18
Mazagão, Migração de um Mito Mazagão, Migração de um Mito Introdução O cenário para o filme documental “Mazagão Migração de um Mito” começa a formar-se em 1505 com as primeiras tentativas para a fundação de uma cidadela na costa marroquina. Essa cidadela viria a tornar-se em poucos anos numa fortaleza inexpugnável, na vanguarda da arquitectura e engenharia militar da época (não foi por acaso que Orson Welles escolheu Mazagão para filmar o seu filme Otelo). Constantemente abalada por assaltos por parte de berberes e mouros, a fortaleza resiste até 1769. É nessa data que a coroa portuguesa decide migrar uma cidade inteira para o Brasil, e fundar uma nova Mazagão nas florestas amazónicas. A retirada é estratégica, o Brasil é mais importante que o norte de África, é necessário defendê- lo. Cerca de 2000 pessoas, soldados e suas famílias, viajam através do Atlântico. Na floresta amazónica passam grandes dificuldades, alguns fogem, muitos morrem de doença, não chega a haver confronto, os soldados sentem-se frustrados, o projecto não faz sentido, a nova Mazagão ameaça ruir. Porém, em conjunto com as povoações indígenas e negras, a nova Mazagão ressurge, e desde o século XVII até aos nossos dias se celebra a Festa de São Tiago de Mazagão, onde é simbolizado o confronto entre mouros e portugueses, no meio da floresta, cavalos e homens teatralizam as batalhas travadas em solo marroquino. A música é também um elo de ligação entre Portugal, Marrocos e Brasil e traçará também uma linha entre os três universos, no passado e no presente. É neste universo mitológico e histórico, imagetica e sonoramente riquíssimo que se passa “Mazagão, Migração de um Mito”. 1: Forte em El Jadida (A Nova), Antiga Mazagão 2: Cavaleiros em Mazagão Amazónico na Festa de São Tiago 1

Mazagao Migracao Mito

Embed Size (px)

Citation preview

Mazagão, Migração de um Mito

Mazagão, Migração de um Mito

Introdução

O cenário para o filme documental “Mazagão Migração de um Mito” começa a formar-se em

1505 com as primeiras tentativas para a fundação de uma cidadela na costa marroquina. Essa

cidadela viria a tornar-se em poucos anos numa fortaleza inexpugnável, na vanguarda da

arquitectura e engenharia militar da época (não foi por acaso que Orson Welles escolheu

Mazagão para filmar o seu filme Otelo). Constantemente abalada por assaltos por parte de

berberes e mouros, a fortaleza resiste até 1769. É nessa data que a coroa portuguesa decide

migrar uma cidade inteira para o Brasil, e fundar uma nova Mazagão nas florestas amazónicas.

A retirada é estratégica, o Brasil é mais importante que o norte de África, é necessário defendê-

lo. Cerca de 2000 pessoas, soldados e suas famílias, viajam através do Atlântico. Na floresta

amazónica passam grandes dificuldades, alguns fogem, muitos morrem de doença, não chega a

haver confronto, os soldados sentem-se frustrados, o projecto não faz sentido, a nova Mazagão

ameaça ruir. Porém, em conjunto com as povoações indígenas e negras, a nova Mazagão

ressurge, e desde o século XVII até aos nossos dias se celebra a Festa de São Tiago de Mazagão,

onde é simbolizado o confronto entre mouros e portugueses, no meio da floresta, cavalos e

homens teatralizam as batalhas travadas em solo marroquino. A música é também um elo de

ligação entre Portugal, Marrocos e Brasil e traçará também uma linha entre os três universos, no

passado e no presente. É neste universo mitológico e histórico, imagetica e sonoramente

riquíssimo que se passa “Mazagão, Migração de um Mito”.

1: Forte em El Jadida (A Nova), Antiga Mazagão 2: Cavaleiros em Mazagão Amazónico na Festa de São Tiago

1

Mazagão, Migração de um Mito

Estrutura do filme

O filme dividir-se-á em três partes: Mazagão Africana; Mazagão Amazónica; Mazagão dos

nossos dias. A divisão é espacial e temporal, a cidade migra de África para a América, até se

diluir no tempo e no espaço, são quase 5 séculos de transformação: Mazagão é hoje mais do que

uma cidade, é um legado, mítico, histórico e cultural. A primeira parte tratará a fundação e o

desenvolvimento da Fortaleza e da povoação de Mazagão, passará pelo seu auge e terminará no

seu declínio. A segunda parte incidirá sobre a partida de África, a passagem por Portugal, a

viagem até ao Brasil e a fundação e transformação da Mazagão Amazónica. A terceira e última

parte retratará a Mazagão do presente e dilui-la-á no tempo e no espaço, através da Festa de São

Tiago de Mazagão, sintetizar-se-á toda a história e lançar-se-ão as velas para a compreensão de

um universo da vontade de um povo, de suas batalhas, do seu legado e para a construção de um

mosaico multicultural. Ao longo do filme, inserir-se-ão em voz-off passagens de cartas e crónicas

escritas entre os séculos XVI e XVIII. Serão também filmadas entrevistas com pesquisadores

portugueses e estrangeiros (e ocasionalmente serão utilizados em voz-off trechos de trabalhos já

publicados) e serão também entrevistados os actuais habitantes da Mazagão Marroquina (hoje

El-Jadida “A Nova”) e Mazagão Brasileira. Todos estes registos funcionarão de forma

independente, conjugando-se, recriando o épico pulsar de uma cidade que atravessou o Atlântico

e se embrenhou no Amazonas. A História de Mazagão lembra algumas das obras de Franz

Kafka, onde a utopia, o absurdo, e a opressiva burocracia tomam conta de sua população,

encarcerada primeiro por muros de pedra, depois por muros de papel (a tal burocracia) e no

final, por muros de densas florestas.

