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UNIVERSIDADE CRUZEIRO DO SUL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO MESTRADO EM LINGUÍSTICA MEMÓRIA E INTERDISCURSO NA CONSTRUÇÃO DO SENTIDO DA CRÔNICA WALCYR CARRASCO HEIDE SUELY ROSÁRIO Orientadora: Maria Valíria Aderson de Mello Vargas Dissertação apresentada ao Mestrado em Linguística, da Universidade Cruzeiro do Sul, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em Linguística. SÃO PAULO 2013

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UNIVERSIDADE CRUZEIRO DO SUL

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO

MESTRADO EM LINGUÍSTICA

MEMÓRIA E INTERDISCURSO NA CONSTRUÇÃO DO

SENTIDO DA CRÔNICA WALCYR CARRASCO

HEIDE SUELY ROSÁRIO

Orientadora: Maria Valíria Aderson de Mello Vargas

Dissertação apresentada ao Mestrado em Linguística, da Universidade Cruzeiro do Sul, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em Linguística.

SÃO PAULO

2013

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AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO, PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.

FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA CENTRAL DA

UNIVERSIDADE CRUZEIRO DO SUL

R713m

Rosário, Heide Suely. Memória e interdiscurso na construção do sentido da crônica

Walcyr Carrasco / Heide Suely Rosário. -- São Paulo; SP: [s.n], 2013.

72 p. : il. ; 30 cm. Orientadora: Maria Valíria Aderson de Mello Vargas. Dissertação (mestrado) - Programa de Pós-Graduação em

Linguística, Universidade Cruzeiro do Sul. 1. Análise do discurso 2. Carrasco, Walcyr, 1951- 3. Crônica

jornalística 4. Ethos discursivo 5. Enunciados (Análise do discurso) I. Vargas, Maria Valíria Aderson de Mello. II. Universidade Cruzeiro do Sul. Programa de Pós-Graduação em Linguística. III. Título.

CDU: 81’42(043.3)

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UNIVERSIDADE CRUZEIRO DO SUL

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO

MEMÓRIA E INTERDISCURSO NA CONSTRUÇÃO DO

SENTIDO DA CRÔNICA WALCYR CARRASCO

Heide Suely Rosário

Dissertação de mestrado defendida e aprovada

pela Banca Examinadora 26/06/2013.

BANCA EXAMINADORA:

Prof.ª Dr.ª Maria Valíria Aderson de Mello Vargas

Universidade Cruzeiro do Sul

Presidente

Prof.ª Dr.ª Ana Elvira Luciano Gebara

Universidade Cruzeiro do Sul

Prof. Dr. Sandro Luís Silva

Universidade Federal de São Paulo

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Aos meus pais, Ewelton(☨) e Isabel que são

responsáveis por minha formação moral, ética, cristã e

cultural. A eles, meu carinho e gratidão.

Ao meu amado esposo, Carlos Alberto, com

admiração e gratidão por sua presença constante que me

reconforta e inspira, pela compreensão e manifestação

de carinho e apoio no decorrer de todo o tempo dedicado

ao desenvolvimento deste trabalho.

Aos meus irmãos Ewelton e Mary, meus cunhados

Inês e Laan, pelo carinho e por acreditarem nos meus

sonhos.

Aos meus queridos sobrinhos Uirá, Iberê e Juliana

Carolina, minha alegria e minha fortaleza.

À minha orientadora, Prof.ª Dr.ª Maria Valíria

Aderson de Mello Vargas, por estar ao meu lado,

orientando, apoiando, acreditando.

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AGRADECIMENTOS

Ao DEUS do impossível, por me sustentar e amparar no decorrer dos estudos.

À Universidade Cruzeiro do Sul, em especial, aos professores do Programa de

Mestrado em Linguística, pelos ensinamentos recebidos.

À Prof.ª Dr.ª Maria Valíria Aderson de Mello Vargas, pela amizade, orientação e

por ter ajudado a tornar mais lúcida esta trajetória.

À Prof.ª Dr.ª Ana Elvira Luciano Gebara e ao Prof. Dr. Sandro Luís da Silva, que

compuseram a banca para o exame de qualificação e que, com suas valiosas

contribuições, me apontaram caminhos.

Aos colegas e amigos do curso, pelo apoio e incentivo.

Aos meus familiares, pela paciência com minha necessária ausência para

dedicar-me aos estudos.

À Mary e ao Laan pelo acolhida, incentivo e apoio indispensáveis durante a

produção deste trabalho.

A Uirá, Iberê e Juliana Carolina, pela alegria dos raros encontros.

Ao Ewelton, pelo seu carinho e dedicação durante essa jornada.

À minha amiga Taís, pelo incentivo e companhia nas leituras.

A todos que tornaram possível a conclusão deste trabalho.

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“Onde estiver o teu tesouro, aí estará também o teu coração”.

Mateus 6:21

“Quero trazer à memória o que me pode dar esperança”.

Lamentações de Jeremias 3:21

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ROSÁRIO, Heide Suely. Memória e interdiscurso na construção do sentido da

crônica Walcyr Carrasco. 2013. 72 f. Dissertação (Mestrado em Linguística)-

Universidade Cruzeiro do Sul, São Paulo, 2013.

RESUMO

Este trabalho situa-se na linha de pesquisa “Discurso, gênero e memória”, do

Programa de Mestrado em Linguística da Universidade Cruzeiro do Sul, e tem por

objetivo principal analisar as marcas linguístico-discursivas que contribuem para a

construção de sentido da crônica “Assalto à geladeira”, de Walcyr Carrasco, com

base, principalmente, nos pressupostos teóricos da Análise do Discurso de linha

francesa. Apresentam-se, num primeiro momento, conceitos de discurso,

enunciação e enunciado, enunciador e coenunciador, e cenas da enunciação, que

conduzem à reflexão sobre os tópicos que mais interessam para a análise do

corpus: memória, interdiscurso, ethos e intertextualidade. Em seguida, expõem-se

as características principais do gênero crônica jornalística, com ênfase na condição

desse gênero de situar-se como jornalismo diversional e também como literatura.

Analisa-se, num terceiro momento, o emprego de certas expressões nominais,

verbais, adverbiais e pronominais, demonstrando o papel desses elementos

linguísticos na constituição de um sujeito marcado pela memória, pelo interdiscurso,

pela intertextualidade, que revela um ethos discursivo influenciado pelo que pode e

deve ser dito na sociedade em que o sujeito se insere. A análise levada a efeito

permite concluir que ocorre, na crônica selecionada como corpus, a constituição de

um sujeito clivado, visivelmente marcado, de um lado, pela ideologia da forma física

saudável, ideal, e, de outro, pela busca do prazer e da liberdade, que lhe propiciam

a inspiração para escrever.

Palavras-chave: Memória discursiva, Interdiscurso, Intertextualidade, Ethos, Gênero

crônica jornalística.

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ROSÁRIO, Heide Suely. Interdiscourse memory and the construction of the meaning of chronic Walcyr Carrasco. 2013. 72 f. Dissertação (Mestrado em Linguística)-Universidade Cruzeiro do Sul, São Paulo, 2013.

ABSTRACT

This work is in the "Discourse, gender and memory" research line, Master's Program

in Linguistics at the University Cruzeiro do Sul, and aims at analyzing the linguistic-

discursive brands that contribute to the construction of meaning in chronic “Assault

on the refrigerator”, by Walcyr Carrasco, based mainly on theoretical Discourse

Analysis of the French line. They appear, at first, the concepts of speech, articulation

and enunciation, and enunciator, coenunciator, and enunciation scenes which lead

to reflection on the topics that matter most to corpus analysis: memory,

interdiscourse, ethos and intertextuality. Then, exposing the main features of the

journalistic chronicle genre, with emphasis on the condition of this kind of lie as

diversional journalism and literature as well. Analyzing, a third time, the use of certain

nominal, verbal, adverbial and pronominal expressions, demonstrating the role of

these linguistic elements in the constitution of a subject marked by memory,

interdiscourse and intertextuality, and revealing a discursive ethos influenced by that

can and should be said in the society in which the subject takes place. The analysis

carried out shows that occurs, in chronic selected as corpus, the constitution of a

subject cleaved, clearly marked, on the one hand, by the ideology of healthy and

ideal physical form, and on the other, by the pursuit of pleasure and freedom, that

provide him the inspiration to write.

Keywords: Discoursive memory, Interdiscourse, Intertextuality, Ethos, Jurnalistic

chronicle gender.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 9

CAPÍTULO 1 – MEMÓRIA, INTERDISCURSO, ETHOS E

INTERTEXTUALIDADE NA PRODUÇÃO DE SENTIDOS ....................................... 15

CAPÍTULO 2 – ASPECTOS DISCURSIVOS E CONDIÇÕES SÓCIO-

HISTÓRICAS DE PRODUÇÃO DO GÊNERO CRÔNICA JORNALÍSTICA............. 30

CAPÍTULO 3 – ANÁLISE DAS MARCAS LINGUÍSTICO-DISCURSIVAS NA

PRODUÇÃO DE SENTIDO DA CRÔNICA “ASSALTO À GELADEIRA”, DE

WALCYR CARRASCO ............................................................................................. 37

3.1 Preliminarmente ........................................................................................... 37

3.2 Análise do corpus ........................................................................................ 38

3.3 À guisa de uma possível conclusão ........................................................... 57

CONCLUSÃO ........................................................................................................... 63

REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 64

ANEXOS ................................................................................................................... 67

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INTRODUÇÃO

Este trabalho insere-se na linha de pesquisa “Discurso, gênero e memória”,

do Programa de Mestrado em Linguística da Universidade Cruzeiro do Sul, e a

questão que se coloca como norteadora da discussão que se apresenta é:

De que modo as marcas linguísticas de memória, interdiscursividade e

intertextualidade contribuem na produção de sentido da crônica “Assalto à

geladeira”, de Walcyr Carrasco, e revelam o ethos discursivo influenciado pelo que

pode e deve ser dito na sociedade em que se insere?

A partir da questão citada acima, identificamos e analisamos as marcas

linguísticas (nominais, pronominais, verbais e adverbiais) capazes de revelar indícios

de memória, de interdiscurso e de intertexto, na construção de sentido da crônica de

Walcyr Carrasco1, publicada na Revista Veja São Paulo, em 22 de setembro de

2010.

Justifica-se a escolha desse texto, como objeto de análise deste trabalho,

por ser, dentre as crônicas do autor, representativa de um verdadeiro processo de

constituição de um sujeito “clivado” (BRANDÃO, 2012, p. 67), marcado, por um lado,

pela ideologia da forma física saudável, ideal, e, por outro, pela busca do prazer e da

liberdade, que lhe propiciam a inspiração criadora.

Na crônica em questão, materializam-se preocupações quanto à força da

“ditadura da beleza”, que vigora no cenário contemporâneo, e o embate entre

manter-se “magro”, de acordo com os padrões de exigência da sociedade na qual se

insere, e comer por ansiedade e/ou compulsão na madrugada, enquanto se trabalha

ou se participa das redes sociais, ferindo, dessa forma, o que se considera como

norma de civilidade.

1 Walcyr Carrasco é escritor, dramaturgo e roteirista. Escreveu crônicas na Revista Veja São Paulo durante longo

período e, recentemente, passou a escrever para a revista Época.

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Destacam-se, também, neste trabalho, as principais características do

gênero crônica jornalística, fundamentais para a compreensão da análise do corpus,

apresentada no terceiro capítulo desta dissertação.

Segundo Sá (2008, p. 7, 8), esse gênero conserva a marca de registro

circunstancial feito por um narrador-repórter, conforme o que era feito na origem do

gênero, entretanto hoje relata fatos relacionados não apenas a um “nobre”, a um

privilegiado, como antes, mas a um universo bastante abrangente de tipos sociais e,

dessa forma, alcança um número maior de leitores.

É fundamental, então, questionarmos: quem são esses leitores?

Sá (2008, p. 7, 8) pondera que o gênero crônica, hoje, representa jornalismo

e literatura entrelaçados, e dirige-se diretamente à classe que tem preferência pelo

jornal e/ou revista de publicação, portanto é marcado também pela ideologia do

midium, da época de publicação e dos interesses de seus consumidores/leitores.

Por essa razão, interessa-nos expor as características sócio-históricas desse

gênero, que, conforme mencionado, se insere no âmbito maior do discurso

jornalístico, em confluência com o discurso literário.

A crônica em análise foi publicada na Revista Veja São Paulo, em 22 de

setembro de 2010, veículo destinado, sobretudo, às camadas econômicas A e B, ou

seja, representantes de uma elite que, sob a pressão dos valores sócio-históricos do

momento, demonstra estar frequentemente preocupada com as questões da referida

ditadura da beleza, materializadas no texto selecionado como corpus.

A Revista Veja São Paulo destina apenas uma página para a publicação da

crônica. Dessa forma, é importante lembrarmos que, na crônica, é necessário

explorar o tema de maneira sucinta e que decorre daí a riqueza estrutural acionada

para a construção dos sentidos, sendo, portanto, excelente objeto de análise, pois

reúne pelas marcas linguísticas de memória, interdiscurso, intertextualidade e ethos,

aspectos que permitem sua análise e compreensão.

É importante lembrar, com Marcuschi (2010, p. 193-194), que os textos se

inserem “em domínios discursivos que produzem contextos e situações para práticas

sociodiscursivas”; assim, entendemos o domínio discursivo como esfera da vida

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institucional, e, no caso da crônica em questão, vale considerarmos a esfera

jornalística, marcada por traços literários, na qual se organizam formas e estratégias

de comunicação.

Quanto ao domínio discursivo pertinente ao gênero textual, é ainda

fundamental considerar, de acordo com Sá (2008, p. 9), que o cronista materializa

as ideologias, dando a impressão de ficar na superfície de seus próprios

comentários, e nem sequer colocar-se na pele de narrador. É também importante

observarmos que o que ele diz é narrado de forma tão verossímil que o leitor

experimenta a mesma sensação de quando lê uma reportagem.

Pretendemos, com a dissertação, analisar também questões pertinentes ao

interdiscurso. Para tanto, valemo-nos, por exemplo, dos conceitos apresentados por

Courtine e Marandin (1981, apud BRANDÃO, 2012, p. 91):

O interdiscurso consiste em um processo de reconfiguração no qual uma formação discursiva é conduzida [...] a incorporar elementos pré-construídos produzidos no exterior dela própria; a produzir sua redefinição e seu retorno, a suscitar igualmente a lembrança de seus próprios elementos, a organizar a sua repetição, mas também a provocar eventualmente seu apagamento, o esquecimento ou mesmo a denegação.

Tais características, que remetem às concepções de memória, podem ser

identificadas e analisadas a partir de sua ocorrência na crônica utilizada como

corpus, bem como podem ser considerados elementos de interdiscursividade e de

intertextualidade presentes no texto, na medida em que a intertextualidade

pressupõe sempre uma interdiscursividade, para assim responder à questão

proposta neste trabalho.

Este trabalho organiza-se em três capítulos:

No Capítulo 1, intitulado “Memória, interdiscurso, ethos e intertextualidade”,

analisamos os conceitos teóricos básicos para a discussão da proposta. Partimos

das noções de discurso, enunciação/enunciado, enunciador/ coenunciador e cenas

da enunciação, para chegarmos aos tópicos que mais nos interessam na análise do

corpus: as concepções de memória, interdiscurso, ethos e intertextualidade.

Baseamo-nos, principalmente, nas ideias dos estudiosos da Análise do Discurso de

linha francesa, dentre eles, Pêcheux (1975, 1999), Maingueneau (1984, 1997, 200,

2008, 2011), Orlandi (2010, 2012) e Brandão (2012).

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No Capítulo 2, “Aspectos discursivos e condições sócio-históricas de

produção do gênero crônica jornalística”, apresentamos as características mais

importantes do gênero em questão, que também embasarão a análise do corpus. As

ideias de Bakhtin (2010), de Maingueneau (2011), de Melo (2003), dentre outras,

fundamentam a discussão sobre o gênero do discurso como dispositivo de

comunicação que se produz sob certas condições sócio-históricas, associadas a

determinado setor de atividade social, a certo lugar e a certo momento.

O Capítulo 3, intitulado “Análise das marcas linguístico-discursivas na

produção de sentido da crônica ´Assalto à geladeira´, de Walcyr Carrasco”, destina-

se a identificar e analisar certos elementos da materialidade linguística do texto,

sobretudo expressões nominais, verbais, adverbiais e pronominais, capazes de

contribuir para a revelação de um sujeito afetado, por um lado, pelos padrões

sociais de estética predominante neste início de século XXI, pela busca da chamada

“boa forma”, e, por outro, pela busca do prazer, alcançado pela subversão àqueles

padrões sociais, sobretudo pelo prazer da alimentação. É fundamental reforçar que

essas marcas são consideradas como indícios de memória, de interdiscurso, de

intertextualidade e de ethos desse sujeito e que são também elementos

fundamentais para a construção dos sentidos da crônica em questão.

