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Porto 2018 Relatório Final de Estágio Mestrado Integrado Medicina Veterinária MEDICINA E CIRURGIA DE ANIMAIS DE COMPANHIA Maria Soares Davim Abrantes Orientador: Prof. Doutor Augusto José Ferreira de Matos Co-orientadores: Prof. Doutor António Hugo Andrade Gregório (Centro Hospitalar Veterinário) Dr. Jordi Manubens Grau (Hospital Veterinari Molins)

MEDICINA E CIRURGIA DE ANIMAIS DE COMPANHIA · semanas de internamento. Pude acompanhar desde o início todas as consultas de especialidade, bem como o raciocínio clínico desde

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Porto 2018

Relatório Final de Estágio

Mestrado Integrado Medicina Veterinária

MEDICINA E CIRURGIA DE ANIMAIS DE COMPANHIA

Maria Soares Davim Abrantes

Orientador:

Prof. Doutor Augusto José Ferreira de Matos

Co-orientadores:

Prof. Doutor António Hugo Andrade Gregório (Centro Hospitalar Veterinário) Dr.

Jordi Manubens Grau (Hospital Veterinari Molins)

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Porto 2018

Relatório Final de Estágio

Mestrado Integrado Medicina Veterinária

MEDICINA E CIRURGIA DE ANIMAIS DE COMPANHIA

Maria Soares Davim Abrantes

Orientador:

Prof. Doutor Augusto José Ferreira de Matos

Co-orientadores:

Prof. Doutor António Hugo Andrade Gregório (Centro Hospitalar Veterinário) Dr.

Jordi Manubens Grau (Hospital Veterinari Molins)

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Resumo

Ao longo de um período de 16 semanas realizei o meu estágio curricular na área de

Medicina e Cirurgia de Animais de Companhia, no âmbito do 6ºano do Mestrado Integrado em

Medicina Veterinária do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar da Universidade do Porto.

Este dividiu-se pelo Centro Hospitalar Veterinário (CHV), no Porto, durante 4 semanas, e pelo

Hospital Veterinari Molins (HVM), em Barcelona, durante 12 semanas. O presente relatório reflete

o trabalho desenvolvido durante o estágio curricular, para o qual foram selecionados, descritos

e discutidos cinco casos clínicos em que estive envolvida.

No CHV estive integrada num serviço rotacional distribuído por vários departamentos

(internamento, imagiologia, consultas e cirurgia). Além de acompanhar os animais durante todo

o período de hospitalização, tive a oportunidade de realizar com frequência procedimentos

isolados (recolha de sangue, colocação de cateteres, processamento de amostras para análises,

administração de fármacos) na rotação de internamento diurno e noturno. Assisti a consultas de

especialidade de várias áreas, participei no plano diagnóstico e terapêutico dos casos clínicos e

acompanhei a realização de exames imagiológicos. Na rotação de cirurgia, estive envolvida na

preparação e monitorização anestésica, além de auxiliar em várias cirurgias de tecidos moles e

ortopedia.

No HVM, o meu estágio foi também distribuído por 2 semanas em cada especialidade:

neurologia, cardiologia, medicina interna, imagiologia, anestesia e cirurgia. Incluindo também 3

semanas de internamento. Pude acompanhar desde o início todas as consultas de especialidade,

bem como o raciocínio clínico desde a exploração até ao plano de tratamento de cada animal.

Foi uma excelente oportunidade para conhecer uma realidade diferente de prática clínica noutro

país, não só do ponto de vista do médico veterinário mas também dos donos dos animais.

Os objetivos propostos para o meu estágio consistiam em desenvolver o raciocínio clínico,

otimizar a capacidade de comunicação interpessoal, aprimorar a interpretação de exames

complementares e ainda conhecer a realidade da prática clínica em Espanha. Concluo no fim

desta etapa que os objetivos foram atingidos com sucesso.

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Agradecimentos

Ao ICBAS, que se tornou a minha casa nos últimos 6 anos e a todas as pessoas que me

acompanharam ao longo do meu percurso académico.

Ao Professor Augusto Matos pela disponibilidade, paciência e orientação, não só ao longo

do estágio mas também durante o curso. Muito obrigada!

Ao Dr. André Pereira por me ter dado a oportunidade de crescer e aprender com uma equipa

excelente de profissionais. Ao Dr. Hugo Gregório pela exigência constante e pela paciência para

me ensinar em cada momento. À Dra. Luísa Oliveira pela humildade, companheirismo, amizade

e excelência. Obrigada a toda a equipa do Centro Hospitalar Veterinário por toda a paciência,

simpatia, carinho, exigência e profissionalismo. Obrigada aos meus colegas internos por me

ensinarem que é possível ter uma família no trabalho.

Ao Dr. Jordi Grau, por me ter dado a oportunidade de estagiar no Hospital Veterinari Molins,

em particular ao Dr. Laín Guasch e ao Dr. Xavier Raurell, pela paciência e disponibilidade para

me ensinarem todos os dias. A toda a equipa do hospital, obrigada pela receção e por toda a

ajuda. Obrigada aos meus colegas estagiários que tornaram, sem dúvida, este período longe de

casa mais fácil.

À Tuna Feminina de Biomédicas, pela inacreditável e inesquecível aventura que vivi durante

estes 6 anos. Obrigada do fundo do coração à melhor família que podia ter encontrado, com

quem tanto cresci e da qual me orgulho todos os dias. Levo-vos comigo, na Minh’Alma, para a

vida toda!

Aos meus amigos, Snoopy, Rega, Nêspera, Kika, Mafalda, Mário, Inês, Chica, Inês, Sofia e

Daniel, por me fazerem sentir em casa no Porto. Em particular obrigada às minhas pessoas de

sempre, Filipa, Joana e Micael, por todo o carinho.

A todos os meus amigos, por estarem sempre presentes.

Dedico este trabalho aos meus pais, aos meus irmãos e ao meu sobrinho Bernardo. Obrigada

pelo apoio incondicional, todos os dias. Obrigada pela paciência, compreensão, carinho, por

confiarem e acreditarem em mim. Obrigada à Joana, à Carla, e ao João.

Muito obrigada.

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Abreviaturas

% – percentagem

< - menor

ºC – graus Celsius

® – produto registado

µL – microlitro

O2 – Oxigénio

pO2 – pressão parcial de O2

ACDO - Amplatz canine duct occluder ®

AE – Átrio Esquerdo

BID – de 12 em 12 horas

CHV – Centro Hospitalar Veterinário

DAP – Ducto Arterioso Persistente

DV – Dorsoventral

ECG - Eletrocardiograma

ETT - ecocardiografia transtorácica

FeLV - vírus da leucemia felina (feline

leukemia virus)

FE – Fração de encurtamento

FIV - vírus da imunodeficiência felina (feline

immunodeficiency virus)

g - grama

HVF-1 – herpesvirus virus felino tipo 1

HVM – Hospital Veterinari Molins

IV – via intravenosa

IM – via intramuscular

Kcal - quilocaloria

Kg – quilograma

L - litro

LL – Laterolateral

m - metros

min - minuto

mg - miligrama

mL – mililitro

mm - milímetro

mmHg – milímetros de mercúrio

MP – membros pélvicos

MT – membros torácicos MV

– Médico Veterinário ppm –

pulsações por minuto PO –

via oral

QOD – de 48 em 48 horas

refª – referência

RER - Resting Energy Requirements

rpm – respirações por minuto

s – segundo

SC – via subcutânea SID

– de 24 em 24 horas

SIRS – Síndrome de Resposta Inflamatória

Sistémica (Systemic Inflammatory Response

Syndrome)

TID – de 8 em 8 horas

TC – tomografia computorizada

VE – Ventrículo esquerdo

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Índice Geral

Resumo ............................................................................................................................ i

Agradecimentos .............................................................................................................. ii

Abreviaturas ................................................................................................................... iii

Caso clínico nº1 – Pneumologia: Piotórax de origem indeterminada ........................... 1

Caso clínico nº2 – Cardiologia: Ducto Arterioso Persistente ....................................... 7

Caso clínico nº3 – Gastroenterologia: Intoxicação por Processionária ..................... 13

Caso clínico nº4 – Neurologia: Hérnia discal Hansen tipo I ....................................... 18

Caso clínico nº5 – Urinário: Obstrução uretral por urolitíase de cistina ...................... 24

Anexos:

ANEXO I ............................................................................................................. 29

ANEXO II ............................................................................................................ 31

ANEXO III ........................................................................................................... 34

ANEXO IV ........................................................................................................... 35

ANEXO V ............................................................................................................ 36

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Caso clínico nº1 – Pneumologia

Identificação: Fiona, gata europeu comum, fêmea castrada com 3 anos e 4,7Kg. Motivo da

consulta: Referida para o serviço de urgência do CHV apresentando há 3 dias dispneia,

prostração e hiporexia. Anamnese e história clínica: A Fiona era uma gata de interior e exterior

que vivia em Gaia, onde coabitava com 2 gatos saudáveis, vacinados e desparasitados. Estava

devidamente vacinada (HVF-1, calicivírus e parvovírus) e corretamente desparasitada interna e

externamente. Era alimentada com comida húmida (Schesir ®) e tinha livre acesso a água. Sem

passado médico ou cirúrgico, além da ovariohisterectomia. Nos últimos 3 dias a Fiona

encontrava-se prostrada, comia menos e tinha dificuldade em respirar pelo que os donos a

levaram ao seu MV habitual. Através de uma radiografia torácica lateral verificou-se que tinha

uma efusão pleural, pelo que lhe fizeram uma toracocentese. Drenou-se líquido de aspeto turvo

e opaco, de cor cinzenta, sugestivo de piotórax (7 mL do lado esquerdo e 68 mL do lado direito).

Não havendo melhoria dos sinais clínicos, foi referida para se proceder à estabilização e posterior

investigação clínica.

Exame de estado geral e dirigido: Estado mental alerta, temperamento equilibrado e

condição corporal de 5/9. Desidratação de 6-8%, pulso fraco com frequência de 160 ppm,

taquipneica (68 rpm) e apirética (38ºC). As mucosas estavam rosadas, secas e o TRC <2

segundos. Os movimentos respiratórios eram superficiais, pendulares, regulares e sem auxílio

de músculos acessórios. Apresentava dispneia mista com padrão restritivo e aumento do esforço

respiratório. Na inspeção torácica não se verificaram feridas penetrantes. À auscultação torácica

apresentava, bilateralmente, diminuição dos ruídos respiratórios no tórax ventral. À auscultação

cardíaca os sons cardíacos encontravam-se abafados. Restante exame físico sem alterações.

Lista de problemas: piotórax, dispneia mista, taquipneia, desidratação, hiporexia. Diagnósticos

diferenciais: piotórax secundário a: ferida penetrante por mordedura, extensão de pneumonia

bacteriana, perfuração de esófago, traqueia, ou brônquios, migração de corpo estranho

(praganas).

Exames complementares: 1) Hemograma e bioquímica sérica: sem alterações. 2)

Radiografia torácica (projeção LL e DV): aumento da radiopacidade de tipo tecidos moles no

espaço pleural compatível com efusão bilateral e assimétrica (anexo I, figura 1). 3) Ecografia

torácica: presença de fluido de ecogenicidade moderada entre a parede torácica e a superfície

pulmonar (anexo I, figura 2). 4) Análise do fluido: foi recolhida uma amostra de líquido pleural por

toracocentese, turvo e de cor cinzenta. 4.1 Citologia: observaram-se abundantes neutrófilos

degenerados e não degenerados, macrófagos ativados, linfócitos pequenos e ainda abundantes

bactérias fagocitadas e livres. Estas eram na maioria bactérias filamentosas, compatíveis com

Nocardia spp, Actinomyces spp ou eventualmente Fusobacterium spp. A imagem citológica é

compatível com um exsudado séptico - piotórax. 4.2 Cultura: Presença de flora polimorfa

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microbiana e raros cocos Gram-positivo, sem antibiograma (uma vez que a presença de um

elevado número de bactérias inviabilizou o isolamento e a posterior realização do antibiograma).

5) Teste rápido FIV/FeLV: negativo. Diagnóstico presuntivo: Piotórax de origem indeterminada.