Mazighan – em português “água caída” palavra berbere que se referia aos poços

utilizados para recolher água da chuva, onde não existiam nascentes perpétuas.

− (Texto a ser inserido no início do filme)

2

Mazagão, Migração de um Mito

Primeira Parte – Mazagão Africana

Mostrar-se-ão imagens da costa marroquina, incidindo sobre os locais onde se firmaram outrora

outras praças portuguesas (Alcácer Ceguer, Tânger, Arzila, Mamora, Azamor, Safi, Agouz,

Castelo Real, Agadir e Massat). As imagens darão a ideia da extensão da costa africana, sua

distância de Portugal, dando ideia da localização de Mazagão, que curiosamente ficava no meio

dessa rede de praças e fortalezas.

3: Praças Portuguesas no Norte de África entre os séculos XV e XVIII4: Planta de Mazagão, 1611, Instituto dos Arquivos Nacionais, Torre do Tombo

Voz Off (1)

1505 - «Jorge de Melo, «o Lajes», desembarcou em Mazagão Velho, com gente à sua custa e

materiais, para aí fundar uma fortaleza. Tendo começado a abrir alicerces e a formar muralhas,

foram atacados pelos mouros dos aduares vizinhos da Duquela, que puseram fogo ao castelo que

estava a ser construído. Terão perecido cerca de quatrocentos e cinquenta portugueses, que foram

sepultados num revelim chamado «da Cruz»».

(citação retirada de História de Mazagão, de Duarte Ferreira do Amaral. Edições Alfa, pag.91)

Em seguida dar-se-á destaque à Fortaleza de Mazagão, conhecida actualmente como “Cité

3

Mazagão, Migração de um Mito

Portugaise”. Se possível será feita a entrada pela porta do mar dentro de uma embarcação. Em

seguida, imagens das muralhas e ruas estreitas, suas casas, seus habitantes, a exuberante

cisterna, que era afinal o coração da vila, onde se armazenavam a água e os víveres. O cenário da

Mazagão marroquina será o mesmo na primeira e terceira parte, só a abordagem e a escolha de

algumas imagens ditará o tempo a que se remete, primeiramente o passado, depois o presente e

as questões sobre o futuro.

5: Porta do Mar na actualidade ( por aqui entravam as embarcações)

6: Cisterna (no interior da Fortaleza) 7: Uma das ruas da Cidade Portuguesa, hoje um forte foco de atracção turística

São muitos os focos de interesse dentro e fora da área que circunda a Fortaleza (Cité Portugaise),

hoje transformada num bairro judeu (“Mellah”). Por toda a parte ainda se notam vestígios da

presença portuguesa, esses vestígios serão ressalvados, na arquitectura, as igrejas, as portadas,

as muralhas, a cisterna, registos de um passado português. A fortaleza, foi inspirada na

experiência do engenheiro imperial italiano Benedetto da Ravenna, um homem da geração

pioneira do baluarte poligonal, que em conjunto com os arquitectos Miguel Arruda e Diogo de

Torralva e o infatigável construtor João de Castilho foram os principais responsáveis pela

construção da excepcional fortaleza.

Dar-se-á um curto enfoque das transformações (já que é na terceira parte que se dará

destaque à(s) Mazagão do presente), através das imagens da actualidade, contrapondo-as

ocasionalmente com o voz-off de antigas crónicas e cartas. Dar-se-á destaque a registos

(escritos em crónicas ou outros documentos, e por interpretações de pesquisadores) que

sublinhem o relacionamento entre portugueses e “mouros” Laurent Vidal confirma-o: «(...) em

tempos de paz, os habitantes de Mazagão mantinham com eles relações que de modo algum

eram conflituais. Esses “mouros” pertenciam a dois grupos étnicos diferentes: os árabes, que

viviam nas cidades (Marraquexe, Mogador e principalmente naquela região, Azamor), e os

4

Mazagão, Migração de um Mito

berberes, especialmente os alarves, que viviam em tribos. (...) deste modo, quando os

abastecimentos tardavam, ou em períodos de escassez, não eram raras as deslocações de

portugueses a Azamor para comprar gado. E o inverso também era possível».

O discurso imagético acompanhará o discurso histórico (seja através de entrevistas ou

inserções em voz-off) de forma subtil, ressalvar-se-á primeiramente a grandeza da actual

Mazagão (El Jadida), acompanhando com o tempo cronológico da sua fundação, seu auge e seu

declínio gradual, mostrando depois alguns pontos mais negativos da Mazagão do presente, a

pobreza, os malefícios do turismo, a poluição. Desta forma, conseguir-se-á introduzir a ideia do

pulsar do tempo, um salto vertiginoso, um hiato entre a Mazagão do século XVI e a do século

XXI. O final da primeira parte lança anuncia de forma breve, o tema da terceira e última parte

de “Mazagão, Migração de um Mito”.

