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Módulo 5 Uso de armas de fogo: prós e contras Apresentação do Módulo Em seu famoso e eficiente curso de treinamento de policiais sobre o uso de armas de fogo, o coronel reformado da PM de São Paulo, Nilson Giraldi, começa por dizer: “Vocês precisam saber usar seu armamento com competência para se manterem vivos... E para não serem presos por matarem inocentes, além de protegerem a sociedade”. Esse conselho, dado por um policial experiente, que elaborou um treinamento a partir do que há de mais moderno em outros países, dá bem a importância do conhecimento sobre o manejo de armas de fogo. Veja mais nos links a seguir: Manejo de armas de fogo 1 www.esmp.sp.gov.br/eventos/passados/giraldi_atuacaopolicia.doc Manejo de armas de fogo 2 http://www.youtube.com/watch?v=OZxtxBuIUV4 O policial não pode continuar a ter um entendimento de leigo sobre o uso de armas. Como parte de sua profissão de risco, ele tem que conhecer a complexidade que envolve o manejo de armas de fogo. Não basta coragem para usar arma. Tem que ter competência. Objetivos do Módulo Ao final do estudo deste módulo, você será capaz de: Analisar os vários aspectos que incidem sobre o uso de armas, influindo sobre seu uso como instrumento de proteção ou de risco mortal; Identificar as diferentes situações que se apresentam para o uso de arma letal ou de baixa letalidade. Estrutura do Módulo Este módulo compreende as seguintes aulas: Aula 1 Uso de armas de fogo por policiais

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Módulo 5 – Uso de armas de fogo: prós e contras

Apresentação do Módulo

Em seu famoso e eficiente curso de treinamento de policiais sobre o uso de armas de

fogo, o coronel reformado da PM de São Paulo, Nilson Giraldi, começa por dizer: “Vocês

precisam saber usar seu armamento com competência para se manterem vivos... E para

não serem presos por matarem inocentes, além de protegerem a sociedade”. Esse conselho,

dado por um policial experiente, que elaborou um treinamento a partir do que há de mais

moderno em outros países, dá bem a importância do conhecimento sobre o manejo de armas

de fogo.

Veja mais nos links a seguir:

Manejo de armas de fogo 1 –

www.esmp.sp.gov.br/eventos/passados/giraldi_atuacaopolicia.doc

Manejo de armas de fogo 2 –http://www.youtube.com/watch?v=OZxtxBuIUV4

O policial não pode continuar a ter um entendimento de leigo sobre o uso de armas.

Como parte de sua profissão de risco, ele tem que conhecer a complexidade que envolve o

manejo de armas de fogo.

Não basta coragem para usar arma. Tem que ter competência.

Objetivos do Módulo

Ao final do estudo deste módulo, você será capaz de:

Analisar os vários aspectos que incidem sobre o uso de armas,

influindo sobre seu uso como instrumento de proteção ou de risco mortal;

Identificar as diferentes situações que se apresentam para o uso de arma

letal ou de baixa letalidade.

Estrutura do Módulo

Este módulo compreende as seguintes aulas:

Aula 1 – Uso de armas de fogo por policiais

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Aula 2 – Uso de armas de fogo por civis

Observação: O conteúdo deste módulo tem como fonte bibliográfica o livro Armas de

Fogo: proteção ou risco? (BANDEIRA; BOURGOIS, 2005).

Aula 1 – Uso de armas de fogo por policiais

Nesta aula, você estudará sobre a capacitação do policial brasileiro no uso de armas e

os feitos positivos para superar as lacunas das capacitações.

O uso do armamento será comentado à luz da orientação da ONU para o uso

diferenciado da força e das armas indevidamente denominadas “não letais”.

1.1. Mau uso da arma e excesso de mortes

Muitos policiais utilizam mal a arma de fogo: morrem demais e matam em excesso. É

possível apontar algumas das razões que afetam as corporações. São elas:

Falta de treinamento com tiro;

Deficiência nas técnicas de abordagem e confronto;

Dificuldades na investigação (que permitiria agir na ofensiva e de

surpresa, evitando mortes de ambos os lados);

Ação solitária (por exemplo, na Alemanha agem em equipe);

Armamentos e Equipamentos de Proteção Individual (EPI) inadequados

(nem sempre recebem coletes e capacetes de proteção).

Importante!

O “método Giraldi” tem sido um grande avanço na capacitação do uso de

armamento.

