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Érica Ferreira da Cunha Jorge O embate entre Medicina e múltiplas artes de cura no Brasil A inovação da Umbanda frente a esses saberes Projeto de Pesquisa e Monografia apresentado à Faculdade de Teologia Umbandista São Paulo 2008

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Projeto de Pesquisa e Monografia apresentado à Faculdade de Teologia Umbandista O embate entre Medicina e múltiplas artes de cura no Brasil A inovação da Umbanda frente a esses saberes Érica Ferreira da Cunha Jorge O embate entre Medicina e múltiplas artes de cura no Brasil A inovação da Umbanda frente a esses saberes Orientador: Prof. Dr. Francisco Rivas Neto Érica Ferreira da Cunha Jorge 2 3 4

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Érica Ferreira da Cunha Jorge

O embate entre Medicina e múltiplas artes de cura no Brasil A inovação da Umbanda frente a esses saberes

Projeto de Pesquisa e Monografia apresentado à

Faculdade de Teologia Umbandista

São Paulo

2008

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Érica Ferreira da Cunha Jorge

O embate entre Medicina e múltiplas artes de cura no Brasil

A inovação da Umbanda frente a esses saberes

Projeto de Pesquisa e Monografia apresentado à

Faculdade de Teologia Umbandista

Orientador: Prof. Dr. Francisco Rivas Neto

São Paulo

2008

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Dedicatória

Dedico este trabalho à pessoa que deu sentido à minha presente

existência, meu mestre Yamunisiddha Arhapiagha (Pai Rivas).

Querido mestre, agradeço por me proporcionar uma vida tão maravilhosa e

me fazer adentrar no inefável mundo da Umbanda.

Sinto-me honrada pelo convívio com sua pessoa e tenhas certeza que

meus pedidos de que o mundo espiritual o abençoe sempre são os mais sinceros.

Felicito-me com a oportunidade que me deste em afastar-me da vida

prosaica e conduzir-me sabiamente aos caminhos da Iniciação.

Permita-me pedir mais uma vez (incansavelmente), que os Senhores do

Destino possam ofertá-lo com bençãos eternas de Orumilá Ifá e que nosso Orixá

Oxaguian estenda as mais puras vibrações de alvura espiritual.

Da discípula fiel e honrada do ontem, hoje e pela eternidade,

Yacyrê (Érica Ferreira da Cunha Jorge)

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Agradecimentos

À Sacerdotisa Yamaracyê,

Agradeço o contato com a pessoa bondosa e persistente que és em tudo o que

faz.

Muito obrigada pela indicação do tema de trabalho de conclusão de curso, bem

como de todas as suas explicações que alcançaram sempre os mais altos degraus

de espiritualidade. Não posso deixar de agradecer por me fazer ver que o

conhecimento não é algo externo, mas deve ser vivenciado intensamente.

Aproveito para me desculpar publicamente se em algum momento não

correspondi às suas expectativas, mas se isso alguma vez aconteceu deve-se ao

fato do enorme gradiente de percepção da realidade entre nós duas. Quanto a

isso agradeço pela sua incansável luta em auxiliar-me nos caminhos da Iniciação,

os quais percorrestes e percorres tão sabiamente.

Meus sentimentos de respeito e amor profundo.

À Faculdade de Teologia Umbandista,

Felicito-me em fazer parte da história da instituição amplamente reconhecida pela

quebra de paradigmas que possibilitaram avanço qualitativo no movimento

umbandista.

Meus preitos de sucesso e certeza de meu empenho sempre.

Aos colegas de classe,

Agradeço a oportunidade de convívio com todos, o qual me possibilitou não só

aprender, mas a viver a interdependência.

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Sumário Resumo....................................................................................................................8 Quanto à linguagem utilizada no texto.....................................................................9 Introdução...............................................................................................................11 Capítulo I – Breve Panorama do Brasil Colonial................................................... 14 Capítulo II – Os negros africanos no Brasil........................................................... 21 Capítulo III – Brasil nos idos de 1800.....................................................................26 Capítulo IV – Institucionalização das Faculdades de Medicina............................. 32 Capítulo V – Medicina x múltiplas artes de cura....................................................40 Capítulo VI – Nova fase do embate........................................................................55 Capítulo VII – Liberdade religiosa nos textos constitucionais e códigos penais. Perseguição aos curandeiros e demais terapeutas populares...............................69 Capítulo VIII – Umbanda a partir de 1950..............................................................77 Capítulo IX – A etiologia das doenças e sua terapêutica segundo a Umbanda.....87 Conclusão...............................................................................................................93 Adendo – Pontos Cantados ...................................................................................94 Referências Bibliográficas....................................................................................100

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Resumo

O objetivo deste trabalho é demonstrar o embate decorrido da

institucionalização da medicina frente às múltiplas artes de cura inerentes ao país.

Esclareceremos a trajetória em que a medicina foi construída, quais alicerces

deram sustentação a ela e em que medida a presença dos curandeiros, feiticeiros,

magos, quimbandeiros foi um óbice para que se instituísse um modelo de

Medicina no Brasil, baseado nos padrões europeus. A questão da apropriação

estará sempre presente, uma vez que tal processo de certa forma fortificou este

novo modelo. Demonstraremos o contexto sócio-histórico (a partir da vinda da

corte européia para o Brasil até meados do século XX) o qual foi mola propulsora

para a mudança de paradigma de cura posto que o Brasil necessitava se afirmar

perante o cenário mundial como nação desenvolvida, influenciado por teorias

eugenistas e positivistas.

Uma etapa adiante mostraremos o papel da Umbanda nesse contexto e sua

inovação diante da dualidade: saber popular e saber acadêmico.

Palavras-Chave: Curandeirismo – Medicina - Umbanda

Abstract

The main of this paper is to demonstrate the conflict and its consequences

between many arts of cure from Brasil and formal Medicine. We will show the

trajectory that Medicine was constructed, which were its basis and how the

presence of those who used to cure with other forms (not those from formal

medicine) was a problem for the institucion of a Medicine pattern in Brasil, based

on europeans. The question of appropriation will be present because in a certain

view this process fortificated that standard.

One step forward we will show the function of Umbanda in this context and

its innovation from this dual knowledge: popular and academic ones.

Key words: Curandeirism – Medicine - Umbanda

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Quanto à linguagem utilizada no texto

Geralmente os trabalhos de conclusão de curso possuem duas

características básicas. A primeira, a necessidade do linguajar técnico para a área

específica de investigação. A segunda a necessidade de apresentar proposições

controláveis em termos de rigor lingüístico e que permitam à comunidade

científica, na qual o trabalho está inserido, entender a comunicação.

Ainda se encontra nos manuais para formulação de trabalhos de conclusão

de curso, bem como monografias e dissertações, a orientação de que a pessoa

deve sempre escrever com um caráter formal e impessoal, evitando a construção

da oração na primeira pessoa do singular.

Foi por encontrar tais diretrizes discursivas que resolvi fazer uma pequena

explicação sobre minha voz no texto decorrente de minha formação. Deixo claro

que esta não está concluída porque nem mesmo acredito que haja fim para a

construção espiritual. Estou na Umbanda desde que nasci, todavia foi na Escola

de Síntese, na figura de Mestre Arhapiagha (Pai Rivas) que encontrei meu

discipulado e decidi segui-lo com afinco. Fazendo parte da doutrina-vivência

universalista preconizada por Mestre Arhapiagha percebi uma nova forma de

tratamento às artes curativas uma vez que o espiritual norteia todas elas sem

propiciar conflito entre ciência e religião.

O tema escolhido, embora possa ser desenvolvido sob esse ângulo, requer

outro tipo de tratamento, talvez pelo tamanho envolvimento que me causou.

Ao optar por um tema o fazemos porque ele nos chama à atenção, por ser

importante para a comunidade e porque obviamente em primeira instância nos

tocou pelo coração. Ao longo do tempo os trabalhos ficaram cada vez mais com

rigor e técnica, que pouco do lado subjetivo veio à tona. Ficou inibido, quando não

excluído.

Não tive muita dificuldade em escolher o tema a ser abordado. Sabia que

seria algo referente ao saber das artes curativas, mas me faltava a delimitação

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específica. Ao longo das leituras, orientações de pessoas capacitadas e

principalmente da minha visão de mundo decidi que falaria sobre a apropriação

dos saberes popular médico em meio a uma sociedade em confluência de

ideologias, de etnias e de expressões de religiosidade.

Acredito que tal tema não seja imparcial. Os fatos históricos com certeza o

são, ou pelo menos deveriam sê-lo. Mas não posso dizer o mesmo de minha

interpretação e crítica em relação a eles.

Assim parafraseio Darcy Ribeiro em seu prefácio ao O Povo Brasileiro ao

alertar: (...) não se iluda comigo, leitor. Além de antropólogo, sou homem de fé e

de partido. Não se iludam comigo leitores, o texto terá seu embasamento sócio-

histórico, mas carreado fortemente pela minha formação espiritual que alicerça

minhas visões culturais, sociais, políticas e econômicas.

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Introdução

Não é difícil escrever sobre um tema que fale ao coração, porém este,

como muitos outros que envolvem a Umbanda torna-se um pouco mais difícil

porque muitas vezes nos encontramos carentes de recursos históricos que

validem certas teses que tentamos comprovar.

Já foi esclarecido o tom discursivo do trabalho e no decorrer dele os leitores

poderão perguntar a origem de determinadas afirmações. Ressalto, portanto, que

o trabalho tem duas vertentes básicas as quais busco convergir ao longo do texto:

os movimentos espirituais de cura e a vertente acadêmica da medicina. Sobre

esta última teremos referências de vários antropólogos, cientistas sociais,

historiadores, posto que sempre foi importante deixar registrado os avanços dessa

ciência e seu poder de atuação na sociedade.

Já quanto aos movimentos espirituais o que temos é uma verdadeira colcha

de retalhos, em que encontramos em diversos livros fragmentos desse saber. Tais

movimentos não registraram sua história e sua influência no decorrer do tempo

por diversos fatores que iremos abordar com mais afinco no texto mas que já

pontuamos como: a ancestralidade de seu saber, a não vontade de registrar um

poder de cura estabelecido e dogmático e o fato de que a maior parte das pessoas

ligadas a esses segmentos não eram de classes sociais abastadas nem letradas.

Veremos então duas vertentes aparentemente bem distintas e que

poderiam ter convergido pacificamente, mas que por razões de poder tanto

subjetivo, no que se refere à intelectualidade, quanto objetivo, por valores

materiais, “disputaram” entre si. Ou melhor, veremos que essa disputa foi o que

posteriormente os médicos e pessoas ligadas a eles quiseram passar para a

grande massa. Os movimentos espirituais não estavam interessados em disputar

espaço de atuação, até por que isso não é algo que se limita. Houve sim o que

chamamos de apropriação de saberes.

Estudar as artes de cura no Brasil será sempre motivo de muito

encantamento, pois seu repertório é vasto. Todos os locais do mundo sempre

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tiveram, tem e continuarão tendo formas de se estabelecer a cura. O estado de

doente leva a uma fragilidade, uma dependência de alguém que será responsável

pela sua cura. Ao longo da trajetória da humanidade, as pessoas procuraram a

cura através da religião, da ciência ou até mesmo outros setores, teoricamente

menos afetos à doença, pois veremos no decorrer do trabalho que nada está

dissociado.

Quando o paradigma da humanidade voltava-se exclusivamente para a

religião, tínhamos uma visão de mundo teocêntrica, ou seja, Deus estava no

centro de todas as coisas (importante pontuar que essa visão esteve

intrinsecamente ligada à expansão do catolicismo e era uma forma de fixar e

impor sua ideologia). Deus era o início e o fim de tudo, envolvendo todos os

processos de causalidade. Se o indivíduo estava são era devido sua boa relação

com Deus, se estivesse doente, era devido sua má relação com Deus. Era um

dualismo que obviamente tem sua história pregressa, sendo Maniqueu um dos

fundadores dessa ideologia de bem e mal (daí a expressão maniqueísmo), que

posteriormente foi exaustivamente trabalhada pelas religiões dominantes, quais

sejam, catolicismo, judaísmo e islamismo.

Nos idos do Renascimento, o paradigma da humanidade havia se alterado

para o Antropocentrismo, visão em que o homem está no centro do Universo, é

ele que toma as rédeas de suas decisões, de suas convicções sobre as realidades

que o cercam.

Não afirmamos que uma visão é melhor que a outra, primeiro porque somos

favoráveis a uma fé racionalizada, não passional e cega. E segundo, porque

alguns especialistas de renome demonstram claramente a continuidade da

perspectiva medieval e renascentista. Entretanto, o antropocentrismo chegou a um

estado tão extremo que o homem ficou completamente afastado das realidades

espirituais tendo a razão e o materialismo como realidades supremas.

Querendo ou não esta mudança de paradigma acabou sendo falada e

ensinada segundo olhares eurocêntricos que hoje não temos a real percepção do

que isso significou para a humanidade. Essa transformação alterou

completamente o curso do mundo, sendo que dela resultará inclusive o tema

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abordado no presente trabalho sobre o choque entre as artes de cura nativas,

inerentes ao país e a institucionalização do saber médico.

Pretendemos mostrar que o conflito entre curandeiros, feiticeiros e

demais nomenclaturas existentes (que serão também discutidas) e os médicos foi

decorrente de uma mudança paradigmática de visão de mundo e acabou

repercutindo aqui no Brasil em forma de choques culturais, apropriação de

saberes e extirpação de valores alheios, sendo que nessa “trama” não se separam

os aspectos espirituais, culturais, sociais, políticos e econômicos.

Esperamos que o presente trabalho possa esclarecer e fazer viver o que

ocorreu durante o período estudado, mas não quer estar preso ao passado, muito

ao contrário. Em um momento que a Umbanda teoricamente faz cem anos, não

importa ficarmos estacionados no que tão somente foi, mas na construção do

porvir, ou aos mais acadêmicos no devir hegeliano. A Umbanda vem mostrar a

convergência desses saberes e sua forma simples e magnânima de atuação na

sociedade frente a todos eles.

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Capítulo I – Breve panorama do Brasil Colonial

A primeira coisa a se fazer é um breve panorama do Brasil colonial, mesmo

que nosso foco seja a partir de 1808.

Sabemos que o Brasil era composto pelos ameríndios que viviam em

estado de completa harmonia com suas terras, às quais tudo o que fosse plantado

era colhido.

Cultivavam mandioca, milho, batata-doce, cará, feijão, amendoim, tabaco,

abóbora, urucum, pimentas, guaraná, árvores frutíferas e muitas outras plantas. A

agricultura lhes assegurava fartura alimentar durante todo o ano e uma grande

variedade de matérias-primas, condimentos e estimulantes.

Todas as tribos que aqui se encontravam, mesmo que não representassem

uma unidade, pois havia uma grande diversidade de valores, eram “autônomas,

autárquicas e não estratificadas em classes” 1. A chegada da lusitanidade foi um

abalo muito forte. Era uma civilização já muito antiga, urbana e classista. Seus

ideais eram de expansão de domínios e territórios, extraindo das terras

colonizadas tudo o que fosse de valioso. Contavam ainda com a sanha da Igreja

Católica e seu braço repulsivo, o Santo Ofício.

Assim, ao chegar, vinham com a intenção de dominar a tudo e a todos,

tendo ainda o discurso de salvar as pobres almas que aqui se encontravam.

Na bula Inter Coetera2, de 4 de maio de 1493 isso fica explícito:

[...] por nossa mera liberdade, e de ciência certa, e em razão da plenitude do poder Apostólico, todas as ilhas e terras firmes, achadas e por achar,

descobertas ou por descobrir, para O Ocidente e o Meio-Dia, fazendo e

construindo uma linha desde o pólo Ártico [...] quer sejam terras firmes e ilhas

encontradas e por encontrar em direção à Índia, ou em direção a qualquer outra

parte, a qual linha diste de qualquer das ilhas que vulgarmente chamamos dos

1 RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro. pp.34. Companhia das Letras, 2006. 2 SOARES apud RIBEIRO. 1939:25-8

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Açores e Cabo Verde cem léguas para o Ocidente e o Meio-Dia [...] A Vós e a

vossos herdeiros e sucessores (reis de Castela e Leão) pela autoridade do Deus onipotente a nós concedida em S. Pedro, assim como do vicariado de Jesus

Cristo, a qual exercemos na terra, para sempre, no teor das presentes, vô-las

doamos, concedemos e entregamos com todos os seus domínios, cidades,

fortalezas, lugares, vilas, direitos, jurisdições e todas as pertenças. E a vós e aos

sobreditos herdeiros e sucessores, voz fazemos, constituímos e deputamos por

senhores das mesmas, com pleno, livre e onímodo poder, autoridade e jurisdição.

[...] sujeitar a vós, por favor da Divina Clemência, as terras firmes e ilhas

sobreditas. E os moradores e habitantes delas, reduzi-los à Fé Católica [...]

Qual terá sido o pensamento desses europeus, sejam eles portugueses ou

espanhóis ao ver a maravilha que era esse país e a diferença que havia entre a

realidade nativa e a dos colonizadores?

Pero Vaz de Caminha deixou, entre tantos outros comentários, a descrição

sobre os nativos e sua impressão:

A feição deles é serem pardos, maneira de vermelhados, de bons rostos e

bons narizes, bem-feito, (... )todos nus sem nenhuma coisa que lhes cobrisse suas

vergonhas, (...)as quais não eram fanadas; (...)eles, porém, contudo andavam

muito bem curados e muito limpos e naquilo me parece ainda mais que são

como aves ou alimárias monteses, que lhes faz o ar melhor pena e melhor cabelo

que mansas, porque os corpos seus são tão limpos, e tão gordos e tão

formosos que não pode mais ser(grifo nosso). Eles não lavram, nem criam, nem

há aqui boi, nem vaca, nem cabra, nem ovelha, nem galinha, nem outra nenhuma

alimária, que costumada seja ao viver dos homens; nem comem desse inhame

que aqui há muito, e desta semente e fruto que a terra e as árvores de si lançam,

e com isto andam tais e tão rijos e tão nédios, que o não somos nós tanto com

tanto trigo e legumes comemos.3

3 BARBOSA, Plácido; REZENDE, Cássio Barbosa de, (org). Salubridade do Brasil pp. 469-470 in Os serviços de saúde pública no Brasil, especialmente na cidade do Rio de Janeiro, 1808 a 1907. (esboço histórico e legislação). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1909.

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Ainda no mesmo capítulo intitulado Salubridade do Brasil, Caminha

completa que a terra do Brasil, ao tempo de sua descoberta era, em seu natural,

de uma salubridade perfeita.

Américo Vespúcio nos deixou comentários desse espanto na carta Mundus

Novus4 :

Algumas vezes me extasiei com os odores das árvores e das flores e com

os sabores dessas frutas e raízes, tanto que pensava comigo estar perto do

Paraíso Terrestre. E o que direi da quantidade de pássaros, das cores e das suas

plumagens e cantos, quantos são e de quanta beleza? Não quero me estender

nisso, pois duvido me dêem crédito. [...] Em verdade, se o paraíso terrestre está

localizado em alguma parte da terra, julgo que não dista muito dessa região.

(grifo nosso)

O Brasil daquela época era um lugar idílico em que seus habitantes viviam

em estado constante de interdependência com a Natureza. Dela retiravam tudo o

que fosse necessário para viver, sem que isso representasse uma cultura de

exploração e agressão, muito ao contrário, cuidavam muito dela, pois sabiam-na

ser fundamental para sua vida, no que se refere à habitação, alimentação e cura.

Acreditavam num processo de perfeita inter-relação, em que homens e natureza

eram ativos e passivos ao mesmo tempo, ou seja, ambos se beneficiavam.

Pagi, pay, payni, paié, paé, piaaccá, piache, pautche, piaga são variações

da mesma palavra – payé, representante espiritual das tribos indígenas. Tinha a

função de orientar aos demais componentes da tribo sem que essa relação fosse

estabelecida hierarquicamente, ou em termos de poder e submissão. Entre os

ameríndios estabeleceu-se uma relação de respeito aos mais velhos, aqueles que

tinham vivências ainda não passadas pelos mais novos e, sobretudo, tinham na

figura do payé, um orientador, um curador, aquele que fazia a conexão entre dois

mundos, a realidade de Tupã (nem todas as tribos denominavam a potestade

dessa forma) e a realidade indígena, comunicava-se naturalmente com os

4 segundo explicação do livro Náufragos, Traficantes e Degredados. As primeiras expedições ao Brasil, Mundus Novus era uma carta de apenas cinco páginas escrita por Américo Vespúcio para Lorenzo de Médici narrando os acontecimento relativos à viagem que fizera sob o comando de Gonçalo Coelho). A carta foi arquivada no Códice Strozziano, na biblioteca de Florença, e lá permaneceu esquecida por quase três séculos.

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espíritos. O autor Abbeville salienta que lhes dão o nome de pajé, curandeiro ou

feiticeiro. Predizem a fertilidade e a secura da terra e prometem muita chuva e

todos os bens.

Era com base na Natureza que se estabelecia a cura para os ameríndios.

Os remédios eram as plantas e as ervas que condensavam as forças da natureza

e das entidades superiores.

Tudo era ritualizado, cantado e dançado em grandes coletividades. A arte

de curar, bem como todas as outras atividades indígenas, como a caça, a pesca,

lutas e rituais de passagem, era algo sagrado e, portanto, envolvia a convicção e

ideologia, ou seja, uma profunda relação de interdependência com a natureza.

Para os ameríndios, todas as moléstias eram causadas por sortilégios de

feiticeiros ou pelo contato com entidades sobrenaturais que não eram afins com o

então enfermo. As doenças representavam, dessa forma, ausência de forças vitais. Cabia ao payé, ao curandeiro, o tratamento adequado, sendo que estas

forças seriam repostas em rituais específicos e secretos.

Pelos estudos que temos sobre o tratamento e o potencial de cura dos

payés, sabe-se que eles contatavam o espírito causador da doença por meio de um transe estimulado pelo uso de grandes cachimbos contendo fumo.

Geralmente a cura se dava pelo sopro, como veremos posteriormente por relatos

de historiadores, ou ainda pela identificação do espírito que foi “lançado” por outro

feiticeiro a entrar no seu corpo.

Além das plantas e ervas utilizadas, sugar o mal pela boca dos enfermos e

soprar energeticamente neles boas vibrações, fazia parte do tratamento realizado

pelos índios como já antecipamos.

Para que nossos argumentos tornem-se mais claros apontamos abaixo

algumas referências de autores de grande renome, os quais trabalharam

intensamente a questão da doença e dos tratamentos realizados pelos autóctones

brasileiros. As falas de tais autores reforçam a importância da natureza no

tratamento aos enfermos e também dos métodos pessoais mágicos dos payés, no

que se refere ao sopro, à sugação dos males, à fumigação, à defumação com

ervas secas, entre outros.

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Yves d´Évreux escreve sobre a sugação dos males: Vê-lo-eis sugar pela

boca, tanto quanto lhes é possível, o mal do paciente, mal esse que, segundo

dizem, fazem passar para sua boca e garganta; isso, inchando muito as

bochechas e repelindo, de um só jato, com estampido igual a de um tiro de pistola,

o vento aí contido. Em seguida, escarram com muita força, dizendo ser isso o mal

extraído e assim se esforçando por fazê-lo crer no doente.5

O sopro era fundamental no processo de cura indígena. Atesta Abbeville

que era até esse o meio de uma pessoa revelar-se feiticeiro: seu sopro. E.

Stradelli afirma que o sopro entra em todas as cerimônias e atos do pajé. Se o

curandeiro sopra a parte lesada, expele o mal. E soprando também na mão

fechada, cujos dedos abre depois, lentamente, espalha a infelicidade e a morte.

Anchieta nota que os feiticeiros e outros que não chegam a tanto,

costumam esfregar, chupar, e defumar os doentes na partes que têm lesas e

dizem que com isto os saram6.

