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28 Matriz da Água como ferramenta para a gestão eficiente da água – aplicação ao Município de Cascais Joana Carneiro a * , Laura Monteiro a , Gonçalo Saint-Maurice b , Dídia Covas a a Instituto Superior Técnico, Av. Rovisco Pais, 1049-001 Lisboa, Portugal b Câmara Municipal de Cascais, Praça 5 de Outubro 1, 2750-320 Cascais, Portugal Resumo Dos objetivos do desenvolvimento sustentável (ODS) fazem parte o aumento da eficiência do uso e da reutilização da água e a garantia de água em quantidade e qualidade para todos. Ao nível das cidades, são diversas as medidas que podem ser tomadas com vista ao cumprimento dos ODS. Contudo, nem sempre é claro quais as medidas mais eficazes e de atuação prioritária. Tais decisões devem ser baseadas em avaliações rigorosas dos usos e disponibilidades de água locais. Neste artigo descreve- se a metodologia adotada para identificar, caracterizar e quantificar os principais fluxos e consumos de água num município português, baseada no conceito de balanço hídrico. A aplicação da metodologia permitiu diagnosticar a eficiência do uso da água e identificar as oportunidades de melhoria mais adequadas. A este estudo deu-se o nome de Matriz da Água. No município de Cascais, a Matriz da Água permitiu identificar como medidas prioritárias as relacionadas com a diminuição do consumo de água potável na rega, tanto nos campos de golfe, como nos espaços verdes privados e nos geridos pelo município. O estudo mostrou que há um grande potencial de redução do consumo doméstico de água e de aumento da reutilização de água residual tratada. Palavras-Chave: uso eficiente da água, Município, matriz da Água, reutilização doi: 10.22181/aer.2020.0603 * Autor para correspondência E-mail: [email protected]

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Matriz da Água como ferramenta para a gestão eficiente da água – aplicação ao Município de Cascais

Joana Carneiro a *, Laura Monteiro a, Gonçalo Saint-Maurice b, Dídia Covas a

a Instituto Superior Técnico, Av. Rovisco Pais, 1049-001 Lisboa, Portugal b Câmara Municipal de Cascais, Praça 5 de Outubro 1, 2750-320 Cascais, Portugal

Resumo

Dos objetivos do desenvolvimento sustentável (ODS) fazem parte o aumento da eficiência do uso e da reutilização da água e a garantia de água em quantidade e qualidade para todos. Ao nível das cidades, são diversas as medidas que podem ser tomadas com vista ao cumprimento dos ODS. Contudo, nem sempre é claro quais as medidas mais eficazes e de atuação prioritária. Tais decisões devem ser baseadas em avaliações rigorosas dos usos e disponibilidades de água locais. Neste artigo descreve-se a metodologia adotada para identificar, caracterizar e quantificar os principais fluxos e consumos de água num município português, baseada no conceito de balanço hídrico. A aplicação da metodologia permitiu diagnosticar a eficiência do uso da água e identificar as oportunidades de melhoria mais adequadas. A este estudo deu-se o nome de Matriz da Água. No município de Cascais, a Matriz da Água permitiu identificar como medidas prioritárias as relacionadas com a diminuição do consumo de água potável na rega, tanto nos campos de golfe, como nos espaços verdes privados e nos geridos pelo município. O estudo mostrou que há um grande potencial de redução do consumo doméstico de água e de aumento da reutilização de água residual tratada.

