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Murilo Duarte Costa Corrêa MEMÓRIA E JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO: UM ESTUDO À LUZ DA FILOSOFIA DE HENRI BERGSON Universidade de São Paulo Faculdade de Direito Programa de Pós-graduação em Direito São Paulo 2013

MEMÓRIA E JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO: UM ESTUDO À LUZ DA … · 2014. 2. 21. · evocada em um dos textos de Lembrar, escrever, esquecer (GAGNEBIN, 2006, p. 47), consiste na nota fundamental

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Page 1: MEMÓRIA E JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO: UM ESTUDO À LUZ DA … · 2014. 2. 21. · evocada em um dos textos de Lembrar, escrever, esquecer (GAGNEBIN, 2006, p. 47), consiste na nota fundamental

Murilo Duarte Costa Correcirca

MEMOacuteRIA E JUSTICcedilA DE TRANSICcedilAtildeO

UM ESTUDO Agrave LUZ DA FILOSOFIA DE HENRI BERGSON

Universidade de Satildeo Paulo Faculdade de Direito

Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Direito

Satildeo Paulo

2013

Murilo Duarte Costa Correcirca

MEMOacuteRIA E JUSTICcedilA DE TRANSICcedilAtildeO

UM ESTUDO Agrave LUZ DA FILOSOFIA DE HENRI BERGSON

Tese apresentada como requisito parcial agrave

obtenccedilatildeo do grau de Doutor no Programa de

Poacutes-Graduaccedilatildeo em Direito aacuterea de Filosofia

e Teoria Geral do Direito da Faculdade de

Direito do Setor de Ciecircncias Juriacutedicas da

Universidade de Satildeo Paulo sob orientaccedilatildeo

do Prof Dr Guilherme Assis de Almeida

Universidade de Satildeo Paulo Faculdade de Direito

Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Direito

Satildeo Paulo

2013

MEMOacuteRIA E JUSTICcedilA DE TRANSICcedilAtildeO

UM ESTUDO Agrave LUZ DA FILOSOFIA DE HENRI BERGSON

por

MURILO DUARTE COSTA CORREcircA

Tese aprovada como requisito parcial para obtenccedilatildeo do grau de Doutor em Filosofia e Teoria

Geral do Direito no Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Direito da Faculdade de Direito da

Universidade de Satildeo Paulo pela comissatildeo formada pelos seguintes professores

Orientador Prof Dr Guilherme Assis de Almeida

Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Direito USP

Membro Profordf Associada Elza da Cunha Pereira Boiteux

Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Direito USP

Membro Profordf Associada Deisy de Freitas Lima Ventura

Instituto de Relaccedilotildees Internacionais USP

Membro Prof Titular Joseacute Antocircnio Peres Gediel

Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Direito UFPR

Membro Prof Dr Eladio Constantino Pablo Craia

Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia PUC-PR

Satildeo Paulo _______ de ________________ de 2013

para Maria

devoraccedilotildees para outros devires

4

AGRADECIMENTOS

A experiecircncia da escrita eacute uma espeacutecie de atletismo que cria um pedaccedilo de concreto

ao mesmo tempo em que interroga os limites das forccedilas imaginativas e conceituais em

relaccedilatildeo a ele Essa pequena passagem que se tentou produzir dos ldquoafetos da ordemrdquo para

ldquouma outra ordem dos afetosrdquo teria sido ndash senatildeo impossiacutevel ndash por certo vatilde sem os

encontros intensivos que a experiecircncia de escrevecirc-la proporcionou Essas pequenas

devoraccedilotildees de Bergson teriam sido muito menos saborosas sem a presenccedila doce de minha

amada Maria Fernanda Battaglin Loureiro a quem dedico cada uma dessas ndash por vezes

longas hermeacuteticas e com sorte voluntariosamente joycianas ndash linhas Agrave sua companhia

amaacutevel e inquieta dedico tambeacutem tantas outras ndash todas as outras ndash porque natildeo se escreve

se natildeo for para penetrar o amor com a alma e a alma com o amor

Agrave minha famiacutelia (Mirian Camile) e agrave famiacutelia de Maria (Ceacutelia Wilson Otaacutevia

Joatildeo) agradeccedilo por toda amabilidade e aconchego de sempre pelas conversas de almoccedilos

de domingo Estar com vocecircs eacute sempre domingo

Ao orientador deste trabalho Prof Dr Guilherme Assis de Almeida agradeccedilo pela

orientaccedilatildeo mas sobretudo pela inspiraccedilatildeo que representa raro professor digno de

admiraccedilatildeo por aliar erudiccedilatildeo criativa sensibilidade teoacuterica e preocupaccedilatildeo concreta com a

efetividade dos direitos humanos ndash marca indeleacutevel de sua orientaccedilatildeo da qual este trabalho

natildeo poderia pretender ser mais do que um singelo legado

Ao Professor Associado Eduardo Carlos Bianca Bittar agradeccedilo por ter me

apresentado ao Prof Guilherme mas tambeacutem pela atenccedilatildeo que sempre dispensou a minhas

duacutevidas e inquietaccedilotildees teoacuterias tambeacutem por toda a Teoria e Criacutetica dos Direitos Humanos

que aprendi consigo ndash aprendizado indispensaacutevel agrave formulaccedilatildeo dos problemas que se

seguem

Agrave Professora Associada Elza da Cunha Pereira Boiteux agradeccedilo pelas aulas pelo

apoio e pelo incentivo nesses anos de doutorado Sobretudo pelo exemplo de simplicidade

sensibilidade e saber

Aos Professores Associados Samuel Barbosa e Deisy Ventura agradeccedilo por todas

as sugestotildees e por todo o auxiacutelio que na etapa de qualificaccedilatildeo deste trabalho foram

determinantes para o seu aperfeiccediloamento

Agrave Professora Associada do Departamento de Antropologia Social da Universidade

de Satildeo Paulo Fernanda Arecircas Peixoto agradeccedilo pela gentil acolhida por todas as

5

discussotildees francas sobre o sentido dos quadros socias da memoacuteria a partir de Halbwachs e

Bergson e por tudo o que pude aprender junto a suas aulas e aos colegas da poacutes-graduaccedilatildeo

em Antropologia em As Artes da Memoacuteria Algumas questotildees que a professora Fernanda

nos franqueou satildeo ao menos incidentalmente retomadas aqui

Agrave Professora Maria Adriana Camargo Capello da Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia da

UFPR renovo minha gratidatildeo por ter me conduzido aos fabulosos textos de Bergson em

2009 Ainda que insensivelmente ela e o amigo Marcelo Barbosa satildeo tambeacutem credores

desses aprofundamentos na filosofia bergsoniana da diferenccedila

Ao Prof Dr Eladio Constantino Pablo Craia do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em

Filosofia da PUC-PR pela amizade simples e leve pelos cafeacutes e pela conversa infinita e

para sempre inacabada sobre a Filosofia Francesa Contemporacircnea suas consequecircncias

ontoloacutegicas e poliacuteticas Sobretudo por sua atenciosa e sempre enriquecedora

disponsibilidade em ler alguns dos originais

Ao Prof Titular da Faculdade de Direito da UFPR Joseacute Antonio Peres Gediel

meus agradecimentos e minha admiraccedilatildeo por ter sido um dos mais eruditos professores de

meus tempos de graduaccedilatildeo por ainda hoje servir-me de exemplo de que o rigoroso e

radical questionamento do Direito se faz com um peacute dentro dele e com outros dois fora

Tambeacutem por aceitar com generosidade minhas participaccedilotildees sempre descontiacutenuas em seu

grupo de pesquisas sobre o corpo

Aos amigos Abili Laacutezaro Castro de Lima Alexandre Morais da Rosa Benedito

Costa Bruno Cava Cleverson Leite Bastos Christina Miranda Ribas Cristiano Knapp

Deisy Ventura Eduardo Sterzi Felipe Augusto Vicario de Carli Gabriel Merheb Petrus

Gilson Bonato Giuseppe Cocco Guilherme Roman Borges Gustavo Chaves Heloiacutesa

Fernandes Cacircmara Idelber Avelar Joseacute Roberto Vieira Laurent de Sutter Leonardo

DrsquoAacutevila de Oliveira Maria de Faacutetima S Tecchio Miguel Gualano de Godoy Paacutedua

Fernandes Ricardo Prestes Pazello e Verocircnica Stigger agradeccedilo pelas amizade e pelas

oportunidades formais e informais de discussatildeo de alguns desses estudos e ideias Aos

alunos orientandos e professores da Faculdade de Direito da Universidade Estadual de

Ponta Grossa agradeccedilo pela presenccedila geradora de ideias alegres e inconstantes Estas

paacuteginas tambeacutem satildeo dedicadas a vocecircs

6

O tempo insiste porque existe

um tempo que haacute de vir

Vinicius de Moraes

7

RESUMO

O presente estudo tem por objeto investigar a gecircnese dos potenciais

transformativos geralmente atribuiacutedos agrave memoacuteria pelos modernos teoacutericos da Justiccedila de

Transiccedilatildeo A partir de sua relaccedilatildeo geneacutetica com o Direito Internacional dos Direitos

Humanos elucidaram-se os contornos do conceito de memoacuteria na Teoria da Justiccedila de

Transiccedilatildeo demonstrando-se tanto a centralidade da memoacuteria na efetuaccedilatildeo das praacuteticas

transicionais como uma constante atribuiccedilatildeo de potenciais transformativos agrave memoacuteria

Uma vez diagnosticada a lacunaridae dessa relaccedilatildeo ndash jamais explicada em sua dinacircmica

proacutepria entre os teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo ndash formulou-se a hipoacutetese de que um

conceito ontoloacutegico dinacircmico e metaindividual de memoacuteria tal como registrado pela

filosofia de Henri Bergson poderia abranger os heterogecircneos conceitos de memoacuteria dos

teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo com a vantagem analiacutetica de permitir integrar a lacuna

teoacuterica encontrada explicando-se como se podem atribuir potenciais transicionais agrave

memoacuteria Para tanto foi necessaacuterio demonstrar que a filosofia bergsoniana da duraccedilatildeo

instaura um viacutenculo entre ontologia e poliacutetica duraccedilatildeo real memoacuteria e variaccedilatildeo das formas

de vida Em seguida buscamos derivar dessa ontologia poliacutetica bergsoniana as

consequecircncias subjetivas morais e institucionais correlatas a dois grandes referenciais que

Bergson e a Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo possuem em comum a democracia e os direitos

humanos Dessa forma pretendeu-se estabelecer um problema ainda natildeo investigado no

acircmbito da Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo e oferecer-lhe uma soluccedilatildeo original agrave luz de sua

interlocuccedilatildeo com a filosofia de Henri Bergson seu conceito de memoacuteria e suas

implicaccedilotildees poliacuteticas

Palavras-chave Memoacuteria Justiccedila de Transiccedilatildeo Henri Bergson

8

ABSTRACT

The present essay aims to investigate the genesis of transformative potencies

generally assigned to memory by modern Transitional Justicersquos theorists Starting on its

genetic relationship with International Human Rights Law this essay have clarified the

patterns of memory in Transitional Justice proving the central role played by memory in

the field of transitional practices as well as it has demonstrated the constant assignment of

transformative potencies to memory Once established these patterns this study diagnosed

a theoretical gap on connecting memory and transition on Transitional Justice theory

Therefore according to our hypothesis an ontological dynamic and meta-individual

concept of memory as registered on Bergsonrsquos philosophy would comprehend

Transitional Justicersquos heterogenic notions of memory and could go far beyond them By

this mean we were able to fulfill the theoretical gap encountered in order to clarify how is

possible to assign transitional potencies to memory Thus this study demonstrates that

Bergsonrsquos durational philosophy promotes a connection between ontology and politics

real duration memory and variation of ways of life Afterwards we derivated from that

bergsonian political ontology subjective moral and institutional consequences related to

democracy and human rights ndash referrals that Bergson and Transitional Justicersquos theorists

have in common We have tried to establish a problem not yet investigated by Transitional

Justice Theory and offer a original solution to it since Henri Bergsonrsquos philosophy his

concept of memory and its political implications

Key-words Memory Transitional Justice Henri Bergson

9

SUMAacuteRIO

RESUMO 7

ABSTRACT 8

INTRODUCcedilAtildeO 11

PRIMEIRA PARTE

O ATUAL MEMOacuteRIA E TRANSICcedilAtildeO NA TEORIA DA JUSTICcedilA DE

TRANSICcedilAtildeO 15

CAPIacuteTULO 1 ndash A GEcircNESE DA TEORIA DA JUSTICcedilA DE TRANSICcedilAtildeO E O

DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS 16

CAPIacuteTULO 2 ndash DIREITO-ENTRE O JURIacuteDICO E AS INSTITUICcedilOtildeES NO SEIO DAS

TRANSICcedilOtildeES 30

sect 1 Direito instituiccedilotildees e transiccedilatildeo 30

sect 2 O que um passado tem de insuportaacutevel notas sobre a continuidade do passado no

presente a partir do caso brasileiro 37

CAPIacuteTULO 3 ndash O CONCEITO DE MEMOacuteRIA NA TEORIA DA JUSTICcedilA DE

TRANSICcedilAtildeO 46

sect 1 Memoacuteria verdade e Direito Internacional dos Direitos Humanos 49

sect 2 Os contornos do conceito de memoacuteria no campo transicional 53

sect 3 A centralidade da memoacuteria e seus potenciais transformativos 64

SEGUNDA PARTE

O VIRTUAL A IDEIA DE MEMOacuteRIA NA FILOSOFIA DE HENRI BERGSON 84

CAPIacuteTULO 4 ndash UM SALTO NO VIRTUAL DO SER PRESENTE AO SER DO

PASSADO 85

sect 1 Bergsonismo muacuteltiplas entradas 88

sect 2 Duraccedilatildeo o sentido e a realidade do tempo 97

sect 3 Do ser presente ao ser do passado 110

CAPIacuteTULO 5 ndash MEMOacuteRIA FUNDAMENTO DO TEMPO 126

sect 1 O problema do reconhecimento o ceacuterebro e as duas memoacuterias 127

sect 2 Coexistecircncias a consistecircncia virtual da memoacuteria 141

sect 3 O ser do passado como fundamento do tempomemoacuteria repeticcedilatildeo e devir 157

TERCEIRA PARTE

LINHAS DE ATUALIZACcedilAtildeO BERGSON O ABERTO E A TRANSICcedilAtildeO 168

CAPIacuteTULO 6 ndash O ABERTO E A JUSTICcedilA DE TRANSICcedilAtildeO DEMOCRACIA E

DIREITOS HUMANOS 169

sect 1 O fechado o social e o vital 172

sect 2 Abrir o fechado ruptura e devir 198

10

sect 3 Perseverar no abertotransiccedilatildeo democracia e direitos humanos 214

sect 4 Retornar ao concretomemoacuteria e justiccedila de transiccedilatildeo 251

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 268

REFEREcircNCIAS 275

11

INTRODUCcedilAtildeO

ldquoSua narrativa afirma que o inesqueciacutevel existerdquo A frase de Krikor Beledian

evocada em um dos textos de Lembrar escrever esquecer (GAGNEBIN 2006 p 47)

consiste na nota fundamental que percorre todas essas paacuteginas por ressonacircncia ou

incandescecircncia Ela eacute seu princiacutepio de impureza e contaminaccedilatildeo No entanto ela eacute lida a

partir de uma forma de exerciacutecio quase patoloacutegico do pensamento eacute dizer ela eacute lida

literalmente levada ao limite de sua proacutepria expressatildeo ao limiar do que Beledian talvez

jamais quisera dizer ao enunciaacute-la

Assim afirmar que o inesqueciacutevel existe torna-se natildeo uma tarefa essencial poliacutetica

e eacutetica sem gloacuteria do historiador que luta contra a repeticcedilatildeo do horror Ela eacute isso mas eacute

mais que isso A afirmaccedilatildeo de que o inesqueciacutevel existe eacute aqui assumida como um iacutendice

de positividade instaurador de um limiar significante a partir do qual jaacute natildeo parece mais tatildeo

absurdo afirmar a realidade ou o ser da memoacuteria Ela eacute o inesqueciacutevel ndash mas tambeacutem a

obscura espectral e ativa presenccedila do imemorial

As paacuteginas que se seguem consistem pois em uma maacutequina de produzir essa

afirmaccedilatildeo ldquoo inesqueciacutevel existerdquo Jaacute natildeo se trata de algo que desejando-o natildeo queremos

esquecer mas de um apelo agrave compreensatildeo da memoacuteria como uma regiatildeo do existente do

real Isso implica recusar toda estrateacutegia de reduccedilatildeo do conceito de memoacuteria a seus

aspectos de lembranccedila individual ou psicoloacutegica de representaccedilatildeo coletivamente

partilhada fundadora de identidades de grupo ou de forma vazia e ontologicamente

negativa de representificaccedilatildeo de algo ausente O passado nesse caso seria apenas o que

natildeo eacute mais o futuro o que natildeo eacute ainda

Nesse sentido as formulaccedilotildees modernas e contemporacircneas da Teoria da Justiccedila de

Transiccedilatildeo1 satildeo mobilizadas como campo teoacuterico e problemaacutetico concreto a partir do qual

essa recusa eacute colocada em jogo Contemplando praacuteticas institucionais e simboacutelicas a serem

efetuadas em momentos de fluxo poliacutetico (justiccedila reparaccedilatildeo reformas purgas etc) eacute nos

quadros da Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo que a memoacuteria aparece continuamente como

elemento chave para sua efetuaccedilatildeo Portanto eacute no seio da Justiccedila de Transiccedilatildeo que as

interrogaccedilotildees sobre uma memoacuteria despida de qualquer realidade podem adquirir contornos

metafiacutesicos mas tambeacutem poliacuteticos relacionados agrave constituiccedilatildeo de novas formas de vida

1 Paul Van Zyl (2009a p 32) define brevemente Justiccedila de Transiccedilatildeo como ldquoo esforccedilo para a construccedilatildeo da

paz sustentaacutevel apoacutes um periacuteodo de conflito violecircncia em massa ou violaccedilatildeo sistemaacutetica dos direitos

humanosrdquo

12

A dimensatildeo poliacutetica da memoacuteria na Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo constitui ainda

uma constante Comumente satildeo atribuiacutedos potenciais transformativos agrave memoacuteria de forma

que a veremos aparecer como uma espeacutecie de condiccedilatildeo (positiva ou negativa) sempre

ligada agrave efetuaccedilatildeo das transiccedilotildees reais O que permanece lacunar e sem explicaccedilatildeo ndash lacuna

que devemos demonstrar em detalhe ndash consiste justamente no aparente automatismo dessa

atribuiccedilatildeo No entanto como atribuir a um conceito individual os potenciais de produzir

mutaccedilotildees poliacuteticas de grande escala Como emprestar potenciais transformativos e

dinacircmicos a um conceito coletivo mas representativo e estaacutetico Como a contumaz faceta

ontoloacutegica negativa pela qual se pensa a memoacuteria ndash como conceito sem realidade proacutepria ndash

poderia engendrar as positividades que uma transiccedilatildeo real exige e nas quais ganha corpo

concreto Ao se fazer da memoacuteria uma espeacutecie de deus ex machina das transiccedilotildees reais

todas essas questotildees permaneceriam sem explicaccedilatildeo

Essa lacuna eacute progressivamente identificada e estabelecida a partir de uma

correlaccedilatildeo geneacutetica entre a moderna Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo e o Direito

Internacional dos Direitos Humanos Em seus quadros definimos estruturalmente as

formas e praacuteticas da Justiccedila de Transiccedilatildeo aprofundando-as progressivamente a fim de

esclarecer o sentido do binocircmio memoacuteria-verdade Ele nos forneceria a chave de

interrogaccedilotildees metaestruturais pelas quais poderemos estabelecer os contornos analiacuteticos do

conceito de memoacuteria tal como ele eacute heterogeneamente engendrado pelos teoacutericos da

Justiccedila de Transiccedilatildeo

Realizado esse percurso ao qual dedicamos a primeira parte deste trabalho

resultaria necessaacuterio interrogar de que maneira se poderia integrar a lacuna encontrada

pois natildeo conseguir explicar a origem dos potenciais transformativos da memoacuteria implica

expocirc-la ao risco poliacutetico de denegaacute-la impunemente ou de soldaacute-la acriticamente agraves

narrativas oficiais Ao mesmo tempo a lacuna uma vez estabelecida teria deixado exposto

e aberto o fundamento infundado dos potencias transicionais continuamente atribuiacutedos agrave

memoacuteria pela Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo

Poreacutem intuiccedilotildees preacute-conceituais e natildeo hegemocircnicas no campo teoacuterico da Justiccedila de

Transiccedilatildeo ofereceriam tendecircncias cujos devires poderiacuteamos amarrar integrando a um novo

e mais compreensivo conceito natildeo apenas as heterogecircneas camadas de memoacuteria elaboradas

pelos teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo mas tambeacutem oferecer uma contribuiccedilatildeo a este

campo teoacuterico e juriacutedico a partir de uma interlocuccedilatildeo com a filosofia de Henri Bergson

Poreacutem por que Bergson Eacute preciso explicar como o bergsonismo nos auxilia a

ldquoamarrar deviresrdquo conceituais que se insinuam a partir do proacuteprio marco teoacuterico da Justiccedila

13

de Transiccedilatildeo Ao longo do terceiro capiacutetulo registramos a apariccedilatildeo de duas noccedilotildees preacute-

conceituais de memoacuteria entre os teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo A primeira

reconceptualizava a memoacuteria como memoacuteria dinacircmica instaacutevel flexiacutevel a partir das

recentes descobertas das neurociecircncias sobre as funccedilotildees evolutivas e adaptativas da

memoacuteria (BARSALOU BAXTER 2007 p 04 PHELPS 2012 p 07 e NAGEL

SINOTT-ARMSTRONG 2012 p 05) A segunda conceituava a memoacuteria

independentemente dos referenciais da lembranccedila individual Cada uma dessas tendecircncias

de efetuaccedilatildeo do conceito precisaria cruzar-se com a outra a fim de produzir uma memoacuteria

ao mesmo tempo dinacircmica e emancipada dos referenciais meramente individuais No

entanto ateacute o presente a Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo natildeo conseguiu apreendecirc-la nesse

sentido Os autores que compreendem o sentido dinacircmico da memoacuteria ndash por influecircncia do

campo experimental das neurociecircncias ndash estabelecem o conceito a partir do campo das

memoacuterias individuais e psicoloacutegicas Os que engendram um conceito de memoacuteria que visa

a superar o campo individual ndash ainda que a qualifiquem vagamente como um ldquoprocessordquo

jamais detalhado ndash natildeo escapam ao fixismo e agrave loacutegica da representaccedilatildeo Aleacutem disso restara

em aberto determinar de que maneira se podem atribuir potenciais transformativos agrave

memoacuteria isto eacute o que justifica que ela apareccedila constantemente como elemento chave agrave

efetuaccedilatildeo das transiccedilotildees

Eacute no sentido de esclarecer esses dois problemas que mobilizamos a filosofia de

Henri Bergson (1) engendrar um conceito de memoacuteria mais compreensivo ao mesmo

tempo dinacircmico e emancipado de um referencial forccedilosamente individual promovendo

uma interlocuccedilatildeo interdisciplinar com sua filosofia a partir de problemas estabelecidos na

Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo (2) a partir do estabelecimento desse conceito ndash que

adquire em Bergson tonalidades ontoloacutegicas ndash trata-se de apresentar uma colaboraccedilatildeo

original para elucidar a gecircnese dos potenciais transformativos atribuiacutedos agrave memoacuteria nesse

campo teoacuterico afastando os riscos poliacuteticos inerentes agrave lacunaridade Esses objetivos

baseiam-se na hipoacutetese de que eacute necessaacuterio rearticular o conceito de memoacuteria na teoria da

Justiccedila de Transiccedilatildeo de um ponto de vista ontoloacutegico e ainda assim dinacircmico e natildeo

meramente individual ou psicoloacutegico a fim de explicar a relaccedilatildeo sempre solicitada mas

elidida entre memoacuteria e transiccedilatildeo

Por isso seraacute necessaacuterio reconstituir as linhas gerais da argumentaccedilatildeo de Bergson

sobre a memoacuteria compreendendo-a como uma ldquoregiatildeo do existenterdquo Essa memoacuteria ndash

dando consistecircncia agrave afirmaccedilatildeo de que ldquoo inesqueciacutevel existerdquo ndash seraacute qualificada como o

virtual um dos registros que juntamente com o atual consistem nas duas metades que

14

compotildeem uma mesma estrutura do real para Bergson Enquanto o atual apareceraacute soldado

ao espaccedilo e agrave inteligecircncia ndash embora continuamente variaacutevel em funccedilatildeo do tempo ndash o

virtual designa a duraccedilatildeo real potecircncia de variaccedilatildeo das formas inorgacircnicas orgacircnicas e

poliacuteticas Desse ponto de vista esclarecer de que forma a memoacuteria pode consistir em

fundamento do tempo eacute muito mais do que um exerciacutecio abstrato e metafiacutesico estabelececirc-

lo implica jaacute compreender em profundidade a partir do ser ndash que para dizecirc-lo em uma

palavra em Bergson confunde-se com o devir ndash a centralidade da memoacuteria como

elemento chave nas estrateacutegias genuinamente poliacuteticas para fender as camadas soacutelidas do

atual ou do presente Como natildeo seria esta precisamente a questatildeo uacuteltima de toda a Justiccedila

de Transiccedilatildeo ldquocomo reabrir o fechadordquo Como responder a ela evocando uma memoacuteria

fixa e representativa ou meramente dinacircmica e individual ndash ainda que conserve uma

natureza profundamente emocional (ELSTER 2003 p 11)

Toda a longa demonstraccedilatildeo que tem por objeto a filosofia bergsoniana articulada a

partir das relaccedilotildees entre memoacuteria e transiccedilatildeo em seus diversos niacuteveis de atualizaccedilatildeo (do

ontoloacutegico ao poliacutetico) envolve as diversas e heterogecircneas camadas de memoacuteria a partir de

um solo comum e imanente uma ontologia da memoacuteria capaz de explicar mesmo o ato

aparentemente mais individual ndash seja ele o ato de reminiscecircncia do vivido seja ele o ato de

liberdade que como veremos manteacutem uma relaccedilatildeo essencial com a memoacuteria no

bergsonismo

Nas linhas que se seguem a esta breve introduccedilatildeo seraacute preciso avaliar tambeacutem

como Bergson mobiliza seu conceito ontoloacutegico e potente de memoacuteria ndash que se confunde

com as virtualidades que produzem atualizaccedilotildees e variaccedilotildees contiacutenuas no Todo do real ndash a

fim de construir um viacutenculo agraves nossas vistas indissoluacutevel entre sua ontologia da memoacuteria

e a dimensatildeo da poliacutetica Como extensatildeo desse mesmo gesto seraacute preciso verificar de que

modo Bergson poderia auxiliar a lanccedilar luzes sobre os arcanos dos potenciais

transformativos da memoacuteria do ponto de vista da mutaccedilatildeo institucional e poliacutetica concreta

Nesse limiar envolvem-se os conceitos de aberto e transiccedilatildeo entrevistos a partir da

intuiccedilatildeo miacutestica e da emoccedilatildeo criadora como motores profundos das transiccedilotildees poliacuteticas

mas tambeacutem da constituiccedilatildeo de instituiccedilotildees democraacuteticas derivadas do apelo universal que

proveacutem dos Direitos Humanos capazes de nos permitir reabrir o fechado combater o

fechamento e perseverar no aberto (Terceira Parte)

15

PRIMEIRA PARTE

O atual memoacuteria e transiccedilatildeo na Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo

16

CAPIacuteTULO 1 ndash A GEcircNESE DA TEORIA DA JUSTICcedilA DE TRANSICcedilAtildeO

E O DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS

A literatura claacutessica da Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo ao registrar a longa histoacuteria

das experiecircncias juriacutedicas transicionais natildeo raro a faz remontar a periacuteodos arcaicos que se

confundem com as primeiras emergecircncias de uma forma democraacutetica de governo no

Ocidente Jon Elster (2006 p 17) o confirma ao assinalar que ldquoLa justicia transicional

democraacutetica es casi tan antigua como la democracia mismardquo

No entanto evitaremos recuar tatildeo intensamente Interessa-nos por ora avaliar

como o conceito de memoacuteria constroacutei-se como o epicentro da Teoria da Justiccedila de

Transiccedilatildeo bem como analisar sua heterogecircnea composiccedilatildeo nos estritos limites do marco

da produccedilatildeo teoacuterica que se seguiu ao fenocircmeno da internacionalizaccedilatildeo dos direitos

humanos trata-se portanto para o momento de esclarecer que elegemos como ponto focal

de nossa investigaccedilatildeo sobre o conceito de memoacuteria sua elaboraccedilatildeo na moderna Teoria da

Justiccedila de Transiccedilatildeo uma vez que desejamos avaliar a gecircnese reciacuteproca entre o processo

histoacuterico de internacionalizaccedilatildeo dos Direitos Humanos e a emergecircncia de uma doutrina

moderna da Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo erigida sobre fundamentos transnacionais

privilegiadamente ao longo da primeira metade do Seacuteculo XX Com isso pretendemos

demonstrar a impossibilidade de se compreender a moderna formulaccedilatildeo da Justiccedila de

Transiccedilatildeo dissociada dos processos que conduziram agrave adoccedilatildeo de mecanismos

internacionais de proteccedilatildeo e promoccedilatildeo dos direitos humanos especialmente no contexto

histoacuterico-poliacutetico e mundial que se seguiu agraves consequecircncias imprevistas que decorreram

das duas grandes guerras mundiais

O dia 4 de agosto de 1914 assinala o advento da I Guerra Mundial como o evento

explosivo que dilacerara a cena e a comunidade poliacutetica dos paiacuteses europeus Em um

cenaacuterio de inflaccedilatildeo destruiccedilatildeo da classe de pequenos proprietaacuterios e desemprego radical

assiste-se agrave paulatina migraccedilatildeo de compactos grupos humanos que natildeo eram bem-vistos ou

bem-vindos em lugar algum do continente Europeu Deixando seus Estados de origem

esses indiviacuteduos tornavam-se apaacutetridas inassimilaacuteveis e uma vez que perdiam seus

direitos seriam de agora em diante vistos por toda parte como ldquoo refugo da terrardquo

(ARENDT 2009 p 300) ndash expressatildeo que o jornal oficial das SS utilizava para qualificar

os judeus desnacionalizados em massa pelo III Reich entre os quais a proacutepria Arendt em

1933 apoacutes passar por um breve periacuteodo de encarceramento

17

No crepuacutesculo da Primeira Guerra Mundial assiste-se do ponto de vista

macropoliacutetico agrave raacutepida degradaccedilatildeo das estruturas despoacuteticas imperiais europeias Com ela

todas as nacionalidades efervescentes que se encontravam sob o manto imperial satildeo

violentamente liberadas das estruturas nacionais unitaacuterias que as submetiam e voltam-se

umas contra as outras eslovacos contra tchecos croatas contra seacutervios ucranianos contra

poloneses

Nesse cenaacuterio poliacutetico intensamente degradado os dois segmentos humanos que

mais sofreratildeo as consequecircncias dessa realidade dilacerante seratildeo os apaacutetridas e as minorias

que segundo Arendt (2009 p 302) ldquohaviam perdido aqueles direitos que ateacute entatildeo eram

tidos e ateacute definidos como inalienaacuteveis (Direitos do Homem)rdquo dado que jaacute natildeo dispunham

de governos nacionais proacuteprios que os representassem e protegessem ademais

encontravam-se forccedilados a viver sob as leis de exceccedilatildeo dos Tratados das Minorias que

praticamente todos os governos dos Estados sucessoacuterios haviam assinado sob protesto e

natildeo reconheciam como lei

As etnias minoritaacuterias e sem Estado logo veriam a precaacuteria condiccedilatildeo de cidadania

na qual se encontravam ser rapidamente assimilada agrave dos apaacutetridas Entre os anos de 1915

e 1935 mesmo naccedilotildees tradicionalmente reconhecidas pela defesa e proteccedilatildeo dos direitos

humanos ndash como Franccedila Beacutelgica Itaacutelia Aacuteustria e mais tarde Alemanha ndash editaram leis

que permitiram a desnaturalizaccedilatildeo e a desnacionalizaccedilatildeo massiva de cidadatildeos culminando

na lei de Nuremberg que distinguiria em 1935 entre cidadatildeos alematildees de pleno direito e

cidadatildeos sem quaisquer direitos poliacuteticos (AGAMBEN 1996 p 22)

De posse desse poderoso instrumento juriacutedico-poliacutetico que logo se converteria em

instrumento das poliacuteticas totalitaacuterias que faziam sua escalada global a situaccedilatildeo das

minorias e dos apaacutetridas ndash outrora excepcional ndash generaliza-se velozmente a tal ponto que

em certo momento diversos paiacuteses europeus possuiacuteam a capacidade juriacutedica de utilizaacute-lo

para se desfazerem de massas populacionais inteiras

Diante da incapacidade constitucional dos Estados europeus de protegerem os

Direitos Humanos daqueles que haviam perdido com a sua nacionalidade seus direitos de

cidadania a escala de valores dos paiacuteses totalitaacuterios passa a impor-se por toda a parte

Arendt registra que judeus ciganos e trotskistas eram recebidos como ldquoo refugo da terrardquo2

2 Eacute tambeacutem Arendt (2009 p 302) quem destaca a relaccedilatildeo entre os meios teacutecnico-juriacutedicos que tornavam a

desnacionalizaccedilatildeo de cidadatildeos indesejaacuteveis uma capacidade de diversos Estados europeus no periacuteodo do poacutes-

Primeira Guerra e a difusatildeo do antissemitismo a desnacionalizaccedilatildeo teria sido segundo Arendt o mais eficaz

instrumento de propagaccedilatildeo de valores antijudaicos ldquoO jornal oficial da SS o Schwartze Korps disse

explicitamente em 1938 que se o mundo ainda natildeo estava convencido de que os judeus eram o refugo da

18

aonde quer que fossem Mais do que uma tentativa alematilde de livrar-se dos judeus sua

perseguiccedilatildeo tinha o propoacutesito de espalhar o antissemitismo como um valor pelos paiacuteses

europeus democraacuteticos Esse tipo de propaganda segundo Arendt teria sido especialmente

eficaz porque sua retoacuterica intriacutenseca anulava a tese jusnaturalista iluminista e redentora

que advogava a existecircncia de direitos humanos inalienaacuteveis ao mesmo tempo em que

revelava a hipocrisia e a covardia dos paiacuteses democraacuteticos em relaccedilatildeo agrave proteccedilatildeo dos

direitos humanos

Segundo Arendt a desintegraccedilatildeo interna dos Estados-Naccedilatildeo observou-se a partir da

Primeira Guerra Mundial uma vez que os Tratados de Paz impostos aos Estados

sucessoacuterios geravam tensatildeo tanto entre as ldquominorias nacionaisrdquo quanto no acircmbito dos

novos Estados As minorias acreditavam-se injusticcediladas pela arbitrariedade dos Tratados

de Paz que contemplavam apenas a alguns povos com Estados enquanto sujeitavam os

demais agrave servidatildeo e agrave falta de autodeterminaccedilatildeo poliacutetica os Estados receacutem-criados por sua

vez viam os Tratados das Minorias como prova de discriminaccedilatildeo pois somente os Estados

sucessoacuterios restavam-lhes subordinados

Concebidos como um mecanismo de assimilaccedilatildeo das minorias agraves estruturas

sistemaacuteticas dos Estados-Naccedilatildeo a proteccedilatildeo dos Minority Treaties apenas alcanccedilava as

nacionalidades com certa densidade demograacutefica natildeo sendo aplicaacutevel a todas as minorias

ndash as quais foram deixadas sem governo proacuteprio e completamente agrave margem do direito No

entanto os povos contemplados com Estados ainda que politicamente majoritaacuterios

padeciam de certa fraqueza numeacuterica e cultural diante da vultosa diversidade das minorias

nem os Tratados das Minorias tampouco a Liga das Naccedilotildees puderam contudo evitar que

as minorias nacionais fossem assimiladas mais ou menos agrave forccedila agraves estruturas dos Estados

sucessoacuterios

Ignorando completamente a Liga das Naccedilotildees e buscando solucionar de forma

autocircnoma o seu problema de autodeterminaccedilatildeo poliacutetica ndash inencontraacutevel no seio dos

Estados sucessoacuterios ndash as minorias organizam-se ao redor do Congresso dos Grupos

Nacionais Organizados nos Estados Europeus Uma vez que todas as nacionalidades

aderiram ao Congresso terminaram por superar em nuacutemero os povos estatais ainda o

Congresso dos Grupos Nacionais representava uma forma de organizaccedilatildeo que ultrapassava

os tratados da Liga das Naccedilotildees na medida em que estes ignoravam o caraacuteter interestatal

terra iria convencer-se tatildeo logo transformados em mendigos sem identificaccedilatildeo sem nacionalidade sem

dinheiro e sem passaporte esses judeus comeccedilassem a atormentaacute-los em suas fronteirasrdquo (Idem ibidem loc

cit)

19

das nacionalidades minoritaacuterias Isso colocava em xeque o princiacutepio territorial em que se

encontrava baseada a Liga ao mesmo tempo em que apressando sua superaccedilatildeo

antecipava o que viria a ser uma importante caracteriacutestica na gecircnese do Direito

Internacional dos Direitos Humanos no periacuteodo do Poacutes-Segunda Guerra Mundial a

superaccedilatildeo do princiacutepio territorial fiador do poder domeacutestico dos Estados-Naccedilatildeo gerador

da necessidade de deslocar a base normativa dos Direitos Humanos em direccedilatildeo a uma

fundamentaccedilatildeo que jaacute natildeo permanecesse confinada agraves estruturas meramente domeacutesticas ou

nacionais

Disseminados por todos os Estados sucessoacuterios alematildees e judeus dominaram

politicamente o Congresso deflagrando uma relaccedilatildeo colaborativa harmoniosa e suficiente

para manter a agremiaccedilatildeo coesa Em 1933 no entanto com a ascensatildeo de Hitler ao poder

na Alemanha a delegaccedilatildeo judaica exige uma moccedilatildeo congressual de protesto contra o

tratamento dispensado aos judeus pelo governo do III Reich Ao passo em que os alematildees

nacionalmente minoritaacuterios anunciam sua solidariedade agrave Alemanha nazista e conseguem o

apoio da maioria das naccedilotildees minoritaacuterias o antissemitismo floresce em todos os Estados

sucessoacuterios tendo por consequecircncia o abandono do Congresso dos Grupos Nacionais pela

delegaccedilatildeo judaica (ARENDT 2009 p 308)

A importacircncia dos Tratados das Minorias consistiu em terem sido os primeiros

documentos legais que reconheceram a existecircncia das minorias agrave margem do ordenamento

juriacutedico-poliacutetico como instituiccedilatildeo permanente necessitando de uma garantia adicional de

seus direitos Isso significou que se tornava expliacutecito o que ateacute entatildeo o sistema dos

Estados-Naccedilatildeo pregava apenas obscuramente por meio de suas praacuteticas ndash que apenas os

nacionais poderiam ser cidadatildeos efetivos que a lei de um paiacutes natildeo poderia ser responsaacutevel

por pessoas que de alguma forma resistiam agrave assimilaccedilatildeo Dessa forma o Estado passava

de instrumento da lei em instrumento da Naccedilatildeo muito antes de Hitler ter proclamado que

ldquoa lei eacute aquilo que eacute bom para o povo alematildeordquo ndash o desfecho previsiacutevel segundo Arendt

(2009 p 309) das estruturas de Estados-Naccedilatildeo que a forma constitucional de governo

travestiu por longo tempo em impeacuterio da lei

Os Tratados das Minorias visavam a assegurar aos povos nacionais ldquosem Estadordquo

uma garantia adicional de seus direitos ao passo em que estes de jure integravam o corpo

poliacutetico de determinado Estado As Naccedilotildees europeias tradicionais natildeo foram obrigadas a

aderir a eles na medida em que suas estruturas constitucionais jaacute se supunham edificadas

sobre a ideologia da proteccedilatildeo dos direitos do homem distintamente do que acontecia agraves

recentes naccedilotildees sucessoacuterias das quais se exigia proteccedilatildeo adicional agraves minorias

20

Por longo tempo considerado apenas uma anomalia legal desprovida de

importacircncia o apaacutetrida recebeu atenccedilatildeo muito tardia quando sua posiccedilatildeo legal foi tambeacutem

aplicada aos refugiados expulsos de seus paiacuteses e desnacionalizados pelos vitoriosos nas

revoluccedilotildees Na eacutepoca que precedeu a Segunda Guerra a desnacionalizaccedilatildeo em massa

constituiacutea um fenocircmeno novo e imprevisto pressupunha uma estrutura estatal que ou era

totalitaacuteria ou jaacute demonstrava completa incapacidade de tolerar oposiccedilatildeo tanto que em

Origens do Totalistarismo Arendt (2009 p 312) sente-se tentada a ldquomedir o grau de

infecccedilatildeo totalitaacuteria de um governo pelo grau em que usa o soberano direito de

desnacionalizaccedilatildeo []rdquo

Com a insidiosa multiplicaccedilatildeo do nuacutemero de apaacutetridas o direito de asilo ndash ateacute

entatildeo siacutembolo dos direitos do homem (ALMEIDA 2001 p 85-96) ndash eacute abolido praacutetica e

tacitamente No mesmo sentido a Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem nunca fora

incorporada agrave legislaccedilatildeo interna de nenhum Estado-Naccedilatildeo ateacute este momento Os refugiados

tornam-se um problema pois ao mesmo tempo em que os Estados natildeo conseguiam

desvencilhar-se deles tambeacutem natildeo desejavam tornaacute-los cidadatildeos Constatava-se o

esgotamento das alternativas tradicionais como a repatriaccedilatildeo ou a naturalizaccedilatildeo As

pessoas sem Estado por sua vez insistiam em suas nacionalidades e resistiam agrave

assimilaccedilatildeo por quaisquer outras naccedilotildees

Fracassadas as tentativas de repatriaccedilotildees e naturalizaccedilotildees os apaacutetridas

encontravam-se gravados com uma espeacutecie de condiccedilatildeo de indeportabilidade que logo se

tornaria regra nos campos de concentraccedilatildeo e extermiacutenio (ARENDT 2009 p 317) Um

homem sem Estado era uma anormalidade um fenocircmeno imprevisto que natildeo gozava de

qualquer posiccedilatildeo apropriada na estrutura da lei em geral Ficava pois agrave mercecirc da poliacutecia

que natildeo hesitava em perpetrar ilegalidades para diminuir o nuacutemero de indeacutesirables em seu

paiacutes expulsando-os contrabandeando-os para paiacuteses vizinhos ndash e estes natildeo hesitavam em

retribuir o gesto do mesmo modo Eclodiam conflitos entre poliacutecias transfronteiriccedilas

cresciam as sentenccedilas de prisotildees de apaacutetridas falhavam todas as tentativas internacionais

de estabelecer alguma condiccedilatildeo de legalidade para as massas de povos sem Estado Assim

os campos de internamento tornavam-se o uacutenico substitutivo de uma paacutetria e

generalizavam-se progressivamente como soluccedilatildeo para displaced people

Os mecanismos de naturalizaccedilatildeo falharam a priori frente agrave virtual demanda de

naturalizaccedilatildeo em massa ndash mas sua ineficaacutecia deveu-se tambeacutem agrave circunstacircncia de que os

povos sem Estado tampouco viam grande vantagem na naturalizaccedilatildeo ndash jaacute que os

naturalizados eram frequentemente ameaccedilados com a desnacionalizaccedilatildeo e com a

21

consequente privaccedilatildeo de direitos O apaacutetrida sem direito de residir ou trabalhar era

obrigado a viver constantemente fora da lei embora por sua condiccedilatildeo estivesse sujeito ao

encarceramento sem ter jamais cometido um crime ldquoUma vez que ele constituiacutea a

anomalia natildeo-prevista na lei geral era melhor que se convertesse na anomalia que ela

previa o criminosordquo afirma Arendt (2009 p 319)3 Ao passo em que campos de

concentraccedilatildeo satildeo progressivamente criados em praticamente todos os paiacuteses o mundo

europeu civilizado e livre passa a articular-se com o plexo de valores e a legislaccedilatildeo dos

paiacuteses totalitaacuterios por meio das poliacutecias nacionais que se implantariam em prol da

Seguranccedila Nacional

O que o cenaacuterio europeu do entreguerras colocava em xeque era precisamente a

categoacuterica pretensatildeo expressa na Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo do fim

do seacuteculo XVIII que a um soacute tempo erigia o homem agrave condiccedilatildeo de fonte e objetivo dos

Direitos do Homem aos quais emprestava as qualidades de direitos inalienaacuteveis

irredutiacuteveis recebidos por nascimento e indedutiacuteveis de outros direitos ou de outra

autoridade diversa da natureza humana Tais direitos eram constantemente invocados para

garantir certas prerrogativas dos sujeitos em face do arbiacutetrio dos Estados soberanos sendo

tal soberania proclamada em nome de um conceito abstrato de Homem4 impossiacutevel de ser

apreendido senatildeo diluiacutedo no conceito deveras geral de povo o qual teria direito a um

autogoverno soberano Nesse ponto Hannah Arendt identifica o paradoxo jaacute enunciado na

declaraccedilatildeo de direitos referida a um homem abstrato destacado de todo contexto social ou

comunitaacuterio que compunha o povo de um Estado-Naccedilatildeo associando-se a proteccedilatildeo dos

direitos humanos agrave soberania nacional

Giorgio Agamben (1996 p 24) renova a criacutetica arendtiana ao identificar o que

reputa ser a real funccedilatildeo biopoliacutetica da Declaraccedilatildeo de Direitos de 1789 inscrever a vida nua

natural na ordem juriacutedico-poliacutetica do Estado-Naccedilatildeo5 Agamben diagnostica a ambiguidade

3 Arendt (2009 p 320) diagnostica que ldquoA melhor forma de determinar se uma pessoa foi expulsa do acircmbito

da lei eacute perguntar se para ela seria melhor cometer um crime Se um pequeno furto pode melhorar a sua

posiccedilatildeo legal pelo menos temporariamente podemos estar certos de que foi destituiacuteda dos direitos humanos

Pois o crime passa a ser entatildeo a melhor forma de certa igualdade humana mesmo que ela seja reconhecida

como exceccedilatildeo agrave norma O fato ndash importante ndash eacute que a lei prevecirc essa exceccedilatildeordquo 4 Abstraccedilatildeo constitutiva do conceito moderno de homem ou de natureza humana jaacute denunciada e natildeo sem

ironia por espiacuteritos poliacuteticos tatildeo heterogecircneos como os de Edmund Burke (1820) em seu ldquoReflections on the

Revolution in Francerdquo e Karl Marx (2010) em ldquoSobre a questatildeo judaicardquo Sobre o primeiro conferir ainda

(ARENDT 2009 p 333-336) e para um breve comentaacuterio sobre o segundo ver tambeacutem (DOUZINAS

2000 p 371) 5 ldquoQuella nuda vita (la creatura umana) che nellrsquoAncien Reacutegime apparteneva a Dio e nel mondo classico

era chiaramente distinta (come zoeacute) dalla vita politica (bios) entra ora in primo piano nella cura dello Stato e

diventa per cosigrave dire il suo fondamento terreno Stato-nazione significa Stato che fa della nativitagrave della

nascita (cioegrave della nuda vita umana) il fondamento della propria sovranitagraverdquo (AGAMBEN 1996 p 24)

22

expressa pelo tiacutetulo da Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo em

que natildeo fica claro se ldquoHomemrdquo e ldquoCidadatildeordquo nomeiam duas realidades distintas ou se ao

reveacutes formam uma diacuteade na qual o primeiro termo (ldquoHomemrdquo) eacute apenas o conteuacutedo do

segundo (ldquoCidadatildeordquo)

O liame entre princiacutepios de natividade e da soberania restaria claro na medida em

que a aquisiccedilatildeo dos direitos humanos por nascimento (art 1ordm) aparece condicionada agrave

formaccedilatildeo de uma associaccedilatildeo poliacutetica soberana (arts 2ordm e 3ordm) capaz de garantir sua eficaacutecia

por meio do emprego da forccedila puacuteblica (art 12) instituiacuteda em benefiacutecio de todos6 A raiz

etimoloacutegica latina comum a natio e nascere confirmaria ainda uma vez e de um ponto de

vista genealoacutegico o fenocircmeno do nascimento como a fundamentaccedilatildeo uacuteltima dos Estados-

Naccedilatildeo O que Arendt enxergava como a diluiccedilatildeo da condiccedilatildeo humana concreta na

antropologia filosoacutefica universal e abstrata do iluminismo moderno e em sua reduccedilatildeo

poliacutetica ao conceito de povo constituiria mais profundamente segundo Agamben a

fundamentaccedilatildeo da soberania nacional moderna erigida sobre o que Arendt chamava ldquovida

nua naturalrdquo

Condicionou-se a visatildeo da humanidade como uma famiacutelia de naccedilotildees de forma que

o povo e natildeo o homem representava a imagem do homo cujos direitos eram garantidos

pela Declaraccedilatildeo identificando direitos do homem e direitos dos povos no sistema europeu

de Estados-Naccedilatildeo Com o aparecimento crescente de pessoas e povos cujos direitos natildeo

eram salvaguardados por essa sistemaacutetica os Direitos do Homem ndash supostamente

inalienaacuteveis ndash mostravam-se inexequiacuteveis sempre que surgiam pessoas que natildeo eram

cidadatildes de qualquer Estado soberano (ARENDT 2009 p 327)

A perda da proteccedilatildeo do governo significava a um soacute tempo a perda da condiccedilatildeo de

legalidade em seu paiacutes ndash e em qualquer outro paiacutes Trata-se da degradaccedilatildeo uacuteltima do direito

a ter direitos que decorre natildeo da perda do direito agrave vida agrave liberdade ou agrave propriedade mas

do fato de existirem sujeitos que natildeo pertenciam a qualquer comunidade que se

encontravam em um limiar de absoluta indiferenccedila juriacutedica A lei tornava-se um

mecanismo de produccedilatildeo de indiferenccedila legal incapaz de imaginaacute-los sequer como sujeitos

6 Os dispositivos referidos integram a Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo de 1789

In verbis Artigo I ldquoLes hommes naissent et demeurent libres et eacutegaux en droits Les distinctions sociales ne

peuvent ecirctre fondeacutees que sur lrsquoutiliteacute communerdquo artigo II ldquoLe but de toute association politique est la

conservation des droits naturels et imprescriptibles de lrsquohomme Ces droits sont la liberteacute la proprieacuteteacute la

sucircreteacute et la reacutesistance agrave lrsquooppressionrdquo artigo III ldquoLe principe de toute Souveraineteacute reacuteside essentiellement

dans la Nation Nul corps nul individu ne peut exercer drsquoautoriteacute qui nrsquoen eacutemane expresseacutementrdquo artigo XII

ldquoLa garantie des droits de lrsquoHomme et du Citoyen neacutecessite une force publique cette force est donc institueacutee

pour lrsquoavantage de tous et non pour lrsquoutiliteacute particuliegravere de ceux auxquels elle est confieacuteerdquo Disponiacutevel em

lthttpwwwassemblee-nationalefrhistoiredudh1789aspgt Acesso em 11 maio 2013

23

sem espessura O que tornava todos os residentes dos campos intrinsecamente mataacuteveis foi

a criaccedilatildeo preteacuterita de uma condiccedilatildeo de completa privaccedilatildeo de direitos que se manifestava

segundo Arendt (2009 p 330) ldquona privaccedilatildeo de um lugar no mundo que torne a opiniatildeo

significativa e a accedilatildeo eficazrdquo7

O paradoxo praacutetico dos direitos humanos na modernidade encontra-se logo

enunciado quando os direitos do homem deveriam socorrer aquele que perdeu todo o

status poliacutetico e qualquer outra qualidade ndash exceto a de ser unicamente humano ndash a

estrutura juriacutedico-poliacutetica dos Estados-Naccedilatildeo europeus determinava que os direitos

humanos jaacute natildeo poderiam mais vir em seu socorro Precisamente essa lacuna ndash horizonte

natildeo de anomia mas de um direito que quedava absolutamente indiferente em relaccedilatildeo agrave

proteccedilatildeo e tutela da figura humana em seu estado puro e sem qualidades ndash constituiraacute uma

das forccedilas motrizes da gecircnese reciacuteproca da refundamentaccedilatildeo dos direitos humanos e da

emergecircncia de praacuteticas de Justiccedila de Transiccedilatildeo Esse contexto relaciona-se com as praacuteticas

adotadas nos julgamentos de Nuremberg e Toacutequio de modo que as raiacutezes mais profundas

do processo moderno de internacionalizaccedilatildeo da Justiccedila de Transiccedilatildeo remontam aos marcos

histoacutericos e teoacutericos que determinaram a constituiccedilatildeo do proacuteprio Direito Internacional dos

Direitos Humanos (FUTAMURA 2008 p 30-51)

A situaccedilatildeo histoacuterica paradoxal que atravessou o entreguerras e atingiu o fim da

primeira metade do seacuteculo XX apoia-se na cesura ndash ainda natildeo completamente desaparecida

da realidade dos Estados-Naccedilatildeo ndash entre homem e cidadatildeo No interior dessa cesura Arendt

e Agamben viram tornar-se aparente o terriacutevel contraste entre o idealismo iluminista

fundador dos Direitos Humanos inalienaacuteveis ndash contido nas declaraccedilotildees liberal-burguesas e

na filosofia moral kantiana na qual estas se inspiraram ndash e a existecircncia de seres humanos

sem direito algum que ao serem privados do direito a ter direitos (ARENDT 2009 p

330) tornavam-se o refugo da terra e no plano de suas concretas existecircncias colocavam

em xeque a validade e a universalidade dos direitos inerentes a uma descarnada condiccedilatildeo

humana

O diagnoacutestico de Arendt estabelecido sobre a desarticulaccedilatildeo entre a vida nua

natural de homens desprovidos de toda condiccedilatildeo de legalidade e sua condiccedilatildeo de

cidadania soacute permitia compreender certa natureza humana e metafiacutesica como o elemento

evanescente do cidadatildeo nacional ndash este sim uacutenica condiccedilatildeo do laccedilo juriacutedico-poliacutetico capaz

7 De acordo com Arendt (2009 p 330) ldquoSoacute conseguimos perceber a existecircncia de um direito a ter direitos (e

isto significa viver em uma estrutura onde se eacute julgado pelas accedilotildees e opiniotildees) e de um direito de pertencer a

algum tipo de comunidade organizada quando surgiram milhotildees de pessoas que haviam perdido esses

direitos e natildeo podiam recuperaacute-los devido agrave nova situaccedilatildeo poliacutetica globalrdquo

24

de assegurar a algueacutem o direito a ter direitos no contexto europeu do entreguerras Foi

precisamente essa desarticulaccedilatildeo entre homem e cidadatildeo que tornou juridicamente

possiacutevel ou ao menos indiferente a praacutetica de descartabilidade de seres humanos nos

campos de concentraccedilatildeo e extermiacutenio

Diante disso a reaccedilatildeo de uma miacutetica ldquoconsciecircncia universalrdquo teria orquestrado no

poacutes-Segunda Guerra a refundamentaccedilatildeo dos direitos humanos sob uma base normativa

internacional dotando-os progressivamente de instrumentos de controle de monitoramento

e de mecanismos de promoccedilatildeo e proteccedilatildeo visando a solucionar o paradoxo diagnosticado

por Arendt por intermeacutedio da superaccedilatildeo do modelo westfaliano de normas de muacutetua

abstenccedilatildeo na dinacircmica relacional dos Estados-Naccedilatildeo (LAFER 2008 p 297) Eis o que

designa no periacuteodo do poacutes-1945 uma nova fase dos Direitos Humanos que compreende a

institucionalizaccedilatildeo da comunidade internacional e a criaccedilatildeo de novos documentos

internacionais ndash especialmente a partir do advento fundacional da Declaraccedilatildeo Universal

dos Direitos Humanos (ALMEIDA 2001 p 13-14)8 ndash mas tambeacutem desenvolve um

periacuteodo de crescente positivaccedilatildeo internacional ampliado com a ediccedilatildeo dos Pactos

Internacionais de Direitos Civis e Poliacuteticos e de Direitos Econocircmicos Sociais e Culturais

em 1966

Dezenas de documentos internacionais contemplando mecanismos de efetivaccedilatildeo e

proteccedilatildeo internacional dos Direitos Humanos seguem-se a 1966 consagrando-se na

Conferecircncia de Teeratilde de 1968 (art 13) a interdependecircncia e a indivisibilidade entre

Direitos Civis e Poliacuteticos e Direitos Econocircmicos Sociais e Culturais conquistada apoacutes

longas e difiacuteceis negociaccedilotildees multilaterais (DOUZINAS 2007 p 15) Do ponto de vista

da construccedilatildeo de um regime juriacutedico universal para os Direitos Humanos seu apogeu teria

sido a criaccedilatildeo do Tribunal Penal Internacional como mecanismo supraestatal e permanente

de tomada e prestaccedilatildeo de contas (AMBOS 2009 p 67-86)

A fim de compreender esse percurso histoacuterico Ruti Teitel (2003 p 70-71)

descreve a evoluccedilatildeo das praacuteticas da Justiccedila de Transiccedilatildeo ndash e a consequente formulaccedilatildeo

teoacuterica de que essas praacuteticas passaratildeo a depender ndash a partir de trecircs recortes histoacutericos9

Embora reconheccedila que as origens da moderna Justiccedila de Transiccedilatildeo remontam agrave Primeira

Guerra Mundial eacute apenas apoacutes a Segunda que ela se torna excepcional e atravessa um

processo de intensa internacionalizaccedilatildeo Uma segunda fase posterior ao fim da Guerra

8 Ver ainda nesse sentido (LAFER 2008 p 298) e ( PIOVESAN 2012 p 175)

9 Argumento genealoacutegico que poucos anos mais tarde reapareceraacute resumido em (TEITEL 2005 p 839-

840)

25

Fria emerge de forma associada agraves vagas democraacuteticas europeias que tecircm iniacutecio no ano de

1989 e que persistem ateacute o final do seacuteculo XX Uma terceira e uacuteltima fase relaciona-se

com as condiccedilotildees contemporacircneas de persistecircncia de conflitos que desenham as fundaccedilotildees

de um direito normalizado de violecircncia Em seu acircmbito Teitel afirma que a Justiccedila de

Transiccedilatildeo que dali emerge jaacute natildeo se filia pura e simplesmente ao internacionalismo ou agrave

construccedilatildeo dos Estados nacionais como resultou das duas primeiras fases mas parece

mover-se da exceccedilatildeo em direccedilatildeo agrave norma a fim de tornar-se o paradigma de todo o rule of

law

Se nos ativermos agrave descriccedilatildeo que Ruti Teitel realiza da primeira fase notaremos

que o julgamento de Nuremberg lanccedila luzes sobre a gecircnese conjunta de uma moderna

Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo e o fenocircmeno de internacionalizaccedilatildeo dos direitos humanos

no poacutes-Segunda Guerra Dessa perspectiva Nuremberg teria representado o triunfo da

Justiccedila de Transiccedilatildeo nos quadros do Direito Internacional dos Direitos Humanos (TEITEL

2003 p 70) ao mesmo tempo em que testemunhava o surgimento de um novo tipo de

ordem normativa poacutes-guerra ndash o que caracterizou por excelecircncia o turning point no

acircmbito do Direito Internacional (DOUZINAS 2007 p 21-22)

O julgamento de Nuremberg teria constituiacutedo um evento sem precedentes na

histoacuteria do Ocidente capaz de unir as duas pontas de uma longa histoacuteria dos combates

poliacuteticos em defesa dos Direitos Humanos de um lado a tradiccedilatildeo da duradoura histoacuteria do

universalismo humanista europeu ndash sumariada na reabilitaccedilatildeo do argumento jusnaturalista

no quadro legal internacional dos direitos humanos ndash e de outro a criaccedilatildeo de novas

categorias como a de crimes contra a humanidade agraves quais se chegava pelo

reconhecimento da forccedila vinculante do costume internacional dos paiacuteses cosidetti

civilizados orientados por princiacutepios universalmente reconhecidos pela Humanidade ndash

argumento costumeiro que foi capaz de suplantar os argumentos situacionistas dos

defensores dos agentes nazistas baseados no princiacutepio da ilegitimidade de tribunais de

exceccedilatildeo na impossibilidade de justiccedila retroativa no argumento poliacutetico do justiciamento

dos perdedores ou no demasiadamente juriacutedico argumento do estrito cumprimento do

dever legal e da adesatildeo das condutas dos agentes violadores de direitos humanos aos

princiacutepios e agraves formas de uma legalidade entatildeo vigentes no Estado alematildeo do III Reich

Ao criminalizarem as violaccedilotildees cometidas pelos Estados nos quadros de um

esquema universal de direitos os julgamentos do poacutes-Segunda Guerra forjaram natildeo apenas

um precedente excepcional mas tambeacutem constituiacuteram o legado formador da base dos

modernos direitos humanos (TEITEL 2000) Como reaccedilatildeo criacutetica agraves falhas dos

26

julgamentos nacionais predominantes no poacutes-Primeira Guerra ndash insuficientes para evitar a

carnificina que teria lugar algumas deacutecadas mais tarde ndash os tribunais de Nuremberg e

Toacutequio deslocaram os padrotildees nacionais canocircnicos em proveito de uma concepccedilatildeo

internacional de justiccedila

Esse deslocamento teve como consequecircncia a extensatildeo dos efeitos de

accountability (prestaccedilatildeo de contas) na direccedilatildeo da responsabilizaccedilatildeo criminal internacional

do Estado e de seus agentes envolvidos na perpetraccedilatildeo de crimes contra a humanidade

alcanccedilando servidores dos mais altos escalotildees do III Reich (TEITEL 2003 p 73) No

entanto esta viragem da Justiccedila de Transiccedilatildeo de fundamentaccedilatildeo nacional em direccedilatildeo a uma

ancoragem internacional natildeo permaneceu imune agraves criacuteticas de que Nuremberg seria uma

justificativa para a intervenccedilatildeo dos Aliados na Guerra ou agraves criacuteticas de que a justiccedila levada

a efeito por esse julgamento natildeo passaria de uma resposta legal internacional dirigida pela

lei do conflito

Especialmente sensiacutevel apoacutes a polarizaccedilatildeo poliacutetica decorrente do contexto da

Guerra Fria seu legado desenvolveu-se de modo que a forccedila de seu precedente contribuiu

com o incremento do Direito Internacional dos Direitos Humanos favorecendo a adoccedilatildeo

da Convenccedilatildeo para a Prevenccedilatildeo e Repressatildeo do Crime de Genociacutedio bem como para a

criaccedilatildeo do Tribunal Penal Internacional como uma de suas mais recentes consequecircncias

de modo que o periacuteodo do poacutes-guerra teria sido ldquoo apogeu da crenccedila do direito como um

instrumento de modernizaccedilatildeo do Estadordquo (TEITEL 2003 p 74)

As transiccedilotildees poliacuteticas que se verificam a partir dos anos 1980 nos paiacuteses do Cone

Sul entatildeo governados por juntas militares que se estabeleceram a partir de golpes de

Estado gerados no seio da polarizaccedilatildeo entre capitalistas e comunistas teriam sido algumas

das ondas concecircntricas desencadeadas pelo colapso da antiga Uniatildeo Sovieacutetica

O que prova o caraacuteter paradigmaacutetico do modelo de Justiccedila de Transiccedilatildeo de

Nuremberg segundo Ruti Teitel (2003 p 75) eacute que os paiacuteses do Cone Sul teriam

questionado em suas transiccedilotildees poliacuteticas em que medida se poderia aderir agravequele modelo

sendo duvidoso o ecircxito de transiccedilotildees baseadas em julgamentos internacionais optando-se

quando muito por deixaacute-los ao encargo domeacutestico Assim a modernizaccedilatildeo e a adoccedilatildeo de

uma forma de Estado de Direito (rule of law) teriam sido equacionadas com a instituiccedilatildeo

de tribunais e a promoccedilatildeo de julgamentos a fim de possibilitar as transiccedilotildees poliacuteticas e a

consequente legitimaccedilatildeo dos regimes sucessores

Apesar disso Teitel (2003 p 76) natildeo deixa de observar que ainda que os

julgamentos tenham sido majoritariamente domeacutesticos nas transiccedilotildees poacutes-Guerra Fria o

27

direito internacional natildeo deixou de desempenhar um papel construtivo fundado no

profundo e paradigmaacutetico horizonte de sentido instaurado por Nuremberg que definiu o

rule of law em termos universalizantes aplicado agora a contextos locais marcados por

uma ineacutedita tensatildeo entre responsabilizaccedilatildeo e anistia entre justiccedila e reconciliaccedilatildeo O

criteacuterio de justo passa a depender mais da singularidade do contexto poliacutetico transicional

que dos valores ideais do modelo de rule of law adotado tendo por consequecircncia a

emergecircncia de uma seacuterie de concepccedilotildees de justiccedila imperfeitas e parciais

Nos anos 1980 as praacuteticas da Justiccedila de Transiccedilatildeo e sua correspondente teoria

assumem uma postura questionadora em face do modelo de Nuremberg de modo que as

formas adotadas pelas transiccedilotildees singulares passam a ser intensamente condicionadas pelo

contexto poliacutetico singular ao qual se aplicam (TEITEL 2003 p 78) Os dilemas entre

justiccedila e verdade responsabilidade e reconciliaccedilatildeo seratildeo construiacutedos no corpo das

experiecircncias mais centradas em concepccedilotildees restaurativas e comunitaacuterias testemunhando

uma interaccedilatildeo complexa entre dimensotildees do universal do global e do local apesar de

revelarem uma abordagem mais limitada decorrente dessas tensotildees e da revivescecircncia dos

problemas da legitimidade e da soberania governamental domeacutestica (TEITEL 2003 p

89)

Ruti Teitel (2003 p 73) reconhece que a polarizaccedilatildeo macropoliacutetica gerada pela

Guerra Fria implicou a impossibilidade de universalizar o modelo da Justiccedila de Transiccedilatildeo

construiacutedo no poacutes-Segunda Guerra No entanto Teitel limita-se a afirmar que o modelo do

poacutes-guerra europeu possuiacutea um propoacutesito liberal acentuado e que o internacionalismo

contemporacircneo teria sido profundamente transformado pelos uacuteltimos desenvolvimentos da

globalizaccedilatildeo ndash particularidade que iria ao encontro do que descreve como a terceira fase

genealoacutegica em que diante de um contexto de fragmentaccedilatildeo e persistecircncia dos conflitos a

Justiccedila de Transiccedilatildeo deixaria de ser exceccedilatildeo e passaria a constituir a regra instauradora de

um novo paradigma do rule of law (TEITEL 2005 p 840) Nesse sentido a jurisprudecircncia

internacional atestaria a expansatildeo e a normalizaccedilatildeo do discurso humanitaacuterio de modo que

as fontes de legitimidade disponiacuteveis implicariam um continuum entre o local e o

transnacional

Recentemente o jurista grego Costas Douzinas (2007 p 29) demonstrou como a

retoacuterica dos direitos humanos pocircde ser generalizada e entregue a um uso paradoxal

especialmente a partir dos anos quarenta do seacuteculo XX No seio das batalhas ideoloacutegicas

que pautaram os anos de Guerra Fria os direitos humanos encontrar-se-iam subordinados

agraves prioridades poliacuteticas anticomunistas dos paiacuteses de capitalismo desenvolvido as quais

28

teriam terminado por submeter qualquer potencial emancipatoacuterio encerrado pelos

universais do Ocidente

A partir de 1989 o triunfo aparentemente definitivo dos valores humanitaacuterios natildeo

teria impedido uma recaptura constante da retoacuterica dos direitos humanos no interior do

eufemiacutestico vocabulaacuterio beacutelico das intervenccedilotildees humanitaacuterias lideradas pelos Estados

Unidos da Ameacuterica tampouco teria impedido o desenvolvimento da poliacutetica estadunidense

de ativo envolvimento em questotildees domeacutesticas segundo Douzinas

No interior do mesmo bloco histoacuterico Antonio Negri e Michael Hardt descrevem o

direito de intervenccedilatildeo baseado em uma moralidade que se representa como universal no

coraccedilatildeo do que nomearam ldquoprocesso de constituiccedilatildeo do Impeacuteriordquo anexando uma ciecircncia

poliacutetica fundada no bellum justum como um de seus nefastos poreacutem eficazes instrumentos

operatoacuterios

A nova ordem global natildeo se caracterizaria tanto pela hegemonia de um Estado

mas antes pela difusatildeo generalizada em escala total de uma loacutegica de

governamentalidade imanente flexiacutevel e modulaacutevel capaz de operar como dispositivo de

biopoder em um contexto transnacional coalescente com um permanente estado de

emergecircncia e exceccedilatildeo No interior dessa loacutegica a retoacuterica dos direitos humanos seria a

exemplo do que afirma Costas Douzinas capturada sob a forma do apelo a valores

essenciais de justiccedila de modo que ldquoo direito de poliacutecia eacute legitimado por valores

universaisrdquo (NEGRI HARDT 2006 p 36)

Tanto a genealogia proposta por Teitel como as criacuteticas de Negri Hardt e

Douzinas auxiliam a compreender que se de um lado internacionalizaccedilatildeo dos direitos

humanos e das formas de Justiccedila de Transiccedilatildeo satildeo dois fenocircmenos coalescentes de outro

seu desenvolvimento histoacuterico-poliacutetico eacute essencialmente ambiacuteguo e natildeo implica um

progresso linear unidimensional redentor ou triunfante Costas Douzinas (2007 p 32-33)

parece apreendecirc-lo apropriadamente ao afirmar que os direitos humanos tornam-se a um soacute

tempo maiores e menores Maiores ao passo em que se tornam imprescindiacuteveis e sua

retoacuterica admite os mais variados usos estrateacutegicos menores ao passo em que nos paiacuteses

objeto de ldquointervenccedilotildees humanitaacuteriasrdquo ndash como Afeganistatildeo e Iraque por exemplo ndash o uso

paradoxal de sua retoacuterica impotildee um modelo empobrecido de democracia que eacute tornado

mais importante que a efetiva proteccedilatildeo aos direitos humanos

Essa loacutegica de submissatildeo dos direitos humanos a usos estrateacutegicos nos campos

poliacutetico e econocircmico teria em larga medida determinado o processo continental de

esmagamento das fraacutegeis democracias nacionais latino-americanas desencadeado a partir

29

do golpe de Estado de 1964 no Brasil alastrando-se sistemicamente nos anos seguintes

por diversos paiacuteses da Ameacuterica Latina como Meacutexico (1968) Chile e Uruguai (1973) e

Argentina (1976)

As praacuteticas desenvolvimentistas dos anos cinquenta e sessenta natildeo apenas natildeo seratildeo

desmontadas como seratildeo adaptadas ao discurso nacionalista testemunhando a faceta

conservadora do crescimento econocircmico que ora assumindo a alternativa da antecipaccedilatildeo

neoliberal ndash visiacutevel no modelo argentino ndash ora tornando o Estado o elemento central de

intervenccedilatildeo poliacutetico-econocircmica na construccedilatildeo de alianccedilas com o capital multinacional ndash

mas conservando a proteccedilatildeo do mercado interno como nos modelos brasileiro e mexicano

ndash acabaraacute por conduzir os paiacuteses latino-americanos ao endividamento externo sem que o

crescimento econocircmico tivesse significado outra coisa que natildeo o aprofundamento da

pobreza (NEGRI COCCO 2005 p 104-107)

ldquoA funccedilatildeo das ditadurasrdquo segundo Idelber Avelar (2003 p 262-263) ldquofoi a

instalaccedilatildeo da etapa poacutes-moderna do capitalrdquo em seu sentido jamesoniano em que o capital

transnacional torna-se global e parece colonizar a totalidade do horizonte epocal tornando

problemaacutetica a proacutepria compreensatildeo do presente Na foacutermula do escritor uruguaio Eduardo

Galeano que Avelar recorda para caracterizar a funccedilatildeo histoacuterica das ditaduras ldquotorturou-se

o povo para que os preccedilos pudessem ser livresrdquo

Apesar de contraindicar qualquer messianismo ou triunfalismo intriacutensecos agrave

afirmaccedilatildeo histoacuterica dos direitos humanos a verificaccedilatildeo desses paradoxos e duplos em

nenhum momento advogaraacute a descartabilidade dos direitos humanos Pelo contraacuterio seu

caraacuteter antimessiacircnico designa antes a singularidade das lutas por direitos como um

terreno imanente de combate de reivindicaccedilatildeo e de produccedilatildeo de direitos Douzinas

reconhece nesse sentido que os direitos humanos constituem ainda certo resiacuteduo

transcendental afinal natildeo haacute hoje nenhuma outra linguagem agrave disposiccedilatildeo dos pobres dos

oprimidos e dos torturados senatildeo a da reivindicaccedilatildeo de direitos

Afirmar como Douzinas (2007 p 33) ldquoHuman rights have only paradoxes to

offerrdquo natildeo testemunha nenhum niilismo poliacutetico ou vazio programaacutetico fundamentais

Maiores e menores ao mesmo tempo os direitos humanos constituem o terreno a todo

instante em disputa ainda que nos faccedilam experimentar a mesma estranheza que

experimentava a Alice de Lewis Caroll que se sente crescer e diminuir os direitos

humanos constituem um infinito jogo de paradoxos e de duplos

30

CAPIacuteTULO 2 ndash DIREITO-ENTRE O JURIacuteDICO E AS INSTITUICcedilOtildeES NO

SEIO DAS TRANSICcedilOtildeES

sect 1 DIREITO INSTITUICcedilOtildeES E TRANSICcedilAtildeO

Afirmou-se que o duplo e o paradoxo parecem ser as figuras constitutivas de todo o

pensamento sobre os direitos humanos mas natildeo seria menos vaacutelido dizer o mesmo sobre a

Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo Um consenso teoacuterico que atravessa pela quase totalidade de

sua bibliografia recente eacute aquele segundo o qual a Justiccedila de Transiccedilatildeo deixa-se penetrar e

constituir por seacuteries de duplos implicando ao mesmo tempo continuidade e

descontinuidade (TEITEL 2000 p 30) um olhar para o passado e para o futuro (TEITEL

2000 p 113 TEITEL 2010 p 36) estabilidade e instabilidade poliacutetico-institucionais Eacute

no seio dessas continuidades-rupturas influenciadas pelos singulares arranjos de forccedilas

que rejeitando ecleticamente as perspectivas realistas e idealistas Teitel (2000 p 06)

afirma que ldquothe conception of justice in periods of political change is extraordinary and

constructivist It is alternately constituted by and constitutive of the transitionrdquo

Tentando superaacute-la Teitel interpreta a dicotomia entre realistas e idealistas no

terreno da Justiccedila de Transiccedilatildeo como o efeito de superfiacutecie de uma antinomia mais

profunda verificada entre poliacutetica e direito Enquanto os idealistas apostariam na

autonomia do direito e em seu papel determinante sobre a poliacutetica teoacutericos realistas

compreenderiam o direito nos periacuteodos poacutes-conflituais como uma determinaccedilatildeo decorrente

dos arranjos do campo de forccedilas poliacuteticas Ambas as perspectivas no entanto teriam

fracassado em descrever o papel constitutivo que o direito assume em sociedades que

atravessam periacuteodos de radical transformaccedilatildeo poliacutetica Embora haja sensiacuteveis constriccedilotildees

provenientes de seus quadros legais natildeo haacute uma simples e transcendente hegemonia de

regras universais de direitos humanos tampouco uma pura determinaccedilatildeo das instituiccedilotildees e

do direito pela poliacutetica

Se Teitel opta por descrever o papel construtivista que o direito desempenha nos

contextos de transiccedilatildeo eacute com o intuito de assinalar que as instituiccedilotildees satildeo ao mesmo tempo

objeto e causa de transformaccedilotildees operadas no seio de uma singular e contingente dinacircmica

transicional Natildeo haveria portanto modelo universal de accountability capaz de descrever

as razotildees suficientes para converter um Estado autoritaacuterio e violento em Estado

democraacutetico e de Direito

31

O direito eacute constitutivo das instituiccedilotildees ao passo em que medeia a preservaccedilatildeo de

certo niacutevel de continuidade formal e em que incorpora ao mesmo tempo uma genuiacutena

instacircncia de descontinuidade transformativa (TEITEL 2000 p 220 GREADY 2011 p

151) Sua funccedilatildeo eacute a de cesura e a de margem sua qualidade liminar trata-se de um

direito que estaacute entre dois regimes mais proacuteximo de um poder constituinte que no entanto

uma vez despojado de seus caracteres mais claacutessicos natildeo eacute onipotente tampouco

incondicionado uma vez que se estrutura sobre os quadros legais transnacionais dos

Direitos Humanos da Justiccedila de Transiccedilatildeo e das variaccedilotildees que se verificam nos arranjos de

poder locais

O relevante papel desempenhado pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos

nesse aspecto deriva de sua capacidade de mediar com sucesso correntes teoacutericas

derivadas do juspositivismo e do jusnaturalismo superando a relaccedilatildeo convencional entre

direito e poliacutetica ou como quisera Paul Gready (2011 p 10) balanceando-os Embora seja

possiacutevel agrave transiccedilatildeo operar uma alteraccedilatildeo da regra de reconhecimento Teitel afirma que eacute

mais comum haver uma reinterpretaccedilatildeo racionalizadora das bases normativas existentes

testemunhando uma forma especial de continuidade-ruptura

Como resultado do processo de internacionalizaccedilatildeo dos Direitos Humanos

afetaram-se igualmente os quadros da doutrina e das praacuteticas da Justiccedila de Transiccedilatildeo10

Consequentemente a Justiccedila de Transiccedilatildeo enriquece-se passando a compreender a

participaccedilatildeo de diversos niacuteveis que concorrem para sua produccedilatildeo institucional como

instituiccedilotildees supranacionais Estados-Naccedilatildeo organismos e indiviacuteduos (ELSTER 2006 p

114)

As instituiccedilotildees supranacionais compreendem os Tribunais Internacionais aiacute

incluiacutedas as Cortes Internacionais de Direitos Humanos que sem representar sucessores ou

vencedores atuam em nome da proacutepria comunidade internacional A paulatina criaccedilatildeo de

oacutergatildeos e mecanismos de controle internacionais com abrangecircncia universal como o

Tribunal Penal Internacional ou regional como os Tribunais Europeus a Corte

Interamericana de Direitos Humanos a Comissatildeo Interamericana de Direitos Humanos

etc determinaram no uacuteltimo dececircnio significativos influxos da internacionalizaccedilatildeo dos

Direitos Humanos sobre o quadro legal da Justiccedila de Transiccedilatildeo (ZYL 2009a p 32-33)

Segundo Paul Van Zyl (2009a p 33) esse horizonte de compreensatildeo e influecircncia

implica a vinculaccedilatildeo dos Estados a normas internacionais claras que determinam

10

Cf supra Capiacutetulo 1 ldquoA gecircnese da Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo e o Direito Internacional dos Direitos

Humanosrdquo

32

proibiccedilotildees universais especialmente com a ratificaccedilatildeo de mais de cem paiacuteses da criaccedilatildeo do

Tribunal Penal Internacional No que concerne agrave Justiccedila de Transiccedilatildeo mais

especificamente no ano 2000 o Secretaacuterio Geral da ONU apresentou relatoacuterio no qual se

consagrava com precedecircncia o foco das Naccedilotildees Unidas sobre as questotildees da justiccedila

transicional

Kai Ambos (2009 p 29-30) compreende o proacuteprio desenvolvimento do regime

legal da Justiccedila de Transiccedilatildeo nos quadros do Direito Internacional dos Direitos Humanos

na medida em que esse regime normativo estrutura-se em correlaccedilatildeo com a revisatildeo e sua

reafirmaccedilatildeo histoacuterica a partir de 1948 em convenccedilotildees que tinham por objeto o Genociacutedio

as Convenccedilotildees de Genebra ndash para melhoria da sorte dos exeacutercitos em campanha (I) para

melhoria da sorte dos feridos enfermos e naacuteufragos das forccedilas armadas no mar (II)

relativa ao tratamento de prisioneiros de guerra (III) e agrave proteccedilatildeo de civis em tempos de

guerra (IV) ndash em 1949 mas tambeacutem em conexatildeo com a Convenccedilatildeo Internacional contra a

Tortura e outros Tratamentos e Penas Crueacuteis Desumanos e Degradantes aprovada pela

Assembleia Geral da Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas em de 10 de dezembro de 1984

Em segundo plano do ponto de vista regional observa-se o fortalecimento dos

regimes democraacuteticos na Ameacuterica Latina Aacutesia e Aacutefrica com a intensificaccedilatildeo do

surgimento e da participaccedilatildeo de organizaccedilotildees da sociedade civil no combate a graves

violaccedilotildees de direitos humanos Por essa razatildeo Javier Ciurlizza (2009a p 25) constata a

especial influecircncia do sistema interamericano de proteccedilatildeo e promoccedilatildeo de direitos humanos

sobre a escala internacional da definiccedilatildeo dos quadros normativos da Justiccedila de Transiccedilatildeo

reconhecendo que ldquoo sistema interamericano de direitos humanos desenvolveu ampla

jurisprudecircncia relacionada agraves obrigaccedilotildees internacionais dos Estadosrdquo

Kai Ambos (2009 p 34-36) de seu turno cita extensa jurisprudecircncia de casos da

Corte Interamericana de Direitos Humanos a fim de obter o perfil normativo internacional

da Justiccedila de Transiccedilatildeo envolvendo entre os conteuacutedos de seu conceito de justiccedila o dever

dos Estados de punir graves violaccedilotildees de direitos humanos ndash especialmente os objetos de

proteccedilatildeo dos diplomas internacionais citados ndash efetivar o direito agrave verdade das viacutetimas

isto eacute ldquoo esclarecimento de fatos ilegais e as responsabilidades correspondentesrdquo

compreendendo natildeo apenas o ldquodireito coletivo que assegura agrave sociedade o acesso agrave

informaccedilatildeo essencial ao funcionamento de sistemas democraacuteticosrdquo mas tambeacutem ldquoo direito

privado dos familiares das viacutetimas que adquire uma forma compensatoacuteria especialmente

nos casos em que leis de anistia foram adotadasrdquo (AMBOS 2009 p 34-35)

33

Ainda enovelam-se aos direitos das viacutetimas tutelados pela quadratura internacional

da Justiccedila de Transiccedilatildeo o direito agrave justiccedila ndash consubstanciado em formas de ldquoproteccedilatildeo

judicial tanto pelo acesso ao sistema legal do Estado violador (o qual de acordo com os

direitos humanos tem a obrigaccedilatildeo de investigar processar e sancionar o responsaacutevel) ou

pela via de um foacuterum puacuteblico alternativo no qual viacutetimas podem confrontar e desafiar os

violadoresrdquo (AMBOS 2009 p 36) ndash e o direito agrave reparaccedilatildeo que compreende indenizaccedilatildeo

integral compensaccedilatildeo reabilitaccedilatildeo fornecimento de garantias de natildeo repeticcedilatildeo e outros

mecanismos reparatoacuterios como o reconhecimento do estatuto de viacutetima e o

restabelecimento de seus direitos (AMBOS 2009 p 37-39)

Ao lado disso Kai Ambos descreve alternativas admissiacuteveis agrave persecuccedilatildeo criminal

dos responsaacuteveis por graves violaccedilotildees ao Direito Internacional dos Direitos Humanos que

compreendem Comissotildees de Verdade e Reconciliaccedilatildeo (AMBOS 2009 p 40-47)

saneamentos e purgaccedilotildees administrativas que visem a excluir a manutenccedilatildeo de agentes

responsaacuteveis por violaccedilotildees de direitos humanos em cargos e funccedilotildees vinculados ao aparato

burocraacutetico do Estado bem como a impedir seu retorno ainda Ambos inclui reformas

institucionais a fim de remover os dispositivos autoritaacuterios que guarneccedilam as instituiccedilotildees

em transiccedilatildeo processos de desarmamento desmobilizaccedilatildeo e reintegraccedilatildeo social e o uso de

formas tradicionais e locais geralmente natildeo-ocidentais de justiccedila e reconciliaccedilatildeo

(AMBOS 2009 p 48)

Na esteira de Ambos Paul Van Zyl (2009a p 34-39) por sua vez sumaria cinco

elementos que estruturam a Justiccedila de Transiccedilatildeo justiccedila (atento a suas funccedilotildees penais mas

tambeacutem simboacutelicas e afetivas) busca da verdade reparaccedilatildeo agraves viacutetimas reformas

institucionais e reconciliaccedilatildeo

Uma recente criacutetica endereccedilada agrave hegemonia teoacuterica das dimensotildees ndash sem duacutevida

relevantes ndash da justiccedila legal e da prestaccedilatildeo de contas pelos Estados violadores encontrou

na proposiccedilatildeo de ampliaccedilatildeo do conteuacutedo cognitivo engendrado na disciplina internacional

da Justiccedila de Transiccedilatildeo uma interessante alternativa analiacutetica Baseando-se em uma

abordagem sincreacutetica que pretende reconciliar justiccedilas restaurativa e distributiva Wendy

Lambourne (2009 p 37-47) propotildee uma Justiccedila Transformativa vocacionada a religar

passado e futuro de maneira duradoura por meio de mecanismos e processos localmente

relevantes capazes de promover prestaccedilatildeo de contas verdade e memoacuteria justiccedila

socioeconocircmica e justiccedila poliacutetica integrando-se a um processo compreensivo de

construccedilatildeo da paz

34

David Bloomfield (2005 p 45-46) e Luc Huyse (2005 p 164-165) tambeacutem

indicam a centralidade da interferecircncia da disciplina normativa internacional e de

organismos da comunidade internacional nos processos de reconciliaccedilatildeo Bloomfield

compreende que a comunidade internacional pode colaborar com a construccedilatildeo de

processos de reconciliaccedilatildeo apoacutes eventos conflitivos como fonte potencial de informaccedilotildees

experiecircncia e educaccedilatildeo mas tambeacutem com o lento poreacutem inexoraacutevel processo de

desenvolvimento do Direito Internacional dos Direitos Humanos capaz de sustentar a

forma de uma ordem juriacutedica internacional

Huyse evidencia que organismos internacionais podem intervir como aparatos

auxiliares da transiccedilatildeo em contextos poacutes-conflituais especialmente pelo uso de relatoacuterios

dentre outros mecanismos de monitoramento internacionais A Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees

Unidas organismos internacionais natildeo-governamentais como o International Centre of

Transitional Justice (ICTJ) o Centre for the Study of Violence and Reconciliation (CSVR)

o African Transitional Justice Research Network (ATJRN) e o Transitional Justice

Institute (TJI) podem colaborar com a operacionalidade teoacuterica ou teacutecnica dos processos de

transiccedilatildeo em seus contextos singulares (BRITO 2009a p 56-57)

Ainda sob o ponto de vista das interaccedilotildees entre o Direito Internacional dos Direitos

Humanos e seus principais organismos eacute possiacutevel entrever a amplitude da tese de Ruti

Teitel sobre a constitutividade do direito de transiccedilatildeo Sendo um direito-entre regimes

para aleacutem do princiacutepio territorialista de juridicidade dos Estados-Naccedilatildeo (SANTOS 2009

p 474-476) o direito transicional permite posicionar o papel das instituiccedilotildees na

consecuccedilatildeo da transiccedilatildeo

As instituiccedilotildees devem tornar-se objeto de uma mutaccedilatildeo profunda que compreende

reformas institucionais purgas e responsabilizaccedilatildeo de agentes que cometeram graves

violaccedilotildees de direitos humanos bem como sua consequente remoccedilatildeo de cargos puacuteblicos

adotando-se programas de depuraccedilatildeo e saneamento administrativo (ZYL 2009a p 38

ELSTER 2006 p 113) Tal mutaccedilatildeo constituiria uma resposta agrave persistecircncia de estruturas

e praacuteticas burocraacuteticas autoritaacuterias o que exige que as instituiccedilotildees tambeacutem sejam

requisitadas como mediadoras da concretizaccedilatildeo das demais tarefas da Justiccedila de Transiccedilatildeo

que como o proacuteprio Zyl (2009a p 54) adverte torna necessaacuterio engendrar um amplo

processo de consulta local uma vez que se estaacute a operar no terreno da singularidade

histoacuterica e cultural ndash ainda que se reconheccedilam certas vinculaccedilotildees normativas como

universais

35

Se Paul Van Zyl estiver correto ao descrever a justiccedila a verdade a reparaccedilatildeo a

reconciliaccedilatildeo e as reformas institucionais como estruturas mais gerais mas nem por isso

ideais da Justiccedila de Transiccedilatildeo as uacuteltimas aparecem como um campo privilegiado de

disputas poliacuteticas uma vez que constituem natildeo apenas o objeto de uma transformaccedilatildeo

mas principalmente satildeo exigidas como as instacircncias por meios das quais dever-se-aacute

operar uma tal transformaccedilatildeo transicional

Isso denota a centralidade dos aparelhos de Estado encarregados da identificaccedilatildeo

processamento e responsabilizaccedilatildeo de agentes puacuteblicos que cometeram graves violaccedilotildees de

direitos humanos da institucionalizaccedilatildeo de Comissotildees de Verdade e Reconciliaccedilatildeo e de

poliacuteticas reparatoacuterias destinadas aos perseguidos poliacuteticos e resistentes de um periacuteodo de

exceccedilatildeo As instituiccedilotildees incorporam a um soacute tempo uma instacircncia produzida e produtora

de justiccedila responsabilizaccedilatildeo inclusatildeo poliacutetica bem como de uma narrativa sobre o

passado Mesmo porque esses satildeo propoacutesitos da Justiccedila de Transiccedilatildeo justiccedila inclusatildeo

poliacutetica reconciliaccedilatildeo e paz nunca podem ser admitidas como a priori histoacuterico de

contextos poacutes-conflituais pois natildeo defluem de tais contextos naturalmente mas como

resultados de um esforccedilo comum de criaccedilatildeo de direitos e de modificaccedilotildees institucionais

Registram-se ainda organismos natildeo-estatais que tambeacutem concorrem em algum

niacutevel para a concretizaccedilatildeo da Justiccedila de Transiccedilatildeo como as organizaccedilotildees sociais partidos

poliacuteticos Igrejas empresas entidades sindicais etc ndash natildeo raras vezes tornados alvos

poliacuteticos do regime autoritaacuterio precedente e de seus aparatos de perseguiccedilatildeo e censura Por

sua vez a justiccedila privada assume a forma dos justiciamentos individuais e suas execuccedilotildees

extralegais podendo tomar a forma da humilhaccedilatildeo deliberada e puacuteblica ldquoEn America

Latinardquo recorda Elster (2006 p 119) ldquolos oficiales amnistiados que son conocidos por

haber participado en torturas o desapariciones han sidos condenados a un ostracismo social

de caraacutecter informalrdquo Um exemplar contemporacircneo embora constitua uma forma

geralmente natildeo-violenta e portadora de um acentuado caraacuteter poliacutetico de execraccedilatildeo

puacuteblica satildeo as praacuteticas de escrachos inventados na Argentina (BRITO GONZAacuteLEZ-

ENRIacuteQUEZ e AGUILAR 2001 p 157) e recentemente incorporadas como ldquoesculachosrdquo

pelos jovens ativistas poliacuteticos do Levante Popular da Juventude no Brasil Nesse caso a

importacircncia das accedilotildees legais ndash partam de instituiccedilotildees nacionais ou supranacionais ndash

segundo Elster deriva de uma necessidade de antecipar-se agrave vinganccedila privada ou de

bloquear sua emergecircncia

Abratildeo Payne e Torelly (2011 p 28) natildeo cessam de destacar que o caso brasileiro eacute

paradigmaacutetico uma vez que suas praacuteticas transicionais estatalistas desafiam a autoridade

36

da base normativa internacional dos Direitos Humanos Nesse particular a decisatildeo da

Corte de San Joseacute da Costa Rica impocircs uma seacuterie de obrigaccedilotildees ao Estado brasileiro em

razatildeo do Caso Araguaia sem que ateacute o presente se tenha dado integral cumprimento a ela

Nesse sentido Abratildeo Payne e Torelly (2011 p 24) afirmaram que ldquo[]o caso brasileiro

constitui-se um desafio potencial agrave norma global da responsabilizaccedilatildeo individual

sugerindo que a insurgecircncia dessa norma natildeo mudou necessariamente o comportamento

dos Estadosrdquo donde o cariz paradigmaacutetico da experiecircncia anistiadora brasileira que ao

mesmo tempo em que desafia demonstra tambeacutem do ponto de vista praacutetico o viacutenculo

geneacutetico que as doutrinas da Justiccedila de Transiccedilatildeo e o Direito Internacional dos Direitos

Humanos entretecircm

Ao mesmo tempo em que as instituiccedilotildees encerram uma possibilidade dinacircmica de

alteraccedilatildeo estrutural loacutegica e semacircntica da qual constituem um dos cernes privilegiados o

direito de transiccedilatildeo como um direito entre tambeacutem deve compreendecirc-las como campo no

qual podem persistir ndash e natildeo raro reproduzirem-se ndash formas autoritaacuterias de imaginaccedilatildeo

poliacutetico-social

Se como quisera Clifford Geertz (1983 p 232) o direito constitui um modo de

imaginaccedilatildeo social que ldquovem acompanhado de um conjunto de atitudes praacuteticas sobre o

gerenciamento de disputas que essa proacutepria forma de ver o mundo impotildee aos que a ela se

apegamrdquo (Idem ibidem p 173) eacute no seio das transiccedilotildees poliacuteticas e dos cenaacuterios poacutes-

conflituais ndash em que direito e instituiccedilotildees interpenetram-se reciacuteproca e constitutivamente ndash

que se pode verificar de que modo o direito constitui produto de hibridizaccedilotildees culturais

Nesses contextos o direito e as instituiccedilotildees assumem posiccedilotildees aparentemente paradoxais

porque se encontram no ponto de contato intenso em que se produz essa mesticcedilagem e

com mais razatildeo porque seus elementos de continuidade e de ruptura podem indeterminar-

se temporariamente (TEITEL 2000 p 17-18) Eis o que revelaria o caraacuteter intimamente

liminar de todas as transiccedilotildees bem como das estruturas juriacutedicas e conceituais que as

secundam

Vistos sob a perspectiva da continuidade o direito e as instituiccedilotildees podem tanto

estar ao lado da construccedilatildeo de uma desejaacutevel estabilidade poliacutetico-institucional como

engendrar uma negativa reproduccedilatildeo de determinado imaginaacuterio social poliacutetico e cultural

autoritaacuterio Eacute sempre possiacutevel imaginar os desenhos institucionais existentes e o plexo

normativo e praacutetico que lhes serve de suporte pendularem e indeterminarem-se entre os

polos da manutenccedilatildeo de certo equiliacutebrio institucional necessaacuterio ndash que suporta graus

variaacuteveis conforme a singularidade do jogo a que estatildeo lanccediladas as dinacircmicas de poder ndash e

37

a conservaccedilatildeo de uma forma de imaginaccedilatildeo social capaz de perpetuar legados

antidemocraacuteticos

sect 2 O QUE UM PASSADO TEM DE INSUPORTAacuteVEL NOTAS SOBRE A

CONTINUIDADE DO PASSADO NO PRESENTE A PARTIR DO CASO BRASILEIRO

Consideremos mais de perto as razotildees concretas pelas quais Paulo Abratildeo e Marcelo

Torelly (2011 p 24) diagnosticaram que a questatildeo da anistia e da responsabilizaccedilatildeo no

Brasil adquiriram uma dimensatildeo paradigmaacutetica na medida em que o caso brasileiro

constitui ldquoum desafio potencial agrave norma global da responsabilizaccedilatildeo individualrdquo Em

sentido anaacutelogo recuperemos brevemente os dilemas que envolvem a transiccedilatildeo brasileira

para colocar agrave prova a realidade praacutetica e poliacutetica da paradoxal continuidade do passado no

presente ndash de que a Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo limita-se como viacuteamos a tratar

abstratamente e apesar de prever aberturas para elementos concretos provenientes dos

singulares arranjos de poder

Em seu interior pode-se constatar sem dificuldades a atualidade da pergunta

proposta por Vladimir Safatle e Edson Teles (2010) ndash ldquoO que resta da ditadurardquo ndash e do

grito efectista e ao mesmo tempo parresiasta do psicanalista Tales AbrsquoSaber que

respondera agrave questatildeo afirmando que da ditadura restava tudo exceto a ditadura ou do

gesto de Paulo Eduardo Arantes (2010 p 205) que natildeo hesitou em afirmar 1964 como ldquoo

ano que natildeo terminourdquo Essas foram algumas das uacuteltimas vagas genealoacutegicas

desencadeadas pelo projeto ldquoDesarquivando a Ditadurardquo de Ceciacutelia MacDowell Santos

Edson Teles e Janaiacutena de Almeida Teles (2009 p 13-14) que se fundava na cartografia do

legado autoritaacuterio e na contribuiccedilatildeo criacutetica agrave constituiccedilatildeo da memoacuteria e da justiccedila no Brasil

contemporacircneo Esses gestos verdadeiramente muito proacuteximos daquele arendtiano que se

perguntava sobre ldquoo que estamos fazendo de noacutes mesmosrdquo (ARENDT 2010 p 06)

permite entrever a dupla pertenccedila das instituiccedilotildees ao passado e ao futuro no interior de uma

interrogaccedilatildeo que natildeo pode ocupar outro limiar senatildeo o da mais absoluta atualidade

Toda pesquisa genealoacutegica natildeo implica fazer do presente e dos instrumentos

democraacuteticos que passam a exigir consolidaccedilatildeo especialmente apoacutes 1988 tabula rasa do

passado de modo a lanccedilar o presente e o passado a uma completa indiferenccedila Tais

cartografias da memoacuteria assumem a tarefa de tornar visiacuteveis as formas presentes por meio

das quais um legado antidemocraacutetico emerge reproduz-se e se dissimula cotidianamente

38

A presenccedila de um legado autoritaacuterio sem a sua representaccedilatildeo ndash senatildeo factiacutecia e natildeo raro

violenta ndash constitui o iacutendice de incompletude do processo de transiccedilatildeo democraacutetica

atestado entre noacutes jaacute haacute alguns dececircnios (PINHEIRO 2002 p 240-242 ABRAtildeO e

TORELLY 2011 p 241)

Evitando toda negatividade da incompletude Glenda Mezzaroba (2003 p 10)

prefere compreender a anistia brasileira como um processo poliacutetico de longa duraccedilatildeo que

iniciado em 1979 natildeo cessou de ser redefinido e ampliado desde entatildeo Se tomarmos

como Mezzaroba a transiccedilatildeo como uma tarefa positiva torna-se preciso estabelecer

algumas linhas gerais de accedilatildeo em que a dinacircmica da mutaccedilatildeo institucional no Brasil

contemporacircneo deve estar implicada sem prescindir de um olhar retrospectivo capaz de

identificar algumas manifestaccedilotildees de espectro autoritaacuterio

Comparando o Brasil de antes e de depois da transiccedilatildeo Kathryn Sikkink e Carrie

Booth Walling (2007 p 437) observam que ldquo() Brazil experienced a greater decline in

its human rights practices than any other transitional country in the regionrdquo Sua anaacutelise

sugere que a experiecircncia brasileira possa ser considerada exemplar de que a transiccedilatildeo

democraacutetica eacute causa necessaacuteria mas natildeo suficiente de uma melhora nas praacuteticas estatais e

sociais relacionadas a direitos humanos

Aleacutem de enfatizar a denegaccedilatildeo dos direitos agrave memoacuteria e agrave verdade o Informe 2010

da Anistia Internacional (2010 p 113-116) apontou que apesar da ediccedilatildeo de um novo

Plano Nacional de Direitos Humanos datado de 2009 e da realizaccedilatildeo de algumas reformas

limitadas na aacuterea de seguranccedila puacuteblica o policiamento ostensivo continuava a empregar

forccedila excessiva a praticar execuccedilotildees extrajudiciais e a tortura mantendo-se impunes seus

perpetradores De acordo com dados do Informe o Estado do Rio de Janeiro por exemplo

registrou mais de dez mil mortes violentas entre os anos de 1998 e 2009 por suposta

resistecircncia policial Entre os anos de 2010 e 2013 tambeacutem se relatou a atuaccedilatildeo contiacutenua de

grupos parapoliciais e de extermiacutenio no Brasil (ANISTIA INTERNACIONAL 2010 p

115 2011 p 112 2012 p 110-111 e 2013 p 52-53)

Uma constante nos informes anuais produzidos pela Anistia Internacional nos

uacuteltimos anos (2010-2013) eacute o relato do envolvimento de diversos agentes de execuccedilatildeo da

lei com o crime organizado e grupos de extermiacutenio Por mais de uma vez os representantes

da Anistia Internacional consignaram que o sistema prisional brasileiro caracterizava-se

pelo uso constante da tortura bem como verificou condiccedilotildees crueacuteis desumanas e

degradantes na maior parte dos estabelecimentos de internamento provisoacuterios e

39

permanentes visitados (ANISTIA INTERNACIONAL 2010 p 115 2011 p 114 2012

p 111 e 2013 p 53)

Agrave conclusatildeo semelhante chegou o Relatoacuterio sobre a visita ao Brasil do Subcomitecirc

de Prevenccedilatildeo da Tortura e outros Tratamentos ou Penas Crueacuteis Desumanos ou

Degradantes da Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas publicado em Fevereiro de 2012 Tendo

visitado instituiccedilotildees para pessoas em situaccedilatildeo de privaccedilatildeo de liberdade ndash como instituiccedilotildees

policiais de detenccedilatildeo provisoacuteria instituiccedilotildees prisionais instituiccedilotildees para Crianccedilas e

Adolescentes bem como centros de tratamento meacutedico para dependentes quiacutemicos ndash nos

Estados de Satildeo Paulo Rio de Janeiro e Espiacuterito Santo verificou-se que muitas das

recomendaccedilotildees feitas ao Estado Brasileiro em 2012 eram objeto de reiteraccedilatildeo pela

Subcomissatildeo Isto eacute a visita do oacutergatildeo desvelou a omissatildeo sistemaacutetica do Estado em

relaccedilatildeo agrave tutela de direitos humanos e fundamentais de pessoas em situaccedilatildeo de privaccedilatildeo de

liberdade

Ainda no campo das relaccedilotildees entre Estado e cidadatildeo ndash com ecircnfase no tratamento

governamental dispensado a grupos vulneraacuteveis politicamente minoritaacuterios e socialmente

marginalizados ndash os Informes editados entre 2010 e 2013 pela Anistia Internacional

reportaram contiacutenuas ameaccedilas e violaccedilotildees de direitos de povos indiacutegenas trabalhadores

sem terras e pequenas comunidades rurais assim como ativistas sociais e defensores de

direitos humanos relataram ameaccedilas ataques e acusaccedilotildees politicamente motivados11

Demais direitos sociais como o direito agrave moradia direitos sexuais e reprodutivos direitos

das mulheres etc foram consistente objeto de preocupaccedilatildeo nos Informes do periacuteodo que

relataram ainda a ameaccedila que obras do Programa de Aceleraccedilatildeo do Crescimento

representavam a direitos de comunidades locais

Projetos de construccedilatildeo de represas de estradas e de portos foram natildeo raro levados

a cabo por meio de remoccedilotildees forccediladas de comunidades locais (ANISTIA

INTERNACIONAL 2010 p 116 ainda 2013 p 54) Exemplar a esse respeito o caso da

comunidade ldquoAldeia Maracanatilderdquo indiacutegenas ocupavam desde 2006 o preacutedio histoacuterico do

Museu do Iacutendio localizado no entorno do Estaacutedio do Maracanatilde na cidade do Rio de

Janeiro e foram removidos apoacutes deferimento de pedido de reintegraccedilatildeo de posse pelo

Batalhatildeo de Operaccedilotildees Especiais e pelo Batalhatildeo de Choque da Poliacutetica Militar do Estado

do Rio de Janeiro a fim de viabilizar a realizaccedilatildeo de obras para a Copa do Mundo de 2014

11

Cf a esse respeito (ANISTIA INTERNACIONAL 2010 p 115-117) (Idem 2011 p 114-116) (Idem

2012 p 111-113) e (Idem 2013 p 53-55) Todos os documentos citados estatildeo disponiacuteveis em liacutengua

portuguesa em lthttpwwwamnestyorggt Acesso em 31mai2013

40

ou ainda o caso da construccedilatildeo da Usina de Belo Monte cujos canteiros foram ocupados

por povos indiacutegenas de diversas etnias a fim de impedir a construccedilatildeo da Hidreleacutetrica sem

consulta preacutevia aos povos alocados na regiatildeo Trata-se de casos emblemaacuteticos de uma

tensatildeo crescente entre projetos governamentais de crescimento econocircmico e suas

consequecircncias imediatamente humanas e ambientais no Brasil contemporacircneo

Em atenccedilatildeo ao fato de que o Brasil eacute um dos uacutenicos paiacuteses do mundo a contar com

um aparato policial militarmente estruturado um Grupo de Trabalho no acircmbito do Exame

Perioacutedico Universal vinculado ao Conselho de Direitos Humanos da Organizaccedilatildeo das

Naccedilotildees Unidas recomendou ao governo brasileiro a desmilitarizaccedilatildeo de sua poliacutecia

ostensiva (EFE 2012) Jorge Zaverucha (2010 p 56) retraccedilou as origens do exerciacutecio do

policiamento ostensivo da Poliacutecia Militar ndash que permaneceu com seus efetivos

aquartelados ateacute 1969 quando no aacutepice da repressatildeo poliacutetica passaram a ser o principal

fiador da ordem puacuteblica Zaverucha natildeo deixou de notar ainda que a Constituiccedilatildeo da

Repuacuteblica de 1988 nada fizera contra a consolidaccedilatildeo da militarizaccedilatildeo da aacuterea de seguranccedila

ao contraacuterio reproduziu no artigo 142 redaccedilatildeo que torna as Forccedilas Armadas ldquogarantidoras

da lei e da ordemrdquo12

Natildeo apenas a estrutura policial militarizada mas tambeacutem o atual desenho

institucional das Forccedilas Armadas constituem-se de espectros agrave sombra dos quais eacute

possiacutevel compreender a genealogia profunda da violecircncia sistecircmica relatada nos Informes

da Anistia Internacional ndash problemas admitidos e encampados como objetivos do terceiro

Plano Nacional de Direitos Humanos (BRASIL 2009 p 23) Apesar disso ainda que

registrada a criaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo da Comissatildeo Nacional da Verdade nos Informe de 2012 e

2013 o acompanhamento do tema pela Anistia Internacional entre os anos de 2010 e 2013

resultou em constataccedilotildees sucessivas de atraso do Estado brasileiro no contexto regional em

relaccedilatildeo ao combate a uma cultura de impunidade por violaccedilotildees do passado (ANISTIA

INTERNACIONAL 2010 p 114 2011 p 116 2012 p 109-110 2013 p 52)13

12

Zaverucha (2010 p 58) imagina duas hipoacuteteses a fim de demonstrar de que maneira o artigo 142

reinscreve uma forma da exceccedilatildeo na Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica de 1988 ldquoO artigo 137 da Constituiccedilatildeo de

1988 refere‑se agrave situaccedilatildeo de Estado de siacutetio tiacutepico caso em que lei e ordem estatildeo em perigo De acordo com

o referido artigo o presidente necessita de autorizaccedilatildeo do Congresso para declarar o Estado de siacutetio Vamos

supor que o Congresso natildeo creia que a lei e a ordem estatildeo ameaccediladas entatildeo o presidente natildeo poderaacute pedir a

intervenccedilatildeo militar Contudo o presidente ante pressatildeo militar pode circundar o Congresso invocando o

artigo 142 e a partir dele solicitar que os militares restabeleccedilam a lei e a ordemrdquo 13

O Informe 2013 expressou preocupaccedilatildeo com os efeitos da Lei de Anistia brasileira como obstaacuteculos agrave

responsabilizaccedilatildeo de violadores de direitos humanos consignando que a posiccedilatildeo do Estado brasileiro instala-

se na contramatildeo da decisatildeo do caso Gomes Lund e outros vs Brasil (Guerrilha do Araguaia) ldquo[]persistiram

os temores sobre a capacidade do Brasil enfrentar a impunidade por crimes contra a humanidade enquanto a

41

Durante a ditadura militar a repressatildeo a tortura e o assassinato sistemaacutetico de

opositores constituiratildeo ao longo de algumas deacutecadas os paradigmas de exerciacutecio do

controle social e da repressatildeo estatais contra as insurreiccedilotildees da luta armada revolucionaacuteria

no campo poliacutetico (NEGRI COCCO 2005 p 103) Aparelho repressivo que apoacutes a

transiccedilatildeo ao regime democraacutetico natildeo seraacute desmontado natildeo sofreraacute purgas tampouco seraacute

reestruturado no Brasil Pelo contraacuterio em pleno funcionamento ndash como demonstram os

dados extraiacutedos dos relatoacuterios em mateacuteria de direitos humanos ndash o aparato de violecircncia

legal permanece atrelado a algumas estruturas herdadas do regime precedente o que

poderia explicar ao menos em parte a escalada da violecircncia discursivamente naturalizada

como ldquoendecircmicardquo no Brasil e no restante do continente latino-americano apoacutes o periacuteodo

ditatorial (PINHEIRO 2002 p 240) Especificamente essas formas institucionais de

violecircncia encontram-se estruturadas sobre o rapport Estado-cidadatildeo que se desenvolve em

culturas poliacuteticas autoritaacuterias marcadas pelo desrespeito aos direitos humanos e pela

reproduccedilatildeo constante da loacutegica da impunidade

Antony W Pereira natildeo deixou de assinalar ldquoa sobrevivecircncia do funcionamento das

instituiccedilotildees juriacutedicas estatais anteriores dentro do quadro normativo ditatorialrdquo

(PINHEIRO 2010 p 09) Durante a ditadura militar brasileira registrou-se um alto grau

de colaboraccedilatildeo entre juristas e magistrados de todos os niacuteveis funcionais chegando mesmo

a uma espeacutecie de consenso civil-militar no seio das elites burocraacuteticas que forneciam os

contornos institucionais do sistema de justiccedila militar (PEREIRA 2010 p 41) Eis o que

explicaria segundo Pereira o pequeno nuacutemero de cassaccedilotildees de magistrados no periacuteodo de

exceccedilatildeo a ausecircncia de purgaccedilotildees quando do processo de redemocratizaccedilatildeo brasileira e a

manutenccedilatildeo hegemocircnica de um sistema de legalidade autoritaacuteria ainda hoje reproduzido e

segundo Paulo Seacutergio Pinheiro (2010 p 12-13) experimentado pelos pobres e pelos

ldquosocialmente marginalizados aos quais o acesso agrave justiccedila resolve-se no acesso agrave sua faceta

repressivardquo

Fundindo-se elites militares e judiciaacuterias teria sido possiacutevel constituir um sistema

juriacutedico hiacutebrido de justiccedila militar o que acarretou uma intensa judicializaccedilatildeo da repressatildeo

e ao mesmo tempo preservou um alto grau de consenso sobre uma suposta benevolecircncia

das instituiccedilotildees militares e judiciaacuterias Os baixos graus de violecircncia letal teriam colaborado

para a legitimaccedilatildeo de um poder por meio do direito (2010 p 283) permitindo a

Lei da Anistia de 1979 estiver em vigor Em 2010 a Corte Interamericana de Direitos Humanos considerou

que a Lei da Anistia brasileira natildeo tinha validade juriacutedicardquo (ANISTIA INTERNACIONAL 2013 p 52)

42

manutenccedilatildeo do consenso e a desnecessidade de substituir a legitimidade institucional pela

violecircncia

A sobrevivecircncia de legados autoritaacuterios que atravessaram certo bloco histoacuterico dos

paiacuteses do Cone Sul teria resistido agraves transiccedilotildees institucionais natildeo houve por exemplo

expurgos no Poder Judiciaacuterio brasileiro A transiccedilatildeo conservadora brasileira visou antes a

restabelecer o status quo ante de modo que ateacute o presente militares e membros do Poder

Judiciaacuterio continuam a ser vistos como grupos ldquoaltamente isolados e privilegiadosrdquo nos

cenaacuterios poliacutetico e institucional (PEREIRA 2010 p 243) Os consensos fortemente

arraigados nessas instituiccedilotildees embaraccedilam a possibilidade de reformas baseando-se na

ficccedilatildeo denunciada por Antony W Pereira de que os tribunais militares agiam secundum

legem

Para aleacutem dos limites do paradigmaacutetico caso brasileiro do ponto de vista das

instituiccedilotildees ndash e no sentido dos quadros normativos incorporados pelo Direito Internacional

dos Direitos Humanos ndash Paul Van Zyl (2009a p 40-48) delineou alternativas para a

construccedilatildeo da paz em cenaacuterios poacutes-conflituais (1) proceder agrave identificaccedilatildeo das instituiccedilotildees

que devem sofrer reforma ou ser abolidas (2) assegurar reformas dos mandatos a

capacitaccedilatildeo e a dotaccedilatildeo de pessoal bem como as operaccedilotildees das instituiccedilotildees especiacuteficas a

fim de garantir sua operacionalidade e a proteccedilatildeo dos direitos humanos (3) sanear o

aparelho estatal por meio da remoccedilatildeo de agentes responsaacuteveis por corrupccedilatildeo ou violaccedilatildeo

de direitos humanos tais como ldquomeios de comunicaccedilatildeo as prisotildees as instituiccedilotildees

prestadoras de serviccedilos de sauacutede e as instituiccedilotildees judiciaisrdquo (ZYL 2009a p 41)

fomentando o debate sobre sua funccedilatildeo na promoccedilatildeo dos direitos humanos (4) purga dos

violadores ocupantes de cargos poliacuteticos (5) reforma do serviccedilo de seguranccedila puacuteblica (6)

as instituiccedilotildees podem instrumentalizar que se evite a dominaccedilatildeo de um grupo homogecircneo

baseado em caracteres identitaacuterios eacutetnicos linguiacutesticos ou religiosos (7) Mediar o

desarmamento a desmobilizaccedilatildeo da populaccedilatildeo e sua reintegraccedilatildeo social (8) Restaurar o

Estado de Direito confrontando a cultura da impunidade ndash pois segundo Zyl (2009a p

40) ainda que a responsabilizaccedilatildeo possa ser diferida a fim de permitir a transiccedilatildeo para um

regime democraacutetico de governo ela natildeo pode ser adiada eternamente (9) Restaurar a

confianccedila nas instituiccedilotildees do Estado e promover a consolidaccedilatildeo democraacutetica

Reconhecendo que ldquoassim como a tortura diversas praacuteticas e estruturas

permanecem como elementos-chave da cena nacionalrdquo o terceiro Plano Nacional de

Direitos Humanos de 2009 prevecirc entre suas diretrizes a supressatildeo ldquode normas

remanescentes de periacuteodos de exceccedilatildeo que afrontem compromissos internacionais e os

43

preceitos de Direitos Humanosrdquo (BRASIL 2009 p 25) Entre esses diplomas normativos

estariam as ainda vigentes Lei Federal n 71701983 (Lei de Seguranccedila Nacional) e a Lei

Federal n 66831979 (Lei de Anistia) ndash especificamente no ponto em que anistia os

agentes da repressatildeo poliacutetica mesmo que o apoie a decisatildeo do Supremo Tribunal Federal

na Accedilatildeo de Descumprimento de Preceito Fundamental n 153 de abril de 2010 No acircmbito

do Direito Penal Militar e das normas relativas a seu processo os coacutedigos penais e

processuais penais militares bem como a Lei de Organizaccedilatildeo da Justiccedila Militar remontam

ao periacuteodo autoritaacuterio (MEZAROBBA 2003 p 09) e atualmente mantecircm vigente nas

instituiccedilotildees de caserna uma ideologia juriacutedico-poliacutetica incompatiacutevel com o sistema

constitucional contemporacircneo

Embora se preveja ldquoa revisatildeo de propostas legislativas envolvendo retrocessos na

garantia dos Direitos Humanos em geral e do direito agrave memoacuteria e agrave verdaderdquo

independentemente de lapso temporal a revogaccedilatildeo de leis de periacuteodos autoritaacuterios fica em

princiacutepio limitada ao periacuteodo compreendido entre 1964-1985 A medida natildeo abrangeria

portanto o Decreto-Lei n 46571942 da lavra de Getuacutelio Vargas que tambeacutem fruto de

um periacuteodo poliacutetico autoritaacuterio ainda regra temas importantes em relaccedilatildeo agrave aplicaccedilatildeo e agrave

interpretaccedilatildeo do direito brasileiro Entre eles a vigecircncia das leis ndash ponto em que foi

relativamente derrogado pela Lei Complementar n 9598 ndash a aplicaccedilatildeo do direito e o

raciociacutenio juriacutedico nas decisotildees judiciais ndash ponto em que o Decreto restringe o uso de

recursos hermenecircuticos simples agrave existecircncia de lacuna no ordenamento ndash e as normas

referentes ao Direito Internacional Privado Em aceno contraacuterio agrave sua abrogaccedilatildeo o antigo

Decreto-Lei recepcionado pela Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica de 1988 como lei em sentido

formal foi recentemente rebatizado de ldquoLei de Introduccedilatildeo agraves Normas do Direito

Brasileirordquo pela Lei Federal n 123672010

O terceiro Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH-III) tambeacutem previu o

incremento do reconhecimento do status constitucional de instrumentos internacionais de

Direitos Humanos recomendando-se ratificar o segundo protocolo facultativo do Pacto

Internacional de Direitos Civis e Poliacuteticos visando agrave aboliccedilatildeo da pena de morte (1989) a

Convenccedilatildeo sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes contra a

Humanidade (1968) adaptando o ordenamento juriacutedico interno pela promulgaccedilatildeo de lei

expressa fixando a imprescritibilidade dos delitos bem como a Convenccedilatildeo Internacional

para a Proteccedilatildeo de Todas as Pessoas contra os Desaparecimentos Forccedilados (2006)

Por fim denota-se especial atenccedilatildeo para com o monitoramento da tramitaccedilatildeo de

processos judiciais que envolvam graves violaccedilotildees de direitos humanos praticados no

44

periacuteodo entre 18 e setembro de 1946 e a data da promulgaccedilatildeo da Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica

de 1988

O que o terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-III) consolida

natildeo deixa de constituir um importante passo em direccedilatildeo ao desmonte de alguns aparatos

autoritaacuterios no entanto eacute sensiacutevel que permaneccedila demasiadamente atreladpo ao desmonte

de dispositivos normativos do que aos burocraacutetico-administrativos locus de inscriccedilatildeo

privilegiado da praacutexis juriacutedica ndash ainda que estejam contempladas ratificaccedilotildees a alguns

protocolos que implicam adesatildeo a mecanismos de monitoramento e controle internacional

de Direitos Humanos

Entre o que postula Zyl (2009a p 40-48) como praacuteticas de consecuccedilatildeo da paz em

tempos poacutes-conflituais demonstrando a centralidade de reformas reestruturaccedilotildees e purgas

administrativas e as medidas oferecidas pelo mais recente plano de direitos humanos

verifica-se um fetiche pela dimensatildeo da normatividade que apesar de relevante acaba por

manter intocadas as estruturas administrativas lato sensu e judiciaacuterias que poderiam

continuar a interpretar algumas leis da mais recente ditadura segundo a loacutegica juriacutedica

preconizada pelos horizontes hermenecircuticos decretados pelo Estado Novo

Sob o ponto de vista especiacutefico do desmonte dos aparatos administrativos e

judiciais do regime preacutevio o PNDH-III ndash superestimado e abominado por advogados como

Ives Gandra Martins como uma deliberada tentativa de golpe de Estado ndash natildeo passa de um

instrumento de manutenccedilatildeo do status quo ao passo em que embora programe a ratificaccedilatildeo

de relevantes normativas de Direito Internacional dos Direitos Humanos em nada altera no

regime estrutural das instituiccedilotildees burocraacuteticas que relativamente agrave efetividade daquelas

normas e das tutelas por elas exigidas continuaratildeo a ser as responsaacuteveis por implementaacute-

las

Contudo o trabalho de identificaccedilatildeo e cartografia dos pontos institucionais notaacuteveis

que devem ser objeto de reformas purgas e reestruturaccedilotildees natildeo pode ser levado a cabo sem

um trabalho da memoacuteria natildeo raro coextensivo com a funccedilatildeo diagnoacutestica desempenhada

pelas Comissotildees de Verdade (CARRILO 2009b p 39) Segundo Zyl (2009a p 36-37) as

Comissotildees auxiliariam a dar iacutempeto agraves transformaccedilotildees institucionais permitindo o

conhecimento e o rompimento com praacuteticas do passado bem como identificando em seu

relatoacuterio final as instituiccedilotildees e oacutergatildeos perpetradores de graves violaccedilotildees dos direitos

humanos de modo a viabilizar mais consistentes medidas de reparaccedilatildeo material e

simboacutelica assim como as reformas institucionais e medidas legais administrativas e

institucionais suficientes para evitar a reemergecircncia dos crimes do passado

45

Nesse sentido a memoacuteria e a verdade ndash processos que tomamos como equivalentes

porque natildeo os dissociamos de uma imediata produccedilatildeo de transiccedilatildeo ndash insinuam-se como os

pressupostos da justiccedila sob suas muacuteltiplas formas e das reformas institucionais o que

permite entrever que no seio do direito de transiccedilatildeo pode-se identificar uma interface

entre memoacuteria e justiccedila mas tambeacutem entre memoacuteria e instituiccedilotildees em transiccedilatildeo Eacute o que

atesta o Relatoacuterio Anual do Alto Comissariado da Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas para os

Direitos Humanos (sect 4) ao reconhecer que ldquoarquivos e arquivistas desempenham um papel

central para reforccedilar os direitos humanosrdquo14

No mesmo sentido o Segundo Relatoacuterio

Nacional do Estado Brasileiro apresentado no mecanismo de revisatildeo perioacutedica universal do

Conselho de Direitos Humanos das Naccedilotildees Unidas de 2012 (sect 123) revelou compreender

ldquoque o trabalho de resgatar o passado eacute imprescindiacutevel para a superaccedilatildeo de violecircncias e

impunidades histoacutericas []rdquo15

Mesmo as poliacuteticas de arquivos ndash considerados tanto em suas dimensotildees pessoais

como oficiais ndash estatildeo necessariamente implicadas nessa zona de muacutetuo contaacutegio entre

memoacuteria e justiccedila na medida em que o testemunho seja colocado a serviccedilo das instituiccedilotildees

e da construccedilatildeo puacuteblica e democraacutetica da verdade No interior dessa dimensatildeo liminar que

eacute o direito de transiccedilatildeo ndash direito constitutivo ou direito entre ndash revela-se o sentido da

afirmativa de Ceciacutelia MacDowell dos Santos (2009 p 472) para quem ldquoO testemunho e a

memoacuteria estatildeo comumente a serviccedilo das instituiccedilotildees do direito na busca da verdade e da

justiccedila Mas a justiccedila tambeacutem estaacute ao serviccedilo da memoacuteriardquo Progressivamente ela deixaria

entrever a centralidade do conceito de memoacuteria da Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo

14

ANNUAL REPORT OF THE UNITED NATIONS HIGH COMMISSIONER FOR HUMAN RIGHTS

Right to the truth report of the Office of the High Commissioner for Human Rights (2009) Disponiacutevel em

lthttpwww2ohchrorgenglishbodieshrcouncildocs12sessionA-HRC-12-19pdfgt Consultado em 13

mai 2013 15

ORGANIZACcedilAO DAS NACcedilOtildeES UNIDAS Segundo Relatoacuterio Nacional do Estado Brasileiro

apresentado no mecanismo de revisatildeo perioacutedica universal do Conselho de Direitos Humanos das Naccedilotildees

