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A IDEOLOGIA ALEMÃ

Marx, Karl. a Ideologia Alemã (Boitempo)

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  • a ideologia alem

  • a ideologia alem

    1845-1846

    Karl marx e Friedrich engels

    Crtica da mais recente filosofia alem em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner,

    e do socialismo alemo em seus diferentes profetas

    Traduo

    Rubens enderleNlio Schneider

    Luciano Cavini Martorano

    Texto final

    Rubens enderle

  • Copyright desta edio Boitempo Editorial, 2007Copyright da traduo Boitempo Editorial, 2007

    Ttulo original: Die deutsche Ideologie: Kritik der neuesten deutschen Philosophie in ihren Reprsentanten Feuerbach, B. Bauer und Stirner, und des deutschen Sozialismus in seinen verschiedenen Propheten (1845-1846)Primeira parte e textos II a IV do Apndice traduzidos de acordo com a edio do Marx-Engels-Jahrbuch 2003 (Berlin, Akademie Verlag, 2004, 2 v.), confrontada com a edio da MEWMarx-Engels Werke, v. 3 (Berlin, Dietz Verlag, 1969)Segunda parte e textos I e V a IX traduzidos de acordo com a edio da MEWMarx-Engels Werke, v. 3 (Berlin, Dietz Verlag, 1969)

    Coordenao editorial Ivana Jinkings

    Superviso editorial desta edio Leandro Konder

    Traduo Rubens Enderle Nlio Schneider Luciano Cavini Martorano

    Texto final Rubens Enderle

    Diagramao Raquel Sallaberry Brio

    Capa Antonio Kehl (sobre ilustrao de Loredano)

    Equipe de realizao Ana Paula Castellani e Joo Alexandre Peschanski (editores) Livia Campos e Vivian Miwa Matsushita (assistncia editorial) Maurcio Balthazar Leal (reviso) Ana Lotufo Valverde e Marcel Iha (produo)

    CIP-BRASIL. CATALOGAO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

    M355iMarx, Karl, 1818-1883

    A ideologia alem : crtica da mais recente filosofia alem em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemo em seus diferentes profetas (1845-1846) / Karl Marx, Friedrich Engels ; superviso editorial, Leandro Konder ; traduo, Rubens Enderle, Nlio Schneider, Luciano Cavini Martorano. - So Paulo : Boitempo, 2007Traduo de: Die deutsche Ideologie. Kritik der neuesten deutschen Philosophie in ihren Reprsentanten Feuerbach, B. Bauer und Stirner, und des deutschen Sozialismus in seinen verschiedenen ProphetenContedo parcial: Teses sobre Feuerbach / Karl Marx

    1. Feuerbach, Ludwig, 1804-1872. 2. Materialismo dialtico. 3. Socialismo. I. Engels, Friedrich, 1820-1895. II. Konder, Leandro. III. Enderle, Rubens. IV. Schneider, Nlio. V. Martorano, Luciano Cavini. VI. Ttulo.

    05-3365. CDD 335.4 CDU 330.85

    Este livro atende s normas do acordo ortogrfico em vigor desde janeiro de 2009.

    vedada, nos termos da lei, a reproduo de qualquer parte deste livro sem a expressa autorizao da editora.

    BOITEMPO EDITORIALJinkings Editores Associados Ltda.Rua Pereira Leite, 373 Sumarezinho05442-000 So Paulo-SPTel./fax: (11) 3875-7250 / 3875-7250editor@boitempoeditorial.com.brwww.boitempoeditorial.com.br

  • SUMRIO

    APRESENTAO Emir Sader .......................................................................................................9

    SOBRE A TRADUO ..................................................................................................................17

    ABREVIATURAS ...........................................................................................................................20

    PRIMEIRA PARTEArtigos, rascunhos, textos prontos para impresso

    e anotaes referentes aos captulos I. Feuerbach e II. So Bruno

    VOLUME I[Crtica da mais recente filosofia em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner]

    KARL MARx CONTRA BRuNO BAuER .........................................................................................25

    KARL MARx FRIEDRICh ENGELS FEuERBACh E hISTRIA ...........................................................29Rascunho das pginas 1 a 29 ..............................................................................................29Rascunho das pginas 30 a 35 ............................................................................................47Rascunho das pginas 36 a 72 ............................................................................................51Anotaes ...........................................................................................................................77

    KARL MARx FRIEDRICh ENGELS FEuERBACh ............................................................................79

    KARL MARx FRIEDRICh ENGELS I. FEuERBACh A. A IDEOLOgIA EM gERAL, EM ESPECIAL A ALEM .................................................................83

    KARL MARx FRIEDRICh ENGELS I. FEuERBACh (INTRODuO) 1. A IDEOLOgIA EM gERAL, EM ESPECIAL A FILOSOFIA ALEM .................................................85

    KARL MARx FRIEDRICh ENGELS I. FEuERBACh FRAGMENTO 1 ................................................89

    KARL MARx FRIEDRICh ENGELS I. FEuERBACh FRAGMENTO 2 ................................................93

    KARL MARx FRIEDRICh ENGELS O CONCLIO DE LEIPzIG ..........................................................97

    KARL MARx FRIEDRICh ENGELS II. SO BRuNO ........................................................................991. Campanha contra Feuerbach .......................................................................................992. Consideraes de So Bruno sobre a disputa entre Feuerbach e Stirner .......................1063. So Bruno contra os autores dA sagrada famlia ..........................................................1084. Necrolgio de M. he ...............................................................................................114

  • SEgUNDA PARTETextos prontos para impresso e rascunhos referentes aos captulos III. So Max,

    IV. Karl grn: O movimento social na Frana e na Blgica (Darmstadt, 1845) ou A historiografia do socialismo verdadeiro, e V. O Dr. Georg Kuhlmann von holstein ou A

    profecia do socialismo verdadeiro

    III. SO MAX ..........................................................................................................................121

    1. O NICO E SUA PROPRIEDADE ..............................................................................................123

    Antigo testAmento: o Homem .............................................................................................1251. gnesis, isto , Uma vida humana ...............................................................................1252. Economia do Antigo Testamento ...................................................................................1333. Os antigos .....................................................................................................................1394. Os modernos ................................................................................................................147

    A) O Esprito (histria pura dos espritos) ...................................................................150B) Os possessos (histria impura dos espritos) ...........................................................155

    a) A assombrao .................................................................................................159b) A obsesso .......................................................................................................162

    C) Impura histria impura dos espritos .......................................................................165a) Negros e mongis ............................................................................................165b) Catolicismo e protestantismo ...........................................................................171

    D) A hierarquia ..........................................................................................................1745. Stirner comprazendo-se com sua construo ................................................................1856. Os Livres .......................................................................................................................192

    A) O liberalismo poltico ............................................................................................192B) O comunismo ........................................................................................................202C) O liberalismo humano ...........................................................................................227

    novo testAmento: eu ........................................................................................................2351. Economia da Nova Aliana ..........................................................................................2352. Fenomenologia do egosta em acordo consigo mesmo

    ou a doutrina da justificao ......................................................................................2373. Apocalipse de Joo, o telogo, ou a lgica da nova sabedoria ..................................2634. A peculiaridade ............................................................................................................2915. O possuidor ..................................................................................................................304

    A) Meu poder .............................................................................................................304I. O direito ...........................................................................................................304

    A) Canonizao em termos gerais ..................................................................304B) Apropriao pela anttese simples .............................................................308C) Apropriao pela anttese composta ..........................................................310

    II. A lei .................................................................................................................316III. O crime ...........................................................................................................325

    A) Simples canonizao de crime e punio .................................................325B) Apropriao de crime e punio por meio de anttese ..............................328C) O crime na acepo comum e na acepo incomum ...............................3325. A sociedade como sociedade burguesa .....................................................336

    II. A revolta ...........................................................................................................364III. A associao ...................................................................................................375

    1. Propriedade fundiria ................................................................................3762. Organizao do trabalho ...........................................................................3783. Dinheiro ....................................................................................................3824. Estado ........................................................................................................386

  • 5. Revolta ......................................................................................................3896. Religio e filosofia da associao ..............................................................390

    A. Propriedade ........................................................................................390B. Riqueza ...............................................................................................393C. Moral, intercmbio, teoria da explorao ...........................................394D. Religio ..............................................................................................400E. Adendo sobre a associao .................................................................400

    C. Minha autofruio ..................................................................................................4036. O Cntico dos Cnticos de Salomo ou O nico ..................................................412

    2. COMENTRIO APOLOgTICO ................................................................................................427

    FIM DO CONCLIO DE LEIPzIG ...................................................................................................433

    VOLUME II[Crtica do socialismo alemo em seus diferentes profetas]

    O SOCIALISMO VERDADEIRO ...................................................................................................437

    I. DIE RhEInISChE JAhRBChER OU A FILOSOFIA DO SOCIALISMO VERDADEIRO ........441A) Comunismo, Socialismo, humanismo .......................................................................441B) Tijolos socialistas .......................................................................................................453

    Primeiro tijolo ............................................................................................................456Segundo tijolo ............................................................................................................459Terceiro tijolo .............................................................................................................463

    IV. KARL gRN: O MOVIMENTO SOCIAL NA FRANA E NA BLgICA (DARMSTADT, 1845) Ou A hISTORIOGRAFIA DO SOCIALISMO VERDADEIRO ..........467Sansimonismo...................................................................................................................474

    1. Lettres dun habitant de Genve ses contemporains ............................................4792. Catchisme politique des industriels ......................................................................4813. nouveau christianisme ...........................................................................................4844. A escola sansimoniana ...........................................................................................485

    Fourierismo .......................................................................................................................491O obtuso Pai Cabet e o senhor grn .............................................................................499Proudhon ..........................................................................................................................509

    V. O DR. GEORG KuhLMANN VON hOLSTEIN OU A PROFECIA DO SOCIALISMO VERDADEIRO .........................................................511

    APNDICE

    i. Karl Marx Prlogo ........................................................................................................523ii. JosePh WeydeMeyer (coM a colaborao de Karl Marx)

    bruno bauer e seu aPologista ........................................................................................525iii. trecho riscado no Manuscrito do caPtulo ii. so bruno (1) ..................................529iv. trecho riscado no Manuscrito do caPtulo ii. so bruno (2) ..................................531v. Karl Marx 1. ad Feuerbach (1845) ..............................................................................533vi. Karl Marx Marx sobre Feuerbach (1845) ...................................................................537vii. Karl Marx [sobre a Fenomenologia do esprito de hegel] ........................................541

  • viii. Karl Marx [Plano de trabalho sobre o estado] .......................................................543iX. Karl Marx [anotaes esParsas] ..................................................................................545

    NOTAS .....................................................................................................................................547

    NDICE ONOMSTICO...............................................................................................................573

    NDICE DAS OBRAS CITADAS .....................................................................................................587

    CRONOLOGIA RESuMIDA DE KARL MARx E FRIEDRICh ENGELS ...................................................597

  • 9APRESENTAO

    I

    A busca do conhecimento e da verdade pelo pensamento humano partiu sempre da dicotomia entre sujeito e objeto. As diferentes respostas dadas pelas vrias correntes do pensamento a essa questo permitiram sua classi-ficao na grande lista de tendncias idealistas, empiristas, racionalistas, materialistas, metafsicas etc.