8: Negociantes judeus em Mazagão, século XIX 9: El-Jadida actual – Vista da fortaleza e cidade

Voz Off (2)

28 de Abril de 1521 - «O alcaide Yacob el Garib, xeque dos Gharbiya, fez corridas, pôs cerco a

Mazagão e tomou gado que era dos da praça. Morreram cristãos e mouros junto dos muros do

castelo».

(citação retirada de História de Mazagão, de Duarte Ferreira do Amaral. Edições Alfa, pag.93)

5

Mazagão, Migração de um Mito

Voz Off (3)

22 de Abril de 1548 - «Cerca de quatrocentos mouros de cavalo correram Mazagão às duas horas da

tarde, mas os atalaias estavam nos seus postos e, assim como o gado, recolheram-se bem, não tendo

havido consequências». (citação retirada de História de Mazagão, de Duarte Ferreira do Amaral. Edições Alfa, pag.101)

Voz Off (4)

29 de Abril de 1623 - «Os mouros, em número superior a dez mil, bem armados, vieram sitiar a praça

quando os portugueses, com o capitão, desprevenidos, estavam no campo colhendo rama. Recolheram

estes em boa ordem até ao primeiro revelim, onde pelejaram, ajudados pela artilharia da fortaleza. A

mulher do capitão, vendo o perigo, mandou fechar as portas, para que os mouros não entrassem.

Acabaram estes por retirar com muita perda de gente e entre ela dois alcaides. Os portugueses não

eram mais que quatrocentos e deles apenas morreu um, não tendo havido feridos. Sofreram porém,

muito dano no armamento, pois rebentaram duas peças de artilharia, e desenvalgaram quatro,

rebentaram mais de cem mosquetes e quebraram-se muitas lanças». (citação retirada de História de Mazagão, de Duarte Ferreira do Amaral. Edições Alfa, pag.139)

Voz Off (5)

13 de Abril de 1720 - «Baixou uma alarca de mouros com mais de seis mil homens e meteram-se

debaixo da artilharia nos revelins e, com inúmeras cargas de mosquetaria, pretenderam fazer parar o

manejo de artilharia. Tê-lo-iam conseguido se o cavaleiro Jacinto Nunes de Abreu se não achasse no

baluarte do meio da fortaleza e com ânimo resoluto não tivesse começado a disparar a artilharia,

recebendo duas pelouradas e com elas tendo permanecido até ao fim». (citação retirada de História de Mazagão, de Duarte Ferreira do Amaral. Edições Alfa, pag.200)

A recta final incidirá sobre o seu declínio na última década, a decisão de abandonar a mais

importante praça portuguesa no norte de África, a revolta dos mazaganistas contra essa decisão,

e o cerco esmagador de Mulay Mohamed e seus 120.000 homens. Essa saída foi acompanhada

pela destruição dos edifícios principais e pelo armadilhamento da porta de acesso à fortaleza,

cuja explosão veio a impedir o acesso à cidade, levando consigo a vida de numerosos mouros.

Essa explosão foi no entanto precipitada pela quebra das tréguas por parte dos homens de

Mulay Mohamed. Essa destruição doou à cidade um novo nome após a partida dos portugueses:

El Mahduma (a destruída), a cidade ficaria abandonada durante cinquenta anos (ora por volta

6

Mazagão, Migração de um Mito

de 1821), e só depois receberia o nome de El Jadida (a nova) e aí se instalariam uma colónia

judaica e duas tribos berberes. Coube ao Rei D. José a decisão de abandonar a praça,

aconselhado por Marquês de Pombal e seu irmão Furtado Mendonça, os dois irmãos foram aliás

os planeadores judiciais da saída dos mazaganistas de Marrocos para o Brasil.

Voz Off (6)

30 de Janeiro de 1769 - «Pelas onze horas da manhã chegaram junto da fortaleza dois mouros

trazendo uma bandeira, com uma mensagem do imperador a propor rendição, sob pena de passarem

todos os portugueses à espada. Retiraram sem esperar pela resposta, após o que os mouros começaram

a fazer tiro, descarregando enorme quantidade de balas sobre a fortaleza. Caíram nesta, nesse dia,

mais de duzentas bombas. E até 9 de Março caíram cerca de duas mil, que arruinaram muitos

edifícios e mataram algumas pessoas. Uma bomba que caiu sobre um armazém da Rua de Aires

Velho matou nove pessoas, incluindo o velho adail Diogo Pereira Português e a mulher, D. Leonor de

Pinho, e ferindo outras. Os portugueses não estavam entretanto inactivos. De cima das muralhas

faziam repetidas descargas, matando ou ferindo todo o mouro que se descobria nas trincheiras, e

oferecendo-se para irem combater no campo, o que o governador vedava». (citação retirada de História de Mazagão, de Duarte Ferreira do Amaral. Edições Alfa, pag.258)

Voz Off (7)

1 Março de 1769 - «Chegaram à baía catorze embarcações portuguesas, idas de Lisboa, com munições

e vários mazaganistas. Pensavam os da praça que era o socorro que esperavam. Ao contrário, porém,

ia nelas a ordem régia para entregar a praça aos mouros e para que todos os que lá estavam

embarcassem para Lisboa. Logo que a ordem foi conhecida, deu-se uma espécie de motim, no terreiro

do palácio do governador, mas os moradores acabaram por submeter-se à ordem. No entanto, segundo

a versão de Mateus Valente do Couto, a defesa tinha chegado já à última desesperação, a ponto de os

sitiados terem decidido sobre a eventual liquidação das mulheres e crianças para não serem presas dos

mouros. Teria sido com alívio que tinham recebido a chegada dos transportes para evacuação». (citação retirada de História de Mazagão, de Duarte Ferreira do Amaral. Edições Alfa, pag.258)

