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Memórias Póstumas de Bras Cubas 3 OS LIVROS DA FUVEST - II MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS MACHADO DE ASSIS Análise da obra, seleção de textos e questionário FERNANDO TEIXEIRA DE ANDRADE

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Memórias Póstumas de Bras Cubas

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OS LIVROS DA FUVEST - II

MEMÓRIAS PÓSTUMASDE BRÁS CUBASMACHADO DE ASSIS

Análise da obra, seleção de textos e questionário

FERNANDO TEIXEIRA DE ANDRADE

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OS LIVROS DA FUVEST - II

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ÍNDICE

1. VIDA 77

2. OBRA: O POLÍGRAFO 803. O MACHADO “O ROMÂNTICO” E O MACHADO REALISTA

814. CARACTERÍSTICAS CENTRAIS DA FICÇÃO

MACHADIANA 824.1. A despreocupação com as modas literárias dominantes 824.2. Os temas profundos 834.3. “Ao vencedor, as batatas” 844.4. A ruptura com a narrativa linear 864.5. A organização metalingüística do discurso narrativo ............................ 864.6. O universalismo 864.7. As influências 874.8. Os grandes arquétipos 874.9. O pessimismo 874.10. A ironia, o humor negro 884.11. O psicologismo 884.12. O estilo “enxuto” 894.13. Um carioca sorri em surdina 895. MEMÓRlAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS 906. ANTOLOGIA ANOTADA 947. ESTUDO CRÍTICO 112EXERCíCIOS 119

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Mémórias Póstumas de Brás Cubas

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JOAQUIM MARIA MACHADO DE ASSIS1. VIDA

Rio de Janeiro, 1839 –1908

Nasceu no Morro do Livramento, filho de um pintor mulato e de umalavadeira açoriana. Órfão de ambos muito cedo, foi criado pela madrasta,Maria Inês. Já na infância apareceram sintomas de sua frágil compleiçãonervosa, a epilepsia e a gaguez, que o acometeriam a espaços durante todaa vida e lhe dariam um feitio de ser reservado e tímido. Aprendidas asprimeiras letras numa escola pública, recebeu aulas de francês e de latimde um padre amigo, Silveira Sarmento; mas foi como autodidata queconstruiu sua vasta cultura literária, que incluía autores menos lidos noseu tempo, como Swift, Sterne e Leopardi. Aos 16 anos, entrou naImprensa Nacional como tipógrafo aprendiz; aos 18, na editora de PaulaBrito para cuja revistinha, A Marmota, compôs seus primeiros versos.Pouco depois, é admitido na redação do Correio Mercantil. Travaconhecimento com alguns escritores românticos: Casimiro de Abreu,Joaquim Manuel de Macedo, Manuel Antônio de Almeida, Pedro Luís eQuintino Bocaiúva. Este o introduz, em 1860, no, Diário do Rio deJaneiro, para o qual resenhará os debates do Senado, usando delinguagem sarcástica em função de um ardente liberalismo. Na década de1860, escreve quase todas as suas comédias e os versos ainda românticosdas Crisálidas (1864). Aos trinta anos de idade, casa-se com uma senhoraportuguesa de boa cultura, Carolina Xavier de Novais, sua companheiraafetuosa até a morte e que lhe iria inspirar a bela figura de Dona Carmodo Memorial de Aires (1908). Já amparado por uma carreira burocrática,primeiro no Diário Oficial (1867-73) e, a partir de 1874, na Secretaria daAgricultura, o escritor pôde entregar-se livremente à sua vocação deficcionista. De 1870 a 1880, aparecem Contos Fluminenses (l872),Ressurreição (1872), Histórias da Meia-Noite (1873), A Mão e a Luva(1874), Helena (1876), Iaiá Garcia (1878), contos e romancesinexatamente chamados da “fase romântica”, quando melhor se diriam“de compromisso” ou “convencionais”. Com alguns poemas queenfeitaria nas Ocidentais (1882), e sobretudo a partir das MemóriasPóstumas de Brás Cubas (1881), o escritor atinge a plena maturidade doseu realismo de sondagem moral que as obras seguintes iriam confirmar:Histórias sem Data (1884), Quincas Borba (1891), Várias Histórias(1896), Páginas Recolhidas (1899), Dom Casmurro (1899), Esaú e Jacó(1904), Relíquias da Casa Velha (1906). Considerado nos fins do século omaior romancista brasileiro, foi um dos fundadores e primeiro presidenteda Academia Brasileira de Letras, animou a excelente Revista Brasileira,promoveu os poetas parnasianos e estreitou relações com os melhoresintelectuais de seu tempo, de Veríssimo a Nabuco, de Taunay a GraçaAranha. Não obstante essa ativa sociabilidade no mundo literário, ficaram

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proverbiais a fria compostura pessoal e o absenteísmo político quemanteve nos anos derradeiros: atitude paralela à análise corrosiva a quevinha submetendo o homem em sociedade desde as Memórias Póstumas.O último romance, mais “diplomático”, Memorial de Aires (1908), foiescrito após a morte de Carolina, a que pouco sobreviveu. Machado deAssis morreu vitimado por uma úlcera cancerosa, aos sessenta e noveanos de idade. Na Academia, coube a Rui Barbosa fazer-lhe o elogiofúnebre.

Os biógrafos de Machado de Assis tendem a exagerar seussofrimentos e estigmas, enfatizando as causas eventuais de seu tormentofísico, psicológico e social: a cor escura, a origem humilde, a orfandadena primeira infância, a compleição franzina, a doença nervosa(epilepsia?), a carreira difícil nos primeiros anos, a esterelidade (?), ashumilhações, o complexo de rejeição etc. Tudo isso serviu de pretexto auma série de “interpretações” mirabolantes e de “projeções” psicológicasna obra do autor, fruto do psicologismo que invadiu a crítica literária dosanos 30 e 40, ou da tendência romântica de se atribuir aos grandesescritores uma quota pesada e ostensiva de sofrimento e de drama, pois avida normal parece incompatível com o gênio artístico. Essa“dramatização” dos “estigmas" de Machado tem gerado muita bobagem,pomposamente revestida de (pseudo) cientificidade, que algumas obrasdidáticas ainda reproduzem.

Na verdade, os seus sofrimentos não parecem ter excedido aos de todagente, nem sua vida foi particularmente árdua. No Império liberal, muitoshomens de cor foram guindados ao Ministério, ou receberam títulos denobreza, ou conheceram notável ascensão social.

Machado ascendeu com facilidade na vida pública: tipógrafo, repórter,funcionário modesto, alto funcionário, bem-casado com uma senhorabranca, culta, amiga discreta, afetuosa, íntima de gente ilustre e bem-nascida e, já aos cinqüenta anos, considerado o maior escritor do país,objeto de uma reverência e admiração que nenhum escritor brasileiroconheceu em vida, antes e depois dele. Quando se cogitou na fundação daAcademia Brasileira de Letras (1897), Machado foi escolhido seu mentore presidente, posto que exerceu até morrer. Presidente perpétuo da Casade Machado de Assis e seu único imortal (sem aspas), converteu-se numaespécie de patriarca das Letras.

Contudo, à glória nacional quase hipertrofiada, correspondeu umadesalentadora obscuridade internacional. Como a glória literáriadepende bastante da irradiação política do país, ao que se acresce que,das línguas do Ocidente, a nossa é a menos conhecida, tanto Machadode Assis quanto Eça de Queirós, dois escritores de porte internacional,ficaram quase totalmente desconhecidos fora do âmbito da lusofonia ouda especialização acadêmica.

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Sob o burguês comedido, “britânico”, que viveu convencionalmenteajustado às manifestações exteriores, respeitando para ser respeitado;debaixo das boas maneiras, do humor elegante e dos laivos acadêmicos earcaizantes, funcionava um escritor poderoso e atormentado, que seaplicava discreta, mas agudamente, em desmascarar, investigar, descobriro mundo da alma, rir da sociedade e expor alguns dos componentes maisesquisitos da personalidade.

Ao aluno que pretender ir além do que se exige no vestibular,introduzir-se no universo machadiano, recomendamos dois trabalhosque servem de excelente porta de entrada: Machado de Assis -Antologia e Estudos, Alfredo Bosi e outros, São Paulo, Ática, 1982, e o“Esquema de Machado de Assis”, in: Vários Escritos, Antônio Cândido,São Paulo, Livraria Duas Cidades, 1977. Neste capítulo, transcrevemosou refundimos os autores citados, bibliografia “quase” oficial nosexames para o curso superior em São Paulo.

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2. OBRA: O POLÍGRAFO

A. Romance

Ressurreição, 1872A Mão e a Luva, 1874Helena, 1876laiá Garcia, 1878Memórias Póstumas de Brás Cubas, 1881Quincas Borba, 1891Dom Casmurro, 1899Esaú e Jacó, 1904Memorial de Aires, 1908

B. Conto

Contos Fluminenses, 1872Histórias da Meia-Noite, 1873Papéis Avulsos (livro que inclui “O Alienista”), 1882Histórias sem Data, 1884Várias Histórias, 1896Páginas Recolhidas, 1899Relíquias da Casa Velha, 1906

C. Teatro

A Queda que as Mulheres Têm pelos Tolos, 1861Desencantos, 1861Caminho da Porta, 1863Protocolo, 1863Quase Ministro, 1864Os Deuses de Casaca, 1866Tu, Só Tu, Puro Amor, 1880Não Consultes Médico, 1896

D. Poesia

Crisálidas, 1864Falenas, 1870Americanas, 1875Ocidentais, 1882

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E. Crônicas

F. Críticas Teatrais

G. Críticas Literárias

3. O MACHADO “ROMÂNTICO” E O MACHADO REALISTA

Tornou-se convencional a divisão da obra machadiana em duasfases. A primeira, impropriamente chamada “romântica” (comoveremos logo mais), abrange a produção literária entre 1870 e 1880 eengloba os romances Ressurreição, A Mão e a Luva, Helena e IaiáGarcia, os livros de contos Contos Fluminenses e Histórias da Meia-Noite e as poesias de Crisálidas, Falenas e Americanas. A segundafase, conhecida como realista, configura a maturidade artística deMachado e inclui os romances Memórias Póstumas de Brás Cubas,Quincas Borba, Dom Casmurro, Esaú e Jacó e Memorial de Aires, oslivros de contos Papéis Avulsos, Histórias sem Data, Várias Histórias,Páginas Recolhidas e Relíquias da Casa Velha e o livro de poesiasOcidentais.

O marco inicial da fase realista, o “salto qualitativo”, deu-se entre1881 e 1882, com o romance Memórias Póstumas (1881), com oscontos de Papéis Avulsos (1882) e com as poesias de Ocidentais(l882).

Não se pense, contudo, numa ruptura entre as duas fases, num saltoabrupto, numa oposição diametral entre a obra dita “romântica” e a obrarealista.

A crítica mais moderna tem observado que muito do Machadorealista, maduro, já estava em seus primeiros livros. Assim, preferedenominar convencionais, e não “românticos”, os livros da primeirafase, anteriores ao Memórias Póstumas, ao Papéis Avulsos e aos poemasde Ocidentais. A fusão de ingredientes convencionais e antecipaçõesrealistas observa-se sobretudo nos romances e nos contos.

Mesmo nos livros impropriamente chamados “românticos” estãopresentes a observação psicológica das personagens, o interesse comomóvel principal das ações humanas, o humor reflexivo e o estiloconciso, distante da linguagem adjetivosa dos românticos.Ainda que haja tipos e situações convencionais da ficção romântica, a

tensão bem x mal, herói x vilão não existe, e as heroínas agem cal-culadamente por interesse na obtenção de “status”, na ascensão socialatravés do casamento.

A “explosão” realista de Memórias Póstumas e Papéis Avulsos de hámuito vinha sedimentando seu caminho e a “ruga sardônica” de Quincas

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Borba, o “homem subterrâneo”, o “monstro de lucidez”, o “bruxo doCosme Velho” já vinha de longa e paciente gestação. Não há doisMachados, um romântico, outro realista; há um só, acima dos modismosdessas duas (e de outras) escolas.

