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1 Memória e Representação: a cidade de Santos em cartões-postais MAURÍCIO NUNES LOBO* Em minha dissertação de mestrado evidenciei que a representação visual da cidade de Santos através dos cartões-postais, produzidos no início do século XX pelo fotógrafo José Marques Pereira, possibilitava apreendermos espaços, atividades e práticas sociais ausentes em outras publicações do período que continham fotografias, como almanaques, anuários e, principalmente, os álbuns ilustrados que centravam seus discursos no progresso urbano e no desenvolvimento das atividades comerciais. Nos postais pesquisados, além da cidade moderna estão representados as casas de pescadores, as plantações de bananas, o mercado de lenha e principalmente a população local dos arredores de Santos e de outras cidades da baixada santista, entre trabalhadores do porto, pescadores, carregadores de folhas de mangue e outros habitantes do cotidiano do lugar, tudo dentro de uma mesma série numerada e monocromática. Estes aspectos e práticas sociais que ocorriam no interior de Santos e de outras cidades circunvizinhas no início do século XX são também raramente mencionados pela historiografia. Tal carência pode dever-se ao fato de que as representações do cotidiano local, fora do circuito internacional do comércio do café, geralmente não aparecem em outros documentos, principalmente em textos escritos, as fontes correntemente privilegiadas para a investigação histórica. Desta forma, os cartões-postais “permitem imaginar o passado de forma mais vívida” (BURKE, 2004: 17), ou seja, revelam detalhes da vida, da habitação e do modo de vestir dos pescadores; as atividades, hoje já extintas, do mercado de lenha na região do Paquetá, e da divisão de tainhas nas areias do Guarujá entre os pescadores e os donos das grandes redes de pesca.

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Memória e Representação: a cidade de Santos em cartões-postais

MAURÍCIO NUNES LOBO*

Em minha dissertação de mestrado evidenciei que a representação visual da cidade de

Santos através dos cartões-postais, produzidos no início do século XX pelo fotógrafo José

Marques Pereira, possibilitava apreendermos espaços, atividades e práticas sociais ausentes

em outras publicações do período que continham fotografias, como almanaques, anuários e,

principalmente, os álbuns ilustrados que centravam seus discursos no progresso urbano e no

desenvolvimento das atividades comerciais. Nos postais pesquisados, além da cidade moderna

estão representados as casas de pescadores, as plantações de bananas, o mercado de lenha e

principalmente a população local dos arredores de Santos e de outras cidades da baixada

santista, entre trabalhadores do porto, pescadores, carregadores de folhas de mangue e outros

habitantes do cotidiano do lugar, tudo dentro de uma mesma série numerada e

monocromática.

Estes aspectos e práticas sociais que ocorriam no interior de Santos e de outras cidades

circunvizinhas no início do século XX são também raramente mencionados pela

historiografia. Tal carência pode dever-se ao fato de que as representações do cotidiano local,

fora do circuito internacional do comércio do café, geralmente não aparecem em outros

documentos, principalmente em textos escritos, as fontes correntemente privilegiadas para a

investigação histórica.

Desta forma, os cartões-postais “permitem imaginar o passado de forma mais vívida”

(BURKE, 2004: 17), ou seja, revelam detalhes da vida, da habitação e do modo de vestir dos

pescadores; as atividades, hoje já extintas, do mercado de lenha na região do Paquetá, e da

divisão de tainhas nas areias do Guarujá entre os pescadores e os donos das grandes redes de

pesca.

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É preciso lembrar, contudo, que estas e outras cenas da cidade de Santos e arredores

foram produzidas para o grande comércio de postais do período, por isso, deviam agradar o

público consumidor. Isto quer dizer que estas imagens tiveram um sentido quando de sua

produção e, portanto falam a partir de um ponto de vista. Seu autor foi o fotógrafo e editor

José Marques Pereira, um imigrante português natural da cidade do Porto. Chegou ao Brasil

desembarcando no Rio de Janeiro em 27 de março de 18931. Dois dias depois deu entrada na

Hospedaria dos Imigrantes em São Paulo. Tinha então 26 anos2. Com ele vieram seu irmão,

Abílio Marques Pereira de 19 anos, e algumas centenas de imigrantes portugueses a bordo do

vapor inglês “Magdalena” em busca de melhores condições de vida e trabalho nas

promissoras terras brasileiras.

