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78 SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL Julho 2008 Organização Mundial da Saúde (OMS) definiu o impacto das mudanças climáticas sobre a saúde humana como o tema do Dia Mundial da Saúde de 2008, reconhecendo as amea- ças crescentes à saúde pública global. Margareth Chan, diretora-geral da entidade, justifica que a inten- ção dessa escolha é chamar a atenção dos responsá- veis pelas políticas de saúde para evidências ameaça- doras nessa área. Estimativas da OMS mostram que a mudança do clima, como resultado do aquecimen- to global, ameaça com 150 mil mortes anuais e 5,5 milhões de anos de vida perdidos ajustados por inca- pacidade (disability-adjusted life-years, Daly). Apenas no primeiro semestre de 2007, perto de 117 milhões de pessoas foram vítimas de pelo menos 300 desastres naturais, incluindo secas devastadoras na China e na África, além de inundações na Ásia e na África, com prejuízos estimados em US$ 15 bilhões. Catástrofes devido a mudanças climáticas vêm ocorrendo em todos os continentes. Em 1998, chu- vas torrenciais provocadas pelo furacão Mitch, na América Central, aumentaram os casos de malária, cólera e dengue. Em 2000, a incidência de malária foi cinco vezes maior em Moçambique, em decor- rência de chuvas e três ciclones que transtornaram o país. Em 2003 a onda de calor no verão da Euro- pa, com temperaturas 10ºC acima da média dos 30 anos anteriores, provocou 70 mil mortes, perda de colheitas, queima de florestas e comprometeu 10% da massa glacial dos Alpes. O furacão Katrina, em 2005, alimentado pelas águas mornas do golfo do México, também provocou devastação nas comu- nidades costeiras na região. As condições climáticas potencializam doenças transmitidas pela água ou outros vetores como mosquitos. As doenças sensíveis ao clima estão en- tre as que mais matam globalmente. Apenas diar- réia, malária e desnutrição provocaram mais de 3,3 milhões de mortes no mundo em 2002 e 29% dessas mortes ocorreram na África. Assistimos neste momento à maior epidemia de dengue em 50 anos no Brasil. Apenas nos três pri- meiros meses de 2008 surgiram 85 mil casos novos, 80% do total registrado no continente americano. Desse total, 60 mil foram computados no Rio de Ja- neiro, onde aparecem 20 novos casos por hora, ou um doente a cada três minutos. A rede de saúde pú- blica carioca entrou em colapso e está utilizando hospitais de campanha das forças armadas para en- frentar a emergência. Dengue é um problema cres- cente em escala mundial. O número de casos nas Américas passou de 60 mil, em 1980, para mais de 900 mil em 2007. Com isso fica evidente que as es- tratégias em ação não estão funcionando. Apenas a poluição atmosférica, também relacionada ao aque- cimento global, é responsável por 800 mil mortes/ CONCEITOS-CHAVE Desastres naturais como secas, inundações, furacões e tempestades, decorrentes das mudanças climáticas, são uma ameaça crescente à saúde pública global. Além de causarem prejuízos físicos, esses fenômenos provocam a proliferação de doenças transmitidas por vetores como água e mosquitos, entre outros. As doenças sensíveis ao clima, como diarréia, malária e desnutrição, estão entre as que mais matam no mundo. O Brasil, neste momento, enfrenta a maior epidemia de dengue dos últimos 50 anos. A OMS enfatiza a necessidade de medidas para amenizar o aquecimento global e melhorar os sistemas de vigilância, os serviços médicos e o saneamento. Os editores Segundo a Organização Mundial da Saúde, desastres naturais e doenças decorrentes do aquecimento global podem levar a 150 mil mortes anuais Por Evangelina Araújo Vormittag DOSSIÊ CLIMA Meio Ambiente e Saúde Pública A

Meio Ambiente e Saúde Pública · blica carioca entrou em colapso e está utilizando hospitais de campanha das forças armadas para en-frentar a emergência. Dengue é um problema