4. CARACTERÍSTICAS CENTRAIS DA FICÇÃO MACHADIANA

4.1. A despreocupação com as modas literárias dominantes

Não se pode enquadrar Machado de Assis nos estreitos limites daprosa realista e naturalista de seu tempo. Machado extrapola qualquertentativa de enquadramento rígido dentro de qualquer modeloconvencional. Há na sua obra elementos clássicos (equilíbrio, concisão,contenção lírica e expressional); resíduos românticos (algumasnarrativas convencionais quanto ao enredo); aproximações realistas(atitude crítica, objetividade, temas contemporâneos); procedimentosimpressionistas (a técnica impressionista, a recriação do passado atravésda memória, das “manchas” de recordação) e antecipações modernas (aestrutura fragmentária não-linear, o gosto pelo elíptico e alusivo, a posturametalingüística de quem escreve e se vê escrevendo, as “obras abertas”,sem conclusão necessária, permitindo várias leituras ou interpretações).Isso para ficarmos apenas num inventário superficial de algumasconstantes da prosa. (Há também o romantismo à Gonçalves Dias eCasimiro de Abreu na poesia da juventude, o formalismo parnasiano napoesia madura, o teatro, as crônicas na imprensa diária, a crítica literária eteatral.)

Enquanto os realistas obedeciam à teoria de Flaubert, do “romanceque narra a si próprio”, apagando o narrador atrás da objetividade danarrativa, enquanto os naturalistas, na esteira de Émile Zola, regavam oinventário maciço da realidade, observada nos menores detalhes,Machado de Assis cultivou livremente o elíptico, o incompleto, ofragmentário, intervindo na narrativa para conversar diretamente com oleitor, para comentar o próprio romance, para filosofar, para bisbilhotar avida das personagens, lembrando o leitor de que atrás dos narradoresestava o artista Machado de Assis, mandando e desmandando no enredo enas personagens, e ironizando o leitor.

Machado de Assis focaliza os tormentos do homem e os absurdos domundo com um tom não-enfático, neutro, sem retórica, imparcial,revestido de um humor reflexivo, algumas vezes amargo, outras apenasdivertido, como quem estivesse rindo do leitor. A sua técnica consisteessencialmente em sugerir as coisas mais tremendas da maneira maiscândida (como os ironistas do século XVIII, Voltaire, Sterne e Swift, que

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Machado muito estimava), ou em estabelecer um contraste entre anormalidade social dos fatos e a sua anormalidade essencial, ou semsugerir, sob a aparência do contrário, que o ato excepcional é normal, eque anormal seria o ato corriqueiro.

O Prof. Antônio Cândido observa ainda que, não obstante o “arcaísmoda superfície”, Machado “parece bruscamente moderno, depois dastendências do nosso século, que também procuram sugerir o todo pelofragmento, a estrutura pela elipse, a emoção pela ironia e a grandeza pelabanalidade”.

4.2. Os temas profundos

Um dos problemas centrais da obra machadiana é o da identidade:· Quem sou?· O que sou eu?· Em que medida eu só existo por meio dos outros?· Eu sou mais autêntico quando penso ou quando existo?· Haverá mais de um ser em mim?Essas perguntas envolvem dois problemas centrais: a divisão do ser,

o desdobramento da personalidade, e os limites da razão e do ser (esteúltimo, tema central de “O Alienista”).

Outros problemas que permeiam a ficção machadiana são:· A relação entre o fato real e o fato imaginado, entre o que

aconteceu e o que pensamos que aconteceu.· Seremos nós o ato que nos exprime?· Será a vida uma cadeia de opções?Que sentido tem o ato?Nessa mesma linha, Machado antecipa alguns temas do existen-

cialismo literário contemporâneo de Camus e Sartre.O tema da perfeição, da aspiração ao ato completo, à obra total, é

outra obsessão machadiana, que resulta sempre na dolorosa constataçãoda impotência espiritual do homem, da impossibilidade de ser tudo, dainevitável mutilação do eu.

Assim, se não conseguimos agir senão mutilando o nosso eu, se o quehá de mais profundo em nós é, no fim das contas, a opinião dos outros, seestamos condenados a não atingir o que nos parece realmente valioso,qual a diferença entre o bem e o mal, o justo e o injusto, o certo e oerrado?

Este sentimento profundo da relatividade total dos atos, d aimpossibilidade de compreendê-los e de conceituá-los adequadamente,desemboca no sentimento do absurdo, do ato sem origem ou explicaçãoe do juízo sem fundamento. Machado relativiza tudo, vê tudo pelo avesso,revelando um senso profundo da complexidade do homem e dascontradições da alma.

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4.3. “Ao vencedor, as batatas.”

Além da densa investigação das contradições do ser e do caráterrelativo da verdade e da moral, num ângulo mais sociológico, outrasquestões que vários contos e romances de Machado colocam são:· a transformação do homem em objeto do homem;· a submissão econômica e espiritual;· o egoísmo e o sadismo de uns massacrando a fragilidade de outros;· a falta de liberdade verdadeira.

O império da lei do mais forte, do mais rico e do mais esperto é ofulcro da famosa teoria do “humanitismo”, elaborada, no romanceQuincas Borba, pelo filósofo-doido Joaquim Borba dos Santos, doido e,por isso mesmo, machadianamente lúcido.

Transcrevemos o “miolo” da teoria do “humanitismo”, o momento emque Quincas Borba defende o caráter benéfico da guerra, como “seleçãonatural” do mais forte:

“–– Não há morte. O encontro de duas expansões, ou a expansão deduas formas, pode determinar a supressão de uma delas; mas,rigorosamente, não há morte, há vida, porque a supressão de uma é acondição da sobrevivência da outra, e a destruição não atinge o princípiouniversal e comum. Daí o caráter conservador e benéfico da guerra.Supõe tu um campo de batatas e duas tribos famintas. As batatas apenaschegam para alimentar uma das tribos, que assim adquire forças paratranspor a montanha e ir à outra vertente, onde há batatas em abundância;mas, se as duas tribos dividirem em paz as batatas do campo, não chegama nutrir-se suficientemente e morrem de inanição. A paz, nesse caso, é adestruição; a guerra é a conservação. Uma das tribos extermina a outra erecolhe os despojos. Daí a alegria da vitória, os hinos, aclamações,recompensas públicas e todos os demais efeitos das ações bélicas. Se aguerra não fosse isso, tais demonstrações não chegariam a dar-se, pelomotivo real de que o homem só comemora e ama o que lhe é aprazível ouvantajoso, e pelo motivo racional de que nenhuma pessoa canoniza umaação que virtualmente a destrói. Ao vencido, ódio ou compaixão; aovencedor, as batatas.

–– Mas a opinião do exterminado?–– Não há exterminado. Desaparece o fenômeno; a substância é a

mesma. Nunca viste ferver água? Hás de lembrar-te que as bolhas fazem-se e desfazem-se de contínuo, e tudo fica na mesma água. Os indivíduossão essas bolhas transitórias.”

O “humanitismo” pode ser interpretado como sátira ao positivismo, aocientificismo, ao naturalismo filosófico do século XIX, principalmente à

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teoria darwiniana da luta pela vida, da seleção natural do mais apto comoprocesso essencial da evolução das espécies. A teoria do “ao vencedor, asbatatas” pode ser lida como uma paródia irônica do cientificismo daépoca realista/naturalista, relativizando as verdades científicas de seutempo e desnudando ironicamente o caráter desumano e antiético da “leido mais forte”.

Nessa direção, no conto “O Alienista”, o hospício pode ser visto comoa casa do poder, que subjuga seus pacientes ao arbítrio do alienista SimãoBacamarte, representante da ciência, da lei e da ordem, que a todossubmete, escorado em suas convicções “científicas" sobre a normalidadee a anormalidade do comportamento humano.

4.4. A ruptura com a narrativa linear

Os fatos e as ações não seguem um fio lógico ou cronológico;obedecem a um ordenamento interior, são relatados à medida que afloramà consciência ou à memória do narrador, num processo que se aproximado impressionismo associativo.

4.5. A organização metalingüística do discurso narrativo

É comum, na ficção machadiana, que o narrador interrompa anarrativa para, com saborosa e bem-humorada bisbilhotice, comentar como leitor a própria escritura do romance, fazendo-o participar de suaconstrução, ou ainda para dialogar sobre uma personagem, refletir sobreum episódio do enredo ou tecer suas digressões sobre os mais variadosassuntos.

Machado assume a posição de quem escreve e ao mesmo tempo se vêescrevendo. Esses comentários à margem da narração constituem oprincipal interesse, pois neles está a mensagem artística do escritor.

4.6. O universalismo

Machado captou na sociedade carioca do século XIX os grandes temasde sua obra. O seu interesse jamais recaiu sobre o típico, o pitoresco, a corlocal, o exótico, tão ao gosto dos românticos. Buscou, na sociedade doseu tempo, o universal, a essência humana, os grandes temas filosóficos:a essência e a aparência, o caráter relativo da moral humana, asconvenções sociais e os impulsos interiores, a normalidade e a loucura, oacaso, o ciúme, a irracionalidade, a usura, a crueldade.

A pobreza de descrições, a quase ausência da paisagem, é aindadesdobramento dessa concentração na análise psicológica e na reflexãofilosófica. As tramas dos romances machadianos poderiam, sem grandesprejuízos à narrativa, ser transplantadas para qualquer época e qualquer

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cidade.

4.7. As influências

Machado de Assis esteve acima dos modismos da época. EnquantoGustave Flaubert, pai do Realismo, defendia a superioridade do “romanceque se narra a si mesmo”, ocultando por completo a figura do narrador,Machado subverte essa regra, intrometendo-se na narrativa, fazendo comque o leitor identifique sempre por trás e acima do narrador, a existênciado escritor Machado de Assis.

Autodidata, Machado adquiriu sólida formação clássica: Shakespeare,Dante Alighieri, Cervantes e Goethe eram suas leituras obrigatórias. Masos modelos que seguiu mais de perto foram os do século XVIII: o “sprit”de Voltaire, com sua ironia cortante, além do refinado “sense of humor”dos autores ingleses Sterne e Swift.

4.8. Os grandes arquétipos

Uma das linhas mestras da ficção machadiana parte do aprovei-tamento dos arquétipos, que remontam à tradição clássica e aos textosbíblicos. (Arquétipo = modelo de seres criados; padrão exemplar;imagens psíquicas do inconsciente coletivo e que são o patrimôniocoletivo de toda a humanidade.)

Assim, o conflito dos irmãos Pedro e Paulo, em Esaú e Jacó, remontaao arquétipo bíblico da rivalidade entre Caim e Abel; a psicose do ciúmede Bentinho, em Dom Casmurro, aproxima-se do drama de Otelo eDesdêmona, de Shakespeare.

4.9. O pessimismo

Machado revela sempre uma visão desencantada da vida e do homem.Não acreditava nos valores do seu tempo e, a rigor, não acreditava emnenhum valor. Mais do que pessimista ou negativista, sua postura éniilista (“nihil” = nada). O desmascaramento do cinismo e da hipocrisia,do egoísmo e do interesse, que se camuflavam sob as convenções sociais,é o móvel de grande parte da ficção machadiana.

O capítulo final de Memórias Póstumas, o antológico “DasNegativas”, é exemplo cabal do pessimismo do autor:

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CAPÍTULO CLXEste último capítulo é todo de negativas. Não alcancei a celebridade

do emplasto, não fui ministro, não fui califa, não conheci o casamento.Verdade é que, ao lado dessas faltas, coube-me a boa fortuna de nãocomprar o pão com o suor do meu rosto. Mais; não padeci a morte deDona Plácida, nem a semidemência do Quincas Borba. Somadas umascousas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua nemsobra, e conseguintemente que saí quite com a vida. E imaginará mal;porque ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com umpequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: –Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossamiséria.

4.10. A ironia, o humor negro

A forma de revolta de Machado era o rir, quase sempre um risoamargo que exteriorizava o desencanto e o desalento ante a miséria físicae moral de suas personagens:

“... Daqui inferi eu que a vida é o mais engenhoso dos fenômenos,porque só aguça a fome, com o fim de deparar a ocasião de comer, e nãoinventou os calos, senão porque eles aperfeiçoam a felicidade terrestre.Em verdade vos digo que toda a sabedoria humana não vale um par debotas curtas.

Tu, minha Eugênia, é que não as descalçaste nunca; foste aí pelaestrada da vida, manquejando da perna e do amor, triste como os enterrospobres, solitária, calada, laboriosa, até que vieste também para esta outramargem... O que eu não sei é se a tua existência era muito necessária aoséculo. Quem sabe? Talvez um comparsa de menos fizesse patear atragédia humana.”

