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Memória e imagem na construção da historia dos artesãos ceramistas de Icoaraci/Belém/PA. * TELMA SARAIVA DOS SANTOS Neste trabalho utilizo parte de material de pesquisa desenvolvida durante o período em que fui bolsista da FUNART (2009/10), sob o prêmio Bolsa FUNARTE de Produção crítica sobre as interfaces dos conteúdos artísticos e culturas populares, com o trabalho de título Moldando Identidades Através da Argila e também parte da pesquisa de minha dissertação de Mestrado intitulada: As Voltas do Tempo: As reminiscências de um projeto de identidade nacional na cerâmica “marajoara” de Icoaraci. Defendida em maio de 2011- ICA/UFPA. Neste artigo analisamos o contexto histórico-cultural em que surgiram as primeiras manifestações artesãs ceramistas em Icoaraci, e como alguns artesãos, tiveram interesses e aptidões diversas para reelaborar imageticamente seus produtos. Contribuindo para que os objetos cerâmicos de Icoaraci distrito de Belém, capital do Estado do Pará (Região Norte) se transformassem em fortes vetores simbólicos e tradicionais da região, sobretudo nas décadas de 1970/1980, período em que os artesãos receberam apoio de instituições governamentais estadual, dessa forma, contribuíram para reforçar uma identidade paraense inspirada em arquétipos indígenas, sendo a principal divulgadora dessa identidade, a cerâmica artesanal Icoaraciense influenciada pela cultura material indígena da Ilha do Marajó. Entretanto o mérito desse simbolismo identitário indígena paraense não se deu apenas pela existência da cerâmica arqueológica marajoara e da produção artesanal “marajoara” icoaraciense, em verdade a influência de uma grande variedade de agentes e fatores sociais, culturais, políticos, econômicos, visuais e literários, tiveram alcance sobre esse tipo de produção e utilização simbólica de tal maneira que, é possível perceber que os modos como os homens se organizam em sociedade e se apropriam de objetos que tem algum valor material, econômico ideológico e sentimental, permitem que se * Doutoranda pela Universidade da Málaga/ES.

Memória e imagem na construção da historia dos artesãos ceramistas de … · 2015-09-03 · artigos utilitários como alguidares, potes, pratos, bilhas, fogões de barro e etc

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Memória e imagem na construção da historia dos artesãos ceramistas de Icoaraci/Belém/PA.

∗TELMA SARAIVA DOS SANTOS

Neste trabalho utilizo parte de material de pesquisa desenvolvida

durante o período em que fui bolsista da FUNART (2009/10), sob o prêmio

Bolsa FUNARTE de Produção crítica sobre as interfaces dos conteúdos artísticos e

culturas populares, com o trabalho de título Moldando Identidades Através da

Argila e também parte da pesquisa de minha dissertação de Mestrado

intitulada: As Voltas do Tempo: As reminiscências de um projeto de

identidade nacional na cerâmica “marajoara” de Icoaraci. Defendida em

maio de 2011- ICA/UFPA.

Neste artigo analisamos o contexto histórico-cultural em que surgiram

as primeiras manifestações artesãs ceramistas em Icoaraci, e como alguns

artesãos, tiveram interesses e aptidões diversas para reelaborar

imageticamente seus produtos. Contribuindo para que os objetos cerâmicos de

Icoaraci distrito de Belém, capital do Estado do Pará (Região Norte) se

transformassem em fortes vetores simbólicos e tradicionais da região,

sobretudo nas décadas de 1970/1980, período em que os artesãos receberam

apoio de instituições governamentais estadual, dessa forma, contribuíram para

reforçar uma identidade paraense inspirada em arquétipos indígenas, sendo a

principal divulgadora dessa identidade, a cerâmica artesanal Icoaraciense

influenciada pela cultura material indígena da Ilha do Marajó.

Entretanto o mérito desse simbolismo identitário indígena paraense

não se deu apenas pela existência da cerâmica arqueológica marajoara e da

produção artesanal “marajoara” icoaraciense, em verdade a influência de uma

grande variedade de agentes e fatores sociais, culturais, políticos, econômicos,

visuais e literários, tiveram alcance sobre esse tipo de produção e utilização

simbólica de tal maneira que, é possível perceber que os modos como os

homens se organizam em sociedade e se apropriam de objetos que tem algum

valor material, econômico ideológico e sentimental, permitem que se

∗ Doutoranda pela Universidade da Málaga/ES.

