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Marxismo e literatura: breve roteiro Marxism and literature: a brief guide CELSO FREDERICO * RESUMO: O PENSAMENTO MARXISTA GEROU DIFERENTES ENFOQUES PARA ESTUDAR A LITERATU- RA, A PARTIR DA INTERPRETAÇÃO OFICIAL COMUNISTA DO FENÔMENO ARTÍSTICO, O “REALISMO SOCIALISTA”, TAL COMO DEFINIDO A PARTIR DA DÉCADA DE 30. ENTRE ESSAS DIVERSAS INTER- PRETAÇÕES, ESTÃO AS DESENVOLVIDAS POR PENSADORES E ARTISTAS COMO BRECHT, CALDWELL, BAKHTIN, GRAMSCI, BENJAMIN, ADORNO E LUKÁCS, TODAS COM UM PONTO COMUM: A PROCU- RA DAS RELAÇÕES QUE DEVEM EXISTIR ENTRE A LITERATURA E A VIDA SOCIAL. O OBJETIVO DESTE ARTIGO É ESTABELECER UMA BREVE SÍNTESE DO PENSAMENTO MARXISTA SOBRE A ARTE AO LONGO DO SÉCULO XX. ABSTRACT: THE MARXIST THOUGHT HAS ENGENDERED DIFFERENT APPROACHES TO THE STUDY OF LITE- RATURE, FROM THE OFFICIAL COMMUNIST INTERPRETATION OF THE ARTISTIC PHENOMENON, THE SO- -CALLED “SOCIALIST REALISM”, ON. AMONG THESE VARIOUS INTERPRETATIONS ARE THOSE DEVELOPED BY THINKERS AND ARTISTS SUCH AS BRECHT, CALDWELL, BAKHTIN, GRAMSCI, BENJAMIN, ADORNO AND LUKÁCS, ALL OF THEM PRESENTING A COMMON THREAD: THE SEARCH OF THE RELATIONSHIP THAT SHOULD EXIST BETWEEN LITERATURE AND SOCIAL LIFE. THE PURPOSE OF THIS ARTICLE IS TO PROVIDE A BRIEF OVERVIEW OF MARXIST THOUGHT ON ART THROUGHOUT THE PAST 20TH CENTURY. * Escola de Comunicação e Arte (ECA), USP. PALAVRAS-CHAVE: MARXISMO E FENÔMENO ARTÍSTICO, LITERATURA E VIDA SOCIAL, MARXISMO E LITERATURA KEYWORDS: MARXISM AND THE ARTISTIC PHENOMENON, LITERATURE AND SOCIAL LIFE, MARXISM AND LITERATURE Via Atlantica 23.indd 51 27/01/2014 08:52:55

Marxismo e Literatura - Breve Roteiro

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Texto de Celso Frederico para a Revista Via Atlântica (Qualis A1 - USP)

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  • Marxismo e literatura: breve roteiroMarxism and literature: a brief guide

    celSo FRedeRico *

    Resumo: o pensamento maRxista geRou difeRentes enfoques paRa estudaR a liteRatu-

    Ra, a paRtiR da inteRpRetao oficial comunista do fenmeno aRtstico, o Realismo

    socialista, tal como definido a paRtiR da dcada de 30. entRe essas diveRsas inteR-

    pRetaes, esto as desenvolvidas poR pensadoRes e aRtistas como bRecht, caldWell,

    bakhtin, gRamsci, benjamin, adoRno e lukcs, todas com um ponto comum: a pRocu-

    Ra das Relaes que devem existiR entRe a liteRatuRa e a vida social. o objetivo deste

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    -called socialist Realism, on. among these vaRious inteRpRetations aRe those developed

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    * Escola de Comunicao e Arte (ECA), USP.

    palavRas-chave: maRxismo e fenmeno aRtstico, liteRatuRa e vida social, maRxismo e

    liteRatuRa

    keyWoRds: maRxism and the aRtistic phenomenon, liteRatuRe and social life, maRxism

    and liteRatuRe

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    Apublicao tardia de importantes obras e cartas em que Marx e Engels re-fletem sobre o fenmeno artstico fez com que os primeiros marxistas no compreendessem o significado da arte e seu papel estratgico no interior da teoria por elas formulada. Quando vrios daqueles textos comearam a ser publicados, a partir da dcada de 30, j havia uma interpretao oficial do fenmeno artstico: a esttica marxista-leninista e seu subproduto, o rea-lismo socialista.