Palavras-Chave: uso eficiente da água, Município, matriz da Água, reutilização

doi: 10.22181/aer.2020.0603

* Autor para correspondência E-mail: [email protected]

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Water Matrix as a tool for efficient water management – application to Cascais Municipality

Joana Carneiro a *, Laura Monteiro a, Gonçalo Saint-Maurice b, Dídia Covas a

a Instituto Superior Técnico, Av. Rovisco Pais, 1049-001 Lisboa, Portugal b Câmara Municipal de Cascais, Praça 5 de Outubro 1, 2750-320 Cascais, Portugal

Abstract

The Sustainable Development Goals (SDGs) preconize a substantially increase in water-use efficiency and reuse, along with the universal access to safe and affordable water for all. At the city level, several measures can and must be adopted to reach the SDGs. However, it is not always clear which measures are the most effective ones and of priority implementation. Such decisions must be based in rigorous assessment of local water uses and availability. This paper describes the methodology adopted to identify, characterize and quantify the main water flows and consumption in a Portuguese municipality, based on the concept of water balance. The application of the methodology allowed diagnosing water use efficiency and the identification of the most appropriate improvement measures. This study was named the Water Matrix. In the municipality of Cascais, the Water Matrix identified as priority measures those related to the reduction of drinking water consumption for irrigation, both in golf courses, in private green spaces and in those managed by the municipality. The study showed that there is a great potential for reducing domestic water consumption and increasing the reuse of treated wastewater.

Keywords: efficient water use, Municipality, water matrix, water reuse

doi: 10.22181/aer.2020.0603

* Corresponding author E-mail: [email protected]

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1 Introdução

A água é um recurso natural vital para o desenvolvimento das sociedades, razão pela qual a Organização das Nações Unidas (ONU) a colocou no cerne do objetivo do desenvolvimento sustentável (ODS) n.º 6 Garantir a disponibilidade e a gestão sustentável da água potável e do saneamento para todos (UNGA 2015). Para cumprimento do referido objetivo, todos os países devem ter como metas para 2030: (i) o acesso universal e equitativo a água potável e a sistemas de saneamento básico; (ii) o aumento substancial da eficiência no uso da água em todos os setores; (iii) a melhoria da qualidade das águas e o aumento substancial da reciclagem e da reutilização; (iv) a redução da poluição; (v) a gestão integrada de recursos hídricos; (vi) a proteção de ecossistemas relacionados com a água e (vii) a participação das comunidades locais na melhoria da gestão da água e do saneamento.

Em Portugal, a acessibilidade física e económica das populações aos serviços de abastecimento e de drenagem é em geral boa (ERSAR 2018). Em contrapartida, a disponibilidade permanente de água em quantidade e com qualidade nas torneiras dos consumidores tem levado a que a água não seja vista como um recurso finito e valioso, sendo muitas vezes desperdiçada. O consumo de água dos sistemas de abastecimento público foi de 192 L.hab-1.dia-1 em 2017 (ERSAR 2018), para o qual contribuíram os consumos domésticos e não-domésticos (comércio, indústria, serviços públicos, etc.). Nas habitações foram consumidos, em média, 126 L.hab-1.dia-1. O consumo doméstico depende de vários fatores socio-económicos, pelo que a capitação deverá variar no país consoante as condições de vida locais. De acordo com a organização mundial de saúde, uma capitação de 100 L.hab-1.dia-1 é suficiente para satisfazer todas as necessidades de água (Howard e Bartram 2003), pelo que é possível melhorar a eficiência no uso doméstico da água em Portugal. Também ao nível das perdas reais de água nos sistemas de abastecimento, da ordem de 137 L.ramal-1.dia-1 nos sistemas em baixa, existe potencial para melhorar a eficiência hídrica (ERSAR 2018).

O uso eficiente da água requer não só a diminuição do consumo de água nos diversos usos como a sua reutilização, através da utilização sucessiva da água para fins cada vez menos exigentes em termos de qualidade, reduzindo a necessidade de abstração de água dos recursos naturais. Os últimos dados apontam para apenas 1,4 % de reutilização de água residual tratada em Portugal (ERSAR 2018). O aumento da eficiência do uso da água e da reutilização são, portanto, os aspetos em que Portugal tem de melhorar para cumprimento do ODS 6.