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estabeleçam nestes mesmos elementos, atributos tradicionalistas-culturais e

identitários. Assim, os artefatos materiais culturais que adquirem algum

simbolismo em determinadas sociedades, podem ser vistos como um

fenômeno através do qual se aglutinam caracteres diversificados que servem

para identificar uma determinada comunidade, região e até mesmo um país.

Por tanto para entender, como surgiu esse artesanato cerâmico é

necessário compreender e reconhecer primeiramente os motivos que levaram

as mudanças e depois como se deu o “encontro” entre o artesanato

arqueológico indígena e o labor ceramista icoaraciense, e as manifestações de

reelaboração dessa matéria nas mãos dos artesãos. Para isso utilizamos de

metodologias que nos permitiram compreender esses cruzamentos a partir de

uma visão que pudesse englobar os anseios sociais, artísticos, políticos e

culturais neles envolvidos.

Para execução e concretização do trabalho, os principais recursos

metodológicos de pesquisa utilizados foram análise de material bibliográfico e

fontes hemerográfica e orais. A analise bibliográfica nos permitiu por um lado

nos dá o suporte teórico necessário a construção do artigo, a coleta

hemerográfica nos forneceu uma excelente base de dados e conhecimentos

enquanto as fontes orais, além de resolverem a carência de fontes

documentais, serviram de testemunho da experiência de vida dos

entrevistados, servindo de documento direto para análise e compreensão do

objeto de estudo, por isso registrar a memória, transcrevendo parte das falas

desses atores sociais, além das imagens que nos foram gentilmente

concedidas, tornou-se imprescindível para este trabalho. Utilizamos

recorrentemente a fala de um determinado artesão por ser um dos pioneiros na

nova/velha fase dessa tradição ceramista Icoaraciense (Deoclecio dos Santos é

filho e neto de ceramistas de Icoaraci) e por ser o único que nos mostrou

imagens de trabalhos próprios anteriores as datas especificadas pelos artesãos

em falas repetidas como decoradas, sobre o surgimento da cerâmica artesanal

adornada.

Durante as pesquisas localizamos variados discursos, orientados a

reforçar uma identidade dos brasileiros e especialmente do paraense

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embasado no arquétipo indígena, sobretudo na literatura, pintura e arquitetura,

contudo não aprofundaremos aqui sobre esta interessante questão, porém

convém fazer um pequeno aporte sobre o assunto para esclarecer a ênfase

dado a produção ceramista de Icoaraci apresentada como “marajoara”.

Na história do Brasil encontramos diferentes momentos sobre uma

busca pela identidade nacional, iniciando-se ainda no momento Imperial e

depois a encontramos durante o Estado Novo e também, no período da

Ditadura Militar chegando até os nossos dias. Durante o império pudemos

analisar através da história da criação do Instituto Histórico e Geográfico

Brasileiro e da Academia de Belas Artes como esses instrumentos foram

utilizados por artistas e intelectuais à época para afirmar um discurso que se

estava construindo através da imagem do indígena. Não se tratava de um

aporte sobre as condições em que viviam os indígenas antes ou após da

chegada dos europeus, e sim da maneira de como poderia ser empregado o

conceito do “ser” índio e posteriormente a utilização de sua imagem, que foi

amplamente empregada pela literatura, pintura e nas décadas posteriores nas

artes plásticas do final do século XIX até o XX, além da arquitetura. Esta

última se utilizou dos motivos geométricos marajoaras para elaborar seus

trabalhos, como o estilo Marajoara Déco, utilizado nas décadas de 20 e 30 por

alguns artquitetos. Dando desta forma ênfase a uma construção ideológica à

constituição de uma identidade nacional embasada no arquétipo indigena.

Já na década de 1960, vamos encontrar ecos dessas práticas sendo

reproduzidas por artesãos ceramistas de Icoaraci ao introduzir na sua

produção elementos da cerâmica arqueológica marajoara, porém isso não faz

parte de um projeto pensado e elaborado para acontecer de forma metódica,

claro que existe sempre elementos do acaso envolvidos na história, e neste

caso específico do qual tratamos, a experiência dos artesãos icoaracienses não

seria um caso a parte.