Tratamento e evolução: A Fiona ficou hospitalizada durante 12 dias. Dia 1: iniciou-se

fluidoterapia com Lactato de Ringer a 8,8 mL/h (taxa de manutenção). Realizaram-se 2 bólus de

Lactato de Ringer a 5mL/Kg IV, para corrigir a desidratação. Ao reavaliar 30 minutos depois, os

pulsos encontravam-se fortes (a pressão arterial encontrava-se a 102 mmHg), e não voltou a

descompensar. Iniciou-se também no primeiro dia: analgesia com buprenorfina (0,015 mg/Kg IV

TID), metacam (0,1 mg/Kg SC SID) durante 5 dias, antibioterapia empírica baseada no resultado

da citologia: clindamicina (11mg/Kg IV BID) e enrofloxacina (5mg/Kg SC SID). Colocaram-se 2

tubos de toracostomia bilateralmente (Anexo I, Figura 3A). Iniciaram-se lavagens torácicas TID

com 10 mL/Kg de soro fisiológico morno, contabilizando o volume instilado e posteriormente

drenado (Anexo I, Figura 3B). Dia 4: a antibioterapia foi mantida após chegar o resultado da

cultura (referido acima), uma vez que a Fiona estava a responder positivamente ao tratamento

instituído. Dia 7: Foi melhorando os parâmetros respiratórios progressivamente, sendo que já

não apresentava esforço respiratório, com frequência sustida de 40 rpm. Iniciou, nesse dia, a

administração de mirtazapina (0,4 mg/Kg PO QOD), como estimulante do apetite, uma vez que

comia pouco até então. Foi gradualmente aumentando o apetite, pelo que não foi necessário

colocar uma sonda de alimentação. Os controlos citológicos e radiológicos realizados nesse dia,

e no dia da alta, encontram-se no anexo 1, tabela I. Os proprietários recusaram fazer Tomografia

Computorizada (TC) para avaliar se haveria consolidação pulmonar, pelo que se manteve o

plano de hospitalização. Dia 12: verificou-se uma melhoria significativa do estado geral da Fiona,

encontrando-se eupneica com frequência respiratória de 28 rpm, aparentando que o piotórax se

estava a resolver. Assim, removeram-se os tubos de toracostomia e a Fiona teve alta no dia

seguinte com clindamicina e enrofloxacina, mantendo a posologia, via oral, durante 4 semanas.

Acompanhamento: Uma semana após a alta, a Fiona apresentou-se estável, com

comportamento normal e comia com apetite. O exame físico manteve-se semelhante ao

realizado no dia da alta. Foi aconselhado manter a antibioterapia e realizar o controlo com o seu

MV habitual.

Prognóstico: Bom, com o tratamento adequado. A taxa de sobrevivência varia entre 49 e

78% em gatos.1 Os animais que se apresentam com descompensação respiratória, como no

caso da Fiona, têm geralmente pior prognóstico. Contudo, os gatos que sobrevivem às primeiras

24 horas de hospitalização têm bom prognóstico. A taxa de recorrência varia entre 0-14%.2

Discussão: O piotórax é caracterizado por uma acumulação de fluido séptico e purulento

no espaço pleural. Embora seja um tópico muito estudado, não existem dados sobre a incidência

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atual de piotórax em cães e gatos.2 Não foi ainda identificada predisposição de raça ou sexo. Os

fatores de risco associados ao seu desenvolvimento incluem idade (embora possa afetar

qualquer faixa etária, o pico de incidência é entre os 4-6 anos) e coabitar com outros gatos.1 As

efusões exsudativas, como o piotórax, ocorrem na sequência da presença de condições

inflamatórias no espaço pleural, que levam à libertação de citocinas e mediadores vasoativos

alterando a permeabilidade dos capilares. As bactérias podem entrar no espaço pleural através

de dano na cavidade torácica, traqueia, brônquios, parênquima pulmonar ou esófago.2

A etiologia primária do piotórax é frequentemente difícil de identificar.1 Em apenas 35% a

67% dos casos, em gatos, é encontrada a causa subjacente.2 Os isolados bacterianos, na maioria

dos casos, são polimicrobianos e semelhantes à flora comensal da cavidade oral normal felina:

anaeróbios obrigatórios e facultativos; Bacteroides spp., Porphyromonas spp., Prevotellla spp.,

Fusobacterium spp., Peptostreptococcus spp., Clostridium spp., Actinomyces spp., Eubacterium

spp., Propionibacterium spp., Filifactor villosus, Pasteurella multocida, Streptococcus spp. e

Mycoplasma spp.4 A flora comensal da cavidade oral pode aceder ao espaço pleural por várias

vias: aspiração, penetração direta por ferida por mordedura ou via hematogénea por ferida

distante.4 A causa mais provável de piotórax é aspiração da flora para os pulmões, com

consequente pneumonia e extensão da infeção até ao espaço pleural.1 Menos de 20% dos gatos

têm infeções provocadas por bactérias não associadas à orofaringe (E.coli, Nocardia spp,

Klebsiella spp).1 Os mecanismos de infeção, nestes casos, incluem trauma torácico penetrante

não associado a mordedura, perfuração de esófago, traqueia ou brônquios e migração de corpo

estranho.4 Estão descritos também casos secundários a migrações parasitárias de

Aelurostrongylus abstrusus, Toxocara cati e Cuterebra, sendo menos comum as causas fúngicas

(Cryptococcus spp e Candida albicans). Não foi demonstrada associação entre piotórax e

pacientes com FIV/FeLV.2

A progressão do piotórax pode ser subtil, demorando semanas a meses até que os sinais

clínicos sejam reconhecidos pelos donos. Muitos gatos compensam o desenvolvimento gradual

da doença ao diminuírem a atividade no dia-a-dia. 1 Os sinais clínicos mais comuns são

taquipneia, dispneia, letargia, tosse, perda de peso, anorexia e febre.2 Além disso, os animais

podem ter um padrão respiratório restritivo, com diminuição dos ruídos respiratórios no tórax

ventral. A Fiona apresentou-se com sinais clínicos que, na sua maioria, são consistentes com

este quadro clínico. No entanto, a ausência de febre não descarta um piotórax, uma vez que 50%

dos gatos se apresentam com temperatura corporal baixa ou normal, tal como sucedeu no caso

da Fiona.2 Em casos severos, sinais consistentes com Síndrome de Resposta Inflamatória

Sistémica (SIRS - Systemic Inflammatory Response Syndrome) ou septicémia podem ocorrer,

incluindo: mucosas pálidas, hipotermia, taquicardia ou bradicardia, desidratação. Septicémia

aparenta ser a sequela mais comum de piotórax em gatos, ocorrendo em 40% dos casos.2

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O diagnóstico definitivo de piotórax envolve a combinação de exames imagiológicos

(radiografia, ecografia e TC), toracocentese com recolha de amostra para citologia, cultura (para

aeróbios e anaeróbios) e antibiograma.1

Na abordagem inicial deve-se realizar um hemograma, ionograma e urianálise, uma vez

que podem orientar o tratamento de suporte.2 A toracocentese deve ser realizada em qualquer

caso com suspeita de efusão (com base no exame físico ou na presença de fluido, em radiografia

ou ecografia). A maioria dos gatos tolera o procedimento sem sedação. Contudo, em animais

nervosos pode ser administrado butorfanol (0,2-0,4 mg/Kg IV,SC ou IM). A toracocentese permite

recolher uma amostra para análise e classificação, além de estabilizar o animal. O fluido

associado à maioria dos casos de piotórax encontra-se em locas, pelo que não se move

livremente. O fluido é tipicamente turvo, opaco e com um odor desagradável (indicativo de infeção

por anaeróbios).1 A ausência deste odor típico não descarta piotórax, tal como ocorreu no caso

da Fiona.4 No entanto, as restantes características sugeriam uma efusão purulenta. As

características macroscópicas são frequentemente suficientes para direcionar o diagnóstico de

piotórax. Ainda assim, uma investigação completa com citologia e cultura deve ser realizada.4 O

método de classificação de efusões baseia-se no doseamento das proteínas totais e na

contagem celular, que divide as efusões em transudados, transudados modificados e

exsudados.2 O fluido associado a piotórax é tipicamente um exsudado (proteínas > 3g/dL,

contagem total de células nucleadas >7000/µL e densidade ≥ 1,025).1,5 Na citologia, usualmente

observa-se uma infeção polimicrobiana, com evidência de bactérias pleomórficas, intra ou

extracelulares, e ainda de células inflamatórias (neutrófilos degenerados em elevado número e

uma pequena proporção de células mononucleares), como observado no caso da Fiona.1 A

colorações de Gram ou de Zhiel-Neelsen podem dar informações adicionais relativamente à

identificação das bactérias. Uma amostra deve ser enviada, em recipiente estéril, para cultura de

aeróbios e anaeróbios, com antibiograma.1 O resultado da cultura mais comum consiste numa

numa infeção polimicrobiana incluindo anaeróbios obrigatórios e aeróbios facultativos.2 No caso

da Fiona não se realizou antibiograma, mas a resposta ao tratamento empírico antibacteriano,

com base na citologia, foi positiva. Enquanto estão pendentes os resultados da cultura

microbiológica, a observação de bactérias intracelulares na citologia suporta o diagnóstico de

uma efusão séptica.2

As radiografias torácicas permitem confirmar a presença de efusão pleural. Se realizadas

antes da toracocentese, demonstram os sinais clássicos de efusão pleural: retração dos lobos

pulmonares da parede torácica, atelectasia pulmonar e perda de definição da silhueta cardíaca.

As efusões bilaterais pode ocorrer em 70-90% dos casos. Posteriormente à drenagem devem-

se repetir as radiografias para procurar evidências de uma causa subjacente como massas

intratorácicas, corpos estranhos ou patologia pulmonar.2 A ecografia torácica pode ser utilizada

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para identificar a presença de efusão pleural, determinar a ecogenicidade do fluido, avaliar se

ele está livre ou em locas, bem como guiar a toracocentese.2 No caso da Fiona, não se

encontraram evidências de uma causa, nem na radiografia nem na ecografia. A TC, quando

comparada com as radiografias, tem maior sensibilidade para detetar pequenas efusões pleurais

e pode providenciar informações adicionais relativas à extensão e à natureza do piotórax, bem

como detetar outras lesões.2

O tratamento médico baseia-se em drenagem torácica, antibioterapia e tratamento de

suporte (fluidoterapia, oxigenoterapia, analgesia e nutrição).1 Em pacientes que se apresentem

com sinais de SIRS ou septicémia, a estabilização cardiovascular com fluidoterapia intravenosa

é fundamental para corrigir défices intravasculares e eletrolíticos.4 A oxigenoterapia deve ser

iniciada em casos de aumento do esforço respiratório ou de hipoxia (pO2 < 90%).2,5 Após

estabilização inicial com toracocentese, devem-se colocar tubos de toracostomia bilateralmente,

com anestesia geral. A sucção deve ser preferencialmente contínua, para remover a maior

quantidade possível de pús.2,3 No caso da Fiona o piotórax era assimétrico e bilateral, pelo que

se colocaram 2 tubos e se realizou sucção intermitente com lavagens torácicas. Quando

comparados com a toracocentese intermitente, os tubos são normalmente fáceis de colocar, bem

tolerados e permitem uma drenagem superior do espaço pleural.1 As principais complicações são

pneumotórax, hemotórax, hemorragia pulmonar, laceração de pulmão, infeção ou edema

pulmonar por reexpansão. A lavagem torácica inclui várias vantagens: facilita a drenagem;

previne a obstrução do tubo; permite o desbridamento da pleura; diluição e redução das bactérias

e mediadores inflamatórios; e ainda, detetar uma deficiência de drenagem caso 75% do fluido

instilado não seja recuperado.1,2 A monitorização dos níveis séricos de potássio através de um

ionograma deve ser realizada, sendo que a hipocalémia é uma potencial complicação deste

procedimento. Os tubos devem ser retirados quando: há resolução da infeção na citologia, o

volume drenado reduziu para 2mL/Kg/dia e o fluido aparenta ser mais serosanguinolento do que

purulento.1

A antibioterapia deve ser iniciada empiricamente assim que se suspeita de piotórax, com

base na citologia.1 Os antibióticos devem ser eficazes contra anaeróbios obrigatórios e

facultativos (contra bactérias geralmente associadas à flora comensal da cavidade oral).1 É

recomendada a administração parenteral combinada de enrofloxacina (retinotóxica em gatos, se

ultrapassada a dose de 5 mg/Kg SID) ou marbofloxacina, com penincilina ou clindamicina,

enquanto os resultados da cultura e antibiograma estão pendentes. Culturas mistas podem ser

difíceis de interpretar, pelo que se a condição clínica do animal melhorar com a terapêutica inicial,

não se devem realizar alterações.3 A administração de antibióticos no espaço pleural não é

recomendada.2 A administração deve ser parenteral até que o animal esteja estável e a comer.2

A Fiona iniciou terapia IV durante o internamento, e após a alta passou a realizar a mesma

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medicação via oral, a qual manteve durante 4 semanas. Esse é o período recomendado para

reavaliar a necessidade de continuar ou parar a antibioterapia, além da realização de radiografias

(10-14 dias depois no mínimo), para monitorização após a alta.3

A presença de tubos de toracostomia pode ser dolorosa pelo que se pode utilizar analgesia

intrapleural, cujo uso é controverso (pode provocar parálise diafragmática), ou sistémica com

buprenorfina, geralmente bem tolerada pelos gatos.1,2 O uso de opióides sistémicos é seguro e

eficaz em pacientes com a respiração comprometida.2 O suporte nutricional, com tubos de

alimentação, deve ser considerado quando os animais permanecem com anorexia após 24-48

horas de início da terapia.1 No caso da Fiona não foi necessária essa intervenção, uma vez que

foi alimentada durante a hospitalização.