Leva-se em conta, enfim, na análise do corpus, a ideia de Maingueneau

(2011, p. 95) de que toda fala procede de um enunciador encarnado e que, mesmo

na forma escrita, o texto é sustentado por uma voz, exatamente a voz de um sujeito

situado além do texto, na sociedade, e que por meio da enunciação revela o

enunciador quando apresenta as interiorizações de normas de vida.

Desse modo, julgamos que analisar certos efeitos de sentido provocados, no

texto, pelo emprego de algumas marcas linguísticas que revelam um sujeito situado

sócio-historicamente e também aspectos discursivos que permitem identificar o

“ethos” do enunciador, e marcas intertextuais e interdiscursivas, pode contribuir para

a expansão dos estudos de análise do discurso voltados para o texto literário,

sobretudo, para o que caracteriza o gênero crônica. De acordo com Melo (2010), há

pouquíssimos estudos pertinentes à esfera jornalística que envolve, como no caso

da crônica em questão, aspectos literários no desenvolvimento estrutural do texto.

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Assim, no decorrer do trabalho, analisamos as marcas linguístico-discursivas

na produção de sentido da crônica “Assalto à geladeira”, de Walcyr Carrasco na qual

verificamos a existência de fortes marcas do “poder” da “ditadura da beleza” nesta

primeira década do século XXI, aspectos materializados linguisticamente por

expressões como:

“Durante o dia eu me comporto bem. Almoço uma salada, no jantar só um

peixinho”.

Há referências à alimentação leve como, por exemplo, no uso do sintagma

verbal “comportar-se bem”. A lexia “bem” demonstra que há julgamento social (bem

X mal), socialmente considerada adequada, entretanto o excerto seguinte descreve

o dilema de estar sujeito às regras de beleza que remontam aos gregos.

“No período diurno sou vítima de uma entidade: o Exu tranca-texto, que me

impede de inventar histórias a luz do sol.”

Observamos, no excerto supracitado, que a construção dos sentidos decorre

da escolha lexical, ou seja, da seleção das marcas linguístico-discursivas que

exercem forte poder de persuasão no coenunciador, pois no exemplo acionado, Exu

corresponde a Mercúrio da mitologia romana, referência a Hermes da mitologia

grega, aquele responsável pela comunicação; então, se este só estimula criatividade

durante a noite, o coenunciador constrói o sentido de que durante o dia não há como

escrever, isenta o enunciador.

Evidencia-se que o gênero crônica, no qual se insere o texto em análise,

permite abordar com bom-humor e leveza questões polêmicas como a “ditadura da

beleza”. Importante destacar que os leitores de Carrasco são aqueles que acessam

a Revista Veja (veículo/suporte da crônica), identificados como oriundos das classes

econômicas A e B, fato que indica também fácil acesso à informação, portanto

capazes de realizar analogias entre uma entidade da cultura afro-brasileira e a

mitologia grega.

Assim, no decorrer do trabalho, analisamos as marcas linguístico-discursivas

na produção de sentido da crônica “Assalto à geladeira”, de Walcyr Carrasco, na

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qual verificamos a existência de fortes marcas do “poder” da “ditadura da beleza” no

século XXI, aspectos materializados linguisticamente em trechos como:

“Durante o dia eu me comporto bem. Almoço uma salada, no jantar só um

peixinho”.

“No período diurno sou vítima de uma entidade: o Exu tranca-texto, que me

impede de inventar histórias a luz do sol.”

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CAPÍTULO 1 – MEMÓRIA, INTERDISCURSO, ETHOS E

INTERTEXTUALIDADE NA PRODUÇÃO DE SENTIDOS

A partir dos pressupostos da AD (Análise do Discurso – corrente

francesa) podemos observar como se constrói o sentido do texto pelas análises

das marcas linguísticas de memória, de interdiscurso, de ethos e de

intertextualidade, foco deste primeiro capítulo. Nesse contexto, torna-se

importante estabelecermos a fundamentação teórica que norteará as análises da

crônica “Assalto à geladeira”, de Walcyr Carrasco, corpus desta pesquisa.

Inicialmente, apresentamos os conceitos de discurso, enunciado,

interdiscurso e enunciador adotados no trabalho, que embasarão a análise do

gênero crônica.

Consideremos as definições de Maingueneau (2000, p. 43 e 55,

respectivamente):

discurso é um modo de apreensão da linguagem: a atividade de sujeitos inscritos em contextos determinados. O discurso tomado como enunciado forma uma unidade de comunicação associada a condições de produção determinadas, ou seja, depende de um gênero de discurso determinado.

O enunciado é frequentemente considerado como um equivalente de texto, ou seja, como uma sequência verbal relacionada com a intenção de um mesmo enunciador e que forma um todo dependente de um gênero de discurso determinado.

Para Maingueneau (2000), a enunciação constitui o pivô da relação entre a

língua e o mundo; ela permite representar no enunciado os fatos, mas constitui em si

um fato, um acontecimento único, definido no tempo e no espaço.

Já Bakhtin (1998, p. 86) considera a enunciação como todo discurso

concreto que

encontra aquele objeto para o qual está voltado, sempre, por assim dizer, desacreditado, contestado, avaliado, envolvido por sua névoa escura ou, pelo contrário, iluminado pelos discursos de outrem que já falaram sobre ele. O objeto está amarrado e penetrado por ideias gerais e por pontos de vista, por apreciações de outros e por entonações. Orientado para o seu objeto, o discurso penetra neste meio dialogicamente perturbado e tenso de discursos de outrem, de julgamentos e de entonações. Ele se entrelaça com eles em interações complexas, fundindo-se com uns, isolando-se de outros,

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cruzando com terceiros; e tudo isso pode formar substancialmente o discurso, penetrar em todos os seus estratos semânticos, tornar complexa a sua expressão, influenciar todo o seu aspecto estilístico.

Importante também é considerarmos outra definição de Bakhtin,

apresentada por Fiorin (2012, p. 168-169):

Um enunciado concreto é um elo na cadeia da comunicação verbal de uma dada esfera. As fronteiras desse enunciado determinam-se pela alternância dos sujeitos falantes. Os enunciados não são indiferentes uns aos outros nem autossuficientes; conhecem-se uns aos outros, refletem-se mutuamente. São precisamente esses reflexos recíprocos que lhes determinam o caráter. O enunciado está repleto dos ecos e lembranças de outros enunciados, aos quais está vinculado numa esfera comum da comunicação verbal. O enunciado deve ser considerado acima de tudo como uma resposta a enunciados anteriores dentro de uma dada esfera (a palavra “resposta” está empregada aqui no sentido lato): refuta-os, confirma-os, completa-os, supõe-nos conhecidos e, de um modo ou de outro, conta com eles. (...) Não podemos determinar nossa posição sem correlacioná-la a outras posições.

O enunciado, portanto, pressupõe a existência de outro elemento

participante da “cadeia da comunicação verbal”: o enunciador. De acordo com

Charaudeau & Maingueneau (2008, p. 200), o termo enunciador “designa o ser de

fala (ou de enunciação) construído pelo ato de enunciação do sujeito comunicante”;

constitui “a identidade enunciativa que o sujeito comunicante dá a si mesmo”.

Fiorin (2012, p.177) lembra que Bakhtin preconiza que a maioria das

opiniões dos indivíduos é social e que

todo enunciado, além de um destinatário imediato, que é percebido com maior ou menor consciência, dirige-se a um superdestinatário, cuja compreensão responsiva, idealmente correta, é determinante em sua produção. Esse superdestinatário assume uma identidade que varia de época para época, de formação social, de grupo social para grupo social: a Igreja, a “correção política”, o partido, a ciência etc.

Para Bakhtin (1992), não há neutralidade na circulação das vozes e essas

não circulam fora do exercício de poder, ou seja, não se diz o que se quer, quando

se quer, como se quer.

Fiorin (2012, p. 166) lembra também que, para Bakhtin (1992, p. 319), “todo

discurso dialoga com outros discursos, toda palavra é cercada de outras palavras”.

Assim considera que “o interlocutor só existe enquanto discurso. Há, pois, um

embate de dois discursos: o do locutor e o do interlocutor, o que significa que o

dialogismo se dá sempre entre discursos”.

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Para Ducrot (1987, p. 192-193):

o enunciador está para o locutor assim como a personagem está para o autor. O autor coloca em cena personagens que exercem uma ação linguística e extralinguística, ação que não é assumida pelo próprio autor. (...) o locutor, responsável pelo enunciado, dá existência , através deste, a enunciadores de quem ele organiza os pontos de vista e as atitudes. E sua posição própria pode se manifestar seja porque ele se assimila a este ou aquele dos enunciadores, tomando-o por representante (o enunciador é então atualizado).

Não deixando de considerar essa relação que Ducrot estabelece entre

enunciador e locutor, adotamos neste trabalho a denominação de enunciador para

designar o sujeito que “ganha voz” no texto.

Concordamos com Brandão (2012, p.106), que define o enunciador como

a figura da enunciação que representa a pessoa cujo ponto de vista é apresentado. É a perspectiva que o locutor constrói e de cujo ponto de vista narra, quer identificando-se com ele, quer distanciando-se dele”.

Convém lembrar ainda que, para Maingueneau (2000, p. 22), o outro (o

leitor) não apenas se constitui por suas leituras, mas está já presente no próprio

processo de produção do texto (objeto) que será lido, e enquanto leitor proficiente,

ou seja, que estabelece os sentidos, ele é coenunciador do texto.

Assim, o leitor real age como o enunciador da significação que construiu em

sua leitura, e o outro (o autor) passa, neste momento, a coenunciador. Portanto,

podemos considerar que o coenunciador é aquele ao qual se dirige o enunciador; os

representantes da classe social para a qual se destina o texto.

Consequentemente, o coenunciador constitui, como o enunciador, um

elemento em relação ao qual se realizam as operações de localização no plano

espaço-temporal do texto, marcando também a determinação da escolha lexical do

nome (qualificação e quantificação) e do verbo (aspectuais, temporais e modais),

elementos que se entrelaçam e estabelecem os dados a serem analisados para a

construção dos sentidos.

Em Brandão (2012), encontramos também importantes conceitos que

fundamentarão a análise da crônica, como as condições de produção do texto que,

segundo a autora, constituem a instância verbal de produção do discurso: o contexto

histórico-social, os interlocutores, o lugar de onde falam e a imagem que fazem de

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si, do outro e do referente. A autora destaca, por exemplo, as noções de

formações discursivas e ideológicas que nos interessam aqui descrever.

Formação discursiva, segundo Brandão (2012, p.106-107), é um

conjunto de enunciados marcados pelas mesmas regularidades, pelas mesmas “regras de formação”. A formação discursiva é definida pela sua relação com a formação ideológica, isto é, os textos que fazem parte de uma formação discursiva remetem a uma mesma formação ideológica.

A formação ideológica, por sua vez, determina “o que pode ser dito” a partir

de um lugar social historicamente determinado. Um mesmo texto pode aparecer em

formações discursivas diferentes, acarretando, com isso, variações de sentido. Por

exemplo, na crônica em análise, o enunciador evidencia uma formação ideológica

afetada, ou seja, com marcas de preocupação com a ditadura da beleza. Daí, a

necessidade de considerarmos a formação ideológica na materialidade do discurso

e na formação discursiva.

Nas palavras de Brandão (2012, p.107), formação ideológica é aquela

constituída por um conjunto complexo de atitudes e representações que não são nem individuais, nem universais, mas dizem respeito, mais ou menos diretamente, às posições de classes em conflito umas com as outras. Cada formação ideológica pode compreender várias formações discursivas interligadas.

Essas ideias se complementam com a de “assujeitamento ideológico”,

exposta também por Brandão (2012, p. 105):

consiste em fazer com que cada indivíduo (sem que ele tome consciência disso, mas ao contrário, tenha a impressão de que é senhor de sua própria vontade) seja levado a ocupar seu lugar, a identificar-se ideologicamente com grupos ou classes de uma determinada formação social.

Sempre nos baseando nos pressupostos da AD (Análise do Discurso –

corrente francesa), podemos observar também como se constrói o ethos do

enunciador, identificando-se as marcas linguísticas de memória e interdiscurso no

referido texto e, dessa forma, vale salientar que consideramos o uso da linguagem

como prática social, pois, na enunciação, o enunciador expressa opiniões firmado na

ideologia advinda da sociedade em que ele se insere. Por exemplo, na crônica de

Walcyr Carrasco, há marcas da ideologia predominante nesse início de século XXI,

em que a beleza física é objeto de desejo fundamental e “assaltos à geladeira”

representam desvios do comportamento considerado “normal”, “sociável”.

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Na observação de como se constrói o ethos, utilizamos a ideia de que este

se constitui por meio da enunciação; revela-se pela materialidade linguística a

personalidade do enunciador, conceito apresentado por Maingueneau (2011, p. 98)

e que se aplica ao objeto de análise.

Maingueneau (2008, p. 56) apregoa que o ethos consiste em causar boa

impressão mediante a forma com que se constrói o discurso, em dar uma imagem

de si capaz de convencer o auditório, ganhando confiança. O autor (idem, p. 57)

lembra o ponto essencial do ethos, de acordo com Aristóteles: “Persuade-se pelo

caráter quando o discurso é tal que torna o orador digno de fé (...).” Mas é

necessário que essa confiança seja efeito do discurso, não de uma opinião sobre o

caráter do orador.

Para Maingueneau (2008, p. 59) o ethos retórico não está ligado a um saber

extradiscursivo, mas persuade quando o discurso torna o orador fidedigno, assim

como apregoado por Barthes:

ethos são os traços de caráter que o orador deve mostrar ao auditório (pouco importa sua sinceridade) para causar boa impressão: são os ares que assume ao se apresentar (...) O orador enuncia uma informação, e ao mesmo tempo diz: eu sou isto, eu não sou aquilo.

Observamos que a partir das análises desses traços, desses

posicionamentos, o leitor (coenunciador) pode estabelecer os sentidos, pois,

ainda segundo Maingueneau (2008, p.57) o ethos “mobiliza a afetividade do

destinatário”.

Maingueneau (2011, p. 97-98), ainda ao tratar do ethos, apresenta a ideia

de que

por meio da enunciação, revela-se a personalidade do enunciador. (...) o texto escrito possui, mesmo quando o denega, um tom que dá autoridade ao que é dito. Esse tom permite ao leitor construir uma representação do corpo do enunciador (e não, evidentemente, do corpo do autor efetivo). A leitura faz, então, emergir uma instância subjetiva que desempenha o papel de fiador do que é dito. [Grifos do autor.]

A noção de “fiador” é assim exposta por Maingueneau (2011, p. 98):

ao fiador, cuja figura o leitor deve construir a partir de indícios textuais de diversas ordens, são atribuídos um caráter e uma corporalidade, cujo grau de precisão varia segundo os textos. O “caráter” corresponde a uma gama de traços psicológicos, já a “corporalidade” corresponde a uma compleição

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corporal, mas também a uma maneira de se vestir e de se movimentar no espaço social. [Destaques do autor.]

Nesse cenário, o ethos, de acordo com Maingueneau (2011, p. 99),

implica, com efeito, uma disciplina do corpo apreendido por intermédio de um comportamento global. O caráter e a corporalidade do fiador provêm de um conjunto difuso de representações sociais valorizadas ou desvalorizadas, sobre as quais se apoia a enunciação que, por sua vez, pode confirmá-las ou modificá-las.

Fundamentando-nos nesses conceitos, adotamos, na análise da crônica

selecionada como corpus, a ideia de que texto é aquele sustentado por uma voz – a

de um sujeito situado para além do texto, conforme Maingueneau (2011, p. 95).

Dada a complexidade dos elementos discursivos considerados na

construção dos sentidos do texto, Fiorin (2012, p. 163-164) conceitua que “todo texto

é um intertexto; outros textos estão presentes nele, em níveis variáveis, sob formas

mais ou menos reconhecíveis”. Assim, define a intertextualidade como a maneira

real de construção do texto.

Fiorin (2012, p. 181) chama de interdiscursiva qualquer relação dialógica,

uma vez que é uma relação de sentido, e reserva a noção de intertextualidade para

os casos em que “a relação discursiva é materializada nos textos”. Para o

pesquisador, “a intertextualidade pressupõe sempre uma interdiscursividade, mas o

contrário não é verdadeiro”.