Icoaraci nos anos 1980, foi considerado um dos maiores centros de

produção ceramista do Brasil. O polo ceramista está localizado no bairro da

Ponta Grossa, mas conhecido como comunidade do Paracuri, onde se

encontram, em suas inúmeras olarias, 90% dos ceramistas de Icoaraci, embora

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atualmente seja um número reduzido se comparado aos anos do boom de

vendas que se deram nos anos de 1980. A opção deles por essa área veio de

uma antiga tradição em se trabalhar com esse tipo de matéria prima e pela

facilidade que se tinha em encontrar jazidas de argila às margens dos rios

Paracuri e Livramento. A origem desta tradição remonta ao século XIX

quando Icoaraci era uma fazenda controlada pela Ordem dos Padres

Carmelitas Calçados que possuíam uma olaria às margens do Igarapé

Paracuri, produzindo tijolos e outros utensílios semelhantes para construção

de casas, que eram levados a Belém por via fluvial.

Por tanto os artesãos já tinham familiaridade com os modos de fazer

objetos cerâmicos. Além disso, ainda hoje funciona no Paracuri a cento e sete

anos uma olaria fundada pelo Maiorquino João Croelhas, conhecido como

João espanhol, administrada hoje por seu neto Ciro Croelhas produtor de

artigos utilitários como alguidares, potes, pratos, bilhas, fogões de barro e etc.

Como fazia seu avô.

Constatamos assim que as primeiras mudanças visíveis no modo de

fazer cerâmica em Icoaraci não se iniciaram exatamente no ano de 1960,

como em geral é a data apontada como o momento de mudança, além de dar a

falsa noção de que as coisas acontecem num momento específico como se

fosse “mágica”, não levando-se em consideração todos os outros

acontecimentos que envolveram ou levaram a tais mudanças, portanto não

vamos nos ater neste artigo a reproduzir ideias de senso comum sobre uma

data fixa, sem maiores explicações, sobre o início das transformações que

ocorreram na produção ceramista, desde o momento em que se deixa de

produzir apenas cerâmica utilitária, o que se dá bem antes da influencia da

cerâmica arqueológica marajoara.

Estas modificações foram geradas por alguns acontecimentos, como

por exemplo, pela chegada ao mercado local de produtos plásticos e de

alumínio que ajudou a transformar a ordem na qual a cerâmica utilitária

estava inserida anteriormente e que se dá por volta dos anos de 1950 a 1960.

Além de constatarmos através de pesquisas e entrevistas, que alguns artesãos,

mais jovens a época (durante os anos de 1940-1950), passaram a fazer

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experiências que envolviam experimentar novas formas e pinturas em objetos

feitos em argila. Este foi o cenário em que se encontrava a produção ceramista

de Icoaraci a final dos anos de 1950, alguns anos antes do momento em que

os artesãos se confrontariam com a cerâmica arqueologia marajoara. Esses

artesãos, demonstrando o domínio da técnica e muita criatividade, tiveram as

condições especificas ou necessárias que os levaram a modificar ao longo dos

anos suas produções. Primeiro deixando de produzir apenas utilitários e

depois passando a decorar com grafismos da cultura material arqueológica

marajoara boa parte da sua produção, além de criações próprias e também

inspiradas na marajoara.

Ressaltamos que as mudanças que ocorreram também aconteceram

porque já existia em alguns artesãos certa predisposição artística e

sensibilidade suficiente para lidar com a matéria prima a qual eles tinham

acesso. Esses elementos parecem condizentes com uma realidade possível de

ser observada, através da real habilidade técnica e criativa desses artesãos.

O ceramista Declécio dos Santos1, mostrou-nos durante a entrevista, o

retrato que havia desenhado a lápis de sua filha quando ela tinha cinco anos e

também outros desenhos e pinturas realizados durante as décadas de 1950 a

1980, além de estudos sobre peças cerâmicas, como poderemos ver nas

imagens que foram fotografadas e nos foram gentilmente cedidas apenas para

uso na pesquisa, além disso mantivemos grande parte de sua fala neste

trabalho por considerar de grande importância para o mesmo.

