É a projeção da sociedade urbana num dado lugar, política e territorialmente demarcado, marcado e estabelecido. As cidades contêm delimitação espacial. Lugar de concentração da população urbana, produção, circulação e consumo de bens e serviços. A cidade é o centro da decisão política do urbano. O conceito de urbano compreende o espaço em sua complexidade. (grifo da autora)

Por isso, a cidade e o urbano aqui nos interessam, a cidade,

enquanto forma, enquanto construção, cria representações que se

expressam na sociedade urbana. As formas nos servirão para que

possamos, através de sua análise, entender a sociedade urbana atual;

conforme já enfatizamos aqui, a importância da análise empírica, da

descrição, para que se chegue ao conteúdo, ao que está subjetivo,

simbolizado por determinados tipos de formas. A cidade aparece aqui

como o local que expressa com mais força a segregação e a

desigualdade social, e o urbano aparece como condição, meio e produto

do processo de reprodução da sociedade

Segundo Lefebvre (1991, p. 59) a análise dos fenômenos urbanos

exige a utilização de instrumentos metodológicos, chamando a atenção

para a forma, a função e a estrutura. Estes três termos são essenciais

para a análise da cidade e do urbano. A forma, os aspectos visíveis, deve

ser levada em conta, mas nunca separada de seu conteúdo, pois “não há

forma sem conteúdo, não há conteúdo sem forma. Aquilo que se oferece

a análise é sempre uma unidade entre a forma e o conteúdo”. As funções

dizem respeito as funções internas à cidade, as funções da cidade em

relação ao território e a função da cidade no conjunto social. Quanto à

estrutura, devemos levar em consideração a estrutura da cidade, a

estrutura urbana da cidade e ainda a estrutura social das relações cidade-

campo.

Santos (2008) apresenta como ferramenta metodológica as formas-

conteúdo, enfatizando a importância de ir além das formas de se chegar a

intenção da forma, ao subjetivo. O autor ressalta ainda a importância da

materialidade como componente imprescindível do espaço geográfico,

entendendo as formas como “condição para a ação, uma estrutura de

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controle, um limite a ação, um convite a ação (...) nada fazemos hoje que

não a partir dos objetos que nos cercam” (SANTOS, 2008, p. 321).

É no nível das formas que é possível observar a materialização das

relações sociais, a forma como a cidade está estruturada. As relações

sociais tendem a aparecer como relações entre coisas, e estas só existem

como tal porque se relacionam entre si. Na análise do espaço socialmente

construído, Soja (1983, p. 37) explicita a importância das formas quando

conceitua a espacialidade3 como a

forma material das relações sociais de produção, a expressão territorial concreta da divisão do trabalho e a articulação dos modos de produção. (...) A espacialidade, na forma do ambiente construído, do arranjo geográfico da produção, troca e consumo, da alocação de indivíduos para lugares e posições em todos os processos sociais e da implantação de sistemas de poder territorial destinados a preservar esses arranjos no lugar, representa o mapeamento particularizado da sociedade, da vida social.

Consideramos aqui a importância da análise empírica para revelar

o conteúdo da forma. Determinados processos que ocorrem nas cidades

hoje podem servir para revelar o urbano e os processos que influenciam a

sua reprodução e a reprodução das relações sociais, e utilizaremos

principalmente aqui como exemplo destes processos a segregação, a

formação dos espaços periféricos e pobres, tão comuns nas grandes

cidades hoje. Estes fenômenos permitem uma leitura do urbano, um

urbano marcado pela reprodução das relações sociais de produção e pela

luta de classes sociais na apropriação do espaço.

2.3 – O Processo de produção e reprodução no espaço urbano

O processo de produção do espaço urbano não é homogêneo. É

fragmentado e articulado de acordo com as necessidades de reprodução

3 O autor especifica a utilização do termo espacialidade como forma de diferenciar do

termo espaço per se, que ele acredita estar ligado a uma imagem física, geométrica, algo externo

ao contexto social e a ação social. O termo espacialidade, para ele remete ao espaço socialmente

produzido (SOJA, 1993, p. 101).

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do capital e com o modo de produção, gerando um espaço altamente

complexo (FRIDMAN, 1991, p. 145). Desta forma, a produção do espaço

é desigual, pois o espaço urbano na cidade do Rio de Janeiro é fruto de

uma produção capitalista que se reproduz desigualmente no espaço, que

se materializa pela divisão do trabalho entre parcelas do espaço e se

mantém a partir das relações simbólicas estabelecidas. Cada sociedade

produz e reproduz sua existência de modo determinado, deixando no

espaço as marcas de suas características históricas específicas

(CARLOS, 1994, p. 26-33).

Voltamos a falar aqui sobre a contradição fundamental existente na

reprodução do espaço urbano: o espaço como condição da reprodução

econômica e o espaço como condição de reprodução da vida na

metrópole. Posta esta contradição fundamental, o espaço urbano torna-se

uma campo de luta, onde se instaura uma luta dos diferentes agentes

pelo espaço, pelo solo urbano. Estabelece-se, portanto, um conflito entre

o espaço abstrato, concebido pelos interesses e necessidades do capital,

e o espaço vivido, fragmentado pelas estratégias dos diferentes atores

sociais, percebido pelo indivíduo através de sua vida cotidiana (CARLOS,

2005, p. 291). No Rio de Janeiro, a luta pelo espaço deixa marcas na

paisagem urbana, sendo as áreas voltadas para a população pobre um

símbolo dessa luta. Desde sua formação, a cidade deixa de fora das

políticas de urbanização e habitação as áreas voltadas para a população

pobre, realizando muitas vezes a sua expulsão das áreas onde houve

interesse de reprodução do capital imobiliário, por exemplo4.

A respeito da contradição entre o espaço concebido e o espaço

vivido, retornamos a Lefebvre e sua construção da categoria de espaço

social que se refere ao espaço de valores de uso produzidos pela

complexa interação de todas as classes na vivência diária, que se

confronta com o espaço abstrato, que corresponde a exteriorização de

práticas econômicas e políticas que se originam com a classe capitalista e

com o Estado (GOTTDIENER, 1997, p. 131). O espaço social perdeu

4 Sobre este assunto ver Lessa (2000, p. 291-296); Vaz (1991, p. 137-141); Ribeiro e

Azevedo (1996, p. 13-21) entre outros. Sobre as remoções de populações pobres, discutiremos de

forma mais aprofundada no capítulo 2.

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espaço na sociedade moderna, onde houve predomínio do espaço

abstrato, que se apresenta como homogêneo, fragmentado e hierárquico,

principalmente nas grandes cidades, onde surgem áreas segregadas, que

marcam a hegemonia do capitalismo. A essência do espaço social é

justamente a vida cotidiana que transcorre no urbano, que perpetua o

espaço abstrato através de representações.

A produção do espaço se dá no plano da vida cotidiana, na relação

que se estabelece entre os diferentes agentes responsáveis pela

reprodução do espaço urbano. Salientamos aqui que existem diversos

atores sociais responsáveis pela reprodução do urbano e que cada um

atua de acordo com seus interesses de classe. Os agentes responsáveis

pela produção do espaço urbano, de forma geral, são os proprietários dos

meios de produção, os proprietários fundiários e usuários de moradia, os

promotores imobiliários, o Estado e as instituições governamentais, e os

grupos sociais excluídos (CORREA, 1993, p. 12; HARVEY, 1980, p. 139).

Esses atores possuem estratégias próprias, que geram conflitos entre

eles e estratégias comuns que os unem, como a apropriação da renda da

terra. Ao atuar sobre o espaço urbano, a reprodução das relações de

produção e a continuidade da acumulação de capital está garantida. A

apropriação da terra, então, torna-se objeto de conflito na cidade.

O Estado tem um papel fundamental na produção deste espaço

desigual ao impor determinadas organizações espaciais. Para Lefebvre, o

Estado utiliza o espaço como um instrumento político, buscando

assegurar o controle sobre os lugares. A organização espacial, portanto,

representa a hierarquia de poder existente na sociedade. Nesta direção

também aponta Harvey (1996, p. 212), quando afirma que a organização

espacial serve para constituir uma ordem social e uma hierarquia, através

do assentamento de pessoas e atividades em espaços e tempos distintos.

A análise da organização espacial, portanto, nos fornece a base para o

entendimento dos processos de apropriação e dominação no espaço.

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2.4 – Apropriação e dominação no urbano: conflitos e contradições

A reprodução das relações sociais de produção e da luta de classe

se dá na apropriação e dominação do espaço no cotidiano, sendo

internalizada: no lazer, cultura, na escola e na universidade, ou seja, no

espaço inteiro (LEFEBVRE, 2008, p. 47). A reprodução da sociedade se

materializa no espaço; a cidade, portanto, é pensada, desejada e

construída pelos agentes responsáveis pela produção e reprodução do

espaço urbano. A partir da perspectiva que estamos entendendo o

espaço urbano, todas as formas de apropriação e dominação no urbano

representam contradições e conflitos que se materializam no espaço.

Uma das principais formas de apropriação e dominação do espaço

urbano que queremos salientar aqui é a caracterização do solo como

mercadoria nos espaços urbanos capitalistas. O valor do solo urbano

funciona como regulador da ocupação, e segundo Meyer (1978, p. 152), o

solo urbano visto como mercadoria está sujeito às regras do sistema

produtivo e de consumo. Concordamos com a autora quando afirma que a

apropriação da cidade é, portanto, um processo organizado, ordenado

segundo regras, métodos, princípios e estratégias. Estas ações são

coordenadas pelos agentes que atuam no urbano, tanto os que buscam a

manutenção do capital quanto os que buscam a reprodução da vida

cotidiana. O urbano, e todas as possibilidades que oferece, acaba por se

tornar o principal alvo da lógica capitalista, e as cidades, sua forma

material, viram alvo de intensa especulação, principalmente aquelas que

apresentam vantagens comparativas. Conforme aponta Rodrigues (2007),

a cidade-mercadoria não é trocável no “mercado como um objeto”. Não se transmite, em tese, a “propriedade da cidade em sua totalidade”. O que se vende são fragmentos de lugares, pólos de investimentos para capitalistas nacionais e estrangeiros com o objetivo de aumentarem lucros, rendas e juros. Os fragmentos de lugares para eventos, atividades turísticas e de investimento, visando à incorporação imobiliária de bairros nobres, de condomínios murados e, como totalidade, a cidade-mercadoria vende imagem de prefeitos como “gestores” capitalistas. Nas democracias eleitorais, simbolicamente um prefeito

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entrega ao novo a “chave da cidade”, mas não a “propriedade da cidade”.

O espaço como mercadoria acaba por ocultar as suas

especificidades, que é então apropriada como valor de troca pelos

proprietários fundiários e promotores imobiliários, cujo conteúdo não é

mais percebido pelos indivíduos, posto que estão submetidos à troca e à

especulação. Segundo Carlos (1994, p. 193), a troca se sobrepõe ao uso

“num processo de produção assentado na propriedade privada da terra

que gera a apropriação diferenciada do espaço por extratos diferentes da

sociedade”. Vale ressaltar também que o alto valor do solo urbano em

cidades localizadas em países do terceiro mundo contribui

consideravelmente para a manutenção da pobreza, funcionando como

causa e conseqüência desta (SMOLKA, 1986, p.208). Além disso, após a

crise econômica da década de 1970 e as modificações nas relações

sociais de produção, as cidades refletem e alimentam esse processo,

funcionando como locus da naturalização e expansão da miséria nos

grandes centros urbanos do país (FRIDMAN, 1991, p. 143). Na cidade do

Rio de Janeiro, a escassez de espaços disponíveis para a construção e

com infra-estrutura adequada5 faz com que o valor do solo em áreas

dotadas de infra-estrutura e de amenidades naturais suba bastante, como

é o caso da Zona Sul, deixando grande parte da população pobre da

cidade sem acesso ao solo, estando sujeita às disposições da livre

atuação do mercado imobiliário na cidade e do Estado. A ocupação da

Zona Sul da cidade por grupos sociais de alta renda permite a geração de

renda diferencial para os agentes sociais envolvidos com a valorização

imobiliária. A cidade do Rio de Janeiro possui atualmente o metro

quadrado mais caro do país, mas é na Zona Sul que estão os bairros com

os mais altos valores do solo, com os bairros do Leblon, Ipanema e Lagoa

5 É importante ressaltar aqui que nunca houve intensa escassez de solo na cidade do Rio

de Janeiro, mas as áreas de maior interesse econômico passaram por uma rápida ocupação,

forçando a busca por novas áreas de interesse econômico. Ao longo da ocupação da cidade, as

classes de maior poder aquisitivo já ocuparam os morros, depois os abandonaram em busca das

planícies litorâneas.

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liderando a lista6. As grandes avenidas localizadas a beira-mar colaboram

para elevar o preço do metro quadrado nestes bairros, principalmente as

avenidas Vieira Souto, em Ipanema e Delfim Moreira, no Leblon. Além

das amenidades naturais, como a praia, parques naturais e áreas de

lazer, a área é muito bem dotada de infra-estrutura urbana, possui grande

acessibilidade, disponibilidade de transportes e proximidade de teatros e

cinemas. A presença do poder público também é constante na região, e

todos estes fatores levam ao aumento do metro quadrado nestas áreas

(Foto 02).

Para aprofundar essa discussão a respeito do solo urbano como

mercadoria, torna-se importante discutir alguns aspectos do solo como

uma mercadoria que assume características diferentes, além de

aprofundarmos os conceitos de valor de uso e valor de troca que

assumem uma significação diferente dentro desta discussão.

Foto 2 – Avenida Vieira Souto, Ipanema

Fonte: Site Skyscrapercity.com

6 Segundo notícia veiculada no jornal O Globo de 09 de janeiro de 2008, intitulada “Rio de

Janeiro tem metro quadrado mais caro do país”. Disponível na internet

http://g1.globo.com/Noticias/Economia_Negocios/0,,MUL252524-9356,00.html

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Foto da Avenida Vieira Souto, localizada na área litorânea do bairro de Ipanema, onde estão localizados alguns dos imóveis de

maior valor da cidade.

O solo não pode ser colocado como uma mercadoria qualquer,

visto que possui um valor de uso de grande importância, que é a garantia

da manutenção da vida, do solo como moradia e como fonte de riqueza.

Torna-se aqui relevante resgatar os conceitos de valor de uso e valor de

troca, visto que estes encontram-se ainda como a melhor forma de

entender a contradição fundamental existente na premissa do solo urbano

como mercadoria. Partindo das idéias de Marx (apud Harvey, 1980, p.

132), observamos que estes conceitos não podem ser entendidos de

forma separada, já que só existem porque se relacionam entre si. “Um

valor de uso tem valor somente em uso, e realiza-se no processo de

consumo (...) e servem diretamente como meios de existência”. Já o valor

de troca é entendido aqui como uma “relação quantitativa; a proporção

pela qual valores de uso são trocados por outros”. A criação do valor de

troca se baseia no processo de aplicação de trabalho socialmente

necessário aos objetos da natureza para a criação de objetos materiais.

Ocorre, portanto, uma relação dialética entre o valor de uso e o valor de

troca, pois a mercadoria é a associação entre o valor de uso e valor de

troca, e este só adquire valor a partir do valor de uso.

Entender o solo como mercadoria exige observar alguns aspectos

importantes, pois o valor de uso e o valor de troca assumem diferentes

significados quando tratamos do solo urbano. Harvey (1980, p. 135)

afirma que o fato do solo e suas benfeitorias serem fixos os diferencia de

outras mercadorias, além de permitir o monopólio à pessoa que determina

o uso nesta localização. Outro fato importante é que o solo é uma

mercadoria indispensável para qualquer indivíduo, além de, para o

proprietário, permitir diferentes usos do solo. Um aspecto importante

também é a continuidade da propriedade, pois em geral não ocorre muita

troca de proprietário, o que gera também uma possibilidade de grande

acumulação de riquezas. Portanto, o solo torna-se uma mercadoria

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diferenciada, tornando-se alvo de intensa disputa, principalmente nas

grandes cidades, onde o solo adquire alto valor. Em geral, o que se

observa é que permanece até hoje uma sobreposição do valor de troca

sobre o valor de uso quando se trata do valor e da renda do solo, e que a

reprodução do espaço capitalista se dá a partir da priorização do valor de

troca em detrimento do valor de uso e das suas possibilidades, o que vai

permitir a reprodução ampliada do capital, gerando conflitos e

contradições na luta pelo solo urbano.

A importância que o solo assume como forma de reprodução do

capital é muito intensa. Os valores do solo assumem cada vez mais

valores diferenciados, de acordo com a atuação dos diferentes grupos

que atuam no mercado do solo urbano. A atuação dos incorporadores

imobiliários, dos proprietários e do Estado determina a distribuição das

benfeitorias (infra-estrutura urbana) e das externalidades7 de forma

diferenciada, o que vai gerar diferentes valores do solo urbano. A atuação

desses grupos determina espaços diferenciados, com valores de solo

diferenciados, determinando também o direcionamento da população para

cada área da cidade. Como esses grupos possuem os recursos

necessários e consequentemente grande poder de barganha política, são

capazes de determinar a disposição final dos recursos e da infra-estrutura

urbana, o que contribui para reforçar a desigualdade social na cidade

(HARVEY, 1980, p. 61). No caso da cidade do Rio de Janeiro, esta

desigualdade na distribuição dos recursos fica aparente quando

analisamos, historicamente, a implantação de infra-estrutura urbana. De

acordo com Kleiman (2002, p. 123), foram construídas

redes completas com nível satisfatório de serviços e constantemente renovadas e tecnicamente sofisticadas nas áreas em que havia um nexo aparente entre os interesses do capital imobiliário e a moradia de camadas de renda alta e média situadas na Zona Sul e Norte, em parte dos subúrbios e mais recentemente na Barra da Tijuca. Por outro lado, destacam-se a ausência de redes

7 Segundo Gregory (2001, p. 11), externalidade é o impacto das ações de alguém sobre o

bem-estar dos que estão no entorno, pode ser positiva ou negativa. Um exemplo de externalidade

positiva é a implantação de infra-estrutura, como uma praça ou a construção do metrô; já um

exemplo claro de externalidade negativa é a poluição de uma fábrica.

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completas, o não-provimento de serviços ou sua configuração lenta, descontínua e sem manutenção, em áreas de residência de camadas de baixa renda, situadas na Zona Oeste e na Baixada Fluminense, principalmente nos loteamentos e em favelas.

Com toda esta discussão queremos mostrar o quanto o urbano é

apropriado pelos agentes detentores do capital e consequentemente do

solo urbano, o que gera intensa desigualdade na distribuição dos recursos

e da população, onde as áreas que possuem maior valor, pela presença

de infra-estrutura ou de amenidades, são apropriadas e o processo de

reprodução do espaço se dá de forma planejada e induzida pelos

promotores imobiliários e pelo Estado. Nas áreas onde não há o interesse

do capital, o valor do solo urbano é mais baixo e o processo de

reprodução do espaço ocorre de forma espontânea.

Utilizando como exemplo a área em estudo, na Zona Sul é possível

observar a presença da associação entre o Estado e os incorporadores

imobiliários. A Zona Sul, como área primeiramente dotada de infra-

estrutura fora do centro da cidade, recebeu em grande parte os grupos

sociais mais abastados como local de moradia. É importante também o

papel da difusão de uma ideologia voltada para as amenidades naturais,

onde a presença do mar passou a ser vista como saudável, como

possibilidade de contato direto com a natureza.

O processo de produção e reprodução do espaço urbano, por

servir aos interesses de determinados agentes, gera, portanto, um intenso

processo de segregação social. Concordamos com Ribeiro (2002, p.79)

quando afirma que

a segregação residencial e as desigualdades de condições de vida entre os territórios da metrópole resultam da ação dos grupos sociais interessados na apropriação da renda real, entendida como o acesso desigual ao consumo dos bens e serviços coletivos (qualidade de vida), e os ganhos decorrentes da valorização imobiliária e fundiária dos terrenos mais bem equipados. Como as regiões de maior renda real são as que concentram os segmentos de maior renda monetária forma-se um processo de causação circular, que tende sempre a

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instaurar e a aumentar a desigualdade social na cidade.

O processo de reprodução do espaço urbano sempre esteve,

portanto, marcado pela diferença na implantação de infra-estrutura e na

modernização dos equipamentos urbanos, que alteram o valor do solo e

produzem melhorias nas moradias já valorizadas, tornando o solo cada

vez mais inacessível para uma camada cada vez maior da população

(VAZ, 1991, p. 140). A contradição e o antagonismo na distribuição da

população estão expressos na paisagem urbana, onde a desigualdade

pode ser vista na diferença das construções, no padrão “informal” de

moradia, na presença de infra-estrutura e no acesso aos meios de

consumo coletivos (CARLOS, 1994, p. 52). A segregação social expressa

na paisagem urbana reflete também a distribuição do poder social na

sociedade, segundo Ribeiro (2004, p. 27), entendendo esta distribuição

também como a capacidade diferenciada de atuação dos grupos e

classes na obtenção dos recursos urbanos

Uma das expressões mais claras da desigualdade social nas

cidades, se encaixando muito bem no caso do Rio de Janeiro é a

presença das favelas, áreas voltadas para uma população

economicamente desfavorecida, onde existe grande deficiência de infra-

estrutura e meios de consumo coletivos8. A favela se expressa como o

exemplo máximo de exclusão nas cidades, e este processo tende a

aumentar cada vez mais com as atuais modificações nas relações de

produção, com o aumento do desemprego em um nível internacional, a

atuação dos organismos internacionais e a implantação de um modelo

econômico e de desenvolvimento baseado na ideologia neoliberal, com a

diminuição da atuação do Estado na promoção de infra-estrutura e de

políticas sociais, tem promovido um aumento na pobreza e no processo

de favelização no mundo. Acreditava-se que um modelo de

8 Temos que levar em consideração aqui a heterogeneidade das favelas, principalmente as

favelas cariocas. No texto, estamos falando de forma geral, mas olhando alguns casos específicos é

possível observar favelas bem servidas de infra-estrutura e de equipamentos coletivos, baseados

nas observações do campo e nos dados fornecidos pela IPP e pelo IBGE, que mostra favelas, com

quase 100% dos domicílios servidos de água e rede de esgoto, além da presença de praças,

parques, escolas, etc.

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desenvolvimento baseado no crescimento econômico conduziria à

redução das desigualdades sociais, mas na prática o modelo

desenvolvimentista deixou claro que não tem compromisso com a

integração social (DAVIS, 2006, p. 71; VAINER & SMOLKA, 1991, p. 24).

É preciso deixar claro que o aumento da pobreza ocorre em uma

escala global, mas as conseqüências do processo são tratadas somente

na escala do local, tornando importante o entendimento de que as

modificações nas relações de produção ocorrem em todos os lugares e

podem ser apontadas como uma das causas da escalada da pobreza nas

grandes cidades, sendo necessário tratar da causa, tratar de diminuir a

desigualdade social e a desigualdade entre as regiões do planeta, sem

deixar de lado as especificidades na reprodução do espaço urbano de

cada lugar (PRÉTECEILLE, 1994, p. 67). Para analisar estas causas,

devemos buscar as teorias gerais sobre a produção da pobreza, mas

sempre buscando as explicações também na lógica da reprodução do

capital e nas características locais dos lugares onde a pobreza está sendo

reproduzida e ampliada (op cit, 2004, p. 12).

O surgimento das favelas nas cidades esta relacionado com uma

luta pelo espaço, com o esforço de grupos sociais de baixa renda para

permanecer no urbano, onde existe maior possibilidade de estar próximo

ao local de trabalho. Com o alto valor do solo, as áreas não valorizadas

pelos agentes imobiliários tornam-se local de moradia, espalhando-se por

todo o urbano e participando do processo de crescimento das cidades. As

favelas revelam a resistência do urbano em absorver uma população de

baixa renda e a determinação de uma população excluída e que tem seu

direito à moradia negado devido ao alto preço do solo. “A favela é uma

permanente denúncia do sistema de práticas sociais contraditórias que

ameaçam a ordem estabelecida, isto é a ordem urbana” (MEYER, 1978,

p. 154). Para Sherrard (apud HARVEY, 1980, p. 64),

a favela é abrigo coletivo dos vencidos, e no esforço competitivo pelos bens urbanos as áreas faveladas são também as vencidas em termos de escolas, negócios lojas de quinquilharias, ruas iluminadas, livrarias, serviços sociais, além de tudo o que é comumente útil, e sempre com pouca

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oferta. A favela então é uma área onde a população carece de recursos para competir com sucesso, e onde coletivamente há a necessidade de controle sobre os canais através dos quais tais recursos são distribuídos ou mantidos.