Observamos então que, para Fiorin (2012, p. 165), intertextualidade é:

qualquer referência ao Outro, tomando como posição discursiva: paródias, alusões, estilizações, citações, ressonâncias, repetições, reproduções de modelos, de situações narrativas, de personagens, variantes linguísticas, lugares comuns, etc.

Outro conceito necessário às análises refere-se ao de supradestinatário que,

segundo a AD (corrente francesa), é a representação do “arquétipo do grupo ao qual

pertencemos ou ao qual sonhamos pertencer” (PEYTARD-MOIRAND 1992, p. 88,

apud MAINGUENEAU, 2000, p.136), aspecto recorrente na crônica de Walcyr

Carrasco e em conformidade ao que Maingueneau (2000, p. 97) afirma: “Por meio

de sua fala, o enunciador faz sentir o comportamento atribuído”

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A maneira de dizer do enunciador atesta de algum modo a legitimidade do

que é dito pelo fato de encarná-lo. Assim, percebemos que “o dizer” está sempre

ligado à memória.

Sobre memória discursiva, o Dicionário de Análise do Discurso

(CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2008, p. 325) aponta que o discurso está sujeito

à memória de maneira constitutiva, com foco em dois planos necessários: o da

textualidade e o da história. Na concepção desses autores, o discurso é regido “pela

memória de outros discursos”, ou seja, ao emitirmos um enunciado, podemos nos

utilizar de um enunciado já dito, bem como acionar interdiscursos.

Segundo Pêcheux (1975), os enunciados produzidos em um dado momento

da história podem ser atualizados num novo discurso ou rejeitados mais tarde em

novos contextos discursivos. Ao produzir novos discursos, cada sujeito se utiliza de

enunciados pré-construídos na memória discursiva e estes, ao produzir novos

discursos, podem estabelecer relações com tudo o que já foi dito, com o

interdiscurso, com sua memória discursiva.

Para Orlandi (2010, p. 31), a memória, quando pensada em relação ao

discurso, é interdiscurso, que “disponibiliza dizeres que afetam o modo como o

sujeito significa em uma situação discursiva dada”. A autora assim define o

interdiscurso:

é todo conjunto de formulações feitas e já esquecidas que determinam o que dizemos. Para que minhas palavras tenham sentido é preciso que elas já façam sentido. E isso é efeito do interdiscurso: é preciso que o que foi dito por um sujeito especifico, em um momento particular, se apague na memória para que, passando para o “anonimato”, possa fazer sentido em “minhas” palavras. (ORLANDI, 2010, p.33)

A observação das marcas linguísticas de memória e de interdiscurso pode

ser feita a partir da escolha lexical, em especial das situações de uso dos verbos,

pronomes, adjuntos adverbiais, substantivos, e assim é possível identificar os

sujeitos que se manifestam, bem como o posicionamento do enunciador (analisado

pela imagem de si), e do coenunciador, diante das ideias postas.

Revisitando Barthes, Koch (1997, p. 46) lembra que o texto é compreendido

pelo diálogo com outros textos já existentes, caracterizando-se em uma permuta

entre diversos textos, ou seja, pela intertextualidade, que Maingueneau (1997, p. 63)

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entende como “o conjunto de relações explícitas ou implícitas que um texto

estabelece com outros textos”, elementos que norteiam nossa análise da construção

dos sentidos na crônica de Walcyr Carrasco.

Assim, consideramos que a observação das marcas de intertextualidade são

objetos de análise que podem também nortear a leitura e a compreensão do texto

por parte do leitor, ou seja, encaminhar para essa construção dos sentidos.

Torna-se importante lembrar que, segundo Sato (2002, p. 33), o cronista, ao

criar situações e personagens baseados em incidentes reais, recria o real, as

marcas do tempo e do espaço no qual se materializa. Assim, a crônica utiliza

emoções, fatos ficcionais ou recuperados pela memória do cronista; decorre daí a

identificação dos leitores que, por remissão, encontram em sua memória discursiva

elementos para a construção dos sentidos.

Segundo Maingueneau (apud Koch, 1997, p. 47), “um discurso não vem ao

mundo numa inocente solicitude, mas constrói-se em relação de um já dito em

relação ao qual toma posição”. Considerando que o discurso se constrói em relação

a um já dito, esse “dizer” requer conexões entre os elementos para que o leitor tenha

dados para estabelecer sentidos; dessa forma, torna-se necessário explorar o

conceito de embreagem textual.

Em Análise de textos de comunicação (2011, p. 108), Maingueneau define

embreagem como “o conjunto de operações pelas quais um enunciado se ancora na

sua situação de enunciação, e embreantes (...) como sendo os elementos que no

enunciado marcam essa embreagem”.

Em outra obra, Termos-chave da análise do discurso, Maingueneau (2000,

p. 49) considera que

embreantes são unidades linguísticas cujo valor referencial depende do ambiente espaço-temporal de sua ocorrência. Eu é um embreante porque seu referente é identificado como o indivíduo que, em cada ocorrência, em cada acontecimento enunciativo, está em condições de dizer “eu” (...) Essa categoria recobre em particular as pessoas linguísticas (eu - tu), os demonstrativos (esse, isso.), os tempos do verbo (passado, presente, futuro).

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É fundamental ressaltar que há também os embreantes temporais e

espaciais que auxiliam a situar o leitor (coenunciador), sobretudo, porque esses

elementos estabelecem ideologias pertinentes ao tempo e ao espaço.

Do ponto de vista da análise do discurso, de linha francesa, ainda de acordo

com Maingueneau (2000, p. 49)

os embreantes permitem opor os enunciados que organizam suas marcações com relação à situação de enunciação e aqueles que constroem marcações através de um jogo de envios internos ao enunciado.

É importante lembrar que a crônica, gênero do corpus deste trabalho,

mantém o diálogo com outros textos, que são articulados pelo seu autor, devido à

significativa quantidade de traços de interdiscursos que permeiam o texto. Surge

então a necessidade de reafirmarmos o conceito de interdiscurso a ser considerado

no decorrer das análises. Como a corrente adotada é a AD francesa, referendamo-

nos em Maingueneau, para quem

O interdiscurso consiste em um processo de reconfiguração incessante no qual uma formação discursiva é levada (...) a incorporar elementos pré-construídos, produzidos fora dela, com eles provocando sua redefinição e redirecionamento, suscitando, igualmente, o chamamento de seus próprios elementos para organizar sua repetição, mas também provocando, eventualmente, o apagamento, o esquecimento ou mesmo a denegação de determinados elementos. (MAINGUENEAU, 1997, p. 113) [Grifos do autor].

Esse eventual “esquecimento” ou reorganização de elementos por meio da

remissão busca em evidências da memória a base dessa renovação da memória

discursiva.

A construção dos sentidos decorrente gera o discurso que, de acordo com

Possenti (2009, p. 31),

é o que as pessoas dizem porque, para dizer, elas estão necessariamente inseridas em situações sociais – às quais se poderia chamar de posições de sujeito. A tese base da AD é que todo discurso se constitui de enunciados e de condições de produção.

A referida situação social se observa na crônica em questão por meio do

ethos que se manifesta, das marcas linguísticas de memória e de interdiscurso, das

transferências responsivas (inclusão de outras vozes, além do sujeito enunciador), e,

sobretudo pelas marcas intertextuais, a partir das quais as ideologias se manifestam.

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Essas ideias se complementam com outras noções de discurso e de

enunciação, apresentadas por Maingueneau (2011, p. 53-54, respectivamente):

O discurso é “orientado” porque é concebido em função de uma perspectiva assumida pelo locutor e se desenvolve no tempo, de maneira linear. A problemática dos “atos de discurso” mostrou que toda enunciação constitui um ato (...) que visa modificar uma situação. Em um nível superior, esses atos elementares se integram em discursos de um gênero determinado (...) que visam à produção de uma modificação nos destinatários.

Toda enunciação, mesmo produzida sem a presença de um destinatário, é, de fato, marcada por uma interatividade constitutiva, é uma troca explícita ou implícita, com outros enunciadores, virtuais ou reais, e supõe sempre a presença de uma outra instância de enunciação à qual se dirige o enunciador e com relação à qual constrói seu próprio discurso.

Maingueneau (2011, p. 55), certamente, refere-se ao papel do coenunciador,

ao afirmar:

O discurso só é discurso enquanto remete a um sujeito, um EU, que se coloca como fonte de referências pessoais, temporais, espaciais e, ao mesmo tempo, indica que atitude está tomando em relação àquilo que diz e em relação a seu coenunciador. O discurso só adquire sentido no interior de um universo de outros discursos, lugar no qual ele deve traçar seu caminho. [grifos do autor]

Estabelecendo uma conexão entre os elementos da AD francesa,

Maingueneau (2011, p. 56) considera o enunciado como “a marca verbal do

acontecimento que é a enunciação”. Ele salienta que o conceito também é

empregado para designar uma sequência verbal que forma uma unidade de

comunicação completa “no âmbito de um determinado gênero de discurso”.

Assim, para analisarmos os traços de memória e interdiscurso na crônica

“Assalto à geladeira”, faz-se necessário observar as ligações entre os conceitos de

texto, enunciado, enunciação, enunciador, discurso, memória e interdiscurso, que

buscamos aqui apresentar.

Para identificar as situações que se materializam na crônica de Walcyr

Carrasco e que estabelecem os sentidos, é fundamental observarmos também as

relações entre memória e interdiscurso, considerando-se o que afirma Pêcheux

(2010, p. 52):

Tocamos aqui um dos pontos de encontro com a questão da memória como estruturação de materialidade discursiva complexa, estendida em uma dialética da repetição e da regularização: a memória discursiva seria aquilo que, face a um texto, surge como acontecimento a ler, vem restabelecer os

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“implícitos” (quer dizer, mais tecnicamente, os pré-construídos, elementos citados e relatados, discursos-transversos, etc.) de que sua leitura necessita: a condição do legível em relação ao próprio legível.

Os “pré-construídos”, mencionados no trecho acima, são elementos citados

e relatados, bem como os discursos transversos que estabelecem a base para a

construção dos sentidos da crônica, pois são frequentes no desenvolvimento do

texto.

Observamos que há, no corpus, evidências de interdiscurso na

caracterização do sujeito enunciador que se apropria de objetos (sociais) e os

articula para dar coerência a seu propósito, de acordo com as ponderações de

Pêcheux (1975, p, 35):

Com efeito, o interdiscurso é o lugar no qual se constituem, para um sujeito falante que produz uma sequência discursiva dominada por uma FD determinada, os objetos de que esse sujeito enunciador se apropria para fazer deles objetos de seu discurso, bem como as articulações entre esses objetos pelos quais o sujeito enunciador vai dar uma coerência a seu propósito.

De acordo com Brandão (2012, p. 59), o sujeito é essencialmente histórico,

por ser marcado espacial e temporalmente, ou seja, produz a fala de um

determinado lugar e de um determinado tempo e “à concepção de um sujeito

histórico articula-se outra noção fundamental: a de um sujeito ideológico”, portanto

as ideologias materializadas nos textos produzidos estão sempre presentes, e

podem ser percebidas pelas análises das marcas linguísticas de memória e

interdiscurso.

Essa noção de sujeito histórico reflete-se na concepção de texto,

apresentada, também, por Brandão (2012, p.110):

uma unidade complexa de significação cuja análise implica as condições de produção (contexto histórico-social, situação, interlocutores)”. É uma forma de concretização do discurso. Para produzir ou compreender um texto, tenho que levar em conta as suas condições de produção, que envolvem não só a situação imediata (quem fala, a quem o texto é dirigido, quando e onde se produz ou foi produzido), mas também uma situação mais ampla em que essa produção se dá: que valores, crenças os interlocutores carregam, que aspectos sociais, históricos, políticos, que relações de poder determinam essa produção. Para produzir/compreender um texto tenho que ter não só conhecimentos linguísticos (conhecer o vocabulário, a gramática da língua, isto é, suas regras morfológicas e sintáticas) mas também tenho que ter conhecimentos extralinguísticos (conhecimento de mundo, enciclopédico, históricos, culturais, ideológicos de que trata o

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texto) que me permitirão dizer a que formação discursiva pertence e a que formação ideológica está ligado.

Orlandi (2012, p. 54) expande a definição, ao afirmar que

o texto (...) não é uma unidade fechada — embora, como unidade de análise, ele possa ser considerado uma unidade inteira — pois ele tem relação com outros textos (existentes, possíveis ou imaginários), com suas condições de produção (os sujeitos e a situação), com o que chamamos sua exterioridade constitutiva (o interdiscurso: a memória do dizer).

Neste ponto, vale lembrar a noção de “intertextualidade interna”, que

Brandão (2012, p. 95) associa à de memória discursiva:

No nível da intertextualidade interna, interior ao campo, de maneira geral, a toda formação discursiva se vê associar uma memória discursiva. É a memória discursiva que torna possível a toda formação discursiva fazer circular formulações anteriores, já enunciadas. É ela que permite, na rede de formulações que constitui o intradiscurso de uma FD, o aparecimento, a rejeição ou a transformação de enunciados pertencentes a formações discursivas historicamente contíguas. Não se trata, portanto, de uma memória psicológica, mas de uma memória que supõe o enunciado inscrito na história.

Tendo em vista essas afirmações, é possível concluir que a enunciação é

considerada como um processo em que o sujeito se mostra representante de um

tempo na sociedade, não é apenas autor, a “fonte” que delega o “modo de dizer” ao

enunciador. Nesse cenário, o conceito de sujeito acionado vale ser explicitado. “O

sujeito é um lugar de significação historicamente constituído”. (ORLANDI, 2012, p.

37). Sendo historicamente constituído, esse sujeito está diretamente relacionado aos

valores e demandas do momento histórico no qual se insere.

Cabe, então, lembrar as cenas de enunciação (englobante, genérica e

cenografia), de acordo com Maingueneau. O autor (2008, p. 115-116) identifica

como cena englobante “aquela que corresponde ao tipo de discurso, a seu estatuto

pragmático”. Ela determina o estatuto dos parceiros e certo quadro espaço-temporal

para toda e qualquer sociedade e toda e qualquer época. As relações entre essas

cenas variam de uma conjuntura a outra. “A cena englobante não é suficiente para

especificar as atividades discursivas nas quais se encontram engajados os sujeitos.”

A cena genérica, como explica Maingueneau (2008, p. 115-116), é

determinada pelos gêneros de discursos particulares. O gênero de discurso implica

um contexto específico: papéis, circunstâncias (em particular, um modo de inscrição

no espaço e no tempo) um suporte material, uma finalidade etc.

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Das cenas da enunciação, propostas por Maingueneau, a que nos interessa

de perto é a cenografia, assim definida pelo autor:

cenografia é, ao mesmo tempo, origem e produto do discurso; ela um enunciado que, retroativamente, deve legitimá-la e estabelecer que essa cenografia de onde se origina a palavra é precisamente a cenografia para contar uma história, para denunciar uma injustiça. Quanto mais o co-enunciador avança no texto, mais ele deve se persuadir de que é aquela cenografia, e nenhuma outra, que corresponde ao mundo configurado pelo discurso”. (MAINGUENEAU, 2008 , p. 118) [Grifos do autor.]

No estabelecimento dos conceitos de cenografia e das descrições das

relações entre os elementos, Maingueneau substitui o termo “formação discursiva”

por “posicionamento” (2008, p.16) e afirma: “A situação de enunciação se constrói

como cenografia por meio da enunciação” (2008, p.51), Considera ainda que “o

discurso implica um enunciador e um coenunciador, um lugar e um momento da

enunciação que valida a própria instância que permite sua existência” (Idem,

ibidem), elementos analisados neste trabalho para a observação de como os

sentidos se constroem.

É também importante, a essa altura de nossa reflexão, lembrar que, por trás

de todos esses conceitos, perpassa o fenômeno maior, que é o da linguagem ligada

ao discurso, tomada aqui de acordo com Brandão (2012, p. 11):

A linguagem enquanto discurso não constitui um universo de signos que serve apenas como instrumento de comunicação ou suporte de pensamento; a linguagem enquanto discurso é interação, e um modo de produção social; ela não é neutra, inocente e nem natural, por isso o lugar privilegiado de manifestação da ideologia. Ela é o “sistema-suporte das representações ideológicas [...] é o ‘medium’ social em que se articulam e defrontam agentes coletivos e se consubstanciam relações interindividuais” (Braga, 1980). Como elemento de mediação necessária entre o homem e sua realidade e como forma de engajá-lo na própria realidade, a linguagem é lugar de conflito, de confronto ideológico, não podendo ser estudada fora da sociedade, uma vez que os processos que a constituem são históricos- sociais. Seu estudo não pode estar desvinculado de suas condições de produção.