    Para o pensamento aristotlico, a verdade se identifica com a ausncia de contradio. Se A igual a A, no pode ser igual a B ou a qualquer no A. Simplesmente isso. Sua lgica codifica essas normas elementares, sem as quais qualquer discurso se torna impossvel. Se uma coisa igual a si mesma e diferente de si mesma, se ela igual a si mesma e igual a outra coisa, trata-se de uma contradio, indicao insofismvel de uma falsidade.

    Essa lgica chamada de formal ou da identidade norteou a grande maioria das correntes do conhecimento ao longo dos sculos, da Antiguida-de, passando pela Idade Mdia, chegando ao mundo moderno e avanando at o contemporneo. Podemos dizer que ela continua a moldar o senso comum, consistindo na leitura mais difundida da realidade emprica, tal como ela costuma ser vivenciada por grande parte da humanidade. Nela, a contradio sintoma de falsidade.

    A revoluo copernicana no pensamento humano veio com a reverso dessa identificao na obra de Georg Wilhelm Friedrich hegel para quem, em vez de falsidade, a contradio aponta para a apreenso das dinmicas essenciais de cada fenmeno. Captar a contradio passa a ser sintoma da apreenso do movimento real dos fenmenos.

    A inverso hegeliana coloca em questo outro pressuposto do pensamen-to clssico: a dicotomia sujeito/objeto. Antes, tal dicotomia era condio da reflexo epistemolgica, assim como forma de compreenso da insero do homem no mundo. Do cogito cartesiano ao eu transcendental kantiano, a diferenciao sujeito/objeto habitou, com diferentes roupagens, todos os sistemas filosficos pr-hegelianos.

  • 10

    Apresentao

    O pensamento de hegel atinge justamente o que era assumido como um dado da realidade: a separao contraposio ou reencontro entre sujeito e objeto. Ele descarta a validade de interrogaes tais como: se o objeto pode ser apreendido pelo sujeito ou em que medida este deter-minado ou determina a existncia daquele. Em sua perspectiva, a primeira e maior das questes para o conhecimento do mundo, mas tambm para a compreenso do estar do homem no mundo, passa a ser a busca das razes pelas quais sujeito e objeto aparecem diferenciados e contrapostos. Redefinem-se assim os termos subjetividade e objetividade, cada um deles, mas sobretudo a relao entre eles.

    hegel marca tambm uma diferenciao com o nascente pensamento sociolgico, que busca trilhas pelo caminho aberto pelas cincias biolgi-cas e absolutiza a identificao da verdade com o mximo distanciamento entre sujeito e objeto, expresso paradigmaticamente na obra de Auguste Comte e mile Durkheim. Para estes, a garantia da veracidade do conhe-cimento est na medida do afastamento entre sujeito e objeto conside-rao dos fe nmenos sociais como coisas , a ponto da identificao, incorporada linguagem corrente, de objetividade com verdade, no sentido de conhecimento isento, universal. As dimenses subjetivas, por sua vez, passam a ser assimiladas a um falseamento do conhecimento verdadeiro dos objetos.

    As novidades radicais da dialtica hegeliana vo em duas direes. A primeira, a do questionamento dessa concepo de objetividade. Para hegel, o desafio maior explicar o que costuma ser aceito como dado: por que o mundo nos aparece com uma grande ciso entre sujeito e objeto? Por que o mundo nos aparece como alheio?

    Para responder a essas questes, hegel introduz no pensamento filos-fico a noo de trabalho, uma noo altamente corrosiva para as preten-ses a-histricas e sistemticas do pensamento tradicional. O conceito de trabalho posteriormente redefinido por Marx em termos histricos e materiais permite rearticular a relao entre sujeito e objeto, mediante a verso de que os homens produzem a realidade inconscientemente Eles fazem, mas no sabem, na frmula sinttica de Marx no prefcio a O capital , em que no se reconhecem. Introduz-se assim, junto com o conceito de trabalho, o de alienao.

    Esse conceito diferencia radicalmente o pensamento dialtico de outros enfoques, permitindo redefinir as relaes entre sujeito e objeto, entre subjetividade e objetividade. O mundo criado pelos homens, embora no de forma consciente, o que permite explicar tanto a relao intrnseca entre eles quanto o estranhamento do homem em relao ao mundo e a distncia deste em relao ao homem.

  • 11

    A ideologia alem

    hegel reivindica o conceito de contradio, no como sintoma de fal-sidade, mas como motor do movimento do real. O exemplo da dialtica do senhor e do escravo utilizado como a forma mais clara da relao de interdependncia das determinaes aparentemente opostas, mas que esto includas uma na outra. Apreender a contradio da sua relao apreender a essncia de cada polo e o sentido de sua relao mtua.

    II

    Aps um perodo em que oscilou em torno da polarizao herdada da filosofia poltica clssica e de hegel, entre sociedade civil e Estado, ora valorizando um polo em detrimento do outro, ora refazendo o caminho oposto, Marx rompe com essa viso, para fazer o que denomina anatomia da sociedade civil. A abordagem da ideologia um passo essencial nessa anatomia, porque remete o conhecimento desta s condies materiais de existncia em que se assenta. A Alemanha tornou-se objeto privilegiado dessa reflexo, pelo peso que tiveram os vrios sistemas de ideias no seu desenvolvimento.

    O acerto de Marx e Engels com sua herana filosfica conclui em A ideologia alem um longo caminho iniciado com os primeiros textos de Marx e se d ao mesmo tempo do amadurecimento de uma teoria alternativa. Tal teoria ganha corpo especialmente a partir dos Manuscritos econmico-filosficos de Marx, quando se torna claro que o recurso dia-ltica hegeliana significa uma negao, uma incorporao e uma superao dessa herana, na direo da teoria materialista da histria.

    O roteiro dA ideologia alem retoma a trajetria de hegel, mas se vale de instrumentos distintos e desemboca em caminhos muito diferentes. Para hegel, necessrio comear pela crtica das iluses do conhecimento o que Marx e Engels passaro a cunhar como ideologia. hegel aponta duas dessas iluses: tomar as coisas pela sua forma de apario e relegar o real para um mundo completamente separado das suas aparncias. Esses nveis de apreenso da realidade correspondem a nveis efetivamente existentes do real, porm segmentados, separados uns dos outros e sobretudo do significado que engloba a ambos. O mundo que nos aparece sob a dico-tomia entre sujeito e objeto, entre subjetividade e objetividade, tem de ser desvendado nas suas razes, para compreendermos o porqu dessa ciso, enquanto as iluses mencionadas optam por um dos dois polos e os abso-lutizam. A apreenso da verdade do real consiste justamente na explicao da forma pela qual o real se desdobra em sujeito e objeto.

    Para hegel h dois movimentos. O primeiro, em que o mundo perde sua unidade, cinde-se, duplica-se, produzindo a dicotomia entre o mundo sensvel e o mundo suprassensvel. Surgem o estranhamento, a alienao,

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    Apresentao

    a conscincia que no se reconhece no mundo e o mundo como realidade alheia conscincia. De um lado, a conscincia pura; de outro, ao alienar--se, a conscincia convertida em objeto de si mesma, contemplada, mas no reconhecida. como se a conscincia olhasse para o mundo tal qual estivesse olhando pela janela e no olhando para si mesma, no espelho do mundo.

    O segundo movimento trata da passagem da conscincia em si cons-cincia para si, com o real retomando sua unidade perdida, reabsorvendo os dois polos em uma unidade superior, eliminando a ciso do mundo. O ca-minho da razo portanto o caminho do reconhecimento da ciso e de suas razes; em seguida, de sua superao e do restabelecimento de sua unidade.

    Afirma-se, assim, pela primeira vez na histria da filosofia, que o mun-do produto do trabalho humano, como realidade histrica construda coletivamente pelos homens. Tambm pela primeira vez afirma-se, na filo-sofia, que o homem um ser histrico, o que dado por sua capacidade de trabalho.

    O ajuste de contas de Marx e Engels comea pelo principal dos pensa-dores hegelianos de esquerda, aquele que mais os havia influenciado, Ludwig Feuerbach. Esse autor tambm se props a fazer a crtica do idea-lismo de hegel. Seu ponto de partida o das iluses, mas o das iluses psicolgicas, como chave para decifrar a expresso mais tpica da aliena-o a religiosa.

    Para Feuerbach, a capacidade de abstrao est na origem da aliena-o religiosa, em que o homem projetaria suas caractersticas, elevadas ao infinito, em um ser externo ao homem. Em vez de ser criado por Deus, como acredita a viso religiosa, o homem quem cria Deus. De criao, se torna criador. O homem o Deus do homem, conclui. Porm, Feuerbach no incorpora a categoria trabalho e assim a superao das iluses se reduz a um processo de desmistificao, retomando a forma mais clssica de idealismo o da primazia da conscincia sobre a realidade. O sujeito volta o ocupar o lugar essencial como processo de desalienao. O pro-cesso de inverso da alienao religiosa orien ta a concepo de Marx sobre a alienao ainda nos Manuscritos econmico-filosficos, mas em A ideologia alem o carter materialista da crtica alienao surge como ponto de no retorno do pensamento marxista.

    Nos Manuscritos..., o foco colocado na economia poltica e a aliena-o aponta para seu fundamento na categoria de trabalho. A produo de riqueza representa para o operrio a transferncia de valor para a merca-doria e seu empobrecimento como trabalhador. A depreciao do mundo dos homens aumenta em razo direta da valorizao do mundo das coisas. O trabalho produz ao mesmo tempo mercadorias e o operrio enquanto

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    A ideologia alem

    mercadoria. O resultado do trabalho se enfrenta com seu produtor como um objeto alheio, estranho est dado o mecanismo essencial de explicao da alienao. Como produtor, o operrio no se sente sujeito, mas objeto do seu objeto. A ativi dade de produo a fonte da alienao e no mais um processo de iluso psicolgica ou intelectual.