    Essa forma canhestra de realismo procurava diferenciar-se do velho re-alismo, aquele que apresentava uma viso negativa e crtica da vida social burguesa a partir de personagens dilacerados os heris problemticos. A nova sociedade exigia, ao contrrio, uma identificao, uma adeso, expressa atravs do heri positivo e seu entusiasmo na construo do novo mundo. A literatura, assim, tornou-se mera propaganda.

    A arte sovitica, to rica e diversificada, esterilizou-se. O realismo socia-lista, difundido em todo o mundo pelos partidos comunistas, produziu uma literatura maniquesta e caricatural. Reflexos fizeram-se sentir no Brasil, em algumas obras de Jorge Amado, Alina Paim e Dalcdio Jurandir, entre outros.

    Pensando por conta prpria

    A esttica oficial propagada pelo movimento comunista internacional no foi seguida por todos.

    Bertolt Brecht, por exemplo, criou em seu teatro revolucionrio uma forma nova de realismo que recusava a catarse em nome do distanciamento e da refle-xo. Nada, portanto, de identificao entre o pblico e os personagens. Desse modo, Brecht mantinha-se distante tanto do realismo tradicional quanto do socialista, pois a representao teatral no reflete a realidade, no se confunde com ela, e sim permanece distante para, desse modo, poder critic-la.

    Cristhopher Caudwell, por sua vez, no livro Iluso e realidade, rompeu com o prprio realismo ao estudar um tema at ento indito entre os tericos marxistas: a lrica. A poesia, segundo ele, no reflete a realidade, mas a subje-tividade isolada do poeta, pois brota dos mecanismos mais obscuros do psi-quismo. Para interpret-la, Caudwell procurou de forma pioneira aproximar Freud de Marx, muito antes de Erich Fromm e Herbert Marcuse.

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    Alm desses autores, h outros trs que nos interessam: o russo Mikhail Bakhtin, o italiano Antonio Gramsci e o alemo Walter Benjamin.

    I) Mikhail Bakhtin conseguiu sobreviver aos expurgos stalinistas e tornar--se conhecido no Ocidente a partir dos anos 70. Seu livro, Marxismo e filosofia da linguagem, continua exercendo influncia nos estudos de lingstica.

    Bakhtin procurou assinalar a distncia do marxismo em relao tanto ao subjetivismo idealista, que insere a lngua no psiquismo individual, quanto, principalmente, ao estruturalismo de Saussure, o objetivismo abstrato, que concebe a lngua como uma estrutura fixa, anterior e alheia aos indivduos concretos que falam. Contra esta ltima, Bakhtin prope a inverso, a passa-gem do privilgio concedido langue ao estudo da parole: o uso que os falantes fazem da linguagem. Assim, a lngua vista como uma atividade social, ideo-lgica a arena onde se desenvolve a luta de classes - cujo elemento chave a enunciao, a interao social dos falantes. Ela no , portanto, um sistema estvel e homogneo, mas uma atividade social, dialgica.

    A crtica ao estruturalismo vale tambm para as idias que Stalin iria defen-der, em 1950, no texto Sobre o marxismo na lingustica. Interessado em afirmar a existncia de um lngua nacional nica na URSS, Stalin critica a tese se-gundo a qual a lngua pertence esfera da superestrutura, ligando-se, assim diretamente s classes sociais: cada uma delas desenvolveria a sua prpria linguagem. O desejo de impor uma lngua a todo o povo da Unio Sovitica e subordinar a ela os dialetos (e qualquer movimento separatista...), fez com que ele compreendesse a lngua uma estrutura estvel, alheia aos embates sociais, pois possuiria um carter harmonioso e racional.