Fica clara aqui a idéia da favela como resistência, como a luta de

uma população sem recursos para se manter no valorizado solo urbano,

que busca alternativas para a sua sobrevivência. Queremos aqui rechaçar

a idéia de uma visão da favela como patologia, como algo que precisa ser

combatido e desaparecer da paisagem urbana, até porque não é isso que

ocorre na prática. As cidades utilizam as áreas faveladas como reserva de

mão-de-obra barata, como uma necessidade de exploração e exclusão

necessária a reprodução do capital. Nestas observações percebemos

uma contradição fundamental, a favela vista como algo indesejável, algo

que não é o urbano que não compartilha da ordem urbana, mas ao

mesmo tempo importante para a reprodução ampliada do capital. Este

conflito expressa-se a partir de representações da favela no imaginário

social, sendo a favela um mundo diferente que surge na paisagem

urbana, que vai contra a ordem social estabelecida (VALLADARES, 2005,

p. 28). A favela, portanto, não é considerada como pertencente ao

urbano, é vista como uma desordem, mas está materializada na

paisagem das cidades.

No Rio de Janeiro, o processo de exclusão da população pobre se

inicia ainda no processo de formação da cidade, quando a área

urbanizada ainda era bastante restrita ao centro da cidade. A população

pobre encontra como possibilidade de moradia os cortiços e,

posteriormente, as áreas de encostas, constituindo-se assim as primeiras

favelas na cidade. No caso da Zona Sul, que se constituiu como uma área

destinada a atuação do capital imobiliário associado ao Estado, surgem

também importantes áreas de concentração da população pobre,

constituindo enclaves de população de baixa renda nos bairros voltados

para classes sociais abastadas, sendo esta ocupação “tolerada” pelos

agentes imobiliários e pelo Estado. A explicação para esta tolerância nos

é apontada por Lago (2000, p. 40), quando afirma que “a favela seria uma

estratégia de inserção dos pobres no mercado de trabalho”. As favelas da

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Zona Sul seriam uma reserva de mão-de-obra desqualificada nas

proximidades dos locais onde mais se utilizava esse tipo de mão-de-obra.

Bairros como Copacabana e Leme, já na década de 1930, recebiam

grande número de migrantes, principalmente nordestinos, que vinham

trabalhar na construção civil e que ocupavam as áreas de encosta dos

bairros, dando origem às favelas hoje existentes.

A cidade do Rio de Janeiro passa, portanto, por um intenso

processo de favelização, mas que ocorre em uma lógica um pouco

diferenciada de outras grandes cidades. Na cidade do Rio de Janeiro, e

principalmente na Zona Sul, o processo de segregação é marcado por

uma distância social com uma proximidade física. Diferentes grupos

sociais estão presentes dentro da mesma área, que se apresenta,

portanto, bastante heterogênea quanto aos grupos sociais presentes.

Apesar da proximidade física, não significa que exista interação entre os

grupos, que ambos participem do cotidiano dos bairros. Os equipamentos

urbanos dos bairros da Zona Sul, voltados para grupos sociais de alta

renda, são voltados para atender as necessidades deste grupo, não

atendendo as necessidades dos grupos de baixa renda (RIBEIRO, 2002,

p. 84; LAGO, 2002, p 155). Ainda sobre estes apontamentos, Lago (2002,

p. 155) afirma que nas últimas décadas surgem novas representações

sobre o urbano que se manifestam em um novo tipo de segregação

urbana devido ao surgimento dos espaços de confinamento (shoppings,

condomínios fechados), que apresenta por um lado, a redução da escala

da segregação e a conseqüente “aproximação” entre os grupos sociais, e

por outro lado, “a redução do grau de interação entre grupos socialmente

distintos em função do confinamento dos grupos superiores em espaços

privados e da estigmatização dos espaços da pobreza como espaços da

violência”.

O processo de favelização que ocorre nas grandes cidades é

conseqüência do fracasso de diferentes políticas habitacionais e do

planejamento urbano, além do intenso processo de mercantilização do

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solo e alto custo de moradia9, pois não é interessante para os agentes

responsáveis pela reprodução do espaço urbano se preocupar com

melhorias nas áreas de população de baixa renda. A preocupação com a

questão das favelas, principalmente nos países subdesenvolvidos, foi

crescente no século XX, e cada vez mais se torna preocupante o

crescimento da população favelada, uma população completamente à

margem dos recursos básicos de sobrevivência. Esta preocupação

aumenta também devido à questão do aumento da violência nos países

pobres, onde a violência está associada aos processos de segmentação

territorial, pois separa as classes em espaços de abundância e integração

e espaços de concentração da população em situação de exclusão social

(RIBEIRO, 2004, p. 10).

O que tentamos deixar claro aqui nesta discussão teórica é que

entendemos o espaço urbano como marcado por conflitos e contradições,

e salientamos aqui como exemplo máximo desta contradição a presença

de áreas faveladas em grandes metrópoles, que ocorre devido ao

processo de reprodução do espaço urbano estar marcado pela

contradição entre os interesses de reprodução do capital e os interesses

da sociedade como um todo, utilizando como exemplo a Zona Sul da

cidade do Rio de Janeiro.

2.5 – A dimensão do cotidiano como categoria de análise

Para nos guiar nesta discussão conceitual, tomamos por base as

idéias de Henri Lefebvre sobre o cotidiano e as representações e sua

importância na formação da sociedade atual. Não buscamos definir um

conceito fechado sobre o cotidiano, mas sim abrir uma possibilidade de

discussão sobre o espaço urbano e a sociedade organizada nesse

espaço, fazendo uma leitura da vida cotidiana na Zona Sul da cidade do

Rio de Janeiro.

9 Vaz (1991, p. 138), citando Benjamin (1985), faz uma interessante análise sobre como o

espaço torna-se mercadoria ao longo da história da humanidade, quando o valor de troca do solo e

da habitação sobrepõe-se ao valor de uso.

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Segundo Lefebvre (1991, p. 82), “a cotidianidade seria o principal

produto da sociedade dita organizada, ou de consumo dirigido, assim

como sua moldura, a modernidade”. Para pensarmos a importância da

dimensão do cotidiano na produção do espaço urbano e da sociedade,

temos de pensar inicialmente em como esta sociedade está organizada.

Na sociedade atual, predominam relações sociais de produção desiguais

e a luta de classes, em que o objetivo e a legitimação da sociedade estão

baseados na satisfação e no consumo. A reprodução das relações sociais

e da luta de classes se dá na apropriação do espaço e na vida cotidiana.

A cotidianidade é construída historicamente, onde se cria um jogo

de poderes que garante a manutenção da reprodução econômica e social

citada anteriormente. O cotidiano, segundo Costa e Heidrich (2007, p. 83),

constitui-se por uma estrutura social de atividades banalizadas mas que, em suas profundezas, representam uma complexa trama histórica de produções ideológicas e materiais que servem como mecanismos de reprodução de poderes que abarcam e alienam os indivíduos transformando-os em atores sociais.

Para garantir a manutenção da ordem atual, a sociedade capitalista

cria símbolos e ferramentas para garantir a reprodução das relações

sociais de produção, tendo o cotidiano transformado estas relações em

“banais”. O cotidiano se apropria da criação, da liberdade, do consumo,

transformando-os em mercadoria. O papel da alienação aqui é

fundamental, que tende para uma totalidade, e busca inclusive apagar a

própria consciência da alienação. A alienação faz com que as pessoas

não consigam diferenciar satisfação de consumismo.

A sociedade atual, dita de consumo, é baseada na satisfação de

coisas (objetos), de prazer, de lazer, e também de espaço. Lefebvre

(1991, p. 89) faz uma análise interessante sobre esta questão da

satisfação e do consumo:

A necessidade se compara a um vazio, mas bem definido, a um oco bem delimitado. O consumo e o consumidor enchem esse vazio, ocupam esse oco. É a saturação. Logo que atingida, a satisfação é

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solicitada pelos mesmos dispositivos que engendraram a saturação. Para que a necessidade se torne rentável, é estimulada de novo, mas de maneira um pouquinho diferente. As necessidades oscilam entre a satisfação e a insatisfação, provocadas pelas mesmas manipulações. Desse modo, o consumo organizado não divide apenas os objetos, mas a satisfação criada pelos objetos.

Podemos pensar que existe, portanto, um constante mal-estar,

uma eterna insatisfação. Lefebvre (1991, p. 89) já aponta que este mal-

estar veio “acompanhado de uma crise de valores, das idéias, da filosofia,

da arte e da cultura”, formando um cotidiano que se apropria facilmente

do desejo. O autor descreve também o papel da publicidade na formação

da cotidianidade.

A publicidade fornece uma ideologia do consumo, “uma

representação do” eu “consumidor que se satisfaz como consumidor”,

baseia-se em uma existência imaginária das coisas. A publicidade não

separa o consumo de objetos do consumo de signos, imagens e

representações (LEFEBVRE, 1991, p. 100). Lefebvre faz uma discussão

importante sobre como o consumo chega a cada camada social e como a

classe trabalhadora consome grande quantidade de signos, assim como a

classe média, submetida a imagens das quais ela é somente

expectadora.

Trazendo esta discussão da sociedade para a reprodução do

espaço urbano, podemos afirmar que o cotidiano, o vivido, colabora para

que a cidade se organize de forma hierárquica, com lugares “destinados”

a cada camada social, conforme observamos na Zona Sul. Isto envolve

também uma discussão de consumo do espaço, onde lugares são

transformados em aprazíveis ou desprezados pela sociedade, onde

surgem lugares segregados. Segundo Carlos (2005, p. 194), “o cotidiano

aparece enquanto construção da sociedade, que se organiza segundo

uma ordem fortemente burocratizada, preenchido por repressões e

coações”. É no cotidiano que é possível entender a contradição

fundamental entre o espaço vivido e o espaço concebido. É no nível do

cotidiano que está a reprodução da vida em sociedade, que revela que o

homem habita o espaço ativamente. Neste sentido, concordamos com

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Santos (2008, p. 315) quando afirma que o cotidiano permite o

entendimento do mundo vivido, onde a questão simbólica ganha

visibilidade e os conflitos emergem.

Fica claro assim porque a dimensão do cotidiano torna-se

fundamental para entender os conflitos e contradições que se expressam

no espaço urbano da cidade do Rio de Janeiro. A cotidianidade, realizada

individualmente e subjetivamente, tem influência fundamental na

formação da sociedade atual, marcada pela desigualdade social. O

cotidiano, a vida que se realiza no dia-a-dia, submetida a uma estrutura

econômica, social e política, nos serve aqui para tentar explicar como a

cidade materializa os interesses de uma sociedade marcada pela

exploração, pela desigualdade e pela luta por sobrevivência e liberdade.

Dentro desta ordem rígida surgem contextos sociais que se diferenciam,

mas que permanecem controlados a partir de normas e procedimentos. O

vivido permite esta interação e esta tentativa de fuga, mas que

permanecem abafados, sob a “homogeneidade” da vida urbana.

Além disso, é na cotidianidade vivida que surge a possibilidade de

transformação social e de luta por justiça social. Esta dimensão permite

que surjam grupos de resistência, grupos de pessoas que percebem seu

cotidiano e o negam. Estes grupos se multiplicam na atualidade, sob a

forma de ONGs, movimentos sociais, como forma da sociedade de

participar diretamente da distribuição, ou da contestação, da geração da

riqueza e do poder.

Determinados movimentos sociais de cunho urbano caracterizam a

“resistência à imposição de uma cidade como mercadoria, construída a

partir de consensos que despolitizam as mobilizações, reforçam o reclamo

referente ao direito à Cidade e à justiça social” (MARTINS, 2009, p. 34). O

cotidiano, portanto, nos permite o olhar próximo da realidade, do vivido, e

se expressa como campo de luta a partir de sua negação (Foto 03).

Foto 3 – Cena do Filme Hiato – 2000

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Fonte: site youtube.com

O documentário Hiato (2000) traz uma reflexão sobre o abismo entre as classes sociais do nosso país e a forma como se relacionam. O filme

mostra o grande hiato entre as classes, quando movimentos sociais se organizaram para uma visita a um famoso shopping em São Conrado, na

zona sul da cidade, com lojas de grifes nacionais e internacionais, e sofreram forte repressão policial, alem de serem rechaçados também por

lojistas e freqüentadores do shopping.

2.6 – O direito à cidade

O espaço urbano é a marca da sociedade que o produz, sendo

constantemente transformado. A produção do espaço capitalista gera

conflitos e contradições, conforme nos aponta Carlos (2006, p. 286)

quando diz que “o conflito é produto da contradição entre o espaço vivido

como valor de uso e o espaço que se reproduz, tendencialmente, como

valor de troca; um conflito que se desenvolve na vida cotidiana e se

manifesta como problema espacial. (...) Esse conflito é prático (social)”.

Se a cidade e o urbano têm a capacidade de influenciar na

organização da sociedade no espaço urbano, é necessário que se discuta

o acesso aos diferentes equipamentos urbanos, ao lazer, a reunião, a

informação pelos diferentes atores sociais, e como este acesso se dá de

forma desigual. A cidade reproduz e expressa, portanto, toda a

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desigualdade existente na sociedade capitalista, e o direito à cidade fica

assim comprometido.

De acordo com Buonfiglio (2007, p. 01) “o conteúdo radical do

direito à cidade nos abre uma perspectiva de análise da cidade como

objeto de luta”. A cidade, a vida cotidiana e o imaginário social vindo

desta cotidianidade abrem um campo para discutirmos o direito à cidade,

tanto por meio material, com implantação de infra-estrutura urbana e

moradia digna, quanto por meio imaterial, através da luta de cada grupo

pela produção do seu próprio espaço. (MARTINS, 2009, p. 34)

O que entendemos aqui como direito à cidade, como direito à vida

urbana, direito aos equipamentos urbanos, ao controle do território, direito

à atividade criadora, simbolismo, à atividades lúdicas. O direito a cidade

deve passar pela participação na formação do território e pela real

apropriação do grupo social sobre o território que ele ocupa. O direito à

cidade “deveria modificar, tornar mais concretos e práticos os direitos do

cidadão, tornado citadino, usuário de múltiplos serviços” (LEFEBVRE,

1991, p. 8).

O direito à cidade é visto como uma utopia, ou utopiano, como

aponta Lefebvre (2008, p. 34), algo que deve ser constantemente

buscado, desejado, pensado à perfeição. Segundo Harvey (2006, p. 239-

240) a alternativa que corresponde melhor a contemporaneidade é a

busca por um utopismo espaço-temporal (utopismo dialético), onde “a

produção do espaço e do tempo terão de ser incorporadas ao

pensamento utópico”. Negando teorias utópicas que vêem o espaço como

uma forma espacial fixa, como uma produção pensada e desenvolvida

pelos atores sociais dominantes e pelo Estado, Lefebvre e Harvey

apontam que a produção do espaço deve permanecer uma possibilidade

aberta. O direito à cidade deve ser incluído no planejamento urbano, mas

para que seja efetivo é necessário que ocorram profundas mudanças nas

relações sociais, incluindo o modo de produção (LEFEBVRE, 2008, p.

34).

O que queremos enfatizar nesta discussão é o quanto é importante

o domínio e a apropriação do território pelos usuários desse espaço. Já

demonstramos aqui o quanto é importante esta apropriação para a

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utilização do espaço como um instrumento. Lefebvre (1991, p. 104)

chama a atenção para a necessidade criadora, de obra, de concepção do

espaço de moradia, de convívio e de reunião. Neste sentido,

concordamos com Harvey (2009, p. 3) quando diz que não é possível

solucionar os problemas urbanos e os conflitos pelo solo urbano se não

for garantida a participação dos cidadãos nos processos de produção e

configuração das cidades, e que o direito à cidade envolve, portanto, o

direito de participar da produção e da reprodução do tecido urbano de

forma a atender as necessidades da massa da população.

A questão do direito à cidade passa, portanto, pela luta dos

diferentes grupos sociais pelo domínio e apropriação do espaço urbano

nas grandes cidades capitalistas. Desta luta surgem espaços segregados

e locais onde surgem pequenas formas de resistência. A luta das classes

por melhores condições também envolve naturalmente a busca pela

melhor localização espacial e a utilização dos equipamentos urbanos.

O espaço urbano capitalista, hoje, é marcado por essas

características: uma aparente ausência de ordem, mas uma tendência à

homogeneidade e ao mesmo tempo à diversidade (hierarquia) dos

lugares, ou a homogeneidade do todo e a diversidade das partes, que se

contrapõem na cidade e evidenciam uma relação dialética. O urbano é

local de conflito entre classes sociais que disputam a apropriação do

espaço, locus das relações sócias de produção, que geram grande

desigualdade na organização do espaço.

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3. As favelas no Rio de Janeiro: Origem e situação atual

Favela Macedo Sobrinho – removida em 1970

Barracão De zinco

Sem telhado Sem pintura lá no morro

Barracão é bangalô Lá não existe

Felicidade De arranha-céu

Pois quem mora lá no morro Já vive pertinho do céu

(Herivelto Martins)

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Para entender o processo de produção do espaço urbano na

cidade do Rio de Janeiro e como este processo contribuiu para a atual

organização do espaço, caracterizada pela intensa fragmentação social, é

necessário voltar ao processo de formação da cidade, principalmente ao

inicio de sua transformação em espaço adequado às exigências do modo

de produção capitalista. Este período, correspondente a segunda metade

do século XIX, nos interessa aqui devido ao seu papel transformador da

cidade, de sua antiga forma colonial-escravista para uma cidade

adequada aos interesses do capital e do Estado Republicano.

Neste capítulo, buscaremos apresentar a formação e o

desenvolvimento da cidade tendo como foco o objeto de estudo favela e

as contradições que envolvem a sua localização. As favelas surgem e se

espalham pela paisagem de toda a cidade ao longo dos séculos XIX e

XX, mas entendemos que estão inseridas na lógica da formação

econômica e social da cidade. Por isso, optamos pela divisão do capítulo

por tópicos para a melhor visualização do tema e do objetivo que nos

propomos aqui. O entendimento das origens da favela e como elas se

desenvolvem na cidade do Rio será importante para compreendermos os

conflitos e contradições que envolvem a relação entre a favela e os

bairros.

2.1 – O surgimento das favelas na paisagem carioca

Segundo Abreu (1988, p. 35), é somente a partir da segunda

metade do século XIX e início do século XX que a cidade passa por um

processo de transformação em sua forma urbana, apresentando pela

primeira vez uma estrutura de classes espacial marcada pela

estratificação em termos de classes sociais. A abolição da escravatura, o

surgimento da indústria e o incremento do comércio e serviços na área

central da cidade fazem com que se solidifiquem as classes sociais e se

inicie uma luta pelo espaço, gerando conflitos que vão se refletir

claramente no espaço urbano da cidade.

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O principal conflito vai surgir com a presença dos pobres na área

central da cidade. Segundo Abreu (1988, p. 42),

sede agora de modernidades urbanísticas, o centro, contraditoriamente, mantinha também sua condição de local de residência das populações mais miseráveis da cidade. Estas, sem nenhum poder de mobilidade, dependiam de uma localização central, ou periférica ao centro, para sobreviver. (...) A solução era então o cortiço, habitação coletiva e insalubre e palco de atuação preferencial das epidemias de febre amarela.

Os cortiços, grandes casarões onde morava grande número de

famílias, abrigavam cerca de 50% da população carioca no período entre

1850-70 (CAMPOS, 2004, p.53). No ano de 1866, proíbe-se a construção

de novos cortiços e se instala a “ideologia da Higiene”, dando início ao

processo de destruição dos cortiços. A população pobre vai sendo aos

poucos expulsa do centro da cidade. O período que nos chama atenção

aqui é o que corresponde ao fim dos cortiços na área central, pois este

período significa um momento marcante de exclusão social dos pobres na

cidade do Rio de Janeiro. Concordamos com Vaz (1991, p. 140) quando

aponta que ocorreram três momentos principais de exclusão social na

evolução urbana da cidade: a proibição e demolição dos cortiços, as

reformas e modernização da área central e o código de obras de 1937,

que adotou a verticalização como solução para o problema da moradia,

ratificando seu caráter elitista e lançando a moradia da classe de baixa

renda na ilegalidade. É a partir da condenação e proibição dos cortiços

que vamos analisar a evolução das favelas na cidade do Rio de Janeiro.

Esta população, conforme Abreu ressalta, não podendo se afastar

do centro da cidade, de uma maior concentração de ofertas de trabalho,

vai buscar outras formas de se manter no centro, surgindo então as

primeiras favelas. O desenvolvimento urbano da cidade e a falta de

mobilidade do pobre fazem com que se torne fundamental para ele

permanecer nas áreas centrais, independente das condições de

habitação que são “oferecidas”. Segundo Lessa (2005, p. 291),

“prevalecerão a busca de proximidade com o mercado de subsistência e a

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redução de tempo de deslocamento, em detrimento da densidade e

insalubridade nos ex-quilombos, cortiços e favelas.”

Segundo Abreu e Vaz (1991, p. 2),

o aparecimento da favela está intimamente ligado a todo um conjunto de transformações desencadeadas pela transição da economia brasileira de uma fase tipicamente mercantil-exportadora para uma fase capitalista-industrial. (...) Trata-se do momento em que a economia cafeeira fluminense entra em crise (...) reorientando toda uma estrutura já consolidada de comportamento do capital mercantil; do momento em a cidade passa a ter um crescimento demográfico extremamente rápido (fruto de migrações internas e estrangeiras) que agravava sobremaneira a questão habitacional.

A tese mais difundida a respeito do processo de formação das

favelas é a de que a primeira favela surge com a chegada dos soldados

que combateram em Canudos e ocuparam as encostas do Morro da

Providência (que ficou conhecido como Morro da Favela, dando origem a

denominação) e de Santo Antônio a partir de 1897, ainda na área central,

revelando-se a primeira contradição, que é a falta de moradias suficientes

para atender a população que chegava à capital do país. Inicia-se assim,

segundo Abreu (1988, p 36) uma separação dos usos e das classes na

cidade.

Foto 4 – Morro da Favella, início do século XX

Fonte: site favelatemmemória.com.br

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Foto 5 – Morro de Santo Antonio – 1914

Fonte: KOK, Glória. Rio de Janeiro na época1

As imagens mostram os primeiros morros ocupados na região central pela população pobre da cidade. O morro da Favella estava localizado logo atrás do principal cortiço da

cidade, o “Cabeça de Porco”, e onde hoje se localiza a favela da Providência. O morro de Santo Antônio foi

parcialmente demolido para a construção do Aterro do Flamengo e para a abertura de duas grandes vias na cidade, sendo a população retirada do local. Chama atenção nas fotos a precariedade das construções

(basicamente de madeira e zinco) e a falta de qualquer infra-estrutura urbana.

2.2 – A expansão das favelas: Subúrbio e Zona Sul

A implantação dos trens e dos bondes vai ajudar a orientar esta

separação, sob o “comando” do Estado e dos proprietários dos meios de

produção, permitindo a efetiva expansão da cidade e o espraiamento da

população para novas áreas da cidade. Segundo Abreu (1988, p. 43), o

período entre 1870 e 1902 representa a primeira fase de expansão

acelerada da malha urbana carioca.

No início do século XX, os trens vão ser fundamentais para a

ocupação das áreas suburbanas da cidade, enquanto os bondes, sendo

implantados por empresas privadas, em geral internacionais, vão orientar

a ocupação da Zona Sul da cidade. Neste período já estava se 1 Disponível na internet no site www.educacaopublica.rj.gov.br/.../image008.gif

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delineando a ocupação da Zona Sul pelas classes sociais mais abastadas

da época. Onde antes se tinham pequenas chácaras de fim de semana e

pequenas comunidades pesqueiras, começam a surgir alguns dos mais

importantes bairros da cidade, voltados para atender as classes de mais

alta renda.

A Reforma Passos, ocorrida no início do século XX, foi fundamental

para determinar a expulsão dos pobres do centro da cidade. Ao abrir

grandes espaços, alargar ruas e destruir cortiços que ainda restavam, a

administração Passos

viabilizou então o desenvolvimento de sua própria negação, ou seja, a proliferação de um habitat que já vinha timidamente se desenvolvendo na cidade e que, por sua informalidade e falta de controle, simbolizava tudo o que se pretendeu erradicar da cidade. Este habitat foi a favela (ABREU e VAZ, 1991, p. 3).

Foto 6 – Abertura da Avenida central – 1904-1905

Fonte: Fonte: KOK, Glória. Rio de Janeiro na época

A imagem mostra a demolição de casas e cortiços na área central da cidade para a abertura da Avenida Central, no

início do século XX. A avenida foi uma das mais importantes obras da chamada Reforma Passos, e

contribuiu bastante para retirar do centro muitos cortiços e expulsar grande número de população pobre.