    Somente em A ideologia alem, portanto, esses elementos sero articula-dos para constituir uma teoria explicativa das condies histricas de produo e reproduo da vida dos homens.

    III

    As iluses do esprito puro fazem que Marx e Engels dediquem este longo livro a negar a filosofia de hegel, de que eles mesmos foram depo-sitrios. O resultado uma crtica dos devaneios, das fantasias humanas e das falsas ideias que fazem sobre si mesmos e sobre o mundo.

    O exerccio de mtodo que enunciam, ainda incipientemente, no se limita desmistificao de ideias equivocadas sobre a realidade, mas se prope a pesquisar as condies que permitem que essas ideias existam e tenham tanta preponderncia. h um deslocamento do debate do plano das ideias puras para o da realidade concreta em que elas so geradas.

    Marx e Engels, desde o incio de suas carreiras tericas e polticas, se debruaram sobre o entendimento de um fenmeno que identificavam como o atraso alemo: aparecia-lhes como uma figura desconjuntada, com uma cabea enorme onde cabiam, entre tantos, Immanuel Kant, hegel, heinrich heine, Johann Goethe, Ludwig van Beethoven , porm com um corpo pequeno, mirrado, que no conseguia se libertar das travas das socie dades pr-capitalistas. Aprisionados por essas estruturas arcaicas, os alemes canalizavam para a cabea, gerando maravilhosas obras do esprito, as energias com que no conseguiam promover a derrubada do velho regime e a Queda da Bastilha alem.

    No se pode dizer que exista uma ruptura entre os escritos anteriores de Marx e Engels e A ideologia alem. h sim uma evoluo, com trans-formaes em um processo que ganha novo corpo terico especialmente desde os Manuscritos econmico-filosficos, que representam a incorpo-rao de conceitos como os de trabalho e de alienao. As Teses sobre Feuerbach e o captulo sobre esse filsofo alemo no corpo da obra re pro duzem temas esboados anteriormente, mas agora em um marco histrico que ganha contornos mais definidos. Em A ideologia alem, o ma terialismo histrico ganha o formato que ter no restante da obra desses dois autores.

    O livro um exemplo da dialtica hegeliana: uma relao de negao e incorporao, de superao, no sentido dialtico de Aufhebung. Essa

  • 14

    Apresentao

    superao parte da definio do significado do materialismo marxista, dos pressupostos incontornveis para todo ser humano:

    Os pressupostos de que partimos no so pressupostos arbitrrios, dogmas, mas pressupostos reais, de que s se pode abstrair na imaginao. So os indivduos reais, sua ao e suas condies materiais de vida, tanto aquelas por eles j encontradas como as produzidas por sua prpria ao.1

    Ao construir sua teoria na luta constante para marcar uma clara deli-mitao em relao presena monstruosa de um sistema de pensamento to tentador como o hegeliano , Marx e Engels concentraram o combate terico inicial em uma diferenciao em relao aos pressupostos idealis-tas de hegel. Na diferenciao com o saber absoluto, os dois filsofos revelam a natureza do seu materialismo, que remete para a produo e a reproduo das condies de existncia dos homens. Dela decorrem as relaes dos homens com a natureza e com suas formas de organizao social, isto , dos sujeitos com o que lhes aparece como a objetividade do mundo. Uma forma especfica de apropriao da natureza determina as formas de organizao social e a conscincia.

    A apreenso do significado que as formas de reproduo da vida tm para a existncia humana representa a primeira grande formulao do materialismo dialtico para a compreenso da histria e da conscincia humana. A cada estado de desenvolvimento das formas de produo ma-terial da sua existncia correspondem formas especficas de estruturao social, alm de valores e formas de apreenso da realidade.

    Destacar esse papel de pressuposto incontornvel da produo da vida material significa, ao mesmo tempo, colocar o trabalho no centro das condies de vida e conscincia humana. O homem se diferencia dos outros animais por muitas caractersticas, mas a primeira, determinante, a capacidade de trabalho. Enquanto os outros animais apenas recolhem o que encontram na natureza, o homem, ao produzir as condies da sua sobrevivncia, a transforma.

    A capacidade de trabalho faz com que o homem seja um ser histri-co; isto porque cada gerao recebe condies de vida e as transmite a geraes futuras, sempre modificadas para pior ou para melhor. Embora tenha o potencial transformador da realidade, o que o homem mais recu-sa trabalhar. Foge do que o tornaria humano porque no se reconhece no que faz, no que produz, no mundo que transforma. Porque trata-se de trabalho alienado.

    Na introduo desta obra, Marx e Engels ridicularizam o essencialismo do idealismo alemo, reivindicado pelos chamados hegelianos de esquerda,

    1 Ver adiante p. 86-7.

  • 15

    A ideologia alem

    com base na contraposio entre a lei de gravidade e o reino dos sonhos em que eles descansam. Nas Teses sobre Feuerbach, essa crtica tem o impacto da forma de aforismos, mas a articulao entre as iluses ideol-gicas e as condies materiais de sua produo aparece em A ideologia alem como seu eixo central.

    Os neo-hegelianos no se perguntam em que o terreno social onde es-to pisando condiciona o seu pensamento colocando a questo central para a caracterizao da ideologia. No haviam incorporado a categoria trabalho, a qual, juntamente com a introduo indita de categorias como foras produtivas demonstrando como j se articulava o essencial do arcabouo de interpretao marxista da histria , permite a superao efetiva do marco do pensamento de hegel. A compreenso do processo de trabalho permite, ao mesmo tempo, a compreenso da origem da se-parao da teoria e da prtica e das formas que permitem sua reconexo.

    Desde suas primeiras obras, Marx e Engels identificam um papel para a categoria trabalho, porm inicialmente era apenas uma forma geral de luta do homem contra a natureza, como base de todas as sociedades humanas. O labor esteve, desde o incio, ligado alienao, provocando a questo da forma como essa degenerao da atividade humana foi possvel. Mas, desde o comeo, o trabalho era analisado na perspectiva da sua abolio, do processo de desalienao, revelando como se tratava j de uma anlise ao mesmo tempo negativa e positiva.

    A ideologia alem a primeira obra em que a articulao das catego rias essenciais da dialtica marxista emerge, madura, superfcie. Apario que surge, como vimos, sob a rica forma da negao e da superao, em que a crtica da realidade , ao mesmo tempo, a crtica de sua ideo logia nesse caso, dos neo-hegelianos de esquerda , forjando simulta neamente as novas categorias, que iro transformar a teoria e a realidade concreta sobre a qual ela se constri.

    Emir Sader

  • 17

    SOBRE A TRADUO

    Sados da obscuridade em 1921, os textos que compem A ideologia alem ainda aguardam edio definitiva. No rduo trabalho de editora-o dessa obra inacabada, dotada de inmeras lacunas e imprecises, com algumas pginas faltando e outras tantas rodas por ratos, instalou-se desde o incio uma grande controvrsia sobre sua verdadeira forma final. A polmica girou fundamentalmente em torno do captulo I. Feuerbach, deixado pelos autores como um conjunto de rascunhos e anotaes esparsos. No contexto da luta ideolgica da poca, que confrontava stalinistas e socialdemocratas, era necessrio que o primeiro captulo dA ideologia alem fosse apresentado no como uma formulao in-completa, to vigorosa quanto irregular, de uma viso materialista do mundo1, mas como a inequvoca exposio inaugural de um novo mtodo: o materialismo histrico e dialtico, do qual, dizia-se, dependia o futuro das massas trabalhadoras. Essa luta ideolgica explica por que, em 15 de fevereiro de 1931, David Rjazanov, ento diretor do Marx-Engels-Institut e editor da Marx-Engels-Gesamtausgabe (MEGA), acabou preso pela polcia de Stalin e substitudo por Vladimir Adoratskij2. Rjazanov fora responsvel pela primeira edio do captulo I. Feuerbach, publicado em alemo, em 1926, no primeiro volume dos Marx-Engels-Archivs. Apesar de pro-blemtica quanto constituio do texto, a edio de Rjazanov tinha, entre muitos outros mritos, o de reconhecer o carter inacabado do manuscrito tal como este fora deixado pelos autores. Na nota editorial, dizia-se: A primeira parte dA ideologia alem no foi levada at o fim nem elaborada num todo unitrio, suas partes no formam nenhuma

    1 NA ideologia alem inexiste a expresso concepo materialista da histria. 2 Ver citao do discurso de Adoratskij contra Rjazanov na plenria do Comit Executivo

    da Internacional Comunista em 1o de abril de 1931, em Marx-Engels-Jahrbuch 2003 (Amsterdam, Akademie Verlag, 2003), p. 14-5.

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    Sobre a traduo

    unidade3, afirmao que, diga-se de passagem, estava em perfeita har-monia com o que o prprio Engels reconhecia j em 1888: A seo sobre Feuerbach no est acabada. A parte que foi concluda consiste numa apresentao da concepo materialista da histria que s prova o quo incompletos ainda eram, poca, nossos conhecimentos sobre a histria econmica. A prpria crtica da doutrina feuerbachiana padece dessa incompletude [...]4. Bas tante diferente, porm, era o juzo expresso na introduo ao volume I/5 da MEgA-1, j sob o comando de seu novo edi-tor, Adoratskij: [...] em nenhuma outra obra de juventude encontramos as questes fundamentais do materialismo dialtico esclarecidas de forma to completa e exaustiva. [...] O captulo I. Feuerbach contm a primeira exposio sistemtica de sua concepo histrico-filosfica da histria econmica do desenvolvimento dos homens, apresenta a unio de dia-ltica e materialismo num todo unitrio, indiviso, expressa a grande virada revolucionria dos autores com a criao de uma verdadeira cin cia das leis de desenvolvimento da natureza e da sociedade5 etc. E foi assim, em suma, que o captulo I. Feuerbach passou a ser editorial-mente construdo como um texto ideologicamente correto e dotado de uma coerncia sistemtica.

    O trabalho de desconstruo do captulo I. Feuerbach seria possvel apenas dcadas mais tarde, no mbito da MEgA-2, cuja orientao editorial deixava de ser poltico-ideolgica e assumia um carter progressivamente crtico-filolgico. Tratava-se, agora, no mais de montar os textos e preen-cher suas lacunas a partir de suposies arbitrrias e imperativos externos ao trabalho editorial, mas, ao contrrio, de reproduzi-los da forma exata como Marx e Engels os haviam legado.

    3 Marx und Engels ber Feuerbach. Der erste Teil der Deutschen Ideologie. Die handschrift und die Textbearbeitung [Marx e Engels sobre Feuerbach. A primeira parte dA ideologia alem. O manuscrito e o estabelecimento do texto], em Marx-Engels-Archiv, editado por D. Rjazanov (Frankfurt, 1926), v. 1, p. 217, apud Marx-Engels-Jahrbuch 2003, cit., p. 10.