1 Deoclécio dos Santos tem 77 anos e vem de uma tradicional família de ceramistas em

Icoaraci, porém não trabalha com argila há 15anos, atualmente produz artesanato em sarrapilha. Demos certa ênfase a ele por ter sido o único entrevistado que nos mostrou uma produção artística anterior a sua escolha de tornar o trabalho artesanal sua profissão. Ele foi um dos principais artesão a contribuir na mudança artística do artesanato e junto a outros artesão foi fundador e segundo presidente da Cooperativa dos Artesãos de Icoaraci- COARTI -na década de 1970. Entrevista gravada em Iocaraci-PA em 20/06/10 em seu atelier.

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Figura 1 Deoclecio dos Santos, retrato da filha, desenho a lápis, 1974. Fonte: Arquivo de Deoclecio dos Santos

Desenho feito a lápis de sua filha em 1974. Neste desenho podemos

notar a habilidade como desenhista do artesão.

A idéia que talvez possamos fazer de alguns artesãos envolvidos e

auto-estimulados com as sensações de desenvolver trabalhos além de simples

peças cerâmicas parece-nos bastante evidente nos trabalhos do ceramista

Deoclécio dos Santos e de alguns outros artesãos, que vamos chamar de

artista–artesão, que deixam de apenas produzir e reproduzir peças idênticas as

marajoaras, passando a experimentar toda a capacidade plástica da argila,

criando objetos que nada tem a ver com os objetos de produção cotidiana.

Figura 2 Deoclecio dos Santos. Fonte: Arquivo da autora

Nesta foto o ceramista Deoclecio nos mostra um desenho feito em

1954 como ele nos contou:

Esse foi o primeiro que eu desenhei, isso em 1954, em (19)54 não se

falava de cerâmica marajoara...de cerâmica decorada e eu fiz essa peça decorada, mas é com baixo relevo... dá do sentido da marajoara, essa peça eu desenhei ela com palito de fósforo. Meu pai que era ceramista, ele pegou levou pra mim, nessa época eu tinha um problema de doença. E ele levou pra

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mim em casa e eu desenhei todinha e ele levou, e aí eu pintei com vermelho, o azul e o verde e mais o branco no baixo relevo. Então foi duas peças dessas que eu fiz [...]. O Paracuri ainda fazia, vaso, fazia...é...filtro...fazia essas coisas aí.2

Figura 3 Imagem ampliada do vaso criado pelo. artesão Deoclecio em 1954.

Fonte: Arquivo de Deoclecio dos Santos

Deoclecio durante a entrevista ainda nos contou que :

Em 1960 -61, não se falavam em cerâmica marajoara aqui no Paracuri[...] Essa cerâmica o Padre Angelo lá na prelazia do Marajó em Ponta de Pedras, [...] ele começou as escavações, porque ele chegou lá ele viu aquelas peças que os marajoaras usavam por lá e não davam nem um valor. Quando ele olhou que viu foi procurar onde e que tava tinha aqueles montes enormes, aí começaram a mostrar nas fazendas, daí começou a fazer escavações e encontra cerâmica marajoara, muita mesmo. Tinha muitas peças marajoaras, daí começou a escavar. Muitas dessas peças vieram para o museu outras foram para Itália. Até ai o Paracuri não conhecia essas peças. [...] eu comprava jornal sempre gostei de lê jornal, toda época, eu pegava os jornais e via né, aí comecei a fazer umas peças, uma das primeiras peças que fiz não foi marajoara, foram as peças etruscas , isso era em torno de 1963. Então essas peças ficavam na casa do papai[...] Aí em 1964 mais ou menos o Cabeludo3 comprou essas peças do papai e a partir dessa peças ele se inspirou para fazer outras peças ele mesmo, nessa época apareceu por lá um jornalista, segundo relatos do Cabeludo para mim, esse jornalista levou um livro para ele depois que viu ele fazendo aquelas peças coisa e tal. [...] A partir desse livro o Cabeludo começou a fazer não ela em baixo relevo, ele pintava as peças, a partir daí começou a cerâmica “marajoara” a se desenvolver, a cerâmica que até então era vaso, pote era essas coisas no Paracuri.