    A interpretao bakhtiniana que no atribui lngua o pretendido car-ter harmonioso - guarda ntimo parentesco com suas incurses na teoria e crtica literrias.

    Altamirano e Sarlo dividem a teoria literria do nosso autor em dois momen-tos distintos. O primeiro Bakhtin, no texto O mtodo formal, de 1928, trouxe uma inovao no campo marxista ao enfocar as relaes da literatura com a vida social. No se trata mais de sua compreenso como um produto, isto , como resultado das determinaes sociais (classe social etc.) que tem no escritor o seu porta-voz. A literatura vista por ele como produo, como forma ideolgica: O reflexo literrio no um reflexo da realidade social, mas sim do mundo dos discursos que, por

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    sua vez, refletiria o real. A relao entre a literatura e as prticas sociais tem como mediador as ideologias (ALTAMIRANO e SARLO, 1993, p. 40).

    J o segundo Bakhtin, que se inicia com o texto O discurso no romance, de 1934-5, coloca em primeiro plano a representao literria da linguagem. Ocorre, assim, um deslocamento da nfase da literatura como representao discursiva do social literatura como representao dos discursos sociais. (ALTAMIRANO e SARLO, 1993, p. 41).

    Como espao de interseco dos discursos sociais, o romance de Dos-toivski encontra a sua caracterstica bsica, que o distingue da pica. Se nesta, temos o discurso nico que se impe no relato; em Dostoivski, ao contrrio, temos uma hibridizao, uma fuso de linguagens, uma pluralidade de dis-cursos ou, para usarmos a expresso consagrada, uma polifonia. Trata-se de uma arte dialgica: o autor coloca-se como um organizador que d voz aos seus mltiplos personagens, rompendo assim com o texto monolgico em que o autor ou se sobrepe ao personagem ou faz dele o seu nico porta-voz. A pluralidade das vozes, tal como ocorria na msica de seu amigo Chostak-vitch, faz o romance adquirir uma complexidade polifnica.

    Igualmente original o estudo dedicado a Rabelais, em que Bakhtin enfoca a arte popular e seu esprito anrquico e crtico valorizando, assim, o riso, a carnavalizao, a pardia, a blasfmia etc. Trata-se de uma novidade na tradi-o hegeliano-marxista, lembrando que para Hegel (na esteira de Aristteles) a comdia no deveria ser considerada arte, pois no educa. No por acaso, os tericos marxistas mantiveram-se alheios comdia. Bakhtin, em 1940, exaltava o romance grotesco, no mesmo momento em que a ortodoxia sta-linista impunha o realismo socialista e seus edificantes e bem comportados heris positivos.

    Com Bakhtin, o marxismo passou a valorizar a cultura popular e no s as obras eruditas. Esse olhar para os de baixo e a valorizao do potencial crtico da cultura popular era compartilhado no perodo por outro autor: Antonio Gramsci.

    II) Preso nos crceres fascistas, Gramsci desenvolveu a famosa concepo da arte nacional-popular. A crtica ao cosmopolitismo desenraizado difundido pela igreja catlica, s concepes estetizantes de alguns historiadores da arte e s teorias que identificavam arte e linguagem, levou Gramsci a incluir o estudo da literatura no interior da cultura. Assim, em vez de lutar por uma

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    nova arte, ele props a formulao de uma nova cultura capaz de reconciliar os artistas como o povo. Gramsci no se limitou, como Bakhtin, a apontar os aspectos crticos da cultura popular, mas como bom leninista, pretendeu elevar o nvel de conscincia do povo para, desse modo, superar os limites da cultura popular uma cultura que reflete no s elementos crticos, mas tambm as limitaes de uma populao que no teve acesso educao e boa literatura.