Gabriel Soares de Sousa é um dos autores mais ricos sobre as notícias das

doenças e remédios indígenas, especialmente os Tupi: curam estes índios

algumas postemas e bexigas com sumo de ervas...” Ainda Souza anota que o

ananás era a fruta mais utilizada pelos tupinambá. “(...)sendo este verde, torna-se

excelente para a cura das chagas e até para a cura do câncer7.

Fernão Cardim estudou as numerosas plantas utilizadas na medicina tupi,

entre as quais o caapiá (Urena lobata L.), tararucu (Cácia occidentalis L.), a erva-

santa (Nicotina tabacum Linn).

Pero de Magalhães Gandavo escreve minuciosamente sobre eles em seus

Tratados. Em determinado momento, escreve sobre o óleo da copaíba (Copaifera

officinalis L.) que tirava todas as doenças provenientes da frialdade, por mais

graves que fossem; outra ao bálsamo da “caborahíba”; e, finalmente, mais uma

referência a certa árvore chamada pelos índios de “Obirá paramaçari”, isto é, “pau

para enfermidades”. Três gotas dessa última planta, que é identificada como

alamanda-de-jacobina (Alamanda blanchetti D.C.), davam para purgar uma

5 MÉTRAUX, A. A Religião dos Tupinambás. pp 81-82. São Paulo: Brasiliana, 1979. 6 Op.cit.pp.81-82 7 Op.cit. pp 81-82

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pessoa “por baixo e por cima”. A coborahíba da Gandavo é identificada ora com o

Myrocarpus fastigiatus, ora como bálsamo-de-tolu (Myroxilon toluifera).

Enfim, esses foram apenas alguns autores e respectivos legados de seus

estudos que consideramos importante pontuar para ficar clara a idéia de que os

índios reconheciam as mais diversas espécies de nossa flora e delas faziam bom

uso para a cura.

Atualmente há instituições trabalhando na dignidade da identidade

indígena, mesmo que hoje pensemos já em dignidade do brasileiro. Em uma delas

encontramos relatos de cerimônias de cura indígena do Alto Xingu. Existem as

festas que recebem o nome de um espírito, geralmente aquele identificado como

causador da doença que acometeu o promotor da festa, e que se restringem ao

âmbito da aldeia8. Os participantes ativos desse tipo de ritual, como dançarinos,

cantores e músicos, representam visual ou musicalmente esse espírito. Isso

porque há um grande fundamento mítico na cosmologia indígena, sendo que o

mito orienta e presentifica o momento sagrado.

A doença, portanto, não pode ser tomada como um mal absoluto, ou não é

apenas isso. Grande parte do sistema ritual alto-xinguano é acionado por idéias

vinculadas à doença e o circuito de reciprocidade ativado por essas cerimônias

tem uma papel crucial na dinâmica social das aldeias, fazendo a mediação nas

relações entre indivíduo e sociedade9.

Após essa pequena exposição fica evidente que o contato com os brancos

e o conflito decorrente se deu em diferentes níveis, pois foi antes de tudo, um

conflito de visões de mundo completamente opostas.

No nível biótico instaurou-se uma verdadeira guerra bacteriológica travada

pelas pestes que o branco trazia no corpo e eram mortais para as populações

indenes, que jamais haviam visto algo similar. Milhares de indígenas morreram

apenas desse primeiro contato. O extermínio dos povos indígenas se deu por

meio de conflitos armados, mas inicialmente principalmente das epidemias

8 http://socioambiental.org./pib/portugues/quonqua/quantossao/eramseraom.shtm acesso em 08/03/2008. 9 VIVEIROS DE CASTRO, E.B. AInconstância da Alma Selvagens e Outros Ensaios de Antropologia. pp. 81 São Paulo: Cosac & Naify. 2002.

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trazidas pelos brancos em seus navios populosos e com péssimas condições de

higiene.

No nível ideológico foi então um massacre. O discurso do branco católico

interessado na conversão religiosa foi marcado pela diminuição e ridicularização

da figura central da cultura indígena, o payé, pois afirmavam que eles eram

incapazes de curar seus próprios descendentes e coletividade em geral.

Desacreditaram aquele que era a força motriz da coletividade e representava um

elo entre a realidade de Tupã e a terrena.

Entretanto não foi apenas com os índios que isso aconteceu. A partir do

momento que o Mundo Novo deixava-se “conhecer” (a palavra não é bem essa,

antes o Mundo Novo foi literalmente invadido e roubado), instaurou-se o processo

colonizatório e expansionista.

Não é foco de nosso trabalho fazer uma revisão de tudo o que aconteceu

com o Brasil desde 1500, apenas gostaríamos de deixar claro qual o tipo de

religiosidade no século XVI aqui cultuada e a forma natural de se encarar os

processos encantatórios, divinatórios e de cura existentes. Fica claro que essa

realidade jamais poderia ser aceita pelo povo europeu, essencialmente enrijecido

de valores dogmáticos, que sustentavam um discurso salvacionista para que este

justificasse a ascensão financeira de sua Igreja e Estado.

No século XVII o massacre aos povos autóctones continuou, entretanto

esse período foi marcado pela presença de outro povo em território nacional, o

negro africano, o qual veremos a seguir.

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Capítulo II – Os negros africanos no Brasil

Os negros africanos começaram a chegar no Brasil por volta de 1549,

quando o primeiro contingente desembarcou em São Vicente. D. João III

concedeu a autorização para que cada colono importasse até 120 africanos para

as suas propriedades. Os colonos na época foram capazes de protestar contra

esse limite, pois queriam trazer um número muito superior de escravos.

Há uma vertente da historiografia que afirma que na nau Bretoa enviada em

1511 por Fernando de Noronha já havia negros a bordo. O certo é que em 1586

na Colônia as estimativas eram de que de uma população de cerca de 57.000

habitantes, 25.000 eram brancos, 18.000 índios e 14.000 negros.

Aos poucos, com a consolidação da economia colonial, o número de negros

africanos foi se intensificando especialmente no nordeste do país, com o cultivo da

cana-de-açucar, uma vez que serviam de mão de obra escrava.

Os séculos que marcaram definitivamente a presença negra no Brasil foram

os XVII e XVIII. Para o historiador Pandiá Calógeras este último foi o século de

maior importação de africanos, sendo que a média teria chegado a 55.000

anualmente.

A tradição historiográfica reúne genericamente os negros em dois grandes

grupos étnicos: os bantos, da África equatorial e tropical (região do golfo da Guiné,

Congo, Angola, planaltos da áfrica oriental e costa sul-oriental) e os sudaneses

(África ocidental, Sudão egípcio e na costa setentrional do golfo da Guiné). A

maioria dos negros que vieram para o Brasil era de origem banto, entretanto as

tradições culturais de alguns grupos sudaneses, como os Iorubá da Nigéria

deixaram muita herança na cultura brasileira.

O negro foi fundamental para o desenvolvimento cultural, social e

econômico brasileiro. Ele foi o grande povoador do nosso território, empregando

seu trabalho, desde as charqueadas do Rio Grande do Sul aos ervais do Paraná,

engenhos e plantações do Nordeste, pecuária na Paraíba, atividades extrativas na

Região Amazônica, e na mineração de Goiás e Minas Gerais.

Page 22: Medicina_e_artes_de_cura

22

Para nós a importância em falar sobre os negros não é avaliar quais foram

os grupos que mais predominaram no país e suas atuações na economia local,

mas sim mostrar sucintamente o que fazia parte da cosmogonia africana e suas

artes de cura que vieram também a se confrontar com as práticas de cura dos

brancos colonizadores e posteriores institucionalizadores da medicina acadêmica.

A cosmogonia africana é harmônica, o universo é um todo composto de

forças que se equilibram.

Há especificidades para cada nação africana, entretanto, abordaremos os

Nagô que foi o grupo que mais predominou em terras brasileiras. Tudo que é visto

como sobrenatural, sortilégio mágico e doença é tido como produto da feitiçaria.

Toda doença, fracasso, infelicidade, adversidade representava ausência de forças.

As divindades Orixás, Inkices ou Voduns eram, portanto, representantes

das forças vivas da natureza. Expressavam sua vitalidade nas ervas, plantas

(fitomorfismo) pedras (litomorfismo), enfim, a natureza era a expressão viva do

poder dos Orixás. Todos eles eram divindades e como tais manifestavam a

valência do mundo espiritual, entretanto Ossain era o Orixá específico que

representava a cura divina para toda a humanidade, por meio do contato e

conhecimento dos poderes das ervas e magia próprias.

Percebemos então, que da mesma forma que para os indígenas, o sagrado

permeava todos os setores da vida africana, tornando-se impossível uma distinção entre o que era espiritual e o que era material. Não havia dicotomia

entre essas realidades.

É importante deixarmos claro que ao chegar no Brasil o negro não

conseguiu manter na íntegra todas as suas tradições, primeiro por estar em um

local com valores já diferenciados de sua terra natal e segundo por estarem em

condição de submissão. Esta não se refletia apenas na maneira com que eram

tratados para o trabalho, mas também pela negação e diminuição das suas

próprias crenças. Como diz Roger Bastide:

Uma colônia escravista estava fadada ao sincretismo religioso. Outorgado,

talvez, num primeiro momento, pela camada dominante, o sincretismo afro-

católico dos escravos foi uma realidade que se fundiu com a preservação dos

Page 23: Medicina_e_artes_de_cura

23

próprios ritos e mitos das primitivas religiões africanas. Cultuava-se São Benedito,

mas cultuava-se também Ogum, e batiam-se atabaques nos calundus da colônia:

nas estruturas sociais que lhes foram impostas, os negros, através da religião,

procuraram “nichos” em que pudessem desenvolver integradamente suas

manifestações religiosas. Arrancados das aldeias natais, não puderam recriar no

Brasil o ambiente ecológico em que se haviam constituído suas divindades;

entretanto, ancorados no sistema mítico originário, recompuseram-no no novo

meio (...)10.

Laura de Mello e Souza completa:

A religião africana vivida pelos escravos negros no Brasil, tornou-se assim

diferente da de seus antepassados, mesmo porque não vinham todos os escravos

de um mesmo local, não pertencendo a uma única cultura. Gegês, Nagôs,

Iorubas, Malês e tantos outros trouxeram cada um a sua contribuição refundindo-

as à luz de necessidades e realidades novas (...)11

Pela pequena exposição feita sobre o sincretismo religioso fica explícito que

não havia uma “religião pura” na Colônia, ou seja, não havia qualquer segmento

religioso que não fosse permeado das características de outros existentes.

Traços católicos, negros, indígenas e judaicos misturaram-se, pois na

colônia, tecendo uma religião sincrética e especificamente colonial. (...) Toda essa

multiplicidade de tradições pagãs, africanas, indígenas e católicas, judaicas, não

pode ser compreendida como remanescente, como sobrevivência: era vivida,

inseria-se, nesse sentido, no cotidiano das populações. Era, portanto, vivência12.

Fica difícil delimitarmos qual era claramente o conceito de doente-doença

para os africanos no Brasil, já que vimos que aqui, houve um processo de

assimilação de outras culturas e, portanto, do pensamento religioso das mesmas.

Mas sabemos com certeza que os negros africanos tentavam preservar suas

manifestações religiosas, como a crença no sobrenatural e o poder deste de

atuação na vida terrena. Os líderes de movimentos sabiam da importância de

10 BASTIDE, R. As religiões africanas no Brasil. Contribuições a uma Sociologia das interpenetrações das civilizações.pp 79. São Paulo: Pioneira, 1985. 2. ed. 11 MELLO E SOUZA, L. O Diabo e a Terra de Santa Cruz. pp.94. São Paulo: Companhia das Letras,1986. 12 Ibidem. pp. 97-98.

Page 24: Medicina_e_artes_de_cura

24

cultuar a natureza e eram especialistas em manipulações com forças

sobrenaturais. Eram chamados de “feiticeiros”, embora preferimos utilizar a

denominação curandeiros ou curadores, pois que o termo feiticeiro acabou sendo

associado à intenções negativas. Uma vez detentores desses saberes, a fama

pública os fazia requisitados inclusive pelos senhores, os quais preferiam tê-los

por perto, do que fazendo feitiços e contra-feitiços. A alternativa era permitir que

os negros tivessem seus momentos de ritualização e festas como nos demonstra

Antonil:

Negar-lhes totalmente os seus folguedos, que são o único alvo de seu

cativeiro, é querê-los desconsolados e melancólicos, de pouca vida e saúde.

Portanto, não lhes estranhem os senhores o criarem seus reis, cantar e bailar por

algumas horas honestamente em alguns dias do ano, e o alegrarem-se

inocentemente à tarde depois de terem feito pela manhã suas festas (...)13.

Essa era uma forma clara de manutenção do controle social, uma

prevenção a possíveis revoltas e rebeliões feitas pelos negros.

O negro vivia como um animal. Não tinha direito a nada. Pelas Ordenações

do Reino podia ser vendido, trocado, castigado, mutilado, mesmo morto, sem que

ninguém ou nenhuma instituição interviesse a seu favor. Era tido como

propriedade privada, ou seja, não se enquadrava nas condições humanas. Sua

comida era jogada no chão, misturada com areia e, seminus, lutavam

engalfinhando-se para comê-la. Além disso, apanhavam muito dos feitores que

fazendo-se valer de sua função, massacravam-nos de todas as formas possíveis.

Sob tais condições não era difícil que negros feiticeiros se armassem com suas

bruxarias para se defenderem das agruras do cativeiro. Seus senhores temiam

reações mágicas ou feitiços e isso geralmente elevava seu status junto à

comunidade e possibilitava a obtenção de ganhos materiais, não só em dinheiro,

mas em gêneros, o que facilitou a muitos a obtenção da alforria.

Quando não temiam os negros feiticeiros faziam questão de acabar com

eles de alguma forma, seja pelos massacres físicos constantes, seja pelo

13 Antonil. Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas (1711), introdução e notas de Alice P. Canabrava, São Paulo: Companhia Editora Nacional, s.d., pp.161.

Page 25: Medicina_e_artes_de_cura

25

“sumiço”. Encontramos um argumento extremamente preconceituoso e que nos

auxilia a demonstrar o caráter excludente que a sociedade da época impunha aos

negros, índios e mestiços, cultuantes ou simpatizantes do curandeirismo:

O feiticeiro não oferece nada de extraordinário. É um preto como os outros, da mesma categoria social, e tão sabido como eles, tendo apenas a

esperteza bastante para se impor à sua consideração incutindo-lhes um respeito

misterioso por seus processos clínicos, faculdades divinatórias e recursos para

resolver várias dificuldades da vida [mas] segundo parece, ele possui o segredo

de algumas plantas medicinais e de outras específicas e uma longa prática que

lhe dá às vezes bom sucesso na cura de certas enfermidades, mas em geral não

passa de um intrujão14. (Cruz, 1910:140)

É evidente que para abordarmos a questão da etiologia das doenças tanto

para os ameríndios brasileiros quanto para os africanos demandaríamos tempo

extenso e bibliografia vastíssima, além da necessidade do contato com

verdadeiros sacerdotes das religiões, pois estes sim são os representantes

legítimos desse saber, sempre pela tradição oral. A função desses dois capítulos

introdutórios é simplesmente mostrar que não existia diferença entre sagrado e profano para os indígenas nem para os africanos, ao contrário, o mundo sobrenatural permeava todos os momentos da vida. Não pretendemos com

isso deixar implícito que suas práticas de cura eram as mesmas, pois sabemos

que isso não é real. Há grande bibliografia que mostra a diferença entre os

tratamentos indígenas e africanos, todavia, para nós importa apenas o caráter

mais amplo, no que se refere à completa integração entre as realidades espiritual

e material, pois no decorrer do trabalho ficará fácil percebermos o conflito

existente entre institucionalização médica e os demais saberes cultuados no país.

14 http://www.ces.fe.uc.pt acesso em 09/03/2008.

Page 26: Medicina_e_artes_de_cura

26

Capítulo III – Brasil nos idos de 1800

Até o momento vimos sucintamente como era caracterizada a visão

indígena e africana sobre as artes de cura. O mote principal era o contato com o

mundo sobrenatural, sendo que as doenças representariam desequilíbrios de

forças do próprio indivíduo e/ou atuação de entidades espirituais sobre o mesmo.

Salientamos também no capítulo anterior que a religiosidade da colônia não

poderia ser identificada sobre o manto de apenas uma religião. Antes e por volta

de 1500 sabemos que o culto era essencialmente indígena, sendo que há

especialistas dentro da historiografia brasileira que tratam dessa época com

riqueza de detalhes, mesmo que a distância ao período dificulte seu trabalho.

Entretanto, com o início das grandes navegações chegando ao Brasil, os

autóctones tiveram o contato com os indo-europeus, sendo estes católicos,

cristãos-novos, muçulmanos, além de posteriormente o contato com os negros

africanos e com os imigrantes.

Esse extenso conteúdo antes cultural-religioso que meramente

populacional, permitiu que se construísse no Brasil uma religiosidade peculiar, a

qual abordaremos em capítulos futuros. Nossa intenção é mostrar que nesse

momento de caldeamento cultural tivemos de forma ostensiva a tentativa de

imposição e manutenção de apenas uma religião que fosse a representante do

Estado (no caso o Estado português até o momento) e esta não poderia ser outra

que não a católica e trazê-la seria incorporar todos os valores ligados a ela. Era

extremamente perigoso para os que desejavam se apropriar da terra e das

riquezas brasileiras que se deixasse aflorar várias religiões ao mesmo tempo, por

isso foi necessário manter a colônia sob controle, sendo esse se manifestando no

social, cultural, religioso e político. O controle econômico foi apenas decorrência

dos anteriores.

A religião católica sempre esteve ao lado das classes dominantes, sendo

que a casta científica fazia parte desta. Nesse ponto é importante lembrar que

tudo o que posteriormente for relatado de acontecimentos em terras brasileiras já

Page 27: Medicina_e_artes_de_cura

27

era uma vivência antiga da Europa e de seu vetusto povo. Os portugueses

trouxeram para o Brasil sua história pregressa em terras natais.

Como abordar a chegada da ciência no país? Como simplificar a

oficialização do caráter científico em meio a uma população completamente

distante desses princípios? Quais foram as dificuldades encontradas para esta

legalização e o certo enfrentamento cultural existente entre as diferentes formas

de ver o mundo?

Os questionamentos acima foram mola propulsora para o presente trabalho,

pois permearam os pensamentos, fazendo com que nosso imaginário de repente

estivesse vivenciando essa época e procurando encontrar motivos racionais do

porquê uma civilização seria capaz de destruir os valores da outra de forma tão

cruel. Não foi difícil encontrar respostas ao longo de tantos estudos a respeito.

Algumas vezes pensamos que estávamos sendo muito radical, mas ao

longo das leituras, tivemos a oportunidade de compartilhar com as visões e com

os argumentos de muitos estudiosos que consolidaram nosso ponto de vista.

Veremos então de que forma a ciência médica iniciou um processo de

enfrentamento com os curandeiros, sendo necessário para isso, conhecermos o

contexto histórico de sua chegada em solo brasileiro.

Daremos, portanto, um salto histórico para as primeiras décadas dos anos

de 1800. Nesse período as cidades brasileiras encontravam-se abandonadas por

Portugal. Os colonos ficaram livres para realizarem a ocupação territorial com

base em suas próprias iniciativas privadas. Todavia, a descoberta do ouro foi

fundamental para a mudança de postura portuguesa em relação à sua colônia,

passando a controlar de forma eficaz o que ocorria, a fim de viabilizar a maior

extorsão econômica das riquezas brasileiras, sem que os senhores rurais, grandes

comerciantes e nenhuma outra metrópole competisse pelos metais.

Na época, Portugal tinha virado alvo de Napoleão devido sua sólida aliança

com a Inglaterra. Enquanto expandia seus domínios por toda a Europa, o

imperador da França enfrentava uma guerra prolongada com os britânicos e

queria expulsá-los dos portos. Como Portugal era um dos poucos países ainda

aberto à Marinha inglesa, Napoleão pressionava dom João a abandonar seus

Page 28: Medicina_e_artes_de_cura

28

velhos aliados, porém, o príncipe regente apenas enrolava sem tomar partido

diante daquele impasse. A pressão britânica acabou sendo mais forte que a

francesa, principalmente porque a Inglaterra ameaçava ocupar o Brasil caso o

monarca não concordasse com o plano de fugir para a colônia (há historiadores

que dizem que a vinda da corte para a América já era uma idéia antiga e cogitada

desde o século XVIII).

Quando a situação já não era suportável, D. João aprovou a retirada

estratégica. Cerca de 40 navios carregavam entre móveis e objetos de luxo, mais

de 11.500 pessoas. A frota, escoltada pelos ingleses, aportou em Salvador em 22

de janeiro de 1808. Logo após sua chegada fez questão de emitir a ordem de

abertura dos portos às nações amigas. A abertura pôs fim ao monopólio naval

português e isto foi significativo para Inglaterra, pois representou um “pagamento

de contas” pela proteção dada a Portugal em sua viagem.

A abertura dos portos possibilitou um intenso crescimento populacional,

especialmente na cidade do Rio de Janeiro que se desenvolve a partir de então

como núcleo urbano, em função da posição de principal porto escoador da

produção mineira e também de centro político-administrativo em 1763.

Mais uma vez o Brasil era alvo de um processo de caldeamento e intensa

diversidade. Não havia unidade entre seus habitantes. Ana Rosa Clocet afirma

que os brasileiros se auto-identificavam como portugueses, sentimento que

convivia com identidades particularistas, como ´ser das minas´ ou ´ser bahiense´.

As estimativas são de que o país tivesse 3 milhões de habitantes, sendo 1 milhão

de escravos e 800 mil índios.

A cidade do Rio de Janeiro dividia-se em um lado que a consolidava como

centro político-administrativo e econômico-financeiro do país e um outro,

representado pelo espaço do perigo, do desconhecido, pois que nesse era patente

a presença dos escravos, trabalhadores livres, prostitutas e entre outros os

curandeiros. Essa noção de periculosidade aplicada a todos os segmentos pobres

da população urbana está intimamente relacionada com as representações de

ideal construídas pela intelectualidade européia. Delimitava-se, portanto, o espaço

da ordem e o da desordem. Laura de Mello e Souza já havia comentado sobre

Page 29: Medicina_e_artes_de_cura

29

essa dicotomia afirmando que a categoria dos desclassificados sociais surge e se

amplia na sociedade colonial como produto da política portuguesa visando povoar

o Novo Mundo utilizando segmentos sociais que ameaçavam a estabilidade da

sociedade metropolitana.

Com a vinda da corte para o Brasil tornou-se necessário promover uma

cultura que fosse condizente com os valores por ela trazidos da Europa.

A vida urbana brasileira era caótica. As ruas das principais cidades eram

sujas, estreitas e mal iluminadas, lotadas de vendedores ambulantes, negras

senhoras a vender seus quitutes em meio ao lixo e à gritaria de bichos,

principalmente porcos e galinhas. Como o monarca e sua plêiade viveriam nos

trópicos em meio a tanta “sujeira social”?

A partir desse momento as instituições de poder voltaram sua atenção a fim

de proporcionar o bem estar da corte em uma cidade que não apenas

representasse, no sentido de atuar como se fosse, mas que realmente tivesse os

padrões europeus.

Data dessa época dentre outras instituições de caráter cultural como o Real

Horto e o Museu Real, a criação da Imprensa Régia. Abaixo encontramos o

decreto15 de sua criação:

Tendo-Me constado, que os Prelos, que se achão nesta Capital, erão os

destinados para a Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros, e da Guerra, e

Attendendo á necessidade, que há da Officina de Impressão neste Meus Estados:

Sou servido, que a Caza, onde elles se estabelecerão, sirva interinamente de

Impressão Regia [grifo meu], onde se imprimão exclusivamente toda a Legislação,

e Papeis Diplomáticos, que emanarem qualquer Repartição do Meu Real Serviço;

e se possão imprimir todas, e quaesquer outras Obras; ficando interinamente

pertencendo o seu governo, e administração á mesma Secretaria. Dom Rodrigo

de Souza Coutinho, Do Meu Conselho de Estado, Ministro, e Secretario de Estado

dos Negócios Estrangeiros, e da Guerra o tenha assim entendido, e procurara dar

ao emprego da Officina a maior extenção, e lhe dará todas as Instrucções, e

15 O decreto da criação da Imprensa Regia está publicado em fac-símile, no livro de Paulo Berger. A tipografia no Rio de Janeiro, 1800-1900, editado pela Cia. Industrial de Papel Pirahy.1984.ppVIII.

