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Memória Ancestral: uma potencia para reconstrução de nossa história Evelyn Dias Siqueira Malafaia 1 Resumo: Esta pesquisa tem como intuito investigar as consequências da história hegemônica na identificação do negro. Aqui, tratou-se de forma breve, anunciar a importância do resgate da memória ancestral como um dispositivo do processo de identificação, como uma prática educativa e como processo de saúde mental para a população negra. Todo texto é atravessado pelo conceito de memória memórias individuais/corporais, memória coletiva e memória histórica-, uma vez que esse conceito se relaciona com os processos de identificação. Visa desse modo, entender como práticas racistas e hegemônicas influenciaram e ainda influenciam na construção de memórias, história e narrativas do povo negro, pautada na submissão, no esvaziamento da subjetividade, na dor e na opressão. Ressalto os perigos da história hegemônica e como nossa memória é permeada por ela, pode moldar, negativamente, a percepção do sujeito negro sobre si e o lugar que este ocupa na história e no mundo. No entanto há possibilidades de recontar essa história através do nosso ponto de vista, do ponto de vista do negro, exaltando nossos heróis, nossos reinos, nossa força e nossa coragem. Trazendo novas perspectivas e refazendo memórias e reconstruindo relações de prazer com o corpo negro. Ressalto como os nossos corpos pretos memorizam o racismo, e como ressignificar essas memórias a partir de histórias sobre nossa ancestralidade (história de reis, rainhas e heróis) usando como instrumentos literaturas infanto-juvenis negra. Por conta do racismo, história que é contada sobre o negro e para o negro, remete ao negro escravizado, submisso, esvaziado de 1 Doutoranda no Programa de Pós Graduação em Psicologia na Universidade Federal Fluminense. Mestre em Relações Étnico-Raciais no Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckuow da Fonseca (CEFET/RJ). Graduada em Psicologia (PUC-Rio). Curso de formação clínica em psicologia integrativa na Accelereted Experiential dynamics Psychotherapy (AEDP- neuropsicoterapia).

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Memória Ancestral: uma potencia para reconstrução de nossa história

Evelyn Dias Siqueira Malafaia1

Resumo: Esta pesquisa tem como intuito investigar as consequências da

história hegemônica na identificação do negro. Aqui, tratou-se de forma breve, anunciar

a importância do resgate da memória ancestral como um dispositivo do processo de

identificação, como uma prática educativa e como processo de saúde mental para a

população negra. Todo texto é atravessado pelo conceito de memória – memórias

individuais/corporais, memória coletiva e memória histórica-, uma vez que esse

conceito se relaciona com os processos de identificação.

Visa desse modo, entender como práticas racistas e hegemônicas influenciaram e

ainda influenciam na construção de memórias, história e narrativas do povo negro,

pautada na submissão, no esvaziamento da subjetividade, na dor e na opressão.

Ressalto os perigos da história hegemônica e como nossa memória é permeada por ela,

pode moldar, negativamente, a percepção do sujeito negro sobre si e o lugar que este

ocupa na história e no mundo.

No entanto há possibilidades de recontar essa história através do nosso ponto de

vista, do ponto de vista do negro, exaltando nossos heróis, nossos reinos, nossa força e

nossa coragem. Trazendo novas perspectivas e refazendo memórias e reconstruindo

relações de prazer com o corpo negro. Ressalto como os nossos corpos pretos

memorizam o racismo, e como ressignificar essas memórias a partir de histórias sobre

nossa ancestralidade (história de reis, rainhas e heróis) usando como instrumentos

literaturas infanto-juvenis negra. Por conta do racismo, história que é contada sobre o

negro e para o negro, remete ao negro escravizado, submisso, esvaziado de

1 Doutoranda no Programa de Pós Graduação em Psicologia na Universidade Federal Fluminense.

Mestre em Relações Étnico-Raciais no Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckuow da

Fonseca (CEFET/RJ). Graduada em Psicologia (PUC-Rio). Curso de formação clínica em psicologia

integrativa na Accelereted Experiential dynamics Psychotherapy (AEDP- neuropsicoterapia).

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subjetividade, vontade, força e nobreza. Assim acredito na importância desse resgate de

nossa memória ancestral, como possibilidade de acesso a autoestima, orgulho,

segurança e pertencimento. Sendo assim, Recuperar a memória ancestral do negro faz

parte de um processo de cura.