Voz Off (8)

11 de Março de 1769 - «Foi feito o embarque de toda a gente. Antes de partirem, destruíram as pedras

sacras das igrejas, encravaram as peças de artilharia, mataram os cavalos e mais gado e minaram

7

Mazagão, Migração de um Mito

todos os baluartes. Apenas trouxeram as imagens e os livros da vedoria e dos assentamentos. Soube-se

depois que o rebentamento da pólvora dos baluartes veio a provocar a morte a milhares de mouros, que

festivamente entraram na praça». (citação retirada de História de Mazagão, de Duarte Ferreira do Amaral. Edições Alfa, pag.258)

Segunda Parte – Mazagão Amazónica

Após o abandono de Mazagão, os seus habitantes fizeram ainda uma passagem por Lisboa.

Mostrar-se-ão por isso imagens do mar e da costa lisboeta. Durante esta breve estadia na cidade,

onde permaneceram durante seis meses (de Março a Setembro de 1769) antes da partida para o

Brasil, a maioria dos mazaganistas ficaram alojados no convento dos Jerónimos e suas cercanias,

em Belém. Filmar-se-á toda essa zona, onde terão sido alojados os mazaganistas, antes de

partirem para fundar a Mazagão Amazónica. Durante esta estadia, alguns mazaganistas foram

presos, alguns por originarem desacatos, outros por tentarem fugir, no fundo, era um povo que

se sentia injustiçado, por não saber o que os esperava.

Voz Off (9)

«Ao desembarcar no cais de Belém, os mazaganistas não sabiam que destino os esperava. Só depois

de conhecer o que lhes estava reservado iriam adaptar o seu comportamento e, por vezes usar de

manhas (...) Foi no trânsito por Lisboa que Mazagão se afirmou como comunidade: anteriormente,

parecia só se consolidar de uma maneira efémera, por ocasião das batalhas contra os mouros». (citação retirada de Mazagão, a cidade que atravessou o Atlântico, de Laurent Vidal. Edições Teorema, pag.81)

Voz Off (10)

«O mar, que sempre haviam considerado nutriente e protector (era por mar que lhes chegavam

provisões e reforços, era ao mar que eles iam pescar ou apanhar marisco), esse mar trouxera-lhes a 8

de Março de 1769 a triste notícia do abandono da sua fortaleza. E era também esse mar, no qual

vogavam havia mais de dez dias em embarcações mal providas, que lhes trazia novos sofrimentos e

privações: o enjoo debilitava-os, a fome e a sede atormentavam-nos». (citação retirada de Mazagão, a cidade que atravessou o Atlântico, de Laurent Vidal. Edições Teorema, pag.65)

Foi a 15 de Setembro de 1769 que os mazaganistas deixaram Portugal rumo ao Brasil, mais

propriamente a Belém do Pará, onde algumas famílias chegariam a aguardar dez anos até à sua

transferência definitiva para a Mazagão Amazónica. A Belém chegavam escravos negros,

8

Mazagão, Migração de um Mito

oriundos de África, serviam também como pagamento às famílias mazaganistas e seguiriam

também eles para fundar a nova cidade. E era uma cidade mestiça que se movia e se anunciava,

portugueses, alguns mouros convertidos, índios, negros, todos iriam fazer parte dela. A

Mazagão Amazónica estava em processo de construção, processo que consecutivas vezes se

atrasou. Coube ao arquitecto luso-italiano Domingos Sambucetti o desenho do traçado da nova

vila.

Voz Off (11)

«Era, de certo modo, uma cidade em peças soltas que se preparava para atravessar o Atlântico: os

habitantes foram repartidos por famílias facilmente intermudáveis e devidamente numeradas, o

material de construção destinado a erguer novos muros foi encaixotado e inventariado; estavam

prontas a tomar forma novas instituições civis; as cartas de nomeação dos funcionários seguiram

igualmente no comboio; e foi também constituído um primeiro fundo de maneio. Também não fora

esquecida a dimensão espiritual: os porões do galeão “Nossa Senhora da Glória” foram carregados

com objectos de culto, estátuas e quadros provenientes das igrejas da praça forte». (citação retirada de Mazagão, a cidade que atravessou o Atlântico, de Laurent Vidal. Edições Teorema, pag.91)

Novamente imagens do mar, em seguida, imagens da costa brasileira, belenense, o mar

representa a linha do triângulo mazagónico: Portugal-Marrocos-Brasil. Registar-se-ão imagens

do rio Guamá que liga Belém ao mar, por onde entraram outrora os mazaganistas, antes de

seguirem para a nova Mazagão, algumas centenas de quilómetros a noroeste. Mostrar-se-á a

igreja do Carmo edificada pelo arquitecto italiano Antonio Landi e o forte do Presépio, edifícios

que os mazaganistas terão concerteza visto na altura. Será importante registar imagens da

Belém brasileira, a segunda Belém afinal por onde fizeram passagem (pois após a partida de