Unidas (2012) Disponiacutevel em lthttpwwwsedhgovbrcooperacaorevisao-periodica-

universalRelatorio20Nacional_RPU_Brasil_port_VERSaO_FINALpdfgt Consultado em 13 mai 2013

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CAPIacuteTULO 3 ndash O CONCEITO DE MEMOacuteRIA NA TEORIA DA JUSTICcedilA

DE TRANSICcedilAtildeO

Em cenaacuterios poacutes-conflituais a construccedilatildeo da memoacuteria das violaccedilotildees de direitos

humanos constitui o centro de gravidade da institucionalizaccedilatildeo da Justiccedila de Transiccedilatildeo

Paul Van Zyl (2009a p 32) define-a brevemente como ldquoo esforccedilo para a construccedilatildeo da paz

sustentaacutevel apoacutes um periacuteodo de conflito violecircncia em massa ou violaccedilatildeo sistemaacutetica dos

direitos humanosrdquo

No entanto eacute preciso notar que todos os mecanismos de reconstruccedilatildeo da paz por

meio da Justiccedila de Transiccedilatildeo estatildeo em maior ou menor grau sujeitos agrave singularidade

histoacuterica da realidade faacutetica poacutes-conflitual sobre a qual opera Kai Ambos (2009 p 21-22)

adverte que o acircmbito de aplicaccedilatildeo da Justiccedila de Transiccedilatildeo natildeo se limita aos quadros

histoacutericos poacutes-conflituais ou aos momentos de rupturas de regimes poliacuteticos mas

compreende igualmente ldquoprocessos de paz sem conflito eou de democracia formalrdquo

Embora sofram o inegaacutevel influxo da singularidade histoacuterica agrave qual se aplicam tais

instrumentos natildeo podem permanecer completamente submetidos agraves necessidades

domeacutesticas Ao contraacuterio do simples e acriacutetico implante de uma modelagem (ZYL 2009a

p 54) sua crescente interpenetraccedilatildeo com o Direito Internacional dos Direitos Humanos na

uacuteltima deacutecada (ZYL 2009a p 32-33) e com quadros legais transnacionais (AMBOS

2009 p 19-20) implica a definiccedilatildeo de um regime juriacutedico miacutenimo compreensivo e

flexiacutevel capaz de adaptar-se agrave singularidade das situaccedilotildees histoacutericas agraves quais se aplica

deixando-se reciprocamente fecundar por ela

Por essa razatildeo Paul Van Zyl (2009a p 48) afirma ser ldquoindispensaacutevel que as

estrateacutegias da justiccedila transicional partam de um extenso processo de consulta local e que

estejam fundamentadas nas condiccedilotildees domeacutesticasrdquo na medida em que a Justiccedila de

Transiccedilatildeo aparece como um universal flexiacutevel a operar sobre uma singularidade histoacuterica e

sociopoliacutetica Eis o que teria tornado possiacutevel superar ao menos relativamente a

polarizaccedilatildeo entre uma concepccedilatildeo de justiccedila universalista e as necessidades derivadas das

singularidades concretas derivadas de momentos de fluxo poliacutetico (TORELLY 2012 p

107)

Trata-se de um processo dinacircmico que se desenvolve por prolongamentos e

singularizaccedilotildees construiacutedos em relaccedilatildeo a outros ldquoprocessos e mecanismos associados com

os quais uma sociedade busca terminar com o legado de um passado de abusos de larga

47

escala a fim de assegurar a prestaccedilatildeo de contas servir agrave justiccedila e atingir a reconciliaccedilatildeordquo

(AMBOS 2009 p 21) Esses processos por sua vez recebem normatizaccedilatildeo internacional

bem como se beneficiam dos suportes financeiro e teacutecnico de organismos internacionais

com experiecircncia em viabilizar e assistir processos de transiccedilatildeo poliacutetico-institucional16

Dessa contaminaccedilatildeo reciacuteproca entre as circunstacircncias faacuteticas domeacutesticas ndash

resultantes de condiccedilotildees transicionais locais histoacutericas e singularizantes ndash e da pretensatildeo agrave

universalidade de que dispotildee o Direito Internacional dos Direitos Humanos aplicaacutevel

como quadro legal transnacional pode-se depreender a muacutetua gecircnese dos processos de

internacionalizaccedilatildeo dos direitos humanos e da Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo

No corpus normativo mas tambeacutem praacutetico do direito de transiccedilatildeo a reciacuteproca

contaminaccedilatildeo entre memoacuteria justiccedila e mutaccedilotildees institucionais terminaria por fazer da

memoacuteria o sustentaacuteculo da verdade e da justiccedila Natildeo haacute praacutetica de verdade ou exerciacutecio de

direito de conhecer o passado de violaccedilotildees de direitos humanos que natildeo parta de um apelo

positivo ou negativo agrave reminiscecircncia da mesma forma as instituiccedilotildees encarregadas da

efetuaccedilatildeo desse direito-entre que se define como Justiccedila de Transiccedilatildeo natildeo operam senatildeo

com fundamento em certa memoacuteria que pode ser representada no interior do processo ou

produzida como vimos como resultado do proacuteprio processo

Essa dupla implicaccedilatildeo entre memoacuteria-verdade e instituiccedilotildees revela a importacircncia

praacutetica de traccedilar os limites conceituais da ideia de memoacuteria com a qual se trabalha no seio

da Justiccedila de Transiccedilatildeo Ao mesmo tempo torna-se desejaacutevel compreender em que medida

as instituiccedilotildees satildeo produtoras de memoacuteria ao mesmo tempo em que a memoacuteria parece

poder servir de ponto de apoio para operar as transformaccedilotildees institucionais e reformas que

caracterizam o vieacutes pragmaacutetico e poliacutetico mais sensiacutevel de toda transiccedilatildeo

Ao interrogar a memoacuteria como conceito-chave das transiccedilotildees poliacuteticas eacute comum

que dois argumentos atravessem a bibliografia tradicional sobre Justiccedila de Transiccedilatildeo satildeo

eles as referecircncias ao passado como chave compreensiva do presente e do futuro das

instituiccedilotildees poliacuteticas juriacutedicas e sociais e aquele que postula a interpenetraccedilatildeo necessaacuteria

entre memoacuteria e subjetividade De seus pontos de vista natildeo se trataria de aceder pura e

simplesmente agrave histoacuteria real tal como o puro acontecimento do passado mas tambeacutem de

procurar de que maneira as pessoas percebem e deixam-se influenciar por aquilo que

aconteceu no passado

16

Segundo o Relatoacuterio Anual do Escritoacuterio do Alto Comissariado nas Naccedilotildees Unidas para os Direitos

Humanos na temaacutetica das Comissotildees de Verdade (OHCHR HRPUB061 p 33-36) Disponiacutevel em lt

httpwwwohchrorgDocumentsPublicationsRuleoflawTruthCommissionsenpdfgt Consultado em 13 mai

2013

48

Eis o que David Bloomfield (2005 p 40) compreendera como a ldquodimensatildeo

mitoloacutegica do passadordquo Portanto ao lado de uma histoacuteria objetiva factual baseada na

realidade haveria sempre um magma confuso de percepccedilotildees subjetivas crenccedilas

mitologias e interpretaccedilotildees da histoacuteria ldquowhich may or may not reflect actual events but will

significantly shape peoplersquos readiness or room for manoeuvre in the presentrdquo

(BLOOMFIELD 2005 p 40)

Dessa forma a mitologia do passado poderia posicionar-se no mesmo grau de

importacircncia que as exigecircncias de precisatildeo histoacuterica afinal compreender o passado

dependeria em alguma medida de compreender a maneira segundo a qual as pessoas o

interpretam As crenccedilas individuais e socialmente partilhadas sobre o passado tornariam

mais ou menos factiacutevel a possibilidade de realizar um processo de conciliaccedilatildeo e

Bloomfield parece aferi-la segundo a distacircncia entre a histoacuteria objetiva e a mitologia

popular criada ao seu redor

Paul Gready (2011 p 93) e Alexandra Barahona de Brito (2009 p 115) tambeacutem

enfatizam o passado como peccedila compreensiva central agraves praacuteticas transicionais Brito afirma

uma estreita correlaccedilatildeo entre passado e processo de democratizaccedilatildeo ao passo em que este

depende de um processo complexo que envolve a constituiccedilatildeo de efetiva cidadania a qual

soacute seria conquistada por meio da eliminaccedilatildeo dos legados autoritaacuterios que a precedem e

foram consolidados pelos governos militares Isso significa concentrar sobre a reforma

institucional o olhar para o futuro de modo que o trabalho da memoacuteria e da justiccedila

transcendam as poliacuteticas ndash sem duacutevida imprescindiacuteveis ndash relacionadas agrave prestaccedilatildeo de

contas sobre o passado

A memoacuteria opera sobretudo na contracorrente da resiliecircncia das estruturas sociais

(PAIGE 2011 p 11) do passado no presente Natildeo por acaso Franccedilois Ost (1999 p 88-

94) considera o direito e logicamente as instituiccedilotildees que com ele se relacionam o

escrivatildeo e o guarda da memoacuteria social afianccedilando sua comunhatildeo e continuidade De

acordo com Ost o direito apresenta-se a um soacute tempo como o conjunto de comandos

especiais ndash conceito proveniente das claacutessicas definiccedilotildees positivo-analiacuteticas que

confundem direito e suas funccedilotildees de gestatildeo ndash bem como o grande corpus inscritor de uma

memoacuteria que possui funccedilatildeo instituinte

Se Franccedilois Ost pudera afirmaacute-lo isso se deve ao fato de a memoacuteria encontrar-se

duplamente implicada do ponto de vista das instituiccedilotildees Como elemento de produccedilatildeo

espera-se que a memoacuteria poliacutetica das violaccedilotildees dos direitos humanos inscrita em arquivos e

documentos constitua o fundamento e a justificativa para reformas saneamentos

49

administrativos purgas aboliccedilotildees de instituiccedilotildees e reestruturaccedilotildees democraacuteticas capazes

de sustentar a emergecircncia de um regime qualitativamente democraacutetico como elemento

produzido pode-se dizer que tambeacutem a Justiccedila de Transiccedilatildeo produz memoacuterias e as

inscreve em arquivos ao processar julgar produzir narrativas oficiais fixar os signos da

verdade histoacuterica de um passado de violaccedilotildees

No interior desse quadro eacute preciso definir o lugar da memoacuteria na Justiccedila de

Transiccedilatildeo a partir de trecircs dimensotildees que se interpenetram e confluem para definir o sentido

da memoacuteria no campo transicional segundo as doutrinas transicionais contemporacircneas (1)

a inscriccedilatildeo normativa da memoacuteria no acircmbito do Direito Internacional dos Direitos

Humanos e sua relaccedilatildeo com o direito agrave verdade (2) As diversas camadas conceituais pelas

quais a memoacuteria deixou-se apanhar do ponto de vista conceitual no campo teoacuterico da

Justiccedila de Transiccedilatildeo ndash o que visa a definir o lugar da memoacuteria como elemento-chave de

compreensatildeo do campo transicional de modo a permitir uma iluminaccedilatildeo reciacuteproca (3) os

limites praacuteticos teacutecnicos e institucionais pelos quais a memoacuteria se torna um objeto de

investimento teoacuterico que como veremos deixam transparecer a existecircncia do

reconhecimento mais ou menos imediato de uma relaccedilatildeo essencial entre memoacuteria e

transiccedilatildeo ndash relaccedilatildeo esta jamais explicitada como tal e todavia sempre mais ou menos

aparente dedutiacutevel ou no limite suposta pelos teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo

Apenas a articulaccedilatildeo da anaacutelise dessas trecircs dimensotildees permitiraacute compreender o

lugar conceitual e a um soacute tempo praacutetico da memoacuteria em relaccedilatildeo ao campo transicional

bem como a concepccedilatildeo de temporalidade que estaacute envolvida nessas apreensotildees do conceito

de memoacuteria pela Justiccedila de Transiccedilatildeo definindo assim o traccedilado de seus limites

conceituais internos

sect 1 MEMOacuteRIA VERDADE E

DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS

Natildeo raro os direitos agrave memoacuteria e agrave verdade emergem em definiccedilotildees que os tomam

pela mesma acepccedilatildeo Joseacute Carlos Moreira da Silva Filho (2011 p 282) por exemplo

definiu-o recentemente relacionando-o agrave ldquonecessaacuteria apuraccedilatildeo dos fatos ocorridos em

periacuteodos repressivos e autoritaacuterios especialmente em ditaduras e totalitarismos

demarcando a necessidade de um amplo acesso aos documentos puacuteblicos O apelo agrave

memoacuteria indica aleacutem disso a necessidade de que o Estado empreenda poliacuteticas de

memoacuteria para reforccedilar a ideia da natildeo repeticcedilatildeordquo Tambeacutem testemunhando uma

50

proximidade entre memoacuteria e verdade Marcelo Torelly (2012 p 271) admite que ldquoa ideia

de lsquodireito agrave memoacuteriarsquo conecta-se agrave de lsquodireito agrave verdadersquo como forma de afirmar o direto

da sociedade mas tambeacutem das viacutetimas de tambeacutem construiacuterem discursos com pretensatildeo

de verdade e apresentarem esses discursos ao Estado como meio de disputa democraacutetica da

versatildeo oficial do passadordquo

A aparente confusatildeo poreacutem natildeo implica que seja impossiacutevel discernir do ponto de

vista semacircntico ou normativo ambos os direitos Sinteticamente ldquoSe o direito agrave verdade

refere-se ao acesso e ao conhecimento de informaccedilotildees [] o direito agrave memoacuteria objetiva

no plano coletivo a inserccedilatildeo ou reinserccedilatildeo de determinadas narrativas no seio socialrdquo

(TORELLY 2012 p 271) Apesar de propor essa distinccedilatildeo segundo a qual a verdade

comporta uma dimensatildeo objetiva do conhecimento da verdade dos fatos enquanto a

memoacuteria entreteacutem-se na dimensatildeo subjetiva da pluralizaccedilatildeo de narrativas sociais ainda

assim seria possiacutevel devido agrave sua proximidade falar em um ldquobinocircmio verdade-memoacuteriardquo

com papeis solidaacuterios (TORELLY 2012 p 271) Promova-se ou natildeo uma distinccedilatildeo entre

as ideias-forccedila de memoacuteria e verdade ambas natildeo deixam seja qual for o caso de serem

correlatas tampouco cessam de ser invocadas como condiccedilotildees-chave na produccedilatildeo das

alteraccedilotildees praacuteticas inerentes agraves transiccedilotildees poliacuteticas Eis precisamente o que Torelly (2012

p 281) afirma ao aludir ao caraacuteter transformador da constituiccedilatildeo de uma memoacuteria social

das violaccedilotildees de direitos humanos vinculando-a ao advento de um futuro de natildeo repeticcedilatildeo

ldquoA consolidaccedilatildeo de uma memoacuteria social criacutetica em relaccedilatildeo ao passado passa a funcionar

como combustiacutevel para a defesa de uma cultura democraacutetica sustentando e legitimando as

reformas poliacuteticas e juriacutedicas que permitem o ressurgimento nacional em uma nova

configuraccedilatildeo poliacutetica []rdquo17

Trata-se de uma definiccedilatildeo que enfoca a funccedilatildeo poliacutetica do direito agrave memoacuteria e agrave

verdade sintetizando-os ao conhecimento da verdade histoacuterico-factual e agrave vedaccedilatildeo ndash

normativa e eacutetico-social ndash da repeticcedilatildeo de um passado de violaccedilotildees de direitos humanos

que seria afianccedilado por poliacuteticas da memoacuteria O conceito estrutura-se portanto sobre uma

articulaccedilatildeo agrave primeira vista inaparente ndash mas necessaacuteria ndash entre passado e futuro de

inspiraccedilatildeo possivelmente adorniana segundo a qual o conhecimento do passado de

17

Sobre o tema Torelly (2012 p 281) afirma ainda ldquoAo lembrar e reparar por meio de mecanismos de

Justiccedila de Transiccedilatildeo o Estado sinaliza uma autocriacutetica quanto ao abuso perpetrado e consolida uma narrativa

(mesmo que tardia) de igualdade perante a lei oferecendo tratamento juriacutedico equacircnime aos cidadatildeos e

reincorporando o legado autoritaacuterio agraves categorias de justiccedila que o proacuteprio autoritarismo afastou Esse

processo sinaliza de modo consciente para um futuro de natildeo repeticcedilatildeo e ainda permite aos mais jovens que

se socializem em uma cultura conscientemente esclarecida do passado e da importacircncia democraacutetica

incorporando os valores construiacutedos na democracia como caracteres culturais permanentes do sistema

simboacutelico da sociedade []rdquo

51

violaccedilotildees de direitos humanos de algum modo asseguraria sua natildeo repeticcedilatildeo no futuro

Parece certo que entre os teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo a aposta seja feita no valor

cognitivo criacutetico e coletivo do esclarecimento sobre a verdade do passado e da produccedilatildeo

de narrativas sociais plurais sobre ele Todavia de um lado reduz-se memoacuteria e verdade a

sua faceta reminiscente cognitivo-pragmaacutetica e de representaccedilatildeo partilhada de outro

extrai-se do proacuteprio fato dessa partilha fomentada ou pelo menos garantida pelas

instituiccedilotildees em transiccedilatildeo um enigmaacutetico potencial transformador que jamais encontra

explicaccedilatildeo adequada na bibliografia dedicada agrave Justiccedila de Transiccedilatildeo

Na dimensatildeo normativa mais ampla preconizada pelo Direito Internacional dos

Direitos Humanos David Bloomfield (2005 p 40) reconhece que o passado eacute composto

por muitas camadas a fim de indicar o substrato cultural mais profundo que lastreia a

compreensatildeo que o direito agrave memoacuteria e agrave verdade poderiam incrementar ldquoThe past has

many layers This fact needs to be acknowledged before addressing the past through a

reconciliation process Many violent conflicts and wars are not simply the outcome of one

particular set of recent circumstances which led to violencerdquo

Segundo Bloomfield a compreensatildeo dessas vaacuterias camadas do passado apela agrave

problemaacutetica questatildeo sobre o quanto longe se deveria ir no passado para realizar uma

reconciliaccedilatildeo Contudo a profundidade do enraizamento histoacuterico-geneacutetico dessa base

cultural autoritaacuteria cuja emergecircncia e visibilidade os direitos agrave memoacuteria e agrave verdade

deveriam afianccedilar natildeo deve ser o uacutenico horizonte de delimitaccedilatildeo de tais direitos

O direito agrave memoacuteria como direito cultural ao qual correspondem deveres de caraacuteter

transgeracional eacute o tecido natildeo raro inaparente sobre o qual se coloca em jogo toda e

qualquer praacutetica juriacutedico-poliacutetica de Justiccedila de Transiccedilatildeo Mesmo as transiccedilotildees

incompletas inacabadas e interrompidas mantecircm com o potencial transicional da

memoacuteria uma relaccedilatildeo inequiacutevoca ainda que seja para separaacute-lo do seio das praacuteticas

poliacuteticas decretando o esquecimento ou sobrecodificando suas emergecircncias no seio social

ou coletivo18

Da perspectiva do Direito Internacional dos Direitos Humanos a produccedilatildeo da

memoacuteria implicada nas operaccedilotildees de transiccedilatildeo poliacutetica eacute o cerne no qual se articulam as

18

Nesse sentido em La meacutemoire lrsquohistoire lrsquooubli Paul Ricœur destacou a relaccedilatildeo dialeacutetica entre memoacuteria

e esquecimento como se as categorias estivessem entregues a uma espeacutecie de jogo entre anverso e verso

ldquoDrsquoune part les notations sur lrsquooubli constituent en grande partie un simple envers de celles portant sur la

meacutemoire se souvenir crsquoest pour un grand part ne pas oublier Drsquoautre part les manifestations individuelles

de lrsquooubli sont inextrincablement troublantes de lrsquooubli mecircleacutees agrave ses formes collectives au point que les

expeacuteriences les plus maleacutefiques de lrsquooubli telle la hantise ne deacuteploient leurs effets les plus maleacutefiqus qursquoagrave

lrsquoeacutechelle des meacutemoires collectives[]rdquo (RICŒUR 2000 p 574-575)

52

dimensotildees dos Direitos Civis e Poliacuteticos bem como dos Direitos Econocircmicos Sociais e

Culturais no contexto das transiccedilotildees Nesse aspecto Javier Ciurlizza (2009a p 27)

estabelece que a memoacuteria ldquonatildeo eacute um exerciacutecio individual no qual algueacutem diz o que sabe

mas sim um processo cultural educativo e poliacutetico de estabelecimento de consensos sobre

a identidade nacionalrdquo Alexandra Barahona de Brito (2009a p 72) em sentido anaacutelogo

tambeacutem reconhece agrave memoacuteria a qualidade de locus privilegiado de interaccedilatildeo entre direitos

assegurando como nuacutecleo significativo do Direito Internacional dos Direitos Humanos

sua indivisibilidade e interdependecircncia

Relatoacuterio Anual do Alto Comissariado para Direitos Humanos das Naccedilotildees Unidas

procedendo a um estudo analiacutetico sobre direitos humanos e Justiccedila de Transiccedilatildeo reiterou

expressamente o potencial dos mecanismos transicionais para incorporar direitos de

natureza econocircmica social e cultural tornando sua investigaccedilatildeo extensatildeo da atividade das

Comissotildees de Verdade (OHCHRA-HRC1218 2009 sectsect 3 59 e 60) confirmando a visatildeo

doutrinaacuteria segundo a qual ao permitir equilibrar poliacutetica e direito a Justiccedila de Transiccedilatildeo

teria sido capaz de dissolver recentemente ndash e talvez ateacute mesmo definitivamente ndash a tensatildeo

entre justiccedila e paz a fim de afirmaacute-las como condicionantes reciacuteprocas19

Ruti Teitel (2000 p 271-218) por sua vez assegura que a dimensatildeo veritativa que

as investigaccedilotildees histoacutericas transicionais engendram ldquoreveal that the relevant truths are

those that are implicated in a particular statersquos legacy or injustice There are not universal

essential or metatruthsrdquo Ainda que memoacuteria verdade e justiccedila revelem-se imperativos de

aspiraccedilotildees mais ou menos universais trata-se sempre de universais cujo conteuacutedo se

esmaece caso lhes seja subtraiacutedo o solo de singularidades ao qual pertencem ou a aacuterea de

jogo e de arranjos poliacuteticos que os designam

Uma vez verificado o protagonismo dos quadros normativos internacionais dos

direitos humanos reconhece-se que a responsabilizaccedilatildeo judicial soacute pode lastrear-se na

produccedilatildeo da memoacuteria e no desvelamento da verdade Do ponto de vista do acesso agrave justiccedila

e agrave reparaccedilatildeo por meio das decisotildees judiciaacuterias eacute que resta demonstrado de que modo o

direito agrave memoacuteria e agrave verdade exercem concretamente uma capacidade integrativa de

direitos ao menos sob a perspectiva da existecircncia de uma norma global de

responsabilizaccedilatildeo que ldquonatildeo depende da adesatildeo de pessoas ou paiacutesesrdquo (MALLINDER

19

Cf nesse particular os paraacutegrafos indicados acima no Relatoacuterio Anual do Escritoacuterio do Alto Comissariado

nas Naccedilotildees Unidas para os Direitos Humanos ldquoAnalytical study on human rigghts and transitional justicerdquo

(OHCHR A-HRC 1218 2009) Disponiacutevel em lthttpwwwunrolorgfiles96696_A-HRC-12-18_Epdfgt

Consultado em 13 mai 2013

53

2011 p 502) Isto significa admitir como fizera Deisy Ventura (2011 p 327-335) que o

costume internacional natildeo deixa de ser uma fonte do Direito Penal Internacional

Embora certo poacutelemos constitua o diapasatildeo quanto agrave validade juriacutedica de anistias

negociadas que visem agrave conciliaccedilatildeo ndash essencialmente vinculadas a uma soluccedilatildeo de exceccedilatildeo

ndash as anistias em branco que acobertem graves violaccedilotildees de direitos humanos

protagonizadas por agentes de Estado por exemplo padecem de um rechaccedilo de caraacuteter

praticamente universal entre os teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo (PENSKY 2011 p 99-

100)

Como resultado da historicidade das lutas pelo reconhecimento normativo e pela

implementaccedilatildeo dos direitos humanos a conclusatildeo a que chega Christine Bell (2009 p

106) eacute a de que se natildeo eacute possiacutevel saber exatamente quais os limites das anistias eacute no

miacutenimo possiacutevel afirmar que a proibiccedilatildeo das anistias em branco estaria contemplada no

novo campo da Justiccedila de Transiccedilatildeo como resultado imediato de sua internacionalizaccedilatildeo

Na medida em que os direitos agrave verdade e agrave memoacuteria encontram-se no cerne nos

processos judiciais que visam agrave responsabilizaccedilatildeo dos agentes violadores de direitos

humanos pode-se notar a centralidade dos direitos agrave memoacuteria e agrave verdade na quadratura

normativa internacional Nesse contexto a produccedilatildeo de memoacuterias institucionais no campo

da responsabilizaccedilatildeo penal internacional ou nos julgamentos transicionais domeacutesticos satildeo

informados pela norma global de responsabilizaccedilatildeo do Direito Internacional dos Direitos

Humanos cuja integridade eacute salvaguardada precisamente pela concreccedilatildeo pragmaacutetica e

judiciaacuteria dos direitos agrave memoacuteria e agrave verdade

sect 2 OS CONTORNOS DO CONCEITO DE MEMOacuteRIA

NO CAMPO TRANSICIONAL

Se foi possiacutevel compreender qual o lugar ocupado pela memoacuteria no seio do Direito

Internacional dos Direitos Humanos bem como sua relaccedilatildeo com o direito agrave verdade seria

preciso delimitar o conceito de memoacuteria sobre o qual os teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo

apoiam suas doutrinas a fim de que se possa verificar ainda uma vez sua reciacuteproca

constitutividade

Com efeito natildeo haacute um senso comum teoacuterico a respeito do conceito de memoacuteria

assim como os horizontes conceituais das praacuteticas da Justiccedila de Transiccedilatildeo padecem de uma

relativa imprecisatildeo categoacuterica e como quisera Paul Gready (2011 p 02) implicam natildeo

54

raro certo vaacutecuo analiacutetico indiciaacuterio da ldquogenerally under-theorized nature of much work on

transitional justicerdquo Idecircntico vaacutecuo conceitual relativo agrave ideia de memoacuteria e aos processos

de memorializaccedilatildeo eacute reconhecido por Judy Barsalou e Victoria Baxter com fundamento

nas praacuteticas concretas das Comissotildees de Verdade20

Apesar da heterogeneidade conceitual de que a ideia de memoacuteria se reveste no

campo transicional eacute possiacutevel estabelecer lineamentos comuns que por reduccedilotildees

sucessivas permitiriam uma progressiva aproximaccedilatildeo e elaboraccedilatildeo de um canevaacutes teoacuterico

comum em que se funda a aparente multiplicidade dos conceitos de memoacuteria envolvidos

pela Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo acerca do qual as instituiccedilotildees desempenham uma

funccedilatildeo ora de registro ora de produccedilatildeo

Nesse sentido podem-se estabelecer dois limites que resultam das apropriaccedilotildees

conceituais da memoacuteria realizadas pela Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo (1) o limite

segundo o qual o conceito de memoacuteria eacute compreendido como representaccedilatildeo coletiva

tendendo agrave formar identidade de grupo ou nacional Por vezes apareceraacute como um

processo cultural que poreacutem natildeo eacute jamais explicitado do ponto de vista de sua dinacircmica

interna (2) o limite em que a memoacuteria eacute apreendida como resultado expressivo de uma

ontologia negativa como representaccedilatildeo ou como representificaccedilatildeo do ausente por meio

dos testemunhos individuais o que implica que a memoacuteria seja tratada ora como um

fenocircmeno despido de fundamento no real ora limitada agrave sua caracteriacutestica psicoloacutegica e

reminiscente Trata-se de demonstrar brevemente como se podem deduzir essas balizas

analiacuteticas para definir os contornos do conceito de memoacuteria na Teoria da Justiccedila de

Transiccedilatildeo

Da perspectiva desse primeiro limite analiacutetico o conceito de memoacuteria aparece ora

como objeto social ora como processo cultural em cuja constituiccedilatildeo encontra-se envolvida

certa comunidade poliacutetica Em comum os teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo insistiratildeo sobre

a prevalecircncia do caraacuteter social e poliacutetico da memoacuteria e da constituiccedilatildeo de subjetividades ou

identidades que ela proporciona Assim Javier Ciurlizza (2009a p 27) afasta a

identificaccedilatildeo vulgar entre memoacuteria e lembranccedila individual considerando-a ldquoum processo

20

ldquoTo date truth commissions have not articulated in much detail what memorialization means how it

should be connected to other transitional justice processes who should take charge and other specific points

of consideration By not taking into greater account the role of memorialization and the educational processes

that should accompany it truth commissions are losing an important opportunity to extend their impactrdquo

(BARSALOU BAXTER 2007 p 10)

55

cultural educativo e poliacutetico de estabelecimento de consensos sobre a identidade

nacionalrdquo

Nesse aspecto a constituiccedilatildeo da memoacuteria confunde-se com a produccedilatildeo de uma

memoacuteria coletiva da qual segundo Peter R Baehr (2007 p 16) as Comissotildees da Verdade

estariam encarregadas no intento de contribuir para ldquoa moral revival and provide the basis

for national unityrdquo

Feacutelix Reaacutetegui Carrillo (2009b p 42) compreende a memoacuteria como uma

representaccedilatildeo social compartilhada que manteacutem uma relaccedilatildeo com as instituiccedilotildees ao passo

em que essa representaccedilatildeo possa ser forjada a partir das narrativas oficiais produzidas em

um registro de verossimilhanccedila e na medida em que sua efetuaccedilatildeo demanda poliacuteticas

puacuteblicas Segundo Carrillo (2009b p 32) o objeto das transiccedilotildees poliacuteticas eacute a proacutepria

cultura que constitui uma dimensatildeo da arquitetura sociopoliacutetica da construccedilatildeo da

democracia integrando o processo poliacutetico

Desde a perspectiva de Carrillo o que estaria em questatildeo nas Comissotildees da

Verdade por exemplo seria a produccedilatildeo de sentido concretizada em um objeto cultural

uma narrativa textual ou natildeo que se avizinha de um objeto complexo e polieacutedrico capaz

de estabelecer a verdade a partir de muacuteltiplas perspectivas sem recorrer ao relativismo

Trata-se de praacutetica que segundo Carrillo (2009b p 40) estabelece-se sobre certas

tecnologias da verdade bem como sobre a base testemunhal que se confunde com as

viacutetimas e os sobreviventes

A narrativa instrumento teacutecnico que se origina das instituiccedilotildees faz-se integrar agrave

memoacuteria como um objeto social normalmente guiado por valores eacutetico-poliacuteticos como a

democracia e os direitos humanos bem como pela correccedilatildeo do registro histoacuterico da

violecircncia Uma vez que tal instrumento teacutecnico desfrute ldquo[]de certa legitimidade

simboacutelica que a converte em socialmente vaacutelidardquo eacute possiacutevel constituir no corpo de um

objeto ldquoao mesmo tempo textual e socialrdquo uma memoacuteria (CARRILLO 2009b p 41)

A representaccedilatildeo social a que se reduz a memoacuteria nesse caso natildeo se limita agrave

partilha de ldquoenunciados com pretensotildees de verdade sobre o passado violento ou

repressivordquo mas constitui segundo Feacutelix Reaacutetegui Carrillo (2009b p 42) aleacutem de ldquouma

fonte de criacutetica e deslegitimaccedilatildeo de certas praacuteticas sociais precedentesrdquo ldquocerta forma de

encarar a luta poliacutetica certos haacutebitos e retoacutericas que determinam a relaccedilatildeo entre as diversas

classes sociais e os conglomerados eacutetnicos da naccedilatildeo ndash e naturalmente uma demanda de

transformaccedilatildeo de tais praacuteticasrdquo Trata-se nesse sentido de uma memoacuteria com caraacuteter

poliacutetico Poliacuteticas puacuteblicas de memoacuteria destinam-se portanto a uma mobilizaccedilatildeo de

56

recursos simboacutelicos que tendem a modificar a ordem significante de coisas repercutindo

sobre outras dimensotildees da organizaccedilatildeo social

Assim Carrillo articula ao redor da memoacuteria compreendida como partilha de uma

representaccedilatildeo social ou como um objeto social as narrativas oficiais provenientes da

atuaccedilatildeo das instituiccedilotildees que refletem a verdade e a memoacuteria de um passado de violaccedilotildees de

direitos agrave axiologia democraacutetica e humanista bem como agrave organizaccedilatildeo poliacutetica das lutas

em prol da transformaccedilatildeo de praacuteticas violadoras

Em sentido anaacutelogo Alexandra Barahona de Brito (2009a p 72) entrevecirc ao menos

duas possibilidades de compreender as poliacuteticas da memoacuteria no seio da Justiccedila de

Transiccedilatildeo ldquoDe forma restrita consiste de poliacuteticas para a verdade e para a justiccedila

(memoacuteria oficial ou puacuteblica) vista mais amplamente eacute sobre como a sociedade interpreta

e apropria o passado em uma tentativa de moldar o seu futuro (memoacuteria social)rdquo

Elizabeth Jelin (2011 p 188-189) por sua vez considera a memoacuteria um processo

eminentemente subjetivo de construccedilatildeo de significaccedilatildeo do passado no ato presente da

recordaccedilatildeo ancorada nas experiecircncias e na ordem do simboacutelico Entretanto afirma Jelin

(2011 p 189) ldquoThere is a dynamic link between individual subjectivities societal or

collective belongingrdquo de modo que o passado e seus significados satildeo incorporados a partir

de vaacuterios produtos culturais que se tornam seus veiacuteculos

De seu turno Teitel adverte que no periacuteodo poacutes-Guerra Fria a Justiccedila de Transiccedilatildeo

incorpora muito de seu discurso normativo vindo de campos de saber externos ao direito

eacutetica medicina teologia etc concebendo interpenetraccedilotildees tambeacutem entre moral e

psicologia de forma a ampliar a ideia de anistia no sentido objetivo da reconciliaccedilatildeo

Poreacutem isso teria acarretado a conversatildeo do paradigma da Justiccedila de Transiccedilatildeo em

algo como ldquouma religiatildeo secularizada sem leirdquo Teitel (2003 p 82) o afirmara na medida

em que diagnostica que o advento deste fenocircmeno baseia-se na corrupccedilatildeo da autoridade

poliacutetica e legal promovida por um deslocamento em direccedilatildeo agrave autoridade moral e religiosa

que prometera a partir de uma linguagem universalizante ldquothe aims of forgiveness and the

possibility of political redemptionrdquo Isso deriva de uma confusatildeo entre as esferas do

privado que envolve a eacutetica e do puacuteblico que envolve o poliacutetico possibilitando que o

discurso moral-religioso introduzisse uma fundamentaccedilatildeo moral na Justiccedila de Transiccedilatildeo ndash

o que Teitel natildeo hesita em interpretar como resultado do contributo de uma teologia

poliacutetica que aposta no potencial emancipador da histoacuteria

Segundo Teitel (2000 p 69-70) a fundamentaccedilatildeo e inspiraccedilatildeo que revestiu a

justiccedila histoacuterica de um caraacuteter messiacircnico encontraria raiacutezes na modernidade iluminista

57

em uma aposta ao mesmo tempo kantiana e marxista na capacidade redentora da histoacuteria e

da verdade que assume a redenccedilatildeo como teleologia e supotildee que verdade e histoacuteria satildeo uma

e mesma coisa

No entanto as teorias contemporacircneas da histoacuteria desafiaram essa visatildeo

reconhecendo a partir de seu giro interpretativo que natildeo haacute uma liccedilatildeo uniacutevoca a extrair do

passado mas o reconhecimento do grau segundo o qual a compreensatildeo histoacuterica eacute

dependente das contingecircncias poliacuteticas e sociais

Embora o canevaacutes da memoacuteria coletiva seja constitutiva de um corpo social ndash e

Teitel assume que as verdades transicionais satildeo construiacutedas por processos de produccedilatildeo da

memoacuteria coletiva ndash a autora lembra que Friedrich Wilhelm Nietzsche e Michel Foucault

exploraram os problemas epistecircmicos que a poliacutetica implica especialmente a iacutentima

relaccedilatildeo entre imposiccedilotildees do poder e conhecimento Por isso interrogar a histoacuteria em

contextos de transiccedilatildeo impotildee um desafio em virtude da natureza poliacutetica da histoacuteria que

natildeo raro resta exposta pelas respostas dadas agrave transiccedilatildeo

A memoacuteria coletiva correlata de determinada identidade social eacute criada no interior

de certos quadros por meio de siacutembolos e rituais no contexto de transiccedilatildeo os quadros

costumeiros de partilha social (poliacuteticos religiosos e sociais) encontram-se estilhaccedilados ou

ao menos ameaccedilados Assim Teitel sublinha a importacircncia e a central constitutividade do

direito em relaccedilatildeo agrave memoacuteria social ao afirmar que ldquoit is law its framework and processes

that in great part shape collective memory In transitions the pivotal role in shaping social

memory is played by the lawrdquo (TEITEL 2000 p 71)

Apesar de sua criacutetica da teleologia redentora da histoacuteria no acircmbito do conceito de

memoacuteria Teitel natildeo supera o referencial conceitual representativo presente nos trabalhos

sobre Justiccedila de Transiccedilatildeo Em verdade termina por definir a memoacuteria no campo

transicional como memoacuteria coletiva isto eacute como um processo de reconstruccedilatildeo da

representaccedilatildeo do passado agrave luz do presente21

Se as histoacuterias de transiccedilatildeo possuem sua

proacutepria narrativa por outro lado vinculam-se a uma mais duradoura histoacuteria do Estado

implicando a um soacute tempo marcas de continuidade e descontinuidade ndash e seu equiliacutebrio

constitui a delicada dinacircmica a ser regulada pela produccedilatildeo da histoacuteria transicional

O mesmo acontece com a verdade definida como um consenso socialmente

partilhado ao passo em que a histoacuteria transicional seja gerada a partir das formas e praacuteticas

21

ldquoCollective memory is a process of reconstructing the representation of the past in the light of the presentrdquo

(TEITEL 2000 p 70)

58

legais dadas no interior de certo sistema de maneira a lanccedilar luzes sobre as instituiccedilotildees

franqueando mudanccedilas poliacuteticas

As narrativas histoacutericas de transiccedilatildeo satildeo produzidas por intermeacutedio de diversos

meios legais como julgamentos que formam precedentes com a gecircnese de corpos

burocraacuteticos para esse gecircnero de propoacutesitos a instalaccedilatildeo de comissotildees de verdade ou a

construccedilatildeo de histoacuterias oficiais Outras formas de prestaccedilatildeo de contas no campo histoacuterico

devem-se a iniciativas privadas de jornalistas historiadores e demais profissionais ligados

a este campo de saberes

Os julgamentos constituem a archē na construccedilatildeo das histoacuterias de transiccedilatildeo uma

vez que satildeo formas duradouras de produccedilatildeo da memoacuteria coletiva embora antes

constituam modos de processar fatos controversos estabelecer a verdade e no campo da

justiccedila criminal responsabilizar com base na verificaccedilatildeo de culpa ainda que sua

importacircncia como criteacuterio de verdade possa ser cultural e historicamente variaacutevel

Por meio dos julgamentos a busca pela verdade histoacuterica encontra-se implicada nos

quadros da prestaccedilatildeo de contas e da busca pela justiccedila Em algum niacutevel o uso de

julgamentos para interrogar a histoacuteria vai ao encontro da ēpistēme geralmente aceita por

nossos sistemas de justiccedila criminal Assim verdade e justiccedila satildeo segundo Teitel (2000 p

72-73) produzidas conjuntamente e desempenham importante papel no sentido de

deslegitimar o regime precedente estabelecendo a legitimidade do regime que o sucedeu

Esses poreacutem constituem os limites do conceito de memoacuteria tal como este

geralmente emerge entre os teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo Se de um lado reconhecem a

dimensatildeo puacuteblica da produccedilatildeo da memoacuteria e da verdade como representaccedilatildeo simboacutelica

apontando para seu caraacuteter coletivo social e poliacutetico parecem apontar ainda que

timidamente um potencial intrinsecamente transformador e redentor da memoacuteria que

sempre se define por uma relaccedilatildeo do passado recuperado no presente com alguma

dimensatildeo do futuro os imperativos de natildeo repeticcedilatildeo a criaccedilatildeo de uma identidade nacional

a construccedilatildeo da pertenccedila social ou a ldquotentativa de moldar o futurordquo por meio de certa

memoacuteria social

Que o conceito de memoacuteria mobilizado pela Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo natildeo se

restrinja a uma apreensatildeo meramente individual da memoacuteria ele estaacute ainda baseado no

testemunho individual e na formaccedilatildeo puacuteblica de uma memoacuteria que se reduz ora agrave faceta da

representaccedilatildeo coletiva ora ao seu registro na dimensatildeo cultural da reminiscecircncia

Apesar de Teitel (2003 p 87) afirmar o contraacuterio e sustentar que a Justiccedila de

Transiccedilatildeo implicaria uma abordagem natildeo-linear do tempo a concepccedilatildeo transicional

59

meramente representativa da memoacuteria erige-se poreacutem sobre uma apreensatildeo da

temporalidade que a limita a uma linearidade unidimensional em que passado e futuro satildeo

rearticulados no presente sem que jamais se explique de que modo puderam se tornar

copresentes Segundo a representaccedilatildeo que a Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo fizera do

tempo passado e futuro natildeo possuem realidade proacutepria pelo contraacuterio constituem duas

dimensotildees negativas o primeiro porque jaacute natildeo eacute mais o segundo porque natildeo eacute ainda ndash

embora seja constantemente assumido pelas teorias e por elas evocado como horizonte de

efetuaccedilatildeo natildeo raro redentor Nesse contexto a transiccedilatildeo eacute apresentada geralmente como

um processo capaz de produzir a passagem de um termo a outro mas sua dinacircmica jamais

eacute explicada a natildeo ser sob a metaacutefora obscura e paradoxal das ldquocontinuidades-rupturasrdquo A

representaccedilatildeo unidimensional e linear da temporalidade deduz-se do modo

desontologizado e negativo como o passado e o futuro satildeo representados pelas

apropriaccedilotildees dos teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo em meio ao magma confuso e

demasiadamente real das singularidades presentes que exigem por vezes sua proacutepria

recusa e destituiccedilatildeo

Nesse passo algo da dinacircmica pela qual a memoacuteria pode ser considerada condiccedilatildeo

para a transformaccedilatildeo do real ndash das subjetividades aos viacutenculos sociais dos viacutenculos

poliacuteticos agraves estruturas institucionais ndash resta incompreendido ou pelo menos elidido do

discurso vagamente redentor que se observa com recorrecircncia nas obras de teoacutericos da

Justiccedila de Transiccedilatildeo Isso deriva de eles terem procurado assentar os processos de

transformaccedilatildeo institucional em um conceito de memoacuteria reduzido a uma representaccedilatildeo

social ou cultural ignorando-a em sua realidade imanente negativizando-a como uma

regiatildeo do existente degradando sua ontologia particular e reduzindo a complexa relaccedilatildeo

entre memoacuteria e transiccedilatildeo a deus ex machina das transformaccedilotildees sociais e poliacuteticas

exigidas em periacuteodos poacutes-conflituais22

Da progressiva definiccedilatildeo do campo teoacuterico ocupado pelo conceito de memoacuteria na

Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo resultou a verificaccedilatildeo de que a memoacuteria eacute geralmente

compreendida como um elemento-chave para viabilizar a transiccedilatildeo reconhece-se

portanto a correlaccedilatildeo entre memoacuteria e transiccedilatildeo e todavia essa relaccedilatildeo eacute sempre obscura

ou pressuposta da mesma forma que a consistecircncia desse passado redentor jamais se

encontra definida em seus proacuteprios termos e enquanto tal Ao mesmo tempo em que ele

22

Cf nesse sentido os uacuteltimos segmentos da presente seccedilatildeo bem como a seccedilatildeo posterior (Capiacutetulo 3 sect 3)

ldquoA centralidade da memoacuteria e seus potenciais transformativosrdquo para acompanhar em maior detalhe a

demonstraccedilatildeo dessas asserccedilotildees

60

natildeo deve ser reduzido agrave reminiscecircncia individual parece consistir em algo que soacute pode ser

contado ou narrado na medida em que carrega conteuacutedos culturais e potenciais

transformativos eacute algo que natildeo dispensa as figuras encarnadas das testemunhas e dos

sobreviventes ndash sujeitos concretos capazes de transformar a experiecircncia real em

representaccedilatildeo simboacutelica apta a forjar o solo comum de uma nova cultura desejosamente

democraacutetica mas tambeacutem o fundamento identitaacuterio social nacional ou eacutetnico

(BARSALOU BAXTER 2007 p 01)

O perigo imanente a essa concepccedilatildeo de memoacuteria ndash que reduz a memoacuteria agravequilo que

os grupos sociais nacionais ou eacutetnicos decalcam dos significantes poliacuteticos institucionais e

estatais ou das representaccedilotildees infraestruturais correntes ndash eacute poliacutetico De um lado arrisca-

se fixar a memoacuteria agrave unidade monoliacutetica contra a qual Priscilla B Hayner (2011 p 84) se

acautela ndash embora ela confesse acreditar ser possiacutevel fixar verdades factuais

inquestionaacuteveis de outro eacute sempre possiacutevel render-se ao discurso redentor e pouco criacutetico

da memoacuteria e da verdade o perigoso momento em que a Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo

pode converter-se em chancela juriacutedica da reconciliaccedilatildeo a qualquer preccedilo e da extorsatildeo do

perdatildeo das quais entre outros nos previne Ruti Teitel (2003 p 81)

Fernando Catroga apresenta um excursus que visa a compreender as relaccedilotildees entre

memoacuteria e histoacuteria como gestos de uma representificaccedilatildeo do ausente ndash enfatizando ainda

mais a emergecircncia do conceito de memoacuteria sob o fundo de uma ontologia negativa Eis o

que definiria um segundo limite analiacutetico a fim de compreender os contornos do conceito

de memoacuteria na Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo

Umbilicalmente ligada agrave histoacuteria a memoacuteria apareceraacute do lado da morte e do

negativo (CATROGA 2009b p 75) desde que se compreenda a histoacuteria como um duplo

narrativo do gesto do sepultamento de um evento e da simulaccedilatildeo ritual de sua presenccedila A

histoacuteria edifica memoacuterias ao passo em que articula visiacutevel e invisiacutevel o que eacute e o que jaacute

natildeo eacute mais no seio das praacuteticas simboacutelicas dando como no cemiteacuterio um lugar ao

cadaacutever descarnado da memoacuteria Trata-se de negociar e esconder a corrupccedilatildeo do corpo e

do ser por meio da representaccedilatildeo ou do signo funeraacuterio

A exemplo de Catroga Jeanne Marie Gagnebin (2006 p 45) compreende o canto

mnemocircnico do poeta homeacuterico como o exemplar de uma luta por manter viva a memoacuteria

de um morto que jaacute natildeo sabe que tuacutemulo e signo se revezam no trabalho da memoacuteria que

todavia reconhece a supremacia do poder da morte do apagamento dos traccedilos que afinal

natildeo podem durar eternamente e testemunha a dupla pertenccedila etimoloacutegica de signo e pedra

61

mortuaacuteria ou tuacutemulo agrave raiz grega sēma Desse modo atesta o nexo entre memoacuteria morte

e trabalho do luto ndash elogio poeacutetico que como quisera Catroga (2009b p 69) representifica

o jaacute ausente dissimulando sua corrupccedilatildeo e necrose

A historiografia no entanto natildeo dispensa completamente o sujeito como suporte

mnemocircnico privilegiado tal como ele aparece entre os teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo na

condiccedilatildeo de superstes na corporificaccedilatildeo da testemunha a condiccedilatildeo existencial vulgar

coexiste com a encarnaccedilatildeo circunstancial de ser um sobrevivente

Eacutemile Benveniste (1969 p 273) demonstrara que o sentido etimoloacutegico de

superstes traduccedilatildeo do grego mārtyros implica dois significados que designam o

sobrevivente mas tambeacutem aquele que testemunha apesar disso identificava ainda que

outra raiz etimoloacutegica latina testis oriunda do direito romano designava aquele que se

colocava como terceiro encarregado de assistir a um ato ritual a ser praticado entre duas

outras pessoas

Atento a essas distinccedilotildees Giorgio Agamben (2008 p 27) afirma que a testemunha

natildeo pode ser o testis mas o superstes Ela nunca comparece como tribunal do juiacutezo ou da

histoacuteria apesar do que sustenta Fernando Catroga (2009b p 74) sobre uma pulsatildeo de

imparcialidade historiograacutefica do superstes que anunciaria uma dimensatildeo da verdade A

verdade segundo Agamben a analisa ao longo da literatura testemunhal sobre Auschwitz

atestaria a lacunaridade proacutepria de todo testemunho aquela entre a verdade e a experiecircncia

do intestemunhaacutevel O testemunho segundo Agamben (2008 p 43) ldquovale essencialmente

por aquilo que nele falta conteacutem no seu centro algo intestemunhaacutevel que destitui a

autoridade dos sobreviventesrdquo como se fazecirc-lo fosse testemunhar sobretudo em nome da

impossibilidade de testemunhar

Sob a forccedila do gesto de sepultamento ou o da sobrevivecircncia do testemunho fixada

em seu suporte o sujeito-testemunho ndash ldquouacutenico capaz de vivificarrdquo a memoacuteria ndash Fernando

Catroga (2009b p 74-75) afirma uma dupla implicaccedilatildeo entre histoacuteria e memoacuteria A

histoacuteria seria fonte da memoacuteria coletiva mas a memoacuteria afianccedilaria a verdade da

interpretaccedilatildeo histoacuterica e de suas mediaccedilotildees criacutetico-racionais

No momento em que se reconhece uma dimensatildeo produtiva da memoacuteria ndash a

produccedilatildeo de signos ndash encontra-se o limite do discurso historiograacutefico sobre a memoacuteria

Natildeo se trata de negar que a histoacuteria com efeito seja uma instacircncia de produccedilatildeo simboacutelica

de memoacuteria Entretanto a histoacuteria se relaciona com a memoacuteria investindo-a a partir do

negativo ora de sua relaccedilatildeo com a morte cujo assombro torna a histoacuteria incapaz de ouvir o

canto de vida e a potente insistecircncia dos vivos na positividade da memoacuteria ndash que satildeo os

62

objetos engendrados por todo trabalho de luto ora de sua relaccedilatildeo com a sem duacutevida

importante mas reduzida compreensatildeo do conceito de memoacuteria pela via exclusivamente

simboacutelica

A histoacuteria constitui uma forma de produccedilatildeo da memoacuteria que natildeo pode dispensar o

sujeito a consciecircncia e a razatildeo e ignora ou encobre que o nuacutecleo de todo o signo natildeo

aponta para estelas ou pedras mortuaacuterias mas para uma irrepresentaacutevel posiccedilatildeo de desejo

(DELEUZE GUATTARI 2010 p 158) Nesse aspecto apesar da mediaccedilatildeo criacutetica que o

saber histoacuterico pode constituir em face da produccedilatildeo oficial das narrativas a histoacuteria aponta

pela criacutetica mesma a operaccedilatildeo de sobrecodificaccedilatildeo dos signos a que a memoacuteria estaacute sujeita

quando da produccedilatildeo de uma histoacuteria oficial pelas narrativas de Estado

Por essa razatildeo Jeanne Marie Gagnebin (2006 p 47) erigiu agrave condiccedilatildeo de tarefa

essencial do historiador contemporacircneo a funccedilatildeo genuinamente poliacutetica de assegurar a natildeo

repeticcedilatildeo ao transmitir o inenarraacutevel manter viva a memoacuteria dos sem-nome e de afirmar

que o inesqueciacutevel existe Eis a tarefa que no seio da Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo

pretendemos conduzir ao limite de seu horizonte conceitual ndash afirmar que ldquoo inesqueciacutevel

existerdquo e fazecirc-lo contra a ordem de toda ontologia negativa23

Dentre os conceitos de memoacuteria elaborados no campo teoacuterico transicional a

memoacuteria natildeo deixou de ser compreendida como representaccedilatildeo tampouco de ser reduzida

ou evocada em correlaccedilatildeo com alguma dimensatildeo do negativo Ela natildeo cessa de ser

invocada como o conhecimento e a produccedilatildeo de arquivos pelas instituiccedilotildees como memoacuteria

coletiva ou partilha consensual de uma representaccedilatildeo social como objeto da cultura e de

poliacuteticas puacuteblicas vocacionadas a alterar estruturas poliacuteticas institucionais e

administrativas como narrativa como fiador da verdade dos signos histoacutericos como

testemunho histoacuteria oficial ou como representaccedilatildeo de um objeto ausente Por essa razatildeo

ao investigar as relaccedilotildees entre memoacuteria histoacuteria e esquecimento Ricœur (2000 p 69) soacute

pocircde afirmar duas dimensotildees de abordagem desse objeto ldquomemoacuteriardquo a cognitiva e a

pragmaacutetica

Na medida em que a Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo limitada por esses contornos

representativos e negativos do conceito de memoacuteria como representificaccedilatildeo do ausente

seja incapaz de apresentar uma soluccedilatildeo para o enigma da relaccedilatildeo entre memoacuteria e

transiccedilatildeo isso talvez seja indiciaacuterio de que o enigma natildeo possa ser esclarecido nesse

23

As partes II e III do presente trabalho destinam-se a desenvolver essa tarefa que Gagnebin afirma ser

essencialmente poliacutetica a partir de uma interlocuccedilatildeo com a filosofia de Henri Bergson

63

terreno Ainda que se atribua ao potencial criacutetico da memoacuteria social e conscientemente

construiacuteda a respeito da importacircncia da democracia e das violaccedilotildees de direitos que tiveram

lugar no passado (TORELLY 2012 p 281-282 TEITEL 2000 p 91-92) a funccedilatildeo de

constituir um elemento fundamental e necessaacuterio agrave construccedilatildeo da factibilidade das

transiccedilotildees este ainda consiste em um avanccedilo respeitaacutevel embora demasiadamente lacunar

com relaccedilatildeo ao ponto nodal da presente investigaccedilatildeo Restaria explicar uma questatildeo

simples mas profundamente problemaacutetica como a criacutetica social consciente poderia forjar

o desejo ndash tarefa aacuterdua e talvez metafiacutesica Eacute possiacutevel que os arcanos da Teoria da

Justiccedila de Transiccedilatildeo soacute admitam receber uma luz ndash malgrado indireta ndash ao passo em que

nos reportemos a horizontes conceituais mais ampliados Eacute provaacutevel ainda que toda a

lacunaridade a respeito da dinacircmica pela qual a memoacuteria pode ser entrevista como

condiccedilatildeo necessaacuteria agrave transiccedilatildeo deva ser atribuiacuteda aos termos e ao campo de sentido em

que o problema da relaccedilatildeo memoacuteria-transiccedilatildeo pode ser interrogado Eis o que tornaria

plausiacutevel desertar o quadro conceitual da Justiccedila de Transiccedilatildeo em proveito da construccedilatildeo

de um campo de sentido conceitualmente mais generoso em que natildeo verifiquemos a

priori um desinvestimento ontoloacutegico estrutural da ideia de memoacuteria na Teoria da Justiccedila

de Transiccedilatildeo jamais compreendida como uma regiatildeo do existente ou a partir de uma

ontologia que natildeo seja sempre e jaacute negativa

Nos quadros conceituais tradicionais ndash representativos e negativos como se

demonstrou ndash o significado da memoacuteria jamais estaraacute suficientemente infenso a assumir

indistintamente a faceta humanista da Justiccedila de Transiccedilatildeo como a negacionista dos

contramovimentos pode assumir o cariz da histoacuteria oficial a versatildeo dos algozes ou o rosto

da narrativa das viacutetimas Isso se deve ao fato de que no momento em que a proteccedilatildeo aos

direitos humanos de agentes de Estado violadores de direitos humanos eacute invocada como

argumento para sustentar a impossibilidade de persecuccedilotildees e responsabilizaccedilotildees criminais

(SABADELL DIMOULIS 2011 p 79-102) ou quando uma miacutetica anistia bilateral

construiacuteda por uma estrateacutegia controlada pelo Executivo (ABRAtildeO 2011 p 123-124) eacute

invocada sob o argumento do garantismo penal que natildeo se pergunta sobre a carecircncia de

autoridade internacional ou juriacutedica das autoanistias esses conceitos arriscam

indeterminarem-se ao infinito

Agenciando dispositivos micropoliacuteticos e macropoliacuteticos em torno de estrateacutegias de

sobrecodificaccedilatildeo da memoacuteria social as instituiccedilotildees imprimem sentidos proacuteprios no campo

de uma memoacuteria social politicamente em disputa Se por um lado natildeo haacute memoacuteria

exclusivamente institucional as instituiccedilotildees sociais e estatais investem de longa data o

64

campo da memoacuteria coletiva ocupando-se da governamentalidade de afetos livres

soldando-os agrave festa ao luto erigindo monumentos preservando documentos interditando

o acesso a eles ou abandonando-os ao esquecimento (LE GOFF 1990 p 426)

Essa eacute a dinacircmica que do ponto de vista das instituiccedilotildees e das poliacuteticas da

memoacuteria estaacute implicada na produccedilatildeo de simboacutelico no contexto das transiccedilotildees Embora isso

represente ainda a reduccedilatildeo da memoacuteria a uma ontologia negativa pois a submete a um

conceito de memoacuteria que se natildeo eacute exclusivamente psicoloacutegico ndash individual ou coletivo

decirc-se no niacutevel do consciente ou do subconsciente ndash dele depende pois concorre para a sua

reduccedilatildeo agrave representaccedilatildeo e ao simboacutelico eacute preciso verificar mais precisamente se e de que

maneira essas apropriaccedilotildees normativas conceituais praacuteticas e institucionais da ideia de

memoacuteria pela Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo implicam relacionar uma memoacuteria

cristalizada ndash em maior ou menor grau indiferente aos dinamismos da memoacuteria ndash e o

advento da transiccedilatildeo da qual a memoacuteria constitui um dos principais nuacutecleos causais

sect 3 A CENTRALIDADE DA MEMOacuteRIA

E SEUS POTENCIAIS TRANSFORMATIVOS

Na medida em que se definiram dois campos de sentido referenciais em correlaccedilatildeo

com os quais a Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo engendra um conceito de memoacuteria ndash ora

decalcado de seu proacuteprio referencial epistecircmico ora apropriando-se de um campo

significante que lhe eacute externo (Capiacutetulo 3 sect 2 supra) ndash definiram-se coextensivamente

os limites teoacutericos do conceito De acordo com tais contornos a memoacuteria soacute pode aparecer

no campo da Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo ao preccedilo de ali ser capturada ora como

memoacuteria psicoloacutegica individual (testemunho) ora como memoacuteria psicoloacutegica social

(narrativas sociais e culturais) ora como substrato necessaacuterio agrave construccedilatildeo de identidades

nacionais e eacutetnicas dos grupos perseguidos (ponto de vista poliacutetico-institucional) e

finalmente como a representificaccedilatildeo individual ou socialmente partilhada de elementos

ausentes a partir de um registro simboacutelico historiograacutefico e negativo na medida em que

apreende o passado como natildeo-ser com a consistecircncia proacutepria de representaccedilatildeo ou

representificaccedilatildeo de um objeto ausente (RICŒUR 2000 p II)

No entanto ainda que se tenha demonstrado os limites conceituais internos e

externos por meio dos quais a memoacuteria se torna um objeto de investimento no campo

teoacuterico da Justiccedila de Transiccedilatildeo conviria estender seus contornos um pouco aleacutem no

65

intuito de alcanccedilar o ponto de em que o conceito eacute apreendido pelas instituiccedilotildees em

transiccedilatildeo e se torna objeto de uma reapropriaccedilatildeo no campo teoacuterico Em outras palavras eacute

preciso verificar com que conceito de memoacuteria as instituiccedilotildees em transiccedilatildeo operam a fim

de aquilatar se nesse novo e aparentemente concreto horizonte de aparecimento o

conceito de memoacuteria poderia desligar-se mais facilmente das feiccedilotildees representativas e

negativas ndash embora pretensamente coletivas sociais ou culturais ndash que constituiacuteram seus

contornos teoacutericos ateacute aqui

Entre os teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo alguns reconheceram a impossibilidade

de fixar o conceito de memoacuteria e mais especificamente os processos de memorializaccedilatildeo

sob a insiacutegnia de uma forma determinada e fechada Nesse sentido poder-se-aacute falar natildeo

apenas de uma variedade de forma que a memoacuteria pode assumir nos contextos poacutes-

conflituais (BARSALOU BAXTER 2007 p 04) como referir-se a certa mutabilidade

interna aos proacuteprios conteuacutedos da memoacuteria Nesse caso as memoacuterias seriam maleaacuteveis

(PHELPS 2012 p 07) e flexiacuteveis na medida em que as neurociecircncias compreenderam seu

papel evolutivo nas funccedilotildees adaptativas (cf CAMPOS SANTOS e XAVIER 1997)24

Por essa razatildeo recentemente alguns autores que aproximaram a Teoria da Justiccedila

de Transiccedilatildeo de um diaacutelogo produtivo com as ciecircncias do ceacuterebro passaram a defender ndash

lastreados em fundamentaccedilotildees neurocientiacuteficas ndash a impossibilidade de tratar-se

adequadamente da memoacuteria representando-a como um elemento estaacutetico (BARSALOU

BAXTER 2007 p 12 e p 16) No limite chegaratildeo a advogar a existecircncia de certa

instabilidade constitutiva da memoacuteria (NAGEL SINOTT-ARMSTRONG 2012 p 05) na

medida em que o proacuteprio processo de evocaccedilatildeo e repeticcedilatildeo de memoacuterias conscientes jaacute

implicaria sua alteraccedilatildeo dinacircmica25

bem como ao passo em que a memoacuteria eacute ressignificada

durante os heterogecircneos processos de transmissatildeo intergeracional26

Isto poreacutem como

demonstrado por Nadel e Sinott-Armstrong (2012 p 05) natildeo se confunde com a

concepccedilatildeo dominante de memoacuteria no seio do campo teoacuterico transicional nem mesmo com

24

CAMPOS Alexandre de SANTOS Andreacutea M G dos XAVIER Gilberto F A Consciecircncia Como Fruto

da Evoluccedilatildeo e do Funcionamento do Sistema Nervoso Psicologia USP Satildeo Paulo v 8 n 2 1997

Disponiacutevel em lthttpwwwscielobrscielophpscript=sci_arttextamppid=S0103-

65641997000200010amplng=enampnrm=isogt Acesso em 20 mai 2013 25

ldquo[] memories once created are not fixed entities The public conception of course is that memories are

permanent imprints that might fade but are otherwise stable We know that is not the case apparently stable

memories can be altered when they are reactivated That is memory is fundamentally malleable [] when

memories are replayed [] this process of reactivating and replaying a memory inalterably changes it going

forwardrdquo (NADEL e SINNOTT-ARMSTRONG 2012 p 05) Em adiccedilatildeo Elizabeth A Phelps (2012 p 07)

reconhece que ldquo[] memories can be quite malleable for reasons that are likely adaptive in everyday life

[]our highly vivid and detailed memories for emotional events may not be as accurate as they seemrdquo 26

ldquoBecause memory is not static and lsquoreceivedrsquo memory is reinterpreted from one generation to another[]rdquo

(BARSALOU BAXTER 2007 p 16)

66

sua apreensatildeo praacutetica e institucional que em comum partem do pressuposto de que as

memoacuterias seriam constituiacutedas de maneira estaacutetica como se fossem ldquo stable and permanent

imprintsrdquo

A exemplo de Nadel e Sinnott-Armstrong ao reconhecerem ainda uma vez certos

dinamismos da memoacuteria Judy Barsalou e Victoria Baxter identificaram com precisatildeo

alguns limites sob os quais o conceito de memoacuteria mas tambeacutem os processos de

memorializaccedilatildeo tornaram-se objetos de investimento pela Teoria da Justiccedila de

Transiccedilatildeo27

Segundo as autoras na medida em que os processos de memorializaccedilatildeo

comportam diversas formas encampam objetivos comemorativos honoriacuteficos satisfativos

ou reparatoacuterios terminam por servir de pano de fundo factual que uma vez reinterpretado

sob nova luz seria capaz de subsidiar a satisfaccedilatildeo de necessidades sociais e poliacuteticas

diversas que vatildeo desde a reintegraccedilatildeo dos ldquosubversivosrdquo e resistentes poliacuteticos agrave nova

ordem ateacute a possibilidade de consolidaccedilatildeo de uma identidade eacutetnica ou nacional

Dessa maneira resta claro que no interior de sua apreensatildeo conceitual a memoacuteria

pode ser capturada no campo teoacuterico transicional a partir de um amplo espectro de

definiccedilatildeo compreendendo tanto as formas de uma memoacuteria individual e psicoloacutegica como

atingir em outro extremo o niacutevel das memoacuterias sociais e poliacuteticas (representaccedilotildees

coletivas) objeto de contestaccedilotildees e de disputas pelo controle hegemocircnico da verdade

Nesse sentido os horizontes de aparecimento da memoacuteria no campo transicional satildeo

relativamente heterogecircneos pois a memoacuteria tanto eacute apreendida como um mecanismo de

subjetivaccedilatildeo microloacutegico erigindo-se pela e a partir da subjetividade individual de

testemunhas e sobreviventes como pode definir-se como aparato macropoliacutetico

potencialmente constitutivo de identidades sociais eacutetnicas e nacionais

Os textos de Barsalou e Baxter como os de Nadel e Sinnott-Armstrong terminam

por legar-nos uma perspectiva relativamente ambiacutegua no que diz respeito ao conceito de

memoacuteria no campo transicional ao mesmo tempo em que se reconhece do ponto de vista

puacuteblico pragmaacutetico e institucional a limitaccedilatildeo de um conceito estaacutetico de memoacuteria ndash

ainda que em toda a Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo tal conceito seja enunciado

27

ldquo[] memorialization takes a variety of forms serving as an umbrella concept encompassing a range of

processes to remember and commemorate Memorialization as a process satisfies the desire to honor those

who suffered or died during conflict and becomes a means of examining the past In this process the past can

be reinterpreted to address a wide range of political or social needs ndash recasting lsquosubversivesrsquo as martyrs or

innocent victims for instance or consolidating a new national identity such as the transformation of South

Africa from apartheid state to lsquoRainbow Nationrsquo Memorialization thus represents a powerful arena of

contested memory and offers the possibility of aiding the formation of new national community and ethnic

identitiesrdquo (BARSALOU BAXTER 2007 p 04)

67

obscuramente como um ldquoprocessordquo jamais esclarecido ou que aspire ao registro das

memoacuterias coletivas ndash o reconhecimento dos dinamismos da memoacuteria a partir das

contribuiccedilotildees da neurociecircncia parece nos reconduzir a uma concepccedilatildeo de memoacuteria

individual pessoal cuja sede arquiviacutestica seria o ceacuterebro humano

Mesmo que a Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo comece a reconhecer com timidez a

natureza constitutivamente dinacircmica da memoacuteria isso implica que toda concepccedilatildeo de

memoacuteria coletiva ou social precise voltar a lastrear-se nas memoacuterias subjetivas e

individuais ndash e isso em um momento em que a memoacuteria passa a ser compreendida

hegemonicamente pelos teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo como vimos como um processo

cultural como memoacuteria social ou coletiva que segundo Maurice Halbwachs teria sido

capaz de emancipar-se dos referenciais tradicionalmente individuais da memoacuteria28

Tudo

se passa como se quando a Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo acreditava ter chegado ao porto

da memoacuteria coletiva emancipada das lembranccedilas individuais ela eacute novamente lanccedilada ao

alto-mar das memoacuterias individuais e psicoloacutegicas Mesmo com esse movimento pendular

jamais desertamos o amplo espectro teoacuterico jaacute traccedilado por Paul Ricœur (2000 p 69)

segundo o qual a memoacuteria eacute apreendida ora de seu ponto de vista cognitivo ora de seu

ponto de vista pragmaacutetico

Desse uacuteltimo ponto de vista ndash vale dizer da perspectiva das instituiccedilotildees e da

pragmaacutetica transicional ndash Louis Bickford teria sugerido a existecircncia de dois paradigmas

sobrepostos para confrontar o passado (BARSALOU BAXTER 2007 p 10) O primeiro

deles chamado de paradigma da Justiccedila de Transiccedilatildeo estaria francamente relacionado agraves

responsabilidades legais do Estado e da comunidade internacional em promover o Estado

de Direito exigindo-se praacuteticas narrativas sobre a verdade do passado (truth-telling)

persecuccedilatildeo e responsabilizaccedilatildeo criminal dos agentes violadores promoccedilatildeo de reparaccedilatildeo agraves

28

Maurice Halbwachs insurgiu-se contra o haacutebito de pensar a memoacuteria como um fenocircmeno exclusivamente

pessoal individual psicoloacutegico e interno afirmando que ldquoOn nrsquoest pas encore habitueacute agrave parler de la meacutemoire

drsquoun groupe mecircme par meacutetaphorerdquo (HALBWACHS 1997 p 97) Eis o que o leva a afirmar que as

lembranccedilas se agrupariam natildeo apenas ao redor de centros pessoais mas seriam igualmente distribuiacutedas no

registro coletivo Maurice Halbwachs sustentou que os quadros sociais da memoacuteria excedem os da histoacuteria

de forma tal que de um lado os quadros sociais da memoacuteria satildeo como ldquocourants de penseacutee et drsquoexpeacuterience

ougrave nous retrouvons notre passeacute que parce qursquoil en a eacuteteacute traverseacuterdquo ldquocourant de penseacutee continurdquo de outro a

memoacuteria coletiva natildeo se reduz agrave memoacuteria histoacuterica por natildeo se encontrar integralmente vertida nela

(HALBWACHS 1997 p 113 e p 131) Todo o projeto de Halbwachs definia-se no sentido de pensar uma

memoacuteria coletiva como memoacuteria concreta de grupos Nesse sentido recusava-se o pressuposto habitual de

que a memoacuteria coletiva pudesse estar baseada unicamente nas memoacuterias individuais Na contramatildeo do

haacutebito Halbwachs concebia a memoacuteria individual como um epifenocircmeno da memoacuteria coletiva subordinando

aquela agrave esta ldquoTout rappel drsquoune seacuterie de souvenirs qui se rapportent au monde exteacuterieur srsquoexplique donc par

les lois de la perception collectiverdquo (HALBWACHS 1997 p 87) ldquo[]chaque meacutemoire individuelle est un

point de vue sur la meacutemoire collective[]rdquo (HALBWACHS 1997 p 94) Assim a memoacuteria coletiva

passaria a ser compreendida como o campo de sentido e o horizonte privilegiado de aparecimento das

memoacuterias individuais

68

viacutetimas e garantias de natildeo repeticcedilatildeo mediadas por reformas institucionais que as

afianccedilassem O segundo paradigma da memoacuteria identifica-se com a promoccedilatildeo de uma

cultura democraacutetica parcialmente amparada na criaccedilatildeo de uma mentalidade de ldquonunca

maisrdquo (never again mentality)

Ambos os paradigmas promovem a interlocuccedilatildeo entre dimensotildees diferentes do

passado ndash a institucional responsabilizadora e reformista por um lado e a cultural e

identitaacuteria por outro Tal interlocuccedilatildeo todavia natildeo consegue arrostar a memoacuteria senatildeo

como algo que deve derivar forccedilosamente de um elemento material nesses termos a

memoacuteria se descola da documentaccedilatildeo dos arquivos testemunhos evidecircncias forenses ou

constitui a mateacuteria indoacutecil de que o presente deve se apropriar para forjar uma cultura

democraacutetica futura Tudo se passa como se a promessa redimisse o passado mas natildeo sem

antes retornar uma uacuteltima vez sobre o irrepetiacutevel que esse passado encerra

Como consequecircncia desse amplo espectro conceitual que tem origem na memoacuteria

individual e encontra seu limite na memoacuteria institucional e na promessa coletiva Judy

Barsalou e Victoria Baxter definem memorializaccedilatildeo como ldquo[]a process that satisfies the

desire to honor those who suffered or died during conflict and as a means to examine the

past and address contemporary issuesrdquo (BARSALOU BAXTER 2007 p 01) Sua relaccedilatildeo

com a dimensatildeo da promessa estendida na direccedilatildeo de um tempo futuro e de um potencial

transformador da memoacuteria logo se clarifica ldquoIt [memorialization] can either promote

social recovery after violent conflicts ends or crystallize a sense of victimization injustice

discrimination and the desire for revengerdquo (BARSALOU BAXTER 2007 p 01)

Eis o que testemunha uma pluralidade de apreensotildees possiacuteveis no seio das quais

buscamos encontrar e definir limites e contornos conceituais a fim de compreender a

questatildeo que como veremos sempre emerge em toda argumentaccedilatildeo sobre a memoacuteria mas

jamais satildeo objeto de uma maior atenccedilatildeo pelos teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo Trata-se do

enigma da relaccedilatildeo entre memoacuteria e transiccedilatildeo cujos arcanos podem ser colocados em

questatildeo a partir de duas interrogaccedilotildees simples (1) por que a memoacuteria ndash compreendida a

partir de seu amplo espectro categoacuterico na Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo ndash aparece com

uma constante centralidade no acircmbito das transiccedilotildees poliacuteticas e (2) se a memoacuteria

individual ou coletiva psicoloacutegica ou cultural narrativa ou simboacutelica aponta para um

conceito representativo e negativo consistente na representificaccedilatildeo de uma realidade

ausente no seio de processos individuais ou culturais de reminiscecircncia como ela pode ser

considerada uma condiccedilatildeo ndash se natildeo suficiente pelo menos necessaacuteria ndash agrave efetuaccedilatildeo de toda

e qualquer transiccedilatildeo

69

Com efeito essas duas questotildees se entrecruzam no ponto em que as memoacuterias

redentoras exercem funccedilotildees simboacutelicas individuais e coletivas capazes de tornar factiacuteveis

as transiccedilotildees Na medida em que demonstramos que no seio da Teoria da Justiccedila de

Transiccedilatildeo apesar do caraacuteter heterogecircneo do conceito de memoacuteria trata-se de um conceito

de amplo espectro e central isto eacute o campo teoacuterico transicional utiliza-se dele de maneira

variaacutevel mas sua emergecircncia eacute nesse mesmo campo uma constante Por outro lado

tambeacutem demonstramos que a Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo constantemente decalca da

memoacuteria certas funccedilotildees transicionais pragmaacuteticas sem memoacuteria natildeo pode haver

consolidaccedilatildeo da justiccedila ndash para isso eacute preciso formar um corpus mnecircmico judiciaacuterio

institucional ndash nem das reparaccedilotildees ndash eacute preciso dar nomes agraves viacutetimas encontrar e identificar

corpos de desaparecidos reintegrar perseguidos poliacuteticos ndash tampouco reformas pois eacute

preciso determinar os responsaacuteveis atribuir as violaccedilotildees do passado a algueacutem purgar os

diretamente envolvidos e os coniventes (TEITEL 2000 p 90) Enfim natildeo eacute possiacutevel

efetuar nenhuma das dimensotildees reconhecidas pela Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo ou pelo

Direito Internacional dos Direitos Humanos como inerentes aos processos de transiccedilatildeo

democraacutetica sem apelar a uma memoacuteria do passado Nem mesmo os compromissos

futuros de natildeo repeticcedilatildeo e de produccedilatildeo de uma cultura social institucional e juriacutedica mais

democraacutetica seriam possiacuteveis sem compreender a consistecircncia intoleraacutevel do que se nos

tornou defeso repetir

Poreacutem nesse momento afirmaacute-lo eacute apenas a tentaccedilatildeo de uma intuiccedilatildeo vaga e

confusa Resta investigar se no horizonte de sentido da Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo

surge ou natildeo uma explicaccedilatildeo sobre o potencial transformativo atribuiacutedo agrave memoacuteria ou se

pelo contraacuterio cairemos uma vez mais no espaccedilo lacunar e negativo no qual tais

doutrinas como vimos capturaram a ideia de memoacuteria

Partindo de dois pressupostos jaacute demonstrados ndash o reconhecimento contiacutenuo do

conceito de memoacuteria como elemento-chave para efetuar as transiccedilotildees democraacuteticas por

um lado e a atribuiccedilatildeo constante mas segundo gradaccedilotildees variaacuteveis de clareza de um

potencial transformativo inerente agrave memoacuteria ndash verifiquemos se e de que forma a Teoria da

Justiccedila de Transiccedilatildeo busca explicar a relaccedilatildeo entre memoacuteria e transiccedilatildeo ou o que

tomamos por equivalente a atribuiccedilatildeo agrave memoacuteria de potenciais transformativos Assim

como os dois pressupostos que referimos e demonstramos acima constituem constantes dos

70

discursos dos teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo algo semelhante se verifica no plano da

relaccedilatildeo ndash sempre pelo menos subreptiacutecia ndash entre eles

Ao defenderem a importacircncia dos processos de memorializaccedilatildeo como um

importante instrumento no quadro das iniciativas transicionais Barsalou e Baxter (2007 p

02) relacionam memorializaccedilatildeo e transiccedilatildeo a ponto de afirmarem que a incapacidade em

lidar com memoriais ldquo[]can imperil transitional justice efforts and peacebuildingrdquo Sob o

ponto de vista da criaccedilatildeo de memoriais e espaccedilos da memoacuteria as autoras atribuem agrave

memoacuteria natildeo apenas uma dimensatildeo constitutiva central das iniciativas transicionais mas

denotam ainda a relaccedilatildeo entre memoacuteria e esforccedilos pela construccedilatildeo da paz

Louis Bickford reafirma os processos de memoralizaccedilatildeo puacuteblica como um elemento

central para a efetuaccedilatildeo das demais dimensotildees inerentes agrave Justiccedila de Transiccedilatildeo natildeo apenas

a memoacuteria constitui o terreno primaacuterio a fim de lidar com um passado traumaacutetico como a

memoacuteria aparece claramente dotada em circunstacircncias concretas ndash como a das Comissotildees

de Verdade ndash de um reconhecido potencial transformativo29

De alguma maneira ndash a cujo

detalhamento Bickford todavia natildeo desce os memoriais puacuteblicos teriam a capacidade

praacutetica de construir ldquobroader cultures of democracy over the long term by generating

conversations among differing communities or engaging new generations in the lessons of

the pastrdquo (BICKFORD et all 2007 p 02) bem como a memorializaccedilatildeo exerceria um

papel central na formaccedilatildeo da formaccedilatildeo da vida ciacutevica e poliacutetica30

Todavia haacute autores a exemplo de A J McAdams que consideram a memoacuteria

essencial agrave transiccedilatildeo mas do ponto de vista de sua negatividade Eacute certo que ldquo[]one

should be always circumspect about arguments that too readily dismiss calls for justice and

accountability by appealing to an all-encompassing lsquopolitical realismrsquordquo (McADAMS

1997 p xiv) poreacutem admite que em certas circunstacircncias se for necessaacuterio agrave construccedilatildeo

da reconciliaccedilatildeo nacional seria responsaacutevel silenciar sobre um legado de abusos de

direitos humanos ldquo[]that is to forget and if possible to forgive the past offenses in the

interest of national reconciliationrdquo (McADAMS 1997 p xiv) Com efeito se nos dermos

conta como quisera Paul Ricœur (2000 p 574-575) de que ldquo[]les notations sur lrsquooubli

29

ldquoIn vastly different contexts communities see public memorialization as central to justice reconciliation

truth-telling reparation and coming to grips with the past []Thus they have become a primary terrain on

which diverse constituencies address the enormous and challenging complexities of a traumatic past

Recognizing the power and potential of memorialization NGOs victimsrsquo groups and truth commissions

from Peru to Sierra Leone have advocated for memorialization as a key component of reform and transitional

justicerdquo (BICKFORD et all 2007 p 01) Disponiacutevel em lt httpictjorgsitesdefaultfilesICTJ-Global-

Memorialization-Democracy-2007-English_0pdfgt Acesso em 20 mai 2013 30

ldquo[] for better or worse memorialization plays a central role in the direction and shape of civic life and

politicsrdquo (BICKFORD et all 2007 p 04)

71

constituent en grande partie un simple envers de celles portant sur la meacutemoire rdquo veremos

que a memoacuteria ndash desta feita elidida e anulada ndash constitui ainda que a partir de sua

negatividade um aspecto essencial agrave factibilidade das transiccedilotildees Prova disso eacute que no

mesmo livro organizado por McAdams Juan Meacutendez critica duramente as poliacuteticas de

esquecimento e perdatildeo irrestritos como ldquoalternativas tentadorasrdquo para viabilizar

reconciliaccedilotildees na medida em que considera a busca por justiccedila retrospectiva ldquoan urgent

task of democratizationrdquo (MENDEacuteZ 1997 p 01)31

Desse modo ainda que de um ponto

de vista negativo a memoacuteria aparece sempre ligada a certa capacidade transformativa que

no texto de McAdams assume a faceta reduzida da realpolitik reconciliadora

De seu turno Juan Meacutendez erige como tarefa fundamental das transiccedilotildees poliacuteticas o

acerto de contas com o passado mesmo porque a accountability decorreria da proacutepria

natureza da transiccedilatildeo32

mas tambeacutem da democracia ldquoThe publicrsquos right to know is a

fundamental tenet of democracy and it should not be sacrificed to the supposedly higher

interest of reconciliationrdquo (MENDEacuteZ 1997 p 08)

Em sentido anaacutelogo Posner e Vemeule (2003 p 05) definem as praacuteticas

transicionais intimamente ligadas agrave memoacuteria Segundo eles esta seria a definiccedilatildeo mais

corrente de Justiccedila de Transiccedilatildeo ldquoIn the literature writers generally understand transitional

justice as backward lookingrdquo Ela implicaria uma seacuterie de praacuteticas compensatoacuterias das

viacutetimas de responsabilizaccedilatildeo por violaccedilotildees de direitos humanos e de revelaccedilatildeo da verdade

sobre o passado No entanto seu pequeno artigo testemunha ao mesmo tempo a relaccedilatildeo

da justiccedila de transiccedilatildeo e de suas praacuteticas compreensivas agrave luz desse passado tambeacutem em

ldquoforward looking termsrdquo Entreter-se com um passado de violaccedilotildees tornaria possiacutevel

recuperar tradiccedilotildees e instituiccedilotildees perdidas promover purgas de agentes responsaacuteveis

realizar reformas sinalizar compromissos com uma ordem poliacutetico-juriacutedica mais

democraacutetica e estabelecer precedentes constitucionais capazes de impedir que liacutederes

futuros repitam os abusos do regime anterior

Tambeacutem Ruti Teitel considera o conhecimento do passado como algo essencial agrave

transiccedilatildeo ndash e natildeo apenas de um ponto de vista pragmaacutetico e instrumental como Posner e

31

ldquo[] the pursuit of retrospective justice is an urgent task of democratization as it highlights the

fundamental character of the new order to be established an order based on the rule of law and on respect for

the dignity and worth of each human person [] In this context the temptation is great to equate

reconciliation with a forgive-and-forget policyrdquo (MEacuteNDEZ 1997 p 01) 32

ldquoThe primary task is to recognize that there is a past to be reckoned with The nature of the transition to

democracy itself means that there is unfinished business with respect to how we put distance between the

challenges of the present and the traumas of the recent past (MEacuteNDEZ 1997 p 03) e completa ldquo[] by

definition any transitional situation will include limits on what can be done about the past []rdquo (MEacuteNDEZ

1997 p 04)

72

Vermeule Teitel (2000 p 69) reconhece que comumente entre os analistas poliacuteticos

contemporacircneos assimilar um passado de violaccedilotildees eacute considerado necessaacuterio para

restaurar o coletivo em periacuteodos de radical cacircmbio poliacutetico33

Desse ponto de vista em

relaccedilatildeo ao qual Teitel (2000 p 116) exprimiraacute discordacircncia o passado desempenharia

uma funccedilatildeo poliacutetica fundacional da nova ordem Ao mesmo tempo sua posiccedilatildeo empresta

ao conhecimento sobre a verdade passada um papel crucial na promoccedilatildeo da transiccedilatildeo

poliacutetica na direccedilatildeo da democracia Tanto que Teitel (2000 p 110) afirma ldquoA societyrsquos

confrontation with its past is deemed necessary to its transition to democracyrdquo e ainda o

reitera claramente em outra oportunidade atribuindo agrave memoacuteria social um potencial

poliacutetico transformativo sui generis ldquoSocietal self-knowledge is not an end in itself but

rather the predicate for the potential of prospective change in human behavior and

consequent liberalizing transformationrdquo (TEITEL 2000 p 115)

Ao tratar da Justiccedila Histoacuterica poreacutem torna-se ainda mais visiacutevel a questatildeo lacunar

que nos competia demonstrar Se por um lado Teitel expressa sua discordacircncia em relaccedilatildeo

agraves anaacutelises poliacuteticas correntes ndash segundo as quais as pesquisas histoacutericas do passado teriam

natureza fundacional ndash por outro lado reitera que tais pesquisas desempenham funccedilatildeo

transicional ldquo[] the role of historical inquiry is not foundational but transitional History

is ever present in the life of the state but in political flux it helps to construct

transformationrdquo (TEITEL 2000 p 115) De algum modo obscuro e preacute-simboacutelico admite-

se que ldquothe transitional narratives advance construction of the contemporary political

orderrdquo (TEITEL 2000 p 116) sem no entanto jamais lanccedilar luzes sobre o que torna

possiacutevel fazer com que o passado efetivamente passe e de uma vez por todas

Uma possiacutevel resposta a essa questatildeo que surge na Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo

com tonalidades vagas poderia residir nos usos pragmaacuteticos da memoacuteria capazes de

conectar como quisera Teitel (2000 p 90) a justiccedila histoacuterica a outras dimensotildees da

Justiccedila de Transiccedilatildeo como as reparaccedilotildees reformas institucionais ou alteraccedilatildeo da cultura

autoritaacuteria preacutevia Ainda assim por mais que a memoacuteria seja constantemente invocada

como fiadora de um futuro democraacutetico como esteio criacutetico das violaccedilotildees dos regimes

poliacuteticos anteriores ao acercar-se da memoacuteria como um elemento meramente instrumental

a Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo revela apenas uma inexplicaacutevel autoposiccedilatildeo analiacutetica tudo

se passa como se a memoacuteria retirasse sua forccedila e justificativa da transiccedilatildeo e esta por sua

vez as retirasse da memoacuteria Em outras palavras os pragmatismos da memoacuteria limitam-se

33

ldquoThe claim is that establishing the ldquotruthrdquo about the statersquos past wrongs like successor constitutions or

trials can serve to lay the foundation of the new political order []rdquo (TEITEL 2000 p 69)

73

a revelar como as instituiccedilotildees tornam a memoacuteria uma mateacuteria da accedilatildeo transicional mas

natildeo logram explicar os mecanismos que levam a passar da memoacuteria agrave accedilatildeo poliacutetica

transicional ndash quando a questatildeo mais fundamental sobre seu potencial transformativo eacute

esta e natildeo a do rapport pragmaacutetico e instrumental que decorre da primeira

Desse modo ao requalificar a verdade do passado como ldquoworkable past for a

changed futurerdquo Teitel (2000 p 91) apreende a memoacuteria exclusivamente como mateacuteria da

accedilatildeo poliacutetica subtraindo-lhe momentaneamente o potencial transformador interno que ateacute

agora lhe era atribuiacutedo Dando-se conta disso a certa altura Teitel (2000 p 111)

pergunta-se ldquoIs it the truth that brings on liberalizing political change or the political

change that enables restoration of democratic government and the truth-tellingrdquo

concluindo de uma perspectiva empiacuterica que ldquoFor the move out of dictatorship did not

await the truth indeed the movement to free elections and a more democratic political

system generally precedes processes of truth productionrdquo

Contudo Teitel (2000 p 111) reconhece na mesma passagem e ainda uma vez a

importacircncia da memoacuteria como sede de um potencial transformativo ldquorevealing the

possibility of future choice is what distinguishes the liberal transition In the transitional

accounts lie the kernels of a liberal future foretoldrdquo Teitel observa que mesmo as

narrativas institucionais frutos da atuaccedilatildeo de agentes responsaacuteveis por alguma das diversas

formas de efetuaccedilatildeo da justiccedila histoacuterica apresentam geralmente um caraacuteter progressivo e

romacircntico Natildeo raro enunciam o conhecimento do passado como um ldquomagical switchrdquo no

sentido de um futuro democraacutetico redimido pela reemergecircncia de uma memoacuteria oculta e

reprimida

In the stories told in the reports it is the revealed truth that helps bring on the switch from

the tragic past to the promise of a hopeful future How does this occur The story told is of

a catastrophe which is somehow turned around An awful fate is averted as in dramatic

narrative by the introduction of a magical switch Transitional justice operates as such a

device through the introduction of persons with special access to privileged knowledge

such as judges in trials commissioners experts and witnesses Mechanisms of liberation

and correction enable the shift in the societal story to move away from catastrophe to

redemptive future The move to a more liberal society is enabled by a reckoning with the

past transitional narratives are generally progressive and romantic (TEITEL 2000 p

111)

A questatildeo que Teitel se propotildee nesse excerto ldquoHow does it occurrdquo natildeo atinge o

fundo da relaccedilatildeo entre memoacuteria e transiccedilatildeo pois se pergunta sobre as passagens entre o

passado traacutegico e a esperanccedilosa promessa de um futuro redentor sob o ponto de vista dos

usos pragmaacuteticos da memoacuteria compreendida como verdade uacutetil sobre o passado e

74

mobilizada em torno de objetivos poliacuteticos predefinidos Apenas nesse sentido e no plano

estritamente simboacutelico dos relatoacuterios ndash objetos de sua reflexatildeo nesse ponto ndash eacute que se pode

atribuir agrave justiccedila de transiccedilatildeo o funcionamento como o ldquomagical switchrdquo que as narrativas

demasiado romacircnticas e progressivas introduzem Poreacutem como natildeo seria paradoxal

afirmar a um soacute tempo34

que ldquoa transiccedilatildeo natildeo espera pela verdaderdquo e que ldquomover-se em

direccedilatildeo a uma sociedade mais liberalrdquo isto eacute efetuar a transiccedilatildeo ldquotorna-se possiacutevel por um

acerto de contas com o passadordquo

Que do ponto de vista praacutetico os mecanismos transicionais confundam-se com o

ldquomagical switchrdquo que permite evitar um futuro de horror e repeticcedilatildeo nada esclarece nem

sobre como a transiccedilatildeo pode avanccedilar sem conhecimento declarado do passado tampouco

sobre como a memoacuteria pode ser um locus de potenciais transformativos Uma vez mais

conveacutem observar que Teitel trabalha com um conceito pragmaacutetico e simboacutelico de

memoacuteria compreendida como verdade uacutetil agrave justiccedila histoacuterica e agraves operaccedilotildees praacuteticas dos

mecanismos transicionais Poreacutem Teitel ou qualquer outro autor da Teoria da Justiccedila de

Transiccedilatildeo jamais se coloca a questatildeo simples sobre o fundamento do potencial

transformador da memoacuteria ou se nos atrelarmos por um instante agrave primeira afirmaccedilatildeo de

Teitel ndash segundo a qual geralmente a transiccedilatildeo natildeo espera pela verdade do passado ndash

jamais encontraremos a questatildeo simples mas crucial sobre as causas profundas que

conduzem a essa transiccedilatildeo que natildeo espera pelo advento da verdade nem se elas

comportariam alguma relaccedilatildeo com a memoacuteria em outro registro que natildeo o pragmaacutetico ou o

simboacutelico Ainda que se possa interpretar as transiccedilotildees como processos poliacuteticos de longa

duraccedilatildeo de tal forma que a transiccedilatildeo poliacutetica ocorra previamente ao acerto de contas com o

passado ainda resta em aberto a questatildeo sobre as causas geneacuteticas dos eventos

transicionais e qual sua potencial relaccedilatildeo com a memoacuteria ndash relaccedilatildeo sempre pressuposta

uma vez que no limite os processos de memorializaccedilatildeo integraratildeo os proacuteprios objetivos

transicionais

Em outro campo analiacutetico teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo tampouco conseguiratildeo

explicar essa questatildeo lacunar a partir da relaccedilatildeo entre memoacuteria e afetos ou emoccedilotildees Natildeo

por outra razatildeo a partir do conceito de memoacuteria traumaacutetica Magdalena Zolkos tambeacutem

enfatiza a relaccedilatildeo entre as memoacuterias do trauma e seu potencial poliacutetico transformativo35

na

34

E conveacutem observar que Teitel (2000 p 111) o faz ao longo da mesma passagem textual 35

ldquoThe concept of traumatic memory suggests that witness testimonies are not simply incorporated within the

transitional reconciliatory machine but are pottentially transformative (and sometimes subversive) of it

75

medida em que ldquoaddressing historical injustice and suffering are the very heart of many

transitional justice projectsrdquo (ZOLKOS 2012 p 19) Todavia o viacutenculo entre memoacuteria

afetos e transiccedilatildeo eacute exprimido e sempre jaacute elidido Tanto que Zolkos (2012 p 19)

qualifica como ldquoaporeacuteticordquo o desejo de fazer justiccedila ao passado reputando-o como o

horizonte-limite do sentido do poliacutetico nas transiccedilotildees36

Tambeacutem recentemente Elizabeth Phelps (2012 p 07) natildeo apenas defendeu um

conceito dinacircmico de memoacuteria lastreado nas pesquisas neurocientiacuteficas que atestaram a sua

maleabilidade como funccedilatildeo de seu caraacuteter adaptativo ao longo da evoluccedilatildeo mas

preocupou-se com o impacto dos afetos na memoacuteria do ponto de vista da praacutetica judiciaacuteria

Aliaacutes eacute em funccedilatildeo da utilidade das memoacuterias na experiecircncia dos tribunais que Phelps

pudera contestar o caraacuteter fixista habitualmente atribuiacutedo agrave memoacuteria na Ciecircncia do Direito

Sua pesquisa parte do pressuposto de que os eventos que se tornam importantes para o

sistema judiciaacuterio satildeo em geral traumaacuteticos envolvendo situaccedilotildees profundamente

emocionais (PHELPS 2012 p 07) Nesse contexto vigem dois sensos comuns teoacutericos

que Phelps desafia o primeiro consiste em reputar que as memoacuterias satildeo dados assimilados

e fixos o segundo consiste em acreditar que as memoacuterias aparentemente mais viacutevidas e

detalhadas ndash geralmente emocionalmente mais intensas ndash satildeo mais precisas que as

demais37

Poreacutem com base em experiecircncias que envolveram a memoacuteria do 11 de setembro

de 2001 bem como em memoacuterias comuns e menos expressivas concluiu-se que perdemos

os detalhes tanto das memoacuterias cotidianas como das relacionadas a eventos

extraordinaacuterios as uacuteltimas nos parecem mais viacutevidas porque satildeo mais importantes

subjetivamente natildeo porque sejam mais detalhadas plenas ou confiaacuteveis Eis porque

quando se trata de memoacuterias sobre eventos puacuteblicos e traumaacuteticos percebe-se um impacto

da afetividade sobre elas

Com efeito a conclusatildeo de Phelps possui um interesse praacutetico quando nos

defrontamos com a questatildeo da acuraacutecia das memoacuterias narradas perante comissotildees ou

tribunais que servem de mateacuteria para a accedilatildeo poliacutetica e institucional nos periacuteodo de fluxo

poliacutetico Nesse sentido e como aliaacutes jaacute se pode verificar outrora de sua pesquisa resulta

uma conclusatildeo indiciaacuteria de que a memoacuteria poderia ser pensada mais em funccedilatildeo de

insofar as they orient political institutions to questions of discontinuous memory irreparable harm and

irreversible temporalityrdquo (ZOLKOS 2012 p 01) 36

ldquoThe aporetic desire to lsquodo justice for the pastrsquo marks the limits of the political in transitional justice []rdquo

(ZOLKOS 2012 p 19) 37

ldquoThe substantial literature on flashbulb memories indicates that memories for some details of shocking and

consequential events may not be as accurate as we think they arerdquo (PHELPS 2012 p 09)

76

coordenadas dinacircmicas que de elementos de fixidez38

No entanto Phelps natildeo chega a

elaborar um conceito autocircnomo e dinacircmico de memoacuteria

Entre os teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo Jon Elster foi um dos mais importantes a

dedicar um estudo ao problema das emoccedilotildees e sua relaccedilatildeo com a memoacuteria e a transiccedilatildeo

Contudo encontraremos mais uma vez uma definiccedilatildeo lacunar limitada por imperativos

pragmaacuteticos Apoacutes definir a transiccedilatildeo em relaccedilatildeo a um acerto de contas com o passado39

um dos primeiros gestos teoacutericos de Memory and Transitional Justice consiste em

apresentar o sentido em que se pode apreender a memoacuteria como ldquocarregada de emoccedilotildeesrdquo e

natildeo como um conhecimento abstrato do passado ldquo[memory] differs from mere abstract

knowledge of a past event in that to remember an event one must have been present when

and close to where it took placerdquo (ELSTER 2003 p 04)40

Do ponto de vista da Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo encontramos nessa definiccedilatildeo

algo semelhante ao que resulta das pesquisas de Phelps natildeo uma memoacuteria dinamizada

pelas emoccedilotildees mas uma reelaboraccedilatildeo do conceito de memoacuteria a partir do referencial

individual e consciente Elster se recusa metodologicamente a apelar a conceitos como o

de ldquomemoacuteria coletivardquo41

Todavia Elster toca o epicentro do problema que move a

presente pesquisa ndash a gecircnese da transiccedilatildeo e sua relaccedilatildeo com a memoacuteria ndash mas de modo

restrito agraves memoacuterias psicoloacutegicas individuais

I have focused on memory as an explanatory factor in transitional justice To serve as an

explanans the concept must be reasonably clear I have used it consistently in the sense of

conscious individual-level recollections of earlier events that the individual either directly

witnessed as an observer or learned about when they happened and close to where they

happened (ELSTER 2003 p 11)

Segundo Elster seria muito difiacutecil construir uma relaccedilatildeo entre memoacuteria e emoccedilatildeo

sem apelar agrave experiecircncia pessoal do indiviacuteduo como correlato necessaacuterio dessa relaccedilatildeo42

A

tese de Elster eacute a de que os processos transicionais satildeo moldados em profundidade pelas

emoccedilotildees dos indiviacuteduos envolvidos tais processos emergem na medida em que as

38

ldquoIf the purpose of memory is to incorporate lessons learned from past experience to promote adaptative

responding in the future then the flexible and dynamic nature of memory makes senserdquo (PHELPS 2012 p

20-21) 39

ldquoTransitional justice is the legal and administrative process carried out after a political transition for the

purpose of addressing the wrongdoings of the previous regimerdquo (ELSTER 2003 p 01) 40

Por essa razatildeo Elster (2003 p 04) escreveraacute ldquoIt seems plausible that abstract knowledge of a past event is

even less motivating than a faded memoryrdquo 41

ldquoIt is tempting to appeal to ideas such as lsquothe construction of collective memoryrsquo but it is a temptation I

believe we should resist Once we leave the terra firma of conscious individual memory the scope for

arbitrary and artificial constructions is endlessrdquo (ELSTER 2003 p 08-09) 42

ldquoMy main reason for focusing on the personal experience of the individual is the link between memory and

emotionrdquo (ELSTER 2003 p 11)

77

memoacuterias satildeo viacutevidas presentes e carregadas de emoccedilatildeo e desaparecem na medida em que

esmaecem43

podendo permanecer inibidas por longas duraccedilotildees sem que por isso deixem

de ser eficazes44

Com efeito sua recusa a propoacutesito de uma concepccedilatildeo mais abrangente de

memoacuteria deriva de uma opccedilatildeo metodoloacutegica ldquoA broader notion of memory makes it more

difficult to link memory with emotion or at least with lsquopersonal emotionsrsquordquo (ELSTER

2003 p 12)

A opccedilatildeo metodoloacutegica de Elster ainda que legiacutetima tem por efeito transformar o

conceito de memoacuteria em um quadro de inteligibilidade ao mesmo tempo desloca a

questatildeo da gecircnese das transiccedilotildees da memoacuteria para sua relaccedilatildeo com as emoccedilotildees mas sem

analisar sua dinacircmica de maneira direta e especiacutefica

Assim como Elizabeth Phelps estabelece o caraacuteter dinacircmico da memoacuteria mas natildeo

restabelece os direitos desse dinamismo formulando um novo conceito Jon Elster indica

uma saiacuteda para explicar a relaccedilatildeo geneacutetica constantemente intuiacuteda ndash mas sempre lacunar ndash

entre memoacuteria e transiccedilatildeo mas natildeo a aprofunda No ainda hoje inexplorado ponto de

convergecircncia entre um possiacutevel conceito dinacircmico de memoacuteria por um lado e sua relaccedilatildeo

com as emoccedilotildees e afetos por outro eacute que se poderaacute analisar o problema da gecircnese das

transiccedilotildees e sua relaccedilatildeo necessaacuteria com a memoacuteria

Uma vez demonstrados os modos segundo os quais o conceito de memoacuteria eacute

apreendido pelos teoacutericos da Justiccedila e Transiccedilatildeo e antes de passar ao epicentro da

argumentaccedilatildeo conveacutem enunciar os elementos que constituem o centro do argumento

problemaacutetico da presente pesquisa Em linhas gerais a Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo

construiu internamente conceitos tendentes agrave estabilidade compreendidos como processos

culturais balizados por objetivos poliacuteticos e pragmaacuteticos lastreados na experiecircncia

empiacuterica das transiccedilotildees poliacuteticas

Sua ēpistēme compreensiva aberta agrave colaboraccedilatildeo de outras ciecircncias conduziu a um

conceito de memoacuteria heterogecircneo e abrangente compreendendo desde determinaccedilotildees de

uma memoacuteria-lembranccedila ndash individual psicoloacutegica e carregada de emoccedilotildees ndash como a

memoacuteria de Jon Elster passando por um conceito estaacutevel e representativo de memoacuteria

43

ldquoI believe that processes of transitional justice are deeply shaped by the emotions of the individuals

involved be they wrongdoers beneficiaries of wrongdoings victims resisters accusers or neutrals These

emotions arise in direct confrontation among the individuals concerned and tend to fade as the memories

faderdquo (ELSTER 2003 p 11) 44

ldquo[]we have also seen several cases in which memories of injustice prove to be remarkably durable Life

in exile and strong social norms may sustain memories or emotions that would otherwise have been subject

to spontaneous decayrdquo (ELSTER 2003 p 11)

78

coletiva como a de Ruti Teitel chegando a uma memoacuteria apreendida do ponto de vista

pragmaacutetico de suas relaccedilotildees para a efetuaccedilatildeo dos mecanismos transicionais Recentemente

poreacutem ndash sem que no atual estado das pesquisas se tenha constituiacutedo um conceito

autocircnomo ndash o aporte experimental das neurociecircncias permitiu que alguns autores

revelassem a natureza dinacircmica e a maleabilidade constitutivas das memoacuterias ndash aiacute incluiacutedas

as memoacuterias traumaacuteticas ndash mas de um ponto de vista limitado agraves memoacuterias uacuteteis ao campo

das praacuteticas judiciaacuterias concretas Por outro lado ao trabalharmos com o referencial das

ciecircncias histoacutericas pudemos verificar a utilizaccedilatildeo da ideia de memoacuteria na Justiccedila de

Transiccedilatildeo em um sentido estritamente representificador de um objeto ausente baseado em

uma ontologia negativa Isto eacute a memoacuteria a partir de sua dimensatildeo simboacutelica representa

ou torna uma vez mais presente algo da ordem do natildeo-ser assim define-se

paradoxalmente a relaccedilatildeo do passado que ldquofoi e natildeo eacute maisrdquo com as exigecircncias eacuteticas de

natildeo repeticcedilatildeo pertencentes a um futuro sem espessura e sem realidade pois concebido

como o que natildeo eacute ainda Eis o que definiria os marcos da temporalidade na Teoria da

Justiccedila de Transiccedilatildeo uma temporalidade da representaccedilatildeo do natildeo-ser unidimensional que

confunde ndash como quisera Deleuze (1966 p 49) em Le Bergsonisme ndash ser e ser presente e

anula tanto a realidade do devir quanto do ser do passado

Assim quando a Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo concebe um conceito de memoacuteria

emancipado das lembranccedilas individuais ndash memoacuteria coletiva ndash esbarra por um lado na

reduccedilatildeo da memoacuteria agrave memoacuteria de grupo e por outro em um conceito de memoacuteria

definido por sua estabilidade consciecircncia e declaratividade forjadas no seio das produccedilotildees

simboacutelicas e narrativas sociais e institucionais que lhe servem de suportes Recentemente

quando a Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo tangencia o caraacuteter dinacircmico de memoacuteria ndash

defina-se ele a partir das memoacuterias traumaacuteticas carregadas de emoccedilotildees e afetos ou da

compreensatildeo empiacuterica das funccedilotildees evolutivas e adaptativas da memoacuteria ndash esbarra-se no

suporte psicoloacutegico individual do qual a Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo acreditara ter se

emancipado

Se o conceito de memoacuteria eacute heterogecircneo de modo mais ou menos expliacutecito poreacutem

todos os teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo admitem que a memoacuteria constitui um elemento-

chave para a efetuaccedilatildeo das transiccedilotildees Com efeito isso pode ser deduzido tanto entre os

que erigem a memoacuteria agrave condiccedilatildeo messiacircnica de redentora do passado quanto os que

pressupotildeem que os mecanismos transicionais praacuteticos encontrem-se apoiados sobre certa

dimensatildeo da verdade e de sua relaccedilatildeo iacutentima com o passado Tambeacutem os autores que

compreendem a memoacuteria como um motor geneacutetico das transiccedilotildees ou aqueles que a

79

consideram um oacutebice potencial agrave reconciliaccedilatildeo e reconstruccedilatildeo coletivas terminam por

afirmar diretamente ou natildeo a memoacuteria como elemento-chave das transiccedilotildees ndash nem que

pela via dos imperativos de sua inibiccedilatildeo e proscriccedilatildeo puacuteblicas

Todavia nenhuma dessas apreensotildees que caracterizam a memoacuteria como o direito

que abre ldquoa brecha da qual nasceraacute a accedilatildeo poliacuteticardquo (ABRAtildeO GENRO 2012 p 55)

enfatizando um potencial transformador intriacutenseco da memoacuteria conseguira explicar

adequadamente a origem e a dinacircmica desse potencial transformativo que redundaria na

efetuaccedilatildeo das transiccedilotildees A questatildeo da gecircnese e da dinacircmica das transiccedilotildees e de sua

relaccedilatildeo com a memoacuteria eacute senatildeo relegada a outros campos de interrogaccedilatildeo epistemoloacutegica

simplesmente elidida

Teitel natildeo deixa de observar que a construccedilatildeo da memoacuteria ndash ora interpretada em

sentido representativo simboacutelico e social ndash ainda desempenha um papel central na criacutetica

ao regime predecessor e na reconstruccedilatildeo democraacutetica de culturas ateacute entatildeo submetidas a

referenciais autoritaacuterios Dessa forma a memoacuteria jamais deixa de ser uma etapa

constitutiva da Justiccedila de Transiccedilatildeo Tanto que mesmo autores como Paulo Abratildeo e Tarso

Genro (2012 p 56) chegam a erigir o direito agrave memoacuteria a ldquocondiccedilatildeo imprescindiacutevel agrave

manutenccedilatildeo do tecido social caso contraacuterio a sociedade repetiraacute obsessivamente o uso

arbitraacuterio da violecircncia []rdquo ou ainda colocam os mecanismos da Justiccedila de Transiccedilatildeo a

serviccedilo da consolidaccedilatildeo da memoacuteria ldquoPara o atingimento desses objetivos de promoccedilatildeo da

memoacuteria um instrumento privilegiado [] satildeo as poliacuteticas denominadas de Justiccedila de

Transiccedilatildeordquo (ABRAtildeO GENRO 2012 p 57)

Seja como for em qualquer acircmbito sempre se atribui um potencial transformativo

agrave memoacuteria embora ele possa manifestar-se como vimos em registros heterogecircneos ndash o

que decorre da proacutepria pluralidade segundo a qual o conceito de memoacuteria eacute apreendido

pelos teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo Esses registros variam em funccedilatildeo da dimensatildeo

conceitual da memoacuteria com a qual se trabalha Agrave memoacuteria poliacutetica correspondem

potenciais transformativos do proacuteprio regime poliacutetico-institucional agrave memoacuteria social e

coletiva atribuem-se potenciais transformadores dos substratos culturais e sociais

autoritaacuterios preacutevios agrave memoacuteria individual e agraves narrativas das testemunhas e sobreviventes

o potencial pragmaacutetico de sustentar por meio da memoacuteria a operaccedilatildeo dos mecanismos

transicionais mais comuns como reformas purgas reparaccedilotildees responsabilizaccedilotildees penais

construccedilatildeo de memoriais etc

Observou-se que toda a literatura da Justiccedila de Transiccedilatildeo reputa inexcediacutevel o nexo

entre memoacuteria ndash ora compreendida na totalidade das camadas antes descritas abrangendo a

80

verdade o direito de conhecer o passado etc ndash e a produccedilatildeo real de uma mudanccedila na

dinacircmica das instituiccedilotildees e nas formas de vida em sociedade mediadas pelo direito Poreacutem

esse nexo jamais eacute exposto Ele padeceria ateacute mesmo de um vaacutecuo conceitual que

abrangeria a definiccedilatildeo conceitual de memoacuteria (BARSALOU e BAXTER 2007 p 02)

Reconhece-se que em geral certa relaccedilatildeo de corpos sociais em transiccedilatildeo com a

memoacuteria da violaccedilatildeo preteacuterita de direitos e prerrogativas democraacuteticas e de cidadania seria

necessaacuteria ndash no limite do ponto de vista educativo e cultural ndash agrave garantia da natildeo repeticcedilatildeo

Eis o que faz a memoacuteria sob o ponto de vista do Direito Internacional dos Direitos

Humanos ser comumente transcrita ora como um direito cultural como um direito que

promove uma cultura democraacutetica de remoccedilatildeo de formas de viver pensar sentir e

experimentar o real gestadas por culturas autoritaacuterias ou violentas Se por um lado haacute

quem diga que a memoacuteria espaccedilos e lugares de memoacuteria museus e memoriais natildeo satildeo

suficientes para promover um cultural shift todavia satildeo condiccedilotildees necessaacuterias a ele Natildeo

raro os processos de memorializaccedilatildeo satildeo descritos como catalisadores do engajamento

ciacutevico (BICKFORD et all 2007 p 07)

Todavia como a memoacuteria pode engendrar esse potencial transformativo ou

transicional eacute o que jamais eacute explicado Ao apontaacute-lo natildeo se trata de recusar realidade a

nenhum desses registros mas de oferecer uma visatildeo integradora dessas camadas de

memoacuteria tanto entre si como entre elas e seus potenciais de accedilatildeo segundo muacuteltiplos

registros de inscriccedilatildeo Se contudo deixarmos sem resposta a questatildeo ldquocomo a memoacuteria

pode ser admitida como causa geneacutetica de transiccedilotildeesrdquo ndash o que equivale a perguntar ldquoem

que consiste esse potencial transicional geralmente atribuiacutedo agrave memoacuteriardquo ndash torna-se

impossiacutevel aperfeiccediloar uma visatildeo integrativa do problema proposto

Uma via capaz de fazecirc-lo deriva da proacutepria Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo e dos

limites conceituais que descrevemos Trata-se de recuperar os pontos que a Teoria da

Justiccedila de Transiccedilatildeo intui mas deixa permanecerem intocados por um lado uma

concepccedilatildeo dinacircmica da memoacuteria ndash que no presente momento consideramos ser natildeo mais

que uma intuiccedilatildeo preacute-conceitual na Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo por outro lado um

conceito de memoacuteria emancipado de seus registros habituais Esse uacuteltimo aspecto implica

recusar as operaccedilotildees de reduccedilatildeo da memoacuteria a alguns de seus registros mais largamente

utilizados pelos teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo Isso natildeo significa negar a realidade da

memoacuteria a qualquer desses registros mas recusar as operaccedilotildees de reduccedilatildeo do conceito a

determinados registros Com efeito natildeo se nega que a memoacuteria comporte vaacuterias camadas

81

eacute precisamente isso que revela ser inadequado reduzi-la a apenas uma ou algumas delas

Natildeo bastasse a lacuna identificada a respeito dos potenciais transformativos

comumente atribuiacutedos agrave memoacuteria na literatura transicional tambeacutem a natureza plural que a

ideia de memoacuteria comporta justifica um esforccedilo de reconceptualizaccedilatildeo da memoacuteria a fim

de integrar em uma visada uacutenica esses muacuteltiplos registros

Para tanto Henri Bergson torna-se um aliado conceitual imprescindiacutevel Natildeo

apenas por trabalhar com uma concepccedilatildeo ontoloacutegica e compreensiva de memoacuteria ndash na

contramatildeo das operaccedilotildees de reduccedilatildeo da memoacuteria a figuras sem espessura da representaccedilatildeo

e do simboacutelico ndash mas porque a intuiccedilatildeo eacute apresentada em La Penseacutee et le Mouvant como

um meacutetodo filosoacutefico por excelecircncia capaz de integrar o conhecimento da ciecircncia ao da

metafiacutesica a mateacuteria ao espiacuterito (BERGSON 2001 p 1424216)45

A escolha desse marco

teoacuterico justifica-se sob trecircs pontos de vista que seratildeo demonstrados ao longo dos proacuteximos

capiacutetulos

(1) a intuiccedilatildeo metafiacutesica constitui uma visatildeo potencialmente integradora da

realidade heterogecircnea que encontramos a respeito do conceito de memoacuteria na

Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo Nesse sentido a precisatildeo metoacutedica que ela implica

deve tornar-se objeto de verificaccedilatildeo

2) baseando-se no meacutetodo da intuiccedilatildeo a filosofia bergsoniana permite

introduzir natildeo apenas no conceito de memoacuteria mas tambeacutem no epicentro de suas

relaccedilotildees com a efetuaccedilatildeo da transiccedilatildeo coordenadas temporais e dinacircmicas em

relaccedilatildeo agraves quais a Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo ateacute hoje formulou apenas

intuiccedilotildees vagas e preacute-conceituais dirigidas a aplicaccedilotildees pragmaacuteticas sem cuidar da

natureza imanente a esses dinamismos

(3) Na contracorrente de toda operaccedilatildeo de reduccedilatildeo da memoacuteria a uma de

suas manifestaccedilotildees superficiais encontradas nas definiccedilotildees das doutrinas

transicionais (memoacuteria-lembranccedila memoacuteria coletiva memoacuteria-siacutembolo memoacuteria-

representaccedilatildeo ou memoacuteria-consciente) Bergson conceituaraacute a memoacuteria

45

ldquoLa science et la meacutetaphysique se rejoignent donc dans lrsquointuitionrdquo (BERGSON 2001 p 1424216) NB

nas citaccedilotildees das obras de Bergson utilizaremos preferencialmente a Eacutedition du Centenaire compilada por

Andreacute Robinet com introduccedilatildeo de Henri Gouhier publicada originalmente em 1959 e reeditada pela sexta

vez em 2001 Assim as numeraccedilotildees de paacutegina obedecem agrave sequecircncia da Ediccedilatildeo do Centenaacuterio de modo que

a primeira numeraccedilatildeo corresponde agrave da paginaccedilatildeo das Œuvres a segunda precedida do sinal ldquordquo indica a

paginaccedilatildeo das publicaccedilotildees originais que Robinet fez constar no corpo das obras completas de Bergson

Trata-se de uma sistemaacutetica de referecircncia corrente entre os comentadores de Bergson de tal forma que a fim

de facilitar a conferecircncia das citaccedilotildees tambeacutem a adotamos

82

obedecendo a referenciais ontoloacutegicos compreensivos No bergsonismo a memoacuteria

jamais seraacute transcrita a partir da negatividade e do natildeo-ser como se fosse a mera

representaccedilatildeo de um objeto ausente Ao contraacuterio ela seraacute continuamente definida

como uma regiatildeo do ser ou do existente a partir de coordenadas dinacircmicas e

temporais e constituiraacute no limite ndash como demonstraremos oportunamente ndash o

fundamento do proacuteprio tempo (duraccedilatildeo real)

Bergson natildeo cessou de sublinhar a impotecircncia das formas meramente pragmaacuteticas

da inteligecircncia para compreender a realidade profunda da transiccedilatildeo ldquoDe la transition il

[lrsquoentendement] deacutetourne son regardrdquo (BERGSON 2001 p 1256-12575-6) Dados os

referenciais ontoloacutegicos a partir dos quais satildeo colocadas as questotildees do movimento e da

mudanccedila deveratildeo aparecer como problemas coextensivos agrave compreensatildeo das transiccedilotildees

poliacuteticas na medida em que Bergson compreende as formas de vida bioloacutegicas e tambeacutem

poliacuteticas indistintamente como derivados ontoloacutegicos Isso significa que todas as formas

podem variar em funccedilatildeo da duraccedilatildeo de tal modo que as coordenadas duracionais a partir

das quais se poderaacute pensar memoacuteria e transiccedilatildeo apontam para o caraacuteter diferencial

constitutivo do real que como demonstramos apenas tiacutemida e recentemente assaltou os

teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo que rapidamente retornaram agrave terra firma das memoacuterias

individuais psicoloacutegicas e conscientes ou insistiram na fixidez de noccedilotildees representativas e

negativas do conceito

Trata-se pois de tentar amarrar um devir que se insinua no interior das proacuteprias

doutrinas transicionais erigir um conceito de memoacuteria que natildeo admita reduccedilatildeo a

coordenadas individuais sociais ou nacionais ndash evitando do ponto de vista eacutetico-poliacutetico o

que Bergson chamou de ldquotendecircncia ao fechamentordquo ndash ao mesmo tempo em que a memoacuteria

possa com razatildeo apresentar-se em seu caraacuteter dinacircmico segundo coordenadas

duracionais como condiccedilatildeo ontoloacutegica e a um soacute tempo poliacutetica das transiccedilotildees Recusando

toda operaccedilatildeo redutora da memoacuteria trata-se de superar a partir de uma interlocuccedilatildeo com a

filosofia de Henri Bergson o conceito meramente cognitivo uacutetil ou pragmaacutetico de

memoacuteria sem deixar de integraacute-lo como uma das dimensotildees desse novo conceito de

memoacuteria

Dessa forma objetiva-se contribuir para suprimir a lacuna explicativa encontrada

na Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo e oferecer uma fundamentaccedilatildeo possiacutevel sobre a funccedilatildeo

transicional da memoacuteria e seu potencial transformativo ndash empiacuterica e vagamente decalcados

pelos teoacutericos das praacuteticas transicionais concretas Nessa medida seraacute possiacutevel

83

reconceptualizar a memoacuteria a partir de um ponto de vista inexplorado pela tradiccedilatildeo das

doutrinas transicionais utilizando os referenciais da ontologia bergsoniana e desentocar

de sua intimidade estranha agrave pragmaacutetica da Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo um conceito

integrador das diversas camadas da memoacuteria de tal forma que se possa compreender de

que modo a memoacuteria pode ser obscuramente erigida no corpo dessa vasta e recente teoria

agrave condiccedilatildeo de uma causa profunda das accedilotildees poliacuteticas transicionais

84

SEGUNDA PARTE

O virtual a ideia de memoacuteria na filosofia de Henri Bergson

85

CAPIacuteTULO 4 ndash UM SALTO NO VIRTUAL DO SER PRESENTE AO SER

DO PASSADO

Como apresentar em poucos mas decisivos traccedilos um filoacutesofo ldquoqui eacutevolue et

change dans le tempsrdquo (JANKEacuteLEacuteVITCH 2008 p 01) cuja filosofia resumida em

apenas quatro obras (GOUHIER In BERGSON 2001 vii) parece ser infinita

Sobretudo como fazecirc-lo sem abandonar as questotildees que elaboradas no corpo dos

capiacutetulos precedentes sugerem os temas da memoacuteria e da transiccedilatildeo que terminam por

mobilizar a integral que percorre o campo especulativo do bergsonismo

Comecemos pelos traccedilos impessoais Henri Bergson nasce em 1859 em Paris no

seio de uma famiacutelia judia Frequenta a escola normal em 1881 e ensina em Clermont-

Ferrand de 1883 a 1888 No ano seguinte com trinta anos de idade sustenta duas teses

sua tese complementar sobre Aristoacuteteles e escreve o Essai sur les donneacutes immediates de

la conscience que lhe renderia vinte e nove anos mais tarde o precircmio Nobel de

Literatura Em 1900 Bergson foi nomeado ao Collegravege de France ocupando a cadeira de

filosofia grega em substituiccedilatildeo a Charles Leacutevecircque

Dentre as sete obras de facto seus quatro livros de jure46

publicados ao longo de

mais de quatro deacutecadas satildeo permeados por uma constante atividade de escritura de que satildeo

testemunha seus escritos cursos e correspondecircncias Todo esse material que vem sendo

intensamente recuperado e tornado puacuteblico nas uacuteltimas deacutecadas natildeo apenas serve para

colmatar determinadas passagens entre suas obras maiores mas datildeo notiacutecia das

articulaccedilotildees entre a radical invenccedilatildeo de conceitos a criacutetica de problemas claacutessicos da

metafiacutesica e sua atuaccedilatildeo como ator poliacutetico e interlocutor privilegiado de seus

contemporacircneos

Esta talvez seja a faceta bergsoniana menos familiar aos leitores brasileiros mas

tambeacutem aos juristas que natildeo raro utilizaram a inspiraccedilatildeo bergsoniana como elementos

46

Os quarto livros de direito de Bergson ndash que ele mesmo considerava ldquosuas obras completasrdquo ndash tanto que

satildeo reunidas por Andreacute Robinet na Eacutedition du Centenaire em comemoraccedilatildeo ao seu nascimento em 1959 ndash

satildeo Essai sur les donneacutes immediates de la conscience (1889) Matiegravere et Meacutemoire (1896) LrsquoEacutevolution

Creacuteatrice (1907) e Les Deux Sources de la Morale et de la Religion (1932) outras obras que consistem na

reuniatildeo de escritos e de conferecircncias satildeo publicadas em 1919 (LrsquoEacutenergie Spirituelle) e 1934 (La Penseacutee et le

Mouvant) Ainda seria o caso de registrar a publicaccedilatildeo de Dureacutee et Simultaneiteacute em 1922 livro em que

Bergson controverte em alguns pontos com a Teoria da Relatividade de Einstein e que se encontra

reproduzido em Meacutelanges de 1972 Aleacutem dos diversos cursos outros escritos de Bergson podem ser

encontrados na recente ediccedilatildeo de Eacutecrits Philosophiques apresentada por Freacutedeacuteric Worms e publicada em

2011 como prolongamento das ediccedilotildees criacuteticas de suas obras retomadas pela Presses Universitaires de

France (PUF) a partir de 2008 Registre-se ainda o interessante trabalho de recoleccedilatildeo de ineacuteditos cursos e

aulas levado a efeito pelos sucessivos volumes dos Annales Bergsoniennes publicados a partir de 2002

tambeacutem pela PUF

86

motores de sua Filosofia ou Teoria do Direito No Brasil seria o caso de registrar alguns

exemplares da importante penetraccedilatildeo de Bergson na leitura de fenocircmenos estudados no

acircmbito das Ciecircncias Humanas e Sociais mas tambeacutem no campo da Ciecircncia Juriacutedica No

primeiro caso a tese seminal de Ecleia Bosi (2010) publicada sob o tiacutetulo Memoacuteria e

sociedade lembranccedilas de velhos em que Matiegravere et Meacutemoire eacute resgatada junto aos

escritos de um dos mais ilustres alunos e polecircmicos leitores de Bergson ndash Maurice