Ao contrário do que ocorre nos cães, a intervenção cirúrgica é raramente necessária para

o maneio de piotórax em gatos, uma vez que a maioria responde bem ao tratamento médico. As

indicações cirúrgicas incluem a deteção de abcessos mediastínicos ou pulmonares, drenagem

torácica ineficiente ou ausência de resposta ao tratamento médico, após 1 semana de duração.1

No caso de o piotórax persistir ou recorrer, após parar a antibioterapia, deve-se repetir a

toracocentese para citologia, cultura e antibiograma.3

Quando os gatos se encontram em risco de colonização microbiana de trato respiratório

inferior, como em infeções do trato respiratório superior ou após procedimentos dentários sob

anestesia geral, a antibioterapia profilática deve ser considerada, uma vez que a maioria dos

casos envolve a flora comensal felina. 5

O diagnóstico e intervenção precoces são essenciais para aumentar a probabilidade de

sucesso do tratamento em casos de piotórax. Embora o prognóstico seja favorável, o tratamento

pode ser caro e prolongado, situação para a qual os donos devem ser alertados.

Bibliografia:

1. Odunayo A (2016), “Pyothorax”, in (Susan Little) August’s Consultations in Feline Internal Medicine,

Volume 7, Elsevier, 1ª Edição, 803 - 807

2. Stillion JR e Letendre JA (2015), “A clinical review of the pathophysiology, diagnosis, and treatment of

pyothorax in dogs and cats”, Journal of Veterinary Emergency and Critical Care, 25 (1), pp 113-129

3. Lappin MR, Blondeau J, Boothe D, Breitschwerdt EB, Guardabassi L, Lloyd DH, Papich MG, Rankin SC, Kyes

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Infectious Diseases”, Journal of Veterinary Internal Medicine, 31, 279-294

4. Barrs VR, Beatty JA (2009), “Feline pyothorax – New insights into na old problem: Part 1. Aetiopathogenesis

and diagnostic investigation”, The Veterinary Journal, 179, 163-170

5. Barrs VR, Beatty JA (2009), “Feline pyothorax – New insights into na old problem: Part 2. Treatment

recommendations and prophylaxis”, The Veterinary Journal, 179, 171-178

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Caso clínico nº2 – Cardiologia

Identificação: Toby, cão Cocker Spaniel, macho inteiro com 2 anos e 13 Kg. Motivo da

consulta: Referido para o HVM para estudo cardíaco, devido à auscultação de um sopro

contínuo grau V caudal à escápula do lado esquerdo.

Anamnese e história clínica: O Toby vivia numa moradia com acesso ao exterior, onde

coabitava com outro cão da mesma raça. Estava devidamente vacinado e desparasitado interna

e externamente. Era alimentado com comida comercial seca premium e tinha livre acesso a água.

Numa consulta de vacinação no seu MV habitual, foi-lhe detetado um sopro contínuo de grau V

caudal à escápula, no tórax esquerdo, sugerindo um diagnóstico presuntivo de DAP (Ducto

Arterioso Persistente), sem sinais clínicos associados. Foi referido para fazer estudo cardíaco

(radiografias LL e DV, ecocardiografia e ECG) e planear a cirurgia, caso a suspeita se

confirmasse. Não apresentava passado médico ou cirúrgico.

Exame de estado geral e dirigido: Estado mental alerta, temperamento equilibrado e

condição corporal de 5/9. Grau de desidratação <5%, movimentos respiratórios normais com

frequência de 32 rpm e apirético (38,2ºC). O pulso era forte, simétrico, com frequência de 84

ppm. À palpação do tórax encontrava-se um frémito craniodorsalmente à base cardíaca,

coincidente com um sopro, sistólico-diastólico de grau V, com área de intensidade máxima caudal

à escápula do lado esquerdo, detetado na auscultação cardíaca. Restante exame físico sem

alterações. Lista de problemas: sopro contínuo sistólico-diastólico de grau V caudal à escápula.

Diagnósticos diferenciais: Ducto arterioso persistente, fístulas arteriovenosas torácicas ou

pulmonares, defeito de septo interventricular com regurgitação aórtica, estenose pulmonar com

regurgitação pulmonar.

Exames complementares: 1) Hemograma e bioquímica sérica: sem alterações. 2)

Radiografia torácica (projeção LL): ligeira cardiomegalia evidenciada pelo índice vertebral

cardíaco de 10,5 corpos vertebrais (Refª normal < 10,5 corpos vertebrais) (Anexo II, figura 1).

Ecocardiografia transtorácica (Anexo II, figura 2-6): visualização e medição de um DAP do tipo

IIb com óstio ductal de 0,8mm de diâmetro. O óstio ductal é a parte mais estreita da ampôla

ductal, no extremo pulmonar. Observa-se uma sobrecarga de volume do lado esquerdo

evidenciada pela dilatação do ventrículo esquerdo (VE), sem dilatação do átrio esquerdo (AE).

No entanto, observa-se boa contractilidade do VE com uma fração de encurtamento (FE) de

34,7% [Refª 25-50%]. Ecocardiografia transesofágica: confirmou-se o tamanho e a forma do DAP

observado na ecocardiografia transtorácica (ETT).

Diagnóstico: Ducto arterioso persistente com fluxo esquerda-direita (aorta-pulmonar).

Tratamento e evolução: Dia 1: iniciou-se a fluidoterapia IV com Lactato de Ringer a 13mL/h

(taxa de 1mL/Kg/h para não haver sobrecarga cardíaca com fluidos), antibioterapia com

cefazolina (22mg/Kg IV TID) e analgesia com tramadol (3 mg/Kg IV TID) . Dia 2: Foi realizada a

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cirurgia de encerramento transcutâneo do DAP através de cateterismo vascular, para colocação

do Amplatz Canine Duct Occluder ® (ACDO – Anexo II, figura 7). O Toby foi pré-medicado com

metadona (0,15mg/Kg IM) e induzido com midazolam (pré-indução a 0,15 mg/Kg IV) e alfaxolona

(1 mg/Kg IV). A manutenção anestésica foi realizada com sevoflurano veiculado em 100% de O2

a 1-2,5%. O Toby foi posicionado em decúbito lateral direito na mesa do fluoroscópio e a área

correspondente ao triângulo femoral da face interna do membro foi preparada asseticamente.

Fez-se uma incisão na pele e procedeu-se à disseção dos tecidos perivasculares para isolar a

artéria femoral. Iniciou-se o acesso vascular com uma ligadura distal ao ponto de acesso no vaso,

para limitar a entrada de ar ou êmbolos distalmente, e uma sutura de retração, proximalmente.

Através da técnica de Seldinger modificada acedeu-se então ao lúmen da artéria femoral (Anexo

II, figura 8). Esta técnica consiste na introdução de um cateter, por onde entra uma guia flexível

que é direccionada até à artéria aorta, com o auxílio da fluoroscopia. O cateter foi removido, e no

seu lugar colocou-se (com a orientação da guia) uma cânula dilatadora e um introdutor (que tem

uma via aberta para a introdução de soro heparinizado e contraste iodado), através do qual se

realizou toda a cirurgia. Após a guia marcar a distância percorrida até ao coração, colocou-se

através do introdutor o cateter de entrega. Pela via aberta do introdutor administrou-se soro

heparinizado para facilitar o deslizamento do cateter de entrega. Quando este ultrapassou o

ducto arterioso até à artéria pulmonar introduziu-se contraste iodado (1mL/Kg), obtendo-se uma

imagem angiográfica do ducto e confirmando-se a localização correta com a presença de

contraste nas artérias pulmonares (Anexo II, figura 9). Assim, retirou-se a guia e introduziu-se a

cápsula que contém o ACDO pelo cateter de entrega até à artéria pulmonar principal. Iniciou-se

primeiro a expansão do disco distal, que ao recuar ficou preso no óstio pulmonar do DAP

(ocupado pela cintura do ACDO), interrompendo o fluxo através da comunicação, permitindo um

posicionamento seguro. Procedeu-se à remoção da restante cápsula (disco proximal em forma

de cálice), que expandiu conformando-se à ampola ductal, na extremidade aórtica do DAP.

Introduziu-se novamente contraste iodado de modo a confirmar que o fluxo estava interrompido.

Terminada a cirurgia, a sutura proximal de retração foi usada para fazer uma ligadura proximal

antes de o material ser removido completamente, minimizando a probabilidade de ocorrer

hemorragia pós-operatória. Depois encerrou-se o acesso com um padrão de sutura contínuo

simples e fio não absorvível (6/0). Durante a cirurgia, tanto a frequência cardíaca como a pressão

arterial se mantiveram estáveis. O Toby encontrava-se hipotérmico no pós-cirúrgico (36,2º) pelo

que se manteve com uma lâmpada de aquecimento até recuperar da anestesia. Vinte e quatro

horas depois da cirurgia fez-se controlo com radiografia torácica laterolateral (Anexo II, figura 10)

e ecocardiografia transtorácica (Anexo II, figura 11) em que se confirmou o correto

posicionamento do ACDO e a oclusão do fluxo aorta-pulmonar. Dois dias depois da cirurgia o

Toby teve alta, com restrição de exercício durante duas semanas,

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prescrição de cefazolina via oral (mantendo a posologia) durante 10 dias e limpezas diárias da ferida

onde se realizou o acesso cirúrgico.

Acompanhamento: Na consulta de revisão, duas semanas depois, o Toby apresentou-se

estável, sem sopro cardíaco. A sutura encontrava-se limpa pelo que se retiraram os pontos.

Realizou-se uma ecocardiografia de controlo em que se verificou a permanência do ACDO no

seu lugar, sem fluxo residual entre a artéria aorta e pulmonar. A revisão ficou marcada para 3

meses depois.

Prognóstico: Excelente, após a intervenção cirúrgica. A cirurgia pode ser considerada

curativa quando se realiza antes de ocorrerem alterações hemodinâmicas e estruturais

irreversíveis na função cardíaca, tal como no caso do Toby.4 Vários estudos indicam uma taxa

de mortalidade nula, uma taxa de fluxo residual <6% e um tempo médio de sobrevivência de 11

anos e meio após a cirurgia.1

Discussão: O DAP é a cardiopatia congénita mais frequentemente diagnosticada em cães

(25,7%), seguido da estenose sub-aórtica (23,5%) e estenose pulmonar (22,1%). As raças mais

predispostas incluem Pastor Alemão, Yorkshire Terrier, Cocker Spaniel, e Labrador Retriever,

sendo que há uma maior incidência em fêmeas em relação aos machos (2:1-3:1) e em animais

jovens. A maioria dos animais com cardiopatias congénitas apresenta-se assintomática na

primeira visita ao hospital (6-8 semanas de idade), mesmo em casos severos (assintomáticos

até aos 12 meses de idade).3,5

O ducto arterioso origina-se embriologicamente a partir do 6º arco aórtico esquerdo, cujo

trajeto vai desde a bifurcação da artéria pulmonar até à face ventral da artéria aorta

descendente.3 Durante o período fetal, o sangue flui através dessa comunicação, da artéria

pulmonar para a aorta descendente até à placenta, onde é oxigenado, uma vez que os pulmões

se encontram colapsados e a resistência vascular pulmonar é muito elevada.3,5 No nascimento

há um aumento da pressão de O2, os pulmões expandem e a resistência vascular pulmonar

diminui ao dilatarem-se as arteríolas pulmonares, além de ser inibida a síntese de

prostaglandinas vasodilatadoras do músculo liso do ducto.3,5 Normalmente, estes processos

estimulam a contração da musculatura lisa da parede do ducto, levando ao seu encerramento no

máximo 7 a 10 dias após o nascimento.3,5 Ao longo do tempo, o tecido muscular converte-se em

tecido fibroso ficando somente um ligamento arterioso (Anexo II, figura 12).3 Em alguns casos,

devido a diferentes graus de hipoplasia de músculo, o ducto não se encerra corretamente, tal como

ocorreu no caso do Toby.3

A diferença de pressão entre a circulação sistémica e pulmonar (sendo a pressão aórtica

superior à pressão pulmonar) leva a que, na presença de um DAP, o sangue circule da artéria

aorta para a pulmonar (shunt esquerda-direita). O volume de sangue que circula através da

comunicação leva a uma sobrecarga do lado esquerdo do coração, que conduz à dilatação do

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AE e hipertrofia excêntrica do VE, como mecanismo compensatório. Em alguns casos, a

hiperperfusão pulmonar pode aumentar excessivamente a resistência vascular pulmonar, que ao

longo do tempo pode progredir para um quadro de hipertensão pulmonar. Nesse caso, há

compensação da pressão entre o lado esquerdo e direito e o DAP pode inverter o fluxo de

sangue, permitindo que entre sangue não oxigenado na circulação sistémica (DAP invertido).3