Neste período, Portugal passava por intensa crise financeira devido à crescente dívida

pública e ao déficit orçamentário, além da queda das exportações. A política que expulsava do

campo a população do norte do país buscando formar um proletariado urbano para indústria

nascente esbarrou nas péssimas condições de saúde e na precariedade da vida nas cidades

portuguesas. Somava-se à dificuldade de acesso a terra, os baixos salários e a obrigatoriedade

do serviço militar como motivadores da emigração populacional. Estes problemas não eram

vistos pelos lusos nas terras da antiga colônia na América, que ainda acrescentava as

vantagens de possuir a mesma língua e religião.

* Doutorando em História Social pela Universidade de São Paulo. 1 Lista de Passageiros do Vapor “MAGDALENA” procedente de Southampton e escalas que entrou no Rio de Janeiro em 27 de março de 1893. Arquivo Nacional. Coordenação Geral de Acesso e Difusão Documental. Rio de Janeiro. 2 Livro de Registro de Imigrantes da Hospedaria de São Paulo, 038 p. 198. Museu da Imigração. São Paulo. Com relação ao seu nascimento não encontramos mais informações, havendo divergências sobre este aspecto em diferentes documentos.

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Em Santos, Marques Pereira encontrou uma população vivendo predominantemente

nas áreas urbanas e uma das maiores colônias portuguesas no país, cerca de 25% dos

habitantes da cidade. Este grande contingente era engrossado cada vez mais por novos

imigrantes que chegavam para trabalhar em negócios dos familiares e conhecidos já

estabelecidos. São estas as relações que auxiliaram o imigrante português a se inserir no

mercado de trabalho, pois, como é fato conhecido, a imigração lusa, diferentemente da

italiana subvencionada pelos produtores de café, chegava por conta própria, e, era composta

majoritariamente de homens que vinham primeiro “ganhar a vida” antes de trazerem suas

famílias.

É provável que assim tenham chegado e se fixado os irmãos Marques Pereira em

Santos. A cidade contava com um aumento vertiginoso das atividades comerciais, alicerçadas

pelos negócios do café, que aos poucos se expandiam numa extensão de serviços urbanos

responsáveis por suprir o consumo que crescia junto com a população e com os novos gostos

que chegavam do “estrangeiro”.

Entre as casas comerciais que mais representavam a transformação dos costumes

estavam as lojas de “fazendas, armarinhos, secos e molhados” onde eram vendidos vários

produtos ligados ao consumo urbano baseado nos modelos dos centros europeus. Segundo

Mello e Saes, em 1890, havia 292 destes estabelecimentos na cidade, enquanto existiam 141

casas comissárias de café (MELLO; SAES APUD LANNA, 1996: 68).

José Marques Pereira foi proprietário de uma dessas lojas de armarinhos e fazendas. O

nome da loja era “A FAMA”, trabalhava, em geral, com produtos vindos do exterior, entre

tecidos finos e roupas prontas, perfumes, grande quantidade de utensílios para armarinhos e

outras mercadorias que influenciavam os novos costumes na cidade.

A rua XV de Novembro, onde se localizava a loja de José Marques Pereira,

concentrava a maior movimentação comercial e de pessoas, pois era o mais importante

boulevard da cidade que ligava a região do Valongo, onde embarcavam e desembarcavam os

passageiros, na estação da São Paulo Railway, com o núcleo mais antigo da cidade, a região

do Outeiro de Santa Catarina, da antiga Igreja Matriz e da Igreja de Nossa Sª. do Carmo. Ali

se expunham aos olhos dos passantes uma série de objetos desde trajes para homens e

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mulheres, fazendas finas, perfumes, armarinhos, até fotografias como forma de chamar novos

clientes.

José Marques Pereira utilizou desta estratégia para seduzir a clientela ao seu

estabelecimento, pois quando “fotógrafo amador costumava expor suas fotografias à frente da

loja, para atrair a atenção dos transeuntes” (BARBOSA, 1999). Não sabemos ao certo quando

iniciou na prática fotográfica, mas sem dúvida os contatos e as atividades promovidas pelo

“Centro Português” colaboraram para sua formação cultural. Conforme Lobo "o Centro

Português de Santos, que data de 1896, promoveu escolas de dança, de música, grupos de

teatro; fundou a escola primária e secundária João de Deus, além de prestar ajuda pecuniária e

repatriação de imigrantes lusos" (2001: 105).