Page 30: Medicina_e_artes_de_cura

30

Ordens necessárias, e participará a este respeito a todas as Esatações o que mais

convier ao Meu Real Serviço. Palácio do Rio de Janeiro em treze de Maio de mil

oitocentos e oito.

Com a Rubrica do PRINCIPE REGENTE, N.S.

Regist.

Na Impressão Regia

Até o momento era proibida qualquer divulgação, publicação seja esta em

jornais, revistas ou livros. Tal proibição devia-se ao fato de que a característica

principal da imprensa não era a informação. Seu mote não eram notícias e sim

divulgação de doutrinas específicas. A França enciclopedista, revolucionária,

republicana e maçônica não era um modelo desejado pelo Estado Centralizador

Português - monarquista, clerical, conservador e reacionário. Os livros franceses

que chegavam eram ou por contrabando ou pela incapacidade dos agentes dos

portos em fiscalizar os livros aceitos ideologicamente, uma vez que eram semi ou

analfabetos, impedindo-os de reconhecer títulos proibidos. Essa era uma

peculiaridade da América portuguesa, pois nas demais colônias européias no

continente a imprensa já se fazia presente desde o século XVI.

A imprensa brasileira nasceu oficialmente em 10 de setembro de 1808, com

a criação da Gazeta do Rio de Janeiro, órgão oficial do governo português, porém

apenas com a Constituição em 1820, a imprensa brasileira se livraria do

monopólio estatal e da censura.

Interessante mencionarmos que antes mesmo dessa data, um exilado de

nome Hipólito José da Costa lançava em Londres o Correio Brasiliense, o primeiro

jornal brasileiro, ainda que fora do país. Um pouco mais tarde, o francês Max

Leclerc, foi ao Brasil como correspondente cobrir o início do regime republicano e

descreveu o cenário jornalístico de 1889 da seguinte maneira:

A imprensa do Brasil é reflexo fiel do estado nascido do governo paterno e

anárquico de D. Pedro II: por um lado, alguns grandes jornais muito prósperos,

providos de uma organização material poderosa e aperfeiçoada, vivendo

principalmente de publicidade, a empregar sua influência na orientação da opinião

pública (...) Em torno deles, a multidão multicor de jornais de partidos que, longe

Page 31: Medicina_e_artes_de_cura

31

de ser bons negócios, vivem de subvenções desses partidos, de um grupo ou de

um político e só são sólidos se o homem que os apóia está em evidência ou é

temível16.

Fizemos esse pequeno adendo sobre a formação da imprensa brasileira,

pois mais tarde quando dos embates entre médicos e curandeiros ela foi

fundamental instrumento utilizado pela elite classista para defender os valores do

academicismo do saber médico em detrimento das artes de cura inerentes e

naturais entre as mais diversas classes, focadas principalmente na figura do

curandeiro.

Para o momento a citação da criação da imprensa brasileira serve para

demonstrarmos a importância de Portugal em culturalizar o Brasil, ainda que

preocupado com as ideologias presentes nos jornais. Era importante que o país

tivesse uma fonte de publicações, pois isso representava contemporaneidade com

os fatos acontecidos na Europa. Os impressos seriam responsáveis por permitir

que a elite tivesse conhecimento das notícias de dentro e fora do país, e

colocamos a elite porque apenas ela teria acesso aos meios de comunicação em

virtude do pertencimento a uma tradição escrita.

Todas as instituições citadas serviam para que as pessoas que aqui viviam

vissem o Brasil ora como espelho, ora como extensão de sua metrópole. A corte

deveria sentir-se “em casa”, com os requisitos básicos de um país civilizado:

cultura, moradia adequada, higiene, limpeza, educação e saúde. Com relação a

este último a providência tomada foi a institucionalização da medicina no Brasil,

em primeira instância por meio de suas faculdades.

16 http://pt.wikipedia.org.wiki/Imprensa_no_Brasil. acesso em 18/02/2008.

Page 32: Medicina_e_artes_de_cura

32

Capítulo IV - Institucionalização das Faculdades de Medicina

As origens das faculdades de medicina no Brasil como vimos remontam à

chegada de D. João VI e a transferência de sua corte em 1808.

A criação das faculdades tinha um propósito emergencial e estrutural.

Explicaremos melhor. O caráter emergencial consistia em que a corte necessitava

de um ambiente cultural, limpo, rico, cenário este que não encontraram no Brasil.

As faculdades serviriam para dar um ar de intelectualidade, de academicismo, de

cultura.

O caráter estrutural é um pouco mais delicado porque envolveu

intrinsecamente a questão ideológica. Não que culturalizar o Brasil não o fosse,

mas a intenção com as faculdades seria que ao longo das gerações, se

extinguisse por completo a diversidade de formas de cura para que fosse

definitivamente aceito o padrão europeu como único. O caráter estrutural envolveu

uma construção constante.

Em curto prazo a corte teria as faculdades como símbolo da cultura

européia, algo aparente. Em longo prazo as faculdades trariam a axiologia

européia, ou seja, o valor europeu.

Para que nossa explanação torne-se ainda mais clara, faremos uma breve

analogia com o signo lingüístico estudado pelas correntes da ciência lingüística.

Ferdinand Saussure, um dos ícones da Lingüística, afirma categoricamente

que todo signo possui dupla face: o significante e o significado. O significante é o

aspecto concreto, sua realidade material. O significado representa os aspectos

imateriais, conceituais. A somatória do significante e do significado constitui a

significação, ou o próprio signo.

Analogamente para nosso foco sobre a criação das faculdades de medicina

e o caráter emergencial e estrutural teríamos que o significante nesse processo é

o caráter emergencial, a concretização das faculdades no país com suas

simbologias, modelos e arquiteturas próprias, que forneceriam visualmente uma

imagem européia nos trópicos.

Page 33: Medicina_e_artes_de_cura

33

O significado remete ao valor, ao conceito, então representa a ideologia da

institucionalização da medicina no Brasil, que da mesma forma que se constitui

como nova fonte de saber exclui todas as demais existentes, um processo

construído ao longo de embates e das gerações que futuramente viriam já muito

mais receptivas às práticas européias do que a degradação das artes de cura

próprias do país.

Eis que temos o signo da institucionalização do saber médico.

Significante = símbolo ou imagem

Significado = ideologia ou valor

Signo = institucionalização do saber médico

D. João VI fundou os primeiros estabelecimentos de ensino superior da

colônia em 1808, criando nesse mesmo ano cursos médico-cirúrgicos no Rio de

Janeiro e em Salvador. A escolha das duas cidades não foi aleatória. Além de

sitiar maior concentração populacional urbana e recursos econômicos, elas

representavam naquele momento o ponto de confluência de povos com culturas

diferentes e, portanto, locais de muita mistura, miscigenação não só física, mas de

valores, algo que como vimos era perigoso, ícone da desordem. Entre uma das

bases principais da corte estava a organização do aparelho administrativo e este

se expressando em todos os setores da sociedade. Não seria interessante que

fossem construídos pensamentos diversos aos da metrópole, pois isto certamente

significaria descentralização do poder, algo estritamente perigoso na relação entre

dominador-dominado.

Page 34: Medicina_e_artes_de_cura

34

Faculdade de Medicina da Bahia

A Escola de Cirurgia da Bahia foi a primeira instituição de ensino superior

do Brasil. Foi fundada em 18 de fevereiro de 1808 e instalada no Hospital Real

Militar.

Os primeiro professores de Medicina da Bahia foram médicos militares, e

posteriormente os médicos civis. Por meio de nova Carta-Régia em 29 de

dezembro de 1815, El-Rei D. João VI determinou que a Escola de Cirurgia fosse

denominada de Academia Médico-Cirúrgica da Bahia, também nomeada como

Colégio Médico-Cirúrgico.

Foi com a Academia Médico-Cirúrgica da Bahia que o ensino, a ciência e a

cultura começaram a florescer no então império tropical português. Entre outros

fatos marcantes a Faculdade de Medicina da Bahia foi pioneira no uso de raios x

no Brasil, na implantação do Instituto Médico Legal da Bahia, em movimentos

científicos, como a Escola Tropicalista Baiana17 e na criação da primeira revista

especializada do país, chamada Gazeta Médica da Bahia18. Mas seu maior trunfo

foi ser a célula formadora da Universidade Federal da Bahia (UFBA), fundada em

1946.

Desde sua fundação a Faculdade de Medicina da Bahia testemunhou

diversos fatos históricos importantes: “através de ato do Regente, o território

passar de Colônia a Reino Unido a Portugal; a coroação real de D. João VI; o

brado do Ipiranga; a coroação imperial de D. Pedro I; a Guerra da Independência

na Bahia, vitoriosa no Dois de Julho de 1823; a Confederação do Equador; a

17 Embora tenha recebido esta denominação, a Escola Tropicalista Baiana não se constitui como uma instituição de ensino formal, mas como um grupo de médicos estabelecidos na Bahia que se dedicou à prática de uma medida voltada para a pesquisa etiológica das doenças tropicais que acometiam as populações pobres, especialmente os negros escravos. Este grupo teria se formado por volta da 1860. Dicionário Histórico-Biográfico das Ciências da Saúde no Brasil (1832-1930). Casa de Oswaldo Cruz/ Fiocruz (www.http://dichistoriasaude.coc.fiocruz.br). Acesso em 26/11/2007. 18 A Gazeta Médica da Bahia surgiu a partir de um grupo de médicos, não pertencentes ao quadro de lentes da Faculdade da Bahia, que se reuniam, a partir de 1865, em sessões científicas, com discussões sobre Anatomia Patológica, alicerçadas em dados fornecidos pelo microscópio. Eles iniciaram uma nova era na Medicina Brasileira, arautos da Medicina experimental no país. Como vimos acima foram denominados “tropicalistas”, ou na terminologia atual, parasitologistas. (Santos Filho, 1991)

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35

abdicação do nosso primeiro imperador; as Regências Trina e Una; a Revolta dos

Malês; a Sabinada; a entronização de D. Pedro II, e mais tarde, a sua visita; a

Guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai; a Abolição da Escravatura; a

Proclamação da República; a Campanha de Canudos; a primeira Grande Guerra;

a Revolução de 1930; a Segunda Guerra Mundial; a criação da Universidade da

Bahia; a Revolução de 1934, entre outros”19.

Pretendíamos mostrar rapidamente a criação da Faculdade de Medicina da

Bahia e sua importância mediante os aspectos nacionais. Veremos agora a

criação da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro.

19 www.sbhm.org.br Acesso em 10/11/2007.

Page 36: Medicina_e_artes_de_cura

36

Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro

A Escola Anatômica, Cirúrgica e Médica do Rio de Janeiro foi instalada no

Hospital Real Militar, no morro do Castelo. O curso era de cinco anos e regido pela

Universidade de Coimbra, Portugal. Vale lembrar que estamos falando do

momento da institucionalização médica, porque muito antes disso já houve o

contato entre as “medicinas” européias e as do Brasil. O influxo médico inaugural

da metrópole em formação não se deu por via da erudição qualificada de seus

físicos e cirurgiões, mas por intermédio dos conhecimentos e experiências da

medicina popular possuídos pelos navegadores, imigrantes, degredados e padres

que aqui aportaram nos primeiros anos de contato. Era algo essencialmente

informal, sem pretensões alguma de unificação de saberes, fazia parte do

encontro cultural promovido pelas grandes navegações. Durante este período, os

navios eram grandes centros, conglomerados de expectativas de um mundo novo

de realizações físicas e espirituais. Entretanto suas condições eram deveras

precárias, com grau de higiene zero ou nulas, fazendo com que fossem obrigados

a buscar seus próprios métodos de cura dentro daquele universo. Isso quando não

morriam às centenas alastrando a contaminação para toda ou parcial coletividade

da embarcação.

Fica evidente que o contato entre as práticas de cura já eram existentes. No

momento estamos falando da institucionalização do saber médico concretizado a

partir de 1808.

Em 1813, as escolas tanto do Rio de Janeiro quanto em Salvador foram

reorganizadas e se transformaram em Academias Médico-Cirúrgicas. O novo

regulamento permitia a adoção de regras e normas próprias para seu

funcionamento e garantia pela primeira vez, aos profissionais aqui formados o

direito de exercer a medicina, pois até então, só exerciam os médicos formados

em Portugal. Retomando, o curso durava cinco anos e ao final do quarto os alunos

que passavam nos exames recebiam a “Carta de Cirurgia”. Aqueles que

completavam o quinto ano ficavam totalmente habilitados a exercer a Cirurgia e

Page 37: Medicina_e_artes_de_cura

37

recebiam a “licença para curar de Medicina”. A partir de 1826 a concessão dos

diplomas passa a ser feita pelas próprias Academias e não mais pela

Universidade de Coimbra. Notamos que aos poucos o Brasil recebia autoridade

frente a esse saber, uma vez que este anteriormente era monopólio da elite

portuguesa, porém mesmo assim as Academias eram alvo constante de

reclamações uma vez apontadas como deficientes e anacrônicas, ou seja,

dissonantes com as mudanças que ocorriam na época.

Com a independência política do Brasil em 1822, novas reformulações

foram feitas a fim de adequar o país e suas medidas médicas ao novo modelo que

se instituía de nação. Em 1829 foi fundada a Sociedade de Medicina do Rio de

Janeiro, a qual foi convocada a dar seu parecer sobre os planos de reorganização

do ensino médico e em 1832, depois de pequenas alterações pela Comissão de

Saúde Pública da Câmara, foi aprovada a transformação das Academias Médico-

Cirúrgicas em Faculdades de Medicina, seguindo os moldes das instituições

francesas de ensino superior. A Medicina Brasileira se abriu por completo às

idéias francesas, especialmente, porque se tratava de um sentimento de repulsa

contra a antiga Metrópole, sempre opressora aos conhecimentos da então colônia.

Tal sentimento coincidia com os fatos que culminaram com o banimento do

primeiro imperante e que se transformou no jacobinismo incandescente da

Regência e dos princípios do Segundo Reinado. (...) A par desses sentimentos

que seriam ocasionais, atuava permanentemente sobre as inteligências o influxo

formidável do que representou para o Mundo, a civilização francesa, em pleno

fulgor à época em que se tornaram possíveis as nossas comunicações intelectuais

com a nação ilustre.20

A França representava o centro do mundo pensante, o modelo do que

deveria ser seguido, uma civilização culta, refinada e evoluída. Teve expoentes

fundamentais em todos os setores do conhecimento humano, nas letras com

Victor Hugo, Balzac e Stendhal, Chateaubriand. Na pintura com Delacroix, David,

Ingres. Na química, com Gay-Lussac. Na física, com Ampère. Na matemática,

20 NAVA, Pedro. Capítulos da História da Medicina no Brasil . pp.68 São Paulo: Ateliê Editorial, 2003.

Page 38: Medicina_e_artes_de_cura

38

com Lagrange, Monge, e Laplace. Enfim, ela era a capital da inteligência humana,

para onde todos os olhos do mundo deveriam se voltar para acompanhar o

desenvolvimento das artes e das ciências.

Assim com a influência das instituições francesas na medicina brasileira o

curso teve sua duração ampliada para seis anos e passou a formar médicos,

farmacêuticos e parteiras. A necessidade de legalizar e legitimar a medicina

brasileira em meio a tantas práticas curativas trouxe a preocupação em elevar o

nível de formação acadêmica, passando a ser obrigatória a defesa de tese

específica sobre os preceitos médicos para a obtenção do título de “doutor em

medicina”. Os candidatos deveriam escrever no idioma nacional ou em latim e

imprimir à sua própria custa. A tese se resumia em uma dissertação e a

enumeração de proposições que, muitas vezes, eram a transcrição ipsis verbis de

aforismos de Hipócrates21, exigência esta que foi abolida em 1911.

A partir de 1884, na gestão do Visconde de Sabóia (1880-1889), o ensino

da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro passa por uma ampla reforma, sendo

seu principal mote a introdução do ensino prático de todas as disciplinas médicas,

rompendo com o ensino puramente teórico. Pela nova regulamentação o novo

curso, de seis anos, era composto por quatorze matérias divididas em grupos:

ciências acessórias, ciências cirúrgicas e ciências médicas. Esse novo padrão

adaptava o ensino às novas tendências européias marcadas pelo avanço da

medicina experimental e pelos impactos das teorias de Louis Pasteur, embora

apenas em 1901 tenha sido criada a cadeira de Bacteriologia. Ao lado da abertura

para a pesquisa científica nos laboratórios, são estimulados os estudos sobre as

doenças peculiares ao Brasil, tendo em vista as questões sanitárias consideradas

estratégicas para o desenvolvimento do país enquanto nação.

21 Hipócrates (Cós, 460 – Tessália, 377 a.C.) é considerado uma das figuras mais importantes da história da saúde, chamado “pai da medicina”. Foi o líder da “Escola de Cós”. O que restou de suas obras demonstra a rejeição da superstição e das práticas mágicas da “saúde” primitiva, direcionando os conhecimentos no caminho científico. Hipócrates fundamentou sua teoria e prática e a forma de compreender o organismo humano na teoria dos quatro humores corporais (sangue, fleugma, bílis amarela e bílis negra) que, consoante as quantidades relativas presentes no corpo, levariam a estados de equilíbrio (eucrasia) ou de doença e dor (discrasia). Esta teoria influenciou, entre outros, Galeno, que desenvolveu a teoria dos humores e que dominou o conhecimento até o século XVIII.

Page 39: Medicina_e_artes_de_cura

39

Foi importante para acompanhar o crescimento do país a criação de meios

de divulgação do conhecimento científico. Surgem, portanto, periódicos médicos.

Como vimos anteriormente, o primeiro deles foi a Gazeta Médica da Bahia criada

em 1866 e, posteriormente o Brazil Médico22, no Rio de Janeiro em 1887.

Retomando, a reforma de Sabóia trouxe medidas liberalizantes como

freqüência livre às aulas, realização de cursos extra-oficiais e a permissão de

matrículas para mulheres.

Durante todo esse período a precariedade é marca da Faculdade. As aulas

não eram regulares, havia falta de material como instrumentos, drogas,

vasilhames e inclusive cadáveres para as dissecações anatômicas.

Com a proclamação da República em 1889, várias medidas são revistas,

provocando reações e conflitos internos na direção da FMRJ que permeiam as

primeiras décadas do século XX.

Finalmente após percorrer vários endereços da cidade, a Faculdade de

Medicina do Rio de Janeiro teve sua sede própria em 1918, construída na Praia

Vermelha, quando foi inaugurada a Faculdade Nacional de Medicina da Praia

Vermelha.

Em 1920 é criada a Universidade do Rio de Janeiro e nessa data a

Faculdade de Medicina juntamente com a de Direito e a Politécnica passa a

integrar a instituição.

Em 1937, Getúlio Vargas já empossado, e com seus ideais nacionalistas,

fez uma reforma transformando a Universidade do Rio de Janeiro em

Universidade do Brasil e a Faculdade de Medicina passou a denominar-se

Faculdade Nacional de Medicina. Em 1965 a Universidade do Brasil foi

transformada em Universidade Federal do Rio de Janeiro e data desse período a

extinção do termo nacional na denominação da Faculdade de Medicina.

22 O Brazil Médico nasceu vinculado à Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. O periódico assumiu características e personalidade próprias no fim do século XIX com o fortalecimento da área de higiene pública e as questões sanitárias. Teve também um caráter didático, de formação dos médicos, por meio de artigos com estudos de caso, além de indicar referências específicas e resumo de obras recém lançadas na Europa, estimulando os brasileiros à participação em eventos científicos.

Page 40: Medicina_e_artes_de_cura

40

Capítulo V - Medicina x múltiplas artes de cura

Durante toda a leitura de nosso trabalho o leitor presenciou de forma

sucinta e até mesmo de forma subliminar as matrizes formadoras do povo

brasileiro. Relembrando, sabemos que o Brasil foi formado pelos autóctones

indígenas, pelos negros africanos que chegaram na condição de escravos e pelos

indo-europeus que vieram alguns na condição de dominadores, outros na

condição de imigrantes degradados de seus países de origem.

É lícito afirmar que todos esses povos tinham suas culturas específicas, sua

cosmologia e sua crença no divino, seja este sobrenatural mediato ou imediato. O

fato é que a construção religiosa está intimamente relacionada aos aspectos

culturais e sociais da comunidade, sendo que inclusive as formas de cura são

estabelecidas por meio desses paradigmas. Entretanto os paradigmas não são os

mesmos para cada povo, mesmo que todos acreditem no divino. Este Sagrado se

manifesta particularmente para cada um.

Ao confluírem no Brasil todos esses povos passaram por um processo de

choque cultural e mesmo de aculturamento23, fazendo com que muitos de seus

alicerces culturais caíssem por terra ou fossem substituídos por outros. Quanto a

esse aspecto, gostaríamos apenas de dar uma sustentação baseada em um

antropólogo, escritor e professor de literaturas latino-americanas chamado Martin

Lienhard. Em seu livro La voz y su huella: Escritura y conflicto étnico-social em

América Latina (1492-1988), capítulo em que fala sobre escritura e os processos

de interação cultural, Lienhard cita um franciscano radicado em México de nome

Mendieta, observador lúcido das realidades culturais que as qualifica de

“quimeras”.

Segundo ele o processo de interação e formação de novas realidades

culturais pode ser identificado imageticamente pela figura da quimera.

23 Desde 1880 a nascente antropológica moderna cunhou o termo aculturação para nomear o conjunto dos processos de interação que desencadeia o encontro entre duas sociedades cultural e socialmente distintas. (Bastide 1968)

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“¿Eué valor se atribuye, hacia 1600, a este vocábulo? Em el lenguaje de la

época, nutrido de referencias greco-latinas, la quimera es un “monstro, que echa

llamas de fuego por la boca y tiene cabeça y cuello de leon, el vientre de cabra y

la cola de dragón” [1/ Covarrubias 1611/ 1943]: um engendro híbrido,

inacabado”.

O que o autor afirma é que o encontro de culturas promove um gênero

novo, mas que não se constitui como algo finalizado, jamais será algo completo,

pois ao falarmos de cultura, falamos de valores, de formas de se pensar, sentir e

praticar bens simbólicos comuns, o que sabemos estar em um processo de

constante transformação.

Essa é uma questão intrinsecamente axiológica, ou seja, cada povo tinha

seu valor afim e no momento do encontro cultural não conseguiu manter seus

fundamentos, houve um embate em primeira instância firmado na apropriação por

parte da cultura dominante (que objetivava impor seus ideais para todos os

demais) e em segunda instância de acomodação com conseqüente perda de parte

da cultura dominada.

Analogamente podemos falar sobre aculturação ou posteriormente sobre o

conceito de transculturação, que abrange as totalidades sociais que rodeiam essa

nova estrutura formada, utilizando novamente a Sociolingüística. O que acontece

com a língua no momento de encontros entre povos é o mesmo que ocorre com

os valores. Karttunen (1892) estabeleceu uma seqüência típica de aculturação

lingüística:

“Em uma primera etapa, el idioma receptor digiere sucessivamente lãs

nuevas realidades mediante los procedimentos de préstamo léxico y de la

extensión del significado de los nombres. Em um segundo momento, el idioma

admite uma serie de modificaciones fonéticas y morfológicas relativamente

superficiales. Em uma tercera fase, el idioma receptor empieza a incorporar el

vocabulário básico del idioma europeu, incluso los verbos, y adpta su sintaxis a la

del idioma europeu a través de la inserción de lãs conjunciones de subordinación

europeas”. (in La voz e su huella cap. V)

Page 42: Medicina_e_artes_de_cura

42

Resumindo, da mesma forma que os processo lingüísticos, o processo de

aculturação passa por essas três fases genericamente por nós apontadas como:

“digestão do embate cultural”, modificação das estruturas inerentes à cultura

dominada e incorporação de elementos da cultura alheia, no caso à do

dominador. Alguns poderiam nos questionar se este não seria um processo

natural de assimilação e nós responderíamos que em parte sim, pois desde o

início dos tempos a história humana assiste a processos sincréticos, todavia a

questão é a relação dominador-dominado, à qual muitas vezes não permite criar

uma nova realidade, mas simplesmente apropriar-se de valores das culturas

dominadas para enrijecer ainda mais a cultura dominadora.