Palavras chave: Memória ancestral; Subjetividade do negro; Racismo.

Introdução

Sankofa: Não é tabu voltar para trás e recuperar o que

você perdeu.

Ao conversar com uma jovem angolana, percebi a importância do resgate de memórias

ancestrais. Memórias que vem antes dos processos colonizadores. A jovem em si,

anteriormente se apresentava insegura, com dificuldades de colocar limites nas relações

e certo grau de inadequação e timidez. Em um dia específico, conversávamos sobre

como ela estava começando a dizer “não” para as pessoas e também não se deixar

submeter às vontades alheias quando não lhe fizessem bem. Ela contou-me que havia

descoberto que sua avó fazia parte da realeza num território específico do reino do

Congo, os Mbuinga. No momento dessa narrativa, enquanto a jovem contava a maneira

que havia descoberto essa informação, sua postura ficava mais ereta, enquanto afirmava

que não se deixaria se levar mais facilmente por quem fosse, pois ela era uma princesa.

Neste momento a sala em que estávamos foi tomada por uma emoção de auto amor e

segurança. Isso não quer dizer que a jovem nunca mais vai experimentar a insegurança,

mas esse fato nos apresenta a possibilidades de novas memórias, novas formas de auto

percepções, novas subjetividades e novas memórias em seu corpo negro.

A memória é a possibilidade de acessar, na atualidade, episódios ocorridos em

outros momentos. Ao acioná-la, o sujeito tem a possibilidade de negociar sua auto

representação, seus desejos, seus projetos e valores. Assim, a memória também está

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profundamente relacionada ao processo de construção da forma como nos percebemos

como sujeitos, ou seja, de nossa identificação, pois o sujeito recupera suas vivências e

trajetórias que irão guiar a constituição de sua identidade a partir da memória. Neste

texto nos importa refletir sobre como racismo pode engendrar nossas memórias

individuais/corporais, coletivas e históricas. E como a história hegemônica pode moldar

a forma como nos percebemos como negro, muitas vezes em um lugar de subalternidade

e baixa autoestima. É ainda, objetiva ressaltar a possibilidade de resgate de novas

memórias, de memórias ancestrais, e a ressignificação da relação do sujeito com o

corpo negro. Para tal, observaremos como a contação de história, infanto-juvenil negra,

pode apresentar novas narrativas e oportunizar uma sensação de conforto frente à

opressão dos padrões estéticos ideológicos - cor branca, cabelo liso, olhos claros, nariz e

lábios finos – além de apontar possíveis representatividades negras e memorizar

sensações de prazer com a negritude.

A memória pode ser entendida como a possibilidade do sujeito em registrar,

conservar e evocar acontecimentos vividos, assim as nossas lembranças são

armazenadas a partir de elaborações das experiências apreendidas. É interessante pensar

que a memória está diretamente ligada a experiências que já aconteceram, ou seja, está

relacionada com o passado. No entanto, algumas lembranças são acessadas quando

engatilhadas por alguma emoção; são os gatilhos atuais, aquilo que estamos vivendo,

que nos fazem lembrar o que se passou.

Nosso corpo também possui memórias. A memória corporal é uma lembrança

ligada ao corpo que pode ou não ser compreendida de maneira consciente ou

inconsciente. Podendo ser desagradável ou agradável, isto vai depender dos estímulos

experimentados e/ou resinificados durante a vida. Se pensarmos que as experiências de

prazer e desprazer constituem como etapa fundamental de nosso processo de

subjetividade e essas sensações são percebidas no âmbito físico, portanto o corpo, é

possível pensar que o corpo configura a construção de nossa subjetividade.

Sobre o corpo negro, Mbembe (2014), em Crítica da Razão Negra, toma

emprestado o conceito de biopolítica de Foucault questiona a escravização como um

regime disciplinar, de dominação, de controle e de vigilância de corpos negros. Ao

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mesmo tempo em que os corpos se mantinham produtivos também se mantinham

disciplinados e sob dominação, vigilância contínua e agressões físicas para que não se

rebelassem e para que mantivessem subjugados pelo sistema. É interessante pensar essa

relação persecutória registrada no corpo negro. Existe uma perseguição do negro com o

seu próprio corpo, na medida em que nada pode estar fora do lugar, cabelos tem que

estar presos sem que haja um frizz. Roupas alinhadas, com calçados que não sejam

chinelos, tudo isso para ir apenas à esquina.