    A reconciliao proposta entre arte, nao e povo pressupe uma vasta re-novao cultural. O pensamento de Gramsci, portanto, voltou-se prioritaria-mente para a criao de uma poltica cultural. A literatura e as questes estticas so vistas a partir dessa preocupao educacional, desse desejo de elevar a conscincia das massas. Nessa perspectiva, o que interessa verdadeiramente o valor cultural e no apenas o valor esttico da obra literria.

    Ao propor a distino entre valor cultural/valor esttico, Gramsci acenou para um campo de pesquisa absolutamente original dentro do marxismo: o es-tudo das pequenas obras literrias, aquelas que se afastam do cnon estabelecido pelos especialistas. Estudando a literatura italiana, Gramsci observou que as obras primas so raras e que, ao lado delas, existem centenas de pequenas obras. As grandes obras no nascem do nada: elas pressupem um caldo de cultura formado pelas obras midas que constituem o solo comum da literatura.

    Essa literatura mida, para Gramsci, pode ter pouco valor esttico, mas pode ter um valor cultural imenso, quando expressa o modo de vida de se-tores significativos da sociedade. Por isso, Gramsci prope, no uma teoria esttica, mas uma sociologia da atividade literria.

    Tal proposta abriu o caminho para pesquisas das manifestaes artsticas populares e teve reflexos diretos no materialismo cultural dos crticos in-gleses como Williams, Hoggart e Thompson. Recentemente, a guinada cul-tural inaugurada por Gramsci foi radicalizada e despolitizada nos chamados estudos culturais, centrados nas irredutveis diferenas das minorias. As polticas da identidade consagraram-se academicamente, reivindicando a especificidade da literatura de gnero, tnica e queer, criando, assim, uma fragmentao dos estudos literrios. A fixao obsessiva no particular gerou um relativismo exacerbado, um vale tudo, que, ao se insurgir contra o cnon, terminou por negar o universal a possibilidade de uma literatura que fale a todos os homens.

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    III) Os textos de Walter Benjamin, aps o seu suicdio em 1940, ficaram espalhados em diversos pases e boa parte deles s comeou a ser publicada a partir dos anos 60. Desde ento, aquele obscuro pensador tornou-se subita-mente moda acadmica e a disputa pelo verdadeiro significado de sua obra s vem aumentando. Razes para isso no faltam: trata-se de um pensador extremamente original e desconcertante, que absorveu influncias dspares: h um Benjamin amigo de Brecht, que sempre se declarou comunista; h tambm o pensador judeu, amigo do telogo Scholem, que empregou nos estudos literrios a hermenutica usada nos textos sagrados; h, ainda, um Benjamin que frequentava os crculos artsticos vanguardistas e que tinha em grande apreo o surrealismo.

    Um ponto de partida que nos ajuda a entender o pensamento de Benjamin a constatao que partilhava com Brecht da crise da experincia e, com ela, a crise da narrao, esteio do romance clssico. A conscincia dessa crise, prpria da modernidade, produziu o romance moderno (Proust, Kafka), que, semelhana da antiga arte de narrar dos contadores de histria, se caracte-riza pela fragmentao, pelo no acabamento, privilegiando o carter aberto, recusando-se totalizao.

    Benjamin inaugura, assim, dentro do marxismo uma corrente que, privi-legiando a fragmentao, acaba por recusar o primado da totalidade, central na tradio dialtica. Da o emprego reiterado de palavras como fragmento e runas. Inicialmente, em O drama barroco alemo, Benjamin empregou a palavra mosaico para indicar a montagem de partes que livremente constituem um todo, sem necessariamente estarem subordinadas a ele. Depois, inspirando-se em Mallarm, preferiu o termo constelao, para nomear uma forma de com-posio que compara as idias com as estrelas. Ao contrrio da totalidade, que supe uma estrutura fechada, rigidamente hierarquizada, a constelao acena para uma imagem serial.