É ainda fundamental destacarmos que o principal procedimento de análise

das marcas linguísticas de memória, de interdiscurso, de intertextualidade e de

ethos discursivo na construção dos sentidos será a observação da seleção lexical,

dos usos de expressões nominais, verbais, pronominais e adverbiais, que

contribuem para a caracterização de um sujeito discursivo situado num tempo

(agora) e num espaço (aqui) necessariamente afetados pela ideologia.

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Nesse contexto, urge que apelemos ainda a Brandão (2012, p. 67), que nos

apresenta a concepção de “sujeito clivado”:

O sujeito é dividido, clivado, cindido. O sujeito não é um ponto, entidade homogênea, mas o resultado de uma estrutura complexa que não se reduz à dualidade especular do sujeito com seu outro, mas se constitui também pela interação com um terceiro elemento: o inconsciente freudiano. Inconsciente que, concebido como a linguagem do desejo (censurado), é o elemento de subversão que provoca a cisão do eu.

A discussão acerca do modo como o sujeito se manifesta no texto, sendo

profundamente marcado pelos traços de memória, de interdiscurso, de

intertextualidade, pode, ainda, respaldar-se nas ideias de Maingueneau (2011, p.

87), para quem “todo discurso, por sua manifestação, pretende convencer instituindo

a cena de enunciação que o legitima”.

É desse modo que retomamos o conceito de cenografia, de acordo com

Maingueneau (2011). Para ele, a cenografia não é simplesmente um quadro, um

cenário, como se o discurso aparecesse inesperadamente no interior de um espaço

já construído e independente dele: é a enunciação que, ao se desenvolver, esforça-

se para constituir progressivamente o seu próprio dispositivo de fala. Assim,

Logo de início, a fala supõe uma certa situação de enunciação que, na realidade, vai sendo validada progressivamente por intermédio da própria enunciação. Desse modo, a cenografia é ao mesmo tempo a fonte do discurso e aquilo que ele engendra; ela legitima um enunciado que, por sua vez, deve legitimá-la. (MAINGUENEAU, 2011, p.87) [Grifos do autor.]

Destaca-se que, para Maingueneau (2011, p. 88), “uma cenografia só se

manifesta plenamente se puder controlar o próprio desenvolvimento, manter uma

distância em relação ao coenunciador”.

Por ser, enfim, a crônica “Assalto à geladeira”, de Walcyr Carrasco, corpus

deste trabalho, um gênero midiático, veiculado numa revista impressa, com

relevante tiragem semanal além dos potenciais leitores virtuais, julgamos necessário

considerar alguns aspectos pertinentes à mídia.

Respaldamo-nos, por exemplo, em Charadeau & Maingueneau (2008), para

quem a topologia do espaço midiático é específica no sentido de que organiza um

mercado de textos, em que se constrói a informação e que pode constituir até

mesmo um espaço de confrontação de opiniões e de valores. O campo da mídia e

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da editoração, em que se faz comércio de textos, criou gêneros que lhe são

específicos, conforme expõem os autores.

Mas, ainda, segundo Charadeau & Maingueneau (2008), essas

comunidades midiáticas e editoriais tiram partido de todo acontecimento discursivo

que se produz em outras comunidades e, assim, criam circulações e

posicionamentos intertextuais complexos. Portanto, excelentes objetos de análises

discursivas.

Passamos, então, a expor considerações sobre o gênero que selecionamos

para a análise, que será baseada nos pressupostos teóricos aqui esboçados.

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CAPÍTULO 2 – ASPECTOS DISCURSIVOS E CONDIÇÕES SÓCIO-

HISTÓRICAS DE PRODUÇÃO DO GÊNERO CRÔNICA

JORNALÍSTICA

Segundo Charadeau & Maingueneau (2008, p. 249), “a noção de gênero

remonta à Antiguidade” e “é um meio para o indivíduo localizar-se no conjunto de

produções textuais”.

O conceito de gênero que mais nos interessa discutir passa primeiramente

pela definição apresentada por Bakhtin (2000, p. 279-287). Para ele, os gêneros são

“formas relativamente estáveis de materializar “ideias” e podem ser classificados em

Primários – aqueles que fazem parte da esfera cotidiana e que podem ser controlados diretamente na situação discursiva, tais como: bilhetes, cartas, diálogos, relato familiar [...], e secundários - textos, geralmente, mediados pela escrita, que fazem parte de um uso mais oficializado da linguagem; dentre eles, o romance, o teatro, o discurso científico [...] que, por essa razão, não possuem o imediatismo do gênero anterior.

O referido “imediatismo” dos gêneros primários cabe bem à origem do

gênero crônica, geralmente marcada pela contemporaneidade de ocorrências sócio-

históricas. Entretanto, neste início de século XXI, marcado pelo surgimento de

diversas formas de organização dos textos, a crônica adquire características de

gênero secundário, distancia-se de sua origem na oralidade, e passa a assumir

marcas do gênero escrito, mais comprometido com a adequação linguística. Mas,

mantendo, ainda, traços de coloquialidade na escolha lexical, pois dessa forma

torna-se acessível a um público igualmente diversificado.

A propósito, interessa-nos de perto também a definição de Maingueneau

(2011, p. 61) de gêneros de discursos como “dispositivos de comunicação que só

podem aparecer quando certas condições sócio-históricas estão presentes” e que

“pertencem a diversos tipos de discursos associados a vastos setores de atividade

social”.

Essas condições sócio-históricas são muito evidentes na crônica, gênero

cuja denominação, etimologicamente, carrega valores situados no tempo e no

espaço. Na crônica em análise, como veremos, evidencia-se uma crítica ao que

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podemos denominar “ditadura da beleza”, por uma certa suavização da estrutura

textual, comprometida, certamente, com um certo tom de humor.

O gênero de discurso, ainda segundo Maingueneau (2011, p. 66-68),

“implica certo lugar e certo momento, trata de algo constitutivo e associa-se a uma

certa organização”. O lugar retratado na crônica em questão, por exemplo, é aquele

no qual interagem as classes A e B, público alvo do veículo de publicação; o

momento materializa os valores contemporâneos.

Reconhecendo a importância dos gêneros, Bakhtin (apud MAINGUENEAU,

1984, p. 63) já ponderara:

Somos sensíveis ao todo discursivo […] Se os gêneros de discursos não existissem e se não tivéssemos o domínio dele e fôssemos obrigados a inventá-los a cada vez no processo da fala, se fôssemos obrigados a construir cada um de nossos enunciadores, a troca verbal seria impossível.

Ao considerarmos a questão, entendemos que a escolha do gênero no qual

as ideias serão materializadas já posiciona o enunciador, pois as características de

tal gênero encaminham para determinados tipos de desenvolvimento dessas ideias.

A crônica, por exemplo, pressupõe uma abordagem leve, descontraída, de questões

de interesse social. No caso da que selecionamos como corpus deste trabalho,

questões relacionadas à ditadura da beleza representam o referido interesse social,

certamente permitindo ao coenunciador a chance de refletir sobre a questão e

construir os sentidos, já que compartilha com o enunciador visões de mundo,

costumes sociais, ideologias.

Maingueneau (2008) refere-se à existência de gêneros rotineiros, que,

segundo ele, são os favoritos dos analistas do discurso, abrangendo revistas,

entrevistas e palestras, o que nos leva a considerar que a crônica jornalística é um

desses gêneros. As características desse chamado gênero rotineiro se assemelham

às dos gêneros primários descritos por Bakhtin (2000), característica que se adequa

ao caso da crônica que teve sua origem na oralidade, pois decorre do hábito de

apregoar notícias nos povoados, anunciando o que ocorria nas cidades. Hoje, a

crônica é considerada como um gênero secundário, pois apresenta uma imagem

mediada do mundo, porém produzida segundo normas da escrita, e de acordo com

a maneira como se relaciona com a esfera em que circula; muitas vezes com a

criação de um referente interno a partir do contexto.

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Assim, importa reproduzir aqui o conceito apresentado por Maingueneau

(2008, p. 153):

Nos gêneros rotineiros os papéis de cada um de seus integrantes são definidos a priori e, em geral, mantêm-se estáveis durante o processo de comunicação. Os falantes entram em uma estrutura pré-estabelecida que, em geral, não é modificada. Esses gêneros rotineiros são os que melhor correspondem à definição de gênero discursivo como um dispositivo de comunicação social e historicamente condicionado. Seus parâmetros resultam da estabilização de restrições comunicacionais relativas a situações sociais específicas.

É interessante notar que, no caso do gênero crônica, o cronista associa a

subjetividade literária à objetividade do jornalismo, num tom de superficialidade e

variedade de assuntos. Constrói, muitas vezes, o texto após a leitura do jornal, toma

um assunto e o transforma em tema de discussão. Desse modo, a crônica pode ser

humorística, irônica, trágica e utilizar diferentes figuras de linguagem para dar

sentido ao assunto escolhido para a discussão.

Segundo Melo (2006b, p. 203, apud Assis, 2010), há cinco novos gêneros

consagrados na cultura jornalística brasileira: informativo, opinativo, interpretativo,

diversional e utilitário. A crônica se insere, em geral, no opinativo, segundo o autor, e

a divisão se baseia em princípios funcionais, ou seja, observa e considera a função

de “ler” a realidade social e “descrevê-la”. No caso da crônica jornalística, a

descrição alia literatura e tom jornalístico, que imprime características de “verdades”,

fato que interfere na construção dos sentidos por parte do leitor (coenunciador).

A crônica, gênero jornalístico opinativo, de acordo com Melo (Idem, ibidem),

conserva o lirismo da literatura que o cronista utiliza para, assim, resgatar as

nuanças do cotidiano, sem deixar de fazer uma crítica social. O cronista faz da

notícia do jornal o seu ponto de partida, dando ao leitor “a dimensão útil dos

acontecimentos nem sempre revelada claramente pelos repórteres ou pelos

articulistas”.

A crônica pode apresentar também um traço ligado ao “diversional”, pois a

expressão “Jornalismo Diversional” nos remete à ideia de entretenimento, e

podemos verificar isso na mídia em que é veiculada, por exemplo, a crônica em

questão, que faz parte de um suplemento que trata de diversão, pois nas palavras

do seu editor, Victor Civita, ao apresentar a revista Veja São Paulo,

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São Paulo é uma grande metrópole cosmopolita, com vasta oferta de, habitação, lazer, gastronomia e eventos culturais. Ao transformar Veja São Paulo (até então um guia de espetáculos e atrações culturais) numa revista da capital, nosso objetivo é ajudar os paulistanos a conhecer mais São Paulo e a viver melhor na sua cidade. (Carta do Editor” da 1ª edição da revista VEJA São Paulo, em 9 de setembro de 1985).

Mas, no Brasil, é mais conhecido como jornalismo literário, como explica

Werneck (2004, p. 525). Segundo o pesquisador, o jornalismo literário não se afasta

da trilha da informação, mas busca formas para torná-la “saborosa”, assim

enriquecendo-a com recursos típicos da narrativa de ficção, portanto, recursos

literários.

Sob um ponto de vista estritamente textual e interacional, a crônica é um

texto breve, para leitura rápida, um compromisso com o aqui e o agora, e também

com sua obrigação para o jornal ou a revista. Nesse caso, a sua ligação com esse

órgão faz com que a imprensa seja, em muitos casos, matéria da crônica. Há uma

delimitação não só do espaço na revista e/ou jornal como coluna assinada, como

também das relações políticas entre o periódico e o autor.

Considerando-se, porém, a crônica sob o ponto de vista discursivo, mesmo

que o cronista não queira fazer história, ele a faz, já que, ao registrar os pequenos

acontecimentos do dia a dia sem restrições de temas, materializa ideologias

marcadas no tempo e no espaço. Nesse contexto, a leitura das crônicas permite

formar uma visão geral da sociedade na qual foi produzida e também realizar

remissões que unem as ideias materializadas na crônica às ideias e valores

anteriores. Pode, portanto, funcionar como objeto de reflexão.

O enunciador materializa na crônica o assunto em destaque na sociedade e

reformula, a partir de outros discursos e outros elementos, as ideologias. Dessa

forma, conforme Koch (1997, p. 47), há uma relação intertextual com outros

discursos relativamente autônomos que, embora funcionando como momentos ou

etapas de produção, não aparecem na superfície do discurso produzido;

requerem então análises, por exemplo, a partir das marcas linguísticas de memória

e de interdiscurso para construir os sentidos do texto e dessa forma estabelecer o

diálogo com os coenunciadores.

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Para Costa (2010), é possível haver uma “união genuinamente íntima” do

jornalismo com a literatura, união esta que nomeia de “jornalismo literário”, ou “a

reportagem ou ensaio em profundidade nos quais se utilizam recursos de

observação e redação originários da (ou inspirados pela literatura)” (LIMA apud

VILAS BOAS, 2007, p. 9).

Costa (2010, p. 75) conclui que, nessa modalidade, “os mais avançados

métodos de reportar (jornalísticos) e as técnicas de expressão (literária) formam um

par prolífico”. No Brasil, na atualidade, há diversas publicações nesse gênero, fato

que amplia a necessidade de pesquisas na área.

A crônica em questão aciona vários elementos da narrativa, assim é

fundamental considerarmos Melo (2010, p. 75) no que se refere à “história de

interesse humano”, definindo-a como

Narrativa que privilegia facetas particulares dos “agentes” noticiosos. Recorrendo a artifícios literários, emergem dimensões inusitadas de protagonistas anônimos ou traços que humanizam “olimpianos”. Apesar da apropriação de recursos ficcionais, os relatos devem primar pela “verossimilhança” sob o risco de perder a “credibilidade”. Destina-se a preencher os espaços ociosos dos aficionados por relatos jornalísticos.

Nessa “história de interesse humano”, associada frequentemente a

jornalismo literário, há frequentemente a apresentação de uma releitura de um

acontecimento a partir de detalhes que possam suscitar a emoção do leitor, fatos

que são apresentados numa narrativa bem elaborada, dando a sensação de

veracidade.

Tal caracterização cabe bem ao gênero que nos propusemos analisar.

Também as ideias de Seixas (2004, p. 5) interessam aqui:

A maioria dos autores que trabalhou na classificação de gêneros jornalísticos esteve baseada na separação entre forma e conteúdo, o que gerou a divisão por temas, pela relação do texto com a realidade (opinião e informação) e deu vazão ao critério de intencionalidade do autor, que realiza uma função (opinar, informar, interpretar, entreter). A função, ao invés de ser vista como ‘intenção’ do autor, deve ser trabalhada como cumprimento dos poderes, papéis e estatuto implicado no contrato de leitura de determinada prática social discursiva (gênero).

Autores em outros campos de pesquisa têm tratado o gênero “crônica” como

pertencente à esfera jornalística e literária ao mesmo tempo. Dessa forma, é

analisada também como um fenômeno da linguagem socialmente constituído, ou

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seja, surge sempre ligado a atos enunciativos ou a ações de linguagem efetivos, e

vem, nesse cenário cada vez mais marcado pelas Tis (tecnologias da informação),

tentando construir modelos explicativos da ação dos sujeitos na linguagem.

No campo da comunicação, por exemplo, os estudos ainda se inscrevem

em uma perspectiva tipolizante, portanto, ainda é difícil depreender, nessa literatura,

o que é um gênero jornalístico, bem como quais são os gêneros que compõem o

jornal (BONINI, 2003), sobretudo porque, hoje, os jornais e revistas apresentam

textos informativos e diversionais juntos.

Nesse cenário, segundo Bonini (2003, p. 65-89), a crônica é considerada

forma de expressão do jornalista/escritor. Ressalta-se que, para esse autor, a

crônica tem por objetivo transmitir ao leitor seu juízo sobre os fatos, ideias e estados

psicológicos pessoais e coletivos. Sendo também reconhecida como gênero

cultivado principalmente por escritores, a crônica passa da história e da literatura

para o jornalismo, ocupando as colunas da imprensa diária e periódica.

É importante também salientar que, sendo um texto curto, de fácil

compreensão, representa, hoje, um dos textos de maior demanda nos jornais e

revistas, recebendo assim atenção especial por parte das instituições.

Vivaldi (apud MELO, 2003, p. 141) caracteriza a crônica jornalística como a

“valoração do fato, ao tempo em que se vai narrando”. Segundo o pesquisador, o

cronista, “ao relatar algo, nos dá sua versão do acontecimento; põe em sua narração

um toque pessoal”. Portanto, para uma leitura interativa, faz-se necessário perceber

no relato marcas da ficção, ou seja, o aspecto literário, e não um jornalismo

puramente informativo, mas um jornalismo literário, com objetivo diversional.