Ao nível das cidades, a identificação de medidas adequadas e eficazes para a melhoria da eficiência do uso da água, requer, portanto, que sejam conhecidos e quantificados os consumos, bem como identificadas as possibilidades de reutilização. Para tal, tem vindo a ser desenvolvido e testado o conceito de balanço hídrico da cidade (Farooqui et al. 2016, Zeisl et al. 2018). Esta abordagem consiste na identificação e quantificação dos principais fluxos dos ciclos natural e urbano da água e permite avaliar de uma forma global o desempenho hídrico de uma cidade e identificar as medidas mais adequadas a cada caso. A metodologia pode ser aplicada com maior ou menor resolução, dependendo da informação disponível (Zeisl et al. 2018). Em Portugal, o diagnóstico da eficiência do uso da água em Lisboa e Sintra baseou-se também em balanços hídricos aos municípios, resultando em documentos de acesso público denominados Matriz da Água (SMAS Sintra 2009, Lisboa E-Nova 2014). Este tipo de abordagem tem vindo a permitir aos municípios fazer um diagnóstico inicial da eficiência no uso da água e definir um conjunto de medidas adequadas com vista à melhoria da eficiência.

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O presente artigo apresenta uma metodologia de identificação, caracterização e quantificação dos principais fluxos e consumos de água num município português, com vista ao diagnóstico da eficiência hídrica e à identificação das medidas mais adequadas para a melhoria da mesma. É apresentada a aplicação da metodologia a um caso de estudo, o município de Cascais, e são discutidas as principais vantagens e limitações da metodologia desenvolvida.

2 Metodologia

A metodologia adotada para a elaboração da Matriz da Água do município consistiu na: (i) identificação dos intervenientes no ciclo da água no município e das suas principais atividades e responsabilidades no âmbito da gestão da água; (ii) caracterização demográfica e climática da zona em estudo e identificação dos recursos hídricos disponíveis no concelho; (iii) na identificação e quantificação das principais entradas e saídas de água do concelho entre 2013 e 2017, incluindo a caracterização do consumo de água e (iv) análise dos resultados e identificação de medidas de melhoria da eficiência no uso da água, adequadas ao município.

2.1 Identificação dos principais intervenientes no ciclo da água

Os intervenientes no ciclo da água são todos os que interferem, de alguma forma, nos ciclos urbanos e naturais da água, o que inclui todos os habitantes e visitantes de um concelho. Contudo, existem entidades com responsabilidades adicionais na gestão da água, nomeadamente as entidades públicas e privadas com atribuições no domínio da água, nomeadamente no âmbito do abastecimento de água e da drenagem de águas residuais e pluviais. Serão também estes intervenientes os responsáveis pela implementação local das medidas de melhoria da eficiência hídrica identificadas na Matriz da Água.

2.2 Demografia, clima e recursos hídricos

Para a caracterização demográfica da zona em estudo, foram analisados dados disponíveis na página de internet do Instituto Nacional de Estatística (INE). A caracterização consistiu na identificação da evolução demográfica dos últimos 30 anos e na distribuição da população por faixas etárias e por freguesias. Esta caracterização permite aferir tendências futuras no consumo da água e na produção de águas residuais, em função da tendência demográfica, assim como identificar prováveis assimetrias na distribuição espacial dos mesmos. A caracterização da população por faixas etárias permite avaliar o potencial de alteração de comportamento no uso da água por via da sensibilização e educação ambiental.

A caracterização climática consistiu na recolha e análise de dados históricos mensais da temperatura e da precipitação no município nos últimos 12 anos, disponíveis na página do Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA). Foram ainda pesquisados estudos relativos aos impactos das alterações climáticas esperados no local em estudo (Cascais Ambiente 2017) para melhor compreender as condições de temperatura e precipitação no município que estão previstas a médio e longo prazo. Esta caracterização permitiu quantificar o fluxo do ciclo natural da água relativo à precipitação.