As diferenças entre todos desejam ser suprimidas em prol de uma única

“crença”, mesmo que esta não seja a aceita por todos. É uma questão de

dominação e imposição de ideologia.

Ainda seguindo a linha da Sociolinguística24, outro conceito referendado por

Lienhard é o de diglossia, ou seja, duas línguas convivendo juntas na mesma

época e período, onde uma tem maior prestígio que a outra, conceito este que

aborda a questão do valor da língua enquanto instrumento de poder. Entretanto ao

falarmos da confluência de culturas no Brasil não podemos falar apenas em

diglossia, mas extrapolaríamos para a poliglossia, onde entre várias línguas

convivendo juntas, uma delas tentaria se impor. Lembrando que impor a língua é o

mesmo que impor sua cultura, sua ideologia. A par de tentativas de imposição o

interessante é que:

“Uma práctica “diglósica” em matéria religiosa no puede dejar de generar, a

mediano y largo plazo, interferências recíprocas de um sistema sobre el outro,

condicíon para el surgimento de formas sincréticas”. (idem pp. 159)

Como vimos desde a vinda da corte para o Brasil e mesmo após a

independência política sempre houve quem impusesse padrões de

comportamento e de cultura. Esses padrões eram dos brancos europeus. Dessa

24Desenvolvida em grande parte por William Labov, é a ciência que estuda a língua da perspectiva de sua estreita ligação com a sociedade que se origina. Se para certas variantes da lingüística é possível estudar a língua de forma autônoma, como entidade abstrata e independente de fatores sociais, para a sociolingüística, a língua existe enquanto interação social, criando-se e transformando-se em função do contexto sócio-histórico.

Page 43: Medicina_e_artes_de_cura

43

forma, as cidades deveriam seguir o modelo europeu, especialmente o francês,

em todos os setores da vida, inclusive o setor “médico”, no sentido de curar. Assim

foram instituídas as faculdades de medicina como forma de combater ferozmente

os processos que haviam no país representados pelos curandeiros, macumbeiros,

feiticeiros, raizeiros, quimbandeiros, benzedores entre outras denominações. (Não

é à toa que o título desse capítulo recebeu letras em negrito. Medicina com letra

maiúscula demonstrando a força e o poder de imposição de seu saber e múltiplas

artes de cura grafadas em minúsculo demonstrando a horizontalidade e o respeito

entre todos os saberes igualmente).

Há autores que fizeram a classificação específica de cada termo dos

terapeutas populares. A título de exemplificação, Cabral (1957) afirma que os

benzedores seriam os que acumulam e colocam em prática os conhecimentos

populares a respeito da cura, indivíduos mais inofensivos, crédulos e simples.

Dão-se a essa prática exclusivamente por espírito filantrópico aceitando

pequenas ofertas e sinais de gratidão, sem exigir mais ou melhor. Não tem preço

e gratuitamente também se prestam a executá-las. Não conhecem qualquer

processo de provocar malefícios e reagem fortemente a qualquer insinuação de

rezar para provocar o mal. Não desejam ser confundidos com feiticeiros e

macumbeiros. (idem)

José Pimentel Amorim (1959) em trabalho intitulado Medicina Popular em

Alagoas – Rezas e benzeduras nas doenças e ensalmos outros, o qual ganhou o

quinto prêmio no sexto Congresso de Monografias sobre o Folclore Nacional,

promovido pelo Departamento de Cultura da Prefeitura do Município de São

Paulo, dá a descrição detalhada de um curandeiro típico: pessoa negra, de idade,

com prestígio conseqüente de suas atividades:

Há curandeiros e há curandeiras. Elas apenas rezam e benzem para

doenças; eles fazem mais, porque curam de cobra, fecham o corpo e tiram

espírito, tarefa mais delicada que elas dificilmente exercitam... Mas a eles e a elas

não faltam clientes, que eles são muitos e constantemente vivem à procura das

rezas e das benzeduras. (idem, pp. 103)

Page 44: Medicina_e_artes_de_cura

44

Observamos algumas definições entre as várias que encontraremos,

entretanto não consideramos que isso seja fundamental em nosso trabalho, pois o

que nos interessa é a forma com que eles efetuavam sua cura e o tratamento

direto que davam às pessoas em contraste com a maneira da prática médica

européia imposta a todos na época. Carece que tenhamos um pouco de

sensibilidade, pois fontes históricas não são suficientes para penetrarmos nesse

contexto espiritual-histórico. Os trabalhos analisados não nos relatam exatamente

o tipo de tratamento oferecido, mas por uma leitura subjetiva sabemos que o

contato entre a população e os curandeiros era algo natural, estabelecido por uma

relação de horizontalidade, mesmo que eles alcançassem muito prestígio, como

foi o caso do feiticeiro Juca Rosa25, que embora tivesse livre trânsito entre a elite

da época, conhecia detalhadamente os meandros e a vida comum do povo.

Ser curandeiro era conhecer a vida, os limites da consciência de um povo

com histórico de opressão, que convivia diuturnamente em precárias condições de

higiene, sem saneamento básico, acostumado a conviver com doenças de

diversos matizes. Ser curandeiro era adentrar nas crenças religiosas desse

povo, era dar sentido a uma vida praticamente sem sentido, era fornecer mecanismo de resistência a uma classe massacrada pelas elites classistas de

todos os tempos.

Baseada em todos os trabalhos e documentos estudados, a grande maioria

de indivíduos que posteriormente serão acusados de curandeirismo tinha alguma

relação com práticas de religiões aceitas como o catolicismo, protestantismo e 25 Bruxo, feiticeiro do Rio de Janeiro nascido em 1833, filho de mãe africana. Desde 1860 liderava uma misteriosa associação na qual atendia personalidades importantes no cenário político do segundo reinado e grupos mais pobres de escravos libertos. Foi um ícone do encontro cultural africano e católico, sendo Pai Quibombo um dos nomes pelo qual era conhecido. O estudo de Gabriela dos Reis Sampaio, A História do Feiticeiro Juca Rosa: matrizes culturais da África Subsaariana em rituais religiosos brasileiros do século XIX mostra a confluência de tradições que ocorria no Brasil imperial e auxilia a entender o confronto cultural entre africanos e europeus nas Américas. Sampaio finaliza: “partindo da história de Juca Rosa chegamos à grande influência de tradições culturais da África Centro-Oriental nas origens do que se conhece hoje como umbanda e candomblé, religiões afro-brasileiras de grande popularidade em todo o país, entre pessoas provenientes de grupos populares mas também entre intelectuais e membros das elites políticas e econômicas”. Apesar de ter encontrado um famoso advogado para defendê-lo, que fez diversas apelações, até mesmo ao imperador D. Pedro II, Juca Rosa foi condenado a seis anos de prisão por estelionato, pois a lei não permitia que fosse preso em decorrência de seus atos religiosos.. Ficou na casa de correção da Corte até 1877. Quando saiu teria se tornado “guarda da municipalidade”, segundo relatos memorialistas. Seu nome continuou aparecendo na imprensa e em diversas publicações por muitos anos, ora como memória de grandes personagens da história do Rio, ora como sinônimo de feiticeiro negro e grande conquistador.

Page 45: Medicina_e_artes_de_cura

45

espiritismo e mesmo com as religiões não aceitas, como o candomblé e a

umbanda, ou seja, o curandeirismo não era uma atividade isolada de fatores

religiosos mas abrangia uma gama vasta de crenças e valores.

Obviamente que o Curandeirismo não seria aceito e logo as medidas

começaram a ser efetivadas.

Entre 1808 e 1828 a Fisicatura-mor, órgão do Governo responsável pela

fiscalização e regulamentação de todas as atividades relacionadas às artes

terapêuticas, era sediado no Rio de Janeiro. Nesse período as artes de cura

relacionados às classes mais pobres da população eram regulamentadas e

oficializadas, cada uma com delimitações bem específicas de atuação. Assim,

havia licença para médicos, cirurgiões, boticários, curandeiros, parteiras,

farmacêuticos, mesmo que houvesse uma hierarquia que apontava os médicos

em posição superior e as parteiras e sangradores em última posição na “escala

curativa”. Entretanto, ao contrário da pirâmide valorativa estabelecida para as

práticas de cura, os curandeiros, parteiras e sangradores eram os mais

procurados e bem quistos. Muitos poderiam questionar o porquê da liberalização

das atividades das classes “subalternas” e a resposta é simples de ser

encontrada. O discurso oficial dizia que a eles eram permitidos esse poder de

atuação pela falta de médicos e cirurgiões para toda a população. Estudiosos

chegam a dizer que em 1789 na cidade do Rio de Janeiro só havia quatro

médicos, mas sabemos que esse discurso era apenas superficial e aparente. Eles

assim agiram porque não tinham como proibir a população de procurar aqueles

que sempre foram os responsáveis pela cura do povo, principalmente em um

momento de imposição de outro saber. Tudo deveria ser muito bem pensado e

assim foi. Em primeira instância permitiram a atuação desta classe, para

posteriormente agirem firmemente contra eles.

Cabral (1957, pp.75) afirma que não era a ignorância que faria a população

aderir às práticas dos benzedores, mas a necessidade:

(...) o apelo ao benzedor significa (...) muitas vezes necessidade. Se não é

socorro, ao menos é uma assistência; se não consegue curar, ao menos

Page 46: Medicina_e_artes_de_cura

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consegue consolar; se não alivia as dores, ao menos mantém a esperança e

fortalece a fé.

Pelos trabalhos lidos, em especial o de Tânia Pimenta Salgado, quem

quisesse curar, também deveria apresentar atestado de sua eficiência,

competência e de sua necessidade no local onde morava. Tais atestados eram

necessários, pois representavam, de certa forma, um afronta para os médicos

acadêmicos, os quais muitas vezes já se davam por desacreditados de algum

paciente, sendo este curado pelos curandeiros.

Entretanto, em 1828 foi extinta a Fisicatura-mor. Os curandeiros e

sangradores26 foram desautorizados, excluídos do que era considerada atividade

legal. As parteiras foram desqualificadas para uma posição subalterna e tiveram

suas atividades “roubadas”, servindo para os médicos se apropriarem delas, ou

seja, passa a ser dos médicos a legitimidade das parteiras.

Ao falarmos da questão da apropriação dos médicos e seu conseqüente

domínio das práticas de cura, tem-se a idéia premeditada de que eles

conseguiram isso de forma tranqüila e rápida. Isso não foi verdade, ao contrário,

eles se deparam com três fatores que dificultavam sua expansão. O primeiro era a

resistência e a adoração que as pessoas tinham aos curandeiros. O segundo

relativo aos aspectos internos, pois havia conflitos entre as diferentes práticas dos

médicos, ou seja, havia heterogeneidade entre seu próprio grupo, o que dificultava

a forma de atuação na sociedade. E o terceiro deve-se ao fato de que a medicina

até então não tinha força legal suficiente para suprimir as demais atividades. Ela

era uma prática embrionária, na qual as pessoas ainda não confiavam o suficiente.

Nessa época as funções de inspeção da saúde pública passaram para as

câmaras municipais, mas os processos de autorização e fiscalização ficaram sem

instância para julgamento, para somente em 1830 esse assunto voltar à tona

26 Para a medicina acadêmica, na Europa ocidental, a sangria fazia parte da terapêutica, que incluía ainda sudoríficos, purgantes, eméticos, evacuativos e dietas, e tentava livrar o organismo dos humores em excesso que atrapalhavam o perfeito funcionamento do corpo (Pimenta, 1997). Provavelmente, as visões cosmológicas dos sangradores – em sua maior parte africanos e descendentes de africanos – concediam elementos espirituais às doenças (Karasch, 1987; Slenes, 1991/1992). A utilização da sangria entre comunidades indígenas e em setores populares europeus também se baseava em crenças semelhantes (Santos Filho, 1977; Silva, 1993)

Page 47: Medicina_e_artes_de_cura

47

quando no prazo de três meses a partir da publicação da Câmara Municipal do Rio

de Janeiro,

Nenhum facultativo, boticário, parteira ou sangrador poderá curar e exercer

sua arte dentro do município sem ter apresentado suas cartas na câmara, onde

ficarão registradas...: o contraventor será multado.(Códice 49-3-8, AGCRJ )

Assim, desde 1828 quem tivesse sua carta deveria levar para ser registrada

na Câmara e quem não tivesse não poderia atuar mais em suas atividades, sendo

que os curandeiros nem eram mais citados. O conhecimento das moléstias, bem

como as ervas e plantas medicinais a elas relacionadas não garantiam mais o

poder de atuação frente à comunidade. Iniciava o processo de legitimação da

medicina européia em detrimento da desautorização dos curandeiros. É

importante salientar que os curandeiros não estavam preocupados em ser

autorizados legalmente, o que eles queriam era a possibilidade de continuar

exercendo suas práticas. Os sangradores e as parteiras até tentaram se firmar

diante da Câmara, mas os curandeiros não estavam interessados em ter

visibilidade e prestígio social, seu sucesso estava diretamente relacionado com o

contato com o povo e a forma que suas curas o beneficiava.

O certo é que em 1832, a partir do instante que a Academia Médico-

Cirúrgica transformou-se em Faculdade de Medicina e o diploma passou a ser de

médico e não mais de cirurgião, estava instalado o monopólio legal das artes de

cura por parte dos médicos. Todos aqueles que desejassem curar dependiam da

Faculdade de Medicina sendo que muitos tiveram suas atividades completamente

excluídas do cenário de cura. Nesse momento a Faculdade de Medicina tinha a

importância vital de conduzir as ciências médicas, sendo que para isso não era

interessante que houvesse multiplicidade de formas de curar. O modelo deveria

ser aquele imposto e definido por lei pela Faculdade, algo instituído e fechado,

diferente do que vinha ocorrendo desde os tempos quinhentistas. A medicina

acadêmica, caracterizando-se por ser uma arte liberal e científica, buscava se

inserir em um outro quadro de saberes e práticas sobre doenças e cura,

apartando-se daquele campo compartilhado por outros terapeutas. (Salgado apud

Lebrun, s.d.; Marques, 1999 pp.281-4).

Page 48: Medicina_e_artes_de_cura

48

A questão da legitimação da arte de curar fica meio obscura, confusa e em

segundo plano também devido ao fato de ela fazer parte do período regencial

(1831-1840), intervalo político entre os mandatos da Família Imperial Brasileira,

pois quando o Imperador Pedro I abdicou de seu trono, o herdeiro D. Pedro II não

tinha idade suficiente para assumir o cargo. Devido a este estado “sem comando

fixo” o Brasil foi alvo de muitas revoltas populares, homens livres, mulatos e

mestiços que reivindicavam melhores condições de vida, protestos contra a

centralização do governo em torno das províncias do Rio de Janeiro, São Paulo e

Minas Gerais e conflitos internos entre as diversas forças políticas que disputavam

pelo poder. Datam desse período as seguintes revoltas: Revolta dos Malês,

Cabanagem, Balaiada, Sabinada e Farroupilha.

Mediante essa situação de instabilidade, ficava difícil estipular leis

específicas e bem direcionadas para o exercício das práticas de cura e mesmo

que a nomenclatura curandeiro não fosse mais utilizada, houve casos em que foi

necessária a revisão da proibição da atuação deles na sociedade. Exemplificando

bem essa situação Tânia Salgado Pimenta (2004) traz o caso de João Nicolau

d´Oliveira, curandeiro que curava diversas moléstias em Guaratiba e que havia

sido proibido de exercer suas atividades. Entretanto, isso estava prejudicando a

comunidade à qual ele atuava, que sentiu muito sua ausência, sendo efetuado um

abaixo-assinado para que ele pudesse voltar às suas práticas. Foi concedido pela

Câmara um ano para atuar como curandeiro. (Códice 46-2-39).

Essa liberalização por parte da Câmara reflete duas coisas: a primeira era a

flexibilidade que havia quanto ao exercício de curar em função da força dos

curandeiros, que mesmo impedidos de atuarem eram capazes de mobilizar a

população a seu favor. As autoridades tinham receio dos curandeiros, sabiam que

eles eram eficazes no que faziam, mas utilizavam argumentos para manter o

status do saber médico acadêmico:

(...) abuso que a credulidade tem alimentado, e a impunidade, estendido (Códice

46-2-38, 5.9.1834) sendo que a Câmara era instigada a tomar medidas

necessárias para acabar com a proliferação deles.

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49

A segunda coisa era a incapacidade da medicina acadêmica de se

constituir dona do saber médico, mesmo com a parte legal toda a seu favor.

O cenário de cura brasileiro estava realmente confuso. Em um momento

podia-se negar a atuação dos curandeiros, defendendo a medicina pela lei, em

outro ela era deslegitimada uma vez que era necessário recorrer aos curandeiros

nos casos de forte mobilização da comunidade. À Câmara cabia a

responsabilidade de fiscalizar tabernas, boticas, armazéns, além do próprio

exercício das artes de cura. Entretanto ela não conseguia realizar todas essas

tarefas, havia completo descaso, pois muitas vezes valorizava mais o

cumprimento de atividades como fiscalização de asfaltamento de ruas e calçadas,

o que fez com que os vereadores defendessem a criação de uma autoridade e de

uma legislação próprias para a saúde pública (Códice 16-4-30, maio de 1837).

Além disso, os médicos, ainda que não tivessem poder suficiente para

combater os curandeiros, exigiam o cumprimento das leis e da atuação somente

daqueles que tivessem sua carta autorizada. Faziam essa pressão por meio das

associações fundadas, da própria Faculdade de Medicina e dos periódicos

médicos que serviam como anúncios claros dos desautorizados.

Por volta de 1846, o secretário de polícia da corte pediu ajuda à Câmara

para que esta desse as devidas explicações na maneira de agir frente à

proliferação que havia da venda de remédios desconhecidos e poções milagrosas,

pois via nos jornais a prova do que acontecia:

(...) todos os dias anunciados pelos jornais diversos remédios particulares, ou

secretos (...) ( Códice 46-2-42)

Torres Homem, professor da Faculdade de Medicina, auxiliou dizendo que

tais remédios só poderiam ser comercializados por médicos formados. Vemos aí,

aliada à questão cultural, uma questão econômica, de determinação de espaço de

atuação e domínio. Os vereadores partilhavam da idéia de Torres Homem de

proibir a manipulação desses medicamentos por curandeiros e afirmavam que o

baixo valor da multa e os poucos dias de prisão a que estavam sujeitos os

infratores não ajudavam a intimidá-los. (Códice 16-4-30, maio de 1837).

Page 50: Medicina_e_artes_de_cura

50

Um dos mais influentes médicos do período e também fundador da

Sociedade de Medicina, apontou em 1835, que não havia inspeção suficiente das

boticas e venda de remédios. A lei de 1828 que extinguiu a figura do físico-mor do

Império e delegou a função às Câmaras municipais, não era bem cumprida, pois

que o número de boticas e armazéns desautorizados crescia progressivamente.

(Diário de Saúde, 9.5.1835)

As pessoas realmente acreditavam no poder dos curadores e muitas vezes

utilizamos a palavra ´acreditar´ para denotar algo relacionado à fé. Realmente a

população poderia ter fé, mas esta fé não era algo idealizado na figura de alguém

que tem mais poder, e que na dependência de suas atitudes poderia lhes culpar. A

fé nos curandeiros não se tratava de medo, nem nada parecido com os processos

das religiões abrâhmicas, era antes de tudo a convicção na figura de uma pessoa

a quem eles devotavam respeito, primeiro por serem da mesma realidade social e

segundo porque forneciam à população um contato com a realidade do

sobrenatural de uma forma livre. Não estamos dizendo que a população estivesse

preocupada com os aspectos místicos da “religião”, até porque na condição em

que vivia seria muito difícil pensar nisso, mas pretendemos expor que os

curandeiros tinham sabedoria suficiente para lidar com o povo de uma maneira

mítica e mística também. Isso contrapõe o argumento dos médicos que diziam que

as pessoas recorriam a eles por serem ignorantes, iletradas, ingênuas e pobres. A

falta de opção em se consultar com os médicos também não é real, o ponto é que

os curandeiros ofereciam mais que uma consulta das moléstias do corpo, eles

tratavam das moléstias da alma, lidavam com as questões cotidianas,

conversavam, consolavam, orientavam as pessoas à arte de viver, ou pelo menos

sobreviver dignamente mediante aquela situação.

Esta adoração das pessoas aos curandeiros, que diversas vezes

anunciavam seus valiosos tratamentos em jornais, fez com que muitos os

qualificassem de charlatães. É o caso de Roy Potter, segundo o qual quer fossem

honestos e/ou competentes, quer não fossem, o que os distinguia era o exercício

de sua prática principalmente no mercado aberto, tratando uma clientela anônima

de pacientes por meio da venda de panacéias, e que tornavam conhecidos seus

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51

serviços, seu saber médico e a si mesmos por meio de publicidade (Salgado apud

Porter 1997, pp.90).

O termo charlatão, no dicionário Houaiss, designa 1.aquele que se

apresenta nas praças ou nas feiras para vender drogas e elixires reputados

milagrosos, seduzindo o público e iludindo-o com discursos e trejeitos

espalhafatosos (diz-se de mercador ambulante) 2. p.ext. que ou aquele que se diz

possuidor de remédios infalíveis (diz-se de curandeiro) 3. p.ext. que ou aquele

que, por seus conhecimentos empíricos, faz-se passar por médico e pratica a arte

de curar sem estar legalmente autorizado 4 p.ext. pej. diz-se de ou médico

incompetente e sem escrúpulos que recorre a meios condenáveis para atrair

clientela 5 p.ext.pej. diz-se de ou pessoa muito esperta que, ostentando

qualidades que realmente não possui, procura auferir prestígio e lucros pela

exploração da credulidade alheia; mistificador, trapaceiro, impostor.

Por todas essas definições fica evidente a utilização de um termo

extremamente pejorativo para com os curandeiros. É muito provável que houvesse

casos de espertalhões que, não tendo naturalmente as qualidades de um

curandeiro, se faziam passar por tal para obter vantagens e dinheiro à custa do

mérito alheio. Isso nunca foi “privilégio” de crenças ou religiões ligadas aos cultos

afro-ameríndio-brasileiros, ao contrário, sempre existiu em todas as religiões,

inclusive as ditas aceitas pela sociedade. Isso diz respeito à índole da pessoa e

não ao caráter geral da crença ou religião. O que aconteceu é que os médicos

acadêmicos não tinham forças para combater o curandeirismo, pegaram uma

ínfima parcela representada por esses impostores e generalizaram para toda a

classe. E mesmo que não houvesse essas pessoas, eles davam um jeito de

distorcer a imagem dos curandeiros de fato. E não é o que acontece com as

religiões de matriz afro-ameríndia atualmente? A história se repete e é por isso

que os teólogos em particular e a sociedade em geral devem estar a par desse

histórico, para que com seu pensamento reinterpretado e recriado possam

mobilizar a população para o respeito com a diversidade, sem efetuar pré-

julgamentos, fruto de uma visão desde fora das vivências religiosas.