África foi pela zona de Belém, em Lisboa que a maioria dos mazaganistas aguardaram a partida

para o Brasil). Outras imagens, de urubus a esvoaçar os céus, a intensa vegetação, os rios

lamacentos, formarão uma paleta que contrastará com as paletas captadas em Marrocos e em

Lisboa, essas diferenças de tonalidade intensificarão a brusca e violenta transformação de

Mazagão. Contudo, em Belém do Pará, os mazaganistas foram inicialmente bem recebidos:

Voz Off (12)

«Até agora só posso dizer a V.Exª que se conservão os novos povoadores sem estoria, e satisfeitos por

9

Mazagão, Migração de um Mito

terem comprehendido o melhoramento da sua fortuna: recebem a ração diária de farinha, e peixe seco,

ou arroz e carne seca da Parnayba, porque havendo eu tratado este comercio com os homens de negº

daquella villa, consegui que viessem as sumacas a este porto, tendo chegado já cinco com vinte e duas

mil arrobas. A introdução das referidas carnes tem posto a terra tão abundante [que] sendo em dóbro

os Mazaganistas acharião toda a providência». (citação retirada da carta nº83 (BNL – POMB Cod.616) - do governador Ataíde e Teive para Mendonça Furtado em Janeiro de 1770)

Porém, os meses que se seguiram, tornaram a denunciar a frágil condição dos mazaganistas, que

já em Lisboa se tinham revoltado. Num curto espaço de tempo, o sentimento de abandono e

desprezo a que se sentiam relegados volta de novo à tona. «O renascimento de Mazagão não

produziu, portanto, uma reprodução idêntica da antiga fortaleza. Embora inserindo-se no seu

prolongamento, Nova Mazagão era muito diferente dela, e surge-nos como o resultado de um processo

original. Assim era a cidade-palimpsesto: na cidade de papel vinham enxertar-se a cidade em

estaleiro, a cidade índia, a cidade colonial e a cidade mestiça dos neomazaganistas. Todas estas

cidades, reais ou imaginárias, formais ou informais, se sobrepunham e se imbricavam, mas também

entravam em conflito.». (citação retirada de Mazagão, a cidade que atravessou o Atlântico, de Laurent Vidal. Edições Teorema, pag.190).

As primeiras famílias viajaram de Belém a Mazagão em canoas, escavadas em enormes troncos

de árvore sem quilha nem leme, variando entre os 11 e 17 metros de comprimento. Canoas

similares a estas ainda se utilizam no norte do Brasil. Será por isso interessante reconstituir essa

viagem de canoa, percorrendo uma extensa trama de rios até alcançar o ramo norte do

Amazonas e subir depois até Mazagão pelo rio Mutuacá.

10:Carta topográfica daVila de Mazagão – Mapoteca do Itamari 11: Mapa do Estado do Amapá, onde se situa Mazagão Velho

10

Mazagão, Migração de um Mito

Logo à chegada das primeiras famílias à Nova Mazagão em 1771, choveram protestos sobre o

comandante da vila e o provedor, a atribuição das casas e a fome eram as queixas mais comuns.

Será importante mostrar imagens das antigas plantas, assim como das ruínas das construções

antigas. Nos anos seguintes, embora a cidade se desenvolvesse e ganhasse alguma actividade

económica, fosse autónoma e dispusesse de um importante exército de reserva, a chuva e o calor

extremos faziam crescer os casos de doença, intrigas, violência, alcoolismo, roubos e fugas. E

fugiam negros, índios e neomazaganistas, os índios foram aliás, os primeiros a fugir, refugiando-

se em povoações vizinhas, os negros eram os que menos fugiam, já que a floresta amazónica era

para eles um universo estranho. As obras atrasavam-se consecutivas vezes, as fugas e as

intempéries eram os principais culpados:

Voz Off (13)

«Atestamos e certificamos que todas as propriedades de cazas que se tem edificado e estão ainda

constroindo nesta Villa, sam formadas de madeira e cobertas de palha cuja cobertura só dura quando

muito o tempo de quatro annos(...) as muitas trovoadas que nos emvernos se experementão de

rigorozos ventos e continuadas chuvas hé que as fazem demolir (...) pelas muitas agoas que o terreno

conserva, apodrecem as madeiras que formão os alicerces». (citação retirada da “Atestação do mestre carpinteiro e do mestre pedreiro” 19-12-1778 AHU – Pará cx. 82, d. 6720)

Ironicamente, o clima deléterio da antiga Mazagão era similar ao da Nova, a população sofria na

mesma medida, se bem que por motivos diferentes. Os guerreiros, fossem nobres ou não, tiveram

que trocar a espada pela enxada, os seus filhos não tinham educação adequada, pois no início

não haviam mestres, esse facto alfigiu principalmente as famílias mais nobres. E embora fossem

recebendo ensinamentos preciosos com os índios sobre como tirar proveito dos recursos da

floresta, facto curioso que denunciava um crescente poder dos índios sobre a vida do dia-a-dia

dos mazaganistas, estes não tinham sido traçados para as lides da terra.