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Organização Mundial da Saúde (OMS) defi niu o impacto das mudanças climáticas sobre a saúde humana como o tema do Dia

Mundial da Saúde de 2008, reconhecendo as amea-ças crescentes à saúde pública global. Margareth Chan, diretora-geral da entidade, justifi ca que a inten-ção dessa escolha é chamar a atenção dos responsá-veis pelas políticas de saúde para evidências ameaça-doras nessa área. Estimativas da OMS mostram que a mudança do clima, como resultado do aquecimen-to global, ameaça com 150 mil mortes anuais e 5,5 milhões de anos de vida perdidos ajustados por inca-pacidade (disability-adjusted life-years, Daly).

Apenas no primeiro semestre de 2007, perto de 117 milhões de pessoas foram vítimas de pelo menos 300 desastres naturais, incluindo secas devastadoras na China e na África, além de inundações na Ásia e na África, com prejuízos estimados em US$ 15 bilhões.

Catástrofes devido a mudanças climáticas vêm ocorrendo em todos os continentes. Em 1998, chu-vas torrenciais provocadas pelo furacão Mitch, na América Central, aumentaram os casos de malária, cólera e dengue. Em 2000, a incidência de malária foi cinco vezes maior em Moçambique, em decor-rência de chuvas e três ciclones que transtornaram o país. Em 2003 a onda de calor no verão da Euro-pa, com temperaturas 10ºC acima da média dos 30 anos anteriores, provocou 70 mil mortes, perda de

colheitas, queima de fl orestas e comprometeu 10% da massa glacial dos Alpes. O furacão Katrina, em 2005, alimentado pelas águas mornas do golfo do México, também provocou devastação nas comu-nidades costeiras na região.

As condições climáticas potencializam doenças transmitidas pela água ou outros vetores como mosquitos. As doenças sensíveis ao clima estão en-tre as que mais matam globalmente. Apenas diar-réia, malária e desnutrição provocaram mais de 3,3 milhões de mortes no mundo em 2002 e 29% dessas mortes ocorreram na África.

Assistimos neste momento à maior epidemia de dengue em 50 anos no Brasil. Apenas nos três pri-meiros meses de 2008 surgiram 85 mil casos novos, 80% do total registrado no continente americano. Desse total, 60 mil foram computados no Rio de Ja-neiro, onde aparecem 20 novos casos por hora, ou um doente a cada três minutos. A rede de saúde pú-blica carioca entrou em colapso e está utilizando hospitais de campanha das forças armadas para en-frentar a emergência. Dengue é um problema cres-cente em escala mundial. O número de casos nas Américas passou de 60 mil, em 1980, para mais de 900 mil em 2007. Com isso fi ca evidente que as es-tratégias em ação não estão funcionando. Apenas a poluição atmosférica, também relacionada ao aque-cimento global, é responsável por 800 mil mortes/

CONCEITOS-CHAVE■ Desastres naturais como

secas, inundações, furacões e tempestades, decorrentes das mudanças climáticas, são uma ameaça crescente à saúde pública global. Além de causarem prejuízos físicos, esses fenômenos provocam a proliferação de doenças transmitidas por vetores como água e mosquitos, entre outros.

■ As doenças sensíveis ao clima, como diarréia, malária e desnutrição, estão entre as que mais matam no mundo. O Brasil, neste momento, enfrenta a maior epidemia de dengue dos últimos 50 anos.

■ A OMS enfatiza a necessidade de medidas para amenizar o aquecimento global e melhorar os sistemas de vigilância, os serviços médicos e o saneamento.

– Os editores

Segundo a Organização Mundial da Saúde, desastres naturais e doenças decorrentes do aquecimento global podem levar a 150 mil mortes anuais

Por Evangelina Araújo Vormittag

DOSSIÊ CLIMA

Meio Ambiente e Saúde Pública

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ano. Se implantadas as tecnologias disponíveis para reduzir o uso de combustíveis fósseis, haveria redu-ção de 64 mil mortes entre 2000 e 2020 nas cidades do México, Santiago, São Paulo e Nova York.