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A presença da favela na área central e na Zona Sul da cidade se

configura como uma importante contradição no espaço urbano. Já neste

período, as classes sociais mais abastadas começaram a ir em direção a

Zona Sul da cidade, na área litorânea, já no final do século XIX, quando

se difunde a idéia da praia como amenidade, como local de práticas

esportivas e saudáveis, chamando atenção também a possibilidade de

um maior contato com a natureza. Bairros mais próximos ao centro, como

Glória e Catete, sempre receberam esta população mais abastada, sendo

seguidos por Botafogo já na metade do século. É importante lembrar

também que este movimento das classes mais altas da sociedade carioca

para a chamada Zona Sul foi acompanhado de perto pelo Estado e pelos

agentes imobiliários, que ao mesmo tempo em que produziam o espaço

voltado para as classes altas, criavam assim condições para a chegada

de trabalhadores pobres aos locais reservados às classes altas. A

ocupação da Zona Sul, portanto foi pensada, planejada e financiada pelos

agentes de reprodução do espaço urbano que desejavam a reprodução

do capital e atender as necessidades de uma população de alta renda, e

que permitiram também a presença e ocupação de trabalhadores pobres

no local para atender a demanda de mão-de-obra.

O Estado sempre esteve presente no processo de urbanização da

Zona Sul, dotando da infra-estrutura necessária para a ocupação das

classes altas. É importante aqui ressaltar que estas áreas não eram

totalmente desabitadas antes da ocupação pelos promotores imobiliários.

Além de algumas residências de classes altas, havia no local pequenas

populações de pescadores (Copacabana) e residências pobres (Lagoa).

Ao longo da ocupação da área pelos agentes imobiliários e pelo Estado,

estas populações foram expulsas.

A expansão para o restante da Zona Sul ocorreu na segunda

década do século XX. A partir da década de 1920, iniciou-se a ocupação

de Copacabana, sendo impulsionada pela construção do Hotel

Copacabana Palace, pelo chamado Túnel Velho, ligando Botafogo a

Copacabana, e pela instalação de uma linha de bonde integrando todo o

bairro (a linha data do final do século XIX). Neste período, iniciou-se

também a construção de um loteamento voltado para as classes altas da

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sociedade para a ocupação de Ipanema e Leblon. Também neste

período, a chegada do Bonde até a freguesia da Gávea permitiu sua

efetiva ocupação. O Mapa 01 mostra a localização da área referente à

Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro.

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Mapa 01: bairros da zona sul na cidade do rio de janeiro

Zona Sul

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2.3 – A Chegada do migrante

O desenvolvimento da área central e da Zona Sul e a expansão

industrial ocorrida no início do século XX vão atrair grande número de

migrantes e população pobre para a cidade, que teve grande incremento

populacional nesse período. O Estado, voltado para atender aos

interesses do capital industrial e imobiliário, não desenvolveu políticas

habitacionais que dessem conta desse grande quantitativo populacional

pobre que a cidade recebeu.

A cidade do Rio de Janeiro, como capital do Império e da república,

sempre possuiu um importante potencial de atração de pobres em busca

de melhores condições de vida e possibilidades mobilidade vertical.

Segundo Lessa (2005, p. 292), a metrópole carioca desde o século XX,

assim como outras metrópoles, possuem intensa atração da pobreza, e

nesse momento principalmente a pobreza rural, porque, segundo Lessa

(2005, p. 293), a metrópole

Apesar de toda a precariedade, eleva o padrão de bem-estar e a acessibilidade aos serviços sociais. A metrópole, quando cresce, é um canteiro de obras e um espaço de possibilidades que atrai, continuamente, mão-de-obra livre e pobre das cidades menores e da zona rural.

A cidade atraiu grande contingente de migrantes, desde o início do

século XIX2, principalmente de portugueses, tendo sendo o Rio de

Janeiro o principal destino deste grupo. Já na segunda metade do século

XX este fluxo diminui, ganhando força o fluxo de migrantes de outras

regiões do país, principalmente do Nordeste. É importante aqui destacar

que essas levas de imigrantes, principalmente nordestinos, vão dar

origem a novos pontos de concentração de população pobre e,

consequentemente a novas favelas, pois “a população de uma região

povoada pela pobreza e consolidada no tecido urbano cresce com sua

2 Cabe destacar aqui a importância de outras cidades e regiões do Brasil como receptoras

de imigrantes. São Paulo merece destaque pela importância do café e da indústria, e foi o local que

recebeu o maior número de imigrantes no país, tendo hoje marcada em sua paisagem a influência

destes grupos.

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reprodução interna e assimila poucos novos migrantes. As ondas de

recém-chegados irão multiplicar novos pontos de concentração de

pobreza” (LESSA, 2005, p. 293). As redes familiares de migrantes

nordestinos que se formam nas favelas vão incrementar ainda mais a

população favelada na cidade do Rio, visto que as redes funcionam como

mecanismo de acesso a moradia e de inserção no mercado de trabalho

de forma mais rápida (LAGO E RIBEIRO, 2001, p. 36). Estas redes

persistem até hoje, visto que grande parte dos entrevistados nas favelas

em nossas visitas são oriundos das mesmas localidades do Nordeste do

Brasil, além de dados do CENSO 2000 que comprovam que as favelas da

Zona Sul da cidade tiveram um incremento de 40% de sua população no

início da década de 1990, enquanto outras regiões da cidade registram

um número muito pequeno de migrantes Nordestinos no mesmo período,

o que comprova a persistência e a importância das redes familiares para

a vinda destes imigrantes para a cidade do Rio de Janeiro (LAGO, 2003,

p. 126).

A questão da formação econômica da cidade ao longo dos últimos

séculos tem importância para entendermos quem é o pobre na cidade

hoje e porque se formam importantes núcleos de concentração de

pobreza por todas as áreas da cidade. Entendemos que para entender o

processo de favelização é preciso pensá-la em um contexto maior, de

desenvolvimento econômico. Recorremos então novamente a Lessa

(2005, p.305) para tentar entender quem é o favelado no Rio:

a chaminé industrial não está na silhueta do Rio. O Rio é marcado pela favela, com forte e imediata associação à pobreza. A favela coloca sob foco o pobre, e em segundo plano o operário. (...) Para o entendimento do fenômeno em sua manifestação pioneira na cidade do Rio, é necessário pensá-la no bojo da urbanização que a cidade sofreu pós-Revolução Industrial. A urbanização do Rio, intensa e assimilando as inovações da modernidade, não foi acompanhada por uma intensa industrialização. É isso que diferencia a favela do Rio da clássica população miserável de qualquer grande cidade asiática.

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Fica claro aqui que o pobre na cidade do Rio de Janeiro não foi o

operariado, visto que este ocupava pequena parcela da população na

cidade. A maior parte da população carioca, principalmente a que residia

nas proximidades do centro e da Zona Sul, estava ocupada no setor de

serviços, sendo predominantes as atividades ligadas a administração

pública, o que veio a gerar uma demanda por um contingente direta e

indiretamente ligado ao padrão de vida dos grupos abastados da

população. No início do processo de favelização da cidade, fica claro que

a população pobre vai procurar se localizar à retaguarda das classes

sociais com maior poder aquisitivo e vai subsistir como mão-de-obra de

diferentes atividades para os grupos sociais abastados3, fato que

permanece até hoje, com a permanência dos moradores de favelas

essencialmente como trabalhadores de serviços, conforme aponta a

Tabela 01 (LAGO E RIBEIRO, 2001, p. 36).

Tabela 01 - Perfil sócio-ocupacional da população ocupada e do migrante nordestino ocupado, residentes nas favelas da zona sul e da zona norte no município do Rio de Janeiro, 1991

Favelas da Zona

Sul e Norte

Categorias socioocupacionais

Elite Pequena

burguesia Classe média Operário Prolet. Terc. Subprolet.

Pop. Residente 1,30% 3,40% 17,00% 20,90% 37,30% 19,80%

Migrante NE 0,40% 0,70% 6,40% 15,70% 59,70% 16,90%

Fonte: Censos Demográficos, FIBGE; Iplanrio, 1991.

O crescimento da cidade veio acompanhado de uma grande

contradição: a falta de moradias para os pobres. Inicia-se aí a crise

habitacional e o processo de favelização em toda a cidade do Rio de

Janeiro, que vai culminar em grandes problemas e conflitos sociais na

atualidade. O crescimento da população da favela se mostrou muito mais

intensa do que no restante da cidade. Segundo apontam Ribeiro e

Azevedo (1996, p. 14), “a população residente em favela cresceu 27,8%

entre 1970 e 1980, enquanto a população total aumentava 19,7%”, o que

demonstra a incapacidade do mercado de moradias e a ausência de

3 Sobre este assunto ver também LAGO, Luciana Correa. Desigualdade e Segregação na

Metrópole.

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políticas públicas voltadas para a habitação no atendimento da demanda

da população pobre, além dos migrantes que chegavam à cidade (Tabela

02).

Tabela 02 – Crescimento da população total e residente em favela no município do Rio de Janeiro, 1950/1991

Anos pop. RJ pop. Favel. Cresc. Pop.

RJ a.a Cresc. Pop.

Fav. a.a Pop. fav./ pop. RJ

1950 2.375.280 169.305 – – 7,13%

1960 3.300.431 335.063 3,34% 7,06% 10,15%

1970 4.251.918 565.135 2,57% 5,37% 13,29%

1980 5.090.723 722.424 1,82% 2,49% 14,19%

1991 5.480.768 962.793 0,67% 2,65% 17,57% Fonte: Censos Demográficos, FIBGE; Iplanrio, 1991.

Conforme dados da Tabela 02, a população moradora de favela

apresentava um ritmo de crescimento intenso a partir da década de 1950,

enquanto os demais moradores começaram a apresentar um ritmo de

crescimento bem menor a partir da década de 1980. Vale destacar

também que o ritmo de crescimento da população favelada também

diminuiu a partir desta década, provavelmente impulsionada pela

diminuição da chegada de imigrantes nordestinos na cidade. Segundo

Lago e Ribeiro, (2001, p. 34) as razões que explicam essa diminuição do

crescimento da população favelada na cidade foram os loteamentos

periféricos, com baixos investimentos em infra-estrutura e comercialização

à longo prazo, o que tornou-se o principal meio de acesso dos pobres à

casa própria, além da política de remoções da década de1960 e 1970.

2.4 – A favela ganha destaque no cenário carioca: A atuação do poder público

A evolução do crescimento das favelas ao longo do século XX foi

notável. “De um início discreto, a favela impôs sua presença efetiva no

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espaço urbano e no imaginário do Rio de Janeiro a partir dos anos 20”

(Lessa, 2005, p. 296). A partir dos anos de 1930 as favelas ganham maior

visibilidade na cidade. O Plano Agache foi o primeiro documento oficial a

citar a presença de favelas no Rio de Janeiro, quando esta presença já

começava a incomodar. No censo de 1948, já se registrava uma

população de 138.837 habitantes morando em 105 favelas, o que

representava 7% da população da cidade. As favelas estavam

distribuídas por toda a cidade, sendo os pontos de maior concentração a

Zona Norte (29,5%) servida pelo trem, a área central (22,7%) e a Zona

Sul (20,9%) (VALLADARES, 1978, p. 22).

Durante o período que vai de 1945 à 1965, surgem novos conflitos

em relação as áreas valorizadas da cidade e a presença de população

pobre nessas áreas. As favelas, apesar de incômodas, serviram como

instrumento político, como campo de atuação de políticos, que ofereciam

barganhas para os favelados em troca de votos, que nessa época

representavam quase 10% da população carioca. A favela passa a ter,

portanto, maior visibilidade no cenário político e cultural da época. Na

década de 30, o samba, nascido na praça Onze e subindo a favela

posteriormente, passa a figurar nos principais circuitos da música carioca,

assim como as escolas de Samba, até hoje muito ligadas as favelas,

passam a fazer parte do programa oficial do carnaval da cidade

(BURGOS, 2004, p. 26).

No campo da política, as favelas são reconhecidas como campos

de possíveis tensões. Conforme nos aponta Valladares (1978, p. 26), “as

favelas constituíram um campo fértil para a demagogia política (...) [pois]

os políticos tornaram-se verdadeiros intermediários entre a população

local e o 'mundo de fora', de onde provinham os recursos e os serviços”. É

neste contexto de tentativa de controle e de clientelismo que surgem os

parques proletários, primeira política habitacional do governo para a

população de baixa renda, onde os habitantes das favelas eram vistos

como “almas necessitadas de uma pedagogia civilizatória” (BURGOS,

2004, p. 28), sendo submetidos a diferentes mecanismos de controle,

como fornecer atestados de bons antecedentes e sessões de lições de

moral. Os Parques Proletariados da Gávea, Leblon e Cajú foram

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construídos entre 1941 e 1943 e removeram cerca de 4.000 moradores,

com a promessa de que a moradia no parque seria provisória, e que os

moradores poderiam retornar para as áreas de onde foram removidos

quando estas passassem por obras de urbanização. Os Parques

Proletários acabaram funcionando como um mecanismo de fixação

territorial de moradores de favela4, mas com a valorização dos bairros

onde foram instalados, principalmente Leblon e Gávea, os moradores são

removidos novamente para áreas menos valorizadas. O Parque Proletário

da Gávea foi removido em 1970 e sua população foi fixada na Cidade de

Deus.

Foto 07 – Remoção do Parque proletário da Gávea

Fonte: site Favelatemmemória.com

As imagens mostram a remoção do Parque Proletária da Gávea em 1970, dá área onde hoje funciona o

4 Segundo o site Favela Tem Memória, as condições de vida nos parques eram precárias,

mas havia a presença do poder público com diferentes atividades. “Feitas de madeira, cobertas

com telha vã e divididas em blocos, as casas proletárias não eram equipadas com cozinha, nem

instalações sanitárias ou rede de esgoto, somente uma bica d’água. Mas os moradores tinham

acesso a uma série de serviços gratuitos dentro do Parque, como cursos profissionalizantes,

creche, posto médico e capela. Havia ainda banheiros e tanques coletivos para cada bloco de

casas”.

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estacionamento da Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio). A remoção do Parque veio na série de remoções de favelas da Zona Sul do Rio, e não cumpriu a promessa de retorno aos lugares de onde vieram, a maioria de favelas

também da Zona Sul.

Outros atores entram em cena neste momento para garantir a

ordem pública, como é o caso da Igreja Católica, que apontava a favela

como possível reduto de comunistas. A Igreja então cria a Fundação Leão

XIII, em 1947, e em 1955, cria a Cruzada São Sebastião. A fundação

Leão XIII, com interesses políticos claramente definidos (conforme

pesquisa do SAGMACS: “é preciso subir o morro antes que de lá desçam

os comunistas”), tinha como objetivo “assegurar assistência material e

moral aos habitantes dos morros e das favelas do Rio de janeiro,

fornecendo escolas, creches, dispensários, maternidades, cantinas e

conjuntos habitacionais populares” (Valladares, 2005, p.76). A igreja

surge como alternativa para controle das massas, e com o fim da ditadura

do estado-novo, a igreja assume o papel de intermediária entre as favelas

e o poder público. Mesmo com a atuação da Igreja, surgem nas favelas

as primeiras organizações de moradores (embriões das associações de

moradores atuais), assim como a União dos Trabalhadores Favelados. As

favelas começam a mostrar uma mínima organização e inclusive com a

associação à partidos políticos (VALLADARES, 2005, p.76; BURGOS,

2004, p. 29).

Os primeiros sinais de politização da favela expressam uma grande

contradição na relação entre o poder público e os favelados, que sempre

estiveram à parte da cidade, gerando assim a necessidade de uma maior

atuação da Igreja. É quando surge a Cruzada São Sebastião, uma

entidade com atuação mais intensa nas favelas, tendo como líder Dom

Helder Câmara. Tinha como objetivo, segundo Valladares (2005, p. 77),

promover, coordenar e executar medidas e providências destinadas a dar solução racional, humana e cristã aos problemas das favelas do Rio de Janeiro (...) mobilizar os recursos financeiros necessários para assegurar, em condições

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satisfatórias de higiene, conforto e segurança, moradia estável para as famílias faveladas; colaborar na integração dos ex-favelados na vida normal do bairro.

Enquanto a fundação Leão XIII atuou mais no sentido de

cristianização e assistência moral às populações faveladas, a Cruzada

São Sebastião desenvolveu suas atividades mais voltadas para as

condições de moradia, realizando obras de urbanização, infra-estrutura e

novas moradias. Suas obras mais importantes foram a construção do

conjunto habitacional Cruzada São Sebastião, no Leblon, construído para

abrigar parte da população removida da favela da Praia do Pinto, na

Lagoa, obras de urbanização na favela Morro Azul, no Flamengo, e

parque Alegria, além da instalação de redes de iluminação, esgoto e

telefonia em mais de 50 favelas por toda a cidade.

A presença da Igreja como forma de controlar e intermediar a

relação entre o bairro e a favela era sentida tanto pelos moradores das

favelas como pelos moradores dos bairros. Enquanto a Igreja estava

presente de forma efetiva, a sensação era de controle e de ausência de

conflitos, conforme observamos na fala de um antigo morador do bairro

do Flamengo, das proximidades da favela do Morro Azul, que aponta a

importância da Igreja para o controle da favela.

Há 30 anos, um pároco da Igreja do bairro, da Santíssima Trindade, padre Paulo, ele cuidava, ele levava com mãos-de-ferro a favela. Não existia associação de moradores naquela época e todo mundo respeitava o Padre Paulo, inclusive a bandidagem. Essa favela tem uma característica também que ela tem um prédio enorme que foi construído pelo Dom Helder Câmara que plantou esse edifício no meio da favela. Isso fez, com o passar do tempo, que essa favela, o Morro Azul, fosse ainda sim respeitada, não tivesse grandes problemas e ela nunca evoluiu muito pra um grande foco de tráfico ou coisa parecida (...) A influência da paróquia era muito grande.

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Fica clara na fala do morador o quanto foi importante a participação

da Igreja no trabalho de urbanização e outros equipamentos urbanos na

favela, assim como para garantir a boa relação com o bairro. O edifício

citado na fala do morador foi construído pela cruzada São Sebastião

dentro da área da favela como residência para alguns moradores que

podiam pagar por uma moradia de baixa renda, recebendo ainda o nome

do Pároco do bairro, edifício Padre Paulo. O morador entrevistado cita

ainda a presença da Fundação Romão Duarte, uma creche que abriga

muitas crianças da favela e fica bem próxima dela.

Foto 08 – Favela Morro Azul

Foto: Marta do Nascimento, 2009.

A foto mostra parte da favela do Morro Azul, com a vista da rua Paulo VI. A favela passou por uma urbanização parcial

promovida pela Cruzada São Sebastião. A construção principal na parte central da foto é o referido prédio, com

moradores da própria favela que adquiriram como moradia para baixa renda, o Edifício Padre Paulo.

A atuação no poder público neste período (de 45 à 60), portanto,

colaborou para manter a ordem e o domínio sobre as áreas de favela,

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além de garantir a permanência das mesmas nas áreas mais valorizadas

da cidade. Novamente, apontamos aqui o conflito entre os interesses do

estado e do capital, principais agentes da produção do espaço urbano, e

os interesses dos trabalhadores pobres urbanos, que sem grandes

escolhas, estavam a disposição dos interesses dos primeiros. Mesmo

assim, algumas favelas foram removidas para conjuntos habitacionais

distantes, localizados no subúrbio, como a do Morro do Pasmado em

Botafogo, removida em 1964, sendo seus moradores levados para Vila

Kennedy, localizada no bairro de Senador Camará, na Zona Oeste da

cidade.

A implantação da ditadura militar no Brasil representou grandes

impactos na organização social e espacial da cidade, além do

esvaziamento do poder político citado acima. A cidade esteve marcada

pela implantação de grandes indústrias e grandes obras de infra-

estrutura, além da fusão do estado da Guanabara e do Rio de Janeiro. O

período da ditadura militar foi de intensa repressão às favelas e à

população pobre da cidade, sendo um período de muitas remoções de

favelas, principalmente na Zona Sul. Sobre as remoções de favelas na

Zona Sul falaremos de forma mais aprofundada no Capítulo 3, pois

entendemos que representam uma das mais importantes contradições

nas relações entre a favela e os bairros na área mais nobre da cidade.

O período de 1960 a 1980 foi um período de muitas incertezas para

a população favelada, marcado principalmente por remoções e intensa

opressão política. As associações e organizações dos moradores que

começaram a se formar na década de 1940 e 1950 foram completamente

dissolvidas durante o período de repressão política. Além disso, as

décadas de 1970 e 1980 foram particularmente difíceis para a cidade do

Rio de Janeiro, dentro da lógica econômica do país, pois a cidade passou

por um esvaziamento político e econômico devido à transferência da

capital para Brasília. A política habitacional adotada pelo governo da

ditadura foi um programa maciço de construções habitacionais, através do

BNH e da Cohab (LESSA, 2005, p.314), que muitas vezes não atingia aos

pobres e causou um aumento da favelização apesar das remoções.

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Durante os anos de 1980, prevaleceu no Rio de Janeiro políticas

sociais clientelistas e uma negação a prática de remoções. A prática

clientelista adotada pelo governo Brizola representou também uma nova

forma de se lidar com as favelas e os excluídos no Rio de Janeiro. Brizola

desenvolveu então projetos que visavam a implantação de infra-estrutura

(rede de água, saneamento e coleta de lixo), pois as favelas do Rio até

este período possuíam infra-estrutura muito precária. Além disso, o

programa mais importante do governo Brizola era denominado “Cada

Família um lote”, que visava à regularização fundiária das moradias nas

favelas (BURGOS, 2004, p. 42). O programa representou o primeiro

projeto social com vias a assumir a presença da favela na cidade,

tornando-as parte da cidade legal, funcionando como uma legitimação da

favela na cidade. O início da década de 1980 representou, portanto,

segundo Lago (2003, p 126), a “adoção de políticas de reconhecimento

das favelas e dos loteamentos irregulares e clandestinos como solução

dos problemas de moradia das camadas populares. Legitima-se a

ilegalidade”.

O governo Brizola representou também o momento da

consolidação dos investimentos feitos pelos próprios moradores de favela

em suas casas, representando a passagem do barracão de madeira e

zinco à casa de alvenaria. A regularização dos imóveis na favela acabou

de vez com a ameaça das remoções, principalmente na Zona Sul da

cidade, onde as favelas estão em áreas privilegiadas quanto à

acessibilidade e próximas do principal mercado de trabalho. As favelas

então passam por um período de mudança, deixando evidenciado o poder

de compra do pobre, visto que rapidamente as favelas foram tomadas por

casas de alvenaria. Segundo Lessa (2005, p. 316), o efeito da política do

governador Leonel Brizola pode ser notado através da intensa

verticalização observada nas favelas do Rio, principalmente na Zona Sul,

pois a alvenaria permitiu a construção de casas de dois e três andares,

que se multiplicaram rapidamente. Hoje, é possível observar inclusive

prédios em algumas favelas da cidade.

Foto 09 – Prédio construído na Rocinha

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Fonte: Jornal O Globo, 16/03/09

Prédio sendo construído na favela da Rocinha, na Zona Sul do Rio de Janeiro, em 2009. As construções de prédios e casas de três pavimentos são muito comuns na Rocinha,

assim como em outras favelas da cidade.

A Zona Sul vai ter grande participação no contingente de favelas

devido ao grande crescimento que se inicia na década de 1940 e vai até

os anos de 1970, quando a Zona Sul passa por intenso processo de

valorização e verticalização. É este mesmo processo que vai gerar as

intensas contradições que vão surgir com força no período citado. A

década de 1990 e o início dos anos 2000 são marcados pela manutenção

da política dos governos anteriores de prover infra-estrutura nas áreas de

favela, além da manutenção da legalidade dos imóveis. Nesse contexto,

surge assim o Programa Favela-Bairro, em 1995, um programa muito

amplo de urbanização das favelas e com alto investimento público e

internacional, do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). O

Programa ocorreu de 1995 à 2000 e beneficiou 54 favelas e oito

loteamentos irregulares, segundo dados do Instituto Pereira Passos

(CAVALLIERI, 2005, p. 1).

O Favela-bairro, Segundo Cardoso (2002), tem como objetivo

complementar ou construir a estrutura urbana principal (saneamento e democratização de acessos) e oferecer condições ambientais de leitura

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da favela como bairro da cidade., segundo os termos do Decreto no 14.332, de 7 de janeiro de 1995. O programa tem como metas .a integração social e a potencialização dos atributos internos das comunidade.

O programa, portanto, assumia favela como a não-cidade, como

algo que precisava ser integrado ao território da cidade. Buscava levar

para a Favela tudo que havia no bairro: calçamento, ruas largas,

esgotamento sanitário, creches, postos de saúde, além da regularização

dos imóveis e da realocação das moradias em áreas de risco, enfim,

buscava a utilização racional do espaço, assim como acontece nos

bairros (LESSA, 2005, p.315; DAVIDOVICH, 2000, p. 122). Existiam

critérios para a participação da favela no programa, como o número de

domicílios, o déficit de infra-estrutura. Os resultados do programa logo

aparecem, também conseqüência da atuação das administrações

anteriores, quando praticamente 98% das moradias em favelas possuem

água e esgoto, coleta de lixo, entre outros fatores.