A Nova de Mazagão “apodrecia” e era a memória da antiga e gloriosa Mazagão que fazia

com que a identidade da povoação sobrevivesse. No entanto, o espírito indómito dos

mazaganistas teimava em renascer tal qual uma fénix. E por volta de 1777 com a morte de

D.José aquando da aclamação da Rainha D.Maria e do seu casamento, que ao ser pedido por

Lisboa a celebração de tal acontecimento em todas as regiões do império, os mazaganistas volta

a ser notícia e motivo de espanto. Com apenas alguns dias de preparação, os mazaganistas

11

Mazagão, Migração de um Mito

organizaram uma estrondosa festa, cortejos, cânticos acompanhados com dançarinos

mascarados, compuseram-se poemas, representaram-se sete óperas! Essas óperas, compostas

pelo libretista italiano Pietro Domenico Bonaventura Trapassi cognominado Metastasio

deveriam ser do conhecimento da nobreza de Mazagão, que concerteza tivera acesso a tais

representações em Portugal, já que o compositor italiano estava em voga na época. Este

acontecimento chamou a atenção do reino sobre a Nova Mazagão, será interessante usar o som, e

porventura imagens sobre estas óperas, os neomazaganistas quiseram através delas passar uma

mensagem, de desespero, de revolta. Tendo sido valorosos guerreiros, não eram capazes de ser

lavradores, ou comerciantes, ou em suma – colonos. E foi artisticamente que se conseguiram

manifestar de forma mais preeminente. A partir dessa festa de 1777, os neomazaganistas iriam

passar a dirigir-se à rainha, protestando, adoptando uma linguagem própria, referindo-se a um

passado glorioso, saudosista.

Essa festa viria provavelmente a marcar o espírito mazaganista em gerações futuras e

talvez ser a génese da actual festa de São Tiago de Mazagão que ainda hoje se comemora.

O descontentamento é patenteado na primeira carta de petição à rainha, datada de Julho

de 1778:

Voz Off (14)

«O fim que aquele Povo infelis se propoem é o de alegar para merecer; mas remetendo ao silençio os

relevantes serviços de seus progenetores, pellos quaes merecerão acrescentados premios e sangue que

deramarão emquanto aquella Praça foy vivo Theatro de viva guerra; e o perderem na evacoação della

tudo quanto possuião, elle passa a expor a Vª Magestade os pezados trabalhos que tem sofrido desde a

infeliz epoca da sua memoravel extinção (...) tal foy, soberana Rainha, e Senhora Nossa, o aperto

com que no referido do estado foy aquelle infeliz Povo mandado a estabelecer; que nem podem

descriver-se na Real prezença de Vª Magestade com inteireza muitas particularidades da mizeria que

o acompanha, como são o faltarem as obrigações de Catolicos, huns pella indecencia dos trages, e

outros pella desnudez e outras muitas que farião denegar a narractiva infastidiosa.». (citação retirada da “Requerimento dos moradores da extinta praça de Mazagão...” ?-07-1778 AHU – Pará cx. 80, d. 6639)

Ora a chamada de atenção surtira algum efeito, foi então pedido ao governador João Pereira

Caldas um relatório ao completo sobre a vila. Em Fevereiro de 1779 eram transmitidos os

resultados do inquérito ao ministro Martinho de Melo e Castro. O governador pedia que se desse

12

Mazagão, Migração de um Mito

a liberdade às famílias de Nova Mazagão de se fixarem noutro local daquela capitania, e de

conceder melhores condições às famílias que pretendessem ficar. Nenhum pedido surtiu efeito. A

crise em Mazagão piorou com uma epidemia de paludismo. Muliplicavam-se as fugas e actos de

desobediência. Os pedidos para retornar a Belém amontoavam-se. Começava a surgir a ideia de

tolerar uma deslocação da vila. Decidiu-se então em 1783 pôr termo à institucionalidade da

delocação e refundação de Mazagão na Amazónia, cerca de 15 anos depois do abandono da praça

africana. A coroa cortava relações com a Vila, deixando de pagar aos seus habitantes. Escasseia

por isso informação sobre a povoação durante longo período, visto ter deixado de existir a

fervorosa troca de cartas, havendo algumas referências ocasionais. Com a declaração de

independência do Brasil em 1822 e a aderência do Pará um ano depois, originar-se-iam novas

mudanças no destino de Mazagão. E em 1833, Mazagão perdia não só o estatuto de vila como o

nome, passando a chamar-se Regeneração, era uma nova provação à povoação e à sua vontade

inquebrantável, os mazaganistas ainda redigiram um protesto, mas em vão. O Brasil fervilha, e

embora tenha declarado independência, os seus políticos continuam a manter relações com

grande comércio português, os mesmos políticos que durante dez anos reprimiram os

movimentos independentistas populares. No Pará, forma-se uma guerrilha de homens armados,

os cabanos, formado maioritariamente por mestiços, índios e negros, combatem o governo, são

liberais radicais, e invadem Belém. As tropas imperiais retomam Belém alguns meses depois. Os

mazaganistas voltam a entrar em cena decidindo organizar uma resistência aos cabanos, em

colaboração com os habitantes de Macapá, as tropas legalistas eliminam em 1840 os últimos

focos da rebelião. E em 30 de Abril de 1841, Mazagão recupera o seu nome. A vila atravessa uma

nova fase, pobre em registos históricos. E a 9 de Julho de 1915, face ao estado de isolamento,

insalubridade e precaridade económica decide-se abandonar o local e instalar os habitantes de

Mazagão em Vila Nova de Anauerapucú, rebaptizando-a de Mazaganópolis. A Nova Mazagão

passa a chamar-se de Velha Mazagão, e ficam ainda a habitá-la algumas famílias. Mas surge por

esta altura outro fenómeno extraordinário, se ainda que pouco documentado e registado: a

instalação de uma povoação de escravos fugitivos, designados como quilombolas na cercania da

Velha Mazagão, pois ao encontrá-la tão isolada, encontraram nela o refúgio ideal, seria até na

época um dos maiores do Pará. Com o registo de algumas imagens de Mazaganópolis, termina-se

a segunda parte.