Halbwachs Mais recentemente Ecleia ainda publicou O tempo vivo da memoacuteria livro de

ensaios sobre psicologia social em que retoma temas de sua tese relacionados a Bergson e

Halbwachs como a substacircncia social da memoacuteria e a sobrevivecircncia ou a persistecircncia da

memoacuteria (BOSI 2003 p 13-48)

No acircmbito juriacutedico seria impossiacutevel natildeo lembrar as inspiraccedilotildees bergsonianas que

apreendidas desde pontos de vista muito proacuteprios penetram a anaacutelise de importantes

filoacutesofos do direito brasileiros No campo juriacutedico os mais destacados precursores da

filosofia de Bergson no Brasil foram Miguel Reale e Goffredo Telles Juacutenior dois

importantes professores da Faculdade do Largo de Satildeo Francisco Segundo Reale (2010 p

80) Bergson teria sido ldquoum dos maiores filoacutesofos se natildeo o maior filoacutesofo da Franccedila na

primeira metade do Seacuteculo XXrdquo A filosofia bergsoniana eacute intensamente recuperada pela

filosofia do direito de Reale a fim de auxiliar a compreender as distinccedilotildees de meacutetodo na

Filosofia e na Ciecircncia momento em que Bergson eacute lembrado tambeacutem por seu meacutetodo

intuitivo (REALE 2010 p 140) Por sua vez o autor da ceacutelebre Carta as Brasileiros47

escrevera tambeacutem Direito Quacircntico ensaio sobre o fundamento da ordem juriacutedica

(TELLES JUacuteNIOR 2006a) obra claramente inspirada na cosmologia bergsoniana e em

sua metodologia de diaacutelogo permanente e aberto com as ciecircncias naturais Mesmo no

acircmbito de sua Teoria do Direito Goffredo Telles Juacutenior natildeo cessou de evocar algumas

soluccedilotildees bergsonianas pontuais para problemas da histoacuteria da metafiacutesica ocidental que

poderiam servir ao estudo do Direito eacute o caso da ilusatildeo sobre a existecircncia da desordem

(TELLES JUacuteNIOR 2006b p 06-07) por exemplo

Fora do Brasil Alexandre Lefebvre escreveu duas recentes obras de Filosofia do

Direito que se dedicam a apreendecirc-la no interior da obra de Bergson Seu primeiro livro

The Image of the Law Spinoza Bergson Deleuze publicado em 2008 e Human rights as

a way od life on Bergsonrsquos Political Philosophy de 2013 Nesse mais recente texto natildeo

apenas Bergson aparece como a figura central da interrogaccedilatildeo de Lefebvre como sua

47

Em agosto de 1977 Goffredo Telles Juacutenior lecirc sua Carta aos Brasileiros no paacutetio interno da Faculdade de

Direito em que manifestava seu repuacutedio agrave ditadura militar e conclamava agrave defesa da Democracia

87

filosofia poliacutetica permitiria compreender a relaccedilatildeo entre direitos humanos e a ascese

bergsoniana no contexto de sua filosofia poliacutetica48

Segundo Lefebvre Bergson teria

renovado a forma de compreender os direitos humanos ndash natildeo mais como instrumentos para

proteger seres humanos de abusos mas ldquoas a medium for personal transformationrdquo

(LEFEBVRE 2013 Preface)

Toda a novidade que a leitura de Lefebvre sobre Bergson representa poreacutem natildeo

nos aproveita senatildeo na medida em que auxilia no conjunto de outros comentadores a

elucidar alguns conceitos isso porque a perspectiva de sua obra permanece atrelada ao

espectro da filosofia poliacutetica de Bergson mas natildeo indaga sua mais profunda relaccedilatildeo com a

ontologia na qual buscamos avanccedilar De toda maneirao belo e original livro de Lefebvre

vem ao encontro de uma preocupaccedilatildeo que se intensifica cada vez mais entre os

comentadores estrangeiros de Bergson ndash a maior atenccedilatildeo agrave faceta poliacutetica da filosofia

begsoniana as renovadas leituras e articulaccedilotildees de Deux Sources de la Morale et de la

Religion com suas demais obras a preocupaccedilatildeo em atualizar um Bergson ldquopoliacuteticordquo

Exemplares igualmente recentes disso satildeo os textos que compotildeem o quinto volume

dos Annales Bergsoniennes intitulado ldquoBergson et la politiquerdquo cujo prefaacutecio assinado

por Vincent Peillon considera que os novos estudos sobre o Bergson poliacutetico assinalariam

ldquoun profond bouleversement dans les eacutetudes philosophiques en Francerdquo (PEILLON 2012

p09) Haacute pois todo interesse em recuperar mais que um Bergson poliacutetico a ontologia

duracional de que as transiccedilotildees poliacuteticas natildeo satildeo senatildeo atualizaccedilotildees de niacutevel

Para aleacutem de um Bergson filoacutesofo poliacutetico haacute um Bergson poliacutetico que testemunha

sua iacutentima relaccedilatildeo com a proacutepria gecircnese do Direito Internacional dos Direitos Humanos

Durante certo periacuteodo Bergson trabalhou lado a lado com Woodrow Wilson para

estabelecer a Liga das Naccedilotildees e mais tarde fora indicado para a presidecircncia da Comissatildeo

Internacional para Cooperaccedilatildeo Intelectual da Liga (LEFEBVRE 2013 Preface e

SOULEZ WORMS 2002 p 141-170) Ainda Bergson teria sido uma influecircncia confessa

de John Humphrey o principal responsaacutevel pela redaccedilatildeo da Declaraccedilatildeo Universal dos

Direitos Humanos de 1948 (LEFEBVRE 2013 Preface)

Com efeito toda a escritura de Les Deux Sources transpira a atmosfera de

pressentimento de uma cataacutestrofe que viria a ser a Segunda Guerra Mundial mas ainda

assim eacute um profundo libelo de feacute no aberto Se por um lado Bergson compreendia os

48

ldquoI have interpreted Bergsonrsquos political philosophy in this vein To my mind the great power of Two

Sources lies in its insistence that in the end none of the problems of politics ndash which include huge ones such

as war and fascism as well as everyday ones such as prejudice and exclusion ndash will be resolved without an

attendant transformation in the relationship one has to oneselfrdquo (LEFEBVRE 2013 Preface)

88

direitos humanos como ldquothe best-placed institution to realize the social moral political

and religious ideal that he will call the lsquoopen societyrsquordquo (LEFEBVRE 2013 Chap 1 ndash A

dialogue on war) por outro sabia que nos contextos de guerra as sociedades fecham-se

sobre si tentando reconciliar hipocritamente os direitos humanos com a realidade da

guerra Nesses casos ldquowhile war does not eliminate rights due to all human beings nor

show then to be imaginary it does suspend their application for the time being Duties

toward humanity are [] affirmed in principle but temporarily denied in factrdquo

(LEFEBVRE 2013 Chap 1 ndash A dialogue on war) A fim de compreender o que significa

uma sociedade aberta ou como passar do fechado ao aberto ndash problema que como

veremos sendo essencial agrave filosofia poliacutetica de Bergson confunde-se com aquele que se

propotildee toda transiccedilatildeo poliacutetica ndash precisamos antes entrar de alguma maneira e de uma

vez por todas no Bergsonismo Apenas assim e a esse preccedilo poderemos estimar as

colaboraccedilotildees que uma ontologia da memoacuteria poderia conferir agrave integraccedilatildeo dos

heterogecircneos conceitos de memoacuteria na Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo bem como para a

iluminaccedilatildeo ontoloacutegica mas tambeacutem praacutetica e poliacutetica da constante atribuiccedilatildeo agrave memoacuteria

de potenciais transicionais

sect 1 BERGSONISMO MUacuteLTIPLAS ENTRADAS

Henri Bergson natildeo cessou de dizer que todos os problemas metafiacutesicos da histoacuteria

da filosofia do Ocidente foram colocados muito mais em funccedilatildeo do espaccedilo do que em

funccedilatildeo do tempo (BERGSON 2001 p 1260-126109-11)49

Essa simples afirmaccedilatildeo eacute

capaz de provocar uma completa subversatildeo de toda a histoacuteria da filosofia ocidental

implicando perguntar de iniacutecio por seu sentido senatildeo por suas consequecircncias imediatas

as quais devem ser pouco a pouco desdobradas e conduzidas aos limites de seu horizonte

conceitual

49

Vladimir Jankeacuteleacutevitch (2008 p 03) filoacutesofo e pianista francecircs de ascendecircncia russa bem o percebe e logo

o transcreve em uma metaacutefora musical ou meloacutedica ldquoUne meacutelodie joueacutee agrave lrsquoenvers en commenccedilant par la

derniegravere note et en remontan drsquoaval en amont ne serait qursquoune innommable cacophonie [] Lrsquoordre

temporel nrsquoest pas un accident de la sonate mais son essence elle-mecircme [] La premiegravere condition exigeacutee

pour comprendre le bergsonisme drsquoHenri Bergson est de ne pas le penser agrave rebousse-temps Le bergsonisme

veut ecirctre penseacute dans le sens mecircme de la futurition crsquoest-agrave-dire agrave lrsquoendroitrdquo Natildeo casualmente Deleuze (1966

p 22) reconhece que uma das dimensotildees mais importantes do meacutetodo bergsoniano da intuiccedilatildeo consistiraacute em

colocar os problemas e solucionaacute-los mais em funccedilatildeo do tempo que do espaccedilo Eacute nesse sentido que Bergson

em Matiegravere et Meacutemoire pudera afirmar que ldquoles questions relatives au sujet et agrave lrsquoobjet agrave leur distinction et

agrave leur union doivent se poser en fonction du temps plutocirct que de lrsquoespacerdquo (BERGSON 2001 p 21874)

89

Afinal se sabemos que Bergson eacute geralmente considerado o filoacutesofo da duraccedilatildeo da

vida ou da criaccedilatildeo (DELEUZE 1966 p 01) seria preciso procurar pelo significado

profundo ao qual responde o convite bergsoniano continuamente reiterado de pensar sub

specie durationis ndash convite que natildeo raras vezes rendeu agrave sua filosofia a alcunha de

pensamento antiintelectualista50

Como veremos mais adiante isto teria sido fruto de uma

incompreensatildeo que se encontra hoje amplamente demonstrada na literatura criacutetica que

acompanha a obra de Bergson desde meados dos anos cinquenta do seacuteculo XX

especialmente em Franccedila

A esta questatildeo a do sentido do tempo como horizonte da filosofia bergsoniana

viria acrescer-se ainda um problema anterior o da assunccedilatildeo de sua realidade o que

significa dizer que o tempo existe e mais ainda de que forma compreender que a

temporalidade possa constituir o sentido da mais antiga pergunta da histoacuteria da filosofia ndash

aquela sobre o ser Eis o que implica uma maneira bergsoniana sui generis de ler as

funccedilotildees ocultas e talvez praacuteticas e poliacuteticas da histoacuteria da metafiacutesica que nos propomos a

perscrutar No interior dessa dinacircmica que constitui a proacutepria realidade do tempo seria

preciso desvelar pacientemente no interior da obra de Bergson aquilo que constituiu o fio

condutor do presente trabalho compreender o sentido a um soacute tempo imanente e temporal

dos conceitos de memoacuteria e de transiccedilatildeo e sobretudo da relaccedilatildeo entre memoacuteria e transiccedilatildeo

no bergsonismo Retornaremos a ele incessantemente

Muacuteltiplas poderiam ser as entradas para reconstruir o sentido da pesquisa

bergsoniana sobre os temas da memoacuteria e da transiccedilatildeo como tambeacutem para elucidar o

significado profundo de pensar natildeo apenas a realidade da duraccedilatildeo mas a realidade em

duraccedilatildeo51

Seria plausiacutevel por exemplo ensaiar a via metoacutedica da criacutetica gnosioloacutegica tal

como eacute a escolha de Gilles Deleuze (1966 p 01-28) em seu Le Bergsonisme mas tambeacutem

a de Franklin Leopoldo e Silva (1994 p 29-116) em seu Bergson ndash intuiccedilatildeo e meacutetodo

50

ldquoNous avons insisteacute sur le caractegravere meacutethodique et rationnel de lrsquointuition Toutefois ce nrsquoest pas ainsi

qursquoelle est passeacute agrave la posteriteacute Agrave beaucoup elle a plutocirct sembleacute nrsquoecirctre que lsquosentimentsrsquo lsquoinspirationrsquo ou

sympathie confuserdquo (HUDE In FAGOT-LARGEAULT WORMS 2009 p 197) Cf ainda (DELEUZE

1966 p 01) 51

ldquoIl y a pourtant un sens fondamental penser intuitivement est penser en dureacuteerdquo (BERGSON 2001 p

127530) No mesmo sentido Cf (RIQUIER 2009 p 187) e (PRADO JUacuteNIOR 1989 p 86) que afirma

ldquoA intuiccedilatildeo [] sendo um lsquopensar em duraccedilatildeorsquo se oferece a gecircnese efetiva do sentido e a transiccedilatildeo de um

extremo a outrordquo Trata-se portanto de perspectivar outro ponto de vista a gecircnese e natildeo a estrutura o se

fazendo e natildeo o jaacute feito o processo de produccedilatildeo natildeo o produto em que ele culmina e natildeo eacute possiacutevel fazecirc-lo

sem considerar ldquoa temporalidade da apariccedilatildeo da essecircnciardquo como ldquoum dado constitutivo da proacutepria essecircnciardquo

(PRADO JUacuteNIOR 1989 loc cit) Cf ainda a defesa de Camille de Belloy (2002 p 138) faz da primazia

da questatildeo metoacutedica em Bergson

90

filosoacutefico que dedica agrave questatildeo do meacutetodo toda a primeira parte de seu livro intitulada

ldquoIntuiccedilatildeo e meacutetodo filosoacuteficordquo Evidentemente esta forma de exposiccedilatildeo comporta a

vantagem de construir progressivamente os conceitos da filosofia bergsoniana tomando

singularmente a intuiccedilatildeo por meacutetodo metafiacutesico Ao mesmo tempo se verificarmos que a

formulaccedilatildeo mais precisa da intuiccedilatildeo como meacutetodo filosoacutefico remonta ao iniacutecio de 190052

ndash

e eacute possiacutevel dizecirc-lo a despeito mesmo das criacuteticas que Camille Riquier (2009 p 134)

recentemente expocircs sobre a possibilidade de tratar a intuiccedilatildeo como meacutetodo propriamente

dito ndash assumir inicialmente esse ponto de vista metoacutedico e a criacutetica gnosioloacutegica que o

acompanha poderia implicar brindar-se de antematildeo com aquilo que se deveria engendrar

isto eacute corre-se o risco de tomar como estrutura dada a priori aquilo que a proacutepria obra de

Bergson desenvolve pouco a pouco como a costura procedimental indissociaacutevel da proacutepria

experiecircncia filosoacutefica concreta53

a saber a intuiccedilatildeo

Se Deleuze e Leopoldo e Silva assumem o risco de uma interpretaccedilatildeo retrospectiva

e iniciam por ela natildeo eacute senatildeo tendo em vista necessidades particulares de exposiccedilatildeo em

suas obras e com o constante cuidado de natildeo nutrir sobre a intuiccedilatildeo nenhuma visatildeo de

estrutura mas apreendecirc-la na dinacircmica propriamente duracional de sua gecircnese Deleuze

natildeo sem certa ironia buscava pela via da intuiccedilatildeo infirmar as teses daqueles que

criticaram a filosofia bergsoniana como um vago intuicionismo Com efeito desde o iniacutecio

percebe-se uma necessidade enfaacutetica de afirmar que ldquoLrsquointuition est la meacutethode du

bergsonismerdquo (DELEUZE 1966 p 01) e que ela natildeo se confunde com qualquer

sentimento inspiraccedilatildeo ou simpatia confusos aparentados a uma metafiacutesica

antiintelectualista preacute-kantiana De outro lado pode-se perceber que em seu Le

Bergsonisme trata-se de tornar evidente o liame entre o meacutetodo metafiacutesico da intuiccedilatildeo

proacuteprio agrave filosofia bergsoniana seu monismo virtual e uma ontologia composta por dois

registros de realidade o atual e o virtual Natildeo casualmente Le Bergsonisme eacute o texto de

Deleuze capaz de iluminar a interpretaccedilatildeo de alguns de seus uacuteltimos e mais complexos

textos autorais como Lrsquoactuel et le virtuel (DELEUZE PARNET 2010 p 177-185) e

52

Tanto que Introduction agrave la Meacutetaphysique seraacute publicada apenas em 1903 na Revue de meacutetaphysique et de

morale e apareceraacute reformulada em 1934 no uacuteltimo livro de fato de Bergson La penseacutee et le mouvant Cf

nesse sentido a nota de Bergson quando da republicaccedilatildeo de seu texto (BERGSON 2001 p 1392-1393177-

178) 53

Significativamente a frase com que Vladimir Jankeacuteleacutevitch (2008 p 05) abre o primeiro capiacutetulo de seu

Bergson afirma ldquoLe bergsonisme est une des ces rares philosophies dans lesquelles la theacuteorie de la recherche

se confond avec la recherche elle-mecircme excluant cette espegravece de deacutedoublement reacuteflexif qui engendre les

gnoseacuteologies les propeacutedeutiques et les meacutethodesrdquo evidenciando a imanecircncia do meacutetodo agrave experiecircncia

filosoacutefica no seio da qual este constantemente se desdobra

91

Lrsquoimmanence une vie (DELEUZE 2003 p 359-363) ambos de inspiraccedilatildeo

reveladoramente bergsoniana

Por certo ao escrever Le Bergsonisme Deleuze poderia ter acreditado na

conveniecircncia de afirmar sempre que possiacutevel que a intuiccedilatildeo bergsoniana natildeo conduz a

nenhuma simpatia vaga ou forma gnosioloacutegica preacute-kantiana senatildeo que com suas regras

muito estritas a intuiccedilatildeo constitui ldquoune meacutethode eacutelaboreacutee et mecircme une des meacutethodes les

plus eacutelaboreacutees de la philosophierdquo (DELEUZE 1966 p 01) conclusatildeo que decorreria

imediatamente de uma profunda exigecircncia de precisatildeo filosoacutefica presente nos escritos de

Bergson dedicados agrave intuiccedilatildeo e constantemente reivindicada por ele54

De seu turno e polemizando com Deleuze Camille Riquier afirma a dissociaccedilatildeo de

direito entre intuiccedilatildeo e meacutetodo com base no ldquoDiscours aux eacutetudiants de Madridrdquo de

primeiro de maio de 1916 em que Bergson descreve a intuiccedilatildeo como um penoso esforccedilo

por meio do qual rompemos com as ideias preconcebidas e os haacutebitos intelectuais a fim de

recolocar-nos simpaticamente no interior da realidade55

Contudo verifica-se que em sua

criacutetica ao tratamento da intuiccedilatildeo como meacutetodo Riquier (2009 p 134) embora dirija-se

objetivamente contra o primeiro capiacutetulo de Le Bergsonisme natildeo menciona a exigecircncia de

precisatildeo interna agrave intuiccedilatildeo postergando sua anaacutelise para uma centena de paacuteginas adiante

(RIQUIER 2009 p 247) Desse modo apesar de encontrar uma deduccedilatildeo exegeacutetica

bastante plausiacutevel a distinccedilatildeo de direito entre intuiccedilatildeo e meacutetodo proposta por Riquier natildeo

afasta por si outras leituras que apresentam a vantagem de serem concebidas a partir das

articulaccedilotildees reais da experiecircncia filosoacutefica bergsoniana como quisera tambeacutem Bento

Prado Juacutenior que ndash antes mesmo de Deleuze ndash natildeo deixou de explicitar que ldquoA reflexatildeo

bergsoniana sobre o meacutetodo eacute governada pelo ideal da precisatildeordquo (PRADO JUacuteNIOR 1989

p 27)

A exemplo do que parece ocorrer com Le Bergsonisme mas de modo

intrinsecamente singular Franklin Leopoldo e Silva inicia seu Bergson pela exposiccedilatildeo da

54

Essa exigecircncia expressa no poacutertico da primeira parte da Introduccedilatildeo especialmente escrita para La Penseacutee

et le Mouvant exprime um dos diapasotildees que percorrem toda a obra de Bergson ldquoCe qui a le plus manqueacute agrave

la philosophie crsquoest la preacutecision Les systeacutemes philosophiques ne sont pas tailleacutes agrave la mesure de la reacutealite ougrave

nous vivonsrdquo (BERGSON 2001 p 125301) Bastaria lembrar por exemplo como o fazem Deleuze (1966

p 30-31) e Worms (2011 p 53) que se Essai sur les donneacutes immediates de la conscience dirige-se contra as

ilusotildees e falsos-problemas que envolvem a liberdade Bergson natildeo consegue chegar a eles senatildeo criticando as

traduccedilotildees simboacutelicas representativas e espacializantes dos estados de espiacuterito qualitativos contiacutenuos e

heterogecircneos pela psicologia de seu tempo 55

ldquoLa meacutethode philosophique tel que je me la repreacutesente comprend deux deacutemarches successives de lrsquoesprit

Le second de ces deux moments la deacutemarche finale crsquoest ce que jrsquoappelle intuition ndash un effort tregraves dificille et

tregraves penible par lequel on rompt avec les ideacutees preacuteconccedilues et les habitudes intelectuelles toutes faites pour se

replacer sympathiquement agrave lrsquointeacuterieur de la reacutealiteacuterdquo (BERGSON 1972 p 1197)

92

extensa polecircmica da filosofia bergsoniana em relaccedilatildeo a toda a filosofia metoacutedica que a

precedeu a fim de explicitar o que constitui a exigecircncia singular de sua obra as relaccedilotildees

entre intuiccedilatildeo e discurso filosoacutefico Estas se encontram desde o primeiro momento

erigidas segundo a exigecircncia da adequaccedilatildeo entre meacutetodo filosoacutefico e a realidade agrave qual se

aplica inscrevendo-a tambeacutem ela na perspectiva da precisatildeo Configurada ldquopela aderecircncia

do conceito ao objetordquo (LEOPOLDO E SILVA 1994 p 34) a precisatildeo teria se tornado a

partir de Bergson o criteacuterio da adequaccedilatildeo do conhecimento ao real denunciando uma

apreensatildeo deformante e intrinsecamente simboacutelica da realidade derivada como veremos

das formas especiacuteficas da proacutepria inteligecircncia humana

Se Riquier deseja deduzir a impossibilidade de tratar a intuiccedilatildeo como meacutetodo a

partir de uma deduccedilatildeo que poderiacuteamos chamar de exegeacutetica seria natildeo menos necessaacuterio

considerar por exemplo o fato de que o Avant-propos de La Penseacutee et le Mouvant

apresenta a referida coleccedilatildeo de ensaios e conferecircncias como centradas sobre o problema da

pesquisa em filosofia Aqueles textos segundo Bergson (2001 p 1251) ldquoportent

principalement sur la meacutethode que nous croyons devoir racommander au philosophe

Remonter agrave lrsquoorigine de cette meacutethode deacutefinir la direction qursquoelle imprime agrave la recherche

tel est plus particuliegraverement lrsquoobjet des deux essais composant lrsquointroductionrdquo La Penseacutee

et le Mouvant representa portanto o resultado de uma seacuterie de esforccedilos pontuais de

Bergson a fim de remontar agrave genealogia do meacutetodo que se deve recomendar ao filoacutesofo

Se disso natildeo eacute possiacutevel concluir resolutamente que a intuiccedilatildeo constitui o meacutetodo

filosoacutefico por excelecircncia tampouco autoriza a afirmar rigorosamente uma dissociaccedilatildeo de

direito entre meacutetodo e intuiccedilatildeo de tal forma que pudesse haver para Bergson intuiccedilatildeo

sem inteligecircncia A longue camaraderie com os fenocircmenos de superfiacutecie verificados ao

longo de todo bergsonismo56

o extenso e profiacutecuo diaacutelogo de todos os livros de Bergson

com as ciecircncias de seu tempo ndash psicologia matemaacutetica medicina biologia sociologia

antropologia ndash ou mesmo o cabal objetivo de afirmar na contracorrente da gnosiologia

kantiana a possibilidade de um enriquecimento reciacuteproco entre ciecircncia e filosofia na

direccedilatildeo do real e do absoluto (BERGSON 2001 p 663-664199-200) natildeo seriam

suficientes para indicar uma compenetraccedilatildeo entre meacutetodo e intuiccedilatildeo como um dos

principais horizontes de sentido da filosofia bergsoniana

56

ldquoCar on nrsquoobtient pas de la reacutealiteacute une intuition crsquoest-agrave-dire une sympathie spirituelle avec ce qui elle a de

plus inteacuterieur si lrsquoon nrsquoa pas gagneacute sa confiance par une longue camaraderie avec ses manifestations

superficiellesrdquo (BERGSON 2001 p 1432226)

93

Com efeito se Riquier tem razatildeo em afirmar a dissociaccedilatildeo de jure entre intuiccedilatildeo e

meacutetodo de tal modo que o proacuteprio Bergson identificaria a ocorrecircncia de meacutetodos sem

intuiccedilatildeo e intuiccedilotildees despidas de meacutetodo por outro lado estes natildeo seriam senatildeo os

desenvolvimentos de duas tendecircncias inscritas na inteligecircncia que deveriam ser

reunificadas no campo concreto da experiecircncia57

Ainda aqui valeria o ldquomeacutetodordquo

bergsoniano de divisatildeo a fim de seguir as articulaccedilotildees do real segundo o qual os mistos

que satildeo dados com a experiecircncia podem ser divididos em multiplicidades que diferem por

natureza ndash multiplicidades quantitativas homogecircneas e descontiacutenuas que correspondem ao

espaccedilo e multiplicidades qualitativas heterogecircneas e contiacutenuas agraves quais corresponde a

duraccedilatildeo (DELEUZE 1966 p 31)

Considerando-se ou natildeo a intuiccedilatildeo como o meacutetodo filosoacutefico por excelecircncia e

embora a relaccedilatildeo entre inteligecircncia e intuiccedilatildeo soacute possa ser definitivamente esclarecida com

a descriccedilatildeo da gecircnese da inteligecircncia no seio da vida a criacutetica a um suposto

antiintelectualismo bergsoniano pode ser afastada imediatamente senatildeo pela afirmaccedilatildeo da

intuiccedilatildeo como meacutetodo como enfaticamente quiseram Prado Juacutenior Deleuze Hude e

outros ao menos pela verificaccedilatildeo de que a dissociaccedilatildeo entre intuiccedilatildeo e inteligecircncia natildeo

apenas contraria o sentido global da deacutemarche da obra bergsoniana como antes e

sobretudo contrafaz afirmaccedilotildees muito contundentes como aquela em que Bergson

preconiza que sendo mais que ideia eacute por meio de ideias que a intuiccedilatildeo termina por

comunicar-se isto eacute ldquoLrsquointuition ne se communiquera drsquoailleurs que par lrsquointelligencerdquo

(BERGSON 2001 p 128542) ou aquela em que afirma uma cooperaccedilatildeo entre intelecto e

intuiccedilatildeo ambas reunidas sob o selo da precisatildeo ldquo[] intuitive ou intelectuelle la

connaissance sera marqueacutee au sceau de la preacutecisionrdquo (BERGSON 2001 p 132086)58

De tudo quanto vimos apreendamos trecircs notas originais do bergsonismo que

serviratildeo a compreender o acircnimo que deve orientar as primeiras aproximaccedilotildees de nossa

questatildeo original 1) pensar para Bergson eacute mais do que pensar a duraccedilatildeo como objeto da

57

ldquoPour tout reacutesumer nous volouns une diffeacuterence de meacutethode nous nrsquoadmettons pas une diffeacuterence de

valeur entre la meacutetaphysique et la sciencerdquo (BERGSON 2001 p 128542-43) E ainda ldquoCrsquoest dire que

science et meacutetaphysique diffeacutereront drsquoobjet et de meacutethode mais qursquoelles communieront dans lrsquoexpeacuteriencerdquo

(BERGSON 2001 p 128745) 58

Atestando uma vez mais a relaccedilatildeo entre inteligecircncia e intuiccedilatildeo Freacutedeacuteric Worms recomenda que evitemos

em enxergar na intuiccedilatildeo uma regressatildeo instintiva e afirma ldquoa intuiccedilatildeo natildeo supera a humanidade senatildeo no

sentido revelado pela inteligecircnciardquo (WORMS 2011 p 271) Ainda Petr Tuma (In FAGOT-LARGEAULT

WORMS 2009 p 374) explicita a relaccedilatildeo de complementaridade entre intuiccedilatildeo e inteligecircncia suposta pela

interpretaccedilatildeo de Worms ldquoLrsquointelligence comme faculteacute principale de lrsquohomme se trouve completeacutee par son

jeu avec lrsquointuitionrdquo Finalmente conveacutem assinalar que tambeacutem Henri Hude (In FAGOT-LARGEAULT

WORMS 2009 p 197) natildeo cessou de insistir ldquosur le caractegravere meacutethodique et rationnel de lrsquointuitionrdquo A

orientaccedilatildeo genuinamente antropoloacutegica do trabalho de intuiccedilatildeo em Bergson no entanto eacute um tema de que

natildeo podemos nos ocupar por ora sob pena de estender inconvenientemente esta pequena digressatildeo

94

filosofia mas eacute pensar em duraccedilatildeo o que significa seguir as articulaccedilotildees moventes do real

privilegiar a visatildeo da gecircnese e natildeo a da estrutura dada por natildeo se sabe bem por qual deus

ex machina 2) evitemos o antigo e incoerente haacutebito de procurar pelo antiintelectualismo

no seio daquilo que Bergson designou como ldquoesforccedilo de intuiccedilatildeordquo59

nosso breve desvio

pocircde atestar o liame necessaacuterio entre intuiccedilatildeo e inteligecircncia se por inteligecircncia

compreendermos a exemplo de Bergson ldquoa maneira humana de pensarrdquo60

3) Finalmente

compreendemos que a intuiccedilatildeo constitui uma das muacuteltiplas entradas possiacuteveis agrave filosofia de

Bergson sendo preciso nesse caminho descartar todo raciociacutenio estrutural e retrospectivo

em relaccedilatildeo a esse conceito Se o conhecimento de qualquer realidade exige como quisera o

proacuteprio Bergson uma longa camaradagem com suas manifestaccedilotildees superficiais natildeo se

poderaacute esperar ver na intuiccedilatildeo o fiat da obra bergsoniana uma vez que natildeo eacute por ela que

Bergson comeccedila e porque ela se constitui em um desenvolvimento em tudo coextensivo agrave

experiecircncia concreta

Encerremos esse longo parecircntese sobre a questatildeo da intuiccedilatildeo em Bergson a fim de

retomar nossa questatildeo primeira a das muacuteltiplas entradas para compreender o sentido e a

realidade do tempo em Bergson Aleacutem da intuiccedilatildeo uma segunda possibilidade seria a

esboccedilada por Freacutedeacuteric Worms em Bergson ou os dois sentidos da vida ou como

propusera antes dele Vladimir Jankeacuteleacutevitch com seu Henri Bergson Ela consistiria em

remontar as articulaccedilotildees do bergsonismo a partir do progresso interno de seu

desenvolvimento partindo do Essai sur les donneacutes immediates de la conscience (1889)

passando por Matiegravere et meacutemoire (1896) e LacuteEacutevolution Creacuteatrice (1907) ateacute chegar a Les

Deux Sources de la Morale et de la Religion (1932) Trata-se de uma das ordenaccedilotildees mais

didaacuteticas de Bergson na medida em que o trabalho passa a ser ndash como Jankeacuteleacutevitch e

Worms aliaacutes executam magistralmente ndash proceder agraves cesuras encadear pontos de

continuidade e religar elementos de ruptura entre as quatro principais obras de Bergson

Apesar de os esforccedilos desses ceacutelebres leitores de Bergson convencerem pela uniatildeo

de beleza e inspiraccedilatildeo da continuidade do bergsonismo retrilhar sistematicamente seus

caminhos implica assumir o risco de criar indevidamente no leitor a impressatildeo ndash na qual eacute

preciso evidenciar nenhum desses notaacuteveis inteacuterpretes jamais incorre ndash de um teacutelos

previamente estabelecido pela filosofia bergsoniana Se assim fosse o que explicaria por

exemplo o quarto de seacuteculo que separa a publicaccedilatildeo de LrsquoEacutevolution Creacuteatrice e a de Les

59

A fim de encerrar tais acusaccedilotildees deixemos com Bergson (2001 p 132895) a uacuteltima palavra ldquoNous ne

dirons rien de celui qui voudrait que notre lsquointuitionrsquo fucirct instinct ou sentiment Pas une ligne de ce que nous

avons eacutecrit ne se precircte agrave une telle interpreacutetationrdquo 60

ldquoQursquoest-ce en effet que lrsquointelligence La maniegravere humaine de penserrdquo (BERGSON 2001 p 131984)

95

Deux Sources (GOUHIER 1989 p 87) Se com efeito eacute impossiacutevel deixar de verificar

que Bergson sempre se move de um problema concreto a outro ndash a liberdade a relaccedilatildeo

entre corpo e espiacuterito a gecircnese criadora da vida e de suas formas especiacuteficas a miacutestica e o

aberto ndash e que cada livro terminado engendra jaacute as virtualidades de um problema que eacute

preciso colocar sempre em funccedilatildeo da duraccedilatildeo natildeo haacute meta na filosofia bergsoniana senatildeo

certa direccedilatildeo inespeciacutefica que se resume agrave tentativa de oferecer uma resposta agraves trecircs

grandes e simples questotildees que o senso comum frequentemente se coloca ldquoQuem somos

noacutesrdquo ldquoDe onde noacutes viemosrdquo ldquoPara onde noacutes vamosrdquo (RIQUIER 2009 p 476)

A fim de evitar os riscos da interpretaccedilatildeo retrospectiva bem como os da exposiccedilatildeo

linear gostaria de propor alternativamente uma terceira entrada apenas por supocirc-la mais

adequada aos desenvolvimentos do problema que buscamos enfrentar a partir de Bergson

apresentar os conceitos de memoacuteria e transiccedilatildeo no corpo da filosofia bergsoniana a fim de

explicar a relaccedilatildeo entre memoacuteria e transformaccedilatildeo social ndash lacuna encontrada na primeira

parte no seio heterogecircneo da Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo

Eis porque a questatildeo do sentido e da realidade do tempo devem ser colocadas de

um ponto de vista que natildeo inicia pela exposiccedilatildeo da intuiccedilatildeo filosoacutefica tampouco pela

exposiccedilatildeo sistemaacutetica do desenvolvimento da obra de Bergson Eacute preciso que nos

coloquemos no campo de sentido conceitual de imediato instaurando-o correlativa e

contemporaneamente ao desenvolvimento dos conceitos que o povoam

Antes disso no entanto eacute preciso uma palavra sobre o sentido desse movimento

que nos autoriza colocar-nos subitamente no interior do campo problemaacutetico que se deseja

constituir Escrevesse sobre o canevaacutes das experiecircncias psicoloacutegicas forjasse um campo

transcendental das experiecircncias concretas ou recortasse problemas antropoloacutegicos acerca

dos destinos da espeacutecie humana sobre o fundo do eacutelan vital natildeo raras vezes e ateacute mesmo

constantemente Bergson empresta agrave intuiccedilatildeo a imagem dos saltos toda a sua obra eacute

percorrida por essas imagens haacute saltos na duraccedilatildeo qualitativa no passado na origem da

vida na justiccedila absoluta no aberto etc

Sempre que nos vemos envolvidos por diferenccedilas de natureza ndash entre

multiplicidades quantitativa e qualitativa espaccedilo e tempo mateacuteria e espiacuterito ou entre

fechado e aberto por exemplo ndash retorna a imagem dos saltos que preenchem

positivamente as dificuldades de passar de um registro ontoloacutegico a outro em um momento

em que natildeo se pode ainda passar de um termo a outro por contiguidades Geralmente

trata-se dos momentos em que Bergson deseja desfazer-se de falsos-problemas ou

96

constituir os seus pela intuiccedilatildeo mais adequados que se valem de um contato imediato com

a experiecircncia concreta acerca do qual se mobiliza o esforccedilo de intuiccedilatildeo61

O que apareceraacute ao fundo de cada um deles eacute o salto problemaacutetico e ainda assim

sempre repetido do atual em direccedilatildeo ao virtual sem sair da mesma realidade agrave qual ambos

os registros pertencem ndash campo transcendental ao qual nenhuma realidade pode escapar

pois define a condiccedilatildeo de toda experiecircncia concreta Eacute sobre um salto como esses de uma

diferenccedila de natureza a outra de um registro de realidade a outro que devemos nos

concentrar a fim de realizar a travessia do atual em direccedilatildeo ao virtual sob o aspecto da

duraccedilatildeo Trata-se de interrogar o sentido e a realidade do tempo em Bergson

Para tanto o movimento conceitual que realizaremos mobiliza dois niacuteveis de

realidade solidaacuterios e no entanto qualitativamente distintos o psicoloacutegico e o ontoloacutegico

tal como aparecem a partir do Essai sur les donneacutes immediates de la conscience e de

Matiegravere et Meacutemoire Falamos de uma duraccedilatildeo tomada em uma diferenccedila de vibraccedilatildeo

psicoloacutegica compreendida como duraccedilatildeo interior experiecircncia mais imediata do fluxo

temporal e ontoloacutegica registro de realidade mais proacuteximo da mateacuteria Seu muacutetuo

cruzamento tornaraacute possiacutevel efetuar a passagem do ser presente ao ser do passado ndash eis a

transiccedilatildeo que por ora se trata de engendrar e que permite aceder natildeo apenas agrave duraccedilatildeo

sentida em profundidade como fruto de uma experiecircncia psicoloacutegica ndash verdadeiro fato

fundamental (JANKEacuteLEacuteVITCH 2008 p 07) ndash mas igualmente ao ser presente e ao ser

do passado como iacutendices de um desdobramento ontoloacutegico duacuteplice da duraccedilatildeo o atual e o

virtual

Em relaccedilatildeo agraves alternativas que haacute pouco revisitamos em suas linhas gerais esta

apresenta a vantagem de natildeo incorrer nos riscos de interpretaccedilatildeo retrospectiva e de

continuidade linear que aquelas poderiam sugerir ao leitor tornando mais complexo o

acompanhamento da demonstraccedilatildeo do sentido e da realidade do tempo em Bergson Ainda

esta alternativa permitiraacute acompanhar o desdobramento a um soacute tempo complexo e

contiacutenuo da realidade do virtual bem como seus desdobramentos que de um ponto de

vista inicialmente psicoloacutegico progressivamente se articularaacute com a ontologia da duraccedilatildeo

concedendo-nos a chave de todos os desdobramentos ulteriores em campos muito

heterogecircneos como os terrenos da subjetivaccedilatildeo ou da experiecircncia social

61

Nesse aspecto vecirc-se que a imagem do salto eacute uma figura de acesso agravequilo que a experiecircncia concreta pode

oferecer agrave intuiccedilatildeo Todavia este primeiro salto define apenas o acesso agrave experiecircncia naquilo que ela possui

de concreto e portanto de misto por ora indiviso Uma vez cindido torna-se ainda uma vez possiacutevel saltar de

um termo-limite a outro de uma diferenccedila de natureza a outra Por essa razatildeo Henri Hude (2009 p 182)

afirma que ldquoLrsquoobjet de lrsquointuition crsquoest drsquoabord lrsquoimmediat Lrsquoimmediat est le mode de connaissance qui se

rapporte sans inteacutermediare agrave son objetrdquo

97

sect 2 DURACcedilAtildeO O SENTIDO E A REALIDADE DO TEMPO

Encontramo-nos pois no segmento psicoloacutegico da obra de Bergson que ensaia

tambeacutem e jaacute sua deserccedilatildeo ampliativa em direccedilatildeo agrave ontologia e eacute precisamente esta

articulaccedilatildeo ou esta continuidade entre o psicoloacutegico e o ontoloacutegico que se torna

momentaneamente o epicentro conceitual necessaacuterio para explicar o sentido e a realidade

do tempo como a passagem do ser presente ao ser do passado no bergsonismo Afinal se

por ora utilizamos o termo ontoloacutegico para designar as realidades aproximadas da mateacuteria

excluindo aparentemente o psiacutequico eacute apenas por uma razatildeo de comodidade precaacuteria que

deve deformar-se paulatinamente no sentido de seu contraacuterio A construccedilatildeo progressiva do

conceito de duraccedilatildeo e a procura pelo sentido e pela realidade do tempo tendem a provocar

como veremos duas aberturas nessas mesmas estruturas discursivas a primeira no

ontoloacutegico torna o psiacutequico e o mental uma realidade a segunda no psicoloacutegico torna-o o

seio privilegiado da experiecircncia da duraccedilatildeo assegurando sua realidade e seu sentido

Trata-se portanto de abrir o campo ontoloacutegico pelo campo psicoloacutegico e como

consequecircncia da comunicaccedilatildeo entre ambos afirmar a realidade da duraccedilatildeo em niacuteveis ou

registros diferentes que compotildeem uma soacute realidade ontoloacutegica

O texto introdutoacuterio do Essai sur les donneacutes immediates de la conscience apresenta

o problema da liberdade como comum aos campos da psicologia e da metafiacutesica Sua

origem profunda se deve ao fato de que ldquoNous nous exprimons neacutecessairement par des

mots et nous pensons le plus souvent dans lrsquoespacerdquo (BERGSON 2001 p 03VII) Se a

linguagem corresponde agrave expressatildeo de ideias de acordo com necessidades praacuteticas comuns

agrave accedilatildeo na vida quotidiana como na ciecircncia de algum modo suas traduccedilotildees introduzem

ldquoentre nos ideacutees les mecircmes distinctions nettes et preacutecises la mecircme discontinuiteacute qursquoentre

les objets materieacutelsrdquo (BERGSON 2001 p 03VII) Eis o que nos leva a tomar os siacutembolos

meramente representativos por coisas Trata-se nesse caso natildeo mais que de uma

assimilaccedilatildeo uacutetil que no entanto eacute capaz de engendrar em filosofia problemas

aparentemente insuperaacuteveis que uma vez que tenham sido recolocados poderiam ateacute

mesmo desvanecer por completo segundo Bergson adverte ndash natildeo sem certa audaacutecia

especulativa

Por essa razatildeo os dois primeiros capiacutetulos do Essai concentram-se precisamente

sobre a criacutetica das noccedilotildees de quantidades intensivas e de multiplicidades numeacutericas Eacute

preciso compreender que natildeo se trata de uma criacutetica a conceitos puros mas agrave sua

aplicaccedilatildeo pelas ciecircncias psicoloacutegicas a um campo de experiecircncias irredutiacutevel agrave

98

representaccedilatildeo espacial incutida nesses conceitos Logo se nota portanto que a criacutetica de

Bergson desenrola-se no sentido da irredutibilidade de experiecircncias duracionais a

traduccedilotildees que natildeo apreendem senatildeo um rastro espacializado de uma mudanccedila real e

absoluta Nesse sentido o problema da liberdade indicaraacute que toda polecircmica metafiacutesica e

psicoloacutegica acerca de sua existecircncia entre deterministas e seus adversaacuterios teria origem em

uma operaccedilatildeo de fundo ldquoune confusion preacutealable de la dureacutee avec lrsquoeacutetendue de la

succession avec la simultaneiteacute de la qualiteacute avec la quantiteacute []rdquo(BERGSON 2001 p

03VII)62

Em suma uma insistente confusatildeo entre realidades que comportam diferenccedilas

de natureza de que deriva uma certa maneira de pocircr o problema cuja denuacutencia o ensaio

bergsoniano assumiraacute (WORMS 2011 p 37)

O que estaacute em jogo na introduccedilatildeo dessa diferenccedila ainda imprecisa entre duraccedilatildeo e

espaccedilo eacute precisamente a natureza da duraccedilatildeo Supomos por ora a fim de acompanhar

Bergson que a assimilaccedilatildeo da duraccedilatildeo pelo espaccedilo seja deformante e desnaturante assim

como a traduccedilatildeo de uma sucessatildeo em simultaneidades ou de qualidades em quantidades

Tratar-se-ia pois de conceitos irredutiacuteveis cuja irredutibilidade ainda falta explicar Para

fazecirc-lo deixemos de lado a questatildeo da realidade do espaccedilo e nos concentremos nos

problemas que nos sugerem o desenvolvimento da realidade da duraccedilatildeo

O campo experimental de Bergson satildeo os estados psicoloacutegicos e de consciecircncia

propriamente humanos Eles seratildeo desenvolvidos inicialmente a partir da ideia de

sensaccedilatildeo em primeiro lugar no sentido de identificar e separar as tendecircncias duracionais e

natildeo-duracionais no seio da experiecircncia interior e concreta que nos assinala ldquole fait de

lsquodurerrsquordquo (JANKEacuteLEacuteVITCH 2008 p 07) Se as sensaccedilotildees de esforccedilo e movimento podem

ser naturalmente associadas agrave superfiacutecie a que se aplicam ou agrave trajetoacuteria sobre a qual se

deslocam o mesmo natildeo ocorre quando experimentamos outros estados de alma como ldquoles

joies et les tristesses profondes les passions reacutefleacutechies les eacutemotions estheacutetiquesrdquo

(BERGSON 2001 p 0906) Esses estados parecem bastar a si mesmos excluindo toda

possibilidade de traduccedilatildeo espacial63

parecem ademais emergir subitamente de certa

profundidade da consciecircncia exprimindo dinamicamente uma modificaccedilatildeo da ldquonuance de

62

Bento Prado Juacutenior natildeo apenas lembra que a criacutetica do Essai bergsoniano dirige-se tanto agrave ciecircncia quanto

ao senso comum ao distribuiacuterem fatos psicoloacutegicos em um espaccedilo imaginaacuterio instaurado por coordenadas de

grandeza intensiva mas tambeacutem que colocar em jogo o conceito de grandeza intensiva potildee em xeque ldquoa

possibilidade da constituiccedilatildeo da psicologia como ciecircnciardquo a qual estaacute fundada nessa categoria De todo

modo buscando demonstrar a vacuidade do problema da liberdade Bergson buscaria ldquoinfundar deterministas

e espiritualistasrdquo demonstrando ldquoa raiz comum dessas metafiacutesicasrdquo (PRADO JUacuteNIOR 1989 p 73-74) 63

ldquoCrsquoest que plus on descend dans les profondeurs de la conscience moins on a le droit de traiter les faits

psychologiques comme des choses qui se juxtaposentrdquo (BERGSON 2001 p 1006-07) isto eacute menos

direitos tem uma representaccedilatildeo espacial sobre a coloraccedilatildeo afetiva em profundidade

99

mille perceptions ou souvenirsrdquo penetrados agora de uma nova imagem No entanto toda

descida agrave profundidade obscura da consciecircncia dos desejos e sonhos que a penetram ndash e

que como veremos penetram-se indefinidamente nela ndash repugna agrave consciecircncia reflexa

orientada para a utilidade e para a vida e portanto amante do claro e do distinto

envolvidos pelos horizontes da representaccedilatildeo

Toda afecccedilatildeo tomada em profundidade implica mais uma mudanccedila de qualidade

que de grandeza Um desejo que pacientemente se acumula o futuro prenhe de uma

infinidade de possiacuteveis mais fecundos que o proacuteprio futuro que designa toda a prazerosa

intensidade de nutrir esperanccedila sentimentos profundos de alegria e tristeza sentimentos

esteacuteticos que inspiram certa simpatia fiacutesica de movimentos alheios como a graccedila

assinalariam um progresso qualitativo que no entanto interpretamos como mudanccedila de

grandeza em razatildeo de uma inadequaccedilatildeo entre nossa linguagem e ldquoas sutilezas da anaacutelise

psicoloacutegicardquo (BERGSON 2001 p 1310)

A sensaccedilatildeo esteacutetica talvez constitua um dos mais claros exemplares sobre como

Bergson compreende a natureza qualitativa dos estados psicoloacutegicos Segundo ele o que

constitui o objetivo da arte Natildeo comunicar uma sensaccedilatildeo mas introduzir-nos em uma

emoccedilatildeo64

Para isso eacute necessaacuterio adormecer as resistecircncias de nossa personalidade

docilizar nosso estado de acircnimo a fim de que simpatizemos com o sentimento expresso O

ritmo seja o compreendido pela muacutesica pela poesia pelas artes plaacutesticas ou pela

arquitetura suspende nossas faculdades a fim de envolvecirc-las por completo em uma densa

neacutevoa de emoccedilotildees que natildeo se resumem agravequela sugerida pela obra mas a integra com

milhares de sensaccedilotildees sentimentos e ideias que a atravessam formando assim um estado

uacutenico e inexplicaacutevel tatildeo singular que talvez fosse preciso ldquorevivre la vie de celui qui

lrsquoeacuteprouve [lrsquoeacutemotion] pour lrsquoembrasser dans sa complexe originaliteacuterdquo (BERGSON 2001

p 1513)65

64

Em Puissances du Temps David Lapoujade pergunta-se pela relaccedilatildeo entre o conceito de duraccedilatildeo em

Bergson e o fato de que sua experiecircncia aparece desde seus primeiros escritos ligada agrave sensaccedilatildeo da

passagem do tempo ldquopour saisir la dureacutee [] il faut la sentir srsquoeacutecouler en nousrdquo (LAPOUJADE 2010 p

08) Trata-se poreacutem de compreender o que significar sentir Eacute certo que ao passar o tempo provoca

emoccedilotildees que se confundiriam para Lapoujade com os proacuteprios dados imediatos da consciecircncia Contudo

para compreender o significado profundamente bergsoniano de sentir seria preciso inverter a polaridade

comum entre causa e efeito jaacute natildeo seria o tempo que ao passar provoca emoccedilatildeo eacute a duraccedilatildeo mesma que

em noacutes eacute emoccedilatildeo segundo a foacutermula de Lapoujade Isso indicaria que a emoccedilatildeo ndash ideia que reapareceraacute

incessantemente na obra tardia de Bergson seguida do predicado criadora ndash constitui um dos aspectos

fundamentais da experiecircncia da duraccedilatildeo Isso eacute o que torna a sensaccedilatildeo esteacutetica um exemplar privilegiado para

a compreensatildeo do duracional cuja realidade esboccedila-se jaacute interna e imediatamente 65

A expressatildeo entre colchetes natildeo consta do original

100

A qualidade de singularidade intensiva da emoccedilatildeo esteacutetica produz assim a queda

das barreiras que tempo e espaccedilo interpunham entre a consciecircncia do artista e a do amante

de arte essa ressonacircncia entre consciecircncias ndash como vimos mais que a comunicaccedilatildeo de

uma emoccedilatildeo implica a introduccedilatildeo no solo afetivo de uma emoccedilatildeo enriquecida em diversos

niacuteveis de profundidade pelo eu que a experimenta ndash produz segundo Bergson mudanccedilas

em noacutes ldquoLes intensiteacutes successives du sentiment estheacutethique correspondent donc agrave des

changements drsquoeacutetat survenus en nous et le degreacutes de profondeur au plus ou moins grand

nombre de faits psychiques eacuteleacutementaires que nous deacutemecirclons confusement dans lrsquoeacutemotion

fondamentalerdquo (BERGSON 2001 p 1614)

Bergson reconhece no entanto a raridade desses estados de alma profundos

Torna-se necessaacuterio evitar que sua criacutetica da inadequaccedilatildeo do conceito de quantidades

intensivas traduziacuteveis sempre em diferenccedilas de graus seja compreendida como um tour de

force que toma o excepcional pelo regular Por isso Bergson deve retornar agraves sensaccedilotildees

que nos parecem mais imediatamente espaciais eacute o caso da sensaccedilatildeo de esforccedilo

Com efeito o esforccedilo muscular parece-nos sempre comportar diferenccedilas

quantitativas Representamos esforccedilos musculares mais fracos e mais fortes que implicam

menor ou maior volume de accedilatildeo Se comprimiacutessemos a sensaccedilatildeo de esforccedilo o maacuteximo

possiacutevel concluiriacuteamos facilmente pela existecircncia de um estado puramente psiacutequico que

natildeo ocupa espaccedilo e contudo importa grandeza

Em que consiste nossa percepccedilatildeo de sua intensidade Como se pode afirmar que

experimentamos uma sensaccedilatildeo de crescimento do esforccedilo Natildeo nos afastemos da

experiecircncia Bergson sugere que fechemos o punho o mais forte que pudermos ou

comprimamos constantemente um dos laacutebios contra o outro observando-nos ao longo do

tempo perceberiacuteamos um aumento de superfiacutecie e de esforccedilo quando em verdade trata-se

objetivamente de uma pressatildeo constante e igual exercida sobre a mesma regiatildeo Nossa

consciecircncia todavia perceberia aiacute um crescimento de esforccedilo muscular em razatildeo de uma

mudanccedila qualitativa ocorrida em alguma das percepccedilotildees perifeacutericas (BERGSON 2001 p

2119) Ora sendo qualitativa a modificaccedilatildeo de intensidade de um esforccedilo superficial eacute

forccediloso conduzir sua causa a um sentimento profundo da alma confusamente

percepcionado em superfiacutecie

Investigando estados psicoloacutegicos intermediaacuterios entre sentimentos profundos e

esforccedilos superficiais como a atenccedilatildeo geralmente acompanhada de movimentos (contraccedilatildeo

do frontal elevaccedilatildeo do sobrolho abertura da boca etc) eacute possiacutevel identificar tambeacutem

entre eles uma impressatildeo de aumento de um ldquoesforccedilo imaterialrdquo por manter-se

101

concentrado Com efeito mesmo aiacute o esforccedilo de atenccedilatildeo eacute reconduzido a uma tensatildeo da

alma devendo-se a variaccedilatildeo de intensidade percepcionada agrave tensatildeo muscular que a

acompanha O mesmo ocorre com o que Bergson chama de emoccedilotildees violentas desejo

agudo coacutelera amor apaixonado oacutedio violento que se fazem natildeo raro acompanhar por

sintomas fisioloacutegicos de furor variaccedilotildees qualitativas misturam-se a tensotildees musculares

perifeacutericas e uma variaccedilatildeo de tensatildeo espiritual pode ser logo transcrita em termos de

coordenadas quantitativas e espaciais

Isso tudo importaria reduzir essas sensaccedilotildees superficiais que podem ser transcritas

em termos de grandezas agrave orientaccedilatildeo de movimentos concomitantes que a consciecircncia

mede pelo nuacutemero e extensatildeo ldquodas superfiacutecies interessadasrdquo Bastaria eliminar todo traccedilo

de abalo orgacircnico a fim de que restasse apenas uma emoccedilatildeo agrave qual eacute impossiacutevel atribuir

grandeza de intensidade Seria preciso pois distinguir com precisatildeo entre abalos orgacircnicos

e sentimentos profundos agitaccedilatildeo superficial e perturbaccedilotildees em profundidade

Se Bergson contesta o conceito de intensidade quantitativa eacute visando a comprovar o

fundo qualitativo em profundidade de toda manifestaccedilatildeo superficial A irredutibilidade

entre intenso e extenso entre a qualidade e a quantidade indica desde logo que haacute entre

eles uma diferenccedila natildeo apenas de grau mas de natureza Essa diferenccedila de natureza

impede que a traduccedilatildeo do qualitativo pelo mensuraacutevel seja adequada e mais aleacutem que se

passe do qualitativo ao quantitativo por aproximaccedilotildees ndash sejam elas ampliaccedilotildees ou reduccedilotildees

ndash sucessivas A noccedilatildeo de intensidade implicaria nesse sentido um misto designando ao

mesmo tempo uma apreciaccedilatildeo da grandeza da causa por certa qualidade superficial do

efeito ndash o que corresponderia ao extenso e ao quantitativo bem como ldquola multipliciteacute plus

ou moins consideacuterable de faits psychiques simples que nous devinons ou sein de lrsquoeacutetat

fondamentalrdquo (BERGSON 2001 p 5054) o que designaria natildeo mais uma percepccedilatildeo

clara e distinta ou superficial mas profunda confusa e obscura

A intensidade afigura-se pois um misto bifronte que se compotildee de dados extensos

quantitativos superficiais ou o que eacute dizer o mesmo espaciais e em seu anverso eacute

composto de uma multiplicidade de fatos psiacutequicos simples tomados em sua continuidade

obscura e confusa que Bergson compraz-se em chamar de ldquolrsquoimage drsquoune multipliciteacute

internerdquo Eis o ponto de junccedilatildeo entre estados de consciecircncia meramente representativos e

estados de consciecircncia que se bastam considerados em profundidade O proacuteximo passo

seraacute dissociar representaccedilatildeo e esta multiplicidade interna considerada agora natildeo em

estados separados mas em si mesmos a fim de depurar a duraccedilatildeo de todas as suas

102

representaccedilotildees espaciais e dessa forma liberaacute-la das ilusotildees de que a inteligecircncia a cercou

desde a filosofia dos eleatas

Ateacute agora apreendemos estados psicoloacutegicos como sensaccedilotildees cujas qualidades

desprendem-se de um fundo obscuro e confuso e que chegando agrave superfiacutecie de nosso eu

satildeo apreendidos como estados separados distintos tal como a inteligecircncia os percebe

como dados imediatos de uma consciecircncia Diferentemente dos sentimentos profundos as

sensaccedilotildees apreendidas na superfiacutecie e logo transcritas em quantidades intensivas

variaccedilotildees de grandeza e diferenccedilas de grau oferecem-nos com efeito uma multiplicidade

mas ela nos concederaacute a duraccedilatildeo Tudo indica que natildeo Se a intensidade misto bifronte

prenhe tanto de quantidades intensivas quanto de fatos psiacutequicos simples correspondentes a

multiplicidades internas aponta desde logo para uma divisatildeo entre o espacial e o externo e

o duracional e o interno eacute na duraccedilatildeo dos estados simples interiores e profundos que

devemos buscar a ideia de duraccedilatildeo

Afinal como vimos eacute em profundidade que se constituem tanto os sentimentos

profundos que parecem bastar-se a si mesmos quanto aqueles mais superficiais sempre

em vias de converter-se em extensatildeo segundo os modos simboacutelicos de uma consciecircncia

que os experimenta em profundidade e realiza sua siacutentese por intermeacutedio da inteligecircncia

Em que consiste o que seus dados imediatos ofereceram agrave anaacutelise ateacute o presente De um

lado sua sede estabelecida em profundidade que implica uma mudanccedila de caraacuteter

qualitativo de outro sua siacutentese superficial que se nos representa uma mudanccedila de

qualidade como uma multiplicidade descontiacutenua povoada por estados descontiacutenuos

organizados no espaccedilo que experimentariacuteamos um apoacutes o outro e que variariam segundo

diferenccedilas de grau ou de quantidade

Jaacute se pode notar que o novo problema de Bergson consiste natildeo em mostrar que a

duraccedilatildeo implica multiplicidade ndash afinal o espaccedilo tambeacutem a implica ndash mas caso se trate de

assinalar uma diferenccedila de natureza entre duraccedilatildeo e espaccedilo eacute preciso compreender a que

tipo de multiplicidades correspondem os conceitos de duraccedilatildeo e extensatildeo Toda a questatildeo

da duraccedilatildeo converte-se em uma exigecircncia de apreender as caracteriacutesticas daquilo que

constitui seu tipo proacuteprio de multiplicidade

Se assim for o que explica o fato de que Bergson inicia o segundo capiacutetulo do

Essai pela definiccedilatildeo de nuacutemero Em La Penseacutee et le Mouvant Bergson afirmava que a

origem de seu encantamento com a ideia de tempo remontava ao fato de perceber que nas

103

matemaacuteticas o tempo natildeo desempenhava qualquer papel66

O trabalho de depuraccedilatildeo da

duraccedilatildeo de todo referencial e determinaccedilatildeo espaciais deve comeccedilar assinalando o tipo de

multiplicidade que concorre para um modo da realidade em que a duraccedilatildeo em princiacutepio

natildeo pode constituir causa Isso implica determinar com precisatildeo que tipo de multiplicidade

corresponde agraves coordenadas espaciais para depois definir a multiplicidade que

corresponde agrave duraccedilatildeo como limites de nossa experiecircncia (WORMS 2011 p 41) A

anaacutelise do conceito de nuacutemero eacute aquela que permitiraacute distinguir duas multiplicidades

Bergson (2001 p 5156) define o nuacutemero como ldquoune collection drsquouniteacutesrdquo ou como

ldquola synthegravese de lrsquoun et du multiplerdquo Trata-se de uma coleccedilatildeo de unidades supostas

idecircnticas entre si o que implicaria a ldquointuiccedilatildeo simples de uma multiplicidade de partes e de

unidadesrdquo assemelhadas umas agraves outras No entanto esta unidade eacute sinteacutetica operada pela

consciecircncia uma vez que as partes natildeo se confundem ou natildeo haveria multiplicidade O

que garante que a multiplicidade possa subsistir entre unidades que supomos iguais e cuja

siacutentese mental oferece-nos uma unidade pragmaticamente simples A circunstacircncia de que

se as unidades satildeo absolutamente semelhantes umas agraves outras ao menos diferem entre si

em funccedilatildeo do espaccedilo O que assegura que a siacutentese dessa multiplicidade de unidades

similares entregue-nos um nuacutemero Alguma forma de retenccedilatildeo das unidades sucessivas

sua representaccedilatildeo simultacircnea em um espaccedilo ideal e homogecircneo que acompanha a siacutentese

da multiplicidade numeacuterica em unidade (BERGSON 2001 p 57-5853) Como observa

Bento Prado Juacutenior (1989 p 94) ldquoA enumeraccedilatildeo implica retenccedilatildeo e a retenccedilatildeo por sua

vez implica a siacutentese de instantes sucessivosrdquo no mesmo sentido Freacutedeacuteric Worms (2011

p 47) afirma que ldquoantes de adicionar eacute preciso conservarrdquo o que implica de um lado que

a repeticcedilatildeo nua das unidades natildeo seja jamais suficiente para formar um nuacutemero cuja

siacutentese estaacute a exigir a representaccedilatildeo simultacircnea e distinta da multiplicidade

Dessa maneira um espaccedilo ideal de justaposiccedilatildeo surge como coordenada essencial agrave

operaccedilatildeo de siacutentese numeacuterica eacute impossiacutevel apreender o todo pela mera repeticcedilatildeo ndash sem

nenhuma conservaccedilatildeo ndash de suas unidades ou partes integrantes Se de seu turno a adiccedilatildeo

parece ser uma experiecircncia eminentemente temporal se no-la representamos como uma

soma sucessiva Bergson afirmaraacute que se pode perceber exclusivamente no tempo uma

sucessatildeo mas jamais uma adiccedilatildeo uma sucessatildeo que culminasse em uma soma67

A

66

ldquoNous fucircmes tregraves frappeacute en effet de voir comment le temps reacuteel qui joue le premier rocircle dans toute

philosophie de lrsquoeacutevolution eacutechappe aux matheacutematiquesrdquo (BERGSON 2001 p 125402) 67

ldquoCertes il est possible drsquoapercevoir dans le temps et dans le temps seulement une succession pure et

simple mais non pas une addition crsquoest-agrave-dire une succession qui aboutisse agrave une sommerdquo (BERGSON

2001 p 5458-59) ademais Bergson (2001 p 5459) conclui que ldquo[]toute ideacutee claire du nombre implique

104

intervenccedilatildeo de uma representaccedilatildeo espacial eacute condiccedilatildeo do nuacutemero como eacute do simples ato

de contar

Se por um lado o nuacutemero supotildee a extensatildeo por outro supotildee a descontinuidade

Retornemos por um momento agrave definiccedilatildeo do nuacutemero como siacutentese do uno e do muacuteltiplo

ou como coleccedilatildeo de unidades Ao nos representarmos um nuacutemero acedemos agrave intuiccedilatildeo de

uma totalidade simples no entanto quando nos representamos o nuacutemero como um todo

formado de partes ndash as unidades que compotildeem o nuacutemero ndash notaremos que a unidade

conteacutem uma multiplicidade Portanto a unidade do espiacuterito que reuacutene as partes em um todo

depende do caraacuteter essencialmente divisiacutevel de suas partes isto eacute de uma multiplicidade

de base Essa multiplicidade de base compotildee-se de unidades que supomos idecircnticas e que

satildeo por sua vez divisiacuteveis ao infinito uma vez que sua representaccedilatildeo como totalidade

decorre tal como o nuacutemero que designa o conjunto que ela integra de um ato do espiacuterito

natildeo de uma ldquounidade definitivardquo

Eacute nesse ponto que Bergson comprova ainda uma vez a solidariedade entre o

conceito de nuacutemero sua propriedade de multiplicidade descontiacutenua e divisiacutevel e a

extensatildeo ldquoOr par cela mecircme que lrsquoon admet la possibiliteacute de diviser lrsquouniteacute en autant de

parties que lrsquoon voudra on la tient pour lrsquoeacutetenduerdquo (BERGSON 2001 p 5661)68

A

indivisibilidade das unidades que compotildeem o nuacutemero por serem extensas eacute sempre

precaacuteria provisoacuteria e resultante de um ato sinteacutetico do espiacuterito da mesma forma um

nuacutemero entendido como siacutentese de uma multiplicidade em certa unidade gozaraacute tambeacutem

ele de uma simplicidade exclusivamente provisoacuteria O nuacutemero portanto supotildee o espaccedilo

que eacute definido por Bergson (2001 p 6470) como a concepccedilatildeo de um meio vazio

homogecircneo Ao afirmar que o espaccedilo eacute a concepccedilatildeo de um meio vazio e homogecircneo

Bergson remete sua origem ndash e por extensatildeo a das representaccedilotildees que dele nascem ndash agrave

estrutura subjetiva

Esboccedilada a noccedilatildeo de nuacutemero eacute preciso servir-se dela para opor duas espeacutecies de

multiplicidade Quando ouvimos o som de passos agrave porta ou o badalo de sinos podemos

nos representar essa sensaccedilatildeo espacialmente dissociando-os uns dos outros ndash caso em que

por exemplo contamos os passos ou os toques ndash ou recolhemos a impressatildeo qualitativa e

indivisa que o nuacutemero exerce em noacutes Dessa maneira jaacute natildeo dissociamos em partes mas

nossa consciecircncia o recolhe como uma totalidade indivisa ldquoune multipliciteacute confuse de

une vision dans lrsquoespacerdquo atestando a relaccedilatildeo de pressuposiccedilatildeo necessaacuteria entre o nuacutemero e a concepccedilatildeo de

um espaccedilo ideal vocacionado agrave retenccedilatildeo por meio da justaposiccedilatildeo 68

Ou ainda ao afirmar que ldquo[] lrsquoespace est la matiegravere avec laquelle lrsquoesprit construit le nombre le milieu

ougrave lrsquoesprit la placerdquo (BERGSON 2001 p 5763)

105

sensations et de sentiments que lrsquoanalyse seule distinguerdquo (BERGSON 2001 p 5965)

Eis o que permite compreender por intermeacutedio do conceito de nuacutemero que haacute duas

espeacutecies de multiplicidade a dos objetos materiais que formam imediatamente nuacutemero e

a dos fatos de consciecircncia que por constituiacuterem uma multiplicidade natildeo numeacuterica soacute

podem traduzir-se em nuacutemero agraves custas da mediccedilatildeo simboacutelica que faz intervir o espaccedilo69

Como se caracteriza essa multiplicidade natildeo numeacuterica atribuiacuteda aos fatos da

consciecircncia Em primeiro lugar ao contraacuterio da multiplicidade numeacuterica ela se define

pela simplicidade e pela indivisibilidade constituiacuteda pela adiccedilatildeo sucessiva de elementos

em segundo lugar por sua natureza qualitativa e heterogecircnea como tal os sucessivos

acreacutescimos de elementos natildeo tornam essa multiplicidade maior mas provocam mudanccedilas

integrais de natureza no todo (WORMS 2011 p 52)

Eacute a partir dessa multiplicidade natildeo numeacuterica qualitativa simples indivisiacutevel e

heterogecircnea ndash depurada de toda mediaccedilatildeo simboacutelica que implicaria representar o tempo

como um espaccedilo vazio e homogecircneo onde vecircm ter lugar sucessivos estados de consciecircncia

ndash que se poderaacute remontar agrave duraccedilatildeo por uma entrada genuinamente psicoloacutegica e asceacutetica

Por isso Bergson (2001 p 6167) sugere ldquoNous allons donc demander agrave la conscience de

srsquoisoler du monde exteacuterieur et par un vigoreux effort drsquoabstraction de redevenir elle-

mecircmerdquo

Toda a anaacutelise do conceito de nuacutemero teria nos levado ao menos a colocar sob

suspeita a analogia entre multiplicidades numeacutericas e natildeo numeacutericas Isso se deve a termos

compreendido que as multiplicidades natildeo numeacutericas ao admitirem uma transcriccedilatildeo

simboacutelica pressupotildeem a mediaccedilatildeo simboacutelica do espaccedilo ndash condiccedilatildeo de possibilidade da

retenccedilatildeo por justaposiccedilatildeo e simultaneidade A fim de natildeo desertar o campo da experiecircncia

imaginemos um conjunto de corpos materiais Deles podemos dizer que se diferenciam

entre si em face de serem exteriores uns aos outros ocuparem posiccedilotildees diversas entre si no

espaccedilo afinal satildeo mutuamente impenetraacuteveis A fim de que possamos imaginaacute-los o

espaccedilo interveacutem imediatamente pois eles ocupam um certo fundo homogecircneo no seio do

69

Nesse ponto ndash que passamos a aprofundar em seguida concentrando-nos sobre o significado de

multiplicidade natildeo numeacuterica ndash Gilles Deleuze (1966 p 30-31) sintetiza as caracteriacutesticas da distinccedilatildeo entre

multiplicidades numeacuterica e natildeo numeacuterica ldquoLrsquoimportant crsquoest que la deacutecomposition du mixte nous reacutevegravele

deux types de lsquomultipliciteacutersquo Lrsquoune est representeacutee par lrsquoespace (ou plutocirct si nous tenons compte de toutes les

nuances par le meacutelange impur du temps homogegravene) crsquoest une multipliciteacute drsquoexterioriteacute de simultaneiteacute de

juxtaposition drsquoordre de diffeacuterenciation quantitative de diffeacuterence de degreacute une multipliciteacute numeacuterique

discontinue et actuelle Lrsquoautre se preacutesente dans la dureacutee pure crsquoest une multipliciteacute interne de succession

de fusion drsquoorganisation drsquoheacuteteacuterogeacuteneacuteiteacute de discrimination qualitative ou de diffeacuterence de nature une

multipliciteacute virtuelle et continue irreductible au nombrerdquo Por certo Deleuze introduz jaacute aqui as noccedilotildees de

atual e virtual das quais nos ocuparemos apenas mais adiante

106

qual se distinguem Poderemos aplicar a mesma loacutegica a estados de consciecircncia Imaginaacute-

los como corpos impenetraacuteveis uns aos outros destacando-se de um fundo temporal no

qual sucederiam Segundo Bergson fazecirc-lo suporia conceber o tempo como um meio

indefinido e homogecircneo isto eacute como ldquole fantocircme de lrsquoespace obseacutedant la conscience

reacutefleacutechierdquo (BERGSON 2001 p 6774)

Esta seria uma ideia demasiadamente superficial da duraccedilatildeo que no entanto

permite a Bergson enunciar desde logo ainda hipoteticamente duas concepccedilotildees possiacuteveis

de duraccedilatildeo a pura e a impura A primeira define-se como ldquola forme que prend la

succession de nos eacutetats de conscience quand notre moi se laisse vivre quand il srsquoabstient

drsquoeacutetablir une seacuteparation entre lrsquoeacutetat preacutesent et les eacutetats anteacuterieursrdquo (BERGSON 2001 p

6774-75) isto eacute ela se define pela experiecircncia concreta da duraccedilatildeo ndash o profundo sentir

escoar do tempo mas tambeacutem pela continuidade indivisiacutevel entre o que nos representamos

como estados psiacutequicos Que nosso eu se deixe viver ndash para perseguir a foacutermula

bergsoniana agrave la lettre ndash isso implica uma suspensatildeo da representaccedilatildeo o esforccedilo vigoroso

solicitado por uma consciecircncia que se torna ldquoela mesmardquo pura interioridade na

contracorrente da inteligecircncia analiacutetica enfim esforccedilo vigoroso em eximir-se de justapor

partes como quem apreende uma melodia como um todo contiacutenuo natildeo como um

acumulado de notas e tempos

Uma frase musical equivale agrave duraccedilatildeo da consciecircncia na medida em que pode ser

apreendida como um todo contiacutenuo se partes haacute penetraram-se fundiram-se no sentido do

todo ndash sentido qualitativo que seria alterado em sua natureza natildeo soacute em caso de adiccedilatildeo ou

subtraccedilatildeo de uma das partes mas em todo caso de anaacutelise compreendida como clara

distinccedilatildeo entre partes A inadequaccedilatildeo entre representaccedilatildeo e a sucessatildeo duracional de

estados psiacutequicos origina-se segundo Bergson em uma certa obsessatildeo pela inteligecircncia Eacute

possiacutevel que adoeccedilamos de representaccedilatildeo projetando toda duraccedilatildeo no espaccedilo converte-se

a sucessatildeo em simultaneidade ao contraacuterio de apreender o movimento real e profundo do

durar Como o fundo antropoloacutegico de Les Deux Sources sugeriraacute adiante a doenccedila de que

sofre o homem eacute segundo Lapoujade (2010 p 89) ldquosa normaliteacute mecircme Ce dont il

souffre crsquoest de son intelligence et des lsquorepreacutesentations du reacuteelrsquo qursquoelle impose agrave son

attentionrdquo

A duraccedilatildeo para Bergson pode assumir a imagem de uma frase musical apreendida

em sua integralidade ndash o que supotildee a conservaccedilatildeo e portanto certo niacutevel de memoacuteria deste

todo ndash retenccedilatildeo que jaacute natildeo eacute aprisionada pela representaccedilatildeo espacial como justaposiccedilatildeo ou

simultaneidade como ocorria agraves multiplicidades numeacutericas mas como sucessatildeo pura

107

percebida pela consciecircncia Ele natildeo cessaraacute de retornar a essa imagem musical da duraccedilatildeo

que tatildeo bem se harmoniza em um todo de sentido que acompanha o desenvolvimento de

uma linha meloacutedica em continuidade e heterogeneidade E porque uma melodia natildeo

poderia ser apreendida por uma representaccedilatildeo espacial Porque se em uma partitura

podemos inscrever os signos que nos remetem a certas notas e tempos que compotildeem

como partes no espaccedilo o desenvolvimento de uma linha meloacutedica esta natildeo passaraacute da

projeccedilatildeo espacializada e desnaturada dessa linha que soacute pode efetuar-se na duraccedilatildeo

Mesmo os ritmos as intensidades puras de uma muacutesica soacute podem ser apreendidos pela

experiecircncia simpaacutetica o que significariam nas partituras mesmas as infinitas variaccedilotildees de

allegro ndash como molto allegro allegro vivace allegro moderato allegro pesante ou allegro

maestoso Sabemos que entre eles se passam variaccedilotildees qualitativas mas somos incapazes

de compreender um andamento por meios simboacutelicos por mais vivamente que eles nos

possam sugeri-lo A partitura pode ser o mapa de uma canccedilatildeo mas natildeo pode ser mais que

seu mapa o fluxo duracional contiacutenuo que a efetuaccedilatildeo de uma linha meloacutedica requer para

constituir por muacutetua penetraccedilatildeo um todo de sentido eacute-lhe irredutiacutevel Haveria mais

profundamente que um Bergson matemaacutetico um Bergson muacutesico como uma intuitiva

variaccedilatildeo um Bergson chansonnier

Isso permite definir natildeo apenas a distinccedilatildeo entre duraccedilatildeo concreta (sucessatildeo sem

exterioridade) e tempo homogecircneo sobredeterminado por sua representaccedilatildeo no espaccedilo

(exterioridade sem sucessatildeo) mas chegar ao impasse do movimento o ponto culminante

da argumentaccedilatildeo de Bergson sobre a realidade e o sentido da duraccedilatildeo Aplicando a ele o

procedimento de divisatildeo do misto eacute possiacutevel notar que a experiecircncia da mobilidade

integra-se por uma componente espacial ndash cada uma das posiccedilotildees sucessivas que um moacutevel

ocupa no espaccedilo ndash e outra duracional ldquola sensation absolument indivisible de mouvement

ou de mobiliteacuterdquo (BERGSON 2001 p 7583) como a que experimentamos ao percebermos

subitamente uma estrela cadente Assim o movimento eacute um misto composto de espaccedilo

percorrido e ato de percorrer sucessivas posiccedilotildees

Os sofismas da escola de Eleia teriam surgido precisamente da confusatildeo das duas

componentes o que leva Zenatildeo a recompor os passos de Aquiles com os da tartaruga

embaralhar as escalas de movimentos simples e indivisiacuteveis desdobrando-os

matematicamente no espaccedilo instituindo desse modo um dos mais antigos paradoxos da

histoacuteria da filosofia A matemaacutetica ou qualquer outra forma de representaccedilatildeo por

simultaneidades por apreender o movimento exclusivamente por paradas imaginaacuterias ndash

afinal o moacutevel natildeo se deteacutem realmente em cada ponto do espaccedilo em que percorre mas

108

passa sem jamais parar ndash deixa de apreender o essencial do movimento para rebatecirc-lo

sobre uma simultaneidade de instantes igualmente imaginaacuterios que natildeo acidentalmente

possuem todas as caracteriacutesticas dos corpos materiais satildeo mutuamente impenetraacuteveis e

ocupam lugares diferentes no espaccedilo o que implica uma apreensatildeo simultacircnea desdobrada

no espaccedilo e natildeo sucessiva como totalidade indivisiacutevel Trata-se pois de uma

multiplicidade com exterioridade reciacuteproca e sem sucessatildeo tal como ocorreria com coisas

no espaccedilo Se Zenatildeo pode supor paradas imaginaacuterias de um moacutevel que passa sem jamais se

deter de fato em instante ou lugar algum eacute devido agrave espacializaccedilatildeo e agrave loacutegica de

simultaneidades implicada no proacuteprio ato de anaacutelise do ato do movimento que resulta em

desnaturar a mobilidade em trajetoacuteria descrita e o ato do movimento como ocorrido em

uma representaccedilatildeo espacial do tempo ora tatildeo vazio e homogecircneo quanto o espaccedilo

Natildeo nos enganemos esse tempo vazio homogecircneo e sem qualidades natildeo eacute apenas

o tempo de Zenatildeo mas tambeacutem a ciecircncia natildeo pode passar-se de um tempo que se limita a

contar simultaneidades como contamos a passagem do tempo segundo a mediccedilatildeo espacial

do deslocamento dos ponteiros de um reloacutegio70

Por essa razatildeo toda a mecacircnica precisa

erigir-se sobre um sistema referencial que para definir o tempo exige a simultaneidade de

intervalos de tempo iguais tanto no movimento uniforme quanto no movimento variado

Como distinguir movimento e duraccedilatildeo de suas simbolizaccedilotildees O que permite

distinguir por exemplo o movimento da linha que o moacutevel que o executa descreve no

espaccedilo Tanto a duraccedilatildeo quanto o movimento apresentam-se agrave nossa consciecircncia como

progressos sempre em vias de formaccedilatildeo pois movimento e duraccedilatildeo satildeo siacutenteses mentais

natildeo coisas natildeo eacute possiacutevel assimilar a duraccedilatildeo ndash multiplicidade heterogecircnea indistinta e

dessemelhante para com o nuacutemero ndash ao espaccedilo que comporta apenas multiplicidades

distintas (BERGSON 2001 p 8089) de maneira tal que a duraccedilatildeo implica multiplicidade

sem quantidade que soacute conteacutem o nuacutemero em potecircncia

Essa multiplicidade existe vive e dura como pura sucessatildeo sem exterioridade de

partes organizando-se penetrando-se formando uma continuidade indivisa que se

enriquece e muda agrave medida em que a experiecircncia se acumula na profundidade do eu

podendo a todo momento refratar-se no ponto em que nosso eu toca o mundo exterior de

forma superficial ela se modifica e desnatura ao traduzir-se em linguagem71

Enfim a vida

70

ldquo[] la science nrsquoopegravere sur le temps et le mouvement qursquoagrave la condition drsquoen eacuteliminer drsquoabord lrsquoeacutelement

essentiel et qualitatif ndash du temps la dureacutee et du mouvement la mobiliteacuterdquo (BERGSON 2001 p 7786) 71

ldquo[] toute sensation se modifie en se reacutepeacutetant et [] si elle ne me paraicirct pas changer du jour au lendemain

crsquoest parce que je lrsquoaperccedilois maintenant agrave travers lrsquoobjet qui en est cause agrave travers le mot qui la traduitrdquo

(BERGSON 2001 p 8798)

109

do proacuteprio sentimento que se desenvolve organicamente e muda sem cessar deve-se agrave

continuidade da duraccedilatildeo que conserva a chave da proacutepria liberdade e cujos momentos se

penetram e fundem em um todo de sentido Da mesma forma haacute uma vida obscura das

ideias e Bergson (2001 p 89100) admite que natildeo raro nos apegamos agravequelas que

podemos explicar com mais dificuldade

O espaccedilo que aplicado agrave vida da duraccedilatildeo ndash seu ser e seu sentido ndash a desnatura em

siacutembolos todavia natildeo constitui pura negatividade Uma vez que os animais provavelmente

natildeo representam como os homens Bergson entrevecirc na intuiccedilatildeo do espaccedilo homogecircneo uma

espeacutecie de preparaccedilatildeo para a vida social coalescente no Essai com o olhar avaliador

impessoal e afeto ao inerte analiacutetico do eu superficial Esta tendecircncia pela qual nos

representamos distintamente a exterioridade das coisas e a homogeneidade do meio

espacial em que se situam ldquoest la mecircme qui nous porte agrave vivre en commun et agrave parlerrdquo

(BERGSON 2001 p 91103) deve estar relacionada portanto agraves proacuteprias condiccedilotildees do

viver-junto Bergson observa que quanto mais completamente se realizem as condiccedilotildees da

vida social mais o eu superficial esconde o primeiro e mais e mais os estados que antes se

penetravam na profundidade iacutentima da consciecircncia satildeo exteriorizados e transformados em

representaccedilotildees distintas separados de noacutes Nessa medida o inumeraacutevel em profundidade ndash

que Lapoujade (2010 p 39) denomina ldquoun nombre confus ou obscur de la dureacuteerdquo ndash

conteacutem o nuacutemero em potecircncia nuacutemero efetuado por intermeacutedio da representaccedilatildeo O que

finalmente a representaccedilatildeo o siacutembolo a inteligecircncia e ndash para dizecirc-lo em uma soacute palavra ndash

a intervenccedilatildeo do espaccedilo na pura duraccedilatildeo separa de noacutes eacute o acesso agrave realidade da duraccedilatildeo

em profundidade acesso a esse niacutevel de nosso eu que corresponde a ldquocelui qui sent et se

passionne celui qui deacutelibegravere et se deacutecide [] une force dont les eacutetats et modifications se

peneacutetrent intimement []rdquo (BERGSON 2001 p 8393) e que jaacute natildeo mede a duraccedilatildeo mas

a sente sede subjetiva da liberdade

Dito isso pudemos compreender que a realidade e o todo de sentido do tempo que a

duraccedilatildeo implica decorrem de uma experiecircncia interior concreta apenas ela em primeiro

momento pode franquear-nos o acesso agrave duraccedilatildeo como totalidade orgacircnica jamais

totalizaacutevel pois aberta agrave sucessatildeo e agrave penetraccedilatildeo reciacuteproca que a enriquece continuamente

na fusatildeo de ldquomille sensations sentiments ou ideacuteesrdquo (BERGSON 2001 p 1513)

Se pudemos demonstrar a realidade e o sentido do tempo a partir do conceito de

duraccedilatildeo desprendida diretamente de uma experiecircncia interior cujo esforccedilo de ascese

Bergson natildeo cessa solicitar agrave consciecircncia eacute preciso amplificar essas conclusotildees em dois

110

pontos ao mesmo tempo em que avanccedilamos a anaacutelise na direccedilatildeo da passagem do ser

presente ao ser do passado O primeiro deles diz respeito ao estatuto marcadamente

presente da temporalidade desvelada pela experiecircncia concreta de duraccedilatildeo seria preciso

descobrir no ser presente e na atualidade que ela implica o ser do passado ainda que

momentaneamente dado como siacutentese interior a uma consciecircncia Por outro lado o

segundo ponto de ampliaccedilatildeo diz respeito ao estatuto psicoloacutegico da experiecircncia da

duraccedilatildeo Ao produzir uma distinccedilatildeo tatildeo precisa entre multiplicidades quantitativa e

qualitativa numeacuterica e natildeo numeacuterica e enfim entre tempo e espaccedilo eacute natural pensar que

Bergson exige uma consciecircncia preacutevia agrave constituiccedilatildeo da experiecircncia concreta ndash quando em

tudo trata-se justamente do inverso

sect 3 DO SER PRESENTE AO SER DO PASSADO

Em tudo o que dissemos sobre a duraccedilatildeo como experiecircncia psicoloacutegica pudemos

discernir dois tipos de multiplicidades uma numeacuterica outra natildeo numeacuterica Para

compreender como a experiecircncia duracional assinala jaacute uma passagem do ser presente ao

ser do passado ndash ainda que permaneccedilamos por ora no campo das siacutenteses da consciecircncia ndash

eacute necessaacuterio retomarmos dois tipos de conservaccedilatildeo que ocorrem uma no campo das

multiplicidades numeacutericas envolvendo objetos atuais e outra no das multiplicidades natildeo

numeacutericas envolvendo o virtual

Retornemos ao que Bergson explica sobre o mais simples ato de contar Viacuteamos

nesse sentido que uma tal siacutentese soacute eacute possiacutevel se supusermos uma consciecircncia que se

representa unidades precariamente indivisiacuteveis e absolutamente semelhantes dispostas no

espaccedilo de maneira descontiacutenua no entanto essa siacutentese mental natildeo pode reduzir-se a uma

repeticcedilatildeo nua das unidades caso contraacuterio seria impossiacutevel derivar o nuacutemero de uma soma

de unidades Para que isso seja factiacutevel eacute preciso representar as unidades como uma

multiplicidade simultacircnea e justapondo todas as unidades contemporaneamente no espaccedilo

efetuar a siacutentese que pela retenccedilatildeo de todas essas unidades pode apreendecirc-las de uma soacute

vez

Algo aparentemente semelhante parece operar no seio da duraccedilatildeo mas com

caracteriacutesticas que demonstramos serem absolutamente diferentes a organizaccedilatildeo de

estados de consciecircncia afecccedilotildees sensaccedilotildees colorantes ou musicais supotildeem igualmente

uma consciecircncia que jaacute natildeo efetua uma siacutentese mas opera deixando um instante penetrar

111

no outro indefinidamente estamos portanto diante do sentido sempre em vias de

formaccedilatildeo de uma multiplicidade de fusatildeo o que nos coloca frente a frente com o misteacuterio

de sua continuidade Percebemos facilmente que as multiplicidades numeacutericas satildeo

definidas pelas diferenccedilas de grau a adiccedilatildeo a subtraccedilatildeo e as siacutenteses representativas

envolvidas em uma mudanccedila de nuacutemero natildeo alteram sua natureza intimamente divisiacutevel

Entre uma unidade e outra continua a haver uma diferenccedila de grau que poderia sem

dificuldades ser resumida em uma diferenccedila na posiccedilatildeo que cada unidade ocupa no

espaccedilo o que implicaria sua justaposiccedilatildeo e simultaneidade Contudo o que assegura a

continuidade das multiplicidades qualitativas e sua compenetraccedilatildeo reciacuteproca em que toda

miacutenima variaccedilatildeo acarreta uma diferenccedila de natureza ndash vale dizer ndash uma alteraccedilatildeo

diferencial da curvatura da integral que a definiria

Eacute na obscura noccedilatildeo de continuidade que pela primeira vez viraacute inserir-se uma

necessaacuteria conexatildeo entre duraccedilatildeo e memoacuteria um dos conceitos que forjam o fio diretor da

presente pesquisa Talvez jaacute seja possiacutevel pressentir na ideia de continuidade da duraccedilatildeo a

necessidade de uma espeacutecie de memoacuteria ldquoil srsquoen faut que tous les eacutetats de conscience

viennent se mecircler agrave leur congeacutenegraveres comme des gouttes de pluie agrave lrsquoeau drsquoun eacutetangrdquo

escreve Bergson (2001 p 110-111125) A continuidade implica que o lago como a

duraccedilatildeo se acumule continuamente e amplie-se ao fundir-se no conjunto

Assim como eacute necessaacuterio reter unidades para contaacute-las e o fazemos jaacute no espaccedilo

natildeo seria preciso conservar os estados aniacutemicos anteriores como que agraves costas do

movimento invenciacutevel da sucessatildeo em direccedilatildeo ao devir Caso contraacuterio a ideia de

sucessatildeo passaria a ser para noacutes exclusivamente uma tediosa repeticcedilatildeo do presente como

apreenderiacuteamos uma frase musical ou a profundidade de um sentimento sem supor que a

continuidade implica jaacute uma ligaccedilatildeo entre presente e passado como registros da

realidade Mas se o conservamos seraacute da mesma forma como contamos justapondo

estados de consciecircncia no espaccedilo

Nada do que dissemos antes e no limite nenhum texto de Bergson autoriza uma

tal interpretaccedilatildeo Isso implicaria supor a existecircncia dos estados de consciecircncia como

corpos materiais impenetraacuteveis uns aos outros quando se trata precisamente de evitar

representaacute-los como desdobrando-se lado a lado em um tempo vazio homogecircneo e sem

qualidades ndash que finalmente natildeo passaria de uma representaccedilatildeo bastarda da duraccedilatildeo real

que apraz agrave inteligecircncia e agrave utilidade De uma perspectiva global todo o movimento de

paulatina suspensatildeo da representaccedilatildeo e da inteligecircncia nos dois primeiros capiacutetulos do

Essai tende a este limite conceber uma continuidade independente de coordenadas

112

espaciais apreendida conservada e integrada em uma totalidade movente de sentido

definida por sua abertura agrave sucessatildeo por um lado e dizendo respeito exclusivamente agrave

duraccedilatildeo que lhe serve de esteio imanente por outro

Se quisermos aproveitar a forccedila imageacutetica do exemplo da frase musical proposta

por Bergson concluiremos prontamente pela impossibilidade de justaposiccedilatildeo para

apreensatildeo de totalidades contiacutenuas de qualidades intensivas ou de diferenccedilas de natureza

Como Freacutedeacuteric Worms bem observa ao lado de uma passividade do espiacuterito que constitui

o iacutendice de receptividade da sensaccedilatildeo uma vez suspenso o ato de representaccedilatildeo deve

surgir um novo sujeito em profundidade paradoxalmente pessoal e impessoal capaz de um

ato de retenccedilatildeo que opera ldquoa passagem de uma passividade ou de um efeito sensiacutevel a

outrordquo (WORMS 2011 p 71) Decerto uma diferenccedila abissal persiste entre ouvir uma

nova nota que distinguimos claramente por um esforccedilo de anaacutelise e apreendecirc-la no

conjunto indivisiacutevel de uma melodia Neste caso ldquoa nota natildeo eacute somente lsquopassadarsquo ela

passou nas outras notas natildeo ocorreu apenas uma sucessatildeo mas uma continuaccedilatildeo uma

conservaccedilatildeo e uma integraccedilatildeordquo que se produziram no tempo e natildeo como ldquoconstruccedilotildees

abstratas de uma consciecircncia reflexa (ou de um pensamento exterior a seu conteuacutedo) uma

vez que impotildeem seu efeito a seu conteuacutedo mesmo como um sentido imanente ou uma

unidade indivisiacutevelrdquo (WORMS 2011 loc cit) Nesse aspecto Worms eacute ainda uma vez

categoacuterico ao afirmar que este ato de conservaccedilatildeo ldquoparece evocar a memoacuteriardquo (Idem

ibidem loc cit) A noccedilatildeo de continuidade interna agrave definiccedilatildeo de duraccedilatildeo permite-nos

dizer como vimos que nesse caso evocar a memoacuteria significa jaacute forccedilosamente

pressupocirc-la

Natildeo por outra razatildeo Gilles Deleuze tenderaacute a enxergar na continuidade implicada

pela duraccedilatildeo a imagem da memoacuteria ldquoLa dureacutee est essentiellement meacutemoire conscience

liberteacute Et elle est conscience et liberteacute parce qursquoelle est drsquoabord meacutemoirerdquo (DELEUZE

1966 p 45) A foacutermula deleuziana nesse aspecto natildeo poderia dar testemunho mais fiel do

bergsonismo Confirmando a adequaccedilatildeo da interpretaccedilatildeo deleuziana Bergson implicaraacute

mais claramente duraccedilatildeo e memoacuteria em LrsquoEacutenergie Spirituelle (1919) ldquoToute conscience

est donc meacutemoire ndash conservation et accumulation du passeacute dans le preacutesentrdquo (BERGSON

2001 p 81805) No entanto natildeo seria preciso ir tatildeo longe jaacute em 1896 em Matiegravere et

Meacutemoire era possiacutevel ler ldquoBref la meacutemoire sous ces deux formes en tant qursquoelle

recouvre drsquoune nappe de souvernirs un fond de perception immeacutediate et tant aussi qursquoelle

contracte une multipliciteacute de moments []rdquo (BERGSON 2001 p 18431) Da mesma

forma Vladimir Jankeacuteleacutevitch definia a memoacuteria natildeo como a obstinaccedilatildeo de nossas

113

experiecircncias em sobreviverem a si mesmas mas a partir da continuidade e da penetraccedilatildeo

muacutetua dos estados psicoloacutegicos ldquoelle est ce qui continue les uns agrave travers les autres les

innombrables contenus dont lrsquoensemble forme agrave tout moment lrsquoeacutetat actuel de notre

personne inteacuterieurerdquo (JANKEacuteLEacuteVITCH 2008 p 07)

Eis o que poderia bastar para comprovar que desde o Essai nem tudo se reduz ao

atual e ao presente na ideia de duraccedilatildeo embora a entrada bergsoniana pela pesquisa das

sensaccedilotildees arriscasse em princiacutepio iludir-nos do contraacuterio Descobrir o fundo mnemocircnico

no signo da continuidade da duraccedilatildeo coloca-nos de suacutebito na perspectiva da transiccedilatildeo

ontoloacutegica entre ser presente e ser do passado Natildeo se pode construiacute-la adequadamente no

entanto sem compreender de que modo nosso eu toca a superfiacutecie do real ou como

Bergson prefere colocar o problema que serve de pedra de toque agrave escritura de Matiegravere et

Meacutemoire como se daacute ldquoa relaccedilatildeo do corpo com o espiacuteritordquo Trata-se de saber se poderemos

tambeacutem aiacute descobrir uma passagem entre ser presente (atual) e ser do passado (virtual)

Eis a questatildeo pela qual se deve orientar o proacuteximo segmento de nossa pesquisa

Desde as primeiras linhas de Matiegravere et Meacutemoire engendra-se um movimento

conceitual que define um campo povoado de exterioridades onde tudo parece comeccedilar em

absoluto Como um duplo do gesto do Essai que solicitava um vigoroso esforccedilo agrave

consciecircncia para abolir tudo exceto sua interioridade suspendendo as representaccedilotildees

desde o iniacutecio de seu livro de 1896 Bergson pede que finjamos nada conhecer sobre as

teorias da mateacuteria e do espiacuterito Essa suspensatildeo implica afinar ingenuidade e intuiccedilatildeo que

natildeo estatildeo mais voltadas aos estados de consciecircncia mas abrem-se sobre um campo infinito

de imagens que digamos logo constitui em Bergson o todo do universo72

ldquoEacute preciso olhar

[] como se fosse a primeira vezrdquo (PRADO JUacuteNIOR 1989 p 136)

De seu turno Freacutedeacuteric Worms natildeo hesita em afirmar que o primeiro capiacutetulo de

Matiegravere et Meacutemoire ldquoDe la seacutelection des images pour la repreacutesentation du corpsrdquo funda-se

sobre um princiacutepio duplo de imanecircncia e diferenccedila ldquoimanecircncia (ou pertenccedila) das imagens

percebidas agrave realidade do mundo diferenccedila (de aspecto ou de forma devida a nossas

necessidades ou a nossa accedilatildeo) entre as imagens percebidas e a realidade do mundordquo

(WORMS 2011 p 135) Todavia para conjugar a imanecircncia das imagens e a diferenccedila

72

Seguimos nesse aspecto a interpretaccedilatildeo de Prado Juacutenior (1989 p 117) sobre a passagem do Essai a

Matiegravere et Meacutemoire como uma passagem do interno ao externo ldquoO Essai isolava a consciecircncia de toda

exterioridade para captar-lhe a duraccedilatildeo interna mostrando nela o selo da liberdade Mas a descoberta ficava

limitada agrave esfera que lhe servia de horizonte a subjetividade humana finita Agora eacute necessaacuterio ampliar o

campo da Presenccedila para aleacutem dos estreitos limites da presenccedila interna e verificar o modo de inserccedilatildeo da

liberdade no interior do serrdquo

114

que a percepccedilatildeo engendra eacute preciso antes de tudo gerar ndash natildeo um sujeito portador da

consciecircncia mas o genuiacuteno sujeito do campo transcendental bergsoniano o corpo73

Bergson propotildee a suspensatildeo do intelecto ao mesmo tempo em que reorienta a

intuiccedilatildeo do interno na direccedilatildeo do externo ndash natildeo passariacuteamos tambeacutem aqui do psicoloacutegico

em direccedilatildeo ao ontoloacutegico Momentaneamente com Bento Prado Juacutenior jaacute podemos

pressenti-lo ldquoA passagem da psicologia agrave metafiacutesica eacute uma passagem do lsquointeriorrsquo ao

lsquoexteriorrsquo que ao mesmo tempo elimina a oposiccedilatildeo absoluta entre os dois termos

fazendo-os nascer de uma familiaridade mais profundardquo (PRADO JUacuteNIOR 1989 p 119)

Com essa suspensatildeo dos conceitos preacute-formados e com a reorientaccedilatildeo de nossa tensatildeo para

o fora tudo o que Bergson eacute capaz de constatar logo se transforma em uma surpreendente

descriccedilatildeo do universo em termos de imagens ldquoMe voici donc en preacutesence drsquoimages au

sens plus vague ougrave lrsquoon puisse prendre ce mot images perccedilues quand jrsquoouvre mes sens

inaperccedilus quand je les fermerdquo (BERGSON 2001 p 16911)

Desenvolvendo esse olhar exterior que permite compreender o universo como um

conjunto de imagens eacute possiacutevel perceber a dinacircmica que parece envolvecirc-las

indistintamente ldquoToutes ces images agissent et reacuteagissent les unes sur les autres dans

toutes leurs parties eacuteleacutementaires selon des lois constantes []rdquo (BERGSON 2001 p

16911) Uma dentre essas imagens destaca-se do conjunto embora tenha sua gecircnese nele

ldquoce que je ne la connais pas seulement du dehors par des perceptions mais aussi du dedans

par des affections crsquoest mon corpsrdquo (Idem ibidem loc cit) e passando em revista a cada

uma de suas afecccedilotildees eacute possiacutevel perceber que provenientes de estiacutemulos de fora elas

contecircm como que convites a agir sobre certa regiatildeo do real das imagens Isso implicaraacute que

se todas as imagens exteriores parecem submeter-se homogeneamente agraves leis da natureza

de tal forma que agindo umas sobre as outras nada de novo acrescentariam no mundo o

corpo-imagem bergsoniano percebido do interior por meio de afecccedilotildees sensaccedilotildees

sentimentos e lembranccedilas como o modelo de outros corpos-imagens aparece ao mesmo

tempo como centro de accedilatildeo sobre as demais imagens e a um soacute tempo como centro de

indeterminaccedilatildeo74

Se as afecccedilotildees e sensaccedilotildees percepcionadas nada mais satildeo do que accedilotildees e reaccedilotildees

internas a esse conjunto de imagens tudo o que compotildee um corpo ndash dos nervos aferentes

73

ldquoNatildeo haacute outro sujeito senatildeo o corpordquo afirma Worms (2011 p 145) ao tratar da gecircnese da percepccedilatildeo em

Bergson 74

ldquoTout se passe comme si dans cet ensemble drsquoimages que jrsquoappelle lrsquounivers rien ne se pourrait produire

de reacuteellement nouveau que par lrsquointermeacutediaire de certaines images particulieacuteres dont le type mrsquo est fourni

par mon corpsrdquo (BERGSON 2001 p 17012)

115

ao ceacuterebro como centros organizados de accedilatildeo e indeterminaccedilatildeo ndash bem como tudo o que

vindo de fora produz nele uma afecccedilatildeo constituem partes integrantes do conjunto de

imagens do universo75

Nessa medida se interpretamos este corpo-imagem como um

centro de accedilatildeo sobre as demais imagens compreenderemos a sua singularidade pragmaacutetica

(WORMS 1997 p 21) incapaz de fazer nascer uma representaccedilatildeo como desdobramento

ideal do entorno de imagens Talvez seja importante perceber que Bergson utiliza a noccedilatildeo

de imagem ndash algo que seria menos que uma coisa e mais que uma representaccedilatildeo ndash

justamente a fim de assinalar que esse campo transcendental constitui-se sem sujeito ou

objeto ndash objeto para um sujeito A realidade das imagens tomada no princiacutepio do campo

transcendental designa apenas potenciais de um corpo-imagem e das imagens que fazem

parte de seu mundo circundante ao mesmo tempo em que o integram em sua estrutura

imanente de realidade

Apenas em meio a esse universo de imagens eacute que se poderaacute distinguir o proacuteprio

corpo sua singularidade sensiacutevel eacute o que conservaraacute uma percepccedilatildeo em potecircncia na

medida em que o corpo constitui uma imagem que banhada de outras imagens difere

delas em grau na medida em que natildeo se o conhece exclusivamente de fora Eacute apenas nesse

niacutevel que um corpo-imagem pode ser considerado centro de um sistema mais abrangente

de imagens Natildeo haacute representaccedilatildeo outrossim porque na medida em que o corpo integra o

universo de imagens natildeo haacute qualquer desdobramento de realidade Por isso do ponto de

vista loacutegico o ceacuterebro natildeo pode ser a sede de representaccedilotildees do mundo afinal o que a

hipoacutetese inicial das imagens deseja eacute obstruir toda duplicaccedilatildeo eacute manter-se fiel agrave imanecircncia

de uma soacute estrutura de realidade composta por imagens76

Eacute certo que Bergson observa as

imagens transmitirem movimentos de uma a outra das imagens exteriores ao corpo-

imagem sendo impossiacutevel supor que haja mais nesse corpo ndash seja uma representaccedilatildeo de

uma imagem com a qual natildeo tem contato ou mesmo uma representaccedilatildeo do todo ndash do que

aquilo que constitui o conteuacutedo imediato desse corpo as modificaccedilotildees produzidas pelas

images environnantes e aquilo que o corpo-imagem lhes devolve em termos de

movimentos

75

ldquoMon corps est donc dans lrsquoensemble du monde mateacuteriel une image qui agit comme les autres images

recevant et rendant du mouvement avec cette seule diffeacuterence peut-ecirctre que mon corps paraicirct choisir dans

une certaine mesure la maniegravere de rendre ce qursquoil reccediloitrdquo (BERGSON 2001 p 17114) e ainda ldquoMon

corps objet destineacute agrave mouvoir des objets est donc un centre drsquoactionrdquo (BERGSON 2001 p 17214) ldquoO

corpo eacute uma imagem como as outrasrdquo atesta Worms (2011 p 140) 76

ldquoIl faut donc extirper tout de suite [] le vice logique de la thegravese des savants parce qursquoelle implique une

thegravese ontologique ou meacutetaphysique celle de lrsquoexistence drsquoun deuxiegraveme niveau de realiteacute [] celui de la

reacutepresentationrdquo (WORMS 1997 p 27)

116

Logo se percebe que o corpo eacute passivo e ativo sensoacuterio e motor Na medida em que

haacute universo de imagens exteriores corpo-imagem ndash compreendido como imagem que

experimento por dentro ndash e uma seacuterie de imagens particulares decalcadas do universo

exterior por esse corpo-imagem veremos que interveacutem um terceiro conjunto um conjunto

de imagens particulares em razatildeo de seu contato com o corpo Ainda aqui natildeo haacute nenhuma

interioridade representaccedilatildeo ou desdobramento do real universo de imagens corpo-

imagem e conjunto particular de imagens para um corpo pertencem a uma soacute estrutura de

realidade Notamos outrossim que eacute a accedilatildeo de um corpo sobre as imagens que o rodeiam

e nas quais ele incessantemente se banha que orienta certa ldquopercepccedilatildeordquo o fato de que

certo conjunto de imagens eacute para um corpo um conjunto particular recortado do todo de

imagens Contudo natildeo se produz uma gecircnese adequada da percepccedilatildeo sem saber como ela

estaacute ligada a essa destinaccedilatildeo praacutetica do corpo

Tomando-os no campo transcendental viacuteamos que eacute a accedilatildeo e certo grau de

indeterminaccedilatildeo orgacircnica ndash que introduz o novo ndash que permite afirmar certa situaccedilatildeo

privilegiada do corpo em relaccedilatildeo agraves outras imagens Nesse sentido Bergson deduz a

relaccedilatildeo entre corpo e universo de imagens definida simbolicamente por um conjunto

particular de imagens decalcado do todo das muacuteltiplas vias de accedilatildeo possiacuteveis para um

corpo77

Tais possiacuteveis escapam agrave determinaccedilatildeo riacutegida da influecircncia das outras imagens

mas relacionam-se imediatamente agrave accedilatildeo real Com efeito o corpo decide entre vaacuterios

procedimentos materialmente possiacuteveis e esta decisatildeo eacute orientada pelas necessidades

praacuteticas e vantagens que esse corpo-imagem pode obter das imagens que o circundam

responde portanto agrave utilidade e agrave vida desenhando uma relaccedilatildeo pragmaacutetica entre corpo e

imagens circundantes78

Contudo como um corpo poderia fazecirc-lo sem jaacute se representar

esses possiacuteveis Como imagens sugerem vantagens a um corpo A vantagem ou a utilidade

praacutetica eacute decalcada das imagens circundantes pelo corpo ao passo em que tais imagens as

desenham superficialmente sobre a face que elas voltam para um corpo-imagem como se

emitissem signos que adquirissem para ele um sentido vital Os desenhos superficiais

desses potenciais de accedilatildeo adquirem um sentido que natildeo revela a totalidade da relaccedilotildees de

um dado corpo no universo de imagens de que participa mas prefiguram objetivamente um

ponto de vista que o enriquece e que o faz tomar parte em um conjunto particular de

77

ldquo[] si mon corps est un objet capable drsquoexercer une action reeacutelle et nouvelle sur les objets qui lrsquoentourent

il doit occuper vis-agrave-vis drsquoeux une situation privileacutegieacuteerdquo (BERGSON 2001 p 17214-15) 78

Freacutedeacuteric Worms (1997 p 31) reforccedila essa relaccedilatildeo entre os possiacuteveis da accedilatildeo e a utilidade vital ldquo[] ces

possibles ne sont pas des possibles abstraits ils sont rapporteacutes agrave lrsquoaction crsquoest-agrave-dire agrave la vie et au besoin et

non au choix purrdquo

117

imagens Poreacutem como esse conjunto de imagens ldquointeressantesrdquo objetos para um corpo

ao passo em que estaacute sujeito agrave sua accedilatildeo se desenha como tal Natildeo encontrariacuteamos aqui

uma evocaccedilatildeo da proacutepria percepccedilatildeo como conjunto de objetos para um corpo decalcado do

campo transcendental

Os signos que certa imagem interessante emite satildeo variaacuteveis em relaccedilatildeo ao corpo

Bergson observa que essa variaccedilatildeo se deve sobretudo agrave variaccedilatildeo de uma relaccedilatildeo de

distacircncia que acontece na pura exterioridade79

Eis o que permite entrever o primado que o

bergsonismo concede agrave relaccedilatildeo de distacircncia a um soacute tempo espacial e pragmaacutetica em

relaccedilatildeo aos objetos sobre toda qualidade sensiacutevel Ao mesmo tempo em que as qualidades

sensiacuteveis variam em funccedilatildeo da distacircncia ldquoassegurando os objetos contra a accedilatildeo imediata

de meu corpordquo os objetos que cercam esse corpo refletiriam a sua accedilatildeo possiacutevel sobre eles

Por essa razatildeo haveria uma relaccedilatildeo de correspondecircncia simboacutelica entre corpo e um

conjunto particular de imagens circundantes que Worms (1997 p 33) resume na imagem

de um ldquoreflet sans regardrdquo na falta de um sujeito desse corpo-a-corpo entre imagens que

natildeo eacute mais que uma relaccedilatildeo de exterioridade pura ldquocomme si lrsquoobjet de la vision en

preacuteceacutedait le sujetrdquo e no entanto tudo o que vimos designa um universo jaacute organizado pela

accedilatildeo do corpo Todavia resta explicar como as coisas podem por si mesmas adquirir um

sentido

Isso se deve agrave correspondecircncia real entre os movimentos concretos que ocorrem no

sistema nervoso e a exterioridade das coisas Eacute preciso provar que a sede da percepccedilatildeo eacute

mais o universo de imagens que o interior de um corpo que tanto o decalque das imagens

pelo recorte perceptivo operado no universo de imagens como o reflexo que as imagens

que o circundam oferecem de suas accedilotildees possiacuteveis pertence ao proacuteprio campo de imagens

Trata-se enfim de precisar o lugar da percepccedilatildeo na realidade A experiecircncia pela qual

Bergson procura demonstraacute-lo eacute a do corte de nervos aferentes do sistema ceacuterebro-

espinhal suprimindo assim a percepccedilatildeo Para compreender o que se passou

reconsideremos os trecircs sistemas de imagens universo conjunto de imagens circundantes e

corpo-imagem Cada um deles permanece o que era antes A uacutenica diferenccedila estaacute no fato

de que a ligaccedilatildeo entre corpo e mundo foi seccionada isto eacute jaacute natildeo eacute possiacutevel a um corpo

decalcar por meio do sistema sensoacuterio-motor os movimentos ocorram eles em qualquer

regiatildeo do universo de imagens Por essa razatildeo Bergson (2001 p 17316) conclui que isso

79

ldquo[] jrsquoobserve que la dimension la forme la couleur mecircme des objets exteacuterieurs se modifient selon que

mon corps srsquoen approche ou srsquoen eacuteloigne [] que cette distance elle-mecircme repreacutesente surtout la meacutesure dans

laquelle les corps environnants sont assureacutes en qualque sorte contre lrsquoaction immeacutediate de mon corpsrdquo

(BERGSON 2001 p 17215)

118

soacute pode significar que a percepccedilatildeo traccedila no conjunto de imagens ldquocomo uma sombra ou

um reflexordquo as accedilotildees possiacuteveis de um corpo Eis o que permitiraacute definir a mateacuteria

provisoriamente como ldquolrsquoensemble drsquoimagesrdquo e a percepccedilatildeo como ldquoces mecircmes images

rapporteacutees agrave lrsquoaction possible drsquoune certaine image determineacute mon corpsrdquo (BERGSON

2001 p 17317) Isso natildeo apenas prova a existecircncia independente das imagens em relaccedilatildeo

agrave toda percepccedilatildeo consciente mas permite deduzir que a percepccedilatildeo eacute funccedilatildeo das imagens

de seus movimentos reais enfim da mateacuteria

Se pudemos compreender a gecircnese da percepccedilatildeo no universo de imagens e em que

medida os movimentos reais satildeo efetivamente percepcionados fizemo-lo como um estaacutegio

necessaacuterio para entrever a passagem entre ser presente e ser do passado na proacutepria

percepccedilatildeo Ateacute aqui brindamo-nos com uma percepccedilatildeo impessoal natildeo-subjetiva e

correspondente aos movimentos materiais A fim de encontrar no campo perceptivo o

ponto mais claro em que vem inserir-se a memoacuteria eacute indispensaacutevel que compreendamos a

gecircnese da consciecircncia isto eacute eacute preciso investigar se e como as imagens podem dar conta

de uma percepccedilatildeo consciente Conveacutem lembrar que realizamos com Bergson o

contramovimento do Essai vamos do exterior ao interior a fim de compreender como uma

memoacuteria pode introduzir-se nas percepccedilotildees mais imediatas naquilo que parece mais atual

e dessa forma favorecer a passagem que visamos a construir do atual em direccedilatildeo ao

virtual nos sucessivos cruzamentos entre registros psicoloacutegico e ontoloacutegico

Pode-se adiantar que para engendrar a consciecircncia de um campo de imagens

Bergson precisaraacute deduzir toda experiecircncia sensorial da accedilatildeo do corpo pela mediccedilatildeo do

ceacuterebro ndash que natildeo a produz ndash fazendo intervir uma teoria da percepccedilatildeo pura (WORMS

1997 p 37)

De tudo o que viacuteamos especialmente da experiecircncia do corte de nervos aferentes

do sistema ceacuterebro-espinhal eacute possiacutevel deduzir que o ceacuterebro e tal sistema permanecem

materiais constituem como partes integrantes do corpo-imagem tambeacutem eles imagens e

desempenham uma funccedilatildeo de mediaccedilatildeo entre os movimentos da mateacuteria e a accedilatildeo possiacutevel

de nosso corpo sobre ela o que designa a percepccedilatildeo Eacute possiacutevel perceber ainda que essa

funccedilatildeo mediadora origina uma seleccedilatildeo possiacutevel que daacute ao corpo um conjunto de imagens

circundantes sobre o qual ele poderia agir o que implica reconhecer que a accedilatildeo organiza a

seleccedilatildeo das imagens e de consequecircncia a proacutepria percepccedilatildeo Nesse patamar Bergson

adianta uma tese de LrsquoEacutevolution Creacuteatrice afirmando que entre os extremos da seacuterie

animal o sistema nervoso seraacute construiacutedo a fim de engendrar a indeterminaccedilatildeo da accedilatildeo e

119

inibir o automatismo80

Se a percepccedilatildeo estaacute fundada neste sistema orientado para a accedilatildeo

seria possiacutevel estender essa hipoacutetese agrave percepccedilatildeo ndash percebemos a fim de agir e agimos

com um grau cada vez maior de indeterminaccedilatildeo Dela Bergson deduziraacute a necessidade de

uma percepccedilatildeo consciente

No iniacutecio da seacuterie animal perceberemos que a percepccedilatildeo reduz-se a um simples

contato ao qual se segue imediatamente uma resposta organizada quase como um impulso

mecacircnico que mimetizasse na mateacuteria organizada as accedilotildees e reaccedilotildees de imagens materiais

umas sobre as outras contudo agrave medida em que a indeterminaccedilatildeo insere-se entre contato-

excitaccedilatildeo e accedilatildeo do corpo correspondente a reaccedilatildeo torna-se mais incerta dando mais lugar

agrave hesitaccedilatildeo e aumentando o intervalo entre a accedilatildeo possiacutevel do animal e os objetos

interessantes com efeito os sentidos permitem ir cada vez mais longe Por isso Bergson

(2001 p 18329) escreveraacute que ldquola perception dispose de lrsquoespace dans lrsquoexacte

proportion ougrave lrsquoaction dispose du tempsrdquo isto eacute a percepccedilatildeo se amplifica agrave razatildeo direta do

tempo de hesitaccedilatildeo que a indeterminaccedilatildeo injeta entre estiacutemulo e accedilatildeo Contudo como essa

indeterminaccedilatildeo deveraacute implicar consciecircncia e por que a consciecircncia parece nascer dos

movimentos interiores do ceacuterebro Eis o momento em que a teoria da percepccedilatildeo pura deve

interferir

Em primeiro lugar Bergson a admite como uma simplificaccedilatildeo das condiccedilotildees da

percepccedilatildeo consciente pois segundo ele ldquoEn fait il nrsquoy a pas de perception qui ne soit

impregneacutee de souvenirsrdquo (BERGSON 2001 p 18330) eles definem os milhares de

detalhes de nossa experiecircncia passada que vem misturar-se agrave percepccedilatildeo de uma imagem

atual Sem por ora extrair daiacute todas as consequecircncias conveacutem observar que isso permite

entrever de imediato uma necessaacuteria passagem entre ser presente e ser do passado no seio

da experiecircncia real de uma percepccedilatildeo consciente da mesma forma permite destacar as

lembranccedilas que aiacute intervecircm de certo fundo psicoloacutegico Em segundo lugar por meio dessa

hipoacutetese ideal da percepccedilatildeo pura e impessoal Bergson deseja mostrar que ela estaacute na base

de nosso conhecimento das coisas ao mesmo tempo em que evitaria confundir percepccedilatildeo e

lembranccedila como fenocircmenos que comportariam apenas uma diferenccedila de grau como se a

lembranccedila fosse uma percepccedilatildeo de menor intensidade Se Bergson insiste em ver aqui uma

diferenccedila de natureza eacute por utilizar o estratagema da percepccedilatildeo pura para dividir um misto

da experiecircncia concreta a percepccedilatildeo consciente que nos faraacute retornar sobre a perspectiva

de uma continuidade dos estados conscientes Para compreendecirc-lo dinamicamente e a fim

80

ldquo[] le systhegraveme nerveux est construit drsquoun bout agrave lrsquoautre de la seacuterie animale en vue drsquoune action de

moins en moins neacutecessaire []rdquo (BERGSON 2001 p 18127)

120

de que possamos perceber como a memoacuteria se insere em uma percepccedilatildeo instantacircnea

atenhamos-nos por um momento agrave experiecircncia concreta de uma percepccedilatildeo consciente ao

misto indiferenciado de objetividade e subjetividade que ela supotildee ldquoSi court qursquoon

suppose une perception en effet elle occupe toujours une certaine dureacutee et exige par

conseacutequent un effort de la meacutemoire qui prolonge les uns dans les autres une pluraliteacute de

moments Mecircme [] la lsquosubjectiviteacutersquo de qualiteacutes sensibles consiste surtout dans une espegravece

de contraction du reacuteel opereacutee par notre meacutemoirerdquo (BERGSON 2001 p 18430-31)

Reencontramos na experiecircncia concreta da percepccedilatildeo consciente um misto de duraccedilatildeo e

espaccedilo de mateacuteria e memoacuteria e uma continuidade de penetraccedilatildeo entre um momento e

outro isto eacute algo que evoca duas formas de memoacuteria as lembranccedilas que recobrem uma

percepccedilatildeo imediata e a memoacuteria como contraccedilatildeo de uma multiplicidade de momentos que

fundam ldquoa subjetividade das qualidades sensiacuteveisrdquo A memoacuteria e a subjetividade

encontram-se natildeo em uma interioridade qualquer mas nessa espessura de duraccedilatildeo

irredutiacutevel a um instante que haacute pouco nomeaacutevamos continuidade ndash prova de que

Bergson permanece ainda no mesmo universo de imagens inicialmente dado

Retornemos agora agrave hipoacutetese da percepccedilatildeo pura ciosos de seu valor esquemaacutetico

Com ela Bergson toca o proacuteprio conceito de real aprofundando o sentido do termo

imagem Dado um universo de imagens entre as quais um corpo o real eacute definido antes

pelo potencial das accedilotildees reciacuteprocas entre corpo-imagem e universo de imagens que pelo

conjunto especiacutefico Vimos ainda que esse potencial de accedilatildeo varia em funccedilatildeo das

distacircncias entre corpo e universo de imagens entre imagem-centro e a definiccedilatildeo variaacutevel

das imagens em sua periferia Em razatildeo de ser-nos imediatamente impossiacutevel agir sobre

certa imagem ndash distante demais de nosso corpo logo ausente do recorte que desenha nosso

potencial de accedilatildeo sobre as coisas cujas superfiacutecies emanam seus reflexos ndash isso significa

apenas que esta imagem existindo realmente deixou de ser efetivamente percebida Ela

permanece presente sem ser percebida ao passo em que sobre ela natildeo somos capazes de

nenhum potencial de accedilatildeo imediato No entanto se nosso corpo banhado por imagens

caminhar em sua direccedilatildeo diminuir a distacircncia relativa que o separa dela subitamente ela

passaria a existir para ele e talvez a interessaacute-lo Se tomarmos esse corpo-imagem

banhado de imagens como referecircncia diremos que a accedilatildeo potencial em relaccedilatildeo a certo

conjunto de imagens define objetos para esse corpo Com isso percebemos que o atual

condiz com a efetuaccedilatildeo desse potencial de accedilatildeo que transforma uma imagem em uma

percepccedilatildeo que reflete um potencial de accedilatildeo cuja contiacutenua variaccedilatildeo corresponde agraves

variaccedilotildees qualitativas desse corpo De outro lado ao compreendermos que o real natildeo

121

depende da percepccedilatildeo mas estaacute dado na existecircncia da imagem aquelas que natildeo integram o

recorte interessante sobre cujas superfiacutecies natildeo se desenha qualquer potencial de accedilatildeo de

meu corpo teraacute em relaccedilatildeo a ele uma realidade virtual que consiste em ser sem serem

atualmente percebidas Eis um importante registro de uma ontologia do virtual que

Bergson resume em foacutermulas muito breves81

e que por forccedila de uma analogia

desencadearaacute em relaccedilatildeo agrave memoacuteria uma seacuterie de consequecircncias metafiacutesicas que natildeo nos

cabe adiantar

Verifiquemos em que consiste a diferenccedila entre ser e ser percebido De um ponto

de vista loacutegico Bergson pode antecipar que haacute mais em ser que em ser percebido de tal

forma que a representaccedilatildeo comporta uma diminuiccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave imagem Caso

contraacuterio a passagem entre ser e ser percebido nas condiccedilotildees de um campo transcendental

tal como Bergson o supotildee se tornaria senatildeo impossiacutevel misteriosa Sua explicaccedilatildeo sobre a

dinacircmica dessa diminuiccedilatildeo demanda que tomemos uma imagem pela qual nos

interessamos vivamente Olhando-a no conjunto vemo-la como uma imagem solidaacuteria agrave

totalidade das imagens ora se continuando em algumas ora se prolongando outras No

entanto para representaacute-la para nos interessarmos por ela como operamos Recortamo-la

do conjunto abolindo sua solidariedade contiacutenua para com outras imagens materiais assim

como se podem produzir quadros no cinema82

Dela conservamos apenas ldquola croucircte

exteacuterieure la pellicule superficiellerdquo (BERGSON 2001 p 18633) suprimindo o que a

antecede o que a segue mas tambeacutem seu conteuacutedo isolando seu invoacutelucro por meio do

obscurecimento de seu entorno A representaccedilatildeo designa este resiacuteduo o que resta quando

esvaziamos uma imagem devido a nossas necessidades e funccedilotildees Daiacute porque natildeo haveria

diferenccedila de natureza mas apenas de grau para as imagens entre o fato de simplesmente

ldquoseremrdquo e o de serem conscientemente percebidas ndash uma imagem soacute seraacute atual ou virtual

na medida em que acentuamos o papel do corpo na seleccedilatildeo das imagens e no que respeita

agrave mateacuteria exclusivamente em relaccedilatildeo a ele83

81

ldquoIl est vrai qursquoune image peut ecirctre sans ecirctre perccedilue elle peut ecirctre preacutesente sans ecirctre repreacutesenteacutee et la

distance entre ces deux termes preacutesence et repreacutesentation paraicirct justement mesurer lrsquointervalle entre la

matiegravere elle-mecircme et la perception consciente que nous en avonsrdquo (BERGSON 2001 p 18532) 82

Embora Bergson utilize a metaacutefora do quadro natildeo emprega a do enquadramento no cinema ela nos parece

adequada sobretudo no sentido em que Deleuze a utiliza em seus livros sobre cinema reconhecidamente

inspirados no bergsonismo a fim de esclarecer o conceito de quadro ou enquadramento como um recorte

perceptivo de um universo de imagens Sobre este aspecto conferir Lrsquoimage-mouvement cineacutema 1