Tornou-se membro do Centro Português ainda no ano de 1896. No livro de registros

dos sócios do Centro ele aparece como associado número 166 da instituição. Teve

participação ativa entre os associados, sendo membro do seu Conselho Consultivo e elevado a

benfeitor em 30 de janeiro de 1931.

Marques Pereira pode ter tomado impressões a respeito da fotografia neste local ou em

qualquer outro, mas as atividades culturais proporcionadas pelo Centro Português que ainda

contava com gabinete de leitura próprio criaram ou intensificaram seu gosto estético, o que

ficou evidente em seu trabalho fotográfico.

A relação entre José Marques Pereira e a fotografia foi muito além do “hobby” de

registrar aspectos da cidade de Santos e expor as imagens na vitrine de sua loja. “A Fama”

deu lugar à ‘Photographia União’.

Várias imagens foram produzidas pelo fotógrafo sobre as transformações urbanas de

Santos mostrando aspectos da cidade colonial sendo demolida e de outras que registraram o

surgimento da cidade moderna3. Uma boa parte dessas imagens foi utilizada pela fotógrafa

Sophia Pretzel Waldhein para produzir o “Álbum Centenário” como parte das comemorações

dos cem anos da elevação de Santos a município. Neste trabalho, a fotógrafa comparou as

fotografias de Marques Pereira mensuradas como de 1902-3 com as registradas por ela em

3 O início de sua atividade profissional na fotografia é incerto, pois ainda em 1902-1903, datas de muitas dessas imagens, seu nome não se encontrava relacionado entre os fotógrafos da cidade.

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1939 a partir dos mesmos ângulos e perspectivas, realçando as mudanças urbanas sofridas

durante quase 40 anos na cidade4.

Os álbuns foram utilizados por instituições públicas e privadas para propagandear seus

feitos a um público cada vez maior e assim consolidar os monumentos da modernidade como

documentos da memória. Neste período editaram-se muitos desses álbuns. Eles objetivavam

evidenciar as melhorias promovidas por empresas e governos. A fotografia mais que um

aliado era vista como “a prova” das transformações físicas ocorridas. Alguns dos fotógrafos

mais requisitados do país foram contratados para registrar e perpetuar uma imagem moderna

do Brasil. José Marques Pereira teve algumas de suas imagens vinculadas ao “Álbum de

Vistas de São Paulo”, editado pela Casa Garraux paulistana em 1914, trazia imagens sobre

diversas cidades do Estado, sendo dele as fotos de panoramas da cidade de Santos. É possível

que haja outros álbuns contento fotografias suas, pois muitas editoras do período não davam

créditos aos fotógrafos nas publicações. Outro indício é o fato de também haver várias fotos

de sua autoria sobre inauguração do corpo de bombeiros, do matadouro, do porto e dos canais

de drenagem de Santos, geralmente imagens feitas através de contrato junto a instituições e

não tomadas de forma espontânea como as vistas avulsas5.

As inúmeras “vistas” das cidades de São Vicente, do Guarujá, mas principalmente das

ruas centrais, das praças, do porto e de vários aspectos da cidade de Santos produzidas desde

os tempos de fotógrafo amador por José Marques Pereira alcançam a popularidade através de

um novo suporte, o cartão-postal.

O cartão-postal impulsionou seus negócios, pois seu ateliê fotográfico também se

tornou casa editora, produzindo os mais antigos cartões em Santos, que geralmente traziam

suas fotografias estampadas em uma das faces. Em 1905 o anúncio no Almanack Laemmert

da capital federal dá um indício do tamanho de sua participação neste mercado "Photographia

União 70.000 cartões postaes a maior colleção até hoje editada no Estado de São Paulo,

trabalho nítido e perfeito, compondo-se de que mais bello e pittoresco, de mais admirável e

encantador possue essa terra". (ALMANACK LAEMMERT, 1905: 770)

4 As imagens desta publicação e mais de 200 reproduções das fotografias de José Marques Pereira é parte do acervo informatizado da Fundação Arquivo e Memória de Santos. 5 Estas imagens fazem parte do acervo da Fundação Arquivo e Memória de Santos.

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É interessante perceber que a grande produção, anunciada como a maior do Estado até

o momento, mostra como seu trabalho ganhou novos mercados, chegando a ser vinculada no

Almanak Laemmert do Rio de Janeiro, alcançando mais admiradores-compradores e

colecionadores. A forma como anunciou seu trabalho usando adjetivos ligados à ordem da

produção moderna como “nítido e perfeito” próprios da atividade fotográfica, qualificava-o

entre os mais atualizados da época. E também ficam evidentes as imagens, ou pelo menos a

maioria delas, vinculadas nos postais, pois “compondo-se de que mais bello e pitoresco, de

mais admirável e encantador possue esta terra”, se refere às vistas das cidades, seja das cenas

de modernização urbana das praças e logradouros arborizados (bello), seja das habitações e

atividades dos caiçaras (pitoresco).