Da crônica moderna, segundo Melo (2003), emergem textos que, inspirados

no cotidiano, trazem a crítica social, reforçando seu caráter opinativo, aspecto que

também será observado no corpus deste trabalho.

Algumas reflexões teóricas sobre as funções da comunicação preveem que

à indústria midiática cabe também o papel de divertir. Conforme teorizam e explicam

Beltrão e Quirino (1986, p. 43), a “função lúdica ou de entretenimento” ocorre pela

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oferta de recursos diversionais para que o homem identifique o gênero como lazer, e

possa, dessa forma, libertar-se durante a leitura, do estresse cotidiano.

A matéria prima do jornalismo é a realidade. Os jornalistas trabalham exclusivamente com relatos verossímeis, sendo inadmissível a transgressão da fronteira entre realidade e ficção. No entanto, a estrutura do gênero diversional ancora-se no estilo apregoado pela literatura, fazendo uso de recursos utilizados comumente por escritores de ficção, a fim de humanizar o texto jornalístico e torná-lo agradável aos leitores (MEDINA, 2003).

Desse modo, estamos aqui considerando a crônica jornalística mais como

um gênero do jornalismo diversional.

É interessante, por fim, notar que, para Barthes (1970), informações de

textos jornalísticos literários são informações que não precisam de um contexto

anterior ou de um contexto exterior para ser compreendido: basta despertar algum

interesse (mesmo em pequena escala) nas pessoas, e os próprios dados

apresentados permitem construir os sentidos. É importante lembrar, entretanto, que,

quando o texto provoca remissões, ou seja, quando traz evidências de memória e

interdiscurso, o coenunciador certamente pode compartilhar de modo mais efetivo a

construção do sentido do texto.

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CAPÍTULO 3 – ANÁLISE DAS MARCAS LINGUÍSTICO-DISCURSIVAS

NA PRODUÇÃO DE SENTIDO DA CRÔNICA “ASSALTO À

GELADEIRA”, DE WALCYR CARRASCO

3.1 Preliminarmente

Para procedermos à análise do corpus, julgamos conveniente recortar o

texto em partes (T.1, T.2, T.3 e assim por diante), respeitando a sequência textual, e

acrescentar, logo em seguida ao excerto, os respectivos comentários. Em seguida,

reunimos uma série de considerações gerais sobre os aspectos que mais se

destacaram na análise levada a efeito.

Considerando-se a crônica “Assalto à geladeira”, de Walcyr Carrasco (v.

anexo), publicada na Revista Veja São Paulo, em 02/12/2010, e selecionada como

corpus para a análise das marcas linguísticas de memória, de intertextualidade, de

interdiscurso na construção dos sentidos, objetivamos verificar de que modo as

escolhas lexicais, nominais, pronominais, verbais, adverbiais, feitas pelo enunciador,

refletem ideologias e posicionamentos, e de que maneira se dá a construção dos

sentidos no texto.

Conforme já afirmamos, a partir dos pressupostos da AD (Análise do

Discurso – corrente francesa), observamos também como se constrói o ethos do

enunciador, identificando-se, principalmente, certas marcas de memória e de

interdiscurso no referido texto. Dessa forma, vale salientar que consideramos o uso

da linguagem como prática social, pois na “voz” do enunciador se expressam

opiniões com base ideológica, advinda da sociedade em que ele se insere. Assim, a

leitura permite o compartilhamento de conhecimento e da construção de sentidos

pelo coenunciador.

Nesse cenário, a enunciação é considerada como um processo em que o

sujeito se mostra representante de um tempo na sociedade: um “sujeito que ganha

voz” para dizer o já dito e partilhar com outro sujeito (o coenunciador),

conhecimentos, experiências e valores, sempre permeados por ideologias.

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É importante mais uma vez informar que a análise será desenvolvida por

meio de apontamentos e comentários sobre os usos de expressões nominais,

verbais, pronominais e adverbiais, que contribuem para a caracterização de um

sujeito discursivo situado num tempo (agora) e num espaço (aqui) e

necessariamente afetado pela ideologia.

3.2 Análise do corpus

Consideremos o trecho inicial da crônica:

T.1 Durante o dia, eu me comporto bem. Almoço uma salada, no jantar só um

peixinho. Seria um magro de fazer inveja se não tivesse o hábito de escrever à

noite. Teclo as primeiras linhas logo após o jantar e vou pela noite afora: infanto-

juvenis, romances, novelas... A inspiração só chega na madrugada. No período

diurno sou vítima de uma entidade: o Exu Tranca Texto, que me impede de

inventar histórias à luz do sol. Mas o que tem isso a ver com o peso? É simples:

lá pelas 2, 3 da manhã, costumo sentir uma certa fome. Levanto do computador

e prometo a mim mesmo:

— Vou comer só uma coisinha.

No excerto acima, o segmento “eu me comporto bem” demonstra que a

utilização pronominal em primeira pessoa do singular (“eu” e “me”) dá voz a um

sujeito que fala por si e leva seu coenunciador a identificá-lo. Segundo Orlandi

(2010, p. 51), é “o sujeito-de-direito com sua vontade e responsabilidade”. É marca

assumida do enunciador. O sujeito se constitui como o enunciador, ao manifestar-se

no texto, marcando também o ethos de um ser que se importa com o

comportamento social, que se percebe assujeitado.

Trata-se de um caso de “embreagem”, uma espécie de ancoragem, uma

operação do enunciado em sua situação de enumeração, conforme define

Maingueneau (2011). Os pronomes “eu” e “me” configuram-se, assim, como

“embreantes”, ou seja, como elementos que marcam essa embreagem; seu

referente é identificado como o indivíduo que, nesse acontecimento enunciativo,

pode dizer “eu”.

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Há um embate entre os sentidos materializados nas expressões “durante o

dia me comporto bem”, período no qual imperam as cobranças sociais, e vigora a

necessidade de comportar-se de acordo com as convenções sociais, o que se

afirma mais adiante em “de madrugada não importam regras do regime e da

civilidade” - expressão ligada à sensação de liberdade, pois nesse espaço temporal

não há uma cobrança nítida das convenções sociais.

Cabe aqui lembrar o conceito de “enunciador”, apresentado por

Maingueneau (2011, p. 137):

Enunciador é aquele em relação ao qual se definem os parâmetros da situação de enunciação: a presença do “eu” indica que o sujeito da frase coincide com o enunciador; o “você” refere-se ao coenunciador selecionado pelo enunciador.

Em “Durante o dia, eu me comporto bem”, verificamos a preocupação com o

julgamento alheio; importa o que a sociedade pensa em relação ao deslize, marca

que evidencia de memória e interdiscurso, como podemos observar nos conceitos

de Halbawachs (1950) e por Courtine e Marandin (1981), respectivamente,

apresentados por Brandão (2012, p. 91):

A memória é “o que ainda é vivo na consciência do grupo para o indivíduo e para a comunidade”. Essa memória coletiva, para ele “só retém do passado o que ainda é vivo ou capaz de viver na consciência do grupo que o mantém”, pois “o acontecimento, como acontecimento “memorizado” poderá entrar na história, mas enquanto “histórico”, ele poderá se tornar elemento vivo de uma memória coletiva.”

Há na memória do grupo social que o que é feito durante o dia pode ser

observado e julgado pelos padrões sociais, entretanto o que é feito “à noite” é

privado, ou seja, apenas quem é íntimo pode saber. No excerto: “durante o dia, eu

me comporto bem.”, observamos marca de memória, pois o exposto é alvo de

julgamento coletivo.

O interdiscurso consiste em um processo de reconfiguração incessante no qual uma formação discursiva é conduzida [...] a incorporar elementos pré-construídos produzidos no exterior dela própria; a produzir sua redefinição e seu retorno, a suscitar igualmente a lembrança de seus próprios elementos, a organizar a sua repetição, mas também a provocar eventualmente seu apagamento, o esquecimento ou mesmo a denegação.

O enunciador em um processo de reconfiguração estabelece analogia entre

“pecado” e compulsão alimentar. No trecho “Seria um magro de fazer inveja se não

tivesse o hábito de escrever à noite”, mais uma vez a imagem de si (do enunciador)

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é materializada, sobretudo pela expressão “de fazer inveja”, que remete a costumes

sociais relacionados à aceitação ou ao repúdio.

Ao mesmo tempo, dá-se um embate entre os sentidos, por meio da

circunstância condicionante – “se não tivesse o hábito de comer à noite”. Além disso,

a expressão “escrever à noite” remete a uma situação mais íntima, privada, menos

sujeita aos julgamentos alheios, por meio da locução “à noite”, oposta ao dia,

quando há mais expectadores para as ações do enunciador.

A escolha lexical feita pelo enunciador permite pressupor que durante o dia

há mais cobranças do que durante a madrugada, sobretudo porque durante o dia a

convivência descrita é presencial, e, na madrugada, ocorre nas redes sociais, é

virtual, e reflete relações às escuras, com menos contato físico.

A expressão “magro de fazer inveja” materializa a rivalidade que há entre

aqueles que atendem à ditadura da beleza e aqueles que destoam dela; também

salienta que a “magreza” não é um benefício para a própria pessoa, mas um atributo

para ostentar perante o outro, não está ligado à saúde, mas à aparência.

Essas marcas sempre são apresentadas a partir do embate “dia versus

madrugada”, e reforçam o ethos de um enunciador que simboliza as angústias de

um grupo social que vive à mercê da imagem; grupo ligado ao público alvo da

revista de publicação da crônica.

Observamos em T.1 que a formação discursiva está ligada à formação

ideológica e que os conceitos encaminham para a percepção de que o

posicionamento ideológico do enunciador reflete a imagem de si (PÊCHEUX, 1975),

revelando que “ser magro de fazer inveja” é uma busca para a “aceitação social”.

O conceito de formação discursiva aqui adotado encontra respaldo em

Brandão, conforme demonstramos no Capitulo 1, mas também em Orlandi (2012),

para quem a formação discursiva se constitui na relação com o interdiscurso (a

memória do dizer), representando no dizer as formações ideológicas.

Em todo o texto, nota-se a contraposição dos sentidos materializados nas

expressões “durante o dia”, “no período diurno”, “na manhã seguinte”, que denotam

o tempo no qual imperam as cobranças sociais, e em que vigora a necessidade de

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comportar-se de acordo com as convenções sociais, e “na madrugada”, “de

madrugada”, “noite afora”, “durante a noite”, “às 3 da manhã”, expressões ligadas à

sensação de liberdade, pois nesse espaço temporal não há cobrança nítida, como o

texto materializa em “não importam as regras do regime e da civilidade”. Essa

contraposição representa a utilização de arquétipos pertinentes à camada social na

qual se insere o enunciador e seu público leitor. Os elementos funcionam como

embreantes, ou seja, norteiam as percepções do coenunciador que dessa forma

pode construir os sentidos.

As locuções adverbiais “Durante o dia”, “após o jantar” revelam que as

posturas se alternam conforme os possíveis julgamentos das ações. Posturas

materializadas pelo enunciador, mas que dialogam com os elementos da memória

dos coenunciadores. O enunciador afirma que, “durante o dia”, comporta-se “bem”.

A relação entre os elementos circunstanciais de tempo (“durante o dia”) e de modo

(“bem”) reforça a preocupação com a imagem social admitida no convívio diário

contemporâneo. Essa preocupação marca o posicionamento, na verdade, o ethos do

enunciador.

A expressão “Exu Tranca Texto” consiste num trocadilho que remete a Exu

Tranca Rua". Evidencia-se o interdiscurso. Exu tem o traço do fora do comum e é

uma reconhecida entidade da cultura afro-brasileira como um orixá da noite. Durante

o dia, impede o enunciador de ter inspiração, e, à noite, em especial na madrugada,

a inspiração é “liberada” e o enunciador consegue escrever, entretanto fica

vulnerável à fome personificada como tirana. Conforme o site

www.dicionárioinformal.com.br/usuário/id/21731, situa-se na esfera de:

Guardiões astrais que trabalham na esquerda das religiões afro brasileiras, como a umbanda e candomblé. Costumam trabalhar com cargas mais densas policiando os planos astrais. São divididos em categorias como exus coroados, exus batizados e exu pagões (exu de duas cabeças, que estão ainda em fase de doutrinação). Trabalham em diversas linhas, como por exemplo, exus da encruzilhada, exus da estrada, exus do cemitério. Podem também ser conhecidos como Povo de Rua ou Povo de Cemitério, de acordo com essas linhas em que trabalham. Nessa banda também se apresentam as pombagiras / pombogiras, malandros, baianos e marinheiros. Nada mais é do que o bem e o mal que existe dentro de cada um. Exu é o livre arbítrio. Comumente associado de maneira errônea ao diabo cristão.

Segundo Armindo Bião (2009), em um artigo acadêmico da Revista

Famecos, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, de dezembro

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de 2009, Exu (mensageiro dos orixás) corresponde a Mercúrio da mitologia romana,

responsável pela comunicação, que equivale ao grego Hermes, ou seja, diretamente

relacionado à inspiração que só chega na madrugada, quando “Exu Tranca Texto”

permite a produção textual, pois, segundo a mitologia africana, durante o dia ele não

age.

O apelo materializado na expressão marca o posicionamento do sujeito

como participante de uma sociedade multicultural, multirreligiosa, eclética, mais uma

marca da imagem de si. O enunciador posiciona-se como parte dessa efervescência

cultural. A expressão imprime também um tom bem humorado na abordagem, marca

pertinente ao gênero crônica, conforme apregoa Sírio Possenti (2010), em Humor,

língua e discurso, e posiciona o enunciador diante da ditadura da beleza. Fato

observado na seguinte citação: “ para muitos povos, ou para grupo de pessoas,

dizer o nome “real” de alguma dessas entidades é imoral ou perigoso.” (POSSENTI,

2010, p. 76)

O verbo “prometer” geralmente é empregado em transitividade indireta em

direção a outrem. No trecho supracitado flexiona-se reflexivamente em primeira

pessoa “(eu) prometo”, marcando assim a voz do enunciador que se manifesta por

meio de excessiva preocupação com as consequências dos ataques à geladeira no

decorrer da madrugada (período em que não está sujeito aos olhares alheios,

sociais), mas deve preocupar-se com o autocontrole. A construção e a escolha

lexical permitem ao coenunciador estabelecer o sentido.

“Prometer”, em geral, remete à religiosidade, ao cristianismo que impulsiona

os cidadãos à remissão. Temos aí uma nítida marca de memória, há diálogo entre

as necessidades do homem e as cobranças decorrentes de suas escolhas e

atitudes, um interdiscurso com as famosas frases pertinentes às “causas e

consequências” e às “leis de causa e efeito”.

De acordo com o iDicionário Aulete no site http://aulete.uol.com.br/:

Sagrado, adj.:1. Que se sagrou; que foi alvo de consagração.2. Que se refere às coisas divinas, aos cultos religiosos etc.; SANTO; SACRO.3. Fig. Que é divino, puro, imaculado; que está acima das necessidades e dos valores terrenos.4. Que não deve ser tocado, mexido; SACROSSANTO: Cuidado, para minha avó esse camafeu é sagrado!.5. Que deve ser respeitado de maneira profunda; VENERÁVEL.6. Que não se pode infringir ou desrespeitar: Os direitos do cidadão são sagrados.7. Que se deve

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cumprir (deveres sagrados; obrigações sagradas),sm..8. Aquilo que foi sagrado ou consagrado em cerimônias de culto, [Superl.: sacratíssimo],[F.: Do lat. sacratus, a, um. Ant . ger.: profano. Ideia de 'sagrado': hier (o)- (hierônimo).]

A crônica alterna, no decorrer de todo o texto, elementos que remetem ao

sagrado e ao profano: as lexias “bem”, em “comportar-se bem”, em oposição a

“comer compulsivamente na madrugada”, como sendo “comportar-se mal”; a

utilização do verbo “confesso”, para referir-se aos assaltos à geladeira. Há uma

antítese que estabelece a dualidade que angustia o enunciador: durante o dia,

comporta-se bem, na madrugada, longe das convenções sociais, está à mercê do

profano, do desejo, da compulsão.

Em: “magro de fazer inveja”, podemos analisar a inveja como algo a

despertar no outro por ostentar algo admirável, no caso a forma física considerada

ideal. Assim, a lexia ligada a um pecado capital, aparece desvirtuada, pois ser

magro é almejado mesmo que desperte inveja. Há uma marca profana no que é

descrito como civilizado: ser belo para fazer inveja. Há um desrespeito ao sagrado,

conforme consta na definição da palavra.