Tal como descrito anteriormente, a maioria dos animais com DAP encontra-se

assintomáticos quando se apresenta pela primeira vez num exame de rotina, às 6-8 semanas.5

O sinal clínico mais comum é dispneia devido ao edema pulmonar resultante da progressão da

doença. A qual pode culminar em falha miocárdica por excesso de volume, em casos mais

severos 3,5 À auscultação cardíaca é comum detetar-se um sopro contínuo de grau IV-VI que se

ausculta com maior intensidade na região caudal à escápula do lado esquerdo.3 Não auscultar

esta zona por rotina é um erro comum que pode levar à falha de deteção do sopro.5 Também se

pode palpar um frémito do lado esquerdo do tórax, craniodorsalmente à base cardíaca. Na

projeção da válvula mitral é possível auscultar um sopro devido a regurgitação mitral secundária

à dilatação severa do VE.3 Em casos em que a comunicação é de grande tamanho pode palpar-

se um pulso hipercinético: forte, resultante do aumento da pressão sistólica para compensar a

sobrecarga de volume e rápido, resultante da diminuição da pressão diastólica ao refluir o sangue

pelo DAP para a artéria pulmonar.3,5 Nos casos de DAP invertido os sinais mais comuns são

taquipneia, letargia, dispneia, anorexia, debilidade do terço posterior em exercício e cianose

diferencial (cianose das mucosas da região caudal com mucosas da região cranial rosadas –

devido à localização da comunicação ser posterior à saída do tronco braquiocefálico e artéria

subclávia esquerda).5

A abordagem inicial deve incluir analíticas laboratoriais (hemograma e gasimetria), que no

caso de DAP são completamente normais (como ocorreu no caso do Toby), mas no caso de DAP

invertido podem revelar hipoxia (pO2<60mmHg) e policitemia (hematócrito>65%). A má perfusão

renal provoca a produção de eritropoietina que leva a policitemia secundária com aumento da

viscosidade sanguínea.3,5

A radiografia permite identificar o aumento de tamanho do lado esquerdo do coração, devido

à sobrecarga de volume, e o aumento da vascularização pulmonar. É possível observar-se um

aumento de diâmetro da aorta ascendente, do tronco pulmonar, do átrio e ventrículo esquerdos.

No caso do DAP invertido verifica-se a dilatação do ventrículo direito devido ao aumento da

resistência vascular pulmonar.3,5 Quando o ritmo cardíaco é regular, o ECG tem pouco valor

diagnóstico, pelo que por vezes não é realizado, como no caso do Toby. No entanto, permite

identificar dilatação do VE (aumento da onda Q e R) do AE (aumento da onda P).5 A

ecocardiografia é a prova complementar que confirma o diagnóstico de DAP na maioria dos

casos. Permite observar dilatação do AE, VE, aorta ascendente e artéria pulmonar; avaliar a

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forma do DAP e medir o diâmetro do óstio pulmonar; avaliar a função sistólica através da medição

de FE. No caso do Toby verificou-se dilatação do VE, com FE normal (34,7% refª 25-50%) e um

DAP tipo IIb com óstio pulmonar de 0,8mm. Na ecocardiografia do Toby observou-se também

um fluxo contínuo através do DAP. Uma vez que o gradiente de pressão na artéria aorta é de

120mmHg e na artéria pulmonar é de 20mmHg o gradiente de pressão dentro do DAP deverá

ser aproximadamente de 100mmHg, que corresponde a uma velocidade de 5 m/s (metros por

segundo) (Anexo II, figura 3). A ecocardiografia transesofágica permite visualizar melhor a forma

do ducto e confirmar o tamanho do óstio pulmonar. Este é um passo importante para o

planeamento cirúrgico de encerramento do ducto através de cateterismo.

Ainda que seja pouco frequente em animais com DAP, a progressão da doença sem

tratamento pode levar a complicações severas (insuficiência cardíaca congestiva, morte). Num

estudo realizado, 64% dos animais que não foram tratados morreram no espaço de 1 ano.5 Ainda

assim, animais com formas leves de DAP podem sobreviver até aos 10 anos de idade, grupo

onde se poderia incluir o Toby. Em casos de insuficiência cardíaca congestiva, o animal deve ser

estabilizado (com furosemida e inibidores da enzima conversora da angiotensina) previamente à

anestesia e cirurgia.5 De qualquer forma, é recomendado o tratamento cirúrgico para a oclusão

do DAP, com ligadura através de toracotomia ou com colocação de um dispositivo de oclusão,

por cateterismo.5 A escolha adequada depende da morfologia ductal, do tamanho do paciente e

da experiência do cirurgião. A ligadura cirúrgica pode ser realizada em todos os tipos de

morfologia de DAP e em todos os animais, sendo preferível em animais com peso <2,5Kg e

animais com DAP tipo III (Anexo II, figura 13).5 No entanto, está associada a mortalidade

perioperatória superior (0-5,6%), à presença de fluxo residual e a complicações incluindo

hemorragia (11-15%), infeção, pneumotórax, arritmias e paragem cardíaca.5 A oclusão por

cateterismo, por outro lado, está associada a menor morbilidade, menor tempo de hospitalização

e a recuperação pós-operatória mais rápida.5 Existem vários dispositivos de oclusão, entre os

quais o ACDO. Consiste num dispositivo auto-expandível de nitinol que incorpora estruturas de

poliéster para estimular a trombogénese dentro do dispositivo.3 É constituído por dois discos

conectados por uma cintura estreita (pode ir dos 3-14mm) que ocupa o óstio pulmonar.3

Relativamente a outros dispositivos de oclusão, o ACDO apresenta menor risco de migração e

menor fluxo residual pós-cirúrgico.4 Como desvantagens em relação à ligadura cirúrgica tem a

necessidade de exposição a radiação por fluoroscopia, de equipamento de cateterismo

especializado, experiência do MV, o preço elevado, o uso limitado em animais com DAP tipo III

ou com peso <2,5Kg.5,3 A aplicação do ACDO está contraindicada também em pacientes com

processos infeciosos ativos (que devem ser tratados primeiramente), ou em animais que tenham

história prévia de trombose arterial.4 As potenciais complicações incluem infeção do dispositivo

(que pode levar à formação de êmbolos séticos) e hemorragia da artéria femoral.1 Após o

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encerramento do DAP, a pré-carga diminui consideravelmente pelo que é expectável a

normalização do diâmetro das câmaras cardíacas no espaço de um ano, em casos sem

complicações, independentemente da idade do animal no momento da cirurgia.1,3

O acompanhamento pós-cirúrgico deve ser realizado às 24h com ecocardiografia para avaliar

a dimensão e função cardíaca do ventrículo esquerdo, verificar se houve deslocamento do

dispositivo e avaliar a presença de fluxo residual. Às 24h não é expectável detetar-se fluxo

residual, uma vez que a comunicação se encontra tipicamente 100% encerrada.1 No caso do

Toby, não existia fluxo residual e não havia alterações na função cardíaca. Posteriormente, deve

ser feito o acompanhamento aos 3 meses e 1 ano após a cirurgia, com ecocardiografia.1 A

recorrência do DAP está descrita mas é rara, ocorrendo em menos de 2% dos casos e está

maioritariamente associada a infeção pós-cirúrgica, pelo que é recomendada a administração de

antibiótico durante 2 semanas no pós-operatório.1

No caso do DAP invertido, a cirurgia está contraindicada uma vez que as lesões provocadas

nas artérias pulmonares, pela hipertensão pulmonar, são irreversíveis (hipertrofia da túnica

média, redução do lúmen).1 Invariavelmente o encerramento da comunicação direita-esquerda

conduz a falha cardíaca direita aguda e morte.5 A mortalidade e morbilidade resultam

maioritariamente das complicações do DAP associadas à hipoxemia constante com policitemia

secundária que leva à hiperviscosidade sanguínea.1 O tratamento consiste em restrição de

exercício, prevenção da desidratação e a manutenção do hematócrito entre 58-65% (através de

flebotomias periódicas ou com hidroxiureia).5 Se o hematócrito for mantido < 65%, com uma vida

tranquila, os animais com DAP invertido podem sobreviver entre 2 e 5 anos.4

Bibliografia:

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Guided Interventions, 1ª Edição, Wiley Blackwell, cap. 55, 564-573;

2. Weisse C (2015), “Vascular Access”, in (Chick Weisse, Allyson Berent) Veterinary Image-Guided

Interventions, 1ª Edição, Wiley Blackwell, cap. 44, 440-445

3. Guasch LG, Pereira YP, “Conducto arterioso persistente”, Manual Práctico de Cardiología, 1-16

4. Manubens J., García-Guasch L., Morais Paiva R., Castro Sousa P. (2008) “Técnica de cierre del conducto

arterioso persistente. Colocación del dispositivo Amplatz Canine Duct Occluder”. Consulta de Difusión

Veterinaria, Vol. 16, nº 153, Septiembre; 43-52.

5. Beijernik N, Oyama M, Bonagura J “Congenital Heart Disease” in (Ettinger S, Feldman E, Côte E) Textbook

of Veterinary Internal Medicine, 8ª ed, 2017, Elsevier, pp 2952-3032

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Caso nº3 – Gastroenterologia

Identificação: Lia, cão de raça indeterminada, fêmea inteira com 1 ano e 3 meses, e 4,6 Kg.

Motivo da consulta: Referida para o CHV para estabilização e acompanhamento após entrar

em contacto direto com uma processionária do pinheiro (também designada lagarta do pinheiro)

no próprio dia, desenvolvendo edema da língua severo.

Anamnese e história clínica: A Lia vivia em Gondomar, onde tinha acesso ao exterior

público. Estava devidamente vacinada (contra raiva, esgana, parvovirose, hepatite infeciosa

canina, leptospirose) bem como desparasitada internamente (com milbemicina oxima e

praziquantel) e externamente (imidaclopride e permetrina). Era alimentada com comida comercial

seca e tinha água sempre à disposição. No próprio dia em que se apresentou no hospital, em

passeio, por volta das 14h, numa zona com pinheiros, a Lia entrou em contacto com uma

Processionária, confirmado pela proprietária que presenciou o acontecimento. Dirigiu-se ao

Centro Veterinário de Gondomar, sendo que a Lia já apresentava edema da língua e ptialismo.

Foi-lhe feita uma lavagem com soro fisiológico frio, sob sedação, e foi medicada com amoxicilina

e ácido clavulânico, buprenorfina, e metilprednisolona (2mg/kg IV). Inicialmente o edema

diminuiu, mas foi piorando ao longo do dia. Por volta das 19h dirigiu-se ao CHV, para

estabilização e posterior acompanhamento. Exame de estado geral e dirigido: Estado mental

alerta, temperamento equilibrado e condição corporal 4/9. Grau de desidratação <5%. As

mucosas estavam rosadas, húmidas e brilhantes e o TRC <2 segundos. Pulso forte com

frequência de 80 ppm, apirética (37,5ºC). À inspeção da cavidade oral, a Lia apresentava edema

lingual, sub-lingual e do pós-boca, acompanhado de ptialismo (Anexo III, figura 1 e 2).

Apresentava também dispneia inspiratória com frequência de 36 rpm, devido à inflamação do

pós-boca (laringe e faringe). Os restantes parâmetros do exame geral foram considerados

normais. Lista de problemas: Edema lingual, sub-lingual e do pós-boca, ptialismo, dispneia

inspiratória. Diagnóstico: Intoxicação por processionária do pinheiro (Thaumetopea

pytocampa).

Tratamento e evolução: Dia 1: iniciou tratamento de suporte com fluidoterapia (soro

fisiológico NaCl a 0,9% a 8,7 mL/h – taxa de manutenção), analgesia [2 infusões contínuas IV de

remifentanil (5 µg/Kg/h diluída em NaCl 0,9%) e lidocaína (50 µg/Kg/min diluída em NaCl 0,9%)],

antibioterapia (8,75 mg/Kg SC SiD de amoxicilina com ácido clavulânico), metilprednisolona (2

mg/Kg IV SiD) e omeprazol (1 mg/Kg IV SiD). Iniciou também lavagens da língua com soro

fisiológico frio, por gravidade, durante 15 minutos a cada 4 horas. Vomitou, pelo que lhe foi

administrado 0,1 ml/Kg SC de maropitant. Dia 2: desenvolveu edema submandibular e necrose

superficial do terço cranial da língua (Anexo III, figura 3). Dia 3: Interrompeu-se a administração

de metilprednisolona e as lavagens da língua uma vez que a Lia já não as tolerava. A Lia estava

mais confortável, sem esforço inspiratório com frequência de 20 rpm. Foi sedada e entubada

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para colocar uma sonda de alimentação esofágica, uma vez que apresentava necrose extensa

da língua com odinofagia, pelo que não conseguia comer nem beber água (Anexo III, figura 4).