Essa fala do Sr. Deoclecio sobre as peças etruscas, que foram vendidas

a Cabeludo é refutada pela fala do ceramista Rosemiro Pinheiro4, que também

aponta a mesma época 1964, como o ano em que Cabeludo inicia sua inserção

numa produção nova de cerâmica como podemos ler a seguir.

2 Todas as falas transcritas estão ipsis verbis 3 Antônio Vieira conhecido como mestre Cabeludo, é considerado um dos precursores da confecção das cópias da cerâmica marajoara em Icoaraci. Faleceu em 2001. 4 Rosemiro Pinheiro é um dos antigos ceramistas de Icoaraci hoje com 76 anos. Entrevista realizada em 2002.

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[...] ele achou que ele entrando prá trabalhar com a cerâmica, que ele seria apenas um concorrente a mais. Então o que ele fez. Ele procurou entrar no ramo de cerâmica, mas, então, com uma cerâmica diferente das outras cerâmicas [...]. Então o que ele fez, ele tinha um livro, que esse livro, inclusive no Liceu5 nós temos um livro bem parecido com esse, que era um livro que falava da cerâmica do Oriente médio, da cerâmica da Idade Média [...]. Então, o que ele fazia? Ele pegava aquele livro e tirava o que ele queria, e pedia prá mim fazer a peça. E eu fazia a peça, e ele fazia os detalhes [...]. Com isso aí, ele abriu espaço no mercado, o mercado dele era a casa Uirapuru que existe até hoje ainda e a casa Amazônia que também existe até hoje [...]. Em 1964 o Cabeludo leu um livro, e esse livro, ele sempre me dizia que era e é realmente, e eu fui no Museu prá pesquisar esse livro, Nas

Planícies da Amazônia, é um livro que o autor é Raimundo de Moraes [...]. Nesse livro, ele viu que tinha alguma coisa diferente daquilo que ele fazia aqui mesmo, na nossa própria região. Enquanto ele fazia uma cerâmica do Oriente Médio, ele não conhecia a cerâmica regional, a nossa cerâmica, quando ele conheceu a cerâmica regional, ele disse algumas palavras significativas, ele disse prá mim um dia assim: ‘Rosemiro eu descobri que na nossa região nós temos uma cerâmica mais bonita do que essa que eu faço.

Todas as mudanças que ocorreram na cerâmica de Icoaraci tiveram

diversas influencias, contudo a maior delas apontadas por muitos artesão, foi a

que teve como consequência um movimento iniciado pela força do

entusiasmo pela cerâmica arqueológica marajoara. A qual teve várias formas

de ser explorada esteticamente.

Dona Inês Cardoso6 nos contou como seu marido conhecido como

Mestre Cardoso7 iniciou seus trabalhos produzindo réplicas da cerâmica

arqueológica marajoara, quando ainda era pastor, mas já se aventurava na

confecção de cerâmica artesanal:

[...] eu tinha um primo na época por parte de meu pai que trabalhava no museu e que gostava muito de mim, toda semana ele estava em casa, ai um dia o Raimundo fez duas peças, aí ele disse [ o primo ]. Há Cardoso, eu vou te levar lá no museu pro Dr. Galvão e Simões, ai ele foi lá, ele fez uma peça e o Dr. Galvão gostou demais, na época ele era o presidente...diretor da arqueologia, e até aí a arqueologia era fechada pará todo mundo, ninguém entrava no museu, entrava só pra visitar, na parte da arqueologia só os pesquisadores aí ele abriu as portas para o Raimundo que começou a fazer as réplicas.

5 Refere-se aqui a escola Municipal de ensino fundamental, o Liceu de Artes e Ofícios “Mestre Raimundo Cardoso”, localizado no bairro da Ponta Grossa, área mais conhecida popularmente como Paracuri. 6 Umas das mais tradicionais ceramistas de Icoaraci, proveniente de uma familia de ceramsiata, aprendeua a fazer ceramica quando ainda era criança. Hoje consta com aproximadamente 68 anos. 7 O Mestre Raimundo Cardos faleceu em 2006 e é considerado um dos importantes ceramista de Icoaraci por ter introduzido a confecção de réplicas identicas as originais no artesanto de Icoaraci.