(DELEUZE 1983 p 23-45) 83

Eacute precisamente isto o que Deleuze (1966 p 50) assinala no que denomina ldquoa diferenccedila entre ser e ser uacutetilrdquo

(percebido) ldquo[] dans ce cas lrsquoecirctre est seulement celui de la matiegravere ou de lrsquoobjet perccedilu donc un ecirctre

preacutesent qui nrsquoa pas agrave se distinguer de lrsquoutile autrement qursquoen degreacuteerdquo

122

Se imaginaacutessemos portanto uma percepccedilatildeo inconsciente e outra consciente de uma

imagem material deveriacuteamos afirmar que a primeira por natildeo eliminar todas as relaccedilotildees da

imagem no seio contiacutenuo das imagens que conformam a mateacuteria eacute mais vasta que a

percepccedilatildeo consciente que discerne distingue e elimina visando agrave utilidade e agrave necessidade

vital que se do ponto de vista do conhecimento adequado do real implica revestir toda

representaccedilatildeo de negatividade do ponto de vista pragmaacutetico perfaz uma escolha positiva

A explicaccedilatildeo de Bergson (2001 p 19139) funda-se na dependecircncia entre ceacuterebro e

imagem como funccedilatildeo de ldquolrsquoindeacutetermination du vouloirrdquo Diziacuteamos haacute pouco que o sistema

nervoso composto pelo conjunto formado pelo ceacuterebro e suas vias de recepccedilatildeo e resposta

exerce uma funccedilatildeo mediadora entre as imagens do universo e um corpo essa funccedilatildeo estaacute

intimamente vinculada ao movimento que liga as imagens umas agraves outras na exterioridade

de forma tal que sua funccedilatildeo eacute transmitir distribuir ou inibir movimentos84

Com efeito

quando um desses fios mediadores eacute cortado a percepccedilatildeo eacute diminuiacuteda e com ela pode-se

dizer que tambeacutem os movimentos que um certo corpo pode produzir em virtude de

estiacutemulos eacute reduzido pelo menos em funccedilatildeo de uma impossibilidade de coordenaacute-los dada

a ausecircncia ou diminuiccedilatildeo da percepccedilatildeo de certos movimentos Isso eacute o que autoriza a

compreender o sistema nervoso como um sistema sensoacuterio-motor ele natildeo apenas

transmite distribui e inibe movimentos mas constitui o centro de indeterminaccedilatildeo dos

movimentos do proacuteprio corpo que integra eacute nesse centro que ldquoles perceptions naissent et

que les actions se preparentrdquo (BERGSON 2001 p 19646)

Tudo isso equivale a dizer que a correspondecircncia que identificaacutevamos entre

configuraccedilatildeo motora do sistema nervoso e percepccedilatildeo exterior daacute-se entre imagens de

mesma natureza (ceacuterebro e imagem exterior) tambeacutem que as percepccedilotildees conscientes se

formam ali onde estaacute a imagem em sua superfiacutecie Se isto for verdade embora perceptos e

afetos possam misturar-se na experiecircncia concreta percepccedilotildees natildeo podem confundir-se

com afecccedilotildees Enquanto vimos que as percepccedilotildees se efetuam em relaccedilatildeo ao corpo

agenciado com a imagem mas fora dele as afecccedilotildees satildeo produzidas em um ponto

determinado de um corpo derivadas de um misto entre corpo e imagens exteriores85

E no

84

Bergson assinala a correspondecircncia entre configuraccedilotildees motrizes do ceacuterebro e percepccedilatildeo exterior

deixando entrever a funccedilatildeo eletiva dos centros de indeterminaccedilatildeo ldquo[] comme la structure du cerveau donne

le plan minutieux des mouvements entre lesquels vous avez le choix comme drsquoun autre cocircteacute la portion des

images exteacuterieurs qui paraicirct revenir sur elle-mecircme pour constituer la perception dessine justement tous les

points de lrsquounivers sur lesquels ces mouvements auraient prise perception consciente et modification

ceacutereacutebrale se correspondent rigoureusementrdquo (BERGSON 2001 p 190-19139) 85

ldquo[] ma perception est en dehors de mon corps et mon affection au contraire dans mon corpsrdquo

(BERGSON 2001 p 205-20658) e ainda logo adiante ldquoLrsquoaffection est [] ce que nous mecirclons de

123

entanto as afecccedilotildees tambeacutem surgem das imagens como contato entre imagens extensas

expostas agraves forccedilas do meio que ameaccedilam desagregaacute-las Se a percepccedilatildeo era funccedilatildeo da accedilatildeo

potencial de um corpo sobre certo conjunto de imagens recortados do universo material em

dois sentidos ndash como nosso corpo pode agir sobre as coisas mas tambeacutem como as coisas

podem agir sobre ele ndash a distacircncia entre corpo e imagens definia a iminecircncia de

atualizaccedilatildeo desse potencial de accedilatildeo Se corpo e imagem entram em contato a distacircncia

entre as superfiacutecies dos corpos anula-se e a accedilatildeo virtual tende a atualizar-se por uma

coincidecircncia extensa entre corpo e objeto Daiacute porque dizer que a percepccedilatildeo eacute exterior e a

afecccedilatildeo interior ao corpo natildeo sendo mais que o esforccedilo do corpo-imagem sobre si mesmo

Com efeito quando a superfiacutecie do corpo toca a superfiacutecie do objeto supomos percebecirc-lo

quando na verdade uma afecccedilatildeo vem misturar-se agrave percepccedilatildeo como uma impureza

Todo esse longo desvio teria nos dado esquematicamente a teoria da percepccedilatildeo

pura sua divisatildeo em relaccedilatildeo agraves afecccedilotildees bem como uma ideia de consciecircncia derivada dos

corpos vivos considerados como centros de indeterminaccedilatildeo ndash ou como Bergson talvez por

comodidade muitas vezes se expresse ldquovontaderdquo86

Impessoal ela se limitaria por

enquanto a ligar ldquopar le fil continu de la meacutemoirerdquo uma seacuterie de visotildees instantacircneas

dadas pela percepccedilatildeo pura que tanto faria parte das coisas como dos corpos orgacircnicos que

as percebem (BERGSON 2001 p 21267) Segundo essa perspectiva os corpos vivos

receberiam excitaccedilotildees elaborariam reaccedilotildees imprevisiacuteveis por meio de uma escolha que

embora indeterminada natildeo se afigura por isso arbitraacuteria ou caprichosa afinal seria

inspirada em experiecircncias passadas de situaccedilotildees anaacutelogas agrave atualmente percebida

ldquoLrsquoindeacutetermination des actes agrave accomplir exige donc pour ne pas se confondre avec le pur

caprice la conservation des images perccediluesrdquo (BERGSON 2001 p 21367) e portanto

implicaria uma espeacutecie de memoacuteria na ausecircncia da qual perderiacuteamos segundo Bergson

todo poder de dispor do futuro

Por isso retornando agrave direccedilatildeo da experiecircncia concreta que nos doava a percepccedilatildeo

de um objeto atual fundindo-se em milhares e milhares de lembranccedilas sensaccedilotildees e

lrsquointerieur de notre corps agrave lrsquoimage des corps exteacuterieurs elle est ce qursquoil faut extraire drsquoabord de la perception

pour retrouver la pureteacute de lrsquoimagerdquo (BERGSON 2001 p 20659) 86

Como Deleuze (1966 p 47-48) observa com propriedade natildeo se trata de compreender nesse estaacutegio da

pesquisa bergsoniana uma consciecircncia psicoloacutegica e pessoal mas uma consciecircncia coextensiva aos corpos

orgacircnicos e impessoal que oferece uma ldquolinha de subjetividaderdquo que introduziraacute a duraccedilatildeo ao lado da ldquolinha

objetivardquo que corresponde agrave extensatildeo agraves imagens e ao corpo-imagem Segundo Deleuze ambas as linhas agraves

quais correspondem lembranccedila e percepccedilatildeo subjetivo e objetivo bem como o seu cruzamento na afecccedilatildeo

resultariam da divisatildeo do misto que a representaccedilatildeo implica No entanto no estaacutegio da divisatildeo do misto

trata-se de linhas puras que natildeo devem ser embaralhadas

124

sentimentos conveacutem notar que uma tal descriccedilatildeo suporaacute a conservaccedilatildeo das imagens

passadas misturando-se agrave percepccedilatildeo presente na medida da utilidade que lhe suscita a

vivecircncia atual de situaccedilotildees anaacutelogas87

Eacute nessa medida que uma lembranccedila se atualizaria

por um chamado agrave utilidade no presente de tal forma que perceber tornar-se-ia uma

ldquooportunidade de lembrarrdquo Percepccedilatildeo e lembranccedila natildeo cessam de interpenetrarem-se e

fundirem-se na experiecircncia concreta por isso a teoria da percepccedilatildeo pura natildeo passa de uma

hipoacutetese ou de um esquema para dividir o misto precisando a existecircncia de uma diferenccedila

de natureza e natildeo apenas de grau entre percepccedilatildeo e lembranccedila ou exprimindo essa

diferenccedila de natureza em outras palavras eacute preciso evitar compreender a lembranccedila como

uma percepccedilatildeo enfraquecida quando eacute claramente inadequado explicar um conceito pelo

outro pelo simples fato de misturarem-se na experiecircncia concreta

Um dos grandes perigos da confusatildeo de que Bergson (2001 p 21470)

prontamente adverte eacute viciar a teoria da memoacuteria ignorando a diferenccedila entre presente e

passado que embora tenham igualmente realidade como veremos teriam mantida esta

ilusatildeo seus registros embaralhados ao infinito88

No fundo o que a teoria da percepccedilatildeo

pura pretendia estabelecer era a radical diferenccedila de natureza entre percepccedilatildeo e lembranccedila

de tal forma que a realidade pudesse ser ldquotocada penetrada e vividardquo sem construccedilotildees ou

reconstruccedilotildees efetuadas pelo espiacuterito Entretanto na realidade nunca haacute percepccedilatildeo pura

absolutamente imediata porque o instantacircneo que ela supotildee abstratamente para tornar-se

eficaz e tocar as superfiacutecies das coisas mesmas jamais existe como tal isto eacute sempre ocupa

uma duraccedilatildeo cuja continuidade engendra segundo o fio da memoacuteria a subjetividade e a

consciecircncia que faz penetrar essas sucessotildees em um todo contiacutenuo Assim ldquo[] il nrsquoy a

jamais pour nous drsquoinstantaneacute Dans ce que nous appelons de ce nom entre deacutejagrave un travail

de notre meacutemoire et par conseacutequent de notre conscience []rdquo (BERGSON 2001 p 216-

217 72)

Sempre misturada a ela na experiecircncia concreta a memoacuteria eacute praticamente

inseparaacutevel portanto da percepccedilatildeo Ateacute aqui sua funccedilatildeo eacute a de realizar uma passagem

entre o passado e o presente a memoacuteria ldquointercale le passeacute dans le preacutesent contract aussi

dans une intuition unique des moments multiples de la dureacutee et ainsi par sa double

87

Sobre a funccedilatildeo pragmaacutetica da conservaccedilatildeo das imagens passadas Bergson (2001 p 21368) afirma

sinteticamente que ldquoelles ne se conservent que pour se rendrent utiles agrave tout instant elles compleacutetent

lrsquoexpeacuterience preacutesente en lrsquoenrichissant de lrsquoexpeacuterience acquiserdquo e a um soacute tempo esta se acumula e cresce

sem cessar 88

Por essa razatildeo Bergson nos previne ldquoMais cette illusion en recouvre encore une autre qui srsquoeacutetend agrave la

theacuteorie de la connaissance en geacuteneacuteral [] Lrsquoactualiteacute de notre perception consist donc dans son activiteacute

dans les mouvements qui la prolongent et non dans sa plus grande intensiteacute le passeacute nrsquoest qursquoideacutee le preacutesent

est ideacuteo-moteurrdquo (BERGSON 2001 p 21571)

125

opeacuteration est cause qursquoen fait nous percevons dans la matiegravere en nous alors qursquoen droit

nous la percevons en ellerdquo (BERGSON 2001 p 219-22076) Isto significa que a memoacuteria

comunica agrave percepccedilatildeo seu caraacuteter subjetivo espiritual cuja realidade precisamos ainda

que brevemente demonstrar

126

CAPIacuteTULO 5 ndash MEMOacuteRIA FUNDAMENTO DO TEMPO

Falaacutevamos da existecircncia de certo procedimento de construccedilatildeo de passagens entre

psicologia e ontologia no bergsonismo como se Bergson esburacasse um campo a fim de

aceder ao outro mostrando entre eles uma obscura coextensatildeo Os uacuteltimos segmentos

conceituais permitiram abrir pela via psicoloacutegica um acesso agrave duraccedilatildeo real e logo aos

primeiros problemas de uma ontologia realizando o contramovimento abrimos por um

cruzamento entre psicologia e ontologia uma via na qual se engendrou o esquema da

percepccedilatildeo pura a passagem entre ser presente e ser do passado o que nos conduziu a

colocar-nos precisamente a questatildeo da realidade da memoacuteria

A fim de nos mantermos leais a Bergson natildeo podemos abandonar o campo

transcendental tampouco o gesto de absoluta imanecircncia exigido por ele A hipoacutetese central

deste capiacutetulo ndash que tende a problematizar brevemente a realidade virtual da memoacuteria ndash eacute a

de que em Bergson a memoacuteria natildeo pode reduzir-se agraves lembranccedilas de natureza

psicoloacutegica haveria consequecircncias mais amplas envolvidas pelo conceito como uma

memoacuteria ontoloacutegica que eacute o fundamento do desenrolar do tempo89

Em siacutentese a memoacuteria

eacute o que faz o presente passar e nessa medida ela seria mesmo por extensatildeo loacutegica o

fundamento do devir Finalmente tratar-se-aacute de conciliar memoacuteria e duraccedilatildeo solucionando

o problema que nos potildeem alguns textos de Bergson sobre o pluralismo ou o monismo da

concepccedilatildeo de duraccedilatildeo tomada agora segundo uma perspectiva mais ampla para aleacutem da

duraccedilatildeo meramente psicoloacutegica Enfim tudo se resume agrave demonstraccedilatildeo da existecircncia de

uma memoacuteria ontoloacutegica coalescente ao conceito de duraccedilatildeo contemporacircnea ao presente

a fim de deduzir daiacute a impossibilidade de reduzir em Bergson memoacuteria agrave memoacuteria

psicoloacutegica pessoal90

Comecemos por demonstrar a realidade da memoacuteria acompanhando

89

Nesse ponto nossa hipoacutetese tenderaacute a demonstrar a afirmaccedilatildeo que consta igualmente em Le Bergsonisme

de Gilles Deleuze (1966 p 55) bem como na passagem da segunda siacutentese do tempo de Diffeacuterence et

Reacutepeacutetition em que Deleuze (2006 p 124) evocando Bergson afirma ldquoO fundamento do tempo eacute a Memoacuteria

[] a Memoacuteria eacute a siacutentese fundamental do tempo que constitui o ser do passado (o que faz passar o

presente)rdquo 90

Essa reduccedilatildeo eacute o motor declarado da criacutetica que Maurice Halbwachs antigo aluno de Bergson e disciacutepulo

de Durkheim endereccedilava ao bergsonismo em Les Cadres Sociaux de la Meacutemoire (HALBWACHS 1994) e

ulteriormente em La Meacutemoire Collective (Idem 1997) a fim de estabelecer um fundamento social para a

memoacuteria individual ao contraacuterio de deduzir ndash como teria feito Bergson segundo este seu ceacutelebre leitor ndash a

memoacuteria social da individual Embora natildeo convenha que nos ocupemos aqui detalhadamente desta longa e

proliacutefica polecircmica eacute interessante anotar que Worms (2011 p 172) a soluciona no interior da proacutepria obra de

Bergson entrevendo no dualismo da memoacuteria que Bergson desenvolveraacute nos capiacutetulos centrais de Matiegravere et

Meacutemoire a individualidade da lembranccedila pura em seu conteuacutedo global com a unicidade de um

acontecimento em uma vida como ligada agrave passagem do tempo ldquoCom efeito para se lembrar do individual

Bergson eacute o primeiro a mostrar que se tem necessidade de um auxiliar presente pragmaacutetico socialrdquo E

127

os principais desenvolvimentos dos capiacutetulos centrais de Matiegravere et Meacutemoire a fim de

chegar agrave sua consistecircncia virtual

sect 1 O PROBLEMA DO RECONHECIMENTO

O CEacuteREBRO E AS DUAS MEMOacuteRIAS

Jaacute se afirmou que os dois capiacutetulos centrais de Matiegravere et Meacutemoire formam uma

unidade que natildeo admite interpretaccedilatildeo descontiacutenua91

Isso decorre do fato de que a

demonstraccedilatildeo da realidade da memoacuteria em sua consistecircncia virtual depende de um

dualismo mais profundo ao qual natildeo se pode aceder plenamente apenas com o conceito de

percepccedilatildeo pura Nesse sentido vimos que a percepccedilatildeo pura corresponde agrave realidade

espacial da mateacuteria povoando um registro de imagens em si mesmas atuais que natildeo

cessam de repetir-se no presente O movimento geral dos dois capiacutetulos centrais do livro de

Bergson tende a demonstrar dois tipos de reconhecimento que estatildeo em uacuteltima anaacutelise

fundados nesse dualismo a construir no proacuteprio seio da memoacuteria a fim de completar a

descriccedilatildeo do papel do ceacuterebro com relaccedilatildeo ao reconhecimento de imagens bem como de

desconstruir a tese do paralelismo psicofiacutesico ndash que ao inveacutes de compreender a

solidariedade entre o ceacuterebro e o pensamento em seus proacuteprios termos deduziria uma

correspondecircncia mecacircnica entre estado psiacutequico e estado cerebral ocultando consciente

ou inconscientemente teses metafiacutesicas (BERGSON 2001 p 959-960188) O progresso

dessas anaacutelises das quais destacaremos mais o solo metafiacutesico que o epistecircmico ndash do qual

nos permitiremos extrair apenas o essencial para fundar os argumentos de Bergson ndash nos

levaraacute a seu tempo ao questionamento sobre a realidade do virtual sobre o modo de ser

especiacutefico da memoacuteria pura um dos termos revelados pelo dualismo bergsoniano

Com efeito os fenocircmenos de reconhecimento e uma seacuterie de patologias

relacionadas a ele satildeo tomados de empreacutestimo agraves descriccedilotildees dos estudiosos da fisiologia

do ceacuterebro de uma psicologia que no fim do seacuteculo XIX buscava afirmar-se como

ciecircncia mas tambeacutem da medicina formando o solo comum experimental para que Bergson

completa ldquo[] se haacute necessidade de uma ocasiatildeo presente fiacutesica ou social imagem ou relato natildeo se segue

que o conteuacutedo da lembranccedila seja individual psicoloacutegico e passado a lembranccedila ressuscita a individualidade

ou natildeo ressuscita nada eacute preciso tecirc-la vividordquo Embora natildeo seja esta nossa direccedilatildeo principal um obscuro

diaacutelogo com as premissas que Halbwachs extraiu da leitura de Bergson ndash sobretudo a da natureza

eminentemente psicoloacutegica da memoacuteria em sua obra ndash pode encontrar aqui um campo para seu

estabelecimento Eacute necessaacuterio sobretudo refazer o longo caminho do qual deriva essa sinteacutetica objeccedilatildeo que

lhe fizera Freacutedeacuteric Worms 91

ldquoIl est impossible drsquoenvisager seacutepareacutement les deux chapitres centraux de Matiegravere et Meacutemoirerdquo (WORMS

1997 p 91)

128

pudesse examinar concretamente suas teses valendo-se da interpretaccedilatildeo dessas

observaccedilotildees De nossa parte utilizaremos dessas descriccedilotildees apenas o que for necessaacuterio

para demonstrar a base experimental das distinccedilotildees operadas por Bergson afinal a

experiecircncia concreta aqui natildeo eacute senatildeo um instrumento para demonstrar uma tese

ontoloacutegica que ocupa o coraccedilatildeo de Matiegravere et Meacutemoire a da realidade virtual da memoacuteria

a discussatildeo de sua conservaccedilatildeo em si e sua principal distensatildeo o papel que ela

desempenha como fundamento do tempo que nos permite destituir as relaccedilotildees entre tempo

e instantacircneo retornando a um conceito de duraccedilatildeo ontologicamente ampliado

Para introduzir no seio da memoacuteria e de suas relaccedilotildees com o ceacuterebro um dualismo

que resulta do procedimento de divisatildeo do misto empiacuterico Bergson retoma algumas

conclusotildees do primeiro capiacutetulo e brinda-nos com o desenvolvimento de uma ideia de

corpo ainda pensada no campo transcendental mas agora desenvolvida sub specie

durationis O que vem a ser o corpo-imagem assim pensado Entre imagens o corpo natildeo

faz mais que identificar movimentos e transmiti-los mas tambeacutem recolhecirc-los e conservaacute-

los sob a forma de mecanismos motores que seratildeo determinados no caso de reaccedilotildees

involuntaacuterias a estiacutemulos ou escolhidos ndash em virtude do maior proveito pragmaacutetico e em

concorrecircncia com as lembranccedilas ndash no caso de accedilatildeo voluntaacuteria Bergson estaacute a descrever

uma forma de memoacuteria orgacircnica atuante no corpo-imagem que reuacutene essa seacuterie de

impressotildees na medida em que se produzem de tal modo que o corpo seraacute natildeo mais do que

um corte instantacircneo que praticamos no devir em geral (BERGSON 2001 p 22381) O

corpo corresponde a uma espeacutecie de uacuteltima imagem que pensada de direito constituiria o

limite ideal entre o futuro de nossas accedilotildees e o passado de nossas lembranccedilas Consistindo

desse ponto de vista em uma espeacutecie de corpo-limiar essa descriccedilatildeo do corpo-imagem

indicaria de antematildeo o papel que o ceacuterebro desempenha como mediador entre as

representaccedilotildees passadas de nosso organismo e um presente indubitavelmente real que

solicita a nossa accedilatildeo o corpo seria uma espeacutecie de uacuteltima imagem de uacuteltimo

prolongamento das representaccedilotildees em movimentos preparatoacuterios bem como primeiro

prolongamento destes em accedilotildees nascentes Sua hipoacutetese sobre a sobrevivecircncia das imagens

poderaacute ser entatildeo deduzida mediante a suposiccedilatildeo da destruiccedilatildeo dessa ligaccedilatildeo uma vez

cortada a conexatildeo orgacircnica entre nossas representaccedilotildees e o real permanecem no entanto

existentes o corpo-imagem e o universo de imagens no qual este se banha como natildeo

permaneceriam tambeacutem as imagens do passado As lesotildees cerebrais porque dizem

respeito ao elo entre lembranccedilas que podem ser chamadas a agir no presente e este mesmo

129

presente natildeo podem abolir nem as imagens do passado nem as do presente mas a

conexatildeo entre umas e outras isto eacute afetando um aparelho sensoacuterio-motor cujos

movimentos desenham accedilotildees nascentes possiacuteveis no espaccedilo natildeo se abole por completo

nem a linha de objetividade nem a de subjetividade nem as imagens atuais nem o que

podemos chamar precaacuteria e indistintamente de imagens do passado ou lembranccedilas Uma

conexatildeo que diz respeito ao corpo-imagem eacute abolida e isso eacute tudo

Essa descriccedilatildeo leva Bergson (2001 p 224-22582-83) a formular trecircs hipoacuteteses 1ordf)

Uma vez que o corte da conexatildeo implica aboliccedilatildeo natildeo das imagens do passado tampouco

da memoacuteria motora do corpo mas de sua capacidade de tornar essas imagens ndash lembranccedilas

ou motoras ndash eficazes seria possiacutevel dizer que o passado sobrevive de dois modos nos

mecanismos motores (memoacuteria do corpo) e em lembranccedilas independentes (memoacuteria pura)

2ordf) Com base nisso seria possiacutevel deduzir que o reconhecimento das imagens e sua

consequente utilizaccedilatildeo no presente deve efetuar-se tambeacutem de duas formas ora na proacutepria

accedilatildeo por movimentos quando emana do objeto ora no passado por representaccedilotildees

quando emana do sujeito 3ordf) A experiecircncia do corte da conexatildeo ou da lesatildeo cerebral nos

mostraria que se passa por graus insensiacuteveis das lembranccedilas dispostas ao longo do tempo

aos movimentos que desenham sua accedilatildeo possiacutevel no espaccedilo de tal forma que as lesotildees

atingem esses movimentos mas natildeo as lembranccedilas ndash sejam elas motoras ou imagens saiacutedas

do passado Percebe-se nesse sentido que a despeito de Bergson considerar a realidade

em si mesma da memoacuteria atraveacutes dessas proposiccedilotildees bem como a independecircncia de sua

existecircncia em relaccedilatildeo ao corpo sua formulaccedilatildeo permanece intrinsecamente fundada em

uma hipoacutetese bioloacutegica Na medida em que os mecanismos cerebrais constituem o uacuteltimo

prolongamento da seacuterie de nossas representaccedilotildees passadas e dessa forma as medeiam e

inserem na accedilatildeo presente basta cortar essa ligaccedilatildeo e ldquolrsquoimage passeacutee nrsquoest peut-ecirctre pas

deacutetruite mais vous lui enlevez tout moyen drsquoagir sur le reacuteel et par conseacutequent [] de se

reacutealiserrdquo (BERGSON 2001 p 22583) A primeira proposiccedilatildeo segundo a qual o passado

pode sobreviver distintamente em mecanismos motores e em lembranccedilas independentes

deve ser objeto de verificaccedilatildeo ndash seguindo sua tradicional forma de demonstraccedilatildeo pela

experiecircncia e de divisatildeo do concreto depurado de acordo com um dualismo

A descriccedilatildeo de Bergson apoia-se na experiecircncia do aprendizado de uma liccedilatildeo a fim

de compreender a persistecircncia de duas formas de memoacuteria que podemos adiantar

convencionaremos nomear ldquomemoacuteria do corpordquo e ldquomemoacuteria purardquo Ao estudar uma liccedilatildeo

um aluno organiza sua retenccedilatildeo progressivamente por meio de repeticcedilotildees pode analisaacute-la

130

dividi-la em partes escandi-la e como fruto de sucessivas leituras ele percebe que as

partes organizam-se cada vez melhor ateacute o ponto em que saberaacute suas liccedilotildees de cor

Se examinaacutessemos as fases implicadas no aprendizado dessa liccedilatildeo descobririacuteamos

que duas formas de memoacuteria agem em sua base Podemos compreender o aprendizado

como a realizaccedilatildeo de cada uma das sucessivas leituras de tal forma que cada leitura

manifestaraacute uma singularidade proacutepria como um acontecimento determinado em nossa

vida No entanto se aprendemos de cor ndash isto eacute pela repeticcedilatildeo de um esforccedilo de

decomposiccedilatildeo e recomposiccedilatildeo ndash transformamos a liccedilatildeo em um haacutebito Portanto o

primeiro tipo de memoacuteria realiza o registro imediato de um evento uacutenico irrepetiacutevel ou

ldquodatadordquo o acontecimento eacute registrado como uma leitura em particular apreendida em sua

singularidade proacutepria o segundo tipo de memoacuteria que transforma a liccedilatildeo em um haacutebito

desenha a apreensatildeo do todo por meio de uma accedilatildeo ou de um esforccedilo por ldquoimprimirrdquo a

liccedilatildeo na memoacuteria para poder revisitaacute-la quando bem quisermos de acordo com nossa

conveniecircncia ou com sua utilidade no segundo caso o haacutebito de memorizar uma liccedilatildeo

conforma-se segundo sua utilidade futura

Todavia que diferenccedila e sobretudo que tipo de diferenccedila poderiacuteamos descobrir

nessas memoacuterias Entre elas haveria uma mera diferenccedila de grau ou uma diferenccedila de

natureza Para respondecirc-lo encaminhando-nos um passo aleacutem na construccedilatildeo do dualismo

entre memoacuteria do corpo e memoacuteria pura seria preciso observar como se constituem haacutebito

(lembranccedila da liccedilatildeo) e lembranccedila (lembranccedila das leituras) A lembranccedila da leitura deve-se

a uma inscriccedilatildeo imediata do evento na duraccedilatildeo natildeo supotildee uma accedilatildeo mas um registro

duracional tal como registramos um acontecimento em nossas vidas imediatamente como

mera representaccedilatildeo trata-se portanto de uma lembranccedila menos impessoal que constitui

nossa histoacuteria passada segundo uma memoacuteria espontacircnea ou perfeita A lembranccedila da

liccedilatildeo sua transformaccedilatildeo em haacutebito exige por outro lado uma atitude um esforccedilo voltado

para accedilatildeo para o presente Natildeo se trata de uma memoacuteria de registro passiva que decorre

da inscriccedilatildeo de um acontecimento irrepetiacutevel na duraccedilatildeo mas eacute fundada na repeticcedilatildeo em

um investimento inteligente tornando uma seacuterie de movimentos coordenados passados em

um acuacutemulo presente motor Assim aprendemos a liccedilatildeo de cor natildeo basta repeti-la eacute

preciso reintegrar toda a seacuterie de repeticcedilotildees a fim de formar um todo de sentido e apreendecirc-

lo Trata-se de uma memoacuteria agida no presente vivida Quando aprendemos algo de cor

significa que tivemos de empreender o esforccedilo de substituir uma imagem espontacircnea

(memoacuteria pura) por uma motora (memoacuteria do corpo) (BERGSON 2001 p 23190-91)

131

Essas breves consideraccedilotildees tornam possiacutevel conceber duas memoacuterias teoricamente

distintas ldquoLa premieacutere enregistrerait sous forme drsquoimages souvenirs tous les eacuteveacutenements

de notre vie quotidienne agrave meacutesure qursquoils se deacuteroulentrdquo (BERGSON 2001 p 22786)

Memoacuteria perfeita de singularidades ela natildeo negligencia nenhum detalhe e atribui a cada

acontecimento seu lugar e data Ela se deveria de acordo com Bergson agrave necessidade

natural de tornar possiacutevel o reconhecimento inteligente de situaccedilotildees jaacute experimentadas

informando a accedilatildeo presente Poreacutem para isso ela tem de passar pelo corpo e encontrar

nele o seu derradeiro prolongamento aquele que a torna eficaz desenhando jaacute accedilotildees

nascentes no espaccedilo Nesse ponto encontramos a segunda forma de memoacuteria que se

caracteriza pela deposiccedilatildeo no corpo de uma seacuterie de mecanismos sensoacuterio-motores cujas

respostas e amplitude de estiacutemulo multiplicam-se agrave razatildeo direta do enriquecimento de

nossa experiecircncia vivida Eacute preciso lembrar poreacutem que esta consiste em uma experiecircncia

de ordem inteiramente distinta da primeira e no entanto implica uma memoacuteria de

natureza correspondentemente diversa ldquocette conscience de tout un passeacute drsquoefforts

emmagasineacute dans le preacutesent est bien encore une meacutemoire mais une meacutemoire

profondeacutement diffeacuterente de la premiegravere toujours tendue vers lrsquoaction assise dans le

preacutesent et ne regardant que lrsquoavenirrdquo (BERGSON 2001 p 22786)

Entre memoacuteria pura e memoacuteria do corpo verificamos existir portanto uma

diferenccedila de natureza natildeo de grau e seu criteacuterio praacutetico diferencial eacute o sentido em que se

opera o registro92

No caso da memoacuteria pura o registro se opera no sentido das

singularidades de nossa vida pessoal povoada de acontecimentos uacutenicos e faticamente

irrepetiacuteveis no fundo eacute a sua inscriccedilatildeo na duraccedilatildeo real que assegura sua irrepetibilidade

embora eventos similares sempre possam voltar a ocorrer no espaccedilo e talvez destaquem

uacutetil e excepcionalmente do fundo da memoacuteria pura uma lembranccedila que venha em seu

socorro93

No caso da memoacuteria do corpo haacute um registro mais excepcional ndash porque ativo ndash

decorrente do esforccedilo de repeticcedilatildeo voltado para a accedilatildeo ou para o presente de tal modo que

se depositam em mecanismos sensoacuterio-motores sob a forma de um acuacutemulo que constitui o

haacutebito Como as lembranccedilas aprendidas satildeo mais uacuteteis eacute natural repararmos mais nos

registros produzidos pela memoacuteria do corpo que naqueles frutos da memoacuteria pura

92

ldquo[] comment ne pas reconnaicirctre que la diffeacuterence est radicale entre ce qui doit se constituer par la

reacutepeacutetition et ce qui par essence ne peut se reacutepeacuteterrdquo pergunta-se Bergson (2001 p 22988) como iacutendice do

criteacuterio distintivo por natureza das duas memoacuterias 93

Bergson precisa a excepcionalidade do haacutebito em relaccedilatildeo ao registro passivo de singularidades na duraccedilatildeo

operada pela memoacuteria pura ldquoLes souvenirs qursquoon acquiert volontairement par reacutepetition sont rares

exceptionnels Au contraire lrsquoenregistrement par la meacutemoire de faits et drsquoimages en leurs genre se porsuit agrave

tous les moments de la dureacuteerdquo (BERGSON 2001 p 228-22988)

132

Entretanto essas definiccedilotildees reenviam a dois outros problemas primeiro o que justifica a

percepccedilatildeo e a formaccedilatildeo de haacutebitos motores Segundo como as lembranccedilas-imagens

entram nos esquemas da utilidade no presente Natildeo seriam elas intrinsecamente inuacuteteis

uma vez que os haacutebitos motores mostram-se suficientes agrave vida adaptada de qualquer

organismo94

Esses satildeo precisamente os problemas que se encontram por traacutes do

mecanismo do reconhecimento mas para compreendecirc-los eacute preciso voltar ao corpo e a seu

significado liminar

Quando pensado sub specie durationis Bergson dizia natildeo entrever no corpo-

imagem mais do que um limite movente entre passado e futuro Afinal tomado como

limiar duracional extenso o corpo-imagem natildeo pode consistir em nada aleacutem de uma

imagem atual banhada de outras imagens atuais e apreendida em uma representaccedilatildeo

instantacircnea Tomado como ponto de inserccedilatildeo no devir o corpo-imagem comporta no

entanto por si mesmo como vimos uma memoacuteria orgacircnica que chamamos ldquomemoacuteria do

corpordquo Esta participa dos movimentos extraiacutedos dos processos de percepccedilatildeo e adaptaccedilatildeo

do corpo-imagem a seu meio ndash o que se afigura uma necessidade de todo organismo ndash e

resulta no registro do passado dos movimentos e de suas repeticcedilotildees em geral sob a forma

de haacutebitos motores Ao mesmo tempo a consciecircncia registra todo o desenrolar singular de

cada um desses e de outros acontecimentos uma vez que opera no seio da memoacuteria pura

forja suas memoacuterias-lembranccedilas que em si e por si mesmas natildeo possuem qualquer

utilidade e tampouco podem agir sobre o presente O que Bergson (2001 p 23191) afirma

eacute que essas memoacuterias caminham lado a lado e prestam-se muacutetuo apoio A conservaccedilatildeo das

lembranccedilas-imagens nos coloca todavia lado a lado com o risco ndash no limite patoloacutegico ndash

da confusatildeo entre os imperativos pragmaacuteticos e de utilidade envolvidos pela necessaacuteria

adaptaccedilatildeo de um organismo ao meio em que vive e essas ldquoimagens de sonhordquo95

Como

afastar esse risco senatildeo pelo caraacuteter intrinsecamente pragmaacutetico dessa consciecircncia em

tensatildeo com a vida Atrelada unicamente agrave utilidade a consciecircncia que efetua o registro dos

eventos singulares que se fundem na memoacuteria pura eacute a mesma que a um soacute tempo

descarta em relaccedilatildeo agrave atualidade vivida todas as imagens passadas que natildeo possam

coordenar-se agrave percepccedilatildeo atual formando com ela um conjunto uacutetil A consciecircncia age

simultaneamente vinculada agrave memoacuteria e atenta agrave vida ela tira partido da memoacuteria em

detrimento da memoacuteria para fazecirc-la servir agrave vida agrave accedilatildeo e ao presente Por isso a

94

Bergson (2001 p 23089) com efeito afirma sobre a memoacuteria do corpo ldquo[] un ecirctre vivant qui se

contenterait de vivre nrsquoaurait pas besoin drsquoautre choserdquo 95

ldquoEn se conservant dans la meacutemoire en se reproduisant dans la conscience ne vont-elles pas deacutenaturer le

caractegravere pratique de la vie mecirclant le recircve agrave la reacutealiteacuterdquo (BERGSON 2001 p 23090)

133

memoacuteria pura pode ser definida em relaccedilatildeo agrave consciecircncia como uma memoacuteria inibida ou

de recalque96

soacute age subordinada agrave consciecircncia Eis aiacute o mecanismo que as torna

ldquolembranccedilas impotentesrdquo97

ndash elas satildeo impotentes exclusivamente em face de uma diferenccedila

pragmaacutetica em relaccedilatildeo a uma consciecircncia atual que natildeo eacute mais que a representaccedilatildeo ideal e

liminar de uma adaptaccedilatildeo de nosso corpo ao presente por isso comeccedilaacutevamos por ele

Dessa forma eacute possiacutevel entrever em siacutentese duas memoacuterias segundo as quais o

passado se conserva e que natildeo satildeo senatildeo teoricamente distintas lembranccedilas-imagens

pessoais que desenham todos os acontecimentos em sua singularidade e mecanismos

motores que satildeo capazes de utilizar o passado na direccedilatildeo da utilidade e da vida Mais

adiante essa dissociaccedilatildeo se mostraraacute particularmente importante a fim de evitar certos

enganos comuns Entre eles aquele que sustenta a tese da localizaccedilatildeo das lembranccedilas-

imagens no corpo designando o ceacuterebro como ldquoo oacutergatildeo da representaccedilatildeordquo por excelecircncia

(BERGSON 2001 p 23596) outro consiste em misturar indefinidamente no ato de

reconhecimento pelo qual reavemos o passado no presente suas componentes motoras

com as lembranccedilas-imagens Eacute portanto sob esse duplo aspecto que se torna necessaacuterio

compreender dinamicamente o fenocircmeno do reconhecimento capaz de ligar o passado ao

presente

O ponto de partida de Bergson eacute conhecido ndash as teorias do reconhecimento

contrariariam absolutamente a experiecircncia ao aplicarem-se a fazer o fenocircmeno surgir de

uma reaproximaccedilatildeo entre percepccedilatildeo e lembranccedila ignorando sua jaacute demonstrada diferenccedila

de natureza A experiecircncia biofisioloacutegica e meacutedica sobre o tema indicaria que na maioria

das vezes a lembranccedila soacute surge uma vez reconhecida a percepccedilatildeo (BERGSON 2001 p

23798) Portanto sua tese oposta desta vez ao enganoso pensamento associacionista e

96

ldquo[] les souvernirs tendent agrave srsquoincarner font pression pour ecirctre reccedilus ndash si bien qursquoil faut tout un

refoulement issu du preacutesent et de lsquolrsquoattention agrave la viersquo pour repousser ceux qui sont inutiles ou dangereuxrdquo

(DELEUZE 1966 p 69-70) Em um sentido genealoacutegico Freacutedeacuteric Worms explica a origem da concepccedilatildeo de

Bergson ldquoNotons drsquoembleacutee comment la conscience retrouve ici le pouvoir de seacutelection qursquoelle avait deacutejagrave

dans la perception augmenteacutee drsquoune force drsquoinhibition dont Bergson avant Freud emprunt la notion agrave Ribot

celui-ci avait deacutecrit dans le cas drsquoattention notamment comment les mouvements du corps ont une fonction

critique et neacutegative qui inhibe et refoule le contenu de la conscience psychologiquerdquo (WORMS 1997 p

108) 97

Freacutedeacuteric Worms (2011 p 175) explicou o sentido das expressotildees ldquoimpotenterdquo ldquoinagenterdquo e ldquoinconscienterdquo

com as quais Bergson dotou a memoacuteria pura demonstrando que todas satildeo indiciaacuterias de uma ontologia

virtual ldquoO passado puro eacute lsquoinagentersquo lsquoimpotentersquo eis sobre o que Bergson natildeo cessa de insistir tal eacute a

diferenccedila fundamental que explica todas as outras estando aiacute compreendida uma inconsciecircncia que natildeo eacute

uma inexistecircncia uma virtualidade que natildeo eacute senatildeo o contraacuterio do atual e do ativo um passado enfim que

natildeo se opotildee ao presente senatildeo porque este se define pela vidardquo E ainda completa ldquoessa diferenccedila entre

potecircncia e impotecircncia que natildeo eacute uma diferenccedila entre existecircncia e inexistecircncia que deve mesmo permitir

criticar esta anuncia uma comunidade de natureza mais profunda entre as duas memoacuterias []rdquo (Idem

ibidem p 176-177)

134

que deve conduzir-nos definitivamente ao problema da realidade da memoacuteria pura ndash uma

vez que a memoacuteria do corpo demonstrou-se pelos mecanismos sensoacuterios-motores que se

depositam no haacutebito ndash seraacute a de que a mera associaccedilatildeo entre percepccedilatildeo e lembranccedila natildeo

explica suficientemente o processo de reconhecimento98

Caso contraacuterio supondo a

dependecircncia que associaria definitivamente lembranccedila e percepccedilatildeo seria forccediloso que com

a aboliccedilatildeo patoloacutegica do reconhecimento declaraacutessemos ndash contra todo iacutendice cliacutenico dos

estudos da cegueira psiacutequica99

por exemplo ndash a aboliccedilatildeo da percepccedilatildeo que lhe seria

correlata

O proacuteprio fenocircmeno da cegueira psiacutequica autorizaria a definir dois tipos de

reconhecimento que como veremos seguem as linhas de articulaccedilatildeo conceituais jaacute

desenhadas pela definiccedilatildeo das duas memoacuterias O primeiro um reconhecimento instantacircneo

do corpo que natildeo engendra ou supotildee nenhuma lembranccedila aproximado da transcriccedilatildeo de

uma percepccedilatildeo pura (BERGSON 2001 p 238-240100-103) Trata-se nesse caso de um

fenocircmeno de ordem motora que age na base do reconhecimento de movimentos natildeo-

organizados uma vez que a memoacuteria do corpo os tenha organizado seraacute possiacutevel servir-se

do objeto reconhecido adaptar-se pragmaticamente a ele esboccedilando os movimentos que

lhe correspondem100

Se Bergson (2001 p 239-240) pode afirmar que ldquoIl nrsquoy a pas de

perception qui ne se prolonge en mouvementrdquo evocando a autoridade de Ribot e

Maudsley eacute porque haacute uma certa consciecircncia evidentemente orgacircnica impessoal dos

movimentos nascentes coordenando-os agrave percepccedilatildeo servindo-se e criando haacutebitos motores

organizando e reorganizando suas tendecircncias pragmaacuteticas que nos permitem servir-nos de

um objeto reconhececirc-lo Essas repeticcedilotildees tendem a consolidar as conexotildees e para

compreender o porquecirc basta observar como nosso sistema nervoso eacute disposto em vista da

construccedilatildeo de aparelhos motores que satildeo ligados por centros a excitaccedilotildees sensiacuteveis ao

mesmo tempo em que a dispersatildeo definida pela ramificaccedilatildeo de seus terminais torna as

conexotildees possiacuteveis ilimitadas por isso eacute sempre possiacutevel enriquecer as conexotildees entre

percepccedilotildees e movimentos correspondentes preacute-formados de tal forma que toda percepccedilatildeo

atual possui um ldquoacompanhamento motor organizadordquo (BERGSON 2001 p 240102) que

98

ldquo[] en reacutealiteacute lrsquoassociation drsquoune perception agrave un souvenir ne suffit pas du tout agrave rendre compte du

processus de la reconnaissance Car si la reconnaisance se faisait ainsi elle serait abolie quand les anciennes

images ont disparu elle aurait toujours lieu quand ces images sont conserveacuteesrdquo (BERGSON 2001 p

23798-99) 99

A cegueira psiacutequica eacute definida por Bergson (2001 loc cit) como a incapacidade de efetuar a recogniccedilatildeo

de objetos no espaccedilo que de fato permanecem objetos de uma percepccedilatildeo sem reconhecimento 100

Sobre a relaccedilatildeo entre o reconhecimento motor do corpo e o uso pragmaacutetico de um objeto Bergson (2001

p 239 101) salienta ldquoReconnaicirctre un objet usuel consist surtout agrave savoir srsquoen servirrdquo eis portanto uma

feiccedilatildeo definitivamente pragmaacutetica do reconhecimento operado pelo sistema sensoacuterio-motor

135

nos daacute o sentimento de reconhecimento usual o que faz supor uma consciecircncia dessa

organizaccedilatildeo Com isso Bergson parece uma vez mais deduzir do campo inicialmente dado

de imagens o jogo entre corpo e campo em outras palavras porque as imagens agem umas

sobre as outras e os corpos fontes de indeterminaccedilatildeo estatildeo implicados nessa dinacircmica eacute

como se a circunstacircncia de um corpo ser uma imagem em meio a imagens fosse jaacute um

convite agrave accedilatildeo

Ao lado desse jogo entre percepccedilatildeo movimentos preacute-formados e formaccedilatildeo

dinacircmica de novos movimentos nascentes cada vez mais adaptados pragmaticamente ao

presente subsistem os sucessivos registros duracionais que acompanham o seu desenrolar

no tempo que Bergson (2001 p 241103) chama de ldquonossa vida psicoloacutegicardquo A memoacuteria

pura natildeo cessa de operar e de ser inibida pela tendecircncia pragmaacutetica dessa consciecircncia que

age apenas para adaptar um corpo-imagem agraves imagens nas quais se banha Jaacute vimos que o

equiliacutebrio sensoacuterio-motor estabelecido em funccedilatildeo dessa adaptaccedilatildeo entre percepccedilatildeo e

movimentos de resposta implica que a ldquoconsciecircncia praacutetica e uacutetil do momento presenterdquo

(Idem ibidem loc cit) iniba sem cessar as lembranccedilas que exercer pressatildeo desde o fundo

da memoacuteria pura deixando passar apenas as lembranccedilas-imagens uacuteteis101

Eacute nesse ponto

que as lembranccedilas-imagens podem intervir no processo de reconhecimento

A todo momento ao acompanhar a percepccedilatildeo como seu duplo ou sua sombra a

memoacuteria pura registra cada acontecimento contemporaneamente agrave montagem dos

aparelhos motores pela memoacuteria do corpo Dada essa coalescecircncia Bergson (2001 p

241103) afirma que ldquoelle se survit [] avec tout le deacutetail de ses eacuteveacutenements localiseacutes dans

le tempsrdquo A consequecircncia ontoloacutegica imediata que jaacute se pode deduzir aqui eacute que sendo

contemporacircnea ao presente a existecircncia da memoacuteria natildeo exige um presente descarnado

acompanhando sombriamente o presente que se faz a memoacuteria natildeo eacute o fruto maduro

demais de um presente que passou ndash ela sobrevive em si como se houvesse como veremos

mais adiante um registro duplo do mesmo plano de realidade Ainda que seja

contemporacircnea ao presente a memoacuteria no entanto natildeo age inibida pragmaticamente ndash o

que assinala a marca da impotecircncia e da inutilidade das lembranccedilas puras ndash a memoacuteria se

define pela espera como se aguardasse uma fissura no mecanismo para dentro do qual

empurraria suas imagens

101

Em Le Recircve texto de uma conferecircncia proferida em marccedilo de 1901 no Institut Geacuteneacuteral Psychologique e

republicada dezoito anos mais tarde em LrsquoEacutenergie Spirituelle Bergson (2001 p 88999) se exprime sobre

essa forma de pressatildeo que as lembranccedilas exercem do fundo da memoacuteria pura ldquoIl ne faut pas croire que les

souvenirs logeacutes au fond de la meacutemoire y restent inertes et indiffeacuterentes Il sont dans lrsquoattente ils sont presque

attentifsrdquo A mesma passagem autoriza que definamos a espera como um elemento da memoacuteria pura (cf

infra)

136

No entanto como eacute possiacutevel remontar ao passado para dele retirar imagens

Bergson explica esse processo como algo essencialmente ativo isto eacute como um esforccedilo

por meio do qual nos liberamos do interesse pragmaacutetico circunscrito agrave accedilatildeo a fim de

descobrir a lembranccedila-imagem singular relacionada com o presente Isso eacute possiacutevel em

funccedilatildeo da proacutepria consciecircncia praacutetica Em copresenccedila com o presente sobrevive o

conjunto das imagens passadas Eacute certo que essa sobrevivecircncia seu modo especiacutefico

exige ainda uma demonstraccedilatildeo da qual no momento conhecemos apenas os iacutendices mais

gerais mas seguindo Bergson suponhamos por ora sua existecircncia Dada esta copresenccedila

de nosso passado e nosso presente eacute preciso que a lembranccedila-imagem colhida no passado

em que remontamos natildeo seja arbitraacuteria eacute preciso que haja certo discernimento certo bom

senso ndash que satildeo outros nomes pelos quais Bergson designa a ldquoconsciecircncia praacuteticardquo ndash na

escolha de uma imagem da qual vamos nos servir no presente Natildeo soacute os movimentos satildeo

prolongamentos da percepccedilatildeo como satildeo no sentido inverso prolongamentos dessas

lembranccedilas-imagens que por sua vez descolam-se da memoacuteria pura entatildeo os

movimentos efetuados ou nascentes delimitam pragmaticamente o campo de lembranccedilas-

imagens virtuais como delimitam por um recorte externamente a percepccedilatildeo de objetos-

imagens atuais De seu turno o que chamamos de recalque pragmaacutetico das lembranccedilas-

imagens que inibem as inuacuteteis envolve o deslocamento do passado pelo presente requer a

assunccedilatildeo de uma atitude presente102

Eacute preciso poreacutem conduzir o argumento da sobrevivecircncia da memoacuteria e por

extensatildeo o de sua conservaccedilatildeo independente do corpo ateacute suas uacuteltimas consequecircncias A

fim de estendecirc-lo o maacuteximo possiacutevel as doenccedilas do reconhecimento ofereceriam a

experiecircncia suficiente para determinar ateacute que ponto as lembranccedilas podem realmente

desaparecer Aproximando-se dessas descriccedilotildees cliacutenicas Bergson (2001 p 242-243105-

107) observa dois traccedilos caracteriacutesticos comuns agraves cegueiras psiacutequicas a perda do sentido

de orientaccedilatildeo de um lado e a incapacidade de desenhar objetos por meio de traccedilos

contiacutenuos ndash caracteriacutesticas geralmente apresentadas por pacientes acometidos por essas

doenccedilas Juntamente a casos de cegueira verbal ndash que consistem no esquecimento de certas

letras do alfabeto ndash todas as descriccedilotildees cliacutenicas convergem de maneira a revelar que o que

eacute afetado por essas patologias natildeo eacute a lembranccedila ou a percepccedilatildeo em sentido objetivo mas

o haacutebito de distinguir as articulaccedilotildees do objeto percebido isto eacute ldquodrsquoen compleacuteter la

102

ldquo[] la suppression des anciennes images tient agrave leur inhibition par lrsquoatittude preacutesente []rdquo (BERGSON

2001 p 241104)

137

perception visuelle par une tendence motrice agrave en dessiner son schegravemerdquo (BERGSON

2001 p 243107)

Isso nos deixa no limiar em direccedilatildeo ao uacuteltimo movimento do segundo capiacutetulo de

Matiegravere et Meacutemoire que corresponderaacute ao estudo de sua terceira hipoacutetese segundo a qual

se realiza uma passagem gradual das lembranccedilas aos movimentos no reconhecimento

concreto A fim de verificaacute-la seraacute necessaacuterio efetuar a passagem do reconhecimento

automaacutetico que mobiliza o haacutebito e se realiza por movimentos por distraccedilatildeo ao

reconhecimento atento em que lembranccedilas-imagens intervecircm positivamente

Essa passagem entre reconhecimentos automaacutetico e atento supotildee compreender as

relaccedilotildees entre percepccedilatildeo e lembranccedila Natildeo eacute possiacutevel compreender como uma lembranccedila

insere-se de grau em grau em uma atitude ou movimento sem determinar como nos

representamos as relaccedilotildees entre percepccedilatildeo atenccedilatildeo e lembranccedila Comecemos por definir

em que consiste a atenccedilatildeo Geralmente a definimos como uma espeacutecie de intensificaccedilatildeo

do estado intelectual a fim de tornar uma percepccedilatildeo mais intensa destacando os detalhes

de um objeto essa poreacutem eacute uma ideia obscura Seguindo Ribot tambeacutem nesse aspecto

Bergson (2001 p 246109-110) prefere definir a atenccedilatildeo em funccedilatildeo de uma adaptaccedilatildeo

geral do corpo Essa definiccedilatildeo lhe parece mais adequada na medida em que os fenocircmenos

de inibiccedilatildeo preparam a atenccedilatildeo voluntaacuteria103

Agindo na percepccedilatildeo supondo a inibiccedilatildeo dos

movimentos que decorreriam da percepccedilatildeo automaticamente a atenccedilatildeo implicaraacute pois

uma parada dos movimentos que perseguem um resultado uacutetil imediato aqui viratildeo inserir-

se segundo Bergson ldquomovimentos mais sutisrdquo que satildeo os prolongamentos da lembranccedila

A percepccedilatildeo exterior provoca nossos movimentos que a desenvolvem em linhas gerais por

outro lado a memoacuteria dirige agrave percepccedilatildeo recebida imagens antigas e semelhantes cujo

esboccedilo jaacute teria sido traccedilado por nossos movimentos Em siacutentese a memoacuteria mais imediata

no limite duplica nossa percepccedilatildeo presente devolvendo-lhe imagens semelhantes ou a

imagem idecircntica agrave percepccedilatildeo Essa duplicaccedilatildeo eacute o resultado de uma seacuterie de tentativas de

siacutentese implicados na atenccedilatildeo seu resultado natildeo seraacute assimeacutetrico tampouco arbitraacuterio

uma vez que movimentos de imitaccedilatildeo presidem como viacuteamos a seleccedilatildeo das lembranccedilas-

imagens nas quais a percepccedilatildeo se prolonga (BERGSON 2001 p 248112) Nesse limiar a

lembranccedila-imagem que interpreta nossa percepccedilatildeo atual insere-se nela sendo impossiacutevel

distinguir de fato o que dividimos de direito Fecha-se assim um circuito pelo qual se

forma uma imagem-percepccedilatildeo orientada ao espiacuterito e uma imagem-lembranccedila que tende

103

ldquo[] les phenomegravenes drsquoinhibition ne sont qursquoune preacuteparation aux mouvements effectifs de lrsquoattention

volontairerdquo (BERGSON 2001 p 246110)

138

em direccedilatildeo ao espaccedilo No interior dele tudo se dispotildee em diferentes niacuteveis de um

complexo percepccedilatildeo-memoacuteria a imagem atual remete a uma imagem virtual que lhe eacute

solidaacuteria em cada um desses niacuteveis mesmo no mais imediato em que uma lembranccedila-

imagem virtual duplica o objeto atual a memoacuteria estaacute inteiramente presente em seu maior

niacutevel de tensatildeo Ou seja se passarmos sucessivamente de um niacutevel a outro verificaremos

que eacute a mesma vida psicoloacutegica que se repete indefinidamente em sua totalidade mais ou

menos contraiacuteda104

Portanto o limite da memoacuteria eacute a memoacuteria pura correspondente ao

registro singular na duraccedilatildeo dos acontecimentos que desenham o curso de nossa existecircncia

passada Eis a memoacuteria espontacircnea ou perfeita tal como se registra na proacutepria duraccedilatildeo

tendo sua existecircncia atrelada ao tempo

Tudo isto seraacute objeto de uma longa demonstraccedilatildeo empiacuterica que natildeo nos cabe

acompanhar senatildeo em seus termos mais gerais sob pena de tornar este desvio necessaacuterio

grande demais105

A verificaccedilatildeo dessa hipoacutetese se desenvolve a partir de uma seacuterie de

confrontaccedilotildees de patologias do reconhecimento contemplando os reconhecimentos visual

auditivo e de palavras Por meio delas Bergson indica a partir de numerosos exemplos que

lesotildees cerebrais natildeo aboliriam as lembranccedilas mas ora implicariam um oacutebice agrave seleccedilatildeo das

imagens ndash ou seja agrave recepccedilatildeo dos movimentos ndash ora importariam a ausecircncia no corpo de

um ponto de aplicaccedilatildeo por meio do qual as lembranccedilas se prolongariam em accedilatildeo ndash isto eacute

afetariam a capacidade de preparaccedilatildeo sensoacuterio-motora mantendo as lembranccedilas

permanentemente em sua condiccedilatildeo de impotecircncia decorrente da inibiccedilatildeo pela consciecircncia

praacutetica

Haacute todavia um ponto notaacutevel a destacar no interior desse desenvolvimento que nos

conduz agrave impossibilidade de localizaccedilatildeo das lembranccedilas no ceacuterebro ou em qualquer outro

ponto da mateacuteria ou do espaccedilo Ele se torna importante ao passo em que eacute o momento

culminante de toda a anaacutelise cliacutenica a que Bergson se dedica nessa longa demonstraccedilatildeo

afinal se ldquoas lembranccedilas natildeo podem estar contidasrdquo em determinado lugar ndash preconceito

intelectual derrisoacuterio segundo Bergson106

ndash eacute porque se conservam em si mesmas

104

ldquoLa mecircme vie psycologique serait donc reacutepeacuteteacutee un nombre indeacutefini de fois aux eacutetages successifs de la

meacutemoire et le mecircme acte de lrsquoesprit pourrait se jouer agrave bien des hauteurs diffeacuterentes Dans lrsquoeffort

drsquoattention lrsquoesprit se donne toujours tout entier mais se simplifie ou se complique selon le niveau qursquoil

choisit pour accomplir ses eacutevolutions Crsquoest ordinairement la perception preacutesente qui deacutetermine lrsquoorientation

de nocirctre esprit mais selon le deacutegreacute de tension que nocirctre esprit adopte selon la hauteur ougrave il se place cette

perception deacuteveloppe en nous un plus ou moins grand nombre de souvenirs-imagesrdquo (BERGSON 2001 p

250-251115-116) 105

O trecho que comentamos em suas linhas gerais e que indicamos ao leitor que se interesse em seguir mais

detalhadamente o seu curso corresponde a (BERGSON 2001 p 252117-118 a p 270140) 106

Isso se deve ao fato de que para Bergson a memoacuteria eacute inassimilaacutevel a dispositivos ou entes corpoacutereos

tampouco a espaccedilos ou agrave extensatildeo em geral Por isso ele natildeo cessa de ironizar sua constante assimilaccedilatildeo a

139

independentemente da mateacuteria do espaccedilo ou do que mais cedo chamaacutevamos de imagens

que existem atualmente Em outras palavras demonstraacute-lo nos oferece um ingresso para

problematizar a consistecircncia virtual da memoacuteria

Tudo se concentra no momento capital em que Bergson na impossibilidade de

remontar todas as experiecircncias cliacutenicas de Matiegravere et Meacutemoire retoma em uma

conferecircncia intitulada Lrsquoacircme et le corps (1912) publicada sete anos mais tarde em

LrsquoEneacutergie Spirituelle a demonstraccedilatildeo de que levada a seu limite a tese do paralelismo

psicofiacutesico se contradiz107

Aproveitemo-nos portanto do mesmo artifiacutecio demonstrativo

utilizado por Bergson Eis o argumento de Bergson em sua integralidade

[] les purs souvenirs appeleacutes du fond de la meacutemoire se deveacuteloppent en

souvenirs-images de plus en plus capables de srsquoinseacuterer dans le schegraveme moteur Agrave

mesure que ces souvenirs prennent la forme drsquoune reacutepresentation plus complegravete

plus concregravete et plus consciente ils tendent drsquoavantage agrave se confondre avec la

perception qui les attire ou dont ils adoptent le quadre La preacutetendu destruction

des souvernirs par les leacutesions ceacuterebrales nrsquoest qursquoune interruption du progregravess

continu par lequel le souvenir srsquoactualise Et par conseacutequent si lrsquoon veut agrave toute

force localiser les suvenirs auditifs des mots par exemple en un point deacutetermineacute

du cerveau on sera ameneacute par des raisons drsquoeacutegale valeur agrave distinguer ce centre

imaginatif du centre percepetif ou agrave confondre les deux ensemble (BERGSON

2001 p 270140)

Onde estaria portanto a contradiccedilatildeo da tese paralelista com a experiecircncia Se nos

concentramos por um momento na explicaccedilatildeo psicoloacutegica baseada na dependecircncia entre

percepccedilatildeo e ceacuterebro somos levados a confundir o cerebral e o mental de tal forma que a

percepccedilatildeo se depositaria em algum lugar no ceacuterebro por outro lado se confundimos o

centro material da percepccedilatildeo com o da representaccedilatildeo ndash de modo que atribuiacutemos ao ceacuterebro

a funccedilatildeo de engendrar representaccedilotildees ndash ao observarmos os casos cliacutenicos das afasias das

cegueiras psiacutequicas ou auditivas natildeo eacute possiacutevel compreender por que um doente

dispositivos ldquoA vrai dire je ne suis pas sucircr que la question lsquoougraversquo ait encore un sens quand on ne parle pas

drsquoun corps Des clicheacutes photographiques se conservent dans une boicircte des disques phonographiques se

conservent dans des casiers mais pourquoi des souvenirs qui ne sont pas des choses visibles et tangibles

auraient-ils besoin drsquoun contenant et comment pourraint-ils en avoirrdquo (BERGSON 2001 p 85755) Se

Bergson aceita a ideia de um continente onde as lembranccedilas ficariam alojadas eacute apenas em sentido

puramente metafoacuterico e completa graciosamente ldquoet je dirai alors tout bonnement qursquoils se sont dans

lrsquoespritrdquo (BERGSON 2001 p 856-857755) 107

O que Bergson (2001 p 85249) diz em LrsquoAcircme et le Corps eacute essencial para afianccedilar ao leitor que ao

reduzir a longa cadeia de demonstraccedilotildees experimentais de Bergson a esse ponto notaacutevel continuamos a

seguir no que importa as principais articulaccedilotildees conceituais que elas insinuam ldquoIl mrsquoest impossible

drsquoeacutenumerer ici les faits et les raisons sur lesquels cette conception se fonde [] Comment faire Il y aurait

drsquoabord un moyen semble-t-il drsquoen finir rapidement avec la theacuteorie que je combat ce serait de montrer que

lrsquohypothegravese drsquoune eacutequivalence entre le ceacutereacutebral et le mental est contradictoire avec elle-mecircme quand on la

prend dans toute sa rigueur [] Jrsquoai tenteacute cette deacutemonstration autrefois []rdquo Sobre o mesmo assunto em

Matiegravere et Meacutemoire ldquo[] nous devons poursuivre cette illusion jusqursquoau point preacutecis ougrave elle aboutit agrave une

contradiction manifesterdquo (BERGSON 2001 p 270140)

140

acometido de cegueira psiacutequica percebe objetos mas natildeo os reconhece A mesma

perplexidade resultaria do caso de um paciente acometido por cegueira auditiva ele natildeo

pode interpretar os sons que no entanto ouve Ora a lesatildeo natildeo teria afetado este centro

que corresponde agrave percepccedilatildeo e agrave memoacuteria do objeto A soluccedilatildeo imediata eacute distinguir as

localizaccedilotildees cerebrais de tal forma que haveria centros perceptivos e elementos nervosos

relacionados agrave lembranccedila Eacute necessaacuterio lembrar que a tese do paralelismo insiste sobre a

existecircncia de uma diferenccedila meramente de grau e natildeo de natureza entre percepccedilatildeo e

lembranccedila como se as uacuteltimas fossem versotildees desintensificadas das primeiras Entretanto

se centros perceptivos e mnemocircnicos estatildeo localizados distintamente como uma

lembranccedila intensificando-se tornar-se-ia percepccedilatildeo Como uma percepccedilatildeo

enfraquecendo-se tornar-se-ia lembranccedila ndash supondo que ambas tenham a mesma natureza

Natildeo haacute resposta satisfatoacuteria possiacutevel porque as alternativas contraditoacuterias estatildeo

envolvidas por uma ilusatildeo comum que consiste em tratar percepccedilatildeo e lembranccedila-imagem

de uma perspectiva exclusivamente estaacutetica o que conduz a compreender as lembranccedilas

como se fossem coisas que supotildeem uma localizaccedilatildeo no espaccedilo e natildeo no tempo

Considerando o mesmo problema sob o ponto de vista dinacircmico seria necessaacuterio supor a

diferenccedila de natureza entre uma e outra definindo e distinguindo a percepccedilatildeo completa

ldquopor sua coalescecircncia com uma imagem-lembranccedila que lanccedilamos ao encontro delardquo108

Chegamos assim ao ponto em que Bergson efetua uma profunda fratura na

ontologia que desenvolvia ateacute aqui levando-a do atual em direccedilatildeo ao virtual do ser

presente ao ser do passado ao outro dos termos que conformam a construccedilatildeo progressiva

dessas passagens feitas no cerne de uma mesma realidade Eacute certo que Bergson natildeo cessa

de definir a imagem-lembranccedila reduzida ao estado de lembranccedila pura como ineficaz

impotente Seraacute necessaacuterio precisar o sentido dessas definiccedilotildees que consistiriam em

algumas das caracteriacutesticas do virtual que jaacute se pode antecipar O virtual designa de certa

forma o pragmaticamente recalcado por uma consciecircncia que se define pela atenccedilatildeo agrave vida

e ao presente

Para demonstrar esse viacutenculo bastaria perceber que para tornar uma lembranccedila

saiacuteda da memoacuteria pura uma lembranccedila eficaz eacute necessaacuterio engendrar um processo de

atualizaccedilatildeo que consiste na ldquoseacuterie drsquoeacutetapes pas lesquelles cette image arrive agrave obtenir du

corps des deacutemarches utilesrdquo (BERGSON 2001 p 275146) sendo a excitaccedilatildeo dos centros

108

ldquo[] la perception complegravete ne se deacutefinit et ne se distingue que par sa coalescence avec une image-

souvenir que nous lanccedilons au-devant drsquoellerdquo (BERGSON 2001 p 271142)

141

sensoriais a uacuteltima dessas etapas A imagem virtual evolui em direccedilatildeo a uma sensaccedilatildeo

apenas virtual esta evolui em direccedilatildeo a movimentos reais os quais ao realizarem-se

realizam tambeacutem a sensaccedilatildeo da qual constituem um prolongamento O desdobramento

natural de nossa deacutemarche consiste em interrogar o problema da sobrevivecircncia das

imagens e com ele o modo ontoloacutegico de que o ser do passado participa

sect 2 COEXISTEcircNCIAS

A CONSISTEcircNCIA VIRTUAL DA MEMOacuteRIA

Do virtual ao atual da memoacuteria pura agrave percepccedilatildeo pura Bergson natildeo cessa de

afirmar que se trata de divisotildees de direito e natildeo de fato Assim se desejaacutessemos

representar agrave inteligecircncia ndash e isto no bergsonismo equivale a dizer espacialmente ndash como

tudo se passa disporiacuteamos lembranccedila pura lembranccedila-imagem e percepccedilatildeo em uma

mesma linha segmentada sem jamais fazer jus aos limiares indiscerniacuteveis e agrave continuidade

de penetraccedilatildeo que operam a passagem de uma na outra seguindo intuitivamente a

experiecircncia concreta Momentaneamente encontramos um dos centros de nosso

argumento que a fim de compreender a centralidade da memoacuteria no processo transicional

pretende estabelecer seu sentido sobre bases ontoloacutegicas irredutiacuteveis agrave memoacuteria

psicoloacutegica ndash motivo pelo qual se torna necessaacuterio investigar em Bergson uma ontologia

da memoacuteria ou uma ontologia do virtual No entanto eacute importante lembrar que a diferenccedila

de natureza que Bergson introduz entre percepccedilatildeo e lembranccedila seraacute pouco a pouco

estendida agrave diferenccedila entre atual e virtual presente e passado O que dissimula o caraacuteter

niacutetido da diferenccedila eacute o processo de atualizaccedilatildeo das lembranccedilas109

Retornemos da representaccedilatildeo inteligente agrave intuiccedilatildeo tal como ela segue as linhas de

fato de uma experiecircncia concreta do trabalho da memoacuteria Como recuperar uma lembranccedila

um acontecimento de nossa vida passada A resposta de Bergson ndash sobre a qual Deleuze

(1966 p 53) insistiu sem cessar e a cuja insistecircncia tambeacutem Worms (2011 p 175) deu

razatildeo ndash eacute por meio de um salto no passado destacando-nos do atual e nos colocando

subitamente no virtual Para compreender o que significa esse salto ndash especialmente para

Bergson a quem a continuidade parece um elemento conceitual tatildeo importante ndash

109

Por isso sobre a distinccedilatildeo de direito entre lembranccedila pura lembranccedila-imagem e percepccedilatildeo Bergson

(2001 p 276148) afirma ldquoqursquoil est impossible de dire avec preacutecision ougrave lrsquoun des termes finit ougrave commence

lrsquoautrerdquo Worms (1997 p 141) observa que ldquo[] la diffeacuterence de nature entre souvenirs et perceptions si elle

est formuleacutee comme diffeacuterence entre le lsquovirtuelrsquo et lrsquoactuelrsquo est-elle masqueacutee par le mouvement mecircme

drsquoactualisation par lequel les souvenirs se reacutealisentrdquo

142

precisamos retomar algumas conclusotildees precedentes e que retiram a primazia de nosso

haacutebito intelectual de pensar no presente

Na seccedilatildeo precedente haviacuteamos observado a existecircncia de dois tipos de memoacuteria

que nos levavam a conceber natildeo apenas duas formas de sobrevivecircncia do passado ndash em

mecanismos motores e no proacuteprio passado ndash mas tambeacutem a identificar dois modos

(automaacutetico e atento) pelos quais o reconhecimento se processa Atento agrave dinacircmica

segundo a qual percebemos os objetos no espaccedilo Bergson concebeu uma seacuterie de niacuteveis de

consciecircncia coalescentes com a percepccedilatildeo idealmente pura do objeto atual engendrados

segundo diferenccedilas de contraccedilatildeo no que nomeou circuito perceptivo Sua concepccedilatildeo

terminava por demonstrar o que no niacutevel da percepccedilatildeo pura Bergson podia apenas supor

que toda percepccedilatildeo eacute jaacute um misto em que as lembranccedilas-imagens constituem a impureza

em outras palavras que toda percepccedilatildeo implica ao mesmo tempo lembranccedila que seu niacutevel

mais contraiacutedo corresponde ao duplo virtual de uma imagem atualmente percebida Em

cada um dos niacuteveis de consciecircncia mais ou menos contraiacutedos em relaccedilatildeo agrave percepccedilatildeo

atual encontraacutevamos a integral de nossa memoacuteria Naquele momento adiantaacutevamos esta

conclusatildeo isso eacute o que supotildee uma coexistecircncia virtual da lembranccedila em relaccedilatildeo agrave

percepccedilatildeo em outras palavras dizer que a percepccedilatildeo eacute jaacute lembranccedila significa que o

processo perceptivo por mais puro que se o suponha deixa passar um miacutenimo de virtual

que no niacutevel mais contraiacutedo consiste na lembranccedila-imagem do estado atual de nosso

corpo que percebe um objeto atual

Essas conclusotildees nos levam a desmitificar segundo Deleuze (1966 p 53) duas

falsas crenccedilas a de que o passado soacute se constitui depois de ter sido presente e a de que ele

pode ser reconstruiacutedo pelo novo presente em relaccedilatildeo ao qual ele eacute passado Muito pelo

contraacuterio a supor-se uma memoacuteria de coexistecircncia contemporacircnea ao presente que passa

adiantaacutevamos a conclusatildeo de que haacute um passado que jamais fora presente um passado que

natildeo eacute um presente sucedido e descarnado mas sua imagem virtual coextensiva que jaacute se

prolonga na direccedilatildeo da memoacuteria pura Seguindo Deleuze adicionariacuteamos em relaccedilatildeo agrave

segunda falsa crenccedila ndash sobre a qual Bergson natildeo cessa de insistir ndash que natildeo se reconstroacutei o

passado pela via do presente110

Isso eacute o suficiente para compreendermos o que significa saltar no virtual por que

Bergson exige precisamente essa imagem que Deleuze diz ser ldquoquase kierkegaardianardquo

110

ldquoCrsquoest en vain qursquoon en chercherait la trace [du passeacute] dans quelque chose drsquoactuel et de deacutejagrave reacutealiseacute

autant vaudrait chercher lrsquoobscuriteacute sous la lumiegravererdquo (BERGSON 2001 p 278150) A expressatildeo entre

colchetes natildeo consta do original

143

compreende-se tambeacutem em que sentido Bergson emprega constantemente a expressatildeo

drsquoembleacutee que em portuguecircs equivale tatildeo bem a expressotildees como ldquode suacutebitordquo ldquode

imediatordquo ldquode prontordquo todas iacutendices de um modo Sua funccedilatildeo semacircntica poderia jaacute indicar

que uma diferenccedila de atitude eacute o que se passa entre as realidades do presente e do passado

Worms a esse propoacutesito sublinha a importacircncia de natildeo interpretar a diferenccedila de natureza

entre o ser presente e o ser do passado como uma diferenccedila ontoloacutegica radical como a que

haveria entre dois tipos de ser Uma interpretaccedilatildeo como essa implicaria naturalmente

deformar o gesto bergsoniano da imanecircncia pelo qual permanecemos leais a uma soacute

estrutura de realidade a de seu campo transcendental em que satildeo dadas as imagens e a

partir do qual tudo eacute deduzido Mais apropriadamente seria o caso de conceber a diferenccedila

entre presente e passado como ldquouma diferenccedila pragmaacutetica ligada agrave accedilatildeo do corpo e agrave

vidardquo (WORMS 2011 p 175)

No entanto um salto natildeo indicaria um dualismo metafiacutesico de substacircncia Tudo

converge para responder negativamente a essa questatildeo Se por um salto ou por uma

atitude sui generis ndash como Bergson (2001 p 276148) algumas vezes se expressa ndash eacute

possiacutevel distender a consciecircncia e colocar-se diretamente no passado haacute uma simples

diferenccedila de accedilatildeo ou de modo ndash natildeo radicalmente ontoloacutegica ndash entre presente e passado

atual e virtual A tese de Worms nesse aspecto seria confirmada por um outro dado o que

concerne agrave memoacuteria pura inibida ou recalcada pela atenccedilatildeo agrave vida

Decerto Bergson natildeo cessa de ligar o passado puro ao elemento de impotecircncia ao

mesmo tempo natildeo cessa de dizer como vimos que a memoacuteria pura eacute uma espera ldquoquase

atentardquo por uma fissura que a deixe passar algumas imagens no presente A forccedila inibidora

que coloca a memoacuteria a serviccedilo da vida implica que a memoacuteria pura enquanto inuacutetil

permaneccedila impotente inconsciente incapaz de atuar daiacute porque ela se define pela pressatildeo

ndash que empurraria no presente todas as suas imagens se pudesse ndash bloqueada pela forccedila de

inibiccedilatildeo que a determina como espera Em relaccedilatildeo ao virtual a espera eacute tambeacutem o seu

modo especiacutefico se por virtual compreendermos simplesmente ldquoo que natildeo atuardquo

(WORMS 2011 p 175)

Dizecirc-lo inconsciente ou impotente demanda estabelececirc-lo desde um ponto de vista

no segundo capiacutetulo de Matiegravere et Meacutemoire em que tudo gira em torno do atual eacute a

consciecircncia pragmaacutetica voltada para a vida que perspectiva o virtual como impotente e

inconsciente para o atual o virtual eacute o que natildeo atua e ele o eacute exclusivamente ao passo em

que natildeo toma parte dessa consciecircncia pragmaacutetica em que eacute mantido fora dela Suas

imagens esperam no fundo da memoacuteria pura enquanto natildeo satildeo solicitadas pela vida Em

144

relaccedilatildeo agrave consciecircncia o virtual eacute atualmente pressatildeo e espera mas potencialmente accedilatildeo e

afecccedilatildeo Nada disso no entanto os retira do existente se perspectivarmos o virtual desde

seu proacuteprio ponto de vista a memoacuteria pura eacute o que existe para si como potencial de accedilatildeo

e afecccedilatildeo e entatildeo ela jaacute natildeo poderia definir-se por uma impotecircncia ontoloacutegica mas

exclusivamente pragmaacutetica Pragmaacutetica aqui significa ldquocom relaccedilatildeo agrave vidardquo ldquodo ponto de

vista do presenterdquo Ontologicamente a memoacuteria eacute potecircncia pura ndash potecircncia definida como

o que natildeo age mas exerce pressatildeo permanece agrave espreita Eis o que definiria um registro

ontoloacutegico diverso do virtual dado na mesma estrutura de realidade a que pertence o ser do

presente

A tese fundamental que consiste em explicar o mecanismo de vigiacutelia por analogia

ao do sonho em Le Recircve natildeo mostraria nada aleacutem dessa diferenccedila pragmaacutetica do atual ao

virtual111

ldquoNous nrsquoapercevons de la chose que son eacutebauche celle-ci lance un appel au

souvenir de la chose complegravete et le souvenir de la chose complegravete dont notre esprit

nrsquoavait pas conscience qui nous restait en tout cas inteacuterieur comme une simple penseacutee

profite de lrsquooccasion pour srsquoeacutelancer dehorsrdquo (BERGSON 2001 p 88999) O sonho

consiste senatildeo no estado de consciecircncia em que as lembranccedilas puras encontram-se

inteiramente potentes livres e agentes ao menos em um estado mais distendido de atenccedilatildeo

agrave vida em que nossa consciecircncia encontra-se indiferente agrave loacutegica embora natildeo seja incapaz

dela ndash e por vezes diz Bergson (2001 p 890-891100-101) ela nos prega peccedilas buscando

uma continuidade entre imagens disparatadas fazendo-nos natildeo raro tocar o absurdo Essa

indiferenccedila relativa assinala em relaccedilatildeo agrave vida e agrave vigiacutelia um relaxamento e uma distraccedilatildeo

pragmaacutetica em geral sonhamos natildeo vivemos entatildeo eacute da potecircncia especiacutefica do virtual

que a consciecircncia se deixa penetrar quando os mecanismos de inibiccedilatildeo da memoacuteria pura

encontram-se relativamente suspensos ndash porque com efeito natildeo satildeo jamais abolidos Uma

matildee pode dormir pesadamente ao lado de seu filho a ponto de natildeo ser acordada pelo som

de um trovatildeo mas o menor suspiro do bebecirc pode despertaacute-la ldquoNous ne dormons pas pour

ce qui continue agrave nous inteacuteresserrdquo (BERGSON 2001 p 893103) Eis a bela imagem que

Bergson convoca a fim de ilustrar a coalescecircncia entre o eu dos sonhos que se desinteressa

e adormece e o da vigiacutelia que precisa adormecer para continuar interessado Caso natildeo

adormecesse jamais se cansaria afinal estar a todo momento atento agrave vida e sobretudo

ldquoAvoir du bon sens est tregraves fatigantrdquo (Idem ibidem p 892103)

111

ldquo[] agrave lrsquoeacutetat de la veille la connaissance que nous prenons drsquoun objet implique une opeacuteration analogue agrave

celle qui srsquoaccompli en recircverdquo (BERGSON 2001 p 88999)

145

A partir desse breve desvio compreendemos o sentido do salto bergsoniano

compreendemos tambeacutem em profundidade o que Bergson quer dizer quando afirma que

ldquo[] nous nrsquoatteindrons jamais le passeacute si nous nrsquoy placcedilons pas drsquoembleacuteerdquo Indicando uma

diferenccedila pragmaacutetica isso significa que a fim de precisar o trabalho ativo da lembranccedila

deve-se dirigir um esforccedilo ou uma atitude que nos destaque do presente para colocarmo-

nos de imediato no passado em geral depois em certa regiatildeo dele Saltamos no virtual no

passado na memoacuteria em decorrecircncia de adotarmos uma atitude apropriada antes de as

lembranccedilas distraiacuterem-nos para a vida eacute mantendo-nos algo distraiacutedos para a vida que

recuperamos as lembranccedilas fazendo-as participar de um quadro em que o presente as

exige em que o atual as colore e as faz viver

Toda a criacutetica do bergsonismo ao associacionismo reside no fato de este ter

considerado essa dinacircmica de atualizaccedilatildeo que corresponde agrave proacutepria continuidade do

devir como uma multiplicidade descontiacutenua de elementos inertes e justapostos

confundindo percepccedilatildeo e lembranccedila em um misto mal analisado Bergson de seu turno

quer seguir as linhas de realidade da experiecircncia concreta sem destituir dela a duraccedilatildeo que

ela ocupa Eacute nesse sentido que a aplicaccedilatildeo das conclusotildees do Essai ndash especialmente

aquelas que o levavam a diferenciar multiplicidades quantitativas e qualitativas ndash autoriza a

rejeitar o argumento associacionista que confunde a diferenccedila de natureza entre percepccedilatildeo

e lembranccedila com uma simples diferenccedila de grau O significado proacuteprio dessa diferenccedila de

natureza eacute a distinccedilatildeo entre presente e passado corresponde se a levarmos agraves uacuteltimas

consequecircncias agraves duas metades da mesma ontologia de que nos ocupamos o atual e o

virtual Por essa razatildeo eacute ela que serve de ingresso para demonstrar a realidade da memoacuteria

o virtual como um modo do ser e assim evitar o mau haacutebito intelectual de confundir ser e

ser presente ndash o que nos leva a reduzir o real a uma de suas metades

Como definir o presente senatildeo em funccedilatildeo de um corpo-imagem Como defini-lo

senatildeo em relaccedilatildeo agrave vida ao esforccedilo pragmaacutetico por perseverar entre as imagens Se entre o

presente e o passado natildeo haacute uma diferenccedila apenas de grau mas de natureza eacute nisso

precisamente que a diferenccedila se resolve ndash como a diferenccedila entre memoacuteria do corpo e

memoacuteria pura da duraccedilatildeo resolvia-se na distinccedilatildeo entre o repetiacutevel por mecanismos

sensoacuterio-motores e o registro infinitesimal de acontecimentos irrepetiacuteveis Em siacutentese a

diferenccedila de natureza entre presente e passado se expressa no fato de que ldquoMon preacutesent est

ce qui mrsquointeacuteresse ce qui vit pour moi et pour tout dire ce qui me provoque agrave lrsquoaction au

lieu que mon passeacute est essentiellement impuissantrdquo (BERGSON 2001 p 280) Acabamos

146

de definir o sentido desses termos segundo diferentes planos de consciecircncia na obra de

Bergson ndash e um dos sentidos sumamente importantes encontra-se implicado na

perspectivaccedilatildeo do virtual pela atenccedilatildeo agrave vida O que Bergson requer nesse ponto da

argumentaccedilatildeo eacute algo bem mais simples eacute que perspectivemos o virtual segundo o ponto de

vista em que ele aparece concretamente a uma consciecircncia atenta agrave vida112

Se na intenccedilatildeo de esclarecer o sentido e a realidade da lembranccedila pura deixarmo-

nos ficar por um instante nessa perspectiva o momento presente surge como o decorrer do

tempo ao contraacuterio ao tempo decorrido chamaremos passado e precisariacuteamos o instante

presente como o momento em que ele decorre Eis aqui uma ilusatildeo uma intromissatildeo do

espaccedilo jaacute estamos a nos representar o presente como um instantacircneo ideal quando

sabemos suficientemente bem que concretamente ele ocupa uma duraccedilatildeo Essa duraccedilatildeo

estende-se nos dois sentidos em direccedilatildeo ao passado do qual ela proveacutem e em direccedilatildeo ao

futuro ao qual ela tende Podemos entatildeo do ponto de vista de um presente psicoloacutegico

concreto dizer que ele se constitui na percepccedilatildeo de um passado imediato e de uma

determinaccedilatildeo do futuro imediato formando um todo indiviso (BERGSON 2001 p

280153) Ora o menor intervalo de tempo que acaba de passar prolonga-se no presente em

uma sensaccedilatildeo o menor intervalo de tempo no qual meu presente se precipita desenha jaacute

os movimentos que comporatildeo minha accedilatildeo mais imediata Por isso Bergson pode afirmar

que todo presente psicoloacutegico eacute sensoacuterio-motor ndash misto indecomponiacutevel de direito do

prolongamento da uacuteltima sensaccedilatildeo e do proacuteximo devir em movimentos e accedilotildees Ou seja

ldquo[] mon preacutesent consiste dans la conscience que jrsquoai de mon corpsrdquo (BERGSON 2001 p

281153) pensado sub specie durationis ele natildeo designa mais do que um estado atual um

corte artificial de meu devir daquilo que estaacute em vias de formaccedilatildeo Essa continuidade de

devir designa a proacutepria realidade do tempo na qual a mateacuteria tambeacutem deve ter lugar como

repeticcedilatildeo incessante do atual113

As sensaccedilotildees atuais manifestam-se na superfiacutecie do corpo ocupando extensatildeo

localizadas elas satildeo fontes de movimentos e compotildeem um certo estado da materialidade

112

Eis como segue a argumentaccedilatildeo reforccedilando que a ideia de impotecircncia da memoacuteria pura eacute decalcada

forccedilosamente de um ponto de vista atual sobre o virtual ldquoOn chercherait vainement en effet agrave caracteacuteriser le

souvenir drsquoun eacutetat passeacute si lrsquoon ne commenccedilait par deacutefinir la marque concregravete accepteacutee par la conscience de

la reacutealiteacute presenterdquo (BERGSON 2001 p 280152) Ora o que Bergson define aqui como ldquoa marca concreta

da realidade presente aceita pela consciecircnciardquo constitui o iacutendice da perspectivaccedilatildeo do virtual pelo atual que

permite definir ndash do ponto de vista do atual de uma consciecircncia pragmaacutetica atenta agrave vida ndash as lembranccedilas

puras como impotentes inagentes inuacuteteis Como demonstramos do ponto de vista do ldquoeu dos sonhosrdquo

desinteressado da vida seria um contrassenso dizecirc-lo 113

ldquoLa matiegravere en tant qursquoeacutetendue dans lrsquoespace devant se deacutefinir selon nous un preacutesente qui recommance

sans cesse inversement notre preacutesent est la mateacuterialiteacute mecircme de notre existence crsquoest-agrave-dire un ensemble de

sensations et de mouvements rien drsquoautre choserdquo (BERGSON 2001 p 281154)

147

do corpo que tambeacutem estaacute em devir como a variaccedilatildeo das sensaccedilotildees demonstrariam sem

dificuldade De seu turno a lembranccedila pura apresenta caracteriacutesticas completamente

diversas inextensa natildeo ocupa a superfiacutecie do corpo em ponto algum embora possa

produzir sensaccedilotildees ao atualizar-se deixando de ser lembranccedila pura de acordo com sua

utilidade para a vida Impotente ela natildeo se conservaria no corpo mas sobreviveria em si

mesma em ldquoestado latenterdquo ndash outra maneira de definir a espera e a espreita do virtual

A lembranccedila espera e espreita durante todo o tempo em que natildeo eacute uacutetil e

permanecemos interessados ou em que age livremente porque precisamos descansar e

geralmente sem abolir os mecanismos de atenccedilatildeo agrave vida adotamos a atitude de nos

desinteressarmos e adormecer Dessa forma do ponto de vista da consciecircncia pertence agrave

memoacuteria o signo de uma impotecircncia radical No domiacutenio psicoloacutegico da consciecircncia ndash que

eacute a marca do presente do atualmente vivido do que age ndash o real resolve-se no atual o

virtual inibido e inuacutetil cai em um estado de inconsciecircncia o que eacute dizer impotecircncia Para

uma consciecircncia obcecada pela vida o que cai em um estado inconsciente pareceria cair

muito naturalmente na inexistecircncia Fora dessa consciecircncia poreacutem assumindo o ponto de

vista daquilo que permanece inibido porque inuacutetil e inconsciente porque virtual nada do

que existe precisa ser atual perspectiva do sonhador ou do distraiacutedo

Tocamos finalmente o conceito de real em Bergson Determinar quais as

condiccedilotildees para afirmar algo como real ou existente constitui boa parte da soluccedilatildeo do

problema da realidade do virtual agrave qual os comentadores geralmente datildeo muito pouca

atenccedilatildeo Em Matiegravere et Meacutemoire as componentes do conceito de realidade ontoloacutegica jaacute

aparecem um deles subentendido na existecircncia de um registro duracional espontacircneo ou

perfeito dos acontecimento de nossa vida outro mais explicitamente no campo das

imagens Resumamos tudo em uma palavra para Bergson no campo da experiecircncia o ser

se define pela potecircncia de ser experimentado Para afirmaacute-lo eacute preciso contudo algumas

cautelas ldquoSer experimentadordquo natildeo deve ser interpretado aqui nos estreitos limites de uma

experiecircncia pessoal e psicoloacutegica mas mais amplamente no campo transcendental que

define em Bergson as condiccedilotildees da experiecircncia concreta bem como do surgimento do

corpo orgacircnico de diferentes planos de consciecircncia aiacute incluiacutedo o niacutevel psicoloacutegico Nele a

realidade de uma imagem se constitui pelo potencial de agir e ser agido como uma

lembranccedila pura de seu ponto de vista virtual define-se como real segundo o mesmo

criteacuterio Ao mesmo tempo supotildee integrar-se ao campo constituindo uma espeacutecie de seacuterie

148

(BERGSON 2001 p 288163) Detenhamo-nos por um momento na anaacutelise desses

pontos

Isolemos o campo transcendental com as imagens que o compotildeem e nos

perguntemos o que basta para definir sua realidade Do ponto de vista orgacircnico e impessoal

do corpo-imagem o que a define natildeo eacute o fato de ser percebida ndash sabemos que um corpo-

imagem natildeo eacute capaz de perceber a totalidade das imagens atualmente dadas ndash mas o poder

ser percebido em resumo um potencial de percepccedilatildeo Basta lembrarmos o que define a

percepccedilatildeo pura deixando por ora de lado sua imagem virtual coalescente que

concretamente vem aiacute misturar-se trata-se precisamente do acompanhamento de

superfiacutecie dos movimentos nascentes dos potenciais de accedilatildeo de um corpo definidos pela

distacircncia entre corpo-imagem e as imagens que o circundam em funccedilatildeo de cuja variaccedilatildeo

diferenciam-se tambeacutem as promessas e ameaccedilas que essas imagens envolvem114

Enfim

essa variaccedilatildeo define os potenciais de accedilatildeo reciacuteprocos entre corpo-imagem e o restante do

universo de imagens Se ser eacute poder ser percebido ldquoserrdquo se define pelo potencial de accedilatildeo ndash

entendido como potencial de agir e de ser agido ndash com relaccedilatildeo a um corpo-imagem que se

banha em um universo de imagens Esse universo de imagens corresponde natildeo apenas a

uma seacuterie mas tambeacutem agraves linhas esquemaacuteticas da analogia que Bergson propotildee para

definir a sobrevivecircncia da memoacuteria em relaccedilatildeo agrave da mateacuteria A memoacuteria deve sobreviver

integralmente quando natildeo a percebemos distintamente da mesma forma como o universo

atual de imagens natildeo eacute abolido quando ndash reevoquemos a primeira metaacutefora com a qual

Bergson deseja que experimentemos o campo transcendental ndash fechamos nossos sentidos

para ele e deixamos de percebecirc-lo115

Quer se trate de imagens atuais quer de imagens

virtuais estas natildeo satildeo abolidas apenas porque deixamos de percebecirc-las porque fechamos

114

Eacute significativo que Bergson (2001 p 286160) afirme que ldquoles objets situeacutes autour de nous repreacutesentent agrave

des degreacutees differeacutents une action que nous pouvons accomplir sur les choses ou que nous devrons subir

drsquoellesrdquo esse excerto textualmente tatildeo distante encontra-se em paralelo com a primeira descriccedilatildeo das

imagens materiais no campo transcendental que ainda natildeo supotildeem uma vida ldquoToutes ces images agissent et

reacuteagissent les unes sur les autres dans toutes leurs parties eleacutementaires selons des lois constantes []rdquo

(BERGSON 2001 p 16911) 115

A bela imagem analoacutegica bergsoniana para aproximar os estados de inconsciecircncia da mateacuteria e da

memoacuteria eacute a seguinte ldquoTout le monde admet en effet que les images actuellement preacutesentes agrave notre

perception ne sont pas le tout de la matiegravere Mais drsquoautre part que peut-ecirctre un objet mateacuteriel non perccedilu une

image non imagineacutee sinon une espegravece drsquoeacutetat mental inconscient Au delagrave de murs de votre chambre que

vous percevez en ce moment il y a des chambres voisines puis le reste de la maison enfin la rue et la ville

ougrave vous demeurez Peu importe la theacuteorie de la matiegravere agrave laquelle vous vous ralliez reacutealiste ou ideacutealiste

vous pensez eacutevidemment quand vous parler de la ville de la rue des autres chambres de la maison agrave autant

de perceptions absentes de votre conscience et pourtant donneacutees en dehors drsquoelle Elles ne se creacuteent pas agrave

meacutesure que votre conscience les accueillent elles eacutetaient donc deacutejagrave en quelque maniegravere et puisque par

hypothegravese votre conscience ne les appreacutehendait pas comment pouvaitent-elles exister en soi sinon agrave lrsquoeacutetat

inconscient Drsquoougrave vient alors qursquoune existence en dehors de la conscience nous paraicirct claire quand il srsquoagit

des objets obscure quand nous parlons du sujet rdquo (BERGSON 2001 p 284158)

149

nossos sentidos para elas Quando adormecemos profundamente natildeo abolimos o mundo

real quando vivemos natildeo abolimos as imagens de sonho Daiacute porque a analogia que

Bergson propotildee entre lembranccedilas inconscientes e regiotildees natildeo percebidas da mateacuteria natildeo eacute

apenas um artifiacutecio retoacuterico Ela se sustenta ontologicamente sobre um criteacuterio de real que

exige que a percepccedilatildeo seja tomada em um sentido muito preciso Dados no campo

transcendental um corpo-imagem participa de uma seacuterie apresenta uma conexatildeo loacutegica ou

causal com aquilo que o precede e o segue ao passo em que eacute dado no interior do proacuteprio

campo por isso insistiacuteamos em dizer que se trata de um ldquocorpo-imagem banhado de

imagensrdquo Sua existecircncia soacute pode ser definida por um potencial de accedilatildeo na medida em que

se exerce em funccedilatildeo de uma seacuterie da qual participa

Eacute possiacutevel objetar que a definiccedilatildeo de Bergson eacute demasiadamente fenomenoloacutegica

dizer que ldquoser eacute poder ser percebidordquo implicaria pressupor junto ao ser uma consciecircncia (ao

menos potencial) predisposta a percebecirc-lo em potecircncia No entanto Bergson dispensa

radicalmente o estratagema da subjetividade transcendental (PRADO JUacuteNIOR 1989 p

145) Por essa razatildeo afirmamos de um lado que o conceito de real em Bergson deveria

ser definido segundo um potencial de accedilatildeo que implica poder agir e ser agido e natildeo

simplesmente como ldquopercepccedilatildeordquo que eacute um termo que nos habituamos a psicologizar Eacute

importante observar que na mesma medida em que tendemos a psicologizar o termo

ldquopercepccedilatildeordquo admitimos sem dificuldade que a proacutepria mateacuteria inorganizada comporte

potenciais de accedilatildeo e em certo niacutevel interaja em seacuteries heterogecircneas sem por isso nos

representarmos que aiacute opera uma consciecircncia de tipo psicoloacutegico Ao mesmo tempo

advertimos que adotariacuteamos momentaneamente o ponto de vista do corpo-imagem um

ponto de vista orgacircnico que comporta certo niacutevel de consciecircncia embora natildeo forccedilosamente

psicoloacutegico ou antropoloacutegico

Para desfazer de uma vez por todas os possiacuteveis enganos conduzamos esse criteacuterio

de realidade ao seu limite suponhamos um campo transcendental povoado de elementos

inorgacircnicos de imagens que natildeo se experimentam por dentro um mundo feito apenas de

mateacuteria Se aiacute podemos enxergar a constituiccedilatildeo de uma seacuterie de imagens como assegurar

sua realidade sem uma consciecircncia que abra e feche seus sentidos no horizonte das

imagens dadas no campo transcendental Ora suprimamos toda consciecircncia com isso

perdemos os centros de indeterminaccedilatildeo que agem entre as imagens mas natildeo as imagens

mesmas Inconscientes as imagens natildeo cessaratildeo de agir e reagir umas sobre as outras sem

introduzir no mundo nada de novo segundo as leis constantes da natureza Ainda assim

elas existiratildeo pois se definem por potenciais de accedilatildeo e reaccedilatildeo determinados por meio dos

150

quais interagem mecanicamente Accedilotildees e reaccedilotildees natildeo cessaratildeo de variar mas de modo

determinado e constante Os organismos e as consciecircncias satildeo dispensaacuteveis e no limite

natildeo podem fundar uma ontologia da imanecircncia como a de Bergson justamente pela forccedila

de seu criteacuterio de real Potenciais de accedilatildeo accedilatildeo e reaccedilatildeo efetivas ndash pouco importa se

determinados ou natildeo ndash satildeo o quanto basta para definir algo como existente do ponto de

vista da mateacuteria inorganizada116

Para existir basta o inconsciente compreendido natildeo como

uma regiatildeo psicoloacutegica agrave moda freudiana mas como o extraconsciente como ldquoexistence

en dehors de la consciencerdquo (BERGSON 2001 p 284158) ao longo de todo o

bergsonismo eacute uma existecircncia fora da consciecircncia que define o real O real eacute o que pode

existir em estado consciente (ser percebido ser agido efetivamente) ou em estado

inconsciente (poder ser percebido poder ser agido virtualmente) Foi para atingir esse mais

alto grau de coerecircncia que definiacuteamos o sentido da impotecircncia da memoacuteria como originada

da perspectiva do que eacute agido e atual assim resguardaacutevamos da perspectiva do virtual os

potenciais de ser percebido e ser agido que permanecem em estado inconsciente

Um excerto de Dureacutee et Simultanacuteeacuteiteacute de 1922 dedica-se agrave questatildeo da realidade e

devemos verificar nossa hipoacutetese tambeacutem aqui Ele oferece ainda o mesmo criteacuterio de real

mas o desenvolve em um contexto de todo diferente consistente em determinar

criticamente a natureza do tempo em relaccedilatildeo agrave Teoria da Relatividade de Einstein A

grande preocupaccedilatildeo de Bergson nesse aspecto seria a de distinguir os elementos reais e

convencionais com os quais a fiacutesica definia o tempo Isso o conduz a questionar o que se

entende por ldquorealidaderdquo compreendida como realidade ldquoem geralrdquo e nessa medida

converge com nossa anaacutelise Apoacutes observar a inexistecircncia de consenso filosoacutefico sobre o

tema117

Bergson anuncia que continuaraacute a seguir sua uacutenica regra metodoloacutegica para aquele

ensaio ldquoa de natildeo afirmar nada que natildeo possa ser aceito por qualquer filoacutesofo qualquer

cientistardquo sobre a realidade especiacutefica do tempo

Como nos representamos comumente o tempo Certamente natildeo sem um antes e

um depois isto eacute fora de uma seacuterie contiacutenua sem uma sucessatildeo em funccedilatildeo da qual o

tempo se define para noacutes Toda a argumentaccedilatildeo de Bergson envolve-se pela demonstraccedilatildeo

116

ldquo[] les choses une fois constitueacutees manifestent agrave la surface par leurs changements de situations les

modifications profondes qui srsquoaccomplissent au sein du Tout Nous disons alors qursquoelles agissent les unes sur

les autres Cette action nous apparaicirct sans doute sous forme de mouvementrdquo (BERGSON 2001 p 750-

751302) Do modo como Bergson se expressa em LrsquoEacutevolution Creacuteatrice percebe-se que o potencial de accedilatildeo

(agir e ser agido) o que jaacute implica supocirc-lo integrado a uma seacuterie eacute suficiente para assegurar movimento e de

consequecircncia existecircncia no tempo na duraccedilatildeo 117

ldquo[] o problema recebeu tantas soluccedilotildees quantas satildeo as nuanccedilas que o realismo e o idealismo comportamrdquo

(BERGSON 2006 p 76)

151

de que onde natildeo haacute memoacuteria natildeo poderia haver sucessatildeo e por extensatildeo loacutegica tempo118

Nesse caso ou haacute antes ou depois jamais a conjugaccedilatildeo de ambos que eacute imprescindiacutevel

para haver tempo Diante disso Bergson pode definir de uma vez por todas seu criteacuterio de

real em relaccedilatildeo ao tempo ldquo[] quando quisermos saber se estamos lidando com o tempo

real ou com um tempo fictiacutecio teremos simplesmente de nos perguntar se o objeto que nos

apresentam poderia ou natildeo ser percebido tornar-se conscienterdquo (BERGSON 2006 p 77)

As duas uacuteltimas oraccedilotildees parecem revelar uma inadequaccedilatildeo em nosso conceito de

real afinal haacute pouco diziacuteamos que ele natildeo se define por uma consciecircncia No entanto isto

ocorre apenas em aparecircncia Em primeiro lugar observe-se que Bergson retorna a seu

criteacuterio de real expressando-o em termos equivalentes aos da definiccedilatildeo de 1896 ldquoser eacute

poder ser percebidordquo Nada precisamos aprofundar sobre o sentido de percepccedilatildeo

continuam a valer aqui as razotildees retrospectivas

Em segundo lugar a expressatildeo ldquo[] tornar-se conscienterdquo eacute a que parece opor

embaraccedilos ndash mas eles satildeo meramente fictiacutecios e decorrem do haacutebito intelectual de supor

que sempre que se diz ldquoconsciecircnciardquo estaacute-se a dizer ldquoconsciecircncia psicoloacutegicardquo ou

ldquoconsciecircncia humanardquo Veremos que por traacutes dessa leitura natildeo encontraremos nada aleacutem

de um preconceito antropoloacutegico Comecemos observando nesse proacuteprio excerto a que

outro conceito Bergson compara esse elemento de consciecircncia Apoacutes definir o tempo como

o senso comum o define ndash como sucessatildeo seacuterie que encadeia antes e depois ndash Bergson

(2006 p 77) acrescenta que seria impossiacutevel supor sucessatildeo ldquo[] ali onde natildeo haacute alguma

memoacuteria alguma consciecircncia real ou virtual []rdquo Ou seja nesse trecho o sentido de

consciecircncia afasta-se do preconceito antropoloacutegico para ser compreendida antes como

ldquoalguma memoacuteriardquo ldquoreal ou virtualrdquo A consciecircncia aqui equivale agrave memoacuteria elementar

impessoal natildeo-psicoloacutegica e ontoloacutegica que a duraccedilatildeo real supotildee na retenccedilatildeo e penetraccedilatildeo

de instantes que opera Afinal ela soacute pode consistir em sucessatildeo multiplicidade

qualitativa heterogecircnea e de penetraccedilatildeo se ldquoalguma memoacuteriardquo age para fundir essa

multiplicidade em um contiacutenuo

Em terceiro lugar se retornarmos a uma das regiotildees mais importantes da

argumentaccedilatildeo metafiacutesica de Bergson em Dureacutee et Simultaneacuteiteacute sobre o tempo nos

depararemos com um aprofundamento dessa ideia de consciecircncia que seraacute uacutetil para dirimir

qualquer duacutevida sobre o sentido em que ela eacute empregada para definir o criteacuterio de

realidade ldquoO que queremos estabelecerrdquo diz Bergson ldquoeacute que natildeo se pode falar de uma

118

De nossa parte essa demonstraccedilatildeo seraacute detalhada na proacutexima seccedilatildeo ldquoO ser do passado como fundamento

do tempo memoacuteria repeticcedilatildeo devirrdquo

152

realidade que dura sem introduzir nela uma consciecircnciardquo ldquo[] eacute impossiacutevel imaginar ou

conceber um traccedilo-de-uniatildeo entre o antes e o depois sem um elemento de memoacuteria e por

conseguinte de consciecircnciardquo e no iniacutecio do paraacutegrafo subsequente ldquoTalvez o emprego

dessa palavra repugne se associarem a ela um sentido antropomoacuterfico Mas para conceber

uma coisa que dura natildeo eacute de modo algum necessaacuterio pegar a memoacuteria que nos eacute proacutepria e

transportaacute-la mesmo atenuada para o interior da coisardquo (BERGSON 2006 p 56)119

Em

resumo com consciecircncia ou com memoacuteria Bergson quer dizer continuidade da duraccedilatildeo

interpenetraccedilatildeo e fusatildeo de elementos de uma seacuterie natildeo consciecircncia humana120

O que o conceito de real e seu criteacuterio de verificaccedilatildeo assim discutidos datildeo a ver eacute

uma espeacutecie de grito que atravessa o bergsonismo ldquoNatildeo antropologize demais a memoacuteria

nem a consciecircnciardquo Eis um dos significados profundos que impedem que se coloque

Bergson no rol dos psicoacutelogos Tampouco o campo transcendental deve equivaler a uma

consciecircncia transcendental uma vez que ldquoa consciecircncia filosoacutefica soacute surge no interior de

um campo que a precede e natildeo pode ser isolada de suas raiacutezes preacute-filosoacuteficasrdquo (PRADO

JUacuteNIOR 1989 p 205) Ele eacute a regiatildeo do ser em que se constituem seacuteries extensas e

inextensas ou duracionais

Esse longo desvio nos permite retomar definitivamente a demonstraccedilatildeo do modo de

conservaccedilatildeo em si mesmo das lembranccedilas puras no exato ponto em que o abandonamos

para investigar o conceito bergsoniano de real Enriquecidos pela ideia de que o ser ou o

real para Bergson devem definir-se como potencial de accedilatildeo ndash compreendido como poder

de agir e ser agido que supotildee sua participaccedilatildeo em uma seacuterie ndash remontamos do campo

transcendental em direccedilatildeo agrave consciecircncia implicada no organismo atento para a vida

Adotamos uma vez mais seu ponto de vista em relaccedilatildeo ao qual a lembranccedila pura mostra

apenas uma face de impotecircncia e inconsciecircncia ndash nesse ponto jaacute podemos afirmar que a

primeira eacute o signo do virtual a segunda o signo do real como existecircncia fora da

consciecircncia Agrave lembranccedila pura pertencem a espera e a espreita na medida em que o

presente eacute ldquoo que vive para mimrdquo De seu turno ldquo[] le passeacute nrsquoa plus drsquointerecirct pour nousrdquo

(BERGSON 2001 p 285159) e eacute desse ponto de vista impotente porque inconsciente

Inclinando-se incessantemente em direccedilatildeo ao futuro o presente condiz com a distacircncia

relativa em que podemos agir ou sofrer a accedilatildeo das imagens agrave nossa volta e assim se

119

A referecircncia corresponde a todos os trechos citados 120

Deleuze (1966 p 45) converge com essa interpretaccedilatildeo ao afirmar ldquoLa dureacutee est essentiellement meacutemoire

conscience liberteacute Et elle est conscience et liberteacute parce qursquoelle est drsquoabord meacutemoirerdquo

153

desenha no espaccedilo o esquema de nosso futuro imediato Coexistente com esse ldquoinstanterdquo

que define o de uma percepccedilatildeo atual ndash que emprestando uma inspirada expressatildeo

poderiacuteamos compreender como ldquoo miacutenimo de tempo contiacutenuo pensaacutevelrdquo (DELEUZE

1996 p 184) ndash decorre a duraccedilatildeo em que essa percepccedilatildeo sucede

Essa coextensatildeo nos parece misteriosa ndash como nos parece misteriosa a realidade do

passado em si mesmo ndash em face de determinaccedilotildees bioloacutegicas especiacuteficas ldquoLe mecircme

instinct en vertu duquel nous ouvrons indeacutefiniment devant nous lrsquoespace fait que nous

refermons derriegravere nous le temps agrave meacutesure qursquoil srsquoeacutecoulerdquo (BERGSON 2001 p 286160-

161) Assim somos levados a aceitar de bom grado que o universo material ultrapasse

nossa percepccedilatildeo presente mas tambeacutem confundimos no que diz respeito ao escoar do

tempo ser e ser presente De seu turno Bergson insiste sem cessar na analogia do estatuto

virtual do inconsciente suposto por regiotildees natildeo percebidas da mateacuteria e o das lembranccedilas

puras121

No entanto se as lembranccedilas saiacutedas do fundo da memoacuteria podem parecer encerrar

algo fantasmaacutetico e irreal isso natildeo se deve senatildeo agrave accedilatildeo inibidora e organizadora da accedilatildeo

imediatamente futura de uma consciecircncia atenta agrave vida ndash funccedilatildeo de um recalque vital

Da mesma forma que os objetos dispostos no espaccedilo parecem formar uma seacuterie na

extensatildeo as lembranccedilas puras no ponto mais distendido de uma consciecircncia apresentar-

se-iam tambeacutem como uma seacuterie contiacutenua Assim podendo ser percebidas e participando de

uma seacuterie temporal preenchem-se as condiccedilotildees para a existecircncia ndash no campo da

experiecircncia ndash das lembranccedilas afinal a impotecircncia atribuiacuteda agraves lembranccedilas por uma

atenccedilatildeo agrave vida que natildeo cessa de vigiaacute-las e inibi-las natildeo determina outra coisa senatildeo a

pressatildeo que exercem do fundo da memoacuteria feita de espera e espreita sua impotecircncia atual

assinala do ponto de vista do virtual um potencial de agirem e serem agidas um potencial

de atualizaccedilatildeo sua participaccedilatildeo em uma continuidade temporal virtual assegura sua

potencial participaccedilatildeo em outra seacuterie de efetuaccedilatildeo projetando-se no espaccedilo Por essa

razatildeo tudo o que compotildee a memoacuteria pura define-se como real mas virtual porque

inconsciente ndash exatamente como as regiotildees da mateacuteria natildeo percebidas por um corpo-

imagem promessas ou ameaccedilas fora da consciecircncia e no entanto plenamente reais O

potencial do virtual eacute o mesmo de um golpe desferido pelas costas e no escuro ndash ele toca a

121

ldquoEn reacutealiteacute lrsquoadheacuterence de ce souvenir agrave notre eacutetat preacutesent est tout agrave fait comparable agrave celle des objets

inaperccedilus aux objets que nous percevons et lrsquoinconscient joue dans les deux cas un rocircle du mecircme genrerdquo

(BERGSON 2001 p 286-287161) ou entatildeo ao afirmar ldquoNous nrsquoavons pas affaire en ce qui concerne les

objets inaperccedilus dans lrsquoespace et les souvenirs inconscients dans le temps agrave deux formes radicalment

diffeacuterentes de lrsquoexistence mais les exigences de lrsquoaction sont inverses []rdquo (BERGSON 2001 p 288162-

163)

154

sombra do irrepresentaacutevel que com efeito soacute o eacute do ponto de vista dos recortes imoacuteveis

que o atual produz no devir

Se pudemos nos convencer de que a memoacuteria se conserva o problema que se

insinua agrave anaacutelise eacute a determinaccedilatildeo do ldquolugarrdquo em que ela se conserva e se essa questatildeo se

insinua diz Bergson isso se deve inteiramente agrave nossa obsessatildeo pelas imagens obtidas no

espaccedilo Jaacute conhecemos os motivos ndash e tambeacutem alguns gracejos ndash com os quais Bergson

rejeitava a hipoacutetese da conservaccedilatildeo cerebral ou a tese do paralelismo psicofiacutesico Ao

discorrer sobre o papel do ceacuterebro a seccedilatildeo precedente demonstrou abundantemente as

articulaccedilotildees conceituais que conduzem essas teses ao absurdo ou ao paradoxo Se o ceacuterebro

eacute como demonstramos uma parte do corpo bioloacutegico uma imagem material ele nunca

ocupa mais do que o momento presente Sendo sempre o estado estacionaacuterio de um devir

em vias de formaccedilatildeo de minhas sensaccedilotildees e de meus movimentos dos prolongamentos de

uns nos outros logo se torna desnecessaacuterio pensar a conservaccedilatildeo do passado em analogia a

clichecircs fotograacuteficos a serem armazenados em algum lugar Se Bergson (2001 p 290166)

afirma a sobrevivecircncia em si do passado eacute ultrapassando a suposiccedilatildeo do haacutebito intelectual

de pensar a conservaccedilatildeo como relaccedilatildeo espacial inaplicaacutevel agrave duraccedilatildeo entre um continente

que conserva e um conteuacutedo a ser conservado A conservaccedilatildeo eacute antes de mais nada

retenccedilatildeo ou registro na duraccedilatildeo ndash isto eacute memoacuteria

Contudo como o passado pode por hipoacutetese conservar-se em si mesmo se deixou

de ser A essa contradiccedilatildeo Bergson responde afirmando que ldquola question est preacuteciseacutement

de savoir si le passeacute a cesseacute drsquoexister ou srsquoil a simplement cesseacute drsquoecirctre utilerdquo (BERGSON

2001 p 291166) O que estaacute na raiz dessa contradiccedilatildeo aparente eacute a reduccedilatildeo do ser ao ser

presente ndash confusatildeo explicada ao nos representarmos o tempo de modo espacializado e ao

ignorarmos a realidade movente do devir122

Se o presente for apenas um limite ideal

moacutevel entre o passado e o futuro nada teraacute menos realidade que ele ao mesmo tempo em

que ele eacute jaacute se passou Se o presente por outro lado for o presente concreto ocupando

uma duraccedilatildeo tomando parte em uma continuidade ele teraacute muito de passado imediato por

meio do qual reconstruiacutemos a unidade e o sentido de uma percepccedilatildeo123

As razotildees de fundo

122

ldquoVous deacutefinissez arbitrairement le preacutesent ce qui est alors que le preacutesent est simplement ce qui si faitrdquo

(BERGSON 2001 p 291166) 123

Bergson explica por que percebemos praticamente soacute o passado por meio do ceacutelebre exemplo de uma

instantacircnea emissatildeo luminosa ldquoDans la fraction de seconde que dure la plus courte perception possible de

lumiegravere des trillions de vibrations ont pris place dont la premiegravere est seacutepareacutee de la derniegravere par un intervalle

eacutenormeacutement diviseacuterdquo (BERGSON 2001 p 291166-167) Dessa forma nossa mais instantacircnea percepccedilatildeo

consistiria em uma siacutentese mental de uma incalculaacutevel multidatildeo de elementos rememorados por isso

Bergson pode afirmar que a percepccedilatildeo pura eacute jaacute lembranccedila e que o presente puro natildeo passa do

inapreensiacutevel avanccedilar do passado a roer o futuro

155

satildeo psico-bioloacutegicas como tudo em nossa consciecircncia psiacutequica nos inclina agrave vida damos

primazia agravequilo que se desenrola atualmente natildeo agravequilo que jaacute se desenrolou eis o fruto de

nossa adaptaccedilatildeo ao presente mais proacutexima dos haacutebitos engendrados pela memoacuteria motora

que das lembranccedilas puras

No entanto entre a memoacuteria motora e a memoacuteria pura apenas esta uacuteltima seria a

verdadeira registrando em continuidade seacuteries de acontecimentos uacutenicos e irrepetiacuteveis no

dorso inextenso da duraccedilatildeo real Apesar de opostos haacutebito e memoacuteria pura agenciam-se na

experiecircncia concreta em que o corpo se determina como o lugar de passagem dos

movimentos recebidos e devolvidos mediaccedilatildeo para com as imagens que o cercam A

ceacutelebre imagem do cone invertido sobre um plano daacute-nos enfim a relaccedilatildeo coextensiva

entre elas O cone invertido designa a totalidade de nossas lembranccedilas acumuladas

distribuiacutedas em diferentes niacuteveis de consciecircncia ndash repeticcedilotildees mais distendidas na medida

em que nos aproximamos da base mais contraiacutedas ao passo em que nos deslocamos em

direccedilatildeo ao veacutertice Este designa o estado atual de nosso corpo e de seus mecanismos

sensoacuterio-motores que tocando o plano em determinado ponto representa seu recorte

perceptivo como o niacutevel mais contraiacutedo da base do cone e portanto da memoacuteria pura com

a qual toda percepccedilatildeo atual coexiste e na qual se duplica O equiliacutebrio entre as duas

memoacuterias definiria o senso praacutetico do homem de accedilatildeo enquanto a primazia do presente

designaria natildeo apenas as formas de vida inferior mas tambeacutem o homem impulsivo por sua

vez o que vive em meio aos milhares de imagem do passado caracteriza-se como o

sonhador que de seu turno natildeo estaacute melhor adaptado agrave vida O que a vida exige eacute que a

percepccedilatildeo seja pragmaacutetica isto eacute que ela seja capaz de responder a uma tendecircncia ou a

uma necessidade (BERGSON 2001 p 299176)

A uacuteltima questatildeo que nos resta abordar eacute como Bergson descreve a dinacircmica de

atualizaccedilatildeo de lembranccedilas especialmente como selecionar em uma multidatildeo de imagens

semelhantes agrave situaccedilatildeo presente aquela mais uacutetil para a accedilatildeo Essa questatildeo se torna

relevante na medida em que torna possiacutevel aprofundar a questatildeo da distribuiccedilatildeo das

lembranccedilas em diferentes niacuteveis de consciecircncia mais ou menos contraiacutedos Se retornarmos

ao diagrama do cone invertido Bergson (2001 p 305184) havia suposto que a totalidade

de nossas lembranccedilas ndash o que para ele equivale agrave nossa personalidade ndash coexiste indivisa e

contraiacuteda em relaccedilatildeo agrave nossa percepccedilatildeo presente Concentrada no ponto moacutevel que

descreve o estado atual de nosso corpo e seu recorte perceptivo com relaccedilatildeo ao plano da

representaccedilatildeo a consciecircncia teria de expandir-se na direccedilatildeo da base a fim de que

156

colocando-se no passado em algum niacutevel de consciecircncia dele pudesse encontrar aiacute uma

lembranccedila uacutetil

Esse movimento de contraccedilatildeo e de expansatildeo pelo qual a consciecircncia passa de um

niacutevel de consciecircncia a outro decorre das necessidades fundamentais da vida (BERGSON

2001 p 305185) Em cada um dos extremos ndash veacutertice da percepccedilatildeo informada pelos

haacutebitos motores ou base da memoacuteria pura ndash natildeo eacute possiacutevel encontrar isoladamente

nenhuma razatildeo para fixar a atenccedilatildeo em uma parte determinada do passado afinal no

veacutertice todo haacutebito motor adaptado ao presente seria semelhante e contiacuteguo agrave percepccedilatildeo

enquanto na base toda lembranccedila pareceria radicalmente diversa e descolada da percepccedilatildeo

atual ndash mesmo porque colocados de iniacutecio na base nossa atenccedilatildeo agrave vida por demais

desinteressada jaacute natildeo seria capaz de determinar os efeitos de semelhanccedila e continuidade

(BERGSON 2001 p 306186)

Descritos esses dois limites extremos eacute necessaacuterio observar que concretamente eles

jamais satildeo atingidos ldquoNotre vie psychologique normale oscille [] entre ces deux

extremiteacutesrdquo (BERGSON 2001 p 307187) sem jamais entregar-se a um estado puramente

sensoacuterio-motor nem a um devaneio absolutamente desligado de uma vaga atividade atual

Com efeito o estado sensoacuterio-motor orienta a memoacuteria da qual eacute seu prolongamento ativo

por sua vez a memoacuteria pressiona no sentido desse prolongamento do qual ela constitui a

base a fim de inserir aiacute a maior quantidade de imagens possiacutevel Disso resulta uma seacuterie de

estados possiacuteveis da memoacuteria correspondentes a niacuteveis diferentes de contraccedilatildeo e distensatildeo

da consciecircncia Para representaacute-los mais facilmente basta imaginar que no diagrama do

cone insere-se entre a base e o veacutertice uma seacuterie de secccedilotildees virtuais paralelas agrave base

Cada uma delas apresenta um estado da memoacuteria mais ou menos contraiacutedo conforme

esteja mais proacuteximo da percepccedilatildeo ou da memoacuteria pura ao mesmo tempo cada um desses

niacuteveis implica a totalidade de nosso passado ndash a repeticcedilatildeo integral de nossa memoacuteria Em

cada um desses niacuteveis embora natildeo se trate de lembranccedilas justapostas umas agraves outras ldquohaacute

pontos brilhantesrdquo lembranccedilas dominantes que se multiplicam cada vez mais ao passo em

que se remonta em direccedilatildeo agrave base nela haacute apenas constelaccedilotildees claras e vastas

Poreacutem como a atualizaccedilatildeo e a seleccedilatildeo de um desses estados se operam Tudo se

passa com dois movimentos simultacircneos pelos quais nossa memoacuteria responde ao apelo do

presente Um de translaccedilatildeo pelo qual a memoacuteria vai ao encontro do estado presente em

vista da accedilatildeo outro de rotaccedilatildeo pelo qual orientando-se de acordo com a situaccedilatildeo em

questatildeo apresenta-lhe sua face mais uacutetil (BERGSON 2001 p 307-308188) A cada um

desses infinitos niacuteveis de contraccedilatildeo que reduzem mais ou menos a integral de nossa

157

memoacuteria em virtude do presente corresponde um sem nuacutemero de formas de associaccedilatildeo por

semelhanccedila e contiguidade Natildeo por acaso Bergson (2001 p 309189-190) observa que

ldquoDans le plan extrecircme qui repreacutesente la base de la meacutemoire il nrsquoy a pas de souvenir qui ne

soit lieacute par contiguumliteacute agrave la totaliteacute des eacuteveacutenements qui le preacutecegravedent et aussi de ceux que le

suiventrdquo

Eacute a continuidade da duraccedilatildeo em sua forma mais pura e distendida que encontramos

dessa maneira a memoacuteria elementar que natildeo cessa de formar seacuteries por contiguidade ndash o

que constitui como vimos um dos criteacuterios do real para Bergson Portanto eacute a ele que

devemos retornar a fim de desdobrar as consequecircncias efetivamente ontoloacutegicas desse

conceito de memoacuteria Apenas um tal desdobramento tornaraacute possiacutevel apreender o

significado de afirmar o ser do passado como fundamento do tempo

sect 3 O SER DO PASSADO COMO FUNDAMENTO DO TEMPO

MEMOacuteRIA REPETICcedilAtildeO E DEVIR

De um ponto de vista ontoloacutegico a consistecircncia virtual da memoacuteria define o ser do

passado Se como vimos a memoacuteria soacute pode conservar-se em si no proacuteprio tempo o

ceacutelebre esquema do cone de memoacuteria apresenta a coexistecircncia da totalidade de nosso

passado ndash inteiramente presente em cada um dos infinitos niacuteveis que separam a base do

cone de seu veacutertice presente ndash com o estado atual de nosso corpo sensoacuterio-motor

conferindo agrave percepccedilatildeo um horizonte de realidade temporal De acordo com esse horizonte

o presente mais imediato consistiria na integral de nosso passado em seu niacutevel mais

contraiacutedo ponto perceptivo sobre o plano da representaccedilatildeo As linhas gerais desse

esquema em que coexistem memoacuteria do corpo percepccedilatildeo presente e memoacuteria pura

distribuiacutedos em diversos niacuteveis de repeticcedilatildeo psiacutequica determinam a realidade proacutepria do

ser do passado e com ele a realidade da memoacuteria

Correlata a essa realidade eacute a necessidade de pocircr-se de iniacutecio no passado saltar

pragmaticamente do registro do atual ao virtual em que se conservam as lembranccedilas a fim

de enriquecer a percepccedilatildeo presente com uma lembranccedila uacutetil ndash selecionada em vista das

necessidades presentes no transcurso da accedilatildeo ndash no tempo de hesitaccedilatildeo entre a siacutentese de

registro dos movimentos que se prolongam em lembranccedilas e a do prolongamento das

sensaccedilotildees misturadas a lembranccedilas que deflagram a accedilatildeo de um corpo Esse tempo de

hesitaccedilatildeo ndash mais ou menos amplo ndash eacute o que define o grau de indeterminaccedilatildeo que se pode