Infra-estrutura IndispensávelA OMS enfatiza a necessidade urgente de apoio no desenvolvimento de estratégias para enfrentar essa situação. Melhores sistemas para vigilância e pre-visão, além de serviços médicos sanitários básicos são cada vez mais indispensáveis.

As principais conseqüências do aquecimento glo-bal são temperaturas globais médias mais elevadas, provocando ruptura dos sistemas naturais em casos como: mudanças nos regimes de chuva em muitas regiões, impactos no abastecimento de água e na produção de alimentos, aumento da incidência e in-tensidade de eventos climáticos extremos como on-das de calor e estresse térmico, tempestades, enchen-tes, incêndios e secas. O aquecimento também im-plica elevação do nível do mar, com ameaças às áreas costeiras e baixadas, além de alterações de ecossistemas, com aumento de vetores transmisso-res de doenças e sua distribuição espacial.

Essas condições estão expondo de forma crescen-te bilhões de pessoas em todo o mundo, em especial aquelas com menor capacidade de adaptação. Nesse contexto manifestam-se crescimento da mortalidade,

doenças e acidentes. No primeiro caso, ameaças como a diarréia e outras enfermidades transmitidas pela água contaminada. No segundo, aumento de doenças cardiorrespiratórias, processos alérgicos e al-teração do padrão de doenças infecciosas tropicais.

Embora a mudança de clima seja um fenômeno global, suas conseqüências não são igualmente dis-tribuídas. A combinação de crescimento populacio-nal, pobreza e degradação ambiental potencializa a vulnerabilidade às catástrofes climáticas. Segundo a OMS, os maiores fatores de vulnerabilidade são a localização de populações em encostas, as exposi-ções às ilhas urbanas de calor e a altos níveis de po-luição atmosférica, tanto aberta como no interior das residências, sem esquecer a alta densidade po-pulacional e condições sanitárias precárias.

As populações de países em desenvolvimento, evidentemente, estão entre as mais afetadas. O im-pacto ambiental nos países pobres pode ser 20 a 30 vezes maior que nos países industrializados. Evi-dência disso são tanto enchentes quanto secas de-vidas ao El Niño entre 1982 e 1983 que compro-meteram cerca de 10% do Produto Interno Bruto (PIB) de países como Bolívia, Chile, Equador e Peru. No Brasil, os estados do Nordeste apresen-tam os maiores índices de vulnerabilidade, devido à combinação de baixos indicadores socioeconô-micos – renda reduzida, alta mortalidade infantil

Mudança climática é um efeito

global, mas conseqüências

se mostram em escala regional.

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e baixa escolaridade – acompanhados de elevados índices de doenças endêmicas e condição geográfi -ca de semi-aridez e secas recorrentes.

Segundo o relatório do Painel Intergoverna-mental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na si-gla em inglês), os problemas de saúde pública no Brasil, como resultado da mudança climática, ca-recem de dados, embora o país seja considerado um dos mais vulneráveis no contexto global.

Poluição do ArA poluição atmosférica é um dos principais proble-mas ambientais de regiões intensamente urbaniza-das no Brasil. A região metropolitana de São Paulo, por exemplo, é uma das áreas de maior densidade demográfi ca, reunindo uma população de 18 mi-lhões de habitantes e uma frota de veículos automo-tores de 7,3 milhões de unidades, numa relação au-tomóveis/habitantes de 1:2. Nos últimos dez anos, a população dessa região cresceu 12%, enquanto a frota de veículos individuais deu um salto de 65%, sem mudanças na frota de ônibus.

O Laboratório de Poluição Atmosférica Experi-mental (LPAE) da Faculdade de Medicina da USP mostra que, na década de 90, o aumento de 13% na mortalidade de pessoas acima de 65 anos esteve diretamente associado à elevação nas concentra-ções de partículas inaláveis no ar.