O programa teve, segundo dados quantitativos, uma boa avaliação

quanto aos equipamentos de infra-estrutura urbana (CAVALLIERI, 2005,

p. 2-4), no entanto, não conseguiu reduzir as distâncias sociais entre a

favela e o asfalto, pois ressaltamos aqui o caráter simbólico da produção

do espaço, que se mantém com a lógica segregadora que o produziu e no

imaginário das pessoas, que continuam a perceber a separação da favela

e do bairro, além da própria manutenção da situação econômica dos

moradores da favela. Somente a urbanização não é capaz de garantir a

efetiva integração das favelas na estrutura do espaço urbano.

A relação da favela e do bairro hoje continua delicada, pois as

favelas se multiplicam por todos os bairros da cidade, sem distinção.

Segundo dados do Instituto Pereira Passos e do IBGE, existem cerca de

750 favelas espalhadas por toda a cidade, e a população favelada passa

de um milhão de pessoas, representando cerca de 18% da população e

ocupando cerca de 42 Km2 da área total da cidade, estando a favela

completamente ligada a paisagem do Rio de Janeiro. Na Zona Sul,

existem 27 favelas registradas, que contam com cerca de 100 mil

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moradores, ocupando uma área de cerca de 4% da área total dos bairros.

Como lidar com esta situação e melhorar as condições de vida das

pessoas torna-se um desafio cada vez maior.

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4 – Zona Sul: Proximidade física, distância social

Favela Santa Marta – Botafogo, com vista do Corcovado ao fundo Foto: Marta do Nascimento, janeiro de 2009

Eu só quero é ser feliz Andar tranquilamente na favela onde eu

nasci E poder me orgulhar

E ter a consciência que o pobre tem seu lugar

(...) Minha cara autoridade, eu já não sei o que fazer

Com tanta violência eu tenho medo de viver Pois moro na favela e sou muito desrespeitado

A tristeza e a alegria aqui caminham lado a lado Enquanto os ricos moram numa casa grande e bela

O pobre é humilhado, esculachado na favela (...)

Nunca vi cartão postal que se destaque uma favela Só vejo paisagem muito linda e muito bela

Quem vai pro exterior da favela sente saudade O gringo vem aqui e não conhece a realidade Vai pra Zona Sul pra conhecer água de coco

E pobre na favela,vive passando sufoco

Funk Carioca – Rap da felicidade MC Cidinho e Doca, 1995

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Conforme discutido no capítulo 2, a Zona Sul se configurou como a

principal área de desenvolvimento econômico da cidade a partir do século

XX. Escolhida como local de moradia pelas classes sociais mais

abastadas, Hoje a Zona Sul é a área de maior valorização imobiliária,

além da presença abundante de equipamentos urbanos e de importantes

sub-centros comerciais e de serviços.

Apesar da prosperidade econômica desta área da cidade, ao longo

de seu crescimento surgiram importantes concentrações de população

pobre, principalmente nas encostas de morros, onde não havia interesse

na exploração econômica. Estas concentrações se tornaram hoje

importantes favelas, que geram hoje alguns conflitos e contradições na

área mais valorizada da cidade.

O principal conflito que pretendemos apontar agora é que a

presença de favelas na Zona Sul simboliza uma contradição criada pelo

desenvolvimento econômico da cidade e que por isso sempre foi alvo de

controle pelo Estado, pelos proprietários fundiários e promotores

imobiliários que atuavam na área. Para isso, pretendemos analisar a

realidade da Zona Sul com base na discussão teórica até aqui realizada,

levando em consideração a lógica econômica que a área esta inserida e

sua formação histórica. Para trazer a discussão para o campo do vivido,

foram realizadas entrevistas com associações de moradores de bairros e

favelas, além de entrevistas com moradores e visitas ao local de estudo.

A aproximação com o local de estudo nos permite discutir os

principais conflitos que envolvem a presença de favelas numa área tão

valorizada, assim como apontar as implicações espaciais destes conflitos,

as consequências para os moradores dos bairros e das favelas. Foram

visitadas três favelas na Zona Sul: Santa Marta, Chácara do Céu e

Rocinha, onde foi possível conversar com os moradores a respeito dos

problemas que enfrentam e a relação com os bairros. Foram feitas

também visitas a bairros: Leme, Copacabana, Flamengo, Leblon, onde

conversamos principalmente sobre os principais problemas dos bairros, a

presença das favelas e a formação das Unidades de Polícias

Pacificadoras em algumas favelas.

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Além dos moradores, ouvimos também algumas associações de

moradores, como a AMAB (Botafogo), AMAF (Flamengo) AMAH (Alto

Humaitá), Urca, Jardim Botânico e AmaGávea, onde foi possível observar

as relações entre estas associações e seus representantes e as favelas

dos bairros onde estão inseridos.

Esperamos, com esta aproximação da realidade do lugar, que seja

possível apontar os elementos que expressam a intenção dos atores

sociais dominantes para manter a lógica segregadora dos bairros da Zona

Sul, assim como as consequências espaciais desta segregação na

paisagem, expressa de forma tão contundente nestes bairros.

4.1 – A formação das favelas na Zona Sul

A presença de favelas na Zona Sul da cidade remonta ao início do

século XX, coincidindo com o período da ocupação dos bairros da Zona

Sul. Concomitantemente com o desenvolvimento urbano da área e a

implantação dos equipamentos urbanos necessários a ocupação pelas

classes abastadas, a população pobre se dirigiu a área para ocupar áreas

não aproveitadas pelo capital imobiliário. Com isso, surgem as primeiras

favelas, como a Cerro-Corá (1903), no bairro do Cosme Velho, Julio Otoni

(1900), no bairro de Laranjeiras, Mangueira (1901) no bairro de Botafogo1.

Estas favelas, assim como outras surgidas na mesma época, surgiram em

terrenos localizados nas encostas dos morros, cedidos por grandes

proprietários mediante pagamento de aluguel. Após o aumento do número

de moradias, os moradores passaram a reivindicar a posse do terreno.

Quase todas as favelas da Zona Sul têm sua formação anterior a

década de 40, período de intenso crescimento da área e de realização de

muitas obras de infra-estrutura urbana, além da instalação de vários

equipamentos urbanos e de lazer voltados para uma população de alta

renda. Estes fatores vão atrair grande número de pessoas para essa

1 Todas as informações sobre o histórico da formação das favelas da Zona Sul foram

retiradas do programa SABREN, Sistema de Assentamentos de Baixa Renda, disponível no

PortalGeo, do Instituto Pereira Passos, baseados em depoimentos dos moradores das favelas.

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área, que com o controle do Estado e dos próprios atores responsáveis

por muitas dessas obras, vão permitir a instalação dos trabalhadores e

suas famílias nas áreas próximas aos seus empreendimentos. Muitos

desses trabalhadores eram oriundos da região Nordeste, como é o caso

da favela Vila das Canoas, em São Conrado, cuja formação está ligada a

instalação do Clube Gávea Golf, que permitiu a construção de moradias

simples para a instalação de funcionários do clube; da favela Vila Parque

da Cidade, formada a partir da instalação de funcionários do Parque de

mesmo nome, criado em 1939, com o surgimento da favela datando de

1944. É o caso também da favela Chácara do Céu, que tece sua

formação a partir de 1920, com a instalação de trabalhadores nos

terrenos pertencente a companhia Miranda Jordão, que pretendia instalar

no Morro Dois irmãos uma linha férrea. Os trabalhadores da companhia

fixaram residência e deram inicio às obras, mas a linha férrea nunca foi

implantada, com o caminho aberto pelos trabalhadores vindo a se tornar a

atual continuação da Avenida Niemeyer. A favela Chácara do Céu,

conforme relato de uma moradora presente na favela desde sua

formação, “cresceu junto com o bairro do Leblon, e eles (o bairro), não se

incomodavam com a gente, porque todo mundo trabalhava por aqui, não

havia tanta bandidagem”.

Muitas outras favelas podem ser citadas neste contexto de

formação da Zona Sul como área voltada para moradores de alta renda.

Muitas se instalaram no entorno de parques, hospitais ou em bairros de

franca expansão imobiliária, como foi o caso de Flamengo, Botafogo e

Copacabana. A força do ramo de construção civil e posteriormente a

necessidade de mão-de-obra em serviços para atender a população de

classe alta vai atrair grande parte dos trabalhadores pobres que

chegavam a cidade, principalmente os migrantes oriundos de estados do

Nordeste. Os agentes produtores do espaço, neste caso entende-se o

Estado e os agentes imobiliários, vão “determinar” onde esta população

pobre pode se instalar na Zona Sul, em locais onde ela possa servir como

mão-de-obra barata sem atrapalhar a acumulação de capital. Algumas

das mais importantes favelas da Zona Sul da cidade, como o Pavão-

Pavãozinho e Cantagalo em Copacabana, Morro Azul no Flamengo e

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Santa Marta em Botafogo, formadas basicamente por trabalhadores

originalmente da região Nordeste que vinham para trabalhar no ramo da

construção civil, que demandava grande número de trabalhadores para

esses bairros, posteriormente sendo ocupados pela grande demanda de

serviços que a área exige. Nos depoimentos dos moradores antigos de

bairros como Flamengo, Botafogo e Copacabana, todos afirmam que os

moradores das favelas dos bairros trabalhavam principalmente na

construção civil e em serviços dos prédios, como porteiros, eletricistas,

etc. As mulheres eram babás e empregadas domésticas.

Portanto, as favelas na Zona Sul tinham uma razão de existir

dentro da lógica de acumulação do capital vigente na cidade: servir como

reserva de mão-de-obra barata para atender as demandas de indústrias e

serviços na área. No período citado, os transportes eram precários e

caros, atendendo, portanto somente a população abastada dos bairros e

deixando clara a necessidade dos trabalhadores pobres de residirem

próximos ao seu local de trabalho. Nas décadas de 1930 e 1940, a Zona

Sul era a área da cidade que mais crescia, pois já era praticamente toda

coberta por infra-estrutura urbana básica, como água, esgoto, iluminação,

coleta de lixo e transportes públicos. Vias largas, adaptadas a utilização

do automóvel, grandes residências, hotéis de luxo, importantes teatros e

cinemas, tudo para servir a população que se dirigia para a área nobre da

cidade.

Junto com essa demanda, estavam as populações pobres em

busca de subsistência e moradia. Ao contrário dos já imponentes bairros

da Zona Sul, as favelas da área não possuíam nenhum tipo de

equipamento urbano, estando a população à mercê das imposições dos

moradores e do Estado. A falta de equipamentos urbanos era justificada

na época porque as favelas eram ocupações ilegais, não regulares,

portanto, não faziam parte da cidade e das obrigações do Estado.

Segundo depoimento de moradores do Cantagalo2 , no bairro de Ipanema

as poucas famílias pediam para encher suas latas d´água nas bicas dos jardins das residências da

2 Disponível no site do SABREN, do IPP

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Rua Saint Roman. Depois, os moradores passaram a descer pelo Caminho da Pedreira e percorrer a Humberto de Campos, batendo de casa em casa. A situação chegou a tal ponto que era preciso pegar água em uma bica em frente à Favela da Catacumba, na Lagoa.

A situação das favelas era precária, tanto na Zona Sul como em

outras áreas da cidade. Mas queremos chamar a atenção aqui da

distância que existia entre moradores de bairros e moradores de favelas,

principalmente quanto a presença de infra-estrutura urbana. Ao mesmo

tempo, como as favelas serviam como fonte de mão-de-obra barata para

a construção civil e outras atividade da área, foram sendo toleradas e

controladas, vigiadas pelos atores sociais dominantes. Podemos citar

vários exemplos deste controle, como a presença da Igreja (conforme

Capítulo 2), além do controle do próprio Estado, como era o caso nas

favelas do Cantagalo e Chapéu Mangueira (Leme). No Cantagalo, foi

instalado um Posto de Observação de um destacamento do Forte de

Copacabana. Segundo moradores, enquanto esteve lá, o Posto de

Observação praticamente controlava a ocupação na área, permitindo

apenas a permanência dos barracos já existentes. Com a sua

desativação, na década de 1980, os mini-sítios dos ocupantes pioneiros

foram retalhados e ocupados, gerando uma configuração próxima à atual.

No caso do Chapéu Mangueira, as construções foram também permitidas

pelo quartel do exército da Praia Vermelha, tendo sido impostas algumas

condições, como a proibição de construções acima da cota oitenta e

abaixo da cota trinta e seis. A vigilância sobre as favelas da Zona Sul tem

uma razão de existir, a valorização imobiliária e a importância econômica

e política da região.

Na Zona Sul, a construção de barracos era proibida, mas desde

1907 já existiam barracos em Copacabana, e em 1916 barracos se

proliferavam por Botafogo e Leme. A construção de barracos era

acompanhada pela repressão, que tentava impedir à força a ocupação

das encostas e áreas alagadiças ainda não utilizadas pelo capital

imobiliário (ABREU e VAZ, 1991, p. 5; VALLADARES, 1978, p. 22).

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Durante o período que vai de 1940 a 1960, ocorreram diversas

intervenções no espaço urbano da Zona Sul para tentar impedir o avanço

das favelas, mas até então essas intervenções eram pontuais, conforme

as citadas anteriormente.

A Zona Sul vai ter grande participação no contingente de favelas

devido ao grande crescimento que se inicia na década de 1940 e vai até

os anos de 1970, quando a Zona Sul passa por intenso processo de

valorização e verticalização. Os bairros mais antigos, como Glória e

Catete, vão estabilizar seu crescimento, mas os bairros do Flamengo,

Botafogo, Copacabana e Ipanema vão passar por forte processo de

verticalização, em pouco tempo praticamente deixam de existir

residências unifamiliares. É este mesmo processo que vai gerar as

intensas contradições que vão surgir com força no período citado. A

demanda das construções civis vão atrair grande número de

trabalhadores pobres para os bairros da Zona Sul, muitas vezes vindos do

Nordeste pelas já consolidadas redes familiares de migrantes, o que entra

em contradição com o conteúdo social dos bairros, voltados para

população de alta renda. Devido a localização privilegiada das favelas da

Zona Sul, é necessário então que o Estado atue de certa forma com um

controle mais efetivo da área, para impedir o avanço das áreas de favelas

em bairros nobres da cidade. Esta política estará marcada pelas

remoções de algumas favelas na Zona Sul, assim como pela resistência

por parte dos moradores.

4.1.1 – A política de Remoções: a atuação do poder público na área mais valorizada da cidade

As favelas passaram a ser percebidas na paisagem a partir da

década de 1930, principalmente a partir do código de obras de 1937,

ainda durante o Estado Novo, onde eram proibidas as criações de novas

favelas, que eram vistas como uma patologia, uma doença. Nesse

período surgem as primeiras políticas públicas de remoções de favela e

erradicação da pobreza (REIS, 2008, p 4). Segundo Valladares (1978, p.

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22), “tão logo começaram a se impor no espaço urbano, as favelas

passaram a ser motivo de preocupação e objeto de inúmeros projetos”. O

“problema das favelas” era visto como algo que precisava ser retirado da

paisagem da cidade para que não incomodasse os lugares “altamente

valorizados”, se referindo diretamente ao centro e a Zona Sul da cidade.

Já se via Copacabana como cercado por um “cinto de favelas que vem

descendo a encosta” (ZALUAR E ALVITO, 2004, p. 13-14).

Fica claro nesta discussão que a favela já era uma importante

contradição no solo valorizado da Zona Sul, mas a presença de pobres

nessa localidade era não somente tolerada como muitas vezes

incentivada pelas empresas de construção civil, de bondes e linhas

férreas, conforme discutido no tópico anterior. Muitas empresas permitiam

a instalação dos trabalhadores nos locais próximos às obras ou ao

empreendimento, como forma de minimizar a distância física dos bairros

pobres. “A descoberta da favela pela sociedade civil não nasceu de uma

preocupação com a qualidade de vida de seus moradores, e sim do

incômodo que eles causavam à classe média”, argumenta Marcelo

Baumann (2003).

Este incômodo ficou mais evidente conforme aumentava a

urbanização da Zona Sul, com a tentativa de criar um espaço mais

organizado, planejado, voltado para uma maior qualidade de vida, como

foi o caso dos bairros do Leblon e Ipanema, justamente os bairros onde

se iniciam as remoções.

A política de remoções de favela que se inicia ainda no Estado

Novo e só vai terminar no contexto da redemocratização política vai

seguir a linha da renovação e da necessidade de limpar a cidade daquilo

que não é a cidade, do que não é formal. Podemos apontar dois períodos

principais desta política, um iniciado no governo Henrique Dodsworth e

outro nos governos Carlos Lacerda/Negrão de Lima, já durante a ditadura

militar. Essa política remocionista esteve bastante concentrada em retirar

as favelas das áreas nobres da cidade, em bairros onde as favelas

atrapalhavam as pretensões imobiliárias dos atores sociais dominantes.

Iniciam-se então as remoções de favelas na Zona Sul já em 1941,

com a desculpa de higienizar as áreas e tirar as pessoas de áreas de

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risco. O primeiro grande projeto de intervenção ocorreu de 1941 à 1943,

quando a prefeitura da cidade do Rio de Janeiro destrói quatro favelas,

entre elas o largo da Memória, no Leblon (Foto 10) e remove suas

populações para Parques Proletários da Gávea, do Caju e do Leblon,

vindo depois estes parques a serem considerados favelas e sendo

removidos novamente.

Foto 10 – Leblon e Lagoa em 1936

Foto: Blog Foi um RIO que passou.com.br

A imagem mostra o bairro do Leblon em 1936, com destaque para as já existentes favelas da Praia do Pinto, na orla do bairro

da Lagoa, e Largo da Memória, no Leblon. Os bairros já apresentavam uma organização viária e equipamentos urbanos

que atraíam grande contingente de população de alta renda. Vale ressaltar a rapidez da ocupação irregular, já muito expressiva,

com a presença do estado e dos agentes imobiliários que atuavam nos bairros abastados de forma mais lenta.

A imagem deixa clara a necessidade de se remover estas favelas

para manter os bairros organizados, conforme a necessidade da

acumulação de capital. Primeiramente foi removida a favela do Largo da

Memória, e posteriormente a Praia do Pinto. Em 1955, é construída a

Cruzada São Sebastião, um conjunto habitacional no Leblon, que recebe

parte dos moradores removidos da Praia do Pinto, por iniciativa da Igreja

Católica.

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Podemos dizer que essas primeiras remoções vêm dentro de um

contexto maior de valorização do solo urbano, conforme aponta

Valladares (1978, p. 14):

a política de erradicação de favelas fazia parte de um processo geral de renovação urbana da metrópole, de reorganização do uso do solo, enfim, de desenvolvimento urbano, ou do próprio quadro geral de transformações por que passava a sociedade brasileira

A partir de 1948, acirram-se os discursos sobre remoções de

favelas a partir da figura do então Jornalista Carlos Lacerda, numa série

de artigos intitulada “a Batalha do Rio de Janeiro” ou “Batalha das

favelas”. Já como governador, de 1960 à 1965, inicia uma política

remocionista a partir da COHAB-GB (ZALUAR E ALVITO, 2004, p.15), e

em seu governo a principal favela removida foi a do Pasmado, em

Botafogo, um local onde houve muita resistência contra a remoção, pois

ainda não havia o aparato de força policial do governo militar.

Já no governo Negrão de Lima (1966-1970) se intensificam as

remoções na Zona Sul da cidade, quando as favelas passam por grande

crescimento e atrapalham muito os interesses das classes dominantes.

Em 1968, sob o comanda da CHISAM (Coordenação da Habitação de

Interesse Social da Área Metropolitana do Grande Rio), surgem projetos

do governo federal que visam realmente a extinção completa das favelas

em áreas valorizadas, e eliminam as principais formas de resistência,

como as associações de moradores, além da criação de construção de

casas populares (VALLADARES, 1978, p. 29). Não é nosso objetivo aqui

discutir esses projetos, e sim tentar analisar as contradições na produção

do espaço urbano que eles evidenciam. A partir de 1968, varias favelas

foram removidas da Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro, que a esta

altura já estava consolidada como área de intensa especulação imobiliária

e valorização.

A permanência das favelas na Zona Sul tornou-se mais incômoda,

ficando clara a intenção de se embelezar e valorizar ainda mais essa área

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da cidade, visto que o programa de remoção se concentrou basicamente

na Zona Sul. Assim, até 1970, foram removidas as favelas da Praia do

Pinto, Catacumba, Piraquê e Ilha das Dragas, no bairro da Lagoa, e

Macedo Sobrinho, no bairro do Humaitá. Estas favelas surgiram no bairro

da Lagoa em um momento em que o bairro não tinha tanta importância

econômica quanto Copacabana e Ipanema, mas posteriormente foi

apropriado pelo capital imobiliário, se tornando hoje um dos bairros mais

valorizados da cidade e livre de favelas. O discurso que predominou na

política remocionista era de que não se podia permitir a existência de

nichos de desordem urbana em áreas nobres da cidade, em uma cidade

com tanta vocação turística (COSTA et al, 2009, p.15).

As favelas citadas foram removidas das áreas nobres, retirando

milhares de pessoas desses bairros e levando para áreas distantes, na

periferia, negando aos seus moradores o direito à habitação onde melhor

lhe couber, sendo negado, portanto, o direito à cidade, pois ali estavam

garantidos a essa população a acessibilidade aos principais meios de

transporte e ao principal mercado de trabalho da cidade, apesar de

negado o acesso à infra-estrutura urbana mais básica como saneamento

e coleta de lixo. Para essa população, era preferível morar em barracos

de madeira e de zinco, com nenhuma infra-estrutura, mas próximo de

amplo mercado de trabalho e da maior possibilidade de garantir a

subsistência, do que ser removido para conjuntos habitacionais muito

distantes, com pouca infra-estrutura.

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Foto 11 – Favela Praia do Pinto, Lagoa – Dezembro de 1967

Fonte: site Favela tem Memória

Favela removida em 1969, após grande incêndio, que não foi

apurado se acidental ou não. A favela chegou a ser a maior da Zona Sul, chegando a ter cerca de 40 mil moradores e barracos, em sua maioria, bastante precários. No lugar da Praia do Pinto foram erguidos prédios destinados a famílias de classe média e militares, conhecidos atualmente como Selva de Pedra. Grande parte dos antigos moradores foram removidos para o Complexo da Maré (Zona Norte), Cidade de Deus e Vila Kennedy (ambas na

Zona Oeste)

Foto 12 – Morro do Pasmado, Botafogo – janeiro de 1962

Fonte: site Favela tem Memória

Favela removida em 1964; após a saída dos cerca de 2 mil

moradores as casas foram incendiadas. A então secretária de Serviço Social Sandra Cavalcanti divulgou toda a operação na imprensa, o que atraiu muitos curiosos ao local para assistir a

remoção das casas da encosta do morro do Pasmado.

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Remoções pontuais também aconteceram por toda a Zona Sul em

nome de intervenções urbanas realizadas pelo Estado e por agentes

imobiliários. Segundo Valladares (1978, p. 32)

Os “interesses da cidade” também tiveram seu papel. A avenida que margeia a Lagoa Rodrigo de Freitas, por exemplo, foi alargada nas áreas anteriormente ocupadas pelas favelas da Ilha das Dragas, Piraquê e Avenida dos pescadores; o limite sul da favela da Rocinha foi transformado em saída do túnel Dois Irmãos; obras de sustentação de encostas foram realizadas logo após a remoção de cinco pequenas favelas, localizadas sobre o túnel novo e na Avenida Niemeyer

Outro exemplo que podemos citar destas intervenções pontuais foi

a remoção de barracos da favela Morro Azul para a construção da

estação de Metrô do Flamengo. Segundo relatos de moradores obtidos

em nossos campos, a área escolhida para a estação do Metrô era

predominantemente formada por barracos de madeira bem humildes, que

foram retirados com a desculpa de insalubridade. Só permaneceram na

favela os moradores que podiam construir casas de alvenaria, apoiados

pela Igreja Católica. Segundo relatos de uma moradora da rua Marques

de Abrantes, próxima a estação de Metrô e da entrada da favela Morro

Azul,

Em determinado momento, a trinta e tantos anos atrás [no período das remoções na cidade], um pouco antes da chegada do Metrô, eles definiram que quem tivesse casa de cimento poderia continuar, quem pudesse colocar em ordem, seguir tipo um plano diretor, ficaria. Quem não tivesse condições seria removido, e isso que aconteceu.

As remoções não significaram que a população removida não

voltou para o local de origem. Estudos mostram que na maioria das vezes

as populações retornaram e ocuparam outras favelas da Zona Sul, como

a Rocinha, Vidigal, Cantagalo, que sofreram incremento populacional nas

últimas décadas. Removidos para lugares muito distantes, como

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Paciência, Senador Camará (Vila Kennedy), Jacarepaguá (Cidade de

Deus), longe do centro da cidade, a grande precariedade de transportes e

de infra-estrutura urbana fizeram com que muitos vendessem suas casas

e retornassem para favelas da Zona Sul (VALLADARES, 1978)

As favelas da Zona Sul surgiram com a função de reserva de mão-

de-obra barata e seriam até então uma reserva de mão-de-obra

desqualificada nas proximidades dos locais onde mais se utiliza mão-de-

obra em serviços. Esta contradição, segundo Davis (2006, p. 39), se torna

clara quando os pobres precisam otimizar o custo habitacional com a

distância do trabalho. O que vai importar, portanto, é a proximidade do

local de trabalho, mais que a qualidade da moradia e das condições de

vida, visto o alto custo dos transportes coletivos na cidade e do tempo

perdido nas viagens.