Portanto, há uma intenção de produzir imagens idealizadas de Santos e de sua

população colaborando na construção de uma memória sobre aspectos da cidade deste período

que ultrapassam as fronteiras locais chagando até no exterior. A cidade recém-remodelada era

mais uma vez reconstruída em suas fotografias que, através do cartão-postal, passaram a ser

conhecidas entre um número cada vez maior de pessoas que visitavam Santos ou apenas

recebiam seus postais.

Estes postais viajaram ao mundo informando, consolando e saudando muitos

remetentes que receberam junto com as mensagens de seus entes queridos as fotografias

impressas de José Marques Pereira sobre aspectos da cidade de Santos, marca da passagem do

emissor pelo município.

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A leitura que faziam alguns admiradores de suas fotografias reforçava esta imagem da

memória da cidade, como em 1906 a descrição de Vitaliano Rotelline em “Il Brasile e gli

italiani” sobre o trabalho de J. Marques Pereira.

Para este artista egrégio, Santos e sua bela baía, a vizinha São Vicente e a ilha de

Santo Amaro, com a atrativa Guarujá, não tem nenhum mistério: cada local que

ofereça encantos naturais foi enfocado pela lente do bravo fotógrafo. Marques

Pereira, um jovem gentil, afetuoso, sem pretensões, possui hoje um belo estúdio

fotográfico na Rua 15 de Novembro e lá o visitante poderá passar momentos

deleitosos diante das numerosas vistas que constituem seu patrimônio artístico,

porque ele produz a fotografia como a arte, não como um ofício, obtendo resultados

de notável beleza. (ROTELLINI, 1906: 728)

Este autor procura explicitar que suas fotografias são feitas como obras de arte e não

como ocupação. Tal pensamento é recorrente na história da fotografia visando aproximar os

trabalhos de alguns fotógrafos dos valorizados pintores e diferenciá-los, como artistas, da

numerosa concorrência. Não nos cabe aqui fazer a discussão a respeito da fotografia como

obra de arte, mas através de discursos como de Rotellini confirmar a estratégia de valorização

das fotografias de José Marques Pereira qualificando-as como obras de arte.

Em 1907 o livro propagandístico “Le Brésil” diz algo semelhante sobre o trabalho de

José Marques Pereira:

J. Marques Pereira é antes de tudo um artista que ama seu ofício e que soube criar

um renome justamente merecido. Pode dizer-se que é devida a ele a divulgação dos

pontos mais interessantes da cidade de Santos e felicitá-lo por ter contribuído para

destruir a lenda que situava Santos numa região que não atrai aos turistas. De fato,

as vistas de Santos por ele obtidas não somente constituem verdadeiras obras de

arte, mas ainda têm revelado que o porto principal do Estado de São Paulo, além de

importante centro marítimo comercial, é também uma estação balneária de

primeiro nível. Os trabalhos de J. Marques Pereira, vistas naturais e fotografias de

grupos, são universalmente apreciados e destacados pela perfeição da execução

que transforma todos os seus trabalhos em verdadeiros documentos artísticos. (HÜ,

1907)

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A “lenda” a que se refere Charles Hü foram às sucessivas epidemias que

atormentavam os santistas e que controladas, no início do século XX, pelas reformas

sanitárias, trouxeram cada vez mais turistas para a cidade. Santos era também a praça onde se

negociava o “ouro verde” paulista e de grande fluxo de mercadorias e de estrangeiros, por isso

as transformações atraíram muitas pessoas a se fixar na cidade e também expandiram os seus

limites urbanos em direção as praias, com a construção de duas importantes vias, a av.

Conselheiro Nébias e a av. Ana Costa que ligavam a área da orla com o centro antigo. As

praias passaram a ser ocupadas pela população mais abastada do município e do interior com

a construção de números chalés e de luxuosos hotéis na orla marítima.