Estudo recente desenvolvido nos Estados Unidos, analisando 66 mil mulheres – no período pós-meno-pausa e sem história de doença cardiovascular, ex-postas a variações de níveis de poluição atmosférica –, mostrou aumento de 24% de risco de doença car-diovascular. E mais: quando essas doenças se mani-festaram houve crescimento de 76% para o risco de morte. Aumentos no número de atendimentos em pronto-socorro e internações hospitalares por doen-ças respiratórias e do coração também estão relacio-nados a concentrações mais altas de poluentes.

Pesquisas do LPAE têm demonstrado os efeitos nocivos da poluição atmosférica especialmente entre crianças com menos de 2 anos e adolescentes com mais de 13 anos de idade, além de idosos, particular-mente aqueles com doenças cardiovasculares e respi-ratórias preexistentes. Mesmo o peso dos bebês pode reduzir quando as gestantes são expostas a níveis ele-vados de monóxido de carbono e partículas inaláveis no primeiro trimestre de gestação. Considera-se que a poluição afeta o desenvolvimento intra-uterino das crianças. Nos primeiros 28 dias de vida, a mortalida-de neonatal também é impactada por poluentes.

A OMS relatou recentemente perto de 1,5 mi-lhão de mortes (1 milhão de crianças) entre as con-seqüências para a saúde provocada pela queima de biomassa para cozinhar no interior das casas. A

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INTERAÇÃO DE DESEQUILÍBRIOS[RISCOS POTENCIAIS]

Os níveis de poluentes do ar no interior das casas podem superar os registrados em áreas como o centro da cidade de São Paulo, em momentos de pico de intensidade do trânsito. Em regiões do Nordeste brasileiro os fogões a lenha estão presen-tes em mais de 60% das casas.

A queima de biomassa em ambientes abertos também gera poluição atmosférica. No Brasil, 6,7 milhões de hectares de terras estão cultivados com cana-de-açúcar, com cortes precedidos por queima que libera grande quantidade de material particu-lado, expondo milhões de pessoas à poluição. A queima de palha de cana leva à elevação da polui-ção semelhante à produzida por combustíveis fós-seis em grandes centros urbanos, com aumento sig-nifi cativo de internações hospitalares por doenças respiratórias em crianças, adolescentes e idosos.

Embora esteja entre

os países mais vulneráveis, o Brasil não

dispõe de dados suficientes para avaliar mudanças climáticas.

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A elevação do CO2 contribui para a liberação de alérgenos, como o pólen de plantas. Invernos mais quentes também podem resultar em início precoce da estação de pólen de grama ou de ou-tras plantas, com aumento de concentrações aére-as. Durante as últimas duas décadas a prevalência de asma quadruplicou nos Estados Unidos, em parte devido a fatores relacionados ao clima. Nas ilhas do Caribe, irritantes respiratórios chegam em nuvens de poeira liberadas pelos desertos da África, varridas por ventos acelerados pelos gra-dientes de pressão sobre o oceano aquecido.

O Avanço da MaláriaDe acordo com a OMS, entre 300 milhões e 500 mi-lhões de pessoas são atualmente infectadas com ma-lária. Com a mudança climática essa doença tem maiores chances de alterar sua distribuição, segui da pela dengue, que afeta entre 10 milhões e 30 milhões de pessoas/ano. Análises de episódios ao longo do tempo sugerem vários impactos do ciclo do El Niño – fenômeno climático periódico associado a fl utua-ções da pressão atmosférica e da temperatura da su-perfície do oceano Pacífi co – sobre a saúde, como as epidemias de malária em partes da América Latina e sul da Ásia. Outras doenças também podem estar sob infl uência do El Niño, como dengue, leishmaniose, mal de Chagas e infecções por hantavírus.