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Figura 4 Dona Inês Cardoso em seu atelier. Fonte: Arquivo da autora

A partir desse momento em que Cardoso adentra o museu Goeldi um

novo momento para a cerâmica artesanal é criado ganhando mais destaque a

cerâmica de Icoaraci. Contudo a cerâmica mais simplificada de traços bem

definidos e inconfundíveis, com até mesmo um pouco de improvisação

comum ao artesão ainda persistia com muita força, como podemos ler na fala

do ceramista Deoclecio:

Eu já fugia um pouco da cerâmica marajoara, eu colocava o indígena nas minhas peças, tinha as lendas. Eu fui justamente o que começou a criar essas coisas na cerâmica, porque até então não criavam, não era bem a cerâmica marajoara, era uma cerâmica que eu comecei a denominar de cerâmica de Icoaraci, que era uma cerâmica em circulo, foi feita durante muito tempo essa cerâmica, né, depois veio as peças engobadas8, já iam no museu, já buscavam as coisas no museu[...], essa já é a década de 1980/1990, né. Eu colocava tacacazeira, já comecei a mesclar com a cultura popular, colocando amassadeira de açaí, boi bumba, eu também coloquei a dança do carimbó nas minhas peças, era só eu que fazia. Tanto que na Paratur, que era quem comprava nossas peças, as minhas era as mais diferenciadas, porque eu comecei também a pintar o preto o vermelho e o branco nas minhas peças,era a cerâmica “marajoara”, era pintura a óleo. Comprei tinta, a tinta a óleo e comecei a pintar e o pessoal gostou, compravam porque parecia muito com a porcelana aquele brilho.

Figura 5 imagem de vaso com desenhos geométricos. Sem autoria Fonte: Jornal O Liberal, “Peças raras de artesanato no

8 Peças que eram cobertas ainda em ponto de couro, por argila quase luquida de outras cores.

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Museu Goeldi”, s/c, p. 6. Belém: 1987

É a esse tipo de cerâmica de desenhos geométricos a que o ceramista

Deoclecio se refere, e que foi produzida durante muito tempo pelos artesãos e

a qual eles se referiam como “cerâmica marajoara”, mas que no entanto não

possuia traços da mesma e nem o formato, porém aquela ceramica ajudou

como estimulo a criatividade do artesão que produziu variadas peças que em

nada se pareciam a ceramica arquologica, mas como estes artesão já estavam

munidos de um conhecimento empírico e tecnológico, mesmo que rudimentar

isto permitiu a criação de peças as mais diferenciadas possíveis

Figura 6 Imagem ampliada do desenho de Deoclecio. Fonte: Arquivo da autora

Estudo de desenho e pintura para prato em cerâmica, feito em

aquarela. Ao centro, temos a imagem de um índio9, cujo rosto obedece a

linhas clássicas, tendo nariz e lábios bem definidos e em torno motivos

marajoaras, detalhes verde estilização do muiraquitã.

Figura 7 Deoclecio dos Santos em seu atelier durante a entrevista mostrando seus desenhos .. Fonte: Arquivo da autora

9 A Imagem do índio era copiada de revistas lançadas na década de 1970 “Brasil, Historias

costumes e lendas”, ilustradas por José Lanzellotti.

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Nesta foto o ceramista Deoclecio dos Santos nos mostra desenhos que

costumava desenvolver para que fossem feitos por seus funcionários em sua

olaria.

Nesta foto podemos ver o desenho feito entre os anos de 1970-1980,

que foi largamente confeccionado, em pratos de cerâmica. No desenho a

nanquim, Tacacazeira, há uma mescla entre uma imagem bastante popular,

quase folclórica e no entorno desenhos marajoaras, o que demonstra a

criatividade do artesão.

Figura 8 Imagem ampliada para mostrar os detalhes do desenho de Deoclecio. Fonte: Arquivo da autora

Deoclécio dos Santos ao se referir ao desenho contou-nos que o estudo

teve o objetivo de ser reproduzido em alto relevo, em argila, para

posteriormente confeccionar uma forma em gesso como matriz, para tirar

cópias e agregá-las em vasos ou pratos para decoração. O artesão produziu

esse tipo de artesanato entre 1970 e 1980.