158

inserir nas accedilotildees Tudo decorre da coexistecircncia da memoacuteria pura que se natildeo existe no

mesmo sentido do atual ndash definido pela atividade pelo puro devir em relaccedilatildeo ao qual eacute

levado a abrir-se ndash insiste ou simplesmente eacute (DELEUZE 1966 p 49-50) Ela eacute sem

agir eacute ser mas sem ser uacutetil Da perspectiva do atual a memoacuteria pura definia-se como

impotente e inconsciente da do virtual potecircncia fora da consciecircncia psicoloacutegica e sem

relaccedilatildeo (senatildeo virtual) com o atual ponto em que memoacuteria e imemorial parecem coincidir

A memoacuteria pura constitui o iacutendice de que a memoacuteria antes de ser psicoloacutegica eacute

ontoloacutegica sendo necessaacuterio precisar como Bergson a compreende Na medida em que

esse iacutendice que liga a realidade da lembranccedila agravequela de um fundo obscuro no qual jamais

conseguimos nos colocar por inteiro ndash e no entanto ele estaacute inteiramente presente em cada

um dos niacuteveis subsequentes a esse limite puro ndash seraacute possiacutevel reafirmar natildeo apenas sua

realidade mas que a memoacuteria constitui condiccedilatildeo para o presente passar Nesse sentido a

memoacuteria poderaacute ser compreendida como fundamento do tempo Do ponto de vista do

atual o tempo se define pela sucessatildeo real pelo escoamento do presente ao mesmo tempo

veremos que eacute soacute do ponto de vista da memoacuteria que se pode entrever no presente que

passa o puro devir A essa problemaacutetica vem juntar-se a seguinte questatildeo sob o ponto de

vista da coexistecircncia de duraccedilotildees muito diferentes da sua percepccedilatildeo simultacircnea haacute um soacute

tempo ou muitos Haacute uma soacute memoacuteria ou muitas Trata-se do enigma da pluralidade ou

da unicidade do tempo em Bergson na qual deve verificar-se ainda uma vez a questatildeo do

tempo real

A fim de responder a essas trecircs questotildees essenciais agrave determinaccedilatildeo do problema de

uma ontologia do virtual em Bergson vecircm cruzar-se com os capiacutetulos centrais de Matiegravere

et Meacutemoire as anaacutelises de Dureacutee et Simultaneacuteiteacute (1922) especialmente seu capiacutetulo

terceiro sobre a natureza do tempo o mais profundamente metafiacutesico de toda essa

polecircmica e no qual a realidade do tempo eacute colocada mais em termos ontoloacutegicos que

psicoloacutegicos ndash daiacute porque merecer nesse momento atenccedilatildeo analiacutetica

Assim como no Essai em Dureacutee et Simultaneacuteiteacute o tempo seraacute definido antes de

tudo em funccedilatildeo da continuidade de nossa vida interior No entanto a essa definiccedilatildeo segue-

se um raacutepido movimento que abstrai a consciecircncia individual e que consiste em questionar

o significado impessoal dessa continuidade definida por uma imanecircncia a si mesma ldquoO

que eacute essa continuidade A de um escoamento ou de uma passagem mas de um

escoamento e de uma passagem que se bastam a si mesmos uma vez que o escoamento

natildeo supotildee uma coisa que se escoa e a passagem natildeo pressupotildee estados pelos quais se passa

159

[]rdquo (BERGSON 2006 p 51) Enquanto experimentamos em profundidade a realidade

movente de uma transiccedilatildeo a inteligecircncia faz com que instantacircneos e estados recortados de

seu movimento absoluto nos obsedem O que eacute vivido natildeo satildeo os estados ou as coisas

mas as passagens natildeo os instantes artificialmente captados mas as transiccedilotildees que duram

entre esses instantes ndash apreensotildees inertes em relaccedilatildeo agraves quais podemos afirmar que algo se

passou alterou-se Portanto a realidade do tempo pode tocar a superfiacutecie das coisas mas

penetra apenas entre o que uma inteligecircncia arbitrariamente decreta serem dois de seus

estados

Prova disso eacute que Bergson define essa transiccedilatildeo naturalmente experimentada de

duas formas ldquoeacute a proacutepria duraccedilatildeordquo ldquoEla eacute memoacuteriardquo Se pudermos definir a memoacuteria

como fundamento do tempo toda a questatildeo estaacute em determinar que tipo de duraccedilatildeo ou

que tipo de memoacuteria permite definir a continuidade implicada em uma transiccedilatildeo que basta

a si mesma que natildeo depende dos estados em que se encarna e que altera que constitui a

proacutepria substacircncia incessantemente movente que longe de atravessar pelas coisas parece

ser algo pelo que as coisas atravessam

Eis aqui o gesto radicalmente ontoloacutegico de Bergson ao definir essa continuidade

que implica sucessatildeo atual e empurrando o passado no presente e este no puro devir faz o

presente passar ldquoEla eacute memoacuteria mas natildeo memoacuteria pessoal exterior agravequilo que ela reteacutem

distinta de um passado cuja conservaccedilatildeo ela garantiria eacute uma memoacuteria interior agrave proacutepria

mudanccedila memoacuteria que prolonga o antes no depois e os impede de serem puros

instantacircneos que aparecem e desaparecem num presente que renasceria incessantementerdquo

(BERGSON 2006 p 51) Essencialmente virtual a memoacuteria eacute apresentada com as

propriedades da proacutepria duraccedilatildeo isto eacute como ldquoqualidadeldquo como ldquoheterogeneidaderdquo como

ldquoo que difere de sirdquo (DELEUZE 2002 p 34) independente dos estados cuja realidade

movente depende dela ela se manteacutem ldquoexterior agravequilo que ela reteacutemrdquo ela eacute impessoal

pois parece dispensar uma consciecircncia psicoloacutegica para constituir uma pura ldquocontinuidade

do antes no depoisrdquo Memoacuteria pura sem imagem-lembranccedila virtual absoluto limite

inconsciente que no entanto age na realidade do tempo sem se confundir com os estados

atuais que soacute podem alterar-se no imenso corpo-mundo dessa memoacuteria que assegura a

sucessatildeo do presente

Contudo a sucessatildeo natildeo eacute senatildeo um ponto de vista do atual sobre uma

continuidade virtual que impotildee uma memoacuteria coexistente com o presente Do ponto de

vista de um atual que parece perseverar em si mesmo o que senatildeo a memoacuteria viria inserir

a diferenccedila na repeticcedilatildeo engendrar um tempo de sucessatildeo contiacutenua Por si o presente eacute

160

um instantacircneo atualmente impotente que nem se torna passado nem se abre ao devir Se

o presente natildeo adveacutem sem memoacuteria o presente e o devir encontram nela o seu

fundamento se por ldquofundamentordquo entendermos aqui a mediaccedilatildeo que torna possiacutevel o

porvir Se um presente pode bastar-se em sua realidade atual jamais constituiria por si

sem a memoacuteria um presente que passa jamais se inseriria em uma seacuterie temporal

contiacutenua Desse ponto de vista talvez muito abstrato e instantacircneo Bergson pode dizer que

nada tem menos realidade que esse presente Contudo se tomado a partir da experiecircncia

concreta ele ocupa uma duraccedilatildeo ele se insere em uma seacuterie que natildeo comeccedila nem termina

por ele mas que o integra ndash e o que significa integrar o presente em uma seacuterie temporal

senatildeo ligaacute-lo por uma espeacutecie de memoacuteria ao passado e ao porvir O que estaacute implicado aiacute

senatildeo duraccedilatildeo sucessatildeo real memoacuteria ndash que natildeo se confunde com a linha abstrata que a

inteligecircncia decalca dela

Para provaacute-lo natildeo eacute preciso uma consciecircncia humana por certo basta a memoacuteria

muito impessoal do corpo os haacutebitos motores os prolongamentos mnemocircnicos impessoais

mais imediatos dos movimentos percebidos Tudo parece muito atual quase instantacircneo

natildeo fosse o tempo de hesitaccedilatildeo miacutenima que o aparelho sensoacuterio-motor deixa passar entre

estiacutemulo e reaccedilatildeo poreacutem no menor tempo contiacutenuo de percepccedilatildeo-accedilatildeo de um organismo

o que manteacutem a continuidade de uma na outra eacute ainda uma espeacutecie de memoacuteria Isso eacute

suficiente para provar que natildeo eacute preciso uma memoacuteria humana de tipo psicoloacutegico para

engendrar o tempo ele se basta com essa memoacuteria impessoal que prolonga o antes e o

depois ndash e como vimos ela eacute facilmente divisaacutevel no vivo Poreacutem ainda que esse exemplo

seja suficiente natildeo levamos com ele o conceito de memoacuteria como fundamento do tempo

a seu limite proacuteprio as imagens materiais em seu campo transcendental haveraacute a mesma

espeacutecie de memoacuteria entre elas

A reposta eacute forccedilosamente positiva e nos permite ver que mesmo aqui o gesto

ontoloacutegico de uma memoacuteria que ldquoprolonga o antes no depoisrdquo que eacute a ldquomemoacuteria interna agrave

proacutepria mudanccedilardquo jaacute se encontra suposto pela proacutepria realidade do campo transcendental

Caso contraacuterio como as imagens agiriam e reagiriam umas sobre as outras O que ligaria

mesmo imediatamente accedilatildeo e reaccedilatildeo Como exerceriam de maneira determinada o

potencial de accedilatildeo que haacute pouco definia sua realidade Haacute ainda um miacutenimo de tempo

contiacutenuo no qual accedilatildeo-reaccedilatildeo por simultacircneas que sejam satildeo recolhidas uma na outra Isso

prova que a mateacuteria dura que mesmo a repeticcedilatildeo material mais pura e nua ndash aquela que

natildeo parece introduzir no mundo nada de novo ndash implica uma memoacuteria da variaccedilatildeo de

potenciais nesse sentido muito elementar continuidade do antes no depois um

161

prolongamento que natildeo pode ser senatildeo temporal quando tomamos as imagens em seu

conjunto Natildeo haacute realidade em Bergson sem um miacutenimo de tempo contiacutenuo sem uma

duraccedilatildeo espessa a implicar uma memoacuteria que basta a si mesma ndash melodia pura sem

qualidades ldquosucessatildeo sem separaccedilatildeordquo (BERGSON 2006 p 52) No entanto com isso

deslocamos relativamente o problema da memoacuteria como fundamento do tempo soacute seraacute

possiacutevel afirmaacute-lo na medida em que se possa demonstrar que a duraccedilatildeo eacute necessaacuteria

mesmo agravequilo que aparentemente natildeo dura coisas simultaneamente percebidas

Tudo isso pode parecer ainda anaacutelogo demais a uma percepccedilatildeo interior e consciente

do tempo por mais que nos esforcemos por experimentaacute-lo da forma como Bergson

requer ontologicamente em si mesmo como continuidade pura e transiccedilatildeo ininterrupta

que bastando a si mesma parece implicar uma siacutentese passiva da memoacuteria independente

de um sujeito que contrai os instantes Se supomos que a mateacuteria e mesmo as

simultaneidades exigem uma duraccedilatildeo eacute preciso passar do tempo interior ao tempo das

coisas Como isso eacute possiacutevel Em geral fazemo-lo por uma ampliaccedilatildeo progressiva de

nosso recorte perceptivo do mundo material imaginando horizontes cada vez mais amplos

e todos submetidos pelo menos de direito ao sentimento de duraccedilatildeo que nossa consciecircncia

experimenta ao perceber uma dada regiatildeo da mateacuteria Se as coisas sob a eacutegide da

percepccedilatildeo consciente parecem durar da mesma forma que nossa consciecircncia ndash e se toda

percepccedilatildeo como vimos implica a um soacute tempo uma realidade dentro de noacutes (a de nosso

corpo) e fora de noacutes (a da superfiacutecie material percebida) ndash eacute loacutegico deduzir que o universo

dure como se houvesse ldquouma consciecircncia impessoal que seria o traccedilo-de-uniatildeo entre todas

as consciecircncias individuais assim como entre essas consciecircncias e o resto da naturezardquo

(BERGSON 2006 p 52-53) Assim em um uacutenico ato dois ou mais acontecimentos

seriam captados pela mesma percepccedilatildeo instantacircnea simultacircneos estariacuteamos diante de uma

realidade externa a noacutes que dura e uma interna que se sente durar

Se a deduccedilatildeo de um tempo das coisas a partir de um tempo interno repousa sobre a

simultaneidade verificada ao menos entre um momento de nossa vida interior um

momento de nosso corpo e um momento de toda a mateacuteria circundante uma questatildeo se

ligaria agrave da memoacuteria como fundamento do tempo haveria uma multiplicidade de duraccedilotildees

ou tudo se passaria como parece haveria uma soacute duraccedilatildeo a envolver todo o universo

Deparamos com as teses pluralistas ou monistas sobre a realidade da duraccedilatildeo Apoacutes

uma longa demonstraccedilatildeo de sua realidade jaacute natildeo precisamos questionaacute-la senatildeo com

relaccedilatildeo ao seu sentido A soluccedilatildeo desse ponto eacute essencial agrave demonstraccedilatildeo da memoacuteria ou

do ser do passado como fundamento do tempo de um ponto de vista ontoloacutegico afinal eacute

162

ela (a memoacuteria) que pode entregar-nos a duraccedilatildeo em sua realidade ontoloacutegica mais

profunda ela responde por seu sentido mais extremo No entanto por capital que seja essa

questatildeo a demonstraccedilatildeo de Bergson parece agrave primeira vista muito obscura e ateacute mesmo

evasiva124

acompanhemos como Bergson desenvolve esse raciociacutenio analoacutegico que ele

admite ldquomal ser conscienterdquo

Parte-se do pressuposto de que consciecircncias humanas tenham a mesma natureza

isto significa que diversas que sejam elas duram da mesma maneira ldquovivem a mesma

duraccedilatildeordquo (BERGSON 2001 p 54) Isso posto imaginamos seacuteries de consciecircncias

humanas distribuiacutedas por toda a extensatildeo do universo material de tal forma que ndash

proacuteximas umas das outras ndash ldquoduas delas tenham em comum a porccedilatildeo extrema do campo de

sua experiecircncia exteriorrdquo (Idem ibidem loc cit) Definem-se assim dois campos

contiacuteguos de experiecircncia externa que participam respectivamente da duraccedilatildeo de cada uma

das consciecircncias assim distribuiacutedas Como entre as duas consciecircncias trata-se da mesma

duraccedilatildeo entre as duas experiecircncias tratar-se-aacute tambeacutem de uma mesma duraccedilatildeo uma vez

que as porccedilotildees extremas do campo de cada uma das experiecircncias exteriores coincidem satildeo

comuns Logo ldquomediante esse traccedilo-de-uniatildeo elas se juntam em uma experiecircncia uacutenica

desenrolando-se numa duraccedilatildeo uacutenica que seraacute como queiram a de uma ou de outra das

duas consciecircnciasrdquo (BERGSON 2006 p 54-55) Eacute nesse ponto que Bergson insere um

raciociacutenio analoacutegico progressivo que consiste em repetir a experiecircncia indefinidamente

abrangendo a totalidade do mundo material Assim ateacute os confins da mateacuteria veremos que

ldquouma mesma duraccedilatildeo vai recolher ao longo de seu caminho os acontecimentos da

totalidade do mundo materialrdquo (BERGSON 2006 p 55)

Prestemos atenccedilatildeo por um momento agraves consciecircncias humanas que asseguram que

essa duraccedilatildeo seja a mesma de um extremo a outro da totalidade do mundo material sua

funccedilatildeo se resume em retransmitir a duraccedilatildeo que se difunde por todo o horizonte

material125

Suprimidas essas consciecircncias natildeo restaraacute mais do que ldquoo tempo impessoal em

que todas as coisas se escoaratildeordquo deixando entrever que eacute uma e mesma duraccedilatildeo que pela

multiplicaccedilatildeo de nossa consciecircncia transportamos agrave seacuterie das imagens materiais que

compotildeem o universo atestando ldquopela identidade de suas duraccedilotildees internas e pela

contiguidade de suas experiecircncias exteriores a unidade de um Tempo impessoalrdquo

124

ldquo[] caso fosse preciso decidir a questatildeo optariacuteamos no atual estado de nossos conhecimentos pela

hipoacutetese de um Tempo material uno e universal Natildeo eacute mais que uma hipoacutetese mas estaacute fundada num

raciociacutenio por analogia que devemos ter por conclusivo enquanto natildeo nos tiverem oferecido nada mais

satisfatoacuteriordquo (BERGSON 2006 p 54) 125

ldquo[] e poderemos entatildeo eliminar as consciecircncias humanas que tiacutenhamos disposto aqui e acolaacute como

retransmissores para o movimento de nosso pensamento []rdquo (BERGSON 2006 p 55)

163

(BERGSON 2006 p 55) Em siacutentese certo nuacutemero de consciecircncias de mesma natureza e

simultacircneas aplicadas duas a duas a regiotildees contiacuteguas da mateacuteria assegurariam pela

simultaneidade da percepccedilatildeo comum que as coisas duram Suprimidas essas consciecircncias

restaria apenas a simultaneidade da experiecircncia potencial do todo da mateacuteria assegurada

por um Tempo uacutenico universal que implicaria um niacutevel de consciecircncia ou de memoacuteria

A demonstraccedilatildeo bergsoniana que retraccedilamos em suas precisas articulaccedilotildees parece

remeter a um problema jaacute resolvido por ocasiatildeo da demonstraccedilatildeo da realidade do ser do

passado e de sua conservaccedilatildeo em si mesmo Se ldquonatildeo se pode falar de uma realidade que

dura sem introduzir nela uma consciecircnciardquo (BERGSON 2006 p 56) estamos

devidamente advertidos de que natildeo se pode emprestar a essa palavra um sentido

antropomoacuterfico Ao suprimir as consciecircncias humanas eacute precisamente disso que se trata

Com efeito viacuteamos que Bergson afirma ser desnecessaacuterio conceber a duraccedilatildeo nesses

termos ldquopegar a memoacuteria que nos eacute proacutepria e transportaacute-la mesmo atenuada para o

interior da coisa [] Eacute o caminho inverso que eacute preciso seguirrdquo (BERGSON 2006 p 56)

o de um tempo impessoal e em tudo inumano Eacute precisamente a ideia de simultaneidade ndash

de todo diferente em relaccedilatildeo agrave tendecircncia espacializante que se apresentava no Essai ndash que

tornaraacute possiacutevel revelar um tempo impessoal e inumano fundado em uma memoacuteria

elementar ou ontoloacutegica

De que maneira memoacuteria e consciecircncia estatildeo implicadas nesse tempo elementar

que fundaria a continuidade de um instante no outro Na medida em que eacute impossiacutevel

haver tempo ali onde natildeo haacute sucessatildeo e eacute impossiacutevel haver sucessatildeo de fato que natildeo

corresponda agrave efetuaccedilatildeo de uma continuidade virtual se supusermos como Bergson (2006

p 57) que ldquoa duraccedilatildeo eacute essencialmente uma continuaccedilatildeo do que natildeo eacute mais no que eacute Eis o

tempo real ou seja percebido e vividordquo

O tempo ldquoreal percebido e vividordquo equivale a perspectivaacute-lo desde um registro

atual que natildeo pode dar-se sem supor um campo de virtualidades heterogecircneo e contiacutenuo

que se prolonga no espaccedilo em multiplicidades descontiacutenuas em instantes que sucedem uns

aos outros Eis a copresenccedila de uma memoacuteria elementar ligando dois instantes

engendrando o presente como presente que passa e como abertura ao puro devir o atual

como a mateacuteria natildeo pode senatildeo repetir-se sozinho como ele seria capaz de desaparecer e

engendrar o porvir Para que o presente se torne ldquopresente que passardquo eacute preciso divisar o

virtual que entra no atual ndash tempo que parece poder ser dividido agrave vontade na medida em

que a inteligecircncia o concebe como solidaacuterio agrave linha que o simboliza Equivale a dizer que

seria preciso captar o fluir do tempo como um progresso indivisiacutevel e global como quem

164

apreende o todo de uma frase meloacutedica ldquofechando os olhosrdquo abstraindo suas qualidades

suprimindo as notas e os tempos que a efetuariam recolocando-a na duraccedilatildeo pura

Metodicamente trata-se de perspectivar o tempo natildeo pelo campo do atual ndash atendendo

assim ao chamado da inteligecircncia ndash mas pelo virtual e pela intuiccedilatildeo ldquo[] nossa duraccedilatildeo

interior considerada do primeiro ao uacuteltimo momento de nossa vida consciente eacute algo

parecido com essa melodiardquo (BERGSON 2006 p 58)

A indivisibilidade dessa continuidade do passado no presente e do presente no

porvir eacute algo que Bergson natildeo cessa de afirmar Se pensamos a ligaccedilatildeo entre o passado e o

futuro imediatos como a que se efetua entre dois instantes eacute porque o passado jaacute implica

uma siacutentese passiva e portanto algum niacutevel ndash ainda que impessoal e inumano ndash de

consciecircncia126

Os instantes assinalam apenas paradas artificiais que nossa atenccedilatildeo para a

vida naturalmente agrave vontade no espaccedilo procura recortar em um contiacutenuo indivisiacutevel

falhando como quem tentasse atravessar uma chama com uma lacircmina natildeo dividimos a

chama sua continuidade heterogecircnea mas apenas o espaccedilo que ela parece desenhar em seu

fundo (BERGSON 2006 p 58) Tudo se passa como se a atenccedilatildeo decalcasse o contiacutenuo

no espaccedilo transformando-o em um simples siacutembolo perdendo a continuidade indefinida e

absolutamente movente De um lado isso implica que do ponto de vista do virtual a

duraccedilatildeo natildeo seja mensuraacutevel do ponto de vista do atual que substitui a continuidade

temporal por seu decalque espacial permite que se passe do tempo indivisiacutevel ao

mensuraacutevel

Bergson estaacute ciente de que esse eacute o tempo que acreditamos viver na maior parte das

vezes natildeo o do infinito escoar de nossa duraccedilatildeo interior indivisiacutevel e movente mas o

tempo mensurado coletivo ou coacutesmico exigido pelos imperativos da vida social127

Para

tanto basta projetar nossa proacutepria duraccedilatildeo em movimento no espaccedilo ndash como a trajetoacuteria

dos astros ou dos ponteiros de um reloacutegio por um movimento apreendido segundo a linha

de seu decalque bastam para fundar um tempo mensuraacutevel dando-nos um tempo

infinitamente divisiacutevel povoado de instantes inextensos semelhantes ao ponto geomeacutetrico

aristoteacutelico que jamais permite compreender como se atravessa de um ponto a outro Natildeo

suponhamos esta criacutetica uma prova do radical psicologismo de Bergson ndash ele eacute o primeiro

126

ldquo[] natildeo se pode conceber um tempo sem representaacute-lo percebido e vivo Duraccedilatildeo implica portanto

consciecircncia e pomos consciecircncia no fundo das coisas pelo proacuteprio fato de lhe atribuirmos um tempo que

durardquo (BERGSON 2006 p 57) Em outras palavras a duraccedilatildeo engendra algo como uma consciecircncia na

medida em que sua continuidade implica uma siacutentese passiva uma contraccedilatildeo passiva ndash natildeo realizada por uma

consciecircncia humana ndash que eacute a proacutepria memoacuteria elementar que se efetua como prolongamento sucessivo 127

ldquo[] vivemos uma vida social e ateacute coacutesmica tanto ou mais do que uma vida individualrdquo (BERGSON

2006 p 60)

165

a enunciar a importacircncia vital desse tempo essa projeccedilatildeo responde agrave tendecircncia

espacializante e decalcocircmana de nossa atenccedilatildeo agrave vida128

Ela tende naturalmente ao espaccedilo

ldquoeacute uma e vaacuteriasrdquo ldquoreparte-se sem se dividirrdquo (BERGSON 2006 p 61) permite agrave

percepccedilatildeo apreender simultaneidades129

tornando interessante contar simultaneidades

proacuteprias a movimentos de corpos que natildeo sejam os do nosso

Eacute precisamente esse tempo de simultaneidades que permite resolver de uma soacute vez

a questatildeo que nos colocaacutevamos sobre a pluralidade ou o monismo da duraccedilatildeo verificando

uma uacuteltima vez a validade da hipoacutetese bergsoniana sobre o monismo de um tempo

elementar e impessoal que supotildee a memoacuteria como fundamento do tempo Nesse particular

Deleuze (1966 p 80-81) chamava a atenccedilatildeo para o exemplo com que Bergson ilustrava a

capacidade da atenccedilatildeo de ser ldquouma e vaacuteriasrdquo

Quando estamos sentados agrave beira de um rio o correr da aacutegua o deslizar de um

barco ou o voo de um paacutessaro e o murmuacuterio ininterrupto de nossa vida profunda

satildeo para noacutes trecircs coisas diferentes e uma soacute como quisermos Podemos

interiorizar o todo lidar com uma percepccedilatildeo uacutenica que carrega confundidos os

trecircs fluxos em seu curso ou podemos manter exteriores os dois primeiros e

repartir entatildeo nossa atenccedilatildeo entre o dentro e o fora ou melhor ainda podemos

fazer as duas coisas concomitantemente nossa atenccedilatildeo ligando e no entanto

separando os trecircs escoamentos graccedilas ao singular privileacutegio que ela possui de

ser uma e vaacuterias (BERGSON 2006 p 61)

No exemplo de Bergson nossa atenccedilatildeo captura um agenciamento de fluxos

simultacircneos podendo dividir-se entre a apreensatildeo de sua unidade ndash dependente do fluxo da

consciecircncia que realiza esta siacutentese (no caso a nossa duraccedilatildeo interna) ndash bem como na

apreensatildeo de cada um dos fluxos (escoar do rio voo do paacutessaro e consciecircncia interior)

Contudo outra opccedilatildeo por fim apresenta-se agrave nossa atenccedilatildeo podemos apreender unidade e

multiplicidade dos fluxos de uma soacute vez simultaneamente representando os fluxos como

contidos em um soacute ndash o nosso ndash e ao mesmo tempo como contidos em si mesmos O que

explica essas siacutenteses tatildeo disparatadas que ora nos datildeo uma duraccedilatildeo ora uma pluralidade

delas podendo implicar ainda uma terceira possibilidade de siacutentese que corresponde agrave

divisatildeo da atenccedilatildeo para apreender simultaneamente todas as direccedilotildees unitaacuteria e muacuteltiplas

desses fluxos

128

ldquo[] eacute do nosso maior interesse tomar por lsquodesenrolar do temporsquo um movimento independente daquele de

nosso proacuteprio corpo A bem dizer encontramo-lo jaacute tomado A sociedade adotou-o para noacutes Eacute o movimento

de rotaccedilatildeo da Terrardquo (BERGSON 2006 p 60) 129

ldquoChamo lsquosimultacircneasrsquo duas percepccedilotildees instantacircneas apreendidas num uacutenico e mesmo ato mental podendo

a atenccedilatildeo mais uma vez fazer delas uma ou duas agrave vontaderdquo (BERGSON 2006 p 60)

166

Parece que nos representamos os fluxos como a apreensatildeo simultacircnea de instantes

mas essa percepccedilatildeo eacute enganosa Seu erro consiste em representar como instantes imoacuteveis

fluxos atuais (Bergson diz ldquofluxos exterioresrdquo) que duram realmente concretamente que

ocupam uma duraccedilatildeo indivisiacutevel Mesmo assim Bergson afirma a existecircncia desses

muacuteltiplos fluxos exteriores como conciliaacute-los com um tempo uacutenico e universal Tudo

parece resolver-se mais uma vez em um jogo perspectivo e analoacutegico Assim como nossa

atenccedilatildeo soacute pode apreender em nossa consciecircncia a existecircncia de dois fluxos exteriores

simultacircneos supondo a duraccedilatildeo interior em que se sintetizam natildeo poderiam coexistir dois

fluxos quaisquer sem supor um terceiro fluxo em que estivessem contidos130

Se posso dizer que o fluxo de minha consciecircncia eacute simultacircneo a outro fluxo

qualquer ndash o deslizar de um barco ou o voo de um paacutessaro ndash eacute porque minha consciecircncia

desdobra-se para abarcar a si mesma como fluxo atual singular simultacircneo ao do

movimento (ou fluxo) externo atestando sua simultaneidade de acordo com um terceiro

fluxo virtual no qual ela desdobra os outros dois fluxos atuais (o murmuacuterio de minha vida

interior o voo do paacutessaro) Por isso Deleuze fala de uma triplicidade fundamental de

fluxos Soluciona-se a aparente contradiccedilatildeo que pluralidade e unidade dos fluxos e da

duraccedilatildeo parecem envolver ao surpreender-nos ldquodesdobrando e multiplicando nossa

consciecircncia transportando-a para os confins extremos de nossa experiecircncia exterior []rdquo

(BERGSON 2006 p 55) essa atitude de desdobramento de nossa consciecircncia eacute capaz de

dar-nos acesso agrave realidade do tempo universal impessoal uno e virtual que sendo

multiplicidade heterogecircnea e qualitativa reuacutene uma pluralidade de fluxos exteriores que se

desdobram simultaneamente no registro do atual Como o atual ocupa do ponto de vista do

virtual uma duraccedilatildeo e portanto uma memoacuteria ndash isto eacute como ldquoos fluxos duram realmenterdquo

ndash natildeo haacute como pensar a realidade do tempo como a sucessatildeo de presentes sempre jaacute

abertos ao devir imediato sem introduzir aiacute virtualmente uma memoacuteria elementar

ontoloacutegica fundamental que opera a siacutentese passiva que importa do ponto de vista do

atual ldquoligar instantesrdquo ldquofazecirc-los passarrdquo

Soacute haacute sucessatildeo atual do tempo porque o tempo eacute memoacuteria coexistecircncia virtual do

presente que age com o que acabou de agir e destes com o que estaacute em vias de formaccedilatildeo

130

Com efeito eacute o que Deleuze auxiliou a esclarecer com precedecircncia nessa difiacutecil passagem da obra de

Bergson ldquoLrsquoeacutecoulement de lrsquoeau le vol de lrsquooiseau le murmure de ma vie forment trois flux mais ils ne

sont tels que parce que ma dureacutee est lrsquoun drsquoentre eux et aussi lrsquoeacuteleacutement qui contient les deux autres Pourquoi

ne pas se contenter de deux flux ma dureacutee et le vol de lrsquooiseau par exemple Crsquoest que jamais deux flux

pourraient ecirctre dits coexistants ou simultaneacutes srsquoils nrsquoeacutetaient contenus dans un mecircme troisiegraveme le vol de

lrsquooiseau et ma propre dureacutee ne sont simultaneacutes que dans la meacutesure ougrave ma proacutepre dureacutee se deacutedouble et se

reacutefleacutechit en une autre qui la contient en mecircme temps qursquoelle contient le vol de lrsquooiseau il y a donc une

tripliciteacute fondamental des fluxrdquo (DELEUZE 1966 p 81-82)

167

Eacute nesse sentido que uma memoacuteria ontoloacutegica eacute fundamento do tempo que se pode afirmar

que sem memoacuteria haacute apenas repeticcedilatildeo do presente eacute impossiacutevel engendrar o novo Se

Bergson afirma que natildeo haacute duraccedilatildeo onde natildeo haacute essa memoacuteria elementar eacute porque a

memoacuteria eacute o que faz o tempo passar diferindo radicalmente de si mesma ela insere a

diferenccedila na repeticcedilatildeo do presente e o abre ao porvir Porque a realidade profunda do

tempo natildeo se resolve no desenrolar de um fio eacute a simultaneidade compreendida como

coexistecircncia de fluxos ndash natildeo de instantes que implicam a perspectiva do atual ndash que

constitui a chave para compreender a realidade e o monismo de um tempo virtual em

Bergson131

Natildeo por acaso eacute isso o que Dureacutee et Simultaneacuteiteacute natildeo cessa de repetir que apenas

esse tempo eacute real que apenas ele pode ser vivido Se ele pode povoar-se por fluxos plurais

que podem ser divididos eacute sob a condiccedilatildeo de deixar ver abaixo do ponto em que

divisamos apenas simultaneidades o iacutendice inconfundiacutevel que se insinua sob uma

pluralidade de fluxos exteriores que duram concretamente o fato de que eles duram

realmente ocupam uma duraccedilatildeo O monismo da duraccedilatildeo constituiraacute portanto uma

memoacuteria elementar na qual se desenha a coexistecircncia virtual de todos os graus de toda a

pluralidade de fluxos atuais em um soacute fluxo virtual que os conteacutem e que se confunde com

a realidade fundamental do tempo a multiplicidade virtual e no entanto real da memoacuteria

131

ldquoLa theacuteorie bergsonienne de la simultaneacuteiteacute vient donc confirmer la conception de la dureacutee comme

coexistence virtuelle de tous les degreacutes en un seul et mecircme tempsrdquo (DELEUZE 1966 p 86)

168

TERCEIRA PARTE

Linhas de atualizaccedilatildeo Bergson o aberto e a transiccedilatildeo

169

CAPIacuteTULO 6 ndash O ABERTO E A TRANSICcedilAtildeO DEMOCRACIA E

DIREITOS HUMANOS

Seguindo as linhas ontoloacutegicas descritas em suas obras precedentes em

LrsquoEacutevolution Creacuteatrice de 1907 Bergson conduziu sua ontologia a um limite

aparentemente imponderaacutevel aquele em que ela se confunde parcialmente com a gecircnese

imprevista das formas de vida em que a duraccedilatildeo implica uma vitalidade inorgacircnica e

potente e coincide em certo niacutevel com a proacutepria vida na medida em que ambas remetem

ao virtual como a realidade proacutepria de sua potecircncia A correlaccedilatildeo entre ontologia e formas

de vida permite recolocar em profundidade a questatildeo do sentido da transiccedilatildeo e assim

compreender qual seu viacutenculo com a memoacuteria na dimensatildeo da experiecircncia social ndash que

afinal constitui o campo por excelecircncia ao qual se aplica a Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo

Ao mesmo tempo colocar em jogo o sentido de transiccedilatildeo ndash que em Bergson recebe

transcriccedilotildees muito heterogecircneas (ontoloacutegicas fiacutesicas psicoloacutegicas morais sociais e

poliacuteticas) ndash permite aprofundaacute-lo em uma direccedilatildeo ainda mais radical a de seu viacutenculo

indissoluacutevel com a democracia e os direitos humanos que natildeo receberatildeo aqui uma

explicaccedilatildeo meramente histoacuterica mas genealoacutegica e estrutural aparentada ao virtual que

podem fazer passar Apenas essa explicaccedilatildeo nos autorizaraacute a compreender que as relaccedilotildees

entre transiccedilatildeo democracia e direitos humanos devem-se superficialmente agrave histoacuteria de

sua gecircnese em comum132

mas eacute justamente essa gecircnese histoacuterica partilhada que exige que

compreendamos suas implicaccedilotildees e relaccedilotildees em profundidade deduzindo delas mesmas a

funccedilatildeo transicional da memoacuteria na Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo

Esse objetivo que se confunde no limite com o de nossa proacutepria tese exige no

entanto um passo adiante consistente em compreender em que medida ele pode remeter agrave

ideia de aberto Todo esse conjunto problemaacutetico seraacute atravessado ainda que

subrepticiamente por sua relaccedilatildeo com a questatildeo das formas de vida e mais

especificamente pela questatildeo da forma de vida humana ndash a que Bergson por vezes chama

ldquoestrutura geral do espiacuterito humanordquo e que decidimos nomear ldquociacuterculo antropoloacutegicordquo

funccedilatildeo da inteligecircncia tal como saiacuteda das matildeos da natureza ndash mas tambeacutem de seu apego

mais profundo agrave proacutepria vida O homem no limiar da espeacutecie no limiar de sua forma de

vida eacute o que reencontraremos aqui em todo o seu renovado interesse deslocado na direccedilatildeo

132

Cf nesse sentido Capiacutetulo 1 ldquoA Gecircnese da Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo e o Direito Internacional dos

Direitos Humanosrdquo

170

do poliacutetico Natildeo se trata poreacutem de Bergson autor de uma teoria meramente moral ou

teoloacutegica O fechado e o aberto conceitos em funccedilatildeo dos quais todos os problemas

apareceratildeo colocados em Les Deux Sources de la Morale et de la Religion satildeo eles

proacuteprios construiacutedos em funccedilatildeo das quedas bioloacutegicas que desenham a superfiacutecie de uma

forma de vida dotada de uma irresistiacutevel tendecircncia ao fechamento agrave adaptaccedilatildeo e ao apego

agrave vida e dos movimentos de ruptura dos ciacuterculos especiacuteficos e do devir que o aberto ndash

como uma clareira no seio do ciacuterculo antropoloacutegico ndash natildeo cessa de comunicar e prolongar

fazendo do homem uma espeacutecie de termo da evoluccedilatildeo ao mesmo tempo em que o super-

homem que ele anuncia parece depocirc-lo incessantemente como um animal que convalesce

de inteligecircncia e representaccedilatildeo ndash patologia que explicaraacute todo o aparente absurdo e

irracionalidade das religiotildees estaacuteticas ao mesmo tempo em que despiraacute a obrigaccedilatildeo moral

de seu veacuteu racional Tudo enfim se coloca em funccedilatildeo da vida das potecircncias inorgacircnicas

de seu eacutelan e dessa maneira da duraccedilatildeo do virtual e das linhas de atualizaccedilatildeo da

memoacuteria

Fazecirc-lo implica no entanto retraccedilar passagens que natildeo podemos nos abster de

reconstruir uma vez que restrinjamos a anaacutelise ao estrato poliacutetico da obra de Bergson Trecircs

questotildees seratildeo os pontos de articulaccedilatildeo necessaacuterios para ultimar os temas do aberto e da

transiccedilatildeo sua compenetraccedilatildeo e suas distensotildees reciacuteprocas na direccedilatildeo da Teoria da Justiccedila

da Transiccedilatildeo

A primeira resume-se em definir de um ponto de vista biossocial o ciacuterculo

antropoloacutegico a forma de vida humana e suas tendecircncias ao fechamento Em seu

LrsquoEacutevolution Creacuteatrie Bergson o definia segundo inuacutemeras distensotildees da atualizaccedilatildeo da

inteligecircncia no entanto no niacutevel poliacutetico eacute preciso qualificaacute-la do ponto de vista dos

quadros sociais da experiecircncia que Bergson remontaraacute sem cessar ao bioloacutegico133

em um

sentido muito compreensivo que nos remete ao vital Assim trata-se da questatildeo da forma

de vida antropoloacutegica mas submetida a uma nova configuraccedilatildeo que leva as descriccedilotildees de

LrsquoEacutevolution Creacuteatrice a um campo de provas bastante heterogecircneo Precisamente esse

novo terreno de experimentaccedilatildeo permitiraacute definir em funccedilatildeo de uma forma de vida

antropoloacutegica ndash que pouco a pouco pareceraacute determinar-se por uma tendecircncia bioloacutegica ao

fechamento ndash questotildees relativas agrave moral agrave obrigaccedilatildeo e agrave relaccedilatildeo social temas que uma

vez que sejam esclarecidos em seu sentido dinacircmico contribuiratildeo para definir o problema

133

Por isso Alexandre Lefebvre (2013 ldquoBergsonrsquos Critical Philosophyrdquo In Introduction) afirma de modo

categoacuterico que o coraccedilatildeo criacutetico de Les Deux Sources estaacute no fato de que ldquo[] the source of morality is

biologyrdquo E mais adiante ldquothe source of closed morality is not society its biologyrdquo (LEFEBVRE 2013 Part

I ldquo3The colsed society Bergson and Durkheimrdquo)

171

da gecircnese dos potenciais transicionais da memoacuteria no acircmbito da Teoria da Justiccedila de

Transiccedilatildeo

A segunda questatildeo resume-se em uma tarefa que tambeacutem admite ser colocada sob a

forma de problema ldquoComo abrir o fechadordquo Tendo por base os dois capiacutetulos centrais de

Les Deux Sources uma vez que esta questatildeo esteja ndash como tudo aliaacutes ndash colocada em

funccedilatildeo da questatildeo das formas de vida tenderaacute a responder de que maneira reverter a

tendecircncia natural aparentemente irresistiacutevel ao fechamento Contudo antes disso o

fechado precisa ser conduzido um pouco aleacutem Compreendido em funccedilatildeo da proacutepria

maladie muito humana atribuiacuteda agrave inteligecircncia e agrave representaccedilatildeo como as tendecircncias

naturais que constituem causas da depressatildeo da dissoluccedilatildeo social e do desencorajamento a

tendecircncia ao fechamento encontraraacute nas religiotildees estaacuteticas uma espeacutecie de resposta vital

que possibilitaraacute ao homem permanecer apegado agrave vida malgrado toda convalescenccedila de

representaccedilatildeo Interpretando a religiatildeo em funccedilatildeo da vida Bergson descobriraacute que um salto

eacute possiacutevel a experiecircncia miacutestica tornar-se-aacute o campo de provas para a potecircncia de uma

religiatildeo dinacircmica capaz de ser definida em funccedilatildeo do aberto servir de iacutendice a uma ruptura

do ciacuterculo antropoloacutegico que pode levar o homem mais longe e mais alto do que a intuiccedilatildeo

filosoacutefica o pudera Eacute nesse sentido que Bergson poderia aparecer como uma espeacutecie de

ldquomeacutedico da civilizaccedilatildeordquo (LAPOUJADE 2010 p 77)

Contudo se responder agrave questatildeo ldquocomo abrir o fechadordquo aponta para uma praacutetica

vital natildeo esgotaraacute o fundo do problema que propomos Seraacute preciso colocar o aberto em

funccedilatildeo de um novo e uacuteltimo problema de que Bergson parece tratar com certa urgecircncia

praacutetica e poliacutetica devida agrave Primeira Guerra ndash atestada mais de uma vez entre seus

comentadores (WORMS 2011 p 292-293 SITBON-PEILLON 2012 p 15)134

Trata-se

da questatildeo que liga Bergson agrave poliacutetica definitivamente ldquoComo perseverar no abertordquo se o

miacutestico e o artista compartilham o gecircnio constituem indiviacuteduos excepcionais uacutenicos da

espeacutecie como fazer com que o aberto se comunique ou se transmita passe do individual ao

social Eacute a afetividade ou a emoccedilatildeo criadora que eles engendram que poderaacute comunicar o

aberto em profundidade tudo se passa como se sob os eus sociais definidos em

superfiacutecie houvesse uma comunidade de eus mais ou menos profundos que lanccedilados a

uma emoccedilatildeo criadora se deixariam penetrar em um niacutevel subrepresentativo O aberto se

define em funccedilatildeo da emoccedilatildeo criadora assim como as formas de vida e as conquistas

134

Nesse aspecto cf a ceacutelebre obra de Philippe Soulez (1989) Bergson politique em adiccedilatildeo Bergson a

biografia escrita a quatro matildeos por Soulez e Worms (2002) e ainda o prefaacutecio deste uacuteltimo ao quinto

volume dos Annales Bergsoniennes que tematizam renovadamente a filosofia poliacutetica de Bergson (WORMS

2012 p 29-34) Cf ainda (LEFEBVRE 2013 Part I ldquo1 A dialogue on warrdquo)

172

poliacuteticas mais antinaturais ndash a democracia os direitos humanos ndash satildeo engendradas por ela

uma espeacutecie de supraconsciecircncia Uma vez que esse noacute problemaacutetico seja constituiacutedo eacute a

questatildeo da transiccedilatildeo que se colocaraacute integralmente sob sua insiacutegnia assim como Bergson

coloca a questatildeo das sociedades fechadas e abertas da guerra e da paz ou da teacutecnica e da

mecacircnica em funccedilatildeo do aberto como eacutetica vital ndash o que como vimos significaraacute tambeacutem

em profundidade uma eacutetica ontoloacutegica

Definidas as trecircs questotildees que nos conduziratildeo ndash como se caracteriza o fechado a

sociedade humana saiacuteda das matildeos da natureza ndash como abrir o fechado e como perseverar

no aberto passemos imediatamente agrave determinaccedilatildeo do que constitui o fechado como

tendecircncia vital bem como de suas transcriccedilotildees no seio de uma filosofia moral que uma

vez que tenha sido fundada em uma metafiacutesica do idecircntico e do eterno natildeo estaraacute menos

envolvida em ilusotildees do que toda a metafiacutesica que Bergson criticou precedentemente

sect 1 O FECHADO O SOCIAL E O VITAL

Encontramos o fechado no ponto em que no limite de uma de suas linhas

divergentes o vital remete ao social no homem Portanto o fechado designa uma tendecircncia

de caraacuteter bioloacutegico originada no momento de descida da tensatildeo virtual que corresponde ao

eacutelan vital e sua alienaccedilatildeo em uma forma de vida atual a vida que encontra a mateacuteria tende

a fazer como vimos uma volta sobre si mesma fechar-se em um ciacuterculo adaptar-se agrave

ineacutercia da mateacuteria compor com ela um corpo fiacutesico organizar-se instrumental perceptiva

e afetivamente Contudo percebamos o fechado ali onde ele se manifesta no seio das

experiecircncias sociais mais tenras dos lugares de forccedila comuns a toda infacircncia e de onde

emanam os mandamentos Se o fizeacutessemos perceberiacuteamos que lhes obedecemos mais em

virtude do peso que comportam que da autoridade pessoal de quem os emite Eis o que

chamaremos mais tarde de ldquopeso da sociedaderdquo sob sua forma de pressatildeo sobre as vontades

individuais ponta uacuteltima de uma forccedila de aplicaccedilatildeo global que em tudo parece

assemelhar-se agrave solidariedade orgacircnica que manteacutem vinculadas as partes de um corpo

bioloacutegico135

A analogia contudo deveraacute ceder natildeo soacute a um liame constitutivo entre

135

ldquo[] crsquoest la socieacuteteacute Philosophant alors sur elle nous la comparerions agrave un organisme dont les cellules

unies par drsquoinvisibles liens se subordonnent les unes aux autres dans une hieacuterarchie savante et se plient

naturellement pour le plus grand bien du tout agrave une discipline qui pourra exiger le sacrifice de la partierdquo

(BERGSON 2001 p 98101-02)

173

memoacuteria e interdiccedilatildeo que aparece jaacute nas primeiras linhas de Deux Sources136

mas tambeacutem

ao fato da liberdade das vontades livres insuscetiacuteveis agrave necessidade que parecem constituir

a causa de toda associaccedilatildeo (BERGSON 2001 p 981-98202)

Embora se possa reconhecer tudo isso sem dificuldade parece haver nessa analogia

mais que uma simples comparaccedilatildeo ela constitui o iacutendice de uma miacutemesis entre sociedade e

organismos vivos em que o haacutebito desempenha o mesmo papel que a necessidade no plano

da natureza e de tal forma que ldquola vie sociale nous apparaicirct comme un systegraveme

drsquohabitudes plus ou moins fortement enracineacutees qui reacutepondent aux besoins de la

communauteacuterdquo (BERGSON 2001 p 98202) No interior dessa rija tessitura de deveres

haacutebitos de obedecer e de mandar explicam-se por certa delegaccedilatildeo social da qual

confusamente sentimos emanar uma ordem impessoal que exerce pressatildeo sobre nossa

vontade Se nos afastamos dela logo somos a ela reconduzidos e assim haacutebito e obrigaccedilatildeo

parecem coincidir

Com efeito a pressatildeo exercida pela obrigaccedilatildeo social implica uma diferenccedila natildeo

apenas de intensidade em relaccedilatildeo agrave massa confusa de nossos haacutebitos mas de natureza isso

se deve natildeo apenas agrave intensidade infinitamente maior com que opera a obrigaccedilatildeo social

mas ao fato de que as obrigaccedilotildees sociais mais ou menos intensas e no limite

infinitesimais satildeo objeto de uma exigecircncia comum que tem iniacutecio no ciacuterculo de nossas

relaccedilotildees mais proacuteximas e estende-se ateacute o ciacuterculo de nossas relaccedilotildees mais distantes cujo

limite eacute a proacutepria sociedade Dessa maneira as obrigaccedilotildees se prestam apoio muacutetuo

entrosam-se e constituem um bloco formado por ciacuterculos cada vez mais abrangentes de

exigecircncias sociais Que cada obrigaccedilatildeo mesmo a mais frugal ou a infinitamente pequena

vinculem eacute graccedilas ao todo da obrigaccedilatildeo do qual retiram sua forccedila da obrigaccedilatildeo em geral agrave

qual satildeo aparentadas agrave autoridade global do conjunto Sua analogia para com os

organismos revela mais que a mimeacutetica entre haacutebito e certa necessidade orgacircnica Na

medida em que o organismo manteacutem-se iacutentegro mediante a forccedila e a vitalidade indivisiacuteveis

das quais cada ceacutelula retira seu vigor um conjunto total de obrigaccedilotildees pressiona as

vontades por meio de um anaacutelogo da ldquovitalidade uacutenicardquo da qual as menores obrigaccedilotildees

retiram sua forccedila Assim como cada ceacutelula exprime superficialmente o todo de uma

136

ldquoLe souvenir du fruit deacutefendu est ce qursquoil y a de plus ancien dans la meacutemoire de chacun de nous comme

dans celle de lrsquohumaniteacuterdquo (BERGSON 2001 p 98101)

174

vitalidade a comparaccedilatildeo deixa entrever que cada obrigaccedilatildeo exprime o todo da

obrigaccedilatildeo137

Embora toda sociedade seja constituiacuteda por indiviacuteduos livres e o fato da

liberdade138

seja o limite da analogia que Bergson propotildee a comparaccedilatildeo natildeo cessa de ser

alimentada pela proacutepria sociedade Assemelhando as leis que mantecircm a ordem social agraves

leis da natureza interessa agrave proacutepria sociedade manter a aparecircncia de que suas leis

organizam-se mecacircnica e necessariamente se leis sociais e fiacutesicas podem ser aproximadas

as primeiras pareceratildeo adquirir a regularidade e a feiccedilatildeo eterna das segundas Confundidas

logo as leis fiacutesicas teratildeo adquirido a imperiosidade dos mandamentos sociais e estes teratildeo

adquirido a inelutabilidade natural das primeiras139

Servindo ao haacutebito a inteligecircncia nos

brinda com a representaccedilatildeo de nossa liberdade individual a reboque de todas as forccedilas

sociais acumuladas contra um nosso possiacutevel gesto egoiacutesta O ponto de vista que enxerga

os indiviacuteduos unidos por meio de uma solidariedade social similar agrave dos organismos

permite afirmar que ldquolrsquoobligation est agrave la neacutecessiteacute ce que lrsquohabitude est agrave la naturerdquo

(BERGSON 2001 p 98607) Eis o ciacuterculo em que toda individualidade permanece

engastada a de uma obrigaccedilatildeo que natildeo vem de fora dos indiviacuteduos mas eacute constitutiva

deles enquanto tais natildeo haacute sociedade ou obrigaccedilatildeo ndash Bergson natildeo deixaraacute de afirmaacute-lo ndash

sem que se suponha a liberdade ao mesmo tempo natildeo haacute obrigaccedilatildeo que natildeo venha de

137

ldquoLa force qursquoune obligation tire de toutes les autres est plutocirct comparable au souffle de vie que chacune

des cellules aspire indivisible et complet du fond de lrsquoorganisme dont elle est un eacuteleacutement La socieacuteteacute

immanente agrave chacun de ses membres a des exigences qui grandes ou petites nrsquoen expriment pas moins

chacune le toute de sa vitaliteacuterdquo (BERGSON 2001 p 98303) 138

Bergson descreve o ato livre ao final do Essai como um ato exterior que expressa a integral do eu ou de

uma alma definida por sua profundidade Como a realizaccedilatildeo de uma accedilatildeo que jaacute natildeo exprime uma ideia

superficial mas responde ao conjunto de nossos sentimentos pensamentos de nossas aspiraccedilotildees mais

iacutentimas agrave concepccedilatildeo particular de vida que equivale agrave nossa experiecircncia passada (LAPOUJADE 2010 p

15) Ou entatildeo como o mais alto grau de dois elementos que operam na proacutepria duraccedilatildeo ldquopor um lado []

exprime a totalidade do conteuacutedo ou da histoacuteria do eu singular por outro faz sentir uma forccedila ou uma

lsquoatividade vivarsquo pela qual o eu se produz a si mesmordquo (WORMS 2011 p 83) Ou entatildeo finalmente ldquolrsquoacte

libre est la lsquomanifestation exteacuterieurersquo de notre personaliteacute tout entiegravererdquo (RIQUIER 2009 p 312-313) O ato

livre eacute o contemporacircneo das variaccedilotildees contiacutenuas que constituem o eu profundo do aspecto confuso obscuro

e infinitamente moacutevel da subjetivaccedilatildeo bergsoniana sub specie durationis Sua dinacircmica eacute a mesma das

sensaccedilotildees que se modificam ao se repetir ou dos sentimentos que parecem serem seres que vivem e se

alteram sem cessar (BERGSON 2001 p 8899) Rachando a crosta superficial do eu social a liberdade potildee-

no na presenccedila de si mesmo na imanecircncia de si que eacute jaacute a diferenccedila para consigo que o ato livre expressa na

duraccedilatildeo Essa ldquorelaccedilatildeo dinacircmicardquo com a atividade do eu eacute o que o vincula agrave duraccedilatildeo como uma ldquoforccedilardquo que

faz dela no eu profundo ldquoa condiccedilatildeo metafiacutesica ou mesmo simplesmente fiacutesica da liberdaderdquo (WORMS

2011 p 84) Nesse sentido a liberdade apareceraacute em Bergson como o correlato psicoloacutegico de um

imprevisto mais profundamente ontoloacutegico 139

ldquo[] si la loi physique tend agrave revecirctir pour notre imagination la forme drsquoun commandement quand elle

atteint une certaine geacuteneacuteraliteacute reacuteciproquement un impeacuteratif qui srsquoadresse agrave tout le monde se preacutesente un peu agrave

nous comme un loi de la nature [] Une infraction agrave lrsquoordre social revecirct ainsi un caractegravere anti-naturel []rdquo

(BERGSON 2001 p 98405)

175

fora ldquoChacun de nous appartient agrave la socieacuteteacute autant qursquoagrave lui-mecircmerdquo (BERGSON 2001 p

98607)

Natildeo haacute nenhuma antinomia entre o individual e o social mas uma solidariedade e

uma constitutividade reciacuteprocas Com efeito a perspectiva da consciecircncia em profundidade

poderia revelar o rosto incomensuraacutevel de uma personalidade de um ponto de vista

superficial poreacutem o indiviacuteduo parece ser em tudo solidaacuterio a seus semelhantes submetido

a uma disciplina que cria entre ele e os demais uma dependecircncia muacutetua que define certo

equiliacutebrio superficial e no entanto soacutelido Vecirc-se pois que o tecido social eacute constitutivo do

eu superficial que nele se insere que toma corpo com as demais personalidades

exteriorizadas Solidaacuterio significa portanto tambeacutem soacutelido e indica o viacutenculo pelo qual a

obrigaccedilatildeo liga cada um de noacutes aos outros mas nos liga tambeacutem a noacutes mesmos Tudo se

passa como se uma vez que nosso eu tivesse de integrar-se agrave tessitura social ele fosse ao

mesmo tempo constituinte e constituiacutedo em relaccedilatildeo a ela O eu superficial eacute o ponto de

fixidez do eu social pois eacute constituiacutedo e cultivado em seu meio eacute a vida pela qual nos

tornamos presentes a uma sociedade mas tambeacutem eacute o signo da presenccedila da sociedade em

noacutes140

Essa presenccedila da sociedade em noacutes eacute que explicaria em que medida ela exerce um

poder irresistiacutevel capaz de aplacar por muito tempo a liberdade mais profunda Nossa

memoacuteria e nossa imaginaccedilatildeo em larga medida vivem do que a sociedade introduziu nelas

Robinson Crusoeacute em sua ilha ou o guarda Florestal de Kipling que todas as noites vestia

seu traje de gala para jantar em um casebre isolado na Iacutendia ndash a fim de natildeo perder o

respeito por si mesmo ndash denotam precisamente que natildeo eacute a presenccedila de outros homens que

determina a da sociedade uma pulsatildeo social constitutiva da proacutepria subjetividade do

ldquorespeito por si mesmordquo pode encontrar na solidatildeo o oco suficiente com o qual fazer eco

Robinson ou o guarda florestal nutrem-se da energia da sociedade agrave qual continuam

idealmente ligados seja atraveacutes dos utensiacutelios manufaturados com que Crusoeacute sobrevive

seja atraveacutes de um viacutenculo moral como o do guarda de Kipling (BERGSON 2001 p 987-

98807-10)

A presenccedila da sociedade no indiviacuteduo poderia revelar-se ainda mais sensivelmente

no caso excepcional do criminoso que se sente impelido a cobrir as evidecircncias desmanchar

a memoacuteria de um crime como se ele jamais tivesse sido praticado ou que o leva a

confessar o crime a um amigo a fim de por meio dele evitar a ruptura social que tortura

140

ldquo[] la solidariteacute sociale nrsquoexiste que du moment ougrave un moi social se surajoute en chacun de nous au moi

individuel Cultiver ce lsquomoi socialrsquo est lrsquoessentiel de notre obligation vis-agrave-vis de la socieacuteteacuterdquo (BERGSON

2001 p 986-98708)

176

sua consciecircncia sob a forma de remorso Tanto em um caso como em outro o princiacutepio

parece ser sempre o de uma inexplicaacutevel pulsatildeo social que trata de evitar a ruptura com o

todo da comunidade que o crime implica Por isso apagar vestiacutegios pode ser mais que

evitar o castigo ndash pode ser evitar o abandono ndash ou confessar o crime a um conhecido pode

significar reintegraccedilatildeo agrave consideraccedilatildeo de algueacutem que eacute agora o uacuteltimo fio que o liga agrave

tessitura social

Ao mesmo tempo em que a experiecircncia de anguacutestia moral no grande criminoso se

explicaria tanto pela presenccedila da sociedade no indiviacuteduo quanto pela inserccedilatildeo do indiviacuteduo

nela experiecircncias mais comuns ndash a do bom pai esposo e cidadatildeo ndash tambeacutem prefiguram a

constitutividade reciacuteproca entre eu individual e eu social Tomemos essa experiecircncia na

dinacircmica natildeo mais excepcional do grande criminoso mas na das obrigaccedilotildees mais

comezinhas que penetram a existecircncia quotidiana de um indiviacuteduo141

Se tomarmos o

indiviacuteduo por centro veremos avolumarem ao seu redor ciacuterculos concecircntricos e cada vez

mais amplos de prescriccedilotildees e obrigaccedilotildees de que sua vida diaacuteria deixa-se atravessar Com

efeito apesar de em cada um desses ciacuterculos e de em cada uma das situaccedilotildees uma opccedilatildeo

ser possiacutevel uma resistecircncia poder ser sempre divisaacutevel eacute mais natural ajustar-se agrave norma

quase que automaticamente (BERGSON 2001 p 99013) Mesmo que nos deixemos ir a

esmo eacute natural que cumpramos o que a sociedade espera de noacutes se nossos deveres natildeo satildeo

cumpridos de modo autocircmato o satildeo pela forccedila do haacutebito da ineacutercia de quem ndash pela

educaccedilatildeo e pelo cultivo social ndash jaacute foi inserido na tessitura dos deveres agrave custa de certo

esforccedilo No entanto a liberdade no seio social sempre denota que uma resistecircncia ao dever

eacute possiacutevel resistecircncia dirigida ao desejo ou agrave accedilatildeo egoiacutesta que visa ao bem de si proacuteprio

natildeo ao do todo Nesse sentido suplantar o proacuteprio desejo e cumprir o dever social deve ser

encarado como uma forccedila suplementar como uma resistecircncia a si mesmo (BERGSON

2001 p 99114)

Natildeo raro para resistir agrave resistecircncia que nosso desejo opotildee ao dever encontramos

razotildees para fazecirc-lo Com efeito chegamos a tais razotildees pela via intelectual cumprimos

uma obrigaccedilatildeo como que persuadidos por suas razotildees e todavia isso natildeo significa ndash como

veremos mais adiante ndash que a fonte da obrigaccedilatildeo seja racional (BERGSON 2001 p

99216) Sob a razatildeo estaacute a pressatildeo do todo da obrigaccedilatildeo do sentimento moral que busca

razotildees mas natildeo eacute determinado pela razatildeo O que Bergson quer evitar aqui eacute que

confundamos a tendecircncia a ceder diante do todo da obrigaccedilatildeo ndash o que se explicaraacute como

141

ldquoCrsquoest la socieacuteteacute qui trace agrave lrsquoindividu le programme de son existence quotidiennerdquo (BERGSON 2001 p

99012)

177

uma tendecircncia natural ndash e o meacutetodo racional pelo qual um ser inteligente age sobre si

mesmo removendo o obstaacuteculo que impedia que tal tendecircncia se manifestasse As

filosofias morais que o fazem estariam uma vez mais inebriadas pela inteligecircncia

Contudo em que consiste a forccedila dessa tendecircncia natural que pode assim

manifestar-se Eacute a ela que Bergson nomeia ldquotodo da obrigaccedilatildeordquo ldquoextrait concentreacute

quintessence des mille habitudes espeacuteciales que nous avons contracteacutees drsquoobeir aux mille

exigences particuliegraveres de la vie socialerdquo (BERGSON 2001 p 99317) A inteligecircncia que

se aplica a essa forccedila natildeo eacute sua fonte de impulsatildeo mas de loacutegica pode tatildeo somente

conferir maior niacutevel de coerecircncia racional agraves exigecircncias sociais mas natildeo seraacute essa

coerecircncia a explicar a pressatildeo que o todo da obrigaccedilatildeo exerce sobre as condutas

individuais142

A funccedilatildeo da razatildeo em moral eacute meramente reguladora enquanto essa pressatildeo

deveraacute explicar-se pela proacutepria vida

De fato Bergson assente em considerar que tardiamente sociedades civilizadas

foram capazes de conduzir as maacuteximas e regras morais historicamente erigidas a certa

sistemaacutetica bastante coerente de tal modo que um ser inteligente que se conduza por meio

delas irrefletidamente conduzir-se-aacute com certa racionalidade Todavia eacute a vida que

explica a obrigaccedilatildeo natildeo a razatildeo143

as obrigaccedilotildees nas sociedades primitivas natildeo mais

apresentaratildeo esse caraacuteter sistemaacutetico e ordenado e todavia tambeacutem entre elas vigoraraacute a

pressatildeo do todo da obrigaccedilatildeo ainda que sua moral participe bastante do acaso e do

incoerente (BERGSON 2001 p 99418) A fim de compreender o significado do todo da

obrigaccedilatildeo bastaria imaginar que a obrigaccedilatildeo exerce pressatildeo sobre uma vontade como um

haacutebito cada obrigaccedilatildeo arrasta atraacutes de si ndash agrave maneira de uma verdadeira memoacuteria social ndash

ldquola masse accumuleacutee des autresrdquo (BERGSON 2001 p 99519) e assim utiliza-se da

pressatildeo de seu conjunto Nesse sentido jaacute se pode entrever em que sentido a obrigaccedilatildeo

derivada do todo da obrigaccedilatildeo natildeo eacute mais que um ldquoil faut parce qursquoil fautrdquo um comando

simples ponta de lanccedila que exerce em um soacute local a pressatildeo do todo Eis porque ela natildeo

comporta razotildees nem se fundamenta em um a priori racional o todo da obrigaccedilatildeo como

grande memoacuteria social eacute uma construccedilatildeo cultural no tempo um efeito de cristalizaccedilatildeo no

tempo que assumindo analogamente as formas das leis fiacutesicas emite uma ilusatildeo de

142

Afinal diz Bergson (2001 p 99417) ldquoJamais aux heures de tentation on ne sacrifierait au seul besoin de

coheacuterence logique son inteacuterecirct sa passion sa vaniteacute Parce que la raison intervient en effet comme reacutegulatrice

chez un ecirctre raisonnable pour assurer cette coheacuterence entre des reacutegles ou maximes obligatoires la

philosophie a pu voir en elle un principe drsquoobligation Autant vaudrait croire que crsquoest le volant qui fait

tourner la machinerdquo 143

ldquo[] lrsquoessence de lrsquoobligation est autre chose qursquoune exigence de la raisonrdquo (BERGSON 2001 p 994-

99518)

178

eternidade Essa ilusatildeo natildeo dura mais que um momento o do puxatildeo que representa um

dever a ser cumprido pela mera pressatildeo que o todo exerce em sua regiatildeo ldquoil faut parce

qursquoil fautrdquo ndash eacute tudo o que temos Por essa razatildeo criticando a filosofia moral de Kant sob

esse aspecto Bergson (2001 p 99620) ironicamente afirma que ldquoun impeacuteratif absolument

cateacutegorique est de nature instinctive ou sonambulique []rdquo praticamente inevitaacutevel como

dever e radicalmente desarrazoado organizado pelo haacutebito que no homem natildeo passa da

imitaccedilatildeo do instinto

Decerto no campo da obrigaccedilatildeo natildeo se trata de qualquer haacutebito mas de um haacutebito

mais poderoso constituiacutedo de forccedilas acumuladas de todos os haacutebitos elementares o que

melhor imita o instinto em sua inevitabilidade Bergson leva muito longe essa miacutemesis pela

qual o haacutebito no homem prefigura o instinto nos animais Tatildeo longe que a obrigaccedilatildeo seraacute

explicada pela vida pela comunidade que o vital determina em mateacuteria social em linhas

divergentes da evoluccedilatildeo como as sociedades de tipo instintivo e as humanas Se as

procurarmos em cada uma das linhas de evoluccedilatildeo encontraremos um mesmo eacutelan

repartido entre a sociabilidade perfeita e o viacutenculo instintualmente orgacircnico das

predisposiccedilotildees sociais de insetos como as formigas e as abelhas e de outro as sociedades

humanas em que o viacutenculo quase-orgacircnico entre seus membros eacute obtido pela via da

inteligecircncia por meio do haacutebito que confere ordem e regularidade agraves accedilotildees Assim as

sociedades inteligentes se caracterizariam por um haacutebito genealogicamente enraizado de

contrair haacutebitos capazes de fundar o todo da obrigaccedilatildeo por mais que os haacutebitos contraiacutedos

sejam sempre contingentes (BERGSON 2001 p 996-99721) A obrigaccedilatildeo deriva mais

fundamentalmente de uma ldquointenccedilatildeordquo que a natureza faz passar pelas sociedades

inteligentes e que persiste nas civilizaccedilotildees mais espiritualizadas a obtenccedilatildeo de uma

sociedade em que certa margem de liberdade de accedilatildeo natildeo ameaccedilasse a tessitura social EM

LrsquoEacutevolution Creacuteatrice instinto e inteligecircncia satildeo descritos como formas de consciecircncia

que em estado rudimentar interpenetram-se e dissociam-se ao crescer originando as duas

linhas divergentes de evoluccedilatildeo ndash artroacutepodes e vertebrados (BERGSON 2001 p 608134)

As sociedades dos himenoacutepteros prolongam os instintos e utilizam instrumentos

organizados e invariaacuteveis as sociedades humanas prolongam a inteligecircncia e utilizam

instrumentos fabricados variaacuteveis e imprevistos Na medida em que os instrumentos

organizados ou natildeo satildeo empregados por cada uma dessas sociedades na execuccedilatildeo de

trabalhos especializados e ao mesmo tempo organizados e reciprocamente

complementares eacute porque algo como ldquoum vago ideal de vida socialrdquo torna-se imanente

tanto ao instinto como agrave inteligecircncia em virtude de uma comunidade de eacutelan

179

Entretanto natildeo se pode reduzir as configuraccedilotildees plurais das sociedades humanas

agravequilo que sucede por organizaccedilatildeo da natureza nas sociedades instintivas Enquanto os

indiviacuteduos que pertencem a sociedades instintivas participam da divisatildeo social do trabalho

fixados a uma funccedilatildeo especializada que decorre de sua estrutura orgacircnica invariaacutevel a

inteligecircncia fabricadora dos homens natildeo cessa de inventar instrumentos cada vez mais

adaptados a uma accedilatildeo progressivamente mais livre Pelas mesmas razotildees as sociedades

instintivas tendem a cristalizarem-se nas formas de organizaccedilatildeo saiacutedas das matildeos da

natureza enquanto as sociedades humanas detecircm a capacidade de variaacute-las144

No primeiro

caso as obrigaccedilotildees satildeo impostas por natureza no segundo apenas a necessidade de haver

uma regra eacute natural seu conteuacutedo estaacute sempre aberto agrave variabilidade e agrave inteligecircncia

humanas Natildeo fossem essas caracteriacutesticas a obrigaccedilatildeo seria instintual isso natildeo significa

que natildeo estejamos mesmo entre seres humanos diante de um instinto virtual que liga a

obrigaccedilatildeo aos fenocircmenos mais gerais da vida Esse instinto virtual consiste precisamente

em uma funccedilatildeo bioloacutegica anaacuteloga agrave do instinto nos animais mas preenchida por outros

meios que natildeo o instinto (WORMS 2011 p 300) Esse instinto virtual natildeo se manifesta

em instinto mas em reequiliacutebrios psicoloacutegicos ou inteligentes de uma regularidade

perturbada ndash o homem estaacute vinculado pelo todo da obrigaccedilatildeo e por isso se culpabiliza por

violar interditos ou ceder a desejos egoiacutestas procura e contrafaz razotildees para obedecer por

ineacutercia Haacute uma pulsatildeo social bioloacutegica naturalizada que superficialmente assume a forma

de um imperativo da qual todo imperativo retira seu vigor O fundo natural de toda

obrigaccedilatildeo ndash falemos de comunidades primitivas ou de sociedades ldquocultivadasrdquo ndash eacute o todo

da obrigaccedilatildeo a forma da obrigaccedilatildeo em geral que se apresenta sob um vieacutes cada vez mais

elementar e puro de necessidade145

Se o natural eacute recoberto pelo adquirido em grande

parte todavia o adquirido natildeo se transmite hereditariamente como o natural que persiste

por baixo de todo verniz de cultura Tudo se passa como se o primitivo natural fosse um

insistente contemporacircneo o imemorial sob o cultivado146

Eacute portanto mais em funccedilatildeo do

primitivo que do adquirido que se pode explicar o todo da obrigaccedilatildeo A um soacute tempo

144

ldquo[] dans une ruche ou dans une fourmiliegravere lrsquoindividu est riveacute agrave son emploi par sa structure et

lrsquoorganisation est relativement invariable tandis que la citeacute humaine est de forme variable ouverte agrave tous les

progregravesrdquo (BERGSON 2001 p 99722) 145

ldquo[] plus nous descendons de ces obligations particuliegraveres qui sont au sommet vers lrsquoobligation en

geacuteneacuteral ou comme nous disions vers le tout de lrsquoobligation qui est agrave la base plus lrsquoobligation nous apparaicirct

comme la forme mecircme que la neacutecessiteacute prend dans le domaine de la vie []rdquo (BERGSON 2001 p 99924) 146

ldquoNos socieacuteteacutes civiliseacutees si diffeacuterentes qursquoelles soient de la socieacuteteacute agrave laquelle nous eacutetions immeacutediatement

destineacutes par la nature preacutesentent drsquoailleurs avec elle une ressemblence fondamentalerdquo (BERGSON 2001 p

999-100025)

180

mesmo as sociedades civilizadas teratildeo de ser definidas como sociedades fechadas sob o

ponto de vista do todo da obrigaccedilatildeo de raiz bioloacutegica que as constitui

As sociedades fechadas definem-se pela tendecircncia natural a incluir certos

indiviacuteduos excluindo outros147

Eacute nos quadros de uma forma de vida atual depositada

biologicamente e que constitui uma tendecircncia ao fechamento das sociedades que se torna

preciso compreender em que sentido a exigecircncia social se encontra no fundo da obrigaccedilatildeo

moral Isso se deve a algo sobre o que Bergson natildeo cessaraacute de insistir entre sociedades

fechadas e a socidade aberta que se define como o conjunto da humanidade inteira natildeo haacute

uma diferenccedila meramente de grau mas de natureza Contudo frequentemente nos iludimos

a respeito dessa diferenccedila acreditamos ser possiacutevel passar do amor agrave famiacutelia agrave naccedilatildeo ao

amor agrave humanidade Todavia a moral macbethiana dos tempos de guerra (ldquoFair is foul

and foul is fairrdquo) deveria bastar para compreendermos que os deveres relativos agraves

exigecircncias sociais fundamentais tendem a uma sociedade fechada que inclui alguns e

exclui os demais natildeo agrave humanidade inteira O respeito agrave vida e agrave propriedade ndash comuns

como exigecircncia da vida social ndash correspondem agraves sociedades fechadas e natildeo agraves abertas

bastaria ver que a guerra os suspende e transformam o assassinato e a pilhagem em atos

meritoacuterios Fossem deveres para com a humanidade inteira e natildeo apenas dados no interior

de sociedades marcadas pelo fechamento tais deveres jamais seriam suspensos assim

como nenhum tempo de paz poderia constituir uma preparaccedilatildeo silenciosa para os tempos

de guerra No interior das sociedades fechadas a exigecircncia social que se encontra no fundo

das obrigaccedilotildees morais visa agrave coesatildeo social tatildeo densamente que Bergson (2001 p

100127) afirma que ldquolrsquoinstinct social que nous avons aperccedilu au fond de lrsquoobligation

sociale vise toujours [] une socieacuteteacute close si vaste soit-ellerdquo A moral das sociedades

civilizadas natildeo passa portanto do verniz espesso que recobre tal instinto virtual e em

larga medida essa moral cultivada retira em boa parte do proacuteprio instinto que ela ajuda a

recobrir o vigor de seus imperativos sonambuacutelicos Eles contudo natildeo visam agrave

humanidade ou ao aberto ldquo[] entre la socieacuteteacute ougrave nous vivons et lrsquohumaniteacute en geacuteneacuteral il y

a [] le mecircme contraste entre qursquoentre le clos et lrsquoouvert la diffeacuterence entre les deux

objets est de nature et non plus simplement de deacutegrerdquo (BERGSON 2001 p 100128)

147

ldquo[] le mecircme instinct tendrait probablement agrave reconstituir aujourdrsquohui si toutes les acquisitions

mateacuterielles et spirituelles de la civilisation disparaissaient du milieu social ougrave nous le trouvons deacuteposeacutees

elles nrsquoen ont pas moins pour essence de comprendre agrave chaque moment un certain nombre drsquoindividus

drsquoexclure les autresrdquo (BERGSON 2001 p 100025) Ainda ldquo[] ce nrsquoest pas en eacutelargissant la citeacute qursquoon

arrive agrave lrsquohumaniteacute entre une morale sociale et une morale humaine la differeacutence nrsquoest pas de degreacute mais de

naturerdquo (Idem ibidem p 100431)

181

Iludimo-nos frequentemente sobre a possibilidade de ampliar de grau em grau a

solidariedade entre os homens representando a famiacutelia e a naccedilatildeo como ciacuterculos contidos

em um ciacuterculo mais abrangente em tudo semelhante aos menores e que corresponderia agrave

humanidade Todavia basta comparar o amor agrave humanidade ao amor agrave paacutetria por

exemplo para concluir que as exigecircncias relativas agrave coesatildeo social derivam em grande

parte justamente do fechamento da necessidade de defender-se de inimigos do exterior a

religiatildeo por outro lado operaria a milagrosa passagem do amor a nossos parentes e

concidadatildeos ao amor agrave humanidade148

auxiliaria a iludir-nos de que chegaremos a amar a

humanidade de grau em grau quando para isso seria necessaacuterio um salto Signo dessa

diferenccedila de natureza o salto exprime a passagem a uma outra forma de obrigaccedilatildeo social

diferente da pressatildeo da moral fechada e vem ao encontro do amor agrave humanidade que

Bergson chama de ldquomoral completa ou absolutardquo

A moral completa diverge da forma de pressatildeo social emprestada ao todo da

obrigaccedilatildeo nas sociedades fechadas ela natildeo se resolve em imperativos impessoais Pelo

contraacuterio encarna-se em personalidades excepcionais que se convertem em exemplo Tais

exemplos triunfais ou heroicos jaacute natildeo impotildeem a aceitaccedilatildeo de nenhuma lei de qualquer

universal mas constituem a singularidade que convida agrave imitaccedilatildeo comum ndash arrastam

multidotildees atraacutes de si sem sequer exortaacute-los Eacute como se houvesse apenas um chamado agrave

miacutemesis natildeo haacute empurratildeo pressatildeo haacute apenas um chamado que procede de uma

personalidade moral excepcional Sua forccedila adveacutem da proacutepria existecircncia dessa

personalidade moral arrebatante que natildeo persuade pela razatildeo mas funde as maacuteximas em

sua singularidade (BERGSON 2001 p 1003-100429-31) Sua diferenccedila radical para com

a moral das sociedades fechadas estaacute precisamente em fazer ndash como os santos do

cristianismo os profetas de Israel os saacutebios gregos ou os iluminados do budismo ndash um

apelo agrave humanidade inteira natildeo mais agraves exigecircncias sociais149

A miacutemesis permite que uma

foacutermula do aberto persista entre noacutes por muito tempo inconsciente ou descarnada agrave

espreita ou em estado virtual Sua espera talvez indefinida determina-se em funccedilatildeo do

tempo da oportunidade dos potenciais de subjetivaccedilatildeo basta que a foacutermula se preencha

de mateacuteria e a mateacuteria se anime para que possa nascer uma nova forma de vida150

Nesse

148

ldquo[] la religion convie lrsquohomme agrave aimer le genre humainrdquo (BERGSON 2001 p 100228) 149

ldquo[] la seconde morale [] diffeacutere de la premiegravere en ce qursquoelle est humaine au lieu drsquoecirctre seulement

socialerdquo (BERGSON 2001 p 100431) 150

Eis a bela passagem em que Bergson (2001 p 100532) descreve a sobrevivecircncia virtual do aberto em

algumas foacutermulas ldquo[] il suffit [] que la formule soit lagrave elle prendra tout son sens lrsquoideacutee qui viendra le

remplir se fera agissante quand une occasion se preacutesentera Il est vrai que pour beaucoup lrsquooccasion ne se

preacutesentera pas ou lrsquoaacutection sera remise agrave plus tard Chez certains la volonteacute srsquoeacutebranlera bien un peu mais si

182

sentido o chamado que proveacutem do aberto e atravessa uma personalidade excepcional ecoa

como uma linha de atualizaccedilatildeo imponderaacutevel constitui-se na espreita que define o virtual e

sustenta-se pela miacutemesis mais ou menos descarnada dos seguidores que natildeo raro

inconscientemente atendem a seu chamado

A atitude moral do homem que responde agraves exigecircncias sociais de fechamento eacute

sem duacutevida a de um ser inteligente que sobretudo pode agir de maneira utilitaacuteria e

egoiacutesta Se agir assim arriscaraacute contrariar aquilo que exige o interesse geral Todavia logo

se vecirc que a moral utilitaacuteria e egoiacutesta do ser inteligente preocupado com seu proacuteprio bem-

estar dissimula sob si a accedilatildeo do instinto natural que o impulsiona agrave integraccedilatildeo social151

Natildeo haacute nenhum paradoxo nessa dinacircmica na medida em que essa pulsatildeo social relaciona-

se agrave obrigaccedilatildeo o indiviacuteduo viveraacute tanto pela sociedade quanto para si mesmo Eis porque a

alma se fecha em um ciacuterculo ndash porque social e individual se curto-circuitam (BERGSON

2001 p 100634) A alma aberta por sua vez implica uma atitude inteiramente diversa

ela abrange uma potecircncia amorosa definida mais do que pelo amor agrave humanidade pelo

amor aos animais plantas a toda a natureza e a todo o existente ndash e ao dizecirc-lo ainda natildeo

teremos ido longe demais Ela abrange todo o ser e todo poder ser independentemente de

seus conteuacutedos acidentais a alma aberta constitui-se por uma forma de amor total natildeo

totalizaacutevel aberto virtual e imponderaacutevel152

Entre as almas fechada e aberta verifica-se a

mesma diferenccedila de natureza que verificaacutevamos entre sociedades fechada e aberta O amor

ao todo natildeo eacute o amor familiar ou nacional dilatados pois os primeiros implicam exclusatildeo

podem incitar agrave violecircncia e agrave guerra o uacuteltimo por sua vez atinge a humanidade e a

ultrapassa cria-se um amor sobre-humano Em siacutentese o amor agrave humanidade vale por

aquilo que a ultrapassa

A atitude moral da alma aberta exige no entanto uma explicaccedilatildeo Sabemos de

onde uma moral fechada extrai sua forccedila ndash ela foi pretendida pela natureza ela eacute

engendrada pelo todo da obrigaccedilatildeo pelo qual o instinto exerce pressatildeo sobre o haacutebito

Contudo a atitude moral da alma aberta parece exigir um esforccedilo na medida em que natildeo eacute

predisposta pela natureza Se ela natildeo eacute o resultado de um alargamento progressivo dos

amores da alma fechada e se ela se constitui a partir de um chamado por que ele seria

peu que la secousse reccedilue pourra en effet ecirctre attribueacutee agrave la seule dilatation du devoir social eacutelargit et affaibli

en devoir humain Mais que les formules se remplissent de matiegravere et que la matiegravere srsquoanime crsquoest une vie

nouvelle qui srsquoannonce nous compenons nous sentons qursquoune autre morale survientrdquo 151

ldquo[] au-dessous de lrsquoactiviteacute intelligente qui aurait en effet agrave opter entre lrsquointerecirct personnel et lrsquointerecirct

drsquoautrui il y a bien un substratum drsquoactiviteacute instinctive primitivement eacutetablie par la nature ouacute lrsquoindividuel et

le social sont tout pregraves de se confondrerdquo (BERGSON 2001 p 100633) 152

ldquoSa forme ne deacutepend pas de son contenu [] La chariteacute subsisterait chez celui qui la possegravede lors mecircme

qursquoil nrsquoy aurait plus drsquoautre vivant sur la terrerdquo (BERGSON 2001 p 100734)

183

atendido de onde ela retira a sua forccedila A resposta aparentemente lacocircnica de Bergson

pode soar surpreendente mas confere ao afeto e agrave emoccedilatildeo um lugar privilegiado em sua

obra (WORMS 2011 p 324) ndash jaacute natildeo estivesse este dado pelo proacuteprio lugar do

imponderaacutevel sentimento de amor que o aberto implica ldquoEn dehors de lrsquoinstinct et de

lrsquohabitude il nrsquoy a de lrsquoaction direct sur le vouloir que celle de la sensibiliteacute La propulsion

exerceacutee par le sentiment peut drsquoailleurs ressembler de pregraves agrave lrsquoobligationrdquo (BERGSON

2001 p 100835) Tudo se passa como se focircssemos inteiramente penetrados por uma

emoccedilatildeo musical natildeo se trata de introduzir uma emoccedilatildeo em noacutes mas de introduzir-nos em

uma emoccedilatildeo fundamental ao sabor da qual todo o nosso ser vibra com a qual todos os

nossos sentimentos ressoam e a que todas as nossas accedilotildees e desejos parecem responder

(BERGSON 2001 p 100836) A emoccedilatildeo eacute criadora na medida em que lanccedila ao mundo

uma nova nota fundamental e com ela sentimentos elementares aos quais uma

personalidade pode fazer eco ou com os quais poderaacute ressoar

Notemos que Bergson sempre faz interferir uma metaacutefora musical no momento em

que o novo ou o devir explicam-se pela duraccedilatildeo ou pelo tempo Jaacute natildeo haacute mais uma

duraccedilatildeo meloacutedica mas uma nota fundamental que se propaga entre personalidades no

tempo que pode permanecer agrave espreita que pode ser agida que pode estimular a criaccedilatildeo

mas tambeacutem a accedilatildeo com a qual esta se confunde no seio do poliacutetico e do social O proacuteprio

tempo define-se portanto segundo um segmento afetivo Eacute preciso tempo para que a

sensibilidade recolha um afeto vibre com ele estenda-o modifique-o ou o comunique da

mesma forma eacute no tempo que uma nota fundamental eacute criada eacute na duraccedilatildeo que ela pode

ecoar indefinidamente seguindo seu contiacutenuo virtual coexistindo com um sem nuacutemero de

outras notas fundamentais e melodias que por sua vez engendram outros afetos e outras

linhas de subjetivaccedilatildeo capazes de interferir com uma personalidade Sob a emoccedilatildeo ou a

criaccedilatildeo natildeo haacute como natildeo perceber a duraccedilatildeo em que elas se desenrolam sem cessar

Contudo eacute preciso discernir de que tipo de emoccedilatildeo se estaacute falando em que consiste

essa emoccedilatildeo na qual toda criaccedilatildeo ndash artiacutestica ou cientiacutefica ndash apareceraacute enodada Bergson

(2001 p 101140) fala dela como de um estremecimento afetivo da alma de um revolver

das profundezas um estimulante para a accedilatildeo e o pensamento ndash emoccedilatildeo capaz de gerar

ideias Haacute com efeito algo como uma emoccedilatildeo que coincide apenas com uma agitaccedilatildeo

afetiva superficial decorre de uma ideia ou imagem representada deve-se em suma a um

estado intelectual do qual procede A sensibilidade agita-se como efeito de uma agitaccedilatildeo

superficial relativa a estados intelectuais nada profundos Trata-se pois de uma emoccedilatildeo

infraintelectual Por outro lado a emoccedilatildeo que Bergson afirma ser verdadeiramente criadora

184

eacute supraintelectual153

natildeo no sentido em que eacute axiologicamente superior agrave inteligecircncia mas

que eacute anterior a ela no tempo Natildeo nascendo de uma ideia a emoccedilatildeo engendra ideias e

representaccedilotildees designa a potecircncia da alma para uma sensibilidade profunda que se

prolonga em gecircnio esforccedilo e paciecircncia por toda parte na ciecircncia como na literatura154

Trata-se portanto de uma emoccedilatildeo ativa que natildeo apenas impele agrave accedilatildeo mas conduz-se por

uma sensibilidade em profundidade da integral da alma tal como aparecia no Essai

Worms (2011 p 324) assinala que essa emoccedilatildeo proveacutem da alma como ldquouma tomada do eu

por inteiro e natildeo de uma parte emotiva ou de uma faculdade separada []rdquo nesse sentido

a emoccedilatildeo designa o fundo ativo e total de uma personalidade que se constitui pela accedilatildeo da

proacutepria duraccedilatildeo que faz memoacuteria consigo que natildeo cessa de variar Emoccedilatildeo criaccedilatildeo e

duraccedilatildeo confundem-se ao infinito no niacutevel de atualizaccedilatildeo de uma personalidade com elas

eacute a proacutepria personalidade que eacute criada como linha de subjetivaccedilatildeo que uma obra ou nota

fundamental podem ajudar a completar

Sendo supra e natildeo infraintelectual diziacuteamos a emoccedilatildeo antecede a representaccedilatildeo

engendra a ideia ao inveacutes de ser engendrada por ela Tudo se passa como se a inteligecircncia

fosse entatildeo impelida por uma espeacutecie de gozo antecipado em resolver um problema em

avanccedilar sem cessar vitalizando as representaccedilotildees que gera e com as quais seu encontro se

determina no enunciado de um problema capaz talvez de conduzi-la a uma soluccedilatildeo

Tambeacutem a coincidecircncia entre um autor e seu assunto vecirc a inteligecircncia consumir-se em

ldquolrsquoeacutemotion originale et uniquerdquo (BERGSON 2001 p 101443) em uma intuiccedilatildeo Se a

inteligecircncia pode abandonar-se a articular e rearticular ideias palavras e soacutelidos a emoccedilatildeo

natildeo trabalha a frio a intuiccedilatildeo funde os materiais fornecidos pela inteligecircncia e a emoccedilatildeo

constitui a causa virtual das ideias representaccedilotildees e palavras que a exprimem155

Com

efeito se a gecircnese moral se deve em profundidade agrave emoccedilatildeo ela sempre pode cristalizar-se

em representaccedilatildeo e constituir uma estrutura como se o aberto da emoccedilatildeo se fechasse na

clausura da representaccedilatildeo exatamente como o eacutelan eacute abertura vital que volta a se fechar

sob uma forma de vida atual No social como no vital natildeo se pode explicar o

engendramento pelo engendrado o virtual pelo atual apenas o contraacuterio eacute possiacutevel Para

aderirmos a uma moral natildeo basta a coerecircncia racional eacute preciso que a atmosfera da

emoccedilatildeo que a criou esteja de alguma forma presente assim jaacute natildeo nos obrigamos

153

ldquoCreacuteation signifie avant tout eacutemotionrdquo (BERGSON 2001 p 101342) 154

ldquoSeule en effet lrsquoeacutemotion du second genre peut devenir geacuteneacuteratrice drsquoideacuteesrdquo (BERGSON 2001 p

101241) 155

ldquo[] agrave cocircteacute de lrsquoeacutemotion qui est lrsquoeffet de la repreacutesentation qui la contient virtuellement et qui srsquoy

surajoute il y a celle qui precegravede la repreacutesentation qui la contient virtuellement et qui en est jusqursquoagrave un

certain point la causerdquo (BERGSON 2001 p 101444)

185

puramente mas cedemos agrave inclinaccedilatildeo que a emoccedilatildeo nos imprime (BERGSON 2001 p

101545)

Na medida em que a moralidade fechada do instinto social define-se pela pressatildeo

capaz de opor agraves vontades individuais cristalizando-se a emoccedilatildeo em imperativo a

moralidade aberta define-se por uma aspiraccedilatildeo que resiste a essa natureza e ao inveacutes do

prazer e do estado de bem-estar geral que caracterizam a normalidade do que Bergson

chama de ldquosociedades afrodisiacuteacasrdquo o aberto concede-nos um sentimento no qual todo

prazer se envolve e absorve ndash a alegria Enquanto o prazer remete ao fechado ao

imobilismo confortaacutevel do bem-estar a alegria remete ao entusiasmo e agrave aspiraccedilatildeo proacutepria

dos miacutesticos e das individualidades excepcionais156

Na medida em que a vida se dividiu

em espeacutecies e tendo obtido a espeacutecie humana dividiu-a em indiviacuteduos como seus

momentos de parada virtual satildeo os indiviacuteduos que podem conduzir a vida um pouco aleacutem

de si mesmos eacute por meio de certos indiviacuteduos excepcionais que a humanidade pode ser

arrastada a um sentimento de coincidir com o esforccedilo gerador da vida (BERGSON 2001

p 102051) Suas personalidades compreendidas como singularidades abertas agrave accedilatildeo da

duraccedilatildeo variando em funccedilatildeo dela constituem os pontos luminosos em que o aberto

constitui-se como o momento em que o esforccedilo criador da vida ultrapassa a forma criada

em que a potecircncia inorgacircnica do virtual leva o atual mais aleacutem de si mesmo e se inventam

novas formas de vida e de pensamento Essa invenccedilatildeo soacute eacute possiacutevel poreacutem no seio afetivo

de uma emoccedilatildeo criadora que constitui essa propulsatildeo profunda de que a criaccedilatildeo eacute o

expresso157

As formas de vida atuais especiacuteficas ou morais satildeo apenas a imagem fria e

paacutelida dessa emoccedilatildeo criadora cinzas sobre a brasa sua cristalizaccedilatildeo temporaacuteria

Encontramo-nos portanto diante de duas morais Uma fechada agrave qual o homem

estaacute predestinado por sua estrutura natural que visa a conservaacute-lo como ser ao mesmo

tempo inteligente e sociaacutevel outra aberta pela qual alguns indiviacuteduos excepcionais

parecem romper parcialmente com a natureza ndash no sentido da moralidade fechada agrave qual

estavam predestinados ndash colocando-se uma vez mais no sentido do eacutelan vital (BERGSON

2001 p 102356) Eis o que faz com que a moral fechada constitua apenas um momento

156

ldquoIls sont [plaisir et bien-ecirctre] en effet arrecirct ou piegravetinement sur place tandis qursquoelle [la joie] est marche en

avantrdquo (BERGSON 2001 p 102457) As expressotildees entre colchetes natildeo constam do original 157

ldquo[] crsquoest toujours dans un contact avec le principe geacuteneacuterateur de lrsquoespegravece humaine qursquoon srsquoest senti

puiser la force drsquoaimer lrsquohumaniteacute Je parle bien entendu drsquoun amour qui absorbe et reacutechauffe lrsquoacircme entiegravererdquo

(BERGSON 2001 p 102152)

186

da moralidade aberta158

como se o dinacircmico absorvesse o estaacutetico e o explicasse em

profundidade

O fechado saiacutedo das matildeos da natureza e o aberto pelo qual se rompe em certa

medida com a natureza naturada para aceder agrave natureza naturante constituem o dualismo

fundamental que atravessa por toda a extensatildeo de Les Deux Sources (WORMS 2011 p

286) No entanto natildeo haveria uma alma que se abre Entre o estaacutetico e o dinacircmico natildeo

haveria uma moral de transiccedilatildeo (BERGSON 2001 p 102862) Esse natildeo seria

precisamente o estado da inteligecircncia entre o infra e o supraintelectual meio-termo entre

duas tendecircncias puras Com efeito eis o que Bergson afirma159

e a inteligecircncia definir-se-

ia entatildeo por uma insuficiecircncia de impulsatildeo Persistindo na ataraxia ou na apatia a

inteligecircncia encontraria na pura contemplaccedilatildeo e em uma moralidade do desprendimento

da alma estoica um prolongamento natural Todavia uma alma e uma moralidade de

transiccedilatildeo entre o aberto e o fechado parecem colocar de imediato uma questatildeo de que

ainda natildeo podemos nos aproximar senatildeo por tateio a questatildeo sobre como abrir o fechado

Se por ora natildeo podemos tocar senatildeo sua sombra estamos advertidos que a alma pode ser

atravessada por dois movimentos de sentidos inversos ldquoCe qui est aspiratoin tend agrave se

consolider en prenant la forme de lrsquoobligation strict Ce qui est obligation strict tend agrave

grossir et agrave srsquoeacutelargir en englobant lrsquoaspirationrdquo (BERGSON 2001 p 103064)

Cristalizaccedilatildeo e fluxo solidificaccedilatildeo e fusatildeo

Sob o plano intelectual em que os imperativos morais interpenetram-se sob a forma

de conceitos pressatildeo e aspiraccedilatildeo satildeo duas forccedilas profundas que correspondem a duas

formas de obrigaccedilatildeo (BERGSON 2001 p 104382) Como expressos de tendecircncias puras

ao fechamento e agrave abertura que natildeo existem senatildeo como limites ideais um misto de ambas

forjaraacute a estrutura social afinal assim como o homem natildeo eacute puramente inteligecircncia ou

intuiccedilatildeo as sociedades humanas natildeo satildeo nem puramente instintuais e orgacircnicas como natildeo

poderiam ser puramente miacutesticas160

Poreacutem assim como isso natildeo retira a realidade da

obrigaccedilatildeo nua tampouco subtrairaacute de nossa consideraccedilatildeo o fato de que mesmo no interior

das sociedades mais civilizadas satildeo as almas miacutesticas que as arrastam em seu conjunto

sem cessar elas eacute que podem ser revivificadas por cada um de noacutes seguidores ou

imitadores e ela natildeo cessa de exercer sobre noacutes certa atraccedilatildeo que Bergson diz ser ldquovirtualrdquo

Pressatildeo e aspiraccedilatildeo correspondem a duas ordens de forccedilas uma infraintelectual instintiva

158

ldquoLa morale courant nrsquoest pas abolie mais elle se preacutesente comme un moment le long drsquoun progregravesrdquo

(BERGSON 2001 p 102558) 159

ldquoEntre les deux il y a lrsquointelligence mecircmerdquo (BERGSON 2001 p 102963) 160

ldquoLrsquoaspiration pure est une limite ideacuteale comme lrsquoobligation nuerdquo (BERGSON 2001 p 104685)

187

naturalizada como um fato da vida outra supraintelectual intuitiva que faz passar por uma

forma dada o impulso vital que eacute a causa profunda de sua gecircnese Se respondemos ao

chamado miacutestico em maior ou menor grau isso se deve agrave forccedila da proacutepria emoccedilatildeo outrora

provocada A correlaccedilatildeo das duas formas em regiotildees diferentes da alma permite uma

projeccedilatildeo contiacutegua agrave inteligecircncia (BERGSON 2001 p 1046-104785-86) Eis o que nos

coloca acima da sociabilidade meramente animal mas abaixo de uma sociedade aberta eis

tambeacutem a regiatildeo em que a moral parece compor-se por projeccedilatildeo com a razatildeo o que

permite reconduzi-la coerentemente a princiacutepios

Bergson insiste no entanto que esta eacute uma projeccedilatildeo meramente racional da moral

Como vimos sua causa natildeo eacute intelectual mas mais profunda161

seu enigma eacute explicado

pela vida em sentido infra ou supraintelectual nos sentidos de sua cristalizaccedilatildeo ou de sua

gecircnese dinacircmica A polecircmica estabelece-se de forma franca com a filosofia moral kantiana

mas tambeacutem se dirige contra qualquer pretensatildeo de fundar a moral a partir da loacutegica Nem

o egoiacutesmo nem a paixatildeo cedem agrave inteligecircncia ou ao espiacuterito especulativo Ao mesmo

tempo natildeo se poderia fundar a moral em criteacuterios unicamente racionais sem inserir sub-

repticiamente forccedilas de ordem diferente (BERGSON 2001 p 105090-91) A sociedade

estaacute dada na proacutepria forma de vida humana sob a forma de instinto virtual haacutebito de

contrair haacutebitos e por meio dessa dinacircmica tenderaacute a conservar-se o maacuteximo que puder

Nesse contexto o que a razatildeo faraacute eacute eleger um princiacutepio sistematicamente coerente

adequado a esta finalidade conservadora da sociabilidade que seraacute repartido coletivamente

segundo a pressatildeo que o todo da obrigaccedilatildeo exerce estaacute portanto carregado das tendecircncias

que a moral social depositou nele A razatildeo veraacute aspiraccedilotildees prolongando princiacutepios morais

prestes a se tornarem imperativos mas tanto uns quanto outros resultam da atmosfera

social na qual satildeo ldquopressentidosrdquo (BERGSON 2001 p 105292-93) Se uma obrigaccedilatildeo eacute

necessaacuteria e ateacute mesmo biologicamente predisposta seus conteuacutedos equivalem a valecircncias

livres que podem ser soldadas agrave inteligecircncia a qual permanece incapaz por si de explicar

a origem da obrigaccedilatildeo Com efeito a vida poderia ter se limitado a fabricar sociedades

fechadas e a garantir sua coesatildeo por meio de viacutenculos obrigacionais estritos entre seres

inteligentes cuja inteligecircncia natildeo teria chegado ao ponto de estimular nenhuma

transformaccedilatildeo radical (BERGSON 2001 p 105597)

161

ldquo[] de ce qursquoon aura constateacute le caractegravere rationnel de la conduite morale il ne suivra pas que la morale

ait son origine ou mecircme son fondement dans la pure raisonrdquo (BERGSON 2001 p 104786) ldquoBref et pour

tout reacutesumer il ne peut ecirctre question de fonder la morale sur le culte de la raisonrdquo (Idem ibidem p 105090)

188

Sua mutaccedilatildeo depende portanto de um salto qualitativo em relaccedilatildeo agrave inteligecircncia

de almas que Bergson diz serem excepcionais ou privilegiadas que natildeo se limitavam pela

solidariedade ao grupo mas abriam-se ao amor agrave humanidade Do ponto de vista da vida

sua apariccedilatildeo teria sido tatildeo luminosa e intensa que tudo se passa como se cada indiviacuteduo

constituiacutesse em si mesmo uma nova espeacutecie ponto de passagem do eacutelan vital a partir do

qual seu impulso pode prolongar-se mais aleacutem de uma forma de vida atual (BERGSON

2001 p 105698) Jaacute natildeo seriam mais sujeitos manifestando seu amor mas um amor

manifestando-se atraveacutes dessas individualidades penetradas por uma emoccedilatildeo criadora que

seria como um transbordamento de vitalidade A simples evocaccedilatildeo de seus nomes ainda

hoje comunicam algo dessa forccedila original produzem uma atraccedilatildeo mais ou menos

irresistiacutevel sejam eles Buda Jesus ou Soacutecrates

Os nomes ainda parecem fazer passar atraveacutes de si algo de um impulso original

como se fossem clareiras rescendentes de uma emoccedilatildeo criadora que coincide com o

proacuteprio eacutelan vital Nesse plano eacute possiacutevel notar que pressatildeo social e impulso de amor satildeo

duas manifestaccedilotildees complementares da mesma vida em sentidos diferentes tais como

duraccedilatildeo e espaccedilo ou espiacuterito e mateacuteria originalmente articuladas para conservar a forma

social caracteriacutestica da espeacutecie humana excepcionalmente e graccedilas a indiviacuteduos satildeo

capazes de se transfigurar (BERGSON 2001 p 105798-99) Eis em que sentido a

experiecircncia miacutestica se torna o campo de provas privilegiado dessa tese para aleacutem de

qualquer interpretaccedilatildeo da proacutepria miacutestica e a despeito de seus conteuacutedos nela os miacutesticos

jaacute natildeo satildeo mais seres de pura contemplaccedilatildeo e ecircxtase mas verdadeiros homens de accedilatildeo

encarnaccedilotildees de potenciais de transformaccedilatildeo de modos de vida aqueles que ldquosrsquoouvrent

simplement au flot qui les envahitrdquo (BERGSON 2001 p 1059102)

Na medida em que compreendemos o fundo vital por detraacutes da obrigaccedilatildeo e da

moralidade em sentidos tanto infra quanto supraintelectuais a religiatildeo natildeo deixaria de

colocar novos problemas com relaccedilatildeo agrave vida mas tambeacutem com relaccedilatildeo agrave inteligecircncia A

fim de que possamos nos aproximar do cerne da discussatildeo da transiccedilatildeo ndash que se dissimula

sob as questotildees ldquocomo abrir o fechadordquo e ldquocomo perseverar no abertordquo ndash seria preciso

atendo-nos apenas ao essencial aprofundar como a religiatildeo constitui tambeacutem ela uma

exigecircncia da proacutepria vida

A primeira perplexidade de supor a existecircncia de uma religiatildeo natural aos homens

pressentida em diferentes niacuteveis de elaboraccedilatildeo nas sociedades humanas ditas primitivas e

presente tambeacutem nas sociedades civilizadas eacute a aparente contradiccedilatildeo entre o mosaico de

189

aberraccedilotildees que as religiotildees constituem em relaccedilatildeo agrave inteligecircncia No entanto a tese

genuinamente antropoloacutegica de Bergson sobre a existecircncia de uma religiatildeo natural ou

primitiva que natildeo teria desaparecido na civilizaccedilatildeo ndash mas se encontraria recoberta por

camadas superficiais de educaccedilatildeo e variabilidade cultural ndash vai precisamente ao encontro

da destituiccedilatildeo desse aparente paradoxo Se por um lado as supersticcedilotildees que habitam o

fundo de toda religiatildeo parecem humilhar a inteligecircncia (BERGSON 2001 p 1061105)

por outro elas natildeo constituem exclusividade das mentalidades preacute-loacutegicas de Leacutevy-Bruhl

tais exigecircncias religiosas primitivas encontrar-se-iam copresentes aos modos de vida

civilizados na medida em que se constituiriam a partir da ldquostructure geacuteneacuterale de lrsquoesprit

humainrdquo (BERGSON 2001 p 1063107) Natildeo haacute pois diferenccedila de natureza entre a

mentalidade primitiva e a inteligecircncia saiacutedas das matildeos da natureza elas correspondem a

uma e mesma direccedilatildeo de desenvolvimento do eacutelan vital tatildeo inatos quanto a linguagem o

bom senso e o senso social no homem normal Natildeo eacute portanto em razatildeo da sociabilidade

que o homem difere estruturalmente dos himenoacutepteros ndash vimos outrossim que a

sociabilidade eacute uma tendecircncia comum a ambas as linhas divergentes de evoluccedilatildeo ndash mas

sim em razatildeo da indeterminaccedilatildeo que a inteligecircncia insere como potencial especiacutefico da

forma de vida do primeiro e que o instinto do segundo inibe Incapazes da inteligecircncia da

representaccedilatildeo e da invenccedilatildeo os insetos permanecem vinculados agrave vida pelo instinto que

nada mais eacute que o prolongamento natural do eacutelan nas formas de vida que o instinto habita

Na medida em que os insetos natildeo representam e o instinto assegura que suas accedilotildees sejam

necessaacuterias fixas e organicamente ordenadas as sociedades de himenoacutepteros natildeo

desenvolvem as supersticcedilotildees proacuteprias aos homens

Poreacutem como explicar no homem representaccedilotildees que engendram supersticcedilotildees A

resposta de Bergson descarta a imaginaccedilatildeo as funccedilotildees loacutegicas do espiacuterito para limitar-se agrave

descriccedilatildeo de uma funccedilatildeo que apesar de indeterminada encontra-se preacute-formada no

homem e ligada agrave vida em geral Trata-se da funccedilatildeo fabuladora que permitiraacute que tudo seja

explicado em profundidade pela vida em razatildeo de lrsquoattachement agrave la vie mas que

encontraraacute uma explicaccedilatildeo superficial a um soacute tempo individual e social162

Isso implica

poreacutem que compreendamos o sentido dessa necessidade natural a exigir uma funccedilatildeo

fabuladora como o efeito da religiatildeo

162

ldquo[] par rapport agrave la religion cette faculteacute [la fonction fabulatrice] serait effet et non pas cause Un

besoin peut-ecirctre individuel en tout cas social a ducirc exiger de lrsquoesprit ce genre drsquoactiviteacuterdquo (BERGSON 2001

p 1067112)

190

Tudo se passa como se a inteligecircncia consistisse em uma inclinaccedilatildeo perigosa tanto

ao indiviacuteduo quanto agrave sociedade Se entre os himenoacutepteros o instinto forja as accedilotildees que

correspondem a uma sociedade perfeita em que cada indiviacuteduo se encontra

organizadamente vinculado ao todo desempenha sua funccedilatildeo resultante de uma dada

inclinaccedilatildeo natural e estrutural entre os indiviacuteduos que participam de sociedades humanas

a inteligecircncia exerce uma funccedilatildeo duacuteplice na natureza A inteligecircncia permite a reflexatildeo ndash

que eacute capaz de transformar invenccedilatildeo em variabilidade e liberdade de accedilatildeo ndash inserindo

intervalos temporais cada vez maiores de hesitaccedilatildeo entre estiacutemulo e resposta e tornando

possiacutevel uma accedilatildeo tatildeo refletida quanto livre Ao mesmo tempo ao implicar a liberdade

mesma a inteligecircncia parece ameaccedilar a coesatildeo social ndash eacute portadora de perigos tanto quanto

do imprevisiacutevel ontoloacutegico que constitui a accedilatildeo livre A fim de assegurar a sociabilidade a

natureza encontrou na funccedilatildeo fabuladora um meio para prevenir-se contra as ameaccedilas que

levar a inteligecircncia e a indeterminaccedilatildeo tatildeo longe poderiam representar ao indiviacuteduo e agrave

coesatildeo social dessa forma a via encontrada teria sido invadir a inteligecircncia pouco a pouco

com a supersticcedilatildeo aproveitar os efeitos alucinatoacuterios da ficccedilatildeo ndash eficazes a ponto de

reorientarem condutas concretas desapegadas agrave vida ndash sem prejudicar a proacutepria

inteligecircncia163

Essa visatildeo eacute poreacutem ainda de todo esquemaacutetica A fim de confirmaacute-la seria preciso

compreender como a proacutepria natureza se previne em face da inteligecircncia e por outro lado

qual a origem da tendecircncia que encontra na funccedilatildeo fabuladora esse modo de prevenccedilatildeo

Para tanto conviria lembrar que por mais que as sociedades de himenoacutepteros e as de

homens procedam umas a partir do instinto outras a partir da inteligecircncia a comunidade

de eacutelan que descerraacutevamos acerca delas daacute conta de sua origem comum Tal origem

permitia entrever desde LrsquoEacutevolution Creacuteatrice que tanto o instinto encontrava-se

penetrado de certo niacutevel de inteligecircncia como a inteligecircncia aureolava-se de instinto como

uma nuvem de virtualidades copresentes agrave ela Eis o que definiria uma vez mais em

funccedilatildeo da inteligecircncia uma espeacutecie de instinto virtual que natildeo permite que o homem

divague infinitamente por meio da inteligecircncia e permaneccedila apegado agrave vida Se Bergson

diz que antes de filosofar eacute preciso viver eacute para assinalar que mesmo entre os homens o

instinto estaacute permanentemente agrave espreita ndash o que consiste no modo do virtual ndash ou que o

163

Ao inveacutes de as imagens alucionatoacuterias e das supersticcedilotildees contradizerem a inteligecircncia ldquoUne fiction si

lrsquoimage est vive et obseacutedante pourra preacuteciseacutement imiter la perception et par lagrave empecirccher ou modifier

lrsquoaction Une expeacuterience systegravematiquement fausse se dressant devant lrsquointelligence pourra lrsquoarrecircter au

moment ouacute elle irait trop loin dans les conseacutequences qursquoelle tire de lrsquoexpeacuterience vrai Ainsi aurait donc

proceacutedeacute la naturerdquo (BERGSON 2001 p 1067113)

191

instinto vigia sem cessar a inteligecircncia inibe a tendecircncia que a inteligecircncia tem a

especulaccedilatildeo desligada da vida e manteacutem um corpo atento agraves promessas e ameaccedilas de seu

entorno

Dito isso seria pois o caso de perguntar em que consiste essa tendecircncia que cria

nos homens uma faculdade que sugere a seres livres e inteligentes imagens quase

alucinatoacuterias Ao mesmo tempo trata-se de interrogar em que consiste a necessidade vital

a que essas imagens respondem Essas questotildees satildeo modos natildeo isomoacuterficos de propor em

profundidade o problema que concerne a Bergson no segundo capiacutetulo de Les Deux

Sources a saber em que consiste a complexa relaccedilatildeo entre fabulaccedilatildeo e vida Para

respondecirc-lo eacute preciso remontar a algumas descriccedilotildees de sua evoluccedilatildeo criadora sobre a

forma de vida humana ou o que chamamos de ciacuterculo antropoloacutegico ao qual a religiatildeo

encontra-se ligada bem como ao instinto virtual que circunda a inteligecircncia dos

vertebrados superiores (BERGSON 2001 p 1068-1069114)

O homem tal como saiacutedo das matildeos da natureza apresenta duas caracteriacutesticas a

inteligecircncia e a sociabilidade Para compreender em que sentido Bergson pode afirmar a

existecircncia de uma religiatildeo natural ao homem e como ela constitui uma exigecircncia vital que

se utiliza da inteligecircncia para reequilibrar a proacutepria vida seria preciso recolocar a

inteligecircncia e a sociabilidade na evoluccedilatildeo geral da vida interpretaacute-las biologicamente ndash no

sentido abrangente que Bergson advoga

Se retomarmos os dois sentidos em que a vida evoluiu veremos que a sociabilidade

encontra-se presente de modo bem-acabado em duas linhas divergentes que se originaram

de uma comunidade de eacutelan por essa razatildeo cada uma das linhas representam

desenvolvimentos diferenciados mas complementares da mesma tendecircncia natural agrave

sociabilidade Haacute pouco bastava que lanccedilaacutessemos os olhos agraves sociedades de insetos

himenoacutepteros (formigas abelhas) para percebermos uma forma imutaacutevel de organizaccedilatildeo

social baseada no instinto fixa e ordenada Na outra das linhas a dos homens poreacutem

verifica-se o desenvolvimento da sociabilidade segundo direccedilotildees inteligentes e inventivas

o que conduz a uma sociedade marcada pela variabilidade de formas de organizaccedilatildeo social

e permite que elas descrevam uma histoacuteria progressiva da evoluccedilatildeo desses modos de

relaccedilatildeo intersubjetiva Ao lado do instinto ndash prolongamento do esforccedilo organizador da

natureza ndash ou da inteligecircncia aureolada por franjas virtuais de instinto seja como for a

comunidade de eacutelan atesta que ldquole social est au fond du vitalrdquo (BERGSON 2001 p

1075123) Sendo a sociabilidade uma direccedilatildeo da vida que se reparte na medida em que

192

cresce ndash e que obseda ateacute mesmo as estruturas orgacircnicas individuais164

ndash ela se

manifestaraacute diferentemente nas linhas evolutivas e originaraacute dos dois tipos de sociedades

que viemos a conhecer as sociedades dos insetos e a dos homens

Na linha que corresponde agrave forma de vida humana ao ciacuterculo antropoloacutegico a

inteligecircncia eacute outorgada aos indiviacuteduos juntamente com a liberdade a indeterminaccedilatildeo e o

poder de iniciativa Pelo imprevisiacutevel que sua linha comporta e faz passar mas tambeacutem

pela tendecircncia ao egoiacutesmo que pode implicar a inteligecircncia ameaccedila romper em certos

pontos a coesatildeo social de tal forma que a natureza precisa encontrar um contrapeso agrave

inteligecircncia O instinto que inibido pela inteligecircncia persiste ao seu redor por forccedila de uma

comunidade original de eacutelan natildeo pode constituir esse contrapeso por seus proacuteprios meios

Em estado virtual ndash o que aqui significa natildeo agente e inibido ndash eacute apenas como resiacuteduo que

ele pode influir sobre a inteligecircncia todavia sob que forma um instinto virtual cujo lugar

encontra-se tomado pela inteligecircncia poderia atuar sobre ela Uma vez que o instinto natildeo

eacute inteligecircncia natildeo pode produzir representaccedilotildees no entanto pode agir sobre a inteligecircncia

ndash a produtora dessas representaccedilotildees possiacuteveis ndash na medida em que ainda eacute capaz de

suscitar imaginaacuterios contrapostos agrave representaccedilatildeo real Assim a inteligecircncia por meios

absolutamente proacuteprios poderaacute contrapor-se ao trabalho intelectual (BERGSON 2001 p

1076124) Eacute precisamente esta dinacircmica que define a funccedilatildeo fabuladora como o efeito do

apego agrave vida que reequilibra a coesatildeo social que tendecircncias e representaccedilotildees inteligentes

ameaccedilam romper No entanto devemos definir melhor em que consiste a funccedilatildeo social da

fabulaccedilatildeo bem como precisar como ela pode explicar-se pela proacutepria vida

Uma vez que constitui o prolongamento do trabalho organizador que a proacutepria vida

efetua em cada uma das linhas divergentes em que o eacutelan se reparte o instinto eacute

coextensivo agrave vida Se pressentiacuteamos nos indiviacuteduos uma certa tendecircncia virtual agrave

sociabilidade de suas partes constitutivas organizadas isso se deve ao fato de que o instinto

social nada mais revela que o espiacuterito de subordinaccedilatildeo e de coordenaccedilatildeo que se distribui e

anima as ceacutelulas tecidos e oacutergatildeos de todos os corpos vivos (BERGSON 2001 p

1077125) Por um lado Bergson natildeo cessa de afirmar a raridade da transmissibilidade dos

caracteres adquiridos por outro repete sem cessar a persistecircncia de tudo aquilo de que a

natureza dotou a forma de vida humana isto eacute das sociedades contemporacircneas agraves

sociedades primitivas virtualidades de instinto espreitam a inteligecircncia incessantemente

164

ldquoAgrave lrsquoeacutetat de simple tendence elle [la sociabiliteacute] est partout dans la nature [] La hantise de la forme

sociale qursquoon trouve dans un grand nombre drsquoespegraveces se reacutevegravele donc jusque dans la structure des individusrdquo

(BERGSON 2001 p 1074121) A expressatildeo entre colchetes natildeo se encontra no original

193

Daiacute porque o instinto no homem natildeo se encontraria suprimido mas inibido ou eclipsado

por uma outra tendecircncia de atualizaccedilatildeo da consciecircncia assim o instinto passa a secundar

como uma vaga nuvem de virtuais os nuacutecleos luminosos da inteligecircncia (BERGSON

2001 p 1077125-126)

Ao mesmo tempo em que a inteligecircncia permite inventar e progredir ameaccedila

prejudicar a disciplina social em dois sentidos que por constituiacuterem correlatos da

inteligecircncia satildeo inencontraacuteveis entre as formas de sociabilidade instintuais por um lado o

egoiacutesmo que ameaccedila a sociedade de desorganizaccedilatildeo e no limite de dissoluccedilatildeo e os

efeitos individuais nocivos originados por representaccedilotildees conscientes de eventos

imprevisiacuteveis que Bergson resumiraacute na representaccedilatildeo do acaso gerador de toda sorte de

supersticcedilotildees

Haacute pois em primeiro lugar um poder dissolvente da inteligecircncia que encontraraacute na

religiatildeo estaacutetica ndash aguilhoada agrave funccedilatildeo fabuladora como sua faculdade especiacutefica ndash uma

reaccedilatildeo defensiva da natureza Com isso estariacuteamos diante de uma ldquoreligiatildeo naturalrdquo ou

ldquoprimitivardquo que natildeo implica nenhum coacutedigo moral ou conteuacutedo de crenccedila especiacutefico165

sua

forccedila suficientemente potente contra o poder dissolvente da inteligecircncia reside no fato de

que a religiatildeo estaacutetica implica a existecircncia formal de costumes por intermeacutedio dos quais os

homens vinculam-se entre si e se desligam das projeccedilotildees utilitaacuterias e egoiacutestas que a

inteligecircncia naturalmente aconselha166

Assim torna-se possiacutevel estabelecer as expectativas

sociais sob certa atmosfera moral de confianccedila reciacuteproca

Do mesmo modo como a natureza se garante contra a desorganizaccedilatildeo e a

dissoluccedilatildeo ldquoLa reacutepresentation intelectuelle qui reacutetablit ainsi lrsquoeacutequilibre au profit de la

nature est drsquoordre religieuxrdquo (BERGSON 2001 p 1084134-135) e visa a proteger o

homem dos efeitos deprimentes de seu apego agrave vida pela representaccedilatildeo intelectual de sua

proacutepria morte Enquanto todos os outros seres vivos apegados intensamente agrave vida apenas

adotam instintivamente o sentido de seu impulso o homem eacute o animal consciente de que se

destina a morrer Eis o que o impede de a exemplo de outras formas de vida simplesmente

165

Tanto que Bergson afirmaraacute que os deuses em particular satildeo contingentes mas a confianccedila ndash objeto da

religiatildeo estaacutetica e que ele denomina ldquototalidade de deusesrdquo ou ldquodeus em geralrdquo ndash seria necessaacuteria ldquoLe

pantheacuteon existe indeacutependamment de lrsquohomme mais il deacutepend de lrsquohomme drsquoy faire entrer un dieu et de lui

confeacuterer ainsi lrsquoexistence [] chaque dieu determineacute est contingent alors que la totaliteacute des dieux ou plutocirct

le dieu en geacuteneacuteral est neacuteceacutessairerdquo (BERGSON 2001 p 1145211) 166

ldquoTout ce qui est habituel aux membres du groupe tout ce que la socieacuteteacute attend des individus devra donc

prendre un caractegravere religieux srsquoil est vrai que par lrsquoobservation de la coutume et par elle seulement

lrsquohomme est attacheacute aux autres hommes et deacutetacheacute ainsi de lui-mecircme [] Agrave lrsquoorigine la coutume est toute la

morale et comme la religion interdit de srsquoen eacutecarter la morale est coextensive agrave la religionrdquo (BERGSON

2001 p 1079128)

194

confiar no futuro inibir toda representaccedilatildeo mortificadora ou ameaccediladora proveniente do

devir Poreacutem de onde procede essa consciecircncia sobre a proacutepria finitude senatildeo da

inteligecircncia A reflexatildeo que nasce junto com a inteligecircncia permite que o homem perceba

que tudo o que existe agrave sua volta perece assim logicamente deduz-se que ele tambeacutem

deva estar destinado a morrer Isso eacute o que constitui o deprimente de sua relaccedilatildeo de apego

agrave vida (BERGSON 2001 p 1085-1086136-137)

Na medida em que a inteligecircncia possui um efeito depressor sobre o indiviacuteduo a

funccedilatildeo fabuladora pode constituir o baacutelsamo de que a natureza equipou o vivente

Contrapondo agrave ideia de uma morte inevitaacutevel a imagem de uma vida apoacutes a morte lanccedilada

ao seio da proacutepria inteligecircncia torna-se possiacutevel reordenar as coisas ter novamente

confianccedila na vida e equilibrar as repeticcedilotildees de ideias negativas sobre o devir Desse ponto

de vista ldquola religion est une reacuteaction deacuteffensive de la nature contre la repreacutesentation par

lrsquointelligence de lrsquoinevitabiliteacute de la morterdquo (BERGSON 2001 p 1086137) tanto

indiviacuteduo como sociedade terminam por tirar proveito disso Assim como ao primitivo

bastaria ver sua imagem refletida em uma poccedila drsquoaacutegua para perceber pela primeira vez a

existecircncia de uma sua imagem completamente separada de seu corpo ndash modo no qual ela

poderia quem sabe sobreviver indefinidamente ndash isso seria suficiente para pensar de

modo inteiramente natural que o homem sobreviva em um estado espectral (comumente

em estado de sombra ou fantasma) agrave proacutepria morte (BERGSON 2001 p 1088139) A

sociedade tiraraacute proveito das imagens da vida apoacutes a morte assim lanccediladas em face das

representaccedilotildees da inevitabilidade do desaparecimento na medida em que isso tornaraacute

possiacutevel manter-se estaacutevel e duraacutevel prolongando a histoacuteria dos contemporacircneos e das

geraccedilotildees futuras na dos antepassados que cultuados poderatildeo ver-se transformados em

deuses Misturados com os vivos os mortos podem ainda agir sobre eles conservando-se

em estado espectral sua reminiscecircncia permitiraacute engendrar lendas e mitos em tudo

patrocinadas pelas fabulaccedilotildees coletivas167

Seja como for as duas garantias pelas quais a funccedilatildeo fabuladora responde ndash aquelas

contra a dissoluccedilatildeo ou a desorganizaccedilatildeo e a depressatildeo ndash permitem finalmente

compreender a religiatildeo como ponto de apoio natural contra a imprevisibilidade e o

sentimento de risco que a aplicaccedilatildeo da proacutepria inteligecircncia agrave vida parece implicar Todavia

esse sentimento ndash que natildeo se pode encontrar entre os animais seguros de si ndash deve-se

167

ldquoLes morts vont alors devenir des personnages avec lesquels il faut compter Il peuvent nuire Il peuvent

rendre service Ils disposent jusqursquoagrave un certain point de ce que nous appelons les forces de la naturerdquo

(BERGSON 2001 p 1090141)

195

justamente ao fato de que entre a representaccedilatildeo de um objetivo a atingir e o ato que visa a

ele ndash entre presa e captura entre flecha e alvo ndash vem inserir-se a inteligecircncia combinatoacuteria

de meios e fins Tornada presente a inteligecircncia eacute a indeterminaccedilatildeo da accedilatildeo a

representaccedilatildeo de certa margem de imprevisto como ameaccedilas filiadas ao proacuteprio tempo

que se tornam presentes agrave inteligecircncia Na medida em que a morte eacute obra do acaso por

excelecircncia pode-se afirmar em geral que todas as representaccedilotildees religiosas constituem

reaccedilotildees defensivas da natureza contra a representaccedilatildeo pela inteligecircncia de uma faixa

desestimulante de imprevisibilidade ndash natildeo raro vinculada ao medo e agrave necessidade ndash entre

a iniciativa tomada e o efeito almejado (BERGSON 2001 p 1094146) A experiecircncia da

vontade de ter sucesso que prova de que modo a supersticcedilatildeo pode entre homens muito

contemporacircneos inserir-se como representaccedilatildeo no seio da inteligecircncia poderia ser feita

ainda hoje e de modo muito simples poderia ser vivida imediatamente em um cassino em

um jogo de roleta por exemplo Logo esse homem se veraacute ndash imaginariamente ndash

empurrando a bolinha com a matildeo para mais proacuteximo do nuacutemero escolhido tentando

expulsar o acaso para ganhar a aposta Ora o mesmo ocorre com o selvagem que apela agrave

supersticcedilatildeo agrave magia ou agrave religiatildeo para que sua flecha atinja o alvo (BERGSON 2001 p