A malária está presente em pelo menos 101 países e 40% da população mundial vive em áreas onde a

[A AUTORA]

Evangelina Araújo Vormittag é consultora na área de saúde e sustentabilidade. Médica especializada em patologia clínica e microbiologia, com doutorado em patologia pela Faculdade de Medicina da USP e especialização em gestão de sustentabilidade pela Fundação Getulio Vargas. Foi autora da Justifi cativa de Saúde para a Política Municipal de Mudanças Climáticas do Município de São Paulo.

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ALTERAÇÃO LOCAL E REGIONAL DO CLIMA[COMPLEXIDADE]

doença é prevalente. É responsável por mais de 1 mi-lhão de mortes anualmente, a maioria de crianças. Com base nos últimos cenários de mudanças de cli-ma, recentes modelos experimentais sugerem aumen-to potencial de 5% a 7% na distribuição de malária na África para 2100, expandindo seu alcance em al-titude mais que em latitude.

Epidemias de malária também podem ocorrer durante as secas em conseqüência de mudanças no ciclo reprodutivo do vetor. É possível que o aqueci-mento global leve doenças de clima quente para zo-nas mais temperadas, como acontece com a dengue. Estima-se, até 2080, um total de pelo menos 2 bi-lhões de pessoas expostas à dengue. O aumento da faixa de clima tropical no planeta levará a migração e aumento dos vetores de doenças mais comuns, com riscos de pandemias.

A migração dos vetores para áreas onde não ain-da não estavam presentes será um grave problema de saúde pública na ausência de uma visão pró-ativa e de longo prazo. Muitas regiões poderão ser pegas de surpresa por doenças com as quais não estão familia-rizadas. No Brasil o exemplo da leishmaniose e da dengue – esquecidas pela maioria dos médicos, pois não apareciam havia muitas décadas de forma tão intensa – é uma evidência disso. No surto recente de leishmaniose no Mato Grosso do Sul e de dengue atual no Rio de Janeiro, houve difi culdades iniciais de diagnóstico, com óbitos que poderiam ter sido evitados com a doença prontamente identifi cada.

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As condições geográfi cas e socioeconômicas do Rio de Janeiro facilitam a instalação da epidemia. Nos morros, o mosquito encontra condições fa-voráveis, como pessoas aglomeradas e precárias condições de higiene. O morro difi culta o acesso dos agentes de saúde e a coleta de lixo. O sanea-mento básico inadequado permite o acúmulo de água e lixo, propícios ao desenvolvimento da do-ença. Além disso, o clima favorece o desenvolvi-mento do mosquito e prolonga sua estação de re-produção. O ciclo normal do mosquito é de dez a 12 dias. Temperaturas mais elevadas diminuem o ciclo para sete a oito dias e aumentam seus índices de reprodução e o número de picadas. A chuva também permite o acúmulo de água, facilitando a replicação do mosquito.

Conjunto de FatoresÉ preciso considerar que as doenças transmitidas por vetores dependem de outros fatores, além dos ambientais, como o deslocamento de populações humanas e de animais, o colapso da infra-estrutura de saúde pública, mudanças no uso de terra e a emergência de resistência a medicamentos específi -

Entre a população adulta da região metropolitana de São Paulo e a frota automotiva entre 1996 e 2005.

PROLIFERAÇÃO DOS AUTOMÓVEIS[VARIAÇÃO RELATIVA]

cos. Associados ao crescimento das populações de roedores, surtos de leptospirose podem ocorrer em favelas urbanas após enxurradas. A instabilidade do clima, provocada pelo El Niño no sudoeste dos Estados Unidos em 1993 contribuiu para o apare-cimento da síndrome pulmonar do hantavírus.

Temperatura e umidade são variáveis impor-tantes para a distribuição de carrapatos. Tem ha-vido interesse considerável no impacto potencial da mudança de clima sobre várias doenças trans-mitidas por carrapatos, como a doença de Lyme, a encefalite e a febre das Montanhas Rochosas. Na Suécia, doenças transmitidas por carrapatos estão se deslocando para o norte, à medida que os invernos se tornam mais quentes.