As consequências das remoções foram muitas. “Livrou” o bairro da

Lagoa da ameaça das favelas3, liberou áreas para a especulação

imobiliária e a atuação do Estado diretamente garantiu a manutenção da

segregação na cidade, pois a retirada da favela contribuiu para elevar o

padrão social de alguns bairros da Zona Sul. Apesar disso, não contribui

para diminuir a população favelada na Zona Sul, nem para reduzir a

heterogeneidade social da Zona Sul como um todo. As décadas de 1970

e 1980 conheceram os maiores incrementos de população favelada na

cidade, além do aumento do número de favelas, apesar desse movimento

ter sido menor na Zona Sul da cidade. O período juntou um momento de

crise econômica no mundo e de ausência de políticas públicas realmente

eficazes voltadas para atender as necessidades das populações pobres.

A política de remoções passa por intenso desgaste, principalmente com a

opinião pública, a partir do final da década de 1970, quando a política em

relação as favelas se modifica para a questão da urbanização das

favelas, principalmente a partir do governo Brizola, conforme discutido no

Capítulo 2.

3 Segundo o jornal O Globo de 11/04/2009, projeções de especialistas em urbanismo

afirmam que, se não tivessem ocorrido as remoções das favelas na Lagoa, hoje o bairro teria cerca

de cem mil pessoas morando em favelas.

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Durante os últimos vinte anos, a discussão sobre remoções esteve

adormecida, principalmente devido a atuação de governos populistas.

Tornou-se “politicamente incorreto” discutir as remoções. Na atualidade, o

assunto remoções voltou à cena política, principalmente movida pelo

discurso ambiental. Muitas políticas de contenção e de remoção de

favelas agora são motivadas pela criação de áreas de proteção ambiental

e de embelezamento da cidade com grande vocação para o turismo.

Segundo a reportagem do jornal O Globo (COSTA et al, 2009, p.15) o

discurso atual defende que pequenas favelas deveriam já ter sido

removidas, como é o caso da Chácara do Céu, Chapéu Mangueira e

Tabajaras, por coincidência todas localizadas na Zona Sul do Rio de

Janeiro, defendendo ainda que a remoção justificada pela questão

ambiental é legal.

É importante ressaltar que toda a discussão sobre remoções

envolve a lógica de desenvolvimento da cidade e a discussão sobre o

direito à cidade, pois ela determina onde as pessoas devem se localizar

na cidade e quem tem direito de ficar nos bairros. No espaço urbano

carioca as favelas sempre representaram, de certa forma, uma

contradição aos interesses dos agentes sociais dominantes, e

entendemos que a política remocionista expressa um dos elementos que

demonstram a intenção dos atores sociais dominantes em manter a lógica

segregadora da Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro.

4.2 – As favelas na Zona Sul

Mesmo após as remoções, totais e pontuais, a população favelada

na Zona ainda passou por incremento populacional. Enquanto algumas

favelas foram extintas do mapa da cidade, surgiam novas favelas, pois a

dinâmica da lógica capitalista de produção, acirrada a partir da política

neo-liberal, continua a gerar sempre uma massa eterna de excluídos, de

pessoas lutando pela subsistência, e a Zona Sul ainda se configura como

um dos lugares da cidade que oferece maior número de empregos de

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baixa remuneração (atuando em serviços). Abaixo apresentamos o Mapa

02 com a localização atual das favelas da Zona Sul4 e a tabela com a

contagem populacional das áreas faveladas, além da área ocupada. A

partir da Tabela XX, é possível observar o crescimento das áreas

ocupadas pelas favelas.

4 A favela da Maloca, que se encontra no mapa, foi removida em 2005 por ação judicial de

reintegração de posse, não estando presente, portanto, na tabela

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Mapa 02: Localização das favelas – Zona Sul do Rio de Janeiro / 2009

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Tabela 03: dados populacionais da população favelada na Zona Sul do Rio de Janeiro5

Conforme observamos na Tabela 01, a Zona Sul, após as

remoções, foi a área onde houve maior controle da população favelada e

das áreas ocupadas pelas favelas, que nas últimas décadas apresentou

crescimento muito pequeno ou quase nulo (média de crescimento de

1,21%), segundo dados do Instituto Pereira Passos e do IBGE, que

5 Os dados de população e domicílios são ESTIMATIVAS com base nos resultados do

Censo Demográfico 2000 do IBGE. Foram obtidos através da compatibilização entre os limites do

cadastro de favelas do IPP e os dos setores censitários do IBGE.

Favelas Bairro

Nº de moradores

(IBGE/2000) Nº de

domicílios

Área ocupada (m2) em

1998

Área ocupada (m2) em

2008 Variação

média

Babilônia Leme 1.426 381 89.233 90.104 0,98%

Benjamin Constant Botafogo 460 134 12.641 12.641 0,00%

Cantagalo Copacabana 3.884 1.009 64.377 64.949 0,89%

Cerro-Corá Cosme Velho 1.012 256 13.369 13.369 0,00%

Chácara do Céu Vidigal 1.113 314 21.354 20.943 -1,92%

Chapéu Mangueira Leme 1.146 311 34.075 34.595 1,53%

do Horto Jardim Botânico 447 122 59.248 59.213 -0,06%

Fazenda Catete Catete 292 96 22.536 24.367 8,12%

Guararapes Cosme Velho 735 138 27.966 28.039 0,26%

Humaitá Humaitá 389 97 5.361 5.361 0,00%

Julio Otoni Laranjeiras 216 70 17.680 19.003 7,48%

Ladeira dos tabajaras Copacabana 1.051 317 32.526 33.674 3,53%

Mangueira Botafogo 635 199 10.929 10.929 0,00%

Morro Azul Flamengo 1.213 332 23.470 23.241 -0,98%

Morro dos cabritos Copacabana 2.040 637 95.945 96.564 0,65%

Pavão-pavãozinho Copacabana 4.256 1.283 60.918 63.820 4,76%

Pedra Bonita São Conrado 463 122 9.484 10.006 5,50%

Pereira Silva Laranjeiras 1.011 279 45.071 45.071 0,00%

Rocinha Rocinha 56.338 16.999 852.968 865.031 1,41%

Santa Marta Botafogo 4.520 1.262 55.123 54.692 -0,78%

Santo Amaro Catete 1.261 343 35.931 35.931 0,00%

Tavares Bastos Catete 1.052 337 27.640 27.751 0,40%

Vidigal Vidigal 9.364 2.757 293.116 294.093 0,33%

Vila Cândido Cosme Velho 1.107 306 26.869 27.503 2,36%

Vila Canoa São Conrado 1.618 456 9.348 10.410 11,36%

Vila Imaculada Conceição Cosme Velho 106 31 5.891 5.891 0,00%

Vila Parque da Cidade Gávea 2.304 666 39.827 39.827 0,00%

Total 99.459 1.992.896 2.017.018 1,21%

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apontam também a Zona Oeste como a área onde ocorreu maior

incremento de população favelada na cidade e grande expansão territorial

(esta área teve incremento de cerca de 6% da área ocupada por favelas).

Mesmo assim, os dados comprovam que, mesmo com as remoções da

década de 1960 e 1970, a população favelada ainda é muito grande na

Zona Sul, espalhando-se por quase todos os bairros. Segundo os dados

oficiais do último censo, são quase 100 mil moradores de favelas

presentes nos bairros da Zona Sul, diante de uma população total de

cerca de 630 mil moradores, o que significa que atualmente a população

de favela representa cerca de 16% da população da Zona Sul.

Os motivos para uma expansão territorial menos intensa são

muitos: As barreiras naturais e impostas pelo Estado que impediram a

expansão da favela, como é o caso de muitas favelas da área visto que

essas ocupam predominantemente as encostas, o intenso controle por

parte do Estado, principalmente justificado pelas questões ambientais e

de áreas de risco. As remoções continuaram na Zona Sul, mas sempre

pequenas e muito pontuais, como foi o caso da favela da Maloca, no

bairro de Laranjeiras em 2005, removida devido a solicitação de

reintegração de posse do terreno.

Foto 13 – Vista das Favelas Chácara do Céu e Vidigal

Foto: Marta do Nascimento, 2009.

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A foto mostra parte das favelas Chácara do céu e Vidigal, localizadas ao longo da Avenida Niemeyer. Em destaque o

grande paredão que impediu a expansão das duas favelas por toda a encosta, além da construção de um muro na favela

Chácara do Céu, para impedir o avanço da favela para o Parque Penhasco Dois irmãos.

Na contramão da expansão territorial A população moradora de

favelas passou por importante incremento nas últimas décadas, conforme

já citado anteriormente, inclusive retornando das remoções para outras

favelas. Hoje na Zona Sul as favelas representam um grande contingente

populacional diante da população da Zona Sul. Segundo dados do Censo

2000 (CEZAR, 2002, p. 6) na década de 90 a população passou por

pequeno crescimento, mas não devido a sua expansão horizontal, e sim

por um adensamento vertical, no caso

um adensamento das favelas antigas, mais do que expansão horizontal ou novos assentamentos. No caso da RA da Lagoa6, a taxa de crescimento (2,71% ao ano) foi superior à média da cidade (2,40%). Em média, a população dos setores subnormais da Zona Sul cresceu quase 2% ao ano, enquanto a população dos setores normais “encolhia” 0,6% ao ano.

As favelas da Zona Sul passaram, portanto, por um crescimento

populacional sem expansão de área, o que indica um processo de

verticalização pelo qual passaram algumas das favelas da área. Algumas

favelas hoje têm muitas casas de mais de dois andares e até pequenos

prédios, como é o caso das favelas da Rocinha e de Santa Marta.

6 Os bairros que compõem a VI Região Administrativa da Lagoa são: Gávea,

Ipanema, Jardim Botânico, Lagoa, Leblon, São Conrado e Vidigal.

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Foto 14 - Favela Santa Marta – 2009

Foto: Marta do Nascimento, 2009.

Foto da favela Santa Marta, da altura da estação 3 do bondinho. Destaque para prédio construído pelo Estado para famílias

removidas do próprio morro de áreas de risco. Destaque também para a presença da câmera de segurança, no alto do poste, que

vigia parte do morro.

Este crescimento populacional das favelas da Zona Sul pode

significar que houve um retorno de parte dos removidos podem ter

retornado ao local de origem, assim como pode significar um aumento da

pauperização de algumas classes, que podem ter recorrido as favelas da

região como forma de estar próximo ao amplo mercado de trabalho. É

importante destacar que a favelização da Zona Sul, na última década,

está inserida dentro de um contexto maior da cidade, de favelização

também de outras áreas da cidade e pauperização da classe média,

principalmente da Barra da Tijuca e Recreio, que representam a principal

área de expansão econômica da cidade. Áreas como Zona Sul e Barra da

Tijuca apresentam hoje os maiores crescimentos de favelas da cidade.

Conforme já foi explicado aqui, as redes familiares de nordestinos

representam um grande crescimento das favelas da Zona Sul e Barra,

pois representam a segurança e maior possibilidade de ascensão

econômica. O favelado da Zona Sul, portanto é predominantemente de

origem Nordestina, voltado para os trabalhos ligados à serviços

domésticos, como empregadas, faxineiras, porteiros, babás e motoristas.

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De todos os moradores que conversamos no Santa Marta e na Rocinha, a

grande maioria era dos mesmos estados do Nordeste, predominavam

moradores originários do Ceará, e quase todos ocupados em funções de

serviços destacadas acima, além de ambulantes, trabalhando na própria

favela.

Na Zona Sul, a presença de classes tão antagônicas convivendo

juntas em um mesmo território gera intensos conflitos (não formais). As

favelas da Zona Sul possuem uma dinâmica própria, mas fechadas em si

mesmas, muitas vezes devido a população das favelas não participarem

do cotidiano de lazer e consumo dos bairros onde está presente. Na

verdade, observamos em nossas visitas que os cotidianos dos bairros e

das favelas são completamente antagônicos, e que estes cotidianos

diferenciados contribuem para o afastamento simbólico das classes.

Observamos também que os moradores das favelas vivenciam duplo

cotidiano, o cotidiano da favela e, de certa forma, o cotidiano dos bairros.

É importante também observar que essa diferença é percebida por ambos

os moradores de bairros e das favelas, conforme observamos no

depoimento de um morador do Santa Marta, ao ser questionado sobre

como os moradores do bairro se sentem a respeito da favela, ele diz que

os moradores dos bairros sentem “intimidados, medo, pena. Mais mal

sabem eles que somos pessoas do bem, que não somos marginais e que

a vida aqui é simples mais é muito bem vivida. A integração, a diversão e

a nossa cultura é rica”, diferenciando-se dos demais moradores.

Realmente a diferença é visível. Em nossas visitas quando

percorremos as ruelas das favelas e as ruas dos bairros, observamos um

ritmo completamente diferente, de circulação, de integração e de vivencia

do espaço. Ritmos de vida que se misturam devido ao convívio das

classes, principalmente no tocante ao mercado de trabalho. Mas nem

sempre essa mistura de cotidianos tão distintos é bem vista pelos

moradores, principalmente pelos moradores de bairros, localizados

próximos às áreas de contato, as fronteiras entre as classes sociais.

Sobre os conflitos que observamos nestes locais, falaremos mais

claramente nos próximos tópicos.

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Com toda esta discussão queremos salientar e exemplificar o

processo de segregação social que ocorre na Zona Sul da cidade, por

apresentar esta mistura de paisagens e estes cotidianos duplamente

vividos, o processo de segregação é marcado por uma distância social

com uma proximidade física, conforme já discutido no capítulo 1.

Diferentes grupos sociais estão presentes na área, que se apresenta,

portanto, bastante heterogênea quanto aos grupos sociais presentes, o

que não significa que exista interação entre os grupos, que ambos

vivenciem o mesmo cotidiano e tenha acesso aos mesmos bens e

serviços oferecidos pelo Estado.

Foto 15 – Favela Santa Marta

Foto: Marta do Nascimento, 2009.

A vista lateral da favela Santa Marta nos permite observar

claramente a diferença na paisagem do bairro e da Favela. Em muitos bairros do Rio de Janeiro essa diferença não é tão visível,

mas a intensa valorização dos bairros da Zona Sul, com a presença predominante de edifícios para as classes média e média-alta, deixa em evidência este contraste nas formas de

construção.

Entendemos, portanto, que a presença das aglomerações de

populações pobres em uma das áreas mais valorizadas da cidade

representa uma contradição, ou uma forma de resistência dessas

populações contra uma realidade urbana organizada de forma excludente,

que estabelece áreas voltadas para a riqueza e para o poder e mantém a

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exclusão de grande massa da população. Esta exclusão nem sempre é

física, como é o caso da Zona Sul carioca, pois a vivência cotidiana

diferenciada e a falta de igualdade no acesso a bens e serviços também

se constituem como uma forma de exclusão. Cotidianos diferentes

contribuem para aumentar a distância social, e esta se materializa na

paisagem, principalmente nas áreas de contato entre as classes sociais.

Estas áreas são agora nosso objeto de estudo.

4.3 - Conflitos e contradições - A idéia de fronteira como contato: como se dá a relação entre a cidade legal e a cidade ilegal

As favelas da Zona Sul, por serem predominantemente localizadas

em encostas, possuem basicamente uma entrada principal, ou seja, um

acesso ao bairro. É sobre estas áreas que gostaríamos de focar aqui para

buscar exemplificar os conflitos que surgem no cotidiano quando classes

sociais tão antagônicas convivem em um mesmo local.

Para isto, gostaríamos de deixar claro o que estamos entendendo

por fronteira, ou fronteira social. O campo de estudos sobre fronteira

sempre teve uma tendência muito política, uma forma de ver a fronteira

como uma delimitação política pré-existente, deixando de lado questões

simbólicas ou culturais. Recentemente, com a difusão da idéia de fim das

fronteiras, com o surgimento de blocos econômicos como a União

Européia e o chamado “fim das distâncias” devido à revolução

tecnológica, a idéia de fronteira toma novas formas. Alguns autores

defendem que a compressão espaço-temporal aconteceu seletivamente e

que o acesso à informação eliminou algumas limitações para criar novos

limites substanciais (JONES, 2008, p.10). Concordamos com essa idéia

por entendermos que novos limites vão sendo criados a partir da

dimensão simbólica, entre outros fatores, e que essa questão vem sendo

deixada de lado nos estudos sobre fronteiras.

As ciências sociais têm se dedicado a estudos sobre fronteiras,

visando principalmente o olhar para a integração entre as culturas. As

fronteiras são vistas assim, conforme aponta Friedman (2002, p. 1), como

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o lugar do encontro e da interação. A autora afirma que esta visão, muitas

vezes, pode desviar a atenção para aquilo que realmente acontece nas

áreas de contato, nas áreas situadas entre aquilo que é diferente. A idéia

da mistura pode esconder os conflitos, pode silenciar a forma como a

própria diferença se configura e se revela efetivamente como o lugar da

migração. Esta autora propõe, portanto, uma leitura específica da

fronteira, como o local da intertextualidade, do espaço “entre”. Esta visão

da fronteira aqui nos interessa por resgatar aí a questão subjetiva da

fronteira, das áreas de contato entre duas culturas diferentes.

Por isso, a idéia de fronteira que vamos nos utilizar está ligada a

fronteira social, ou seja, “a área que separa e possibilita as trocas entre

duas unidades que se reconhecem mutuamente como diferentes”,

conforme apontam Saint-Martin, Rocha e Heredia (2008, p.135). As

autoras entendem que as fronteiras sociais7 “delimitam os contornos das

categorias sociais – a participação desigual dos indivíduos na vida social

– e (...) abrem espaços de troca e de encontro para que as classes se

comuniquem entre si”. Esta idéia aqui nos interessa pois resgata a idéia

da fronteira como uma área simbolicamente delimitada, portanto, não

intransponível, além da idéia do duplo cotidiano vivenciado pela

população favelada, conforme já descrito aqui.

As áreas de contato entre diferentes classes sociais representam

então a marca da diferença, como uma das áreas onde os grupos sociais

se percebem como diferentes, não sendo, portanto, a única área. Para

nós, estas áreas são exemplos do reflexo de como o espaço urbano

carrega as marcas da sociedade atual, uma sociedade desigual e

heterogênea. A própria leitura de classe social se modifica na atualidade,

pois as classes não são conjuntos homogêneos baseados em posições

econômicas estritas e opostos, nem tão pouco se formam em espaços

fechados (SAINT-MARTIN, ROCHA E HEREDIA, 2008, p.138). As

classes sociais estão baseadas no reconhecimento da diferença, e este

reconhecimento é simbólico.

7 As autoras utilizam a definição de fronteira social de Charles Tilly (2005), onde este

defende que “as fronteiras “nos” separam “deles”, e interrompem, circunscrevem ou “produzem

segregação” em distribuições de populações ou de atividades no interior das sociedades.

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Esperamos que a análise destas áreas de contato entre classes

sociais diferentes na Zona Sul do Rio de Janeiro nos permita observar a

diferença, além dos conflitos que ocorrem a partir dessa diferença. Nas

visitas a campo, foi possível ouvir os moradores, e o que faremos agora é

uma tentativa de apontar a diferença e os possíveis conflitos que surgem

a partir do reconhecimento da diferença.

4.3.1 - As áreas de contato entre o bairro e a favela

Durante o período de realização da pesquisa, visitamos algumas

áreas de contato entre os bairros e as favelas da Zona Sul. Foram

visitadas cinco áreas, onde circulamos pelas principais áreas de acesso

de algumas favelas da Zona Sul. Como a maioria das favelas da Zona Sul

se localiza nas encostas dos morros da área, as favelas possuem

normalmente só um acesso, que se configura como a área de contato

entre a favela e os bairros. A seguir encontra-se a Tabela 04 com as ruas

que foram visitadas.

Tabela 04 – Áreas de contato visitadas durante trabalho de campo – 2009

Ruas visitadas Favela Bairro

Marquês de Abrantes e Paulo VI Morro Azul Flamengo

São Clemente, Marechal Francisco de Moura e Barão de Macaúbas

Santa Marta Botafogo

General Ribeiro da Costa e Ladeira Ary Barroso

Chapéu Mangueira/Babilônia Leme

Visconde de Albuquerque e Aperana, Parque Penhasco Dois

Irmãos Chácara do Céu Leblon/Vidigal8

8 A área do Vidigal foi transformada oficialmente em bairro em 1981. Estamos

considerando aqui o bairro do Leblon devido à principal subida para a favela se localizar no

Leblon.

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Estrada da Gávea e Avenida Niemeyer Rocinha São Conrado/Rocinha9

Estas áreas de fronteira foram escolhidas por acreditarmos que

existe bastante heterogeneidade nelas e por representaram parte do

universo das favelas da Zona Sul. As favelas Santa Marta e Chapéu

Mangueira e Babilônia encontram-se atualmente sob ocupação policial, o

que transforma a paisagem e o convívio entre o bairro e essas áreas,

além de representarem grandes áreas faveladas na Zona Sul. A Rocinha

representa atualmente a maior favela da cidade, com um quadro social

bastante diversificado e uma economia importante, inclusive tendo sido

classificada como bairro e como Região Administrativa. As favelas

Chácara do Céu e Morro Azul representam favelas pequenas, com

populações pequenas (pouco mais de mil moradores, segundo dados do

último Censo), sendo a primeira considerada de difícil acesso, enquanto a

segunda está bem próxima ao Metrô do Flamengo. Por estas

características, acreditamos que estas favelas representem bem, de certa

forma, as características gerais das favelas da área. Nas visitas a campo

foi possível perceber que as áreas de contato apresentam características

comuns, mas não é possível generalizá-las tão somente, pois apresentam

características específicas, de acordo com sua dinâmica e o local onde

estão inseridas. Portanto, pretendemos abordá-las de forma geral e, em

seguida, caracterizá-las individualmente.

As áreas de contato, em geral, são marcadas pela intensa

diferenciação de paisagem entre os prédios de classe média e a subida

das favelas, mas esta diferenciação fica menos marcada em algumas

áreas, pois os prédios da área de contato são em geral muito antigos,

mais simples e mais degradados, como é o caso de Botafogo. As ruas em

geral apresentam comércio popular, voltado para atender a população de

baixa renda, como bares e pequenas mercearias. É marcante também a

9 A área da Rocinha foi transformada oficialmente em bairro em 1993. Estamos

considerando aqui o bairro de São Conrado devido ao principal acesso para a favela se localizar

em São Conrado.

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presença de motos, vans, kombis e ambulantes, além de caçambas de

lixo.

Foto 16 – subida da favela Chapéu Mangueira

Foto: Marta do Nascimento, 2009.

A foto mostra a subida da favela Chapéu Mangueira, no bairro do

Leme, encravada em uma rua de classe média do bairro, a rua General Ribeiro da Costa; a subida da favela apresenta grande

diferenciação em relação ao restante da rua, inclusive pela presença de pinturas nos muros caracterizadas como grafites.

O grafite é uma presença constante nos acessos às favelas de

toda a cidade, diferenciando a paisagem da favela da paisagem dos

bairros, visto a questão da identidade que o grafite emana. Segundo

Dayrell (2008),

ao apropriar-se do espaço público, a periferia passa a ser representada, a se mostrar no centro, tomando uma dimensão de protesto e também de crônica. (...) a principal característica do grafite é que o sujeito que produz a arte, na maioria das vezes, possuí uma forte ligação com a cultura local, mas nem por isso o trabalho final deixa de ser

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global. O grafite articula lazer, protesto e também é uma forma de sobrevivência.

O grafite visto como atividade marginal estava totalmente ligado a

periferia e ao pobre10, e segundo Martins (2009, p. 86), o grafite é um

importante meio pelo qual o pobre se reconhece e se aproxima,

ressaltando ainda o caráter de persistência e de luta da favela, “no

sentido de que a relação que o cotidiano nos revela é a de luta e

identidade”, pois ressaltamos aqui que a presença de favelas nesta área

se configura também como a resistência da população favelada em

permanecer na área mais valorizada da cidade.

Segundo os moradores dos bairros, a presença das favelas

desvaloriza os imóveis do seu entorno, principalmente aqueles que

apresentam vista da favela ou localizam-se bem próximos ao acesso

principal da favela, devido a esta desvalorização, os imóveis em geral

apresentam aparência degradada.

Foto 17 – Subida da favela Santa Marta

Foto: Marta do Nascimento, 2009.

Subida da Rua Jupira, principal acesso do Morro Santa Marta,

marcado pela presença de muitas caçambas de lixo e pela presença de comércio ambulante, principalmente de bebidas e

lanches.