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O fato é que as práticas de cura eram diversas e iam desde as pessoas

sérias até os aproveitadores. O que os acadêmicos não suportavam era ver

estampado nos jornais agradecimentos explícitos aos curandeiros como vemos no

Jornal do Comércio:

Eu, abaixo assinado, morador da Jurujuba, declaro que, padecendo há mais

de sete anos de erisipelas nas pernas, as quais me davam muito amiúde, procurei

muitos modos de me curar, e todos sem proveito. Ensinaram-me um banho

vegetal e um bálsamo divino que se vende na travessa do Guindaste, casa nova

sem número, e com o dito banho e bálsamo fiquei bom e perfeitamente curado... .

(JC, 26.11.1849)

A situação ficava mais séria quando as próprias autoridades responsáveis

pela fiscalização de remédios, bálsamos, banhos e outros afins se viam

deslegitimadas. O médico Dr. Pereira Rego expõe claramente sua preocupação

com a proliferação das idéias dos curandeiros e manipuladores de remédios:

...vem aumentar ainda mais a lista já não pequena daqueles em que o

charlatanismo especula constantemente entre nós em detrimento e prejuízo

daqueles que daquelas pessoas que deles se utilizam (JC, 22.4.1855).

Ainda Dr Pereira Rego alertava quanto à imagem da Junta da Higiene, que

deveria dar logo seu parecer quanto aos remédios manipulados e vendidos

diariamente:

No ponto a que as coisas têm chegado, o crédito da Junta de Higiene acha-

se grandemente comprometido para com o público e os homens de ciência,

comprometimento que pode acarretar no futuro complicações mais sérias,

enfraquecendo-lhe a sua força moral. (Códice 8-12-13, 11.7.1855)

Vemos na publicação acima a preocupação do médico acadêmico em

defender a sua classe e as instituições ligadas à fiscalização das práticas

médicas, frente a constante atuação dos curandeiros e outros afins, que mesmo

com a ilegalidade de seu exercício continuavam a atuar livremente. O depoimento

do médico apenas atesta a indignação do que acontecia e a preocupação com a

legitimação da medicina acadêmica em um contexto de aceitação de práticas

populares, as quais estavam arraigadas à população como um todo, é bom que se

Page 53: Medicina_e_artes_de_cura

53

deixe claro que nessa época não eram apenas os mais pobres que recorriam ao

curandeirismo, eles já haviam ultrapassado as fronteiras sociais atingindo a elite, o

que era ainda mais assustador.

Por volta de 1850 não eram apenas os curandeiros com suas raízes,

tonificantes e remédios naturais que se faziam presentes no cenário de cura, mas

preocupava aos médicos o crescente número de lojas, boticas e armazéns em que

eram vendidos medicamentos. Eles estavam preocupados com a perda do espaço

econômico, pois a população como um todo gostava desses medicamentos,

sendo eles miraculosos ou não. Tanto isso é verdade que os comerciantes

estavam sempre à procura de um produto com aprovação popular, como um Leroy

ou salsaparrilha de Sands27. Em outras palavras, o interesse dos acadêmicos não

era apenas na questão da cura, até porque como muitos estudiosos afirmam, o

desenvolvimento tecno-científico na área médica aconteceria naturalmente. A

questão era o domínio político-econômico que isso significava, ou melhor, a perda

desse domínio. A institucionalização da medicina, por ser feita por pessoas de

elite, andou lado a lado do desenvolvimento econômico, sendo a moeda mola

propulsora para os embates com as demais práticas de cura, as quais não se

baseavam nisso. Afirmamos, pois é sabido que os curandeiros eram de classe

muito inferior e os mesmos tiveram oportunidade de lutar pela sua atuação e nem

por isso fizeram. Continuaram a atuar perante a comunidade com ou sem o aval

da Câmara Municipal, da Junta de Higiene e demais instituições de fiscalização.

Mantiveram-se fiéis aos seus preceitos atuando “silenciosamente”.

A Junta de Higiene recebia vários desses remédios para avaliação de sua

fórmula e ela chegava a considerar que muitos eram “inventos da sórdida

especulação, que o charlatanismo, a pretexto de sentimentos generosos, propõe e

apregoa para fintar a credulidade pública” (Códice 8-2-11, 2.11.1852).

27 Salsaparrilha: Smilax officinalis. Tem forte ação depurativa, estimula o epitélio renal, sendo portanto, diurética, é diaforética, favorece a excreção do ácido úrico e da uréia, sendo auxiliar no tratamento de manifestações gotosas, tem efeito anticolesterol, pois forma um complexo solúvel com o mesmo, como tem efeito protetor sobre a pele utilizado também, em algumas dermatites e manifestações cutâneas, como eczemas, urticárias, feridas, úlceras, manchas.

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O desgosto pelos curandeiros era tanto que os médicos chegavam a

comentar a extinção da Fisicatura-mor, antigo órgão responsável pela

administração das práticas de cura:

...o charlatanismo tem quase sempre arrostado diante de si as autoridades.

...a medicina, desde a abolição da Fisicatura-mor, tribunal que, apesar de seus

defeitos (que se podiam remediar), muito benefícios prestavam à medicina, tem se

conservado acéfala, de sorte que qualquer não só é médico de si mesmo como do

público. (Leite, 1849)

Ao que parece não eram apenas as classes desfavorecidas que recorriam

aos curandeiros. Parte da própria elite tinha receio das inovações médicas e

estava confusa mediante essa disputa pela arte de curar, ainda que exaltassem os

modelos europeus, sendo que ícone desse pensamento foi o senador Cunha

Vasconcellos:

...que se deixe ao povo a liberdade de escolher quem o trate de suas

enfermidades, ou seja filho das escolas do Brasil ou de nenhuma escola. Quero

ter a liberdade em minhas enfermidades de chamar a pessoas que julgar

habilitadas para curar-me.28

Se o senador, pessoa elitizada, de certa forma defendia os curandeiros ou

pelo menos a liberdade de se consultarem com eles, o que não terão sentido as

pessoas mais simples, acostumadas com o tratamento recebido quando se viram

sem a possibilidade de serem curadas e ainda mais de serem obrigadas a se

consultar com uma classe que mal conheciam e que praticamente os ignorava?

Certamente foi uma imposição tão difícil de ser engolida que os

atendimentos continuaram a ser realizados ilicitamente.

28 Sessão de 17.4.1850. Anais do Senado do Império do Brasil, 1850. Senado Federal, Brasília, 1978, v.2.

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Capítulo VI – Nova fase do embate

No capítulo anterior observamos a institucionalização da medicina frente às

múltiplas artes de cura no Brasil Oitocentista. Este embate foi marcado pela

criação de órgãos fiscalizadores como a Fisicatura-mor e posteriormente a Junta

de Higiene Pública. O objetivo central desses órgãos era regulamentar os agentes

das práticas de cura junto as suas respectivas funções. Implicitamente isso

desapropriava o saber dos “terapeutas populares”, excluindo-os paulatinamente

do cenário e acostumando a população com o modelo europeu de saúde e

higiene: os médicos acadêmicos.

Como vimos, a tentativa desses órgãos, principalmente a da Junta de

Higiene foi em vão, pois quanto mais tentava reprimir, mais o povo se identificava

com as práticas dos curandeiros. Era uma identidade espiritual, cultural, social e

muitas vezes até étnica. A força dessa identidade, junto ao desconhecimento das

práticas acadêmicas fazia com que a medicina institucionalizada fosse difícil de

ser imposta.

Obviamente que a medicina institucionalizada era um dos alicerces da

cultura européia, extremamente valorizada, tida como fonte suprema de saber da

humanidade, à qual todos deveriam voltar-se, ou pelo menos copiar seus padrões

estabelecidos, estes permeando todos os setores da sociedade.

Entretanto um importante fator entrará nesse cenário de disputa pelas

práticas de cura. No século XIX um movimento espiritual importante acometeu a

Europa: o Espiritismo29. O espiritismo surgiu originalmente na

29 O termo espiritismo (fr. Espiritisme) surgiu como um neologismo, mais precisamente um “porte-manteau”, criado pelo pedagogo Hippolyte Leon Denizard Rivail, sob o pseudônimo de Allan Kardec, para nomear especificamente o corpo de idéias por ele sistematizadas em O Livro dos Espíritos (1857). Allan Kardec (1994), na parte introdutória de O Livro dos Espíritos, justifica a criação dos termos Espiritismo e sua diferenciação do Espiritualismo: “Para se designarem coisas novas são precisos termos novos. Assim exige a clareza da linguagem, para evitar a confusão inerente à variedade de sentidos das mesmas palavras. Os vocábulos espiritual, espiritualista, espiritualismo, têm acepção bem definida. Dar-lhes outra, para aplicá-los à doutrina dos Espíritos, fora multiplicar as causas já numerosas de anfibiologia. Com efeito, o espiritualismo, é o oposto do materialismo. Quem quer acredite haver em si alguma coisa mais do que matéria, é espiritualista. Não se segue daí, porém, que creia na existência dos Espíritos ou em suas comunicações com o mundo visível. Em vez das palavras espiritual, espiritualismo, empregamos, para indicar a crença que vimos de referir-nos, os termos espírita e espiritismo, cuja forma lembra a origem e o sentido radical e que, por isso

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França, em 1857, com a publicação do Livro dos Espíritos por Allan Kardec. Este

movimento chegou ao Brasil na segunda metade do século XIX e em poucos anos

já se firmara com publicações e periódicos, como é o caso do Reformador30. Os

primeiros centros espíritas foram fundados-+ em Salvador e Rio de Janeiro,

respectivamente, o “Grupo Familiar do Espiritismo”, em 1865, sob a direção de

Luís Olímpio Telles de Menezes, e o “Grupo Confúcio”, em 1873 (Fernandes,

1993). Não eram apenas os curandeiros que dominavam o país. Agora entrariam

na lista os espíritas, concorrentes da doutrina católica, tida como única religião do

Estado até o Império.

O período imperial foi marcado pelo consórcio entre Igreja e Estado. A

constituição de 1824 era clara em seu artigo quinto:

A Religião Catholica Apostólica Romana continuará a ser a Religião do

Império. Todas as outras religiões serão permitidas com seu culto doméstico ou

particular, em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior de tempo.

Entre outras posturas, aqueles que não eram católicos tiveram seus direitos

políticos restritos: não podiam exercer cargos de deputado e senador e não

podiam ser eleitos até o advento da Lei Saraiva em 188131.

Enfim, o Brasil importava agora não apenas os valores culturais, políticos e

econômicos, mas também os religiosos franceses. A doutrina espírita caracteriza-

se pelo ideal de compreensão da realidade mediante a integração entre as três

formas consideradas clássicas de conhecimento, que seriam a científica, a

filosófica e a religiosa. Em outras palavras, surgia no Brasil um movimento bem a

mesmo, apresentam a vantagem de ser perfeitamente inteligíveis, deixando ao vocábulo espiritualismo a acepção que lhe é própria” (pp.13) 30 Periódico lançado aproximadamente em 1883 por iniciativa do português radicado no Rio de Janeiro, o fotógrafo Augusto Elias da Silva. O jornal trazia mensagens da doutrina espírita associando-a a idéias de progresso e evolucionismo. 31 O decreto No 3029, de 09 de janeiro de 1881, teve como redator final o deputado geral Rui Barbosa. A Lei Saraiva foi assim denominada pela homenagem feita ao José Antônio Saraiva, ministro do Império, que foi o responsável pela primeira reforma eleitoral do país. O referido decreto instituiu, pela primeira vez, o título de eleitor, além das eleições diretas para todos os cargos eletivos do Império. Estabeleceu ainda que os que não fossem católicos, poderiam se eleger, desde que possuísse renda não inferior a duzentos mil réis. Com o decreto e suas restrições (voto censitário) o número de eleitores, que era de 1.114.066 em 1874 (12% da população), passou a ser de 145.296 (1,5% da população)

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gosto das elites, um movimento “limpo”, sem a “sujeira” que os negros

representavam com seus rituais exuberantes e dançantes. Era o movimento dos

brancos, de “pureza intelectual”, baseadas em ideologias como o darwinismo e

evolucionismo (que posteriormente foram elevados para darwinismo32 e

evolucionismo espiritual e social) e o positivismo33 de Auguste Comte. Finalmente

aparecia um movimento moderno e que representava a ordem em contraposição

ao antigo e à desordem.

Entretanto o Espiritismo trazia as relações ´além desta vida´, por meio do

mediunismo. E nesse ponto gostaríamos de fazer uma ressalva grande, pois

temos colegas que trabalham insistentemente para demonstrar que os

movimentos mediúnicos já existiam muito antes da chegada do espiritismo no

Brasil, todavia não com esse nome, concepção com a qual participamos em idéias

e sentimentos.

A saída para os médicos acadêmicos e católicos do país, os quais grande

parte também eram homens de Estado, foi associar as práticas de curandeirismo

ao mediunismo espírita. Não haveria problema algum em falar que tais

movimentos tinham algumas semelhanças, como a crença no sobrenatural, mas

construíram essa relação sob a sustentação da doença, ou seja, o médium era tido como um ser doente e louco. Iniciou-se aí um forte processo de repressão

e deslegitimação das práticas ao curandeirismo e demais movimentos espirituais.

Sabemos que nesse período a sociedade ideal deveria ser organizada,

normalizada e os tipos sociais sem nenhum desvio. Tudo que representasse

desordem e desequilíbrio deveria ser banido com medidas “profiláticas” e

reparadoras. As teses para adquirir o certificado de médico passaram a ter como

mote as questões sanitaristas e de higiene pública, inclusive abordando a temática

da prostituição, bórdeis e cemitérios. Havia uma preocupação com o

comportamento social, uma vez que aquela sociedade era formada por negros,

32 Termo usado para designar vários processos relacionados com as idéias de Charles Darwin (1809-1882), como evolução e seleção natural. 33 Corrente sociológica cujo precursor foi o francês Augusto Comte (1789-1857). Surgiu como desenvolvimento sociológico do Iluminsmo e das crises social e moral do fim da Idade Média e do nascimento da sociedade industrial. O positivismo propõe à existência humana, valores completamente humanos, afastando radicalmente teologia ou metafísica.

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ameríndios, mestiços, imigrantes, enfim, uma imensa gama de indivíduos com

valores diferentes e que atuavam igualmente de maneira diferente. Isso não

poderia ocorrer. Foram então estimuladas regras de conduta, tais como a

valorização da virgindade da mulher, a monogamia, o patriarcalismo, de acordo

com a sociedade francesa, tendo Paris como centro do mundo. Uma dessas

formas de controle fica clara com a exposição da tese de Ubatuba (1845, pp.22):

Algumas considerações sobre a educação physica, dirige-se diretamente ao

que deve ser o comportamento adequado da mulher: vesti-vos, alimentae-vos

regradamente e compenetrae-vos desta verdade que sois esposas, maes, e que

sois mais a alma de vossas famílias do que das sociedades.

Regras de comportamento como essas impunham um comportamento de

mulher, de dona de casa, muitas vezes em total descompasso com a realidade do

período. O Rio de Janeiro era, na época, a cidade mais populosa do país, tendo

em 1906, mais de 500 mil habitantes, enquanto São Paulo e Salvador possuíam

em torno de 200 mil. Entretanto essa população não estava em condições de

igualdade, ao contrário, até 1888, quando a escravidão foi abolida detectamos a

presença relativamente grande de trabalho escravo nas mais variadas atividades

urbanas. Junto aos escravos, havia indivíduos livres e despossuídos e o aumento

do número de imigrantes, que chegavam ao país principalmente a partir de 1870.

Restava à grande parcela da população buscar condições de sobrevivência nos

mais variados expedientes, como é o caso das “mulheres de rua”.

A elite brasileira não suportava mais viver sob essas condições sociais,

precisava de elementos que fizessem com que sua estima fosse reavivada, que

desse esperança de um país bem aventurado, rico demonstrando que aqui não

era o fim do mundo habitado por ignorantes e indigentes. Sérgio Buarque de

Holanda recebe bem a propaganda republicana sobre as vantagens do novo

regime:

... na realidade, porém, foi ainda um incitamento negador que animou os

propagandistas: O Brasil devia entrar em novo rumo, porque ‘se envergonhava’

de si mesmo, de sua realidade biológica. Aqueles que pugnaram por uma vida

nova representavam, talvez, ainda mais do que seus antecessores, a idéia de que

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o país não pode crescer pelas suas próprias forças naturais: deve formar-se de

fora para dentro, deve merecer a aprovação de outros34.

O Brasil passaria a importar centros produtores de ciência moderna,

vinculando-se ao norte temperado europeu de alemães, franceses e ingleses. A

institucionalização da medicina consolidaria parte dessa cultura, sendo a figura de

Oswaldo Cruz com seu lema da higienização e desenvolvimento do sanitarismo

brasileiro, considerada o Pasteur dos trópicos. Isso levou à criação de uma charge

na coluna diária Episódios da Tortura Higiênica publicando satiricamente a figura

do higienista à moda pasteuriana:

Ser higienista é hoje ambição que persegue muita gente boa. E, aliás, com

razão, porque equivale a ter abertas as portas para a glória e ver descerradas as

cortinas da imortalidade, para cujo panteão o nome voa envolto em nuvens de

piretro. Para o cargo, o que de mais espinhoso se exige é a envergadura,é o

aplomb, é o savoir-faire: é indispensável um chiste especial, um tic de sumidade

científica. Antes de tudo é preciso cartola, que é a síntese objetiva do saber

humano, e é necessário que ela brilhe, para refletir toda a possança intelectual do

varão que a enverga. (...) A cartola é tudo num higienista: com ela, mesmo nu, o

higienista está vestido; a cartola impõe respeito, completa a linha, dá distinção e

dá importância; o próprio Comte, se refletisse melhor, teria feito da cartola o ponto

inicial da seriação científica35.

Toda essa pompa trazida pelos médicos acadêmicos e higienistas tinham

como objetivo acabar com a situação de caos social que o Brasil vivia. Era iniciado

um projeto político, arquitetônico e sanitário de expurgo da visão de país

deteriorado para uma imagem positiva. Quanto a isso, Pereira Passos, então

prefeito da capital, e Oswaldo Cruz, diretor da Diretoria Geral de Saúde Pública,

executaram o projeto político de Rodrigues Alves implementando uma estratégia

de modernização e saneamento da capital. Largas avenidas foram construídas,

prédios demolidos, os cortiços foram afastados da área central, ambulantes

retirados das ruas e a saúde pública, organizada militarmente, dizimados os

34 BUARQUE DE HOLANDA, S. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras. 1996. pp.166. 35 Correio da Manhã. 05 de agosto de 1904.

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mosquitos da febre amarela, exterminados os ratos, vacinação contra varíola,

milhares de inspeções e desinfecções domiciliares, interdição de casas

comerciais, etc.

Em meio a tudo isso, a ampliação e diversificação de segmentos sociais

desclassificados eram associadas pela intelectualidade à idéia de desordem, tidos

como indesejáveis e perigosos, logo deveriam ser revistos. Questões como essa

aparecem na literatura brasileira, como é o caso do personagem Firmo do

romance O Cortiço, citado por Magali Engels e caracterizado como um mulato

pachola, delgado de corpo e ágil como um cabrito; capadócio de marca,

pernóstico, só de maçadas, e todo ele se quebrando nos seus movimentos de

capoeira... Era oficial de torneiro, oficial perito e vadio: ganhava uma semana para

gastar num dia... (Azevedo, op.cit., pp.49)

Ainda na literatura brasileira José de Alencar mostra claramente a

confluência entre o popular e o aristocrático:

Todas as raças, desde o caucasiano sem mescla até o africano puro; todas

as posições, desde as ilustrações da política, da fortuna ou do talento, até o

proletário humilde e desconhecido; todas as profissões, desde o banqueiro até o

mendigo; finalmente, todos os tipos grotescos da sociedade brasileira, desde a

arrogante nulidade até a vil lisonja, desfilaram em face de mim, roçando a seda e

a casimira pela baeta ou pelo algodão, misturando os perfumes delicados às

impuras exalações, o fumo aromático do havana às acres baforadas do cigarro de

palha36.

Segundo Laura de Mello e Souza, ao contrário dos senhores e escravos,

essa camada social (composta por homens livres, despossuídos, curandeiros,

prostitutas, etc) não possui estrutura social configurada, caracterizando-se pela

fluidez, pela instabilidade (grifo nosso), pelo trabalho esporádico, incerto e

aleatório.

Para o modelo de sociedade ideal essa fluidez e instabilidade mencionadas

não eram vantajosas. As classes sociais deveriam ser bem estabelecidas, cada

qual ocupando seu lugar na pirâmide social, sendo que em nenhuma delas

36 Alencar, J. Lucíola, 8ª ed., São Paulo, Ática, 1983, pp.12-13.

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deveria ter desvios. Foi com base no estudo dessa sociedade preconceituosa e

comportamentalista, numa análise minuciosa da Constituição de 1824 e do Código

Criminal de 1830 que os autores da A Polícia e a Força Policial no Rio de Janeiro

concluíram que:

Desde então, e de maneira intimamente referida à situação policial, aqueles

que buscam organizar a ordem imperial passaram a distinguir três mundos: o

Mundo do Governo, o Mundo do Trabalho e o Mundo da Desordem37.

Cabia, portanto, não só às instituições médicas, como a Faculdade de

Medicina e demais entidades fiscalizadoras, mas agora também à Polícia, a

função de excluir os desvios da sociedade, os que não trabalhavam, os que

vadiavam, os que curavam sem garantias legais, os médiuns que trabalhavam em

suas casas, os espíritas ligados ao Kardecismo que havia chegado em 1865,

enfim, todos que se opusessem às noções de progresso, de ordem e de

civilização, no sentido de conduzir o país à constituição de uma ordem social

burguesa38.

A medicina ainda estava em busca de encontrar sua legitimação e contava

agora com mais uma aliada, a consolidação da psiquiatria como especialidade

médica. Esta esteve essencialmente vinculada ao nascimento do asilo enquanto

instituição psiquiátrica, sendo a inauguração do Hospício Pedro II, no Rio de

Janeiro em 1852, considerada o marco inicial da atividade psiquiátrica no Brasil.

Somente em 1881, porém, numa reforma do ensino médio (decreto 3024),

foi criada a cadeira de Clínica Psiquiátrica e Moléstias Mentais, ocupada na

Faculdade de Medicina pelo catedrático de Medicina Legal, Dr. Nuno de Andrade,

diretor do Hospício. Em 1887, João Carlos Teixeira Brandão (1854-1921),

considerado o primeiro psiquiatra brasileiro, assume a nova cátedra e a direção do

Hospício.

A Psiquiatria buscava seu espaço cultural, científico e institucional dentro da

sociedade brasileira combatendo a “loucura espírita” através do controle

governamental sobre centros espíritas, casas de curandeiros, combate ao dito

37 B. C. Brandão e outros. A Polícia e a Força Policial no Rio de Janeiro, Rio, PUC, 1981, pp.55. 38 Chalhoub, S. Trabalho, Lar e Botequim, São Paulo, Brasiliense, 1986, pp.29.

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charlatanismo, supostamente praticado por médiuns, tratando-os e internando-os

como graves doentes mentais e fizeram isso com apoio da mídia, publicando

teses, artigos e livros em âmbito acadêmico. A explicação para a etiologia das

doenças em geral e mentais, em particular, bem como os modos de tratamento e

prevenção para os curandeiros e espíritas começaram a entrar em contato. Os

primeiros baseavam nas relações entre o sobrenatural, enquanto os segundos

acreditavam no poder dos homens e da ciência, provenientes de uma diferente

visão de mundo calcada no Iluminismo e no materialismo.

Os curandeiros e médiuns representavam um retrocesso à superstição bem

numa época de conquistas intelectuais e científicas, por isso o espiritismo se

pretendia uma religião que tratava da “ciência dos espíritos”, procurando sua

legitimação no campo religioso nacional.