Segundo pesquisa qualitativa de Haydée Caruso, então antropóloga do Viva Rio, em

geral, os policiais terminam sua formação com pouquíssima prática de tiro e muitas vezes têm

que comprar sua própria munição.

Durante as entrevistas e o trabalho de campo que realizei com policiais

militares do estado do Rio de Janeiro sobre o processo de formação e

aperfeiçoamento desses profissionais, foi apontado que não é valorizada a prática de

tiro, principalmente entre as patentes subalternas. Diversos policiais argumentaram

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que terminaram seus cursos de uso de arma praticando apenas 5 tiros. Sendo assim,

analisam que não é feito nenhum tipo de investimento nesse sentido, mesmo que

haja carga horária prevista para tal na grade curricular. (HAYDÉE, 2004)

1.2. Normas estabelecidas pela ONU

Para garantir a segurança dos policiais e proteger as pessoas do abuso da polícia,

a ONU estabeleceu os “PRINCÍPIOS BÁSICOS SOBRE O USO DA FORÇA E ARMAS DE

FOGO PELOS FUNCIONÁRIOS RESPONSÁVEIS PELA APLICAÇÃO DA LEI” (VIII Congresso

da ONU sobre Prevenção do Crime e Tratamento das Vítimas, agosto 1990 ).

Alguns exemplos dessas recomendações são suficientes para mostrar que, apesar dos

esforços de várias ações, ainda há de se investir mais para alcançarmos as normas

internacionais:

- Considerando que uma ameaça à vida e à segurança dos policiais deve

ser considerada uma ameaça à estabilidade da sociedade como um todo;

- Considerando situações em que o uso legal da força e de armas é

inevitável, os policiais devem: (a) treinar para seu uso comedido e proporcional à

seriedade da infração e dos objetivos a alcançar; (b) reduzir ao mínimo o dano ou

ferimento causados, respeitando e preservando a vida humana;

- No treinamento de policiais, o governo deve dar especial atenção aos

aspectos éticos e de direitos humanos do comportamento policial, em especial

durante as investigações, criando alternativas para o uso da força, como a

resolução pacífica de conflitos (...), métodos de persuasão, negociação e mediação,

bem como de meios técnicos, com o objetivo de limitar o uso da força e de armas de

fogo;

- O governo deve regular o controle, estoque e uso de armas de fogo,

incluindo procedimentos para assegurar que os policiais sejam responsáveis pelas

armas de fogo e munição entregues a eles.

1.3. A polícia que mais morre e a polícia que mais mata

Em todo os EUA, morrem em média 150 policias por ano. No estado do Rio, até 2004

tínhamos o seguinte quadro:

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Tabela 11 - Policiais da PM mortos no estado do Rio de Janeiro.

Ano 1

998

1

999

2

000

2

001

2

002

2

003

2

004

Em

serviço

20

28

20

24

22

43

52

Em

folga

1

02

1

03

1

18

1

04

1

19

1

10

81

Total 1

22

1

31

1

38

1

28

1

41

1

53

133

Fonte: SSP/RJ, 2005.

Segundo o Tenente Melquisedeque Nascimento, presidente da Associação de Militares

Auxiliares e Especialistas, “o Rio responde por 1/3 das mortes de policiais em todo o Brasil.

A situação é assombrosa: em 2004 morreram mais policiais no Rio do que em toda a

Colômbia, que está em guerra civil e teve 65 mortes” (O Globo, Rio de Janeiro, 18.01.05).

De acordo com o então deputado Carlos Minc (PT/RJ), em conversa com o

conteudista, “dos 850 policiais civis e militares que morreram nos últimos 5 anos, 80%

estavam fora de serviço, a maioria trabalhando no ´bico´”.

Conforme a Ouvidoria das Polícias de São Paulo, morrem 4 vezes mais policiais fora

de serviço, isto é, em sua atividade de “bico”, do que no emprego oficial. Em 2003, morreram

76 PMs fora de serviço e 20 dentro; 497 foram feridos em horários de folga e 458 no

exercício da função (SSP/SP, out. 2004). A Bahia é o terceiro estado em mortes de policiais:

de janeiro a setembro de 2004, 39 policiais morreram, 34 PMs e 5 policiais civis, a maioria

fora de serviço. (SSP/BA, set. 2004)

Indo para o outro lado da mesma moeda...