O iDicionário Aulete define

Profano adj.:1. Que não tem relação com a religião [ antôn.: Antôn.: sacro, sagrado ];2. Que desrespeita o que é sagrado; HERÉTICO.3. Que não pertence à religião.4. Que é próprio do mundo material em oposição aos valores espirituais (música profana); LAICO; MUNDANO,sm.;5. Pessoa ou coisa profana.6. Indivíduo que não pertence a uma religião, seita etc.7. Fig. Pessoa não iniciada em certos conhecimentos; LEIGO.[F.: Do lat. profanus, a, um. Hom./Par.: profano (a.sm.), profano (fl. de profanar).]

Na frase em primeira pessoa: ”— Vou comer só uma coisinha”, observamos

que o diminutivo tenta suavizar o ato, que, assim, com atenuante, parece

socialmente menos grave. Quando o enunciador diz: “Almoço uma salada, no jantar

só um peixinho”, o emprego de “salada” e de “peixinho” remete a leveza, ou seja, há

a preocupação com a forma física considerada socialmente ideal. O dizível,

sustentando cada tomada de palavra, promove um nítido diálogo entre o enunciador

e os coenunciadores, sujeitos às mesmas cobranças sociais. Além de posicionar o

enunciador, que suavizando o ato pelo uso do diminutivo, acaba por confessar o

deslize, marca o ethos de um ser completamente sujeito às convenções sociais, vale

salientar que representa uma ideologia, um grupo social.

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A seleção lexical com carga de suavização como “salada (leve)”, e “peixinho”

(diminutivo) demonstra, portanto, o modo como o sujeito significa em uma dada

situação discursiva: claramente afetado pelos valores e opiniões quanto à forma

física considerada ideal.

Consideremos mais um trecho da crônica:

T.2 E desembesto até a geladeira. Vasculho as prateleiras, subitamente

assediado por uma fome tirana. Já comi coxinhas e empadinhas geladas, potes

de cogumelos em conserva, doce de casca de laranja, queijo e pão com

manteiga, além de toda besteira que encontro pela frente. O pior: sem ordem

lógica. Sou capaz de devorar bombons de chocolate e, em seguida, as

almôndegas que sobraram do jantar! Nem precisaria de garfo, poderia comer

com uma pá, tal a voracidade.

O trecho anterior da crônica (T.1) termina com a promessa: “vou comer só

uma coisinha”, entretanto, a passagem seguinte inicia-se com o conectivo “e”,

revelando simultaneidade de ação, ou seja, promete algo, mas no mesmo instante

faz o contrário, pois está sempre sob o efeito da tirania da fome, o enunciador

aparece o tempo todo como um ser vitimado.

A utilização do conectivo aditivo “e” introduz uma cena da enunciação na

qual o ethos do enunciador se revela vulnerável, pois desembesta para a geladeira.

O verbo desembestar remete a atitude de besta, de animal. Mais uma vez vemos

uma contraposição: homem X animal, racional X irracional, contraposições

recorrentes do desenvolvimento da crônica, fato que encaminha para a construção

dos sentidos a partir da observação das ideias antitéticas.

É interessante notar que a seleção lexical “desembestar”, “vasculhar”,

“devorar” remete à animalidade, voracidade, descontrole, ação por instinto; mas

depois a “ditadura da beleza” cobra seu preço, pois vem a agonia, a frustração.

Linguisticamente, em virtude da cenografia, o enunciador seleciona verbos que

formam uma gradação que remete à memória de um ser que sucumbe a seus

instintos. Os atos animalescos se reforçam, mais adiante, na “voz” do amigo que

confessa: “voo para a geladeira”.

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A crônica apresenta por meio da sequência verbal supracitada, uma

antítese, entre aspectos racionais e irracionais do ser humano sujeito às regras

sociais. Provoca reflexão acerca do que é realmente civilizado ou não, e assim,

permite ao coenunciador construir sentidos a partir do embate materializado pelas

marcas linguístico-discursivas. Os trechos supracitados apresentam-nos elementos

“embreantes” que, entendemos, a partir de Maingueneau (2008), como os elementos

que no enunciado marcam a embreagem, e esta é conceituada como o conjunto das

operações pelas quais um enunciado se ancora na situação de enunciação.

Os verbos utilizados em primeira pessoa situam o enunciador, e o

identificam com uma imagem vulnerável diante da tentação da abundância de

alimentação, característica que se acentua neste início do século XXI.

A temporalidade marcada traz mais uma vez marca relativa ao gênero

crônica, pois cada vez mais alimentos se transformam em “tentações”, e, até

mesmo, em válvulas de escape para a rotina de trabalho estressante. A construção

dos sentidos decorre da utilização dos verbos ligados ao pronome “eu”, pois remete

à ideia de realidade, de envolvimento com a problemática, uma característica do

jornalismo literário, que apresenta os fatos como se fosse uma reportagem, parece

real, mas é ficção, é literatura.

Segundo o dicionário Houaiss (2010), o termo “assediado”, do excerto

“assediado por uma fome tirana”, significa “vitimizado”, e aponta para a condição

daquele que está em situação de vítima; assim, vale analisarmos: quem vitima o

enunciador? A fome “tirana.”

Há uma personificação marcada pela tirania da fome, e um posicionamento

do enunciador que se apresenta como “impotente diante do assédio”, pois, em

nossos dias, os assédios são muitos e diversificados, fato que remete ao

coenunciador a analisar os diferentes tipos de fome a que a sociedade da ditadura

da beleza e da ostentação nos direciona. Para a construção dos sentidos, é preciso

considerar os explícitos e os implícitos, em forma de subentendidos.

Houaiss (2001) traz o sentido de “tirano/a”, como adjetivo daquele que

domina o outro, que o sobrepuja. Nessa escolha lexical há uma imagem de si

materializada: o enunciador não é culpado pela compulsão alimentar. A fome é que

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é tirana na madrugada, ela não age durante o dia, mas na madrugada, ela impera.

Há nítida relação entre “imagens de si” e posicionamento do sujeito, uma marca do

ethos representante dos grupos sociais tiranizados por valores que priorizam a

aparência em detrimento da essência, mais um contraponto apresentado na crônica.

O excerto T.2 apresenta, mais uma vez, a utilização lexical no diminutivo

para efeito de suavização: “coxinhas, empadinhas”. E “toda besteira que encontro”

remete à “atitude de besta”, ou seja, o ato realizado sem racionalizar, sem sentido,

compulsivamente.

Essas escolhas lexicais recorrentes firmam posicionamentos do enunciador,

revelam o que está em ênfase na construção dos sentidos, na crítica social

sutilmente materializada no texto. A utilização dos diminutivos atenuam as ações e

as expressões relacionadas à animalidade e revelam a prevalência do instinto sobre

a razão, ou seja, o sujeito está “dominado na madrugada” e não resiste à “fome que

é tirana”.

O enunciador come “sem ordem lógica”, “nem precisaria de garfo”. A

imagem de si aparece mais uma vez desumanizada pela fome tirana: come como

um animal. Perde sua humanidade diante da tirania da fome, mas depois se sente

frustrado, pois a ditadura da beleza cobrará alto preço. Há uma marca do ethos do

enunciador como um ser vitimado.

Essa desumanização evidencia o interdiscurso com o poema “O Bicho”2, de

Manuel Bandeira, tendo em vista a voracidade com que o enunciador e seus

“amigos” se alimentam na madrugada, quando distantes das convenções sociais, e

sujeitos à fome tirana.

Há uma possível remissão suscitada pela leitura da crônica que aborda a

“fome” de forma sempre personificada pela tirania, e remete a questionamentos

quanto ao sistema social vigente, no qual há alguns que sequer têm o que comer, e

2 Vi ontem um bicho/Na imundície do pátio/Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,/Não examinava nem cheirava:/Engolia com voracidade.

O bicho, não era um cão,/ Não era um gato,/ Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.

(Bandeira, 1973, p.196)

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outros preocupados com a aparência. A crônica apresenta elementos que podem

ser lidos como uma crítica social; o discurso do enunciador encaminha para a

construção dos sentidos que considere a crítica.

No poema de Manuel Bandeira, os versos “não examinava nem cheirava” e

“engolia com voracidade” remetem ao mesmo assujeitamento social descrito pelo

enunciador da crônica. Entretanto, o motivo é ironicamente outro: não se trata da

falta de alimento revelado no poema; é a pressão da “ditadura da beleza”.

O excerto “Poderia comer com uma pá” também sugere descontrole, dando

ênfase à voracidade, em contraste com o que se afirma em “almoço uma salada, no

jantar só um peixinho”, que remetem à leveza, ao controle alimentar, à preocupação

com a estética, e não com a saúde, fator que revela o enunciador e confirma a

fragilidade da imagem de si, pois, se o foco fosse a saúde, seu comportamento seria

o mesmo: “durante o dia”, “no jantar” e “de madrugada”, pois saúde requer postura

constante. Entretanto a alternância na postura revela o “assujeitamento” desse

sujeito.

“Comer com uma pá” é também uma metáfora, além de sugerir sentido de

hipérbole, de descontrole, de animalidade. O enunciador se apropria de recursos de

linguagem para estabelecer uma cena que permita ao coenunciador entender e

imaginar o fato. Há um diálogo entre ambos que permite a construção dos sentidos

acionando remissões de memória. Observamos também um interdiscurso, que

remete ao exagero, pois há na memória dos brasileiros a ideia de grande

quantidade, ou seja, de exagero quando ouvimos “com uma pá”.

A crônica dialoga interdiscursivamente com o poema de Bandeira; ambos

abordam a questão da fome. O poema apresenta a voracidade decorrente da

carência alimentar; a crônica, a dificuldade em vencer as tentações de alimentar-se

por impulso. Verificamos, nas ideias materializadas na crônica, que o descontrole

alimentar parece inadequado apenas por questões estéticas, de aceitação social;

faltam elementos que se refiram a outros aspectos. A análise nos permite concluir

que não prevalece a preocupação com a saúde, mas sim com a estética, com as

cobranças sociais, uma vez que não há na crônica nenhuma escolha lexical que se

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refira à saúde. Há uma espécie de representação arquetípica, no sentido que essa

expressão adquire na seguinte explicação de Maingueneau (2011, p.92):

(...) O repertório das cenas disponíveis varia em função do grupo visado pelo discurso: uma comunidade de fortes convicções possui sua memória própria; mas, de modo geral, podemos associar a qualquer público, por vasto e heterogêneo que seja, uma certa quantidade de cenas supostamente compartilhadas. Se falamos de “cena validada” e não de “cenografia validada” é porque a “cena validade não se caracteriza propriamente como discurso, mas como um estereótipo automatizado, descontextualizado, disponível para reinvestimentos em outros textos. Ela se fixa facilmente em representações arquetípicas popularizadas pelas mídias.

A preocupação com a estética, como sabemos, propaga-se, em grande

medida, por influência das grandes mídias. Observamos características do

comportamento diferenciado no decorrer da madrugada, no trecho seguinte da

crônica:

T.3 Eu me sinto feliz e realizado depois do assalto à geladeira. De madrugada, não

importam as regras do regime e da civilidade. Como tudo que encontro!

Recentemente, recebi maravilhosos potes de doces mineiros. Escondi num

escritório separado de casa. Senão, comeria tudo na madrugada.

A felicidade e a realização declarada no trecho acima fixam a imagem de

que o enunciador, na madrugada, livre das pressões da ditadura da beleza, age de

acordo com sua vontade, não de acordo com regras. Há materializada, mais uma

vez, a imagem de si, em “Eu me sinto feliz e realizado”. O pronome “eu”, em primeira

pessoa, marca o posicionamento do sujeito e o tom confessional que também atrai o

coenunciador a ser cúmplice das sensações descritas.

Os predicativos “feliz” e “realizado” também marcam posicionamento do

enunciador, saciado momentaneamente da fome que classifica como “tirana”; há

uma manifestação do ethos do enunciador que fica entre o prazer de comer e o peso

das cobranças sociais decorrentes.

A adjetivação certamente revela o posicionamento do enunciador, e retrata

um momento específico. A declarada sensação de “feliz e realizado depois do

assalto à geladeira” posiciona o enunciador como um ser consciente das

consequências de comer por compulsão durante a madrugada, período descrito por

ele como momento no qual as regras sociais de civilidade não cabem, afinal nomeia

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seu ato como um “assalto”, ou seja, ato ligado ao “erro”, a algo socialmente

reprovável; há um ethos afetado pelo julgamento.

O adjunto adverbial “de madrugada” reforça a ideia de delito, ato praticado

às escondidas, pois a sociedade não o aprova. Na oração “como tudo que encontro”,

o pronome “tudo” generaliza de forma contundente, pois situa o enunciador como

um ser que, em algumas situações, não consegue resistir, não age de acordo com o

lado racional do cidadão; pelo contrário, revela-se vulnerável frente à “fome tirana”.

A escolha lexical realizada pelo enunciador permite, desse modo,

estabelecer o sentido de que, longe das convenções sociais, o “delito” de comer

exageradamente parece menor. “De madrugada, não importam as regras do regime

e da civilidade.” A noite permite o delito, o assalto, e a satisfação decorrente, mas o

dia traz as cobranças sociais e o peso na consciência. Fica, assim, materializada no

texto a opressão a que o enunciador fica sujeito, ou seja, assujeitado à “ditadura da

beleza”.

A relação que se estabelece entre “regime e civilidade” funciona também

como evidência de memória e interdiscurso, na medida em que fazer regime

reafirma-se mais e mais como prática social altamente recomendada. É possível

depreender que fazer regime é civilizado, burlar essa regra é quase uma

“selvageria”.

A noção de civilidade, há algumas décadas, não incluía a necessidade de

manter-se fisicamente de acordo com padrões estabelecidos a partir de uma figura

esquálida (padrão) exigida por uma verdadeira ditadura da beleza que acaba por

alimentar a angústia do cidadão consumidor. O contexto da crônica indica que das

inquietações do cidadão surge o consumo de diversos elementos para manter-se de

acordo com os padrões estabelecidos socialmente.

Essa materialidade discursiva permite perceber que há no corpus um

aspecto marcante do gênero crônica (o da esfera jornalística literária): o tom de

denúncia sutilmente apresentado, apesar do tom bem humorado, da leveza, que se

manifesta no texto, nos implícitos, a intenção de denúncia.

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A forma verbal “escondi”, empregada na oração: “escondi (doces mineiros)

num escritório separado da casa”, retoma o emprego do verbo prometer, utilizado no

início da crônica. Verificamos, então, que o enunciador utiliza uma palavra que

remete à memória do sagrado, pois “prometer” remonta ao léxico utilizado há algum

tempo em relação à religiosidade; suscita, pois, a memória discursiva.

O enunciador posiciona-se fragilizado quando faz promessas a si, ou seja,

apresenta-se enfraquecido psicologicamente pela fome que frequentemente define

no texto como “tirana”. Personifica a fome, diante das cobranças de “boa forma

física”. A fome e a forma física idealizada formam uma dualidade que o enunciador

apresenta no decorrer de toda a crônica, permitindo ao coenunciador acionar pelas

marcas de memória percepções da presença dessa dualidade.

Examinemos a “voz” do amigo que confessa, no próximo trecho da crônica.

T.4 Um amigo acorda com fome durante a noite.

— Quando tenho um sonho ruim, voo para a geladeira — confessa.

Entre outros recordes, já devorou um pote inteiro de batatinhas temperadas, feitas

pela mãe, e uma travessa de lasanha fria. Outro dia comeu quatro pedaços gelados

de pizza que sobraram do jantar.

- De noite a comida fica mais gostosa! - garante

Confessar, mais uma vez, remete ao pecado, às influências litúrgicas. Há, na

memória de qualquer cristão, a certeza de que confessar é uma forma de “redimir-

se”; há, portanto, um posicionamento. O período “Quando tenho um sonho ruim, voo

para a geladeira” ratifica a ideia do prazer pela alimentação; o desconforto do sonho

ruim é combatido com o prazer de alimentar-se livremente. Confessar também

remete à remissão, pois confissão sem arrependimento não é nada.

Assim, o amigo também apresenta ações irracionais: “voo para a geladeira”.

Voar lembra animalidade, urgência. O amigo também “confessa”. Esse verbo remete

à memória de “pecado”, a algo desaconselhável socialmente, ação que poderá ser

posteriormente julgada pela sociedade. A “voz” do amigo solidariza-se com a voz do

enunciador, e a escolha lexical posiciona, mais uma vez, o enunciador, e

consequentemente marca o ethos de um sujeito completamente assujeitado.