Eventos climáticos extremos incluem perío-dos de temperaturas muito altas ou muito baixas, tempestades, inundações e secas em intensidade que superam a adaptação – cultural, social, psi-cológica e fi siológica – desenvolvida pela popu-lação, casos em que os segmentos mais pobres são os mais afetados. Segundo o IPCC, a freqüên-cia e intensidade dos eventos extremos tendem a aumentar. No Brasil, a temperatura média subiu aproximadamente 0,75 ºC no século 20 e isso certamente tem estimulado a ocorrência de fenô-menos climáticos extremos no país.

Os impactos de desastres naturais na saúde in-cluem mortes; danos físicos – acidentes e traumas; piora da condição nutricional, especialmente em crianças; aumento de doenças respiratórias; risco au-mentado de doenças relacionadas à água e impactos na saúde mental. Transtornos psiquiátricos como ansiedade e depressão podem ocorrer em escala maior após desastres, por perdas humanas, de pro-priedades e convulsões sociais. Após o furacão An-drew, casos de estresse pós-traumático foram relata-dos até dois anos depois. Após enchentes se observam aumento de suicídios, alcoolismo e outras desordens psicológicas, especialmente em crianças.

As ondas de calor geradas pelo aquecimento glo-bal provocam estresse térmico. Grande parte da mortalidade aumentada por ondas de calor está re-lacionada a doenças cardiovasculares, cerebrovas-culares e respiratórias, mais concentradas em pes-soas idosas e com doença preexistente. As áreas ur-banas são mais afetadas que as rurais, sobretudo devido às emissões de automóveis e à abundância de superfícies que retêm o calor, como o concreto e o asfalto, produzindo ilhas urbanas de calor.

As tempestades ou ciclones tropicais são parti-cularmente impactantes em áreas de risco como encostas e espaços ambientalmente degradados. Os eventos do El Niño, fenômeno climático perió-dico associado a fl utuações da pressão atmosféri-

Doenças transmitidas

estão inseridas em contexto que

depende de um conjunto de

fatores.

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➥ PARACONHECER MAIS

Organização Mundial da Saúde e Mudança Climática: http://www.who.int/en e http://www.who.int/globalchange/climate/faq/en/index.html

IPCC – Intergovernmental Panel in Climate Change: http://www.ipcc.ch/

Climate change and human health. P. Epstein, em New England Journal of Medicine, vol. 353, págs. 1433-1436, 2005.

Health effects of climate change. A. Haines e J. A. Patz, em Journal of the American Medical Association, vol. 291, no 1, págs. 99-103, 2004.

Climate change and human health: present and future risks. A. J. McMichael, R. E. Woodruff e S. Hales, em Lancet, vol. 367, págs. 859-869, 2006.

Air pollution and mortality in elderly people: a time-series study in São Paulo, Brazil. P. H. Saldiva, C. A. Pope III, J. Schwartz, D. W. Dockery, A. J. Lichtenfels, J. M. Salge, I. Barone e G. M. Bohm, em Archives of Environmental Health, vol. 50, no 2, págs. 159-163, 1995.

ca e da temperatura da superfície do oceano Pací-fi co, estão relacionados a chuvas pesadas e inun-dações do litoral oeste da América Latina. Os tornados no Sul têm sido mais freqüentes, como o furacão Catarina, em 2004, e resultam de áreas de instabilidade associadas ao ar quente e úmido de baixa pressão atmosférica que cobre essa região do Brasil. Inundações são o desastre natural mais comum, com saldo de 100 mil mortes e afetando quase 2 bilhões de pessoas em todo o mundo.

Desastres NaturaisInundações estão intimamente associadas a riscos para os seres humanos. Os impactos à saúde, se-gundo o IPCC, podem ser divididos em imediatos, de médio e longo prazo. Os imediatos incluem afogamentos e ferimentos. Os de médio prazo são as doenças infecciosas que podem ocorrer devido ao contato com água contaminada – leptospirose – ou à sua inges tão – doenças intestinais e hepati-te A. Enfermidades de longo prazo incluem os transtornos psiquiátricos.