Em todos os Estados Unidos, com cerca de 800 mil policiais, foram mortas pela

polícia 561 pessoas em 2000. (Relatório da Anistia Internacional, 2004). No estado do Rio,

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com 49.617 policiais, foram mortos 1.195 indivíduos pela polícia em 2003, embora tenha

havido uma redução em 2004 para 983 mortos (INSTITUTO DE SEGURANÇA PÚBLICA

da SSP/RJ, 2005). Em São Paulo, a matança atingiu 868 civis em 2003. (SSP/SP, 2004) A

especialista Julita Lemgruber estima que a polícia brasileira tenha matado cerca de 2.000

pessoas em 2004 (CENTRO DE ESTUDOS DE SEGURANÇA E CIDADANIA DA

UCAM). Em Portugal, país com pouco menos habitantes do que o estado do Rio (10.524.145,

para 14.713.611 no Rio, em 2005), houve apenas 2 execuções no mesmo ano.

A expressão maior dessa política “de guerra”, própria do modelo militar – e não do

modelo policial –, baseada na investigação e prevenção, foi a orientação implantada pelo

General Nilton Cerqueira, secretário de segurança do Rio de 1995 a 1998. Ele estabeleceu a

denominada “gratificação faroeste”, em que seus homens recebiam prêmio em dinheiro por

cada bandido morto, podendo dessa maneira aumentar em até 150% o seu ordenado. O

número de civis mortos pela polícia dobrou em pouco tempo, segundo pesquisa do sociólogo

Ignácio Cano. Seus estudos provaram que a maioria dos “bandidos” mortos naquele período

era de trabalhadores honestos, executados à queima-roupa com tiros na nuca e nas costas por

maus policiais ávidos de receber um extra (Cano, Ignácio: Letalidade da Ação Policial no

Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: ISER,1997).

De 2003 a 2010, 8.708 pessoas foram mortas pela policia no estado do Rio,

o que torna o estado campeão de brutalidade policial. A vítima é homem, jovem,

pobre, quase sempre negro e morador da periferia. Desse número de mortos, 35%

são considerados confrontos com pessoas armadas, e o resto são execuções

extrajudiciais. Raramente a Justiça considera o ato um assassinato, identificando-o

como “desvio de conduta individual”. Em geral, a vítima e o policial são do mesmo

grupo de origem, mas o policial entrou para a corporação, foi treinado e aprendeu

que deve matar para “salvar a sociedade”. Em determinado dia, ele arrisca a vida e

mata. Mais de mil casos todos os anos. Esse número já aponta para um padrão

previsto. Podemos fazer projeção para tais atos. Isto é, é uma política de governo

que se reproduz, é uma prática institucionalizada e não um desvio individual de

conduta. O julgamento, portanto, deveria ser não apenas do indivíduo, mas da

corporação, do governo, e de nós, população, por nosso silêncio. Isso só mudará

quando tivermos todos um compromisso com a mudança. (Palestra no V Encontro

Americano de Psicanálise de Orientação Lacaniana, Rio de Janeiro, 10.06.2011)

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Os dados mais recentes, fornecidos pelo Instituto de Segurança Pública da SSP/RJ,

apontam queda de 32,4% nos “mortos em confronto com a polícia”, comparando abril de

2011 com abril de 2010, mas admite um aumento de 33% nos registros de “encontro de

cadáver” (quando não se consegue identificar a causa da morte), índice controverso e que,

segundo alguns, serve para ocultar “execuções extrajudiciais”. (O Globo, Rio de Janeiro,

14.06.2011)

Como saída dessa situação, alguns autores sugerem que a polícia brasileira deveria

incorporar as chamadas “armas não letais”, ou mais acertadamente denominadas “armas de

menor potencial ofensivo”, porque podem matar. É importante que o policial saiba disso, para

usá-las com precaução. São as balas de borracha, taser, bastões de choque, gases e outros

instrumentos, que servem para controle sem morte, poupando vidas.

1.4. Falta de assistência aos policiais

Há grande carência de apoio psicológico aos policiais submetidos ao enorme estresse

provocado pela violência. Compreende-se melhor suas condições de trabalho se forem

comparados aos militares envolvidos em conflito bélico, submetidos ao risco de serem

mortos, obrigados a matar, vendo seus companheiros sendo abatidos, o que com frequência

gera o “trauma de guerra”. A situação de nossos policiais não é melhor. Devolver ao front da

luta contra o crime homens deprimidos e nervosos pelo intenso esforço despendido sob

tensão, revela indiferença pelas condições de atuação de policiais que arriscam a vida para nos

proteger. Demonstra também grande irresponsabilidade, pois estressados podem cometer

desatinos que coloquem em perigo suas vidas e de outros. Hoje, já existe um termo médico só

para definir trauma causado pelo envolvimento em situações de violência: transtorno de

estresse pós-traumático (TEPT).