    4 Friedrich Engels, Vorbemerkung zu Ludwig Feuerbach und der Ausgang der klassischen deutschen Philosophie [Nota introdutria a Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clssica alem], em MEgA-2, I/31, p. 123, apud Marx-Engels-Jahrbuch 2003, cit., p. 9-10.

    5 Citamos a partir da Marx-Engels-Werke, que reproduz a Apresentao da MEgA-1. Vorwort des Instituts fr Marxismus-Leninismus beim zK der KPdSU zu Karl Marx und Friedrich Engels. 1845-1846 [Apresentao do Instituto de marxismo-leninis-mo do comit central do Partido Comunista da Unio Sovitica para Karl Marx e Friedrich Engels. 1845-1846], em Marx-Engels-Werke (Berlim, Dietz Verlag, 1969), v. 3, p. VI.

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    A ideologia alem

    Em sua pr-publicao no Marx-Engels-Jahrbuch 20036, que serviu de base para a primeira parte da presente traduo, os manuscritos do captulo I. Feuerbach aparecem em sua fragmentao originria, dispostos em partes independentes e em ordem cronolgica. Evidencia-se, assim, que a crtica a Feuerbach foi escrita no antes, como at ento se imaginava, mas ao longo (e depois) da elaborao dos captulos II. So Bruno e III. So Max. Alm disso, essa nova edio demonstra que a redao da obra se inicia com o artigo Contra Bruno Bauer, escrito por Marx logo aps a publicao dA sagrada famlia. Esse artigo, traduzido para o por-tugus pela primeira vez, passa doravante a integrar o conjunto de textos dA ideologia alem.

    A adoo desses critrios editorias nos trouxe, no obstante, novas difi-culdades e nos obrigou a fazer algumas adaptaes em relao ao original:

    1) As pginas do manuscrito Feuerbach e histria foram divididas pelos autores em duas colunas. Na coluna da esquerda encontra-se o texto principal; na coluna da direita, Marx e Engels realizam anotaes, acrescentam trechos ou desenvolvem temas paralelos. Nas edies anterio-res, baseadas na MEgA-1 ou na ME-Werke, grande parte dos textos mais longos que se encontram na coluna da direita foi incorporada ao texto principal, mesmo quando no havia indicao precisa da inteno dos autores ou do lugar correto onde a insero supostamente deveria ser feita. No Marx-Engels-Jahrbuch 2003, o manuscrito reproduzido de acordo com o original, isto , em duas colunas, o que de certo modo aumenta a cien tificidade da edio, porm dificulta a leitura. Em nossa traduo, a fim de evitar a diviso em duas colunas, optamos pelo uso de notas de rodap, inserindo a chamada para a nota na altura em que o texto da coluna da direita tem incio no original.

    2) O Prlogo (Vorrede), que nas edies anteriores aparece como o primeiro texto dA ideologia alem, foi escrito somente depois de pronta a prova de impresso do captulo III. So Max7. Por no integrar cronologi-camente o grupo de manuscritos que compem o captulo I. Feuerbach, decidimo-nos por coloc-lo no Apndice.

    Rubens Enderle

    6 Marx-Engels-Jahrbuch 2003 (Amsterdam, Akademie Verlag, 2003). A Ideologia alem ter sua edio definitiva no volume I/5 da MEgA-2, ainda no publicado.

    7 Cf. Marx-Engels-Jahrbuch 2003, cit., p. 6.

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    ABREVIATURAS

    A. E. Anotao de Engels (escrita na margem do manuscrito)A. M. Anotao de Marx (escrita na margem do manuscrito)N. A. Nota dos autoresN. E. Nota do editor brasileiroN. E. A. / J Nota da edio alem ( Jahrbuch)N. E. A. / W Nota da edio alem (Werke)N. T. Nota dos tradutoresS. M. Suprimido no manuscritoV. M. Variante no manuscrito

  • p R i m e i R a p a R T eArtigos, rascunhos, textos prontos para impresso

    e anotaes referentes aos captulos i. Feuerbach e II. So Bruno

  • volume i [CRTiCa da maiS ReCenTe FiloSoFia em SeuS RepReSenTanTeS

    FeueRBaCh, B. BaueR e STiRneR]

  • Max Stirner, em desenho de Engels (Londres, 1892).

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    KaRl maRx

    ConTRa BRuno BaueR1

    (20 de novembro de 1845)

    Gesellschaftsspiegel2.V. 2, n. VII, janeiro de 1846

    Bruxelas, 20 de novembro

    na Wigands Vierteljahrsschrift, 3o volume, p. 138 ss.3, Bruno Bauer balbucia algumas palavras em resposta ao escrito de Engels e Marx: A sagrada famlia ou A crtica da Crtica crtica (1845)4. Desde o comeo, B. Bauer afirma que Engels e Marx no o teriam entendido, repete com a mais cndida ingenui-dade suas velhas e pretensiosas fraseologias [Phrasen], de h muito reduzi-das a nada, e lamenta o desconhecimento daqueles autores acerca de seus apontamentos sobre o perptuo lutar e vencer, o destruir e criar da Cr-tica, de como a Crtica a nica fora da histria, de como o crtico, e somente ele, foi o nico a destruir a religio em sua totalidade e o Estado em suas diversas manifestaes, de como o crtico trabalhou e ainda trabalha e o que mais se possa encontrar em queixumes sonoros e em derramamen-tos patticos como esse. Em sua prpria resposta, Bauer nos d de imediato uma nova prova, decisiva, de como o crtico trabalhou e ainda trabalha. O laborioso crtico acha ser mais adequado ao seu desgnio no tomar por objeto de suas proclamaes e citaes o livro de Engels e Marx, mas sim uma medocre e confusa resenha deste livro publicada no Westphlische Dampfboot (no de maio, p. 208 ss.)5 uma escamoteao que ele, com precauo crtica, oculta de seu leitor.

    este rduo trabalho de copista do Dampfboot s abandonado por Bauer quando ele professa um dar de ombros monossilbico, porm pleno de signi-ficado. A Crtica crtica limita-se a dar de ombros, dado que ela no tem mais nada a dizer. Ela encontra sua salvao nas omoplatas, no obstante seu dio contra o sensvel [Sinnlichkeit], que ela s consegue conceber sob a forma de um cajado (ver Wigands Vierteljahrsschrift, p. 130), instrumento de pastoreio bem adequado sua rudeza teolgica.

    Tomado de uma sofreguido sinptica, o resenhista da Vestflia pro-duz snteses ridculas, que esto em contradio direta com o livro por ele

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    Karl Marx e Friedrich Engels

    apresentado. O laborioso crtico copia a invencionice [Machwerk] do re-senhista, atribui isso a Engels e Marx e, voltando-se triunfante para a massa acrtica, que ele fulmina com um olho enquanto com o outro lhe dirige uma coquete piscadela, grita: Vejam isto, meus inimigos!

    Reunamos ento, palavra por palavra, as peas documentais.Diz o resenhista, no Westphlische Dampfboot: Para ferir mortalmente os

    judeus, ele (B. Bauer) os transforma em telogos e a questo da emancipao poltica por ele transformada na questo da emancipao humana; para destruir Hegel, ele o transforma no senhor Hinrichs, e, para se ver livre da Revoluo Francesa, do comunismo, de Feuerbach, ele grita massa, massa, massa! e uma vez mais massa, massa, massa!; ele a crucifica para a bn-o do esprito, que a Crtica, a verdadeira encarnao da ideia absoluta em Bruno von Charlottenburg (Westphlische Dampfboot, cit., p. 212). Diz o crtico laborioso: O crtico da Crtica crtica torna-se infantil, ao final, faz sua apario como Arlequim no theatro mundi e quer nos fazer crer, com toda seriedade ele afirma que Bruno Bauer, para ferir mortalmente os judeus etc. etc. segue-se ento, literalmente, a passagem inteira do Westphlischen Dampfboot, passagem que no se encontra em nenhum lugar dA sagrada famlia (Wigands Vierteljahrsschrift, p. 142). Comparemos esse texto, ao contrrio, com o posicionamento da Crtica crtica em relao questo judaica e emancipao poltica tal como ele exposto nA sagrada famlia, nas p. 163-85, entre outras, ou com sua postura diante da Revoluo Francesa, p. 185-95, ou com seu comportamento em relao ao socialismo e ao comunismo, p. 22-74, p. 211 ss., p. 243-4 e a seo inteira sobre a Crtica crtica como Rudolph, Prncipe de Gerolstein, p. 258-333. Sobre a posio da Crtica crtica em relao a Hegel, ver o segredo da construo especulati-va e as seguintes observaes, p. 79 ss., mais adiante p. 121 e 122, p. 126-58, p. 136-7, p. 208-9, p. 215-27 e p. 304-8; sobre a postura da Crtica crtica em relao a Feuerbach, ver p. 138-41 e, finalmente, sobre o resultado e a ten-dncia das batalhas crticas contra a Revoluo Francesa, o materialismo e o socialismo, p. 214-5.

    A partir dessas citaes, poder-se- perceber que o resenhista da Vestflia faz de todos esses argumentos o resumo mais canhestro, ridiculamente err-neo e s existente em sua imaginao; um resumo que o puro e labo rioso crtico copia do original com habilidade criadora e destruidora.

    Em frente!Diz o resenhista, no Westphlische Dampfboot: Sua (leia-se: a de B. Bauer)

    frvola autoapoteose, em que ele tenta provar que, se antes era perturbado pelo preconceito da massa, aquele preconceito, por sua vez, no passava de uma aparncia necessria da Crtica, retrucada por Marx com a oferta do seguinte pequeno tratado escolstico: Por que a concepo da Virgem Maria teria de ser provada desde j pelo senhor Bruno Bauer etc. etc. (Dampfboot, p. 213). Diz o laborioso crtico: Ele (o crtico da Crtica crtica) quer que

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    A ideologia alem

    saibamos, e acredita do fundo de seu prprio esprito embusteiro, que se Bauer se via perturbado pelo preconceito da massa tal perturbao deve ser concebida apenas como uma aparncia necessria da Crtica e no com base no necessrio percurso de desenvolvimento da Crtica, e nos oferece como retruque a uma tal frvola autoapoteose o seguinte pequeno tratado escolstico: Por que a concepo da Virgem Maria etc. etc. (Wigands Vierteljahrsschrift, p. 142-3). NA sagrada famlia (p. 150-63)6 o leitor pode encontrar uma seo inteira dedicada autoapologia de Bruno Bauer, em que no se encontra infe-lizmente nenhum vestgio do referido pequeno tratado escolstico, no sendo este, portanto, de modo algum oferecido como rplica autoapologia de Bruno Bauer, bem ao contrrio do que imagina o resenhista da Vestflia e daquilo que o servial Bruno Bauer parcialmente copia, at mesmo entre aspas, como se fossem citaes dA sagrada famlia. O breve tratado se encontra noutra seo e noutro contexto (Ver A sagrada famlia, p. 164 e 1657). Qual a importncia disso algo que o prprio leitor poder atestar e, ento, poder admirar, uma vez mais, a pura perspiccia do laborioso crtico.