Como pensar uma relação de prazer e de autoestima com o corpo negro, se nossa

memória é construída através de aspectos negativados que atravessaram a colonização,

escravização e pós-abolição?

As experiências negativas em relação ao corpo podem deixa marcas no aparelho

psíquico do sujeito, podendo levá-lo ao auto-ódio uma vez que o efeito do racismo vai

atacar de forma direta na auto percepção e no autoconceito, acarretando em uma

desvalorização da própria imagem, já que o preconceito racial agride o que dá a

consciência da identidade, ou seja, o corpo, ao fenótipo negro. Penso que a

singularidade de cada sujeito é definida por experiências vividas que vão moldando a

relação com seu corpo. O corpo negro não é diferente! Ele vai registrando

acontecimentos raciais vividos durante sua vida que, muitas vezes podem deixar marcas

profundas.

A memória não deve ser pensada apenas como um fenômeno individual, mas

também em sua dimensão social. Nesse sentido, também está intimamente relacionada

ao momento presente, ou seja, é no momento presente que as memórias do passados

são acessadas. Nesse processo, esses mesmos elementos são ressignificados, ou seja,

adquirem um novo sentido, à luz das novas situações, interesses e emoções. A esse

processo, denominamos de memória coletiva. Essa memória diz respeito a

conhecimentos e práticas culturais mantidas, acumuladas e produzidas por um grupo

social específico.

Halbwachs (2006) diferencia os tipos de memória, porém eu acredito que

memória coletiva e individual/corporal estão inseridas na memória histórica. Não

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consigo pensar em um grupo que não esteja situado em um contexto histórico, por

exemplo, não tem como pensar a memória coletiva do povo negro, que também é

situada em contextos históricos raciais. O sujeito negro passou por diversas

humilhações durante sua trajetória no período escravista e do pós-abolição e ainda teve

como “obrigatoriedade” a assimilação2 ao branco para poder sobreviver e ascender.

Muitas vezes essa postura o tenha levado a odiar e a desprezar sua constituição e tudo o

que estava relacionado ao negro.

O autor Wilson (1993) ressalta que a história do negro, não foi contada pelo

negro, e quando alguém ‘aceita’ que outra pessoa lhe diga e defina sua essência e

trajetória, permite ao outro o domínio e controle si. A auto narrativa orienta a forma que

cada ser humano se coloca no mundo. Há, então, uma relação íntima entre a história e a

personalidade. Não conhecer a própria história, ou conhecer uma versão distorcida dela,

é ter roubado de si um pilar da própria identificação. E se a única história conhecida é

narrada por um outro - outro este que tem seu discurso legitimado na sociedade, e

portanto parte da cultura - a personalidade passa a ser influenciada por essa narrativa.

Uma breve conceituação sobre memória

A memória é uma estatura que atravessa toda teoria psicanalítica principalmente

quando falamos de consciente e inconsciente. Para dialogar sobre as perspectivas de

memórias individuais o autor utilizado será Pollak, para nos ajudar a pensar sobre

memória corporal os autores serão Frantz Fanon, Neuza Santos, Jurandir Costa e

Mbembe. Para nos gerar reflexão a cerca da ideologia discursiva de raça e racismo,

usaremos os teóricos Clovis Moura e Mbembe. Sobre o conceito de memória coletiva e

memória histórica o autor proposto é Halbwachs. Os teóricos Amos Wilson e Wade W.

Nobles no ajudará a refletir sobre o perigo da história única e a importância de

rememorar nossa memória ancestral.

Entende-se por memória individual as lembranças armazenadas pelo sujeito a

partir de elaborações de acontecimentos vividos (Pollak, 1989). A memória individual,

2 Sobre esse conceito, ver HALL, Stuart. A identidade cultura na pós-modernidade. 10. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.

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(aqui eu englobo também a memória corporal, pois advém de experiências que

atravessam nosso corpo, como, por exemplo, o eixo deste trabalho, as experiências

raciais que são atribuídas ao o corpo negro) está relacionada com atividade do sistema

nervoso que permite ao sujeito registrar, conservar e evocar os dados aprendidos da

experiência.