Foi calculada a energia de manutenção ou RER [Resting Energy Requirements = 70 x peso

corporal (4,5)3/4 = 216 kcal/dia] em repouso em jaula (216x1,2=259 kcal/dia), e realizado um plano

de alimentação distribuído por 5 refeições diárias com Convalescence da Royal Canin®. Dia 4:

A Lia tolerou bem a alimentação por sonda. Parou a fluidoterapia IV e iniciou a hidratação pela

sonda de alimentação. Apresentava edema facial significativo e necrose extensa com o terço

cranial a destacar-se (Anexo III, figura 5). Durante a noite, a Lia foi sedada e foi-lhe removido o

tecido necrosado da língua. Dia 7: Interrompeu a analgesia, em infusão contínua, e iniciou a

administração de tramadol (2mg/Kg IV a cada 6h). Começou a tomar antibioterapia através da

sonda alimentação (1 comprimido de 62,5mg amoxicilina com ácido clavulânico BiD). O edema

facial e submandibular reduziram, ainda que se tenha mantido o ptialismo (Anexo III, figura 6).

Dia 8: Começou a mostrar interesse pela comida, pelo que lhe foi dado Digestive Support da

Specific®, moldada em pequenas porções para ser possível ela mastigar. Ainda apresentava

alguma necrose no terço médio da língua. No entanto, o edema facial diminuiu significativamente

(Anexo III, figura 7). Parou a administração de omeprazol. Dois dias depois teve alta, sendo que

os donos continuaram a administrar-lhe a alimentação e a amoxicilina com ácido clavulânico

(mantendo a posologia anteriormente referida) através da sonda, durante 7 dias. Foi prescrito

também tramadol (0,1 mL TiD PO) durante 7 dias. Progressivamente, foram introduzindo a

alimentação seca para avaliar a resposta da Lia.

Acompanhamento: 1 semana depois a Lia apresentou-se estável sem ptialismo, edema

facial, lingual ou submandibular. Arrancou a sonda da alimentação sozinha e começou a comer

ração seca, adaptando-se a viver sem dois terços da língua e a ter uma qualidade de vida normal,

novamente (Anexo III, figura 8).

Prognóstico: Na maioria dos casos é excelente, com tempo de hospitalização

frequentemente curto.1 O tempo entre o contacto com a larva e a intervenção médica aparenta

ser o fator condicionante da evolução clínica, devendo este ser < 6h para minimizar o risco de

aparecimento de sequelas.2 Ainda assim, as lesões na língua (necrose e queda) que se podem

desenvolver raramente são extensas, além de serem bem toleradas pelos animais, podendo

beber e comer adequadamente.2 Contudo, no caso da Lia o prognóstico era reservado, uma vez

que o edema no pós-boca poderia conduzir a obstrução aguda das vias aéreas superiores e

provocar a sua morte, ainda que tenham passado menos de seis horas desde o contacto até à

intervenção médica.

Discussão: O contacto com a larva da Processionária do pinheiro (Thaumetopoea

pytocampa) induz reações alérgicas severas, em humanos e animais, representando um perigo

para a saúde pública.1 As principais espécies são a Thametopoea wilkinsoni, que se distribui pela

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Ásia Ocidental e a Thaumetopea pytocampa, que é uma espécie mediterrânea que se distribui

pela Península Ibérica, estendendo-se à Europa Central e ao Norte de África.3,4 A sua distribuição

natural tem vindo a estender-se, em latitude e longitude, devido às alterações climáticas e ao

aquecimento global.1 É considerada, a seguir aos incêndios florestais, a praga mais destruidora

do pinheiro.4 O ciclo de vida completo da Processionária demora 1 ano e inclui 2 fases: a fase

aérea (postura e desenvolvimento larvar – em ninhos) e a fase subterrânea (pré-pupação,

pupação e desenvolvimento adulto). A partir do terceiro estadio larvar as lagartas tecem ninhos

onde se agrupam, permitindo a acumulação de calor necessário à sobrevivência das colónias

durante o Inverno.4 Nos últimos estadios larvares, o aparelho de defesa está totalmente

desenvolvido compreendendo 8 recetáculos com 120000 pelos urticantes cada um.4 É na

passagem de uma fase para a outra (entre Fevereiro e Maio), estimulada pelo aumento de

temperatura, que se verifica a migração coletiva das lagartas, que se movimentam em procissão

para se enterrarem no solo (Anexo III, figura 9). Quando a Lia entrou em contacto com a lagarta,

os pelos provocaram irritação mecânica na mucosa oral e libertou-se uma proteína urticante, a

taumatopoína. A taumatopoína induz a desgranulação de mastócitos, que por sua vez libertam

histamina e é desencadeada uma resposta inflamatória, semelhante a reações alérgicas agudas

em que ocorre uma reação de hipersensibilidade tipo I mediada por imunoglobulinas tipo E. A

inflamação pode ser prolongada através da fixação dos pelos na zona de contacto.3

A intoxicação por Processionária do pinheiro afeta principalmente os animais jovens à volta

de 1 ano de idade (devido à sua curiosidade natural e comportamento de brincar) e o risco de

contaminação é maior desde o fim do Inverno até ao início da Primavera (quando as larvas

maduras formam procissões).1

Os sinais clínicos mais comuns incluem edema lingual, sublingual e submandibular, necrose

da língua (que leva a odinofagia), prurido facial, vómito e ptialismo.2 Segundo o estudo

retrospetivo mais recente foram observadas lesões na língua em 86% dos casos incluindo

edema, ulceração, cianose (devido ao difícil retorno venoso) e necrose.1 Lesões oculares como

queratite com infiltrados celulares e uveíte anterior estão também descritas.1 Observaram-se

lesões sistémicas em 55% dos casos (vómito, dispneia e diarreia), que quando presentes podem

ser indicadores precoces de SIRS.1 O contacto da lagarta com a laringe pode levar a edema e

dificuldades respiratórias, podendo resultar em morte por asfixia.4 Está descrita também a

presença de hipertermia (39,1ºC em média), que pode ser associada a SIRS posterior à

libertação de taumatopoína.1 Em casos muito severos, pode ocorrer choque anafilático, embora

seja raro.1 Além das lesões na língua, a Lia apresentava apenas vómitos e dispneia inspiratória

(que melhorou ao longo da hospitalização, pela diminuição do edema da laringe, melhorando o

seu prognóstico.

A necrose da língua (com posterior perda parcial da língua) é a sequela mais importante do

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contacto com a Processionária do pinheiro, podendo estar presente na admissão do animal ou

desenvolver-se durante a hospitalização, como ocorreu no caso da Lia. A alteração da cor da

língua foi identificada como marcador preditivo de progressão para necrose.1 A Lia desenvolveu

anorexia associada à necrose lingual, levando à necessidade de alimentação parenteral, com

sonda de alimentação.1,3 Raramente as lesões na língua se estendem, pelo que os animais

recuperam e reaprendem a comer e beber normalmente, tal como aconteceu com a Lia.1

O quadro clínico que se instala posteriormente à reação anafilática no contacto com

Processionária do pinheiro é comum a várias patologias, pelo que é importante distinguir

diagnósticos diferenciais para o caso de a observação direta não ocorrer.4 Incluem reações de

hipersensibilidade provocadas pela ingestão de alimentos, aditivos alimentares, medicamentos,

parasitas gastrointestinais, mordeduras de serpente, inalação de alergénios ou intoxicação

química.4

As alterações em analíticas laboratoriais (hemograma, ureia e creatinina) são raras.1 Os

humanos podem também ser afetados, desenvolvendo um intenso prurido nas mãos e braços

como consequência da manipulação, pelo que se recomenda o uso de luvas durante o exame

físico. Pode surgir também conjuntivite, queratite e uveíte dependendo da zona de

contacto.4

O tratamento de suporte compreende a eliminação dos pelos urticantes e o controlo da

reação alérgica.2 A remoção dos pelos com lavagens intensivas (com soro fisiológico frio durante

10-15 minutos, sob pressão, sem esfregar as zonas afetadas para não haver rutura dos pelos e

posterior libertação de taumatopoína) deve ser realizada o mais rápido possível, uma vez que o

tempo decorrido entre o contacto e a primeira lavagem é o fator determinante da progressão das

lesões necróticas.1 A lavagem permite não só remover os pelos mas também diluir as toxinas e

diminuir a inflamação local. Deve ser realizada idealmente até às 6 horas após contacto com a

lagarta, para minimizar as consequências inflamatórias da reação alérgica.1 No caso da Lia foi

um fator determinante para a sua recuperação, tendo em conta que passaram menos de 2 horas

desde o contacto até à primeira lavagem. Em casos de hipersensibilidade aguda, como o da Lia,

devem ser utilizados corticoesteróides IV (dexametasona ou metilprednisolona), podendo ser

também utilizados anti-histamínicos (difenidramina 1-2 mg/Kg IV).1,2 Está recomendada a

administração de protetores gástricos quando são administrados corticoesteróides, razão pela

qual a Lia tomou omeprazol.3 O controlo de dor pode ser realizado com opióides como butorfanol

ou patches de fentanil.2 Na presença de necrose da língua é recomendado o uso de antibiótico

de largo espetro para impedir infeções bacterianas secundárias.2 No caso da Lia foi administrado

amoxicilina com ácido clavulânico para o efeito. Num estudo foi utilizada heparina intralingual

para controlar a evolução da glossite necrótica da língua.4 No entanto, a eficácia do seu uso não

foi ainda estudada.1

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A intervenção cirúrgica está indicada quando uma porção da língua entra em necrose e está

presa apenas por um pedículo, tal como ocorreu no caso da Lia.2

O prognóstico e a duração de hospitalização dependem da rapidez com que é instituída a

terapia após o diagnóstico, como referido anteriormente.3 A duração de hospitalização pode

variar entre 8h e os 10 dias.2

Para minimizar o risco de intoxicação com as lagartas, algumas medidas de prevenção podem

ser tomadas. Antes da segunda muda, as larvas são sensíveis a insecticidas pelo que as

fumigações, das larvas ou dos ninhos, com triclorfon a 5% ou piretrinas podem ser eficazes.4

Podem ser utilizados ainda os reguladores de crescimento (diflubenzuron) na fase inicial de

desenvolvimento das lagartas (Novembro) para inibir a formação de quitina.4 Os ninhos devem

também ser cortados e queimados, se estiverem ao alcance nos pinheiros.2 Principalmente,

deve-se impedir que os cães tenham livre acesso aos pinhais onde existam ninhos de

Processionária, durante a fase de procissão (desde o fim do Inverno até ao início da Primavera)

tendo em conta que é a época do ano em que se verifica a maior incidência de casos de

intoxicação.2

Bibliografia:

1. Pouzot-Nevoret C. et al (2017), “Pine processionary caterpillar Thaumetopoea pytocampa

envenomation in 109 dogs: A retrospective study”, Toxicon, Elsevier, 132

2. Niza M.E. et al (2012), “Effects of Pine Processionary Caterpillar Thaumetopoea pityocampa

Contact in Dogs: 41 Cases (2002–2006)”, Zoonoses Public Health, Blackwell Verlag GmbH, 59,

35

3. Kaskak I. et al (2015), “Pine processionary caterpillar, Thaumetopoea pytocampa Denis and

Schiffermüller, 1755 contact as a health risk for dogs”, Polish Parasitological Society, 61(3),

159-163

4. Oliveira, P. et al (2003), “Cinco casos clínicos de intoxicação por contacto com a larva

Thaumetopoea pityocampa.” Revista Portuguesa de Ciências Veterinárias, 98, 151–156.

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Caso nº4 – Neurologia

Identificação: Mike, Beagle, macho inteiro de 6 anos e 21Kg. Motivo da consulta:

Paraplegia aguda (havia menos de 24h). Anamnese e história clínica: O Mike vivia numa

moradia com acesso ao exterior público, sem coabitantes. Era alimentado com comida comercial

seca premium e tinha água sempre à disposição. Estava devidamente vacinado e desparasitado

interna e externamente. Não apresentava passado médico ou cirúrgico. Após voltarem do

trabalho nesse mesmo dia encontraram o Mike paraplégico, pelo que se dirigiram de imediato ao

serviço de urgência do HVM.