A caracterização dos recursos hídricos baseou-se na identificação das principais origens (superficiais, subterrâneas) e cursos de água no concelho. Para tal foram obtidos dados do Sistema Nacional de Informação de Recursos Hídricos (SNIRH), incluindo a variação dos níveis piezométricos das origens subterrâneas para avaliação da disponibilidade de água nestas origens. Esta caracterização permite quantificar a água disponível localmente e avaliar a sua variação ao longo do tempo.

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2.3 Entradas e saídas de água

2.3.1 Sistemas de abastecimento de água

A caracterização do sistema de abastecimento inclui a identificação e quantificação das entradas de água (estações de tratamento de água (ETA), furos, pontos de entrega de entidades gestoras em alta, etc), das infraestruturas de transporte e armazenamento de água (estações elevatórias, condutas, reservatórios), dos volumes captados e distribuídos anualmente e das perdas de água do sistema. Em Portugal, estes dados estão na posse da entidade gestora do sistema de abastecimento de água local (AdC 2018) e disponíveis publicamente através da Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos (ERSAR 2018).

2.3.2 Consumos de água potável

A caracterização dos consumos de água potável consiste na quantificação dos consumos absolutos anuais no concelho no período em análise, bem como na desagregação do consumo por freguesia, por tipo de consumidor (doméstico e não doméstico) e por escalão de consumo. Foram estimadas capitações do consumo doméstico em cada freguesia e quantificados os consumos de água num conjunto de consumidores não domésticos, determinado em função das tipologias de faturação. Esta caracterização permite quantificar o consumo doméstico e identificar os maiores consumidores não domésticos para, posteriormente, identificar o potencial de redução do consumo doméstico e as medidas de melhoria da eficiência hídrica mais adequadas para os grandes consumidores não-domésticos, quer visando a redução do consumo quer visando a utilização de fontes alternativas de água adequadas aos usos identificados.

2.3.3 Sistemas de drenagem e tratamento de águas re siduais

A caracterização do sistema de drenagem inclui a classificação (separativo ou unitário), identificação e quantificação das infraestruturas (Estações de Tratamento de Águas Residuais (ETAR), coletores, estações elevatórias) e respetiva localização, bem como a quantificação dos volumes de águas residuais drenadas e transportadas. As ETAR existentes foram caracterizadas em termos da sua localização, capacidade e tipo de tratamento, bem como capacidade para produzir água para reutilização, capacidade instalada para tal e volumes atualmente produzidos. Esta etapa permite a quantificação dos fluxos de água residual que entram e/ou saem do município, do fluxo de água reutilizada e a identificação do potencial de produção de águas para reutilização.

3 Casos de estudo: Município de Cascais

3.1 Intervenientes no ciclo da água

Em Cascais, existem três intervenientes principais no ciclo da água: Águas de Cascais (AdC), Águas do Tejo Atlântico (AdTA) e Câmara Municipal de Cascais (CMC). A Águas de Cascais é responsável pelo tratamento e distribuição de água para consumo humano, pela drenagem de águas residuais e pela manutenção das infraestruturas associadas. A Águas do Tejo Atlântico é responsável pelo transporte em alta e tratamento de águas residuais. A Câmara Municipal de Cascais é responsável pelas redes de águas pluviais e pelas linhas de água, além de articular com as empresas AdC e AdTA a gestão dos sistemas de abastecimento de água e de drenagem de águas residuais domésticas, e de monitorizar e avaliar a qualidade das águas balneares.

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3.2 Demografia, clima e recursos hídricos do Concelho de Cascais

O concelho de Cascais (Figura 1) localiza-se no extremo sul-ocidental da Península de Lisboa. Apresenta uma área de 97,4 km2, faz fronteira a norte com o município de Sintra, a este com o concelho de Oeiras e a sul e oeste com o oceano Atlântico. O concelho encontra-se dividido em quatro freguesias, Alcabideche, Carcavelos e Parede, Cascais e Estoril e São Domingos de Rana. A população residente, estimada em 210 889 habitantes em 2016 (INE), distribui-se pelo concelho de forma assimétrica, concentrando-se a maioria na faixa costeira, onde se localizam os núcleos urbanos e as infraestruturas produtivas.