Importante!

Pesquisa realizada não na “guerra das favelas cariocas”, mas entre policiais de São

Paulo, Porto Alegre e Belo Horizonte, por agência especializada, constatou que “82% deles

tinham ansiedade crônica, 78% angústia e 52% comportamento agressivo decorrente de

intensa pressão”. (INTERNATIIONAL STRESS MANAGEMENT ASSOCIATION DO

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BRASIL, agosto 2004). Segundo o ex-secretário de Segurança Pública do Estado de São

Paulo, Marco Vinicio Petrelluzzi:

Muitas mortes seriam evitadas, principalmente se consideramos a geografia

desfavorável das favelas e das periferias, se as condições psicológicas dos policiais fossem

monitoradas e provida a assistência adequada. No entanto, poucas polícias no Brasil oferecem

esse apoio. Pelo contrário, impera uma cultura de soldado “durão”, de incentivo permanente

ao confronto e de ocultamento dos problemas psíquicos causados pela rotina de guerra.

As políticas meramente repressivas apenas levaram à exacerbação da violência,

gerando uma espiral ascendente de violência, dizimando policiais e provocando um

morticínio entre os delinquentes, substituídos imediatamente por um exército ilimitado de

reserva, como dramaticamente mostrou o excelente documentário de João Moreira Sales,

Notícias de Uma Guerra Particular. Os filmes Tropa de Elite 1 e 2, com Wagner Moura,

mostram bem os efeitos perversos do estresse no cotidiano do policial.

Aula 2 – Uso de armas de fogo por civis

Se os policiais “estão condenados” a usarem armas devido aos riscos inerentes ao seu

trabalho de “protetor da sociedade”, é essencial que saibam dos riscos que envolvem o seu

uso indevido. E o que dizer do uso de armas de fogo por civis? Quais os principais

argumentos a favor e contrários à autodefesa do cidadão? Essa é a temática da aula.

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Argumentos centrais serão analisados, tomando por princípio a maior segurança do

usuário, policial ou civil. Argumentos usados em outros países, como “Não são as armas que

matam, mas as pessoas”, bem como produzidos aqui, como “direito à legítima defesa”, serão

confrontados com a realidade dos fatos, com base nas pesquisas oficiais de governos de

diferentes países e universidades de renome. Afinal, armas dão mais segurança ou aumentam

os riscos de quem as empunha? Com a palavra, os especialistas internacionais.

2.1. “Armas não matam. Quem mata são as pessoas.”

Este é o slogan mais repetido pela Associação Nacional de Fuzis dos EUA, o lobby

bilionário da indústria de armas daquele país. É convincente à primeira vista. A armadilha

está, primeiro, em afirmar o óbvio, como seria dizer que, “se o carro está em excesso de

velocidade, a culpa não é do carro, mas do motorista”; segundo, em concentrar o foco

exclusivamente num aspecto sobre o qual há unanimidade: a necessidade de boa educação.

Segundo a Associação Nacional do Rifle, da indústria de armas dos Estados Unidos, o que

importa são pessoas “bem educadas” e basta. Elas sempre farão bom uso de sua arma e,

portanto, não só estão aptas a usá-la, como devem usá-la na autodefesa.

Não se pode ser ingênuo de imaginar que a educação, embora essencial, pode tudo.

Ela tem seus limites, dados pela natureza humana. Em psicologia, existe o que se denomina

“transtorno de conduta”. Segundo a psicanálise, essa é a denominação diagnóstica para

classificar desvios de comportamento. É aquele momento em que “a pessoa perde a cabeça”,

quando a emoção se sobrepõe à racionalidade. Como o ciúme, por exemplo. Esse é um

sentimento tão poderoso e dominador, que até nos tribunais é considerado atenuante para um

crime cometido sob sua forte influência.

Independentemente da cultura e da educação que se tenha, há momentos na vida em

que as pessoas se descontrolam e são dominadas pela raiva, como numa briga de trânsito. São

situações em que uma arma ao alcance da mão faz toda a diferença. Se não se tem, pode-se

agredir de forma verbal ou até física. Armadas, as pessoas atiram impensadamente,

provocando uma tragédia para, no momento seguinte de lucidez, se arrepender amargamente.