Exame de estado geral: Estado mental alerta, temperamento equilibrado e condição

corporal 7/9. Grau de desidratação <5%, as mucosas estavam rosadas, húmidas e brilhantes e

o TRC <2 segundos. Pulso forte com frequência de 72 ppm, apirético (38ºC), movimentos

respiratórios normais com frequência de 28 rpm. A bexiga encontrava-se firme e distendida à

palpação abdominal, apresentando pseudo-incontinência. Os restantes parâmetros do exame

geral foram considerados normais. Exame neurológico: 1) Estado mental alerta. 2) Postura e

marcha: ausência total de motricidade voluntária nos membros pélvicos (MP) - Paraplegia

espástica. Membros torácicos (MT) sem alterações. 3)Tónus muscular: Hipertonia dos MP e

normotonia dos MT. 4) Reações posturais: knuckling e hopping ausentes nos MP e normais nos

MT. 5) Reflexos miotáticos: normorreflexia patelar, tibial cranial e flexora nos MP. Reflexo

perineal normal. Sem alterações nos MT. Reflexo panicular ausente até às últimas vértebras

torácicas (assumindo a direção caudal-cranial na exploração). 6) Pares cranianos: sem

alterações. 7) Sensibilidade: anestesia superficial com sensibilidade profunda presente nos MP.

Localização neuroanatómica: Segmento T3-L3 (com localização mais provável nas últimas

vértebras torácicas). Lista de problemas: paraplegia espástica, anestesia superficial nos MP,

bexiga firme e distendida, ausência de reflexo panicular até às últimas vértebras torácicas,

excesso de peso. Diagnósticos diferenciais: Hérnia discal Hansen tipo I, traumatismo medular,

tromboembolismo fibrocartilagíneo, discoespondilite, neoplasia.

Exames complementares: 1) Hemograma e bioquímica sérica: sem alterações. 2)

Radiografia LL da coluna toracolombar: diminuição do espaço intervertebral entre T10-T11, com

aumento da radiopacidade compatível com calcificação discal indicativa de degeneração do

disco intervertebral (Anexo IV, figura 1). 3) TC (Anexo IV, figura 2): Corte axial no espaço T10-T11

– observa-se uma massa hiperatenuante heterogénea a comprimir a medula pelo lado esquerdo.

Diagnóstico: Hérnia discal Hansen tipo I entre T10-T11.

Tratamento e evolução: O Mike foi internado e iniciou fluidoterapia IV com Lactato de

Ringer a 42 mL/h (taxa de manutenção), analgesia com tramadol (3mg/Kg IV TiD) e gabapentina

(200mg PO TiD), metilprednisolona (0,15mL BiD IV correspondente a uma dose de 0,5 mg/Kg

diária) e antibioterapia com cefazolina (20 mg/Kg IV TiD). Foi algaliado com uma algália de Foley

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para permitir o esvaziamento da bexiga, que manteve até ao dia da alta. No dia seguinte o Mike

foi levado para o bloco cirúrgico. Realizou-se uma hemilaminectomia esquerda das vértebras

T10 e T11 para descompressão medular, com remoção do material discal extrudido. Foi pré-

medicado com metadona, ketamina e dexmedetomidina (0,3 mg/Kg, 0,5 mg/Kg e 3µg/Kg

respetivamente IM) e induzido com propofol (2 mg/Kg IV). A manutenção da anestesia foi

realizada com isoflurano. A analgesia foi assegurada durante a cirurgia com uma infusão

contínua de Lactato de Ringer a 42 mL/h com fentanil (5µg/Kg/h) e ketamina (0,2 mg/Kg/h) que

manteve até ao final do dia. A cirurgia decorreu sem complicações. No dia seguinte começou a

comer e os parâmetros do exame de estado geral encontravam-se normais. O exame

neurológico manteve-se inalterado, continuando não ambulatório, com sensibilidade profunda,

normorreflexia e hipertonia muscular nos MP, apresentando também incontinência fecal. No 8º

dia de internamento teve alta, pelo que lhe foi retirada a algália e ensinado aos donos como

esvaziar a bexiga manualmente a cada 6h, uma vez que o Mike ainda não tinha recuperado a

capacidade voluntária de urinar. Foi indicada a administração de gabapentina (200 mg PO TiD

durante 3 semanas), cefalexina (500 mg PO TiD durante 6 dias), tramadol (50 mg PO BiD durante

7 dias) e prednisona (1 comprimido 5 mg PO SiD durante 3 dias e ¼ de comprimido PO SiD nos

4 dias seguintes).

Acompanhamento: uma semana depois o quadro clínico do Mike não tinha sofrido

alterações. Manteve a administração de gabapentina e de prednisona (1 comprimido de 5 mg

PO QOD – 5 tomas). Ficou marcado o controlo para 10 dias depois.

Discussão: A prevalência de hérnias discais no cão é de 2%, sendo que as hérnias

toracolombares predominam em 66 a 87% dos casos.3, As hérnias discais Hansen tipo I afetam

tipicamente raças pequenas, condrodistróficas (Daschund, Beagle, Buldogue Francês) entre os

4 e os 6 anos, onde se enquadra o caso do Mike. As hérnias discais Hansen tipo II afetam

tipicamente raças grandes não condrodistróficas (Doberman, Labrador Retriever), entre os 6 e

os 8 anos.1,2 Não há predisposição sexual.3 A localização com maior incidência é entre T12-T13

e L1-L2, sendo raro ocorrer cranialmente a T10 devido ao efeito protetor do ligamento intercapital

(que une a cabeça das costelas desde T2 até T10).3

O disco intervertebral é constituído pelo anel fibroso externo e pelo núcleo pulposo no centro,

estando em comunicação com as vértebras por placas cartilaginosas através das quais o disco

é nutrido por difusão. A degeneração do núcleo pulposo do disco é um processo normal que

ocorre com a idade: metaplasia fibroide (raças não condrodistróficas) e metaplasia condróide

(raças condrodostróficas). A metaplasia condróide ocorre precocemente e caracteriza-se pela

perda de glicosaminoglicanos provocando a diminuição do teor em água e aumento do colagénio

que conduz à perda de elasticidade do disco com calcificação subsequente e o enfraquecimento

do anel fibroso, perdendo por conseguinte a capacidade de suportar pressão.3 Um stress

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mecânico agudo pode provocar então a rutura do anel fibroso, levando à extrusão do núcleo

pulposo (Hérnia discal Hansen tipo I) provocando contusão e compressão medular ventral,

ventrolateral ou circunferencial, tendo um quadro tendencialmente agudo, compatível com o caso

do Mike.1,4 Por oposição, a protusão do disco (Hérnia discal Hansen tipo II) está tipicamente

associada à degeneração fibroide (perda de água e proteoglicanos com aumento de proteínas

não colagéneas), provocando compressão medular de forma lenta e progressiva, induzindo

quadros tendencialmente crónicos. 3,4

O dano progressivo da medula espinhal causa défices neurológicos em sequência de

severidade, fundamentada no diâmetro das fibras nervosas. As fibras mielinizadas de maior

diâmetro sofrem mais facilmente dano do que as de menor diâmetro, pelo que em caso de

progressão de lesão por ordem crescente (inversa ao diâmetro): 1º aparecem défices

propriocetivos (fibras nervosas de grande diâmetro), 2º ocorre a perda de movimento voluntário

(controlado por fibras motoras de diâmetro médio), 3º ocorre perda da sensibilidade nociceptiva

(fibras não mielinizadas de pequeno diâmetro).5 As lesões toracolombares podem provocar

diminuição da motricidade voluntária (paraparésia) ou, em casos mais severos, paraplegia com

ou sem incontinência fecal e perda de sensibilidade nociceptiva.5 Em lesões no segmento

medular T3-L3, os neurónios motores localizados entre C6-T2 e L4-S3 permanecem intactos,

pelo que os reflexos espinhais mediados por esses neurónios se mantêm e o tónus muscular

encontra-se normal a aumentado (sinais clínicos clássicos de lesão de motoneurónio superior).5

A espasticidade pode acompanhar a perda ou ausência de motricidade voluntária por um

aumento do tónus extensor, tal como ocorreu no caso do Mike.1 Estes sinais permitem distinguir

a paraplegia associada a lesão do segmento T3-L3 da do segmento L4-S3, onde os animais

apresentam hipo ou arreflexia, hipotonia e rápida atrofia muscular (sinais clássicos de lesão de

motoneurónio inferior).5 A apresentação clínica pode variar então desde hiperestesia espinhal

até paraplegia com ou sem sensibilidade profunda, dependo da severidade da lesão.1 Os

sinais clínicos associados a hérnias discais Hansen tipo I podem surgir de forma hiperaguda

(<1h), aguda (<24h) ou gradual (>24h).1 Os animais com extrusões discais hiperagudas ou

agudas podem manifestar sinais clínicos como choque espinhal ou postura Schiff-Sherrington,

indicativos de lesão aguda e severa na medula espinhal, sem valor prognóstico.1 A rutura rápida

do anel fibroso provoca contusão e compressão da medula espinhal (lesão primária provocando

isquémia secundária) causando uma reação inflamatória em cadeia que culmina em necrose e

apoptose neuronal e células da glial (lesão secundária).4 Por consequência, ocorre

desmielinização e perda de axónios. Embora seja raro, pode ocorrer mielomalácia

ascendente, em que o dano na medula progride cranialmente, podendo levar a

paralisia dos músculos intercostais, e por fim do diafragma, culminando na morte do animal.4

A suspeita inicial deve-se basear nos sinais clínicos, na história e no exame neurológico para

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determinar a localização neuroanatómica. A extrusão ou protusão do disco é confirmada com

exames imagiológicos (radiografia, mielografia, TC ou ressonância magnética).1 Na radiografia,

os achados mais frequentes incluem: diminuição do espaço intervertebral, estreitamento ou

aumento de opacidade do foramen intervertebral e a presença de material mineralizado no canal

raquidiano.1 A mineralização do disco intervertebral é indicativa de degeneração, mas não de

herniação.3 A mineralização discal é considerada um fator preditivo de herniação e um fator de

risco para recorrência da hérnia após a resolução cirúrgica.3 As radiografias identificam a correta

localização da extrusão discal em apenas 70% dos casos, pelo que é recomendado realizar mais

exames complementares (mielografia, TC ou ressonância magnética) antes de planear a

cirurgia.1 A injeção de contraste, na mielografia, permite identificar a localização da extrusão em

90% dos casos e permite suspeitar de mielomalácia caso seja visível contraste no parênquima

da medula espinhal.1 A TC e a ressonância magnética são exames aplicados em isolado ou como

complementares da mielografia com o fim de realizar uma avaliação completa da extensão da

lesão e da localização exata do material discal extrudido. A TC é mais precisa, mais rápida tem

menos riscos adversos do que a mielografia.1,3 Podem ocorrer convulsões após a mielografia em

10% dos casos após a administração de contraste e estão associadas ao maior peso do animal,

maior volume de contraste injetado e ao sexo (mais frequente em machos).3 O material discal

mineralizado é tipicamente visualizado como uma massa extradural heterogénea

hiperatenuante.1 No entanto, para identificar patologia medular aguda incluindo edema,

hemorragia e mielomalácia, a ressonância magnética é considerada o método de diagnóstico

mais sensível.1 No caso do Mike, a TC permitiu fazer rapidamente o diagnóstico e o planeamento

cirúrgico, não sendo necessária a utilização de outros exames complementares.

O tratamento médico está indicado em casos leves a moderados de paraparésia, de dor

espinhal ou de restrições financeiras dos donos.1 A taxa de sucesso varia entre 82 e 88% em

casos ambulatórios e entre 43 a 51% em casos não-ambulatórios.2 Inclui repouso absoluto

durante 4-6 semanas combinado com maneio da dor e da inflamação através da administração

de anti-inflamatórios, opióides e relaxantes musculares.1,2 É aconselhada a utilização de

gastroprotetores quando se usa anti-inflamatórios.1 O uso de corticoesteróides foi negativamente

associado ao sucesso terapêutico e a qualidade de vida dos animais, sendo que os anti-

inflamatórios não esteróides poderão ser uma melhor opção.2 Se a dor persistir ou o estado

neurológico se agravar, é recomendada a intervenção cirúrgica.1

O tratamento cirúrgico está indicado em casos de progressão ou recorrência de sinais

clínicos, paraparésia ou paraplegia com sensibilidade profunda (como no caso do Mike) e

paraplegia sem sensibilidade profunda até 48h.1 A cirurgia consiste na descompressão da

medula espinhal através da remoção do material discal extrudido.1 As várias técnicas incluem:

laminectomia dorsal, hemilaminectomia e pediculectomia. A hemilaminectomia permite a