4.11. O psicologismo

A ação e o enredo perdem a importância para a caracterização daspersonagens.

Os acontecimentos exteriores são considerados somente na medida emque revelam o interior, os motivos profundos da ação, que Machadodevassa e apresenta detalhadamente. Daí a narrativa lenta, pois o menordetalhe, o menor gesto são significativos na composição do quadropsicológico; nada é desprovido de interesse. Essa fixação pelo pormenoré o que se denomina microrrealismo.

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É a ausência de ação, aliada à densidade psicológica e filosófica, queafasta o adolescente do texto machadiano, que supõe um leitor “maduro”. Écorrente a impressão de que os romances de Machado são muito “parados”,impressão fundada no hábito de leitura de obras centradas na ação exterior:folhetins, romances de aventura, policiais, narrativas de complicaçãosentimental, à maneira dos filmes de sucesso comercial, das novelas de TV edos “best-sellers” americanos.

Machado é sempre um convite à reflexão e um caminho necessário àformação de um gosto literário mais denso, hoje infelizmente massacradopela subliteratura e pelos “arturs halleys” e “irvings wallaces” da vida.

4.12. O estilo “enxuto”

Machado prima pelo equilíbrio, pela disciplina clássica, pela correçãogramatical e pela concisão, pela economia vocabular. Ao contrário danossa congênita tendência ao uso imoderado do adjetivo e do advérbio,tão ao gosto de Castro Alves, de Alencar, de Rui Barbosa etc., Machado éparcimonioso, sóbrio, quase “britânico”. Não é, contudo, uma linguagemsimétrica e mecânica, porém medida pelo seu ritmo interior, donde osegredo da unidade da obra.

4.13. Um carioca sorri em surdina

Avaliar lucidamente a realidade, sem sacralizar nenhum aspecto dainjustiça do universo, desconfiar das utopias, desmascarar as ideologiassublimes, relativizar os absolutos altissonantes e, ao mesmo tempo,conservar o gosto pelo teatro da vida no sorriso libertador: eis umatonalidade típica do humor de Machado.

No íntimo, bem no íntimo, o humorismo machadiano tem algumacoisa da lucidez foliona, da perspicácia lúdica do espírito do carnaval ––dos ritos antiqüíssimos pelos quais a humanidade remoça pelo riso, nãosem antes demolir todas as ilusões “nobres” e consoladoras. Ohumorismo de Machado é secretamente carnavalesco: é sabedoria radicale, por isso mesmo, lépida. (A crítica não pode deixar de explorar esseparadoxo: como é que Machado, sendo o menos frívolo, é o menoscircunspecto, o menos “pesado” dos nossos escritores?) Foi essehumorismo que ele injetou, com malícia suprema, no decoro vitoriano dosseus livros. Deste modo, Machado de Assis, que desprezou até o fim aliteratura localista e folclórica, que universalizou mais que ninguém anossa arte literária, permaneceu fiel a um componente medular da almabrasileira. O seu humorismo não se limitou a abrir nossa cultura à visãoproblematizadora, vocação mais forte da estética moderna: ele

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Mémórias Póstumas de Brás Cubas

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abrasileirou profundamente essa mesma visão problematizadora. Tal foio sentido concreto que sua obra conferiu àquela exigência, que Machadoformulou no limiar da sua maturidade, de um “instinto da nacionalidade”,de um brasileirismo interior. (Transcrevemos José Guilherme Merquior.)

5. MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRAS CUBAS

Disposto em 160 capítulos de extensões variáveis, MemóriasPóstumas de Brás Cubas foi publicado originalmente em folhetim, naRevista Brasileira, em 1880. No ano seguinte, 1881, foi editado em livro,inaugurando o que a história literária passou a consignar como faserealista da ficção machadiana, e dando início ao período realista daLiteratura Brasileira.

Após a “Dedicatória” e um irônico prólogo “Ao Leitor”, Brás Cubas,defunto-autor, em posição transtemporal, “do outro lado do mistério”,começa a narrar sua autobiografia. Apoiado na memória, sem nenhumaordem lógica ou cronológica, num processo de livre-associação de idéias,imagens e palavras (impressionismo associativo), o autor, do túmulo, revêsua existência de homem rico, excêntrico, inteligente, culto, leviano,preguiçoso, cínico, ambicioso, às vezes sádico, que, entediado da morte eda eternidade, se compraz em contar sua vida de fracassado, suas baixezase as dos outros, para compor, fragmentariamente, uma implacável análisedo homem de seu tempo e de todos os tempos. Como defunto pode,impunemente, difamar amigos e inimigos e confessar suas intenções maissórdidas e suas ações mais vis, pois está além de qualquer vingança oupunição.

Brás Cubas é um narrador estranhíssimo, ao mesmo tempoconsciente-participante e onisciente (no sentido “fantástico” e “ingênuo"),que, além da posição singular de morto que escreve, se entretém emcomentar com o leitor a própria escritura, através de freqüentesdigressões, de comentários paralelos sobre os mais diversos assuntos:comparações com elementos alheios ao livro; retratos morais depersonagens secundárias ou alheias à trama; sondagem das reações doleitor; experiências e “brincadeiras” gráficas e toda a sorte de desvios,com os quais o autor/narrador discute, em posição metalingüística, o atode escrever e a tecitura do romance, com a bem-humorada bisbilhotice e otom desabusado e provocativo que a ficção machadiana instaura, a partirde Memórias Póstumas.

O romance começa pelos funerais de Brás Cubas, narrados por elemesmo. Entretém-se, a seguir, em comentar a causa mortis – apneumonia contraída quando inventava o “emplasto Brás Cubas”,panacéia medicamentosa que foi sua última obsessão e que lhe garantiriaa glória. No capítulo VII, “O Delírio”, narra o que antecedeu ao óbito(interpretado como o centro do niilismo filosófico de Machado, o qual

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analisaremos em outra parte).No capítulo IX, “Transição”, principiam propriamente as memórias.

Observe, neste capítulo, a interferência do narrador que, em posiçãometalingüística, comenta com o leitor a estruturação do próprio livro.Observe, também, a independência do autor-narrador em relação aométodo e a maneira pela qual relativiza tudo, colocando-se acima dosmodismos e convenções:

Capítulo IXTransição

E vejam agora com que destreza, com que arte faço eu a maior transiçãodeste livro. Vejam: o meu delírio começou em presença de Virgília; Virgília foio meu grão-pecado da juventude; não há juventude sem meninice; meninicesupõe nascimento; e eis aqui como chegamos nós, sem esforço, ao dia 20 deoutubro de 1805, em que nasci. Viram? Nenhuma juntura aparente, nada quedivirta a atenção pausada do leitor: nada. De modo que o livro fica assim comtodas as vantagens do método, sem a rigidez do método. Na verdade, era tempo.Que isto de método, sendo, como é, uma cousa indispensável, todavia é melhortê-lo sem gravata nem suspensórios, mas um pouco à fresca e à solta, comoquem não se lhe dá da vizinha fronteira, nem do inspetor de quarteirão. É comoa eloqüência, que há uma genuína e vibrante, de uma arte natural e feiticeira, eoutra tesa, engomada e chocha. Vamos ao dia 20 de outubro.

Brás Cubas começa revendo a própria infância de menino rico,mimado e endiabrado. Em “O Menino é Pai do Homem”, freudianamenteantes de Freud, o narrador fundamenta a explicação dos traços de seucaráter a partir da relação pai - mãe. Caracteriza-se como opiniático,egoísta, volúvel, e define sua tendência a julgar as atitudes humanas aosabor das circunstâncias, dos lugares e das conveniências.

Aos dezessete anos, Brás Cubas detém-se na narrativa de seuprimeiro amor –– Marcela ––, “amiga de rapazes e de dinheiro”,prostituta de luxo, amor que durou “quinze meses e onze contos de réis”,e que quase deu cabo da fortuna da família.

Para se curar desse amor, Brás Cubas é mandado para Coimbra,onde se forma em Direito, após alguns anos de boêmia desbragada,“fazendo romantismo prático e liberalismo teórico”. Retoma ao Rio deJaneiro por ocasião da morte da mãe.

Depois de um namoro inconseqüente entre Brás Cubas e Eugênia,“coxa de nascença”, filha de D. Eusébia, antiga pobre da família, seu paiplaneja induzi-lo à política, através do casamento. Encaminha orelacionamento do filho com Virgília, filha do Conselheiro Dutra,homem bem posto no mundo político e que certamente apadrinharia o

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futuro genro. Mas Virgília prefere se casar com Lobo Neves, maisdecidido que Brás Cubas e também candidato a uma carreira política.

Sobrevém a morte do pai do narrador e, por causa da herança,instaura-se o conflito entre Brás Cubas e sua irmã, Sabina, casada comCotrim.

Virgília reaparece, anunciada pelo primo Luís Dutra. Reencontra-secom Brás Cubas e tomam-se amantes, vivendo agora, no adultério, apaixão que não viveram quando noivos. Seguem-se as peripécias darelação, que se vai esfriando, mas reacende quando Virgília fica grávidade um filho de Brás Cubas. No entanto, a criança morre antes de nascer.Para manter discretamente sua relação amorosa, Brás Cubas corrompe aempregada de Virgília, Dona Plácida, velha beata, cuja miséria obriga-aa figurar como moradora de uma casinha na Gamboa, que Brás Cubasalugou para seus encontros. Por cinco contos de réis, Dona Plácida aceitaproteger os amantes, cuidar da casinha e rezar por Brás Cubas, diante deuma imagem da Virgem que conserva no quarto.

Segue-se o reencontro de Brás Cubas com seu amigo de infância,Quincas Borba (Joaquim Borba dos Santos). No primeiro reencontro,Quincas Borba, pobre e miserável, rouba o relógio de Brás Cubas; maistarde, graças a uma herança, refaz suas finanças e repõe o relógio. ÉQuincas Borba, filósofo-doido, que expõe ao amigo o “humanitismo”,doutrina filosófica que será retomada e aprofundada no romance seguinte:Quincas Borba.

Perseguindo a celebridade ou procurando uma vida menos tediosa, BrásCubas torna-se deputado. Lobo Neves é nomeado presidente de uma provínciae parte com Virgília para o Norte. Termina a relação dos amantes.

Sabina arranja uma noiva para Brás Cubas, a Nhã-Loló (EuláliaDamascena de Brito), sobrinha de Cotrim, de 19 anos. Mas Nhã-Lolómorre de febre amarela e Brás Cubas toma-se definitivamente umsolteirão.

Ainda perseguindo a celebridade, Brás Cubas tenta ser ministro deEstado e não consegue. Funda um jornal de oposição e fracassa. QuincasBorba dá os primeiros sinais de demência. Virgília, já velha e desfiguradaem sua beleza, solicita a Brás Cubas o amparo à indigência de DonaPlácida, que morre em seguida. Morrem também Lobo Neves, Marcela eQuincas Borba. Eugênia é encontrada num cortiço.

A última tentativa de glória é o emplasto Brás Cubas, remédiocontra todas as doenças. Irônica e tragicamente, porém, numa de suassaídas à rua para cuidar de seu projeto, molha-se na chuva e apanha umapneumonia, da qual vem a falecer, aos 64 anos. Virgília, acompanhada dofilho, visita Brás Cubas agonizante. Após longo delírio, morre, assistidopor alguns familiares. Depois de morto, começa a contar, de trás parafrente, a história de sua vida. Mas, antes de tudo, faz estampar, na

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OS LIVROS DA FUVEST - II

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abertura do livro, a seguinte dedicatória, diagramada em forma deepitáfio:

AO VERMEQUE

PRIMEIRO ROEU AS FRIAS CARNESDO MEU CADÁVER

DEDICOCOM SAUDOSA LEMBRANÇA

ESTASMEMÓRIAS PÓSTUMAS

6. ANTOLOGIA ANOTADA

A. Ao leitor

Que Stendhal1 confessasse haver escrito um de seus livros para cemleitores, cousa é que admira e consterna. O que não admira, nemprovavelmente consternará é se este outro livro não tiver os cem leitoresde Stendhal, nem cinqüenta, nem vinte, e quando muito, dez. Dez? Talvezcinco. Trata-se, na verdade, de uma obra difusa, na qual eu, Brás Cubas,se adotei a forma livre de um Sterne2, ou de um Xavier de Maistre3, nãosei se lhe meti algumas rabugens de pessimismo. Pode ser. Obra definado. Escrevi-a com a pena da galhofa e a tinta da melancolia, e não édifícil antever o que poderá sair desse conúbio. Acresce que a gente graveachará no livro umas aparências de puro romance, ao passo que a gentefrívola não achará nele o seu romance usual; ei-lo aí fica privado daestima dos graves e do amor dos frívolos, que são as duas colunasmáximas da opinião.