Armas devem ser classificadas como “mercadorias perigosas”, como produtos

químicos, explosivos ou inflamáveis e certos agrotóxicos. Têm que ser fiscalizados, e seu uso

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exige muito cuidado. Ninguém discute que tais produtos sejam “passivos”, e que “o problema

sejam as pessoas” que os manipulam.

Sobre a afirmação inicial, “Armas não matam. Quem mata são as pessoas”, devemos

desfazer o sofisma e contrapor a realidade dos fatos: “Armas não matam. Quem mata são

pessoas armadas”.

2.2. “Direito à legítima defesa no uso de arma.”

Essa opinião contraria a jurisprudência da maioria esmagadora dos países, que entende

que possuir arma de fogo não é um direito do cidadão, mas uma concessão do poder público

diante de situações excepcionais.

A “legítima defesa”, no Brasil, é assim definida pelo artigo 25 do Código Penal:

“Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente os meios necessários,

repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.”

Essa definição, ao contrário do que pensam os leigos, é altamente restritiva, pois se

espera que a autodefesa armada seja praticada de forma moderada e, conforme se admite,

apenas como último recurso. A possibilidade de alguém exorbitar no uso de armas contra

ladrões desarmados ou menos armados pode levar a vítima a ser condenada por homicídio,

passando de vítima a agressor. É numerosa a jurisprudência condenando o que se denomina

“excesso na legítima defesa”.

Para os defensores da autodefesa armada, esse direito é inquestionável porque decorre

do direito essencial à vida. Mas, se a autodefesa, ou a legítima defesa, são decorrentes do

direito à vida, devem ser proibidas quando ameaçam o direito que visam assegurar. Quando as

estatísticas demonstram que uma arma é mais um risco que uma proteção para o lar, o alegado

direito à autodefesa para se usar uma arma viola o direito da família à segurança, segundo

decisão do Supremo Tribunal Federal (ver mais em “Proteção da Família” no Módulo 6).

2.3. “Casas sem arma são convite ao assalto e casas com armas estão protegidas?”

Para o especialista Luciano Bueno, “o efeito rede, em que os que usam armas acabam

por proteger os vizinhos que não usam, pois o bandido vai achar que é um bairro bem armado,

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na verdade gera o efeito radicalização, porque, sabendo que pode haver arma na casa, o

assaltante, antes de mais nada, trata de imobilizar as vítimas por ferimento ou morte”. Na

cidade de Boston, pelo fato de haver poucas casas com armas em função da lei estrita, apesar

de existirem altas taxas de roubos, verificam-se poucas mortes e ferimentos por arma de fogo.

2.4. Roubo de armas legais

Há quem afirme que é o mercado ilegal de armas que abastece a criminalidade. É mais

complexo que isso. Segundo o Instituto de Segurança Pública da polícia do RJ, “no estado do

Rio, a cada 5 horas uma arma comprada legalmente é roubada e em 27% dos casos são

obtidas nos assaltos a residências”. (INSTITUTO DE SEGURANÇA PÚBLICA da SSP/RJ,

julho 2003). No estado de São Paulo, “das 77 mil armas apreendidas em 1998, 71.400 foram

roubadas e 5.500 extraviadas”. (DIVISÃO DE PRODUTOS CONTROLADOS DA POLÍCIA

CIVIL DE SÃO PAULO, 2000). Em São Paulo, em média, 11.000 armas são roubadas

anualmente de pessoas sem histórico criminal ou de agentes de segurança privada, segundo a

Divisão de Produtos Controlados da Polícia Civil”. (citado por CORDANI, DORA

CAVALCANTI. “A Sociedade Desarmada. Projeções e Perspectivas” in Estatuto do

Desarmamento, 2005), Para outro analista, “uma redução significativa das armas de fogo

legalmente em circulação acabaria por reduzir também o contingente daquelas

comercializadas clandestinamente”. Em 5 outros países, há os seguintes dados:

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Tabela 12 – Roubo de armas legais.

Países A

no

Armas

roubadas

Total de armas

legais

Austrália 2

001

4 195 2 165 170

Canadá 2

001

3 638 1 938 338

Inglaterra e País

de Gales

1

996

3 002 1 793 712

África do Sul 2

001

23 000 3 500 000

Estados Unidos 1

997

500 000 260 000 000

Fonte: Small Arms Survey, 2004.