Tais empreendimentos também visavam trazer turistas, que nessa época buscavam

pelo litoral brasileiro os recomendáveis “banhos de mar”. Santos, para figurar nesse cenário,

precisava desmistificar a imagem secular que possuía como a “cidade das sezões e das

bexigas" (RIBEIRO, 1993: 51). As reformas precisavam se tornar conhecidas. As fotografias

de José Marques Pereira vinculadas no mais poderoso meio de comunicação visual da época,

o cartão-postal, são pioneiras no questionamento da imagem de cidade insalubre colaborando

para que Santos estivesse entre as cidades mais visitadas do país.

O turismo estava entre as atividades que cresciam neste momento com a extensão das

informações. O cartão-postal foi um dos seus grandes impulsionadores, aguçando a

curiosidade daqueles que o recebiam e desejavam estar com seus próprios olhos diante das

cenas que viam nos postais.

Dentro da linguagem idealizada do cartão-postal, José Marques Pereira mostrou a

movimentação nas praças, nas ruas, nas imediações dos prédios públicos e privados, no

mercado de lenha, na venda de peixes, nas atividades dos caiçaras, nos arredores da cidade, no

cais do porto enfim, na vida da cidade num período de profundas transformações urbanas e

sociais.

Ao explorar o cartão-postal produzido por um único autor, o fotógrafo e editor José

Marques Pereira, este trabalho possibilitou visualizarmos um discurso específico onde foram

eleitos e elaborados alguns espaços e atividades que figuraram no imaginário do grande

público no início do século XX.

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Para apreendermos a linguagem de Marques Pereira resgatamos o histórico dos locais

representados, através da documentação da época e de bibliografias que descreveram o

cotidiano da cidade e de seus personagens. Ressaltamos a forma como os elementos são

inseridos pelo autor nas imagens - sua composição - merecendo destaque a capacidade técnica

demonstrada em todo processo fotográfico, desde o registro na procura de ângulos e

perspectivas que melhor evidenciam o seu discurso até o trabalho laboratorial e gráfico, uma

vez que era editor dos seus postais, os primeiros a serem publicados na cidade.

Em nossas análises buscamos evidenciar que os cartões-postais de José Marques

Pereira constituem um olhar sobre alguns aspectos da cidade e das atividades que envolviam a

população santista neste período. Com isso entendemos que deixou impressos a sua criação e

seu ato-criativo, ou seja, que ao mesmo tempo suas imagens são testemunhas dos

acontecimentos e representações elaboradas dentro de uma determinada estética.

Nos cartões-postais de José Marques Pereira, encontramos tanto as fotografias do

centro da cidade de Santos urbanizado e transformado pela técnica moderna, quanto às cenas

de atividades do cotidiano local, entre pescadores, caiçaras e sua moradia, trabalhadores dos

arredores da cidade, carregadores de café e imigrantes. Todas estas fotografias foram

publicadas numa mesma série numerada de cartões-postais, contando uma história visual

eleita pelo autor para representar a memória da cidade.

Estes postais que traziam impressas as fotografias de José Marques Pereira, também

foram utilizados para comunicação entre parentes, amigos, amantes, enfim aqueles que

precisavam informar, consolar e saudar os destinatários ausentes, que receberam junto com as

mensagens de seus entes queridos, as imagens de aspectos da cidade de Santos.

A consolidação da memória visual da cidade passava, portanto, pelos emissores e

destinatários dos cartões-postais que enviando e guardando os postais recebidos, colaboraram

para preservar estes pequenos fragmentos cheios de lembranças.

O trabalho de José Marques Pereira é uma importante fonte de pesquisa que colaborou

na formação de uma memória visual da cidade de Santos e seus habitantes, revelando cenas e

fazendo história, construindo através das imagens uma nova cidade, mostrando os novos

agentes em novas relações sociais.

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Através dos cartões-postais estas cenas foram publicadas, percorrendo um longo

caminho até seus destinatários que as guardaram na grande viagem do tempo, para chegarem,

hoje, em seu destino como parte da memória visual da cidade de Santos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As fotografias de José Marques Pereira, como produtos da sua criação artística,

transformaram-se em documentos da memória visual da cidade de Santos. Devemos tratá-las

como documentos/representações, pois revelam a proposta estética do fotógrafo, sua

interpretação ideológica sobre vários aspectos da cidade, que passaram a fazer parte da

informação visual do início do século XX.