    Segundo Benjamin, a fragmentao da totalidade pode ser divisada j no sculo XVII, momento em que floresce o drama barroco que elegeu como tema a decomposio, a runa e a morte. Para tratar dessa forma artstica, Benjamin desenvolveu sua teoria da alegoria, aplicada tambm para dar conta da arte no mundo igualmente fragmentado da modernidade. Assim fazendo, Benjamin rompeu com o realismo e sua pretenso de figurar artisticamente a totalidade. Em seu lugar, privilegia a montagem, inspirada no teatro pico de

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    Brecht, que ser empregada em sua grande obra sobre o mundo moderno: Passagens.

    Forma e contedo

    As vrias incurses estticas dos tericos marxistas a partir da dcada de 30 tm como referncia as idias de Lukcs. Curiosamente, muitos deles apiam--se nos seus textos pr-marxistas, em especial A teoria do romance, para critica-rem o realismo.

    Aquele livro assinala a passagem da influncia kantiana, presente em A alma e as formas, para a incorporao de algumas idias hegelianas. De Hegel, Lukcs incorporou a teoria dos gneros literrios que coexistia, paradoxalmente, com a influncia mais decisiva de Kierkegaard autor preso insupervel oposio entre a interioridade da alma e o mundo exterior. justamente essa pretendida opo-sio que orienta o pensamento de Lukcs e de seus seguidores.

    Para ressaltar a especificidade do romance, Lukcs o contrape epopia clssica, momento idlico em que teria existido uma totalidade espontnea, um mundo em que o heri se sentia em casa. Haveria, ento, uma total harmonia en-tre a interioridade do heri e o mundo exterior. Expresso literria de um mundo homogneo, a epopia expressa a imanncia do sentido da vida. A forma artstica reproduz o sentido e a harmonia que envolve o heri e o mundo exterior.

    O romance burgus, ao contrrio, a expresso de uma totalidade cindida. Nela, o heri encontra-se sozinho em seu confronto com a exterioridade - o mundo degradado e hostil. Diante dessa oposio insupervel, o romance realizaria uma reconciliao fictcia entre a interioridade e a exterioridade, ao acenar para uma realidade visionria do mundo que nos adequado. Como projeo imaginria, utpica, o romance recusa a mimese, a semelhana com a alteridade alienada do mundo exterior. O romance, portanto, no um re-flexo, uma cpia do mundo alienado, mas um dever-ser, uma utopia impotente para modificar a realidade. A totalidade cindida, contudo, reagrupada pelo romance, ou melhor, pela sua forma o impulso totalizante que reagrupa numa estrutura significante os elementos desconexos da exterioridade.

    Essa posio pessimista, que mantm o homem em constante afastamento perante um mundo que lhe hostil, e o carter utpico de uma concepo li-

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    terria que privilegia a forma, tiveram uma enorme repercusso. Dois autores desenvolveram suas idias a partir da: Adorno e Goldmann.

    Podemos, sem mais, considerar Adorno um autor marxista? difcil en-quadr-lo nesse rtulo, pois ele sempre se mostrou hostil militncia poltica e sua vasta obra incorpora e modifica influncias tericas dspares. Temas como fetichismo e reificao so centrais em sua obra e a famosa crtica da indstria cultural incompreensvel sem a referncia lei do valor em especial, o predomnio crescente do valor de troca sobre o valor de uso. No mundo alienado da modernidade, a oposio entre o indivduo e vida social que lhe hostil, exaspera-se.

    Para entender o papel da literatura nesse contexto, Adorno se contraps s tendncias vanguardistas, que pregavam a dissoluo da arte na vida cotidia-na, e tambm aos defensores do realismo. Contra eles, defender ardorosa-mente a necessidade de renovao formal do romance.