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Essa “voz” do amigo manifesta, também, por meio da escolha lexical, uma

identificação com a descrita compulsão noturna pela alimentação da qual é “vítima”

o enunciador. Na figura do amigo, o enunciador irmana-se no “deslize” de comer por

compulsão e tenta atenuar a sua vulnerabilidade diante da fome. Há assim, uma

transferência responsiva.

Embora essas outras vozes que se manifestam no texto sejam de

relacionamentos que se mantêm em ambientes virtuais, a preocupação constante

com a forma física, materializada na crônica, permanece, pois as “avaliações físicas”

acontecerão em contatos pessoais presenciais.

O enunciador utiliza “recorde” (“Entre outros recordes”) como ênfase para a

ideia de que há muitas outras pessoas que “sucumbem” aos ataques à geladeira.

Trata-se de mais uma expressão de suavização de sua culpa. Também destaca que,

no momento de ação movida pelo instinto, pela fome “tirana”, não há uso de lógica,

ou regras. Devora um pote (inteiro) de batatinha, lasanha fria, pizza gelada... Revela,

enfim, que não são as convenções que regulam as ações.

A “ênfase” é interpretada por Charaudeau & Maingueneau (2008, p. 190)

como tipo de construção pelo qual o enunciador seleciona um constituinte para

colocá-lo em evidência. O texto alterna ênfase (atacar) e suavização (sucumbir) de

forma recorrente. Trata-se do emprego de um elemento de remissão, marca de

memória e interdiscurso.

O conceito de memória, segundo Maingueneau (1982, p. 131), se relaciona

ao de interdiscurso: há uma memória externa filiada a formações discursivas

anteriores (remissiva), e também há uma memória interna com enunciados

produzidos antes.

Assim, há uma tradição materializada que se renova e que cria, a cada

enunciado, sua própria “tradição”, aspecto interdiscursivo. Nesse contexto, qualquer

modificação na materialidade textual corresponde a diferentes gestos de

interpretação, decorrentes de diferentes posições do sujeito, com diferentes

formações discursivas, e distintos recortes de memória. Distintas relações de

exterioridade, na crônica em análise, retratam a ditadura da beleza, nesse início de

século.

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O alimento não está quente ou recém-feito, está gelado. São sobras, mas o

instinto de preservação, pela memória, nos lembra de que, na hora da fome, vale

tudo, ou quase tudo. A “voz” do amigo subdivide a responsabilidade do ato, e do

“dizer” materializado, há transferência responsiva e mais um índice do ethos que

precisa partilhar o peso de seus delitos, como se dessa forma os minimizasse. Há no

trecho uma personificação da fome que comanda as ações e exerce poder sobre os

seres a sua mercê.

Em “de noite, a comida fica mais gostosa”, é possível reconhecer um diálogo

com o conhecido ditado “às escondidas, tudo fica mais gostoso”. Há no interdiscurso

um posicionamento de identificação com o levemente “escuso”, e novamente

materializa-se no “amigo” uma cumplicidade.

O verbo “garante”, em “— De noite a comida fica mais gostosa! — garante”,

representa uma “fiança”, uma ligação entre as vozes que se manifestam, reforçando

a mesma ideia e tornando a argumentação convincente.

Mais uma vez, utilizam-se as alegorias “noite”, representando o período de

privacidade e de maiores tentações em assaltar a geladeira, pois não há sensor, isto

é, o olhar de cobrança social, e “dia”, período de maior interação social e,

consequentemente, de mais cobranças.

Surge, na crônica, outra voz, no trecho seguinte:

T.5 Recentemente eu estava no Twitter. Contava sobre quando fiz codornas pela

primeira vez. Um rapaz chamado Rodrigo entrou na história. “Fiquei com vontade de

codornas” — escreveu. Morava longe, não sabia onde encontrar as preciosidades às

3 da manhã. “Vou fritar frango” — avisou antes de sumir. Na outra noite, confessou:

descongelou peito e coxas e torrou no alho e óleo. “Pelo menos era ave. Foi a

melhor refeição da minha vida!”

Em “Recentemente eu estava no twiter”, a expressão “no twiter” imprime um

caráter atualizado, de conectado e interativo ao enunciador. O termo indica postura

moderna, conectada às novas tecnologias da informação. Situa o enunciador como

participante das modernas redes sociais. Além de posicionar o enunciador, como

alguém atualizado marca o ethos de um cidadão participante das redes sociais.

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No trecho: “fiz codornas pela primeira vez”, o enunciador, novamente em

primeira pessoa, identifica-se como agente, um homem moderno o suficiente para

cozinhar, e o termo “codorna” imprime requinte ao ato. Ele não cozinhou qualquer

coisa, qualquer alimento simplesmente, mas preparou algo especial, requintado:

codornas. Assim, marca-se o posicionamento do enunciador, pelo léxico utilizado, e

fica marcada a preocupação com a aceitação social, e com o prestígio, o estar de

acordo, o senso de pertencimento; há, portanto, uma característica do ethos como

aquele que considera as regras para ser aceito socialmente.

Dar voz ao “rapaz” reafirma a tendência do enunciador em suavizar sua

“culpa” pelos “assaltos à geladeira” e marca mais uma vez o posicionamento de um

sujeito vitimizado. Dando voz ao “rapaz”, demonstra que o fato de não resistir às

tentações da compulsão alimentar em época de tamanha oferta, como na

atualidade, é aparentemente comum.

O sintagma “um rapaz” indica, pelo uso do artigo indefinido, que o

enunciador se refere a uma relação superficial, e/ou virtual. Trata-se de mais uma

marca de contemporaneidade na memória de ambos, enunciador e coenunciador.

“Um rapaz chamado Rodrigo” materializa linguisticamente a impessoalidade, pois é

“chamado” (chamado virtualmente, pessoalmente?) A forma de apresentá-lo

encaminha para um efeito de sentido de impessoalidade. Mais uma vez há um

posicionamento do enunciador que se revela um ser plenamente ajustado aos

costumes contemporâneos.

No trecho “Na outra noite, confessou: descongelou peito e coxas e torrou no

alho e óleo. ‘Pelo menos era ave’. Foi a melhor refeição da minha vida!”, a forma

verbal “confessou” remete ao sagrado, ao confessionário, uma marca de memória,

ou seja, algo considerado inadequado pelas regras sociais, como em muitos trechos

o enunciador também se posiciona. A expressão “pelo menos” indica aceitação

diante da impossibilidade de ter o “ideal”. Mais uma vez, há posicionamento de

vitimização diante da compulsão.

Vale salientar que o rapaz também é apresentado como um ser vitimado

pela compulsão alimentar na madrugada, pois substitui a desejada codorna

(alimento descrito na crônica como sendo de grife), marca de classe social

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economicamente privilegiada, mas que, no desespero de não encontrar o alimento

ideal, na madrugada, “confessa” ter fritado frango, alimento muito mais popular que

a codorna; e ainda se “defende dizendo”: “pelo menos era ave. A expressão “pelo

menos” revela igual assujeitamento do amigo diante da tirania da fome.

Lê-se, em seguida, na crônica:

T.6 Esse é o caso. Há duas experiências gustativas de alta satisfação. A primeira é

ir a um restaurante, deliciar-se com um cardápio elaborado, apreciar os paladares

sutis. A segunda é quando o desejo de comer transforma qualquer porcaria em um

banquete das “Mil e Uma Noites”. Garanto: o maior chef de cozinha é capaz de

chupar os ossinhos de uma carcaça de frango assado, durante a madrugada.

Garçons e maîtres são capazes de, após o expediente, montar um pratinho de arroz

com feijão aquecido no micro-ondas. A madrugada é o reinado das comidas sem

grife, das mortadelas, dos sanduíches de requeijão, das misturas improváveis entre

doces e salgados, do exagero que é uma delícia.

Na expressão “experiências gustativas de alta satisfação” evidenciam-se

traços do ethos que se manifesta e revela dialogar com um coenunciador que

reconhece a existência de diferentes grifes nos alimentos, marca de uma posição

social. Não basta a simples satisfação alimentar, ela é adjetivada, precisa ser “alta

satisfação”; a expressão marca um posicionamento, o pertencimento a um “lugar

social” privilegiadíssimo em relação à realidade brasileira, fato que pode ser lido

como uma crítica sutil.

As expressões “cardápio elaborado”, “restaurante” e “paladar sutil” também

remetem a uma classe social economicamente privilegiada. Há remissão, marca de

memória discursiva, quando enunciador e coenunciador constroem sentidos a partir

desses vocábulos.

Observamos mais uma evidência de memória interdiscursiva no trecho “o

desejo de comer transforma qualquer porcaria em um banquete das ´Mil e Uma

Noites´”. Há posicionamento do enunciador que “dialoga” com um coenunciador que

certamente é capaz de conhecer a obra literária mencionada.

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Há intertextualidade explícita com a literatura, uma referência às histórias de

Sherazade, de “Mil e uma Noites”. E, mais uma vez, o enunciador atenua o fato de

na madrugada comer qualquer besteira, afinal, nesse período, tudo é considerado

“banquete”. O enunciador se afiança na construção das exemplificações que

materializa, bem como nas “vozes” que permite manifestar-se na crônica.

Novamente, a alegoria da noite (da madrugada) é utilizada para o

posicionamento do enunciador que apresenta comida com e sem grife, ou seja, com

prestígio social e sem prestígio, sem valorização; a ditadura chega até ao menu. E o

enunciador está trabalhando na madrugada, assujeitando-se. Ethos vitimizado pelas

circunstâncias, mais uma vez, ou ainda ethos se passando por vítima, porque assim

é perdoado.

É possível analisarmos novamente a impessoalidade nas relações humanas

contemporâneas, marcada na materialidade linguística apresentada pelo

enunciador, no último trecho da crônica:

T.7 Uma amiga do Twitter, Isabel, é capaz de comer sanduíche de pernil na

madrugada. E vamos combinar: as redes sociais incentivam ainda mais os assaltos

à geladeira, porque durante a conversa noturna sempre bate uma fominha. Vão

acabar criando uma geração de gordos! Há poucas noites comi dois ovos fritos com

pão às 4 da manhã! Na manhã seguinte bate o remorso. Acordo com a cabeça

martelando:

— O que fiz, o que fiz ! ?

Corro para a academia! Haja esteira! Sou incapaz de resistir a um ataque de fome

noturna. Mas não sou o único! Falando francamente: quem nunca assaltou a

geladeira que atire o primeiro osso!

Na expressão “uma amiga no twiter” há mais uma vez o posicionamento

bem moderno do enunciador, o hábito de manter-se conectado, sempre atualizado e

relacionando-se, embora esteja trabalhando. Dessa forma, apresenta-se como

aquele que tem amigos em diferentes redes sociais, ethos positivo, moderno e bem

relacionado. Além do fato de que, pelo acréscimo de mais uma “voz” que se

manifesta, mais uma vez suavizar seu deslize de alimentar-se por compulsão.

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Em: “E vamos combinar: as redes sociais incentivam ainda mais os assaltos

à geladeira, porque durante a conversa noturna sempre bate uma fominha. Vão

acabar criando uma geração de gordos!”, as redes sociais, utilizadas como sujeito

da oração, personificam um novo culpado pela fome, e contribui também para

atenuar a ação do enunciador e da amiga. Marcam um ethos que todo o tempo

busca álibis para seus deslizes. Apresenta também o posicionamento de rejeição

social em relação à aparência “gorda”, num contraponto com o desejo de ser “um

magro de fazer inveja”.

No excerto “Há poucas noites comi dois ovos fritos com pão às 4 da manhã!

Na manhã seguinte bate o remorso. Acordo com a cabeça martelando: — O que fiz,

o que fiz!?” Mais uma vez o excesso de alimentação se revela na quantidade de

ovos que o enunciador confessa ter comido, com o agravante de ser alimento

pesado na madrugada, entretanto, em seguida, vem o atenuante: o remorso, como

se na memória do coenunciador houvesse a ideia cristã de que basta o remorso

para suavizar o pecado. Neste contexto, remorso significa colocar-se na posição

digna do perdão. Observamos no trecho, mais uma vez, a contraposição entre a

intenção de agir “bem” comendo pouco, conforme a pressão social encaminha, e

comer por compulsão ferindo o “ideal”.

No trecho final, “Corro para a academia! Haja esteira! Sou incapaz de resistir

a um ataque de fome noturna. Mas não sou o único! Falando francamente: quem

nunca assaltou a geladeira que atire o primeiro osso”, há, mais uma vez, nítido

posicionamento do enunciador, uma marca do sujeito que revela na escolha lexical a

grande preocupação que tem com a imagem, com a estética, que esteja de acordo

com as exigências da sociedade para que possa ter aceitação.

O termo “corro” revela ansiedade, urgência, consequência dos assaltos à

geladeira do qual é vítima, na madrugada. “Haja esteira” remete ao sacrifício de

exercitar-se muito para compensar os deslizes descritos no decorrer de toda a

crônica. O ethos que se manifesta é o daquele que se sujeita aos sacrifícios para

manter-se de acordo com as exigências da sociedade da ditadura da beleza.

A expressão “atire o primeiro osso”, marca intertextual, revela uma ligação

com o litúrgico. A memória dos cristãos registra a relação com uma passagem

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bíblica de apedrejamento de uma pessoa que “ousou” desrespeitar as regras da

sociedade vigente, de uma elite que ditava as regras de civilidade.

Em “quem nunca assaltou a geladeira que atire o primeiro osso” há uma

analogia com a citação bíblica “quem nunca pecou, que atire a primeira pedra” (São

João, capítulo 8, v.7). Mais uma vez, observamos um diálogo entre o enunciador e

seu coenunciador, pois se este não compartilhasse a marca interdiscursiva, não

haveria a construção dos sentidos.

3.3 À guisa de uma possível conclusão

A análise demonstra que a crônica jornalística, aparentemente leve,

apresenta uma séria crítica social: a ditadura da beleza determina a sensação de

bem-estar ou mal-estar das pessoas diante do julgamento baseado na forma física.

O sujeito da cena da enunciação, durante o dia, atende aparentemente às

cobranças sociais, mas revela-se angustiado. Durante a noite, cede às tentações,

sente-se momentaneamente realizado, feliz, entretanto, ao amanhecer, corre para a

academia em busca de compensar, de resgatar a imagem que deseja dar como

resposta ao apelo da ditadura da beleza.

As escolhas lexicais revelam um discurso que transfere a “culpa”, posiciona

o enunciador como “vítima da circunstância”: trabalhar na madrugada. Vale

lembrarmos o trecho do corpus: “seria um magro de dar inveja, se não trabalhasse

na madrugada”. A apresentação de outras vozes como o amigo do twiter e a amiga

Isabel também validam esse discurso de posicionamento como vítima.

Há, nesse contexto, a materialização de que a aceitação social é mais forte

que a própria satisfação. A construção dos sentidos encaminha para estabelecer

como valor a ideia de que ser aceito socialmente vale mais que o próprio bem-estar.

Nisto reside a crítica social apresentada na crônica jornalística.

O enunciador dialoga com um coenunciador, público alvo da Revista Veja,

identificado como, em sua maioria, pertencente às classes A e B, ou seja,

coenunciadores que o enunciador acredita serem capazes de perceber todos os

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implícitos. A frequente alternância das descrições “dia” e “madrugada” revelam a

cruel dualidade à qual o enunciador está sujeito.

Outro aspecto a ser mencionado é a diferença entre vontade e desejo, pois

há alternância desses dois elementos no decorrer do texto. De acordo com Houaiss

(2001), “desejo” refere-se à aspiração humana diante de algo que corresponda ao

esperado; ambição incontrolada ou excessiva; cobiça, sede, poder de obscurecer a

razão. Há na crônica um embate entre o desejo de manter-se magro de fazer inveja,

ligado à aceitação social; e poder comer livremente o que quiser, mas pagar o preço

de aumentar o peso e ser rotulado socialmente.

O desejo está, na crônica, ligado principalmente ao ethos, à imagem social,

àquilo que será aceito ou rechaçado. Decorre daí o tema gerador da crônica, a

milenar questão da “ditadura da beleza”. Já entre os gregos, no apogeu de sua

civilização, havia preocupação com a “boa forma física”, com a relação “corpo são,

mente sã”, entretanto, hoje, o tema tornou-se mais abrangente, pois, da angústia

humana quanto à aparência, surgem diversas ofertas de produtos e serviços para

manter-se “magro”, portanto, o capitalismo interfere até na identidade das pessoas.