Relatório de uma conhecida fundação norte-americana avaliou: “Uma arma roubada

vale ouro para um criminoso porque ela pode ser rapidamente revendida sem risco de ter sua

origem rastreada; e mais de 80% das armas roubadas foram frutos de assaltos a residências e

carros”. (BANDEIRA; BOURGOIS, 2005, p.21)

2.5.“Carros, garrafas e facas também matam. Vamos proibi-los?”

Esta é uma frase de efeito, e, se analisada com atenção, se revela absurda. Todo

mundo sabe que automóveis matam por acidente e não de forma intencional. Ao contrário,

armas de fogo são desenhadas para matar – e com eficácia – diminuindo o risco de dano ao

agressor por matar à distância e sem dar chance à vítima. Elas permitem matar várias pessoas

em frações de segundos, podendo atingir inocentes com balas perdidas, que em 2003

causaram uma morte a cada 6 dias no estado do Rio, segundo a Secretaria de Segurança

Pública do estado. Portanto, comparar armas de fogo com objetos caseiros e automóveis,

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considerando-os igualmente inofensivos e “inertes”, principalmente na frente de crianças, é de

extrema irresponsabilidade.

2.6. Armas brancas e armas de fogo: uma comparação

Há quem pense que “quando se quer matar, e não se tem uma arma de fogo, usa-se

qualquer outra arma, principalmente facas ou facões”, as chamadas armas brancas. Ora,

facas e facões, como copos e pedras, têm múltiplos usos, pacíficos e úteis, e só

excepcionalmente são usados para agredir. Armas de fogo são feitas exclusivamente para

matar, e sua letalidade e eficácia são muito maiores e as chances de sobrevivência da vítima,

muito menores. Nas cidades, o uso de arma de fogo para defesa acaba, com frequência,

atingindo terceiros. Já a arma branca “implica um envolvimento maior com a vítima, uma

aproximação física, uma coragem e uma determinação maiores com relação ao ato.

Diferentemente da arma de fogo, que pode ser acionada à distância, sem envolvimento”.

(Phebo, Luciana. “O Impacto da Arma de Fogo na Saúde da População do Brasil” in

DREYFUS, PABLO et al. BRASIL: AS ARMAS E AS VÍTIMAS, 2005).

No Brasil, 63,9% dos homicídios são cometidos por arma de fogo, enquanto

19,8% são causados por arma branca. Já no universo dos feridos, 39% das internações por

agressão ou tentativa de homicídio são causadas por arma branca e só 30% por arma de fogo,

devido à sua alta letalidade. A chance de se morrer numa agressão com arma de fogo é de

75%, enquanto com arma branca é de 36%. De cada 4 feridos nos casos de agressões por arma

de fogo, 3 morrem. (DATASUS/ISER, 2002). Em outras palavras, hoje em dia, as armas

brancas ferem mais do que matam, enquanto as armas de fogo matam mais do que

ferem.

Só 5 % das tentativas de suicídio são com arma de fogo. Por quê? Porque tentativas de

suicídio com arma de fogo geralmente são bem sucedidas e as pessoas acabam mortas e não

feridas. O custo do tratamento de ferimentos causados por arma de fogo é 12 vezes maior do

que ocasionados por objeto cortante (SMALL ARMS SURVEY, 2004).

No segundo semestre de 2004, cinco massacres foram perpetrados com arma branca

contra estudantes nas escolas chinesas, ferindo 46 crianças e jovens e matando nove. O

resultado certamente seria o inverso se tivessem sido usadas armas de fogo, o que sucederia

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caso não fosse tão difícil para civis adquirirem estas últimas na China. Nos Estados Unidos,

“em 1992, armas de fogo mataram 37.776 pessoas e armas cortantes mataram 4.095. Houve

134.000 sobreviventes a impacto de bala e 3.100.000 sobreviventes a ferimento de arma

cortante que receberam tratamento médico”. (BANDEIRA; BOURGOIS, 2005, p.25)

2.7. “As mulheres estão mais seguras com armas?”