    H um texto esclarecedor: Posies do narrador no romance contem-porneo. Nele, Adorno afirma que o realismo, hoje, apenas descreveria a aparncia, a fachada da realidade, tal o grau de mercantilizao e manipu-lao a que os indivduos so submetidos. Tanto o narrador, glorificado por Benjamin, como o romancista realista, estudado por Lukcs, eram indivduos que tinham algo especial a dizer. Hoje, isso no mais possvel. O roman-ce encontra-se, pois, diante de um paradoxo: no se pode mais narrar, embora a forma do romance exija a narrao (ADORNO, 2003, p. 55). A sada desse paradoxo a descoberta de uma nova forma romanesca para se atingir a es-sncia da realidade. Mas, para isso, preciso abandonar a linguagem discursiva e adotar uma segunda linguagem, destilada de vrias maneiras do refugo da primeira. Esta segunda linguagem est presente na msica dodecafnica e na literatura modernista de Kafka, Joyce, Musil e nos demais escritores que se revoltaram contra a mentira da representao. Para ser fiel ao realismo, num mundo fan-tasmagrico, ensandecido e mercantilizado, a literatura precisa passar por um momento anti-realista.

    Da a defesa de uma nova forma para o romance. Ou, nas palavras de Ador-no: o novo romance precisa concentrar-se naquilo que o relato no d conta. A li-teratura s ir sobreviver se ela conhecer uma revoluo formal, se abandonar a linguagem discursiva. O social na literatura, segundo Adorno, encontra-se condensado na forma e no no contedo, como pretende a arte engajada de

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    Brecht e Sartre. A verdadeira literatura no reflexo e sim negao. Ela uma mnada sem janelas para o mundo, que cria uma imagem negativa que se ope alienao vigente e projeo utpica acenando para uma promessa de felicidade.

    Lucien Goldmann tambm foi diretamente influenciado pelas obras pr--marxistas de Lukcs s quais acrescenta Histria e conscincia de classe para, com ela, buscar a relao entre produo literria e classes sociais. Sobre esse arca-bouo terico, Goldmann incorporou criticamente teses estruturalistas que, a partir dos anos 50, opunham-se filosofia existencialista.

    Com esses referenciais, desenvolveu o estruturalismo-gentico, o mtodo que lhe parecia apropriado para enfocar a literatura. Procurava, com ele, distan-ciar-se tanto das vises existencialistas (que privilegiavam o sujeito individual no estudo da criao literria), como do estruturalismo (que ontologizava a lin-guagem e desconhecia a historicidade e o carter significativo das estruturas: estas so resultantes da ao consciente dos homens, ao governada por valores).

    Para Goldmann, a criao literria realizada por um sujeito transindividual: ela expressa a situao social das diversas classes e grupos existentes na so-ciedade, sendo o autor aquele que exprime com o mximo de conscincia os horizontes daqueles agrupamentos. Assim fazendo, Goldmann apropriava-se da tese lukacsiana de Histria e conscincia de classe, segundo a qual existiriam possibilidades e limites de conhecimento para as diversas classes sociais, apli-cando-a criao artstica.

    Por outro lado, a influncia estruturalista levou-o a procurar uma homologia entre os grupos sociais dos quais o autor a expresso mais avanada e a obra. A mediao entre ambas a viso do mundo (a conscincia possvel) essa estrutura mental de carter coletivo. O estudo da literatura realiza-se atravs de uma anlise compreensiva e explicativa. O crtico comea pela anlise imanen-te do texto (compreenso) para, em seguida, inseri-lo no interior das vises do mundo das diversas classes e grupos sociais (explicao).

    Com esse procedimento, Goldmann buscava a identificao entre a forma do romance e a estrutura significativa. Estamos, portanto, longe das teorias do reflexo e do primado do contedo: o especfico da literatura a forma.

