3
A noção de progresso desenvolvida no coração do positivismo está absolutamente conectada com o tempo linear, com o antes e o depois, com um encadeamento mecânico dos efeitos e das causas. Para compreender a distinção fundamental com relação ao marxismo é preciso considerar também a diferença com relação à concepção de história e dos encadeamanentos transtemporais. Os trechos que seguem são transcritos do livro de Daniel Bensaid, “Marx, o Intempestivo:grandezas e misérias de uma aventura crítica”, editado pela Civilização Brasileira em 1999. p. 15-16 “Quando se remove a crosta das ortodoxias, a hora é propícia para o despertar de virtualidades há muito desprezadas ou ignoradas. […] Privilegiamos dois outros grandes bateleiros: Walter Benjamin e Antonio Gramsci. Seus destinos trágicos de outsiders permitiram-lhes ouvir o que permanecia inaudível para a maioria dos discípulos declarados, cheios de pressa em traduzir as palavras insólitas de Marx numa linguagem familiar, que é forçosamente a da ideologia dominante. Contra o culto sonolento do progresso e suas promessas quase sempre ilusórias, ambos vão ao encontro de Marx por caminhos notavelmente convergentes, árduos e pouco freqüentados.” Nestas companhias, Bensaid se propõe a lançar luzes sobre o que a teoria de Marx não é. Ela não é: p. 13-14 “[…] uma filosofia especulativa da história. Desconstrução declarada da História universal, a teoria de Marx dá passagem a uma história que não promete qualquer salvação, não repara absolutamente a injustiça, não mordisca sequer nossa nuca. […] O Capital põe em ação uma nova representação da história e uma organização conceitual do tempo como relação social: ciclos e rotações, ritmos e crises, momentos e contratempos estratégicos. A antiga filosofia da história extingue-se, por uma lado, na crítica

Marx Progresso

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Marx e o progresso.

Citation preview

Page 1: Marx Progresso

A noção de progresso desenvolvida no coração do positivismo está absolutamente conectada com o tempo linear, com o antes e o depois, com um encadeamento mecânico dos efeitos e das causas. Para compreender a distinção fundamental com relação ao marxismo é preciso considerar também a diferença com relação à concepção de história e dos encadeamanentos transtemporais.

Os trechos que seguem são transcritos do livro de Daniel Bensaid, “Marx, o Intempestivo:grandezas e misérias de uma aventura crítica”, editado pela Civilização Brasileira em 1999.

p. 15-16

“Quando se remove a crosta das ortodoxias, a hora é propícia para o despertar de virtualidades há muito desprezadas ou ignoradas. […] Privilegiamos dois outros grandes bateleiros: Walter Benjamin e Antonio Gramsci. Seus destinos trágicos de outsiders permitiram-lhes ouvir o que permanecia inaudível para a maioria dos discípulos declarados, cheios de pressa em traduzir as palavras insólitas de Marx numa linguagem familiar, que é forçosamente a da ideologia dominante. Contra o culto sonolento do progresso e suas promessas quase sempre ilusórias, ambos vão ao encontro de Marx por caminhos notavelmente convergentes, árduos e pouco freqüentados.”

Nestas companhias, Bensaid se propõe a lançar luzes sobre o que a teoria de Marx não é. Ela não é:

p. 13-14

“[…] uma filosofia especulativa da história. Desconstrução declarada da História universal, a teoria de Marx dá passagem a uma história que não promete qualquer salvação, não repara absolutamente a injustiça, não mordisca sequer nossa nuca. […] O Capital põe em ação uma nova representação da história e uma organização conceitual do tempo como relação social: ciclos e rotações, ritmos e crises, momentos e contratempos estratégicos. A antiga filosofia da história extingue-se, por uma lado, na crítica do fetichismo mercantil e, por outro, na subversão política da ordem estabelecida.A teoria de Marx não é tampouco uma sociologia empírica das classes. Contra a racionalidade positivista, que ordena e classifica, organiza inventário e repertório, apazigua e pacifica, ela retira a dinâmica do conflito social e torna inteligível a fantasmagoria mercantil. Não que os diversos antagonismos (sexuais, hierárquicos, nacionais) sejam redutíveis à relação de classe. A diagonal de classe religa-os e condiciona sem confudindi-los. […]A teoria de Marx não é, enfim, uma ciência positiva da economia de acordo com o paradigma dominante da física clássica. Contemporânea das ciências da evolução e dos progressos da termodinâmica, ela resiste à racionalidade fragmentada e unilateral da divisão do trabalho científico. […] Marx encontra as ambições sintéticas da velha metafísica, que ele reivindica de maneira explícita como ‘ciência alemã’. Essa tradição ressucitada permite-lhe abordar as lógicas não lineares, as leis tendenciais, as necessidades condicionais daquilo que Gramsci designará sutilmente como uma nova imanência.[…] Digamos sinteticamente: não um sistema doutrinário, mas uma teoria crítica da luta social e da mudança do mundo.”

Page 2: Marx Progresso

Sobre o progresso:

p. 56-57

“Se Marx recusa, desde 1858, a “concepção abstrata de progresso”, como o concebe ele? Toda a sua lógica opõe-se a uma visão unilateralmente quantitativa. A redução das relações humanas à frieza das relações monetárias e o simples empilhamento de mercadorias não se constituiriam em prova de civilização. Necessário, o mero desenvolvimento das forças produtivas não preenche uma condição suficiente. Os critérios mais freqüentes invocados são antes sociais que técnicos: as relações do homem com a mulher (nos Manuscritos de 1844), a conquista de um tempo liberado criativo contra o tempo servil e alienado do trabalho obrigatório (nos Grundrisse), o enriquecimento da espécie e da personalidade individual pelo desenvolvimento e diversificação das necessidades.”

p. 99

“O incremento da produção, das ciências, das técnicas revela necessidades e capacidades desconhecidas, faz refletir um espectro suntuoso de gostos, de criações, de diferenças; mas a reificação e a alienação fazem da humanidade uma plebe perplexa diante do espetáculo de seus próprios fetiches. A produtividade aumentada do trabalho libera tempo para a criatividade individual e coletiva, propícia a novas formas de convívio e de lucidez; mas a medida “miserável” de qualquer riqueza e de qualquer troca pelo tempo de trabalho abstrato transforma a incrível libertação potencial em desemprego, em exclusões, em miséria física e moral.A grande desilusão do progresso pode conduzir à contemplação estúpida de formas caleidoscópicas de uma história sem rima nem razão. Só haveria lugar para a indignação moral ou o gozo estético, para o grito sem amanhã ou para o silencia enigmático. Se não resta senão o furor da luta, como escapar ao caos das batalhas? Como salvar um princípio de inteligibilidade e de juízo? Sem dúvida começando por reconsiderar os critérios de progresso apanhado na armadilha de suas próprias contradições. Os que Marx propõe não são tão ruins: a universalização histórica efetiva, o enriquecimento do indivíduo e da espécie pela diversificação das necessidades e das faculdades, a supressão do trabalho forçado em favor de um tempo de criação livre, a transformação da relação social e amorosa.[…] Por que estes em vez de outros? Simplesmente porque esses valores são o produto imanente da relação social da humanidade com a natureza e com ela mesma, o resultado histórico e cultural de sua própria humanização, à exclusão de qualquer transcendência divina. Fatores e valores, moral e política, responsabilidade e convicção não andam separadamente numa indiferença recíproca. Rejeitando radicalmente o fetichismo histórico, Marx libera virtualialidades mais prometedoras que a pobre dialética das forças produtivas e das relações de produção.