Segundo o iDicionário Aulete :

Vontade.sf.1.Capacidade de querer e de escolher, de se impelir para a ação afirmação ou recusa, subjetiva ou objetiva.2. Sentimento que leva as pessoas a se comportarem conforme essa capacidade: Sua vontade, inflexível, dobrou a resistência dos companheiros. 3. Necessidade física ou emotiva: vontade de comer: vontade de beber.4. Arbítrio, deliberação: Submeteu-se à vontade de sua deusa. 5. Capricho, impulso: Foi criada repleta de vontades.6. Pop. Propensão, tendência. 7. Deliberação, determinação: O condenado registrou suas últimas vontades. 8. Empenho, interesse, desvelo, zelo, dedicação: Empenhou toda a sua vontade para conquistar um emprego melhor.[F.: Do lat. voluntas. Ideia de ' vontade': bulia - (abulia).]

Na crônica, a descrita capacidade de escolher se perde na medida em que a

fome é tirana; ela comanda, o enunciador fica vulnerável a ela, o arbítrio não

consegue mais fazer escolhas, está assujeitado ao “desejo” que entorpece e o faz

agir movido pelo instinto, como na sequência: “desembesto até a geladeira, devoro

toda besteira”; os verbos remetem à animalidade, à gula, ao pecado.

Já “Desejo”, no iDicionário Aulete, assim se apresenta:

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1. Vontade, anseio ou ambição por alguma coisa; aspiração de ter, de conseguir ou de que algo aconteça: O desejo do pai era que o filho seguisse a sua profissão. [desejo de liberdade.].2. Vontade de ter relações sexuais com alguém; atração física.3. Pop. Vontade repentina de determinada comida ou bebida.4. Psic. Demanda psíquica que busca instaurar novamente a situação da primeira satisfação. 5. Aquilo que é desejado.[F.: Do lat. *desedium, do lat.cláss. desidia, ae. Hom./Par.: desejo (sm.), desejo (fl. desejar).]

A descrita demanda psíquica do desejo aparece na crônica quando o

enunciador descreve sua compulsão por alimentar-se na madrugada, comendo

comidas geladas, doces e todo tipo de besteira, e a “culpa” que surge depois, pois

há descrição de que ele corre na manhã seguinte para a academia. Temos então a

descrição de um ser angustiado, dividido entre a vontade e o desejo. E nesse

embate o que fica em risco é a forma física idealizada. Vale então lembrarmos os

conceitos de beleza acolhidos no contemporâneo.

De acordo com Houaiss (2001, p. 427),

beleza é característica daquilo que possui harmonia, proporção, simetria, imponência etc. (a b. de um rosto, de um edifício, de uma sinfonia etc.)”.

Segundo o mesmo autor, p. 1367:

“fome 1. sensação de que traduz desejo de comer; 1.1 carência alimentar, subalimentação; 1.2 p.ext. escassez, míngua de víveres; 2. fig. necessidade ou desejo intenso de adquirir algo; sofreguidão, avidez, ambição.

Mas essa harmonia descrita no conceito contemporâneo de beleza é

estabelecida por quem? Essa simetria, essa imponência, quem determina? Decorre

da ditadura da beleza. Nesse sentido percebemos que a própria lexia “fome”, na

crônica, relaciona-se, também, com a necessidade de aceitação social. A memória

nos remete às diversas demonstrações de sucesso nas inter-relações sociais,

apresentadas na mídia contemporânea, sempre associando “beleza” a sucesso.

Decorrem desse cenário as preocupações do enunciador, que se posiciona,

marcado pela angústia, pelas cobranças sociais, salientando que representa toda

uma categoria, uma classe de pessoas. Quando se manifesta: “Durante o dia, me

comporto bem...”, o pronome “me”, o posiciona; e comporta-se “bem”, revela, no

advérbio, o julgamento da sociedade.

A utilização dos pronomes “eu” e “me” marca o posicionamento nítido, há

uma antítese inerente: comportar-se bem, e ser magro; comporta-se mal e ser

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rotulado como inadequado. Há uma marca do ethos do enunciador como aquele que

embora não resista às tentações de comer por compulsão, sente-se “errando”,

desrespeitando as regras da chamada civilidade moderna.

A crônica apresenta de forma recorrente a questão da “beleza” idealizada.

Vale salientar que a busca do corpo bonito e, se possível saudável, é muito antiga.

Segundo Pierre Brunel (1998), para os gregos, a beleza do corpo não era apenas

estética, aparente. Deveria expressar um modo de vida do cidadão. Naquela cultura,

o grego belo era aquele que praticava exercícios físicos, aprendia música, discutia

política e tinha gosto pelo conhecimento e pela arte. Assim, o belo para os gregos

estava totalmente vinculado a noção do objeto estético, simétrico, uma escultura, ou

mesmo uma obra filosófica, não era uma mera questão física, era integral, diferente

dos valores atuais.

Na Europa, no período romântico, a beleza era obesa e pálida, porque a elite

econômica era assim, tinham alimentos em abundância e não trabalhavam ao sol.

Entretanto hoje, no Brasil, por exemplo, a beleza é esquálida e bronzeada, porque a

elite busca essa imagem.

Conclui-se então que a beleza é um conceito social, e frequentemente é

resultado da intersecção de diversos fatores biológicos, sociais, climáticos,

ambientais e históricos.

Atualmente, tenta-se desmontar o conceito através de normas que variam

entre as nações. No Brasil, por exemplo, já existe uma lei em vigor que regulamenta

o peso mínimo das modelos com relação a padrões corporais, mas decorrente de

pressão internacional. Outro critério retomado e considerado importante para a

beleza humana é a simetria.

Pesquisas recentes afirmam que rostos simétricos tendem a ser

considerados mais belos que os assimétricos, entretanto é questionável, não há

como mensurar sensações, sobretudo porque beleza ainda é sensação de bem

estar diante de algo ou alguém, portando decorre de livre arbítrio. Dessa forma o

que vigora, e que se materializa nos textos, são os valores de cada grupo social,

como verificamos na crônica de Walcyr Carrasco. Na África, ainda há notícias de

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comunidades nas quais a beleza é obesa, no Brasil, utilizamos referenciais

europeus, e desejamos a magreza, conforme se sugere no texto analisado.

Na crônica a questão da beleza aparece ligada à responsabilidade de cada

pessoa, decorrente dos seus hábitos, ou seja, ligada à “vontade”. Segundo Houaiss

(2001), o termo “vontade” – refere-se à faculdade que tem o ser humano de querer,

de escolher, de livremente praticar ou deixar de praticar certos atos”.

Há, no texto, momentos de vontade de comer, como o “amigo” que sente

vontade de codorna e come frango, mas predomina, o “desejo” que é mais forte que

vontade, que domina a pessoa, e essa passa a agir sem controle, ou seja,

vitimizada. Há, portanto, mais um posicionamento do enunciador e uma marca de

ethos: vítima da tirania da fome e à mercê da ditadura da beleza.

A questão da “fome” também é abordada na composição “Comida”, de

Arnaldo Antunes, Marcelo Fromer e Sérgio Britto 3, e nos permite refletir sobre os

anseios do ser humano, anseios que não se resumem somente ao sustento do

corpo, mas que são psicológicos, espirituais, anseios mais subjetivos, tais quais

observamos na crônica.

A letra da canção, assim como a crônica, encaminham para a reflexão

acerca das relações de poder que decorrem da questão da “fome”. A lexia vai muito

além da alimentação. Há fome de poder, de afeto e de diversos outros aspectos

para os quais a sociedade impulsiona o cidadão.

A fome na crônica marca uma característica do ethos de um enunciador que

deseja aceitação social, sobretudo porque representa um grupo social ligado às

classes econômicas A e B, leitores alvo da Revista Veja São Paulo, e para essa

aceitação se assujeita às regras de civilidade no que se refere à alimentação e à

aparência.

Numa intertextualidade com a crônica de Carrasco, a letra da música dos

Titãs, "Comida", pode levar a muitas análises e percepções, entretanto o que chama

3 Bebida é água!/ Comida é pasto!/ Você tem sede de que?/ Você tem fome de que?...

A gente não quer só comida /A gente quer comida / Diversão e arte/ A gente não quer só comida / A gente quer saída/ Para qualquer parte...etc.

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a atenção, no momento em que se lê a letra da música, é a constatação de que o

ser humano participante da sociedade atual tem vários anseios, e parece nunca

estar satisfeito com o que tem.

Como recurso de ênfase, a letra ainda se pergunta de forma recorrente

"você tem fome de quê?", que remete aos vários tipos de fome que temos: de

aceitação, cultura, qualidade de vida, sucesso no trabalho, lazer etc. Mas a letra da

música ironiza a alienação que nos faz crer que o alimento basta. Na crônica, a

ironia refere-se à fome que vai além do alimento, encaminha para a percepção dos

papéis sociais e da aceitação.

Há um trecho bíblico que também se relaciona com a “fome” descrita na

crônica: “Nem só de pão vive o homem...” (Dt 8,3), é preciso. como na letra da

canção, diversão e arte, e, na crônica, é preciso aceitação.

Essa materialidade discursiva permite perceber que há no texto em questão

um aspecto marcante do gênero crônica (da esfera jornalística literária): o tom de

denúncia sutilmente apresentado, por meio do efeito de humor que se quer

provocar.

Diante das ideias materializadas, das marcas de memória e dos efeitos de

sentidos, parece haver no texto a provocação: quem determina o que é civilidade?

Está o enunciador sujeito a isto? Estão os coenunciadores também sujeitos?

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CONCLUSÃO

Acreditamos que analisar as marcas linguísticas de memória, de

interdiscurso, de intertextualidade e de ethos na crônica pode promover o

desenvolvimento de leituras mais adequadas desse gênero e da possível construção

dos sentidos pelo interlocutor.

Buscamos demonstrar que, por meio da observação da materialidade

linguística do enunciado, é possível identificar a construção de imagens (ethos) de

sujeitos marcados pelas formações discursivas e ideológicas que permeiam a

sociedade em que se inserem esses sujeitos.

No desenvolvimento da dissertação, o processo de enunciação e construção

dos sentidos foi considerado no âmbito sócio-histórico, objetivando compreendê-lo

pela análise das relações materializadas linguisticamente.

Vale salientar que os textos literários, veiculados na esfera jornalística,

apresentam excelentes corpora para a análise dos traços da memória, sobretudo a

crônica, gênero que neste início de século XXI tem ocupado cada vez mais espaço,

tanto nas mídias impressas, quanto nas virtuais. Presta-se, sem dúvida, a despertar

no leitor diferentes formas de compartilhar conhecimentos e, sobretudo, de refletir

sobre seu papel no mundo, seus hábitos e crenças, enfim, de situar-se como real

integrante de um complexo social e histórico.

Procuramos, enfim, evidenciar, o forte poder de persuasão da crônica,

investigando como são articulados os recursos da argumentação, o processo de

enunciação, os indícios das marcas da memória discursiva e as marcas de

intertextualidade explícita e implícita reveladas no texto.

Objetivamos também que os resultados das análises realizadas nesta

dissertação possam ser objeto de reflexão para professores e leitores interessados

em compreender os mecanismos que possibilitam a construção de sentidos e a

consequente intencionalidade do texto, além de despertar, no meio acadêmico, base

para outras pesquisas que possam ampliar o entendimento da questão.

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ANEXOS

ANEXO A

Crônica: Assalto à geladeira

Walcyr Carrasco

Veja São Paulo – 22/09/2010

Durante o dia, eu me comporto bem. Almoço uma salada, no jantar só um

peixinho. Seria um magro de fazer inveja se não tivesse o hábito de escrever à

noite. Teclo as primeiras linhas logo após o jantar e vou pela noite afora:

infantojuvenis, romances, novelas... A inspiração só chega na madrugada. No

período diurno sou vítima de uma entidade: o Exu Tranca Texto, que me impede

de inventar histórias à luz do sol. Mas o que tem isso a ver com o peso? É

simples: lá pelas 2, 3 da manhã, costumo sentir uma certa fome. Levanto do

computador e prometo a mim mesmo:

— Vou comer só uma coisinha.

E desembesto até a geladeira. Vasculho as prateleiras, subitamente

assediado por uma fome tirana. Já comi coxinhas e empadinhas geladas, potes

de cogumelos em conserva, doce de casca de laranja, queijo e pão com

manteiga, além de toda besteira que encontro pela frente. O pior: sem ordem

lógica. Sou capaz de devorar bombons de chocolate e, em seguida, as

almôndegas que sobraram do jantar! Nem precisaria de garfo, poderia comer

com uma pá, tal a voracidade.

Eu me sinto feliz e realizado depois do assalto à geladeira. De madrugada,

não importam as regras do regime e da civilidade. Como tudo que encontro!

Recentemente, recebi maravilhosos potes de doces mineiros. Escondi num

escritório separado de casa. Senão, comeria tudo na madrugada. Um amigo

acorda com fome durante a noite.

— Quando tenho um sonho ruim, voo para a geladeira — confessa.

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Entre outros recordes, já devorou um pote inteiro de batatinhas temperadas,

feitas pela mãe, e uma travessa de lasanha fria. Outro dia comeu quatro pedaços

gelados de pizza que sobraram do jantar.

— De noite a comida fica mais gostosa! — garante. Recentemente eu

estava no Twitter. Contava sobre quando fiz codornas pela primeira vez. Um

rapaz chamado Rodrigo entrou na história. “Fiquei com vontade de codornas” —

escreveu. Morava longe, não sabia onde encontrar as preciosidades às 3 da

manhã. “Vou fritar frango” — avisou antes de sumir. Na outra noite, confessou:

descongelou peito e coxas e torrou no alho e óleo. “Pelo menos era ave. Foi a

melhor refeição da minha vida!”

Esse é o caso. Há duas experiências gustativas de alta satisfação. A

primeira é ir a um restaurante, deliciar-se com um cardápio elaborado, apreciar

os paladares sutis. A segunda é quando o desejo de comer transforma qualquer

porcaria em um banquete das “Mil e Uma Noites”. Garanto: o maior chef de

cozinha é capaz de chupar os ossinhos de uma carcaça de frango assado,

durante a madrugada. Garçons e maîtres são capazes de, após o expediente,

montar um pratinho de arroz com feijão aquecido no micro-ondas. A madrugada

é o reinado das comidas sem grife, das mortadelas, dos sanduíches de

requeijão, das misturas improváveis entre doces e salgados, do exagero que é

uma delícia.

Uma amiga do Twitter, Isabel, é capaz de comer sanduíche de pernil na

madrugada. E vamos combinar: as redes sociais incentivam ainda mais os

assaltos à geladeira, porque durante a conversa noturna sempre bate uma

fominha. Vão acabar criando uma geração de gordos! Há poucas noites comi

dois ovos fritos com pão às 4 da manhã!

Na manhã seguinte bate o remorso. Acordo com a cabeça martelando:

— O que fiz, o que fiz!?

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Corro para a academia! Haja esteira! Sou incapaz de resistir a um ataque

de fome noturna. Mas não sou o único! Falando francamente: quem nunca

assaltou a geladeira que atire o primeiro osso.

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ANEXO B

Letra da Música: Comida (Titãs)

Composição: Arnaldo Antunes/Marcelo Fromer/Sérgio Brito

Bebida é água! Comida é pasto! Você tem sede de que? Você tem fome de que?...

A gente não quer só comida A gente quer comida Diversão e arte A gente não quer só comida A gente quer saída Para qualquer parte...

A gente não quer só comida A gente quer bebida Diversão, balé A gente não quer só comida A gente quer a vida Como a vida quer...

Bebida é água! Comida é pasto! Você tem sede de que? Você tem fome de que?...

A gente não quer só comer A gente quer comer E quer fazer amor A gente não quer só comer A gente quer prazer Prá aliviar a dor...

gente não quer dinheiro A gente quer dinheiro E felicidade A gente não quer Só dinheiro A gente quer inteiro E não pela metade...

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Bebida é água! Comida é pasto! Você tem sede de que? Você tem fome de que?...

gente não quer só comida gente quer comida Diversão e arte A gente não quer só comida A gente quer saída Para qualquer parte...

A gente não quer só comida A gente quer bebida Diversão, balé A gente não quer só comida A gente quer a vida Como a vida quer...

A gente não quer só comer A gente quer comer E quer fazer amor A gente não quer só comer A gente quer prazer Prá aliviar a dor...

A gente não quer Só dinheiro A gente quer dinheiro E felicidade A gente não quer Só dinheiro A gente quer inteiro E não pela metade...

Diversão e arte Para qualquer parte Diversão, balé Como a vida quer Desejo, necessidade, vontade Necessidade, desejo, eh! Necessidade, vontade, eh! Necessidade...

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ANEXO C

Poema: O Bicho

Manuel Bandeira

Vi ontem um bicho

Na imundície do pátio

Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,

Não examinava nem cheirava:

Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,

Não era um gato,

Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem”.