    Por fim, exclama o laborioso crtico: Foi com isso (quer dizer, com as citaes que Bruno Bauer toma de emprstimo do Westphlische Dampfboot e imputa sorrateiramente aos autores dA sagrada famlia) que Bruno Bauer na-turalmente teve de lutar com braveza, elevando a Crtica razo. Marx nos d, na verdade, uma pea em que ele mesmo entra em cena, ao final, como o mais divertido dos comediantes (Wigands Vierteljahrsschrift, p. 143). Para entender este na verdade, deve-se saber que o resenhista da Vestflia, para quem Bruno Bauer trabalha como copista, ditou para seu crtico e laborioso escriba as seguintes palavras, ao p da letra: O drama histrico-mundial (quer dizer, a luta da crtica baueriana contra a massa) dilui-se, sem muito esforo, na mais divertida comdia (Westphlische Dampfboot, p. 213). Neste momento, o desditoso copista assaltado pela ideia de que trans crever seus prprios juzos algo que est acima de suas foras. Em verdade! escreve, interrompendo o ditado do resenhista da Vestflia Em verdade (...) Marx (...) o divertido comediante!, e enxuga, ento, o suor frio de sua testa.

    Ao buscar refgio na mais desajeitada escamoteao, no mais deprimente truque de prestidigitao, Bruno Bauer acaba por confirmar, em ltima ins-tncia, a sentena de morte que Engels e Marx lanaram sobre ele nA sagra da famlia.

  • Pgina 15 do manuscrito Feuerbach e Histria, de Marx e Engels. direita, desenho de Engels.

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    KaRl maRx FRiedRiCh engelS

    FeueRBaCh e hiSTRiaRaSCunhoS e anoTaeS

    (Do fim de novembro de 1845 a meados de abril de 1846)

    [Rascunho das pginas 1 a 29, faltando o intervalo entre as p-ginas 3 e 7. Originalmente concebido como parte de um artigo intitulado: Crtica da Caracterizao de Ludwig Feuerbach, de Bruno Bauer.]8

    aNo nos daremos, naturalmente, ao trabalho de esclarecer a nossos sbios filsofos que eles no fizeram a libertao do homemb avanar um ni-co passo ao terem reduzido a filosofia, a teologia, a substncia e todo esse lixo autoconscincia, e ao terem libertado o homemc da dominao dessas fraseologias, dominao que nunca o manteve escravizado. Nem lhes explicaremos que s possvel conquistar a libertao real [wirkliche Befreiung] no mundo real e pelo emprego de meios reais9; que a escravido no pode ser superada10 sem a mquina a vapor e a Mule-Jenny11, nem a servido sem a melhora da agricultura, e que, em geral, no possvel li-bertar os homens enquanto estes forem incapazes de obter alimentao e bebida, habitao e vestimenta, em qualidade e quantidade adequadas. A libertao um ato histrico e no um ato de pensamento, e ocasionada por condies histricas, pelas con[dies] da indstria, do co[mrcio], [da agricul]tura, do inter[cmbio] [...] e ento, posteriormente, conforme suas diferentes fases de desenvolvimento, o absurdo da substncia, do sujeito, da autoconscincia e da crtica pura, assim como o absurdo religioso e teo-lgico, so novamente eliminados quando se encontram suficientemente desenvolvidos.d claro que na Alemanha, um pas onde ocorre apenas um desenvolvimento histrico trivial, esses desenvolvimentos intelectuais,

    a Feuerbach. (a. m.)b Libertao filosfica e libertao real. O homem. O nico. o Indivduo. (a. m.)c Condies geolgicas, hidrogrficas etc. O corpo humano. A necessidade e o tra-

    balho. (a. m.)d Fraseologia e movimento real. (a. m.)

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    Karl Marx e Friedrich Engels

    essas trivialidades glorificadas e ineficazes, servem naturalmente como um substituto para a falta de desenvolvimento histrico; enrazam-se e tm de ser combatidos.a Mas essa luta tem importncia meramente localb.12

    [...] na realidade, e para o materialista prtico, isto , para o comunista, trata-se de revolucionar o mundo, de enfrentar e de transformar pratica-mente o estado de coisas por ele encontrado.c Se, em certos momentos, encontram-se em Feuerbach pontos de vista desse tipo, eles no vo alm de intuies isoladas e tm sobre sua intuio geral muito pouca influncia para que se possa consider-los como algo mais do que embries capazes de desenvolvimento. A concepod feuerbachiana do mundo sensvele limita-se, por um lado, mera contemplao deste ltimo e, por outro lado, mera sensao; ele diz o homem em vez de os homens histricos reais. O homem , na realidade, o alemo. No primeiro caso, na contemplao do mundo sensvel, ele se choca necessariamente com coisas que contradi-zem sua conscincia e seu sentimento, que perturbam a harmonia, por ele pressuposta, de todas as partes do mundo sensvel e sobretudo do homem com a natureza.f Para remover essas coisas, ele tem, portanto, que buscar refgio numa dupla contemplao: uma contemplao profana, que capta somente o que palpvel, e uma contemplao mais elevada, filosfica, que capta a verdadeira essncia das coisas. Ele no v como o mundo sensvel que o rodeia no uma coisa dada imediatamente por toda a eternidade e sempre igual a si mesma, mas o produto da indstria e do estado de coisas da sociedade, e isso precisamente no sentido de que um produto histrico, o resultado da atividade de toda uma srie de geraesg, que, cada uma delas sobre os ombros da precedente, desenvolveram sua indstria e seu comrcio e modificaram sua ordem social de acordo com as necessidades alteradas. Mesmo os objetos da mais simples certeza sensvel so dados a Feuerbach apenas por meio do desenvolvimento social, da indstria e

    a A importncia da fraseologia para a Alemanha. (a. m.)b luta que no tem significado histrico geral, mas apenas local, uma luta que no traz

    resultados novos para a massa de homens mais do que a luta da civilizao contra a barbrie. (v. m.)

    A linguagem a linguagem da re[alidade]. (a. m.)c Feuerbach. (a. m.)d concepo terica. (v. m.)e O sensvel. (v. m.)f n. B. O erro de Feuerbach no est em subordinar o que imediatamente palpvel, a

    aparncia sensvel, realidade sensvel constatada por um exame mais rigoroso dos fatos sensveis; est, ao contrrio, em que ele, em ltima instncia, no consegue lidar com o mundo sensvel sem consider-lo com os olhos, isto , atravs dos culos do filsofo. (a. m.)

    g que ela , em cada poca histrica, o resultado da atividade de toda uma srie de geraes. (v. m.)

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    A ideologia alem

    do intercmbio comercial. Como se sabe, a cerejeira, como quase todas as rvores frutferas, foi transplantada para nossa regio pelo comrcio, h apenas alguns sculos e, portanto, foi dada certeza sensvel de Feuerbach apenas mediante essa ao de uma sociedade determinada numa determi-nada poca.a Alis, nessa concepo das coisas tal como realmente so e tal como se deram, todo profundo problema filosfico simplesmente dissol-vido num fato emprico, como ser mostrado mais claramente adiante. Por exemplo, a importante questo sobre a relao do homem com a natureza (ou ento, como afirma Bruno na p. 110, as oposies em natureza e hist-ria, como se as duas coisas fossem coisas separadas uma da outra, como se o homem no tivesse sempre diante de si uma natureza histrica e uma histria natural), da qual surgiram todas as obras de insondvel grande-za13 sobre a substncia e a autoconscincia, desfaz-se em si mesma na concepo de que a clebre unidade do homem com a natureza sempre se deu na indstria e apresenta-se de modo diferente em cada poca de acordo com o menor ou maior desenvolvimento da indstria; o mesmo vale no que diz respeito luta do homem com a natureza, at o desen-volvimento de suas foras produtivas sobre uma base correspondente. A indstria e o comrcio, a produo e o intercmbio das necessidades vitaisb condicionam, por seu lado, a distribuio, a estrutura das diferentes classes sociais e so, por sua vez, condicionadas por elas no modo de seu funcio-namento e por isso que Feuerbach, em Manchester por exemplo, v apenas fbricas e mquinas onde cem anos atrs se viam apenas rodas de fiar e teares manuais, ou que ele descobre apenas pastagens e pntanos na Campagna di Roma[1], onde na poca de Augusto no teria encontrado nada menos do que as vinhas e as propriedades rurais dos capitalistas romanos. Feuerbach fala especialmente do ponto de vista da cincia natural; ele men-ciona segredos que s se mostram aos olhos do fsico e do qumico; mas onde estaria a cincia natural sem a indstria e o comrcio? Mesmo essa cincia natural pura obtm tanto sua finalidade como seu material apenas por meio do comrcio e da indstria, por meio da atividade sensvel dos homens. E de tal modo essa atividade, esse contnuo trabalhar e criar sensveis, essa produo, a base de todo o mundo sensvel, tal como ele existe agora, que, se ela fosse interrompida mesmo por um ano apenas, Feuerbach no s encontraria uma enorme mudana no mundo natural, como tambm sentiria falta de todo o mundo dos homens e de seu prprio dom contemplativo, e at mesmo de sua prpria existncia. Nisso subsiste, sem dvida, a prioridade da natureza exterior, e isso tudo no tem nenhu-

    a Feuerbach. (a. m.)b Feuerbach. (a. m.)