Como exemplo de epidemia destaca-se a de gas-trenterite aguda provocada pelo norovírus e que afetou cerca de 40% das crianças e 21% dos adul-tos refugiados do furacão Katrina, na Louisiana, sul dos Estados Unidos. A chuva excessiva facilita o contato de esgoto humano e animal com reserva-tórios de água potável, aumentando a probabilida-de de doenças, com destaque para a diarréia.

Inundações e enxurradas podem retirar roedores de suas tocas, criar locais adequados para a reprodu-ção de mosquitos, atirar patógenos, nutrientes e subs-tâncias químicas nos cursos d’água. Também levam ao aumento de doenças respiratórias, manifestações alérgicas pelo crescimento de fungos, e escabiose para populações confi nadas em abrigos de emergência.

O aquecimento das águas em regiões costeiras – geralmente contaminadas com esgoto e dejetos industriais – encoraja o crescimento de patógenos, como o vibrião colérico. Pode ainda levar a uma maior concentração de toxinas em sua superfície e contaminar peixes e frutos do mar, que por sua vez ameaçam provocar envenenamentos por sua ingestão. Tempestades intensas no litoral também são capazes de desencadear perigosas prolifera-ções de algas, originando as “marés vermelhas” com acúmulo de toxinas.

A ONU estima que 20% da população mundial em 30 países já sofre com a escassez de água e, de acordo com previsões da Unesco, 1,8 bilhão de pes-soas poderão enfrentar escassez crítica de água em 2025. No mundo todo, mais de 1 bilhão de pes soas já não têm acesso à água potável e mais de 2,4 bi-lhões não dispõem de saneamento básico. A falta

de água potável será um dos fatores cruciais para o aumento de doenças entre as populações. As mu-danças do clima põem em risco a quantidade e a qualidade da água – estresse hídrico – em muitos países, onde os lençóis freáticos estão superutiliza-dos e, ao mesmo tempo, subalimentados.

O aumento das secas, como conseqüência do aquecimento global, terá impactos negativos sobre a produção de alimento e a higiene. A fome e suas conseqüências para a saúde, como a desnutrição, são o resultado mais óbvio dessa condição. Segundo a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), cerca de 790 milhões de pes soas nos países em desenvolvimento são desnutridas. Como se não bastasse, a agricultura sofrerá perda de produtividade com o novo regime de chuvas e secas e modifi cações nos solos. De acordo com Ulisses Confalonieri, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz, nessas condições a saúde da população é afe-tada inicialmente pela condição de fome epidêmica, que leva à depressão do sistema imunológico, à mi-gração e a problemas socioeconômicos, todos cola-borando para o aumento no risco de infecção.

Secas prolongadas por mudanças climáticas fa-vorecem incêndios fl orestais com uma variedade de conseqüências, além de espalhar vetores de doen ças. O aquecimento global leva à migração de espécies da fauna e da fl ora, e algumas delas não sobreviverão a esses deslocamentos forçados. A biodiversidade será crescentemente afetada, agravando a segurança alimentar e levando a per-das no patrimônio genético.

Todos os problemas de saúde relacionados exer-cem pressão na infra-estrutura de saúde pública, com aumento de demanda por serviços e degrada-ção do atendimento. Em função de todas essas ameaças, a sociedade deve priorizar transforma-ções em seus hábitos. Mesmo se todas as fontes hu-manas de emissão de gás de efeito estufa fossem interrompidas imediatamente, os impactos da mudança climática ainda se estenderiam pelos pró-ximos 50 anos. Assim, é preciso começar a mudar já, sem mais perda de tempo. ■

OS TORNADOS NO SUL têm sido mais freqüentes, como o furacão Catarina, em 2004, e resultam de áreas de instabilidade associadas ao ar quente e úmido de baixa pressão atmosférica que cobre essa região.

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