O corpo e a mente interagem entre si; nossa mente integra diferentes

informações intelectuais e “mesmo em suas manifestações mais abstratas, não é

separada do corpo, mas sim nascida dele e moldada por ele” (CAPRA, 2002, p. 79).

Não obstante, o corpo é o lugar em que recolhe as histórias vividas, sendo elas

experiências emocionais e experiências físicas. “O corpo sente, aprende, se disciplina,

se condiciona e toda vez que isso acontece, as células do cérebro sofrem uma alteração e

essa alteração irá refletir em nosso comportamento” (VOLPI, 2004, p. 2).

Segundo os conceitos psicanalíticos, as experiências corporais também são

fundamentais para o processo de subjetivação. Costa (1983) destaca que existe um traço

de violência racista e este seria a relação persecutória criada entre o sujeito negro e o

seu próprio corpo. A construção da identificação dos sujeitos está intimamente ligada à

relação que este cria com seu próprio corpo. Para que o sujeito consiga criar uma

relação harmoniosa com sua estrutura psíquica é fundamental que o corpo seja pensado

e vivido como um lugar de fonte de vida e de prazer.

A experiência corporal do negro é vivida sobre desconforto, opressão e

vigilância reinando no corpo “uma atmosfera densa de incertezas” (FANON, 2008.

p.104). O corpo negro é atacado de varias maneiras isso interfere na sensação de prazer

com ralação ao próprio corpo. O esquema corporal relacionado ao gozo cede lugar ao

“esquema epidérmico racial” (FANON, 2008, p.105). O ataque ao corpo negro é

composto por situações que provocam uma baixa autoestima e o leva à produção de

uma auto imagem corporal negativa e irreal.

As narrativas sobre o quanto corpo negro é sentido e memorizado como algo que

está o tempo todo sendo perseguido, sendo olhado e, por isso, necessariamente vigilante

e tenso, apareceram em diversos momentos. Este aspecto me chamou atenção e me

levou a pensar o conceito Foucaultiano de panopticon, algo que permite

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a vigilância e controle social de alguns corpos de forma mais eficientes. Parece que

internalizamos o medo de ser constantemente vigiados pelo colonizador. Os corpos

negros sentem que estão o tempo todo sendo vigiados, como se ainda de alguma forma

restassem resquícios do olhar e perseguição da colonização. Isso retrata o quanto o

racismo pode aprisionar o sujeito ainda que não tenha grilhões. O racismo é algo tão

estruturante e estrutural que condiciona o sujeito negro a uma realidade de não

liberdade. De não cidadania.

O racismo, antes de tudo, consiste em esconder a humanidade do rosto do negro

com um véu de fantasias sobre suas histórias, inferindo-lhes signos rígidos e

depreciativos sobre seus corpos. A história do sujeito negro é então percebida como

algo que sequer existe, assim como o próprio sujeito negro. Quando “para o racista, vê

um negro é não ver que ele não está lá; que ele não existe; que ele mais não é que o

ponto de fixação patológico de uma ausência de relação” (MBEMBE, 2014, p.66). Raça

é, então, uma ideologia discursiva que nomeia o Outro, que propicia a dominação e a

manutenção dos privilégios e do poder de um grupo em detrimento de outro.

Em resumo, a memória não é apenas coletiva, nem unicamente individual, elas

se estruturam e se entrelaçam no processo de constituição das recordações. Vale

ressaltar que essas memórias se relacionam e, muitas vezes, não se separam. Por

exemplo, muitas experiências racistas que o negro passa individualmente, também

podem ser vivenciadas por outros sujeitos negros. Por exemplo, em um dia no

consultório, uma jovem mulher negra, chorava e falava o quanto doía nela ver varias

pessoas negras habitando os mesmos espaços periféricos.

Para Maurice Halbwachs (2006) traz também o conceito de memória histórica.

Esta compreende que viemos ao mundo em um contexto em movimento que episódios

históricos importantes já aconteceram antes de nosso nascimento. Nós não podemos nos

recordar deles, pois não os vivenciamos. No entanto, tomamos conhecimento através de

conversa com os mais velhos, através de ensinamentos na escola e através dos livros.