    [1] plancie de Roma

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    Karl Marx e Friedrich Engels

    ma aplicao aos homens primitivos, produzidos por generatio aequivoca[1]; mas essa diferenciao s tem sentido na medida em que se considerem os homens como distintos da natureza. De resto, essa natureza que precede a histria humana no a natureza na qual vive Feuerbach; uma natureza que hoje em dia, salvo talvez em recentes formaes de ilhas de corais aus-tralianas, no existe mais em lugar nenhum e, portanto, tambm no existe para Feuerbach.

    certo que Feuerbach tem em relao aos materialistas puros a grande vantagem de que ele compreende que o homem tambm objeto sensvel; mas, fora o fato de que ele apreende o homem apenas como objeto sensvel e no como atividade sensvel pois se detm ainda no plano da teoria , e no concebe os homens em sua conexo social dada, em suas condies de vida existentes, que fizeram deles o que eles so, ele no chega nunca at os homens ativos, realmente existentes, mas permanece na abstrao o homem e no vai alm de reconhecer no plano sentimental o homem real, individual, corporala, isto , no conhece quaisquer outras relaes huma-nas do homem com o homem que no sejam as do amor e da amizade, e ainda assim idealizadas. No nos d nenhuma crtica das condies de vida atuais. No consegue nunca, portanto, conceber o mundo sensvel como a atividade sensvel, viva e conjunta dos indivduos que o constituem, e por isso obrigado, quando v, por exemplob, em vez de homens sadios um bando de coitados, escrofulosos, depauperados e tsicos, a buscar refgio numa concepo superior e na ideal igualizao no gnero; obrigado, por conseguinte, a recair no idealismo justamente l onde o materialista comunista v a necessidade e simultaneamente a condio de uma transformao, tanto da indstria como da estrutura social.

    Na medida em que Feuerbach materialista, nele no se encontra a histria, e na medida em que toma em considerao a histria ele no materialista. Nele, materialismo e histria divergem completamente, o que alis se explica pelo que dissemos at aqui.c Em relao aos alemes, que se consideram isentos de pressupostos [Voraussetzungslosen], devemos comear por constatar o primeiro pressuposto de toda a existncia humana e tambm, portanto, de toda a histria, a saber, o pressuposto de que os homens tm de

    a F[euerbach]. (a. m.)b Feuerbach. (a. m.)c Se, aqui, tratamos mais de perto a histria, isto se deve ao fato de os alemes estarem

    acostumados a representar, com as palavras histria e histrico, no s o real, mas sim todo o possvel; um clebre exemplo disto a eloquncia de plpito de So Bruno. (S. m.)

    Histria. (a. m.)[1] gerao ou nascimento espontneo de organismos, tambm chamada de generatio

    spontanea

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    A ideologia alem

    estar em condies de viver para poder fazer histria.a Mas, para viver, precisa-se, antes de tudo, de comida, bebida, moradia, vestimenta e algumas coisas mais. O primeiro ato histrico , pois, a produo dos meios para a satisfao dessas necessidades, a produo da prpria vida material, e este , sem dvida, um ato histrico, uma condio fundamental de toda a histria, que ainda hoje, assim como h milnios, tem de ser cumprida diariamente, a cada hora, simplesmente para manter os homens vivos. Mesmo que o mundo sensvel, como em So Bruno, seja reduzido a um cajado, a um mnimo, ele pressupe a atividade de produo desse cajado. A primeira coisa a fazer em qualquer concepo histrica , portanto, observar esse fato fundamental em toda a sua significao e em todo o seu alcance e a ele fazer justia. Isto, como sabido, jamais foi feito pelos alemes, razo pela qual eles nunca tiveram uma base terrena para a histria e, por conseguinte, nunca tiveram um historiador. Os franceses e os ingleses, ao tratarem da conexo desses fatos com a chamada histria apenas de um modo extremamente unilateral, sobretudo enquanto permaneciam cativos da ideologia14 poltica, realizaram, ainda assim, as primeiras tentativas de dar historiografia uma base mate-rialista, ao escreverem as primeiras histrias da sociedade civil [brgerliche Gesellschaft], do comrcio e da indstria.

    O segundo ponto que a satisfao dessa primeira necessidade, a ao de satisfaz-la e o instrumento de satisfao j adquirido conduzem a novas necessidades e essa produo de novas necessidades constitui o primeiro ato histrico. Por aqui se mostra, desde j, de quem descende espiritualmente a grande sabedoria histrica dos alemes, que, quando lhes falta o material positivo e quando no se trata de discutir disparates polticos, teolgicos ou literrios, nada nos oferecem sobre a histria, mas sim sobre os tempos pr-histricos, contudo sem nos explicar como se passa desse absurdo da pr-histria histria propriamente dita ainda que, por outra parte, sua especulao histrica se detenha em especial sobre essa pr-histria, porque nesse terreno ela se cr a salvo da interferncia dos fatos crus e, ao mesmo tempo, porque ali ela pode dar rdeas soltas aos seus impulsos especulativos e produzir e destruir milhares de hipteses.

    A terceira condio que j de incio intervm no desenvolvimento hist-rico que os homens, que renovam diariamente sua prpria vida, comeam a criar outros homens, a procriar a relao entre homem e mulher, entre pais e filhos, a famlia. Essa famlia, que no incio constitui a nica relao social, torna-se mais tarde, quando as necessidades aumentadas criam no-vas relaes sociais e o crescimento da populao gera novas necessidades, uma relao secundria (salvo na Alemanha) e deve, portanto, ser tratada

    a Hegel. Condies geolgicas, hidrogrficas etc. Os corpos humanos. Necessidade, trabalho. (a. m.)

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    Karl Marx e Friedrich Engels

    e desenvolvida segundo os dados empricos existentes e no segundo o conceito de famlia, como se costuma fazer na Alemanha. Ademais, esses trs aspectos da atividade social no devem ser considerados como trs estgios distintos, mas sim apenas como trs aspectos ou, a fim de escrever de modo claro aos alemes, como trs momentos que coexistiram desde os primrdios da histria e desde os primeiros homens, e que ainda hoje se fazem valer na histria.

    A produo da vida, tanto da prpria, no trabalho, quanto da alheia, na procriao, aparece desde j como uma relao dupla de um lado, como relao natural, de outro como relao social , social no sentido de que por ela se entende a cooperao de vrios indivduos, sejam quais forem as condies, o modo e a finalidade. Segue-se da que um determinado modo de produo ou uma determinada fase industrial esto sempre ligados a um determinado modo de cooperao ou a uma determinada fase social modo de cooperao que , ele prprio, uma fora produtiva , que a soma das foras produtivas acessveis ao homem condiciona o estado social e que, portanto, a histria da humanidade deve ser estudada e elaborada sempre em conexo com a histria da indstria e das trocas. Mas claro, tambm, que na Alemanha impossvel escrever tal histria, pois aos alemes faltam no apenas a capacidade de concepo e o material, como tambm a certeza sensvel, e do outro lado do Reno no se pode obter experincia alguma sobre essas coisas, pois ali j no ocorre mais nenhuma histria. Mostra-se, portanto, desde o princpio, uma conexo materialista dos homens entre si, conexo que depende das necessidades e do modo de produo e que to antiga quanto os prprios homens uma conexo que assume sempre novas formas e que apresenta, assim, uma histria, sem que pre-cise existir qualquer absurdo poltico ou religioso que tambm mantenha os homens unidos.

    Somente agora, depois de j termos examinado quatro momentos, qua-tro aspectos das relaes histricas originrias, descobrimos que o homem tem tambm conscincia.a Mas esta tambm no , desde o incio, cons-cin cia pura. O esprito sofre, desde o incio, a maldio de estar conta-minado pela matria, que, aqui, se manifesta sob a forma de camadas de ar em movimento, de sons, em suma, sob a forma de linguagem. A lingua-gem to antiga quanto a conscincia a linguagem a conscincia real, prtica, que existe para os outros homens e que, portanto, tambm existe para mim mesmo; e a linguagem nasce, tal como a conscincia, do care-

    a o homem tem tambm, entre outras coisas, esprito, e que esse esprito se exte-rioriza como conscincia. (v. m.)

    Os homens tm histria porque tm de produzir sua vida, e tm de faz-lo de modo determinado: isto dado por sua organizao fsica, tanto quanto sua conscincia. (a. m.)

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    A ideologia alem

    cimento, da necessidade de intercmbio com outros homens.a Desde o incio, portanto, a conscincia j um produto social e continuar sendo enquanto existirem homens. A conscincia , naturalmente, antes de tudo a mera conscincia do meio sensvel mais imediato e conscincia do vnculo limitado com outras pessoas e coisas exteriores ao indivduo que se torna consciente; ela , ao mesmo tempo, conscincia da natureza que, inicialmente, se apresenta aos homens como um poder totalmente estranho, onipo tente e inabalvel, com o qual os homens se relacionam de um modo puramen-te animal e diante do qual se deixam impressionar como o gado; , desse modo, uma conscincia puramente animal da natureza (religio natural)b e, por outro lado, a conscincia da necessidade de firmar relaes com os indivduos que o cercam constitui o comeo da conscincia de que o ho-mem definitivamente vive numa sociedade. Esse comeo algo to animal quanto a prpria vida social nessa fase; uma mera conscincia gregria, e o homem se diferencia do carneiro, aqui, somente pelo fato de que, no homem, sua conscincia toma o lugar do instinto ou de que seu instinto um instinto consciente.c Essa conscincia de carneiro ou conscincia tribal obtm seu desenvolvimento e seu aperfeioamento ulteriores por meio da produtividade aumentada, do incremento das necessidades e do aumento da populao, que a base dos dois primeiros. Com isso, desenvolve-se a diviso do trabalho, que originalmente nada mais era do que a diviso do tra ba lho no ato sexual e, em seguida, diviso do trabalho que, em consequn-cia de disposies naturais (por exemplo, a fora corporal), necessidades, ca sualidades etc. etc.d, desenvolve-se por si prpria ou naturalmente. A diviso do trabalho s se torna realmente diviso a partir do momento em que surge uma diviso entre trabalho material e [trabalho] espiritual.e a partir desse momento, a conscincia pode realmente imaginar ser outra coisa diferente da conscincia da prxis existente, representar algo realmente sem representar algo real a partir de ento, a conscincia est em condies de emancipar-se do mundo e lanar-se construo da teoria, da teologia, da

    a Minha relao com meu ambiente a minha conscincia. (S. m.) Onde existe uma relao, ela existe para mim; o animal no se relaciona com nada e

    no se relaciona absolutamente. Para o animal, sua relao com outros no existe como relao. (a. m.)

    b precisamente porque a natureza ainda se encontra pouco modificada historica-mente. (a. m.)

    c V-se logo, aqui: essa religio natural ou essa relao determinada com a natureza, condicionada pela forma da sociedade e vice-versa. Aqui, como em toda parte, a identidade entre natureza e homem aparece de modo que a relao limitada dos homens com a natureza condiciona sua relao limitada entre si, e a relao limitada dos homens entre si condiciona sua relao limitada com a natureza. (a. m.)

    d Os homens desenvolvem a conscincia no interior do desenvolvimento histrico real. (S. m.)

    e Primeira forma dos idelogos, sacerdotes, coincide. (a. m.)