    Lukcs, a partir dos anos 30, voltou ao estudo da literatura e s questes estticas, agora, porm, num registro marxista. A antiga e insupervel opo-sio entre a interioridade e exterioridade, o indivduo e o mundo exterior,

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    substituda por uma viso que privilegia o homem como um ser social vi-vendo as contradies de uma sociedade dividida em classes. Trata-se, agora, de enfocar a luta dos indivduos entre si. Sobe para o primeiro plano no a contraposio abstrata da subjetividade exilada, mas a centralidade da ao como critrio literrio para desvelar a relao objetiva do homem com a vida social. Os destinos individuais dos personagens refletem as tenses e contra-dies presentes na sociedade.

    Nas diversas polmicas em que se envolveu, Lukcs procurou defender o realismo na literatura como o mtodo adequado para se retratar a realidade e tambm como o critrio para julgar as obras literrias. Realismo, para ele, ba-sicamente uma atitude perante a realidade a ser retratada (que vem dos gregos at o presente), e no uma determinada escola literria.

    O ponto de partida de Lukcs a concepo hegeliana de obra de arte como unidade sensvel de essncia e aparncia, contedo e forma. O determi-nante sempre o contedo seja ele manifestao sensvel do Esprito, como em Hegel, ou, como traduz Lukcs, memria da humanidade expres-sa num momento particular de sua histria.

    Em nome da necessria unidade da obra artstica, Lukcs criticou os escri-tores que acentuavam de modo unilateral seja a forma, seja o contedo.

    O primeiro caso exemplificado pelo naturalismo, expresso literria do materialismo vulgar, que se limita descrio da aparncia imediata da reali-dade e, por extenso, as vanguardas, que refletem o pensamento irracionalista, ao descrever os aspectos visveis da alienao como se fossem o destino natu-ral da condio humana, e no o resultado de uma determinada ordem social.

    O segundo caso manifesta-se, por exemplo, no expressionismo, expresso literria do idealismo, que para revelar a essncia oculta produz uma defor-mao intencional da forma.

    Ainda de Hegel, Lukcs retoma a idia do romance como um curso, como relato dos fatos do passado ou, para usarmos a definio clssica, a epopia do mundo burgus. Essa definio leva Lukcs a entender o realismo como um procedimento esttico que se apoia no mtodo narrativo (e no no descritivis-mo, que iguala homens e coisas) e no recurso tipicidade (a criao de persona-gens tpicos e de situaes tpicas, e no o apego indiferenciada mediania).

    A defesa apaixonada o realismo rendeu muitas crticas a Lukcs. Uma de-las apontava, com razo, o carter normativo de sua concepo esttica. Por

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    mais que afirmasse o realismo como uma atitude perante o real, que, portanto, deveria permanentemente modificar-se para poder acompanhar o desenvol-vimento da sociedade, Lukcs apegou-se ao modelo do romance praticado no sculo XIX impresso reforada pela sua dificuldade de compreender as novas formas romanescas surgidas no sculo XX. Haveria, assim, um enfo-que predominantemente epistemolgico apoiado na relao forma/contedo - que elegeu aquela concepo de realismo como modelo.

    Depois, em sua monumental Esttica, Lukcs passou progressivamente a privilegiar uma concepo ontolgica, aberta s modificaes histricas. Seus juzos estticos tornaram-se nuanados e o lugar ocupado pelo reflexo na figu-rao realista cedeu espao para a mimese, a forma particular e mediatizada do reflexo, prpria da literatura, e distanciada da teoria do conhecimento.

    Como se pode constatar no breve roteiro apresentado, o marxismo gerou diferentes enfoques para estudar a literatura. Esta foi entendida como reflexo adequado do real ou sua insistente negao; parte integrante da cultura ou fuso de linguagens; atividade til ou mimese; expresso das vises de mun-do ou alegoria etc. Nas diversas interpretaes, entretanto, havia um ponto comum: a procura das relaes que devem existir entre a literatura e a vida social relao muitas vezes ignorada pelos distrados habitantes da Repbli-ca das Letras.

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