No processo de construção de representações, José Marques Pereira trabalhou

sozinho na produção e pós-produção de suas fotografias. Desde a escolha do assunto a ser

registrado, passando pela composição da imagem, bem como no “tratamento” da fotografia

em laboratório evidenciando e obscurecendo alguns elementos. E por fim na edição dos

cartões-postais, onde promoveu séries numeradas e legendadas, escolhendo alguns temas

apresentados numa sequencia própria sobre a cidade de Santos e elaborada não para um

contratante ou um único consumidor, mas para o grande público, e por isso, levando em

consideração as várias visões sobre a cidade no processo de construção de realidades.

Os cartões-postais possibilitaram ao autor produzir uma ampla narrativa fotográfica,

contendo aspectos que não localizamos em outras publicações do período, como os álbuns

fotográficos. Nestes últimos, há um discurso, da primeira à última página, sobre as grandes

obras, os alcances e os benefícios do progresso através das modernas técnicas da engenharia,

seja nos álbuns comparativos, seja naqueles que traziam apenas as atualizações urbanas da

época.

Nos cartões-postais de José Marques Pereira, encontramos tanto as fotografias do

centro da cidade de Santos urbanizado e transformado pela técnica moderna (tema cidade),

quanto às cenas de atividades do cotidiano local, entre pescadores, caiçaras e sua moradia,

trabalhadores dos arredores da cidade, carregadores de café e imigrantes (tema cotidiano e

porto). Todas estas fotografias foram publicadas numa mesma série numerada de cartões-

postais, contando uma história visual eleita pelo autor para representar a memória da cidade.

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Ao explorar o cartão-postal produzido por um único autor, o fotógrafo e editor José

Marques Pereira, este trabalho possibilitou visualizarmos um discurso específico onde foram

eleitos e elaborados alguns espaços e atividades que figuraram no imaginário do grande

público no início do século XX.

Estes postais que traziam impressas as fotografias de José Marques Pereira, também

foram utilizados para comunicação entre parentes, amigos, amantes, enfim aqueles que

precisavam informar, consolar e saudar os destinatários ausentes, que receberam junto com as

mensagens de seus entes queridos, as imagens de aspectos da cidade de Santos.

A consolidação da memória visual da cidade passava, portanto, pelos emissores e

destinatários dos cartões-postais que enviando e guardando os postais recebidos, colaboraram

para preservar estes pequenos fragmentos cheios de lembranças.

O trabalho de José Marques Pereira é uma importante fonte de pesquisa que colaborou

na formação de uma memória visual da cidade de Santos e seus habitantes, revelando cenas e

fazendo história, construindo através das imagens uma nova cidade, mostrando os novos

agentes em novas relações sociais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ALMANACK LAEMMERT, Rio de Janeiro, Laemmert, 1905.

BARBOSA, Ana Maria de Souza. Memórias da Rua XV. Santos, s.e. 1999.

BRASIL. Arquivo Nacional. Registro do Movimento de Passageiros do Vapor “Magdalena”, o qual

consta o nome de José Marques Pereira que embarcou em 28 de março de 1893, conforme documento

da Repartição Central das Terras e Colonisação.

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1850 a 1950. (Dissertação) Mestrado em História, Faculdade de Filosofia Ciências e Letras,

Universidade de São Paulo, São Paulo, 1989.

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(org.) Santos, Café & História, 1995. p. 41-54.

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LIMA, Solange Ferraz de. São Paulo na virada do século: as imagens da razão urbana – a cidade nos

álbuns fotográficos de 1887 a 1919. Dissertação (Mestrado em História), Faculdade de Filosofia,

Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1995. p. 16.

LOBO, Eulália Maria Lahmeyer. Imigração Portuguesa no Brasil. São Paulo, Hucitec, 2001.

LOBO, Maurício Nunes. Imagens em Circulação: os cartões-postais produzidos na cidade de Santos

pelo fotógrafo José Marques Pereira no início do século XX. Campinas, Dissertação (Mestrado em

História), Departamento de História, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, UNICAMP, 2004.

RIBEIRO, Maria Alice Rosa. História sem fim....um inventário da saúde pública. São Paulo 1880-

1930. São Paulo, Editora Unesp, 1993.

ROTELLINI,. Vitaliano. Il Brasile e gli italiani. 1906.

SÃO PAULO. Secretaria da Cultura. Certidão de desembarque n. 4.276/03. Certifica o desembarque

de José Marques Pereira vindo de Portugal no navio “Magdalena” em 29 de março de 1893. Livro de

registro do Emigrante da Hospedaria de São Paulo, n. 308, p. 198. (Documento faz parte do acervo de

Museu da Imigração)