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O grafite deixou de ser considerado atividade ilegal desde 2008, quando um projeto de

lei federal tornou o grafite atividade cultural e artística.

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Foto 18 – Rua Marechal Francisco Moura

Foto: Marta do Nascimento, 2009.

Subida da Rua Marechal Francisco Moura, rua que dá acesso ao

Morro Santa Marta, ainda com a presença de prédios de moradores de classe média. Ao fundo é possível observar

barracas de comércio ambulante, além do muro que apresenta também pinturas caracterizadas como grafites.

Como é possível observar também pelas imagens, a circulação de

pessoas é muito intensa, principalmente devido a presença de vans e de

ambulantes. Acreditamos que essa diferenciação de paisagem e o

reconhecimento da diferença, do espaço do outro, acaba criando uma

série de conflitos que pretendemos apresentar aqui. As áreas de conflito

acabam se tornando áreas onde os moradores de bairro evitam passar,

ou só vão se já conhecerem bem o local.

Foi possível observar como as áreas de contato são evitadas a

partir de relatos obtidos nas visitas a campo. Moradores de diferentes

bairros afirmam que não passam por essas áreas principalmente a noite,

com medo da violência e de tiroteios, como relata uma moradora do

Leblon, moradora do bairro há 21 anos: “antigamente, eu subia a Estrada

da Gávea e saía em São Conrado, hoje em dia desisti, tenho medo de

ficar no meio de algum tiroteio”. Uma moradora de Copacabana reafirma

a fala acima, quando diz que “evito andar à noite próximo às favelas.

Durante o dia é difícil evitar, pois existem favelas no coração de Ipanema,

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Copacabana, Botafogo, São Conrado”. Uma moradora do bairro do Leme

afirma que anda por todo o bairro durante o dia, pois diz que é

aposentada e gosta muito de passear na orla e fazer compras na rua

Gustavo Sampaio (principal rua do bairro); diz ainda que visita amigos por

todo o bairro e reclama muito do aumento dos assaltos por conta da

ocupação policial no Chapéu Mangueira e da falta de policiamento no

bairro, mas quando pergunto se freqüenta a Rua General Ribeiro da

Costa (principal acesso à favela Chapéu Mangueira) e se vê a patrulha da

polícia fixa presente na rua, responde categórica: “lá eu não vou”.

Fica claro nas falas dos moradores o repúdio às áreas de favela

como um conflito presente na área, pois as pessoas não deveriam ter

“medo” de frequentar todas as ruas do bairro. Ainda assim, observamos

variações nesse discurso, pois alguns moradores de bairro afirmam que

as favelas da Zona Sul são mais tranqüilas, vigiadas, e afirmam não ter

medo de passar em locais onde conhecem bem, entretanto afirmam que

evitam circular pelo restante da cidade, principalmente à noite.

Realmente, podemos apontar como característica geral das favelas da

Zona Sul uma área de contato com os bairros bem pequena, discreta e

controlada, ao contrário de muitas favelas no restante da cidade, como

afirma um morador de Copacabana, que afirma já ter morado em muitos

bairros da Zona Norte e mora na Zona Sul há cinco anos: “não costumo

evitar passar em favelas da Zona Sul. Em regiões da Zona Norte evito”,

ou o morador do Flamengo, o qual afirma que “aqui na Zona Sul dá para

passar, em outros lugares só se for muito necessário...”

Gostaríamos de salientar agora algumas diferenças em relação às

áreas de contato visitadas e as áreas que estão sob ocupação policial

recente. É o caso, por exemplo, da favela da Rocinha e da favela Chácara

do Céu, onde as áreas de contato são completamente diferentes. Na

favela Chácara do Céu, a zona de contato com o bairro do Leblon, por

onde a favela tem acesso, é muito longa e distante, e se configura como

uma área muito vigiada e controlada. O principal acesso à entrada da

favela é a subida do Parque Penhasco Dois Irmãos, localizado na Rua

Aperana, no referido bairro, o que torna a favela bastante isolada do

bairro. Só é possível chegar ao bairro por meio de uma Kombi,

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responsável pelo transporte dos moradores da favela até a parte baixa do

bairro, na Rua Visconde de Albuquerque, ou de carro, para os moradores

que possuem. O outro acesso é por via de uma escadaria localizada na

Avenida Niemeyer, em frente ao hotel Sheraton, um dos hotéis de alto

luxo da cidade.

Foto 19 – Subida do Parque Penhasco Dois Irmãos

Foto: Marta do Nascimento, 2009.

Uma das subidas do Parque Penhasco Dois Irmãos, continuação

da Rua Aperana, no Alto Leblon (no canto inferior à direita). A subida do parque possui calçamento e guaritas de segurança, há

também área de play, bancos e mesas para lazer. O parque foi criado em 1992, mas seu calçamento ocorreu somente no

Governo Conde (1997-2001).

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Foto 20 – Chegada à favela Chácara do Céu

Foto: Marta do Nascimento, 2009.

No fim da rua Aperana encontra-se uma pequena estrada de terra, onde acaba o calçamento, que seria a chegada da favela

Chácara do Céu. Moradores reclamam que após chuvas intensas, este caminho fica intransitável.

Como se pode ver nas fotos, a subida do parque se configura como

a principal área de contato entre o bairro e a favela, principalmente após o

calçamento do parque, durante o governo Conde (1997-2001); segundo

os moradores da favela, antes disso o acesso dava-se através de uma

estrada íngreme de terra. Após o calçamento da rua, o local ganhou áreas

de lazer e uma guarita de segurança com dois seguranças fixos dia e

noite, além de uma patrulha da polícia quase sempre presente no local.

Quando termina o calçamento, chega-se a uma estrada de terra curta e a

um descampado, por onde se vê um muro e a entrada da favela, vigiada

também por traficantes. Chama atenção a convivência tão de perto entre

os “vigias” do asfalto e os “vigias” da favela.

A subida para o parque é utilizada pelos moradores do bairro para

a prática de esportes e para a utilização das áreas de lazer, além do

intenso fluxo de turistas, pois existem três mirantes no Parque. A área de

contato, portanto, distancia o bairro e a favela, o que torna a favela menos

incômoda para os moradores do bairro. Oficialmente, no bairro do Leblon,

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com a criação do bairro do Vidigal, não existem mais favelas, somente no

bairro do Vidigal, e como elas não marcam a paisagem do bairro, passam

a causar menos “incômodo”, conforme relatos de moradores que

percebem isso e afirmam que “no Leblon não tem favelas”. Mesmo assim,

moradores reclamam da desordem urbana causada pela presença de

vans e Kombis, transportes utilizados principalmente pelos moradores

pobres da região. No Leblon, por exemplo, a subida da Kombi para a

Chácara do Céu se localiza na Praça Professor Azeredo Sodré, na Rua

Visconde de Albuquerque.

O calçamento realizado na rua Aperana não chega até a favela,

que fica isolada por uma pequena estrada de terra, sendo esta uma das

grandes reclamações dos moradores da favela: “já tem mais de dez anos

que o calçamento chegou no parque, por que não estendem até aqui?”,

questiona uma moradora da favela. Os moradores vêem, portanto, a falta

de calçamento como uma forma de isolá-los do bairro. Ao mesmo tempo

afirmam que a chegada do calçamento até o Parque facilitou a vida dos

moradores, que passaram a utilizar muito mais o parque que a escadaria

na Avenida Niemeyer, pois esta é muito longa e íngreme. Os moradores

da Chácara do Céu afirmam também que na favela não há nenhum tipo

de comércio, o que os torna completamente dependente dos serviços que

o bairro dispõe. A padaria mais próxima, segundo moradores, se localiza

nas proximidades da rua Visconde de Albuquerque, mas só é possível

chegar de carro ou de Kombi. Os moradores reclamam dos preços da

padaria e do mercado mais próximo, pois é voltado para os moradores do

bairro, afirmando que precisam ir até Ipanema para frequentar um

mercado mais barato, o que torna a área de contato somente um ponto de

passagem dos moradores.

Ao contrário desta área de contato, que é bem definida, o oposto é

encontrado na favela da Rocinha. Uma das maiores favelas da América

Latina, possui vários acessos, quase todos eles tomados por vendedores

ambulantes. Caminhar pela entrada da Rocinha muitas vezes nos dá a

sensação de estar chegando em um dos mais importantes subcentros

comerciais da Zona Sul. Na visita à entrada da favela, ouvimos muitos

ambulantes do local, e quase todos não são moradores da favela. Na

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subida pela Estrada da Gávea funciona uma feira de roupas e bijuterias,

todos os sábados. Os ambulantes presentes na feira afirmam que não há

ali nenhum morador da Rocinha trabalhando, e que a feira é frequentada

principalmente por moradores da Rocinha, mas também por moradores

de toda a Zona Sul, pois não há nenhuma feirinha desse tipo na Zona Sul,

incluindo aí também moradores do bairro de São Conrado como

freqüentadores da feira e do comércio de rua da Rocinha. “Aqui tem tanta

barraca quanto na [camelódromo] Uruguaiana”, afirma um ambulante.

Esta dinâmica intensa de comércio, transporte de vans e Kombis e

pessoas transforma esta zona de contato em algo mais fluido, menos

marcado e vigiado. Em um muro próximo à saída do estacionamento do

Shopping Fashion Mall, encontramos novamente a presença do grafite, o

que demonstra, nesse caso, a chegada nas proximidades da favela. A

presença de vans e Kombis se mistura com o comércio da Avenida

Niemeyer, onde encontramos lojas de um lado e ambulantes do outro.

A rocinha forma um mundo a parte do bairro de São Conrado, pois

se localizam no local todo tipo de comércio, bancos, shoppings, casas

lotéricas, entre outros, o que significa dizer que a população não precisa

dos serviços do bairro, sendo a favela da Rocinha praticamente “auto-

suficiente”, e a Zona de contato torna-se extremamente ampla e ao

mesmo tempo próxima. Quase tudo que os moradores da favela

consomem é adquirido ali mesmo, ou dentro da favela, ou na área de

contato, conforme moradores da própria favela apontaram em nossa

visita.

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Foto 21 – Subida Estrada da Gávea

Fonte: Jornal O Globo, 2009.

A foto mostra a subida da estrada da Gávea na Rocinha, no encontro com a Avenida Niemeyer, local de ponto de vans e Kombis, além de mototáxis que circulam por toda a favela.

Foto 22 – Shopping na Rocinha

Fonte: Jornal o Globo, 2009.

A favela da Rocinha possui inclusive um Shopping Center, uma espécie de galeria de dois andares com lojas que vendem até

produtos de grifes estrangeiras.

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Nas favelas da Zona Sul visitadas que possuem agora as Unidades

de Polícia Pacificadoras (UPP), Santa Marta e Chapéu Mangueira, o

incomodo com a presença das favelas aparentemente não foi reduzido,

pois mesmo que os moradores apontem a questão da violência e do

medo como fatores para evitar as favelas, agora citam reclamações

quanto ao aumento de assaltos devido a proibição do tráfico nesses

locais. Os moradores dos bairros do Leme e de Botafogo apresentaram

muitas reclamações quanto aos assaltos nos bairros e às residências de

prédios de classe média dos bairros, e citam que não freqüentam mais

comércios locais nas proximidades das favelas porque estes tem sido

alvo de assaltos recentes, como é o caso de um morador do Leme que

disse evitar ir até uma padaria da rua Gustavo Sampaio, devido a assaltos

na semana anterior.

Outros moradores citam ainda como problema a questão da falta

de infra-estrutura nas favelas. Uma moradora de Laranjeiras afirma que

não evita áreas de favelas, mas afirma que o “problema é o lixo e esgoto

a céu aberto”. Este discurso apareceu também em Botafogo, de uma

moradora residente muito próxima à área de contato com a favela Santa

Marta, na rua Marechal Francisco de Moura, que afirmou que as

principais reclamações dos moradores do prédio atualmente (após o fim

do tráfico no morro) são o lixo, pois as caçambas que atendem toda a

comunidade se localizam na frente do prédio, o esgoto que desce pela

rua e a intensa movimentação de gente, o que deixa a rua muito

barulhenta. Os relatos mostram que, independente do problema citado,

sempre haverá um problema a ser questionado, pois são cotidianos

muitos diferenciados e interesses diferenciados.

Além dos locais visitados, foi possível ouvir as opiniões de

associações de moradores de vários bairros da Zona Sul. Foi possível

observar que algumas favelas localizadas em Parques, como a favela do

Horto, no Jardim Botânico, e do Parque da Cidade, na Gávea, apesar dos

moradores dos bairros terem afirmado que são favelas pequenas ou

mesmo nem chamarem de favela, as pessoas têm deixado de visitar as

áreas ou passar por lá devido à presença das favelas. Segundo o

presidente da Associação de Moradores do Jardim Botânico, mesmo

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afirmando que não há favelas no bairro, diz que “no final do Horto (onde

houve invasões recentes e as construções são apinhadas, o que dá um

"visual" de favela) alguns moradores têm medo de passar, à noite”. Um

discurso parecido é observado na fala da presidente da Associação de

Moradores da Gávea, que afirma não ter medo de freqüentar as favelas

da Zona Sul, mas mostra preocupação quanto ao Parque da Cidade pela

falta de segurança no local; “faz algum tempo que deixei de frequentar o

Parque da Cidade em função de histórias sinistras de episódios de

violência ocorridos ali e pela total falta de policiamento no local”, ao

contrário do que descrevemos acerca da Chácara do Céu.

As áreas de contato entre os bairros e as favelas sempre

constituíram áreas de conflitos e contradições por estarem nestes locais

os pontos de maior reclamação de moradores de bairros. Entre as

principais reclamações estão a desordem urbana e a falta de controle nas

áreas de acesso as favelas, e a presença policial não parece ter resolvido

os problemas. Os acessos às favelas se constituem como as áreas que

são negadas, pois representam a diferença, o ponto onde o morador de

bairro muitas vezes não pode evitar. As favelas e suas áreas de acesso

representam, portanto, a expressão de conflitos no espaço urbano da

Zona Sul.

4.3.2. A natureza como fronteira – questão ambiental e a construção de muros

Uma ação proposta pelo poder público bem recentemente é a

construção de muros no entorno de favelas da Zona Sul carioca. Na

favela Santa Marta, em Botafogo, já está terminada a construção de 634

metros de um muro de concreto, com a intenção de impedir o crescimento

da favela para áreas de mata presentes na encosta onde se situa o

morro. Segundo Ferreira (2009), “se tivermos em conta que do outro lado

da favela há um plano inclinado, com teleférico para transporte da

comunidade, que já serve como muro de contenção, ao final da

construção do muro os moradores estarão concretamente murados”.

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Na Chácara do Céu já houve essa tentativa. Em 1992 foi

construído um muro, que coincidiu com a criação do Parque Penhasco

Dois Irmãos, mas o muro não impediu o avanço da população para a área

do Parque, visto que já existem construções além muro. Mesmo assim, o

muro da Chácara do Céu deixa os moradores com o sentimento de

exclusão, pois só existe uma pequena porta no muro, que dá acesso a um

descampado na mata, local que os moradores chamam de “praça”,

apesar de não existir nenhum equipamento urbano que o caracterize

como tal. Como não houve fiscalização ambiental séria no local, para os

moradores da favela a intenção do muro era de claramente impedir que a

favela avançasse pela encosta e incomodasse os moradores do bairro do

Leblon.

Apesar do muro não ter evitado novas construções na Chácara do

Céu, construiu-se o muro no Santa Marta. Do projeto atual, no total, serão

construídos 11 km de extensão de muros que circundarão 11 favelas,

todas na Zona Sul do Rio de Janeiro, com o discurso de tentar conter o

crescimento desordenado e a destruição da Mata Atlântica. As favelas

participantes do projeto são a Rocinha, o Parque da Cidade, na Gávea, os

morros dos Cabritos e a Ladeira dos Tabajaras, em Copacabana; da

Babilônia e Chapéu Mangueira, no Leme; Cantagalo e Pavão-

Pavãozinho, em Ipanema; Vidigal, no Leblon; e Benjamim Constant, na

Urca, mas até agora somente o muro da favela Santa Marta foi

construído.

Esta ação tem recebido grande número de críticas por parte da

sociedade civil, mas pesquisas apontam ainda que parte da população

apóia a construção de muros. A população das favelas não vê com bons

olhos a obra, pois existe uma idéia muito forte de segregação no projeto.

Na Rocinha, houve a tentativa da implantação de um projeto de

construção de um muro na parte da favela voltada para a encosta, mas o

projeto foi retirado de pauta devido a resistência por parte dos moradores

da favela.

A maior parte das críticas se concentra no fato da Zona Sul ter

apresentado a menor expansão das áreas faveladas (conforme a Tabela

01, 1,21% de crescimento em uma década) e o projeto estar concentrado

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mesmo assim na Zona Sul, e não na Zona Oeste, onde o aumento foi

muito maior e parte da área pertencente ao Parque Estadual da Pedra

Branca estar comprometida pela expansão das favelas na área. A

construção do muro representa um novo conflito entre a área legal e ilegal

da cidade, entre a população da favela e o restante dos moradores dos

bairros da Zona Sul. Representa também uma apropriação do discurso

ambiental pelo Estado e pelo capital imobiliário, com a intenção de

minimizar o “incômodo” que significa atualmente a presença de favelas na

Zona Sul, configurando-se como um conflito na área. Pouco depois da

polêmica, os representantes do poder público passaram a chamar o muro

de “ecolimite”, tentando evitar a idéia de exclusão, tão comum em muros.

Entendemos que se trata da natureza sendo usada como imposição de

limites, funcionando como fronteira natural e imposta.

Foto 23 – Favela Santa Marta, em Botafogo – 2004

Fonte: Site favela tem Memória

Observa-se a ocupação de grande parte da encosta, em áreas de

proteção ambiental. A morfologia da favela contrasta com a organização das ruas e os prédios de classe alta do bairro de

Botafogo.

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Foto 24 – Construção do muro no morro Santa Marta

Fonte: Jornal O Globo, 27/03/2009

A construção do muro foi iniciada em março de 2009, com a

intenção de evitar o avanço da favela na encosta, que é área de proteção ambiental.

Foto 25 – muro na favela Santa Marta

Foto: Marta do Nascimento, 2009.

O Muro já terminado na favela; por enquanto está garantindo a

não expansão horizontal da Favela.

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Foto 26 – Muro na favela Chácara do Céu

Foto: Marta do Nascimento, 2009.

O muro na Chácara do Céu já existe desde 1992, e não impediu

que a população ocupasse áreas além do muro, pois não houve, realmente, fiscalização ambiental na área.

4.3.3. A dinâmica da relação entre o bairro e a favela

Percorrer favelas na Zona Sul se configura como um choque de

segregação e exclusão. Ruas com residências de alto luxo, organizadas,

limpas e em geral bem cuidadas11, contrastam demais com as ruelas

estreitas, íngremes, esgoto a céu aberto e muito lixo. É claro que não é

possível generalizá-las, pois as favelas apresentam grande

heterogeneidade, mas de forma geral, o contraste é muito intenso. É claro

que hoje, algumas favelas da Zona Sul apresentam bom nível de

desenvolvimento, inclusive com ampla infra-estrutura urbana, enquanto

outras apresentam um grau de desenvolvimento muito baixo, abaixo

inclusive de favelas na Zona Norte e Oeste. Independente desta variação,

se compararmos com o nível de desenvolvimento dos bairros, as favelas

representam um mundo à parte na Zona Sul.

11

Apesar da reclamação de muitos moradores, os bairros da Zona Sul apresentam melhores

condições que a maioria dos bairros da cidade, excetuando-se a Barra da Tijuca, Recreio,

Itanhangá, entre outros.

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125

Abaixo apresentamos duas tabelas de comparação entre o Índice

de Desenvolvimento Social (IDS)12 e condições de vida entre os bairros e

as favelas da Zona Sul. Para melhor análise, separamos somente os

bairros da Zona Sul e as favelas da Zona Sul nas tabelas, assim como

suas respectivas posições na tabela geral do IDS na cidade do Rio de

Janeiro.

Tabela 05 - Índice de Desenvolvimento Social e seus indicadores constituintes por bairro - Município do Rio de Janeiro - 2000

Posi-ção

Bairro

Índice de Desenvol-vimento Social

% de domicílios particulares permanentes com rede de

água adequada

% de domicílios particulares permanentes com rede de

esgoto adequada

% de domicílios particulares permanentes com coleta de lixo

adequada

% dos chefes de domicílio com

menos de quatro anos de estudo

% dos chefes de domicílio

com 15 anos ou mais de estudo

% de analfabetismo em maiores de 15 anos

% dos chefes de domicílio com

renda até dois

salários mínimos

% dos chefes de domicílio com

rendimento igual ou superior a 10 salários mínimos.

Rendimento médio dos chefes de

domicílio em salários mínimos

1 Lagoa 0.854 99.95 99.91 99.95 2.33 68.91 0.54 4.47 81.36 35.90

2 Leblon 0.809 99.98 99.81 100.00 4.68 55.20 1.05 6.90 69.43 29.78

3 Ipanema 0.801 99.75 99.55 100.00 4.89 53.97 1.09 7.73 67.08 27.94

4 Humaitá 0.798 99.95 99.74 99.98 2.96 59.48 0.88 6.85 65.09 20.42

5 Urca 0.795 99.96 99.61 99.96 2.60 63.84 1.05 7.84 69.47 21.12

7 Jardim Botânico 0.787 97.82 98.17 99.91 4.43 57.38 1.24 8.67 64.97 25.49

8 São Conrado 0.787 94.39 95.58 99.91 5.63 57.58 1.52 15.43 68.02 35.28

9 Gávea 0.787 99.01 99.33 99.98 3.99 55.60 1.81 10.61 64.12 25.37

10 Laranjeiras 0.779 99.92 99.70 99.99 3.80 54.34 1.00 8.04 60.97 19.63

11 Flamengo 0.775 99.99 99.92 100.00 3.08 49.90 0.76 7.53 56.88 18.91

12 Leme 0.761 99.77 99.03 99.98 5.45 47.25 1.42 13.10 57.99 20.51

13 Maracanã 0.758 99.98 99.94 99.99 3.83 48.27 1.17 8.15 53.89 15.28

14 Copacabana 0.753 99.91 99.67 99.97 4.91 41.95 1.37 9.23 52.74 17.29

16 Botafogo 0.743 99.70 97.46 99.90 5.87 45.75 1.41 12.20 51.31 16.21

12

O índice em pauta tem como base os resultados do Censo Demográfico do IBGE. Sua

peculiaridade que o diferencia de tantos outros índices igualmente importantes e úteis, é o nível de

desagregação espacial para o qual ele pôde ser calculado: o setor censitário. O setor censitário

(com uma média de 250 domicílios) é uma construção do IBGE, utilizada em suas pesquisas

domiciliares, definida como: “a unidade territorial de coleta e de controle cadastral, percorrida por

um único recenseador, contínua e situada em área urbana ou rural de um mesmo distrito, em

função do perímetro urbano (linha divisória dos espaços juridicamente distintos de um distrito,

estabelecida por lei municipal).” Ao utilizar a menor unidade geográfica para as quais se dispõem

e se disporá de dados estatísticos confiáveis e sistemáticos possibilita a identificação e a

comparação das diferenças intra-urbanas tanto no máximo grau de detalhamento espacial quanto

em qualquer agregação que seja possível fazer. (..) Foram utilizados 10 indicadores, construídos a

partir de variáveis do Censo: Dimensão Acesso a Saneamento Básico, Dimensão Qualidade

Habitacional, Dimensão Grau de Escolaridade, Dimensão Disponibilidade de Renda.

(CAVALLIERI E LOPES, 2008, p. 1-2)

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22 Cosme Velho 0.713 97.91 99.23 99.95 13.06 43.97 2.51 21.35 50.54 19.50

Como se pode perceber pela Tabela 05, os bairros da Zona Sul

estão, praticamente, todos no topo da lista de desenvolvimento social,

apresentando rendimento salarial médio muito elevado, os mais elevados

da cidade. Quanto ao Índice de Desenvolvimento Social (IDS), estão

todos acima de 0,7. Os bairros da Zona Sul, em geral, são ainda os de

maior nível de renda e de maior qualidade de vida, segundo a

metodologia utilizada para o cálculo do IDS.

Tabela 06 - Índice de Desenvolvimento Social e seus indicadores constituintes por favela - Município do Rio de Janeiro - 2000

Posição

Favela

Índice de Desenvolvimento Social

% de domicílios particulares permanentes com rede de água

adequada

% de domicílios particulares permanentes com rede

de esgoto

adequada

% de domicílios particulares permanente

s com coleta de

lixo adequada

% dos chefes de domicílio com

menos

de quatro

anos de

estudo

% dos chefes de domicílio com 15

anos ou

mais de

estudo

% de analfabet

ismo em maiores de 15 anos

% dos chefes de domicílio com

renda até

dois

salários

mínimos

% dos chefes de domicílio com renda

igual ou

superior a

10 salários mínimos.