Esses fatos, eventos históricos seriam parte do que Halbwachs denominou de “memória

da nação”. Quando evocadas essas memórias, torna-se necessário dirigir-se à memória

de outro, fonte exclusiva para poder acessá-las. Sendo assim, resgatar a memória da

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nossa história, de nossa ancestralidade é importante para ressignificar nosso processo de

identificação a partir da elaboração de uma memória coletiva para a individual.

Memória e Ancestralidade

O psicólogo Amos Wilson (1993) elabora sobre a importância de conhecermos a

nossa história ancestral, a história do negro, contada por nós mesmo. Pois quando o

passado é esquecido há consequências para o entendimento do presente e uma

consequente dificuldade de projeções para o futuro. Para Wilson (1993) e para Mbembe

(2014), a forma como o negro é visto, é em efabulações e mitos do discurso europeu. A

mitologia europeia (alucinação europeia) só pode ser usada contra essas pessoas, os

negros, em um cenário onde não haja conhecimento ou contato com a história e a

realidade africana. Assim, o discurso do grupo dominante é naturalmente validado,

tornando-se verdade naquela sociedade - e ao dominado é negado o direito de falar por

si. As histórias representacionais negativas do negro construídas no processo histórico,

ou seja, a memória coletiva, está enraizada no imaginário social, tanto do branco como

do negro. Tal estratégia pode levar o negro a esquecer suas histórias de lutas e

emancipações.

A estratégia de esquecimento da história do negro não é recente. É interessante

pensar que desde o primeiro momento, o processo de escravização se incumbe de

apagar a memória da vida e cultura do escravizado. Durante o comércio de escravizados

havia um tipo de ritual no litoral de Benin (lugar conhecido como Costa dos Escravos)

que se chamava “Árvore do esquecimento”. A prática costumeira consistia em fazer

com que os escravizados dessem voltas em torno da árvore para que morresse cada

memória desde sua infância. Aos homens cabia dar nove voltas e as mulheres sete. O

objetivo era que durante o trajeto para a América os escravizados esquecessem de coisas

que faziam parte de sua constituição e história tais como suas famílias, suas origens,

suas terras, seus nomes, suas crenças e sua identidade. Esses sujeitos eram despidos de

seus trajes, eram postos nus ou com farrapos em navios negreiros sem qualquer

dignidade. Não havia nada nos navios, nenhum objeto ou com algum item que os

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fizessem recordar de suas famílias, status tribais, religião, língua ou qualquer tipo de

relação com seu passado tão próximo.

O intuito da escravização era destituir o negro de qualquer traço de

humanização, pois, dessa forma, o branco, colonizador, poderia lidar melhor com a

culpa das atrocidades cometidas. Mbembe (2018), exemplifica a forma que o negro era

visto:

O escravo negro [...] é o símbolo de uma humanidade castrada e

atrofiada [...] Se deparar com o escravo é experimentar um vazio tão especular quanto trágico. O que o caracteriza é a impossibilidade de

encontrar um caminho que não o leve constantemente de volta ao

ponto de partida que é a escravidão. É o gosto do escravo pela

submissão (Mbembe, 2018, p. 150).

Não bastava arrancar o negro de suas terras, também queriam tira-lhes sua

subjetividade. Matar os guerreiros, reis, mulheres, homens e crianças que existiam

dentro de cada negro, tentaram minar qualquer impossibilidade de autoconfiança, de

existência, autenticidade e de luta. No entanto, apesar dos esforços, estamos resistimos.

Não conseguiram nos extinguir. Aqui estamos, seguimos reinventando, ainda possuímos

elementos que usamos para construção da memória e também para a construção de

nossa identificação, como as tranças, a capoeira, os tecidos, as religiões de matrizes

africanas e alguns objetos.