a)

b)

c) Figura 1. Mapa pluviométrico de Portugal (IPMA) e localização do concelho de Cascais (a),

Enquadramento geográfico do sistema aquífero Pisões-Atrozela (Almeida et al 2000) (b) e Carta da rede hidrográfica de Cascais (CMC 2015) (c)

O clima em Cascais é do tipo temperado mediterrânico, caracterizado por verões quentes e secos e invernos chuvosos e frios. Nos últimos 5 anos, as temperaturas médias mensais variaram entre 10 e 15 oC no inverno e entre 15 e 23 oC no verão. Contrariamente, a precipitação total anual no período de 2013 a 2017 registou variações significativas, registando-se em 2015 e 2017 valores de precipitação total anual muito inferiores ao normal, considerados anos de seca extrema (Figura 2).

Em Cascais contabilizam-se 17 ribeiras, 5 com foz na costa oeste e 12 com foz na costa sul. A maioria dos cursos de água tem extensão e caudal reduzidos e apresenta um regime intermitente, torrencial durante o inverno e sem caudal no verão. O sistema aquífero, de Pisões-Atrozela, localiza-se no quadrante ocidental e tem uma taxa de recarga de aproximadamente 30% da precipitação, pelo que os recursos médios renováveis são da ordem de 3 a 4 milhões de m3 por ano (Almeida et al. 2000). Os níveis piezométricos mostram que o armazenamento de água subterrânea permaneceu aproximadamente constante no período 2013-2017, com exceção do verão de 2017 em Pisão, em resultado do cenário de seca severa verificado na região.

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Figura 2. Evolução da Precipitação Anual entre 2013 e 2017 (IPMA)

3.3 Entradas e saídas de água

3.3.1 O sistema de abastecimento de Cascais

O sistema de abastecimento de água de Cascais é constituído por 56 km de condutas adutoras, 1411 km de condutas de distribuição, 21 reservatórios e 24 estações elevatórias (AdC 2017). Anualmente, entram em Cascais entre 18 e 19 milhões de m3 de água para consumo humano. A água fornecida à população de Cascais é maioritariamente proveniente do sistema adutor da Empresa Portuguesa das Águas Livres (EPAL) (82 a 91%), sendo o abastecimento complementado com água proveniente de origens próprias da AdC (9 a 18%), nomeadamente de galerias de minas, de furos e de uma captação superficial. O contributo da água proveniente da entidade gestora do concelho vizinho de Sintra é menor que 1%. Este cenário é típico de zonas urbanas com elevada densidade populacional, que são geralmente incapazes de satisfazer as necessidades de água potável da sua população com os recursos hídricos locais, sendo necessário transportar água de outras regiões (McDonald et al. 2014). Do total de água que entra no sistema de abastecimento de Cascais, 84 a 87% é consumida pela população, sendo a restante água perdida sob a forma de perdas reais e aparentes. O indicador Água Não Faturada (ANF) do sistema de abastecimento de Cascais tem permanecido abaixo de 20%, o valor de referência da ERSAR para um bom desempenho hídrico (Figura 3). Estes resultados mostram que o potencial de melhoria da eficiência hídrica em Cascais através da redução das perdas de água do sistema de abastecimento é reduzido.

Figura 3. Indicador de Água não faturada em Cascais e comparação com a média nacional

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3.3.2 O consumo de água em Cascais