Rendiment

o médio em

salários

mínimos

1 Vila Benjamim Constant 0.589 99.25 98.51 99.25 18.66 14.18 4.35 32.84 8.96 5.24

14 Vila Parque da Cidade 0.553 100.00 99.55 100.00 16.11 2.56 2.00 48.95 1.51 2.66

20 Ladeira dos Tabajaras 0.542 97.79 97.48 100.00 20.19 4.10 5.14 47.32 4.10 3.48

31 Chapéu Mangueira 0.537 100.00 99.03 100.00 24.35 4.55 3.49 53.57 2.60 2.65

32 Pedra Bonita 0.537 100.00 94.26 100.00 16.39 1.64 3.24 51.64 0.00 2.30

37 Morro Azul 0.535 99.70 98.19 100.00 21.08 1.51 2.97 53.92 1.20 2.67

48 Guararapes 0.530 98.31 97.75 100.00 26.40 3.93 3.27 52.81 2.81 3.55

54 Morro dos Cabritos 0.527 100.00 98.98 100.00 30.56 3.40 6.47 49.24 2.89 3.07

58 Chácara do Céu (Vidigal) 0.526 99.68 96.82 100.00 19.75 3.82 4.13 62.42 0.32 2.06

70 Cerro-Corá 0.522 100.00 98.83 100.00 33.20 3.13 4.74 50.78 3.13 3.34

75 Vila Pereira da Silva 0.519 100.00 97.84 100.00 29.50 2.88 5.93 54.68 2.16 3.05

95 Vila Canoa 0.512 100.00 99.78 100.00 25.98 0.87 3.46 68.12 0.44 2.05

119 Vila Candido 0.507 97.06 99.02 99.67 36.27 1.96 6.32 51.96 2.29 3.01

135 Recanto Familiar /Humaitá 0.504 100.00 100.00 100.00 40.21 2.06 6.68 52.58 1.03 2.45

142 Vidigal 0.503 98.30 96.92 100.00 34.60 1.92 7.98 55.75 1.23 2.37

167 Morro do Cantagalo 0.497 96.35 95.23 100.00 30.43 2.13 5.25 65.82 1.52 2.12

194 Mangueira (Botafogo) 0.491 92.46 91.46 100.00 33.17 0.50 9.61 55.78 1.51 2.44

206 Vila Santo Amaro 0.487 100.00 99.42 100.00 38.30 0.88 8.80 63.45 0.58 2.05

211 Pavão-Pavãozinho 0.487 98.90 95.99 98.74 42.26 1.65 10.95 49.33 0.79 2.64

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220 Babilônia 0.483 96.58 86.58 99.74 29.47 2.37 6.10 69.47 0.53 1.94

263 Fazenda Catete 0.474 80.21 98.96 100.00 37.50 0.00 11.64 51.04 1.04 2.89

310 Rocinha 0.458 97.26 60.50 99.44 39.30 1.34 9.36 52.27 1.45 2.59

350 Santa Marta 0.443 98.97 49.68 97.94 36.69 0.95 8.12 58.56 0.24 2.12

A comparação do nível de desenvolvimento e das condições de

vida entre os bairros da Zona Sul e as favelas é bastante expressiva. O

Índice de Desenvolvimento Social apresenta grande disparidade, mesmo

sendo da Zona Sul a favela com maior Índice, a vila Benjamim Constant,

o restante das favelas apresenta nível muito baixo de desenvolvimento,

principalmente quanto à escolaridade e ao nível de renda. Os bairros da

Zona Sul, portanto, apresentam os mais altos índices de

desenvolvimento, enquanto as favelas localizadas na área apresentam

níveis baixos em relação à cidade13, o que representa uma contradição

quanto à distribuição de infra-estrutura e de renda entre a favela e o bairro

na Zona Sul. Salientamos aqui que essa distância social existe em

relação a muitos bairros e favelas da cidade, mas na Zona Sul essa

diferença se amplia, pois se trata da área de maior valorização da cidade.

Enquanto os bairros apresentam IDS de países ricos, as favelas

apresentam IDS de áreas muito pobres, como Santa Cruz, bairro da Zona

Oeste da cidade.

Toda essa desigualdade na qualidade de vida da população se

reflete na paisagem e no imaginário social dos bairros da Zona Sul,

acarretando também diferentes conflitos. Uma importante contradição que

apontamos, baseada também na desigualdade das condições de vida das

populações, são os diferentes interesses dos moradores de bairro e de

favela e a atuação diferenciada (consequentemente) do poder público na

área. Ouvir os dois lados nos mostra o quanto os interesses, os

problemas e as cobranças são divergentes mesmo entre pessoas vivendo

em uma mesma área, o que dificulta bastante a atuação do poder público.

Este sempre tende a primeiramente atender as cobranças e interesses 13

De um universo total de 503 favelas reconhecidas como aglomerados subnormais pelo

IBGE.

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das classes sociais dominantes, pois nos bairros da Zona Sul se paga os

IPTUs mais caros da cidade, portanto, devem ser atendidos

primeiramente, visto que nas áreas de favela não se paga IPTU.

Para os moradores de bairro ouvidos, assim como para os

representantes da associação de moradores de bairros, os problemas que

mais aparecem são a desordem urbana, citando aí estacionamento

irregular, falta de conservação de equipamentos urbanos e do patrimônio

histórico, a falta de segurança e o trânsito extremamente congestionado.

Além, também, do excesso de linhas de ônibus e da presença de vans e

kombis, da presença de mendicância e de moradores de rua. Foram

citados também o desrespeito à lei do silêncio, o excesso de ambulantes

em ruas principais dos bairros, presença de flanelinhas, má conservação

das calçadas e os blocos de carnaval, pois estes impedem a livre

circulação de carros e causam transtornos e sujeiras.

Já os moradores de favelas apontam problemas bastante

antagônicos aos dos moradores dos bairros, como a falta de água

(normalmente só cai água alguns dias na semana), a falta de coleta de

lixo, o isolamento em relação aos bairros, as dificuldades de locomoção

dentro das favelas, a falta de áreas de lazer e de serviços dentro das

favelas, o esgoto a céu aberto, entre outros. Para os moradores de favela,

as dificuldades de chegar e sair da favela com cargas, além das

dificuldades quanto ao acesso à infra-estrutura urbana são os problemas

que mais os afligem, por isso a importância em estar na Zona Sul, com

ampla disponibilidade de transportes e serviços. Fica claro nesta

comparação o quanto os interesses e as cobranças são diferentes para

ambos os moradores, o que se configura como um conflito e uma

contradição, principalmente quanto à atuação do poder público. Apesar da

divergência, nos últimos tempos o poder público tem atuado em ambas as

áreas, de forma direta ou não.

Diversos projetos sociais ligados ao poder público ou privado

atuam na área, como o Projeto Favela-Bairro citado no Capítulo 2, nas

favelas Cerro-Corá, Guararapes, Morro dos Cabritos, Santo Amaro,

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Vidigal e Vila Cândido; e o projeto Bairrinho14, nas favelas Babilônia,

Benjamim Constant, Chapéu Mangueira, Morro Azul, Pedra Bonita,

Pereira da Silva, Vila Canoa e Vila Parque da Cidade. Atualmente as

favelas da Rocinha, Pavão-pavãozinho e Cantagalo receberam amplos

investimentos do PAC, para a construção de moradias e centros de lazer

e esportes. Apesar da intervenção do Estado, as desigualdades entre

bairro e favela não diminuíram. A favela Santa Marta recebeu importantes

investimentos como saneamento e a construção do plano inclinado, já

que a favela Santa Marta apresenta o pior IDS da Zona Sul (tabela 06).

As favelas da Zona Sul se localizam nas encostas de mais difícil

acesso na área, o que dificulta a chegada de saneamento básico e coleta

de lixo. Mesmo assim, o discurso dos moradores das favelas é que

apesar das dificuldades vale a pena estar na Zona Sul, pois a

proximidade de amplo mercado de trabalho garante a subsistência de

muitos moradores. Além disso, algumas favelas da Zona Sul possuem

uma vista impressionante, o que poderia significar algum tipo de ganho ou

lazer por parte dos moradores de favela (Foto 27).

Foto 27 – Chácara do Céu

Foto: Marta do Nascimento, 2009.

A foto mostra a vista da favela Chácara do Céu, para as praias do

Leblon e Ipanema, além da praia do Vidigal. O isolamento é compensado pela localização privilegiada e pela aparente

tranqüilidade do local.

14

Projeto nos mesmos moldes do Favela-Bairro, mas para favelas de até 500 moradores.

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Foto 28 – Plano inclinado no Santa Marta

Foto: Marta do Nascimento, 2009.

A Foto mostra o bondinho do Plano Inclinado inaugurado na

favela Santa Marta em Maio de 2009. O Bondinho tem ajudado bastante os moradores a subir com cargas e facilitou também a

coleta de lixo, pois é impossível circular com veículos motorizados pela favela, ao contrário de favelas como a Rocinha e o Chapéu Mangueira, devido a presença de ruelas e da encosta

muito íngreme.

A relação das favelas com os bairros, portanto, é muito marcada

por essa desigualdade nas condições de vida, o que influencia também o

imaginário social de ambos os moradores. Apesar de ambos, em geral,

afirmarem que existe interação entre as áreas de favela e o bairro,

observamos que geralmente os moradores de bairro não frequentam, ou

evitam as áreas de contato entre bairro e favelas. Apesar dos moradores

afirmarem que não sentem nenhum tipo de preconceito, falam em áreas

onde não freqüentam, como o Shopping Fashion Mall ou a praia do

Vidigal, praia esta onde já houve a tentativa do hotel Sheraton de torná-la

privativa para evitar a presença de moradores das favelas do Vidigal e

Chácara do Céu.

A maior parte dos moradores de bairro cita uma relação conflituosa

com a favela. Ao serem questionados sobre como vêem a favela em seus

bairros, é possível observar falas como: “a favela torna a região insegura,

deprecia o valor dos imóveis”, ou que existe “a dificuldade em se fazer

preservar a ordem urbana.” Ou ainda moradores com falas como: “[as

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favelas] são ruins, por mim se removiam todas”. Alguns moradores e

presidentes de associações de moradores de bairro afirmam que nos

bairros em que moram não há favelas, mesmo o IBGE tendo reconhecido

favelas nos bairros em questão, como uma moradora do Leblon que

afirma que no Leblon não tem favelas, pois a criação do bairro do Vidigal,

em 1981, deixou as duas favelas do bairro do Leblon em outro bairro, o

que não alterou em nada a relação das favelas com o Leblon. Outra fala

importante para ilustrar esta situação é a do presidente da Associação de

Moradores do Alto Humaitá:

Nosso bairro não tem favelas. Apenas uma comunidade mais carente em relação ao padrão do restante do bairro. Mesmo assim, atípica: existem moradores com renda mensal mínima; e outros com salários ou aposentadorias acima de 10.000 reais. Logo, não se encaixa exatamente no perfil de favela, apesar das invasões sofridas e construções irregulares.

A fala da Presidente da Associação de Moradores da Urca também

vai ao encontro dessa idéia, visto que esta é a “favela” com maior índice

de IDS de toda a cidade do Rio de Janeiro

Na Urca não temos favelas. O que existe é uma pequena comunidade, a Vila Benjamin, entre a Urca e a Lauro Muller. Os moradores da Urca têm muito receio que aquela pequena comunidade se expanda, invada a APA ali existente e se transforme numa favela. Por sorte os próprios moradores de lá, que formaram uma Associação, a AMOVILA, não querem essa expansão.

Entendemos que este discurso, assumindo a existência de favelas

ou não, representa uma negação da favela, um conflito expresso pela

presença de favelas em bairros onde hoje são rechaçadas. Essa negação

é percebida pelos moradores das favelas que lutam historicamente para

se manter no local de maior valorização da cidade. Hoje, a luta vai além

da simples permanência física, chegando à questão da imposição de uma

vivência cotidiana diferenciada para os moradores do bairro. O

reconhecimento da diferença vai além das questões econômicas ou de

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renda, se expandindo para um cotidiano diferenciado. Observamos estes

conflitos entre cotidianos diferenciados na fala de um líder comunitário da

Rocinha:

O presidente da Associação de Moradores de São Conrado (AMASCO), bairro vizinho, por exemplo, considera que ele e seus súditos são parte de uma instância superior, e não tem o porquê se relacionar com gente da favela, em virtude disso proibiu o Natal Sem Fome da Rocinha (que seria em São Conrado), e quer proibir o nosso bloco oficial de desfilar na orla da praia, mesmo autorizado oficialmente pela Prefeitura, pois não quer assistir a 'bagunça da favela' do alto de sua janela.

Entendemos, portanto, que cotidianos diferenciados contribuem

para a negação da favela; ou seja, daquilo que se apresenta como

diferente. A relação entre bairros e favelas pouco se alterou ao longo do

século XX, desde o surgimento das favelas, onde o bairro, a cidade legal,

não quer conviver ou não quer ver a presença do estigma favela. Por sua

vez, as favelas representam uma das principais formas de resistência na

luta por habitação digna e pelo direito à cidade.

4.3.4. A estigmatização do favelado: favela como locus da violência

Ao longo do século XX, quando a presença das favelas tornou-se

mais visível na cidade do Rio de Janeiro, a visão da favela perante os

moradores da cidade legal e do poder público já passou por muitas

transformações. Conforme já discutido no Capítulo 2, a favela passou a

ser percebida pelos atores sociais dominantes a partir do século XX, em

que a favela era vista como uma doença, uma patologia, algo que

precisava ser retirado da paisagem urbana de uma cidade que pretendia

elevar seus padrões urbanísticos e de moradia.

Conforme aponta Kowarick (1980, p.92 apud Chaui, 1994, p. 57),

desde sua formação a favela passa por estigmas.

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Sem sombra de dúvida, o padrão de moradia reflete todo um complexo processo de segregação e discriminação presente numa sociedade plena de contrastes acirrados. De uma forma mais ou menos acentuada, este processo perpassa todos os patamares da pirâmide social em que os mais ricos procuram diferenciar-se e distanciar-se dos mais pobres. Mas a favela recebe de todos os outros moradores da cidade um estigma extremamente forte, forjador de uma imagem que condensa todos os males de uma pobreza que, por ser excessiva, é tida como viciosa e, no mais das vezes, também considerada perigosa: a cidade olha a favela como uma realidade patológica, uma doença, uma praga, um quisto, uma calamidade pública.

De certa forma, a favela sempre foi vista pelos moradores da

cidade legal como um problema urbano, como uma das questões urbanas

mais importantes. Por vezes, a favela foi vista como foco de rebeldia,

como o lugar capaz de insurgir uma revolta popular capaz de abalar a

dominação burguesa, ou como foco da imoralidade, da malandragem e de

uma vadiagem praticamente contagiosa (SILVA, 2008, p. 14).

Após o fim da ditadura militar e a diminuição dos riscos de uma

rebelião popular, a favela passa a ser vista como foco da violência e do

medo. Segundo Chauí (1994, p. 57)

os instrumentos criados para a repressão e tortura dos prisioneiros políticos foram transferidos para o tratamento diário da população trabalhadora e que impera uma ideologia segundo a qual a miséria é causa da violência, as classes ditas “desfavorecidas” sendo consideradas potencialmente violentas e criminosas.

Entendemos, portanto, que a forma encontrada pelo poder público

e pela mídia para continuar o controle sobre as áreas de concentração de

população pobre foi que a favela fosse vista como o principal foco da

violência urbana; principalmente devido ao controle dos pontos de vendas

de drogas nas favelas, justificando assim a presença de grande aparato

policial com a justificativa de vigiar a atuação do tráfico de drogas.

A idéia de que a favela é preferencialmente o local de moradia do

trabalhador pobre na cidade do Rio de Janeiro ficou distante, tendo a

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população da cidade adquirido uma postura de medo e repúdio em

relação às áreas de favela. Conforme observamos em nossas visitas a

campo e ouvindo moradores de favela, a questão da violência é o que

marca principalmente a relação entre o bairro e a favela; e se configura

como a principal justificativa para o afastamento em relação às áreas de

favela, mas não a única, pois a desordem urbana e a desvalorização

imobiliária também são constantes no discurso. Esses diferentes estigmas

pelo qual as favelas passaram ao longo de sua a existência contribui para

uma maior passividade na construção do cotidiano do favelado.

O estigma do pobre na cidade do Rio de Janeiro sempre esteve

presente no imaginário social como doença, como rebeldia ou como

marginalidade, e contribui para aumentar ou acirrar a distância social

entre as classes sociais nos bairros da Zona Sul do Rio. Desse forma,

acreditamos que haja o acirrando, também, dos conflitos e contradições

que envolvem a relação entre classes. Apontamos esta situação como

luta de classes, ou seja, a dominação de classes dominantes a partir da

ideologia ou do simbolismo (CHAUÍ, 1994, p. 58).

4.3.5. O controle a partir da força: das incursões policiais às Unidades de Policias Pacificadoras

Durante a década de 1990 tornou-se comum na cidade do Rio de

Janeiro a mídia noticiar os problemas causados pelo enfrentamento entre

a polícia e homens ligados ao tráfico de drogas, influenciada pelo

aumento do poderio dos traficantes, o que vem causando um sentimento

de medo e de que a cidade do Rio de Janeiro vive um clima de guerra

civil. Os constantes tiroteios ocorridos devido à chegada da polícia em

favelas e pela disputa por pontos de drogas entre grupos de traficantes

têm dizimado muitos inocentes, principalmente moradores de favelas.

A presença policial passa a ser vista como solução para controle

da ordem pública e para evitar encontros entre as classes, conforme

aponta Silva (2008, p. 14), “a função da polícia passa a ser vista pelas

camadas mais abastadas como um muro de contenção ao intercâmbio de

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indivíduos e maneiras de viver, em vez de ser um meio orgânico de sua

regulação”. A polícia perde seu papel de manter a ordem urbana para

todos e passa a servir aos interesses das classes sociais dominantes. Na

Zona Sul, esta contradição se acirra, pois a presença da classe média e

média alta no entorno das áreas de contato entre os bairros e a favela

afeta a população de mais alta renda, e conflitos armados ali se tornam

muito mais problemáticos

Uma declaração do Secretário de Segurança José Mariano

Beltrame, em outubro de 2007, apesar de muito criticada pela opinião

pública, reflete um pouco esta contradição:

Buscá-los [os traficantes] na Zona Sul, no Dona Marta, no Pavão-Pavãozinho, 'eu [polícia] estou muito próximo da população'. É difícil a polícia entrar ali. Porque um tiro em Copacabana é uma coisa, um tiro na Coréia, no Alemão, é outra. E aí? Segundo o secretário, a repercussão das ações na Zona Sul do Rio é maior, já que os prédios de moradores da classe média ficam perto das favelas15

Apesar de polêmica, a declaração do Secretário de Segurança

ilustra o que se pensa sobre as favelas na Zona Sul desde que coexistem

com bairros de classe média e alta. Se antes a favela era vista como uma

praga, uma doença, hoje ela é vista como locus de insegurança para

todos que estão ao seu redor. Se antes a favela era ocupada

predominantemente por trabalhadores pobres, hoje ela é vista como

habitada predominantemente por marginais. O confronto entre traficantes

e policiais afeta a todos, pois a área de contato passa a ser exposta a

essa violência, e a partir do momento em que esses assuntos tornam-se

predominantes no cotidiano de toda a população, a manutenção das

contradições e dos conflitos está sendo realizada. Fica claro, portanto,

porque as áreas de contato entre a favela e o bairro se tornaram áreas

proibidas ou evitadas, conforme observamos nas conversas com

moradores dos bairros.

15

Retirado do site http://g1.globo.com/Noticias/Rio/0,,MUL1556105606,00 TRAFICANTES+ESTAO+MIGRANDO+PARA+A+ZONA+SUL+DIZ+SECRETARIO.html

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Na cidade do Rio de Janeiro e na Zona Sul, principalmente nos

últimos anos, se intensificou o número de ações policiais violentas em

favelas. A favela da Rocinha, que tem como vizinhos prédios de luxo e

alguns dos impostos territoriais mais caros da cidade, enfrenta

paulatinamente o confronto entre policiais e bandidos. Fica claro,

portanto, que a ação escolhida pelo poder público e pelas classes sociais

mais abastadas foi a intervenção policial violenta, que aparece como

solução para a presença da classe “indesejável” nos bairros.

A solução proposta atualmente pelo poder público foi a implantação

das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP). O projeto tem sido

implantado desde dezembro de 2008 em algumas favelas da cidade. Na

Zona Sul, iniciou-se na favela Santa Marta, sendo implantado

posteriormente nas favelas Chapéu Mangueira e Babilônia, Ladeira dos

Tabajaras e Pavão-pavãozinho, recentemente. Fora da Zona Sul, a favela

do Batam e da Cidade de Deus16, na Zona Oeste, também receberam as

UPPs. A idéia da UPP é permitir a entrada do Estado nas favelas sem a

presença de traficantes e marginais, permitindo assim a chegada de

serviços públicos nas favelas ocupadas, assim como melhorar a imagem

da polícia perante as favelas, que sempre viram-na como violenta e

servindo às classes dominantes.

A chegada da UPP na favela Santa Marta foi a mais comentada

pela mídia, recebendo inclusive algumas melhorias por parte do Estado e

de pessoas influentes na área de comunicação. Foram construídas

quadras, centros sociais, o plano inclinado (que facilitou muito a coleta do

lixo), entre outras melhorias observadas. A mídia dá destaque a todas as

vantagens da “nova” vida da população da favela de Santa Marta,

noticiando inúmeras vezes as melhorias na favela.

Mas, na realidade, ao ouvir moradores de favela e moradores de

bairro, percebemos algumas insatisfações. Os moradores da favela

apontam que a chegada da polícia não trouxe ainda melhorias reais para

a favela, que ainda enfrenta problemas como falta de água, lixo e falta de

16

A Cidade de Deus foi construída inicialmente na Zona Oeste da cidade na década de

1970 como um conjunto habitacional para receber moradores de favelas removidas, mas a falta de

infra-estrutura urbana transformou o conjunto em favela, posteriormente.

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saneamento. Os moradores afirmam que só recebem água de duas a três

vezes por semana, que ainda faltam áreas de lazer e serviços bem

próximos à favela. Ainda assim, apontam como melhorias a chegada do

Plano inclinado para subir com cargas, e que sentem a presença do

Estado mais presente na favela. Realmente, é na favela Santa Marta que

percebemos maior atuação do Estado, através de serviços públicos e de

saúde, ao contrário de outras favelas visitadas, como a Chácara do Céu.

Quanto ao cotidiano dos moradores de favela, a presença da UPP

não trouxe grandes modificações. O cotidiano dos moradores da favela

apresenta um ritmo muito diferenciado da realidade do bairro, onde as

crianças ficam soltas pelas ruelas, as pessoas circulam por toda a favela,

frequentam bares e a quadra no alto do morro. Este cotidiano pouco se

modificou, pois a presença do tráfico estaria bastante impregnada neste

cotidiano. Entra aí a questão do reconhecimento da diferença, pois em

geral os “trabalhadores” do tráfico seriam pessoas do próprio morro,

enquanto os policiais são pessoas “de fora”, segundo relato de um

morador da favela Santa Marta.

Por parte dos moradores do bairro, as opiniões são conflitantes.

Alguns moradores apontam a ocupação como algo positivo, mas

geralmente no sentido de evitar a incursão policial e, consequentemente,

os tiroteios. Outros apontam o aumento dos assaltos devido ao fim do

tráfico, principalmente no Leme. É comum nas falas dos moradores do

Leme o temor aos assaltos, alguns inclusive evitando certas áreas.

A maior parte dos moradores aprova a UPP, principalmente

moradores de bairros onde não há favelas ocupadas. Uma moradora do

Leblon afirmou que acha “muito interessante o conceito da polícia

pacificadora. O Estado precisa ocupar seu lugar perante todos os

cidadãos, - moradores do 'asfalto' ou do 'morro' -, provendo serviços

básicos, garantindo o cumprimento da lei, mostrando que todos têm a

proteção do Estado - direitos - e, portanto, devem cumprir seus deveres”.

Um morador de Copacabana e um morador do Leblon afirmam que vêem

com bons olhos, principalmente devido à liberdade que traz a UPP para

os moradores da favela.

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Ouvindo as pessoas, aparentemente a UPP atendeu mais a

população do asfalto do que, efetivamente, à população da favela, mesmo

com o que tem sido divulgado pela mídia, pois para a população da favela

pouca coisa mudou, suas condições de vida continuam muito

degradantes, só se modificando o agente dominante.

A presença da polícia em algumas favelas da Zona Sul também

permitiu a utilização comercial da favela por parte dos moradores e por

parte de outros atores sociais. A favela, livre do estigma do tráfico e da

violência, se torna um lugar bucólico, moradia das classes pobres, e o

favelado e seu cotidiano diferenciado se tornam, portanto, uma atração e

uma “novidade”. A pobreza passa a ser explorada de outra maneira, pela

sua forma e aparência.