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    Karl Marx e Friedrich Engels

    filosofia, da moral etc. puras. Mas mesmo que essa teoria, essa teologia, essa filosofia, essa moral etc. entrem em contradio com as relaes exis-tentes, isto s pode se dar porque as relaes sociais existentes esto em contradio com as foras de produo existentes o que, alis, pode se dar tambm num determinado crculo nacional de relaes,a uma vez que a contra dio se instala no nesse mbito nacional, mas entre essa conscincia nacional e a prxis de outras naes, quer dizer, entre a conscincia nacional e a conscincia universal de uma nao (tal como, agora, na Alemanha) e ento que essa nao, porque tal contradio aparece apenas como uma contradio no interior da conscincia nacional, parece se restringir luta contra essa excrescncia nacional precisamente pelo fato de que ela, a nao, a excrescncia em si e para si. Alm do mais, completamente indiferente o que a conscincia sozinha empreenda, pois de toda essa imundcie obte-mos apenas um nico resul tado: que esses trs momentos, a saber, a fora de produo,b o estado social e a conscincia, podem e devem entrar em contradio entre si, porque com a diviso do trabalho est dada a possibili-dade, e at a realidade, de que as atividadesc espiritual e materiald de que a fruio e o trabalho, a produo e o consumo caibam a indivduos dife-rentes, e a possibilidade de que esses momentos no entrem em contradio reside somente em que a diviso do trabalho seja novamente suprassumida [aufgehoben15]. evidente, alm disso, que espectros, nexos, ser supe-rior, conceito, escrpulo so a mera expresso espiritual, idealista, a representao aparente do indivduo isolado, a representao de cadeias e limites muito empricos dentro dos quais se movem o modo de produo da vida e a forma de intercmbio a ele ligada.e

    Com a diviso do trabalho, na qual todas essas contradies esto dadas e que, por sua vez, se baseia na diviso natural do trabalho na famlia e na separao da sociedade em diversas famlias opostas umas s outras, esto dadas ao mesmo tempo a distribuio e, mais precisamente, a distribuio desigual, tanto quantitativa quanto qualitativamente, do trabalho e de seus produtos; portanto, est dada a propriedade, que j tem seu embrio, sua primeira forma, na famlia, onde a mulher e os filhos so escravos do homem. A escravido na famlia, ainda latente e rstica, a primeira propriedade, que aqui, diga-se de passagem, corresponde j definio dos economistas

    a Religies. Os alemes com a ideologia enquanto tal. (a. m.)b 11, 12, 13, 14, 15, 16. (a. m.)c trabalho. (v. m.)d atividade e pensamento, isto , atividade sem pensamento e pensamento sem ativi-

    dade. (S. m.)e Essa expresso idealista dos limites econmicos existentes no apenas puramente

    terica, mas tambm existe na conscincia prtica, quer dizer, a conscincia que se emancipa e est em contradio com o modo de produo existente no forma apenas religies e filosofias, mas tambm Estados. (S. m.)

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    A ideologia alem

    modernos, segundo a qual a propriedade o poder de dispor da fora de trabalho alheia. Alm do mais, diviso do trabalho e propriedade privada so expresses idnticas numa dito com relao prpria atividade aquilo que, noutra, dito com relao ao produto da atividade.

    aAlm disso, com a diviso do trabalho, d-se ao mesmo tempo a contra-dio entre o interesse dos indivduos ou das famlias singulares e o interesse coletivo de todos os indivduos que se relacionam mutuamente; e, sem d-vida, esse interesse coletivo no existe meramente na representao, como interesse geral, mas, antes, na realidade, como dependncia recproca dos indivduos entre os quais o trabalho est dividido. E, finalmente, a diviso do trabalho nos oferece de pronto o primeiro exemplo de que, enquanto os homens se encontram na sociedade natural e, portanto, enquanto h a sepa-rao entre interesse particular e interesse comum, enquanto a atividade, por consequncia, est dividida no de forma voluntria, mas de forma natural, a prpria ao do homem torna-se um poder que lhe estranho e que a ele contraposto, um poder que subjuga o homem em vez de por este ser domi-nado. Logo que o trabalho comea a ser distribudo, cada um passa a ter um campo de atividade exclusivo e determinado, que lhe imposto e ao qual

    a precisamente dessa contradio do interesse particular com o interesse coletivo que o interesse coletivo assume, como Estado, uma forma autnoma, separada dos reais interesses singulares e gerais e, ao mesmo tempo, como comunidade ilusria, mas sempre fundada sobre a base real [realen] dos laos existentes em cada conglo-merado familiar e tribal, tais como os laos de sangue, a linguagem, a diviso do trabalho em escala ampliada e demais interesses e em especial, como desenvolvere-mos mais adiante, fundada sobre as classes j condicionadas pela diviso do trabalho, que se isolam em cada um desses aglomerados humanos e em meio aos quais h uma classe que domina todas as outras. Da se segue que todas as lutas no interior do Estado, a luta entre democracia, aristocracia e monarquia, a luta pelo direito de voto etc. etc., no so mais do que formas ilusrias em geral, a forma ilusria da comunidade - nas quais so travadas as lutas reais entre as diferentes classes (algo de que os tericos alemes sequer suspeitam, muito embora lhes tenha sido dada orientao suficiente nos Deutsch-Franzsische Jahrbcher e nA sagrada famlia), e, alm disso, segue-se que toda classe que almeje dominao, ainda que sua dominao, como o caso do proletariado, exija a superao de toda a antiga forma de socieda-de e a superao da dominao em geral, deve primeiramente conquistar o poder poltico, para apresentar seu interesse como o interesse geral, o que ela no primeiro instante se v obrigada a fazer. justamente porque os indivduos buscam apenas seu interesse particular, que para eles no guarda conexo com seu interesse coleti-vo, que este ltimo imposto a eles como um interesse que lhes estranho e que deles independe, por sua vez, como um interesse geral especial, peculiar; ou, ento, os prprios indivduos tm de mover-se em meio a essa discordncia, como na democracia. Por outro lado, a luta prtica desses interesses particulares, que se contrapem constantemente e de modo real aos interesses coletivos ou ilusoriamente coletivos, tambm torna necessrio a ingerncia e a conteno prticas por meio do ilusrio interesse geral como Estado. (a. m.)

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    Karl Marx e Friedrich Engels

    no pode escapar; o indivduo caador, pescador, pastor ou crtico crtico, e assim deve permanecer se no quiser perder seu meio de vida ao passo que, na sociedade comunista, onde cada um no tem um campo de atividade exclusivo, mas pode aperfeioar-se em todos os ramos que lhe agradam, a sociedade regula a produo geral e me confere, assim, a possibilidade de hoje fazer isto, amanh aquilo, de caar pela manh, pescar tarde, noite dedicar-me criao de gado, criticar aps o jantar, exatamente de acordo com a minha vontade, sem que eu jamais me torne caador, pescador, pastor ou crtico.a Esse fixar-se da atividade social, essa consolidao de nosso pr-prio produto num poder objetivo situado acima de ns, que foge ao nosso controle, que contraria nossas expectativas e aniquila nossas conjeturas, um dos principais momentos no desenvolvimento histrico at aqui reali-zadob. O poder social, isto , a fora de produo multiplicada que nasce da cooperao dos diversos indivduos condicio nada pela diviso do trabalho, aparece a esses indivduos, porque a prpria cooperao no voluntria mas natural, no como seu prprio poder unificado, mas sim como uma potncia estranha, situada fora deles, sobre a qual no sabem de onde veio nem para onde vai, uma potncia, portanto, que no podem mais controlar e que, pelo contrrio, percorre agora uma sequncia particular de fases e etapas de desenvolvimento, independente do querer e do agir dos homens e que at mesmo dirige esse querer e esse agir.c

    Seno, como poderia, por exemplo, ter a propriedade uma histria, assu-mir diferentes formas, e a propriedade da terra de acordo com os diferen-tes pressupostos em questo ser impelida, na Frana, do parcelamento

    a O comunismo no para ns um estado de coisas [Zustand] que deve ser instaurado, um Ideal para o qual a realidade dever se direcionar. Chamamos de comunismo o movimento real que supera o estado de coisas atual. As condies desse movimento [devem ser julgadas segundo a prpria realidade efetiva. (S. m.)] resultam dos pressu-postos atualmente existentes. (a. m.)

    b e na propriedade, que, sendo inicialmente uma instituio feita pelos prprios homens, no tarda a imprimir sociedade um rumo prprio, de forma alguma pretendido por seus fundadores e visvel a todo aquele que no se encontre enredado na Autocons-cincia ou no nico. (S. m.)

    c essa alienao [Entfremdung]16 para usarmos um termo compreensvel aos filsofos, s pode ser superada, evidentemente, sob dois pressupostos prticos. Para que ela se torne um poder insuportvel, quer dizer, um poder contra o qual se faz uma revoluo, preciso que ela tenha produzido a massa da humanidade como absolutamente sem propriedade e, ao mesmo tempo, em contradio com um mundo de riqueza e de cultura existente, condies que pressupem um grande aumento da fora produtiva, um alto grau de seu desenvolvimento e, por outro lado, esse desenvolvimento das foras produtivas (no qual j est contida, ao mesmo tempo, a existncia emprica humana, dada no no plano local, mas no plano histrico-mun dial) um pressuposto prtico, absolutamente necessrio, pois sem ele apenas se generaliza a escassez e, por-tanto, com a carestia, as lutas pelos gneros necessrios recomeariam e toda a velha imundice acabaria por se restabelecer; alm disso, apenas com esse desenvolvimento

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    A ideologia alem

    centralizao em poucas mos e, na Inglaterra, da centralizao em poucas mos ao parcelamento, como hoje realmente o caso? Ou como se explica que o comrcio, que no mais do que a troca de produtos de indivduos e pases diferentes, domine o mundo inteiro por meio da relao de oferta e procura uma relao que, como diz um economista ingls, paira sobre a terra igual ao destino dos antigos e distribui com mo invisvel a felicidade e a desgraa entre os homens, funda e destri imprios, faz povos nascerem e desaparecerem enquanto com a superao da base, da propriedade pri-vada, com a regulao comunista da produo e, ligada a ela, a supresso da relao alienada dos homens com seus prprios produtos, o poder da relao de oferta e procura reduz-se a nada e os homens retomam seu poder sobre a troca, a produo e o modo de seu relacionamento recproco?a