O consumo doméstico de água em Cascais representa cerca de 70% do total de água consumida no concelho. O consumo doméstico médio diário é de aproximadamente 145 L.hab-1.dia-1, superior à média nacional de 124 L.hab-1.dia-1 (ERSAR 2018). Analisando a desagregação dos consumos domésticos por freguesia, constata-se que a capitação é bastante mais elevada na freguesia de Cascais e Estoril (199 L.hab-1.dia-1) do que que nas restantes freguesias (122, 129 e 146 L.hab-1.dia-1). Tal poderá dever-se a uma maior utilização da água do sistema de abastecimento para usos exteriores, como a rega de jardins ou o enchimento de piscinas, dada a existência de muitas moradias com piscina e espaços ajardinados no parque habitacional da freguesia de Cascais. De facto, a análise dos consumos domésticos por escalão de consumo mostra que na freguesia de Cascais e Estoril, o consumo doméstico de 3.º e 4.º escalão representam 25 % do consumo doméstico de água na freguesia, o que indica que uma parte significativa dos consumidores domésticos de Cascais consomem 16 a 25 m3/mês ou mais de 25 m3/mês (Figura 4).

Figura 1. Distribuição do consumo doméstico por freguesia e por escalão de consumo (milhões de m3) em 2017

As capitações do consumo não doméstico, referente ao consumo em estabelecimentos comerciais, hotéis, escritórios, hospitais, escolas e instalações industriais, entre outros, são muito variáveis consoante o tipo de atividade (USEPA 2012). Assim, para cada cidade ou região, o consumo de água depende em grande parte das atividades económicas predominantes e dos usos da água associados. Em Cascais, o consumo não doméstico representa cerca de 30% do consumo total de água. Tal como observado para o consumo doméstico, é também na freguesia de Cascais e Estoril que se concentra a maior parte deste tipo de consumo (52%), sendo o setor do comércio e indústria o que mais consome, reflexo da concentração de atividade comercial e de hotelaria na freguesia sede de concelho. Em 2017, os 27 maiores consumidores não domésticos de água em Cascais, consumidores de mais de 20 000 m3/ano, foram campos de golf, estabelecimentos prisionais, um centro comercial, unidades de saúde, hotelaria, estabelecimentos de ensino, a câmara municipal, o casino e um ginásio (Figura 5)

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Figura 2. Consumo de água anual dos maiores consumidores não domésticos de Cascais em

2017

A Câmara Municipal de Cascais, além de ser um interveniente no ciclo da água, é também um grande consumidor, uma vez que os seus consumos representaram 7% do consumo total de água em Cascais e 23% do consumo não doméstico do concelho em 2017. Os usos da água da CMC são também diversos, dada a variedade de serviços e atividades que o município gere. Para o período de 2013 a 2017, identificou-se a rega de espaços verdes como o principal uso da água, representando cerca de 67% do consumo. O conjunto das diversas escolas geridas pela CMC constitui o segundo maior consumidor de água da CMC, representando cerca de 13% do consumo total (Figura 6).

Figura 3. Desagregação dos consumos da Câmara Municipal de Cascais em 2017

A análise dos consumos permitiu identificar a rega de espaços verdes como um dos principais usos da água potável pelos grandes consumidores não domésticos de Cascais (campos de golfe, espaços verdes geridos pela câmara municipal).

3.3.3 A produção, tratamento e reutilização de águas residuais

O concelho de Cascais possui um sistema de drenagem de águas residuais do tipo separativo,. A rede de drenagem das águas residuais domésticas é constituída por um conjunto de coletores gravíticos com cerca de 783 km de extensão, assegurando a recolha e o transporte dos efluentes até à ETAR da Guia, a única do concelho (CMC

Golf

Prisão

Shopping

Saude

Hotelaria

Educação

Municipio

Casino

Ginasio

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2015). A produção anual de águas residuais em Cascais durante o período 2013 a 2017 variou entre 14,9 e 20,9 milhões de m3. Contudo, a ETAR da Guia, recebe também águas residuais provenientes dos municípios de Amadora, Oeiras e Sintra, pelo que tratou nesse período, em média, 57 milhões de m3 por ano de águas residuais domésticas. A ETAR da Guia dispõe ainda de capacidade para tratar 9 000 m3/dia de água para reutilização.