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remoção do material discal com mínima manipulação da medula espinhal, sendo a técnica mais

utilizada.1 Consiste em abrir uma janela na parte dorsolateral das duas vértebras adjacentes ao

disco que herniou de modo a descomprimir a medula espinhal. A taxa global de sucesso após a

descompressão cirúrgica varia entre 58,8 e 95%.1 As complicações incluem hemorragia,

formação de seroma e deiscência parcial ou completa da sutura.2 A disfunção urinária provocada

pela lesão medular está frequentemente associada a doenças do trato urinário.5 Em casos com

retenção urinária deve-se evitar a sobredistensão vesical, através da algaliação permanente,

intermitente ou esvaziamento por compressão manual. Os fatores de risco para infeções de trato

urinário em casos de lesão da medula espinhal incluem o género (mais prevalente em fêmeas),

o esvaziamento incompleto da bexiga e o dano da mucosa resultante da algaliação.2 Em casos

que não recuperam a continência urinária, como no caso do Mike, devem ser realizadas

periodicamente: urianálise, com cultura urinária e antibiograma.2 A prevalência de infeção de trato

urinário após herniação do disco varia entre 21 e 38%, ocorrendo entre 1 e 6 semanas após a

lesão.5 Além da monitorização da função urinária, os cuidados pós-operatórios incluem

analgesia, vigilância da sutura e reabilitação física.2 A reabilitação permite evitar problemas pós-

operatórios como úlceras de decúbito e está associada positivamente a um tempo mais curto de

recuperação funcional.2

Prognóstico: A sensibilidade profunda é considerada o indicador prognóstico mais fiável e

importante para a recuperação funcional.2 Em geral, a maioria dos cães com sensibilidade e

paraparésia ou paraplegia têm bom prognóstico, com taxa de sucesso pós-cirúrgico de 72-

100%.1,2 Sucesso é definido como a recuperação da capacidade ambulatória.2 O Mike tinha um

prognóstico reservado, uma vez que tinha paraplegia com analgesia superficial, embora

mantivesse a sensibilidade profunda, pelo que havia uma probabilidade de 86% de sucesso após

a descompressão cirúrgica.1 Em animais sem sensibilidade profunda, a taxa de recuperação pós-

cirúrgica varia entre 0 e 76%.3 Nestes casos, se não recuperarem a sensibilidade em 2-4

semanas o prognóstico é mau.3 Outras variáveis como a idade ou o peso do animal estão também

associadas ao tempo de recuperação da capacidade ambulatória o que poderá explicar o atraso

na recuperação do Mike, que tinha excesso de peso.2 Embora existam vários estudos

contraditórios relativamente ao efeito da velocidade com que instala o quadro clínico e o tempo

até à cirurgia no prognóstico, é acordado que a remoção rápida do material discal extrudido

permite uma recuperação mais rápida e mais completa.1 A administração de dexametasona ou

metilprednisolona não provoca influência no prognóstico pós-cirúrgico, estando inclusivamente

associada a uma maior taxa de complicações do trato urinário e gastrointestinal, a um período

mais longo de hospitalização e a um maior custo para os donos. Por outro lado, a fisioterapia

pós-cirúrgica aparenta ter um efeito positivo na recuperação da capacidade ambulatória.3 Em

média, os animais não-ambulatórios com sensibilidade, demoram 2 a 4 semanas a voltar a

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caminhar, pelo que é expectável que o Mike volte a caminhar, embora o caso tenha sido

acompanhado somente até às 2 semanas após a cirurgia.3

A recorrência de hérnia de disco intervertebral no mesmo espaço (frequentemente até 1 mês

pós-cirúrgico) ou noutro espaço intervertebral pode ocorrer em 15-20% dos casos.1,2 Contudo,

não há evidência de que o prognóstico seja pior após uma segunda intervenção cirúrgica para

tratar uma hérnia discal recorrente.1,2 A fenestração do disco como medida profilática pode

diminuir a taxa de recorrência.1 No entanto, a sua realização é controversa porque aumenta o

tempo de cirurgia e pode provocar instabilidade vertebral.2 Em casos tratados apenas

medicamente, a taxa de recorrência pode chegar aos 40%.2

Bibliografia:

1. Coates J (2014), “Paraparesis”, BSAVA Manual of Canine and Feline Neurology, 4ª

ed, British Small Animal Veterinary Association, pp 297 – 327

2. Kerwin SC, Levine JM, Hicks DG (2012), “Thoracolumbar Spine”, in (Tobias M. Karen,

Johnston A. Spencer) Veterinary Surgery Small Animal, 1ª Edição, Elsevier Saunders,

cap 32, pp 464-472

3. Brigitte A. Brisson (2010), “Intervertebral Disc Disease in Dogs”, Veterinary Clinics of

North America: Small Animal Pratice, Setembro 40(5):829-58

4. Olby Natasha J., Jeffery Nicholas D. (2012), “Pathogenesis and Physiology of Central

Nervous System Disease ”, in (Tobias M. Karen, Johnston A. Spencer) Veterinary

Surgery Small Animal, 1ª Edição, Elsevier Saunders, cap 29, pp 378-385

5. Granger, N, Carwardine D (2014), “Acute Spinal Cord Injury, Tetraplegia and Paraplegia

in Small Animals” in Veterinary Clinics of North America: Small Animal Pratice, 44,

1131-1156

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Caso clínico nº5 – Urinário

Identificação: Elvis, Pinscher, macho inteiro com 10 anos e 5 Kg. Motivo da consulta:

Apresentou-se no serviço de urgência do HVM por incapacidade de urinar há 1 dia. Anamnese

e história clínica: O Elvis vivia numa moradia na companhia de um gato e era passeado no

público. Era alimentado com comida regular seca de baixa qualidade e tinha livre acesso a água.

Estava devidamente vacinado e desparasitado interna e externamente. Não apresentava

passado médico ou cirúrgico. Desde o dia anterior, os donos repararam que o Elvis se encontrava

desconfortável e que vocalizava cada vez que tentava urinar. Comentaram ainda que ele insistia

em tentar urinar mas só conseguia libertar algumas gotas de urina. Manteve-se a beber

normalmente durante o dia, mas uma vez que não parecia melhorar, os donos decidiram levá-lo

ao HVM.

Exame de estado geral e dirigido: Estado mental alerta, temperamento nervoso e condição

corporal 4/9. Grau de desidratação <5%, as mucosas estavam rosadas, húmidas e brilhantes e

o TRC <2 segundos. Pulso forte com frequência de 120 ppm, apirético (38, 4ºC) e movimentos

respiratórios normais com frequência de 40 rpm. À palpação o abdómen estava tenso, mas

permitia palpar a bexiga que se encontrava firme e distendida. Os restantes parâmetros do

exame geral foram considerados normais. Lista de problemas: disúria, estrangúria, polaquiúria,

bexiga distendida e firme, abdómen tenso.

Diagnósticos diferenciais: urolitíase, obstrução uretral por coágulos de sangue, neoplasia

uretral, estritura uretral, infeção de trato de urinário.

Exames complementares: 1) Hemograma e bioquímica sérica: sem alterações. 2)

Radiografia lateral abdominal (Anexo V, figura 1): Presença de um cálculo heterogéneo de

aproximadamente 5 mm redondo na zona central da bexiga, com vários cálculos mais pequenos

ao lado. 3) Ecografia abdominal (Anexo V, figura 2): presença de um cálculo hiperecóico com

sombra acústica, na bexiga, com vários cálculos hiperecóicos de menor dimensão ao lado.

Visualizou-se também a presença de um cálculo na uretra. Aumento da espessura da parede

vesical compatível com cistite. 4) Urianálise (urina colhida por cistocentese): Cor: amarela;

Densidade: 1,025; pH: 7; Sangue 3+.

Diagnóstico: Obstrução uretral por urolitíase.

Tratamento e evolução: Iniciou fluidoterapia com Lactato de Ringer a 9,1 mL/h (taxa de

manutenção), robenacoxib (2 mg/Kg SiD SC durante 3 dias), analgesia com tramadol (4 mg/Kg

TiD IV), antibioterapia com cefazolina (20 mg/Kg TiD IV). Após o diagnóstico de obstrução uretral

por urolitíase colocou-se uma algália de Foley, que impulsionou os cálculos para a bexiga. A

urina colhida inicialmente por cistocentese apresentava hematúria. Duas horas depois a algália

obstruiu pelo que se retirou, e se algaliou novamente até ser levado para o bloco cirúrgico.

Realizou uretrostomia escrotal e cistotomia, sendo enviados para análise os cálculos removidos

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da bexiga. A cirurgia decorreu sem complicações. O Elvis manteve-se no internamento por mais

dois dias, a comer e beber normalmente. No período pós-operatório apresentou hematúria

durante 2 dias, mas urinou sem dificuldade. Teve alta na manhã seguinte, tendo sido receitado

cefadroxil (20 mg/Kg BiD PO durante 15 dias) e tramadol (25 mg BiD PO). Quatro dias depois

chegou o resultado da análise dos cálculos – cistina. Foi recomendada mudar a alimentação

definitivamente, de modo gradual e lento, para Hill’s u/d® uma dieta húmida específica diurética

e alcalinizante, com o objetivo de aumentar e manter o ph>7,5.

Acompanhamento: Uma semana após a alta o Elvis encontrava-se bem, adaptou-se à nova

alimentação, com micção normal. Foram retirados os pontos e recomendado o uso de um colar

isabelino. A revisão para controlo do sedimento e pH da urina ficou marcada para 3 semanas

depois.

Prognóstico: Bom após resolvida a obstrução com a remoção dos urólitos.1 A taxa de

recorrência de urolitíase por cistina é alta, pelo que é importante a aplicação de um plano de

prevenção de recorrência nos animais afetados.2,3 As infeções de trato urinário e a recorrência

de obstrução por cálculos de estruvite (cuja formação é induzida pela infeção) podem ocorrer em

20% dos casos após uretrostomia escrotal.1

Discussão: Os sinais clínicos presentes em animais com doença do trato urinário inferior

consistem em disúria, hematúria, polaquiúria, incapacidade de urinar e dor, compatíveis com o

quadro que o Elvis apresentava.5 A obstrução uretral pode manifestar-se apenas pela presença

dos sinais anteriormente referidos ou apresentar-se também com sinais de urémia: vómito,

anorexia e obnubilação.5 A obstrução uretral pode ser parcial ou completa, dependendo da causa

subjacente.1 A urolitíase é a causa mais comum em cães, sendo menos frequente a presença de

coágulos de sangue, neoplasia, estritura uretral e fratura peniana.2,5 A palpação retal deve ser

realizada sempre que possível para excluir outras possíveis causas de obstrução.5 Saber a causa

da obstrução é essencial para restabelecer o fluxo de urina e prevenir a recorrência da

obstrução.2

A abordagem inicial deve incluir uma anamnese completa, exame físico e analítica laboratorial

(hemograma, creatinina e ureia, ionograma e urianálise).5 A maioria dos cães com obstrução

uretral apresentam-se estáveis, no entanto em 15% dos casos é necessário estabilização antes

de prosseguir o diagnóstico sendo que as alterações nas análises laboratoriais mais comuns são:

hipercalémia, acidose, desidratação e azotemia.2,4 A sobredistensão prolongada da bexiga

secundária à obstrução uretral pode resultar em perda permanente de funcionalidade da bexiga.1

A obstrução total é uma emergência, que pode resultar em síndrome urémico pós-renal em 2 a

3 dias e morte em 3 a 6 dias.1

A urolitíase é frequente em cães e a maioria dos urólitos desenvolvem-se no trato inferior.

Cerca de 90% dos urólitos são de oxalato de cálcio e estruvite.2 Os urólitos de cistina são menos

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frequentes (2,1% dos casos), afetam maioritariamente machos e as raças mais predispostas são:

Buldogue Inglês, Chihuahua, Daschund, Buldogue Francês e Pitbull.2

A cistinúria é uma doença hereditária rara caracterizada pela deficiência de reabsorção tubular

renal de cistina.2 Num estudo realizado de análise de urólitos na Alemanha verificou-se uma

diminuição da prevalência dos urólitos de cistina de 40% (em 1979) para 5% (2013).6 Uma vez

que a cistina é um aminoácido de baixa solubilidade em pH<7 e o pH da urina normal no cão

varia entre 5,5 e 7, existe um risco de formação de urólitos durante toda a vida.5 Os urólitos de

oxalato de cálcio, cistina e purinas formam-se tipicamente em urina com pH<7 enquanto que os

urólitos de estruvite formam-se em urina com pH>7.4

Os urólitos de cistina, urato e xantina são frequentemente radiolucentes, por oposição aos

urólitos de oxalato de cálcio, fosfato de cálcio, e sílica (que são radiopacos) e os de estruvite que

são moderamente opacos.2 A cristalúria, quando presente na urianálise, indica a sobressaturação

de cristais na urina, mas não confirma a presença de urólitos.4 Em cães com urolitíase, o tipo de

cristais na urina pode ser útil para prever a composição mineral dos urólitos. Contudo, alguns

animais podem ter urólitos na bexiga e não apresentarem cristalúria. Os cristais de cistina são

tipicamente hexagonais.2 A densidade urinária e o pH permitem determinar as condições da

formação dos urólitos, o que permite prever a sua constituição. Uma densidade urinária alta

sugere um aumento na concentração dos precursores de urólitos na urina.4

A cultura urinária e antibiograma permitem detetar infeções de trato urinário, que podem

ocorrer secundariamente à urolitíase ou provocar a formação de urólitos de estruvite.4 Os fatores

para tal ocorrer incluem: lesão da mucosa induzida por urólitos, esvaziamento incompleto ou o

aprisionamento de microrganismos dentro dos urólitos.4 Contudo, o diagnóstico definitivo é feito

através de exames imagiológicos: radiografia e ecografia abdominal ou cistografia de duplo

contraste, os quais permitem verificar a presença de urólitos e determinar a sua localização,

número, tamanho, forma e densidade.4 A ecografia e radiografia abdominais realizadas

permitiram o diagnóstico de obstrução uretral por urolitíase, no caso do Elvis. Apesar de poderem

ser palpados na bexiga por palpação abdominal, ou na uretra por palpação retal, estas não são

técnicas sensíveis para a deteção de urólitos.4

O tratamento da obstrução uretral envolve a resolução cirúrgica e a correção dos

desequilíbrios metabólicos que se instalam secundariamente.4 A presença de sinais clínicos e a

obstrução do fluxo de saída de urina têm indicação cirúrgica para remoção dos urólitos. No caso

do Elvis, o curto período tempo (1 dia) que ocorreu desde a obstrução até à sua resolução levou

a que não se manifestassem alterações sistémicas detetáveis nas análises laboratoriais

realizadas. Os objetivos da remoção dos urólitos incluem: minimizar o trauma de tecidos

saudáveis com técnicas minimamente invasivas e remover a totalidade dos urólitos para evitar a

recorrência de obstrução uretral (que pode conduzir à persistência de sinais como hematúria,