A sobrevivência dessas memórias, não hegemônicas, é o que Michael Pollak

(1989), vai nomear de memória subterrânea. Esta é a possibilidade da sobrevivência

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das memórias históricas de grupos excluídos e marginais, no caso dessa pesquisa, o

grupo é o povo negro. Ainda que esses grupos sofram com a violência e a tentativa de

silenciamento, eles não deixam de produzir suas memórias. Ao privilegiar a análise das

falas, das experiências e memórias dos sujeitos negros, percebe-se a importância de

memórias subterrâneas se opõem à "memória oficial", como por exemplo, a ideia de que

o Brasil é um paraíso cujo todas as raças conviveram e convivem em harmonia. Quando

as memórias subterrâneas conseguem adentrar nos espaços públicos, diversas

reivindicações se acoplam na disputa da memória, neste exemplo, as reivindicações das

diferentes experiências e acontecimentos relacionado a escravização. Muitas vezes essas

memórias não oficiais resistem e sobrevivem a partir de meios informais, como as

narrativas orais passadas de família em família ou de pequenos grupos para pequenos

grupos. Apesar de todo esse contexto de luta, o negro vai se reinventando, fortalecendo

suas memórias e criando outras assim que é tirado de sua terra. Acredito que nossa

memória pode ser reconstruída e positivada a partir de resgates das nossas

ancestralidade e de novas experiências ressiginicadas e de prazer com o corpo negros.

Toda negatividade construída em cima de referências do negro pode

perfeitamente passar por um processo de desconstrução e corrigir essa identificação

negativa. Quando reconstruímos a forma de contar a história do povo negro é

estabelecida a finalidade de valorizar o passado do mesmo e, assim, podemos dar

sentido às nossas narrativas no presente, apresentando uma história mais completa,

com glórias e derrotas como a de qualquer outro povo, mas sem a doçura e submissão

tatuada no nosso imaginário, mostrando que se trata (va) de um povo resistente e

guerreiro. Resgatar a memória do negro, antes do processo de escravidão, proporciona a

possibilidade de ralações mais prazerosas com o corpo e a sua história.

Um recurso que costumo usar é o da contação de história infanto- juvenil negra.

Pois elas trazem memórias de nossa história (História do zumbi, dos quilombos e

outros) e também possibilitam que novas experiências sejam aprendidas logo, que novas

memórias criadas. A reconstrução do “ser negro” atravessa a estruturação política e a

sua identidade sociocultural, através de um processo de conscientização e valorização

da negritude. As histórias contadas podem fomentar o conhecimento a respeito de

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outros povos e culturas, mas especificamente a cultura africana. É importante ressaltar

que essa prática também garante, ainda que de forma mínima, a aplicação da Lei

10639/03 que estabelece diretrizes e bases para a educação nacional e a relevância do

ensino da cultura negra direcionado às escolas. É a possibilidade de ter como agentes

representativos que auxiliam na construção de identificações a partir de espelhos

coerentes com o corpo negro. A proposta dos encontros é contar histórias que

potencialize a construção ideológica das crianças, a partir da desconstrução dos padrões

hegemônicos, da percepção das tensões sociais e do acolhimento a partir das narrativas,

sobretudo as presentes na literatura infanto-juvenil negra. Esta perspectiva me remete à

ideia que Nobles (2009) denominou como pulsão palmarina. Para o autor esta pulsão

consiste no desejo do sujeito negro poder experienciar a liberdade. E essa liberdade

nada mais é que um retorno à identificação africana ou à conscientização sobre quem

você é no mundo. É um resgate da potencialidade de ser negro anterior ao período

colonial, uma vez que é difícil construir uma identificação positiva do negro com as

referencias que nos foram contadas, são as de negros escravizados.

Considerações Finais

O racismo serviu como instrumento de segregação, opressão e dominação, que

legitimou (e ainda legitima) os privilégios de alguns em detrimento dos direitos de

outros, os privilégios das elites em detrimento dos subalternos. É importante ressaltar

que as práticas racistas servem as relações de poder que são estabelecidas entre grupos,

que limitam as oportunidades de vida para o outro. Esses discursos racistas servem para

legitimar relações de dominação, naturalizando desigualdades de todos os tipos e

legitimando crueldades e genocídios àquele que não é reconhecido como humano, o

negro. O corpo negro vigilante e perseguido não se dá apenas pela via da sensação, mas

trasborda para o real. Muitos jovens negros são assassinados com a desculpa de terem

sido confundidos com bandidos. Com isso, podemos observar que as experiências

raciais podem ser gravadas na memória corporal, coletiva e histórica do sujeito negro e

isso pode moldar sua identificação, para si próprio ou para o outro. O sujeito negro, por

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vezes, acaba introjetando esse olhar que o outro lhe confere, um lugar em sua maioria

de inferioridade, vergonha e baixa autoestima.