Mas eu ainda espero angariar as simpatias da opinião, e o primeiroremédio é fugir a um prólogo explícito e longo. O melhor prólogo é o quecontém menos cousas, ou o que as diz de um jeito obscuro e truncado.Conseguintemente, evito contar o processo extraordinário que empregueina composição destas Memórias, trabalhadas cá no outro mundo. Seriacurioso, mas nimiamente extenso, e aliás desnecessário ao entendimentoda obra. A obra em si mesma é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me datarefa; se te não agradar, pago-te com um piparote, e adeus4.

BRÁS CUBAS

1 Stendhal = pseudônimo do escritor francês Henry Beyle (1783 - l842),autor de O Vermelho e o Negro, A Cartuxa de Parma, Educação

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Sentimental e Lucien Leuwen. Embora inscrito nos quadros doRomantismo, trabalhado com paixões violentas, soube analisar comlucidez e ironia suas personagens, antecipando o Realismo.2 Sterne = Lawrence Sterne (1713-1768), escritor inglês que se notabilizoupela ironia e humor com que revestiu o seu Aventuras do CavalheiroTristam Shandy e a Jornada Sentimental através da França e da Itália.Era um dos prediletos de Machado.3 Xavier de Maistre = escritor francês, autor de Viagem à Roda de MeuQuarto, irônico, humorístico e engenhoso. Dele, Machado extraiu assugestões que marcaram a composição de algumas experiências gráficas.4 Esta espécie de bilhete aos leitores, essa reflexão sobre o ato deescrever, de estruturar o livro, configura a organização metalingüística dodiscurso narrativo. Essas digressões são marca registrada de Machado econtêm suas mensagens artísticas, expostas através da saborosabisbilhotice com que os narradores e o próprio autor interferem na obra,para comentar o livro, as personagens, para filosofar e para ironizar aslimitações do livro e do leitor, fazendo-nos enredar pelas malhas danarrativa ou refletir sobre a estruturação do próprio livro.

B. Capítulo I

Óbito do autor

Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio oupelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minhamorte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duasconsiderações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que eunão sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor5, paraquem a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito ficaria assimmais galante e mais novo. Moisés, que também contou a sua morte, nao apôs no intróito, mas no cabo: diferença radical entre este livro e oPentateuco6.

Dito isto, expirei às duas horas da tarde de uma sexta-feira do mês de agostode 1869, na minha bela chácara de Catumbi. Tinha uns sessenta e quatro anos,rijos e prósperos, era solteiro, possuía cerca de trezentos contos e fuiacompanhado ao cemitério por onze amigos. Onze amigos! Verdade é que nãohouve cartas nem anúncios. Acresce que chovia –– peneirava –– uma chuvinhamiúda, triste e constante, tão constante e tão triste, que levou um daqueles fiéisda última hora a intercalar esta engenhosa idéia no discurso que proferiu à beirade minha cova: ––“Vós, que o conhecesses, meus senhores, vós podeis dizercomigo que a natureza parece estar chorando a perda irreparável de um dosmais belos caracteres que têm honrado a humanidade. Este ar sombrio, estas

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gotas do céu, aquelas nuvens escuras que cobrem o azul como um crepefunéreo, tudo isso é a dor crua e má que lhe rói à natureza as mais íntimasentranhas; tudo isso é um sublime louvor ao nosso ilustre finado”.

Bom e fiel amigo! Não, não me arrependo das vinte apólices que lhedeixei. E foi assim que cheguei à cláusula dos meus dias;

5 Observe que o jogo de palavras, que a mudança da ordem dos termosaltera o senado e o resultado. Não se trata de autor que já morreu (autordefunto), mas de um morto que se torna autor e escreve, do túmulo, suasmemórias. Na posição “surrealista” de morto que escreve, Brás Cubasestá livre de qualquer constrangimento para articular o discurso eproduzir a sucessão dos fatos. Pode difamar amigos e inimigos, podeexpor suas próprias baixezas, sem risco de vingança, punição juízo moraldos vivos, que não podem atingi-lo.6 Pentateuco = os cinco livros de Moisés, que são os primeiros da Bíblia,desde o Gênese até o Deuteronômio. As alusões bíblicas reforçam a ironiadecorrente da aproximação proposta pelo narrador entre sua obra e osescritos sagrados de Moisés. Mesmo descontando a alta dose de ironia, épreciso insistir na elevada consciência que tem Machado de sua posiçãoinovadora e do modo de narrar fora dos hábitos conhecidos do leitor daépoca.

foi assim que me encaminhei para o undiscovered country7 de Hamlet,sem as ânsias nem as dúvidas do moço príncipe, mas pausado e trôpegocomo quem se retira tarde do espetáculo. Tarde e aborrecido. Viram-me irumas nove ou dez pessoas, entre elas três senhoras, minha irmã Sabina,casada com o Cotrim, a filha –– um lírio do vale –– e... Tenhampaciência! daqui a pouco lhes direi quem era a terceira senhora.Contentem-se de saber que essa anônima, ainda que não parenta, padeceumais do que as parentas. É verdade, padeceu mais. Não digo que secarpisse, não digo que se deixasse rolar pelo chão, convulsa. Nem o meuóbito era cousa altamente dramática... Um solteirão que expira aossessenta e quatro anos, não parece que reúna em si todos os elementos deuma tragédia. E dado que sim, o que menos convinha a essa anônima8 eraaparentá-lo. De pé, à cabeceira da cama, com os olhos estúpidos, a bocaentreaberta, a triste senhora mal podia crer na minha extinção.

“Morto! morto!” dizia consigo.E a imaginação dela, como as cegonhas que um ilustre viajante viudesferirem o vôo desde o Ilisso9 às ribas africanas, sem embargo dasruínas e dos tempos – a imaginação dessa senhora também voou por sobre

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os destroços presentes até às ribas de uma África juvenil... Deixá-la ir; láiremos mais tarde; lá iremos quando eu me restituir aos primeiros anos.Agora, quero morrer tranqüilamente, metodicamente, ouvindo os soluçosdas damas, as falas baixas dos homens, a chuva que tamborila nas folhasde tinhorão da chácara, e o som estrídulo de uma navalha que umamolador está afiando lá fora, à porta de um correeiro. Juro-lhes que essaorquestra da morte foi muito menos triste do que podia parecer. De certoponto em diante chegou a ser deliciosa. A vida estrebuchava-me no peito,com uns ímpetos de vaga marinha, esvaía-se-me a consciência, eu desciaà imobilidade física e moral, e o corpo fazia-se-me planta, e pedra, e lodo,e cousa nenhuma.”Morri de uma pneumonia; mas se lhe disser que foi menos a pneumonia,do que uma idéia grandiosa e útil, a causa da minha

7 Undiscovered country = reino desconhecido ou, no contexto, a morte.Palavras ditas por Hamlet, na peça homônima de Shakespeare, noconhecido monólogo do 3º ato, que começa por “ser ou não ser: eis aquestão”.

8 anônima = Trata-se de Virgília que, discretamente, fora visitar o ex-amante. Observe como o narrador ironiza e relativiza a própria morte.

9 Ilisso = riacho próximo de Atenas, na Grécia. O “ilustre viajante” é umaalusão ao escritor francês Chateaubriand (l768-1848), que na obraItinerário de Paris a Jerusalém descreve o vôo das cegonhas a que serefere Brás Cubas.

10 A repetição do conectivo “e” (polissíndeto) faz avolumar-se, por adiçãoe sucessão, a força da idéia, para chegar à inutilidade com a eliminaçãode tudo. Observe a gradação em anticlímax.

morte, é possível que o leitor me não creia, e todavia é verdade. Vouexpor-lhe sumariamente o caso. Julgue-o por si mesmo.

C. Capítulo II

O emplasto

Com efeito, um dia de manhã, estando a passear na chácara,pendurou-se-me uma idéia no trapézio que eu tinha no cérebro. Uma vezpendurada, entrou a bracejar, a pernear, a fazer as mais arrojadas cabriolasde volatim11, que é possível crer. Eu deixei-me estar a contemplá-la.Súbito, deu um grande salto, estendeu os braços e as pernas, até tomar a

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forma de um X: decifra-me ou devorote.Essa idéia era nada menos que a invenção de um medicamento

sublime, um emplasto anti-hipocondríaco12, destinado a aliviar a nossamelancólica humanidade13.

Na petição de privilégio que então redigi, chamei a atenção dogoverno para esse resultado, verdadeiramente cristão. Todavia, nãoneguei aos amigos as vantagens pecuniárias que deviam resultar dadistribuição de um produto de tamanhos e tão profundos efeitos. Agora,porém, que estou cá do outro lado da vida, posso confessar tudo: o queme influiu principalmente foi o gosto de ver impressas nos jornais,mostradores, folhetos, esquinas, e enfim nas caixinhas do remédio, estastrês palavras: Emplasto Brás Cubas. Para que negá-lo? Eu tinha a paixãodo arruído, do cartaz, do foguete de lágrimas. Talvez os modestos mearguam esse defeito; fio, porém, que esse talento me hão de reconhecer oshábeis. Assim, a minha idéia trazia duas faces, como as medalhas, umavirada para o público, outra para mim. De um lado, filantropia e lucro; deoutro lado, sede de nomeada. Digamos: –– amor da glória.

Um tio meu, cônego de prebenda inteira, costumava dizer que o amorda glória temporal era a perdição das almas, que só devem cobiçar aglória eterna. Ao que retorquia outro tio, oficial de um dos

11 Volatim = em senado figurado é o indivíduo que muda facilmente deopinião ou partido.

12 Anti-hipocondríaco = É possível ver, nessa pretensão de criar ummedicamento que curasse a tristeza e a melancolia da humanidade,uma crítica severa e radical às pretensões científicas da segundametade do século passado: positivismo e determinismo.

13 Veja que o foco narrativo centrado num narrador além-túmulo, numdefunto-autor, possibilita um distanciamento “objetivo” e “realista”,na apreciação dos atos e intenções do próprio narrador.

antigos terços de infantaria, que o amor da glória era a cousa maisverdadeiramente humana que há no homem, e conseguintemente, a suamais genuína feição.

Decida o leitor entre o militar e o cônego; eu volto ao emplasto14.

D. Capítulo VII

O delírio15

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Que me conste, ainda ninguém relatou o seu próprio delírio; faço-o eu, e a ciência me agradecerá. Se o leitor não é dado à contemplaçãodestes fenômenos mentais, pode saltar o capítulo; vá direito ànarração. Mas, por menos curioso que seja, sempre lhe digo que éinteressante saber o que se passou na minha cabeça durante uns vintea trinta minutos.

Primeiramente, tomei a figura de um barbeiro chinês, bojudo, destro,escanhoando um mandarim, que me pagava o trabalho com beliscões econfeitos: caprichos de mandarim.

Logo depois, senti-me transformado na Suma Teológica16 de S.Tomás, impressa num volume, e encadernada em marroquim, com fechosde prata e estampas; idéia esta que me deu ao corpo a mais completaimobilidade; e ainda agora me lembra que, sendo as minhas mãos osfechos do livro, e cruzando-as eu sobre o ventre, alguém as descruzava(Virgília decerto), porque a atitude lhe dava a imagem de um defunto.

Ultimamente, restituído à forma humana, vi chegar umhipopótamo, que me arrebatou. Deixei-me ir, calado, não sei se pormedo ou confiança; mas, dentro em pouco, a carreira de tal modo setomou vertiginosa, que me atrevi a interrogá-lo, e com alguma artelhe disse que a viagem me parecia sem destino.

14 Emplasto = Essa intromissão do narrador no discurso, chamando aatenção do leitor, é modo inteiramente novo no processo literário,obrigando-o a tomar parte ativa na narrativa, como um participante dahistória; antecipa em muito a ficção moderna, empenhada em trazer oleitor para dentro da obra.