1094147) A supersticcedilatildeo toda vez em um caso como em outro natildeo passaraacute da

remodelaccedilatildeo em consecuccedilotildees mecacircnicas de causas e efeitos ndash isto eacute por vias racionais

Em resumo ldquoAgrave lrsquoorigine des croyances que nous venons drsquoenvisager nous avons

trouveacute une reacuteaction deacutefensive de la nature contre un deacutecouragement qui aurait sa source

dans lrsquointelligencerdquo (BERGSON 2001 p 1104159) Essa reaccedilatildeo suscita no proacuteprio seio

da inteligecircncia imagens e ideias que frustram a representaccedilatildeo deprimente ou a impedem de

se tornar completa Eis a dinacircmica segundo a qual a confianccedila no devir torna-se o

significado vital profundo de toda crenccedila garantia contra o medo e o receio que deprimem

o apego agrave vida ou ameaccedilam a coesatildeo social A reaccedilatildeo da natureza eacute positiva natildeo temerosa

a religiatildeo eacute antes de tudo uma reaccedilatildeo da vida contra o temor e assegura Bergson (2001 p

1105160) ldquoelle nrsquoest pas du tout de suite croyance agrave des dieuxrdquo ndash como se a confianccedila que

o otimismo do eacutelan vital inspira fosse uma espeacutecie de crenccedila ateia no porvir ou como se a

feacute fosse a razatildeo natural da religiatildeo sua condiccedilatildeo apenas formal e sem conteuacutedo Bergson o

comprova pela relaccedilatildeo do homem com a forccedila incomensuraacutevel da natureza na medida em

que um fenocircmeno qualquer jamais precisa de uma individualidade ou personalidade

completa agrave qual demos a matildeo ndash bastaria ver o que se passa com a longa e peculiar narraccedilatildeo

de William James em que toda a teologia sob todos os aspectos daacute um testemunho

profundo de confianccedila original na vida (BERGSON 2001 p 1105-1107161-162)

196

Natildeo haacute nessa religiatildeo deveras originaacuteria nenhuma determinaccedilatildeo semiespeculativa

de uma realidade preacute-loacutegica da mente primitiva Pelo contraacuterio haacute a forma de vida

copresente ao primitivo como ao homem contemporacircneo de uma inteligecircncia que ameaccedila

seu apego agrave vida e agrave sociedade O instinto e a vida satildeo os vigias da inteligecircncia168

Haacute um

jogo combinatoacuterio entre instinto e inteligecircncia que o determina De todo modo este teria

sido o erro que Bergson reprovara a Leacutevy-Bruhl vincular a religiatildeo a uma suposta

realidade preacute-loacutegica inerente agrave mentalidade do homem primitivo quando na verdade ldquola

religion eacutetant coextensive agrave notre espegravece doit tenir agrave notre structurerdquo afinal ldquo[] crsquoest

drsquoune neacutecessiteacute vitale qursquoont ducirc sortir les dispositions et les convictions originellesrdquo

(BERGSON 2001 p 1125185)

A religiatildeo estaacutetica ndash signo fabulador de lrsquoattachement agrave la vie ndash vincula-se agrave vida

em profundidade na medida em que se destina naturalmente a afastar os perigos a que a

inteligecircncia tende a expor o homem (BERGSON 2001 p 1133196) nesse sentido

fazendo as vezes de um representante do instinto virtual ela eacute infraintelectual e natural agrave

linha de evoluccedilatildeo que encontra no homem seu termo Com a funccedilatildeo fabuladora o homem

deveria escapar dos perigos globalmente dados com sua inteligecircncia saindo-se bem tanto

no plano individual da garantia contra a depressatildeo quando no plano social ou coletivo da

garantia contra a dissoluccedilatildeo ou a desorganizaccedilatildeo

Poreacutem assim como a moral natildeo eacute somente estaacutetica e infraintelectual a religiatildeo

tampouco eacute apenas esta natural Ainda no plano da vida mas projetando-se no sentido da

evoluccedilatildeo do eacutelan vital a religiatildeo pode envolver-se em uma dimensatildeo supraintelectual

estariacuteamos diante da religiatildeo dinacircmica capaz de desprender o homem de seu infinito girar

sobre o raio dado com o ciacuterculo da espeacutecie e de possibilitar a ele inserir-se novamente na

corrente evolutiva viva prolongando-a Globalmente a religiatildeo se explica biologicamente

ndash no sentido amplo e compreensivo que Bergson quisera atribuir a essa palavra A proacutepria

funccedilatildeo fabuladora comum agraves artes dramaacuteticas e agraves praacuteticas literaacuterias natildeo seria senatildeo a

continuidade luacutedica ou liacuterica desses esquemas vitais fabricadores de personagens com os

quais nossa tendecircncia agrave supersticcedilatildeo busca reequilibrar em noacutes os perigos do egoiacutesmo e da

depressatildeo contidos na tendecircncia como na atividade intelectual Natildeo haveria portanto

grande distacircncia no que diz respeito agrave faculdade fabuladora entre o romance

contemporacircneo e os contos antigos as lendas os conteuacutedos folcloacutericos ou mitoloacutegicos

168

ldquoLrsquointelligence est donc neacutecessairement surveilleacutee par lrsquoinstinct ou plutocirct par la vie origine commune de

lrsquoinstinct et de lrsquointelligencerdquo (BERGSON 2001 p 1112169)

197

A natureza entrega-nos uma humanidade aguilhoada ao ciacuterculo antropoloacutegico que

tende a uma sociedade fechada por forccedila natural da obrigaccedilatildeo e pela coesatildeo criada pela

religiatildeo estaacutetica e por sua funccedilatildeo fabuladora No interior dessa forma de vida propriamente

humana e natural indiviacuteduo e sociedade implicam-se reciprocamente circularmente

todavia esse ciacuterculo recebe em si mesmo uma fratura no dia em que se tornou possiacutevel ao

homem recolocar-se no sentido do impulso criador que se depositara em sua forma de vida

inteligente impelindo a natureza humana para frente ao inveacutes de deixaacute-la girar

infinitamente sobre o eixo que sua forma descreve (BERGSON 2001 p 1144210) A

abertura assim efetuada pela possibilidade inventiva copresente agrave inteligecircncia e agrave funccedilatildeo

fabuladora doava aos homens a possibilidade de uma religiatildeo que Bergson afirma ser

individual e ao mesmo tempo profundamente social Eis a miacutestica como cintilacircncia do

aberto em tudo diversa da religiatildeo estaacutetica que coagindo agrave disciplina (miacutemesis do

automatismo que fixaria haacutebitos no corpo) implicaraacute a solidificaccedilatildeo da crenccedila originada

das necessidades vitais em ritos e cerimocircnias que ao mesmo tempo em que reforccedilam a

disciplina produzem um estreitamento da solidariedade entre uma forma de culto e as

divindades a ele relativas

Nesse quadro a funccedilatildeo geral da religiatildeo estaacutetica poderia resumir-se a corrigir a

dupla imperfeiccedilatildeo humana que do ponto de vista estritamente natural a inteligecircncia

implica Seu ocircnus consiste como vimos na possibilidade de representando pela

inteligecircncia maior bem-estar sucesso de gozo de utilidades conduzir-se com egoiacutesmo a

despeito dos laccedilos de solidariedade social trata-se do potencial dissolvente ou

desorganizador da inteligecircncia que encontra no egoiacutesmo sua forma subjetiva mais bem

acabada O uacuteltimo de seus ocircnus constitui-se nos efeitos deprimentes que a inteligecircncia

pode opor ao apego agrave vida Representando-se como destinado a morrer o indiviacuteduo

deixaria afrouxarem-se os laccedilos que o unem ao todo social a si mesmo e ao fundo da vida

do qual proveacutem Incapaz de conter a fuacuteria imprevisiacutevel da natureza ou a inevitabilidade

dos eventos movidos pela forccedila do acaso a inteligecircncia teria por efeito um

desencorajamento natural ao qual a funccedilatildeo fabuladora tende a responder de imediato

inserindo imagens quase alucinatoacuterias no seio da proacutepria inteligecircncia fazendo com que o

primitivo recorra agrave religiatildeo para que suas flechas encontrem o destino desejado como o

homem pareceraacute soprar e mover imaginariamente com a matildeo no ar a bolinha lanccedilada agrave

roleta acreditando poder manejar as causas do acaso169

Maacutequinas de fabricar deuses e de

169

ldquoLa religion est ce qui doit combler chez des ecirctres doueacutes de reacuteflexion un deacuteficit eacuteventuel de

lrsquoattachement agrave la vierdquo (BERGSON 2001 p 1154223)

198

fabular narrativas seratildeo montadas por toda parte onde o homem sente esmaecer sua forccedila

vital e sua confianccedila na vida e no devir A funccedilatildeo fabuladora nesse contexto natildeo deixa de

ser inteligecircncia sem ser inteligecircncia pura ndash ela eacute ainda um refluxo do instinto virtual que

natildeo permite duvidar da vida segundo o qual ndash enquanto o homem se ressente de ser o

uacutenico animal que sabe que vai morrer ndash ldquoLe reste de la nature srsquoeacutepanouit dans une

tranquiliteacute parfaiterdquo (BERGSON 2001 p 1149216) A funccedilatildeo fabuladora eacute a encarregada

de fabricar uma religiatildeo natural pela qual o vital reage contra o que haveria de deprimente

para o indiviacuteduo e de dissolvente para a sociedade no exerciacutecio da inteligecircncia170

Por isso

a natureza entrega o individual e o social fechados em um ciacuterculo em uma forma de vida

definida pelas doenccedilas da representaccedilatildeo e da inteligecircncia bem como pelas formas

virtualmente instintuais e fabuladoras de reequilibraacute-las Nem sempre se atenta para o fato

de que uma compreensatildeo bioloacutegica da religiatildeo implica apontar que a religiatildeo estaacutetica ou

natural concorre precisamente para fornecer aos homens os instrumentos de sua

sociabilidade bem como da constituiccedilatildeo social de sua individualidade Ela corresponde ao

mesmo tempo a funccedilotildees morais e nacionais visa a estreitar e a conservar aquilo que

constitui e fortalece um grupo a tradiccedilatildeo a necessidade a vontade de defender o grupo

contra outros situando-o acima de tudo171

A religiatildeo engendra um homem sociaacutevel e no

entanto preso ao ciacuterculo antropoloacutegico de uma inteligecircncia que alargada e compensada no

que apresenta de ameaccedilador ao indiviacuteduo e agrave sociedade ainda natildeo conheceu o aberto ndash e

que todavia seu vir agrave existecircncia jaacute implica e revela

sect 2 ABRIR O FECHADO RUPTURA E DEVIR

A sociedade tal como saiacuteda das matildeos da natureza tende ndash como vimos ndash ao

fechado Em seu interior a religiatildeo natildeo apenas eacute constitutiva da moral como da identidade

de grupo que assegura as identidades individuais a coesatildeo social a divisatildeo do trabalho os

elementos da tradiccedilatildeo da moral e do grupo nacional a conservaccedilatildeo do que pareceu ser um

infinito girar sobre o eixo social devido ao ciacuterculo antropoloacutegico Se a funccedilatildeo fabuladora

insere imagens quase alucinatoacuterias na inteligecircncia humana ndash semelhantes como diz

170

ldquo[] lrsquointelligence serait un obstacle agrave la seacutereacuteniteacute qursquoon trouve partout ailleurs et [] lrsquoobstacle doit ecirctre

surmonteacute lrsquoeacutequilibre reacutetablirdquo (BERGSON 2001 p 1152219) 171

ldquoAgrave conserver agrave resserrer ce lien vise incontestablement la religion que nous avons trouveacutee naturelle elle

est commune aux membres drsquoun groupe elle les associe intimement dans des rites et des ceacutereacutemonies elle

distingue le groupe des autres groupes elle garantit le succegraves de lrsquoentreprise commune et assure contre le

danger communrdquo (BERGSON 2001 p 1152218)

199

Bergson (2001 p 1154223) agraves histoacuterias com as quais embalamos as crianccedilas e as

colocamos para dormir ndash eacute a fim de fazer frente aos perigos que a representaccedilatildeo

inteligente dada com a reflexatildeo172

implica Nesse sentido uma religiatildeo natural primitiva

ou se o quisermos estaacutetica mostrou-se profundamente vital ao ligar o homem agrave vida e o

indiviacuteduo agrave sociedade No entanto o ponto de vista da sociedade tal como saiacuteda das matildeos

da natureza natildeo eacute o de sua gecircnese ou de seu movimento mas se perspectiva como uma

parada virtual do movimento criador pelo qual o eacutelan depositou em um ponto extremo a

forma de vida a que nomeamos humanidade (BERGSON 2001 p 1154223) A fim de

superar o desencorajamento para a vida o homem deveria caminhar muito mais no sentido

das vagas franjas de intuiccedilatildeo que permaneceram ao redor de sua inteligecircncia que no

sentido da proacutepria inteligecircncia que tende precisamente agraves representaccedilotildees

desencorajadoras Eis o que implicaria a necessidade de apreender o fenocircmeno religioso

natildeo mais do ponto de vista estaacutetico de sua parada virtual funcional e coextensiva a uma

forma de vida marcada pela inteligecircncia mas do ponto de vista de sua gecircnese ou de seu

movimento real Se o vir agrave existecircncia de uma forma de sociabilidade fechada jaacute denuncia o

aberto eacute porque eacute dele que ela mesma procede em profundidade Assim como uma parada

virtual soacute pode explicar-se pela realidade de um movimento absoluto ou como um instante

soacute pode explicar-se segundo o indomaacutevel fluxo da duraccedilatildeo o estaacutetico soacute pode ser

compreendido em funccedilatildeo do dinacircmico e o fechado em funccedilatildeo da vitalidade do aberto que

lhe trouxera agrave luz

Viacuteamos toda essa extensa questatildeo resumir-se na pergunta ldquoComo abrir o fechadordquo

como produzir no ciacuterculo social no qual uma forma de vida gira infinitamente a fim de

conservar-se como tal uma ruptura ou transcrevendo um problema poliacutetico em termos

mais profundamente ontoloacutegicos como dissolver uma forma (de vida) e liberar seus

devires Eis o que estaacute em questatildeo na profunda discussatildeo sobre a abertura do fechado que

conduz Les Deux Sources na direccedilatildeo do campo de experiecircncia miacutestica (SITBON-

PEILLON 2002 p 185) Ou como quisera Worms (2011 p 323) se haacute toda uma

distacircncia infinita ndash uma diferenccedila de natureza ndash entre o fechado e o aberto entre a naccedilatildeo e

a humanidade como efetuar esse salto radical que traduz tambeacutem a diferenccedila entre os

niacuteveis do infra e do supraintelectual Afinal natildeo teria sido o proacuteprio Bergson (2001 p

1202284) a declarar que ldquoDe la socieacuteteacute close agrave la socieacuteteacute ouverte de la citeacute agrave lrsquohumaniteacute

on ne passera jamais par voie drsquoeacutelargissement Elles ne sont pas de mecircme essencerdquo

172

ldquo[] lrsquoinvention qui porte en elle la reacuteflexion srsquoeacutepanouit en liberteacuterdquo (BERGSON 2001 p 1153222)

200

Para solucionar essas questotildees que se dissimulam sob a aparente simplicidade

pragmaacutetica da pergunta sobre como abrir o fechado seraacute preciso compreender o fenocircmeno

religioso como um misto de fechamento e abertura seraacute necessaacuterio desenvolver um olhar

capaz de compreender o entreaberto ainda que ele possa rapidamente ser reconduzido ao

fechamento e agrave consolidaccedilatildeo Talvez esse fosse o sentido de uma moral de transiccedilatildeo

(BERGSON 2001 p 102862) e de sua atitude subjetiva correspondente quando Bergson

afirmava que entre a alma fechada e a aberta haveria a alma que se abre A fim de

solucionar a gecircnese da transiccedilatildeo no seio da Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo natildeo estariacuteamos

agrave procura do ponto de transiccedilatildeo coextensivo a essa atitude subjetiva da alma que se abre e

portanto de um ponto de vista dinacircmico

Todavia viacuteamos que o infinito girar sur place que caracterizava a forma de vida

humana tal como saiacuteda das matildeos da natureza era suspenso justamente por esta natildeo ser dada

como forma pura reencontraacutevamos em seu interior um ponto de ruptura do fechamento

uma brecha de reflexatildeo hesitaccedilatildeo liberdade e de duraccedilatildeo que o eacutelan introduzia e que por

meio do homem orientava-se no mesmo sentido do eacutelan ndash o sentido da criaccedilatildeo173

Na

medida em que natildeo subsiste no homem nem instinto tampouco inteligecircncia puros mas

pontos luminosos aureolados de vagas nuvens de virtuais instintivos174

o misticismo ndash

definido em funccedilatildeo de sua relaccedilatildeo com o impulso vital (BERGSON 2001 p 1156225) ndash

eacute o que completaraacute em accedilatildeo essa vaga franja de intuiccedilatildeo que aureola a inteligecircncia e que

produz um apego agrave vida em sentido totalmente diverso daquele que a religiatildeo estaacutetica

produzia

Contudo como se produz essa passagem do estaacutetico ao dinacircmico Bergson (2001

p 1156225) admite que o misticismo natildeo apenas eacute uma essecircncia rara vinculada a

personalidades tatildeo excepcionais que seriam mais que humanas mas que em geral ele

pode ser encontrado em estado de diluiccedilatildeo e assim tornado eficaz Da perspectiva de uma

religiatildeo mista composta por ritos cerimocircnias e tradiccedilotildees mas tambeacutem por um vago

perfume miacutestico que se comunica ao todo tudo se passa como se a diferenccedila de natureza

que haacute entre o estaacutetico e o dinacircmico se resolvesse em uma seacuterie de diferenccedilas de grau

(BERGSON 2001 p 1156225) Se o miacutestico eacute um indiviacuteduo excepcional e

essencialmente raro se a maioria natildeo podendo subir tatildeo alto quanto esse homem

173

Por essa razatildeo Brigitte Sitbon-Peillon (2002 p 187) escrevera que ldquoLa chance de lrsquohomme crsquoest

justement lrsquoimpureteacute dans laquelle tout existerdquo 174

A proacutepoacutesito Bergson (2001 p 610136-137) o afirmara em LrsquoEacutevolution Creacuteatriceldquo Il nrsquoy a pas

drsquointeligence ougrave lrsquoon ne deacutecouvre des traces drsquoinstinct pas drsquoinstinct surtout qui ne soit entoureacute drsquoune frange

drsquointelligencerdquo

201

privilegiado no entanto sente que algo de si lhes faz eco e responde assim a seu apelo o

misticismo constituiraacute um apelo agrave aspiraccedilatildeo que produz algo novo no antigo175

No interior

desse misto foacutermulas e ritos aparentemente vazios repetidos ao longo da duraccedilatildeo podem

fazer surgir inconscientemente o estado de espiacuterito capaz de preenchecirc-las Se a repeticcedilatildeo

pode gerar o ecircmulo espiritual de grandes homens de gecircnio eacute porque o que parece idecircntico

na repeticcedilatildeo eacute apenas uma forma abstrata a repeticcedilatildeo e a imitaccedilatildeo conservam virtualmente

o potencial de engendrarem criaccedilotildees transmitirem estados de espiacuterito reabrir uma alma

fechada e dissolver o estaacutetico Na medida em que Bergson (2001 p 1158228) diz que um

professor mediacuteocre que repete maquinalmente foacutermulas concebidas por grandes espiacuteritos

pode despertar em um aluno a vocaccedilatildeo que a ele proacuteprio eacute de todo inaudiacutevel tornando-o

inconscientemente ldquoen eacutemule de ces grands hommesrdquo o modo do inconsciente reenvia a

um virtual agrave espreita que definiraacute natildeo apenas o aberto mas a atitude subjetiva

correspondente da alma aberta e do miacutestico Nessa medida tudo se passa como se

atenuaacutessemos a diferenccedila entre o fechado e o aberto como se lanccedilaacutessemos uma ponte entre

o estaacutetico e o dinacircmico (BERGSON 2001 p 1158-1159229) ou como se descobriacutessemos

no ciacuterculo social uma ruptura pela qual a duraccedilatildeo ndash que eacute tambeacutem liberdade e criaccedilatildeo ndash se

infiltra Dessa maneira mesmo a mais vazia repeticcedilatildeo girando em falso poderaacute transmitir

essa liberdade insidiosa e incendiaacuteria que se inscreve igualmente no anthropos e em suas

formas de laccedilo social

Essa liberdade forma subjetiva da duraccedilatildeo encontra no modo de vida miacutestico seu

exemplar e seu intenso campo de provas Natildeo se trata de recuperar cada um dos pontos

notaacuteveis da argumentaccedilatildeo de Bergson sobre o misticismo grego oriental e cristatildeo

(BERGSON 2001 p 1159-1172229-246) mas de demonstrar o profundo papel da

miacutestica como forccedila especiacutefica das transiccedilotildees de alma mas tambeacutem das formas sociais de

vida Nesse sentido a miacutestica deve ser compreendida independentemente de seus

conteuacutedos ndash de crenccedila ou patoloacutegicos ndash meramente acidentais (BERGSON 2001 p

1170243) Eacute preciso compreender o miacutestico ldquopriveacute de ses extases de ses visions de tous

ces eacutetats anormaux et morbidesrdquo que natildeo satildeo condiccedilotildees necessaacuterias mas eventuais nas

quais o misticismo se produz (SITBON-PEILLON 2002 p 188) Este eacute o sentido

transcendental no qual Bergson toma a experiecircncia miacutestica concreta ndash se compreendermos

transcendental uma vez mais como o que define as condiccedilotildees da experiecircncia concreta

175

ldquoAinsi se constituera une religion mixte qui impliquera une orientation nouvelle de lrsquoancienne une

aspiration plus ou moins prononceacutee du dieu antique issu de la fonction fabulatrice []rdquo (BERGSON 2001

p 1157227)

202

Nesse sentido a experiecircncia de revelaccedilatildeo interior que William James descrevera a partir da

inalaccedilatildeo do protoacutexido de nitrogecircnio e que Bergson compara ao estado de embriaguez

dionisiacuteaca seria tambeacutem ela integralmente miacutestica na medida em que a intoxicaccedilatildeo natildeo

passaria do ensejo para a emergecircncia de um estado de alma que jaacute estava prefigurado ldquoIl

eucirct pu ecirctre eacutevoqueacute spirituellement par un effort accompli sur le plan spirituel qui eacutetait le

sienrdquo (BERGSON 2001 p 1160231) Mesmo a filosofia grega que conduzira o

pensamento humano a seu mais alto grau de abstraccedilatildeo e generalidade natildeo teria se passado

da experiecircncia dionisiacuteaca da embriaguez denotando que mesmo no fundo de uma

evoluccedilatildeo puramente racional estaacute um impulso ou um abalo que natildeo foram de ordem

racional176

Aquilo a que as experiecircncias gregas orientais ndash especialmente hindu e budista ndash e

cristatildes tendem eacute a um misticismo que seraacute completo apenas entre estas uacuteltimas O que

define o misticismo completo emancipado de suas circunstacircncias acidentais eacute uma

tomada de contato uma coincidecircncia parcial com o esforccedilo criador que a vida manifesta

segundo Bergson (2001 p 1162233) Essa definiccedilatildeo do misticismo afigura-se de todo

capital e por diversas razotildees Em primeiro plano porque toma o misticismo naquilo que

constitui as condiccedilotildees transcendentais de sua experiecircncia concreta independentemente de

elementos acidentais Nesse sentido o misticismo eacute definido como um esforccedilo ativo e

como uma coincidecircncia parcial com o esforccedilo criador que a vida manifesta Natildeo por acaso

Bergson (Ibidem loc cit) diraacute desse esforccedilo que ele ldquoest de Dieu si nrsquoest pas Dieu lui-

mecircmerdquo Em segundo plano o misticismo que coincide com a vida encontra no indiviacuteduo

miacutestico a ponta extrema de seu esforccedilo criador a agir sobre a proacutepria forma de vida na qual

se encarna e a qual supera sem cessar ldquoLe grand mystique serait une individualiteacute qui

franchirait les limites assigneacutees agrave lrsquoespegravece par sa mateacuterialiteacute qui continuerait et

prolongerait ainsi lrsquoaction divinerdquo (Idem ibidem loc cit) Se haacute um Deus em Bergson ele

natildeo seria laacute muito diverso do eacutelan vital177

o miacutestico por sua vez natildeo seria nada muito

diverso de um super-homem a prolongar o movimento do eacutelan em uma direccedilatildeo Por essa

razatildeo o miacutestico pode ser definido como individualidade que supera os limites impostos

pela espeacutecie e pela forma de vida por sua materialidade e continua a accedilatildeo divina que se

confunde aqui com a accedilatildeo da proacutepria vida Eacute nessa medida que uma vez que a religiatildeo

176

ldquo[] crsquoest une force extra-rationelle qui suscita ce deacuteveloppement rationel et qui la conduisit agrave son terme

au-delagrave de la raisonrdquo (BERGSON 2001 p 1161232) 177

A propoacutesito Deleuze (1966 p 118) afirma que o Deus bergsoniano possui todas as caracteriacutesticas do

Impulso vital No mesmo sentido Worms (2011 p 249) afirmaraacute que Deus coincide com ldquoo processo de

criaccedilatildeo e de crescimento operante na realidade materialrdquo Por fim Cf (BOUANICHE 2002 p 162) cuja

leitura empresta ao Deus bergsoniano as feiccedilotildees de um fluxo criador e vital

203

estaacutetica fora definida como a religiatildeo natural a religiatildeo dinacircmica propulsionada por um

misticismo ativo poderaacute ser definida como salto fora da espeacutecie e da natureza

(BERGSON 2001 p 1164236)

Deixando o cristianismo dos grandes miacutesticos cristatildeos de lado como seu conteuacutedo

meramente acidental178

Bergson afirma que apenas entre eles teria sido possiacutevel encontrar

uma experiecircncia miacutestica completa que seria definida como accedilatildeo criaccedilatildeo e amor Agraves

experiecircncias orientais teria faltado o caraacuteter ativo da miacutestica agraves gregas o impulso natildeo

teria sido prolongado muito aleacutem e teria encontrado uma intelectualidade natildeo dilatada179

Os miacutesticos cristatildeos por sua vez ndash Santa Teresa Satildeo Francisco de Assis Joana DrsquoArc ndash

teriam sido os modelos de individualidades excepcionais que realizaram uma miacutestica

completa e ativa no domiacutenio da accedilatildeo Assimilados natildeo raro a doentes os miacutesticos e as

agitaccedilotildees profundas de suas almas eram capazes de subverter a cisatildeo entre o normal e o

patoloacutegico em proveito de um ldquoequiliacutebrio superiorrdquo (BERGSON 2001 p 1169-1170242-

243)

Poreacutem como esse reequiliacutebrio se processa e como uma alma encontra em si uma

abertura a partir da experiecircncia miacutestica Bergson define a experiecircncia miacutestica como uma

experiecircncia em que a alma eacute arrastada irresistivelmente por uma forccedila agrave qual cede Na

medida em que uma alma eacute abalada em suas profundezas pela corrente que a arrastaraacute estaacute

dada a abertura a alma cessa de girar sobre si mesma escapa agrave forma de vida descrita

biologicamente pela espeacutecie e que condiciona o indiviacuteduo a ela circularmente salta para

fora da natureza ao ouvir um chamado que a solicita ldquosempre em frenterdquo A iluminaccedilatildeo

confunde-se com esse momento imponderaacutevel de gozo em que os problemas se dissipam e

tudo parece resolver-se em uma visatildeo simboacutelica que anuncia a proacutepria presenccedila de Deus

Contudo ela natildeo se deteacutem nem na contemplaccedilatildeo nem no ecircxtase ela age movida por um

impulso que a arremessa agrave accedilatildeo (BERGSON 2001 p 1170-1171243-245) A alma

miacutestica que parece pendular sob uma noite escura como jamais houve torna-se um

instrumento maravilhoso pelo qual a vida e Deus mesmo agem nela em uma uniatildeo total e

definitiva ldquoDisons que crsquoest deacutesormais pour lrsquoacircme une surabondance de vie Crsquoest un

immense eacutelanrdquo (BERGSON 2001 p 1172246)

178

ldquoLe mysticisme complet est en effet celui des grands mystiques chreacutetiens Laissons de cocircteacute pour le

moment leur christianisme et consideacuterons chez eux la forme sans matiegravererdquo (BERGSON p 1168240) 179

ldquo[] ni dans la Gregravece ni dans lrsquoInde antique il nrsquoy eut de mysticisme complet tantocirct parce que lrsquoeacutelan fut

insuffisant tantocirct parce qursquoil fut contrarieacute par ler circonstances mateacuterielles ou par une intellectualiteacute trop

eacutetroiterdquo (BERGSON 2001 p 1668240)

204

O contato da alma com o princiacutepio do qual emana uma superabundacircncia de

vitalidade testemunha que nela liberdade e esforccedilo criador coincidem Trata-se de um

misticismo que natildeo se deteacutem no ecircxtase no gozo miacutestico mas atinge a suprema alegria de

uma alma que se faz preencher por um amor universal comparaacutevel apenas agravequele que Deus

experimenta em relaccedilatildeo ao todo Trata-se enfim do mesmo amor pelo todo ndash salto para

fora dos ciacuterculos fechados da moral famiacutelia paacutetria humanidade O amor e a emoccedilatildeo

criadora que estatildeo implicados na experiecircncia miacutestica superam a proacutepria natureza que

quisera que nos mantiveacutessemos fechados aos grupos familiar e social que encontraacutessemos

na paacutetria o sentido de nossa existecircncia e em uma fraternidade ideal e descarnada o

fundamento de nossa moral Contudo o amor miacutestico eacute supraintelectual natildeo constitui nem

o prolongamento sensiacutevel do instinto nem a continuidade racional de uma ideia180

Eacute nessa medida que Bergson poderaacute descrever o misticismo como portador de uma

essecircncia mais metafiacutesica do que moral ele conduz agrave experiecircncia capaz de interrogar os

arcanos da criaccedilatildeo que tem lugar por toda parte assume o sentido do impulso vital

comunicado a homens privilegiados que desejam imprimi-lo agrave humanidade inteira

transformando-a Se do ponto de vista da espeacutecie o homem encontra-se limitado como ser

vivo a alimentar-se de outros seres vivos ndash o que torna um imperativo pragmaacutetico que ele

fixe sua atenccedilatildeo na terra ndash e se isso bem o impulsiona em direccedilatildeo ao fechamento por

outro lado a humanidade conserva dois instrumentos uacuteteis agrave abertura a inteligecircncia que

pode ser prolongada como conveacutem em mecacircnica que no seu limite conserva o potencial

capaz de liberar a atividade humana e por outro lado a capacidade de variar as formas de

vida Em um momento mais recuado essa capacidade encontrava seu limite na criaccedilatildeo de

sociedades espirituais hoje poreacutem seria capaz de engendrar uma organizaccedilatildeo social e

poliacutetica que assegure agrave mecacircnica sua destinaccedilatildeo libertaacuteria e cosmopolita (BERGSON

2001 p 1175249) que veremos confundir-se com a proacutepria democracia O maquinismo

no entanto implica o perigo de que ao longo da experiecircncia histoacuterica ele se voltasse

contra seus proacuteprios propoacutesitos

O valor filosoacutefico do misticismo seria ainda mais visiacutevel na medida em que nos

desembaraccedilaacutessemos de uma objeccedilatildeo comum que reputa a experiecircncia miacutestica como um

evento excepcional e por ser essencialmente individual e diverso da experiecircncia cientiacutefica

insuscetiacutevel de solucionar problemas A fim de descartar essa objeccedilatildeo seria necessaacuterio

lembrar que satisfaz os criteacuterios de uma experiecircncia cientiacutefica aquela que seja suscetiacutevel de

180

ldquoIl ne srsquoagit donc pas ici de la fraterniteacute dont on a construit lrsquoideacutee pour en faire un ideacuteal Et il ne srsquoagit pas

non plus de lrsquointensification drsquoune sympathie ineacutee de lrsquohomme pour lrsquohommerdquo (BERGSON 1174248)

205

repeticcedilatildeo ou de controle (BERGSON 2001 p 1183260) Na medida em que a experiecircncia

pela qual passa o miacutestico eacute algo que todos podem experimentar ao menos de direito ndash

senatildeo de fato ndash bastando ter a disposiccedilatildeo e a energia para tanto a objeccedilatildeo talvez restasse

prejudicada Ainda que algueacutem natildeo experimente jamais um estado miacutestico eacute sempre

possiacutevel sentir algo da experiecircncia ressoar em si mesmo eacute o que acontecia com William

James por exemplo Com efeito assim como haveria pessoas insensiacuteveis agrave muacutesica haveria

pessoas insensiacuteveis agrave miacutestica mas disso natildeo se poderia extrair argumento algum nem

contra a muacutesica nem contra a miacutestica segundo Bergson (2001 p 1184261)

Em favor da validade da miacutestica haveria um firme consenso entre os miacutesticos que

definem apesar de uma variabilidade potencial de estados o mesmo tipo de experiecircncias

Sua psicologia indica em face do ensino regular da teologia uma grande docilidade em

aprender e em seguir seus diretores de consciecircncia e ao mesmo tempo um instinto seguro

que se manifesta em uma forma de liberdade superior capaz de abandonar todo ensino e

natildeo reconhecer outra autoridade senatildeo essa liberdade (BERGSON 2001 p 1185262)

Pressente-se sob seus gestos doacuteceis o advento de rupturas que constituem o signo de uma

intuiccedilatildeo mais profunda originada pelo contato com o Ser que se comunica com eles

Contudo a miacutestica por si soacute ndash como a ciecircncia ou a metafiacutesica por si soacutes ndash natildeo poderiam

dar ao filoacutesofo certeza absoluta Eacute preciso que sua interpenetraccedilatildeo origine pontos de

contato acumulaccedilotildees graduais de resultados adquiridos que longe de levarem a um

sistema concreto conduzem ao plano da experiecircncia ndash uacutenico esteio de qualquer

conhecimento

O que Bergson propotildee soacute eacute possiacutevel na medida em que a inteligecircncia foi aureolada

de intuiccedilatildeo que no entanto permanece no homem desinteressada e inconsciente Assim a

experiecircncia miacutestica de alguma maneira parece estender a experiecircncia interior da duraccedilatildeo

que nos conduz por aprofundamento agraves raiacutezes de nosso ser e ao princiacutepio da vida em

geral Em que sentido isso acontece Em primeiro plano os miacutesticos estatildeo sempre

dispostos a abandonar os falsos problemas (BERGSON 2001 p 1188266) Todas as

dificuldades e perplexidades ante as quais a filosofia se deteve satildeo de todo inexistentes

para eles A precedecircncia do nada sobre o ser da desordem sobre a ordem da eternidade

sobre o tempo ou do imoacutevel sobre o moacutevel satildeo reduzidas ao estado de simples miragens da

representaccedilatildeo de ilusotildees naturais positivas talvez no sentido deveras pragmaacutetico do viver

mas natildeo do especular ldquoCes questions un mystique estimera qursquoelles ne se posent mecircme

pasrdquo (BERGSON 2001 p 1189267) ilusotildees devidas agrave estrutura da inteligecircncia humana jaacute

natildeo lhe produzem qualquer anguacutestia metafiacutesica Uma vez que experimenta Deus que toca

206

no fundo do real natildeo experimenta nada de negativo sua existecircncia eacute uma positividade tal

como ele experimenta mas o que essa experiecircncia significa senatildeo criaccedilatildeo e amor emoccedilatildeo

criadora

O misticismo natildeo cessa de exprimir a foacutermula segundo a qual Deus eacute amor em

sentido forte o amor natildeo eacute um atributo ou um sentimento de Deus mas Deus ele proacuteprio

Nesse plano em que sente o amor abrasar-lhe a alma por dentro o miacutestico coincide

plenamente com esta emoccedilatildeo carregada de pensamento que precede e gera ideias que

conduz agrave inspiraccedilatildeo (BERGSON 2001 p 1189268) Esse tipo de emoccedilatildeo superior natildeo

possui objeto basta-se a si mesma natildeo eacute o amor de ningueacutem mas sentimento repartido

segundo singularidades musicais ldquoUne autre musique sera un autre amourrdquo (BERGSON

2001 p 1191270) Amor atuante que a nada se dirige mas cria criadores seres dignos de

prolongaacute-lo como cria mundos inteiros ndash energia criadora que faz a vida penetrar na

mateacuteria como a matildeo na limalha181

Com efeito no mundo que conhecemos o eacutelan vital

originou linhas evolutivas divergentes Na linha em que forjou o homem linha em que

conseguiu fazer passar o essencial de sua impulsatildeo o homem gira no interior do ciacuterculo

antropoloacutegico A abertura estaacute dada na medida em que a intuiccedilatildeo miacutestica se permite

colocar esse problema foram chamados agrave existecircncia seres destinados a amar e a serem

amados eles soacute poderiam ser criados em um universo que teve de ser criado assim como

uma grande variedade de novas espeacutecies que foram sua preparaccedilatildeo seu sustentaacuteculo seu

resiacuteduo E no entanto ainda assim os homens soacute viveriam pela metade se natildeo fosse pela

genialidade e pelo esforccedilo de indiviacuteduos excepcionais em se colocarem novamente na

direccedilatildeo criadora do eacutelan do qual tudo proveacutem Nesse sentido a miacutestica natildeo apenas

representou um triunfo sobre a mateacuteria os instrumentos e a necessidade mas indicou ao

mesmo tempo ao metafiacutesico a direccedilatildeo na qual a vida escoava (BERGSON 2001 p

1194274)

Esse eacute o ponto em que o valor metafiacutesico da experiecircncia miacutestica concretiza-se sob o

olhar do filoacutesofo Com efeito diante disso que no misticismo pode confundir-se com o que

haacute de mais inefaacutevel para um ponto de vista unicamente inteligente do ponto de vista da

intuiccedilatildeo permanece soldado agrave experiecircncia miacutestica concreta que Bergson jamais abandona

em sua descriccedilatildeo O valor metafiacutesico da miacutestica estaacute em ensinar que ldquoo fechamento e a

abertura natildeo satildeo apenas as dimensotildees morais da relaccedilatildeo da humanidade consigo mesma

mas tambeacutem as dimensotildees metafiacutesicas da relaccedilatildeo do homem com a vida com seu princiacutepio

181

ldquoDes ecirctres ont eacuteteacute appeleacutes agrave lrsquoexistence ce qui eacutetaient destineacutes agrave aimer et agrave ecirctre aimeacutes lrsquoeacutenergie creacuteatrice

devant se deacutefinir par lrsquoamourrdquo (BERGSON 2001 p 1194273)

207

primeiro e com o universo em seu conjuntordquo (WORMS 2011 p 367) Fica ainda uma

vez claro em que medida a obra bergsoniana ao encaminhar-se no sentido da superaccedilatildeo

do anthropos ndash compreendido como a forma de vida humana ou o ciacuterculo da espeacutecie ndash

encontra uma espeacutecie de destino biopoliacutetico182

A experiecircncia miacutestica recebe a impulsatildeo

capaz de revelar a dupla tarefa do homem no aberto romper sua forma de vida

emancipando-a tanto das necessidades e da mateacuteria pela inteligecircncia e pela mecacircnica

como superando a proacutepria forma de vida em que foi dada O miacutestico nesse sentido

gostaria de encaminhar toda a humanidade no sentido do divino compreende a

humanidade como ldquoune machine agrave faire des dieuxrdquo (BERGSON 2001 p 1245338) na

medida em que ela descreve a linha de evoluccedilatildeo que apesar de fundar-se em uma forma de

vida eacute capaz de fundi-la fazendo dela o ponto de inflexatildeo da proacutepria forma na qual uma

vida foi dada Trata-se em uacuteltima anaacutelise de encontrar no interior de si mesmo e de uma

forma de vida o aberto que se infiltra por ela e a recoloca em devir que reabre o fechado

Nesse sentido o misticismo bergsoniano natildeo pode conduzir senatildeo a uma ontologia

biopoliacutetica Natildeo eacute difiacutecil perceber que toda a tendecircncia ao fechamento e agrave constituiccedilatildeo de

sistemas organizados fechados que atravessa a integralidade da vida aparece em relaccedilatildeo a

ela como um obstaacuteculo a ser superado as formas de vida que se multiplicam em linhas

evolutivas divergentes como se fossem tentativas de fazer passar um pequeno veio de vida

e de duraccedilatildeo poderatildeo ser na linha do homem colocadas sempre em jogo ndash as experiecircncias

miacutesticas natildeo apenas o comprovam mas servem como terreno de experiecircncia e denotam a

subordinaccedilatildeo da histoacuteria ao devir Isto eacute se uma humanidade divina eacute possiacutevel ndash mesmo no

182

Bergson pode ser aproximado de uma redefiniccedilatildeo do conceito de biopoliacutetica de muitas maneiras e no

entanto aqui pretendemos natildeo mais fazer do que amarrar um devir desse conceito sob a epiacutegrafe de

LrsquoEgravevolution Creacuteatrice Seria possiacutevel encontrar originalmente em Foucault esse sentido positivo de

biopoliacutetica como potecircncia de variaccedilatildeo das formas de vida e como resistecircncia aos mecanismos de seguranccedila e

biopoder desde 1976 quando Foucault (2009 p 158) enuncia pela primeira vez sua tese ldquoFoi a vida muito

mais do que o direito que se tornou objeto das disputas poliacuteticas ainda que estas uacuteltimas se formulem atraveacutes

de afirmaccedilotildees de direitosrdquo Esses dois sentidos satildeo objeto de uma distinccedilatildeo semacircntica em La Faacutebrica de

Porcelana de Antonio Negri (2008 p 43) que passa a utilizar a diacuteade biopoder-biopoliacutetica para designar

pelo primeiro um poder exercido sobre a vida e pelo segundo um poder imanente agrave vida oposto ao primeiro

como contrapoder resistecircncia e potecircncia Uma deacutecada antes outro filoacutesofo poliacutetico italiano Maurizio

Lazaratto (1997 p 01) reclamava a Deleuze e sobretudo a Bergson um conceito de vida inorgacircnica

definida como ldquole temps et ses virtualiteacutesrdquo ldquole temps comme lsquosource de creacuteation continuelle drsquoimpreacutevisibles

nouveauteacutesrsquo lsquoce qui fait que tout se faitrsquo rdquo Ao fazecirc-lo Lazaratto pretendia redefinir o conceito de biopoliacutetica

em sentido bergsoniano de tal modo que ldquoLe concept de bio-politique doit comprendre non seulement les

processus biologiques de lrsquoespegravece mais aussi cette vie a-organique qui est agrave son origine comme elle est agrave

lrsquoorigine du vivant et du monderdquo (Idem ibidem loc cit) Trata-se de um vitalismo temporal natildeo orgacircnico

Essa vida inorgacircnica que Deleuze (2003 p 359-363) subtraiu sem cessar do bergsonismo a ponto de definir

no limiar de sua existecircncia todo seu projeto filosoacutefico por sua imanecircncia absoluta encontra no conceito

bergsoniano de uma vida remissiacutevel como vimos ao tempo como diferenciador profundo o conceito no qual

fundir uma ontologia virtual Seja como for fica justificado em que sentido se pode depreender do

bergsonismo um vitalismo do tempo virtual e genealogicamente biopoliacutetico e aleacutem disso esclarece-se

definitivamente o sentido muito preciso em que nos permitimos empregar essa expressatildeo

208

niacutevel individual ndash se essa experiecircncia tende a abarcar a humanidade inteira se ela toma

contato com o princiacutepio do qual proveacutem o Todo o homem soacute passa a possuir uma histoacuteria

na medida em que faz passar pelo interior de sua forma de vida um veio de devir

A fim de evitar mal-entendidos seria o caso de compreender a duplicidade do que

queremos significar por ldquoforma de vidardquo Com efeito a expressatildeo recebe uma transcriccedilatildeo

bioloacutegica no sentido bastante compreensivo que Bergson (2001 p 1061104) lhe

outorgara Descobriacuteamos no fundo da natureza uma tendecircncia ao fechamento capaz de

doar formas de vida e organizaccedilatildeo marcadas ateacute aqui pelas relaccedilotildees de grupo baseadas na

exclusatildeo sua tendecircncia agrave guerra do ponto de vista exterior ao grupo e agrave coesatildeo do ponto

de vista interior ao grupo ndash coesatildeo esta mantida natildeo apenas por uma moral que tende ao

fechamento como agrave religiatildeo estaacutetica que desempenhada automaticamente pelo instinto nos

animais e pelo instinto virtual nos homens cria formas de vida seguras de si previne a

sociedade e o indiviacuteduo das ameaccedilas de depressatildeo egoiacutesmo e desagregaccedilatildeo entre as

formas de vida inteligentes Haacute portanto nos himenoacutepteros como nos homens uma

sociedade saiacuteda das matildeos da natureza ela implica uma organizaccedilatildeo poliacutetico-social que

define natildeo apenas os modos de existecircncia dos indiviacuteduos em funccedilatildeo do grupo mas

sobretudo as formas de vida do proacuteprio grupo Lembremos que entre as formas de vida

inteligentes nas sociedades humanas primitivas ndash cujas tendecircncias natildeo deixam nem por

um momento de encontrar-se sob uma camada mais ou menos espessa de cultura nas

sociedades contemporacircneas (eis o que define a tese bergsoniana da persistecircncia do

natural)183

ndash a religiatildeo estaacutetica defendendo-se contra os efeitos perigosos e dissolventes

das relaccedilotildees do homem para com o grupo a que pertence e em profundidade do homem

com a proacutepria vida criavam-se tradiccedilotildees costumes ritos cerimocircnias e por meio delas

assegurava-se a coesatildeo do grupo sob uma forma nacional Sob todos os aspectos as

exigecircncias de abertura agraves quais a experiecircncia miacutestica responde revelam-se cada vez mais

exigecircncias praacuteticas e poliacuteticas especialmente no iniacutecio do quarto capiacutetulo de Les Dex

Sources

Dessa forma natildeo haacute apenas uma correlaccedilatildeo entre ontologia e formas de vida ndash

tomadas no sentido muito compreensivo que Bergson outorga a essa expressatildeo ndash mas

183

Se Bergson natildeo cessa de retornar ao primitivo parece fazecirc-lo em um sentido tambeacutem metafiacutesico que

SITBON-PEILLON (2002 p 194) considerou ldquoLe primitif serait [] la meacutetaphore du philosophe qui

lsquodeacutebarrasseacute de lrsquoacquisrsquo jetterait un lsquoregard naiumlfrsquo lsquoen soi et autour de soirsquo et ainsi arracheacute au symbolisme

tenterait de faire retour ver cet archaiumlsme qui est le fond de toute penseacuteerdquo Isso poreacutem na medida em que

ldquoLa philosophie de Bergson incarnerait [] la persistance du primitif dans la conscience et dans la penseacutee

rationellerdquo (Idem loc cit) Sobre as relaccedilotildees de aproximaccedilatildeo e distacircncia desta tese bergsoniana com La

penseacutee sauvage de Claude Leacutevi-Strauss (1962) Cf (KECK 2002 p 205-209)

209

essas formas de vida sendo biologicamente constituiacutedas implicam jaacute suas transcriccedilotildees

poliacuteticas referentes aos modos de existecircncia dos indiviacuteduos em funccedilatildeo da sociedades e dos

grupos aos quais pertencem e agraves formas de vida e de organizaccedilatildeo contempladas no interior

dos ciacuterculos concecircntricos de obrigaccedilotildees (entre os humanos os ciacuterculos da famiacutelia paacutetria

humanidade) que essas formas de vida genuinamente poliacuteticas compreendem Sob essa luz

de todo nova no bergsonismo e genuiacutena em Les Deux Sources a dualidade do aberto e do

fechado responde metafisicamente agraves exigecircncias de um problema praacutetico e poliacutetico184

ndash

ou nesse sentido inteiramente novo que se dissimula sob a obra bergsoniana ndash a um

problema originalmente biopoliacutetico ldquoComo abrir o fechadordquo eacute uma questatildeo que

perpassaraacute natildeo apenas a atualidade do momento histoacuterico que a Europa de Bergson

atravessava ndash a da indecidibilidade e dos umbrais de uma Europa que de um lado

impulsionava a mecacircnica e inventava os direitos humanos manifestando uma potente

tendecircncia agrave abertura e de outro captura o maquinismo nos aparelhos e estrateacutegias da

guerra agrave qual tendia e que nos tempos de Les Deux Sources comeccedilava a se insinuar185

A questatildeo permanece atual a toda sociedade humana na medida em que a

cristalizaccedilatildeo de tradiccedilotildees costumes e formas de vida revela uma tendecircncia ao fechamento

e agrave obrigaccedilatildeo moral sonambuacutelica que imita o automatismo do instinto186

nenhuma

transformaccedilatildeo pode efetuar-se sem abrir o fechado sem encontrar do ponto de vista das

formas de vida poliacutetica os pontos de ruptura das formas de vida biologicamente

construiacutedas para as sociedades humanas Se o primitivo natildeo deixava de ser como uma

memoacuteria social original e natural agrave estrutura espiritual que a vida montou nos homens

mesmo a mais civilizada Europa dos anos trinta poderia como de fato pocircde tender ao

fechamento agrave guerra e agrave hierarquia Isso natildeo eacute menos possiacutevel ainda hoje e natildeo eacute menos

possiacutevel em sociedades em transiccedilatildeo cujo problema essencial parece colocar-se do mesmo

modo como parecia colocar-se para Bergson ldquocomo abrir o fechadordquo Eis o que permite

que a transiccedilatildeo na qual a humanidade permanece por sua proacutepria estrutura natural ndash sua

existecircncia bioloacutegica e poliacutetica define-se antes de tudo por uma potecircncia biopoliacutetica de

184

ldquoEacute pois toda a filosofia de Bergson que se explica assim retrospectivamente em uma perspectiva

indissociavelmente praacutetica metafiacutesica e moral que liga nossa vida e toda vida em seus respectivos duplosrdquo

(WORMS 2011 p 368) ainda ldquo[] tudo se passa como se depois de ter oposto o fechado e o aberto por si

mesmos e como limites absolutos pudeacutessemos nos servir deles para nos orientarmos nos problemas

propriamente humanos e histoacutericos []rdquo (WORMS 2011 p 364) 185

ldquoDans Les Deux Sources [] Bergson part drsquoune contradiction anthropologique heacuteriteacutee de lrsquohistoire

politique celle de lrsquoirrationaliteacute des comportaments humains des croyences religieuses mais aussi et peut-

ecirctre surtout de la guerrerdquo (KECK 2002 p 214) 186

ldquoLrsquoactualiteacute pour aujourdrsquohui des Deux Sources est alors indissociable de certaines actualisations []

[] les problegravemes historiques deacutecrits pour Bergson (machinisme guerre civilisation aphrodisiaque) sont

enconre les nocirctres []rdquo (AMALRIC 2012 p 295)

210

variar ou cristalizar-se nelas ndash encontre no aberto uma tarefa eacutetica cosmopolita trata-se

natildeo apenas de abrir o fechado mas de combater o fechamento e de combatecirc-lo a fim de

perseverar no aberto Eacute possiacutevel pressentir de imediato que tudo isso deve receber

transcriccedilotildees poliacuteticas A moralidade do aberto agrave qual corresponde uma atitude subjetiva

proacutepria ndash a da alma aberta e no limite a do miacutestico que o propaga incendiariamente aos

indiviacuteduos falando-lhes em profundidade rompendo a casca parasitaacuteria do eu social e

evocando a liberdade radical e ontoloacutegica que os constitui como progecircneres da duraccedilatildeo ndash

fornece um criteacuterio eacutetico que dispensa toda transcendecircncia187

Tal liberdade natildeo se explica

mais pela razatildeo pelo sujeito e por seus criteacuterios dissociados da vida mas o aberto

constitui-se a partir dela Sua eacutetica funda-se no proacuteprio contato com a vida e com a emoccedilatildeo

criadora que dela procede opondo-se a toda exclusatildeo e a todo limite ela engendra uma

eacutetica amorosa que engloba o Todo responde a um apelo que conduz agrave paz e desfaz-se da

pressatildeo que tende agrave guerra188

Diante de tudo isso busquemos esboccedilar globalmente a resposta que o bergsonismo

oferece agrave questatildeo ldquoComo abrir o fechadordquo Essa questatildeo ndash que parece encaminhar-nos

subitamente na direccedilatildeo praacutetica de uma filosofia poliacutetica ndash tambeacutem poderia ser enunciada

em ldquoComo o estaacutetico se torna dinacircmicordquo ldquoComo o atual se virtualizardquo ou ainda

segundo uma transcriccedilatildeo propriamente biopoliacutetica ldquoComo lanccedilar uma forma de vida a um

devirrdquo Em uma nota redigida em resposta agrave obra que Loisy consagrara a Les Deux

Sources Bergson (2002 p 134) precisara a centralidade da questatildeo da abertura do fechado

em relaccedilatildeo agrave filosofia poliacutetica que desenvolveraacute no uacuteltimo capiacutetulo de seu livro suas

ldquoRemarques Finalesrdquo ldquo[] le moyen de reacuteforme essentiel selon moi nrsquoest pas [] la

lsquoscience psychiquersquo ni lsquolrsquoattent du heacuterosrsquo mais une certaine ouverture do clos une certaine

direction imprimeacutee au vouloir pour neutraliser lrsquohomme fondamentalrdquo Eis o gesto decisivo

187

ldquo[] a distinccedilatildeo entre o fechado e o aberto continua atraveacutes desse livro e para aleacutem dele a valer por si

mesma e a fornecer um criteacuterio uacuteltimo de orientaccedilatildeo a uma humanidade que renuncia a todo criteacuterio

transcendente mas que sente ou que sabe que permanecem criteacuterios morais imanentes a sua vidardquo (WORMS

2011 p 369) 188

Worms (2011 p 327) critica a leitura que Simone Weil (1990) devotou ao criteacuterio moral bergsoniano em

Lrsquoenracinement Seu argumento eacute o de que natildeo basta agrave moral do aberto o contato com a vitalidade e o

aumento de forccedila que se definam pela exclusatildeo e pela guerra A miacutestica em sentido bergsoniano soacute eacute

completa quando confundindo-se com um amor universal que natildeo comporta qualquer exclusatildeo define-se

pela abertura sem precedentes inclui o Todo e apela agrave paz A mesma criacutetica valeria para outro autor Luis

Quintanilla (1953) que em Bergsonismo y politica critica a moral bergsoniana pelas mesmas razotildees que

Weil embora geralmente o faccedila a partir da leitura de Georges Sorel e natildeo das obras de Bergson mesmas O

proacuteprio Bergson (2001 p 1240332) diraacute nesse sentido que ldquosi lrsquoon se tient au mysticisme vrai on le jugera

incompatible avec lrsquoimperialismerdquo

211

e subversivo que atravessa a obra bergsoniana a partir das sucessivas articulaccedilotildees entre

fechado e aberto (AMALRIC 2012 p 270)

Eacute nesse sentido que o aberto natildeo deixa de ser um ponto de vista que permite agrave

filosofia pensar o real para aleacutem dos modelos de clausura das sociedades fechadas

(AMALRIC 2012 p 276) Mas como o fechado deveacutem aberto Em uma palavra por

meio de uma atitude ndash que eacute ao mesmo tempo uma posiccedilatildeo subjetiva e uma accedilatildeo livre em

profundidade ndash de abertura do fechado Se Bergson insiste tatildeo intensamente sobre as

personalidades individuais excepcionais sobre os indiviacuteduos miacutesticos que tocando o eacutelan

vital em um ponto ou descobrindo-o sob o simbolismo de sua apariccedilatildeo natildeo eacute para atrelar

o devir das formas de relaccedilatildeo intersubjetiva ao heroiacutesmo que redundaria facilmente em um

culto da individualidade A questatildeo do devir das formas de vida ndash naquilo que elas

engendram de mais profundamente bioloacutegico e poliacutetico as tendecircncias de sociabilidade

forjadas pela natureza ndash encontra nas individualidades excepcionais a prova concreta

experimentada da possibilidade de abrir o fechado Moralistas artistas ou miacutesticos essas

individualidades excepcionais e de gecircnio natildeo satildeo o que carrega por si a humanidade para

aleacutem dela mesma satildeo a prova viva e histoacuterica de que eacute possiacutevel fazecirc-lo e de que se eles o

puderam foi por adotarem uma atitude aberta que eacute ao mesmo tempo um modo e

subjetivaccedilatildeo e uma accedilatildeo ndash ou em uma soacute palavra a efetuaccedilatildeo de um potencial de variaccedilatildeo

biopoliacutetica que conduz a humanidade para aleacutem de si mesma

Nesse plano tudo se passa como se a existecircncia de alguns super-homens que se

recolocaram no sentido do eacutelan fosse a prova histoacuterica da possibilidade que a humanidade

experimenta a todo momento ao redor de si como os virtuais imanentes agrave proacutepria condiccedilatildeo

humana que permitiriam ultrapassaacute-la A expressatildeo tatildeo ceacutelebre quanto equiacutevoca que se

encontra nas uacuteltimas linhas de Les Deux Sources pela qual Bergson concebe a humanidade

como ldquoune machine de faire des dieuxrdquo natildeo possuiraacute outro sentido senatildeo o de sintetizar

em uma foacutermula que combina a mecacircnica que pode nos liberar da necessidade ao destino

miacutestico ldquodivinordquo ou sobre-humano que nos reserva como continuaccedilotildees do eacutelan o destino

biopoliacutetico da humanidade Fazecirc-lo no entanto ndash Bergson o diz ndash implica uma escolha

entre viver apenas ou esforccedilar-se por realizar a funccedilatildeo essencial do universo Tal esforccedilo

condensa no homem a tendecircncia profundamente vital agrave abertura de uma alma que se abre

atitude subjetiva e efetuaccedilatildeo ativa como nos grandes esquemas da liberdade nos quadros

analiacuteticos do Essai subjetivaccedilatildeo e accedilatildeo se confundem ao infinito supondo a duraccedilatildeo como

memoacuteria elementar da mudanccedila e abertura ontoloacutegica ao porvir

212

Assim como a natureza definia formas de vida tendentes ao fechado fazendo

sistema organizando-se e a girando sobre si mesmas na mesma medida em que essa

tendecircncia ao fechamento parece implicar uma determinaccedilatildeo bio-ontoloacutegica de toda

individualidade (SITBON-PEILLON 2002 p 184) ela soacute se processa de um ponto de

vista dinacircmico supondo o aberto ndash o que deixa entrever uma abertura possiacutevel Assim

como a religiatildeo primitiva e natural permanece no homem e determina a partir da estrutura

geral de seu espiacuterito as formas de organizaccedilatildeo sociais tambeacutem a abertura permanece

contemporacircnea do fechamento capaz de abrir-se segundo comprova a experiecircncia pelo

menos na miacutestica Sabe-se que natildeo se passa de um termo a outro por alargamento

sucessivo aberto e fechado aparecem em primeiro momento como dois termos que

comportam uma irredutiacutevel diferenccedila de natureza da mesma forma natildeo se passa do amor

agrave famiacutelia ou agrave paacutetria ao amor ao Todo e agrave humanidade por via de intensificaccedilatildeo uma vez

que uma diferenccedila de natureza e natildeo de grau os perpassa (BERGSON 2001 p

1202284)

Todavia um outro tipo de passagem se faz possiacutevel e as experiecircncias miacutesticas

indicam precisamente o caminho que se deve percorrer Aqueacutem do misticismo vimos que

Bergson descreve ateacute mesmo uma alma de transiccedilatildeo como que ldquoentreabertardquo ao dinacircmico

signo de que uma franja indecisa virtual de instinto e intuiccedilatildeo natildeo cessa de aureolar a

inteligecircncia Satildeo precisamente essas franjas indecisas rodeadas por nuvens de virtuais que

encaminham agrave proacutepria vida elas entreabrem no homem o prolongamento de sua forma de

vida aparentemente imoacutevel na corrente evolutiva da qual essa forma procede189

Eacute como Todo virtual que o eacutelan se insinua no homem mostrando-se capaz de

produzir em sua forma de vida toda sorte de devires e de rupturas Cedendo agrave sua

reimpulsatildeo o homem salta para fora da natureza torna-se no dizer de Bergson ldquodivinordquo ndash

na medida em que se torna sobre-humano ndash mas ao mesmo tempo natildeo sai completamente

da natureza por isso Bergson afirma que essas individualidades ao tomarem contato com

o princiacutepio de todas as formas de vida constituem como indiviacuteduos ldquoune nouvelle

espegravecerdquo Seu salto para fora da natureza seria em termos espinosanos uma procura pelo

fora da natureza naturada ndash o que soacute pode definir-se como o reencontro em tudo divino

com a natureza naturante afinal ldquo[] crsquoest pour revenir agrave la Nature naturante que nous

nous deacutetachons de la Nature natureacuteerdquo (BERGSON 2001 p 102456)

189

ldquolsquoAffrangissementrsquo qui est affranchissement de lrsquoeacutelan vital par quoi lrsquoeacutevolution au lieu de srsquoimmobiliser

dans les formes de vie collective que les instincts et les tendences organiques de lrsquohomme primitif instituegraverent

dans le temps voisins de ses origines fut capable par un veacuteritable changement drsquoaboutir aux socieacuteteacutes

actuellesrdquo (SITBON-PEILLON 2002 p 187)

213

Eacute no misto do puro e do impuro do aberto e do fechado do devir e da forma que o

homem encontra uma saiacuteda para a liberdade (SITBON-PEILLON 2002 p 187) e a

liberdade em Bergson natildeo eacute mais que a transcriccedilatildeo em um modo de subjetivaccedilatildeo e afetivo

da criaccedilatildeo e do imprevisto ontoloacutegicos Uma ontologia profunda que se confunde com as

potecircncias virtuais do eacutelan atravessa pelas formas de vida depositando-se ao mesmo tempo

em que fratura a mateacuteria As franjas indecisas de inteligecircncia instinto e intuiccedilatildeo presentes

na estrutura geral do espiacuterito humano satildeo fixadas intensificadas e tornadas completas em

accedilatildeo pelos miacutesticos Eacute nesse sentido que viacuteamos o miacutestico ser tomado por Bergson a

despeito de toda crenccedila ecircxtase visatildeo estados moacuterbidos e anormais puramente acidentais

Importa considerar o misticismo completo como aquele que retira do impulso vital a

energia da accedilatildeo e do novo que o miacutestico estaacute prestes a lanccedilar no mundo Uma vez

completo no misticismo natildeo haacute apenas gozo e contemplaccedilatildeo mas transformaccedilatildeo da

alegria do gozo miacutestico ndash que se desembaraccedila dos falsos-problemas por meio de um

simbolismo que deixa transparecer em seu fundo intensivo o proacuteprio eacutelan e suas potecircncias

ndash em alegria da accedilatildeo (WORMS 2011 p 332) Enriquecendo a metafiacutesica com a

experiecircncia e com o contato com o eacutelan ao fazer do proacuteprio corpo o lugar do encontro com

uma potecircncia inumana posto que sobre-humana (SITBON-PEILLON 2002 p 188) os

miacutesticos pensam como homens de accedilatildeo e agem como homens de pensamento Assim como

o primitivo ndash que nos conduz ao fechamento ndash o miacutestico que encaminha ao aberto eacute

tambeacutem uma tendecircncia do espiacuterito190

uma direccedilatildeo da proacutepria realidade em que um

homem com a atitude e o esforccedilo apropriados pode efetuar-se

Pode-se pressentir como a questatildeo a que nos dedicamos longamente ateacute aqui ndash

ldquoComo abrir o fechadordquo ndash deve receber uma transcriccedilatildeo poliacutetica e sofrer uma distensatildeo

praacutetica no uacuteltimo capiacutetulo de Les Deux Sources a ponto de implicar no limite toda uma

filosofia poliacutetica do aberto Com efeito se o misto impuro eacute uma condiccedilatildeo que faz da

atitude e do esforccedilo de abertura seus correlatos na liberdade no interior da filosofia

poliacutetica bergsoniana mecacircnica e miacutestica se unem agrave emoccedilatildeo criadora para converter o

problema da instauraccedilatildeo do aberto na questatildeo ldquoComo perseverar no abertordquo Sem duacutevida

as Remarques Finales desta muacuteltipla obra bergsoniana tensiona ao maacuteximo os conceitos

metafiacutesicos a fim de transcrevecirc-los sob uma rubrica poliacutetica Natildeo eacute por acaso portanto que

agrave guerra e ao maquinismo capturado pelos aparelhos de Estado ver-se-aacute insinuar-se em

Bergson natildeo apenas o problema da direccedilatildeo miacutestica da teacutecnica mas o da direccedilatildeo miacutestica no

190

A propoacutesito ldquoToute reacutealiteacute est donc tendancerdquo escrevera Bergson (2001 p 1420211) ldquosi lrsquoon convient

drsquoappeler tendance un changement de direction agrave lrsquoeacutetat naissantrdquo

214

sentido das proacuteprias formas de organizaccedilatildeo poliacutetico-sociais que encontram na democracia e

nos direitos humanos dois modos coextensivos de manter aberto aquilo que a natureza

tende a fechar Eis o que devemos interrogar agrave luz desse novo campo problemaacutetico que se

define de um lado pela transcriccedilatildeo da intuiccedilatildeo metafiacutesica enriquecida pela experiecircncia

miacutestica e por outro a partir do contato miacutestico com o princiacutepio inumano que impulsiona a

vida mais aleacutem de si mesma e reconduz a natureza naturada agrave natureza naturante da qual

proveacutem

sect 3 PERSEVERAR NO ABERTO

TRANSICcedilAtildeO DEMOCRACIA E DIREITOS HUMANOS

A questatildeo ldquoComo perseverar no abertordquo precisa ser desenvolvida em trecircs direccedilotildees

coextensivas A primeira compreendida como etapa demonstrativa visa a esclarecer de

que maneira Bergson desenvolve a relaccedilatildeo entre mecacircnica e miacutestica nas Remarques

Finales de Les Deux Sources Trata-se de compreender os perigos sociais como a guerra

na era industrial a que a tendecircncia ao fechamento estaria em vias de levar a Europa no

momento da escritura da obra de Bergson mas tambeacutem de perceber em que sentido uma

moralidade aberta encontra na luta contra o fechamento sua distensatildeo poliacutetica mais proacutepria

e ainda como a democracia e os direitos humanos permitem avanccedilar na luta genuinamente

biopoliacutetica contra o fechamento em direccedilatildeo agrave perseveraccedilatildeo no aberto

Em uma segunda direccedilatildeo seria preciso enfrentar uma questatildeo na qual jaacute

resvalamos mas cujo epicentro permaneceu intocado Bergson afirma sucessivamente

propriedades quase incendiaacuterias do aberto como se ele se comunicasse por contaminaccedilatildeo

imediata de alma em alma Trata-se de perscrutar como isso eacute possiacutevel como o aberto se

comunica de alma em alma Sem isso restaria difiacutecil colocar nossa uacuteltima questatildeo e

uacuteltima direccedilatildeo de desenvolvimento que visa a relacionar o aberto e a transiccedilatildeo agraves questotildees

da democracia e dos direitos humanos

No extremo desse ponto seraacute possiacutevel interrogar as relaccedilotildees entre memoacuteria e

transiccedilatildeo no bergsonismo agrave luz do conceito de aberto da aspiraccedilatildeo moral e do devir que

elas realmente implicam atingindo finalmente apoacutes esse longo poreacutem imprescindiacutevel

plexo de demonstraccedilotildees o epicentro conceitual que nos conduz a apresentar a partir do

bergsonismo a inextrincaacutevel relaccedilatildeo entre memoacuteria e transiccedilatildeo que se encontra pressuposta

na Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo desde sua rubrica ontoloacutegica e a um soacute tempo poliacutetica

ou como preferimos biopoliacutetica

215

Todas essas perguntas ligam-se naturalmente agrave questatildeo precedente agrave qual

oferecemos uma resposta na uacuteltima seccedilatildeo ldquoComo abrir o fechadordquo Por essa razatildeo os

uacuteltimos desenvolvimentos que desaacuteguam na relaccedilatildeo entre mecacircnica e miacutestica no perigo da

guerra e na constante ameaccedila de fechamento a que podem estar ainda hoje submetidas as

democracias ocidentais como no tempo de Bergson191

natildeo poderatildeo deixar de ser seguidos

em suas articulaccedilotildees proacuteprias

Sigamos as grandes linhas de articulaccedilatildeo contidas no uacuteltimo capiacutetulo de Les Deux

Sources de la Morale et de la Religion Jaacute nas primeiras palavras do capiacutetulo vemos

Bergson (2001 p 1201283) remontar aos iacutendices biopoliacuteticos que atravessaram toda a sua

obra e esfumaram-se no caminho em um misto ldquoUn des reacutesultats de notre analyse a eacuteteacute de

distinguer profondeacutement dans le domaine social le clos de lrsquoouvertrdquo Satildeo precisamente

tais iacutendices ndash que chamamos biopoliacuteticos na medida em que possuem raiacutezes

compreensivamente bioloacutegicas192

ndash que permitem redesenhar as feiccedilotildees geneacutericas das

sociedades caracterizadas pelo fechamento ou pela abertura

As sociedades fechadas seratildeo definidas pela exclusatildeo como princiacutepio que forja a

coesatildeo do grupo e origina a necessidade de defender-se contra o outro o outsider e o

inimigo Sociedades estereotipadas e instintuais diferem das sociedades humanas pela

presenccedila da inteligecircncia nestas uacuteltimas e pelo potencial de variaccedilatildeo dos modos de relaccedilatildeo

intersubjetiva que podem produzir Elas contudo natildeo sentem menos a pressatildeo natural em

direccedilatildeo agrave sociabilidade originaacuteria no fundo de si ao mesmo tempo em que somos livres

para variar modos de existecircncia em comum o todo da obrigaccedilatildeo pesa sobre nossos atos

com toda a pressatildeo da natureza que exige uma forma de sociabilidade Saiacuteda das matildeos da

natureza ela natildeo passa de uma sociedade fechada que conserva no entanto em seu

interior um ponto de ruptura a partir do qual poderaacute abrir-se Enquanto isso natildeo ocorre o

todo da obrigaccedilatildeo e uma religiatildeo estaacutetica compensaratildeo os riscos egoiacutestas depressores e

dissolventes que a inteligecircncia importa em relaccedilatildeo aos indiviacuteduos e agraves sociedades humanas

que eles comporatildeo ndash ambas natildeo deixam de ser porque capazes de ressoarem em alguma

191

A esse respeito Worms (2011 p 368-369) ressaltou a atualidade da moralidade aberta bergsoniana bem

como uma seacuterie de outros autores buscaram atualizar a filosofia poliacutetica bergsoniana em funccedilatildeo do aberto O

resultado encontra-se reunido no quinto volume dos Annales bergsoniennes (Bergson et la politique de

Jauregraves agrave aujourdrsquohui) organizado por Worms (2012) do qual nos aproveitaremos para desenvolver algumas

reflexotildees sobre a filosofia poliacutetica proacutepria ao bergsonismo 192

Embora natildeo pretenda levar longe demais a analogia ndash uma vez que o homem e os himenoacutepteros

aproximam-se por estar no extremo das linhas de evoluccedilatildeo mas ainda assim ocupam extremos de linhas

diferentes e divergentes ndash Bergson afirma que ldquoLrsquohomme eacutetait fait pour elle [la socieacuteteacute] comme la fourmi

pour la fourmiliegravererdquo (BERGSON 2001 p 1201283)

216

medida com a inteligecircncia constitutivas de uma sociedade de tipo fechado (BERGSON

2001 p 1202284)

Da sociedade fechada agrave aberta percorre-se uma diferenccedila de natureza natildeo de grau

ldquoLa socieacuteteacute ouverte est celle qui embracerait en principe lrsquohumaniteacute entiegravererdquo ela possui

uma vocaccedilatildeo cosmopolita ndash e uma vez que sua energia adveacutem da proacutepria vida procede

por criaccedilotildees divergentes mais ou menos profundas em relaccedilatildeo ao homem que logo se

fecham e cristalizam em formas tradiccedilotildees costumes ou em instituiccedilotildees Assim que o

aberto faz uma volta sobre si fecha-se em um ciacuterculo a aspiraccedilatildeo enclausura-se em

pressatildeo torna-se obrigaccedilatildeo do todo e o ponto de fusatildeo passa a fundar Cada

transformaccedilatildeo de direccedilotildees insuspeitas e jamais predeterminadas exige um esforccedilo criador

proacuteprio e desenvolve-se em uma direccedilatildeo absolutamente singular e imprevisiacutevel como se a

mutaccedilatildeo de uma forma revelasse certa transparecircncia do devir em geral a que as formas

servem de instrumentos ou ensejos Os obstaacuteculos ou formas natildeo passam de ocasiotildees para

um devir que tem as mesmas caracteriacutesticas da duraccedilatildeo e do virtual uma transformaccedilatildeo

qualitativa e imprevisiacutevel (BERGSON 2001 p 1202-1203284-285) Nenhuma ideia

preexistiraacute a esse devir mas iraacute operar sua criaccedilatildeo imprevisiacutevel contemporaneamente a ele

Se o impulso vital a exigecircncia de criaccedilatildeo parece ceder diante do fechamento ou do

ciacuterculo da espeacutecie ateacute que outra oportunidade se apresente ele seraacute continuado e gestado

por meio de individualidades excepcionais193

Aberto e fechado dinacircmico e estaacutetico

podem entatildeo coexistir sob a forma de um misto No registro da moral Bergson entrevecirc a

coexistecircncia entre uma moral estaacutetica que se fixou nos costumes ideias e instituiccedilotildees cuja

forccedila reduz-se em uacuteltima anaacutelise agrave natural necessidade da vida em comum e de outro lado

uma moral dinacircmica ldquoqui est eacutelan et qui se rattache agrave la vie en geacuteneacuteral creacuteatrice de la

nature qui a creacutee lrsquoexigence socialerdquo (BERGSON 2001 p 1204286) Coexistem pois

pressatildeo e aspiraccedilatildeo como o infraintelectual a inteligecircncia ndash a procurar razotildees onde haacute

apenas niacuteveis mais ou menos intensos de vida ndash e o supraintelectual

A tese da persistecircncia do natural segundo a qual ldquoo primitivo natildeo deixa de serrdquo

nem mesmo sob as camadas mais recentes de cultura natildeo consiste em nada aleacutem de

afirmar a coexistecircncia de tendecircncias virtuais ao fechamento e agrave abertura O primitivo natildeo

193

ldquo[] de mecircme que lrsquoaspiration morale nouvelle ne prend corps qursquoen empruntant agrave la socieacuteteacute close sa

forme naturelle qui est lrsquoobligation ainsi la religion dynamique ne se propage que par des images et de

symboles que fournit la fonction fabulatricerdquo (BERGSON 2001 p 1203285) Assim o fechamento natildeo

consiste em uma tendecircncia natural negativa mas em um modo de comunicar claramente sob a forma de

pressatildeo ou siacutembolos uma aquisiccedilatildeo moral inteiramente construiacuteda no aberto e no dinacircmico O erro

consistiria natildeo apenas em atribuir uma funccedilatildeo unicamente negativa ao fechado mas em tentar explicar o

aberto por intermeacutedio do fechado

217

tem outro significado profundo senatildeo a dessa coexistecircncia de tendecircncias que atesta ter

havido uma sociedade fundamental e fechada saiacuteda das matildeos da natureza (BERGSON

2001 p 1206289)194

Por outro lado a tese da persistecircncia do natural permite infirmar e

criticar ateacute mesmo duramente a tese filosoacutefica natildeo demonstrada da transmissibilidade dos

caracteres adquiridos que explorada insistentemente em LrsquoEacutevolution Creacuteatrice natildeo

precisa ser revisitada aqui

Tudo indica que a sociedade natural seria constituiacuteda como um pequeno grupo no

entanto na mesma medida em que a natureza forjara inicialmente uma sociedade pequena

possibilitou tambeacutem que elas crescessem na medida em que engendrou a guerra e com ela

a possibilidade de associaccedilatildeo entre pequenos grupos que visavam a defender-se Embora

essas uniotildees sejam por si mesmas pouco duraacuteveis a guerra e a conquista encontram-se na

base dos impeacuterios como a experiecircncia histoacuterica de anexaccedilotildees territoriais e escravizaccedilatildeo de

populaccedilotildees para explorar seu trabalho teria demonstrado (BERGSON 2001 p 1210293-

294) No entanto ainda que se conceda certa aparecircncia de liberdade agraves populaccedilotildees

subjugadas logo a inteligecircncia passa a agir e faz sentir seus efeitos dissolventes As

grandes naccedilotildees modernas soacute poderiam ter-se construiacutedo nesse sentido ao neutralizarem

por meio do patriotismo ndash princiacutepio que se erige do fundo das proacuteprias comunidades

elementares dissolventes ndash a tendecircncia agrave desagregaccedilatildeo (BERGSON 2001 p 1210294)

virtude que ultrapassa o apego antigo agraves comunidades na medida em que pode tingir-se de

misticismo e de religiosidade195

A sociedade natural compreendida como um grupo

completo capaz de defender-se de outros grupos eacute marcada estruturalmente pela

inteligecircncia e pela liberdade que soacute podem ser contidas no seio da tendecircncia agrave

sociabilidade por outros artifiacutecios natildeo menos naturais a hierarquia e a disciplina haacute os

que mandam e os que obedecem ndash eis o dimorfismo de natureza psiacutequica que natildeo implica

duas categorias irredutiacuteveis (senhores e servos) Em verdade ambas as tendecircncias fazem

parte de noacutes integram nossa estrutura psiacutequica embora em geral a tendecircncia de obedecer

se manifeste mais constantemente que a de mandar ndash os tempos de revoluccedilatildeo o

demonstrariam melhor que qualquer outro exemplo196

Natildeo somos servos ou senhores por

194

ldquo[] la nature est indestructiblerdquo (BERGSON 2001 p 1206289) ldquo[] les dispositions de lrsquoespegravece

subsistent immuables au fond de chacun de nousrdquo (BERGSON 2001 p 1207291) isto eacute ldquolrsquoancien eacutetat

drsquoacircme subsiste dissimuleacute sous des habitudes sans lesquelles il nrsquoy aurait pas de civilisationrdquo (Idem ibidem

p 1209203) 195

ldquoIl fallait un sentiment aussi eacuteleveacute imitateur de lrsquoeacutetat mystique pour avoir raison drsquoun sentiment aussi

profond que lrsquoeacutegoiumlsme de la triburdquo (BERGSON 2001 p 1211295) 196

ldquoCrsquoest de quoi nous avons la vision nette en temps de reacutevolution Des citoyens modestes humbles et

oacutebeissants jusqursquoalors se reacuteveillent un matin avec la preacutetention drsquoecirctre des conducteurs drsquohommesrdquo

(BERGSON 2001 p 1212296-297)

218

natureza mas carregamos dentro de noacutes os iacutendices biopoliacuteticos que correspondem a esse

dimorfismo governamental na medida em que a vida social estaacute compreendida no plano da

estrutura da espeacutecie Eacute como se houvesse no mais submisso dos cidadatildeos um chefe

adormecido O que estaria na origem do engano quanto agrave separaccedilatildeo dos homens em classes

de mandantes ou de submissos natildeo passaria de um efeito cultural pelo qual por meios

historicamente muito heterogecircneos cultivou-se a naturalizaccedilatildeo da superioridade de estirpe

da classe governante Eis como se naturaliza o dimorfismo social do homem que estaacute

contido como tendecircncia inteiramente em cada indiviacuteduo da espeacutecie

Tudo se passa como se no interior dessa breve histoacuteria natural das formas humanas

de governamentalidade Bergson engendrasse uma fenomenologia da revoluccedilatildeo para

explicar o advento da democracia O instinto resiste a obrigaccedilatildeo via de regra perpetua-se

no seio do comum e no entanto a proacutepria classe dominante pode ou por uma

incapacidade evidente ou por abusos gritantes fazecirc-lo ceder na direccedilatildeo de um sentimento

de justiccedila capaz de dissipar a ilusatildeo segundo a qual a classe politicamente dirigente era

vista como naturalmente superior Toda a distacircncia entre senhores e suacuteditos esmaece Uma

vez que as classes superiores inspiram um respeito natural e quase religioso nas demais

compreende-se por que a humanidade soacute tenha chegado muito tarde agrave democracia

Concebecirc-la segundo Bergson implica um esforccedilo no sentido contraacuterio ao da natureza ela

seria a uacutenica forma de organizaccedilatildeo poliacutetica que para aleacutem de toda histoacuteria das lutas contra

a desigualdade transcende as condiccedilotildees da sociedade fechada e atribui ao homem direitos

inviolaacuteveis que para manterem-se inviolados exigem de todos fidelidade ao dever

Como a miacutestica a democracia eacute um salto para fora da natureza mas natildeo de toda a

natureza a democracia eacute a forma de organizaccedilatildeo poliacutetica que na medida em que atribui a

todos direitos iguais faz de todo homem legislador universal e suacutedito proclama e

reconcilia a igualdade e a liberdade eleva a fraternidade a genuiacutena condiccedilatildeo poliacutetica Uma

vez que a fraternidade torne-se essencial Bergson natildeo hesita em ir mais longe Para aleacutem

de descobrir ressonacircncias puritanas na Declaraccedilatildeo de Direitos do Homem ndash provenientes

da Declaraccedilatildeo Americana de Independecircncia ndash ele afirma que ldquola deacutemocratie est drsquoessence

eacutevangeliquerdquo que ldquoelle a pour moteur lrsquoamourrdquo (BERGSON 2001 p 1213300) Haveria

pois sob a superfiacutecie das foacutermulas democraacuteticas signos que evocam sua origem religiosa

dinacircmica Mesmo porque seria impossiacutevel definir a democracia senatildeo em termos vagos

tudo nela eacute questatildeo de permitir perseverar no aberto de deixar o futuro aberto a todo

progresso ldquonotamment agrave la creacuteation de conditions nouvelles ougrave deviendront possibles des

219

formes de liberteacute et drsquoeacutegaliteacute aujourdrsquohui irreacutealisablesrdquo (BERGSON 2001 p 1213300-

301)

Ama et fac quod vis eacute a essecircncia da democracia Esta direccedilatildeo quase sempre

introduzida no mundo pela forma do protesto permitiu conceber o advento dos direitos

humanos como desafios lanccedilados a abusos a fim de liquidar com o intoleraacutevel Toda a

fenomenologia da revolta que Bergson esboccedila nessas paacuteginas encontraraacute em uma

assertiva de Egravemile Faguet um ponto miacutestico de aprofundamento Faguet teria escrito que a

Revoluccedilatildeo Francesa natildeo fora feita em prol da liberdade e da igualdade mas porque se

morria de fome Bergson assente mas pergunta ldquopourquoi crsquoest agrave partir drsquoun certain

moment qursquoon nrsquoa plus voulu lsquocrever de faimrsquordquo Algo se passou da ordem de um devir das

formas de vida Na medida em que as intenccedilotildees com que uma ideia eacute lanccedilada continuam a

imantaacute-la por um longo tempo eacute preciso lembrar que toda foacutermula democraacutetica origina-se

da revoluccedilatildeo exprime um desejo revolucionaacuterio formula o que deve ser a fim de liquidar

o que eacute ndash e nesse sentido implica um trabalho praacutetico a um soacute tempo negativo e positivo

A ele corresponde o que Bergson diz ser um estado de alma democraacutetico que descreve um

esforccedilo no sentido inverso da natureza

A natureza inclina toda sociedade que se constitui agrave guerra forma grupos por

segregaccedilatildeo e exclusatildeo manteacutem-nos coesos organizados hierarquizados sob a autoridade

absoluta do chefe tudo isso segundo Bergson (2001 p 1216302) significa guerra A

inteligecircncia fabricadora com que a natureza dotou o homem tambeacutem o predispocircs agrave guerra

na medida em que permitiu que nascesse nele o sentimento de propriedade ligado aos

instrumentos que fabrica aos lugares que frequenta aos alimentos de que se nutre aos

escravos que possui etc Eis o que faz da propriedade uma tendecircncia natural que conduz agrave

guerra persiste no homem um instinto guerreiro que preparado para a violecircncia encontra

no fundo de si mesmo uma euforia que logo seraacute aplacada pelo sofrimento mas que natildeo

deixa de constituir uma forma de encorajamento e de reaccedilatildeo defensiva contra o medo197

Sob o ponto de vista do instinto guerreiro haacute guerras ldquonaturaisrdquo

Bergson natildeo cessa de auscultar nessas paacuteginas os diversos modos pelos quais a

Europa do poacutes-Primeira Guerra ndash olvidada muito rapidamente dos dilaceramentos recentes

ndash reencontrava esse instinto guerreiro e uma tendecircncia ao fechamento sem precedentes

Decerto o instinto guerreiro de que Bergson fala natildeo pode ser encontrado em estado puro

na medida em que a inteligecircncia interfere com ele projeta sobre esse instinto motivos

197

ldquo[] lrsquoorigine de la guerre est la proprieacuteteacute individuelle ou collective et comme lrsquohumaniteacute est predestineacutee

agrave la proprieacuteteacute par sa estructure la guerre est naturellerdquo (BERGSON 2001 p 1217303)

220

racionais que tendem a desaparecer na medida em que as guerras se tornem mais crueacuteis

Sob esse comeacutercio entre a guerra e a inteligecircncia e mais especificamente sob a relaccedilatildeo

entre a guerra e a industriosidade humana ndash que natildeo devemos esquecer fora forjada desde

a origem por uma inteligecircncia fabricadora ndash insinua-se o problema da teacutecnica envolvido

pelos perigos do fechamento198

Eacute preciso compreender as razotildees que levam Bergson agrave questatildeo da teacutecnica elas natildeo

estatildeo menos ligadas agraves formas de vida poliacutetica e agrave vida em geral que todas as demais

questotildees Com efeito no poacutertico da anaacutelise desse problema Bergson (2001 p 1220306)

chegaraacute a declarar que tendo esclarecido as origens da moral e da religiatildeo tendo obtido

algumas conclusotildees natildeo precisaria ir adiante199

No entanto a distensatildeo praacutetica e poliacutetica

que conduzia seu aparato conceitual metafiacutesico ndash sobretudo as noccedilotildees de aberto e fechado

ndash ao limite de genuiacutenos iacutendices biopoliacuteticos copresentes agraves sociedades humanas pareceratildeo

exigir um passo aleacutem200

Mais precisamente o que o impulsiona eacute perceber que as

tendecircncias da sociedade fechada parecem persistir na sociedade que se abre na medida em

que todas elas (obediecircncia fixismo hierarquia disciplina autoridade propriedade)

convergem primitivamente no instinto de guerra eacute preciso investigar se esse instinto pode

ser ativado ou inibido e de que maneira poderia secirc-lo

Sociedades como as europeias contemporacircneas agrave escritura de Les Deux Sources ndash

que aliaacutes parecem natildeo ter perdido nada de sua atualidade ndash satildeo aquelas que implicam em

mais alto grau certa dependecircncia entre os modos de vida e de existecircncia e o

198

ldquoLa derniegravere guerre avec celles qursquoon entrevoit pour lrsquoavenir si par malheur nous devons avoir encore des

guerres est lieacutee au caractegravere industriel de notre civilisationrdquo (BERGSON 2001 p 1220307) 199

ldquoNous pourrions en rester lagraverdquo (BERGSON 2001 p 1220306) 200

Seria impossiacutevel natildeo enxergar por exemplo em um longo paraacutegrafo em que Bergson pesquisa a

superpopulaccedilatildeo a divisatildeo do trabalho a circulaccedilatildeo dos produtos e a distribuiccedilatildeo de recursos e mateacuterias-

primas industriais ndash e toda a exigecircncia de regulamentaccedilatildeo que poderia ser estabelecida por organismos

internacionais ndash como causas possiacuteveis da ativaccedilatildeo do instinto de guerra os iacutendices daquilo que algumas

deacutecadas mais tarde Foucault chamaria de ldquobiopoliacutetica das populaccedilotildeesrdquo ou de ldquobiopoderrdquo poder sobre a vida

Bergson entrevecirc a necessidade de uma racionalizaccedilatildeo da produccedilatildeo do homem pelo homem atraveacutes de

regulaccedilotildees juriacutedico-administrativas e internacionais ndash em tudo coalescentes com a ideia foucaultiana de uma

ldquobiopoliacutetica das populaccedilotildeesrdquo fabricadora em que eacute o vital das populaccedilotildees que estaacute em jogo Para reter dessa

passagem apenas o essencial para demonstrar em que outro sentido o destino da filosofia bergsoniana natildeo

escapa a certa biopoliacutetica ldquo[] le scheacutema que nous venons de tracer marque suffisament les causes

essentielles accroisement de population perte de deacuteboucheacutes privation de combustible et de matiegraveres

premiegraveres Eliminer ces causes ou en atteacutenuer lrsquoeffet voilagrave la tacircche drsquoun organisme international qui vise agrave

lrsquoabolition de la guerre [] ce qui est certain crsquoest que lrsquoEurope est superpeupleacutee que le monde le sera

bientocirct et que si lrsquoon ne lsquorationalisersquo pas la production de lrsquohomme lui-mecircme comme on commence agrave le faire

pour son travail on aura la guerre [] Vous nrsquoeacuteviterez pas la reacuteglementation (vilain mot mais qui dit bien ce

qursquoil veut dire en ce qursquoil met impeacuterativement des rallonges agrave reacutegle et agrave regraveglement) Que sera-ce quand

viendront des problegravemes presque aussi graves celui de la reacutepartition de matiegraveres premiegraveres celuis de la plus

ou moins libre circulation des produits plus geacuteneacuteralement celui de faire droit agrave des exigences antagonistes

preacutesenteacutees de part et drsquoautre comme vitales Crsquoest un errreur dangereuse que de croire qursquoun organisme

international obtiendra la paix deacutefinitive sans intervenir drsquoautoriteacute dans la leacutegislation des divers pays et

peut-ecirctre mecircme dans leur administrationrdquo (BERGSON 2001 p 1221-1222308-309)

221

desenvolvimento industrial Eis o que definira sociedades afrodisiacuteacas sociedades de

prazer e gozo imoacuteveis tatildeo apaacuteticas quanto narcoacuteticas201

e que seriam talvez ainda hoje as

nossas ndash sociedades portanto provavelmente muito distantes do misticismo

ldquoincontestablement agrave lrsquoorigine des grandes transformations moralesrdquo (BERGSON 2001 p

1223310) as quais natildeo se tornaratildeo possiacuteveis senatildeo por um esforccedilo apropriado no sentido

do eacutelan vital a que corresponde tambeacutem um desejo profundo de fazecirc-lo202

Todavia

mesmo com relaccedilatildeo agraves sociedades afrodisiacuteacas natildeo haacute jamais um pessimismo bergsoniano

mas a insinuaccedilatildeo do aberto ldquoseraacute que a humanidade jaacute natildeo estaraacute suprida dos meios de

modificar-serdquo ou ldquotalvez esteja ela mais perto do que nunca do alvo que ela mesma

supotildeerdquo

Se Bergson recusa todo fatalismo em histoacuteria eacute na medida em que natildeo enxerga nela

um simples movimento pendular mas uma espiral ndash que implica a memoacuteria que impede

repeticcedilotildees puras ou nuas Jamais haacute simples alternacircncias de fluxo e refluxo na histoacuteria

nunca haacute um movimento pendular simples mas o desenvolvimento de tendecircncias segundo

a lei da dicotomia e a lei do duplo frenesi (BERGSON 2001 p 1227316) Sob a histoacuteria

soccedilobra o fundo do vital as lutas histoacutericas natildeo seriam senatildeo os signos superficiais e

expressivos de uma evoluccedilatildeo de tendecircncias mais profunda que em todos os aspectos

assemelha-se agraves tendecircncias de linhas de desenvolvimento da proacutepria vida Haacute portanto

uma coextensatildeo entre o movimento vital dos fluxos e suas transcriccedilotildees histoacutericas A

essecircncia de uma tendecircncia vital ndash afirmara o Bergson (2001 p 581102) de LrsquoEacutevolution

Creacuteatrice ndash eacute desenvolver-se em forma de feixe Na medida em que se desenvolve cresce

e cria as linhas divergentes segundo as quais um impulso original se dividiraacute203

O que

Bergson nomeia lei de dicotomia e lei de duplo frenesi tende a explicar esse movimento

global pelo qual uma tendecircncia se atualiza trata-se da dinacircmica de atualizaccedilatildeo de um

virtual propriamente dito ndash estejamos no campo da ontologia e da vida ou no da forma de

vida poliacutetica e da histoacuteria Com efeito em um caso estaremos no domiacutenio do imprevisiacutevel

no outro no da liberdade De todo modo imprevisto e liberdade constituem

essencialmente o mesmo embora determinem atualizaccedilotildees em niacuteveis diferentes que

coexistem entre si Definamos portanto as duas direccedilotildees em que uma atualizaccedilatildeo se

processa em geral A lei de dicotomia pode definir-se como a que provoca uma atualizaccedilatildeo

201

Bergson vai ainda mais longe ao afirmar que ldquoToute notre civilisation est aphrodisiaquerdquo (BERGSON

2001 p 1232322) 202

ldquoLrsquohumaniteacute ne se modifiera que si elle veut se modifierrdquo (BERGSON 2001 p 1223311) 203

Do ponto de vista de suas linhas divergentes criadas nas quais se reparte o eacutelan inicial ldquo[] une tendence

est la pousseacutee drsquoune multipliciteacute indistinctrdquo (BERGSON 2001 p 1225313)

222

por dissociaccedilatildeo ndash portanto por diferenccedila ndash do que originalmente constituiacutea uma tendecircncia

simples multiplicidade virtual e indistinta Por sua vez a lei de duplo frenesi consiste na

exigecircncia imanente a cada uma das tendecircncias criadas segundo a lei de dicotomia em

continuar-se indefinidamente exigir sua atualizaccedilatildeo ateacute o limite de uma tendecircncia criada

como linha divergente pela lei de dicotomia Bergson (2001 p 1227316) diz que cada

uma das tendecircncias exige ser realizada ateacute o seu limite mas pondera que talvez natildeo

houvesse esse extremo Encontrado esse limite virtual tendo chegado ao fundo de uma das

tendecircncias com toda a memoacuteria adquirida que isso implica voltar-nos-iacuteamos agrave atualizaccedilatildeo

da tendecircncia desprezada ndash e que permanecera agrave espera e agrave espreita ndash ateacute seu fundo204

Assim como uma inteligecircncia sobre-humana natildeo pode prever o devir histoacuterico

Bergson teraacute razatildeo em hesitar sobre a proximidade da humanidade a uma transformaccedilatildeo

miacutestica da moral A descriccedilatildeo do movimento de atualizaccedilatildeo de um impulso virtual

indiviso seu crescimento e dissociaccedilatildeo diferencial em tendecircncias autocircnomas a atualizaccedilatildeo

ateacute o fundo de uma enquanto a outra espera e espreita teria sido necessaacuteria para

compreender a questatildeo da teacutecnica e sua relaccedilatildeo com a miacutestica no acircmbito das sociedades

afrodisiacuteacas Como nunca a humanidade em geral parece buscar o luxo e o conforto por

meio da ciecircncia e das invenccedilotildees da teacutecnica responde a necessidades antigas na medida em

que cria novas que aceleram a insatisfaccedilatildeo das multidotildees Se a vida material dos homens

amplia-se significativamente entre os seacuteculos XV e XVI superando todo ideal asceacutetico que

constituiacutea a atmosfera da era medieval e fora diluiacutedo no comum dos homens eacute porque a

isso correspondem as evoluccedilotildees particulares de duas tendecircncias divergentes (BERGSON

2001 p 1230319) como se houvesse um progresso por oscilaccedilatildeo que potencialmente nos

conduziria a um retorno agrave vida simples ndash embora Bergson natildeo cesse de tratar disso como

algo aberto ao futuro e agrave sua imprevisatildeo Assim como o pensamento socraacutetico teria sido a

origem da vida cirenaica de prazeres e da vida ciacutenica de desprendimento violento

estendendo-se mais tarde no epicurismo e no estoicismo seria possiacutevel entrever uma

origem e um impulso comuns agrave sociedade afrodisiacuteaca e agrave vida simples Eacute no interior do

proacuteprio epicurismo ndash que popularmente consistiu natildeo raro na busca desenfreada de

prazeres ndash que Bergson encontra um Epicuro que desenvolveraacute o prazer supremo no

sentido da desnecessidade de prazeres205

Eacute nessas condiccedilotildees que um retorno agrave

204

ldquo[] quand on ne pourra plus avancer on reviendra avec tout lrsquoacquis se lancer dans la direction

neacutegligeacutee ou abandoneacuteerdquo (BERGSON 2001 p 1228316) 205

Esse coup drsquoœil sobre a histoacuteria das ideias resulta em que ldquo[] les deux principes sont au fond de lrsquoideacutee

qursquoon srsquoest toujours faite du bonheurrdquo (BERGSON 2001 p 1230319)

223

simplicidade natildeo seria certo por um lado mas tampouco teria algo de improvaacutevel afinal

ldquoune freacuteneacutesie apelle la freacuteneacutesie antagonisterdquo (BERGSON 2001 p 1233323)

Na medida em que pelo avanccedilo da ciecircncia superam-se necessidades antigas e

criam-se necessidades novas encontramos satisfaccedilotildees de luxo em invenccedilotildees mecacircnicas ndash a

proliferaccedilatildeo dos automoacuteveis como um luxo ostentatoacuterio o provaria suficientemente

(BERGSON 2001 p 1234324) Necessidades artificiais impulsionam ainda mais o

maquinismo embora a invenccedilatildeo mecacircnica persista um dom natural Seu progresso foi

limitado sempre pela mateacuteria e pela energia de que se aproveitava (esforccedilo muscular forccedila

do vento ou da aacutegua a energia acumulada por milhotildees de anos da hulha ou do petroacuteleo)

os saltos da teacutecnica habituaram-se a vencer distacircncias cada vez maiores na medida em que

a ciecircncia moderna integrou-se a ela e embora ciecircncia e teacutecnica possam distinguir-se

O que Bergson reprova agrave teacutecnica e ao espiacuterito de invenccedilatildeo eacute que natildeo tenham se

dirigido comumente aos interesses da humanidade inventando necessidades artificiais e

supeacuterfluas sem cessar natildeo asseguraram a satisfaccedilatildeo de necessidades mais elementares e

ainda que alterassem profundamente as relaccedilotildees capital-trabalho natildeo significaram aos

operaacuterios maior tempo de descanso e de liberdade206

Tais problemas poderiam poreacutem ser

corrigidos na medida em que a humanidade se esforccedilasse na direccedilatildeo de uma vida simples

racionalizasse a utilizaccedilatildeo do maquinismo orientada por certo misticismo e por certa ascese

(BERGSON 2001 p 1238329) A humanidade natildeo poderaacute fazecirc-lo contudo premida pela

fome e pela miseacuteria Se a miacutestica apela agrave mecacircnica eacute na medida em que para superar a

mateacuteria o homem precisa forccedilaacute-la encontrar nela um consistente ponto de apoio

(BERGSON 2001 p 1238329) Desde os instrumentos mais simples agraves maacutequinas mais

complexas e potentes que extraem seu potencial de accedilatildeo de uma energia acumulada por

milhotildees de anos todos prolongam o corpo e a inteligecircncia fabricadora com a qual a

natureza dotou o homem a teacutecnica e a mecacircnica o desenvolvem em um corpo aumentado a

exigir uma alma agrave sua altura ndash eis porque de certo ponto de vista tambeacutem a mecacircnica

parece convidar agrave miacutestica agrave constituiccedilatildeo de um suplemento de alma e a uma transformaccedilatildeo

moral capazes de preencher a distacircncia entre corpos totipotentes e as diminutas almas

humanas

206

ldquoDrsquoune maniegravere geacuteneacuteral lrsquoindustrie ne srsquoest pas assez soucieacutee de la plus ou moins grande importance des

besoins agrave satisfaire Volontiers elle suivait la mode fabriquant sans autre penseacutee que de vendrerdquo (BERGSON

2001 p 1236326) ldquo[] nous lui reprocherons [le machinisme] drsquoen avoir trop encourageacute drsquoartificiels

drsquoavoir pousseacute au luxe drsquoavoir favoriseacute les villes au deacutetriment des campagnes enfin drsquoavoir eacutelargi la distance

et transformeacute les rapports entre le patron et lrsquoouvrier entre le capital et le travailrdquo (BERGSON 2001 p

1236-1237327)

224

Mecacircnica e miacutestica natildeo seriam nesse sentido tendecircncias divergentes sujeitas agraves

leis de dicotomia e frenesi Direccedilotildees antagocircnicas originadas em um mesmo impulso

original de uma comunidade de eacutelan207

Eacute a miacutestica que permanece agrave espera e agrave espreita ndash

modo do virtual ndash enquanto nossa civilizaccedilatildeo leva a mecacircnica a seu limite e pareceraacute natildeo

parar de desenvolvecirc-lo senatildeo no limiar da cataacutestrofe Eis o que resulta da lei de dicotomia e

de duplo frenesi ldquo[] lrsquoaction en marche creacutee sa propre route creacutee pour une forte part les

conditions ougrave elle srsquoaccomplira et deacutefie ainsi le calcul On poussera donc de plus en plus

loin on ne srsquoarrecirctera bien souvent que devant lrsquoimminence drsquoune catastropherdquo

(BERGSON 2001 p 1227315) A descriccedilatildeo bergsoniana cada vez mais atual na medida

em que a mecacircnica parece conduzir-nos ainda hoje aos umbrais de uma cataacutestrofe

ambiental eacute o que estaacute a exigir uma profunda transformaccedilatildeo espiritual e moral capaz de

reunir os desiacutegnios da mecacircnica aos da miacutestica e por essa via reuni-los agrave proacutepria vida

A invenccedilatildeo coloca agrave disposiccedilatildeo do homem energias e potenciais de accedilatildeo

insuspeitados Restaria esforccedilar-se em relaccedilatildeo ao espiacuterito na direccedilatildeo da miacutestica tanto

quanto nossa civilizaccedilatildeo esforccedilou-se para dominar a mateacuteria Eis a procura pelo ldquode forardquo

capaz de fazer o homem emancipar-se da forma de vida que lhe fora atribuiacuteda pela

evoluccedilatildeo da vida assim livrar-se-aacute da proacutepria necessidade de ser uma espeacutecie Em relaccedilatildeo

a esse apelo que penetra miacutestica e devir liberaccedilatildeo e vida simples a humanidade soacute poderaacute

responder por si mesma nos termos de sua proacutepria liberdade que eacute tambeacutem a ressonacircncia

e a sobrevivecircncia do imprevisiacutevel ontoloacutegico que a constitui como tal208

A transiccedilatildeo da

alma que se abre que se prepara para cavalgar o corcel negro do devir implica o aberto

No entanto trata-se de saber como o aberto pode comunicar-se de alma a alma em que

consiste seu caraacuteter incendiaacuterio

Antes de nos encaminharmos definitivamente agraves derradeiras consideraccedilotildees da

presente seccedilatildeo antes mesmo de tornarmos evidente a relaccedilatildeo entre a transiccedilatildeo e a memoacuteria

que se insinua sem cessar sob os problemas de abrir o fechado de combater o fechamento

207

ldquoLes origines de cette meacutecanique sont peut-ecirctre plus mystiques qursquoon ne le croirait elle ne retrouvera sa

direction vraie elle ne rendra des services proportionneacutes agrave sa puissance que si lrsquohumaniteacute qursquoelle a courbeacutee

encore davantage vers la terre arrive par elle agrave se redresser et agrave regarder le cielrdquo (BERGSON 2001 p

1239331) 208

Tais satildeo as uacuteltimas linhas de Les Deux Sources em que Bergson evoca a liberdade mas tambeacutem o

potencial transespeciacutefico e biopoliacutetico da humanidade que retoma contato com o eacutelan vital (essa ldquomaacutequina de

fabricar deusesrdquo) e assumir a atitude espiritual correspondente ldquoA elle [lrsquohumaniteacute] de voir drsquoabord si elle

veut continuer agrave vivre A elle de se demander ensuite si elle veut vivre seulement ou fournir en autre lrsquoeffort

neacutecessaire pour que srsquoaccomplisse jusque sur notre planegravete reacutefractaire la fonction essentielle de lrsquounivers

qui est une machine agrave faire des dieuxrdquo (BERGSON 2001 p 1245338)

225

ou de perseverar no aberto ndash questotildees que nos encaminhavam inegavelmente a suas

transcriccedilotildees poliacuteticas no plano da democracia e dos direitos humanos ndash seria necessaacuterio

realizar um breve e derradeiro desvio a fim de compreender dinamicamente como o aberto

se comunica de uma alma a outra Com efeito pudemos compreender de maneira

esquemaacutetica as consequecircncias genuinamente praacuteticas que se dissimulam sob questotildees

aparentemente metafiacutesicas (abrir o fechado combater o fechamento perseverar no aberto)

Trata-se entatildeo de retrabalhar em detalhe alguns pontos-chave para compreender o caraacuteter

incendiaacuterio do aberto que se encontram expostos de maneira muito difusa na obra de

Bergson Esse curto desvio seraacute importante para compreender em que sentido natildeo haacute

transiccedilatildeo sem memoacuteria ndash e assumiremos aqui uma dupla articulaccedilatildeo entre os niacuteveis

psicoloacutegico e poliacutetico em que uma transiccedilatildeo se produz o que por si soacute auxiliaraacute a

esclarecer em que sentido o aberto pode ser tomado como o destino metafiacutesico de que as

transiccedilotildees poliacuteticas satildeo signo

Eacute em funccedilatildeo de uma teoria de emoccedilatildeo e de certa comunidade afetiva em

profundidade ndash que conviria chamar comunidade de eus profundos ndash que aspiraccedilatildeo

propulsatildeo e abertura satildeo mobilizados em funccedilatildeo de uma transformaccedilatildeo No entanto por

mais que seja possiacutevel pressentir sob toda abertura do estaacutetico em dinacircmico uma

comunidade de eus profundos que reemerge agrave superfiacutecie definidora das relaccedilotildees sociais

solidificadas pelo haacutebito e pelo todo da obrigaccedilatildeo propaga-se incendiariamente resfria-se

e volta a consolidar-se fechando-se sobre si mesma natildeo podemos nos brindar de antematildeo

com o que devemos demonstrar Uma comunidade de eus profundos soacute seraacute atingida no

extremo desse desvio e ao passo em que possamos esboccedilaacute-la entre as condiccedilotildees de

possibilidade da efetuaccedilatildeo de uma transformaccedilatildeo ou de uma transiccedilatildeo poliacutetica Eacute a esse noacute

problemaacutetico que as questotildees ldquocomo o aberto se comunica de alma em almardquo e ldquoem que

consiste a dinacircmica de sua propagaccedilatildeo incendiaacuteriardquo tendem a nos conduzir As

propriedades incendiaacuterias do aberto seriam muito mais do que uma bela imagem se

puderem ser explicadas dinamicamente em profundidade ligadas a uma teoria da emoccedilatildeo

criadora e a uma imitaccedilatildeo inventiva

Frisemos algo sobre o que jaacute insistimos longamente em outro momento mas que

recebeu em Les Deux Sources sua uacuteltima e definitiva distensatildeo praacutetica e poliacutetica Embora

desejemos conduzir a anaacutelise a partir do entrecruzamento entre dois niacuteveis da duraccedilatildeo ndash os

niacuteveis psicoloacutegico e poliacutetico-social ndash talvez natildeo seja demasiado ter em mente que o que

assegura essa coexistecircncia de niacuteveis eacute uma outra mais profunda e virtual e que

corresponde agrave proacutepria ontologia virtual da qual esses niacuteveis procedem Nesse sentido em

226

qualquer niacutevel em que o tomemos o que reabre o fechado o que racha o ciacuterculo descrito

pelo aparentemente natural e infinito tourner sur place que define uma forma de vida e os

coacutedigos sonambuacutelicos da moralidade estaacutetica satildeo algo como uma contraefetuaccedilatildeo virtual

que soacute se apreende em uma retomada de contato da forma com o eacutelan que eacute a condiccedilatildeo de

seu vir a ser tanto sob o ponto de vista do atual quanto do virtual O que eacute o aberto senatildeo

uma ruptura ou uma fenda na natureza naturada pela qual a duraccedilatildeo essencialmente

naturante natildeo cessa de forccedilar passagem O que Bergson define como ldquoa aberturardquo senatildeo o

conjunto de condiccedilotildees ndash entre as quais uma comunicaccedilatildeo do aberto de alma em alma ndash

pela qual eacute o devir como multiplicidade heterogecircnea e qualitativa que se comunica de

cima a baixo da ontologia agraves formas de vida do imprevisto agrave liberdade da evoluccedilatildeo das

espeacutecies ao salto inumano e sobre-humano de que o anthropos prova ser capaz na

experiecircncia miacutestica da memoacuteria elementar e ontoloacutegica que registra a passagem contiacutenua

da duraccedilatildeo agrave sua transfiguraccedilatildeo em memoacuteria psicoloacutegica e lembranccedila-imagem que torna

possiacutevel remuer la cendre do aberto A coalescecircncia entre o ontoloacutegico e os niacuteveis

psiacutequico poliacutetico-social ou histoacuterico que resta demonstrada em seus uacuteltimos termos

apenas agora ao cabo de Les Deux Sources ndash livro no interior do qual eacute uma atualizaccedilatildeo

em niacutevel do mesmo movimento que se passa em cada um desses niacuteveis na medida em que

ele eacute remissiacutevel em uacuteltima anaacutelise ao monismo poderoso e diferencial do eacutelan ndash jaacute seria

suficiente para termos presente que a origem com a qual o miacutestico toma contato designa

uma profunda forma de memoacuteria que se confunde com a integral da vida e de seus virtuais

A miacutestica designa a possibilidade de retomar o contato com essa memoacuteria cosmoloacutegica ndash

natildeo apenas bioloacutegica mas tambeacutem inorgacircnica e vital ndash e que persiste na forma de vida

humana Eis o que explica toda a centralidade da miacutestica como campo de provas no uacuteltimo

livro de jure de Bergson Essa tendecircncia que sobrevive no homem ao menos como virtual

ndash agrave espera e agrave espreita ndash soacute deseja que chegue a sua vez para que ela possa ser levada a

seu proacuteprio desespero conceitual para que tenha lugar seu desenvolvimento no sentido

mais radical para que sua linha de ruptura possa ser efetuada e conduzida a seu proacuteprio

frenesi

A fim de explicar como ela pode por um lado adormecer por duraccedilotildees muito

longas e por outro ser suscitada em duraccedilotildees muito curtas seria preciso entrever sua

relaccedilatildeo com uma teoria da emoccedilatildeo e da imitaccedilatildeo ndash nas quais tocamos apenas com as

pontas dos dedos ateacute aqui ndash em funccedilatildeo precisamente de uma espeacutecie de fenomenologia da

revoluccedilatildeo que encontraacutevamos nas Remarques Finales da obra de Bergson Nem mesmo os

mais contemporacircneos comentadores de Bergson ndash e que tentam reatualizar hoje o

227

bergsonismo como filosofia poliacutetica ndash levaram-na tatildeo longe O desafio que Bergson lanccedila

ao final do livro em tudo correlato aos devires democraacuteticos que o aberto inspirou mostra-

se paulatinamente ser algo da ordem de um desejo profundo e autecircntico virtual e

indomaacutevel puro ato de liberdade que eacute o representante psicoloacutegico de uma emoccedilatildeo

criadora de atmosfera incendiaacuteria Como explicar que certo dia homens outrora

obedientes e submissos decidam insurgir-se porque passar fome jaacute natildeo eacute mais toleraacutevel

Como natildeo enxergar nessa questatildeo a gecircnese dos proacuteprios direitos humanos como fruto do

desejo e de uma emoccedilatildeo criadora coletiva que se tornou necessaacuterio explicar ndash uma vez que

as lutas natildeo satildeo senatildeo os signos mais superficiais dessa clareira obscura e profunda que eacute o

aberto Se os direitos humanos como quisera Bergson se introduzem no mundo pela via

do protesto o desejo e a emoccedilatildeo satildeo seus precursores sombrios Cinzas que ainda fazem

rescender o perfume do aberto eles envolvem natildeo apenas um potencial emancipatoacuterio

contra a dominaccedilatildeo e a opressatildeo mas satildeo o iacutendice atual dos virtuais que sob eles

encontram-se agrave espreita agrave espera de variar formas de vida Por meio deles ou por meios

totalmente outros eacute contra o fechamento que se luta sem cessar contra a solidificaccedilatildeo da

desigualdade em haacutebito e da liberdade em coacutedigo moral

Contudo o que explicaraacute que se combata o fechamento do aberto sem cessar

Retornemos a uma distinccedilatildeo essencial entre o aberto e o fechado que se faz atravessar por

uma diferenccedila de natureza ndash e natildeo de grau Em virtude dessa diferenccedila Bergson recusava

vigorosamente a possibilidade de passar do fechado ao aberto pela via do alargamento

progressivo o amor ao Todo e a alma aberta jamais resultariam da extrapolaccedilatildeo do amor agrave

famiacutelia ou agrave paacutetria de que satildeo com efeito naturalmente capazes as almas fechadas209

Vimos a propoacutesito que todo esse contexto definia a questatildeo metafiacutesica e ao mesmo tempo

praacutetica e poliacutetica que segundo o proacuteprio Bergson constituiacutea o cerne problemaacutetico de Les

Deux Sources ndash ldquocomo abrir o fechadordquo ldquocomo reabrir o fechadordquo Sob essa questatildeo ndash

Worms bem o percebera ndash encontra-se muito mais do que uma simples questatildeo moral ou

poliacutetica destacada da ontologia210

pelo contraacuterio ela implica a ontologia bergsoniana

209

Pelo contraacuterio Antoine Janvier (2012 p 217-218) afirmaraacute que o processo de produzir difundir e

comunicar emoccedilatildeo recebe em Les Deux Sources o nome de amor mas pela vida inteira pelo Todo como a

descriccedilatildeo bergsoniana da alma aberta o provaria Cf nesse aspecto (BERGSON 2001 p 1006-100734) 210

ldquo[] o fechamento e a abertura natildeo satildeo apenas as dimensotildees morais da relaccedilatildeo da humanidade consigo

mesma mas tambeacutem as dimensotildees metafiacutesicas do homem com a vida com seu princiacutepio primeiro e com o

universo em seu conjuntordquo (WORMS 2011 p 367) ou ainda ao falar do que se encontra envolvido nos

problemas verdadeiros que Les Deux Sources desvela Worms diraacute que naquele livro ldquo[] encontraremos

natildeo apenas a gecircnese positiva da moral teoacuterica mas tambeacutem e sobretudo uma nova soluccedilatildeo para o problema

cosmoloacutegico para o problema da criaccedilatildeo que renova todo o pensamento de Bergsonrdquo (Idem ibidem p

347) Antoine Janvier (2012 p 210 e p 222) seguindo a inspiraccedilatildeo de Le Bergsonisme de Deleuze natildeo

deixa de considerar esta obra de Bergson como um desdobramento da ontologia da duraccedilatildeo em sentido

228

mesma o Todo virtual que se confunde com o eacutelan causa profunda do vir a ser do real em

sua integralidade

De outro lado sabemos o que permite no seio da forma de vida humana no

especiacutefico ciacuterculo antropoloacutegico que o aberto possa passar Se por um lado a natureza e o

instinto impotildeem o fechado e a vida social a inteligecircncia tambeacutem se introduz na estrutura

em geral do espiacuterito humano e com ela uma potecircncia de hesitaccedilatildeo que corresponde a uma

atualizaccedilatildeo de niacutevel psicoloacutegico da proacutepria imprevisibilidade ontoloacutegica da duraccedilatildeo

mesma enquanto diferenccedila consigo mesma ndash algo a que chamamos liberdade Nessa

abertura demasiado estreita em que ela se insere todo tipo de jogo se torna possiacutevel a partir

da tensatildeo constitutiva de nossa liberdade entre inteligecircncia e sociedade (DELEUZE 1966

p 112) Natildeo sem razatildeo o todo da obrigaccedilatildeo seraacute explicado pelo instinto virtual como

resistecircncia agrave resistecircncia porque o dado fundamental da inteligecircncia eacute o de resistir ao

fechamento que a natureza impotildee (BERGSON 2001 p 99113) Haacute uma indisciplina

natural nas crianccedilas porque a inteligecircncia abandonada a si mesma eacute fabricadora e

inventiva a variaccedilatildeo eacute o princiacutepio superior (supraintelectual) que natildeo cessa de ressoar nela

em um niacutevel apenas intelectual pragmaacutetico corporal atento ao presente e agraves exigecircncias da

utilidade e da vida A inteligecircncia e a invenccedilatildeo poreacutem natildeo satildeo nunca deixadas a si

mesmas ndash haacute sempre um instinto virtual que as vigia que reequilibra suas tendecircncias que

previne contra seus perigos e confabula para o social

Por outro lado ainda que o instinto virtual no homem pressione a inteligecircncia

tomando seu lugar instaura um intervalo entre accedilatildeo e reaccedilatildeo intervalo que Deleuze afirma

ser intracerebral Precisamente esse intervalo torna possiacutevel uma variaccedilatildeo de haacutebitos no

jogo entre inteligecircncia e sociedade ndash entre tendecircncias ao egoiacutesmo ao proveito individual e

pressatildeo exercida pelo todo da obrigaccedilatildeo ndash e indica dessa forma o sentido em que a

liberdade poderaacute alargar-se (JANVIER 2012 p 209) Tudo se passa como se essa

hesitaccedilatildeo duracional que a inteligecircncia implica encaminhasse ao aberto Precisamente essa

liberdade intervalar eacute o que explica certo privileacutegio do homem em relaccedilatildeo agraves demais

formas de vida do ponto de vista da evoluccedilatildeo ele seria o uacutenico capaz de encontrar no

ciacuterculo antropoloacutegico a condiccedilatildeo de ruptura e superaccedilatildeo de sua proacutepria forma de vida ndash eis

o que tornaria o homem em nossos termos o animal biopoliacutetico por excelecircncia definido

por sua potecircncia de variaccedilatildeo e invenccedilatildeo de formas de vida Natildeo por acaso Deleuze

(ibidem loc cit) diraacute que eacute toda a memoacuteria e toda a liberdade que se infiltram por esse

poliacutetico No mesmo sentido por fim ldquoLrsquoamour est [] le nom de la dureacutee saisi agrave son niveau le plus profonde

le plus fondamental []rdquo (AMALRIC 2012 p 274)

229

intervalo e se tornam atualizaacuteveis instaurando o privileacutegio da abertura no homem

indicaratildeo a sociedade aberta como limite ideal capaz de albergar por princiacutepio a

humanidade inteira e ir mais aleacutem ndash exprimir-se como amor ao Todo (BERGSON 2001 p

1202284 e ainda p 1006-100734) significado profundo da democracia

O aberto eacute o iacutendice dos devires de uma humanidade poacutes-humana na medida em que

se daacute conta de sua natureza transespeciacutefica O que a alma aberta encontraraacute no interior de si

eacute apenas a reiteraccedilatildeo do gesto constituinte da proacutepria vida assim tornava-se possiacutevel

definir a atitude miacutestica antes de tudo como uma tomada de contato e como coincidecircncia

parcial do miacutestico com a proacutepria vida (BERGSON 2001 p 1162233) Eacute portanto no

sentido do eacutelan e por extensatildeo da proacutepria ontologia virtual da qual sai o cosmos que as

almas as formas de vida e de existecircncia em comum se abrem Por essas razotildees a alma

aberta natildeo eacute um dado puro e simples da natureza sempre e jaacute atualizado mas o resultado

de um esforccedilo que desenvolve uma virtualidade copresente agrave inteligecircncia e ao instinto em

certo sentido (JANVIER 2012 p 214-215) No interior da forma de vida os virtuais de

uma alma aberta encontram-se nesse sentido prefigurados na direccedilatildeo da abertura que a

inteligecircncia indica a inteligecircncia e a variaccedilatildeo de haacutebitos que a inteligecircncia implica ao

resistir agrave pressatildeo de uma moralidade fechada satildeo indiciaacuterios de uma direccedilatildeo a seguir mas

natildeo atualizam por si mesmas nenhuma linha que dela proceda em potencial Essa linha

consiste em uma espeacutecie de apelo do virtual ldquoappel agrave la coappartenance originaire agrave lrsquoeacutelan

vitalrdquo (ZANFI 2012 p 231) ao qual respondem as individualidades excepcionais e

intuitivas dos grandes homens morais dos artistas mas tambeacutem dos miacutesticos

Se pudemos reencontrar brevemente o aberto como virtual do proacuteprio homem

essa abertura que assim se insinua constitui apenas uma das condiccedilotildees de uma

transformaccedilatildeo qualquer Eis o que nos daacute ao mesmo tempo a chave do vitalismo virtual

com que Bergson dissipa os falsos-problemas e as ilusotildees metafiacutesicas para retomar um

contato com o real211

Todo um novo esforccedilo deve constituir-se no sentido de esclarecer

sua dinacircmica que nos indica precisamente o lugar de uma teoria das emoccedilotildees e da

imitaccedilatildeo involuntaacuteria e inventiva ndash esta profundamente influenciada por Gabriel Tarde

(AMALRIC 2012 p 284)212

Perguntar-se sobre a dinacircmica segundo a qual uma

211

ldquo[] penser toutes choses en termes de dureacutee et de mouvement crsquoest-agrave-dire comme des produits de lrsquoeacutelan

vitalrdquo (JANVIER 2012 p 203) 212

A audaacutecia da cosmologia bergsoniana e de sua filosofia do devir eacute nesse sentido muito proacutexima daquela

de Gabriel Tarde para quem ldquoexistir eacute diferirrdquo A afirmaccedilatildeo que constitui a cosmologia de Tarde eacute lapidar

natildeo apenas por exprimir a precedecircncia da diferenccedila ou sua natureza infinitesimal mas por forrar o real com

a diferenccedila e submeter a proacutepria identidade a ela A aproximaccedilatildeo entre as cosmologias de Tarde e Bergson eacute

nesse particular notaacutevel ldquoExistir eacute diferir na verdade a diferenccedila eacute em um certo sentido o lado substancial

230

transformaccedilatildeo dos haacutebitos sociais dos coacutedigos morais ou das formas de organizaccedilatildeo

poliacutetica se produz eacute finalmente interrogar ldquocomo efetuar o abertordquo Eacute apenas nesse passo

que uma teoria da emoccedilatildeo criadora receberaacute em Les Deux Sources um estatuto especial

(DELEUZE 1966 p 116)

A resposta de Bergson a essa questatildeo eacute bastante clara A alma aberta natildeo estaacute

jamais dada como atual pela natureza o que a natureza assegurou foi a sociabilidade por

meio de um instinto virtual e a variabilidade dos haacutebitos em virtude da inteligecircncia Saltar

para fora da natureza naturada para fora do adquirido ldquoexige toujours un effortrdquo

(BERGSON 2001 p 100735) Sua forma de transcrever nossa questatildeo ldquocomo efetuar o

abertordquo eacute perguntar-se ldquoDrsquoougrave vient que les hommes qui en ont donneacute lrsquoexemple ont trouveacute

drsquoautres hommes pour les suivre Et quelle est la force qui fait pendant ici la pression

socialrdquo (Idem ibidem p 1007-100835) Sua resposta embora concisa natildeo seraacute menos

clara ldquoNous nrsquoavons pas le choix En dehors de lrsquoinstinct et de lrsquohabitude il nrsquoy a drsquoaction

direct sur le vouloir que celle de la sensibiliteacute La propulsion exerceacutee par le sentiment peut

drsquoailleurs ressembler de pregraves agrave lrsquoobligationrdquo (Idem ibidem p 100835)