    A forma de intercmbio, condicionada pelas foras de produo exis-tentes em todos os estgios histricos precedentes e que, por seu turno, as condiciona, a sociedade civil; esta, como se deduz do que foi dito acima, tem por pressuposto e fundamento a famlia simples e a famlia composta, a assim chamada tribo17, cujas determinaes mais precisas foram expostas anteriormente. Aqui j se mostra que essa sociedade civil o verdadeiro foco e cenrio de toda a histria, e quo absurda a concepo histrica anterior que descuidava das relaes reais, limitando-se s pomposas aes dos prncipes e dos Estados.

    bAt o momento consideramos principalmente apenas um aspecto da atividade humana, o trabalho dos homens sobre a natureza. O outro aspecto, o trabalho dos homens sobre os homens [...]18

    universal das foras produtivas posto um intercmbio universal dos homens e, com isso, produzido simultaneamente em todos os povos o fenmeno da massa sem propriedade (concorrncia universal), tornando cada um deles dependente das revo-lues do outro; e, finalmente, indivduos empiricamente universais, histrico-mundiais, so postos no lugar dos indivduos locais. Sem isso, 1) o comunismo poderia existir apenas como fenmeno local; 2) as prprias foras do intercmbio no teriam podido se desenvolver como foras universais e, portanto, como foras insuportveis; elas teriam permanecido como circunstncias domstico-supersticiosas; e 3) toda ampliao do intercmbio superaria o comunismo local. O comunismo, empiricamente, apenas possvel como ao repentina e simultnea dos povos dominantes, o que pressupe o desenvolvimento universal da fora produtiva e o intercmbio mundial associado a esse desenvolvimento. (a. m.)

    a Alm disso, a massa dos simples trabalhadores fora de trabalho massiva, excluda do capital ou de qualquer outra satisfao limitada pressupe o mercado mundial e tambm a perda, no mais temporria e devida concorrncia, desse prprio tra-balho enquanto uma fonte segura de vida. O proletariado [pressupe, portanto, a histria universal como existncia emprica prtica. (S.m.)] s pode, portanto, existir histrico-mundialmente, assim como o comunismo; sua ao s pode se dar como existncia histrico-mundial; existncia histrico-mundial dos indivduos, ou seja, existncia dos indivduos diretamente vinculada histria mundial. (a. m.)

    b Intercmbio e fora produtiva. (a. m.)

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    Origem do Estado e relao do Estado com a sociedade civilA histria nada mais do que o suceder-se de geraes distintas, em que cada uma delas explora os materiais, os capitais e as foras de produo a ela transmitidas pelas geraes anteriores; portanto, por um lado ela con-tinua a atividade anterior sob condies totalmente alteradas e, por outro, modifica com uma atividade completamente diferente as antigas condies, o que ento pode ser especulativamente distorcido, ao converter-se a his-tria posterior na finalidade da anterior, por exemplo, quando se atribui descoberta da Amrica a finalidade de facilitar a irrupo da Revoluo Francesa19, com o que a histria ganha finalidades parte e torna-se uma pessoa ao lado de outras pessoas (tais como: Autoconscincia, Crtica, nico etc.), enquanto o que se designa com as palavras destinao, finalidade, ncleo, ideia da histria anterior no nada alm de uma abstrao da histria posterior, uma abstrao da influncia ativa que a his-tria anterior exerce sobre a posterior.

    Ora, quanto mais no curso desse desenvolvimento se expandem os crculos singulares que atuam uns sobre os outros, quanto mais o isolamento primitivo das nacionalidades singulares destrudo pelo modo de produo desenvol-vido, pelo intercmbio e pela diviso do trabalho surgida de forma natural entre as diferentes naes, tanto mais a histria torna-se histria mundial, de modo que, por exemplo, se na Inglaterra inventada uma mquina que na ndia e na China tira o po a inmeros trabalhadores e subverte toda a forma de existncia desses imprios, tal inveno torna-se um fato histrico--mundial; ou pode-se demonstrar o significado histrico-mundial do acar e do caf no sculo xix pelo fato de que a falta desse produto, resultado do bloqueio continental20 napolenico, provocou a sublevao dos alemes contra Napoleo e foi, portanto, a base real [reale] das glorio sas guerras de libertao de 1813. Segue-se da que essa transformao da histria em histria mundial no um mero ato abstrato da autocons cincia, do esprito mundial ou de outro fantasma metafsico qualquer, mas sim uma ao plenamente material, empiricamente verificvel, uma ao da qual cada indivduo fornece a prova, na medida em que anda e para, come, bebe e se veste.

    Na histria que se deu at aqui sem dvida um fato emprico que os indivduos singulares, com a expanso da atividade numa atividade histrico-mundial, tornaram-se cada vez mais submetidos a um poder que lhes estranho (cuja opresso eles tambm representavam como um ardil do assim chamado esprito universal etc.), um poder que se torna cada vez maior e que se revela, em ltima instncia, como mercado mundial. Mas do mesmo modo empiricamente fundamentado que, com o desmoronamento do estado de coisas existente da sociedadea por obra da revoluo comu-

    a Sobre a produo da conscincia. (a. m.)

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    A ideologia alem

    nista (de que trataremos mais frente) e com a superao da propriedade privada, superao esta que idntica quela revoluo, esse poder, que para os tericos alemes to misterioso, dissolvido e ento a libertao de cada indivduo singular atingida na mesma medida em que a histria transforma-se plenamente em histria mundial. De acordo com o j exposto, claro que a efetiva riqueza espiritual do indivduo depende inteiramente da riqueza de suas relaes reais. Somente assim os indivduos singulares so libertados das diversas limitaes nacionais e locais, so postos em con-tato prtico com a produo (incluindo a produo espiritual) do mundo inteiro e em condies de adquirir a capacidade de fruio dessa multi-facetada produo de toda a terra (criaes dos homens). A dependncia multifacetada, essa forma natural da cooperao histrico-mundial dos indi-vduos, transformada, por obra dessa revoluo comunista, no controle e domnio consciente desses poderes, que, criados pela atuao recproca dos homens, a eles se impuseram como poderes completamente estra-nhos e os dominaram. Essa viso pode, agora, ser apreendida de modo especulativo-idealista, isto , de modo fantstico, como autocriao do gnero (a sociedade como sujeito) de maneira que a sequncia sucessi-va de indivduos em conexo uns com os outros representada como um nico indivduo que realiza o mistrio de criar a si mesmo. Mostra-se aqui, certamente, que os indivduos fazem-se uns aos outros, fsica e espiritualmen-te, mas no fazem a si mesmos, seja no sentido de So Brunoa, tampouco no sentido do nico, do homem feito.

    Finalmente, da concepo de histria exposta acima obtemos, ainda, os seguintes resultados: 1) No desenvolvimento das foras produtivas advm uma fase em que surgem foras produtivas e meios de intercmbio que, no marco das relaes existentes, causam somente malefcios e no so mais foras de produo, mas foras de destruio (maquinaria e dinheiro) e, ligada a isso, surge uma classe que tem de suportar todos os fardos da socie-dade sem desfrutar de suas vantagens e que, expulsa da sociedade, forada mais decidida oposio a todas as outras classes; uma classe que configura a maioria dos membros da sociedade e da qual emana a conscincia da ne-cessidade de uma revoluo radical, a conscincia comunista, que tambm pode se formar, naturalmente, entre as outras classes, graas percepo da

    a e em razo de que no conceito (1) de personalidade (2) ocorre (3) em geral (4) que ele mesmo se coloque como limitado (o que ele consegue realizar consideravelmente), e que ele novamente (5) venha a suprimir [aufzuheben] (6) essa limitao que ela instaura (7) (no por si mesma, nem de maneira geral, tambm no por seu conceito, mas) por sua essncia (8) universal (9), pois justamente essa essncia apenas o resultado de sua autodiferenciao (10) interna (11), de sua atividade, p. 87-8 [do artigo Caracterizao de Ludwig Feuerbach]. Ainda no sentido do nico, do homem feito.

    (O senhor Bruno no chega dzia). (a. m.)

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    Karl Marx e Friedrich Engels

    situao dessa classe; 2) que as condies sob as quais determinadas foras de produo podem ser utilizadas so as condies da dominao de uma determinada classe da sociedadea, cujo poder social, derivado de sua riqueza, tem sua expresso prtico-idealista na forma de Estado existente em cada caso; essa a razo pela qualb toda luta revolucionria dirige-se contra uma classe que at ento dominouc; 3) que em todas as revolues anteriores a forma da atividade permaneceu intocada, e tratava-se apenas de instaurar uma outra forma de distribuio dessa atividade, uma nova distribuio do trabalho entre outras pessoas, enquanto a revoluo comunista volta-se contra a forma da atividade existente at ento, suprime o trabalhod e supera [aufhebt] a dominao de todas as classes ao superar as prprias classes, pois essa revoluo realizada pela classe que, na sociedade, no mais conside-rada como uma classe, no reconhecida como tal, sendo j a expresso da dissoluo de todas as classes, nacionalidades etc., no interior da sociedade atual e 4) que tanto para a criao em massa dessa conscincia comunista quanto para o xito da prpria causa faz-se necessria uma transformao massiva dos homens, o que s se pode realizar por um movimento prtico, por uma revoluo; que a revoluo, portanto, necessria no apenas porque a classe dominante no pode ser derrubada de nenhuma outra forma, mas tambm porque somente com uma revoluo a classe que derruba detm o poder de desembaraar-se de toda a antiga imundcie e de se tornar capaz de uma nova fundao da sociedade21.

    Essa concepo da histria consiste, portanto, em desenvolver o processo real de produoe a partir da produo material da vida imediata e em con-ceber a forma de intercmbio conectada a esse modo de produo e por ele engendrada, quer dizer, a sociedade civil em seus diferentes estgios, como o fundamento de toda a histria, tanto a apresentando em sua ao como Estado como explicando a partir dela o conjunto das diferentes criaes tericas e formas da conscincia religio, filosofia, moral etc. etc.f e em seguir o seu processo de nascimento a partir dessas criaes, o que ento torna possvel, naturalmente, que a coisa seja apresentada em sua totalida-de (assim como a ao recproca entre esses diferentes aspectos). Ela no tem necessidade, como na concepo idealista da histria, de procurar uma categoria em cada perodo, mas sim de permanecer constantemente sobre

    a 2) cada fase de desenvolvimento das foras de produo serve de base dominao de uma determinada classe da sociedade. (v. m.)

    b No ltimo estgio da sociedade burguesa. (S. m.)c Que as pessoas esto interessadas em manter o atual estado de produo. (a. m.)d a forma moder[na] da atividade sob a dominao da [...]. (S. m.)e Feuerbach. (a. m.) f explicando a sociedade civil em suas diferentes fases e em seu reflexo prtico-idealista, o

    Estado, assim como o conjunto dos diversos produtos e formas tericas da conscincia, da religio, da filosofia, da moral e