Todas essas experiências, que até hoje acontecem, ficam guardadas na memória.

Infelizmente, várias pessoas negras experimentam situações como estas, então, podemos

pensar em uma memória coletiva, uma memória histórica em que as vivências são

partilhadas.

Não há como pensar as memórias sem pensar que elas estão situadas em

contextos históricos. Por exemplo, antes de nascer, o sujeito negro já havia vivenciado

várias humilhações durante sua vida. Nascemos em um contexto em que já existem

verdades sobre nós e que adsorvemos. Muitas dessas memórias históricas podem levar o

negro a depreciar a sua constituição e tudo aquilo que se relaciona com o negro.

Certa vez, ouvi um psicólogo afirmar que não tem como eu atender, na clínica,

um sujeito sem conhecer a sua história, pois não faz sentido um psicóloga atender um

paciente sem entender que de alguma forma o seu contexto histórico engendrou a sua

constituição como indivíduo. No caso do negro, o racismo, comum em nossa sociedade,

molda sua identificação e por isso é necessário entender como lhe foi imputado ao longo

de sua vida. O esclarecimento é de que há um desprezo histórico dos soberbos pelos

subordinados, algo que ainda que silencioso pode deixar marcas psíquicas profundas.

É impossível falar de relações de poder sem mencionar a história hegemônica

contada sobre o negro. Ao longo de minha trajetória estudantil, ouvia sobre como o

negro chegou ao Brasil e não que ele havia sido sequestrado. Ouvi narrativas sobre a

submissão, sobre uma religião animalizada e demoníaca, sobre uma cultura que era

atrasada, sobre uma passividade e fraqueza que provocava em mim o crescimento de um

sentimento de vergonha por ser descendente desse povo. Isso também podemos

observar nas narrativas das crianças, presentes no texto. Viu-se o quanto essa vergonha

relacionada ao próprio corpo estava presente no cotidiano delas. Como sugerida na fala

que mais me chamou atenção em que a adolescente diz odiar seus cabelos e que havia

nascido branca.

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Eu ouvia algumas pessoas, amigos, me contando o que eles haviam aprendido

na escola, que a culpa pela escravização era do próprio negro que capturava o outro. Era

desconsertante ouvir isso. Eu ainda não sabia que as lógicas se diferenciavam e que era

comum na África haver guerras entre tribos e quem perdia se tornava escravo do outro,

mas, neste exemplo, a lógica não é do capitalismo, tal como o processo escravocrata que

conhecemos. Está ai o perigo de uma única história, de uma história hegemônica.

Quando a única história conhecida é narrada por Outro, a forma como nos identificamos

e nos reconhecemos passa a ser influenciada por essa narrativa. É esse Outro que detém

o conhecimento, que vai dizer quem o subjugado é e qual o seu lugar na sociedade,

assim, esse sujeito poderá ser dominado mais facilmente.

Assim, percebemos que quem detém o conhecimento, detém o poder e quem

detém o poder domina o outro, seu corpo, sua mente, sua vida e sua morte. O poder é

ideológico, é fruto de um regime de produção de verdade; porém, o poder também é

discurso de verdade de um campo específico, que a legitima e a valida como saber-

poder que precisa ser absorvido. Assim, essa realidade a respeito do negro que se mostra

não é uma verdade, mas uma elaboração de discursos que são legitimados e

legitimadores. É uma autenticação da condição do controle e da dominação econômica,

corporal, religiosa, emocional, e política. Isto demonstra o quanto o corpo por

excelência está em um lugar de incidência da biopolítica. É essa gestão da vida sobre os

corpos e, sobretudo, do corpo negro, que tenta modificá-lo, transformá-lo produzindo

conhecimentos, saber sobre ele para então poder melhor manejá-lo.

Resgatar a memória do negro, antes do processo de escravidão, proporciona a

possibilidade de ralações mais prazerosas com o corpo e a sua história. São esses

resgates de histórias e conhecimento do próprio passado que podem dar sentido às lutas

e (re) existências do momento presente.

Referências Bibliográficas:

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