15 O Delírio = Para boa parte da crítica, este capítulo é uma espécie decentro em torno do qual gravita o pessimismo machadiano: o homem,ansioso por ver, viver e gozar a vida até a exaustão, encontra sempre aofim o amargo gosto do nada. Deixa patente que tudo não passa de umailusão dos sentidos, onde se espelha a própria ilusão de viver. E o centrode seu niilismo (nihil = nada, em latim).

16 Suma Teológica = livro básico do pensamento cristão na Idade Média,em que Santo Tomás de Aquino conseguiu fundir o aristotelismo e oplatonismo, e ao mesmo tempo separar com rigidez filosofia e fé; seusistema de raciocínio não permite desvios, daí a sensação de imobilidade,de fixidez.

– Engana-se, replicou o animal, nós vamos à origem dos séculos.Insinuei que deveria ser muitíssimo longe; mas o hipopótamo não me

entendeu ou não me ouviu, se é que não fingiu uma dessas cousas; e

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perguntando-lhe, visto que ele falava, se era descendente do cavalo deAquiles ou da asna de Balaã17, retorquiu-me com um gesto peculiar aestes dois quadrúpedes: abanou as orelhas. Pela minha parte fechei osolhos e deixei-me ir à ventura. Já agora não se me dá de confessar quesentia umas tais ou quais cócegas de curiosidade, por saber onde ficava aorigem dos séculos, se era tão misteriosa como a origem do Nilo, esobretudo se valia alguma cousa mais ou menos do que a consumação dosmesmos séculos: reflexões de cérebro enfermo. Como ia de olhosfechados, não via o caminho; lembra-me só que a sensação de frioaumentava com a jornada, e que chegou uma ocasião em que me pareceuentrar na região dos gelos eternos. Com efeito, abri os olhos e vi que omeu animal galopava numa planície branca de neve, com uma ou outramontanha de neve, vegetação de neve, e vários animais grandes e de neve.Tudo neve; chegava a gelar-nos um sol de neve. Tentei falar, mas apenaspude grunhir esta pergunta ansiosa:

–– Onde estamos?–– Já passamos o Éden.–– Bem; paremos na tenda de Abraão.–– Mas se nós caminhamos para trás! redargüiu motejando a minha

cavalgadura.Fiquei vexado e aturdido. A jornada entrou a parecer-me enfadonha e

extravagante, o frio incômodo, a condução violenta, e o resultadoimpalpável. E depois – cogitações de enfermo – dado que chegássemos aofim indicado, não era impossível que os séculos, irritados com lhesdevassarem a origem, me esmagassem entre as unhas, que deviam ser tãoseculares como eles. Enquanto assim pensava, íamos devorando caminho,e a planície voava debaixo dos nossos pés, até que o animal estacou, epude olhar mais tranqüilamente em tomo de mim. Olhar somente; nada vi,além da

17 Cavalo de Aquiles = o cavalo do herói homérico, Janto, previu-lhe amorte, pouco antes de entrar em luta contra os troianos. Asna de Balaão =segundo a Bíblia, Balaão dirigia-se para os israelitas, a fim de amaldiçoá-los. No caminho, um anjo surgiu e a asna que Balaão montava adquiriu opoder da palavra, pondo-se a censurá-lo. Convertido, em vez deamaldiçoar os israelitas, abençoou-os. Os arquétipos (formas jácristalizadas e universalizadas para indicar certos fatos ou fenômenos),especialmente os extraídos da Mitologia Clássica, ou da Bíblia, ou deautores consagrados, são recursos que freqüentam assiduamente a ficçãomachadiana, integrando o processo de produção dos romances. DomCasmurro retoma o ciúme arquetípico do Otelo, de Shakespeare; Esaú eJacó retoma o arquétipo bíblico da rivalidade entre irmãos.

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imensa brancura da neve, que desta vez invadira o próprio céu, até aliazul. Talvez, a espaços, me aparecia uma ou outra planta, enorme,brutesca, meneando ao vento as suas largas folhas. O silêncio daquelaregião era igual ao do sepulcro: dissera-se que a vida das cousas ficaraestúpida diante do homem.

Caiu do ar? destacou-se da terra? não sei; sei que um vulto imenso,uma figura de mulher me apareceu então, fitando-me uns olhos rutilantescomo o sol. Tudo nessa figura tinha a vastidão das formas selváticas, etudo escapava à compreensão do olhar humano, porque os contornosperdiam-se no ambiente, e o que parecia espesso era muita vez diáfano.Estupefato, não disse nada, não cheguei sequer a soltar um grito; mas, aocabo de algum tempo, que foi breve, perguntei quem era e como sechamava: curiosidade de delírio.

–– Chama-me Natureza ou Pandora18; sou tua mãe e tua inimiga.Ao ouvir esta última palavra, recuei um pouco, tomado de susto. A

figura soltou uma gargalhada, que produziu em torno de nós o efeito deum tufão; as plantas torceram-se e um longo gemido quebrou a mudez dascousas externas.

–– Não te assustes, disse ela, minha inimizade não mata; é sobretudopela vida que se afirma. Vives: não quero outro flagelo.

–– Vivo? perguntei eu, enterrando as unhas nas mãos, como paracertificar-me da existência.

–– Sim, verme, tu vives. Não receies perder esse andrajo que é teuorgulho; provarás ainda, por algumas horas, o pão da dor e o vinho damiséria. Vives: agora mesmo que ensandeceste, vives; e se a tuaconsciência reouver um instante de sagacidade, tu dirás que queres viver.

Dizendo isto, a visão estendeu o braço, segurou-me pelos cabelos elevantou-me ao ar, como se fora uma pluma. Só então pude ver-lhe deperto o rosto, que era enorme. Nada mais quieto; nenhuma contorçãoviolenta, nenhuma expressão de ódio ou ferocidade; a feição única, geral,completa, era a da impassibilidade egoísta, a da eterna surdez, a davontade imóvel. Raivas, se as tinha, ficavam encerradas no coração. Aomesmo tempo, nesse rosto de expressão glacial, havia um ar de juventude,mescla de força e viço, diante do qual me sentia eu o mais débil edecrépito dos seres.

18 Pandora = outro arquétipo clássico: primeira mulher mandada à Terra,para vingar-se dos homens com sua famosa caixa.

–– Entendeste-me? disse ela, no fim de algum tempo de mútuacontemplação.

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–– Não, respondi; nem quero entender-te; tu és absurda, tu és umafábula. Estou sonhando, decerto, ou, se é verdade, que enlouqueci, tu nãopassas de uma concepção de alienado, isto é, uma cousa vã, que a razãoausente não pode reger nem palpar. Natureza, tu? a Natureza que euconheço é só mãe e não inimiga; não faz da vida um flagelo, nem, comotu, traz esse rosto indiferente, como o sepulcro. E por que Pandora?

–– Porque levo na minha bolsa os bens e os males, e o maior de todos,a esperança, consolação dos homens. Tremes?

–– Sim; o teu olhar fascina-me.–– Creio; eu não sou somente a vida; sou também a morte, e tu estás

prestes a devolver-me o que te emprestei. Grande lascivo, espera-te avoluptuosidade do nada.19

Quando esta palavra ecoou, como um trovão, naquele imenso vale,afigurou-se-me que era o último som que chegava a meus ouvidos;pareceu-me sentir a decomposição súbita de mim mesmo. Então, encarei-a com olhos súplices, e pedi mais alguns anos.

–– Pobre minuto! exclamou. Para que queres tu mais alguns instantesde vida? Para devorar e seres devorado depois? Não estás farto doespetáculo e da luta? Conheces de sobejo tudo o que eu te deparei menostorpe ou menos aflitivo: o alvor do dia, a melancolia da tarde, a quietaçãoda noite, os aspectos da Terra, o sono, enfim, o maior benefício dasminhas mãos. Que mais queres tu, sublime idiota?

–– Viver somente, não te peço mais nada. Quem me pôs no coraçãoeste amor da vida, senão tu? e, se eu amo a vida, por que te hás de golpeara ti mesma, matando-me?

–– Porque já não preciso de ti. Não importa ao tempo o minuto quepassa, mas o minuto que vem. O minuto que vem é forte, jucundo, supõetrazer em si a eternidade, e traz a morte, e perece como o outro, mas otempo subsiste. Egoísmo, dizes tu? Sim, egoísmo, não tenho outra lei.Egoísmo, conservação. A onça mata o novilho porque o raciocínio daonça é que ela deve viver, e se o novilho é tenro tanto melhor: eis oestatuto universal. Sobe e olha.20

19 Nada = O que se vai ler nos quatro próximos parágrafos é uma densareflexão sobre o nada da vida, sobre a inutilidade de tudo.

20 Aqui, uma antecipação do “humanitismo”; a constatação cruel de que aúnica lei é o egoísmo: a onça mata o novilho, a tribo mais forte elimina amais fraca. É a lei universal que marcará a visão dos séculos, quepassarão pela visão aterrorizada de Brás Cubas, a partir daqui, até o finaldo espetáculo.

Isto dizendo, arrebatou-me ao alto de uma montanha. Inclinei os olhos

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a uma das vertentes, e contemplei, durante um tempo largo, ao longe,através de um nevoeiro, uma cousa única. Imagina tu, leitor, uma reduçãodos séculos, e um desfilar de todos eles, as raças todas, todas as paixões, otumulto dos impérios, a guerra dos apetites e dos ódios, a destruiçãorecíproca dos seres e das cousas. Tal era o espetáculo, acerbo e curiosoespetáculo. A história do homem e da Terra tinha assim uma intensidadeque lhe não podiam dar nem a imaginação nem a ciência, porque a ciênciaé mais lenta e a imaginação mais vaga, enquanto que o que eu ali via era acondensação viva de todos os tempos. Para descrevê-la seria preciso fixaro relâmpago. Os séculos desfilavam num turbilhão, e, não obstante,porque os olhos do delírio são outros, eu via tudo o que passava diante demim, – flagelos e delícias –, desde essa cousa que se chama glória até essaoutra que se chama miséria, e via o amor multiplicando a miséria, e via amiséria agravando a debilidade. Aí vinham a cobiça que devora, a cóleraque inflama, a inveja que baba, e a enxada e a pena, úmidas de suor, e aambição, a fome, a vaidade, a melancolia, a riqueza, o amor, e todosagitavam o homem, como um chocalho, até destruí-lo, como um farrapo.Eram as formas várias de um mal, que ora mordia a víscera, ora mordia opensamento, e passeava eternamente as suas vestes de arlequim, emderredor da espécie humana. A dor cedia alguma vez, mas cedia àindiferença, que era um sono sem sonhos, ou ao prazer, que era uma dorbastarda. Então o homem, flagelado e rebelde, corria diante da fatalidadedas cousas, atrás de uma figura nebulosa e esquiva, feita de retalhos, umretalho de impalpável, outro de improvável, outro de invisível, cosidostodos a ponto precário, com a agulha da imaginação; e essa figura, ––nada menos que a quimera da felicidade ––, ou lhe fugia perpetuamente,ou deixava-se apanhar pela fralda, e o homem a cingia ao peito, e entãoela ria, como um escárnio, e sumia-se, como uma ilusão.

Ao contemplar tanta calamidade, não pude reter um grito de angústia,que Natureza ou Pandora escutou sem protestar nem rir; e não sei por quelei de transtorno cerebral, fui eu que me pus a rir, de um risodescompassado e idiota.

–– Tens razão, disse eu, a cousa é divertida e vale a pena, talvezmonótona –– mas vale a pena. Quando Jó amaldiçoava o dia em que foraconcebido, é porque lhe davam ganas de ver cá de cima o espetáculo.Vamos lá, Pandora, abre o ventre, e digere-me; a cousa é divertida, masdigere-me.