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estrangúria, disúria e ao desenvolvimento de infeções do trato urinário no período pós-cirúrgico).2

As técnicas cirúrgicas tradicionais incluem cistotomia após os uretrólitos serem

impulsionados de novo para a bexiga (por urohidropropulsão retrógada ou através da algaliação

permanente), a uretrotomia e uretrostomia.4 No caso do Elvis não foi necessário porque ele foi

mantido com uma algália de Foley até à cirurgia. A elevada frequência de efeitos adversos

associados às técnicas (estrituras, infeções de trato urinário, recorrência de urolitíase induzida

pela sutura na cistotomia) são desaconselhadas exceto em circunstâncias em que os donos não

possam comportar cuidados adicionais caso recorra a obstrução uretral, ou se as condições do

hospital não permitirem a realização de procedimentos minimamente invasivos.2,3 A complicação

mais comum da uretrostomia escrotal é a hemorragia persistente durante a micção.1

Normalmente surge até 5 dias no pós-operatório e é auto-limitante, tal como ocorreu no caso do

Elvis.1 A infeção bacteriana pode estar presente antes da obstrução uretral ou ocorrer como

consequência dos procedimentos para desobstruir a uretra.5 Quando é colocada uma algália

permanente, como no caso do Elvis, não é recomendada a administração de antibióticos

profiláticos. Embora se verifique uma menor incidência, quando ocorre uma infeção há um maior

grau de resistência antimicrobiana.5

As técnicas minimamente invasivas estão associadas a um período mais curto de

hospitalização e de recuperação funcional, a menor risco de infeção pós-cirúrgica, a menos

trauma, a menos dor, a menos efeitos adversos e a menos urólitos residuais devido à melhoria

da visualização.2,3,4 São exemplos: a remoção de urólitos com citoscópio transuretral com

litotripsia laser (em urólitos com 4 a 7 mm de diâmetro) ou sem litotripsia, que é uma técnica por

vezes limitada pelo diâmetro da uretra; e a cistolitotomia percutânea (após os urólitos serem

impulsionados para a bexiga com uma algália Foley).4

A analgesia e relaxamento completo da uretra são necessárias para evitar o trauma

iatrogénico durante os procedimentos realizados através do uso de anestésicos locais (epidural

lombar) e sistémicos.2 O uso de anestésicos que podem aumentar o tónus da uretra deve ser

evitado como a dexmedetomidina.2

A deteção de urólitos não implica sempre a intervenção cirúrgica, no entanto a dissolução

médica de cistina é contraindicada em casos de obstrução uretral.2,4 Os animais sem sinais

clínicos que apresentam urolitíase necessitam apenas de monotorização e de elucidação dos

donos para detetarem os sinais de obstrução quando surgirem (hematúria, disúria, infeção de

trato urinário).3 No caso dos animais que apresentam sinais clínicos, a remoção dos urólitos é

recomendada. Se não houver obstrução uretral, deve-se tentar primeiramente a dissolução

médica através do aumento da solubilidade da cistina.3 A alimentação deve ser mudada lenta e

gradualmente para uma ração húmida, pobre em proteína (cistina e metionina), alcalinizante e

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que induza a diurese, como por exemplo a Hill’s u/d® e deve-se também aumentar o consumo

de água (através da colocação de mais taças à disposição do animal, por exemplo).2,3 Podem ser

administrados fármacos como a tiopronina (15 mg/Kg PO BiD para dissolução) que se liga a

moléculas individuais de cistina, evitando a formação da ligação disulfito da cistina.4 A ligação

tiol-cistina é 50 vezes mais solúvel que a cistina.3 Está associada a menos efeitos adversos e

complicações (anemia, febre, linfadenopatia), comparando com a D-penicilamina.4 Se for

necessário alcalinizar mais a urina, é recomendada a administração de citrato de potássio (dose

inicial 75 mg/KgPO BiD que vai sendo ajustada até o pH da urina atingir 7,5).3,4 Ainda que não

seja consensual, existe também um efeito dependente de androgénios na concentração de

cistina, pelo que se recomenda a castração como método de prevenção.3 No caso do Elvis, a

castração foi realizada no acesso escrotal à uretra. Por outro lado, a castração impede a

transmissão genética da doença.4 O controlo pós-cirúrgico deve ser realizado com urianálise 3

semanas após a cirurgia para avaliar a resposta ao tratamento preventivo.

Bibliografia

1. Bleedorn AJ, Bjorling DE (2012), in (Tobias M. Karen, Johnston A. Spencer) in Veterinary

Surgery Small Animal, 1ª Edição, Elsevier Saunders, cap 117, pp 1993-2008

2. Lulich Jody P., Osborne A. Carl (2017), “Lower Urinary Tract Urolithiasis in Dogs” in (Ettinger

S, Feldman E, Côte E) Textbook of Veterinary Internal Medicine, 8ª ed, Elsevier, pp 1996-

2004, 1176-1182

3. Lulich JP, Berent AC, Adams LG, Westropp JL, Bartges JW, Osborne CA (2016) “ACVIM Small

Animal Consensus Recommendations on the Treatment and Prevention of Uroliths in Dogs and

Cats.”in Journal of Veterinary Internal Medicine, 30(5), 1564-1574.

4. Bartges JW, Callens AJ (2015) “Urolithiasis”, in Veterinary Clinics of North America: Small

Animal Practice, 45, 747-768

5. Joseph WB. (2017), “Urethral Diseases” in (Ettinger S, Feldman E, Côte E) Textbook of

Veterinary Internal Medicine, 8ª ed, Elsevier, cap 335, 4880-4885

6. Hesse A, Hoffman J, Orzekowsky H, Neiger R. (2016),”Canine cystine urolithiasis: A review

of 1760 submissions over 35 years (1979-2013), in The Canadian Veterinary Journal, volume

57, pp 277-281

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ANEXO I

Figura 1 – Radiografias realizadas após a consulta de urgência da Fiona. A) Projeção ventro-dorsal

aumento da radiopacidade de tipo tecidos moles no espaço pleural compatível com efusão pleural bilateral

e assimétrica, evidenciada pela retração dos lobos pulmonares relativamente à parede torácica (setas

pretas). Verifica-se também diminuição da visualização da silhueta cardíaca. B) Projeção laterolateral:

acumulação de fluido livre na cavidade pleural dorsalmente ao esterno, no tórax ventral (asterisco).

Figura 2 – Ecografia torácica realizada no mesmo dia

que as radiografias em cima: efusão pleural (EP) de

ecogenicidade moderada entre a superfície pulmonar

e a parede torácica.

Figura 3 – A) Projeção

laterolateral: Colocação dos 2

tubos de toracostomia

bilateralmente no primeiro dia. B)

Líquido pleural drenado no

primeiro dia.

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Aspeto da efusão Citologia da efusão Sinais radiográficos

7º dia de internamento

Cor cinzento claro,

turvo

Presença de neutrófilos

não degenerados e raros

linfócitos

Ligeira melhoria

12º dia de internamento

- Alta

Cor rosa claro e

límpido (figura 5)

Poucos neutrófilos e

ausência de bactérias

fagocitadas

Diminuição da

quantidade de fluido

pleural, embora ainda

estivesse presente

(figura 4B1 e 4B2)

Tabela 1 – Controlos realizados durante o período de hospitalização.

Figura 4 – B) Controlo radiográfico no dia da alta: 1)

projeção dorsoventral; 2) projeção laterolateral.

Figura 5 – Aspeto do líquido pleural drenado no último

dia de hospitalização da Fiona.

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ANEXO II

Figura 1 – Projeção laterolateral: cardiomegália

ligeira: índice vertebral cardíaco de 10,5 corpos

vertebrais (Refª normal < 10,5 corpos vertebrais).

Figura 3 – Projeção paraesternal esquerda:

Fluxo contínuo através do ductos com

velocidade de 5 m/s.

Figura 5 – Projeção eixo curto paraesternal

direita: fluxo com doppler antes da cirurgia

Figura 2 – Projeção eixo curto paraesternal

direita: Ducto arterioso persistente tipo IIb. Óstio

ductal de diâmetro 0,8mm (seta branca). AP –

Artéria pulmonar. Ao – Artéria aorta. Âmpola

ductal (*)

Figura 4 – Projeção eixo curto paraesternal

direita do ventrículo esquerdo: Dilatação do

ventrículo esquerdo (diâmetro interno do

ventrículo em sístole 2,75 [Refª 1,4-2,5] e em

diástole 4,21 [Refª 2,4-3,4]). Boa contratilidade

evidenciada pela fração de encurtamento 34,7%

[Refª 25-50%].

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Figura 6 – Imagem com valores de

dimensão de átrio. Projeção eixo curto

paraesternal direita: sem dilatação atrial

esquerda.

Figura 7 - (Manubens J. et al (2008)) -

Amplatz Canine Duct Occluder® na sua

forma expandida. Disco distal liso (seta

branca), disco proximal em forma de

cálice (seta preta), cintura (seta amarela).

Figura 8 – Acesso vascular à artéria

femoral direita.

Figura 9 – Angiografia com contraste.

Permitindo confirmar a correta

localização do catéter (presença de

contraste nas artérias pulmonares - seta)

de entrega antes de iniciar a expansão do

ACDO.

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Figura 11 – Projeção eixo curto paraesternal

direita: ACDO (seta branca) corretamente

localizado a interromper o fluxo através do DAP.

Figura 12 - (Manubens J. et al (2008)) –

Ligamento arterioso (seta branca) entre a

artéria aorta (*) e a artéria pulmonar (seta

preta).

Figura 13 - (Manubens J. et al (2008)) –

classificação angiográfica de Miller.

Distinguem-se em 3 tipos: I, IIA, IIB, III.

*

Figura 10 – Projeção laterolateral pós-

cirúrgica: ACDO (seta) corretamente

posicionado.

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ANEXO III

Figura 1 e 2 – Dia 1: Edema lingual e sub-lingual, acompanhado

de ptialismo. Figura 3 – Dia 2: Desenvolveu

edema submandibular e necrose

superficial da face dorsal da língua.

Figura 4 – Dia 3: Necrose

extensa da língua. Colocação

de sonda de alimentação

esofágica.

Figura 5 – Dia 4: Necrose

extensa da língua e edema

facial significativo.

Figura 6 – Dia 7: Diminuição do

edema facial e submandibular,

com ptialismo ainda presente.

Figura 7 – Dia 8: Diminuição

significativa do edema facial.

Figura 8 – Uma semana após a alta: perdeu o

terço médio da língua, mantendo-se apenas o

terço caudal.

Figura 9 (Oliveira, P. et al

(2003)) – Thaumetopoea

pytocampa em procissão.

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ANEXO IV

Figura 1 – Radiografia lateral da coluna toracolombar: diminuição do espaço intervertebral

entre T10-T11, com aumento da radiopacidade compatível com calcificação discal

indicativa de degeneração do disco intervertebral.

Figura 2: Corte axial no espaço T10-T11 – observa-se uma massa hiperatenuante

heterogénea a comprimir a medula pelo lado esquerdo.

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ANEXO V

Figura 1 – Radiografia lateral abdominal: Presença de um cálculo heterogéneo

de aproximadamente 5 mm redondo na zona central da bexiga, com vários

cálculos mais pequenos ao lado (círculo).

Figura 2 – Ecografia abdominal: Presença de um cálculo

hiperecóico com sombra acústica, na bexiga. Aumento da

espessura da parede vesical compatível com cistite

(seta).