O principal uso desta água é como água de serviço na própria ETAR para fins que não requerem o nível de qualidade tão elevado quanto o consumo humano, como a preparação de polieletrólito, a lavagem de equipamentos e pavimentos e a desodorização, permitindo reduzir significativamente o consumo de água potável na instalação. Desde 2015, que a empresa municipal Cascais Ambiente reutiliza água residual tratada para limpeza de ruas, do paredão, de praças e de túneis de acesso às praias. Os volumes de água residual tratada consumida pela Cascais Ambiente são da ordem de 5 500 a 6 600 m3/ano o que corresponde a menos de 2% do total de água residual tratada na ETAR da Guia. Este valor somado à água residual tratada para reutilização na própria ETAR (entre 33 a 46%), não chegam a metade da totalidade de água residual tratada. Potenciais usos da água residual tratada incluem a rega de espaços verdes e de campos de golf, a lavagem de viaturas, o abastecimento de redes de incêndios, a lavagem de contentores de resíduos sólidos e a lavagem de espaços urbanos.

4 Balanço hídrico de Cascais

Dos dados sintetizados, nomeadamente dos que se referem aos principais fluxos e usos da água no concelho, é possível identificar um conjunto de medidas de melhoria da eficiência do uso da água no município.

Figura 4. Balanço Hídrico de Cascais em 2017

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No período entre 2013 a 2017, Aa precipitação contribui com a maior parte da água que entra no concelho (45 a 63%), tal como verificado em outros balanços a cidades costeiras (Charalambous et al. 2014). A água para consumo humano representa 11 a 20% e as águas residuais provenientes dos outros municípios representam 26 a 35% da água que entra em Cascais. As principais saídas de água são a água residual tratada devolvida ao meio recetor na ETAR da Guia e a que retorna ao ciclo natural da água por evaporação, infiltração e escoamento. A ETAR da Guia representa o local de saída de cerca de 40 a 55% da água que passa por Cascais, o que a torna uma importante origem alternativa de água que importa incorporar novamente no ciclo urbano da água em Cascais. A melhoria da eficiência da água neste município passa necessariamente pelo aumento da reutilização da água residual tratada nesta ETAR.

O elevado consumo doméstico, e a relevância deste no consumo total de água no concelho (70%) sugerem que a eficiência do uso da água em Cascais tem de passar pela sensibilização da população para o uso eficiente da água, assim como pela adoção de medidas de melhoria da eficiência que visem a diminuição dos consumos exteriores (colocação de coberturas nas piscinas para minimizar evaporação, rega de jardins mais eficientes). A redução do consumo, pela instalação de dispositivos mais eficientes nas habitações (redutores de caudal, autoclismos de dupla descarga, etc) associada à alteração de hábitos (fecho da torneira durante o duche, aproveitamento de água da chuva), deverá traduzir-se em diminuições significativas do consumo global de água em Cascais.

Também os principais consumidores não-domésticos de água deverão adotar medidas de eficiência especialmente dirigidas à rega. A utilização de fontes alternativas de água, como a água residual tratada ou da chuva, associada a medidas de otimização da rega (em período noturno, com dispositivos eficientes, em volumes adequados às reais necessidades das plantas), permitirá diminuir significativamente os consumos de água do sistema de abastecimento.

5 Conclusão

Num contexto de escassez de água, de alterações climáticas e de implementação dos objetivos do desenvolvimento sustentável, torna-se evidente a necessidade de aumentar a eficiência no uso da água. A Matriz da Água é uma ferramenta de diagnóstico do desempenho hídrico dos municípios que permite definir medidas adequadas às condições locais, com vista à melhoria da eficiência hídrica. A aplicação da metodologia desenvolvida ao município de Cascais permitiu identificar, caracterizar e quantificar os principais fluxos de água bem como definir uma estratégia para o uso eficiente da água ao nível do município.

Agradecimentos

Os autores agradecem à Câmara Municipal de Cascais, à Águas de Cascais e à Águas do Tejo Atlântico pela colaboração neste estudo.

Referências

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Cascais Ambiente (2017). Plano de Ação para a Adaptação às Alterações Climáticas de Cascais.

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