A resposta foi compelir-me fortemente a olhar para baixo, e a ver osséculos que continuavam a passar, velozes e turbulentos, as gerações quesei superpunham às gerações, umas tristes, como os Hebreus do cativeiro,outras alegres, como os devassos de Cômodo21, e todas elas pontuais nasepultura. Quis fugir, mas uma força misteriosa me retinha os pés; entãodisse comigo: ––“Bem, os séculos vão passando, chegará o meu, e passarátambém, até o último, que me dará a decifração da eternidade”. E fixei os

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olhos, e continuei a ver as idades, que vinham chegando e passando, jáentão tranqüilo e resoluto, não sei até se alegre. Talvez alegre. Cadaséculo trazia a sua porção de sombra e de luz, de apatia e de combate, deverdade e de erro, e o seu cortejo de sistemas, de idéias novas, de novasilusões; em cada um deles rebentavam as verduras de uma primavera, eamareleciam depois, para remoçar mais tarde. Ao passo que a vida tinhaassim uma regularidade de calendário, fazia-se a história e a civilização, eo homem, nu e desarmado, armava-se e vestia-se, construía o tugúrio e opalácio, a rude aldeia e Tebas de cem portas, criava a ciência, queperscruta, e a arte que enleva, fazia-se orador, mecânico, filósofo, corria aface do globo, descia ao ventre da Terra, subia à esfera das nuvens,colaborando assim na obra misteriosa, com que entretinha a necessidadeda vida e a melancolia do desamparo. Meu olhar, enfarado e distraído, viuenfim chegar o século presente, e atrás dele os futuros. Aquele vinha ágil,destro, vibrante, cheio de si, um pouco difuso, audaz, sabedor, mas aocabo tão miserável como os primeiros, e assim passou e assim passaramos outros, com a mesma rapidez e igual monotonia. Redobrei de atenção;fitei a vista; ia enfim ver o último, –– o último! mas então já a rapidez damarcha era tal, que escapava a toda a compreensão; ao pé dela orelâmpago seria um século. Talvez por isso entraram os objetos atrocarem-se; uns cresceram, outros minguaram, outros perderam-se noambiente; um nevoeiro cobriu tudo, –– menos o hipopótamo que ali metrouxera, e que aliás começou a diminuir, a diminuir, a diminuir, até ficardo tamanho de um gato. Era efetivamente um gato. Encarei-o bem; era omeu gato Sultão, que brincava à porta da alcova, com uma bola de papel...

21 Cômodo = imperador romano (século II d.C.), filho de Marco Aurélio,conhecido por sua crueldade. Vítima de uma conspiração, foienvenenado: mas, como repelisse o veneno, foi estrangulado em seguida.

E. Capítulo XI

O menino é pai do homem22

Cresci; e nisso é que a família não interveio; cresci naturalmente,como crescem as magnólias e os gatos. Talvez os gatos são menosmatreiros, e, com certeza, as magnólias são menos inquietas do que eu erana minha infância. Um poeta dizia que o menino é pai do homem. Se istoé verdade, vejamos alguns lineamentos do menino.

Desde os cinco anos merecera eu a alcunha de “menino-diabo”; e

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verdadeiramente não era outra cousa; fui dos mais malignos do meutempo, arguto, indiscreto, traquinas e voluntarioso. Por exemplo, um diaquebrei a cabeça de uma escrava, porque me negara uma colher do docede coco que estava fazendo, e, não contente com o malefício, deitei umpunhado de cinza ao tacho, e, não satisfeito da travessura, fui dizer àminha mãe que a escrava é que estragara o doce “por pirraça”; e eu tinhaapenas seis anos. Prudêncio23, um moleque de casa, era o meu cavalo detodos os dias; punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixos, àguisa de freio, eu trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na mão,fustigava-o, dava mil voltas a um e outro lado, e ele obedecia, –– algumasvezes gemendo ––, mas obedecia sem dizer palavra, ou, quando muito,um –– “ai, nhonhô!” –– ao que eu retorquia: ––“Cala a boca, besta!” -Esconder os chapéus das visitas, deitar rabos de papel a pessoas graves,puxar pelo rabicho das cabeleiras, dar beliscões nos braços

22 O título significa que o adulto Brás Cubas já está dentro do menino.Um traz potencialmente os caracteres do outro, em linha direta dedesenvolvimento. Sabendo-se, portanto, quem é um, já se poderá saberquem é o outro. O comportamento humano é determinado. Teria Machadocedido aqui ao determinismo científico-filosófico em apogeu na suaépoca? Teria sido cooptado pelas teorias da hereditariedade? Acreditariarealmente que o comportamento humano era determinado pelas leis cegasda Genética, do instinto, da sociedade e da História? Ou estaria fazendouma concessão ao cientificismo de sua época? Esse “diálogo” deMachado com as teorias científico-filosóficas de seu tempo desdobra-seem inúmeras outras ocasiões dentro de sua obra, de várias formas e sobdiversos ângulos. Aqui, cremos que, assim como o ponto de vista, o foconarrativo está centrado em Brás Cubas; o narrador, apoiando-se nodeterminismo de seu tempo, procura justificar suas deformações atravésda racionalização.É como se Brás Cubas se dissesse: “Eu não tenho culpanenhuma. A vida é assim mesmo, e eu sou fruto de minha índole e daeducação que recebi”, acomodando-se, cinicamente, como era de seufeitio, aos seus erros. O problema retorna em Dom Casmurro, em cujoúltimo capítulo lemos: “se te lembras bem da Capitu menina, hás dereconhecer que uma estava dentro da outra, como a fruta dentro da casca”,que é sob outra roupagem a mesma metáfora. Cabe observar que há osque vêem em Machado um precursor da Psicanálise. Se não chega a tanto,vê com muita clareza o desequilíbrio entre os princípios da autoridade edo prazer, ou sua subversão, na formação de Brás Cubas, Bentinho, Pedroe Paulo, nas relações de suas personagens com as figuras paterna ematerna.

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23 Prudêncio = O negrinho Prudêncio é importante personagem doromance, pelas múltiplas funções que apresenta. Neste capítulo ele évítima da desumanidade do sistema da escravidão. No capítulo LXVIII,“O Vergalho”, Prudêncio reaparece, já adulto, alforriado, espancandooutro preto no Valongo, porque este, seu escravo, deixou a quitanda parair à venda beber. Prudêncio, nas duas situações, exatamente opostas,representa os condicionamentos sociais, os comportamentos e valores querefletem o sistema de trabalho e de produção.

das matronas, e outras muitas façanhas deste jaez, eram mostras de umgênio indócil, mas devo crer que eram também expressões de um espíritorobusto, porque meu pai tinha-me em grande admiração; e se às vezes merepreendia, à vista de gente, fazia-o por simples formalidade: emparticular dava-me beijos.

Não se conclua daqui que eu levasse todo o resto da minha vida aquebrar a cabeça dos outros nem a esconder-lhes os chapéus; masopiniático, egoísta e algo contemptor dos homens, isso fui; se não passei otempo a esconder-lhes os chapéus, alguma vez lhes puxei pelo rabicho dascabeleiras.

Outrossim, afeiçoei-me à contemplação da injustiça humana, inclinei-me a atenuá-la, a explicá-la, a classificá-la por partes, a entendê-la, nãosegundo um padrão rígido, mas ao sabor das circunstâncias e lugares.Minha mãe doutrinava-me a seu modo, fazia-me decorar alguns preceitose orações; mas eu sentia que, mais do que as orações, me governavam osnervos e o sangue, e a boa regra perdia o espírito, que a faz viver, para setornar uma vã fórmula. De manhã, antes do mingau, e de noite, antes dacama, pedia a Deus que me perdoasse, assim como eu perdoava aos meusdevedores; mas entre a manhã e a noite fazia uma grande maldade, e meupai, passado o alvoroço, dava-me pancadinhas na cara, e exclamava a rir:Ah! brejeiro! ah! brejeiro!

Sim, meu pai adorava-me. Minha mãe era uma senhora fraca, depouco cérebro e muito coração, assaz crédula, sinceramente piedosa, ––caseira, apesar de bonita, e modesta, apesar de abastada; temente àstrovoadas e ao marido. O marido era na Terra o seu deus. Da colaboraçãodessas duas criaturas nasceu a minha educação, que, se tinha algumacousa boa, era no geral viciosa, incompleta e, em partes, negativa. Meutio cônego fazia às vezes alguns reparos ao irmão; dizia-lhe que ele medava mais liberdade do que ensino, e mais afeição do que emenda; masmeu pai respondia que aplicava na minha educação um sistemainteiramente superior ao sistema usado; e por este modo, sem confundir oirmão, iludia-se a si próprio.

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De envolta com a transmissão e a educação, houve ainda o exemploestranho, o meio doméstico. Vimos os pais; vejamos os tios. Um deles, oJoão, era um homem de língua solta, vida galante, conversa picaresca.Desde os onze anos entrou a admitir-me às anedotas reais ou não, eivadastodas de obscenidade ou imundície. Não me respeitava a adolescência,como não respeitava a batina do irmão; com a diferença que este fugialogo que ele enveredava por assunto escabroso. Eu não; deixava-me estar,sem entender nada, a princípio, depois entendendo, e enfim achando-lhegraça. No fim de certo tempo, quem o procurava era eu; e ele gostavamuito de mim, dava-me doces, levava-me a passeio. Em casa, quando láia passar alguns dias, não poucas vezes me aconteceu achá-lo, no fundoda chácara, no lavadouro, a palestrar com as escravas que batiam roupa; aíé que era um desfiar de anedotas, de ditos, de perguntas, e um estalar derisadas, que ninguém podia ouvir, porque o lavadouro ficava muito longede casa. As pretas, com uma tanga no ventre, a arregaçar-lhes um palmodos vestidos, umas dentro do tanque, outras fora, inclinadas sobre aspeças de roupa, a batê-las, a ensaboá-las, a torcê-las, iam ouvindo eredargüindo às pilhérias do tio João, e a comentá-las de quando emquando com esta palavra:

–– Cruz, diabo!... Este sinhô João é o diabo!Bem diferente era o tio cônego. Esse tinha muita austeridade e pureza;

tais dotes, contudo, não realçavam um espírito superior, apenascompensavam um espírito medíocre. Não era homem que visse a partesubstancial da Igreja; via o lado externo, a hierarquia, as preeminências,as sobrepelizes, as circunflexões. Vinha antes da sacristia que do altar.Uma lacuna no ritual excitava-o mais do que uma infração dosmandamentos. Agora, a tantos anos de distância, não estou certo se elepoderia atinar facilmente com um trecho de Tertuliano24, ou expor, semtitubear, a história do símbolo de Nicéia25; mas ninguém, nas festascantadas, sabia melhor o número e casos das cortesias que se deviam aooficiante. Cônego foi a única ambição de sua vida; e dizia de coração queera a maior dignidade a que podia aspirar. Piedoso, severo nos costumes,minucioso na observância das regras, frouxo, acanhado, subalterno,possuía algumas virtudes, em que era exemplar, mas careciaabsolutamente da força de as incutir, de as impor aos outros.

Não digo nada de minha tia materna, D. Emerenciana, e aliás era apessoa que mais autoridade tinha sobre mim; essa diferençava-segrandemente dos outros; mas viveu pouco tempo em nossa companhia,uns dois anos. Outros parentes e alguns íntimos não merecem a pena deser citados; não tivemos uma vida comum, mas

24 Tertuliano = um dos doutores da Igreja, nascido em Cartago, autor de OApologético, Sobre o Batismo, entre outras.

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25 Símbolo de Nicéia = o símbolo dos apóstolos, imposto pelo Concílio deNicéia (325 d.C.), a fim de distinguir os cristãos ortodoxos dos heregesseguidores de Ário, que negavam a Santíssima Trindade, colocando emdúvida um dogma católico.

intermitente, com grandes claros de separação. O que importa é aexpressão geral do meio doméstico, e essa aí fica indicada, –– vul-garidade de caracteres, amor das aparências rutilantes, do arruído,frouxidão da vontade, domínio do capricho, e o mais. Dessa terra edesse estrume é que nasceu esta flor26.

F. Capítulo XX

Bacharelo-me

Um grande futuro! Enquanto esta palavra me batia no ouvido,devolvia eu os olhos, ao longe, no horizonte misterioso e vago. Uma idéiaexpelia outra, a ambição desmontava Marcela. Grande futuro? Talveznaturalista, literato, arqueólogo, banqueiro, político, ou até bispo, ––bispo que fosse ––, uma vez que fosse um cargo, uma preeminência, umagrande reputação, uma posição superior.27 A ambição, dado que fosseáguia, quebrou nessa ocasião o ovo, e desvendou a pupila fulva epenetrante. Adeus, amores! adeus, Marcela! dias de delírio, jóias sempreço, vida sem regímen, adeus! Cá me vou às fadigas e à glória; deixo-vos com as calcinhas da primeira idade.