Deoclécio relata que fazia estudos antes de desenhá-los para

posteriormente, mostrar aos seus funcionários o que queria, tanto em termos

de forma, quanto em termos de acabamento final das peças. Essa não era uma

prática comum aos artesãos, em geral os desenhos são, como até hoje,

desenvolvidos no momento em que estão dando acabamento as peças.

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Figura 9 Pintura em técnica aguada. Fonte: Arquivo da autora

Figura 10 Pintura em aquarela. Fonte: Arquivo da autora

Nas figuras 11 e 12 é possível perceber o talento criativo do artesão

nesses desenhos produzidos entre os anos de 1950 a 1970, no primeiro retrata

uma atividade comum em Icoaraci naquela época, o Vendedor de Carvão

empurrando seu carrinho, figura descalça, andando em ruas sem asfaltos e

casas simples e sem cercas, pintado na técnica aguada, no segundo vemos um

estudo de várias expressões de rostos pintados em aquarela. Isso nos permite

perceber o quanto este artesão possuía talento e por isso suas produções foram

criativas. Como a que veremos a seguir. O vaso cerâmico é um suporte nada

convencional para ser colocado sobre si, personagens para contar uma

história, porém na figura 64, veremos a fotografia de um vaso de

aproximadamente 1,60m X 70 cm, produzido por volta de 1988, e traz em sua

decoração uma surpreendente, e até certo ponto enigmática representação, do

que poderíamos compreender como uma história contada sobre a chegada dos

exploradores europeus a Amazônia, embora esse personagem (o explorador)

não apareça no vaso, ainda assim, podemos observar uma certa interseção

entre a natureza misteriosa e comovente dos nativos da floresta, sob certo

ponto de vista, e a imponência dos europeus, quando se nota em um dos lados

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do vaso, o Ver-o-Peso, cartão postal de uma metrópole as margens da Bahia

do Guajará, fundada pelos mesmos. Notamos em uma face do vaso (tema 3), a

imagem desenhada e pintada em baixo relevo é de uma visão romântica e

bucólica de Belém como uma cidade emblemática surgida em algum ponto da

floresta às margens da Bahia do Guajará. Em outra face (tema 2) traz

personagens autóctones desfrutando plenamente da natureza, ao mesmo

tempo em que são observados por outros indígenas a espreita no mato, como

se estivessem ali para defendê-los; mas ao observar com mais cuidado a

imagem, percebe-se que os mesmo três indígenas observam também uma

palafita ribeirinha (tema 1), além da forte figura feminina (tema 4), que traz

abraçada, quase próximo ao ventre uma urna marajoara como se essa

cerâmica ainda não tivesse terminado de ser gestada em toda sua criatividade.

Figura 11: Vaso temático Fonte: Arquivo de Deoclecio dos Santos

Tema 1 Tema 4 Tema 3 Tema 2

Casa ribeirinha

Índia e índio na canoa

Três índios

Feira do Ver-o Peso

Macaco de cheiro

Índia com vaso marajoara

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Fizemos um exercício de pensar criticamente o presente,

estabelecendo uma relação entre os tempos e os vários discursos envolvidos

na história da cultura contemporânea. Tratamos de reconstituir o pensamento

de uma época através da fala e das imagens de seus principais personagens,

pois são eles os principais atores de uma historia que ainda não acabou de ser

construída, no caso de Icoaraci o artesanato cerâmico confeccionado seria

produto desse amálgama de relações socioculturais estabelecido na

morfologia desse ambiente artesanal que é o bairro do Paracuri, que conforma

lugar público de vivências e encontros e ao mesmo tempo fornece elementos

como categoria de análise para o conhecimento dos objetos produzidos em

seus aspectos mais gerais e ao mesmo tempo em suas atribuições específicas.

Partindo do pressuposto de que esses fenômenos, não podem ser

examinados como sistemas autônomos, mas na sua inter-relação no decorrer

histórico, tentei observar como as mudanças na atividade artesanal na

comunidade do Paracuri foram favorecidas pela ação de uma grande

variedade de agentes e fatores, os quais possibilitaram, entre outras coisas, a

criação de uma tradição artesanal, baseada na confecção da cerâmica

marajoara.

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