Para o campo médico-científico brasileiro, os curandeiros e médiuns não

passavam de fraude, de primitivismo e agentes desencadeadores da loucura. Os

médiuns receberam várias denominações como sensitivos, sonâmbulos,

histéricos, loucos, charlatães, possuídos, enfim, expressões que marcavam o

preconceito. E nessa situação os médicos e psiquiatras eram os profissionais

competentes para impedir ou dificultar o aparecimento das doenças, pois eles

eram o ícone da ciência institucionalizada. Estabeleceu-se a diferença entre o

médico e o charlatão, uma vez que este último era a figura privada de

conhecimentos científicos adequados, ignorante e pobre.

Interessante de notar que a luta dos médicos não era somente em legalizar

a repressão, mas medicalizar a legislação, ou seja, fazer com que os textos

constitucionais beneficiassem sua classe, excluindo os demais terapeutas

populares desse cenário.

Várias teorias européias influenciaram decisivamente nesse contexto,

sendo o principal referencial teórico dos psiquiatras a Teoria da Degenerescência.

Esta foi uma das teorias mais marcantes do final do século XIX feita por Bénédict-

Augustin Morel (1809-1873), sistematizada no Tratado das Degenerescências, de

1857. Baseava-se no pressuposto que haveria progressiva degeneração mental

conforme se sucedessem as gerações: nervosos gerariam neuróticos, que

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produziriam psicóticos, que gerariam idiotas ou imbecis, até a extinção da

linhagem defeituosa. Essa teoria teve grande repercussão entre médicos e na

sociedade em geral. Morel considerava que a degeneração poderia proceder de

intoxicações (malária, ópio, álcool, epidemias); do meio social; de temperamento

mórbido; de enfermidades morais; de herança; duplamente perigoso seria a

combinação de lesões físicas e mentais. A degenerescência se definia como

desvio de um tipo primitivo perfeito, desvio este transmissível hereditariamente.

(Almeida apud Dalgalarrondo, 1995; Oda, 2001).

As causas da degeneração são pensadas como podendo ser tanto físicas

quanto morais. Como possíveis causas físicas são apontadas a insalubridade dos

climas, a má higiene e a insuficiência das moradias e da nutrição, sendo atribuída

especial importância ao meio enquanto produtor de condições propícias à

instalação de processos degenerativos. Como causas morais, por outro lado,

figuram a ignorância, a avareza, a sede de prazeres, a prostituição, os fanatismos,

entre muitas outras. (Serpa Jr., 1998, pp.18)

Essa teoria foi muito marcada porque associou as causas sociais e

hereditárias para a loucura. Dessa forma, todos os indivíduos que representavam

desvios seriam atuados e medicalizados pela Psiquiatria, pois tal ciência não

poderia permitir que se perpetuasse na sociedade indivíduos com tais

predisposições. Médiuns, curandeiros e todos os “tipos” desequilibrados foram

perseguidos, tendo como finalidade última a extinção de seus poderes de atuação

na sociedade e apropriação deste saber pela classe que emergia, a médica

institucionalizada.

A medicina oficial lutava pelo controle absoluto sobre a doença e a saúde

do corpo e da mente, objetivando destruir ideológica e institucionalmente outros

saberes de cura. Por isso a profilaxia ganhou destaque nos bastidores

acadêmicos. O alvo dos psiquiátricos passou a ser o dos comportamentos:

... condenados pela moral das elites, contra procedimentos definidos como

anti-sociais, contra todos os tipos de conduta que fugisse aos padrões e normas

definidas pela boa ciência. (...) práticas culturais das classes dominadas foram

Page 64: Medicina_e_artes_de_cura

64

estigmatizadas (religiões populares, anarquismo) capazes de deflagrar uma

epidemia psíquica, pondo em risco uma ordem social. (Cunha, 1990:30)

Em 1923 outra estratégia é lançada: a criação da Liga Brasileira de Higiene

Mental pelo psiquiatra Gustavo Riedel, instituição marcada pelo seu caráter

eugênico39. A eugenia foi transformada em um movimento científico e social

vigoroso a partir dos anos 1880 e cumpria metas diversas. Como ciência, ela

supunha uma nova compreensão das leis da hereditariedade humana, cuja

aplicação visava à produção de nascimentos desejáveis e controlados; enquanto

movimento social, preocupava-se em promover casamentos em determinados

grupos e desencorajar certas uniões consideradas nocivas à sociedade, pois

desejavam a “pureza da raça branca”. (Schwarcz, 1993, pp.60)

O ideal eugênico auxiliou a Psiquiatria e, portanto, aos médicos, em seu

processo de repressão aos desviantes. Essa classe desejava institucionalizar e

profissionalizar as ciências cada vez mais com a tentativa de excluir qualquer

explicação com viés sobrenatural para os fenômenos físicos.

Era uma questão que abordava o paradigma de visão de mundo. Antes o

que direcionava a sociedade e o que dava a explicação de mundo às coisas era o

pensamento religioso. Com o advento da modernidade, o que configura as

explicações sobre o universo e orienta a conduta humana são as ciências,

portanto, as formas de se estabelecer a cura deveriam seguir tal padrão.

Schwarcz (2001) confirma o apontamento acima dizendo que esse período foi

marcado pelas descobertas da microbiologia com Pasteur, do evolucionismo, do

social-darwinismo, de pesquisas relacionadas à geologia, botânica, teoria

eugênica, frenologia40, especialização da sociologia, com propostas de análise da

sociedade, o marxismo, o positivismo, entre outros.

39 De acordo com Schwarcz (1993, p.60) o termo “eugenia” – eu: boa; genus: geração – foi criado pelo cientista britânico Francis Galton [...] na época conhecido por seu trabalho como naturalista e geógrafo especializado em estatística. Defendendo a tese de que as capacidades humanas deveriam ser atribuídas à hereditariedade e não à educação, em 1869 Galton publicou Hereditary genius, livro considerado fundador da eugenia. A eugenia surgiu num contexto histórico de positivismo, naturalismo, materialismo, organicismo e evolucionismo, defendendo a supremacia dos fatores genéticos na determinação do comportamento humano. 40 Teoria muito influente no século XIX que correlacionava as faculdades mentais com o tamanho de certas áreas cerebrais. Assim, a “magnitude de um traço de personalidade (y) era em função do tamanho de uma área anatômica (x) e a relação governada por uma constante (r)” (Berrios, 1996:18)

Page 65: Medicina_e_artes_de_cura

65

O mecanismo mais profícuo de acabar com os curandeiros e médiuns seria

conhecê-los bem retirando seu aspecto místico e colocando-os na categoria de

desclassificados, ao mesmo tempo em que mostram para a sociedade o grau de

periculosidade que eles tinham associando a Teoria da Degenerescência (Morel) e

a Eugenia, configurando poder aos médicos acadêmicos, “legítimos conhecedores

das ciências”. Para isso utilizaram de três argumentos não só no Brasil, mas

também na Europa e nos Estados Unidos: (Almeida, 2007, pp. 54)

1. Todos os fenômenos mediúnicos eram uma fraude.

2. Mediunidade gerava loucura.

3. Explicação material de que todos os fenômenos seriam provenientes da

própria mente do indivíduo, a partir de uma desagregação do subconsciente.

Todos os argumentos eram especialmente trabalhados para acabar com os

indivíduos que representavam a degradação da sociedade e futuramente seriam

germens da desordem. Se os médicos permitissem que esses movimentos se

espalhassem, perderiam sua força de expressão não conseguindo legitimar sua

ciência nos trópicos e também permitiriam que essas pessoas transmitissem a

carga genética degenerada às futuras gerações, semeando uma sociedade sem

controle. Quanto a isso um argumento forte foi o de Marques, que fala

especificamente do espiritismo, mas que colocamos no trabalho como abrangendo

os médiuns e curandeiros em geral:

O combate ao espiritismo deve ser igualado ao que se faz á sífilis, ao

alcoolismo, aos entorpecentes (ópio, cocaína, etc), á tuberculose, á lepra, ás

verminoses, emfim, a todos os males que contribuem para o enfraquecimento,

para o aniquilamento das energias vitais, psíquicas, do nosso povo, da nossa raça

em formação. (Marques, 1929:111)

Ainda nessa toada, Duhem classificava os médiuns e curandeiros não

apenas como loucos, mas também como charlatães, fraudadores e exploradores

da credulidade pública:

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66

Os enganadores e os trapaceiros que fazem do espiritismo apenas uma

oportunidade de exploração; eles são passíveis de serem levados aos tribunais.

(Duhem, 1904:17)

Alguns médicos chegaram ao exagero de dizer que o diagnóstico da

doença mediúnica poderia ser realizado por meio do exame do útero, ou do

conteúdo químico da urina ou das crenças e comportamentos sociais dos

pacientes. ( Marvin41, 1874, apud Zingrone, 1994).

Marvin afirmou que a doença passava por quatro estágios consecutivos. Na

primeira geração, o indivíduo apresentaria a síndrome da mediomania, ligada aos

quadros histéricos. Na segunda, passaria para a Coreia42 e a melancolia. Na

terceira, o quadro assumiria as características da franca insanidade (demência) e

na quarta geração a completa idiotia. (Zingrone, 1994:105)

William A. Hammond43 foi o primeiro neurologista a incluir num Tratado de

Neurologia (1886) a mediunidade como uma doença, sob o nome de “êxtase”,

mau funcionamento do sistema nervoso. Sua tese foi publicada posteriormente em

jornais e revistas para ganhar maior notoriedade entre a população e não ficar

apenas nos círculos acadêmicos.

Como vimos a Psiquiatria no Brasil auxiliou os médicos acadêmicos que

aqui já se encontravam tentando legitimar seu exercício não apenas na lei, pois

isso já haviam conseguido desde 1832, mas legitimar suas atividades perante a

sociedade.

Todavia, como viemos frisando insistentemente, essas tentativas em sua

maioria eram em vão. Era praticamente impossível acabar com os movimentos de

curandeirismo e mediunismo, pois a comunicação com espíritos já era parte do

41 Frederic Rowland Marvin (1847- 1919) religioso, poeta e médico norte-americano, defendeu a idéia de uma síndrome particular que chamava de “mediomania” em seu curto livro The Philosophy os Spiritualism and the Pathology and Treatment of Mediomania (1874). Seguindo as antigas idéias de causação uterina das afecções e, particularmente, da histeria, Marvin acreditava que a mediunidade representava um caso de patologia uterina. Essas idéias devem ser compreendidas no contexto das crenças na inferioridade da mulher quando comparada ao homem. (Russet 1989; Smith-Rosenberg e Rosenberg, 1973). Artigo Perspectivas Históricas da influência da mediunidade na construção de idéias psicológicas e psiquiátricas encontrado na Revista on-line de Psiquiatria Clínica em 22.4.2008. 42 Doença nervosa que obriga a movimentos convulsivos e freqüentes e cujo nome popular é dança de São Vito. (Almeida, A.A. S. de. Uma Fábrica de Loucos: Psiquiatria x Espiritismo no Brasil (1900-1950), 2007. 43 William Alexander Hammond (1828-1900) neurologista norte-americano e médico-cirurgião do exército americano. Junto com George M. Beard (1839-1883) era ativo indutor da patologia da mediunidade.

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imaginário espiritual brasileiro (povos indígenas e africanos desde muito tempo),

com profunda aceitação popular. Beatriz Weber (1999) destaca que apenas a falta

de médicos não justifica a busca por outros métodos de cura. Outros fatores

somavam-se a isso, como a não consolidação da Medicina, tida apenas como

mais uma opção e não a principal forma de cura. Além disso, os tratamentos dos

médicos acadêmicos eram pouco confiáveis, seguro e eficazes, além de

agressivos e dolorosos (sangrias, purgações, cirurgias). As outras práticas de cura

geravam menos desconforto e mais alívio e conforto espiritual por serem

conhecidas e fazerem parte da crença pessoal dos doentes.

Dessa forma, eles continuavam a estabelecer suas relações de

curandeiros-pacientes, como atesta Weber (1999) em seu livro As artes de curar.

Medicina, Religião, Magia e Positivismo na República Rio-Grandense – 1889-

1928:

Diversos grupos sociais forjaram suas formas de tratar com a doença e com

os médicos, seja pelo misticismo, homeopatia ou espiritismo, criando verdadeiros

centros de cura. Para esses grupos, a saúde significava, mais do que simples

bem-estar físico. Era também conforto, consolo, socialização, proteção e

explicação para seus problemas, por meio de um universo simbólico reconhecível.

(pp.227)

É importante deixarmos claro que não fizemos distinção entre os

curandeiros e médiuns espíritas na questão relacionada à perseguição e

associação dessas figuras à doença mental e desvio de comportamento. Isso não

nos permite afirmar que eram pessoas iguais, pois sabemos que muitos

curandeiros não faziam uso de processos mediúnicos. Muitos deles eram

raizeiros, benzedores, utilizando-se apenas dos elementos naturais, tais como

ervas, condimentos, entre outros para realizarem sua cura. Outros curandeiros,

porém, já mais afetos à feitiçaria eram também médiuns, sendo que as curas às

vezes eram realizadas a partir do contato com uma entidade manifesta em seu

corpo, à qual utilizava também elementos da natureza. Mais uma vez reiteramos

que nosso intento não é fazer diferenciações entre as várias nomenclaturas dos

terapeutas populares, até porque todos eram ligados à cura e acreditamos que

Page 68: Medicina_e_artes_de_cura

68

todos fazem parte igualmente do imaginário e da realidade brasileira. Todas as

figuras são igualmente importantes e representaram e representam ainda hoje

atuação efetiva com determinados segmentos sociais. Temos que tais ações são

benéficas para nossa coletividade, pois de uma maneira ou de outra a realidade

espiritual vai se aproximando das pessoas na linguagem exata que se identificam

e possam entender. Isso não implica que um trabalho é mais importante que o

outro, ou que tais terapeutas significam a parte primitiva da amalgamação das

culturas ameríndia, africana e indo-européia. Dentro das possibilidades da época e

das condições em que se encontravam eram o melhor que poderiam fazer.

Também não afirmamos que o trabalho dessas figuras hoje é o mesmo que de um

ou dois séculos atrás, pois as transformações ocorridas na sociedade abrangem o

todo e é natural que isso ocorra com a parte cultural-religiosa. Aliás, é da natureza

desses movimentos acompanharem naturalmente as mudanças, eles não são

estáticos, não possuem dogmas, como escrito anteriormente, faziam parte da

classe fluida da sociedade, sendo essa fluidez não volubilidade, mas adaptação às

realidades pertinentes.

O certo é que felizmente os terapeutas populares continuaram seus

trabalhos num movimento constante de resistência às inúmeras tentativas de

deslegitimação de suas atividades.

Em primeira instância colocamos que a primeira fase do embate médico

aos curandeiros havia sido relacionada com os órgãos criados para a fiscalização

do exercício de curar. Em um segundo momento, junto ao espiritismo, associaram

a figura do curandeiro ao charlatão e ao doente. E paralelamente a isso, houve a

questão da liberdade religiosa presente nos textos constitucionais. Veremos agora

especificamente alguns desses momentos.

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Capítulo.VII– Liberdade religiosa nos textos constitucionais e códigos penais.

Perseguição aos curandeiros e demais terapeutas populares

Já tivemos a oportunidade de ver que o período imperial, o qual se estende

da independência política do Brasil, em 1822, até a proclamação da república em

1889, foi marcado pelo consórcio entre a Igreja e o Estado. Eram duas forças em

uma só. Faziam acordos e conchavos para que ambos saíssem beneficiados em

suas artimanhas políticas e econômicas. Na constituição de 1824, portanto nesse

período, em seu artigo quinto fica explícito a imposição a apenas um culto, o

católico. Nenhum outro poderia ser ritualizado publicamente:

A Religião Catholica Apostólica Romana continuará a ser a Religião do

Império. Todas as outras religiões serão permitidas com seu culto doméstico ou

particular, em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior de tempo.

À parte da frase outras religiões serão permitidas demonstra uma

pseudoliberdade de expressão. Dá a possibilidade das pessoas manifestarem

suas crenças desde que sejam a quatro paredes em suas casas, quando sabemos

que até isso sofreu censura posteriormente.

Nesta época os curandeiros, feiticeiros, raizeiros, benzedores, andavam

livremente pelas cidades a curarem e a manifestarem suas crenças, momento em

que conflui a eles a institucionalização da medicina. Além disso, com a vinda da

família real portuguesa ao Brasil e a abertura dos portos a nações amigas, por

meio do Tratado de Comércio e Navegação44 comerciantes ingleses

estabeleceram a Igreja Anglicana no país em 1811. Seguiram a implantação de

igrejas de imigração quando os alemães trouxeram o luteranismo em 1824,

momento exato da Constituição.

Com medo de perder seu poder de atuação e domínio com o volume de

terapeutas populares e ao mesmo tempo com o protestantismo em ação, a Igreja

44 Acordo entre Portugal e Inglaterra. Estabelecia uma taxa de apenas 15% sobre a importação de produtos ingleses. Para avaliar o significado dessa medida, basta lembrar que a taxa de importação de produtos portugueses era de 16% e a de outras nações de 24%. Com esse tratado os ingleses praticamente eliminavam a concorrência no mercado brasileiro, dominando-o por completo.

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pauta em constituição, na tentativa de que o instrumento legal lhe assegurasse o

poder.

Em 1827 a Santa Sé reconheceu o direito de padroado com todas as

regalias concedidas anteriormente à coroa portuguesa, inclusive o beneplácito, ou

seja, necessidade da licença do governo brasileiro em publicar documentos

provenientes da Santa Sé.

Não podemos nos esquecer que algumas décadas depois, em 1869, a

Igreja percebe novamente o risco que corre com movimentos divergentes ao seu e

que propunham liberdade de pensamento e expressão, isentos de dogmas, e

convoca o Concílio Vaticano I. Este foi proclamado por Pio IX (1846-1878). As

principais decisões do Concílio foram receber uma Constituição dogmática

intitulada Dei Filius, sobre a Fé católica e a Constituição dogmática Pastor

Aeternus, sobre o primado e infalibilidade do Papa quando se pronuncia “ex-

catedra”, em assuntos de fé e moral.

Já o Brasil vivia um momento bem conturbado em todos os aspectos.

Culturais, uma vez que a confluência de povos gerava algumas vezes conflitos;

sociais, pois que a desigualdade era cada vez maior, com uma elite centralizadora

em detrimento de uma maioria miserável, enfim, o cenário não era confortável. O

conflito político que se seguiria era ainda menos animador. Em 1870 é publicado

no Rio de Janeiro o Manifesto Republicano no periódico A República em 13 de

dezembro, o qual considerava a monarquia uma instituição decadente.

A monarquia se aliava à aristocracia escravista defendendo os antigos

princípios e indo frontalmente contra aos cafeicultores do Oeste paulista que se

associaram às camadas médias. Este último grupo fundou o Partido Republicano

Paulista45 originário da Convenção de Itu em 1873. Desta convenção que foi a

primeira republicana no Brasil ecoou uma grande campanha liberal, que culminou

com a implantação do regime republicano federativo. Este partido que fora criado

buscava autonomia política (federalismo), exigia reformas modernizantes tais

como o abolicionismo e a industrialização.

45 Primeiro partido republicano verdadeiramente organizado, que posteriormente se aliou aos futuros partidos republicanos fluminense e mineiro, bem como aos militares e à Igreja Católica, culminando com a Revolução de 1891.

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Na época o governo marginalizava o Exército das decisões. Por tal razão

alguns jovens oficiais passaram a criticar o governo e eram diretamente punidos.

Então, tentando remediar a situação, vários oficiais tiraram seu apoio ao Império e

aderiram aos ideais republicanos positivistas. Consideravam a monarquia

instituição anacrônica e defendiam o lema Ordem e Progresso. A Ordem estaria

vinculada à ditadura republicana do presidente (colocamos dessa forma, pois

veremos que mesmo com o advento da República a situação pouco se modificou

em prol de uma melhoria social). E o Progresso se associava às tentativas de

acelerar a industrialização que já havia começado por volta de 1850 com a

modernização econômica capitalista. A exportação de café para a Europa e

Estados Unidos gerou um processo de acumulação de capitais no sudeste, os

quais foram investidos no setor de serviços: abriram-se bancos, ferrovias,

comércio, telégrafo, telefonia, eletricidade, bondes e algumas indústrias na década

de 1880 no Rio de Janeiro. Tudo era feito na tentativa de formar um modelo

liberalizante, com ideais avançados, preparando o advento do Brasil como modelo

de nação desenvolvida, assemelhando-o às européias.

Sendo assim, a Constituição de 1889 demonstra a separação entre Estado

e Igreja, mas já em 1870, conflitos entre essas duas instituições eram freqüentes e

se consolidavam principalmente porque o Estado não aceitava mais a condição de

enriquecimento da Igreja:

Um problema que agitou todo esse período histórico foi o dos bens das

ordens religiosas ´tradicionais´46. Em 1870 se torna a repisar na proposta de

Concordata do Governo Imperial com a S. Sé para a extinção das ordens

monásticas no Brasil e que os ´bens dos conventos extintos serão aplicados á

reforma e grande melhoramento dos seminários´. [...] o jornal católico da Bahia

objetava que ´esses bens das ordens religiosas são o El´Dourado do Governo do

Brasil. [...] em última analise a hostilidade do Governo imperial às ordens

religiosas se prendia ao problema desses bens. [...] o que tem atraído sobre ele os

46 As ordens religiosas tradicionais eram: “beneditina, a carmelita, a franciscana, a mercedária, e a capuchinha, como ordens religiosas masculinas. As ordens religiosas femininas eram as clarissas, as ursulinas, as concepcionistas e as carmelitas descalças.” Beozzo, José Oscar (Coord). História da Igreja na América Latina: História da Igreja no Brasil. V.2,2: Segunda Época

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anátemas desses governos é a moeda que a piedade dos fiéis tem amontoado

nos conventos, e esses frades, na maior parte, tão sabiamente administram. O

Estado não suporta essas lições práticas de economia; e o melhor meio de ver-se

livre delas é matando o seu contendor, apoderar-se da cadeira47.

Finalmente no Decreto 199 A, amplia a liberdade religiosa:

Proíbe a intervenção da autoridade federal e dos Estados federados em

matéria religiosa, consagra a plena liberdade de culto, extingue o padroado e

estabelece outras providências.

A chegada do espiritismo junto ao crescente número de adeptos dos

terapeutas populares fez com que o primeiro código penal republicano48 os

enquadrasse em seu Capítulo III “Dos Crimes Contra a Saúde Pública”:

Art. 156 – Praticar a medicina em qualquer dos seus ramos, a arte dentária

ou a farmácia; praticar a homeopatia, a dosimetria, o hipnotismo ou magnetismo

animal, sem estar habilitado segundo as leis e regulamentos:

Penas – de prisão celular por uma a seis meses e multa de 100 $ a

500$000.

Parágrafo Único – Pelos abusos cometidos no exercício ilegal da medicina

em geral, os seus autores sofrerão, além das penas estabelecidas, as que forem

impostas aos crimes a que derem causa.

Art. 157 – Praticar o Espiritismo, a magia e seus sortilégios, usar talismãs e

cartomancias para despertar sentimentos de ódio ou de amor, inculcar cura de

moléstias curáveis ou incuráveis, enfim, para fascinar e subjulgar a credulidade

pública:

Penas – de prisão celular por um a seis meses e multa de 100$ a 500$000.

Parágrafo 1º: Se por influência, ou em conseqüência de qualquer destes

meios, resultar ao paciente privação ou alteração temporária ou permanente das

faculdades físicas:

Penas – de prisão celular por um a seis anos e multa de 200$ a 500$000.

47 BEOZZO, José Oscar (Coord). Historia da Igreja na América Latina: História da Igreja no Brasil. V.2,2: Segunda Época – Século XIX. 3.ed. Petrópolis: Vozes, 1992. pp. 201. 48 O Código Penal de 1890 continha 412 artigos e as matérias nele estavam distribuídas em quatro livros. O primeiro tratava dos crimes e das penas, o segundo dos crimes em espécie, o terceiro das contravenções em espécie, e o quarto, cuidando das disposições gerais.