Eis o ponto em que uma afetividade ndash cujos termos ainda estatildeo por definir ndash

encontra seu lugar no interior da filosofia moral e poliacutetica bergsoniana Aleacutem do instinto e

do haacutebito apenas a sensibilidade poderaacute interferir com o querer e eacute precisamente essa

accedilatildeo direta da sensibilidade sobre o querer que Bergson chamaraacute emoccedilatildeo (JANVIER

2012 p 215) Contudo natildeo seraacute esta uma emoccedilatildeo qualquer sua accedilatildeo direta sobre o querer

eacute algo que natildeo se confunde com a accedilatildeo do instinto ou do haacutebito ndash formulado pela

inteligecircncia mas fixado pelo instinto ndash sobre o querer A emoccedilatildeo estaacute para aleacutem disso

constitui o fora do instinto e do haacutebito consiste na libertaccedilatildeo do homem em relaccedilatildeo a todo

adquirido que natildeo a precede de modo nenhum Bergson (2001 p 101140) afirmaraacute pelo

contraacuterio que eacute sempre uma emoccedilatildeo nova o que estaacute na origem das grandes criaccedilotildees da

arte da ciecircncia ou da civilizaccedilatildeo Trata-se portanto natildeo de uma emoccedilatildeo que se segue de

uma representaccedilatildeo ou de uma ideia ndash ela jamais se definiraacute pois como intelectual ou

das coisas o que elas tem ao mesmo tempo de mais proacuteprio e de mais comum [] a identidade eacute apenas um

miacutenimo e portanto apenas uma espeacutecie e uma espeacutecie infinitamente rara de diferenccedila assim como o

repouso eacute apenas um caso do movimento e o ciacuterculo uma variedade singular da elipserdquo (TARDE 2007 p

98) Toda a cosmologia bergsoniana parece ser a prova dessa maacutexima afinal Bergson realiza um vai e vem

constante entre o espiacuterito e o mundo material perguntando se a incessante mudanccedila que experimentamos por

dentro nosso sentimento de duraccedilatildeo poderia aplicar-se agravequilo que existe em geral Testemunhando essa

proximidade entre Tarde e Bergson satildeo as proacuteprias foacutermulas cosmoloacutegicas que chegam a se tocar por

caminhos muito distintos ldquo[] pour un ecirctre conscient exister consiste agrave changer changer agrave se mucircrir se

mucircrir agrave se creacuteer indeacutefiniment soi-mecircme En dirait-on autant de lrsquoexistence en geacuteneacuteralrdquo (BERGSON 2001 p

50007)

231

infraintelectual ndash mas de uma emoccedilatildeo que eacute um estimulante do pensamento e da

invenccedilatildeo213

Trata-se de uma emoccedilatildeo que responde agrave questatildeo que Deleuze se colocava em

Diffeacuterence et Reacutepeacutetition ldquocomo engendrar pensar no pensamentordquo Deleuze encontraraacute no

teatro de Antonin Artaud uma foacutermula muito geral que natildeo deixa de transpirar certo

bergsonismo ldquoeacute preciso accediloitar nosso proacuteprio inatismordquo Artaud ndash como todo artista de

gecircnio ndash natildeo deixava de saltar tambeacutem ele agrave sua maneira e como conveacutem para fora da

natureza naturada para fora do inatismo que significaraacute para Bergson todo o adquirido

instinto virtual e inteligecircncia atenccedilatildeo agrave vida e imobilidade do pensamento

Em Bergson eacute a emoccedilatildeo criadora que accediloita nosso inatismo engendra o pensar no

pensamento e nos permite saltar para fora do constituiacutedo e do adquirido naturais ndash o

miacutestico eacute esse artista nada suicida que executa ldquoo salto vitalrdquo Natildeo sendo consecutiva nem

a uma ideia nem a uma sensaccedilatildeo tampouco a uma representaccedilatildeo a emoccedilatildeo seraacute geradora

de ideias e de pensamento definindo-se menos por elas e mais como ldquoun eacutebranlement

affectif de lrsquoacircme [] un soulegravevement des profondeursrdquo (BERGSON 2001 p 101140) A

emoccedilatildeo criadora eacute portanto duplamente irredutiacutevel ela natildeo se reduz nem agraves excitaccedilotildees

fiacutesicas superficiais ou agraves sensaccedilotildees que se produzem em um corpo nem agraves ideias e

representaccedilotildees que gera como suas expressotildees Nesse sentido Bergson (2001 p 101241)

poderaacute definir a emoccedilatildeo criadora como emoccedilatildeo supraintelectual querendo significar com

isso natildeo uma superioridade de valor mas uma anterioridade no tempo como a que se

encontra presente na relaccedilatildeo entre aquilo que engendra e aquilo que eacute engendrado O apelo

bergsoniano eacute pois o de natildeo confundir produto e produzir a emoccedilatildeo criadora

supraintelectual definida como sensibilidade profunda eacute o que engendra na medida em

que essa vibraccedilatildeo da integral da alma ldquocrsquoest bien lrsquoimprevisible mecircme qui nous saisitrdquo

(JANVIER 2012 p 215) Natildeo casualmente denotando ainda uma vez a correlaccedilatildeo entre

os devires em sentido ontoloacutegico e nos demais registros (sociais morais ou poliacuteticos por

exemplo) Yala Kisukidi realizaraacute uma releitura do estatuto do fechado e do aberto em

funccedilatildeo da teoria das multiplicidades presentes no Essai sur les donneacutees immediates de la

conscience e natildeo hesitaraacute em vincular ao fechado as multiplicidades de tipo quantitativo e

ao aberto a multiplicidade qualitativa heterogecircnea e contiacutenua que corresponde no Ensaio

agrave proacutepria duraccedilatildeo214

213

ldquo[] lrsquoinvention quoique drsquoordre intelectuel peut avoir de la sensibiliteacute pour substancerdquo (BERGSON

2001 p 101140) 214

ldquoLe clos est le reacutegne du multiple en un sens quantitatif Multipliciteacute des parties qui forment les diffeacuterents

groupes humains Chaque groupe se recconnagraveit comme Un en tant qursquoil est identique agrave lui-mecircme ndash toute

identiteacute supposant lrsquoexclusion et la deacutefense contre lrsquoeacutetranger [] Contre cette multipliciteacute particularisante

232

Assim como os atos de liberdade em profundidade tais como aparecem no Essai

satildeo raros e excepcionais a emoccedilatildeo criadora natildeo deixa de ser uma forma de afetividade

excepcional que se traduz em forccedilas de aspiraccedilatildeo (JANVIER 2012 p 216) No entanto

seriam eles atos exclusivamente individuais prerrogativas dos grandes homens morais das

individualidades excepcionais dos homens de gecircnio e dos miacutesticos Eis a questatildeo que

parece insinuar sub-repticiamente o problema da comunicaccedilatildeo do aberto entre as almas

Aleacutem de jaacute sabermos que o aberto natildeo constitui um dado natural atualizado dois

outros argumentos seratildeo suficientes para respondermos negativamente a essa questatildeo O

primeiro deles reside na circunstacircncia de a alma aberta tal como caracterizada por

Bergson depender com efeito de um esforccedilo individual mas implicar uma postura

transitiva (AMALRIC 2012 p 282) Isso se provaria ateacute mesmo metafoacuterica e

imageticamente Se Bergson insiste nas propriedades incendiaacuterias segundo as quais o

aberto se transmite a atitude vital dos iniciadores dos indiviacuteduos excepcionais constitui

apenas um foco inicial Seu destino eacute tornar-se forccedila de aspiraccedilatildeo em virtude de sua

capacidade imanente de propagar-se de tornar-se coletiva Ao responder por que as

individualidades excepcionais tecircm imitadores Bergson (2001 p 1003-100430-31) diraacute

que ldquoleur existence est un appelrdquo ndash chamado em tudo diverso da pressatildeo quase-meloacutedico

na medida em que implica uma moral integralmente diferente de uma emoccedilatildeo superior

nova e irredutiacutevel Estar na presenccedila de uma personalidade moral eacute encontrar-se por isso

mesmo na presenccedila de uma clareira aberta a fogo

No entanto em algumas passagens difusas mas decisivas veremos que a

necessidade de estar em presenccedila de uma grande personalidade moral relativiza-se

paulatinamente Em primeiro lugar porque haacute ldquo[des] heacuteros obscurs de la vie moralerdquo

(BERGSON 2001 p 47) Pouco a pouco ao lado do exemplo das grandes personalidades

morais de homens excepcionais e de grandes iniciadores encontraremos existecircncias natildeo

menos exemplares e miacutesticas muito proacuteximas de noacutes ndash mas tambeacutem individualidades

distantes podem inflamar-nos certa aspiraccedilatildeo215

Com isso Bergson quer dizer que de

algum modo eacute possiacutevel sentir no mais profundo de noacutes um eco ou uma ressonacircncia do

aberto ndash mas isso tambeacutem implica que o aberto esteja como seu eco ao alcance de todos

Em segundo lugar veremos que estar em presenccedila de uma grande personalidade

moral relativiza-se definitivamente tambeacutem em um sentido que nos permitiraacute encontrar

lrsquoouvert comme assomption drsquoune humaniteacute divine se deacutefinit selon une multipliciteacute qualitative [] elle est

dans le cadre de la philosophie morale de Bergson un effet de creacuteationrdquo (KISUKIDI 2012 p 250) 215

ldquoCe pouvait ecirctre un parent un ami que nous eacutevoquions ainsi par la penseacutee Mais ce pouvait aussi bien ecirctre

un homme que nous nrsquoavions jamais rencontreacute []rdquo (BERGSON 2001 p 100430)

233

uma transcriccedilatildeo mais psicoloacutegica do que ontoloacutegica da memoacuteria Natildeo eacute de todo preciso

estar ou ter estado na presenccedila dos grandes homens de bem porque essa presenccedila pode ser

evocada a cada instante pela memoacuteria e pela histoacuteria na medida em que elas envolvem um

ponto de vista interno agrave sua accedilatildeo Os heroacuteis obscuros da vida moral ndash adormecidos talvez

no mais profundo de noacutes mesmos (AMALRIC 2012 p 283) ndash poderatildeo manifestar sua

personalidade em noacutes a todo momento bastaraacute ldquoque nous [les] eacutevoquions ainsi par la

penseacuteerdquo que apreendamos a abertura de uma existecircncia da qual nunca fomos

contemporacircneos de uma vida que nos foi simplesmente contada (BERGSON 2001 p

100430) Nesses dois sentidos ndash o das personalidades insuspeitadamente muito proacuteximas e

o das individualidades muito distantes ndash o aberto tal como manifestado nas vidas desses

heroacuteis obscuros que natildeo cessam de enviar-nos seus apelos eacute a exemplo de sua moral

irredutiacutevel ao individual (AMALRIC 2012 p 282)

Eis o apelo que natildeo cessa de procurar um eco no coletivo como em cada um de

noacutes se o aberto se propaga de maneira incendiaacuteria eacute porque deve haver algo como uma

difusatildeo e comunicaccedilatildeo entre as almas que apenas a imitaccedilatildeo e a ressonacircncia explicariam

O que essas personalidades excepcionais saiacutedas no entanto do mais comum de noacutes

mesmos suscitam eacute uma forccedila de aspiraccedilatildeo capaz de ecoar em cada um de noacutes Em seus

atos encontramos como que um modelo da accedilatildeo que natildeo implica um caminho de todo

dado e simplesmente a trilhar mas permite a uma personalidade entrever no mais

profundo de si a projeccedilatildeo da abertura singular que uma personalidade excepcional se

tornara para ela Por mais que a imite a singularidade irredutiacutevel da personalidade ndash feita

de duraccedilatildeo ndash inibe o idecircntico A propagaccedilatildeo do aberto daacute-se sem duacutevida por imitaccedilatildeo e

mediada por almas individuais transitivas do aberto contudo a imitaccedilatildeo pela qual o aberto

se propaga e se transmite de alma em alma natildeo se reduz a uma mimeacutetica superficial Esse eacute

o sentido da figura do eco ou da ressonacircncia ndash se a emoccedilatildeo criadora eacute uma vibraccedilatildeo da

alma um seu eacutebranlement ecoaacute-la ou ressoar com ela significa vibrar-junto percuti-la no

mais profundo de noacutes mesmos ao mesmo tempo em que ela ganha a tonalidade e a

coloraccedilatildeo singulares e irredutiacuteveis da alma na qual encontrou eco

Por essa razatildeo David Amalric (2012 p 283) natildeo apenas associaraacute a propagaccedilatildeo do

aberto entre as almas agrave inspiraccedilatildeo que o conceito de imitaccedilatildeo inventiva recebe das obras de

Gabriel Tarde mas afirmaraacute tratar-se em Bergson de uma teoria da propagaccedilatildeo imitativa

Por um lado ela daraacute ao fenocircmeno da imitaccedilatildeo e da proacutepria emoccedilatildeo criadora uma

dimensatildeo afetiva ndash como um entusiasmo incendiaacuterio (BERGSON 2001 p 102659) ndash e a

um soacute tempo coletiva por outro a imitaccedilatildeo seraacute um processo que ocorre em profundidade

234

que implica como consequecircncia da proacutepria natureza criativa e profundamente duracional

de toda personalidade um coeficiente de reinvenccedilatildeo e de reapropriaccedilatildeo dessa tensatildeo que se

manifesta originalmente como a abertura dos atos e das almas das individualidades

excepcionais Finalmente eacute como se tudo se tornasse uma experiecircncia coletiva de

libertaccedilatildeo em que a consciecircncia e a representaccedilatildeo satildeo no limite inteiramente

desnecessaacuterias agrave imitaccedilatildeo que como em Tarde seraacute inventiva e involuntaacuteria (AMALRIC

2012 p 284) Assim poderemos enxergar finalmente o fenocircmeno do aberto inserido no

tecido afetivo da sociedade recondicionando parcialmente as formas do viver-junto

Bastaraacute a emoccedilatildeo criadora bastaraacute ter respirado sua atmosfera e ter penetrado uma

emoccedilatildeo para agir de acordo com ela (BERGSON 2001 p 101545) Ela natildeo eacute o efeito da

representaccedilatildeo mas geradora de ideias Ela natildeo introduz sentimentos em noacutes mas introduz-

nos no interior de emoccedilotildees verdadeiramente impessoais como o que fazem as sublimes

canccedilotildees de amor ldquoTelle musique sublime exprime lrsquoamour Ce nrsquoest pourtant lrsquoamour de

personne Une autre musique sera un autre amour Il y aura deux atmosphegraveres de sentiment

distinctes deux parfums diffeacuterents et dans le deux cas lrsquoamour sera qualifieacute par son

essence non par son objetrdquo (BERGSON 2001 p 1191-1192270)216

Eis a sociedade que se abre a que se encontra a meio caminho entre o fechado e o

aberto seu limite ideal Sabemos no entanto que o incecircndio natildeo duraraacute para sempre Logo

ele se apagaraacute e as formas de vida que o eacutelan fundia em uma potecircncia superior que se

confundia com os virtuais e com seu proacuteprio devir voltaratildeo a solidificar-se e a tocar-se

pelas bordas superficialmente como se a vida se fechasse em uma forma de memoacuteria atual

e esquecidiccedila de si mesma As vibraccedilotildees pareceratildeo ter cessado as personalidades

gloriosas desaparecido o fechado pareceraacute ter recoberto integralmente o aberto ldquoCes

deux morales juxtaposeacutees semblent maintenant nrsquoen plus faire qursquoune la premiegravere ayant

precircteacute agrave la seconde un peu de ce qursquoelle a drsquoimpeacuteratif et ayant drsquoailleurs reccedilu de celle-ci en

eacutechange une signification moins eacutetroitement social et plus largement humainerdquo

(BERGSON 2001 p 1016-101747) Tudo se converte entatildeo em estrateacutegias para

combater o fechamento Em responder ldquoO que resta quando nenhum outro devir parece

possiacutevelrdquo Se nos perguntaacutevamos ldquoComo perseverar no abertordquo colocado do ponto de

216

Bergson (2001 p 100836) diraacute ainda sobre a impessoalidade da emoccedilatildeo musical que nos introduz em

emoccedilotildees como signo do Todo ldquoQue la musique exprime la joie la tristesse la pitieacute la sympathie nous

sommes agrave chaque instant ce qursquoelle exprime Non seulement nous mais beaucoup drsquoautres mais tous les

autres aussi Quand la musique pleure crsquoest lrsquohumaniteacute crsquoest la nature entiegravere qui pleure avec elle A vrai

dire elle nrsquointroduit pas ces sentiments en nous elle nous introduit plutocirct en eux comme des passants qursquoon

pousserait dans une danse Ainsi procegravedent les initiateurs en morale La vie a pour eux des reacutessonances de

sentiments insoupccedilonneacutees comme en pourrait donner une symphonie nouvelle ils nous font entrer avec eux

dans cette musique pour que nous la traduisons en mouvementrdquo

235

vista da sociedade que acabou de fechar-se sobre si mesma esse problema transfigura a

questatildeo inicial ldquoComo reabrir o fechadordquo Eis os termos em que o combate contra o

fechamento se transcreve

Eacute a questatildeo do devir em sentido a um soacute tempo ontoloacutegico e biopoliacutetico

cosmoloacutegico e moral que nos coloca no epicentro das relaccedilotildees entre memoacuteria e transiccedilatildeo

Respondendo a ela de uma maneira muito lacocircnica e talvez por isso mesmo infinitamente

pregnante Bergson parece fundir todos os niacuteveis embaralhar todos os registros em uma

foacutermula de todo decisiva ldquoremuons la cendre nous trouverons des parties encore chaudes

et finalement jaillira lrsquoeacutetincelle le feu pourra se rallumer et srsquoil se rallume il gagnera de

proche en procherdquo (BERGSON 2001 p 101747) Poreacutem o que se encontra em jogo

nessa foacutermula Natildeo se trata de estender um pouco mais aleacutem o gozo de suas imagens

iacutegneas do aberto O que o combate contra o fechamento solicita eacute de um lado perseverar

no aberto de outro reabrir o fechado Esse combate natildeo poderia ser mais poliacutetico e vital

Ele natildeo cessa de se dissimular sob as imagens explosivas e incendiaacuterias de que Bergson

(2001 p 825-82614-15) dotou natildeo apenas o aberto mas a proacutepria liberdade e a vida em

LrsquoEacutenergie Spirituelle217

Eacute preciso procurar o tecido de sentido do qual essas imagens natildeo

satildeo senatildeo um signo do aberto da mesma forma como o remexer das cinzas natildeo deve ser

senatildeo o indiacutecio do incendiaacuterio

Prestemos atenccedilatildeo sobretudo a esta foacutermula bergsoniana lacocircnica e magistral agrave

qual David Amalric (2012 p 284-287) dedicou belas paacuteginas Remuons la cendre

Sabemos que as experiecircncias de abertura satildeo sempre efecircmeras sempre ameaccediladas pelo

fechamento ndash lembremo-nos que Bergson natildeo se cansava de dizer que o instinto vigia

Sabemos que ldquo[] apregraves chacune [des expeacuteriences qui tendent vers la socieacuteteacute ouverte] se

referme le cercle momentaneacutement ouverterdquo (BERGSON 2001 p 100532) Parte da

aspiraccedilatildeo social torna-se pressatildeo e a obrigaccedilatildeo termina por recobrir o todo O verbo

remuer conjugado sob a forma imperativa na foacutermula bergsoniana indica ao mesmo

tempo um gesto e um convite agrave accedilatildeo segundo David Amalric (2012 p 285) como se nos

dissesse ldquomecircme lorsque lrsquoouvert a eacuteteacute entiegraverement recouvert par le clos lorsqursquoil nrsquoy a

guegravere plus de personnaliteacutes exceptionelles pour les susciter agrave nouveau il est encore

possible de faire quelque choserdquo218

O que Amalric natildeo nota ndash ao menos natildeo

217

Eacute nesse sentido que Deleuze diraacute que para Bergson ldquoLa liberteacute a preacutecisement ce sens physique lsquofaire

deacutetonerrsquo un explosif lrsquoutiliser pour des mouvements de plus en plus puissantsrdquo (DELEUZE 1966 p 113) 218

Bergson afirma ainda que ldquoLe souvenir de ce qursquoelles [les acircmes mystiques] ont eacuteteacute de ce qursquoelles ont

fait srsquoest deacuteposeacute dans la meacutemoire de lrsquohumaniteacute Chacun de nous peut les revivifier []rdquo (BERGSON 2001

p 104685)

236

expressamente ndash eacute que a escolha do verbo remuer natildeo eacute acidental Com efeito remuer eacute

sinocircnimo de bouger mouvoir deacuteplacer transmite a ideia de movimento de deslocamento

de mudanccedila de lugar e portanto de um gesto que na forma imperativa flexionada na

primeira pessoa do plural faz-se coextensiva de um convite agrave accedilatildeo Assim ldquoremuonsrdquo no

contexto da foacutermula bergsoniana pode ser traduzido sem prejuiacutezo de sentido por

ldquomovamosrdquo ldquoremexamosrdquo ldquodesloquemosrdquo ldquotroquemos de lugarrdquo a cinza o que restou do

aberto No entanto remuer possui em francecircs um emprego figurado muito particular

equivalente a ldquoprovoquer de lrsquoeacutemotionrdquo ldquoemocionar-serdquo Um escritor atento agrave etimologia

como Bergson demonstrou mais de uma vez estar consciente de que ldquomouvoirrdquo e

ldquosrsquoeacutemouvoirrdquo mover e emocionar-se possuem a mesma raiz etimoloacutegica David

Lapoujade (2010 p 73) em uma passagem talvez insoacutelita ndash porque relacionada agrave intuiccedilatildeo

e agrave simpatia ndash natildeo deixou de observar essa proximidade ldquoConnaicirctre pour Bergson crsquoest

toujours entrer dans un mouvement comme on srsquoeacutemeut drsquoune meacutelodie ou comme on entre

dans une danserdquo Contudo se conhecer eacute entrar em um movimento da mesma forma como

uma melodia nos moveemociona ou como entramos em uma danccedila eacute porque ldquoIl y a

quelque chose de plus profond que notre intelligence plus profond mecircme que notre vie

affective ou eacutemotionelle crsquoest le rythme particulier de dureacutee par lequel nous entrons en

relation avec drsquoautres reacutealiteacutesrdquo (Idem ibidem loc cit) - entatildeo jaacute natildeo haveria onde nos

fechar nessa aberta claridade

Remuer la cendre eacute com efeito um princiacutepio de agitaccedilatildeo e movimento um

turbilhonamento e um convite agrave accedilatildeo mas mais profundamente um convite coletivo a

fazer rescender o perfume do tempo Se a cinza eacute o que resta quando nenhum outro devir

parece possiacutevel quando o aberto parece fechar-se e solidificar-se em haacutebito e coacutedigo

moral trata-se de remexer a cinza ndash que natildeo eacute senatildeo a memoacuteria dos atos dos miacutesticos das

grandes personalidades morais como dos heroacuteis obscuros dos iniciadores e artistas de

gecircnio ndash para revivificaacute-la (BERGSON 2001 p 101747 p 104685) A memoacuteria eacute tudo o

que resta quando nenhum outro devir parece possiacutevel ela estaacute por isso mesmo fora do

possiacutevel constitui uma potecircncia virtual memoacuteria do jamais vivido memoacuteria para o futuro

(LAPOUJADE 2010 p 21-22) Fundamento do tempo a memoacuteria nos lembra de que

mesmo a evocaccedilatildeo e a miacutemesis de uma existecircncia miacutestica que jamais conhecemos que

jamais vivemos em nossa proacutepria vida que nunca foi agida e portanto define-se pela

espera e pela espreita que satildeo modos do virtual natildeo apenas estaacute ao alcance de nossa

experiecircncia mas jamais implicaraacute uma repeticcedilatildeo pura e sim uma reapropriaccedilatildeo e uma

imitaccedilatildeo inventivas Toda rememoraccedilatildeo como toda memoacuteria ontoloacutegica e elementar

237

implica o Todo virtual que eacute o fundamento do tempo e que reabre o devir o devir e o

virtual satildeo o que passa por contrabando no menor contiacutenuo de tempo dedicado agrave

reminiscecircncia Como em Matiegravere et meacutemoire eacute a duraccedilatildeo inteira que se atualiza em cada

niacutevel de memoacuteria

Contudo um uacuteltimo problema que nos levaraacute a responder de uma vez por todas agrave

questatildeo de como o aberto se comunica de alma em alma e ainda nos ofereceraacute a antevisatildeo

do que ateacute agora sem a definir chamamos de comunidade de eus profundos Todo esse

problema resume-se em responder ldquoComo o aberto encontra-se ao alcance de nossa

experiecircncia e ao menos de direito da experiecircncia de todosrdquo Eacute nesse ponto que veremos

uma ontologia do virtual que se insinuava como causa profunda da evoluccedilatildeo e das formas

de vida reabrir-se em cosmologia infiltrar-se definitivamente nas formas que engendra

Caterina Zanfi afirma que por meio da dualidade entre aberto e fechado Bergson

introduz em Les Deux Sources uma forma de sociabilidade que natildeo se constitui como

desdobramento do haacutebito e das convenccedilotildees utilitaacuterias mas sim um novo tipo de

sociabilidade ldquoqui puise dans une source plus profonde racine de la coappartenence et de

la solidariteacute des ecirctres fondement plus profond de la intersubjectiviteacuterdquo (ZANFI 2012 p

231) Essa nova forma de sociabilidade esboccedila-se em uma passagem senatildeo prematura de

todo insoacutelita em que Bergson deduz da incomensurabilidade da personalidade do eu

profundo para com todos os demais mas tambeacutem de sua irredutibilidade agraves figuras sociais

do eu superficial a potecircncia de um equiliacutebrio social superior Sabemos que o eu superficial

ndash progenitura do espaccedilo do soacutelido e da inteligecircncia natural ndash eacute desde o Essai a parcela

socializada de noacutes mesmos mas tambeacutem a mais inautecircntica e submissa Ao questionar o

indiviacuteduo em sociedade eacute o indiviacuteduo integral em que o superficial coexiste com o

profundo que o constitui como uniatildeo coesa No entanto se o eu superficial explica a

obrigaccedilatildeo e a moral fechada natildeo explicaraacute a liberdade ou a alma que se abre Por essa

razatildeo Bergson (2001 p 98607) pergunta prefigurando esse novo tipo de sociabilidade

em profundidade de que falou Caterine Zanfi ldquoSrsquoinstaller dans cette partie socialiseacutee de

lui-mecircme est-ce pour notre moi le seul moyen de srsquoattacher agrave quelque chose de solide

Ce le serait si nous ne pouvions autrement nous soustraire agrave une vie drsquoimpulsion de

caprice et de regretrdquo Insinua-se portanto uma outra forma de solidez e solidariedade

social que natildeo a superficial ldquo[] au plus profond de nous-mecircmesrdquo Bergson continua ldquosi

nous savons le chercher nous deacutecouvrirons peut-ecirctre un eacutequilibre drsquoun autre genre plus

deacutesirable encore que lrsquoeacutequilibre superficielrdquo

238

Estariacuteamos diante pois de dois tipos de equiliacutebrio a que correspondem dois tipos

de sociabilidade um superficial outro profundo De acordo com a imagem das plantas

aquaacuteticas que Bergson evoca eacute possiacutevel encontrar estabilidade e solidez em ambos os

sentidos na superfiacutecie a reuniatildeo das folhas permite que umas apoiem-se nas outras mas eacute

em profundidade que cada uma encontra-se firmemente enraizada a um solo comum Haacute

sem duacutevida uma sociedade superficial pela qual cada um manteacutem-se unido aos demais em

razatildeo da pressatildeo exercida por um conjunto impessoal de comandos morais que

correspondem agrave sociedade fechada O novo sentido de nossa vida social que Bergson

introduz pela imagem das plantas aquaacuteticas que se enraiacutezam em um solo comum constitui

esse novo sentido o que chamamos de comunidade de eus profundos na qual ldquo[] dans

lrsquoenracinement dans la vie commun agrave tous les individus on trouve la source meacutetaphysique

de la socialiteacuterdquo (ZANFI 2012 p 231)

Que Bergson se limite agrave imagem das plantas aquaacuteticas enraizadas a um solo comum

da mesma forma como indiviacuteduos estatildeo em profundidade enraizados ao mesmo eacutelan que

eacute a fonte de toda sociabilidade e invenccedilatildeo poliacutetica natildeo se trata de uma metaacutefora inerme e

sem maiores consequecircncias Ela atesta a correlaccedilatildeo entre o ontoloacutegico e todos os demais

niacuteveis de produccedilatildeo da vida de suas formas e de seus acontecimentos materiais ou

espirituais sobre a qual natildeo cessamos de insistir Natildeo casualmente Caterina Zanfi adverte

que a forccedila de uma transformaccedilatildeo manifesta-se sobretudo no indiviacuteduo mas ela eacute

transitiva e tende a tornar-se aspiraccedilatildeo chamado de heroacuteis obscuros da moral na medida

em que ldquofait appel agrave la coappartenence originaire de lrsquoeacutelan vital qui justifie lrsquoaccessibiliteacute

ideacutealement universal agrave ce renouvellement mecircmerdquo (ZANFI 2012 p 231-232) Com efeito

ideacutealement significa aqui de direito Eacute a dimensatildeo profunda da duraccedilatildeo a consistecircncia

virtual de uma memoacuteria elementar que faz o tempo passar que constituiacutea a condiccedilatildeo da

simultaneidade de fluxos atuais e que nesse plano eacute a condiccedilatildeo virtual da comunicaccedilatildeo

em profundidade da emoccedilatildeo criadora de sua propagaccedilatildeo incendiaacuteria e independente tanto

do instinto quanto do haacutebito das ideias como das representaccedilotildees Eis o que o acordo entre

os miacutesticos ndash que testemunham pontos de partida e chegada comuns ndash mas tambeacutem a

dimensatildeo de uma consciecircncia preacute-individual e preacute-subjetiva que garantia a simultaneidade

de fluxos atuais asseguram (ZANFI 2012 p 232 BERGSON 2001 p 1184261)

Eacute certo que Deleuze (1966 p 115-117) havia localizado a emoccedilatildeo criadora

bergsoniana em um intervalo intercerebral resultante dos jogos de invenccedilatildeo entre a

inteligecircncia e a sociedade e que a hesitaccedilatildeo da inteligecircncia natildeo seria senatildeo a imitaccedilatildeo

singularizante de uma hesitaccedilatildeo superior da duraccedilatildeo nas coisas A liberdade entatildeo soacute eacute

239

dada como resistecircncia A pressatildeo e o todo da obrigaccedilatildeo como resistecircncia agraves resistecircncias

satildeo infinitamente desdobradas nesse jogo Tudo se passa como se nesse intervalo viesse

atualizar-se em certos niacuteveis psicoloacutegicos mas tambeacutem sociais e poliacuteticos ndash que coexistem

com o Todo virtual do qual dependem ndash uma imensa memoacuteria cosmoloacutegica

Encontrariacuteamos desse modo a forma de solidariedade e o solo mais proacuteprio no qual estaacute

enraizada uma comunidade de eus profundos que encontra no aberto seu limite de direito

Bergson por sua vez apresenta prefiguraccedilotildees de que uma comunicaccedilatildeo incendiaacuteria

instala-se em profundidade e eacute ao mesmo tempo a fonte original de toda transformaccedilatildeo

social e poliacutetica Ela eacute a fonte ontoloacutegica de toda fenomenologia da revoluccedilatildeo espeacutecie de

uacuteltima resposta para aleacutem da qual nada haacute a procurar (JANVIER 2012 p 221) para

justificar uma mudanccedila na reparticcedilatildeo de nossos desejos que por ser um prolongamento da

proacutepria vida eacute indeterminada e imperceptiacutevel A arte e a miacutestica colocam-nos cada uma agrave

sua maneira no interior de uma emoccedilatildeo permitem perceber que a emoccedilatildeo criadora

estabelece-se constitui certa atmosfera instala-se em uma comunidade de eus profundos e

propaga-se de alma em alma como o aberto Assim a criaccedilatildeo artiacutestica que inicialmente

choca pode terminar por alterar o proacuteprio gosto do puacuteblico A obra expressatildeo da criaccedilatildeo ndash

ao mesmo tempo forccedila e mateacuteria ndash pode operar essa transformaccedilatildeo na medida em que ela

imprime um eacutelan que o artista comunicou que se confunde com aquele do artista que

permanece invisiacutevel e presente nele (BERGSON 2001 p 103875) O miacutestico instaura

essa mesma comunicaccedilatildeo em profundidade Ocorre agraves personalidades miacutesticas o mesmo

que sucede aos artistas de gecircnio que produzem obras que nos ultrapassam (Idem ibidem p

1157226)

Nada aleacutem de uma comunidade de eus profundos que se compotildee com a atmosfera

de uma emoccedilatildeo criadora que comunica o aberto de alma em alma como um entusiasmo

incendiaacuterio de uma verdadeira comunidade espiritual amorosa e ilimitada pode explicar

que homens ateacute outro dia humildes e submissos tenham resolvido repentinamente natildeo

mais querer morrer de fome criar direitos que exprimem um amor tatildeo universal aos

homens quanto a emoccedilatildeo criadora que ambienta a comunidade de eus profundos que natildeo

se confunde em nenhum grau com uma famiacutelia um grupo social ou uma paacutetria mas

testemunha um universalismo imanente ao Todo vital O aberto o devir e a ruptura que os

periacuteodos revolucionaacuterios datildeo a ver satildeo apenas o desdobramento no niacutevel poliacutetico de uma

criaccedilatildeo ontologicamente mais profunda que natildeo cessa de se produzir no universo Sua

moral realiza-se no caminho inverso ao da natureza em tudo contraposto ao fechado a

moral aberta eacute incompatiacutevel com a segregaccedilatildeo a hierarquia a disciplina e a guerra Em

240

tudo imanente agrave proacutepria vida a moralidade e as almas abertas compreendem o Todo o

virtual A democracia os direitos humanos o universalismo eacutetico e a paz tornam-se formas

de perseverar no aberto de combater o fechamento em seu proacuteprio terreno ndash embora

incessantemente ameaccediladas por ele Nesse extremo virtual ao qual tendem a intuiccedilatildeo

miacutestica e a comunidade de eus profundos poreacutem jaacute natildeo encontraremos nada semelhante

ao homem A comunidade de eus profundos consiste nos virtuais jamais vividos por nossos

eus superficiais mas coexistentes com eles Profundamente pessoais os virtuais do eacutelan

testemunham a um soacute tempo a presenccedila do impessoal em noacutes do advento de uma

humanidade divina do super-homem que o artista toca pelas bordas e que o miacutestico jaacute

pode ser inteiramente ndash espeacutecie que superou o homem que se compotildee de uma soacute

singularidade centelha obscura do aberto incecircndio no tecido cerrado e gris das formas de

vida

Na medida em que esclarecemos esse novo tipo de sociabilidade a comunidade de

eus profundos como substrato afetivo-espiritual inconsciente ou como fonte transicional

torna-se necessaacuterio compreender os termos praacuteticos e poliacuteticos em que ela se desdobra

Embora permaneccedilamos atentos agrave correlaccedilatildeo entre uma ontologia do virtual e seus

desdobramentos em uma filosofia poliacutetica os temas da transiccedilatildeo e do aberto ndash como os

papeis que a democracia e os direitos humanos assumiratildeo na filosofia poliacutetica bergsoniana

ndash revelaratildeo ao cabo o uacuteltimo niacutevel em que a memoacuteria constitui condiccedilatildeo necessaacuteria agrave

transiccedilatildeo poliacutetica em sentido institucional e social Em profundidade nos niacuteveis mais

puramente ontoloacutegicos vimos a memoacuteria confundir-se ao infinito com um virtual que eacute o

proacuteprio tecido sobre o qual os atuais se bordam isolamos uma memoacuteria elementar e

ontoloacutegica que constituiacutea o fundamento do passar do tempo que registrando os fluxos

duracionais sem cessar rompia o ciacuterculo do presente no qual o atual encontrava-se

enodado e o empurrava no sentido do devir O que temos ateacute aqui eacute uma coleccedilatildeo de

diversos niacuteveis ou de diversos fluxos coexistentes graccedilas ao virtual do qual procedem

desse movimento universal que coincide com o da proacutepria vitalidade inorgacircnica do eacutelan de

seus virtuais da potecircncia diferencial de sua multiplicidade heterogecircnea

Nesse quadro vimos a proacutepria liberdade surgir como o representante psicoloacutegico ou

poliacutetico-social de um operador mais profundo ndash o imprevisto ontoloacutegico que a duraccedilatildeo

implica Toda transformaccedilatildeo social coletiva natildeo deriva como pudemos perceber de outra

fonte A figura impessoal e preacute-individual do miacutestico constitui sua prova implicando uma

moralidade de aspiraccedilatildeo e supraintelectual eacute a proacutepria forma de vida da espeacutecie a natureza

241

naturada que o miacutestico supera isso contudo natildeo eacute possiacutevel senatildeo a partir do contato com

o eacutelan vital com o precursor sombrio do devir que sob a forma do amor universal e de

uma emoccedilatildeo criadora que se transmite de alma em alma que faz seus apelos ao mais

profundo de noacutes mesmos e natildeo cessa de procurar por ressonacircncias eacute uma forma de afeto

do proacuteprio tempo

Eacute pelo proacuteprio tempo que uma forma de vida se deixa afetar em profundidade para

entrar em um devir O mesmo vale para qualquer transformaccedilatildeo social para toda transiccedilatildeo

No entanto resta explicar como a democracia e os direitos humanos podem constituir no

bergsonismo formas de perseverar duravelmente no aberto Seria preciso encontrar o

limite da questatildeo ldquocomo perseverar no abertordquo ldquocomo combater o fechamentordquo

interrogando aquilo que eacute mais proacuteprio da Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo a transcriccedilatildeo dos

problemas do aberto em dispositivos concretos e em estruturas institucionais Eis o que nos

coloca diante de um aparente paradoxo procurar modos duraacuteveis de perseverar no aberto

natildeo implicaria coagulaacute-lo em uma forma fazecirc-lo fechar-se sobre si No limite natildeo

estariacuteamos combatendo o fechamento com mais fechamento Satildeo precisamente essas

questotildees que exigem descer aos desdobramentos praacuteticos e poliacuteticos da metafiacutesica vital e

virtual de Bergson Tais desdobramentos revelaratildeo natildeo apenas a relaccedilatildeo entre uma moral

universal imanente e concreta com a democracia e os direitos humanos mas a centralidade

destes uacuteltimos para a produccedilatildeo de transformaccedilatildeo social Ao mesmo tempo seraacute possiacutevel

compreender de que maneira a memoacuteria das violaccedilotildees de direitos humanos as narraccedilotildees da

violecircncia ndash em niacuteveis social e institucional ndash podem encontrar-se no coraccedilatildeo dos devires

sem os quais nenhuma transiccedilatildeo se produz Eacute no sentido desse desdobramento derradeiro e

limiar que devemos conduzir nossa investigaccedilatildeo

Caso se compreenda a exemplo de Bergson a ldquosociedade que se abrerdquo como a

realidade da maior parte das sociedades compostas de um misto de tendecircncias ao

fechamento e agrave abertura seraacute possiacutevel revelar que uma questatildeo praacutetica e poliacutetica se destaca

na anaacutelise da sociedade fechada e se relaciona com a subsistecircncia de uma tensatildeo natural ao

fechamento ldquo[] puisque les tendences de la socieacuteteacute close nous ont paru subsister

indeacuteracinables dans la socieacuteteacute qui srsquoouvre puisque tous ces instincts de discipline

convergeaient primitivement vers lrsquoinstinct de guerre nous devons nous demander dans

quelle mesure lrsquoinstinct originel pourra ecirctre reacuteprimeacute ou tourneacutee []rdquo (BERGSON 2001 p

1220307) O que estaacute no coraccedilatildeo da filosofia poliacutetica bergsoniana aparece entatildeo muito

claramente trata-se de encontrar na moral de aspiraccedilatildeo que o aberto implica e para a qual

empurra as almas que se abrem uma possibilidade de superar a forma de sociabilidade

242

produzida de acordo com a natureza e com o instinto virtual que vigia as variaccedilotildees da

inteligecircncia De seu ponto de vista mais concreto e praacutetico trata-se de transformar a ordem

social das organizaccedilotildees humanas na medida em que elas satildeo atravessadas por um misto de

tendecircncias ao aberto e ao fechado (KISUKIDI 2012 p 246) A tendecircncia ao fechamento

aprisiona o homem no interior das formas de sociabilidade superficiais em formas de

organizaccedilatildeo e em modos de vida jaacute adquiridos de outro lado a tendecircncia agrave abertura renova

as alianccedilas entre homem e virtual e quebrando o ciacuterculo antropoloacutegico no interior do qual

a natureza o concebeu permite-lhe reencontrar sua destinaccedilatildeo metafiacutesica ao mesmo tempo

em que coloca em jogo suas formas de vida seus modos de existecircncia e relaccedilatildeo social

Na medida em que o aberto impulsiona o homem para aleacutem de si mesmo seraacute na

direccedilatildeo do eacutelan do qual procede ndash contraefetuaccedilatildeo virtual ndash mas tambeacutem na direccedilatildeo do

Todo por meio de processos de atualizaccedilatildeo que criam as linhas nas quais essa nova

tomada de contato com o eacutelan vital iraacute dividir-se e atualizar-se ateacute certo limite A alma que

se abre em direccedilatildeo ao Todo diz Bergson vai mesmo muito longe Natildeo se confunde com

uma alma fechada que ama sua famiacutelia sua paacutetria os grupos sociais aos quais pertence ou

afirma cumprir as foacutermulas vazias superficialmente universais a alma que se abre goza de

um amor que se estende a toda a humanidade a toda a natureza aos virtuais inorgacircnicos da

proacutepria vida (BERGSON 2001 p 1006-100734) Sob o aberto pulsa uma eacutetica

universalista em profundidade capaz de explicar a correlaccedilatildeo entre as transformaccedilotildees

sociais e a consolidaccedilatildeo da democracia e dos direitos humanos

Contudo prestemos atenccedilatildeo a essa alma que se abre por um momento e vejamos

se natildeo encontramos nela a atitude miacutestica que exprime a continuidade do eacutelan vital da qual

ela mas tambeacutem toda a espeacutecie humana procede finalmente Tanto o indiviacuteduo como a

espeacutecie humana representam interrupccedilotildees momentacircneas do eacutelan criador sua parada diante

de um obstaacuteculo A centralidade da figura do miacutestico explica-se em virtude do que sua

experiecircncia demonstra finalmente ndash a possibilidade da abertura da conversatildeo do estaacutetico

em dinacircmico da dissoluccedilatildeo da forma em energia da reabertura do que parecia fechado Se

mais aleacutem Bergson poderaacute convidar agrave accedilatildeo aqueles que experimentam um tempo de

fechamento praticamente absoluto dizendo ldquoRemuons la cendrerdquo exaltando os heroacuteis

obscuros da moral ou as narrativas de vidas de homens memoraacuteveis que jamais

conhecemos eacute porque recuperamos as existecircncias miacutesticas naquilo que elas tem de

poderosamente impessoal no ponto em que uma vida se confunde com um modo de

subjetivaccedilatildeo em ato com a efetuaccedilatildeo de um prolongamento do eacutelan vital com o qual

tomou contato Essa superaccedilatildeo de si ndash de que todo indiviacuteduo eacute capaz no limite ao menos

243

de jure ndash soacute eacute possiacutevel como acesso a uma comunidade de eus profundos capaz de

conceber uma outra forma de relaccedilatildeo social que jaacute natildeo se confunde com nenhum niacutevel

comunitaacuterio superficial (famiacutelia paacutetria foacutermulas universalistas abstratas e descarnadas

tampouco impeacuterio territoacuterio classe social ou gecircnero) Ao lado dos laccedilos profundos que

nos remetem a um eacutelan comum agrave metafiacutesica da criaccedilatildeo da qual todos tomamos parte em

profundidade haacute sempre o modo de subjetivaccedilatildeo que constitui um universal na sua

diferenccedila e uma diferenccedila em seu universal Eacute nesse sentido que Yala Kisukidi (2012 p

247) afirmaraacute que eacute o miacutestico como sujeito sem identidade que permitiraacute natildeo apenas uma

teoria do impessoal mas a refundaccedilatildeo do universalismo moral bergsoniano de acordo com

uma metafiacutesica da criaccedilatildeo O miacutestico eacute portanto a figura paradigmaacutetica do sujeito sem

identidade ndash que natildeo designa nada aleacutem do eu profundo em continuidade com o real

compreendido como criaccedilatildeo de imprevisiacutevel novidade (KIDUSIKI 2012 p 248)219

Com efeito eacute preciso compreender de um lado que o universalismo bergsoniano

natildeo estaacute jamais dado natildeo eacute desde sempre atual Assim como a abertura de uma alma o

universalismo exige o esforccedilo de uma criaccedilatildeo de si por si mesmo de uma abertura de si ao

impessoal que designa jaacute o Todo com seus virtuais O que estaacute dado pela natureza o que

eacute sempre jaacute atual eacute a pulsatildeo de fechamento e o haacutebito de contrair haacutebitos a autoridade a

hierarquia e o fixismo a guerra e as formas cerradas de sociabilidade que natildeo cessam de

vigiar as variaccedilotildees virtuais em que o tecido social se engaja e entreteacutem Seu fundamento

tampouco seraacute racional e esclarecido na medida em que ele pulsa do proacuteprio eacutelan vital a

razatildeo constitui apenas uma faculdade na qual as tendecircncias inteligentes depuseram o eacutelan

assim como natildeo pode explicaacute-lo natildeo pode explicar um universalismo que encontra nele

seu enraizamento imanente e profundamente ontoloacutegico

O universalismo moral bergsoniano dependeraacute desse modo integralmente de uma

metafiacutesica da criaccedilatildeo contudo sabemos que a criaccedilatildeo implica pelo menos duas metades

uma atual e outra virtual A criaccedilatildeo em ato a pura exigecircncia de criaccedilatildeo que se confunde

com o proacuteprio eacutelan vital encontra-se sem duacutevida no registro do virtual aquilo que eacute

criado segundo sua proacutepria linha divergente que parte do virtual e cria a si mesma em

seus proacuteprios termos designa uma expressatildeo dessa energia criadora (KISUKIDI 2012 p

248-249) De modo anaacutelogo Deleuze (1966 p 117-118) teraacute descoberto na emoccedilatildeo

criadora trecircs sentidos da criaccedilatildeo 1) enquanto ela exprime a criaccedilatildeo em sua totalidade 2)

219

ldquoLe mystique appelle au deacutepassament des deacuteterminations de lrsquoespegravece []rdquo (KISUKIDI 2012 p 249) ou

ainda ldquo[] lrsquoespegravece humaine est traverseacutee par lrsquouniteacute drsquoun courant qui lrsquoappelle agrave se deacutepasser en se recreacuteantrdquo

(Idem ibidem p 251)

244

enquanto ela cria a obra na qual se exprime 3) enquanto ela comunica essa variabilidade

inventiva de alma em alma o que implica descobrir sob a criaccedilatildeo uma espeacutecie de

memoacuteria coacutesmica capaz a cada vez de encarnar-se em emoccedilatildeo e de comunicar ndash e de

sempre tornar a comunicar ndash o eacutelan Assim como a memoacuteria pura servia-se do jogo

intervalar entre excitaccedilatildeo e reaccedilatildeo para insinuar-se em lembranccedilas-imagens a memoacuteria

coacutesmica do eacutelan serve-se do jogo intervalar entre pressatildeo e resistecircncia para romper o

ciacuterculo social que prende o indiviacuteduo a determinadas formas de vida220

A memoacuteria eacute pois

em cada um dos niacuteveis em que se atualiza integralmente sempre profundamente vital

Assim se o que Yala Kusikidi chamou de ldquouma refundaccedilatildeo da moral universalrdquo no interior

da filosofia poliacutetica de Bergson soacute pode ocorrer em funccedilatildeo de uma metafiacutesica da criaccedilatildeo ndash

mesmo porque o universalismo jamais eacute um a priori natildeo se encontra jamais natural ou

biologicamente dado ndash seraacute forccediloso reconhecer que o universalismo soacute pode consistir em

um efeito de criaccedilatildeo221

Poreacutem em que sentido deve-se compreender esse universalismo ligado ao

paradigma subjetivo nomaacutedico que eacute o miacutestico Que ele natildeo seja a priori e racional mas o

efeito afetivo de uma criaccedilatildeo jaacute pode fazer-nos entrevecirc-lo como concreto e imanente agrave

vida Assim como a figura nocircmade do miacutestico efetua em sua proacutepria existecircncia um

universalismo que eacute o efeito de uma criaccedilatildeo ndash que dissolvendo sua identidade individual e

de grupo descortina a comunidade de eus profundos que ele jaacute integra e que natildeo se

ressente de nenhum dos limites impostos pelo fechamento (impeacuterio paacutetria classe famiacutelia

ou gecircnero) ndash poderia haver em um niacutevel coletivo um universalismo concreto e imanente

agrave proacutepria vida como efeito de uma criaccedilatildeo e de uma emoccedilatildeo coletivas que encontram na

comunidade de eus profundos o solo comum impessoal no qual um novo tipo de

sociabilidade e de equiliacutebrio superiores poderiam ser encontrados Nesse ponto a

dissoluccedilatildeo das identidades individual e de grupo assinala a coincidecircncia entre o impessoal

e o universal

No entanto seria ainda o caso de perguntar se essa moral universal concreta e

imanente que encontra no impessoal o traccedilado dos destinos metafiacutesicos da proacutepria

humanidade consegue verdadeiramente desprender-se das contingecircncias em que parece

originar-se Em outras palavras como o misticismo cristatildeo ndash que Bergson como vimos

220

ldquoEt qursquoest-ce que crsquoest que cette eacutemotion creacuteatrice sinon preacuteciseacutement une Meacutemoire cosmique qui

actualise agrave la fois tous les niveaux qui libegravere lrsquohomme du plan qui lui est propre pour en faire un creacuteateur

adeacutequat agrave toute le mouvement de la creacuteationrdquo (DELEUZE 1966 p 117) 221

ldquoLrsquouniversel nrsquoest jamais donneacute mais est toujours le produit drsquoun effet de creacuteationrdquo (KISUKIDI 2012 p

250)

245

reputa ser o misticismo completo ndash eacute mais miacutestico que cristatildeo mais impessoal e universal

que contingencial Metodologicamente Bergson soacute se aproxima do misticismo cristatildeo

para reputaacute-lo a experiecircncia miacutestica completa por excelecircncia na medida em que ele possa

dissociar-se dos conteuacutedos de crenccedila proacuteprios ao catolicismo A miacutestica eacute uma experiecircncia

de retomada de contato com o eacutelan vital e natildeo haacute nenhum conteuacutedo de crenccedila a procurar

para aleacutem disso pois eacute a experiecircncia suprema universal (ao alcance de todos de jure) que

promove a coincidecircncia parcial de nossa vida com algo que nos excede em potecircncia ndash

chamemo-lo Deus ou eacutelan vital Nesse aspecto haacute uma distinccedilatildeo bastante precisa que

permite ao bergsonismo utilizar-se das experiecircncias miacutesticas cristatildes independentemente da

mateacuteria religiosa contingente e particular sobre a qual ela parece aplicar-se (KISUKIDI

2012 p 253) Que certa experiecircncia miacutestica seja aparentemente cristatilde estabeleccedila-se no

sentido do cristianismo de seus textos e conteuacutedos de crenccedila a impessoalidade e o

nomadismo miacutesticos provariam sem cessar o seu poder de passar-se do particular do

contingente e dos seus siacutembolos atingindo no contato com o eacutelan uma universalidade

puramente concreta e imanente agrave proacutepria vida Para Bergson evangeacutelico quer dizer em

profundidade universal assim como divino quer dizer virtual e vital Outra interpretaccedilatildeo

tornar-se-ia aporeacutetica na medida em que o misticismo soacute toca o eacutelan porque contraefetua

sua proacutepria forma contingencial o dado atualmente como efeito de um esforccedilo e de uma

criaccedilatildeo em profundidade Atingimos portanto no misticismo a diferenccedila profunda

inteiramente indiferente agraves diferenccedilas superficiais Nesse contexto de nenhum outro modo

impessoal e universal poderiam confundir-se ao infinito de nenhuma outra maneira o

particular superficial (identidades grupos) poderia ser absorvido no Todo universal que o

virtual designa

Disso decorre como Yala Kisukidi (2012 p 254) bem percebe que natildeo haja um

modelo abstrato nem mesmo o derivado de uma faculdade reacutegia de humanidade no

universalismo bergsoniano Uma vez que o destino metafiacutesico imanente do homem seja

precisamente o super-homem natildeo haveraacute nenhum humanismo intraespeciacutefico definidor do

amor ao Todo Definir uma humanidade por outro termo senatildeo o indefinido e talvez vago

aberto seria recair em construccedilotildees antropoloacutegicas artificiais tendentes precisamente agravequilo

que o aberto desejava conjurar na natureza (a exclusatildeo a dominaccedilatildeo a guerra)

Se pudemos revelar um quadro eacutetico do qual o aberto participa no sentido de um

universalismo concreto e imanente agrave proacutepria criaccedilatildeo trata-se de diagnosticar de que

maneira o aberto pode ser transcrito em termos praacuteticos e poliacuteticos investigando de que

forma a democracia e os direitos humanos encontram aiacute sua inserccedilatildeo O espaccedilo poliacutetico das

246

sociedades concretas natildeo eacute integralmente fechado ou aberto estes satildeo limites puros ideais

ou metafiacutesicos designam antes tendecircncias que efetuaccedilotildees nuas de tal modo que o espaccedilo

poliacutetico seraacute definido mais em funccedilatildeo do misto das duas tendecircncias que de apenas uma

delas Se sociedades concretas estatildeo mais proacuteximas portanto de sociedades que se abrem

do que de sociedades pura e simplesmente fechadas ou abertas ndash limites ideais aos quais as

formas de relaccedilotildees coletivas satildeo incessantemente puxadas

Todo devir democraacutetico seraacute explicado nesses termos a partir de um duplo

registro a comunidade de eus profundos por um lado e por outro uma emancipaccedilatildeo da

natureza O que constitui a condiccedilatildeo de possibilidade de uma accedilatildeo poliacutetica que visa agrave

transformaccedilatildeo social em geral agravequilo que chamamos de transiccedilatildeo ndash a emoccedilatildeo criadora que

ecoa na comunidade de eus profundos e reabre o que permanecera ateacute entatildeo fechado ndash

vem unir-se a uma tendecircncia de emancipaccedilatildeo da natureza que soacute pode efetuar-se na medida

em que o homem resiste a ela em que o profundo resiste a perseverar no social e no

superficial que o define222

Bergson natildeo deixou de entrever desde o iniacutecio de Les Deux

Sources que a emancipaccedilatildeo humana em relaccedilatildeo agrave natureza naturada e agraves formas de

existecircncia e de sociabilidade que ela implica Se Bergson (2001 p 98607) pudera dizer

que o indiviacuteduo pertence tanto agrave sociedade como a si mesmo fora para mostrar a

coexistecircncia diferencial entre dois ritmos um que define as ilusotildees de um sujeito fixo que

se resolve na camada mais superficial de uma identidade forjada em funccedilatildeo e por forccedila das

convenccedilotildees sociais outro que define a verdade sombria de um sujeito integralmente

constituiacutedo pelos tempos da memoacuteria e do devir e que como tal toma parte na

comunidade universal de eus profundos como uma comunidade que vem Pertencendo a si

mesmo em profundidade o indiviacuteduo torna-se o portador do novo anunciador da ruptura e

precursor das emergecircncias do profundo que contraefetua e dissolve o superficial

ldquoLrsquoindividu qui fait partie de la socieacuteteacute peut infleacutechir et mecircme briser une neacutecessiteacute qui

imite celle-lagrave [de lrsquoorganisme]rdquo (BERGSON 2001 p 98507) Que o eu bergsoniano

esteja sujeito a um duplo regime o do si e o do social pontos em que ele eacute ora vitalidade

inorgacircnica selvagem ora organizaccedilatildeo sob uma forma cortecircs e sociaacutevel eacute apenas a tensatildeo e

a resistecircncia do profundo em relaccedilatildeo ao superficial que explicaraacute a passagem do superficial

222

A comunidade de eus profundos que emerge de uma divisatildeo do sujeito jaacute presente no Essai eacute pressentida

por Yala Kisukidi (2012 p 258) como o que integra a proacutepria condiccedilatildeo de possibilidade de uma accedilatildeo poliacutetica

visando agrave transiccedilatildeo ldquoEn effet la condition de possibiliteacute drsquoune action politique visant la transformation de

lrsquoorganisation sociale et une certaine forme drsquoeacutemacipation de la nature srsquoarticule autour drsquoune theacuteorie de la

division du sujet reprenant la division entre le moi social et le moi profond deacutevelopeacutee dans lrsquoEssai sur les

donneacutees immeacutediates de la consciencerdquo

247

ao profundo ldquoCrsquoest cette reacutesistance qui se meut en action et rend possible lrsquoouverture des

socieacuteteacutesrdquo (KISUKIDI 2012 p 259)

Por essa razatildeo insistimos tatildeo longamente nos conceitos de emoccedilatildeo imitaccedilatildeo e

criaccedilatildeo como essencialmente ligados agrave possibilidade de um trabalho coletivo de resistecircncia

agrave natureza naturada Sua dimensatildeo coletiva explica-se ontologicamente A comunidade de

eus profundos natildeo eacute apenas o ponto em que o impessoal se confunde com o universal mas

aquele em que esses dois termos coincidem em profundidade ndash ontologicamente ndash com o

comum que jaacute estaacute para aleacutem de todo grupo coletivo concreto Se a miacutestica eacute uma

experiecircncia que estaacute virtualmente ao alcance de todos ndash o que implica que ela natildeo esteja

dada nem seja atual ndash eacute porque ela desenha um territoacuterio ilimitado transfronteiriccedilo e

cosmopolita em que o impessoal o universal e o comum se confundem ao infinito

Procuremos no entanto compreender a correlaccedilatildeo entre democracia e resistecircncia

que recebe em Bergson uma importacircncia vital A democracia seria sob todos os aspectos

vista como um efeito de criaccedilatildeo originado da resistecircncia coletiva em ceder agraves normas

sociais que a natureza envolve baseadas na exclusatildeo na propriedade individual e coletiva

na guerra no dimorfismo do homem social nas fabulaccedilotildees que legitimam a dominaccedilatildeo de

grupos sociais ou chefes baseadas em raccedila estirpe etc (BERGSON 2001 p 1213-

1214298-299 e p 1036-103773-74 e AMALRIC 2012 p 290) Bergson caracterizou

ademais o todo da obrigaccedilatildeo como ldquoresistecircncia agraves resistecircnciasrdquo precisamente em virtude

da tensatildeo que o jogo entre a liberdade dos eus profundos e as exigecircncias de uma

sociabilidade superficial parecem gerar a todo momento O que define o espaccedilo

democraacutetico eacute portanto a tensatildeo entre as tendecircncias agrave abertura e ao fechamento que criam

certa resistecircncia agrave natureza e agrave fixidez da forma de vida que ela engendrou como parada do

eacutelan criador Tudo se passa como se houvesse uma atitude correspondente a essa

resistecircncia mais original e mais profunda voltada contra o instinto virtual que organiza o

haacutebito contra o haacutebito de contrair haacutebitos e que combate a feiccedilatildeo conservadora do rapport

intersubjetivo nas sociedades humanas saiacutedas das matildeos da natureza haveria um estado de

alma democraacutetico capaz de resistir a essas tendecircncias de fechamento (KISUKIDI 2012 p

260)

Sabemos que o aberto como o universalismo concreto e imanente ao Todo vital ou

mesmo a democracia natildeo satildeo jamais dados atuais mas efeitos de uma criaccedilatildeo isso

permitiraacute caracterizar a poliacutetica precisamente como uma accedilatildeo coletiva de abertura do

fechado que corresponde em todos os seus pontos agrave liberaccedilatildeo das determinaccedilotildees naturais

das fabulaccedilotildees que naturalizam as articulaccedilotildees de dominaccedilatildeo social e poliacutetica mas tambeacutem

248

alteram profundamente as instituiccedilotildees de maneira a efetuar o aberto em algum niacutevel e

encontrar nessas proacuteprias instituiccedilotildees sua realizaccedilatildeo (AMALRIC 2012 p 279) Que toda

abertura natildeo cesse de estar ameaccedilada por um refechamento que as tendecircncias mais

elementares agraves sociedades naturais permaneccedilam indefinidamente ligadas aos corpos sociais

que se abrem na direccedilatildeo do universal imanente a democracia e os direitos humanos

apareceratildeo como possibilidades de concretizar o aberto e passar de uma justiccedila estaacutetica a

uma justiccedila dinacircmica instalada na duraccedilatildeo As instituiccedilotildees passam a ter um papel de

resistecircncia de terceiro niacutevel na medida em que asseguram que sociedades inteiras

perseverem no aberto de maneira duraacutevel Na medida em que o aberto seja

institucionalizado ele passa a ser efetuado sob a forma de uma estrutura juriacutedico-poliacutetica

que a um soacute tempo assegura a durabilidade do aberto e recusa seu fechamento

(AMALRIC 2012 p 288)

Poreacutem como democracia e direitos humanos podem relacionar-se com o aberto

Na medida em que constituem suas efetuaccedilotildees ou atualizaccedilotildees no campo poliacutetico Natildeo haacute

democracia tampouco atenuaccedilatildeo do dimorfismo social caracteriacutestico das sociedades saiacutedas

das matildeos da natureza sem que o proacuteprio regime poliacutetico democraacutetico garanta a todos os

indiviacuteduos direitos iguais Eacute precisamente esta relaccedilatildeo em sentido forte que Bergson (2001

p 1214299) enuncia em um contiacutenuo ldquoDe toutes le conceptions politiques [la

deacutemocratie] crsquoest en effet la plus eacuteloigneacutee de la nature la seule qui transcende en intention

au moins les conditions de la lsquosocieacuteteacute closersquo Elle attribue agrave lrsquohomme des droits

inviolablesrdquo A continuidade fundamental entre democracia e direitos humanos atesta que

sua gecircnese reciacuteproca natildeo apenas eacute capaz de reconciliar liberdade e igualdade declarar o

povo como soberano engendrar o corpo de cidadatildeos ao mesmo tempo como legislador e

suacutedito atenuar o dimorfismo social que a natureza impocircs mas tambeacutem realiza atraveacutes dos

direitos humanos concebidos na estrutura poliacutetica democraacutetica a fraternidade como valor

essencial produzindo-se tambeacutem ela no interior de uma atmosfera afetiva e criadora que

Bergson afirma ser de essecircncia ldquoevangeacutelicardquo ldquola fraterniteacute est lrsquoessentiel ce qui

permettrait de dire que la deacutemocratie est drsquoessence eacutevangeacutelique et qursquoelle a pour moteur

lrsquoamourrdquo (BERGSON 2001 p 1215300)

Com isso Bergson insiste sobre o caraacuteter eminentemente religioso da democracia ndash

o que se provaria tambeacutem pela influecircncia do puritanismo nas grandes declaraccedilotildees de

direitos do final do seacuteculo XVIII (BERGSON 2001 p 1215300) No entanto eacute preciso

compreender o que Bergson estaacute a dizer quando se refere ao caraacuteter religioso das foacutermulas

democraacuteticas ou quando afirma a essecircncia evangeacutelica da democracia Por um lado

249

acabamos de notar que o que forja todo devir democraacutetico mas tambeacutem os direitos

humanos nascidos ndash como diz o proacuteprio Bergson ndash do protesto como desafio lanccedilado no

mundo supotildee um ensejo depende de um trabalho poliacutetico coletivo em profundidade e

contra as tendecircncias naturais de fechamento Se a democracia compreendida como regime

poliacutetico que possui a intenccedilatildeo de superar as determinaccedilotildees da sociedade fechada tem um

caraacuteter religioso este natildeo poderia ser equivalente ao das religiotildees estaacuteticas de seus ritos e

tradiccedilotildees canocircnicos mas unicamente o das religiotildees dinacircmicas que encontram no

misticismo completo ndash do ponto de vista histoacuterico acidentalmente cristatildeo ndash a condiccedilatildeo

profundamente metafiacutesica de seu vir a ser Se a essecircncia da democracia pode afirmar-se

evangeacutelica eacute como vimos em virtude do universalismo concreto que ela cria e implica

dos direitos devidos agrave humanidade em geral como expressatildeo da fraternidade que dissolve

os limites territoriais entre as naccedilotildees e conciliando igualdade e liberdade avanccedila um passo

em direccedilatildeo a um amor que se confunde com o da alma aberta que se dirige ao Todo Por

isso a foacutermula democraacutetica eacute Ama et fac quod vis Por essa razatildeo liberdade igualdade e

fraternidade encontram nas sociedades natildeo democraacuteticas fechadas suas caracteriacutesticas

contraditoacuterias autoridade hierarquia fixidez ndash natildeo casualmente caracteriacutesticas presentes

nas descriccedilotildees comuns a todas as sociedades que se encontram ainda hoje sob regimes

autoritaacuterios ou ditatoriais ou que teriam saiacutedo dele em um passado histoacuterico relativamente

recente

Haacute poreacutem nas sociedades fechadas que assim se abrem que satildeo tambeacutem as

sociedades que combatem o fechamento a fim de conquistar o direito a ter direitos em uma

dimensatildeo universal uma espeacutecie de pulsatildeo transicional ndash profundamente dinacircmica

inteiramente miacutestica ndash que coincide com a resistecircncia mais profunda e original que

descobriacuteamos como impulso poliacutetico que faz reemergir uma comunidade de eus profundos

capaz de por meio das instituiccedilotildees engendrar estruturas democraacuteticas duraacuteveis no interior

de cuja abertura perseveram Eacute nesse sentido o de uma religiatildeo dinacircmica ou o de um

misticismo profundo que natildeo dependem de nenhum conteuacutedo acidental de crenccedilas que a

democracia e os direitos humanos poderiam possuir uma essecircncia evangeacutelica Eacute na medida

em que se combate o fechamento se resiste agrave persistecircncia do natural e das tendecircncias ao

fechamento que se podem instituir estruturas poliacutetico-juriacutedicas capazes de tornar duraacutevel o

aberto e o universal concreto e imanente ndash ao qual corresponde uma eacutetica da abertura que

jamais deixou de ser atual (WORMS 2011 p 368-369 AMALRIC 2012 p 295) ndash como

efeito de criaccedilotildees A essecircncia da democracia eacute evangeacutelica finalmente em um uacuteltimo

sentido que o amor e a fraternidade universais provariam sem dificuldades Na medida em

250

que a democracia eacute realizaccedilatildeo de uma resistecircncia em profundidade agrave persistecircncia dos

traccedilos das sociedades naturais suas instituiccedilotildees juriacutedico-poliacuteticas e suas estruturas efetuam

o aberto e permitem perseverar nele constituem os signos histoacutericos indiciaacuterios de um

ldquoavenir [qui] doit rester ouvert agrave tous les progregraves notamment agrave la creacuteation de conditions

nouvelles ougrave deviendront possibles des formes de liberteacute et drsquoeacutegaliteacute aujourdrsquohui

irreacutealisables peut-ecirctre inconcevablesrdquo (BERGSON 2001 p 1215300-301) A estrutura e

a instituiccedilatildeo democraacuteticas jaacute natildeo representam um refechamento do aberto mas sua

consolidaccedilatildeo e ateacute mesmo certa ruptura momentacircnea com a atmosfera incendiaacuteria e com

o estado de alma iacutegneo que as criou (AMALRIC 2012 p 289) estas cessam de transmitir-

se maciccedilamente por propagaccedilatildeo em profundidade e passam a prolongar o aberto na

construccedilatildeo de formas poliacuteticas e juriacutedicas aberturas institucionais para novos modos de

existecircncia individuais e em comum novas formas de vida poliacutetica e social Com efeito

toda alteraccedilatildeo que a retomada de contato com o eacutelan vital com a comunidade de eus

profundos efetua eacute parcial pois o aberto constitui um limite ideal o destino metafiacutesico da

humanidade em sua luta infinita contra o fechamento Poreacutem se as novas instituiccedilotildees que

consolidam o aberto na universalidade concreta criada pela profunda resistecircncia que

originou a democracia e os direitos humanos ndash e mais aleacutem persiste em perseverar no

coraccedilatildeo do aberto ndash eacute porque ldquolrsquointention avec laquelle une ideacutee a eacuteteacute lanceacutee y reste

invisiblement adheacuterente comme agrave la flegraveche sa direction Les formules deacutemocratiques

ennonceacutees drsquoabord dans une penseacutee de protestation se sont ressenties de leur originerdquo

(BERGSON 2001 p 1216301) Assim a democracia e os direitos humanos definem-se

como o que manteacutem aberto de tal forma que as condiccedilotildees estruturais sociopoliacuteticas

duraacuteveis da invenccedilatildeo de formas de vida e modos de existecircncia em comum se confundam

no limite com o combate que o proacuteprio homem trava contra o fechamento A democracia

eacute pois mais do que um evento na histoacuteria da abertura (AMALRIC 2012 p 293) ou uma

estrutural formal de manutenccedilatildeo do aberto ela constitui um apelo praacutetico a que resistamos

ao fechamento e o combatamos desde o seu interior levando a tendecircncia que o aberto

constitui ao seu proacuteprio limite

251

sect 4 RETORNAR AO CONCRETO

MEMOacuteRIA E JUSTICcedilA DE TRANSICcedilAtildeO

ldquo[] ne perdez pas le concret revenez-y constamentrdquo

(DELEUZE In MARTIN 1993 p 09)

Ateacute aqui apanhamos e transcrevemos a questatildeo que a memoacuteria e a efetuaccedilatildeo da

transiccedilatildeo envolvem nos planos pragmaacutetico e empiacuterico em uma densa malha de conceitos e

demonstraccedilotildees retomadas fio por fio no corpo da ontologia da memoacuteria de Henri Bergson

Nesse sentido a passagem da sociedade fechada agrave sociedade aberta torna-se a forma

expressiva por intermeacutedio da qual o bergsonismo propotildee agrave sua maneira e em seu proacuteprio

campo o problema por excelecircncia da Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo O fato de esta poder

fundar-se em uma memoacuteria para o porvir constituiu o leitmotiv de toda enquete que

conduzimos ateacute este ponto mobilizados pelo impulso de elucidar as relaccedilotildees entre

memoacuteria e transiccedilatildeo

Essa procura exige poreacutem um uacuteltimo e decisivo passo que em tudo busca

reencontrar radicalmente o espiacuterito especulativo que se confunde com o empirismo

superior de Bergson Se retomarmos as linhas de argumentaccedilatildeo de Bergson em todas as

suas obras do Essai a Deux Sources encontraremos sempre a efetuaccedilatildeo de passagens de

um concreto a outro mediada por uma potente invenccedilatildeo conceitual o fato da liberdade a

gecircnese do espaccedilo e do sensiacutevel a partir do virtual a gecircnese da vida em suas muacuteltiplas

formas as transiccedilotildees sociais e morais etc223

Desse modo natildeo apenas o presente estudo

demanda que interroguemos as distensotildees radicalmente praacuteticas e poliacuteticas da passagem do

fechado ao aberto como o proacuteprio meacutetodo filosoacutefico bergsoniano ndash que natildeo cessa de

mediar conceitualmente a passagem entre dois concretos ndash o exigiria224

A passagem de uma sociedade fechada a uma sociedade aberta ndash que aqui se

confunde com a transiccedilatildeo efetiva que pode ser mediada pelos instrumentos praacuteticos

poliacuteticos e juriacutedico-institucionais da Justiccedila de Transiccedilatildeo ndash implica uma transiccedilatildeo de um

concreto a outro Com efeito abertura e fechamento descrevem apenas tendecircncias forccedilas e

223

ldquoTudo se passa como se a intuiccedilatildeo inicial pelo problema que levanta abrisse e delimitasse um horizonte

para uma investigaccedilatildeo empiacuterica a uacutenica capaz de lhe responder assim como ela eacute a uacutenica capaz de esclarececirc-

lo [] [] como se a lsquocomposiccedilatildeo de um livrorsquo fosse em Bergson o esforccedilo mediador entre a intuiccedilatildeo

imediata e seu desdobramento efetivo portanto o verdadeiro ato esteacutetico ou criativo proacuteprio de sua filosofia

[]rdquo afirma Freacutedeacuteric Worms (2010 p 24-25) sobre o meacutetodo que atravessa os livros de Bergson 224

Mesmo porque segundo Worms (2010 p 25-26) cada livro de Bergson pode ser lido ldquono cruzamento de

dois problemas o problema intuitivo que o inscreve no movimento da obra mas tambeacutem o problema

empiacuterico pelo qual ele reuacutene os saberes de seu tempordquo

252

virtualidades que espreitam o atual pensados como tais natildeo configuram mais que um

limite ideal de direito o que tambeacutem significa virtual225

Todavia quando se trata de

sociedades e formas de vida em comum que efetuam a transiccedilatildeo do fechado para o aberto

encontramos a encarnaccedilatildeo das tendecircncias da aspiraccedilatildeo arrastando atraacutes de si resfriadas e

decantadas formas de vida e de sensibilidade Eis o que natildeo cessa de apelar a um

complemento de concretude capaz de restabelecer com ainda mais clareza o nexo entre

uma ontologia da memoacuteria e sua poliacutetica

Nesses termos faccedilamos com que a contribuiccedilatildeo bergsoniana que propomos agrave

Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo possa retornar ao campo empiacuterico e real do qual esta

procede Se Paul Gready (2011 p 02) pocircde afirmar a natureza subteorizada da teoria da

Justiccedila de Transiccedilatildeo talvez fosse o caso de questionar se tal caracteriacutestica natildeo decorre

com mais razatildeo do esteio praacutetico e empiacuterico do qual ela decalca seus conceitos do que de

uma insuficiecircncia teoacuterica deliberada de seus responsaacuteveis Em outras palavras eacute porque

todo problema relativo agrave Justiccedila de Transiccedilatildeo define-se pela mesma questatildeo metodoloacutegica

bergsoniana ndash ldquocomo passar de um concreto a outro atraveacutes de mediaccedilotildees conceituais e

imageacuteticasrdquo ndash que esta teoria em constituiccedilatildeo mereceria encontrar em uma filosofia como

a de Bergson uma iluminaccedilatildeo metodicamente estruturada para suas principais questotildees ndash

ainda que elas se deem privilegiadamente em alguns niacuteveis como o poliacutetico social e

institucional e menos claramente em outros Dentre as principais questotildees que podem ser

formuladas a partir da Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo compreende-se naturalmente o

problema dos arcanos dos potenciais transformativos atribuiacutedos agrave memoacuteria objeto da

presente investigaccedilatildeo Propusemos elucidaacute-lo a partir de uma compreensatildeo ontoloacutegica da

memoacuteria segundo a qual esta jamais poderia reduzir-se a uma lembranccedila-imagem

individual ou a uma representaccedilatildeo social descarnada ndash memoacuteria como representaccedilatildeo de um

objeto ausente acepccedilatildeo negativa que subtrai a memoacuteria ao seu solo de realidade e agrave qual

parecem render-se diversos teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo (Capiacutetulos 2 e 3) Nesse

sentido natildeo cessamos de afirmar seja pelas insinuaccedilotildees teoacutericas inconclusas dos teoacutericos

da Justiccedila de Transiccedilatildeo seja pela mediaccedilatildeo da ontologia da duraccedilatildeo de Bergson a

memoacuteria como ldquouma regiatildeo do existenterdquo

225

ldquo[] une socieacuteteacute mystique qui engloberait lrsquohumaniteacute entiegravere et qui marcherait animeacute drsquoune volonteacute

commune agrave la creacuteation sans cesse renouveleacutee drsquoune humaniteacute plus complegravete ne se reacutealisera evidemment pas

plus dans lrsquoavenir que nrsquoont existeacute dans le passeacute des socieacuteteacutes humaines agrave fonctionnement organique

comparables agrave des socieacuteteacutes animales Lrsquoaspiration pure est une limite ideacuteale comme lrsquoobligation nuerdquo

(BERGSON 2001 p 104685)

253

A fim de mediar conceitualmente a passagem entre esses dois concretos ndash entre um

regime poliacutetico nacionalista hierarquizado fixo autoritaacuterio ditatorial e violador de

direitos humanos (fechado) e um regime poliacutetico plural e democraacutetico mais livre e igual na

medida em que se incumbe da proteccedilatildeo e da tutela concreta e universal dos direitos

humanos (aberto) ndash perguntemos qual o lugar que a memoacuteria ocupa no acircmbito de uma

transiccedilatildeo concreta

Trata-se sem duacutevida de um lugar de centralidade tal como regularmente

outorgado pelos teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo mas a ele vem agregar-se uma nova e

insuspeitada dimensatildeo Se a memoacuteria deve assumir na dinacircmica das pulsotildees transicionais

coletivas um lugar de centralidade seraacute de um ponto de vista bergsoniano que em

profundidade atesta a correlaccedilatildeo entre o ontoloacutegico e todos os demais niacuteveis que natildeo

passam de atualizaccedilotildees ou encarnaccedilotildees suas em estados de coisas ndash entre eles o registro do

poliacutetico-social que interessa sobretudo agrave Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo e a seu conceito

canocircnico de memoacuteria Por um lado natildeo cessamos de insistir nessa correlaccedilatildeo por outro a

centralidade da memoacuteria como uma condiccedilatildeo da transiccedilatildeo pode ser justificada em cada um

dos niacuteveis em que sua ontologia eacute atualizada

O contato com o princiacutepio mais original que o miacutestico produz natildeo deixa de ser o

contato com uma memoacuteria cosmoloacutegica o novo imponderaacutevel que um ato de liberdade

exprime junto com a integral de uma personalidade que se subjetiva por meio dele natildeo

deixa tampouco de ser uma atualizaccedilatildeo do imprevisto ontoloacutegico do Todo virtual que

assegura seu devir em um niacutevel psicoloacutegico (WORMS 2010 p 83-97)226

Caberia poreacutem retornar agraves perguntas simples e pragmaacuteticas e interrogar que

resposta o bergsonismo oferece agrave pergunta ldquopor que narrar o passadordquo Como a memoacuteria

envolvida por uma fabulaccedilatildeo pode constituir de uma vez por todas uma condiccedilatildeo para

efetuar a transiccedilatildeo para reabrir o que encontramos fechado para atualizar o aberto em uma

forma de organizaccedilatildeo poliacutetico-social duraacutevel e democraacutetica baseada na inviolabilidade dos

226

Em breves poreacutem consistentes traccedilos Henri Gouhier (1999 p 82) define o homem do ponto de vista da

Eacutevolution Creacuteatrice a partir de uma tripla determinaccedilatildeo 1) Retomando o tema aristoteacutelico Bergson descreve

o homem como um animal inteligente 2) A inteligecircncia por sua vez ao mesmo tempo em que define o

ciacuterculo bioloacutegico da espeacutecie humana conteacutem os potenciais ou os virtuais por meio dos quais o homem poderaacute

ir aleacutem de si mesmo 3) Eacute na linha de desenvolvimento do homem no ponto em que a inteligecircncia torna suas

accedilotildees cada vez mais explosivas indeterminadas e livres ndash pois marcadas pela criaccedilatildeo imprevisiacutevel de formas

que redundam no homo faber ndash que o homem eacute o esteio de uma antropologia criadora Forma fraturada em

direccedilatildeo ao aberto ateacute mesmo a personalidade seraacute definida em funccedilatildeo da totalidade do passado e de um

efeito de criaccedilatildeo Por isso Bergson (1972 p 1064-1065) define a pessoa como ldquoUn mouvement en avant

continuel qui ramasse la totaliteacute du passeacute et creacutee le futur telle est la nature de la personnerdquo Cf ainda nesse

uacuteltimo sentido os comentaacuterio de Henri Gouhier (1989 p 98-99) acerca do conceito movente e dinacircmico de

pessoa e personalidade em Bergson

254

direitos humanos assim como em um universalismo concreto e em uacuteltima anaacutelise

imanente agrave proacutepria vida ao Todo Essas questotildees permitem-nos descrever agrave luz de todo o

desenvolvimento conceitual que as precedeu o lugar da memoacuteria e das narrativas da

violecircncia como condiccedilatildeo das transiccedilotildees

Assumamos o ponto de vista da memoacuteria e da transiccedilatildeo tal como geralmente

recebem suas transcriccedilotildees sociais coletivas ou superficiais na Teoria da Justiccedila de

Transiccedilatildeo encontraremos memoacuterias-lembranccedila testemunhos memoacuterias coletivas

exerciacutecios puacuteblicos institucionais poliacuteticos e sociais de rememoraccedilatildeo do passado

construccedilatildeo de memoriais e narrativas sobre a violecircncia e a violaccedilatildeo de direitos humanos

Conviria perguntar como justificar uma ontologia da memoacuteria nesse plano a um soacute tempo

simboacutelico e pragmaacutetico

Agrave luz de tudo o que vimos o esforccedilo227

de narrar a violecircncia consiste em uma

alternativa para retomar o contato com memoacuterias mais profundas inconscientes e

metaindividuais trata-se de apropriar-se da fabulaccedilatildeo em sentido poliacutetico a fim de

compreender o fechamento como resultado das investidas sociais no sentido da aniquilaccedilatildeo

do proacuteprio homem Da fabulaccedilatildeo nasce um sem-nuacutemero de funccedilotildees da memoacuteria nas

transiccedilotildees Todas essas funccedilotildees poderiam ser resumidas em uma expressatildeo largamente

aceita segundo a qual ldquolembramos para natildeo repetirrdquo ldquonarramos para que jamais aconteccedilardquo

Sua aparente fragilidade e vagueza natildeo devem enganar-nos ndash natildeo se trata de uma imagem

se pudermos ligaacute-la ao sentido poliacutetico e transicional das fabulaccedilotildees e enunciaccedilotildees

coletivas da memoacuteria Desde Auschwitz e natildeo sem razatildeo natildeo cessamos de ligar as

narrativas de destruiccedilatildeo do homem e da violaccedilatildeo dos seus direitos ao plus jamais ccedila

adorniano Eacute possiacutevel recordar e narrar da mesma forma como fabulamos naturalmente o

fazemos a fim de manter a feacute em um futuro social desejado evitar a depressatildeo e o

desencorajamento Assim como no seio da religiatildeo estaacutetica a fabulaccedilatildeo cumpria as funccedilotildees

de manter o indiviacuteduo apegado agrave vida narrar a violecircncia que o passado conheceu e que

pode perpetuar-se ainda hoje eacute um modo simboacutelico semi-intelectual e linguageiro de

remuer la cendre Simetricamente como a fabulaccedilatildeo em sentido religioso coincidia com

uma intromissatildeo do instinto virtual no acircmbito da inteligecircncia a fabulaccedilatildeo em sentido

poliacutetico pode consistir em uma intromissatildeo da intuiccedilatildeo miacutestica ndash que natildeo deixa de ser um

sentido virtual da vida ndash no plano intelectual As narrativas da violecircncia constituem desse

227

Talvez conviesse recordar que para Bergson o esforccedilo voluntaacuterio eacute aquele que coincide com a totalidade

indivisiacutevel de uma personalidade que Bergson (1972 p 845) definia em termos tatildeo ontoloacutegicos como

psicoloacutegicos como ldquoune certaine continuiteacute drsquoeacutecoulementrdquo Cf ainda (GOUHIER 1989 p 87-90)

255

modo o representante simboacutelico de uma efervescecircncia mais profunda As lutas natildeo satildeo

senatildeo o signo indiciaacuterio e sobretudo acidental de uma pulsatildeo transformadora mais

profunda Por isso aquilo em que as narrativas e a produccedilatildeo de simboacutelico consistem eacute no

iacutendice do incendiaacuterio que se revivifica sob as cinzas com que o fechado descoloriu o real

Ela implica jaacute uma accedilatildeo que pode consistir em um chamado Nada disso poreacutem

estabelece-se por causalidade mas por invenccedilatildeo uma memoacuteria poliacutetica nunca eacute apenas a

recuperaccedilatildeo de uma verdade ideada do passado mas compreende ndash pelo menos

virtualmente ndash uma evocaccedilatildeo miacutestica das personalidades excepcionais e um chamado agrave

accedilatildeo Eacute tambeacutem nesse sentido que o misticismo bergsoniano jaacute natildeo se reduz agrave

contemplaccedilatildeo dos antigos ndash os miacutesticos satildeo antes de mais nada homens de accedilatildeo Nessa

medida todo simboacutelico e toda narraccedilatildeo da violecircncia dissimula sob seus signos uma

verdade ontoloacutegica mais profunda eacute uma memoacuteria ontoloacutegica virtual e potente ndash como

uma memoacuteria que jamais foi presente uma memoacuteria para o devir cujo correlato subjetivo eacute

plural e nomaacutedico (comunidade de eus profundos) ndash que se dissimula sob a superfiacutecie atual

e luminosa dos signos do passado recuperado

Se pudemos apreender algo de decisivamente positivo no vitalismo bergsoniano eacute

que o que morre satildeo os indiviacuteduos natildeo o eacutelan jamais a vida em geral O que eacute

incessantemente destruiacutedo e fechado sobre si eacute um equiliacutebrio superficial que corresponde

agraves dimensotildees mais aparentes e atuais de uma comunidade poliacutetica O que resta quando tudo

parece fechado eacute uma forma de exercer a memoacuteria em profundidade ndash remuer la cendre e

fazer rescender o perfume do tempo permanecer agrave espera e agrave espreita ndash praticar esses dois

modos que definem o virtual suscitar os devires operar os acontecimentos a fim de

reingressar no seio de uma emoccedilatildeo criadora que deixando de ser atual jamais deixou de

ser ndash ponto de vista de uma memoacuteria que jamais foi presente memoacuteria para o futuro As

narrativas da violecircncia da destruiccedilatildeo do homem ndash que como a vida da qual procede ldquoeacute

um indestrutiacutevel que no entanto pode ser destruiacutedordquo como anos mais tarde diraacute Maurice

Blanchot (2007 p 80) ndash indicam precisamente o ponto em que tudo o que resta eacute uma

obscura comunidade de eus profundos e a chance de um novo contato coletivo com o eacutelan

criador capaz de superar o fechamento e de assegurar sob todos os aspectos e pelo menos

de direito a potecircncia de reabrir o fechado de resistir a ele de forjar uma democracia

duraacutevel no interior de cujo universalismo ndash efeito de criaccedilatildeo ndash o aberto possa insinuar-se e

prolongar-se como invenccedilatildeo de novas formas de vida e de existecircncia em comum Eacute junto a

uma comunidade de eus profundos que natildeo cessa de combater e de resistir ao fechamento

256

que se poderaacute procurar um equiliacutebrio superior de ordem completamente diversa daquele

equiliacutebrio social superficial que o fechado impotildee

Demos um derradeiro passo adiante efetuemos a passagem de um concreto a outro

Com efeito eacute comum que se escrevam teses cujo termo se encontre em um horizonte de

futuriccedilatildeo que natildeo passam de uma suspensatildeo irrealizaacutevel imobilizada pela miragem do

possiacutevel Guardemo-nos de imobilizar-nos nesses limiares indecisos Demonstremos por

meio de um exemplo concreto que as condiccedilotildees para a efetuaccedilatildeo da transiccedilatildeo mesmo no

caso brasileiro se natildeo se encontram inteiramente dadas do ponto de vista do atual

encontram-se virtualmente depositadas em uma memoacuteria ontoloacutegico-poliacutetica que com

certa sensibilidade seria possiacutevel pressentir desde logo Natildeo se trata de interrogar a ordem

do possiacutevel mas de estimar a emergecircncia de uma nova partilha e de uma nova ordem dos

afetos que parece estar em obra

Muitos exemplos poderiam ser ofertados a esse tiacutetulo desde accedilotildees de meacutedia e longa

duraccedilatildeo do Estado brasileiro como a atuaccedilatildeo das Comissotildees e Caravanas da Anistia a

poliacutetica reparatoacuteria aos perseguidos poliacuteticos as comissotildees de mortos e desaparecidos com

atuaccedilatildeo em diversos niacuteveis governamentais bem como em niacutevel federal a instauraccedilatildeo da

Comissatildeo Nacional da Verdade bem como de comissotildees estaduais a construccedilatildeo de

memoriais da ditadura em espaccedilos que antes acolhiam instituiccedilotildees policiais e

administrativas responsaacuteveis pela repressatildeo pela tortura e pelo desaparecimento

sistemaacutetico de perseguidos poliacuteticos ou como as iniciativas de judicializaccedilatildeo nacional e

internacional das questotildees relacionadas agrave Justiccedila de Transiccedilatildeo no Brasil Seria desejaacutevel

no entanto fugir a esses lugares-comuns a fim de procurar aquilo que eacute comum a todos

esses lugares a partir de um retorno empiacuterico sobre a proacutepria Teoria da Justiccedila de

Transiccedilatildeo

Com efeito seus teoacutericos reconhecem comumente os espaccedilos institucionais e

aparelhos de Estado como espaccedilos privilegiados em que se inscreve a Justiccedila de Transiccedilatildeo

como um direito-entre Embora fortemente relacionadas ao Estado Jon Elster (2006 p

114) e Ruti Teitel (2000 p 80) afirmam que as praacuteticas transicionais tambeacutem podem

operar-se na interface ou nas margens dos aparelhos de Estado entre suas instituiccedilotildees e

os dinamismos poliacutetico-sociais concretos228

Tanto Estados entidades supranacionais

228

Ruti Teitel tambeacutem o enuncia de dois pontos de vista o do papel da sociedade civil na recoleccedilatildeo social

das memoacuterias e o da importacircncia da articulaccedilatildeo entre accedilotildees individuais e sociedade civil ldquoWhen political

impetus for an official investigation was lacking the construction of collective memory and the investigation

257

corporaccedilotildees privadas e ateacute mesmo indiviacuteduos podem com efeito protagonizar praacuteticas de

Justiccedila de Transiccedilatildeo Seria um erro comparaacutevel apenas ao de reduzir a realidade da

memoacuteria agrave memoacuteria psicoloacutegica individual ou agrave representaccedilatildeo o de supor que as medidas

de Justiccedila de Transiccedilatildeo devam permanecer encerradas nas tramas burocraacuteticas ndash embora

por forccedila da circunstacircncia de os Estados serem muito comumente os violadores de

direitos humanos por excelecircncia as reformas reestruturaccedilotildees e purgas devem ter por

finalidade produzir uma sensiacutevel alteraccedilatildeo de seus aparelhos

Se as observaccedilotildees empiacutericas de Elster e de Teitel estiverem corretas encontramos

nelas algo mais que uma margem a linha de fuga que nos conduz a um foco potencial de

efetuaccedilatildeo das transiccedilotildees poliacuteticas ndash foco este que deve ser procurado em um ldquomais aleacutemrdquo

do Estado Embora o Estado e seus aparatos possam ser o objeto e por vezes os motores

pragmaacuteticos e institucionais aparentemente privilegiados das transiccedilotildees em contextos de

fluxo poliacutetico a gecircnese das transiccedilotildees natildeo se localiza forccedilosa ou exclusivamente no

interior do Estado assim como o movimento natildeo pode ser explicado de maneira causal

pelo estado de repouso Seria o caso de inverter a formulaccedilatildeo de Teitel e Elster nas

transiccedilotildees o ldquomais aleacutemrdquo do Estado natildeo se encontra nas margens mas se confunde com o

princiacutepio geneacutetico que impulsiona a efetivaccedilatildeo das transiccedilotildees reais reinstaurando as

margens dos aparelhos de Estado e suas instituiccedilotildees que se refecham sobre aquela Se

Teitel e Elster afirmam sua relativa marginalidade isso se deve a uma visatildeo retrospectiva

que confunde produzir e produto gecircnese e estrutura dinacircmico e estaacutetico e que permite

absorver inteligentemente os primeiros nos segundos

Reaproximando-nos do caso brasileiro basta recordar que as forccedilas motrizes da

reabertura poliacutetica e da redemocratizaccedilatildeo ndash embora tenha se tratado de uma abertura

intensamente controlada pelo Estado e mediada por suas instituiccedilotildees legais e

administrativas ndash localiza-se com maior vigor nos corpos de movimentos sociais que

impulsionaram tais mudanccedilas desde o movimento da Anistia ateacute a mobilizaccedilatildeo nacional

pelas Diretas Jaacute (ANSARA 2009 p 150-153 MARTINS 2010 p 145-170) Nesses

casos o duradouro controle do Estado brasileiro iniciado pelo governo Geisel exerceu-se

sobre uma pulsatildeo democratizante coletiva e ficou conhecido como ldquoabertura lenta gradual

e segurardquo Seus efeitos imediatos foram a gecircnese de uma Lei de Anistia violadora de

Direitos Humanos ndash como reconhecido pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no

and documentation of past repression were taken up by the civil societyrsquos nongovernmental organizations

[]rdquo (TEITEL 2000 p 80) adiante Teitel (2000 p 152) prossegue ldquoThough liberal intuitions emphasize

the significance of individual action the predicate for change to a civil society as suggested in the ancient

account is not simply an individual matter but involves a relation between individual and collectiverdquo

258

julgamento do Caso Gomes Lund e outros vs Brasil (Caso Araguaia) ndash e resultaram em

uma democratizaccedilatildeo vertical (TORELLY 2012 p 210-217)

Para aleacutem da atuaccedilatildeo do Estado seria conveniente recordar a luta dos familiares

dos desaparecidos poliacuteticos que iniciada durante a ditadura militar estende-se ateacute hoje

com contribuiccedilotildees inestimaacuteveis de seus protagonistas ao restabelecimento da memoacuteria

poliacutetica do periacuteodo ditatorial no Brasil (TELES 2009 p 151-176) Suas contribuiccedilotildees que

penetram nas instituiccedilotildees apenas mais recentemente com as Comissotildees e Caravanas da

Anistia mas tambeacutem com a tomada de depoimentos e testemunhos no acircmbito de

Comissotildees da Verdade satildeo emblemaacuteticas de uma narraccedilatildeo que procura ndash a teor de toda

literatura memorialista produzida no periacuteodo ndash ldquonatildeo deixar que tudo se perca se evaporerdquo

(FORTES 2012 p 93) Eis a definiccedilatildeo de uma pulsatildeo ou de uma vis memorialista que

por vezes faz com que testemunho e literatura memorial confundam-se ao infinito229

Embora respeitaacuteveis autores brasileiros da Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo

considerem que as questotildees poliacuteticas envolvidas na anistia e na transiccedilatildeo democraacutetica

brasileira natildeo teriam gerado nada aleacutem de uma mobilizaccedilatildeo popular de baixa intensidade

(ABRAtildeO TORELLY 2011 p 238-239) um fenocircmeno novo parece emergir com forccedila

singular Ele consiste no ingresso repentino de muitas pautas poliacuteticas relacionadas agrave

Justiccedila de Transiccedilatildeo no Brasil como questotildees relevantes e unificadoras para movimentos

sociais cujos atores satildeo os jovens O Levante Popular da Juventude eacute nesse aspecto uma

experiecircncia de todo exemplar embora natildeo dedique sua atenccedilatildeo exclusivamente agraves questotildees

da Justiccedila de Transiccedilatildeo ndash e eacute precisamente isso o que constitui o iacutendice de um potencial de

abertura desse movimento230

229

Eacute nesse sentido que Salinas assumindo o tom do sujeito que procura no iacutentimo da proacutepria experiecircncia a

razatildeo para escrever as memoacuterias que sejam capazes de transmiti-la inteiramente afirma em um tom

confessional e ao mesmo tempo irocircnico ldquo[]se escrevo ndash as memoacuterias ndash eacute para dar a mim mesmo

conceder-me em benefiacutecio proacuteprio uma lsquoANISTIA AMPLA GERAL E IRRESTRITArsquo jaacute que ningueacutem me

concederdquo (FORTES 2012 p 93) Enquanto a confissatildeo de ter de buscar uma justificativa para narrar suas

memoacuterias remete ao sujeito que luta contra a desapariccedilatildeo da memoacuteria declarada sua completa absorccedilatildeo na

iteraccedilatildeo de pesadelos e deliacuterios a ironia de ldquoconceder-se uma anistia ampla geral e irrestritardquo que ningueacutem

lhe concede assinala o ponto de inserccedilatildeo do sujeito na lei e nas instituiccedilotildees de grande escala Eis a criacutetica que

permite entrever que o fundamento da lei eacute essencialmente irocircnico a denunciar precisamente o fato de que os

responsaacuteveis pela repressatildeo concederam-se a si mesmos ndash como Salinas gostaria de fazer pela via da escritura

ndash sua anistia e seu perdatildeo Em tudo ldquoContra a ficccedilatildeo do Gecircnio Maligno oficial se impotildee o minucioso relato

histoacuterico []rdquo (FORTES 2012 p 42) 230

Outro exemplo iniciativa da juventude eacute o Coletivo Quem grupo anocircnimo sem vinculaccedilatildeo partidaacuteria que

sequer se define como movimento mas como projeto que inspirado pela arte do artista plaacutestico Cildo

Meireles visa a ldquoResgatar atualizar e reconfigurar manifestaccedilotildees artiacutesticas de resistecircncia agrave ditadurardquo O

grupo notabilizou-se por carimbar a partir de 2010 perguntas incocircmodas em ceacutedulas de Real como ldquoQuem

torturou Dilma Rousseff rdquo ldquoQuem torturou Frei Tito rdquo e ldquoQuem matou Alexandre Vannucchi Leme rdquo Ao

contraacuterio do Levante Popular da Juventude o foco de suas intervenccedilotildees simboacutelicas e artiacutesticas satildeo as

questotildees relativas agrave transiccedilatildeo brasileira no que converge com algumas pautas do Levante Popular da

259

Os integrantes do Levante Popular da Juventude definem-se como ldquouma

organizaccedilatildeo de jovens militantes voltada para a luta de massas em busca da transformaccedilatildeo

da sociedaderdquo231

Trata-se de uma iniciativa que busca articular a juventude brasileira

atuante nos movimentos sociais em niacuteveis nacional regional e local Suas lutas atravessam

temas tatildeo plurais (BRITO e FERREIRA 2011 p 11) como a construccedilatildeo de uma

democracia popular distribuiccedilatildeo de renda sustentabilidade ambiental lutas contra o

machismo a homofobia a lesbofobia a transfobia e o racismo a democratizaccedilatildeo da

educaccedilatildeo em todos os niacuteveis bem como o acesso universal ao transporte puacuteblico gratuito e

de qualidade a efetivaccedilatildeo dos direitos agrave cultura e ao lazer na contracorrente de sua

mercantilizaccedilatildeo a luta contra a precarizaccedilatildeo do trabalho e pela extensatildeo das garantias e

direitos sociais reconhecidos aos trabalhadores urbanos e rurais o combate ao

individualismo e agrave estagnaccedilatildeo ndash valores do capital ndash e ldquoa praacutetica permanente

de solidariedade com todos os povos que sofrem e lutamrdquo232

Criado em meados de 2005 a partir de uma Consulta Popular ndash agrupamento de

diversos movimentos sociais ligados ao Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra

(RUSKOWSKI 2012 p 30) ndash a forma de apariccedilatildeo puacuteblica de maior intensidade do

Levante Popular da Juventude deu-se apenas em 2012 com as praacuteticas de ldquoesculachosrdquo

(CARTA MAIOR 2012) De composiccedilatildeo heterogecircnea compreendendo integrantes de

diversas origens econocircmicas sociais e culturais (SILVA e RUSKOWSKI 2010 p 32) o

Levante Popular da Juventude notabilizou-se pela praacutetica de esculachos inspirados nos

escrachos argentinos e chilenos ndash atos de execraccedilatildeo puacuteblica realizados diante das

residecircncias de torturadores em diversas capitais brasileiras

Longe de ser uma organizaccedilatildeo em sentido proacuteprio que nasce de certa

intencionalidade com visatildeo prospectiva e estrateacutegica de atuaccedilatildeo o Levante teria surgido

de ldquoum sentimento uma percepccedilatildeo de que era necessaacuterio construir um espaccedilo de

organizaccedilatildeo da juventuderdquo233

Ganhando corpo o movimento passa a estabelecer seus

eixos de accedilatildeo a partir do tripeacute ldquoorganizaccedilatildeo formaccedilatildeo e lutardquo enriquecendo-se com a

Juventude que passamos a analisar mais minuciosamente adiante Sobre o Coletivo Quem cf

lthttpquemtorturouwordpresscoma-propostagt Acesso em 15mai2013 231

Cf lthttplevanteorgbrgt Acesso em 15mai2013 232

Cf lthttplevanteorgbrCartaCompromissoLevantePopulardaJuventudehtmgt Acesso em 15mai2013 233

ldquoNatildeo tinha uma visatildeo estrateacutegica uma leitura da conjuntura muito profunda que diria que ndash lsquoNatildeo

precisamos ter uma organizaccedilatildeo com tal e tal caraacuteter e talrsquo Natildeo tinha muito isso Tinha um sentimento uma

percepccedilatildeo de que era necessaacuterio construir um espaccedilo de organizaccedilatildeo da juventude e aiacute se tirou o Francisco

pra fazer isso e tal E eacute por isso que o Levante nunca teve um modelo organizativo muito bem definido

Sempre foi meio gelatinoso assimrdquo Fala de Luiacutes integrante do Levante entrevistado por (SILVA e

RUSKOWSKI 2010 p 32)

260

transmissatildeo da experiecircncia de participantes de outros movimentos sociais como o

Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra o Movimento dos Atingidos por Barragens o

Movimento dos Pequenos Agricultores o Movimento dos Trabalhadores Desempregados

etc Os encontros estaduais mais que simples reuniotildees deliberativas propulsionam-se a

partir da hibridizaccedilatildeo cultural que reuacutene sob a mesma rubrica a capoeira e o hip hop ldquoa

miacutestica e a noiterdquo (SILVA e RUSKOWSKI 2010 p 34)234

ao mesmo tempo em que

constituem lugares para formaccedilatildeo poliacutetica definiccedilatildeo dos rumos do movimento e discussatildeo

de accedilotildees e praacuteticas de lutas Tudo concorre para a integraccedilatildeo dos jovens em novas e plurais

chaves de leitura da realidade social no interior da qual estatildeo inseridos mas mais aleacutem

para que possam apropriar-se de estrateacutegias compreensivas e praacuteticas que lhes permitem

acreditar na possibilidade de reabrir o fechado alterar suas condiccedilotildees de vida e os modos

de existecircncia no contexto poliacutetico e social de que fazem parte

Agrave luz de tudo isso o Levante Popular da Juventude constitui um movimento social

exemplar para pensar a correlaccedilatildeo entre uma memoacuteria ontoloacutegica transcrita em diversos e

heterogecircneos niacuteveis e a produccedilatildeo de uma transiccedilatildeo real em um campo concreto Sua

exemplaridade decorre de trecircs fatores que devemos considerar na medida em que permitem

reatar o aparato conceitual de Bergson agraves dimensotildees mais concretas da efetuaccedilatildeo da Justiccedila

de Transiccedilatildeo Nesse sentido consideremos as accedilotildees poliacuteticas do Levante mais diretamente

relacionadas com as questotildees envolvidas pela Justiccedila de Transiccedilatildeo

Geralmente os jovens do Levante reuacutenem-se em datas ou eventos significativos

como o aniversaacuterio do Golpe Militar de 1964 ndash comemorado sem pudores por alguns

setores militares ndash ou as reuniotildees das Comissotildees da Verdade em diversos niacuteveis

federativos Suas accedilotildees poliacuteticas consideradas por muitos desrespeitosas ou borderlines

da praacutetica de vandalismo estatildeo diretamente ligadas a manifestaccedilotildees de execraccedilatildeo puacuteblica

de torturadores de alteraccedilatildeo do nome de vias puacuteblicas ndash que porventura tenham o nome

de colaboradores do regime autoritaacuterio ou de agentes da repressatildeo poliacutetica ndash pichaccedilotildees

proacuteximas agraves residecircncias de torturadores com a inscriccedilatildeo ldquoaqui mora um torturadorrdquo

manifestaccedilotildees puacuteblicas a fim de incitar o Estado brasileiro a cumprir a sentenccedila da Corte

Interamericana de Direitos Humanos no caso Gomes Lund (caso Araguaia) defesas

puacuteblicas da instauraccedilatildeo da Comissatildeo Nacional da Verdade entoaccedilatildeo de canccedilotildees de

protesto e resistecircncia que evocam a memoacuteria da resistecircncia agrave ditadura chamamento em voz

alta ndash seguido de um uniacutessono ldquopresenterdquo ndash dos nomes dos companheiros tombados na

234

Cf ainda (RUSKOWSKI 2012 p 33) para maior detalhamento sobre o sentido das praacuteticas culturais no

Levante Popular da Juventude

261

luta como forma de prestar-lhes homenagem poacutestuma teatros puacuteblicos que recordam a

memoacuteria das prisotildees torturas e desapariccedilotildees etc Do ponto de vista estrateacutegico alguns

integrantes do movimento afirmam que tal praacutexis constitui uma tentativa de renovar as

praacuteticas de lutas de massas e de fazecirc-lo articulando a juventude (CARTA MAIOR 2012)

Poreacutem o que mais chama a atenccedilatildeo eacute o engajamento massivo de jovens que pouco

ou nada viveram do periacuteodo da repressatildeo poliacutetica no Brasil Se o Estado e suas

instituiccedilotildees possuem obrigaccedilotildees internacionais a cumprir ao redor do tema se os

familiares de perseguidos e desaparecidos poliacuteticos carregam ainda feridas abertas dos

tempos de repressatildeo seria preciso indagar o que leva jovens a engajarem-se politicamente

em questotildees que poderiam parecer-lhes integralmente anacrocircnicas Eis a questatildeo que se

coloca em termos socioloacutegicos e poliacuteticos na medida em que remete agrave discussatildeo das

formas de vida e de sociabilidade coletivas como compreender que jovens com seus vinte

ou trinta anos de idade que pouco ou sequer viveram a intensidade real da repressatildeo

possam unir-se aos mais velhos agrave espessura fantasmaacutetica dos mortos e dos desaparecidos

De que modo podem fazer de sua praacutexis o testemunho concreto da partilha em

profundidade do significado da democracia e dos direitos humanos como um compromisso

poliacutetico aberto e transgeracional Como esses jovens encontram sentido no levantar-se

Como explicar essa partilha miacutestica que pouco a pouco penetra o seio social em camadas

insuspeitaacuteveis entre aqueles que natildeo viveram Para compreendecirc-lo retornemos agrave

fenomenologia da revoluccedilatildeo de Les Deux Sources Ali Bergson lembrava a afirmaccedilatildeo de

Eacutemile Faguet que dizia que a Revoluccedilatildeo Francesa havia acontecido natildeo pela igualdade e

pela liberdade mas por que se morria de fome E por que pergunta-se Bergson de repente

decidiu-se que jaacute natildeo era mais aceitaacutevel morrer-se de fome Seria o caso de perguntar por

que jovens de vinte e poucos anos levantaram-se de repente Por que enfim em

determinado momento desejaram trocar os afetos da ordem por uma outra ordem dos

afetos

Eis a faceta concreta de uma memoacuteria ontoloacutegica em Bergson o devir e o aberto

advecircm da deposiccedilatildeo inconsciente e infinitesimal dos eventos na memoacuteria do espiacuterito que eacute

tambeacutem o virtual a memoacuteria em profundidade O miacutestico que Bergson define como o

grande homem de accedilatildeo mas tambeacutem o artista e o moralista ndash aqueles que produzem

alteraccedilotildees de valores que instauram pelo exemplo uma abertura na moralidade social ndash

satildeo individuaccedilotildees coextensivas a uma operaccedilatildeo ontoloacutegica de uma memoacuteria mais

profunda

262

Por essa razatildeo eacute enganoso pensar o devir do ponto de vista exclusivamente

individual Natildeo eacute o devir que eacute produzido por indiviacuteduos satildeo os indiviacuteduos que prolongam

o devir cuja potecircncia em Bergson confunde-se com a de Deus ndash nada aleacutem de ldquoum

esforccedilo criadorrdquo que natildeo se encontra fora deste mundo mas entranhado nele seu motor

inaparente sempre sujeito aos dinamismos do acaso De algum modo reencontramos aqui

o eacutelan vital que natildeo se confunde com a vida orgacircnica mas com a sombria operaccedilatildeo do

tempo universal em sua multiplicidade de fluxos coexistentes no seio de uma memoacuteria-ser

Nesse sentido o miacutestico mero instrumento do Deus bergsoniano eacute a prova viva de que o

devir penetra em profundidade as singularidades impessoais e as inventa Natildeo haacute sujeitos

fixos apenas ilusotildees superficiais em profundidade opera-se o acuacutemulo infinito das

experiecircncias e afetos na memoacuteria dessas individuaccedilotildees Eis a personalidade bergsoniana

atravessada pelo eacutelan vital

Se os jovens hoje se levantam se trocam os afetos da ordem por uma outra ordem

dos afetos eacute porque de algum modo houve um encantamento riacutetmico de seus eus em

profundidade e o daqueles que os precederam na luta pela transfiguraccedilatildeo do real Poreacutem

para que essas almas que se abrem possam efetuar o aberto eacute preciso contraefetuar o

fechado saltar para o exterior dos coacutedigos sociais da ficccedilatildeo do indiviacuteduo e do ciacuterculo teso

da proacutepria espeacutecie das tendecircncias sociais e intelectuais naturais ao homem Por essa razatildeo

talvez tudo o que faccedilam pareccedila tatildeo liminar dos coacutedigos sociais agraves almas fechadas sobre si

e sobre o ciacuterculo da obrigaccedilatildeo social Isso poreacutem natildeo passa de um jogo perspectivo entre

duas formas de sociabilidade ldquoDe um lado a nova intensidade e a euforia inesperadas De

outro o mundo das obrigaccedilotildees e do reloacutegio De um lado a dimensatildeo ignorada pela caretice

geral estado de graccedila alegre durarrdquo escreve Salinas (FORTES 2012 p 95) Um

movimento social pode mover-se e emocionar-se (srsquoeacutemouvoir) como uma comunidade de

eus profundos Almas que se abrem seus agentes e lutas encarnam a distensatildeo praacutetica e

empiacuterica de uma outra forma de equiliacutebrio social em profundidade Do ponto de vista da

ontologia da memoacuteria que as sustenta suas accedilotildees poliacuteticas e praacuteticas culturais jaacute natildeo satildeo

meros representantes de conteuacutedos ausentes ou figuraccedilotildees imaginaacuterias mas um modo de

fabulaccedilatildeo coletiva que pode engendrar na noite praacuteticas miacutesticas que fazem pressentir a

promessa de abertura social e poliacutetica da transfiguraccedilatildeo que natildeo pode cadaverizar-se na

utopia no deliacuterio ou no sonho

O aberto como tendecircncia ou limite ideal tem por destino encarnar-se em uma accedilatildeo

mas sempre no seio de uma certa atmosfer que rescende emoccedilotildees profundas e que a

prepara e prenuncia Assim a evocaccedilatildeo dos nomes dos companheiros tomados na luta

263

perseguidos mortos e desaparecidos natildeo eacute o retrato calado das paredes de honra dos

edifiacutecios burocraacuteticos mas a memoacuteria viva de um uacutenico nome que pode conter um desejo

inteiro Sua evocaccedilatildeo coletiva metaforiza nada mais do que o retorno e a rebeliatildeo de

memoacuterias profundas inconscientes de desejos selvagens incompreensiacuteveis de uma

memoacuteria para um porvir jamais vivido (LAPOUJADE 2010 p 15) mas cuja presenccedila

irresistiacutevel eacute evocada e aspirada pelo nome que conteacutem um desejo inteiro

Os teatros puacuteblicos natildeo satildeo um exerciacutecio de representaccedilatildeo em que a prisatildeo a

tortura ou a morte satildeo encenadas ndash satildeo uma forma de conspirar com as potecircncias virtuais

de uma memoacuteria inconsciente e inaparente modo de inventar uma atmosfera e um campo

de sentido que impulsione a accedilatildeo inspirada em atos exemplares assim como as sinfonias

de Beethoven introduziam Bergson em uma emoccedilatildeo criadora fazendo sentir o fundo

ontoloacutegico da natureza naturante sob sua melodia acidental os teatros de crueldade com

jovens seminus enfiados em paus-de-arara satildeo representaccedilotildees que respondem a um apelo

supraintelectual trata-se de uma maneira natildeo-especulativa de produzir uma rebeliatildeo das

memoacuterias vivas subterracircneas e sujeitadas Tais teatros valem mais pela emoccedilatildeo na qual

nos inserem que pelos conteuacutedos de verdade que expressam a uma inteligecircncia

Uma comunidade de eus profundos estaacute sempre mais perto da memoacuteria ontoloacutegica

que os sobreviventes que sempre colocam suas questotildees em termos de reminiscecircncia

linguagem e conteuacutedo vivido ldquo[] como evocar com exatidatildeo o primeiro ato do pesadelo

que a consciecircncia tem dificuldade de reviver e se esforccedila por manter recalcado fora de seu

acircmbitordquo (FORTES 2012 p 42) pergunta-se Salinas em suas memoacuterias ndash questatildeo que o

sobrevivente endereccedila-se ao sentir a pulsatildeo memorial que o atravessa sem saber por onde

comeccedilar Afinal comeccedilar por que sonho que deliacuterio que pesadelo se tudo se confunde

com os fantasmas dessa memoacuteria que foi inscrita clastreana ou kafkianamente no corpo

ldquo[] dor que continua doendo ateacute hoje e que vai acabar por me matarrdquo ldquobem presente no

meu corpo ferida aberta latejando na memoacuteriardquo

Uma comunidade de eus profundos jamais se coloca a questatildeo do sobrevivente ou

da testemunha porque natildeo pode fazecirc-lo Sua potecircncia especiacutefica eacute a de afastar a

inteligecircncia que parece irrealizar a inscriccedilatildeo da tortura na superfiacutecie dos corpos e deixar-

se invadir por esse ldquofluxo tatildeo sonhado que de repente arrebentardquo (FORTES 2012 p 97)

Os cantos de protesto os hinos os cartazes e frases pichadas nos muros formam corpos

mais ou menos materiais rasuram a ficccedilatildeo oficial e as injunccedilotildees de esquecimento e podem

ser ainda a maneira inteligente e linguageira de combater o fechado as transcriccedilotildees

simboacutelicas e culturais de uma memoacuteria que existe como um fluxo de emoccedilatildeo incoerciacutevel

264

cujo afeto inconsciente a um soacute tempo colmata a lacuna que liga o passado ao futuro e

prepara para a accedilatildeo Ao reveacutes do testemunho ldquoque vale pelo que neles faltardquo (AGAMBEN

2008 p 43) essas representaccedilotildees geradas por uma emoccedilatildeo criadora profunda valem pelo

aberto que as excede e que elas podem auxiliar a comunicar de alma em alma por

incandescecircncia ou por contaminaccedilatildeo

O Levante Popular da Juventude eacute ainda exemplar de uma ontologia da memoacuteria

em sentidos radicalmente mais praacuteticos Suas praacuteticas simboacutelicas e sua miacutestica natildeo

exaurem sua conexatildeo com dimensotildees mais concretas da efetuaccedilatildeo da transiccedilatildeo Se a

Justiccedila de Transiccedilatildeo eacute voltada primariamente agrave transformaccedilatildeo das instituiccedilotildees do Estado

um movimento popular como o Levante Popular da Juventude exerce a funccedilatildeo de

catalisador dos grandes temas e problemas oriundos de uma transiccedilatildeo incompleta no

interior da opiniatildeo puacuteblica Sua praacutexis tende a produzir emergecircncias simboacutelicas que

interpelam as almas fechadas colaborando para colocar sob nova luz ou reatualizar

questotildees que boa parte da sociedade brasileira considera anacrocircnicas ou de segunda ordem

ignorando que os problemas nacionais de primeira ordem podem encontrar justamente ali

no aparente anacronismo da transiccedilatildeo inconclusa sua estrutura fundamental Assim os

gestos poliacuteticos do Levante natildeo apenas anunciam mas tendem a engendrar e a produzir a

intensificaccedilatildeo do movimento poliacutetico acerca da transiccedilatildeo brasileira ndash se suas lutas natildeo

realizam o aberto a que aspiram ao menos tendem a contraefetuar o fechado a alterar e

dinamizar relaccedilotildees de forccedilas por muito tempo bloqueadas politicamente no Brasil Sua

praacutexis seja a da accedilatildeo simboacutelica ou a da accedilatildeo poliacutetica eacute uma forma de remuer la cendre

define-se pela insistecircncia pela espera e pela espreita ndash modos ontoloacutegicos de uma memoacuteria

virtual que jamais deixou de ser

Na medida em que se reconhecem os potenciais efetivos de movimentos sociais

como propulsores das alteraccedilotildees pragmaacuteticas e institucionais como catalisadores da

opiniatildeo puacuteblica para a atualidade do tema o Levante Popular da Juventude constitui um

exemplar de accedilotildees transicionais que engendram uma forma de Justiccedila de Transiccedilatildeo que

nem fica confinada aos aparelhos de Estado nem eacute simples ou completamente refrataacuteria a

eles Se pudemos caracterizar a Justiccedila de Transiccedilatildeo como um direito-entre o Levante

Popular da Juventude eacute um exemplar de movimento social-entre ao menos em dois

sentidos Em primeiro lugar como vimos tudo se passa como se ele pudesse tocar as

instituiccedilotildees e impulsionaacute-las agrave efetuaccedilatildeo das accedilotildees de Justiccedila de Transiccedilatildeo Exemplar da

justiccedila em sentido absoluto em Bergson que jaacute natildeo evoca ideias de relaccedilatildeo medida ou

proporccedilatildeo a ideia de justiccedila de movimentos sociais que baseiam sua praacutexis na defesa dos

265

direitos humanos ndash a exemplo do Levante Popular da Juventude ndash resolve-se em uma

afirmaccedilatildeo pura e simples de um direito inviolaacutevel da incomensurabilidade da pessoa e de

seus valores (BERGSON 2001 p 103571 ainda LEFEBVRE 2013 Chap 7)

Em um segundo sentido radicalmente praacutetico e poliacutetico o Levante Popular da

Juventude apresenta-se como um movimento social-entre na medida em que sua praacutexis de

luta tem por efeito imediato trazer agrave luz os compromissos inaceitaacuteveis de uma democracia

em que a transiccedilatildeo eacute ainda hoje um processo poliacutetico inconcluso com aquilo que ldquoresta

da ditadurardquo Sua praacutexis revela tais compromissos toda vez que eacute combatida como praacutetica

antidemocraacutetica criminosa ou desprovida de sentido pelas instituiccedilotildees e pela miacutedia Eacute

impossiacutevel natildeo recordar que em 31 de marccedilo de 2012 em um contexto de intensa reaccedilatildeo

dos segmentos militares contra a possibilidade de instituiccedilatildeo da Comissatildeo Nacional da

Verdade uma manifestaccedilatildeo organizada pelo Levante que contava com o apoio e a

participaccedilatildeo de partidos poliacuteticos de esquerda e de familiares de mortos e desaparecidos e

que execrava militares que chegavam ao Clube Militar do Rio de Janeiro para participar de

uma comemoraccedilatildeo pela ldquorevoluccedilatildeo de 64rdquo foi violentamente reprimida pela tropa de

Choque da Poliacutecia Militar do Estado do Rio de Janeiro que utilizou bombas de efeito

moral gaacutes de pimenta e armas natildeo-letais ndash como natildeo seriam elas a nova roupagem legal da

antiga tortura dos departamentos de investigaccedilatildeo ndash para dispersar a multidatildeo A cobertura

da miacutedia nacional desastrosa defendia inconfessadamente a repressatildeo dos manifestantes

pela razatildeo de os ativistas poliacuteticos terem provocado uma ldquoconfusatildeo naquilo que era para

ser apenas uma comemoraccedilatildeordquo (O GLOBO 2012) As razotildees da festa por certo nada

tinham de questionaacuteveis

A praacutexis do Levante relativa agraves questotildees da Justiccedila de Transiccedilatildeo eacute de modo geral

reprimida ora pela via do real ndash os embates com a poliacutecia ndash ora pela via do simboacutelico ndash a

desqualificaccedilatildeo de suas accedilotildees pelas miacutedias de massa que natildeo cessam de tentar controlar as

margens criacuteticas da opiniatildeo puacuteblica Eis o que revela alguns dos sentidos imediatamente

praacuteticos e poliacuteticos em que a transiccedilatildeo precisa ainda efetuar-se no Brasil tanto do ponto

de vista da democratizaccedilatildeo das instituiccedilotildees do Estado quanto da democratizaccedilatildeo da

informaccedilatildeo e da possibilidade efetiva de desbloqueio da discussatildeo poliacutetica no espaccedilo

puacuteblico Em cada um desses sentidos ndash tanto o de suas accedilotildees poliacuteticas quanto o de suas

formas de relacionar-se com as instituiccedilotildees ou de debater-se contra elas ndash o Levante

Popular da Juventude atualiza uma ontologia poliacutetica da memoacuteria em que a memoacuteria

constitui o fundo virtual de toda praacutetica poliacutetica ostensiva Nas reuniotildees ou manifestaccedilotildees

o Todo vibra em uma mesma intensidade da presenccedila natildeo raro inconsciente mas sensiacutevel

266

da memoacuteria em comum ponto de ressonacircncia afetivo para criando uma abertura no

superficial superar nossas formas de vida atuais (ciacuterculos sociais individuais inerentes agrave

espeacutecie) e saltar na ontologia devolver ao virtual da memoacuteria o que ela tem de afeto real

de energia eficaz e de profunda liberdade de uma comunidade que inagente e virtual jaacute

estaacute uma comunidade de eus profundos

Com efeito nada disso estaacute dado supotildee ao contraacuterio um esforccedilo e uma

sensibilidade especiais na medida em que todo devir implica um modo de afeto do tempo

pelo qual o tempo afeta a noacutes mesmos e o proacuteprio conjunto do real Eacute preciso algo como

um salto ontoloacutegico uma descida agrave profundidade uma funccedilatildeo de ruptura que com efeito

comeccedila pela redescoberta da memoacuteria das individualidades excepcionais pela partilha da

emoccedilatildeo criadora que persiste como brasa viva sob as cinzas das foacutermulas soacutelidas vaacutecuas e

resfriadas

O que as narrativas da violecircncia da violaccedilatildeo de direitos humanos e da destruiccedilatildeo

do homem permitem eacute precisamente um contato com essa massa indefiniacutevel de utopias que

natildeo satildeo senatildeo afetos elididos talvez jamais vividos por noacutes mesmos e cujo acesso atesta a

reemergecircncia de uma comunidade de eus profundos que se confunde agora com a proacutepria

vitalidade inorgacircnica com a qual se pode combater o fechamento Esse contato

inteiramente miacutestico pode ser involuntaacuterio inconsciente e erraacutetico devido a uma atmosfera

emotiva incendiaacuteria mas tambeacutem pode ser suscitado e revivificado por contiacutenuos esforccedilos

e labores da reminiscecircncia

Como sopros que buscam reavivar uma pequena incandescecircncia sob as cinzas as

narrativas da violecircncia podem pelo simboacutelico pela linguagem ou pela inteligecircncia dar

acesso agravequilo que engendrou todos os seus signos uma emoccedilatildeo criadora profunda que

pode ser revivificada uma exigecircncia de criaccedilatildeo capaz de reabrir o fechado de produzir

uma pulsatildeo transicional coletiva de recolocar a totalidade das estruturas poliacutetico-juriacutedicas

e das formas decantadas de laccedilo social sob a clareira do porvir que se insinua no aberto