E foi assim que desembarquei em Lisboa e segui para Coimbra. AUniversidade esperava-me com as suas matérias árduas; estudei-as muitomediocremente, e nem por isso perdi o grau de bacharel; deram-mo com asolenidade do estilo, após os anos da lei; uma bela festa que me encheu deorgulho e de saudades, – principalmente de saudades. Tinha euconquistado em Coimbra uma grande nomeada de folião; era umacadêmico estróina, superficial, tumultuário e petulante, dado àsaventuras, fazendo romantismo prático e liberalismo teórico, vivendo napura fé dos olhos pretos e das constituições escritas. No dia em que aUniversidade me atestou, em pergaminho, uma ciência que eu estavalonge de trazer arraigada no cérebro, con-

26 Admirável síntese do convencionalismo e da superficialidade doambiente familiar, do qual Brás Cubas se considera fruto ou, comoironicamente quer, “flor”.

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27 A busca da ascensão social, de “status”, a idéia de projeção social, danecessidade de sair do anonimato é um dos pilares sobre que se assentaminúmeras personagens de Machado e seu fundamento impulsionador,articulando várias narrativas. Já aparece em algumas crônicas e éelemento chave nos primeiros romances: Ressurreição, A Mão e a Luva,Helena e Iaiá Garcia. A esse título, Guiomar, de A Mão e a Luva, éexemplo cabal, com a “fria eleição do espírito”, processo pelo qualracionaliza a escolha do pretendente mais próspero. Capitu vê no BentoSantiago a sua chance de ascensão social, através do casamento. “ATeoria do Medalhão” é o conto que melhor esmiuça essa teoria do êxitosocial, ou de como vencer na vida sem esforço. Casamento, diploma,política, clero, herança... Vale tudo, menos trabalho.

fesso que me achei de algum modo logrado, ainda que orgulhoso.Explico-me: o diploma era uma carta de alforria; se me dava a liber-dade, dava-me a responsabilidade. Guardei-o, deixei as margens doMondego, e vim por ali fora assaz desconsolado, mas sentindo já unsímpetos, uma curiosidade, um desejo de acotovelar os outros, deinfluir, de gozar, de viver, –– de prolongar a Universidade pela vidaadiante...

G. Capítulo LV

O velho diálogo de Adão e Eva28

BRÁS CUBAS.... ?

VIRGÍLIABRÁS CUBAS

.......................................................................................................................................

.................

VIRGÍLIA

.................... !

BRÁSCUBAS

....................VIRGÍLIA

.......................................................................................................................

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...................................................................................?..................................................

.......................................................................................................................................

................BRÁS CUBAS

....................VIRGÍLIA

................BRÁS CUBAS

.......................................................................................................................................

.......................................................................................................................................

...............................................................................................................................!.......

28 Esse curioso capítulo, em que a pontuação gráfica substitui as palavras,é uma faceta inovadora da narrativa machadiana: o experimentalismográfico, à maneira das vanguardas concretistas ou de alguns poetasbarrocos. Contudo, em Machado, essas “brincadeiras” gráficas têmfuncionalidade e configuram não apenas uma atitude lúdica, mas tambémum gosto à experimentação pela experimentação. Machado foi ao mesmotempo um “clássico” e um “inventor” que usou, com muita liberdade, atradição literária e o amor à livre criação. O título “O Velho Diálogo deAdão e Eva” é o eufemismo de que o sempre sutil e recatado Machado sevale, para sugerir que vai descrever uma relação sexual entre Brás Cubase Virgília. Contudo, como o que se dizem os amantes durante o ato éconvencional, previsível, arquetípico e nada se pode dizer de novo oudiferente, Machado, para evitar a vulgaridade, substitui as palavras pelossinais de pontuação.

....!.................................................................................................................

.................

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BRÁS CUBAS....................!VIRGÍLIA....................!

H. Capítulo CXXV

Epitátio29

AQUI JAZDONA EULÁLIA DAMASCENA DE BRITO

MORTAAOS DEZENOVE ANOS DE IDADE

ORAI POR ELA!

1. Capítulo LXXI

O senão do livro

Começo a arrepender-me deste livro. Não que ele me canse; eu nãotenho que fazer; e, realmente, expedir alguns magros capítulos para essemundo sempre é tarefa que distrai um pouco da eternidade. Mas o livro éenfadonho, cheira a sepulcro, traz certa contração cadavérica; vício grave,e aliás ínfimo, porque o maior defeito deste livro és tu, leitor. Tu tenspressa de envelhecer, e o livro anda devagar; tu amas a narração direta enutrida, o estilo regular e fluente, e este livro e o meu estilo são como osébrios, guinam à direita e à esquerda, andam e param, resmungam, urram,gargalham, ameaçam o céu, escorregam e caem...30

E caem! –– Folhas misérrimas do meu cipreste, heis de cair, comoquaisquer outras belas e vistosas; e, se eu tivesse olhos,dar-

29 Aqui é o próprio túmulo de Eulália (Nhã-Loló) que anuncia sua morte.O ícone substitui as palavras.

30 Ainda uma vez a intervenção metalingüística do narrador explica oprocesso de composição não convencional do livro, a ruptura com a

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linearidade da narrativa.

vos-ia uma lágrima de saudade. Esta é a grande vantagem da morte, que,se não deixa boca para rir, também não deixa olhos para chorar... Heis decair.31

J. Capítulo CXIX

Parêntesis32

Quero deixar aqui, entre parêntesis, meia dúzia de máximas dasmuitas que escrevi por esse tempo. São bocejos de enfado; podem servirde epígrafe a discursos sem assunto:

––––––––––––––––––

Suporta-se com paciência a cólica do próximo.

––––––––––––––––––

Matamos o tempo; o tempo nos enterra.

––––––––––––––––––

Um cocheiro filósofo costumava dizer que o gosto da carruagem seriadiminuto, se todos andassem de carruagem.

––––––––––––––––––

Crê em ti; mas nem sempre duvides dos outros.

––––––––––––––––––

Não se compreende que um botocudo fure o beiço para enfeitá-lo comum pedaço de pau. Esta reflexão é de um joalheiro.

––––––––––––––––––

Não te irrites se te pagarem mal um benefício: antes cair das nuvens,

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que de um terceiro andar.

L. Capítulo CXXXVI

Inutilidade

Mas, ou muito me engano, ou acabo de escrever um capítulo inútil.

31 A “grande vantagem da morte” a que o narrador se refere, através daconstrução antitética (rir x chorar), é a neutralidade, a possibilidade dereconstruir a própria vida, “de fora”.

32 O humor machadiano, quase sempre irônico, reflexivo, amargo ealgumas vezes negro, tem aqui outra conotação: a gratuidade do frasista,do manipulador de palavras e idéias. Lembra as “Reflexões sem Dor”, deMillôr Fernandes, ou “O Avesso das Coisas”, de Drummond.

M. Capítulo CLIX

Semidemência

Compreendi que estava velho, e precisava de uma força; mas oQuincas Borba partira seis meses antes para Minas Gerais, e levouconsigo a melhor das filosofias. Voltou quatro meses depois, e entrou-meem casa, certa manhã, quase no estado em que eu o vira no PasseioPúblico. A diferença é que o olhar era outro. Vinha demente. Contou-meque, para o fim de aperfeiçoar o Humanitismo, queimara o manuscritotodo e ia recomeçá-lo. A parte dogmática ficava completa, embora nãoescrita; era a verdadeira religião do futuro.

–– Juras por Humanitas? perguntou-me.–– Sabes que sim.A voz mal podia sair-me do peito; e aliás não tinha descoberto toda a cruel

verdade. Quincas Borba não só estava louco, mas sabia que estava louco, e esseresto de consciência, como uma frouxa lamparina no meio das trevas,complicava muito o horror da situação. Sabia-o, e não se irritava contra o mal;ao contrário, dizia-me que era ainda uma prova de Humanitas, que assimbrincava consigo mesmo. Recitava-me longos capítulos do livro, e antífonas, e

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litanias espirituais; chegou até a reproduzir uma dança sacra que inventara paraas cerimônias do Humanitismo. A graça lúgubre com que ele levantava esacudia as pernas era singularmente fantástica. Outras vezes amuava-se a umcanto, com os olhos fitos no ar, uns olhos em que, de longe em longe, fulguravaum raio persistente da razão, triste como uma lágrima...

Morreu pouco tempo depois, em minha casa, jurando e repetindosempre que a dor era uma ilusão, e que Pangloss, o caluniado Panglos33,não era tão tolo como o supôs Voltaire.

33 Pangloss = personagem da sátira Cândido ou o otimismo, de Voltaire,ensina que este mundo é “o melhor de todos os mundos possíveis”.Voltaire ridiculariza esse otimismo em seu livro, tendo como alvo de seuataque a filosofia de Leibniz.

N. Capítulo CLX

Das negativas

Entre a morte do Quincas Borba e a minha, mediaram os sucessosnarrados na primeira parte do livro. O principal deles foi a invenção doemplasto Brás Cubas, que morreu contigo, por causa da moléstia queapanhei. Divino emplasto, tu me darias o primeiro lugar entre os homens,acima da ciência e da riqueza, porque eras a genuína e direta inspiraçãodo Céu. O acaso determinou o contrário; e aí vos ficais eternamentehipocondríacos.

Este último capítulo é todo de negativas. Não alcancei a celebridadedo emplasto, não fui ministro, não fui califa, não conheci o casamento.Verdade é que, ao lado dessas faltas, coube-me a boa fortuna de nãocomprar o pão com o suor do meu rosto. Mais; não padeci a morte de D.Plácida, nem a semidemência do Quincas Borba. Somadas uma cousas eoutras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua nem sobra, econseguintemente que saí quite com a vida. E imaginará mal; porque, aochegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo,que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: –– Não tive filhos,não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.

7. ESTUDO CRITICO

Há um estudo de José Guilherme Merquior, de 1972, “Gênero e Estilodas Memórias Póstumas de Brás Cubas”, publicado em Lisboa, na revista

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Colóquio, nº 8, que pode ser considerado o ponto de partida para osestudos que, mais recentemente, filiam este romance machadiano àtradição da sátira menipéia, à visão carnavalizada do mundo,subvertendo e misturando os registros e os gêneros, para desembocar naestrutura cômico-fantástica e que, nem por ser fantástica e cômica, émenos “séria” na visão crítica e problematizadora do homem e do mundo.A edição da série Bom Livro, da Editora Ática, desde 1975, transcreveesse estudo fundamental, sob outro título: “O Romance Carnavalesco deMachado”. Reproduzimos esse ensaio, interferindo somente para remetero aluno às idéias nucleares do texto, ou “traduzir” algumas citaçõeseruditas.

O romance carnavalesco de MachadoJosé Guilherme Merquior

Na literatura brasileira, Machado de Assis ocupa a posição deintrodutor da perspectiva problematizadora, da visão do mundoradicalmente crítica e reflexiva, que predomina entre a alta literatura naIdade Contemporânea. Em sua obra narrativa, essa ótica problematizanteaparece pela primeira vez nos contos de Papéis Avulsos; mas o“pessimismo” de Machado só causou maior impacto ao eleger comoveículo o romance urbano de ação contemporânea. Isso se deu quandoMachado divulgou, na Revista Brasileira, a partir de março de 1880, asMemórias Póstumas de Brás Cubas, publicadas em volume no anoseguinte. O tom cáustico do livro o afastava muito dos exemplosnacionais de idealização romântica, enquanto seu humorismoziguezagueante, a sua estrutura insólita impediam qualquer identificaçãocom os modelos naturalistas. Como adverte o “autor”, o falecido BrásCubas, trata-se de “obra difusa”, escrita “com a pena de galhofa e a tintada melancolia”. Obra cheia de digressões e extravagâncias, porque nela,em vez da narração linear e objetivista à Flaubert ou Zola, Machadoconfessava adotar a “forma livre” de Lawrence Sterne –– Tristam Shandy(l760-67).

Porém, será mesmo Brás Cubas um romance sterniano, redigido poralguém que a leitura das Viagens na Minha Terra (l846), de AlmeidaGarrett, levou ao Viagem à Roda de Meu Quarto (l795), de Xavier deMaistre, e este, por sua vez, a seu modelo inglês –– a obra de Sterne? Pelomenos duas das características mais ostensivas das Memórias Póstumasinexistem em Sterne. A primeira é a feição “sardônica” do humorismomachadiano. Essa ironia, com suas “rabugens de pessimismo”, é muito di-versa do humorismo essencialmente “simpático” e “sentimental” doTristam Shandy. O travo angustiante da “galhofa” de Machado falta porcompleto em Sterne.