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73

Parágrafo 2º: Em igual pena e mais na privação do exercício da profissão

por tempo igual ao da condenação incorrerá o médico que diretamente praticar

qualquer dos atos acima referidos ou assumir a responsabilidades deles.

Art. 158 – Ministrar ou simplesmente prescrever, como meio curativo para

uso interno ou externo e sob qualquer forma preparada, substância de qualquer

dos reinos da natureza, fazendo ou exercendo assim, o ofício denominado

curandeiro (grifo nosso):

Penas – de prisão celular por um a seis meses e multa de 100$ a 500$000.

Parágrafo Único: Se do emprego de qualquer substância resultar a pessoa

privação ou alteração temporária ou permanente de suas faculdades físicas ou

funções psicológicas, deformidade ou inabilitação do aparelho orgânico ou, em

suma, alguma enfermidade:

Penas – de prisão celular por um a seis anos e multa de 200$ a 500$000.

Se resultar a morte:

Penas – de prisão celular por seis a vinte e quatro anos.

Fizemos questão de colocar os artigos na íntegra para que fique claro o

processo de deslegitimação e exclusão da categoria dos curandeiros em prol da

medicinalização ( neologismo nosso) da sociedade.

Se por um lado a Constituição promovia a liberdade religiosa, o Código

Penal era responsável por banir os maus elementos da sociedade, aqueles que

poderiam trazer problemas à ordem pré-estabelecida. Era uma ambigüidade

construída, pois que a Constituição republicana não poderia ter em seus textos

demonstrações de preconceitos e exclusões, já que seus preceitos diferenciavam,

pelo menos aparentemente, do regime monárquico anterior. Então, delegavam à

polícia a responsabilidade de banir o que não fosse interessante para a ordem

estabelecida. Escravos recém libertos, homens livres desprovidos de bens,

prostitutas, curandeiros e terapeutas populares de diversos matizes não

auxiliariam o país a promover a imagem de desenvolvimento, primeiro em função

de suas origens étnicas, uma vez que na época a eugenia era ideologia dominante

e também devido a sua miséria financeira, pois que não tinham possibilidade

alguma de servirem como mercados consumidores.

Page 74: Medicina_e_artes_de_cura

74

Logo após a proclamação da república predominaram interesses ligados à

oligarquia latifundiária, com destaque para os cafeicultores. Essas elites

influenciavam o eleitorado e fraudavam as eleições (“voto de cabresto”), impondo

seu domínio sobre o país. Por esta razão, a Constituição de 1891 permanece com

a pseudoliberdade:

Art. 11. É vedado aos Estados como à União:

Parágrafo 2º: Estabelecer, subvencionar, ou embaraçar o exercício de

cultos religiosos.

Art. 72, Parágrafo 3º: Todos os indivíduos e confissões religiosas podem

exercer pública e livremente o seu culto, associando-se para este fim e adquirindo

bens, observadas as disposições do direito commum.

Art. 72, Parágrafo 28º: Por motivo de crença ou funcção religiosa, nenhum

cidadão brazileiro poderia ser privado de seus direitos civis e políticos, nem se

eximir do cumprimento de qualquer dever cívico.

Em 1930, contexto político de muita conturbação culminando com o Golpe

de Estado, Getúlio Vargas assume o poder. Os primeiros anos de governo

caracterizaram-se por um governo provisório (sem constituição). Apenas em 1933,

após a derrota da Revolução Constitucionalista de 193249, em São Paulo, é que foi

eleita a Assembléia Constituinte que redigiu a nova constituição. A constituição de

1934 mantinha a separação entre Igreja e Estado e a liberdade religiosa,

entretanto na próxima constituição, a de 1937 (Getúlio Vargas então no comando

do Estado Novo50) influenciada pelo totalitarismo nazi-fascista, é excluída a

liberdade religiosa e a garantia de segurança aos civis.

Nessa época os curandeiros, feiticeiros, raizeiros já não atuavam

isoladamente. Houve um processo de “aglutinação” dessas figuras pelos

movimentos espirituais tais como a Umbanda em suas diversas Escolas51, Culto

49 Movimento armado ocorrido no Brasil entre julho outubro de 1932 visando à derrubada do governo provisório de Getúlio Vargas e à instituição de um regime constitucional após a supressão da Constituição de 1891 pela Revolução de 1930. 50 Regime político ditatorial de 1937 a 1945 do então presidente Getúlio Vargas. Seu nome foi tirado da ditadura de Antonio de Oliveira Salazar em Portugal. 51 Escola Umbandista: conceito cunhado e defendido por Pai Rivas (fundador da Primeira Faculdade de Teologia Umbandista, localizada em São Paulo) desde 1998. O conceito de Escola Umbandista aplica-se a um maior ou menor aprofundamento da doutrina umbandista que se manifesta em Epistemologia, Ética e Método.

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de Nação Africana, entre outros. A importante deixarmos claro que a Umbanda

não surgiu nesse contexto, ela existia há muito tempo e hoje já temos registros de

pessoas que, mediunizadas, prestavam a caridade com características do

movimento que conhecemos atualmente. Mas voltando, o fato dos curandeiros,

raizeiros, benzedores, feiticeiros passarem a fazer parte desses movimentos por

questões de afinidades espirituais e pelas formas de praticarem sua cura, não os

liberou das perseguições e restrições de manifestarem suas crenças. As religiões

afro-brasileiras não os asseguravam seu exercício, até porque eram

veementemente atacadas pelo governo getulista. Durante esse período, Getúlio

Vargas fez uma verdadeira caça aos terreiros, uma vez que estava associado à

Igreja Católica.

Os terreiros de Umbanda viveram sua fase mais difícil. Para que pudessem

trabalhar, eram obrigados a se registrar nas delegacias e a efetuar o pagamento

das chamadas “Taxas de Proteção”, que eram verdadeiras extorsões. Os que não

se registravam, atuavam na clandestinidade, correndo o risco de serem

surpreendidos pelas batidas policiais, as quais fechavam literalmente os terreiros,

não permitindo mais sua atuação. Vemos que o movimento de eliminação das

pessoas consideradas impróprias para a sociedade que ocorria no início da

institucionalização médica no país é o mesmo da perseguição dos terreiros de

Umbanda, momento em que fazem a distinção entre alto e baixo espiritismo e que

outra classe de indivíduos aparecia: a cultural, formada por antropólogos e

sociólogos, entre os quais destacamos Gilberto Freyre, Nina Rodrigues, Arthur

Ramos, Edison Carneiro e René Ribeiro (lembrando que muitos deles eram

também médicos).

O mediunismo, as diversas práticas curativas, o espiritismo passam a fazer

parte do discurso que institucionaliza as ciências sociais. Esses temas, antes

trabalhados pela medicina ganham status de “sociais” e “culturais”. Entre outras

contribuições Roger Bastide propõe uma psicologia das classes sociais utilizando

dois argumentos centrais. O primeiro era a distinção entre as diversas práticas de

espiritismo e o segundo fazia menção à natureza do transe. Para nós basta que

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76

analisemos o primeiro argumento em que ele divide o espiritismo de acordo com a

interpretação que cada classe social lhe confiou.

Assim, segundo ele teríamos:

1. Espiritismo-Ciência: classes altas, elite.

2. Espiritismo-Religioso: classes médias e brancas, caracterizado pelo

moralismo e intelectualismo. Organizado em igrejas sobre a dogmática kardecista.

3. Espiritismo de Umbanda: classes pobres e negras. Religião ritualística e

não organizada.

Não fica difícil perceber pela exposição acima o porque da exclusão dos

rituais de Umbanda (ainda que não consideremos a Umbanda apêndice do

espiritismo kardecista ou das religiões africanas). A formação da Umbanda é muito

mais ampla e complexa do que esse conceito simplista defendido pelos `cientistas

sociais´ que viam a religião desde fora. A Umbanda se constituiu sim das classes

marginalizadas de todos os tempos, pobres, negros, índios, imigrantes indo-

europeus, excluídos sociais de diversos matizes que se juntaram e consolidaram

uma realidade que não é mais a união de suas culturas, compõe-se de uma

realidade acima, não centrada nas partes. A Umbanda defende hoje a figura do

mestiço, aquele que não é mais índio, branco, negro, é todos eles em uma

realidade superior, não significando isso sincretismo ou somatória das suas

partes.

.

Page 77: Medicina_e_artes_de_cura

77

Capítulo VIII – Umbanda a partir de 1950

Até o momento percebemos que os curandeiros, feiticeiros, raizeiros foram

aglutinados pelos movimentos espirituais mencionados tais como a Umbanda e o

Culto de Nação segundo suas afinidades. Os curandeiros podem ter sido

aglutinados pelos rituais da pajelança, os feiticeiros aos rituais de Umbanda

Omolocô ou Quimbanda, os raizeiros aos rituais do Toré e Xambá, bem como a

Umbanda Traçada. Enfim, não nos compete fazer tais definições até porque isso

demandaria tempo de estudo junto à historiografia brasileira e a história da

formação desses cultos, daí a dificuldade em encontrar elementos suficientes para

esclarecer uma tese. O fato é que eles não mais atuavam isoladamente,

encontrando identidade e força nesses rituais, uma vez que antes não tinham

organização e estrutura para definir-se como um segmento religioso.

A Umbanda ganha novos rumos a partir do final da década de 50 e início da

de 60 depois de muito atacada e vilipendiada pelos órgãos públicos e mesmo pela

mídia que fazia um trabalho forte de ridicularização dos umbandistas.

Já havia muitos escritores umbandistas que faziam sua parte tentando

defender os fundamentos da Umbanda, mas foi com W.W. da Matta e Silva

(Mestre Yapacany) que o movimento umbandista presenciou uma doutrina

escorada em sólidos fundamentos desde os mais simples aos mais complexos,

isto é, desde os aspectos ritualísticos, da magia e da mediunidade, até os ângulos

mais profundos de seu cabalismo, de sua metafísica e de sua filosofia hermética52.

W.W. da Matta e Silva modificou a visão tida sobre a Umbanda,

demonstrando sua universalidade, numa época de criação de verdadeiros grupos

de interesses umbandistas, que defendiam nada mais que os particularismos

dentro desse grande movimento. Inclusive ele foi contra a esse processo e

veementemente atacado. Porém quem assim o fez foi por não tê-lo interpretado

corretamente. Mestre Yapacany (seu nome iniciático ou sua djina) era contra os

52 Matta e Silva, W.W. Macumbas e Candomblés na Umbanda.2.ed.pp.11.Rio de Janeiro: Freitas Bastos. 1977

Page 78: Medicina_e_artes_de_cura

78

sectarismos dentro da Umbanda os quais acabavam por fomentar disputas e

rivalidades egóicas, fazendo prevalecer uma Umbanda dos homens e não dos

Espíritos. Defendia uma Umbanda em seus lídimos aspectos, mas não menos

respeitosa com a diversidade, ou seja, regida pelos fundamentos superiores.

Com a exposição de tais fundamentos a partir da obra Umbanda de Todos

Nós (1956) e as demais subseqüentes, a Umbanda passou a ter o olhar não só

dos que eram seus adeptos, mas de outras pessoas e de outras classes sociais,

que liam e reconheciam o valor de seus escritos. A Umbanda deixou de ser a

religião apenas dos excluídos para ser a religião de ricos e pobres, cultos e

incultos, letrados e iletrados, brancos, negros, ameríndios, enfim, abarcou todos

os graus de percepção da realidade.

Paralelamente ao trabalho de W.W. da Matta e Silva, F. Rivas Neto, já

citado em nosso trabalho e futuro iniciado de Mestre Yapacany vivenciava várias

percepções da Espiritualidade que o possibilitou ter uma ampla visão da Umbanda

em suas diversas Escolas.

Rivas Neto teve sete mestres de Iniciação e explica detalhadamente toda

sua história em seu livro Sacerdote Mago e Médico (2002). Faremos uma breve

explanação para que consolidemos nosso pensamento com o trabalho que vem

realizando atualmente.

Desde pequeno seus pais lhe propiciaram contato com a espiritualidade. O

irmão de seu pai e seu cunhado eram prosélitos do Culto de Nação. Este último é

considerado por ele como seu primeiro mestre: Sr. Ernesto de Xangô – Babalorixá conceituado da Nação Ketu (Yorubá ou Nagô). Foi com ele que

“aprendi” os awôs do axé, das “comidas de santo” (o ajeum, como ele dizia), como

prepará-las para dar no ossé semanal, os rituais de padê; o xirê e, principalmente,

o bori que antecedia a feitura; os ebós a exu; as qualidades de exu (olobé, elebó,

jelú. Alaketu, enugbarijó, lonan e outras); o erindilogun e o opelê-ifá, a alubaça

(alubosa = cebola); como partir (cortar) o obí para o jogo; como usá-lo no bori

etc.(Rivas Neto, 2002, pp.30).

Page 79: Medicina_e_artes_de_cura

79

Os familiares maternos, tios e tias eram respeitáveis dirigentes espirituais,

sendo um deles considerado seu segundo mestre: Sr. Fernando Terni – dirigente de Centro Espírita Kardecista.

Seus pais começaram a freqüentar mais diretamente a Umbanda, assim o

levando para conhecer o terreiro ao qual prestavam saudações. Neste local

conheceu seu terceiro mestre: Sr. Romualdo Guimarães – dirigente do Centro Espírita Ubiratan, o qual fazia uma “Umbanda Kardecista”. O Sr. Romualdo, a

quem muito respeitava, era um senhor de uns 60 anos de idade. Hoje tenho

consciência que o centro tinha fortes influência da Umbanda, pois quem “baixava”

era o espírito que dava o nome de Ubiratan, expressando-se de forma simples,

com um sotaque próprio dos indígenas brasileiros (será?), sendo o dirigente

espiritual dos trabalhos lá desenvolvidos. (op.cit.pp.31)

O Sr. Romualdo dizia que o então menino Franscico Rivas Neto era

médium de Umbanda, orientando seus pais que o levassem a outros “centros”, a

uma Tenda de Umbanda, pois sua grande tarefa seria nesse movimento. De forma

alguma Sr. Romualdo proibiu que ele fosse à roça de Ernesto de Xangô, nem

tampouco que deixasse de freqüentar seus trabalhos, mas vaticinou que no

momento oportuno encontraria um Mestre de Iniciação que o consagraria em sua

tarefa.

Aquiescendo aos pedidos e orientado também por sua mãe Pai Rivas

conheceu seu quarto mestre: Dr. Carlos Cruz – dirigente da Tenda Xangô Kaô. Este foi seu primeiro contato direto com a Umbanda e muito interessante

para nosso trabalho é deixarmos registrado que Sr. Carlos era um médico e

umbandista, ou seja, prova inconteste de que a Umbanda já assumira todos os

setores da sociedade. Foi nesse local que recebera sua primeira manifestação

mediúnica, aos doze anos de idade. A Entidade apresentou-se como uma

criança, denominando-se Doum. No mesmo dia, quando Doum subiu, “desceu” em

terra o Caboclo Angarê de Ogum. Esse caboclo, segundo meus pais, logo foi

cantando seu “ponto” e disse ter vindo em nome de Caboclo Urubatão da Guia

que, quando eu estivesse preparado, assumiria a responsabilidade pelo meu

mediunismo. (op.cit. pp. 39)

Page 80: Medicina_e_artes_de_cura

80

Pai Rivas permaneceu trabalhando com Dr. Carlos por três meses, quando

por intermédio novamente de seus pais, conheceu seu quinto mestre: Sr. Antônio Romero – dirigente da Tenda de Umbanda do Caboclo Pedra Branca. Além do caboclo citado, era médium ímpar de Pai Serafim, Pedrinho e

Exu Tiriri. No local citado vimos o Caboclo Pedra Branca fazer verdadeiros

milagres, tanto desmanchando trabalhos de Magia Negra, como encaminhando

pessoas desnorteadas, levantando os doentes, amparando os fracos, animando

os desanimados e fortalecendo ainda mais os fortes. A partir daí começamos abrir

nosso coração à Umbanda pois inútil seria negar os fenômenos que

presenciamos, como muitas outras coisas maravilhosas vistas na clarividência...

que cores... que sons, inexistentes aqui nesta terra e que me fizeram amar as

propostas da Umbanda.(op.cit. pp.41)

Sr. Antônio posteriormente fez questão que Pai Rivas conhecesse na época

o médium do Caboclo Guarantan e do Pai Sebastião do Congo, um senhor de

aproximadamente 35 anos. Foi então que em 1967 conheceu seu sexto mestre: Sr. Roberto Getúlio de Barros – dirigente da Casa de Caridade do Caboclo Guarantan. No primeiro dia em que foi, sem nem mesmo saber que Pai Rivas

estava lá, o Caboclo Guarantan incorporado chamou em bom tom o “cavalo” do

Sr. Urubatão da Guia, dizendo que o mesmo era chefe de sua falange. Foi aí, que

Sr. Urubatão iniciou sua tarefa tal qual tinha sido anteriormente vaticinada pelo

Caboclo Angarê.

Pai Rivas trabalhou por um período junto ao terreiro do Caboclo Guarantan

já consagrado e ordenado sacerdote, quando recebeu agô de Caboclo Urubatão

da Guia, de Caboclo Guarantan e de Caboclo Pedra Branca para montar seu

templo no fundo da casa de seus pais com 17 anos.

Pai Rivas continuou seus trabalhos mediúnicos e como não poderia ser

diferente também seguia os passos da trilha profissional. Com 19 anos

freqüentava uma Faculdade de Engenharia pela manhã e de Física pela noite,

mas não encontrou nelas satisfação e completude o suficiente. Foi quando

encontrou uma profissão que aliasse a tarefa espiritual e sua vocação: Resolvi,

ouvindo meu íntimo, minhas predisposições naturais e as intuições de Sr.

Page 81: Medicina_e_artes_de_cura

81

Urubatão da Guia, fazer medicina, pois queria auxiliar na erradicação da dor e do

sofrimento; constrangia-me pungentemente a dor do próximo, queria de todas as

formas possíveis exterminá-la, manter a vida. Assim, depois de um ano de

estudos intensos, ingressava no curso de medicina.(op.cit. pp,45)

Já trabalhando e estudando, Pai Rivas jamais largou a Umbanda, ao

contrário, encontrava Nela sua razão de vida, preenchimento de seus vazios mais

íntimos. Neste momento o Caboclo Sr. Urubatão da Guia orientou seu filho a

buscar um local fora de sua residência, pois que entre outras razões este já estava

ficando muito pequeno para os atendimentos. Na inauguração do novo templo, em

1970, recebeu a visita de muitos Pais e Mães de Santo, entre os quais

encontrava-se Sr. Roberto Getúlio de Barros e também Sr. Isaías, uma alma

bondosa de predicados insofismáveis em seu coração, com conhecimentos

irrefutáveis sobre a “Lei de Umbanda” (op.cit. pp.47). Este senhor freqüentava

uma loja de artigos religiosos e alguns dias após a inauguração do templo,

encontraram-se lá, quando o mesmo afirmou que alguma coisa a Umbanda

reservava a Pai Rivas, inclusive a tarefa de escrever. Neste momento, Pai Rivas

direcionou seu olhar para uma obra de nome Doutrina Secreta de Umbanda do

autor W.W. da Matta e Silva, à qual foi orientada a ser lida por Sr. Isaías junto a

Umbanda de Todos Nós, sendo por este senhor denominada de a “Bíblia da

Umbanda”.

Pai Rivas leu as duas obras e admirado com a semelhança dos

fundamentos da Lei de Pemba exposados por W.W. da Matta e Silva e Caboclo

Sr. Urubatão da Guia e as demais entidades que o assistiam, resolveu procurar o

autor.

Todos os mestres citados até então foram de fundamental valia para o

aprofundamento das realidades e vivências espirituais que culminariam com o

encontro de seu sétimo e derradeiro mestre: W.W. Matta e Silva – Mestre Yapacany - da Tenda de Umbanda Oriental Conviveu com Mestre Yapacany durante dezoito anos (dos 21 aos 38

anos). O reencontro com seu último mestre foi em suas palavras um reencontro

consigo mesmo, e este abriu o portal de minhas várias existências em várias

Page 82: Medicina_e_artes_de_cura

82

plagas do planeta, onde vivi o Sagrado manifesto no Sacerdócio, na Magia e na

Medicina (como Mestre Tântrico Curador – curador das mazelas do mundo)

(op.cit. pp.52)

Fica difícil descrever em palavras o relacionamento tão profundo quanto o

estabelecido por um verdadeiro Mestre e seu discípulo, talvez as que mais reflitam

a verdade seja a de próprio Pai Rivas, agora já com seu nome iniciático ou djina

de santo Arhapiagha, revelada por Pai Guiné (entidade que assistia Mestre

Yapacany), pois que o mesmo é exemplo inconteste dessa relação e da

Transmissão desse Saber:

A Iniciação não se resume a ensinamentos e ritos, mas à vivências que a

valência kármica do Mestre desperta no discípulo preparado. (Yamunisiddha

Arhapiagha)

Completados 33 anos de existência Pai Rivas recebeu de seu mestre uma

madeira com o Ponto Riscado de Pai Guiné d´Angola de 1946 com suas Ordens e

Direitos de Trabalhos (Ordenação Superior):

Nesta data de teu aniversário, transponho os sinais ou os signos da Lei de

Pemba do Pai Guiné (As Ordens e Direito de Trabalho que Ele próprio riscou em

perfeita incorporação sobre mim, em 1946), como prova de minha estima e para

que você tenha, “ontem, hoje e sempre”, este amparo de corpo presente na sua

jornada espiritual e mediúnica. (op.cit.62)

Em 1987, W.W. da Matta e Silva, mediunizado por Pai Guiné, transmitiu

para Pai Rivas – Arhapiagha (um dentre os sete iniciados que fez) o comando de

sua raiz, fê-lo sucessor de sua Escola, deixando autorização em cartório, à qual

tivemos oportunidade de ver:

Autorizamos em cartório Francisco Rivas Neto, Iniciado e Coroado pelo

nosso Santuário, no Grau de Mestre, a representar-nos em âmbito nacional e

internacional. (07/12/1987)

Mestre Yapacany deixou saudades, mas fez Escola, na qual encontramos

hoje a figura de Pai Rivas como sua mais lídima Tradição.

Page 83: Medicina_e_artes_de_cura

83

Pai Rivas fez parte da Umbanda Iniciática defendida por Pai Matta, mas

desdobrou sua doutrina chegando a fundar a Escola de Síntese, que não invalida

a Umbanda Iniciática e nem as demais Escolas.

Toda a história que resumimos está claramente exposada na obra alhures

citada e é de vital importância para entendermos a criação da primeira Faculdade

de Teologia Umbandista, credenciada e autorizada pelo Ministério da Educação e

Cultura em 18 de dezembro de 2003 pela portaria 3864.

A Faculdade possui diversas disciplinas, mas não poderia transmitir o

pensamento teológico de apenas uma Escola Umbandista, por isso percorremos a

história de seu fundador Pai Rivas, o qual permeou diversos setores filosófico-

religiosos, não apenas conhecendo-os por livros, mas vivenciando-os na íntegra

de sua ritualística e doutrina. A Faculdade defende a Universalização da

Umbanda, onde todos os segmentos ou formas de manifestação da sua rito-

liturgia estejam certos e atendam às necessidades espirituais de indivíduos afins.

Seu mote é a Unidade na Diversidade, ou seja, a Umbanda encontra sua

identidade e sua unidade por meio das múltiplas formas que tem de pensar e

praticar sua doutrina, mostrando um profundo respeito com a diversidade.

Importante deixarmos claro que a Faculdade defende a diversidade, mas não

compactua com as desigualdades, sejam elas expressas no espiritual, social,

cultural, político e econômico.

A Faculdade de Teologia Umbandista, enquanto órgão disseminador de

conhecimento, está calcada em três aspectos: Epistemologia (ensino de

qualidade e tecnologia de ponta), Método (doutrina em sua face teórica e prática)

e Ética (Interdependência, fazendo a interface com a comunidade umbandista e a

sociedade como um todo).