13

Mazagão, Migração de um Mito

Terceira Parte – Mazagão dos nossos dias

Na terceira parte, voltaremos a El-Jadida e a Mazagão-Velho. Dar-se-á maior destaque ao

quotidiano, à vida presente de ambos os locais. Somar-se-ão entrevistas aos seus habitantes. Em

Mazagão Velho dar-se-á especial destaque à Festa de São Tiago. À entrada da vila, lê-se

inclusive, num pórtico majestoso: “Benvindo em Mazagão Velho, terra de São Tiago”, será a

mensagem ideal de entrada na vila. Será importante registar imagens das ruínas da igreja da

Nossa Senhora da Assunção que data do século XVIII, ruínas que hoje se encontram enredadas

em ramadas, trepadeiras e troncos de árvore. Por altura das vésperas da festa anual, a vila

fervilha de actividade, toda a povoação (que actualmente não ultrapassa os 500 habitantes, mas

que por altura da festa traz centenas de visitantes à Velha Mazagão) se apressa a finalizar os

últimos preparativos. Pintam-se fachadas, estendem-se faixas nas árvores, Mazagão enche-se de

cores. Grupos musicais maioritariamente formados por negros cantam de casa em casa, o género

musical chama-se Marabaixo, o ritmo da percussão marca a sua sonoridade. Mas outra música se

ouve nos festejos, é a música religiosa, em conjunto com o samba ou mesmo o techno. O sagrado

e o profano misturam-se. A cerimónia começa, Mazagão está quase na penumbra e ouvem-se três

tiros de espingarda à porta da capela, surgem dois cavaleiros vestidos de branco, representam os

cavaleiros cristãos, retiram as estátuas de São Jorge e São Tiago do altar e levam-nos com eles,

outros cavaleiros, também de branco, outros de vermelho (representando os mouros) tomam

lugar no cortejo. Um dos cavaleiros mouros surge segurando um estandarte vermelho com duas

cimitarras. Em seguida surgem o cavaleiro de São Jorge e o de São Tiago.

12: Fotogramas super8 de cavaleiro representando São Tiago – Festa de São Tiago de Mazagão

Á frente do cortejo vários jovens lançam fogo de artifício. À noite começa o baile, ouve-se

música variada, misturam-se ritmos, samba, forró e zouk com rock e techno a ideia dos

14

Mazagão, Migração de um Mito

organizadores da festa é cativar os jovens e tentar convencê-los a participar, por isso cedem na

escolha de algumas músicas para os bailes. A festa termina ao amanhecer, e começa a cerimónia

religiosa de manhã cedo, e assim se decorre a semana neste inalterável ritmo, até à batalha final

que decorrerá nos últimos dois dias. Na madrugada do primeiro dia de batalha, a população

percorre a casa dos figurantes do cortejo (são eles São Tiago, São Jorge, os atalaias e os

emissários mouros) A primeira casa visitada é a de São Tiago, os tambores entram pela casa sem

deixar de rufar, um pequeno grupo de homens canta e dança, a dona da casa recebe a multidão

com comida e bebida, assim se segue o cortejo de casa em casa.

13: Fotogramas super8 cavaleiros representando mouros e cristãos, ao centro, de amarelo segue São Jorge – Festa de São Tiago de Mazagão

Com todos os protagonistas em cena, a representação começa. Os emissários mouros, vêem

oferecer aos dignatários católicos várias iguarias como prova do seu apreço, os dignatários

aceitam a oferta, mas desconfiam que estas estejam envenenadas. Os habitantes mais ilustres

que recebem as iguarias são visitados em casa pelos figurantes mouros e cristãos que cantam e

14: Fotogramas super8 figurantes mouros levando oferendas aos dignatários cristãos – Festa de São Tiago de Mazagão

tocam tambor, o cantor improvisa muitas vezes a letra. À noite é organizado um baile de

15

Mazagão, Migração de um Mito

máscaras a fim de comemorar a pretensa vitória dos mouros sobre os cristãos, só os homens

estão autorizados a participar do baile. Uma panóplia de máscaras invade o baile, algumas de

cartão, outras de plástico. Nesse baile os mouros perderão o seu chefe, Caldeira, pois os cristãos

haviam-se infiltrado no baile com as mesmas iguarias envenenadas, que numerosos infiéis terão

ingerido. Na manhã seguinte outro personagem tomaria o seu lugar, uma pequena criança, seria

o Menino Caldeirinha. A estória prossegue, entre mais procissões e confrontos, espingardas

disparam pólvora seca, fazem-se leilões, novas missas, um grande almoço organizado pelo

município.