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A segunda diferença é a natureza “fantástica” da narrativa. Sternetambém regurgita de excentricidades, mas todas elas se devem, em últimaanálise, às desordenadas perambulações do espírito de Tristam, ao contara sua vida. Sterne queria explorar no romance a teoria da “associação deidéias”, chave do processo psíquico; daí haver, em suas páginas, muitafantasia –– mas não propriamente o “fantástico”. Porém, a molduranarrativa do Brás Cubas é resolutamente fantástica, isto é, “inverossímil”,a começar pelo fato de o romance ser apresentado como relato feito porum defunto...

Essa “fusão” de humorismo filosófico e fantástico nos permite atinarcom o verdadeiro gênero do romance; com efeito, Brás Cubas é umrepresentante moderno do gênero cômico-fantástico. Também conhecidocomo literatura menipéia, o gênero cômico-fantástico tomou corpo, naliteratura ocidental, no fim da Antigüidade; sua realização mais perfeitasão as sátiras em prosa de Luciano de Samósata (séc. II), autor dosDiálogos dos Mortos. Seus principais atributos são:

* a ausência de qualquer enobrecimento dos personagens e de suas ações–– aspecto pelo qual a literatura cômico-fantástica se distinguenitidamente da epopéia e da tragédia;* o mistura do sério e do cômico, com abordagem humorística dasquestões mais cruciais: o sentido da realidade, o destino do homem, aorientação da existência etc.;* o absoluta liberdade em relação aos ditames da verossimilhança; nosdiálogos de Luciano, como no romance de seu contemporâneo Apuleio, OAsno de Ouro, ou na obra renascentista de Rabelais, as “fantasmagorias”mais desvairadas convivem sem transição com os detalhes mais veristas;* a freqüência da representação de estados psíquicos aberrantes:desdobramentos da personalidade, paixões descontroladas, delírios (v. odelírio de Brás Cubas);* o uso constante de gêneros intercalados –– por exemplo, cartas ounovelas –– embutidos na obra global (as historietas de Marcela, D.Plácida, do Vilaça e do almocreve, nas Memórias Póstumas).

Pelas citações do próprio Machado, sabemos que ele conhecia eapreciava a obra de Luciano e de seus imitadores, barrocos, comoFontenelle, Dialogues des Morts (l683), e Fénélon, ou modernos, como ogrande pessimista Leopardi, Operette Morali (1826). Mas o decisivo sãoas analogias de concepção e estrutura entre as grandes expressões dogênero cômico-fantástico e as nossas Memórias Póstumas. Lucianopossui até um personagem (o filósofo Menipo) que gargalha no reino doalém-túmulo –– em situação idêntica à de Brás Cubas. Portanto, podemosafirmar que Machado elaborou uma combinação original da menipéia

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com a perspectiva “autobiográfica” de Sterne e de Maistre, acentuandosimultaneamente os seus ingredientes filosóficos. Brás Cubas é um casode novelística filosófica em tom bufo; um manual de moralista em ritmofoliônico. Quase nenhum sentimento, crença ou conduta escapam, nesselivro, à chacota corrosiva, ao ânimo de sátira e paródia. O enredo –– avida do rico “fainéant” (= “faz-nada”, vagabundo) Brás Cubas, seusamores, tédios e veleidades –– é somente o ponto de partida de umacrítica moral que se exprime pela imaginação ficcional e pela reflexãoconcretamente motivada e não pelo conceito abstrato ou pela máximaisolada. Aí temos a razão de ser da estrutura elástica do romance, de suasconstantes digressões e dos “piparotes” dados no leitor.

O célebre delírio do autor-personagem, no capítulo VII, é a chave dafilosofia das Memórias Póstumas. Agonizante, Brás Cubas sonha que,montado num hipopótamo, cavalga rumo à “origem dos séculos”, até queuma vasta figura de mulher, Natureza ou Pandora, arrebatando-o ao altode uma montanha, o faz contemplar o cortejo das épocas. O desfile dosséculos é um espetáculo “acerbo”; o homem, presa das paixões, é umrebelde inútil, para quem mesmo o prazer é “uma dor bastarda”.Reencontramos aqui o universo vicioso d’O Alienista, dos PapéisAvulsos . A ironia machadiana é, como a de Swift, turvada pelarepugnância pelo absurdo da condição humana. A Natureza é um flagelo;a História, uma catástrofe.

Brás Cubas é um fátuo, prisioneiro dos desejos, que aspiraegoisticamente ao gozo, ao poder e à glória. Sua história evolui num palcoonde reina a decomposição dos seres e das experiências: a beleza deMarcela, o seu amor por Virgília, a sua ternura pela própria irmã, tudo seesvai, tudo apodrece. Conforme avisa o narrador, o livro “cheira asepulcro”. A crueldade é a norma da vida. O herói mata, com volúpia,borboletas (cap. XXXI), moscas e formigas (cap. CII). E os oprimidosnão são melhores do que os opressores: assim que o libertam, o escravoPrudêncio, que o menino Brás maltratava, chicoteia sem piedade o seupróprio servo; os criados de Virgília se desforram espionando-lhe oadultério. As causas mais nobres ocultam sempre interesses impuros, pois“quem não sabe que ao pé de cada bandeira grande, pública, ostensiva, hámuitas vezes várias outras bandeiras, modestamente particulares, que sehasteiam e flutuam à sombra daquela, e não poucas vezes lhesobrevivem?”.

Mestre do desmascaramento, Machado é um discípulo dos moralistasfranceses; para ele os bons sentimentos são a máscara do egoísmo.Quanto aos valores sociais, repousam na mentira e nas conveniências. Opai de Brás Cubas adere sem rebuços à “Teoria do Medalhão” –– PapéisAvulsos: “Olha que os homens”, diz ele ao filho, “valem por diferentesmodos, e que o mais seguro de todos é valer pela opinião dos outroshomens”.

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As bases sociais desse mundo não são difíceis de circunscrever. Oambiente de Brás Cubas é o das elites escravocratas de Oitocentos;ambiente em que ócio e sadismo prevalecem. Astrogildo Pereira mostroua acuidade sociológica de Machado, a fidelidade com que ele evoca osmodos de vida dos bacharéis e barões, sinhás e sinhazinhas, agregados eescravos. É um espaço comunitário fundado nas relações de força, onde aseparação das classes só é atenuada por poucos cimentos culturais eválvulas políticas; uma estrutura social que reflete e estimula instintosagressivos. Mas o traço psicológico mais típico desse meio é menos aagressividade do que o tédio. O tédio, “flor amarela, solitária e mórbida”,“volúpia do aborrecimento” é um velho amigo de Brás Cubas.

No entanto, esse pessimismo, que vê nos homens o joguete deinstintos, não se assemelha ao rígido determinismo dos naturalistas. Aliberdade é uma ilusão, mas os determinismos são volúveis econtraditórios. O homem “é uma engata pensante... Cada estação da vidaé uma edição, que corrige a anterior, e que será corrigida também, até aedição definitiva, que o editor dá de graça aos vermes”. A natureza,matriz da evolução, é às vezes “um imenso escárnio”: ela se contraria a simesma. O pessimismo machadiano desconhece qualquer justificativaracional.

Machado impregnou-se profundamente do pensamento deSchopenhauer. Segundo este filósofo, o universo é Vontade; cega,obscura e irracional vontade de viver. A lei do real não é nenhum logosharmonioso, mas sim um conflitivo querer, fatalmente doloroso, porquenecessariamente insatisfeito. Por isso a dor é a essência das coisas, e só noideal de renúncia aos desejos se pode colher alguma felicidade.

Há nas Memórias Póstumas um personagem –– Quincas Borba, omendigo filósofo –– que se apresenta como criador do “humanitismo”. O“humanitismo” é ao mesmo tempo uma caricatura da “religião dahumanidade” dos positivistas (J. Matoso Câmara) e uma refutação daantologia da dor de Schopenhauer. Não que o “humanitismo” negue aviolência e a dor; no romance Quincas Borba, o seu lema será odarwiniano “ao vencedor, as batatas”. Mas a ironia de Machado estájustamente em atribuir- lhe a pretensão de justificar a crueza da realidade,“explicando” todas as desgraças deste mundo como outras tantas vitóriasde Humanitas, o princípio superior do Ser... Como o Pangloss de Voltaire,Quincas Borba é um otimista ridículo. Fazendo do “humanitismo” umateodicéia absurda, e do seu profeta uma figura grotescamente dogmática,o humorismo machadiano denuncia suas afinidades com a metafísicadesiludida de Schopenhauer.

Diante da ingenuidade do cientificismo, que, no Brasil de 1880, aindase dava por coveiro da filosofia, o sarcasmo de Brás Cubas reabre ainterrogação metafísica, a perplexidade radical ante o ser humano.

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Machado levou mais a sério do que os arautos do evolucionismocientificista o golpe que Darwin tinha desfechado contra as ilusõesantropocêntricas da humanidade. Ele aprendera com Montaigne a nãoesquecer que o homem é um animal, sujeito à natureza e a seus caprichos–– e não o, arrogante “soberano invulnerável da criação”. Se QuincasBorba superestima a posição do homem entre as espécies, Brás Cubasprefere matutar no que "diriam de nós os gaviões, se Buffon tivessenascido gavião...”.

No plano estilístico, esse humorismo intransigente engendra oexperimentalismo ficcional de Machado. Experimentalismo sem nada aver com o romance “experimental” dos naturalistas. Ao contrário: comexperimentalismo ficcional aludimos exatamente àquela livremanipulação de técnicas narrativas que assimila Machado de Assis aosgrandes ficcionistas impressionistas, e o afasta dos naturalistas, com seugosto pela execução linear do relato. Junto com a sua prosa artística, a suaaguda percepção do tempo e o subjetivismo “decadente” de seuspersonagens (por exemplo: Brás Cubas, o Bento de Dom Casmurro, aFlora de Esaú e Jacó, o Conselheiro Aires deste último romance e doMemoria), este é um dos elementos que justificam a inclusão de Machadoentre os narradores impressionistas como Tchecov, Henry James ouMarcel Proust.

Em Machado, o experimentalismo ficcional está animado pelo espíritode brincadeira e zombaria. Suas referências à mitologia clássica sãotípica: sempre instalam uma perspectiva humorística sobre a realidadeburguesa. O ápice dessa sua inclinação lúdica talvez resida no seuemprego particularíssimo dessa característica da prosa impressionista queé a frase em estilo figurado, emoldurada por um segmento narrativo“realista”. Eugênio Gomes demonstrou a tendência do estilo machadianoà linguagem figurada, ao relevo retórico. A frase das Memórias Póstumasé de fato sempre faceira: exige que nós a olhemos antes de ver o que elamostra. Mas est i lo “retórica” não significa, nesse caso,ornamentalismo gratuito; ninguém menos “parnasiano”, menosverbalista, que o narrador Machado de Assis. Brás Cubas é um livro noqual o aspecto fortemente retórico do estilo reforça a energia mimética dalinguagem, o seu poder de imitar e fingir (ficção) a variedade concreta davida.

EXERCICIOS

Texto I

UMA REFLEXÃO IMORAL

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Ocorre-me uma reflexão imoral, que é ao mesmo tempo uma correçãode estilo. Cuido haver dito, no capítulo XIV, que Marcela morria deamores pelo Xavier. Não morria, vivia. Viver não é a mesma cousa quemorrer; assim o afirmam todos os joalheiros desse mundo, gente muitovista na gramática. Bons joalheiros, que seria do amor se não fossem osvossos dixes [jóias] e fiados? Um terço ou um quinto do universalcomércio dos corações. Esta é a reflexão imoral que eu pretendia fazer, aqual é ainda mais obscura do que imoral, porque não se entende bem oque eu quero dizer. O que eu quero dizer é que a mais bela testa domundo não fica menos bela, se a cingir um diadema de pedras finas; nemmenos bela, nem menos amada. Marcela, por exemplo, que era bembonita, Marcela amou-me...

(...)... Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis; nada

menos. (...)

(Memórias Póstumas de Brás Cubas, cap. XVI e XVII)

1. Explique como ocorre metalinguagem neste texto.

2. Explique a ironia da frase “Não morria, vivia”.

3. Cite e explique outra passagem irônica do texto.

4. Por que é imoral a reflexão sobre o amor contida neste capítulo?

5. Há neste texto realista um elemento que se pode considerar anti-romântico. Qual é ele?

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