4.3.6 – A “espetacularização”17 da pobreza: a favela como ponto turístico

Ao longo do século XX, observamos que a postura do poder

público e das classes dominantes era de limpar ou retirar a favela da

paisagem carioca. A favela sempre foi rejeitada como paisagem, como

área negada e proibida, conforme a música que citamos no início do

Capítulo 3, em que o autor, morador de favela, fala “nunca vi cartão postal

que se destaque uma favela, só vejo paisagem muito linda e muito bela”.

A favela era a “vergonha” da paisagem carioca.

Atualmente, observamos uma mudança quanto a essa postura. O

discurso remocionista perdeu a força, e surge um discurso que aponta a

17

Com o termo espetacularização buscamos expressar a idéia da pobreza tornada

espetáculo, assim como afirma Debord (1997), “o espetáculo, compreendido na sua totalidade, é

simultaneamente o resultado e o projeto do modo de produção existente. Ele não é um

complemento ao mundo real, um adereço decorativo. É o coração da irrealidade da sociedade real.

Sob todas as suas formas particulares de informação ou propaganda, publicidade ou consumo

direto do entretenimento, o espetáculo constitui o modelo presente da vida socialmente dominante.

Ele é a afirmação onipresente da escolha já feita na produção, e no seu corolário — o consumo. A

forma e o conteúdo do espetáculo são a justificação total das condições e dos fins do sistema

existente. O espetáculo é também a presença permanente desta justificação, enquanto ocupação

principal do tempo vivido fora da produção moderna”.

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favela como um local bucólico, a pobreza se torna um espetáculo, uma

nova forma de apropriação de capital. A favela, seu morador e seu

cotidiano passam a “estar na moda”, e não somente as favelas que

possuem UPPs, mas também favelas grandes como a Rocinha.

Surge o turismo na favela, onde se vendem pacotes com tour a

várias favelas da cidade do Rio de Janeiro, vendendo a paisagem da

favela e a pobreza como atração turística. Filmes, novelas e clipes

gravados em favelas onde não há tráfico, mostrando a vida e as

dificuldades enfrentadas, além do próprio discurso da mídia, colaboram

para despertar a curiosidade sobre a vida do favelado e incluem a

paisagem da favela e o cotidiano do favelado no imaginário da cidade do

Rio de Janeiro.

Observamos, portanto, nesta situação, a apropriação da pobreza

de outra forma, apropriação a partir do imaginário, do simbolismo e da

ideologia. Olhar para o pobre se torna “politicamente correto”, e torna-se

senso comum observá-lo como espetáculo. Outro fator que gera

curiosidade é a distância social e os contrastes, conforme afirma

Fernandes (2001), “o choque entre a modernidade da metrópole carioca

(incluindo aí, também, os seus apelos naturais) com a miséria exposta

nas favelas foi o eixo condutor para a exploração turística da Rocinha”.

Tais contrastes são mais profundos na Zona Sul, conforme nossa

discussão anterior.

Na Zona Sul, esta apropriação se torna mais clara, pois todas as

favelas exploradas pelo turismo estão nessa área, assim como o turista

de alta renda, estrangeiro, instala-se preferencialmente na Zona Sul.

Trata-se, portanto, de um conflito, pois se não é possível retirar a

favela, ou retirar o pobre da paisagem da cidade, a solução encontrada foi

se apropriar da pobreza pela dominação simbólica. E este conflito se

agrava, porque a solução não veio de dentro da favela, e, em geral, não

gera nenhum tipo de renda para os moradores de favela. Os atores

sociais envolvidos, muitas vezes, nesta apropriação econômica são de

fora da favela, geralmente empresas de turismo que oferecem tours em

favelas a valores muito elevados.

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Na Zona Sul, as favelas que recebem tours são aquelas que estão

ocupadas pela UPP, como Santa Marta e Chapéu Mangueira, além da

favela Tavares Bastos, onde existe a presença de um batalhão especial

da Polícia Militar, e a favela Vila canoas, onde não existe a presença do

tráfico. Somente a Rocinha, pela sua grandiosidade, recebe tours

diariamente, mesmo com a presença do tráfico. Vale ressaltar que esse

tour é controlado, vigiado, não sendo possível tirar fotos em todos os

lugares da favela.

Algumas vezes, os atores que oferecem esse serviço são de dentro

das favelas, como é o caso de alguns moradores da favela Santa Marta e

da Rocinha que se aproveitaram do fato dos moradores de bairro estarem

freqüentando as favelas, como possibilidade de aumento da renda,

conforme afirma um morador da Rocinha, dono de salão de beleza na

favela, o qual nos contou que moradores de diversos bairros da Zona Sul

freqüentam o salão, devido ao preço dos serviços; ou como o morador do

Santa Marta, que está oferecendo tours pelo Santa Marta por um preço

abaixo do oferecido pelas empresas de turismo.

Observamos que atualmente a difusão dos meios de comunicação

e do discurso da pobreza como espetáculo tem difundido largamente as

possibilidades de exploração da pobreza. Sites na Internet oferecem

muitas possibilidades de visitas a favelas, assim como vídeos no site

Youtube (Figura 29) mostram a paisagem da favela, mostrando para os

visitantes as particularidades da paisagem e da vida na favela. A Jeep

Tour, por exemplo, uma das empresas que faz o visitas na Rocinha,

divulga em seu site seus objetivos.

A Jeep Tour é uma empresa de turismo totalmente voltada para o Eco-Turismo com a consciência de que é possível a integração Homem x Natureza em total harmonia. Nossos passeios dão ao turista a noção exata desta simetria ecológica. Todas nossas rotas foram criadas para proporcionar ao nosso passageiro uma visão geral do que realmente significa viver numa cidade maravilhosa. Com uma visão 360º o turista pode usufruir de toda a beleza do Rio de Janeiro.

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Interessante constatar que as favelas são vistas como inseridas na

paisagem da cidade, e que representam, para a empresa, a integração

total entre o homem e a natureza, em total harmonia. As empresas

oferecem a favela como um produto, além da alegria, solidariedade e

receptividade dos moradores da favela, conforme anúncio na Figura 29. E

é exatamente esta a imagem que fica para o turista, com o pobre como

solidário e receptivo, satisfeito com as suas condições de vida, conforme

depoimento de um casal de israelenses postado no site da Jeep Tour:

“Foi um tour muito interessante e emotivo, as pessoas eram amistosas e

nós sentimos o orgulho deles por pertencer à comunidade da Rocinha”.

De certa forma, a expansão desse tipo de turismo traz vantagens,

pois quebra o estereótipo da favela como local da violência e da

marginalidade, pois permite a visualização da favela “por dentro”, além da

diminuição do estranhamento de cotidianos tão diferentes18.

18

Segundo a revista Época, a favela “ganha” com o turismo porque fica menos

estigmatizada, mas os lucros ficam mesmo para as empresas que oferecem o serviço. Conforme

afirma um inglês que fez o passeio, "achei que era um lugar de pobreza extrema, mas percebi que

é só gente pobre normal tentando viver sua vida da melhor maneira possível. O que mais me

impressionou foi a auto-suficiência do lugar". Fonte:

http://epoca.globo.com/especiais_online/2003/08/25_epuc/17favela2.htm

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Figura 29 – Tour na favela da Rocinha - 2009

Fonte: site jeeptour.com.br

A imagem mostra o anúncio do tour na favela da Rocinha,

realizado pela empresa Jeep Tour, trazendo dados sobre as favelas no Rio de Janeiro, além da formação e da população que

vive em favelas.

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Foto 30 – Vídeo de divulgação Vila Canoas – 2006

Fonte: site Youtube.com

A imagem mostra um vídeo demonstrativo, com anúncio em

inglês, da favela Vila Canoas, uma favela localizada no bairro de São Conrado. O turismo tem sido explorado na favela, já que não

tem atividade de tráfico na área.

O turismo em áreas de favela corresponde, portanto, a uma nova

forma de exploração do capital, mesmo que traga algumas vantagens

para a população moradora de favela. De certa forma, o morador faz

parte desse produto que está sendo vendido, pois mais do que a

paisagem, o turista está pagando para ver a vida do pobre, como ele

(sobre)vive sob determinadas condições sociais e financeiras. Constitui-

se, portanto, como uma contradição na relação entre as classes, visto que

as condições sociais sob as quais o pobre urbano vive são conseqüências

da estrutura econômica, que surge a partir das relações sociais de

produção do sistema capitalista.

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Considerações finais

A cidade do Rio de Janeiro, ao longo do século XX, viu surgir o

“problema” favela como uma das principais questões que afligem a

cidade. Na verdade, este problema diz respeito a uma questão muito

maior, fortemente arraigada na estrutura social da cidade, marcada por

intensa desigualdade social. É impossível desvincular a história da

formação das favelas da história da cidade do Rio de Janeiro, pois a

lógica de formação econômica e social da cidade foi o que permitiu o

surgimento das favelas, e apesar de toda a diversidade social, de

paisagem e de cotidianos, a lógica da favela é a mesma lógica da cidade.

A falta de moradias desde o início da formação da cidade fez com

que a população pobre não tivesse muita escolha quanto a sua

localização na cidade, restando a essa população a alternativa da

encosta, áreas não utilizadas pelos agentes imobiliários que atuavam na

cidade. Surgiam assim as favelas, que se espalharam por toda a cidade

rapidamente, inclusive em áreas voltadas para a população de alta renda.

É sabido que não faltam áreas para que a população pobre

pudesse subsistir com condições de vida melhores, mas faltam áreas

disponíveis para a ocupação da população pobre, áreas não utilizadas

pelos agentes imobiliários. Assim se constitui a favela no Rio de Janeiro,

como uma questão estrutural e não de falta de espaço, e a relação entre

estas e os bairros onde estão inseridas sempre apresentou conflitos e

contradições. A pobreza urbana, apesar de espalhada por toda a cidade,

tem sua forma aparente nas favelas.

Por tudo que já foi discutido até aqui, entendemos que a favela é

um problema estrutural, arraigado em uma sociedade de classes que

enfrenta muitos conflitos e contradições entre as classes, conflitos que se

materializam no espaço. Vemos aqui a favela como uma das expressões

materiais desse conflito, da luta pela terra e pela sobrevivência no urbano.

Apontar esses conflitos, ou os elementos que os expressam foi nosso

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objetivo durante toda a discussão, que esteve impregnada pelo cotidiano

sob o qual estávamos voltados.

O olhar voltado para uma área específica da cidade nos permite

analisar as especificidades do lugar, principalmente quanto às

características da Zona Sul. A grande diversidade social dos bairros, com

os mais altos IPTUs da cidade, além da heterogeneidade das favelas da

Zona Sul, permitiu uma análise bastante variada, como uma tentativa de

observar diferentes contradições, pois cada área pode apresentar tipos de

conflitos e contradições diferentes, conforme demonstrado a partir de

nossas visitas a campo.

A Zona Sul, como objeto de estudo, nos mostrou o quanto ficam

marcados na paisagem os contrastes sociais, o quanto o espaço urbano

do Rio de Janeiro e os diferentes cotidianos contribuem o tempo todo

para manter a desigualdade existente. O discurso da população da favela

nos mostra o quanto estes se sentem vivendo em um mundo a parte, não

participantes da dinâmica da Zona Sul. Mostra também que, apesar de

toda a dificuldade, ainda vale a pena ficar nessa área em nome da

sobrevivência.

A questão simbólica também esteve muito presente em nossa

discussão, sendo predominante para determinar um sentimento de

estranhamento entre as classes, um reconhecimento da diferença entre

as classes, convivendo em uma mesma área. Esta questão simbólica

determina a existência de um estigma, do favelado como marginal, e da

favela como local da violência, estigma que está expresso nas relações

entre a população dos bairros e das favelas. Agregar a dimensão do

cotidiano na análise nos permitiu identificar sentimentos, opiniões e o

sentido de pertencimento presente em ambas as classes e impregnado

no espaço analisado. O cotidiano permitiu olhar de perto para os conflitos

e contradições presentes no espaço, estando muitos desses conflitos

presentes no imaginário social e contribuindo para aumentar o contraste e

a distância social.

Apontar os elementos que expressam as contradições presentes

no espaço foi nosso principal objetivo em toda a análise, utilizando a Zona

Sul e suas favelas como exemplo. Não temos aqui a pretensão de ter

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esgotado este assunto, muito menos de ter apontado todos os conflitos

que perpassam a relação entre os bairros e as favelas, até porque esses

conflitos e contradições surgem e desaparecem constantemente, como

citamos aqui a questão das remoções – um conflito que ficou adormecido

por um tempo – ou a questão das UPPs, surgida muito recentemente. Na

verdade, diferentes formas de atuação do poder público e diferentes

formas de “ver” a favela transformam constantemente a relação entre ela

e o bairro.

Durante toda a análise, observamos que o foco de nosso estudo

poderia ser então a área de contato entre o bairro e a favela, ou a área de

fronteira entre as classes, não com a idéia de uma fronteira física, mas

uma fronteira simbólica, arraigada no imaginário social. A análise das

áreas de contato nos permitiram apontar alguns conflitos que se

materializam no espaço e que representam a luta de classes.

A favela aqui, portanto, aparece como resistência, como a luta de

uma população para se manter em um espaço privilegiado da cidade e

buscar melhores condições de vida, a luta pelo direito à cidade. A favela

aparece também como uma negação do direito à cidade, pois a

população favelada encontra-se na área mais bem dotada de serviços

públicos e de infra-estrutura urbana, mas tem negado seu acesso direto a

serviços públicos de qualidade, boa acessibilidade ao seu local de

moradia e a opções de lazer. É o caso, por exemplo, da favela Chácara

do Céu, onde a acessibilidade é muito restrita e a população depende de

um serviço de Kombi estruturado pela própria comunidade, onde existe

inclusive uma conta para os moradores pagarem no final do mês; ou da

Rocinha, uma das maiores favelas da cidade, e por onde circula somente

uma linha de ônibus, segundo moradores. Para resolver a falta de

transportes para atender propriamente a favela, surgem muitas linhas de

vans e kombis, o que entra em conflito com os moradores de bairro, que

reclamam da desordem urbana causada pelas vans. O Direito à cidade

fica claramente prejudicado para às populações faveladas da Zona Sul,

que abrem mão de morar em locais com melhor infra-estrutura, abrem

mão de serviços básicos como disponibilidade de água e correios, para

morar nas proximidades de um amplo mercado de trabalho.

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Interesses completamente divergentes marcam a relação entre a

favela e o bairro, por isso reiteramos a idéia da favela como resistência, e

acreditamos que nossa análise possa ter contribuído para a busca de

uma nova visão da favela, não simplesmente da favela como oposição ao

bairro, como fica claro no estigma favela-asfalto, mas como integrada no

contexto da cidade, como o local de moradia do trabalhador pobre

urbano, e não como o local da violência e da marginalidade. Para tentar

acabar com esse estigma, a busca pelos conflitos e contradições pode

contribuir, pois apontamos o tempo todo, aqui, o quanto o imaginário

social contribui para aumentar a desigualdade e a distância social. Se a

relação atual entre os bairros e as favelas é marcada por questões

simbólicas e pelo reconhecimento da diferença, apontar os conflitos e

contradições gerados a partir desse simbolismo pode contribuir para

diminuir a desigualdade social e na luta pelo direito à cidade.

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ANEXOS Modelo de questionário respondido Associação de moradores do bairro de: Jardim Botânico O que você apontaria como os principais problemas do bairro hoje? Segurança, trânsito, invasões, barulho provocado por festas ou eventos, Blocos de carnaval (impedimento de entrar ou sair de casa e sujeira remanescente). Esta opinião não é pessoal. São os problemas apontados por moradores do bairro. A associação de moradores tem contato com outras associações do próprio bairro ou de bairros vizinhos? Existem parcerias com associações de favelas? Temos contato mensal com outras associações da Zona Sul. Parcerias em reivindicações comuns. Contato frequente com a AMAHOR, que representa a comunidade do Horto e está instalada em território pertencente ao parque Jardim Botânico. Como é a relação da associação de moradores com as favelas presentes no bairro? Nosso bairro não tem favelas. Apenas uma comunidade mais carente em relação ao padrão do restante do bairro. Mesmo assim, atípica: existem moradores com renda mensal mínima; e outros com salários ou aposentadorias acima de 10.000 reais. Logo, não se encaixa exatamente no perfil de favela, apesar das invasões sofridas e construções irregulares. Você, como morador, evita passar ou ir a algum lugar devido à proximidade de áreas faveladas? No final do Horto (onde houve invasões recentes e as construções são apinhadas, o que dá um "visual" de favela)alguns moradores têm medo de passar, à noite. Durante o dia, creio que não. Eu, pessoalmente, não tenho. Como vê a atuação da prefeitura em áreas de favela no seu bairro? Relutante em resolver o problema de construções em encostas e muito próximas às margens dos rios, o que pode causar calamidades em caso de chuvas fortes e enchentes. É possível observar mudanças na relação entre o bairro e as favelas desde o período que mora no bairro? Quais seriam estas mudanças? Moro no bairro há mais de 40 anos. Neste período, a pequena comunidade remanescente de antigos funcionários do Jardim Botânico cresceu bastante. Percebo uma preocupação do bairro com a preservação do verde. Mas não hostilidade em relação aos vizinhos. Como representante dos moradores do bairro, como acha que os moradores da Zona Sul têm visto a ocupação policial na favela? O que foi positivo e o que foi negativo? Como o contingente policial quase não aumentou e houve uma grande concentração em algumas favelas, é voz corrente na Zona Sul que os trechos não favelizados dos bairros ficaram desprotegidos. O número de policiais que ocupa o Dona Marta, por exemplo, é quase igual ao que faz a segurança do resto do bairro. Proporcionalmente, então, é muito maior. A ocupação policial é melhor do que nada. Mas ainda não é uma solução para os bairros e sim uma vitrine para os políticos.

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Modelo de questionário respondido Associação de moradores da favela: Rocinha O que você apontaria como os principais problemas da favela hoje? Falta de saneamento básico, coleta de lixo, transporte urbano e uma política mais inteligente de combate as drogas que não vitimasse tantos inocentes. A associação de moradores tem contato com outras associações do próprio bairro ou de favelas vizinhas? É comum estes contatos, pois os presidentes das Associações tem os seus padrinhos políticos, e, as vezes, esses padrinhos são os mesmos, ou, as buscas dos líderes se coincidem e eles naturalmente se encontram pelos mesmos corredores. Como é a relação da associação de moradores com os moradores dos bairros, geralmente de classe média e classe média alta? O presidente de Associação de Moradores de uma favela geralmente se relaciona melhor com outro presiodente de outra favela. O presidente da Associação de Moradores de São Conrado (AMASCO), bairro vizinho, por exemplo, considera que ele e seus súditos são parte de uma instância superior, e não tem o porque se relacionar com gente da favela, em virtude disso proibiu o Natal Sem Fome da Rocinha (que seria em São Conrado), e quer proibir o nosso bloco oficial de desfilar na orla da praia, mesmo autorizado oficialmente pela Prefeitura, pois não quer assistir a 'bagunça da favela' do alto de sua janela. Entendemos isso como luta de classes. Como vê a atuação da prefeitura na favela atualmente? Existem parcerias com a associação de moradores? A favela pela primeira vez em sua história elegeu um representante na Câmara Municipal que é o vereador Claudinho da Academia (que mora dentro do morro, entre bêcos e vielas). A grande mídia tentou derrubá-lo, defenestá-lo, com acusações infundadas. Para a burguesia, o poder legítimo que emana do povo atravéz do voto, é algo PERIGOSÍSSIMO, pois o verdadeiro voto de 'curral' é aquele que eles sempre compraram do morador miserável, o mesmo que agora está absorvendo ideologia política. É possível observar mudanças na relação entre o bairro e as favelas desde o período que mora no bairro? Quais seriam estas mudanças? Hoje eu acho que as favelas estão menos pobres e os ricos, menos ricos, a prova disso são moradores de bairros vizinhos que vêm cortar cabelo na Rocinha ou fazer feira, ou ainda tentar uma mão-de-obra mais barata. Neste caso, as diferenças sociais são diminuídas e muitas vezes acontece uma inversão de valores. Como representante dos moradores da favela, como acha que os moradores têm visto a ocupação policial em algumas favelas da região? O que foi positivo e o que foi negativo? A ocupação é um instrumento paliativo, de que vale ocupar as principais favelas da zona sul com a certeza de que isso vai deixar mais bandidos desempregados e aumentar os índices de outros crimes? E as outras quase mil favelas do Rio de Janeiro, como resolvê-las? É preciso trabalhar o problema na raiz e investir na educação, na igualdade social, nas crianças.

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Modelo de questionário respondido Morador do bairro de: Leblon Há quanto tempo mora no bairro? 21 Qual a sua atividade ocupacional? Professora Por que escolheu este local de moradia? Meu marido herdou o apartamento dos pais, e adoro o bairro: moro entre a Lagoa e a praia, tenho muito lazer à disposição, é limpo, calmo, tem tudo à pé. Já morou em outros bairros da cidade? Se sim, o que aponta de diferenças entre um bairro da zona Sul e outros bairros da cidade? Sim, Tijuca e Grajaú. Uma das coisas que mais me encantava era ter uma linda vista, o cheiro do ar é diferente, devido à grande quantidade de áreas verdes e proximidade do mar, não tem quase camelô, as calçadas são limpas, dá para andar de carrinho de bebê e cadeiras de rodas, todo mundo se conhece... É mais fresco. Tem um monte de opções de lazer, culturais (teatros, cinemas, planetários, a PUC, biblioteca pública, excelentes livrarias), dois shoppings - e faço tudo à pé. Excelente rede de transporte. Quais os principais problemas que vê no seu bairro hoje? A população de rua, a desordem causada por pontos de van, sentimento de insegurança à noite. Como vê a presença de favelas no bairro? Bom, o Leblon em si não tem favelas, a Gávea e Ipanema têm. O problema é que há possibilidade de tiroteios e balas perdidas (como eu tinha na Tijuca) e a dificuldade em se fazer preservar a ordem urbana. Evita passar ou ir a algum lugar devido à proximidade de áreas faveladas? Com certeza. Antigamente, eu subia a Estrada da Gávea e saía em São Conrado, hoje em dia desisti, tenho medo de ficar no meio de algum tiroteio. Mas continuo a frequentar minha Igreja, em uma das saídas do Cantagalo. Como vê a questão da ocupação policial nas favelas da Zona Sul atualmente? o que apontaria como pontos positivos e negativos? Acho muito interessante o conceito da polícia pacificadora. O Estado precisa ocupar seu lugar perante todos os cidadãos, - moradores do "asfalto"ou do "morro", provendo serviços básicos, garantindo o cumprimento da lei, mostrando que todos têm a proteção do Estado - direitos - e, portanto, devem cumprir seus deveres. Também acho importante o confronto com traficantes, reprimir a violência. O que é uma questão quanto à forma. Acho que os moradores da favela precisam também de segurança e isso não acontece com incursões eventuais da polícia.

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Modelo de Questionário respondido Morador da comunidade: Favela Santa Marta Há quanto tempo mora nesta comunidade? Nascido e criado (28 anos) Qual a sua atividade no momento? Sou Dj, Professor de Dança e trabalho com shows e eventos. Qual o seu local de nascimento? Rio de Janeiro Por que escolheu este local de moradia? Gosta de morar neste local? Sou nascido e criado no Santa Marta. Amo morar aqui, adoro todos daqui, me sinto bem onde moro, e atualmente melhor ainda com as mudanças da comunidade. Soltar pipa, sol na laje, pagode, funk..Nada substitui uma favela...Pode ter coisas caras e luxuosas mais a simplicidade é tudo. Se tivesse oportunidade de sair da favela para morar em um local melhor, mas mais distante, fora da Zona Sul, sairia? Por que? I cara é difícil. Não vou dizer que não vou sair da favela um dia, posso ou não, agora, claro que é bom né, mais fora da zona sul largar meu umbigo, sei não...é difícil. Considera importante estar na Zona Sul? Quais as vantagens e desvantagens que vê em morar na Zona Sul? Considero. Tudo gira por aqui, e as facilidades, o acesso e as coisas ficam mais fácil. Vantagem é que é tudo perto, e é o centro das atenções mais tem a agitação, a movimentação e as noticias que as vezes incomodam um pouco. Como acha que os moradores do bairro, de classe média e média alta, se sentem a respeito da favela? Intimidados, medo, pena. Mais mal sabem eles que somos pessoas do bem, que não somos marginais e que a vida aqui é simples mais é muito bem vivida. A integração a diversão e a nossa cultura é rica. Acho que eles tinham que fazer esse tour pra poder aprender mais com a gente a viver, mesmo as vezes com condições precárias masi felizes, alegres e calorosos. Quais equipamentos urbanos utiliza/freqüenta no bairro: Shoppings Centers, Praias e ciclovias, Metrô.

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