15: Fotografias de vários figurantes de cavaleiros mouros– Festa de São Tiago de Mazagão – As suas fisionomias tão diversas fazem pensar em suas origens, vemos neles rostos berberes, europeus, africanos, indígenas

No final da festa, são os cristãos que vencem a batalha, ao contrário do que se verificou afinal na

história, mas o imaginário de Mazagão esse venceu a mais dura das provas, que os seus

povoadores souberam manter. As grandes personalidades da festa são curiosamente negros,

provavelmente descendentes dos escravos quilombolas fugidos no século XIX. E são na maioria

negros que habitam a Velha Mazagão e dinamizam a festa, porém, entre os figurantes, é possível

sem grande imaginação denunciar a presença de traços indígenas e portugueses, o panorama de

16

Mazagão, Migração de um Mito

rostos pinta uma paleta que traduz a multiculturalidade que singularizou Mazagão desde os seus

primórdios. O panorama de rostos pinta uma paleta que traduz a multiculturalidade que

singularizou Mazagão desde os seus primórdios. A festa de São Tiago de Mazagão tem sido

realizada todos os anos de 16 a 28 de Julho, e os seus participantes mais fervorosos ( Senor Vavá,

Sendinho, Rozacema e Josué) afirmam que se tem realizado anualmente desde 1777, porém,

tudo indica que as festividades terão sido interrompidas nos anos seguintes, só tendo vindo a

ressurgir depois da criação de Mazaganópolis em 1915.

16: Fotografias de vários figurantes – Festa de São Tiago de Mazagão

Voltando a África do presente, mais propriamente a El-Jadida e à Cité Portugaise é

importante relembrar que se tornou património da Unesco em 2004. A Nova cidade, no exterior

das muralhas fervilha de actividade, os turistas são atraídos não só pela magnífica fortaleza mas

também pelo facto de aqui existir uma das melhores praias de Marrocos. Os marroquinos, depois

do abandono de cinquenta anos da fortaleza portuguesa, foram-se apercebendo aos poucos da

sua importância, tendo sido eles a pedir que esta se tornasse património da humanidade, e

conseguiram-no sem dúvida. A partir de 1827 foram-se instalando não só judeus, como algumas

famílias europeias, principalmente espanholas, foi até instalada na cidade uma mesquita.

Interessa registar esses elementos que denunciam o processo de transição da Mazagão do

passado à Mazagão do presente. A maior mudança da Mazagão marroquina decorreu no entanto

durante o protectorado francês a partir de 1912, a fortaleza entrava assim numa nova idade de

ouro. Os franceses viam em Mazagan ( por essa altura decidiram também eles recuperar o nome

com que os portugueses a tinham baptizado) uma grande mais valia, se por um lado tinha um

dos melhores (senão o melhor) portos de Marrocos, possuía também um enorme potencial

turístico, com extensos areais e marés calmas. Desde essa época, Mazagan, (hoje novamente El-

17

Mazagão, Migração de um Mito

Jadida) tornou-se o um forte foco de atracção turística, houve quem lhe chamasse já o Deauville

marroquino. Essa visão francesa levou a que se desenvolvesse a partir de 1916, uma cidade fora

das muralhas, em especial para leste, ao longo do extenso areal, e se renovasse a fortaleza. O

objectivo era tornar toda a região num eficiente chamariz de turismo. Será importante registar

esse fenómeno actualmente, de que forma convive o turismo a par com a história tão violenta e

épica de Mazagão e sua fortaleza. A recuperação da memória da fortaleza pela administração

colonial francesa teve o apoio benévolo de Portugal. Foram chamados conselheiros portugueses,

Oliveira Martins chegou mesmo a afirmar: «assim, Mazagão, embora esteja debaixo do domínio

da França, é uma cidade que continua portuguesa». Uma grande parte do conhecimento

científico da história da cidade portuguesa se deve ao trabalho de investigadores franceses, que

de 1930 a 1950 se dedicaram ao seu estudo. A partir de 1956, depois da independência de

Marrocos, a cidade retomou o seu nome de 1821: El Jadida. Da fortaleza original, o que se

encontra mais bem conservado são os muros, o baluarte e a cisterna, com a explosão de 1769,

apenas desapareceu o baluarte do governador, o baluarte do Serrão encontra-se apenas um

pouco diminuído. O traçado das ruas sofreu modificações, porém ainda nos podemos deparar

actualmente com as Ruas da Carreira, da Cadeia, da Nazaré, das Curvas e do Celeiro, assim

como a Praça do Terreiro. Outros edifícios dão ainda hoje perfeita ideia da presença portuguesa.

Alguns restos do material bélico estão hoje guardados no museu instalado numa galeria do

edifício do castelo. Poucos canhões portugueses subsistem no muro. A Unesco declara em 2004 a

justificar a escolha da cidade portuguesa para seu património: «o excepcional valor do local,

testemunha da troca de influências entre as culturas europeias e a cultura marroquina».

Restaria acrescentar, a esta declaração sobre a “Mazagão Africana”, que a Mazagão mítica, a

que engloba toda a história, suas lendas, suas outras estórias indizíveis, seus silêncios, seus

desesperos, suas mortes, seus heróis, da migração de África, pela Europa, pelos mares, pelos rios

Amazónicos, serviu também como testemunha de troca de influências entre as culturas

europeias, marroquinas, africanas, indígenas, brasileiras, portuguesas - trespassando a morte e o

tempo. É nesse espírito afirmativo de sua vontade e sua energia criadora que terminará o filme

documental “Mazagão, migração de um mito”.

As fotos da Festa de São Tiago de Mazagão são de autoria de Helga Roessing, a filmagem super8 de onde foram retirados os fotogramas da mesma festa

são da autoria de Ricardo Leite e Francisco Weyl.

18