No momento que a Faculdade de Teologia Umbandista (FTU) formaliza o

saber religioso, por meio de seu credenciamento como instituição de ensino

superior, obtido junto ao MEC, abre-se o canal de comunicação com a sociedade,

incluindo as matérias acadêmicas, permitindo desta forma o questionamento e

revisão recíprocos. Particularmente na Umbanda, o conhecimento é tido como

Page 84: Medicina_e_artes_de_cura

84

dialético e direciona-se, pela evolução constante à realidade entendida como

sabedoria integral, não dualista53.

Outro aspecto marcante da FTU é a união do saber acadêmico e do saber

religioso. Durante nosso trabalho observamos que a história brasileira foi marcada

pelo conflito existente entre a medicina e os terapeutas populares, entre a

medicina que desejava se fazer oficial e a medicina oficiosa.

A medicina regida pelos padrões europeus tentou se firmar e impor seu

domínio de atuação no cenário da cura, onde ao mesmo tempo em que se

institucionalizava, denegria o processo natural de cura dos curandeiros,

benzedores, feiticeiros, macumbeiros, raizeiros, etc.

Observamos durante quase 200 anos, contando a partir de 1808 (data da

chegada da corte portuguesa ao Brasil, intrinsecamente ligada à fundação das

Faculdades de Medicina de Salvador e do Rio de Janeiro), o embate entre a

medicina (saber acadêmico) e os terapeutas populares (saber religioso), o

primeiro tentando a primazia das artes de cura como se o modelo acadêmico

europeu fosse o melhor a ser estabelecido no Brasil, local onde sempre imperou

naturalmente a cura por meio da comunicação com o sobrenatural (embora

saibamos que havia feitiçaria e diferentes práticas de cura entre os europeus,

especialmente entre os celtas, mas consideradas cultura pagã pela religião

predominante: o catolicismo) . O que tentamos dizer é que o padrão acadêmico

europeu não poderia ser aceito tranqüilamente, uma vez que o natural do país,

bem como de toda sociedade que não via distinção entre Sagrado e profano era a

relação estabelecida entre esses dois planos.

A questão novamente volta-se para o paradigma tão bem discutido por

Mircea Eliade em O Sagrado e o Profano. Algumas sociedades não faziam

diferença entre essas duas realidades, ou seja, o Sagrado era expresso na vida,

daí a questão da cura ser envolvida com a natureza e com a presença de espíritos

ancestrais (entre os povos indígenas, africanos, celtas, entre outros). Outras

sociedades, porém, se pautaram pela diferença entre essas duas realidades, o

que fez com que fosse “criado” necessariamente um pontíficie entre aquilo que era

53 www.ftu.edu.br

Page 85: Medicina_e_artes_de_cura

85

profano a fim de alcançar o Sagrado. Apenas essa figura poderia remeter salvar o

indivíduo e levá-lo a uma realidade mais elevada, caso contrário, este mesmo

seria considerado pagão, animista, fetichista e primitivo. Este trabalho foi realizado

pelas religiões salvacionistas (catolicismo, judaísmo e islamismo, todas elas

abraâhmicas), as quais crêem em apenas duas possibilidades para o ser: a

salvação ou a danação.

Especificamente a construção da religiosidade brasileira não foi calcada

nesse salvacionismo. Essa corrente chegou até nós pelo contato com as

civilizações européias no período de colonização em que foi imposta a ideologia

católica por meio da catequese e posteriormente pelo trabalho do Santo Ofício,

massacrando a cultura autóctone e deslegitimando suas crenças.

Abordamos brevemente essa temática, pois não podemos falar do embate

entre esses saberes sem levar em consideração o peso da tradição católica por

detrás desse processo. A institucionalização da medicina ia diretamente a favor

dos preceitos católicos, uma vez que sua imposição também excluiria aqueles que

atuavam livre e diretamente com toda a população, assim tomando um território

em que a Igreja gostaria de se fazer onipotente.

Esse conflito teve como conseqüência, como demonstrado durante o

decorrer do texto, a negação das propriedades dos curandeiros, feiticeiros entre

outros, chegando ora a casos judiciais, ora policiais e posteriormente reforçado

pelo setor acadêmico (antropólogos, sociólogos, os quais corroboravam com a

idéia dos médicos e psiquiatras sobre os cultos mediúnicos associados à

patologias e doenças mentais).

A Umbanda, a par de tantos conflitos, não reagiu a eles de forma ostensiva

até porque se assim o fizesse estaria se deixando levar pelos mesmos princípios

em defesa de particularismos. E é nesse ponto que remontamos novamente à

Faculdade de Teologia Umbandista, que representou um salto qualitativo para a Umbanda, ao se firmar como instituição de ensino, aproximou o saber

acadêmico do saber religioso, pautando-se na Síntese do Conhecimento, ou

seja, a FTU propaga que o conhecimento não é fragmentado, dissociado, portanto

Page 86: Medicina_e_artes_de_cura

86

não apenas os aproxima, mas faz a interação completa em teoria e prática entre

os quatro pilares da gnose humana: Filosofia, Ciência, Arte e Religião.

Exemplo claro entre essa aproximação sadia é o fato de seu fundador, Pai

Rivas desde pequeno ser umbandista e mais tarde formar-se médico, unindo sua

tarefa espiritual-mediúnica à vocação profissional. Pai Rivas encontrou nessa

união a expressão mais completa da cura, onde os dois saberes (religioso e

acadêmico) não se opunham, mas se complementavam. Atualmente muitos dos

professores da instituição são umbandistas e médicos. A faculdade mostrou o

caminho inverso do embate, o caminho da completude de saberes. Se antes a

medicina desejava deslegitimar os terapeutas populares e também os

umbandistas, agora a Umbanda mostra que a interação entre esses saberes é que

dará não só a legitimidade a eles, mas uma visão mais real sobre o conceito de

doença e as formas de estabelecer sua cura.

Page 87: Medicina_e_artes_de_cura

87

Capítulo IX – A etiologia das doenças e sua terapêutica segundo a Umbanda

Falar sobre o conceito de doença no viés umbandista é muito mais

complexo do que poderíamos pensar. Infelizmente ao longo de todo o processo

histórico da Umbanda, ela foi muito discriminada e estigmatizada, fazendo com

que a visão da grande maioria que desconhece a religião vissem-na como rito

fetichista, animista e sem um corpo doutrinário.

Essa é uma visão premeditada e diria até anacrônica, pois que hoje com as

múltiplas formas de acesso à comunicação e a diminuição de fronteiras nacionais

e regionais, é possível penetrarmos mais profundamente nas doutrinas alheias. O

fato de a Umbanda ter recebido a pecha de religião de negros e malandros tratou-

se de um longo processo construído por uma elite pensante que não gostava de

ver as pessoas associadas a um culto que divinizava uma divindade e esta se

manifestando em uma hierarquia, na qual encontramos outras divindades como os

Orixás, Inkices ou Voduns em outras Escolas, enfim, um culto de livre pensar e

expressão religiosas.

Desta forma, uma vez desconstituída de seu real valor a Umbanda não teria

forças de se constituir como religião, nem ao menos o poder de decisão em temas

relevantes para a sociedade com é o nosso caso: as doenças. O que é um

verdadeiro engodo. A Umbanda tem sim uma forte doutrina e conceitos bem

definidos acerca das doenças e suas terapêuticas, todos calcados em sua

teologia.

Neste ponto é necessário frisar que as escolas umbandistas em sua

totalidade não pensam da mesma forma, apresentam algumas diferenças naturais

à sua forma de interpretação da realidade, mas todas elas acreditam no Poder

Divino e a necessidade que temos de nos conectar a Ele.

Apresentaremos o conceito de doença por nós apreendido na Faculdade de

Teologia Umbandista, não apenas em disciplinas como Biologia Geral, Biologia

Humana e Medicina Umbandista, mas como dito anteriormente no perfeito

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88

encadeamento da transmissão acadêmica e da religiosa vivido pelos alunos,

professores, funcionários e comunidade umbandista no geral.

Para apresentarmos o conceito de doença é necessário adentrarmos, ainda

que sucintamente, na teologia umbandista, a qual é calcada na Vertente Una do

Sagrado, ou seja, numa Hierarquia Espiritual. Teríamos a Divindade (Tupã,

Zamby, Olorun, Deus, Allah), as Potestades Divinas (Orixás), os Ancestrais

Ilustres (entidades que se apresentam como Crianças, Caboclos, Pretos-Velhos,

Baianos, Marinheiros, Boiadeiros, Exus) e, finalmente, a humanidade. Essa

vertente é essencialmente universal, uma vez que todos os setores filosófico-

religiosos podem ser adaptados à ela. Esse processo de hierarquia só existiria

porque os seres teriam se afastado de sua realidade: a de se reconhecerem como

espíritos. Afastaram-se da divindade e passaram a criar um hiato entre o que era

Divino e o que passou a ser profano pelas sucessivas penetrações no campo da

energia-massa.

Mais uma vez pontuamos que esses conceitos são deveras delicados e

complexos e orientamos maiores explicações nas obras de W.W. Matta e Silva,

Francisco Rivas Neto e também em uma coletânea de livros institulada Teologia

Umbandista, entre os quais destacamos Meu Mestre Iluminando Consciências,

Física da Alta Energia e Do Movimento à Convergência, respectivamente da

Sacerdotisa e Sacerdotes umbandistas: Yamaracyê, Aramaty e Obashanan.

Retomando, o afastamento da realidade espiritual teria se consolidado no

que é chamado de Doença Primeva, sendo que desta decorrerá todas as doenças

existentes, seja no campo da mente e psiquismo, afetivo-emocional ou no campo

das energias físicas.

A Umbanda crê que o ser espiritual, em função do desajuste com sua

essência divina, teve que fazer uso do mecanismo da reencarnação para que

pudesse sanar os desvios da insubordinação divina. Para tanto este ser

necessitou se manifestar em três organismos: Organismo Mental (sede dos

pensamentos), Organismo Astral (sede dos sentimentos) e Organismo Etéreo-

Físico (sede das ações).

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89

O ser espiritual ao encarnar traz consigo, ainda que inconscientemente, a

lembrança desse afastamento com a Divindade, o conjunto de experiências

individuais vividas em outras encarnações, bem como o inconsciente coletivo, tão

bem explicado por Carl Jung (não podemos deixar de citar a herança deixada por

algumas escolas psicanalíticas sobre a importância da compreensão do complexo

id-ego-superego, o qual é responsável por grande parte de doenças psíquicas

quando não ajustado).

Esses três aspectos citados, vindo à tona abruptamente, podem gerar

conflitos sérios para o indivíduo, primeiramente com pensamentos desequilibrados

em forma de confusão mental, depois nos sentimentos em forma de afeto mal

resolvido, apegos e ilusões e posteriormente esses desajustes se concretizam no

complexo carbônico (corpo físico) sob a forma das doenças que conhecemos

atualmente. O desajuste do organismo mental alcança o organismo astral fazendo

com que a célula, unidade básica da vida do ser humano seja desestruturada em

suas funções, gerando no organismo físico determinadas doenças.

A etiologia das doenças é pautada nos aspectos endógenos e nos

aspectos exógenos. O aspecto endógeno pode ser explicado afirmando que o

indivíduo traz sua carga de responsabilidade para a expressão ou não da doença

na dependência de sua conduta diária, se este possui uma vida saudável, não

apenas nos aspectos mais periféricos, mas principalmente na forma de perceber a

realidade, a vida, com pensamentos e sentimentos positivos emanados para si,

para a coletividade próxima em particular e planetária, no geral.

Os aspectos exógenos estão centrados na interferência que o meio

ambiente terá no indivíduo, na atuação espirítica de seres encarnados ou

desencarnados. É importante deixar claro que os seres espirituais também atuam

positivamente, entretanto a média vibratória do planeta é tão baixa que é mais fácil

falarmos sobre os mecanismos de obsessão, espíritos chamados de “encostos”.

Os seres se ligam com faixas vibratórias afins, ou seja, faixas de pensamento e

sentimentos similares. Assim, unem-se os que têm pensamentos negativos, são

pessimistas, tem baixa-estima, ódio, apegos, orgulho, vaidade, vícios de vários

matizes, entre outros. Bem como se ligam uns aos outros os que pensam

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90

positivamente, são otimistas, tem espírito de cooperação, interdependência, amor,

respeito, discernimento, entre outros atributos.

Esse conceito sobre doença está calcado na qualidade de vida espiritual e

material, sendo que inclusive a própria Organização Mundial de Saúde (OMS)

defende a tese de que saúde não é apenas ausência de doença, mas completo

bem estar físico, psíquico e social. Isso equivale a dizer que o indivíduo não pode

ser visto de forma compartimentada, setorizada, mas de forma global, em que seu

complexo espiritual-astral está em perfeito ajuste com o organismo etéreo-físico.

Alguns poderiam nos questionar quanto a esses conceitos sendo

associados à Umbanda. Responderemos mais uma vez remontando ao conceito

de Escola Umbandista, sendo que cada uma tem uma visão sobre a realidade.

Entretanto, as entidades de Umbanda que se manifestam nos templos, terreiros,

choupanas, tendas, entre outras nomenclaturas, conhecem profundamente os

conceitos espirituais e atuam segundo as percepções de cada coletividade.

Diríamos que a terapêutica umbandista atende os que se encontram

necessitados, mas pauta-se na prevenção.

Costuma-se dizer que as pessoas procuram os terreiros para se livrarem de

perturbações e doenças físicas, problemas no campo afetivo e material

(financeiro), o mesmo que ocorria na procura aos curandeiros e demais terapeutas

populares. Entretanto, o que temos percebido ao longo de anos em contato com a

Umbanda é que as pessoas encontram nela uma doutrina altamente escorada em

fundamentos ocultos e herméticos, bem como uma rito-liturgia bem estruturada, o

que faz com que elas considerem a Umbanda um caminho espiritual a ser

seguido. E é nesse ponto que podemos falar da medicina umbandista, a qual

acredita que o que existe é o indivíduo doente e não a doença, pois esta não

seria um ente isolado, não tem existência inerente. A terapêutica mais profunda é

a autocura, na qual o indivíduo reconhece seu estado de embotamento espiritual

e procura um caminho a trilhar rumo à sua própria evolução, que em última

instância abrange a evolução da comunidade planetária como um todo.

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Para simplificarmos o entendimento da terapêutica umbandista citaremos

parte da obra Sacerdote Mago e Médico (pp. 401-403) de Pai Rivas, onde ele fala

sobre ritos específicos de Autocura:

Primeiro Nível – Superficial

(por intermédio da mediunidade – aspectos mediatos)

Corrente de descargas ou neutralização de cargas negativas, desbloqueios,

orientações espirituais (gira ou rito de atendimento público)

Segundo Nível

(por intermédio da canalização – aspectos imediatos)

Atua de forma mais aprofundada nos organismos mental, astral e físico (Rito de

Harmonização Interior)

Pode ser expresso como:

Aspecto Externo – Magia Vegetoastromagnética

a. Desimpregnação

b. Organismo Físico: respiração, postura, hidroterapia, magia.

c. Organismo Astral: defumação/aromaterapia, essências voláteis, respiração,

banhos de ervas, banhos de essência.

d. Organismo Mental: Tantra, Mantra, Yantra, Mandala, Meditação, oferendas

visíveis e invisíveis.

Quanto às oferendas, Pai Rivas explica:

Flores – Entendimento – Energias Espirituais Positivas, paciência, serenidade,

sabedoria. Fortalece a vontade e o pensamento.

Frutos – Prosperidade, harmonia, saúde, energias positivas, magnetismo pessoal.

Fortalecimento aurânico.

Doces – Equilíbrio emocional. Vencer e ser senhor das emoções e paixões. Paz

interior – saúde espiritual. Amor – afetivo equilibrado. Correntes de alegria e

felicidades.

Incensos – Sintonia com egrégoras consonantes. Oferenda aos planos superiores.

Veículo de correntes mentais – projeções.

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Velas ou Lamparinas – Elemento Ígneo – luz. Iluminação – desimpregnação –

estruturação e irradiação de energias próprias do rito. Fogo vital – saúde.

Palavras ou cânticos sagrados (pontos cantados ou mantras) – Forças e escudos

protetores. Propiciam à mente vibrar em sintonia com as energias sutis.

Respiração – Ciclo vital, absorção prânica. Expirar coisas ruins (raiva, ódio,

doença). Inspirar coisas boas (paz, alegria, bem-estar).

Corpo – Gestos, posturas de harmonia, danças – estruturam a mente – a

manipulação relaciona-se com ciclos e ritmos ativados no cérebro e na mente.

Mente – Concentração – Atenção – Visualização.

Com esta exposição fica muito claro que encontramos todos esses

elementos de cura num ritual umbandista, ou seja, a cada gira, rito ou sessão,

todos estão diretamente ligados a elementos que proporcionam condições para a

desconexão com energias negativas e, ao mesmo tempo, a estruturação dos

organismos mental, astral e físico atrelando-se a correntes positivas.

Talvez os curandeiros, feiticeiros, raizeiros e benzedores não tivessem

naquela época condições de estabelecer uma terapêutica tão concatenada aos

aspectos espirituais e médicos acadêmicos, mas sabemos que a Umbanda

atualmente já apresenta essa proposta inovadora de unir o saber espiritual e

acadêmico para o melhor tratamento do indivíduo doente (em todos os aspectos).

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Conclusão

Tentamos abordar ao longo do trabalho as matrizes formadoras do povo

brasileiro e a forma com que estas pensavam o conceito de doença e realizavam

suas práticas de cura. É claro que esse é um trabalho introdutório, pois tal estudo

demandaria o aprofundamento nas diversas correntes dentro de cada matriz, uma

vez que nenhuma delas representa um bloco único de pensamento. Todas as

matrizes possuem múltiplas formas de interpretação da realidade, entretanto é

possível visualizarmos seu contexto geral e foi o que procuramos fazer a fim de

que essa explanação facilitasse a compreensão das artes de cura encontradas no

Brasil Imperial e que culminariam com o embate entre medicina acadêmica e

medicina popular.

Exposamos o conflito existente entre a imposição de um saber, que na

época era desconectado da realidade própria do país, e as múltiplas formas de

cura, centradas nas figuras dos curandeiros, feiticeiros, etc. Esse conflito foi

escorado pelo poder judiciário, pelo poder policial, pela própria mídia, enfim, havia

um processo de sustentação para que a medicina fosse institucionalizada, com a

conseqüente exclusão de outros saberes, que em última instância significava a

exclusão de elementos sociais indesejáveis para o modelo de nação em

desenvolvimento que o Brasil atingiria.

Posteriormente os terapeutas populares deixam de atuar isoladamente e

são aglutinados por movimentos espirituais, principalmente pela Umbanda, a qual

fez o movimento inverso de ataque e embate. Mostrou que como um pilar da

gnose humana (Religião), jamais poderia estar em dissonância com os outros

pilares, como Filosofia, Artes e, no caso especial, com a Ciência (medicina).

A Umbanda mostrou e vem demonstrando sem alardes a união dos saberes

religioso e acadêmico como forma de atuação mais completa e fidedigna para com

a realidade espiritual e física do indivíduo doente, afim de remontá-lo novamente à

sua origem essencial, o Espírito.

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Adendo –Cânticos Sagrados sobre cura e cobertura espiritual dentro do

Movimento Umbandista

A semiologia dos ritos umbandistas é muito rica. Colocamos alguns pontos

cantados e orikis associados à cura, lembrando que todos, sem exceção, nos

remetem à elevação e cobertura espirituais. O cântico é manifestação do Verbo

Sagrado, Divino e toda vez que é entoado, expressa a melodia, ritmo e harmonia

próprios do Universo. Deixamos para todos que lerem esse trabalho alguns

cânticos como prova inconteste de nosso respeito e admiração por todas as

escolas umbandistas. Saravá profundo a todos!

Defumação

Vamos defumar conga Com ago de Oxalá (2x) Com as ervas de Juremá E as flores de Inayá Com Caboclo Arruda No Jurema Sr. Sete Espadas no Humaitá Defuma com as ervas da Jurema Defuma com arruda e guiné (2x) Alecrim, benjoim e alfazema Vamos defumar filhos de fé(2x)

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Vou defumar com as ervas da Jurema Vou defumar com as ervas da Jurema Vou defumar conga Na luz de Oxalá Vou defumar conga Com o ago dos Orixás Com licença Pai Ogum Filho quer se defumar Umbanda tem fundamento É preciso preparar Com incenso e benjoim Alecrim e alfazema Defumar filhos de fé com as ervas da Jurema

Crianças / Ibejis Papai me mande um balão Com todas as crianças que vem lá do céu Tem doce papai Tem doce papai Tem doce para mim Tem doce papai Tem doce papai Tem doce lá no jardim Cosme e Damião Sua gira cheira Cheira cravo Cheira rosa E a flor de laranjeira

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Caboclo

Bamba na calunga Ele é caboclo ele é flecheiro Bamba na calunga É quebrador de feiticeiro Bamba na calunga Sua força ninguém tira Bamba na calunga Só se Orixá quiser tirar Sr Pena Branca Vem lá da Jurema Vem lá do Jurema Com sua falange Curar seus filhos de congá Quando ele vem Lá do Oriente Vem com ordens de Oxalá Sua missão é muito grande É espalhar a caridade E seus filhos proteger Meu sarava mamãe Oxum Meu sarava Papai Oxalá Meu sarava Sr. Urubatão Ele é o dono dessa casa do Tembetá

Pretos-Velhos

Preto-velho quando vem Vem beirando a beira mar (2x) Bota a canga no sereno Deixa a canga serenar (2x)

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Adorei as Almas As Almas me atenderam (2x) Fui pedir às Santas Almas Lá do Cruzeiro (2x) Quem precisa Pede favor Pede a Zamby Que Zamby dá Pai Joaquim Desceu da cachoeira Saravou o seu conga Sua benção meu Pai Quem manda é Oxalá Pai Joaquim não deixa Seus filhos penar Vovó Catarina Que tem poder Vem na banda Me valer (2x) Ela vem da Aruanda Com a Luz de Oxalá Traz arruda e guiné Para salvar filhos de fé (2x)

Baiano Baiano velho olé rê Olé olé olá (2x) Sou baiano, sou curador Tiro o feitiço de quem me botou. Eu não sou daqui, eu sou da Jurema, Eu não sou daqui, eu sou da Jurema. Na aldeia de caboclo, baiano não bambeia. Na aldeia de caboclo, baiano não bambeia. Baiano bebeu cachaça, baiano se embriagou, Baiano bebeu cachaça, baiano se embriagou, Baiano bebeu jurema, baiano se encantou, Baiano bebeu jurema, baiano se encantou.

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Boiadeiro Boiadeiro laça o boi Boiadeiro laça a boi Ele vem lá da mata de Nossa Senhora Ele vem na sua hora Marinheiro Sr. marinheiro É hora É hora de vir trabalhar É o céu, e a terra é o mar Sr. Marinheiro no balanço do mar Exu Quando passar naquela encruza, não se esqueça de olhar pra trás. Quando passar naquela encruza, não se esqueça de olhar pra trás. Olha que lá tem curador, Sr. Capa Preta é quem mora lá. Olha que lá tem curador, Sr. Capa Preta é quem mora lá.

Ó meu sr das almas, das almas sim senhor. Ó meu sr das almas, das almas sim senhor. Eu é exu Cheiroso, meu alimento é gostoso. Eu é Desata Nó e do meu povo eu tenho dó. Eu é exu Curador, eu tira qualquer dor.

Pajelança – Toré/ Xambá Aracoçuman, aracoçuman U- A-É-A Curandi U- A-É-A Curandi

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Caá-Timbó Sr. Canindé É gente boa Trabalha Canindé Canindé é gente boa Para gente que ele quer Canindé é gente boa Arreia Canindé Canindé é gente boa Para gente que ele quer Canindé é gente boa Demanda Canindé Canindé é gente boa Para gente que ele quer Culto do Orixá Ewe ewe Ossain Baba Ogun Onilê onilê

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