Os defensores do uso de armas dos EUA afirmam que sim. Os pró-desarmamento

contestam: “O truque aplicado pela indústria de armas contra as mulheres é dizer: se você é

mulher, um estranho vai tentar estuprá-la e você deve comprar uma arma para se defender. Na

verdade, as mulheres sofrem mais risco de serem atacadas por conhecidos. De acordo com o

Centro Nacional de Vítimas, dos Estados Unidos, 75% de todos os estupros foram praticados

por agressores que conheciam a vítima, como vizinhos, amigos, maridos, namorados e

parentes”. (BANDEIRA; BOURGOIS, 2005, p.54)

No Brasil, embora nasçam mais homens, eles já são minoria em relação às mulheres,

devido principalmente às mortes por arma de fogo. Segundo o censo de 2010 do IBGE, há 4

milhões a mais de mulheres, sendo o Rio o estado com pior proporção: 91,2 homens para cada

100 mulheres.

2.8. “Proibição vai aumentar o mercado clandestino?”

Não é o que está ocorrendo. Conforme noticiado e confirmado por nós com o então

chefe do SINARM do estado de Santa Catarina, delegado Eduardo Chaklian, “É a lei da oferta

e da procura, como diria Henrique Meirelles. O mercado paralelo de armas encolheu com esta

campanha do desarmamento. Segundo a Polícia Federal de Santa Catarina, o revólver 38, que

antes era negociado entre os marginais por R$ 80, não custa agora menos do que R$ 350”.

(Coluna do Ancelmo Gois, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 30.08.2004).

Fala-se como se houvesse um grande número de armas legalmente registradas e uma

pequena quantidade de armas em situação ilegal. É justo o contrário, como demonstram as

pesquisas. As armas legalizadas em mãos de cidadãos de bem não ultrapassam ¼ das armas

em circulação. Vemos assim que a fórmula eficiente de controle não é ampliar o mercado

legal, que é pequeno, mas alimenta de armas o tráfico clandestino; é reduzi-lo, para que afete

negativamente o tráfico ilícito.

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2.9.“Por que desarmar os homens de bem e deixar armados os bandidos?”

A “doutrina Bush” distinguia as “armas do bem” das “armas do mal”. Essa é uma

percepção simplista, ou propositalmente simplista (no caso do governo Bush, financiado pela

maior indústria de armas do mundo), sobre o mercado de armamento. De onde vêm as armas

e munições ilegais no Brasil? Elas não brotam em árvores, não são produzidas pelos

bandidos, e menos de 10% vêm do exterior, como vimos. Elas são fabricadas aqui, como

“armas do bem”, antes de “se perderem” por falta de fiscalização adequada.

Mais de 30% das armas apreendidas pela polícia no Rio de Janeiro, entre 1951 e

2003, tinham sido vendidas legalmente antes de serem desviadas para o tráfico ilícito. Não

há essa separação entre o mercado legal e o mercado ilegal, porque praticamente 100% das

armas são legalmente fabricadas (diferentemente das drogas, ilegais da produção ao consumo)

e, em um certo ponto, por falta de fiscalização, mergulham no mercado clandestino. Sem se

controlar o mercado legal, não há como se impedir que tais armas venham a submergir na

ilegalidade, tornando-se “armas do mal”.

Mesmo considerando que desarmamento civil e desarmamento dos bandidos são

políticas diferentes, uma acaba por afetar positivamente a outra, embora não seja essa a meta

principal do desarmamento voluntário. Veja o depoimento a seguir:

Depoimento:

“Ladrões invadiram a casa do pai de um amigo meu e mantiveram a esposa e ele sob a

mira de armas por quase uma hora. Entre os bens roubados do casal estavam duas armas de

fogo. Então eu pergunto: adiantou ter arma em casa? Agora são duas armas a mais nas mãos

dos criminosos, que invadirão outras casas e roubarão outras armas...”. (Gerson Carlos Voligt,

Gazeta do Povo, Curitiba).

Por outro lado, a proibição do porte de armas tem baixado as apreensões de armas nas

ruas pela polícia. As pessoas pensam duas vezes antes de saírem armados. Quantas brigas de

rua, quantas balas perdidas deixaram de existir? Bandidos perigosos têm sido presos em todo

o País por andarem armados. Está acontecendo aqui o que sucedeu em Nova York.

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Finalizando...

Neste módulo, você estudou que:

No uso de armas por civis, as aparências enganam. Como regra, ela

representa mais um risco que uma proteção. Sua utilidade é excepcional. A arma

transmite uma ilusão de segurança;

Temos altíssimos índices de mortes de policiais e de civis por policiais;

A polícia não provê assistência satisfatória ao policial envolvido em

homicídio.