Eis no sentido mais social e mais superficial a funccedilatildeo das memoacuterias-lembranccedila das

memoacuterias-signo das narrativas coletivas que ela pode engendrar e que tambeacutem podem

encontrar na arte um ponto de apoio e de fabulaccedilatildeo em comum235

tais produtos poreacutem

natildeo seratildeo mais do que o representante superficial social simboacutelico e inteligiacutevel de uma

235

ldquoA utopia natildeo eacute um bom conceito haacute antes uma lsquofabulaccedilatildeorsquo comum ao povo e agrave arte Seria preciso

retomar a noccedilatildeo bergsoniana de fabulaccedilatildeo para dar-lhe um sentido poliacuteticordquo (DELEUZE 2008 p 215)

267

emoccedilatildeo mais profunda que os engendra e que pode ser sempre recuperada e reavivada sob

as cinzas do fechamento

Essas questotildees sendo simples natildeo mereceratildeo uma resposta menos sutil Tomemos

ldquomemoacuteriardquo e ldquotransiccedilatildeordquo em qualquer sentido como nos aprouver e nos veremos forccedilados

a afirmar que a memoacuteria eacute condiccedilatildeo da transiccedilatildeo em cada um dos niacuteveis em que a

apreendamos ndash pois eacute a totalidade da memoacuteria e da duraccedilatildeo que se atualiza em cada um

desses niacuteveis coexistentes entre si Isso equivale a dizer que natildeo haacute transiccedilatildeo sem memoacuteria

na mesma medida em que natildeo haacute memoacuteria sem transiccedilatildeo ndash a ontologia da duraccedilatildeo natildeo

cessa de implicaacute-las ao infinito ndash uma no tempo do devir outra no registro do passado que

o fundamenta e abrindo-o o torna possiacutevel

No interior da Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo a centralidade aparente desse

argumento tatildeo simples contrasta com a dificuldade de conduzi-lo a seu proacuteprio limite

conceitual ndash o que procuramos realizar a partir do bergsonismo e da renovada atualidade

das traduccedilotildees poliacuteticas que ele tem recebido nos uacuteltimos anos Todo exerciacutecio social

poliacutetico e puacuteblico de memoacuteria deveraacute encontrar daqui por diante sua fundamentaccedilatildeo no

aberto e nos devires que apenas a memoacuteria pode liberar Eacute apenas mediatamente que a

memoacuteria satisfaz funccedilotildees cognitivas ou praacuteticas ndash como as de compreender o presente em

funccedilatildeo do passado reformar as instituiccedilotildees purgar violadores de direitos humanos dos

aparatos de Estado etc Essas natildeo passam de transcriccedilotildees intelectuais praacuteticas e poliacuteticas ndash

essenciais sem duacutevida agraves transiccedilotildees como agrave vida em comum ndash de uma necessidade

ontoloacutegica virtual e mais profunda que conviria pressentir

Na medida em que a memoacuteria funda o devir e o abre em uma regiatildeo do atual natildeo

haacute memoacuteria que natildeo se defina em funccedilatildeo da potecircncia que ela encerra para o porvir por

essa razatildeo natildeo deve haver transiccedilatildeo que natildeo se defina em funccedilatildeo do aberto ndash e bem assim

da democracia e dos direitos humanos que o aberto supotildee como suas efetuaccedilotildees estruturais

ndash como natildeo deveraacute haver transiccedilatildeo que natildeo se defina em funccedilatildeo da liberdade e da

memoacuteria ndash em cada um dos seus niacuteveis de coexistecircncia ndash que uma atualizaccedilatildeo poliacutetica do

aberto envolve como uma nuvem de virtuais potentes o bastante para rachar qualquer

cristal de tempo

268

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Toda pesquisa estabelece-se em desafio ao lacunar e ao problemaacutetico Eis o

horizonte de sentido que melhor definiria os esforccedilos que envidamos a fim de contribuir

com a Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo contemporacircnea ndash campo de elaboraccedilatildeo teoacuterica

relativamente recente e por isso mesmo portador de uma undertheorized nature que lhe eacute

constitutiva Nessas linhas esse campo teoacuterico foi interrogado a partir de uma perspectiva

que julgamos ser essencial e definidora da integral de seus horizontes conceituais o

questionamento aberto e radical do sentido da transiccedilatildeo a partir de uma relaccedilatildeo constante

identificada entre seus modernos teoacutericos entre memoacuteria e efetuaccedilatildeo da transiccedilatildeo

Tratou-se pois natildeo apenas de penetrar o territoacuterio movediccedilo variaacutevel e por isso

nem sempre seguro de um campo conceitual e semacircntico em franca e permanente

elaboraccedilatildeo foi preciso engendraacute-lo em seus proacuteprios termos e em seus aspectos

definidores mais gerais Por essa razatildeo foi necessaacuterio que o constituiacutessemos a partir de sua

articulaccedilatildeo geneacutetica com o Direito Internacional dos Direitos Humanos

Nessa oportunidade pocircde-se identificar uma reciacuteproca constitutividade entre o

Direito Internacional dos Direitos Humanos e a Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo que se

definiria em pelo menos dois sentidos (1) Do ponto de vista normativo segundo o qual o

Direito Internacional dos Direitos Humanos determina um quadro deocircntico universal

flexiacutevel delimitando as grandes estruturas geralmente reconhecidas como objetivos

inerentes agrave Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo justiccedila reparaccedilatildeo reformas institucionais e

purgas direito agrave memoacuteria e agrave verdade (2) Do ponto de vista de sua gecircnese histoacuterica

reciacuteproca as experiecircncias transicionais internacionais ndash especialmente do poacutes-Segunda

Guerra ndash constituiacuteram elementos determinantes natildeo apenas da superaccedilatildeo do referencial

estatalista da proteccedilatildeo e promoccedilatildeo dos direitos humanos tais experiecircncias transicionais ndash

que se confundem historicamente com os tribunais de Nuremberg e Toacutequio no acerto de

contas poacutes-Segunda Guerra ndash foram precursoras do estabelecimento de uma base

normativa internacional de promoccedilatildeo e proteccedilatildeo dos direitos humanos ao mesmo tempo

em que constituiacuteam em si mesmas concretizaccedilotildees praacuteticas das primeiras iniciativas

internacionalistas no campo da Justiccedila de Transiccedilatildeo

A determinaccedilatildeo da gecircnese reciacuteproca entre o Direito Internacional dos Direitos

Humanos e a Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo ndash que muito antes de formar um corpo teoacuterico

no qual veio a resultar deve seu nascimento agraves praacuteticas empiacutericas e tateantes de tribunais

269

internacionais e domeacutesticos ndash conduziu-nos a qualificaacute-la a partir dos signos caracteriacutesticos

inerentes aos proacuteprios direitos humanos os paradoxos e os duplos que atravessam por suas

praacuteticas imanentes e gramaacuteticas de resistecircncia democraacutetica Marcada por esses signos a

Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo podia entatildeo ainda nos quadros de uma norma internacional

de transiccedilatildeo delimitada por seus teoacutericos ostentar a qualidade liminar de um direito-entre

regimes enfocando-se seu marco teoacuterico de um ponto de vista predominantemente

estrutural de modo a privilegiar o papel dessa doutrina na delimitaccedilatildeo das transformaccedilotildees

institucionais que devem ser promovidas em contextos de fluxo poliacutetico Nesse terreno

permitimo-nos uma breve incursatildeo em um tema que natildeo constituindo nosso objeto

primordial tem recebido uma atenccedilatildeo cada vez mais intensa dos pesquisadores das

Ciecircncias Poliacuteticas Sociais e Juriacutedicas o caso brasileiro de transiccedilatildeo Com efeito esse

pequeno desvio nos servia para demonstrar concretamente a qualidade liminar dos direitos

de transiccedilatildeo quando compreendidos como processos de longa duraccedilatildeo ainda para colocar

agrave prova as premissas segundo as quais uma norma global internacional sustenta as

operaccedilotildees transicionais em relaccedilatildeo ao desafio por elas lanccedilado agrave continuidade de praacuteticas

instituiccedilotildees e modos de vida e de pensamento forjados sob um regime antidemocraacutetico e

autoritaacuterio

Apenas na medida em que o campo teoacuterico da Justiccedila de Transiccedilatildeo pocircde ser

delimitado em suas linhas mais gerais e imediatamente pragmaacuteticas foi possiacutevel produzir a

excisatildeo temaacutetica ndash e a um soacute tempo problemaacutetica ndash que constituiu o leitmotiv da presente

tese A fim de definir o horizonte de aparecimento da relaccedilatildeo entre memoacuteria e transiccedilatildeo

era necessaacuterio atravessar trecircs etapas demonstrativas (1) prolongar a linha geneacutetica que

atestava a constitutividade reciacuteproca entre o Direito Internacional dos Direitos Humanos e

a Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo derivando o perfil normativo miacutenimo dos direitos agrave

memoacuteria e agrave verdade bem como sua aparente correlaccedilatildeo em face dos objetivos

institucionais transicionais (justiccedila reparaccedilatildeo reformas purgas etc) isso permitiu

entrever ainda de um ponto de vista meramente pragmaacutetico a relaccedilatildeo proacutexima entre o

binocircmio memoacuteria-verdade e a implementaccedilatildeo dos objetivos inerentes agraves transiccedilotildees

democraacuteticas (Capiacutetulo 3 sect 1) (2) determinar de que modo a Teoria da Justiccedila de

Transiccedilatildeo apropriou-se do conceito de memoacuteria nesse sentido foi possiacutevel delimitar os

contornos do conceito de memoacuteria no campo teoacuterico transicional a partir de dois limites

analiacuteticos Trata-se de um conceito de memoacuteria limitado ora a suas funccedilotildees cognitivo-

pragmaacuteticas ora confinado no interior de uma ontologia de tipo negativo que converte a

memoacuteria em representaccedilatildeo do ausente negando-a como regiatildeo do existente (Capiacutetulo 3 sect

270

2) e (3) a partir da constante relaccedilatildeo entre memoacuteria e transiccedilatildeo verificada na literatura da

Justiccedila de Transiccedilatildeo demonstrou-se que natildeo apenas a memoacuteria aparece como conceito

central agraves transiccedilotildees mas que a ela se atribuem potenciais transformativos ou

transcicionais Ao mesmo tempo uma lacuna teoacuterica foi verificada nesse particular jamais

ficava claro como os teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo puderam atribuir potenciais

transicionais agrave memoacuteria Eis aliaacutes a circunstacircncia que justifica a relativa extensatildeo deste

trabalho quando o problema que desafia a pesquisa eacute lacunar significa que ele natildeo estaacute

previamente dado mas precisa ser estabelecido em relaccedilatildeo com o campo de saberes no

qual encontra seu horizonte de emergecircncia Ao mesmo tempo em que a Teoria da Justiccedila

de Transiccedilatildeo elide a interrogaccedilatildeo ldquocomo a memoacuteria pode ser condiccedilatildeo agraves transiccedilotildeesrdquo ou

ldquoem que sentido a memoacuteria pode conter potenciais transicionais transformativosrdquo ela

mesma prenuncia o sentido de sua evoluccedilatildeo teoacuterica em relaccedilatildeo ao conceito de memoacuteria Jaacute

natildeo se trata mais de pensar uma memoacuteria coletiva ou nacional fixa construiacuteda como mera

representaccedilatildeo partilhada constitutiva de identidades de grupo nem mesmo de ceder agraves

tentaccedilotildees de reduzir a memoacuteria agraves lembranccedilas individuais e psicoloacutegicas diante das

recentes descobertas da neurociecircncia acerca dos processos dinacircmicos em que a aquisiccedilatildeo

de memoacuteria e sua evocaccedilatildeo estatildeo implicadas (Capiacutetulo 3 sect 3)

Os objetivos de nossa investigaccedilatildeo ganham sua coloraccedilatildeo a partir de uma questatildeo

que natildeo foi posta ndash mas parece estar em vias de secirc-lo ndash pelos teoacutericos da Justiccedila de

Transiccedilatildeo como conceituar a memoacuteria de um ponto de vista dinacircmico que natildeo a faccedila

retornar aos limites da memoacuteria meramente individual Como explicar ndash epicentro

problemaacutetico de nossa tese ndash os potenciais transformativos da memoacuteria uma vez que ela

natildeo passaria de um conceito tendencialmente representativo e fixista na Teoria da Justiccedila

de Transiccedilatildeo

A fim de responder a essas questotildees nossa hipoacutetese principal eacute a de que seria

necessaacuterio estabelecer uma integraccedilatildeo das diversas camadas de memoacuteria descritas pelos

teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo sob a epiacutegrafe de um conceito de memoacuteria mais

compreensivo alicerccedilado sobre uma ontologia positiva Assim abandonamos o ponto de

vista estaacutetico e estrutural que caracterizava o olhar da Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo sobre

o problema em proveito de uma perspectiva dinacircmica na qual se pudesse apreender a

gecircnese dos potenciais transformativos da memoacuteria integrando os conceitos heterogecircneos

de memoacuteria ao conceito bergsoniano de memoacuteria A essa elaboraccedilatildeo dedicamos todo o

plexo conceitual articulado a partir da filosofia de Henri Bergson sem descurar da

271

literatura secundaacuteria que se dedicou modernamente a esclarecer pontos esfumados no

interior do bergsonismo (Partes II e III)

No interior de sua ontologia virtual buscamos demonstrar progressivamente a

consistecircncia real do passado evitando confundir ser e ser-presente (Capiacutetulo 4) atingimos

a elaboraccedilatildeo de um conceito de memoacuteria elementar dinacircmica duracional e impessoal ndash

liberada dos imperativos individuais ndash demonstrando o sentido de afirmaacute-la como

fundamento do tempo (Capiacutetulo 5) Assim procuramos demonstrar de que maneira o

conceito bergsoniano de memoacuteria poderia constituir uma resposta possiacutevel ao apelo por

uma memoacuteria dinacircmica e ao mesmo tempo natildeo meramente psicoloacutegica ou individual

que proveacutem da Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo Nesse sentido era inerente agrave demonstraccedilatildeo

do conceito refazer um longo percurso pelo qual Bergson chega agrave siacutentese de dois registros

ontoloacutegicos diversos ndash o atual e o virtual ndash iniciando-o pela demonstraccedilatildeo do sentido e da

realidade do tempo (Capiacutetulo 4 sect 2) bem como da realidade do passado (Capiacutetulo 4 sect 3)

de forma que se pudesse apresentar o gesto bergsoniano de imanecircncia em toda a sua

extensatildeo a duraccedilatildeo como um tempo de coexistecircncia entre registros ontoloacutegicos

pertencentes a uma mesma estrutura de realidade (Capiacutetulo 5 sectsect 1 e 2)

Tudo isso foi necessaacuterio para demonstrar de que forma Bergson estabelece a

imprescindibilidade da memoacuteria agrave transiccedilatildeo real236

ndash compreendida nesse ponto como

transiccedilatildeo ontoloacutegica como diferenccedila e como variaccedilatildeo nos registros do virtual e do atual

Em outras palavras era preciso demonstrar detalhadamente de que maneira uma memoacuteria

ontoloacutegica elementar e impessoal constitui a condiccedilatildeo para abrir o tempo presente o

registro do atual ao devir (Capiacutetulo 5 sect 3) Chegaacutevamos assim ao nuacutecleo ontoloacutegico no

qual todas as outras camadas de memoacuteria vecircm envolver-se

Eacute apenas na medida em que estabelecemos um fundo ontoloacutegico no qual memoacuteria

presente e devir (transiccedilatildeo) encontram-se rearticulados de acordo com uma temporalidade

de coexistecircncias ndash assegurada em uacuteltima anaacutelise por uma memoacuteria virtual elementar e

impessoal que funda a coexistecircncia de todos os fluxos bem como lhes doa seus diferentes

niacuteveis de realidade ndash que poderiacuteamos retornar progressivamente ao campo de interesse

mais imediato das doutrinas transicionais

Les Deux Sources de la Morale et de la Religion eacute o campo privilegiado em que

Bergson reencontraraacute sob novas determinaccedilotildees problemaacuteticas morais sociais e poliacuteticas

236

Interrogaccedilatildeo como vimos muito cara aos teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo ndash embora jamais detalhada em

sua dinacircmica constituinte ndash na medida em que as praacuteticas transicionais natildeo satildeo meramente formais mas

alteram a ordem do real

272

o eacutelan vital ndash potecircncia criadora que coincide como vimos com a duraccedilatildeo e a vida

consistente em uma gigantesca memoacuteria cosmoloacutegica virtual e vital Eis a fonte

bergsoniana da evoluccedilatildeo das formas de vida entre as quais encontramos os elementos

instituais adormecidos a inteligecircncia e as vagas franjas de intuiccedilatildeo que permitem

determinar a forma de vida inerente agrave espeacutecie humana

Eacute em funccedilatildeo dessa forma de vida definida por seus delineamentos bioloacutegicos que

Bergson explicaraacute as tendecircncias de fechamento que rondam o social a partir do vital eacute

tambeacutem a partir de uma pequena fenda no ciacuterculo da espeacutecie ndash as franjas de intuiccedilatildeo ndash que

se poderaacute constituir o aberto natildeo apenas como o sentido da superaccedilatildeo do proacuteprio homem

em seus horizontes antropoloacutegicos especiacuteficos e bioloacutegicos mas engendrar outras formas

de vida e de sociabilidade poliacutetica na contracorrente das tendecircncias naturais ao

fechamento agrave guerra e agrave inteligecircncia

A memoacuteria no sentido ontoloacutegico ou do proacuteprio eacutelan vital natildeo cessa de ser

evocada como o esteio de todo potencial transformativo A um soacute tempo ontoloacutegica e

virtual dinacircmica e natildeo-psicoloacutegica ela eacute a fonte originaacuteria que faz passar um pouco de

tempo indeterminaccedilatildeo e liberdade pelo interior das formas de vida que como o proacuteprio

advento da evoluccedilatildeo provaria natildeo estatildeo dadas todas de uma vez nem de uma vez por

todas Ontologicamente fora do possiacutevel ndash que natildeo passa de um olhar retrospectivo e

impotente sobre o jaacute realizado ndash a memoacuteria se define como memoacuteria que nunca foi

presente isto eacute memoacuteria para o futuro memoacuteria para o devir potecircncia ontoloacutegica

transicional Dela originam-se a transiccedilatildeo real e o movimento eacute artificial imaginaacute-los sem

referecircncia agrave temporalidade real Em uacuteltima anaacutelise suas virtualidades sustentam a integral

da realidade e a coexistecircncia dos fluxos atuais Eis o ponto em que o aspecto ontoloacutegico da

memoacuteria ao reabrir a potecircncia dos devires daacute a ver seu conteuacutedo imediatamente poliacutetico ndash

se por poliacutetica compreendermos as potecircncias de variaccedilatildeo das formas de vida em comum

modos de pensamento e sensibilidade

A memoacuteria eacute profundamente poliacutetica porque eacute tudo o que resta quando o atual

parece obturar o possiacutevel Quando as incandescecircncias do aberto parecem esfriar e fundir-se

novamente a um estado fechando-se sobre si mesmas ndash quando nenhuma alma parece

abrir-se na direccedilatildeo profunda do vital ndash resta apenas remexer as cinzas da memoacuteria das

personalidades excepcionais procurando fazer rescender o perfume do tempo O gesto

distraiacutedo ndash mas nem por isso inerme ou metafoacuterico ndash indica a potecircncia de ressonacircncia de

uma intuiccedilatildeo que jaacute natildeo eacute atual e que definindo-se por sua virtualidade pode reabrir o

porvir a multidotildees inteiras Eis o que provava certa fenomenologia bergsoniana da

273

revoluccedilatildeo que se perguntava ldquopor que decidimos certo dia que jaacute natildeo era mais toleraacutevel

morrer de fomerdquo

Se a alma aberta nunca estaacute dada de antematildeo pela natureza mas implica um esforccedilo

em um sentido determinado uma sociabilidade em profundidade (que chamamos

comunidade de eus profundos) e uma teoria da emoccedilatildeo criadora auxiliaram-nos a explicar

como o incendiaacuterio se propaga de alma em alma como uma intuiccedilatildeo miacutestica se comunica

em profundidade racha a superfiacutecie verminal dos eus sociais e coloca em xeque suas

formas de vida individuais e intersubjetivas (Capiacutetulo 6 sect 2 e sect 3)

O miacutestico eacute a prova atleacutetica de um contato possiacutevel com a vida em profundidade

Independente de todo conteuacutedo contingencial de crenccedila ele eacute definido como subjetividade

impessoal e nomaacutedica na medida em que toma contato com o princiacutepio criador e pode

fundar uma moralidade universal e concreta do aberto (Capiacutetulo 6 sect 3) O miacutestico resulta

como vimos (Capiacutetulo 6 sect 2) de duas linhas que se entrecruzam um salto inumano para

fora da espeacutecie (e do ciacuterculo antropoloacutegico que tende agrave inteligecircncia ao fechado agrave guerra e

agrave sociabilidade superficial) e uma comunidade de eus profundos ndash atmosfera em que uma

emoccedilatildeo criadora se expande e difunde com um potencial incendiaacuterio inconsciente e

virtual O miacutestico eacute portador de um amor ao Todo incapaz de conter-se nos ciacuterculos

preacutevios (amor agrave famiacutelia ao grupo agrave paacutetria) Esse amor absoluto que supera mesmo a

humanidade eacute o destino potencial encerrado pelo advento da democracia e dos direitos

humanos esse amor eacute o que estaacute sempre em jogo nas formas poliacuteticas

Se a democracia e os direitos humanos tendem ao aberto agrave construccedilatildeo de uma

moralidade concreta antinatural antagonista do fechado (Capiacutetulo 6 sect 1) eacute porque satildeo

frutos desses saltos miacutesticos inumanos (ou super-humanos) para fora das constriccedilotildees

bioloacutegicas definidas pelo ciacuterculo da espeacutecie Instituiccedilotildees democraacuteticas constituiratildeo nesse

sentido garantias que ao contraacuterio de representarem um refechamento do aberto fazem

permanecer aberto e fundam uma moral concreta universal (Capiacutetulo 6 sect 3) Do ponto de

vista do bergsonismo insistimos que estas seriam as metas de toda mutaccedilatildeo estrutural ou

institucional promovida por transiccedilotildees democraacuteticas abrir o fechado combater o

fechamento e perseverar no aberto isto eacute fornecer condiccedilotildees estruturais para potenciar as

formas de vida auxiliando que se precipitem no aberto Ama et fac quod vis

A relaccedilatildeo ontoloacutegica entre memoacuteria e devir assegura como demonstramos ao longo

da argumentaccedilatildeo (Partes II e III) todos os demais niacuteveis em que memoacuteria e transiccedilatildeo

podem ser apreendidos pela Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo ndash mesmo os niacuteveis mais

simboacutelicos ou pragmaacuteticos mesmo os conceitos mais psicoloacutegicos ou representativos

274

Nessa medida a memoacuteria tal como eacute conceituada pelo bergsonismo natildeo apenas condiz

com um conceito dinacircmico (registro contiacutenuo e incessante do fluir duracional) e natildeo-

individual ou psicoloacutegico mas integra outras transcriccedilotildees possiacuteveis no acircmbito do conceito

de memoacuteria como seus representantes de niacutevel psicoloacutegico simboacutelico ou pragmaacutetico No

limite as memoacuterias-lembranccedila individuais natildeo passam de um representante de niacutevel

psicoloacutegico e individual de uma memoacuteria virtual impessoal ontoloacutegica e mais profunda a

memoacuteria coletiva tomada em sentido dinacircmico soacute aparece como representaccedilatildeo da

identidade de grupos na medida em que seja apreendida da perspectiva de seu fechamento

ndash e bem o sabemos que o amor agrave paacutetria agrave comunidade ou agrave famiacutelia nada mais satildeo do que

representantes dessa tendecircncia natural ao fechamento social que Bergson combateu

Por essa razatildeo por mais heterogecircneos pragmaacuteticos ou cognitivos que sejam os

contornos do conceito de memoacuteria no campo teoacuterico da Justiccedila de Transiccedilatildeo o problema

que as transiccedilotildees poliacuteticas interpelam a partir da memoacuteria eacute sempre ldquocomo efetuar o

abertordquo Ainda que as narrativas e fabulaccedilotildees introduzam ndash por comodidade ou convenccedilatildeo

ndash um magical switch pelo qual o redentor sublima o traacutegico pudemos compreender em

profundidade que toda forma de exerciacutecio da memoacuteria em qualquer niacutevel ndash embora nem

sempre suficiente para explicar a dinacircmica de seus potenciais transicionais ndash constitui um

gesto potencial pelo qual remexendo as cinzas do passado poderemos colocar novamente

sob o influxo do aberto as formas de vida e pensamento individuais sociais e poliacuteticos na

contracorrente de sua estagnaccedilatildeo em uma eacutetica da violecircncia e da repeticcedilatildeo obsedante de

um passado antidemocraacutetico que resultam de seu abandono agraves pulsotildees naturais de

fechamento e de guerra Eis em que sentido a memoacuteria ndash ponto de fissura pelo qual o

aberto e a proacutepria duraccedilatildeo se infiltram ndash longe de assegurar pura e simplesmente a natildeo-

repeticcedilatildeo torna-se a sua condiccedilatildeo ontoloacutegica imprescindiacutevel

Se devecircssemos resumir tudo em uma palavra a memoacuteria eacute tudo o que resta quando

o possiacutevel jaacute natildeo socorre com suas miragens o que um presente tem de intoleraacutevel Todo

potencial poliacutetico encerrado pela fabulaccedilatildeo da memoacuteria em todo e qualquer niacutevel reside

nessa virtugrave obscura agrave inteligecircncia mas capaz de abrir o fechado de combatecirc-lo na

experiecircncia concreta e de perseverar no aberto Se natildeo haacute transiccedilatildeo sem memoacuteria eacute porque

eacute de seu impulso ontoloacutegico e vital em termos muito compreensivos que procede toda

transiccedilatildeo genuiacutena eacute de seu fundo virtual e ao mesmo tempo real que suas linhas de

efetuaccedilatildeo procedem e que derivam outros devires A insistecircncia da memoacuteria no real

equivale em tudo agrave persistecircncia sombria inaparente e selvagem das potecircncias inorgacircnicas

de uma vida

275

REFEREcircNCIAS

A) Documentos citados sobre Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo e Direito Internacional

dos Direitos Humanos

ABRAtildeO Paulo A lei de anistia no Brasil as alternativas para a verdade e a justiccedila

Acervo v 24 n 1 janjun 2011 Rio de Janeiro 2011 p 119-138

_____ PAYNE Leigh A TORELLY Marcelo D Anistia na era da responsabilizaccedilatildeo o

Brasil em perspectiva internacional e comparada Comissatildeo de Anistia Ministeacuterio da

Justiccedila Brasiacutelia 2011

_____ _____ _____ A anistia na era da responsabilizaccedilatildeo contexto global comparativo

e introduccedilatildeo ao caso brasileiro In ABRAtildeO Paulo PAYNE Leigh A TORELLY

Marcelo D Anistia na era da responsabilizaccedilatildeo o Brasil em perspectiva internacional e

comparada Comissatildeo de Anistia Ministeacuterio da Justiccedila Brasiacutelia 2011 p 18-31

_____ TORELLY Marcelo D As dimensotildees da Justiccedila de Transiccedilatildeo no Brasil a eficaacutecia

da Lei de Anistia e as alternativas para a verdade e a justiccedila In _____ PAYNE Leigh A

TORELLY Marcelo D Anistia na era da responsabilizaccedilatildeo o Brasil em perspectiva

internacional e comparada Comissatildeo de Anistia Ministeacuterio da Justiccedila Brasiacutelia 2011 p

212-248

_____ GENRO Tarso Os direitos da transiccedilatildeo e a democracia no Brasil estudos sobre

justiccedila de transiccedilatildeo e teoria da democracia Coleccedilatildeo Justiccedila e Democracia v 1 Belo

Horizonte Editora Foacuterum 2012

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2009

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New York 2010

_____ Informe 2011 o estado dos direitos humanos no mundo New York 2011

_____ Informe 2012 o estado dos direitos humanos no mundo New York 2012

_____ Informe 2013 o estado dos direitos humanos no mundo New York 2013

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TELES Edson (Orgs) O que resta da ditadura a exceccedilatildeo brasileira Satildeo Paulo

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Jauregraves agrave aujourdrsquohui Paris Presses Universitaires de France 2012 p 29-34

ZANFI Caterine Le sujet en socieacuteteacute chez Bergson du moi superficiel agrave la socieacuteteacute

ouverte In WORMS Freacutedeacuteric (Eacuted) Annales bergsoniennes V Bergson et la politique de

Jauregraves agrave aujourdrsquohui Paris Presses Universitaires de France 2012 p 223-243

C) Textos citados publicados em jornais perioacutedicos e sites

BRUNO Caacutessio GOacuteES Bruno Comemoraccedilatildeo de militares termina em pancadaria no

centro do Rio Rio de Janeiro 29032012 Disponiacutevel em

lthttpogloboglobocompaiscomemoracao-de-militares-termina-em-pancadaria-no-

centro-do-rio-4446158ixzz1qXWTOUrNgt Acesso em 15mai2013

COLETIVO QUEM Quem torturou Disponiacutevel em

lthttpquemtorturouwordpresscomgt Acesso em 15032013

EFE Paiacuteses da ONU recomendam fim da Poliacutecia Militar no Brasil Jornal Folha de Satildeo

Paulo 30 mai 2012 Cotidiano Disponiacutevel em

lthttpwww1folhauolcombrcotidiano1097828-paises-da-onu-recomendam-fim-da-

policia-militar-no-brasilshtmlgt Acesso em 13 mai 2013

LEVANTE POPULAR DA JUVENTUDE Levante popular da juventude Disponiacutevel em

lt httpwwwlevanteorgbrgt Acesso em 15032013

WEISSHEIMER Marco Aureacutelio Levante Popular da Juventude quer renovar praacuteticas da

esquerda Carta Maior Satildeo Paulo 22102012 Disponiacutevel em

lthttpwwwcartamaiorcombrtemplatesmateriaMostrarcfmmateria_id=21117gt

Acesso em 15mai2013

Page 2: MEMÓRIA E JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO: UM ESTUDO À LUZ DA … · 2014. 2. 21. · evocada em um dos textos de Lembrar, escrever, esquecer (GAGNEBIN, 2006, p. 47), consiste na nota fundamental

Murilo Duarte Costa Correcirca

MEMOacuteRIA E JUSTICcedilA DE TRANSICcedilAtildeO

UM ESTUDO Agrave LUZ DA FILOSOFIA DE HENRI BERGSON

Tese apresentada como requisito parcial agrave

obtenccedilatildeo do grau de Doutor no Programa de

Poacutes-Graduaccedilatildeo em Direito aacuterea de Filosofia

e Teoria Geral do Direito da Faculdade de

Direito do Setor de Ciecircncias Juriacutedicas da

Universidade de Satildeo Paulo sob orientaccedilatildeo

do Prof Dr Guilherme Assis de Almeida

Universidade de Satildeo Paulo Faculdade de Direito

Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Direito

Satildeo Paulo

2013

MEMOacuteRIA E JUSTICcedilA DE TRANSICcedilAtildeO

UM ESTUDO Agrave LUZ DA FILOSOFIA DE HENRI BERGSON

por

MURILO DUARTE COSTA CORREcircA

Tese aprovada como requisito parcial para obtenccedilatildeo do grau de Doutor em Filosofia e Teoria

Geral do Direito no Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Direito da Faculdade de Direito da

Universidade de Satildeo Paulo pela comissatildeo formada pelos seguintes professores

Orientador Prof Dr Guilherme Assis de Almeida

Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Direito USP

Membro Profordf Associada Elza da Cunha Pereira Boiteux

Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Direito USP

Membro Profordf Associada Deisy de Freitas Lima Ventura

Instituto de Relaccedilotildees Internacionais USP

Membro Prof Titular Joseacute Antocircnio Peres Gediel

Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Direito UFPR

Membro Prof Dr Eladio Constantino Pablo Craia

Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia PUC-PR

Satildeo Paulo _______ de ________________ de 2013

para Maria

devoraccedilotildees para outros devires

4

AGRADECIMENTOS

A experiecircncia da escrita eacute uma espeacutecie de atletismo que cria um pedaccedilo de concreto

ao mesmo tempo em que interroga os limites das forccedilas imaginativas e conceituais em

relaccedilatildeo a ele Essa pequena passagem que se tentou produzir dos ldquoafetos da ordemrdquo para

ldquouma outra ordem dos afetosrdquo teria sido ndash senatildeo impossiacutevel ndash por certo vatilde sem os

encontros intensivos que a experiecircncia de escrevecirc-la proporcionou Essas pequenas

devoraccedilotildees de Bergson teriam sido muito menos saborosas sem a presenccedila doce de minha

amada Maria Fernanda Battaglin Loureiro a quem dedico cada uma dessas ndash por vezes

longas hermeacuteticas e com sorte voluntariosamente joycianas ndash linhas Agrave sua companhia

amaacutevel e inquieta dedico tambeacutem tantas outras ndash todas as outras ndash porque natildeo se escreve

se natildeo for para penetrar o amor com a alma e a alma com o amor

Agrave minha famiacutelia (Mirian Camile) e agrave famiacutelia de Maria (Ceacutelia Wilson Otaacutevia

Joatildeo) agradeccedilo por toda amabilidade e aconchego de sempre pelas conversas de almoccedilos

de domingo Estar com vocecircs eacute sempre domingo

Ao orientador deste trabalho Prof Dr Guilherme Assis de Almeida agradeccedilo pela

orientaccedilatildeo mas sobretudo pela inspiraccedilatildeo que representa raro professor digno de

admiraccedilatildeo por aliar erudiccedilatildeo criativa sensibilidade teoacuterica e preocupaccedilatildeo concreta com a

efetividade dos direitos humanos ndash marca indeleacutevel de sua orientaccedilatildeo da qual este trabalho

natildeo poderia pretender ser mais do que um singelo legado

Ao Professor Associado Eduardo Carlos Bianca Bittar agradeccedilo por ter me

apresentado ao Prof Guilherme mas tambeacutem pela atenccedilatildeo que sempre dispensou a minhas

duacutevidas e inquietaccedilotildees teoacuterias tambeacutem por toda a Teoria e Criacutetica dos Direitos Humanos

que aprendi consigo ndash aprendizado indispensaacutevel agrave formulaccedilatildeo dos problemas que se

seguem

Agrave Professora Associada Elza da Cunha Pereira Boiteux agradeccedilo pelas aulas pelo

apoio e pelo incentivo nesses anos de doutorado Sobretudo pelo exemplo de simplicidade

sensibilidade e saber

Aos Professores Associados Samuel Barbosa e Deisy Ventura agradeccedilo por todas

as sugestotildees e por todo o auxiacutelio que na etapa de qualificaccedilatildeo deste trabalho foram

determinantes para o seu aperfeiccediloamento

Agrave Professora Associada do Departamento de Antropologia Social da Universidade

de Satildeo Paulo Fernanda Arecircas Peixoto agradeccedilo pela gentil acolhida por todas as

5

discussotildees francas sobre o sentido dos quadros socias da memoacuteria a partir de Halbwachs e

Bergson e por tudo o que pude aprender junto a suas aulas e aos colegas da poacutes-graduaccedilatildeo

em Antropologia em As Artes da Memoacuteria Algumas questotildees que a professora Fernanda

nos franqueou satildeo ao menos incidentalmente retomadas aqui

Agrave Professora Maria Adriana Camargo Capello da Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia da

UFPR renovo minha gratidatildeo por ter me conduzido aos fabulosos textos de Bergson em

2009 Ainda que insensivelmente ela e o amigo Marcelo Barbosa satildeo tambeacutem credores

desses aprofundamentos na filosofia bergsoniana da diferenccedila

Ao Prof Dr Eladio Constantino Pablo Craia do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em

Filosofia da PUC-PR pela amizade simples e leve pelos cafeacutes e pela conversa infinita e

para sempre inacabada sobre a Filosofia Francesa Contemporacircnea suas consequecircncias

ontoloacutegicas e poliacuteticas Sobretudo por sua atenciosa e sempre enriquecedora

disponsibilidade em ler alguns dos originais

Ao Prof Titular da Faculdade de Direito da UFPR Joseacute Antonio Peres Gediel

meus agradecimentos e minha admiraccedilatildeo por ter sido um dos mais eruditos professores de

meus tempos de graduaccedilatildeo por ainda hoje servir-me de exemplo de que o rigoroso e

radical questionamento do Direito se faz com um peacute dentro dele e com outros dois fora

Tambeacutem por aceitar com generosidade minhas participaccedilotildees sempre descontiacutenuas em seu

grupo de pesquisas sobre o corpo

Aos amigos Abili Laacutezaro Castro de Lima Alexandre Morais da Rosa Benedito

Costa Bruno Cava Cleverson Leite Bastos Christina Miranda Ribas Cristiano Knapp

Deisy Ventura Eduardo Sterzi Felipe Augusto Vicario de Carli Gabriel Merheb Petrus

Gilson Bonato Giuseppe Cocco Guilherme Roman Borges Gustavo Chaves Heloiacutesa

Fernandes Cacircmara Idelber Avelar Joseacute Roberto Vieira Laurent de Sutter Leonardo

DrsquoAacutevila de Oliveira Maria de Faacutetima S Tecchio Miguel Gualano de Godoy Paacutedua

Fernandes Ricardo Prestes Pazello e Verocircnica Stigger agradeccedilo pelas amizade e pelas

oportunidades formais e informais de discussatildeo de alguns desses estudos e ideias Aos

alunos orientandos e professores da Faculdade de Direito da Universidade Estadual de

Ponta Grossa agradeccedilo pela presenccedila geradora de ideias alegres e inconstantes Estas

paacuteginas tambeacutem satildeo dedicadas a vocecircs

6

O tempo insiste porque existe

um tempo que haacute de vir

Vinicius de Moraes

7

RESUMO

O presente estudo tem por objeto investigar a gecircnese dos potenciais

transformativos geralmente atribuiacutedos agrave memoacuteria pelos modernos teoacutericos da Justiccedila de

Transiccedilatildeo A partir de sua relaccedilatildeo geneacutetica com o Direito Internacional dos Direitos

Humanos elucidaram-se os contornos do conceito de memoacuteria na Teoria da Justiccedila de

Transiccedilatildeo demonstrando-se tanto a centralidade da memoacuteria na efetuaccedilatildeo das praacuteticas

transicionais como uma constante atribuiccedilatildeo de potenciais transformativos agrave memoacuteria

Uma vez diagnosticada a lacunaridae dessa relaccedilatildeo ndash jamais explicada em sua dinacircmica

proacutepria entre os teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo ndash formulou-se a hipoacutetese de que um

conceito ontoloacutegico dinacircmico e metaindividual de memoacuteria tal como registrado pela

filosofia de Henri Bergson poderia abranger os heterogecircneos conceitos de memoacuteria dos

teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo com a vantagem analiacutetica de permitir integrar a lacuna

teoacuterica encontrada explicando-se como se podem atribuir potenciais transicionais agrave

memoacuteria Para tanto foi necessaacuterio demonstrar que a filosofia bergsoniana da duraccedilatildeo

instaura um viacutenculo entre ontologia e poliacutetica duraccedilatildeo real memoacuteria e variaccedilatildeo das formas

de vida Em seguida buscamos derivar dessa ontologia poliacutetica bergsoniana as

consequecircncias subjetivas morais e institucionais correlatas a dois grandes referenciais que

Bergson e a Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo possuem em comum a democracia e os direitos

humanos Dessa forma pretendeu-se estabelecer um problema ainda natildeo investigado no

acircmbito da Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo e oferecer-lhe uma soluccedilatildeo original agrave luz de sua

interlocuccedilatildeo com a filosofia de Henri Bergson seu conceito de memoacuteria e suas

implicaccedilotildees poliacuteticas

Palavras-chave Memoacuteria Justiccedila de Transiccedilatildeo Henri Bergson

8

ABSTRACT

The present essay aims to investigate the genesis of transformative potencies

generally assigned to memory by modern Transitional Justicersquos theorists Starting on its

genetic relationship with International Human Rights Law this essay have clarified the

patterns of memory in Transitional Justice proving the central role played by memory in

the field of transitional practices as well as it has demonstrated the constant assignment of

transformative potencies to memory Once established these patterns this study diagnosed

a theoretical gap on connecting memory and transition on Transitional Justice theory

Therefore according to our hypothesis an ontological dynamic and meta-individual

concept of memory as registered on Bergsonrsquos philosophy would comprehend

Transitional Justicersquos heterogenic notions of memory and could go far beyond them By

this mean we were able to fulfill the theoretical gap encountered in order to clarify how is

possible to assign transitional potencies to memory Thus this study demonstrates that

Bergsonrsquos durational philosophy promotes a connection between ontology and politics

real duration memory and variation of ways of life Afterwards we derivated from that

bergsonian political ontology subjective moral and institutional consequences related to

democracy and human rights ndash referrals that Bergson and Transitional Justicersquos theorists

have in common We have tried to establish a problem not yet investigated by Transitional

Justice Theory and offer a original solution to it since Henri Bergsonrsquos philosophy his

concept of memory and its political implications

Key-words Memory Transitional Justice Henri Bergson

9

SUMAacuteRIO

RESUMO 7

ABSTRACT 8

INTRODUCcedilAtildeO 11

PRIMEIRA PARTE

O ATUAL MEMOacuteRIA E TRANSICcedilAtildeO NA TEORIA DA JUSTICcedilA DE

TRANSICcedilAtildeO 15

CAPIacuteTULO 1 ndash A GEcircNESE DA TEORIA DA JUSTICcedilA DE TRANSICcedilAtildeO E O

DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS 16

CAPIacuteTULO 2 ndash DIREITO-ENTRE O JURIacuteDICO E AS INSTITUICcedilOtildeES NO SEIO DAS

TRANSICcedilOtildeES 30

sect 1 Direito instituiccedilotildees e transiccedilatildeo 30

sect 2 O que um passado tem de insuportaacutevel notas sobre a continuidade do passado no

presente a partir do caso brasileiro 37

CAPIacuteTULO 3 ndash O CONCEITO DE MEMOacuteRIA NA TEORIA DA JUSTICcedilA DE

TRANSICcedilAtildeO 46

sect 1 Memoacuteria verdade e Direito Internacional dos Direitos Humanos 49

sect 2 Os contornos do conceito de memoacuteria no campo transicional 53

sect 3 A centralidade da memoacuteria e seus potenciais transformativos 64

SEGUNDA PARTE

O VIRTUAL A IDEIA DE MEMOacuteRIA NA FILOSOFIA DE HENRI BERGSON 84

CAPIacuteTULO 4 ndash UM SALTO NO VIRTUAL DO SER PRESENTE AO SER DO

PASSADO 85

sect 1 Bergsonismo muacuteltiplas entradas 88

sect 2 Duraccedilatildeo o sentido e a realidade do tempo 97

sect 3 Do ser presente ao ser do passado 110

CAPIacuteTULO 5 ndash MEMOacuteRIA FUNDAMENTO DO TEMPO 126

sect 1 O problema do reconhecimento o ceacuterebro e as duas memoacuterias 127

sect 2 Coexistecircncias a consistecircncia virtual da memoacuteria 141

sect 3 O ser do passado como fundamento do tempomemoacuteria repeticcedilatildeo e devir 157

TERCEIRA PARTE

LINHAS DE ATUALIZACcedilAtildeO BERGSON O ABERTO E A TRANSICcedilAtildeO 168

CAPIacuteTULO 6 ndash O ABERTO E A JUSTICcedilA DE TRANSICcedilAtildeO DEMOCRACIA E

DIREITOS HUMANOS 169

sect 1 O fechado o social e o vital 172

sect 2 Abrir o fechado ruptura e devir 198

10

sect 3 Perseverar no abertotransiccedilatildeo democracia e direitos humanos 214

sect 4 Retornar ao concretomemoacuteria e justiccedila de transiccedilatildeo 251

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 268

REFEREcircNCIAS 275

11

INTRODUCcedilAtildeO

ldquoSua narrativa afirma que o inesqueciacutevel existerdquo A frase de Krikor Beledian

evocada em um dos textos de Lembrar escrever esquecer (GAGNEBIN 2006 p 47)

consiste na nota fundamental que percorre todas essas paacuteginas por ressonacircncia ou

incandescecircncia Ela eacute seu princiacutepio de impureza e contaminaccedilatildeo No entanto ela eacute lida a

partir de uma forma de exerciacutecio quase patoloacutegico do pensamento eacute dizer ela eacute lida

literalmente levada ao limite de sua proacutepria expressatildeo ao limiar do que Beledian talvez

jamais quisera dizer ao enunciaacute-la

Assim afirmar que o inesqueciacutevel existe torna-se natildeo uma tarefa essencial poliacutetica

e eacutetica sem gloacuteria do historiador que luta contra a repeticcedilatildeo do horror Ela eacute isso mas eacute

mais que isso A afirmaccedilatildeo de que o inesqueciacutevel existe eacute aqui assumida como um iacutendice

de positividade instaurador de um limiar significante a partir do qual jaacute natildeo parece mais tatildeo

absurdo afirmar a realidade ou o ser da memoacuteria Ela eacute o inesqueciacutevel ndash mas tambeacutem a

obscura espectral e ativa presenccedila do imemorial

As paacuteginas que se seguem consistem pois em uma maacutequina de produzir essa

afirmaccedilatildeo ldquoo inesqueciacutevel existerdquo Jaacute natildeo se trata de algo que desejando-o natildeo queremos

esquecer mas de um apelo agrave compreensatildeo da memoacuteria como uma regiatildeo do existente do

real Isso implica recusar toda estrateacutegia de reduccedilatildeo do conceito de memoacuteria a seus

aspectos de lembranccedila individual ou psicoloacutegica de representaccedilatildeo coletivamente

partilhada fundadora de identidades de grupo ou de forma vazia e ontologicamente

negativa de representificaccedilatildeo de algo ausente O passado nesse caso seria apenas o que

natildeo eacute mais o futuro o que natildeo eacute ainda

Nesse sentido as formulaccedilotildees modernas e contemporacircneas da Teoria da Justiccedila de

Transiccedilatildeo1 satildeo mobilizadas como campo teoacuterico e problemaacutetico concreto a partir do qual

essa recusa eacute colocada em jogo Contemplando praacuteticas institucionais e simboacutelicas a serem

efetuadas em momentos de fluxo poliacutetico (justiccedila reparaccedilatildeo reformas purgas etc) eacute nos

quadros da Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo que a memoacuteria aparece continuamente como

elemento chave para sua efetuaccedilatildeo Portanto eacute no seio da Justiccedila de Transiccedilatildeo que as

interrogaccedilotildees sobre uma memoacuteria despida de qualquer realidade podem adquirir contornos

metafiacutesicos mas tambeacutem poliacuteticos relacionados agrave constituiccedilatildeo de novas formas de vida

1 Paul Van Zyl (2009a p 32) define brevemente Justiccedila de Transiccedilatildeo como ldquoo esforccedilo para a construccedilatildeo da

paz sustentaacutevel apoacutes um periacuteodo de conflito violecircncia em massa ou violaccedilatildeo sistemaacutetica dos direitos

humanosrdquo

12

A dimensatildeo poliacutetica da memoacuteria na Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo constitui ainda

uma constante Comumente satildeo atribuiacutedos potenciais transformativos agrave memoacuteria de forma

que a veremos aparecer como uma espeacutecie de condiccedilatildeo (positiva ou negativa) sempre

ligada agrave efetuaccedilatildeo das transiccedilotildees reais O que permanece lacunar e sem explicaccedilatildeo ndash lacuna

que devemos demonstrar em detalhe ndash consiste justamente no aparente automatismo dessa

atribuiccedilatildeo No entanto como atribuir a um conceito individual os potenciais de produzir

mutaccedilotildees poliacuteticas de grande escala Como emprestar potenciais transformativos e

dinacircmicos a um conceito coletivo mas representativo e estaacutetico Como a contumaz faceta

ontoloacutegica negativa pela qual se pensa a memoacuteria ndash como conceito sem realidade proacutepria ndash

poderia engendrar as positividades que uma transiccedilatildeo real exige e nas quais ganha corpo

concreto Ao se fazer da memoacuteria uma espeacutecie de deus ex machina das transiccedilotildees reais

todas essas questotildees permaneceriam sem explicaccedilatildeo

Essa lacuna eacute progressivamente identificada e estabelecida a partir de uma

correlaccedilatildeo geneacutetica entre a moderna Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo e o Direito

Internacional dos Direitos Humanos Em seus quadros definimos estruturalmente as

formas e praacuteticas da Justiccedila de Transiccedilatildeo aprofundando-as progressivamente a fim de

esclarecer o sentido do binocircmio memoacuteria-verdade Ele nos forneceria a chave de

interrogaccedilotildees metaestruturais pelas quais poderemos estabelecer os contornos analiacuteticos do

conceito de memoacuteria tal como ele eacute heterogeneamente engendrado pelos teoacutericos da

Justiccedila de Transiccedilatildeo

Realizado esse percurso ao qual dedicamos a primeira parte deste trabalho

resultaria necessaacuterio interrogar de que maneira se poderia integrar a lacuna encontrada

pois natildeo conseguir explicar a origem dos potenciais transformativos da memoacuteria implica

expocirc-la ao risco poliacutetico de denegaacute-la impunemente ou de soldaacute-la acriticamente agraves

narrativas oficiais Ao mesmo tempo a lacuna uma vez estabelecida teria deixado exposto

e aberto o fundamento infundado dos potencias transicionais continuamente atribuiacutedos agrave

memoacuteria pela Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo

Poreacutem intuiccedilotildees preacute-conceituais e natildeo hegemocircnicas no campo teoacuterico da Justiccedila de

Transiccedilatildeo ofereceriam tendecircncias cujos devires poderiacuteamos amarrar integrando a um novo

e mais compreensivo conceito natildeo apenas as heterogecircneas camadas de memoacuteria elaboradas

pelos teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo mas tambeacutem oferecer uma contribuiccedilatildeo a este

campo teoacuterico e juriacutedico a partir de uma interlocuccedilatildeo com a filosofia de Henri Bergson

Poreacutem por que Bergson Eacute preciso explicar como o bergsonismo nos auxilia a

ldquoamarrar deviresrdquo conceituais que se insinuam a partir do proacuteprio marco teoacuterico da Justiccedila

13

de Transiccedilatildeo Ao longo do terceiro capiacutetulo registramos a apariccedilatildeo de duas noccedilotildees preacute-

conceituais de memoacuteria entre os teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo A primeira

reconceptualizava a memoacuteria como memoacuteria dinacircmica instaacutevel flexiacutevel a partir das

recentes descobertas das neurociecircncias sobre as funccedilotildees evolutivas e adaptativas da

memoacuteria (BARSALOU BAXTER 2007 p 04 PHELPS 2012 p 07 e NAGEL

SINOTT-ARMSTRONG 2012 p 05) A segunda conceituava a memoacuteria

independentemente dos referenciais da lembranccedila individual Cada uma dessas tendecircncias

de efetuaccedilatildeo do conceito precisaria cruzar-se com a outra a fim de produzir uma memoacuteria

ao mesmo tempo dinacircmica e emancipada dos referenciais meramente individuais No

entanto ateacute o presente a Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo natildeo conseguiu apreendecirc-la nesse

sentido Os autores que compreendem o sentido dinacircmico da memoacuteria ndash por influecircncia do

campo experimental das neurociecircncias ndash estabelecem o conceito a partir do campo das

memoacuterias individuais e psicoloacutegicas Os que engendram um conceito de memoacuteria que visa

a superar o campo individual ndash ainda que a qualifiquem vagamente como um ldquoprocessordquo

jamais detalhado ndash natildeo escapam ao fixismo e agrave loacutegica da representaccedilatildeo Aleacutem disso restara

em aberto determinar de que maneira se podem atribuir potenciais transformativos agrave

memoacuteria isto eacute o que justifica que ela apareccedila constantemente como elemento chave agrave

efetuaccedilatildeo das transiccedilotildees

Eacute no sentido de esclarecer esses dois problemas que mobilizamos a filosofia de

Henri Bergson (1) engendrar um conceito de memoacuteria mais compreensivo ao mesmo

tempo dinacircmico e emancipado de um referencial forccedilosamente individual promovendo

uma interlocuccedilatildeo interdisciplinar com sua filosofia a partir de problemas estabelecidos na

Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo (2) a partir do estabelecimento desse conceito ndash que

adquire em Bergson tonalidades ontoloacutegicas ndash trata-se de apresentar uma colaboraccedilatildeo

original para elucidar a gecircnese dos potenciais transformativos atribuiacutedos agrave memoacuteria nesse

campo teoacuterico afastando os riscos poliacuteticos inerentes agrave lacunaridade Esses objetivos

baseiam-se na hipoacutetese de que eacute necessaacuterio rearticular o conceito de memoacuteria na teoria da

Justiccedila de Transiccedilatildeo de um ponto de vista ontoloacutegico e ainda assim dinacircmico e natildeo

meramente individual ou psicoloacutegico a fim de explicar a relaccedilatildeo sempre solicitada mas

elidida entre memoacuteria e transiccedilatildeo

Por isso seraacute necessaacuterio reconstituir as linhas gerais da argumentaccedilatildeo de Bergson

sobre a memoacuteria compreendendo-a como uma ldquoregiatildeo do existenterdquo Essa memoacuteria ndash

dando consistecircncia agrave afirmaccedilatildeo de que ldquoo inesqueciacutevel existerdquo ndash seraacute qualificada como o

virtual um dos registros que juntamente com o atual consistem nas duas metades que

14

compotildeem uma mesma estrutura do real para Bergson Enquanto o atual apareceraacute soldado

ao espaccedilo e agrave inteligecircncia ndash embora continuamente variaacutevel em funccedilatildeo do tempo ndash o

virtual designa a duraccedilatildeo real potecircncia de variaccedilatildeo das formas inorgacircnicas orgacircnicas e

poliacuteticas Desse ponto de vista esclarecer de que forma a memoacuteria pode consistir em

fundamento do tempo eacute muito mais do que um exerciacutecio abstrato e metafiacutesico estabelececirc-

lo implica jaacute compreender em profundidade a partir do ser ndash que para dizecirc-lo em uma

palavra em Bergson confunde-se com o devir ndash a centralidade da memoacuteria como

elemento chave nas estrateacutegias genuinamente poliacuteticas para fender as camadas soacutelidas do

atual ou do presente Como natildeo seria esta precisamente a questatildeo uacuteltima de toda a Justiccedila

de Transiccedilatildeo ldquocomo reabrir o fechadordquo Como responder a ela evocando uma memoacuteria

fixa e representativa ou meramente dinacircmica e individual ndash ainda que conserve uma

natureza profundamente emocional (ELSTER 2003 p 11)

Toda a longa demonstraccedilatildeo que tem por objeto a filosofia bergsoniana articulada a

partir das relaccedilotildees entre memoacuteria e transiccedilatildeo em seus diversos niacuteveis de atualizaccedilatildeo (do

ontoloacutegico ao poliacutetico) envolve as diversas e heterogecircneas camadas de memoacuteria a partir de

um solo comum e imanente uma ontologia da memoacuteria capaz de explicar mesmo o ato

aparentemente mais individual ndash seja ele o ato de reminiscecircncia do vivido seja ele o ato de

liberdade que como veremos manteacutem uma relaccedilatildeo essencial com a memoacuteria no

bergsonismo

Nas linhas que se seguem a esta breve introduccedilatildeo seraacute preciso avaliar tambeacutem

como Bergson mobiliza seu conceito ontoloacutegico e potente de memoacuteria ndash que se confunde

com as virtualidades que produzem atualizaccedilotildees e variaccedilotildees contiacutenuas no Todo do real ndash a

fim de construir um viacutenculo agraves nossas vistas indissoluacutevel entre sua ontologia da memoacuteria

e a dimensatildeo da poliacutetica Como extensatildeo desse mesmo gesto seraacute preciso verificar de que

modo Bergson poderia auxiliar a lanccedilar luzes sobre os arcanos dos potenciais

transformativos da memoacuteria do ponto de vista da mutaccedilatildeo institucional e poliacutetica concreta

Nesse limiar envolvem-se os conceitos de aberto e transiccedilatildeo entrevistos a partir da

intuiccedilatildeo miacutestica e da emoccedilatildeo criadora como motores profundos das transiccedilotildees poliacuteticas

mas tambeacutem da constituiccedilatildeo de instituiccedilotildees democraacuteticas derivadas do apelo universal que

proveacutem dos Direitos Humanos capazes de nos permitir reabrir o fechado combater o

fechamento e perseverar no aberto (Terceira Parte)

15

PRIMEIRA PARTE

O atual memoacuteria e transiccedilatildeo na Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo

16

CAPIacuteTULO 1 ndash A GEcircNESE DA TEORIA DA JUSTICcedilA DE TRANSICcedilAtildeO

E O DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS

A literatura claacutessica da Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo ao registrar a longa histoacuteria

das experiecircncias juriacutedicas transicionais natildeo raro a faz remontar a periacuteodos arcaicos que se

confundem com as primeiras emergecircncias de uma forma democraacutetica de governo no

Ocidente Jon Elster (2006 p 17) o confirma ao assinalar que ldquoLa justicia transicional

democraacutetica es casi tan antigua como la democracia mismardquo

No entanto evitaremos recuar tatildeo intensamente Interessa-nos por ora avaliar

como o conceito de memoacuteria constroacutei-se como o epicentro da Teoria da Justiccedila de

Transiccedilatildeo bem como analisar sua heterogecircnea composiccedilatildeo nos estritos limites do marco

da produccedilatildeo teoacuterica que se seguiu ao fenocircmeno da internacionalizaccedilatildeo dos direitos

humanos trata-se portanto para o momento de esclarecer que elegemos como ponto focal

de nossa investigaccedilatildeo sobre o conceito de memoacuteria sua elaboraccedilatildeo na moderna Teoria da

Justiccedila de Transiccedilatildeo uma vez que desejamos avaliar a gecircnese reciacuteproca entre o processo

histoacuterico de internacionalizaccedilatildeo dos Direitos Humanos e a emergecircncia de uma doutrina

moderna da Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo erigida sobre fundamentos transnacionais

privilegiadamente ao longo da primeira metade do Seacuteculo XX Com isso pretendemos

demonstrar a impossibilidade de se compreender a moderna formulaccedilatildeo da Justiccedila de

Transiccedilatildeo dissociada dos processos que conduziram agrave adoccedilatildeo de mecanismos

internacionais de proteccedilatildeo e promoccedilatildeo dos direitos humanos especialmente no contexto

histoacuterico-poliacutetico e mundial que se seguiu agraves consequecircncias imprevistas que decorreram

das duas grandes guerras mundiais

O dia 4 de agosto de 1914 assinala o advento da I Guerra Mundial como o evento

explosivo que dilacerara a cena e a comunidade poliacutetica dos paiacuteses europeus Em um

cenaacuterio de inflaccedilatildeo destruiccedilatildeo da classe de pequenos proprietaacuterios e desemprego radical

assiste-se agrave paulatina migraccedilatildeo de compactos grupos humanos que natildeo eram bem-vistos ou

bem-vindos em lugar algum do continente Europeu Deixando seus Estados de origem

esses indiviacuteduos tornavam-se apaacutetridas inassimilaacuteveis e uma vez que perdiam seus

direitos seriam de agora em diante vistos por toda parte como ldquoo refugo da terrardquo

(ARENDT 2009 p 300) ndash expressatildeo que o jornal oficial das SS utilizava para qualificar

os judeus desnacionalizados em massa pelo III Reich entre os quais a proacutepria Arendt em

1933 apoacutes passar por um breve periacuteodo de encarceramento

17

No crepuacutesculo da Primeira Guerra Mundial assiste-se do ponto de vista

macropoliacutetico agrave raacutepida degradaccedilatildeo das estruturas despoacuteticas imperiais europeias Com ela

todas as nacionalidades efervescentes que se encontravam sob o manto imperial satildeo

violentamente liberadas das estruturas nacionais unitaacuterias que as submetiam e voltam-se

umas contra as outras eslovacos contra tchecos croatas contra seacutervios ucranianos contra

poloneses

Nesse cenaacuterio poliacutetico intensamente degradado os dois segmentos humanos que

mais sofreratildeo as consequecircncias dessa realidade dilacerante seratildeo os apaacutetridas e as minorias

que segundo Arendt (2009 p 302) ldquohaviam perdido aqueles direitos que ateacute entatildeo eram

tidos e ateacute definidos como inalienaacuteveis (Direitos do Homem)rdquo dado que jaacute natildeo dispunham

de governos nacionais proacuteprios que os representassem e protegessem ademais

encontravam-se forccedilados a viver sob as leis de exceccedilatildeo dos Tratados das Minorias que

praticamente todos os governos dos Estados sucessoacuterios haviam assinado sob protesto e

natildeo reconheciam como lei

As etnias minoritaacuterias e sem Estado logo veriam a precaacuteria condiccedilatildeo de cidadania

na qual se encontravam ser rapidamente assimilada agrave dos apaacutetridas Entre os anos de 1915

e 1935 mesmo naccedilotildees tradicionalmente reconhecidas pela defesa e proteccedilatildeo dos direitos

humanos ndash como Franccedila Beacutelgica Itaacutelia Aacuteustria e mais tarde Alemanha ndash editaram leis

que permitiram a desnaturalizaccedilatildeo e a desnacionalizaccedilatildeo massiva de cidadatildeos culminando

na lei de Nuremberg que distinguiria em 1935 entre cidadatildeos alematildees de pleno direito e

cidadatildeos sem quaisquer direitos poliacuteticos (AGAMBEN 1996 p 22)

De posse desse poderoso instrumento juriacutedico-poliacutetico que logo se converteria em

instrumento das poliacuteticas totalitaacuterias que faziam sua escalada global a situaccedilatildeo das

minorias e dos apaacutetridas ndash outrora excepcional ndash generaliza-se velozmente a tal ponto que

em certo momento diversos paiacuteses europeus possuiacuteam a capacidade juriacutedica de utilizaacute-lo

para se desfazerem de massas populacionais inteiras

Diante da incapacidade constitucional dos Estados europeus de protegerem os

Direitos Humanos daqueles que haviam perdido com a sua nacionalidade seus direitos de

cidadania a escala de valores dos paiacuteses totalitaacuterios passa a impor-se por toda a parte

Arendt registra que judeus ciganos e trotskistas eram recebidos como ldquoo refugo da terrardquo2

2 Eacute tambeacutem Arendt (2009 p 302) quem destaca a relaccedilatildeo entre os meios teacutecnico-juriacutedicos que tornavam a

desnacionalizaccedilatildeo de cidadatildeos indesejaacuteveis uma capacidade de diversos Estados europeus no periacuteodo do poacutes-

Primeira Guerra e a difusatildeo do antissemitismo a desnacionalizaccedilatildeo teria sido segundo Arendt o mais eficaz

instrumento de propagaccedilatildeo de valores antijudaicos ldquoO jornal oficial da SS o Schwartze Korps disse

explicitamente em 1938 que se o mundo ainda natildeo estava convencido de que os judeus eram o refugo da

18

aonde quer que fossem Mais do que uma tentativa alematilde de livrar-se dos judeus sua

perseguiccedilatildeo tinha o propoacutesito de espalhar o antissemitismo como um valor pelos paiacuteses

europeus democraacuteticos Esse tipo de propaganda segundo Arendt teria sido especialmente

eficaz porque sua retoacuterica intriacutenseca anulava a tese jusnaturalista iluminista e redentora

que advogava a existecircncia de direitos humanos inalienaacuteveis ao mesmo tempo em que

revelava a hipocrisia e a covardia dos paiacuteses democraacuteticos em relaccedilatildeo agrave proteccedilatildeo dos

direitos humanos

Segundo Arendt a desintegraccedilatildeo interna dos Estados-Naccedilatildeo observou-se a partir da

Primeira Guerra Mundial uma vez que os Tratados de Paz impostos aos Estados

sucessoacuterios geravam tensatildeo tanto entre as ldquominorias nacionaisrdquo quanto no acircmbito dos

novos Estados As minorias acreditavam-se injusticcediladas pela arbitrariedade dos Tratados

de Paz que contemplavam apenas a alguns povos com Estados enquanto sujeitavam os

demais agrave servidatildeo e agrave falta de autodeterminaccedilatildeo poliacutetica os Estados receacutem-criados por sua

vez viam os Tratados das Minorias como prova de discriminaccedilatildeo pois somente os Estados

sucessoacuterios restavam-lhes subordinados

Concebidos como um mecanismo de assimilaccedilatildeo das minorias agraves estruturas

sistemaacuteticas dos Estados-Naccedilatildeo a proteccedilatildeo dos Minority Treaties apenas alcanccedilava as

nacionalidades com certa densidade demograacutefica natildeo sendo aplicaacutevel a todas as minorias

ndash as quais foram deixadas sem governo proacuteprio e completamente agrave margem do direito No

entanto os povos contemplados com Estados ainda que politicamente majoritaacuterios

padeciam de certa fraqueza numeacuterica e cultural diante da vultosa diversidade das minorias

nem os Tratados das Minorias tampouco a Liga das Naccedilotildees puderam contudo evitar que

as minorias nacionais fossem assimiladas mais ou menos agrave forccedila agraves estruturas dos Estados

sucessoacuterios

Ignorando completamente a Liga das Naccedilotildees e buscando solucionar de forma

autocircnoma o seu problema de autodeterminaccedilatildeo poliacutetica ndash inencontraacutevel no seio dos

Estados sucessoacuterios ndash as minorias organizam-se ao redor do Congresso dos Grupos

Nacionais Organizados nos Estados Europeus Uma vez que todas as nacionalidades

aderiram ao Congresso terminaram por superar em nuacutemero os povos estatais ainda o

Congresso dos Grupos Nacionais representava uma forma de organizaccedilatildeo que ultrapassava

os tratados da Liga das Naccedilotildees na medida em que estes ignoravam o caraacuteter interestatal

terra iria convencer-se tatildeo logo transformados em mendigos sem identificaccedilatildeo sem nacionalidade sem

dinheiro e sem passaporte esses judeus comeccedilassem a atormentaacute-los em suas fronteirasrdquo (Idem ibidem loc

cit)

19

das nacionalidades minoritaacuterias Isso colocava em xeque o princiacutepio territorial em que se

encontrava baseada a Liga ao mesmo tempo em que apressando sua superaccedilatildeo

antecipava o que viria a ser uma importante caracteriacutestica na gecircnese do Direito

Internacional dos Direitos Humanos no periacuteodo do Poacutes-Segunda Guerra Mundial a

superaccedilatildeo do princiacutepio territorial fiador do poder domeacutestico dos Estados-Naccedilatildeo gerador

da necessidade de deslocar a base normativa dos Direitos Humanos em direccedilatildeo a uma

fundamentaccedilatildeo que jaacute natildeo permanecesse confinada agraves estruturas meramente domeacutesticas ou

nacionais

Disseminados por todos os Estados sucessoacuterios alematildees e judeus dominaram

politicamente o Congresso deflagrando uma relaccedilatildeo colaborativa harmoniosa e suficiente

para manter a agremiaccedilatildeo coesa Em 1933 no entanto com a ascensatildeo de Hitler ao poder

na Alemanha a delegaccedilatildeo judaica exige uma moccedilatildeo congressual de protesto contra o

tratamento dispensado aos judeus pelo governo do III Reich Ao passo em que os alematildees

nacionalmente minoritaacuterios anunciam sua solidariedade agrave Alemanha nazista e conseguem o

apoio da maioria das naccedilotildees minoritaacuterias o antissemitismo floresce em todos os Estados

sucessoacuterios tendo por consequecircncia o abandono do Congresso dos Grupos Nacionais pela

delegaccedilatildeo judaica (ARENDT 2009 p 308)

A importacircncia dos Tratados das Minorias consistiu em terem sido os primeiros

documentos legais que reconheceram a existecircncia das minorias agrave margem do ordenamento

juriacutedico-poliacutetico como instituiccedilatildeo permanente necessitando de uma garantia adicional de

seus direitos Isso significou que se tornava expliacutecito o que ateacute entatildeo o sistema dos

Estados-Naccedilatildeo pregava apenas obscuramente por meio de suas praacuteticas ndash que apenas os

nacionais poderiam ser cidadatildeos efetivos que a lei de um paiacutes natildeo poderia ser responsaacutevel

por pessoas que de alguma forma resistiam agrave assimilaccedilatildeo Dessa forma o Estado passava

de instrumento da lei em instrumento da Naccedilatildeo muito antes de Hitler ter proclamado que

ldquoa lei eacute aquilo que eacute bom para o povo alematildeordquo ndash o desfecho previsiacutevel segundo Arendt

(2009 p 309) das estruturas de Estados-Naccedilatildeo que a forma constitucional de governo

travestiu por longo tempo em impeacuterio da lei

Os Tratados das Minorias visavam a assegurar aos povos nacionais ldquosem Estadordquo

uma garantia adicional de seus direitos ao passo em que estes de jure integravam o corpo

poliacutetico de determinado Estado As Naccedilotildees europeias tradicionais natildeo foram obrigadas a

aderir a eles na medida em que suas estruturas constitucionais jaacute se supunham edificadas

sobre a ideologia da proteccedilatildeo dos direitos do homem distintamente do que acontecia agraves

recentes naccedilotildees sucessoacuterias das quais se exigia proteccedilatildeo adicional agraves minorias

20

Por longo tempo considerado apenas uma anomalia legal desprovida de

importacircncia o apaacutetrida recebeu atenccedilatildeo muito tardia quando sua posiccedilatildeo legal foi tambeacutem

aplicada aos refugiados expulsos de seus paiacuteses e desnacionalizados pelos vitoriosos nas

revoluccedilotildees Na eacutepoca que precedeu a Segunda Guerra a desnacionalizaccedilatildeo em massa

constituiacutea um fenocircmeno novo e imprevisto pressupunha uma estrutura estatal que ou era

totalitaacuteria ou jaacute demonstrava completa incapacidade de tolerar oposiccedilatildeo tanto que em

Origens do Totalistarismo Arendt (2009 p 312) sente-se tentada a ldquomedir o grau de

infecccedilatildeo totalitaacuteria de um governo pelo grau em que usa o soberano direito de

desnacionalizaccedilatildeo []rdquo

Com a insidiosa multiplicaccedilatildeo do nuacutemero de apaacutetridas o direito de asilo ndash ateacute

entatildeo siacutembolo dos direitos do homem (ALMEIDA 2001 p 85-96) ndash eacute abolido praacutetica e

tacitamente No mesmo sentido a Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem nunca fora

incorporada agrave legislaccedilatildeo interna de nenhum Estado-Naccedilatildeo ateacute este momento Os refugiados

tornam-se um problema pois ao mesmo tempo em que os Estados natildeo conseguiam

desvencilhar-se deles tambeacutem natildeo desejavam tornaacute-los cidadatildeos Constatava-se o

esgotamento das alternativas tradicionais como a repatriaccedilatildeo ou a naturalizaccedilatildeo As

pessoas sem Estado por sua vez insistiam em suas nacionalidades e resistiam agrave

assimilaccedilatildeo por quaisquer outras naccedilotildees

Fracassadas as tentativas de repatriaccedilotildees e naturalizaccedilotildees os apaacutetridas

encontravam-se gravados com uma espeacutecie de condiccedilatildeo de indeportabilidade que logo se

tornaria regra nos campos de concentraccedilatildeo e extermiacutenio (ARENDT 2009 p 317) Um

homem sem Estado era uma anormalidade um fenocircmeno imprevisto que natildeo gozava de

qualquer posiccedilatildeo apropriada na estrutura da lei em geral Ficava pois agrave mercecirc da poliacutecia

que natildeo hesitava em perpetrar ilegalidades para diminuir o nuacutemero de indeacutesirables em seu

paiacutes expulsando-os contrabandeando-os para paiacuteses vizinhos ndash e estes natildeo hesitavam em

retribuir o gesto do mesmo modo Eclodiam conflitos entre poliacutecias transfronteiriccedilas

cresciam as sentenccedilas de prisotildees de apaacutetridas falhavam todas as tentativas internacionais

de estabelecer alguma condiccedilatildeo de legalidade para as massas de povos sem Estado Assim

os campos de internamento tornavam-se o uacutenico substitutivo de uma paacutetria e

generalizavam-se progressivamente como soluccedilatildeo para displaced people

Os mecanismos de naturalizaccedilatildeo falharam a priori frente agrave virtual demanda de

naturalizaccedilatildeo em massa ndash mas sua ineficaacutecia deveu-se tambeacutem agrave circunstacircncia de que os

povos sem Estado tampouco viam grande vantagem na naturalizaccedilatildeo ndash jaacute que os

naturalizados eram frequentemente ameaccedilados com a desnacionalizaccedilatildeo e com a

21

consequente privaccedilatildeo de direitos O apaacutetrida sem direito de residir ou trabalhar era

obrigado a viver constantemente fora da lei embora por sua condiccedilatildeo estivesse sujeito ao

encarceramento sem ter jamais cometido um crime ldquoUma vez que ele constituiacutea a

anomalia natildeo-prevista na lei geral era melhor que se convertesse na anomalia que ela

previa o criminosordquo afirma Arendt (2009 p 319)3 Ao passo em que campos de

concentraccedilatildeo satildeo progressivamente criados em praticamente todos os paiacuteses o mundo

europeu civilizado e livre passa a articular-se com o plexo de valores e a legislaccedilatildeo dos

paiacuteses totalitaacuterios por meio das poliacutecias nacionais que se implantariam em prol da

Seguranccedila Nacional

O que o cenaacuterio europeu do entreguerras colocava em xeque era precisamente a

categoacuterica pretensatildeo expressa na Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo do fim

do seacuteculo XVIII que a um soacute tempo erigia o homem agrave condiccedilatildeo de fonte e objetivo dos

Direitos do Homem aos quais emprestava as qualidades de direitos inalienaacuteveis

irredutiacuteveis recebidos por nascimento e indedutiacuteveis de outros direitos ou de outra

autoridade diversa da natureza humana Tais direitos eram constantemente invocados para

garantir certas prerrogativas dos sujeitos em face do arbiacutetrio dos Estados soberanos sendo

tal soberania proclamada em nome de um conceito abstrato de Homem4 impossiacutevel de ser

apreendido senatildeo diluiacutedo no conceito deveras geral de povo o qual teria direito a um

autogoverno soberano Nesse ponto Hannah Arendt identifica o paradoxo jaacute enunciado na

declaraccedilatildeo de direitos referida a um homem abstrato destacado de todo contexto social ou

comunitaacuterio que compunha o povo de um Estado-Naccedilatildeo associando-se a proteccedilatildeo dos

direitos humanos agrave soberania nacional

Giorgio Agamben (1996 p 24) renova a criacutetica arendtiana ao identificar o que

reputa ser a real funccedilatildeo biopoliacutetica da Declaraccedilatildeo de Direitos de 1789 inscrever a vida nua

natural na ordem juriacutedico-poliacutetica do Estado-Naccedilatildeo5 Agamben diagnostica a ambiguidade

3 Arendt (2009 p 320) diagnostica que ldquoA melhor forma de determinar se uma pessoa foi expulsa do acircmbito

da lei eacute perguntar se para ela seria melhor cometer um crime Se um pequeno furto pode melhorar a sua

posiccedilatildeo legal pelo menos temporariamente podemos estar certos de que foi destituiacuteda dos direitos humanos

Pois o crime passa a ser entatildeo a melhor forma de certa igualdade humana mesmo que ela seja reconhecida

como exceccedilatildeo agrave norma O fato ndash importante ndash eacute que a lei prevecirc essa exceccedilatildeordquo 4 Abstraccedilatildeo constitutiva do conceito moderno de homem ou de natureza humana jaacute denunciada e natildeo sem

ironia por espiacuteritos poliacuteticos tatildeo heterogecircneos como os de Edmund Burke (1820) em seu ldquoReflections on the

Revolution in Francerdquo e Karl Marx (2010) em ldquoSobre a questatildeo judaicardquo Sobre o primeiro conferir ainda

(ARENDT 2009 p 333-336) e para um breve comentaacuterio sobre o segundo ver tambeacutem (DOUZINAS

2000 p 371) 5 ldquoQuella nuda vita (la creatura umana) che nellrsquoAncien Reacutegime apparteneva a Dio e nel mondo classico

era chiaramente distinta (come zoeacute) dalla vita politica (bios) entra ora in primo piano nella cura dello Stato e

diventa per cosigrave dire il suo fondamento terreno Stato-nazione significa Stato che fa della nativitagrave della

nascita (cioegrave della nuda vita umana) il fondamento della propria sovranitagraverdquo (AGAMBEN 1996 p 24)

22

expressa pelo tiacutetulo da Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo em

que natildeo fica claro se ldquoHomemrdquo e ldquoCidadatildeordquo nomeiam duas realidades distintas ou se ao

reveacutes formam uma diacuteade na qual o primeiro termo (ldquoHomemrdquo) eacute apenas o conteuacutedo do

segundo (ldquoCidadatildeordquo)

O liame entre princiacutepios de natividade e da soberania restaria claro na medida em

que a aquisiccedilatildeo dos direitos humanos por nascimento (art 1ordm) aparece condicionada agrave

formaccedilatildeo de uma associaccedilatildeo poliacutetica soberana (arts 2ordm e 3ordm) capaz de garantir sua eficaacutecia

por meio do emprego da forccedila puacuteblica (art 12) instituiacuteda em benefiacutecio de todos6 A raiz

etimoloacutegica latina comum a natio e nascere confirmaria ainda uma vez e de um ponto de

vista genealoacutegico o fenocircmeno do nascimento como a fundamentaccedilatildeo uacuteltima dos Estados-

Naccedilatildeo O que Arendt enxergava como a diluiccedilatildeo da condiccedilatildeo humana concreta na

antropologia filosoacutefica universal e abstrata do iluminismo moderno e em sua reduccedilatildeo

poliacutetica ao conceito de povo constituiria mais profundamente segundo Agamben a

fundamentaccedilatildeo da soberania nacional moderna erigida sobre o que Arendt chamava ldquovida

nua naturalrdquo

Condicionou-se a visatildeo da humanidade como uma famiacutelia de naccedilotildees de forma que

o povo e natildeo o homem representava a imagem do homo cujos direitos eram garantidos

pela Declaraccedilatildeo identificando direitos do homem e direitos dos povos no sistema europeu

de Estados-Naccedilatildeo Com o aparecimento crescente de pessoas e povos cujos direitos natildeo

eram salvaguardados por essa sistemaacutetica os Direitos do Homem ndash supostamente

inalienaacuteveis ndash mostravam-se inexequiacuteveis sempre que surgiam pessoas que natildeo eram

cidadatildes de qualquer Estado soberano (ARENDT 2009 p 327)

A perda da proteccedilatildeo do governo significava a um soacute tempo a perda da condiccedilatildeo de

legalidade em seu paiacutes ndash e em qualquer outro paiacutes Trata-se da degradaccedilatildeo uacuteltima do direito

a ter direitos que decorre natildeo da perda do direito agrave vida agrave liberdade ou agrave propriedade mas

do fato de existirem sujeitos que natildeo pertenciam a qualquer comunidade que se

encontravam em um limiar de absoluta indiferenccedila juriacutedica A lei tornava-se um

mecanismo de produccedilatildeo de indiferenccedila legal incapaz de imaginaacute-los sequer como sujeitos

6 Os dispositivos referidos integram a Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo de 1789

In verbis Artigo I ldquoLes hommes naissent et demeurent libres et eacutegaux en droits Les distinctions sociales ne

peuvent ecirctre fondeacutees que sur lrsquoutiliteacute communerdquo artigo II ldquoLe but de toute association politique est la

conservation des droits naturels et imprescriptibles de lrsquohomme Ces droits sont la liberteacute la proprieacuteteacute la

sucircreteacute et la reacutesistance agrave lrsquooppressionrdquo artigo III ldquoLe principe de toute Souveraineteacute reacuteside essentiellement

dans la Nation Nul corps nul individu ne peut exercer drsquoautoriteacute qui nrsquoen eacutemane expresseacutementrdquo artigo XII

ldquoLa garantie des droits de lrsquoHomme et du Citoyen neacutecessite une force publique cette force est donc institueacutee

pour lrsquoavantage de tous et non pour lrsquoutiliteacute particuliegravere de ceux auxquels elle est confieacuteerdquo Disponiacutevel em

lthttpwwwassemblee-nationalefrhistoiredudh1789aspgt Acesso em 11 maio 2013

23

sem espessura O que tornava todos os residentes dos campos intrinsecamente mataacuteveis foi

a criaccedilatildeo preteacuterita de uma condiccedilatildeo de completa privaccedilatildeo de direitos que se manifestava

segundo Arendt (2009 p 330) ldquona privaccedilatildeo de um lugar no mundo que torne a opiniatildeo

significativa e a accedilatildeo eficazrdquo7

O paradoxo praacutetico dos direitos humanos na modernidade encontra-se logo

enunciado quando os direitos do homem deveriam socorrer aquele que perdeu todo o

status poliacutetico e qualquer outra qualidade ndash exceto a de ser unicamente humano ndash a

estrutura juriacutedico-poliacutetica dos Estados-Naccedilatildeo europeus determinava que os direitos

humanos jaacute natildeo poderiam mais vir em seu socorro Precisamente essa lacuna ndash horizonte

natildeo de anomia mas de um direito que quedava absolutamente indiferente em relaccedilatildeo agrave

proteccedilatildeo e tutela da figura humana em seu estado puro e sem qualidades ndash constituiraacute uma

das forccedilas motrizes da gecircnese reciacuteproca da refundamentaccedilatildeo dos direitos humanos e da

emergecircncia de praacuteticas de Justiccedila de Transiccedilatildeo Esse contexto relaciona-se com as praacuteticas

adotadas nos julgamentos de Nuremberg e Toacutequio de modo que as raiacutezes mais profundas

do processo moderno de internacionalizaccedilatildeo da Justiccedila de Transiccedilatildeo remontam aos marcos

histoacutericos e teoacutericos que determinaram a constituiccedilatildeo do proacuteprio Direito Internacional dos

Direitos Humanos (FUTAMURA 2008 p 30-51)

A situaccedilatildeo histoacuterica paradoxal que atravessou o entreguerras e atingiu o fim da

primeira metade do seacuteculo XX apoia-se na cesura ndash ainda natildeo completamente desaparecida

da realidade dos Estados-Naccedilatildeo ndash entre homem e cidadatildeo No interior dessa cesura Arendt

e Agamben viram tornar-se aparente o terriacutevel contraste entre o idealismo iluminista

fundador dos Direitos Humanos inalienaacuteveis ndash contido nas declaraccedilotildees liberal-burguesas e

na filosofia moral kantiana na qual estas se inspiraram ndash e a existecircncia de seres humanos

sem direito algum que ao serem privados do direito a ter direitos (ARENDT 2009 p

330) tornavam-se o refugo da terra e no plano de suas concretas existecircncias colocavam

em xeque a validade e a universalidade dos direitos inerentes a uma descarnada condiccedilatildeo

humana

O diagnoacutestico de Arendt estabelecido sobre a desarticulaccedilatildeo entre a vida nua

natural de homens desprovidos de toda condiccedilatildeo de legalidade e sua condiccedilatildeo de

cidadania soacute permitia compreender certa natureza humana e metafiacutesica como o elemento

evanescente do cidadatildeo nacional ndash este sim uacutenica condiccedilatildeo do laccedilo juriacutedico-poliacutetico capaz

7 De acordo com Arendt (2009 p 330) ldquoSoacute conseguimos perceber a existecircncia de um direito a ter direitos (e

isto significa viver em uma estrutura onde se eacute julgado pelas accedilotildees e opiniotildees) e de um direito de pertencer a

algum tipo de comunidade organizada quando surgiram milhotildees de pessoas que haviam perdido esses

direitos e natildeo podiam recuperaacute-los devido agrave nova situaccedilatildeo poliacutetica globalrdquo

24

de assegurar a algueacutem o direito a ter direitos no contexto europeu do entreguerras Foi

precisamente essa desarticulaccedilatildeo entre homem e cidadatildeo que tornou juridicamente

possiacutevel ou ao menos indiferente a praacutetica de descartabilidade de seres humanos nos

campos de concentraccedilatildeo e extermiacutenio

Diante disso a reaccedilatildeo de uma miacutetica ldquoconsciecircncia universalrdquo teria orquestrado no

poacutes-Segunda Guerra a refundamentaccedilatildeo dos direitos humanos sob uma base normativa

internacional dotando-os progressivamente de instrumentos de controle de monitoramento

e de mecanismos de promoccedilatildeo e proteccedilatildeo visando a solucionar o paradoxo diagnosticado

por Arendt por intermeacutedio da superaccedilatildeo do modelo westfaliano de normas de muacutetua

abstenccedilatildeo na dinacircmica relacional dos Estados-Naccedilatildeo (LAFER 2008 p 297) Eis o que

designa no periacuteodo do poacutes-1945 uma nova fase dos Direitos Humanos que compreende a

institucionalizaccedilatildeo da comunidade internacional e a criaccedilatildeo de novos documentos

internacionais ndash especialmente a partir do advento fundacional da Declaraccedilatildeo Universal

dos Direitos Humanos (ALMEIDA 2001 p 13-14)8 ndash mas tambeacutem desenvolve um

periacuteodo de crescente positivaccedilatildeo internacional ampliado com a ediccedilatildeo dos Pactos

Internacionais de Direitos Civis e Poliacuteticos e de Direitos Econocircmicos Sociais e Culturais

em 1966

Dezenas de documentos internacionais contemplando mecanismos de efetivaccedilatildeo e

proteccedilatildeo internacional dos Direitos Humanos seguem-se a 1966 consagrando-se na

Conferecircncia de Teeratilde de 1968 (art 13) a interdependecircncia e a indivisibilidade entre

Direitos Civis e Poliacuteticos e Direitos Econocircmicos Sociais e Culturais conquistada apoacutes

longas e difiacuteceis negociaccedilotildees multilaterais (DOUZINAS 2007 p 15) Do ponto de vista

da construccedilatildeo de um regime juriacutedico universal para os Direitos Humanos seu apogeu teria

sido a criaccedilatildeo do Tribunal Penal Internacional como mecanismo supraestatal e permanente

de tomada e prestaccedilatildeo de contas (AMBOS 2009 p 67-86)

A fim de compreender esse percurso histoacuterico Ruti Teitel (2003 p 70-71)

descreve a evoluccedilatildeo das praacuteticas da Justiccedila de Transiccedilatildeo ndash e a consequente formulaccedilatildeo

teoacuterica de que essas praacuteticas passaratildeo a depender ndash a partir de trecircs recortes histoacutericos9

Embora reconheccedila que as origens da moderna Justiccedila de Transiccedilatildeo remontam agrave Primeira

Guerra Mundial eacute apenas apoacutes a Segunda que ela se torna excepcional e atravessa um

processo de intensa internacionalizaccedilatildeo Uma segunda fase posterior ao fim da Guerra

8 Ver ainda nesse sentido (LAFER 2008 p 298) e ( PIOVESAN 2012 p 175)

9 Argumento genealoacutegico que poucos anos mais tarde reapareceraacute resumido em (TEITEL 2005 p 839-

840)

25

Fria emerge de forma associada agraves vagas democraacuteticas europeias que tecircm iniacutecio no ano de

1989 e que persistem ateacute o final do seacuteculo XX Uma terceira e uacuteltima fase relaciona-se

com as condiccedilotildees contemporacircneas de persistecircncia de conflitos que desenham as fundaccedilotildees

de um direito normalizado de violecircncia Em seu acircmbito Teitel afirma que a Justiccedila de

Transiccedilatildeo que dali emerge jaacute natildeo se filia pura e simplesmente ao internacionalismo ou agrave

construccedilatildeo dos Estados nacionais como resultou das duas primeiras fases mas parece

mover-se da exceccedilatildeo em direccedilatildeo agrave norma a fim de tornar-se o paradigma de todo o rule of

law

Se nos ativermos agrave descriccedilatildeo que Ruti Teitel realiza da primeira fase notaremos

que o julgamento de Nuremberg lanccedila luzes sobre a gecircnese conjunta de uma moderna

Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo e o fenocircmeno de internacionalizaccedilatildeo dos direitos humanos

no poacutes-Segunda Guerra Dessa perspectiva Nuremberg teria representado o triunfo da

Justiccedila de Transiccedilatildeo nos quadros do Direito Internacional dos Direitos Humanos (TEITEL

2003 p 70) ao mesmo tempo em que testemunhava o surgimento de um novo tipo de

ordem normativa poacutes-guerra ndash o que caracterizou por excelecircncia o turning point no

acircmbito do Direito Internacional (DOUZINAS 2007 p 21-22)

O julgamento de Nuremberg teria constituiacutedo um evento sem precedentes na

histoacuteria do Ocidente capaz de unir as duas pontas de uma longa histoacuteria dos combates

poliacuteticos em defesa dos Direitos Humanos de um lado a tradiccedilatildeo da duradoura histoacuteria do

universalismo humanista europeu ndash sumariada na reabilitaccedilatildeo do argumento jusnaturalista

no quadro legal internacional dos direitos humanos ndash e de outro a criaccedilatildeo de novas

categorias como a de crimes contra a humanidade agraves quais se chegava pelo

reconhecimento da forccedila vinculante do costume internacional dos paiacuteses cosidetti

civilizados orientados por princiacutepios universalmente reconhecidos pela Humanidade ndash

argumento costumeiro que foi capaz de suplantar os argumentos situacionistas dos

defensores dos agentes nazistas baseados no princiacutepio da ilegitimidade de tribunais de

exceccedilatildeo na impossibilidade de justiccedila retroativa no argumento poliacutetico do justiciamento

dos perdedores ou no demasiadamente juriacutedico argumento do estrito cumprimento do

dever legal e da adesatildeo das condutas dos agentes violadores de direitos humanos aos

princiacutepios e agraves formas de uma legalidade entatildeo vigentes no Estado alematildeo do III Reich

Ao criminalizarem as violaccedilotildees cometidas pelos Estados nos quadros de um

esquema universal de direitos os julgamentos do poacutes-Segunda Guerra forjaram natildeo apenas

um precedente excepcional mas tambeacutem constituiacuteram o legado formador da base dos

modernos direitos humanos (TEITEL 2000) Como reaccedilatildeo criacutetica agraves falhas dos

26

julgamentos nacionais predominantes no poacutes-Primeira Guerra ndash insuficientes para evitar a

carnificina que teria lugar algumas deacutecadas mais tarde ndash os tribunais de Nuremberg e

Toacutequio deslocaram os padrotildees nacionais canocircnicos em proveito de uma concepccedilatildeo

internacional de justiccedila

Esse deslocamento teve como consequecircncia a extensatildeo dos efeitos de

accountability (prestaccedilatildeo de contas) na direccedilatildeo da responsabilizaccedilatildeo criminal internacional

do Estado e de seus agentes envolvidos na perpetraccedilatildeo de crimes contra a humanidade

alcanccedilando servidores dos mais altos escalotildees do III Reich (TEITEL 2003 p 73) No

entanto esta viragem da Justiccedila de Transiccedilatildeo de fundamentaccedilatildeo nacional em direccedilatildeo a uma

ancoragem internacional natildeo permaneceu imune agraves criacuteticas de que Nuremberg seria uma

justificativa para a intervenccedilatildeo dos Aliados na Guerra ou agraves criacuteticas de que a justiccedila levada

a efeito por esse julgamento natildeo passaria de uma resposta legal internacional dirigida pela

lei do conflito

Especialmente sensiacutevel apoacutes a polarizaccedilatildeo poliacutetica decorrente do contexto da

Guerra Fria seu legado desenvolveu-se de modo que a forccedila de seu precedente contribuiu

com o incremento do Direito Internacional dos Direitos Humanos favorecendo a adoccedilatildeo

da Convenccedilatildeo para a Prevenccedilatildeo e Repressatildeo do Crime de Genociacutedio bem como para a

criaccedilatildeo do Tribunal Penal Internacional como uma de suas mais recentes consequecircncias

de modo que o periacuteodo do poacutes-guerra teria sido ldquoo apogeu da crenccedila do direito como um

instrumento de modernizaccedilatildeo do Estadordquo (TEITEL 2003 p 74)

As transiccedilotildees poliacuteticas que se verificam a partir dos anos 1980 nos paiacuteses do Cone

Sul entatildeo governados por juntas militares que se estabeleceram a partir de golpes de

Estado gerados no seio da polarizaccedilatildeo entre capitalistas e comunistas teriam sido algumas

das ondas concecircntricas desencadeadas pelo colapso da antiga Uniatildeo Sovieacutetica

O que prova o caraacuteter paradigmaacutetico do modelo de Justiccedila de Transiccedilatildeo de

Nuremberg segundo Ruti Teitel (2003 p 75) eacute que os paiacuteses do Cone Sul teriam

questionado em suas transiccedilotildees poliacuteticas em que medida se poderia aderir agravequele modelo

sendo duvidoso o ecircxito de transiccedilotildees baseadas em julgamentos internacionais optando-se

quando muito por deixaacute-los ao encargo domeacutestico Assim a modernizaccedilatildeo e a adoccedilatildeo de

uma forma de Estado de Direito (rule of law) teriam sido equacionadas com a instituiccedilatildeo

de tribunais e a promoccedilatildeo de julgamentos a fim de possibilitar as transiccedilotildees poliacuteticas e a

consequente legitimaccedilatildeo dos regimes sucessores

Apesar disso Teitel (2003 p 76) natildeo deixa de observar que ainda que os

julgamentos tenham sido majoritariamente domeacutesticos nas transiccedilotildees poacutes-Guerra Fria o

27

direito internacional natildeo deixou de desempenhar um papel construtivo fundado no

profundo e paradigmaacutetico horizonte de sentido instaurado por Nuremberg que definiu o

rule of law em termos universalizantes aplicado agora a contextos locais marcados por

uma ineacutedita tensatildeo entre responsabilizaccedilatildeo e anistia entre justiccedila e reconciliaccedilatildeo O

criteacuterio de justo passa a depender mais da singularidade do contexto poliacutetico transicional

que dos valores ideais do modelo de rule of law adotado tendo por consequecircncia a

emergecircncia de uma seacuterie de concepccedilotildees de justiccedila imperfeitas e parciais

Nos anos 1980 as praacuteticas da Justiccedila de Transiccedilatildeo e sua correspondente teoria

assumem uma postura questionadora em face do modelo de Nuremberg de modo que as

formas adotadas pelas transiccedilotildees singulares passam a ser intensamente condicionadas pelo

contexto poliacutetico singular ao qual se aplicam (TEITEL 2003 p 78) Os dilemas entre

justiccedila e verdade responsabilidade e reconciliaccedilatildeo seratildeo construiacutedos no corpo das

experiecircncias mais centradas em concepccedilotildees restaurativas e comunitaacuterias testemunhando

uma interaccedilatildeo complexa entre dimensotildees do universal do global e do local apesar de

revelarem uma abordagem mais limitada decorrente dessas tensotildees e da revivescecircncia dos

problemas da legitimidade e da soberania governamental domeacutestica (TEITEL 2003 p

89)

Ruti Teitel (2003 p 73) reconhece que a polarizaccedilatildeo macropoliacutetica gerada pela

Guerra Fria implicou a impossibilidade de universalizar o modelo da Justiccedila de Transiccedilatildeo

construiacutedo no poacutes-Segunda Guerra No entanto Teitel limita-se a afirmar que o modelo do

poacutes-guerra europeu possuiacutea um propoacutesito liberal acentuado e que o internacionalismo

contemporacircneo teria sido profundamente transformado pelos uacuteltimos desenvolvimentos da

globalizaccedilatildeo ndash particularidade que iria ao encontro do que descreve como a terceira fase

genealoacutegica em que diante de um contexto de fragmentaccedilatildeo e persistecircncia dos conflitos a

Justiccedila de Transiccedilatildeo deixaria de ser exceccedilatildeo e passaria a constituir a regra instauradora de

um novo paradigma do rule of law (TEITEL 2005 p 840) Nesse sentido a jurisprudecircncia

internacional atestaria a expansatildeo e a normalizaccedilatildeo do discurso humanitaacuterio de modo que

as fontes de legitimidade disponiacuteveis implicariam um continuum entre o local e o

transnacional

Recentemente o jurista grego Costas Douzinas (2007 p 29) demonstrou como a

retoacuterica dos direitos humanos pocircde ser generalizada e entregue a um uso paradoxal

especialmente a partir dos anos quarenta do seacuteculo XX No seio das batalhas ideoloacutegicas

que pautaram os anos de Guerra Fria os direitos humanos encontrar-se-iam subordinados

agraves prioridades poliacuteticas anticomunistas dos paiacuteses de capitalismo desenvolvido as quais

28

teriam terminado por submeter qualquer potencial emancipatoacuterio encerrado pelos

universais do Ocidente

A partir de 1989 o triunfo aparentemente definitivo dos valores humanitaacuterios natildeo

teria impedido uma recaptura constante da retoacuterica dos direitos humanos no interior do

eufemiacutestico vocabulaacuterio beacutelico das intervenccedilotildees humanitaacuterias lideradas pelos Estados

Unidos da Ameacuterica tampouco teria impedido o desenvolvimento da poliacutetica estadunidense

de ativo envolvimento em questotildees domeacutesticas segundo Douzinas

No interior do mesmo bloco histoacuterico Antonio Negri e Michael Hardt descrevem o

direito de intervenccedilatildeo baseado em uma moralidade que se representa como universal no

coraccedilatildeo do que nomearam ldquoprocesso de constituiccedilatildeo do Impeacuteriordquo anexando uma ciecircncia

poliacutetica fundada no bellum justum como um de seus nefastos poreacutem eficazes instrumentos

operatoacuterios

A nova ordem global natildeo se caracterizaria tanto pela hegemonia de um Estado

mas antes pela difusatildeo generalizada em escala total de uma loacutegica de

governamentalidade imanente flexiacutevel e modulaacutevel capaz de operar como dispositivo de

biopoder em um contexto transnacional coalescente com um permanente estado de

emergecircncia e exceccedilatildeo No interior dessa loacutegica a retoacuterica dos direitos humanos seria a

exemplo do que afirma Costas Douzinas capturada sob a forma do apelo a valores

essenciais de justiccedila de modo que ldquoo direito de poliacutecia eacute legitimado por valores

universaisrdquo (NEGRI HARDT 2006 p 36)

Tanto a genealogia proposta por Teitel como as criacuteticas de Negri Hardt e

Douzinas auxiliam a compreender que se de um lado internacionalizaccedilatildeo dos direitos

humanos e das formas de Justiccedila de Transiccedilatildeo satildeo dois fenocircmenos coalescentes de outro

seu desenvolvimento histoacuterico-poliacutetico eacute essencialmente ambiacuteguo e natildeo implica um

progresso linear unidimensional redentor ou triunfante Costas Douzinas (2007 p 32-33)

parece apreendecirc-lo apropriadamente ao afirmar que os direitos humanos tornam-se a um soacute

tempo maiores e menores Maiores ao passo em que se tornam imprescindiacuteveis e sua

retoacuterica admite os mais variados usos estrateacutegicos menores ao passo em que nos paiacuteses

objeto de ldquointervenccedilotildees humanitaacuteriasrdquo ndash como Afeganistatildeo e Iraque por exemplo ndash o uso

paradoxal de sua retoacuterica impotildee um modelo empobrecido de democracia que eacute tornado

mais importante que a efetiva proteccedilatildeo aos direitos humanos

Essa loacutegica de submissatildeo dos direitos humanos a usos estrateacutegicos nos campos

poliacutetico e econocircmico teria em larga medida determinado o processo continental de

esmagamento das fraacutegeis democracias nacionais latino-americanas desencadeado a partir

29

do golpe de Estado de 1964 no Brasil alastrando-se sistemicamente nos anos seguintes

por diversos paiacuteses da Ameacuterica Latina como Meacutexico (1968) Chile e Uruguai (1973) e

Argentina (1976)

As praacuteticas desenvolvimentistas dos anos cinquenta e sessenta natildeo apenas natildeo seratildeo

desmontadas como seratildeo adaptadas ao discurso nacionalista testemunhando a faceta

conservadora do crescimento econocircmico que ora assumindo a alternativa da antecipaccedilatildeo

neoliberal ndash visiacutevel no modelo argentino ndash ora tornando o Estado o elemento central de

intervenccedilatildeo poliacutetico-econocircmica na construccedilatildeo de alianccedilas com o capital multinacional ndash

mas conservando a proteccedilatildeo do mercado interno como nos modelos brasileiro e mexicano

ndash acabaraacute por conduzir os paiacuteses latino-americanos ao endividamento externo sem que o

crescimento econocircmico tivesse significado outra coisa que natildeo o aprofundamento da

pobreza (NEGRI COCCO 2005 p 104-107)

ldquoA funccedilatildeo das ditadurasrdquo segundo Idelber Avelar (2003 p 262-263) ldquofoi a

instalaccedilatildeo da etapa poacutes-moderna do capitalrdquo em seu sentido jamesoniano em que o capital

transnacional torna-se global e parece colonizar a totalidade do horizonte epocal tornando

problemaacutetica a proacutepria compreensatildeo do presente Na foacutermula do escritor uruguaio Eduardo

Galeano que Avelar recorda para caracterizar a funccedilatildeo histoacuterica das ditaduras ldquotorturou-se

o povo para que os preccedilos pudessem ser livresrdquo

Apesar de contraindicar qualquer messianismo ou triunfalismo intriacutensecos agrave

afirmaccedilatildeo histoacuterica dos direitos humanos a verificaccedilatildeo desses paradoxos e duplos em

nenhum momento advogaraacute a descartabilidade dos direitos humanos Pelo contraacuterio seu

caraacuteter antimessiacircnico designa antes a singularidade das lutas por direitos como um

terreno imanente de combate de reivindicaccedilatildeo e de produccedilatildeo de direitos Douzinas

reconhece nesse sentido que os direitos humanos constituem ainda certo resiacuteduo

transcendental afinal natildeo haacute hoje nenhuma outra linguagem agrave disposiccedilatildeo dos pobres dos

oprimidos e dos torturados senatildeo a da reivindicaccedilatildeo de direitos

Afirmar como Douzinas (2007 p 33) ldquoHuman rights have only paradoxes to

offerrdquo natildeo testemunha nenhum niilismo poliacutetico ou vazio programaacutetico fundamentais

Maiores e menores ao mesmo tempo os direitos humanos constituem o terreno a todo

instante em disputa ainda que nos faccedilam experimentar a mesma estranheza que

experimentava a Alice de Lewis Caroll que se sente crescer e diminuir os direitos

humanos constituem um infinito jogo de paradoxos e de duplos

30

CAPIacuteTULO 2 ndash DIREITO-ENTRE O JURIacuteDICO E AS INSTITUICcedilOtildeES NO

SEIO DAS TRANSICcedilOtildeES

sect 1 DIREITO INSTITUICcedilOtildeES E TRANSICcedilAtildeO

Afirmou-se que o duplo e o paradoxo parecem ser as figuras constitutivas de todo o

pensamento sobre os direitos humanos mas natildeo seria menos vaacutelido dizer o mesmo sobre a

Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo Um consenso teoacuterico que atravessa pela quase totalidade de

sua bibliografia recente eacute aquele segundo o qual a Justiccedila de Transiccedilatildeo deixa-se penetrar e

constituir por seacuteries de duplos implicando ao mesmo tempo continuidade e

descontinuidade (TEITEL 2000 p 30) um olhar para o passado e para o futuro (TEITEL

2000 p 113 TEITEL 2010 p 36) estabilidade e instabilidade poliacutetico-institucionais Eacute

no seio dessas continuidades-rupturas influenciadas pelos singulares arranjos de forccedilas

que rejeitando ecleticamente as perspectivas realistas e idealistas Teitel (2000 p 06)

afirma que ldquothe conception of justice in periods of political change is extraordinary and

constructivist It is alternately constituted by and constitutive of the transitionrdquo

Tentando superaacute-la Teitel interpreta a dicotomia entre realistas e idealistas no

terreno da Justiccedila de Transiccedilatildeo como o efeito de superfiacutecie de uma antinomia mais

profunda verificada entre poliacutetica e direito Enquanto os idealistas apostariam na

autonomia do direito e em seu papel determinante sobre a poliacutetica teoacutericos realistas

compreenderiam o direito nos periacuteodos poacutes-conflituais como uma determinaccedilatildeo decorrente

dos arranjos do campo de forccedilas poliacuteticas Ambas as perspectivas no entanto teriam

fracassado em descrever o papel constitutivo que o direito assume em sociedades que

atravessam periacuteodos de radical transformaccedilatildeo poliacutetica Embora haja sensiacuteveis constriccedilotildees

provenientes de seus quadros legais natildeo haacute uma simples e transcendente hegemonia de

regras universais de direitos humanos tampouco uma pura determinaccedilatildeo das instituiccedilotildees e

do direito pela poliacutetica

Se Teitel opta por descrever o papel construtivista que o direito desempenha nos

contextos de transiccedilatildeo eacute com o intuito de assinalar que as instituiccedilotildees satildeo ao mesmo tempo

objeto e causa de transformaccedilotildees operadas no seio de uma singular e contingente dinacircmica

transicional Natildeo haveria portanto modelo universal de accountability capaz de descrever

as razotildees suficientes para converter um Estado autoritaacuterio e violento em Estado

democraacutetico e de Direito

31

O direito eacute constitutivo das instituiccedilotildees ao passo em que medeia a preservaccedilatildeo de

certo niacutevel de continuidade formal e em que incorpora ao mesmo tempo uma genuiacutena

instacircncia de descontinuidade transformativa (TEITEL 2000 p 220 GREADY 2011 p

151) Sua funccedilatildeo eacute a de cesura e a de margem sua qualidade liminar trata-se de um

direito que estaacute entre dois regimes mais proacuteximo de um poder constituinte que no entanto

uma vez despojado de seus caracteres mais claacutessicos natildeo eacute onipotente tampouco

incondicionado uma vez que se estrutura sobre os quadros legais transnacionais dos

Direitos Humanos da Justiccedila de Transiccedilatildeo e das variaccedilotildees que se verificam nos arranjos de

poder locais

O relevante papel desempenhado pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos

nesse aspecto deriva de sua capacidade de mediar com sucesso correntes teoacutericas

derivadas do juspositivismo e do jusnaturalismo superando a relaccedilatildeo convencional entre

direito e poliacutetica ou como quisera Paul Gready (2011 p 10) balanceando-os Embora seja

possiacutevel agrave transiccedilatildeo operar uma alteraccedilatildeo da regra de reconhecimento Teitel afirma que eacute

mais comum haver uma reinterpretaccedilatildeo racionalizadora das bases normativas existentes

testemunhando uma forma especial de continuidade-ruptura

Como resultado do processo de internacionalizaccedilatildeo dos Direitos Humanos

afetaram-se igualmente os quadros da doutrina e das praacuteticas da Justiccedila de Transiccedilatildeo10

Consequentemente a Justiccedila de Transiccedilatildeo enriquece-se passando a compreender a

participaccedilatildeo de diversos niacuteveis que concorrem para sua produccedilatildeo institucional como

instituiccedilotildees supranacionais Estados-Naccedilatildeo organismos e indiviacuteduos (ELSTER 2006 p

114)

As instituiccedilotildees supranacionais compreendem os Tribunais Internacionais aiacute

incluiacutedas as Cortes Internacionais de Direitos Humanos que sem representar sucessores ou

vencedores atuam em nome da proacutepria comunidade internacional A paulatina criaccedilatildeo de

oacutergatildeos e mecanismos de controle internacionais com abrangecircncia universal como o

Tribunal Penal Internacional ou regional como os Tribunais Europeus a Corte

Interamericana de Direitos Humanos a Comissatildeo Interamericana de Direitos Humanos

etc determinaram no uacuteltimo dececircnio significativos influxos da internacionalizaccedilatildeo dos

Direitos Humanos sobre o quadro legal da Justiccedila de Transiccedilatildeo (ZYL 2009a p 32-33)

Segundo Paul Van Zyl (2009a p 33) esse horizonte de compreensatildeo e influecircncia

implica a vinculaccedilatildeo dos Estados a normas internacionais claras que determinam

10

Cf supra Capiacutetulo 1 ldquoA gecircnese da Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo e o Direito Internacional dos Direitos

Humanosrdquo

32

proibiccedilotildees universais especialmente com a ratificaccedilatildeo de mais de cem paiacuteses da criaccedilatildeo do

Tribunal Penal Internacional No que concerne agrave Justiccedila de Transiccedilatildeo mais

especificamente no ano 2000 o Secretaacuterio Geral da ONU apresentou relatoacuterio no qual se

consagrava com precedecircncia o foco das Naccedilotildees Unidas sobre as questotildees da justiccedila

transicional

Kai Ambos (2009 p 29-30) compreende o proacuteprio desenvolvimento do regime

legal da Justiccedila de Transiccedilatildeo nos quadros do Direito Internacional dos Direitos Humanos

na medida em que esse regime normativo estrutura-se em correlaccedilatildeo com a revisatildeo e sua

reafirmaccedilatildeo histoacuterica a partir de 1948 em convenccedilotildees que tinham por objeto o Genociacutedio

as Convenccedilotildees de Genebra ndash para melhoria da sorte dos exeacutercitos em campanha (I) para

melhoria da sorte dos feridos enfermos e naacuteufragos das forccedilas armadas no mar (II)

relativa ao tratamento de prisioneiros de guerra (III) e agrave proteccedilatildeo de civis em tempos de

guerra (IV) ndash em 1949 mas tambeacutem em conexatildeo com a Convenccedilatildeo Internacional contra a

Tortura e outros Tratamentos e Penas Crueacuteis Desumanos e Degradantes aprovada pela

Assembleia Geral da Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas em de 10 de dezembro de 1984

Em segundo plano do ponto de vista regional observa-se o fortalecimento dos

regimes democraacuteticos na Ameacuterica Latina Aacutesia e Aacutefrica com a intensificaccedilatildeo do

surgimento e da participaccedilatildeo de organizaccedilotildees da sociedade civil no combate a graves

violaccedilotildees de direitos humanos Por essa razatildeo Javier Ciurlizza (2009a p 25) constata a

especial influecircncia do sistema interamericano de proteccedilatildeo e promoccedilatildeo de direitos humanos

sobre a escala internacional da definiccedilatildeo dos quadros normativos da Justiccedila de Transiccedilatildeo

reconhecendo que ldquoo sistema interamericano de direitos humanos desenvolveu ampla

jurisprudecircncia relacionada agraves obrigaccedilotildees internacionais dos Estadosrdquo

Kai Ambos (2009 p 34-36) de seu turno cita extensa jurisprudecircncia de casos da

Corte Interamericana de Direitos Humanos a fim de obter o perfil normativo internacional

da Justiccedila de Transiccedilatildeo envolvendo entre os conteuacutedos de seu conceito de justiccedila o dever

dos Estados de punir graves violaccedilotildees de direitos humanos ndash especialmente os objetos de

proteccedilatildeo dos diplomas internacionais citados ndash efetivar o direito agrave verdade das viacutetimas

isto eacute ldquoo esclarecimento de fatos ilegais e as responsabilidades correspondentesrdquo

compreendendo natildeo apenas o ldquodireito coletivo que assegura agrave sociedade o acesso agrave

informaccedilatildeo essencial ao funcionamento de sistemas democraacuteticosrdquo mas tambeacutem ldquoo direito

privado dos familiares das viacutetimas que adquire uma forma compensatoacuteria especialmente

nos casos em que leis de anistia foram adotadasrdquo (AMBOS 2009 p 34-35)

33

Ainda enovelam-se aos direitos das viacutetimas tutelados pela quadratura internacional

da Justiccedila de Transiccedilatildeo o direito agrave justiccedila ndash consubstanciado em formas de ldquoproteccedilatildeo

judicial tanto pelo acesso ao sistema legal do Estado violador (o qual de acordo com os

direitos humanos tem a obrigaccedilatildeo de investigar processar e sancionar o responsaacutevel) ou

pela via de um foacuterum puacuteblico alternativo no qual viacutetimas podem confrontar e desafiar os

violadoresrdquo (AMBOS 2009 p 36) ndash e o direito agrave reparaccedilatildeo que compreende indenizaccedilatildeo

integral compensaccedilatildeo reabilitaccedilatildeo fornecimento de garantias de natildeo repeticcedilatildeo e outros

mecanismos reparatoacuterios como o reconhecimento do estatuto de viacutetima e o

restabelecimento de seus direitos (AMBOS 2009 p 37-39)

Ao lado disso Kai Ambos descreve alternativas admissiacuteveis agrave persecuccedilatildeo criminal

dos responsaacuteveis por graves violaccedilotildees ao Direito Internacional dos Direitos Humanos que

compreendem Comissotildees de Verdade e Reconciliaccedilatildeo (AMBOS 2009 p 40-47)

saneamentos e purgaccedilotildees administrativas que visem a excluir a manutenccedilatildeo de agentes

responsaacuteveis por violaccedilotildees de direitos humanos em cargos e funccedilotildees vinculados ao aparato

burocraacutetico do Estado bem como a impedir seu retorno ainda Ambos inclui reformas

institucionais a fim de remover os dispositivos autoritaacuterios que guarneccedilam as instituiccedilotildees

em transiccedilatildeo processos de desarmamento desmobilizaccedilatildeo e reintegraccedilatildeo social e o uso de

formas tradicionais e locais geralmente natildeo-ocidentais de justiccedila e reconciliaccedilatildeo

(AMBOS 2009 p 48)

Na esteira de Ambos Paul Van Zyl (2009a p 34-39) por sua vez sumaria cinco

elementos que estruturam a Justiccedila de Transiccedilatildeo justiccedila (atento a suas funccedilotildees penais mas

tambeacutem simboacutelicas e afetivas) busca da verdade reparaccedilatildeo agraves viacutetimas reformas

institucionais e reconciliaccedilatildeo

Uma recente criacutetica endereccedilada agrave hegemonia teoacuterica das dimensotildees ndash sem duacutevida

relevantes ndash da justiccedila legal e da prestaccedilatildeo de contas pelos Estados violadores encontrou

na proposiccedilatildeo de ampliaccedilatildeo do conteuacutedo cognitivo engendrado na disciplina internacional

da Justiccedila de Transiccedilatildeo uma interessante alternativa analiacutetica Baseando-se em uma

abordagem sincreacutetica que pretende reconciliar justiccedilas restaurativa e distributiva Wendy

Lambourne (2009 p 37-47) propotildee uma Justiccedila Transformativa vocacionada a religar

passado e futuro de maneira duradoura por meio de mecanismos e processos localmente

relevantes capazes de promover prestaccedilatildeo de contas verdade e memoacuteria justiccedila

socioeconocircmica e justiccedila poliacutetica integrando-se a um processo compreensivo de

construccedilatildeo da paz

34

David Bloomfield (2005 p 45-46) e Luc Huyse (2005 p 164-165) tambeacutem

indicam a centralidade da interferecircncia da disciplina normativa internacional e de

organismos da comunidade internacional nos processos de reconciliaccedilatildeo Bloomfield

compreende que a comunidade internacional pode colaborar com a construccedilatildeo de

processos de reconciliaccedilatildeo apoacutes eventos conflitivos como fonte potencial de informaccedilotildees

experiecircncia e educaccedilatildeo mas tambeacutem com o lento poreacutem inexoraacutevel processo de

desenvolvimento do Direito Internacional dos Direitos Humanos capaz de sustentar a

forma de uma ordem juriacutedica internacional

Huyse evidencia que organismos internacionais podem intervir como aparatos

auxiliares da transiccedilatildeo em contextos poacutes-conflituais especialmente pelo uso de relatoacuterios

dentre outros mecanismos de monitoramento internacionais A Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees

Unidas organismos internacionais natildeo-governamentais como o International Centre of

Transitional Justice (ICTJ) o Centre for the Study of Violence and Reconciliation (CSVR)

o African Transitional Justice Research Network (ATJRN) e o Transitional Justice

Institute (TJI) podem colaborar com a operacionalidade teoacuterica ou teacutecnica dos processos de

transiccedilatildeo em seus contextos singulares (BRITO 2009a p 56-57)

Ainda sob o ponto de vista das interaccedilotildees entre o Direito Internacional dos Direitos

Humanos e seus principais organismos eacute possiacutevel entrever a amplitude da tese de Ruti

Teitel sobre a constitutividade do direito de transiccedilatildeo Sendo um direito-entre regimes

para aleacutem do princiacutepio territorialista de juridicidade dos Estados-Naccedilatildeo (SANTOS 2009

p 474-476) o direito transicional permite posicionar o papel das instituiccedilotildees na

consecuccedilatildeo da transiccedilatildeo

As instituiccedilotildees devem tornar-se objeto de uma mutaccedilatildeo profunda que compreende

reformas institucionais purgas e responsabilizaccedilatildeo de agentes que cometeram graves

violaccedilotildees de direitos humanos bem como sua consequente remoccedilatildeo de cargos puacuteblicos

adotando-se programas de depuraccedilatildeo e saneamento administrativo (ZYL 2009a p 38

ELSTER 2006 p 113) Tal mutaccedilatildeo constituiria uma resposta agrave persistecircncia de estruturas

e praacuteticas burocraacuteticas autoritaacuterias o que exige que as instituiccedilotildees tambeacutem sejam

requisitadas como mediadoras da concretizaccedilatildeo das demais tarefas da Justiccedila de Transiccedilatildeo

que como o proacuteprio Zyl (2009a p 54) adverte torna necessaacuterio engendrar um amplo

processo de consulta local uma vez que se estaacute a operar no terreno da singularidade

histoacuterica e cultural ndash ainda que se reconheccedilam certas vinculaccedilotildees normativas como

universais

35

Se Paul Van Zyl estiver correto ao descrever a justiccedila a verdade a reparaccedilatildeo a

reconciliaccedilatildeo e as reformas institucionais como estruturas mais gerais mas nem por isso

ideais da Justiccedila de Transiccedilatildeo as uacuteltimas aparecem como um campo privilegiado de

disputas poliacuteticas uma vez que constituem natildeo apenas o objeto de uma transformaccedilatildeo

mas principalmente satildeo exigidas como as instacircncias por meios das quais dever-se-aacute

operar uma tal transformaccedilatildeo transicional

Isso denota a centralidade dos aparelhos de Estado encarregados da identificaccedilatildeo

processamento e responsabilizaccedilatildeo de agentes puacuteblicos que cometeram graves violaccedilotildees de

direitos humanos da institucionalizaccedilatildeo de Comissotildees de Verdade e Reconciliaccedilatildeo e de

poliacuteticas reparatoacuterias destinadas aos perseguidos poliacuteticos e resistentes de um periacuteodo de

exceccedilatildeo As instituiccedilotildees incorporam a um soacute tempo uma instacircncia produzida e produtora

de justiccedila responsabilizaccedilatildeo inclusatildeo poliacutetica bem como de uma narrativa sobre o

passado Mesmo porque esses satildeo propoacutesitos da Justiccedila de Transiccedilatildeo justiccedila inclusatildeo

poliacutetica reconciliaccedilatildeo e paz nunca podem ser admitidas como a priori histoacuterico de

contextos poacutes-conflituais pois natildeo defluem de tais contextos naturalmente mas como

resultados de um esforccedilo comum de criaccedilatildeo de direitos e de modificaccedilotildees institucionais

Registram-se ainda organismos natildeo-estatais que tambeacutem concorrem em algum

niacutevel para a concretizaccedilatildeo da Justiccedila de Transiccedilatildeo como as organizaccedilotildees sociais partidos

poliacuteticos Igrejas empresas entidades sindicais etc ndash natildeo raras vezes tornados alvos

poliacuteticos do regime autoritaacuterio precedente e de seus aparatos de perseguiccedilatildeo e censura Por

sua vez a justiccedila privada assume a forma dos justiciamentos individuais e suas execuccedilotildees

extralegais podendo tomar a forma da humilhaccedilatildeo deliberada e puacuteblica ldquoEn America

Latinardquo recorda Elster (2006 p 119) ldquolos oficiales amnistiados que son conocidos por

haber participado en torturas o desapariciones han sidos condenados a un ostracismo social

de caraacutecter informalrdquo Um exemplar contemporacircneo embora constitua uma forma

geralmente natildeo-violenta e portadora de um acentuado caraacuteter poliacutetico de execraccedilatildeo

puacuteblica satildeo as praacuteticas de escrachos inventados na Argentina (BRITO GONZAacuteLEZ-

ENRIacuteQUEZ e AGUILAR 2001 p 157) e recentemente incorporadas como ldquoesculachosrdquo

pelos jovens ativistas poliacuteticos do Levante Popular da Juventude no Brasil Nesse caso a

importacircncia das accedilotildees legais ndash partam de instituiccedilotildees nacionais ou supranacionais ndash

segundo Elster deriva de uma necessidade de antecipar-se agrave vinganccedila privada ou de

bloquear sua emergecircncia

Abratildeo Payne e Torelly (2011 p 28) natildeo cessam de destacar que o caso brasileiro eacute

paradigmaacutetico uma vez que suas praacuteticas transicionais estatalistas desafiam a autoridade

36

da base normativa internacional dos Direitos Humanos Nesse particular a decisatildeo da

Corte de San Joseacute da Costa Rica impocircs uma seacuterie de obrigaccedilotildees ao Estado brasileiro em

razatildeo do Caso Araguaia sem que ateacute o presente se tenha dado integral cumprimento a ela

Nesse sentido Abratildeo Payne e Torelly (2011 p 24) afirmaram que ldquo[]o caso brasileiro

constitui-se um desafio potencial agrave norma global da responsabilizaccedilatildeo individual

sugerindo que a insurgecircncia dessa norma natildeo mudou necessariamente o comportamento

dos Estadosrdquo donde o cariz paradigmaacutetico da experiecircncia anistiadora brasileira que ao

mesmo tempo em que desafia demonstra tambeacutem do ponto de vista praacutetico o viacutenculo

geneacutetico que as doutrinas da Justiccedila de Transiccedilatildeo e o Direito Internacional dos Direitos

Humanos entretecircm

Ao mesmo tempo em que as instituiccedilotildees encerram uma possibilidade dinacircmica de

alteraccedilatildeo estrutural loacutegica e semacircntica da qual constituem um dos cernes privilegiados o

direito de transiccedilatildeo como um direito entre tambeacutem deve compreendecirc-las como campo no

qual podem persistir ndash e natildeo raro reproduzirem-se ndash formas autoritaacuterias de imaginaccedilatildeo

poliacutetico-social

Se como quisera Clifford Geertz (1983 p 232) o direito constitui um modo de

imaginaccedilatildeo social que ldquovem acompanhado de um conjunto de atitudes praacuteticas sobre o

gerenciamento de disputas que essa proacutepria forma de ver o mundo impotildee aos que a ela se

apegamrdquo (Idem ibidem p 173) eacute no seio das transiccedilotildees poliacuteticas e dos cenaacuterios poacutes-

conflituais ndash em que direito e instituiccedilotildees interpenetram-se reciacuteproca e constitutivamente ndash

que se pode verificar de que modo o direito constitui produto de hibridizaccedilotildees culturais

Nesses contextos o direito e as instituiccedilotildees assumem posiccedilotildees aparentemente paradoxais

porque se encontram no ponto de contato intenso em que se produz essa mesticcedilagem e

com mais razatildeo porque seus elementos de continuidade e de ruptura podem indeterminar-

se temporariamente (TEITEL 2000 p 17-18) Eis o que revelaria o caraacuteter intimamente

liminar de todas as transiccedilotildees bem como das estruturas juriacutedicas e conceituais que as

secundam

Vistos sob a perspectiva da continuidade o direito e as instituiccedilotildees podem tanto

estar ao lado da construccedilatildeo de uma desejaacutevel estabilidade poliacutetico-institucional como

engendrar uma negativa reproduccedilatildeo de determinado imaginaacuterio social poliacutetico e cultural

autoritaacuterio Eacute sempre possiacutevel imaginar os desenhos institucionais existentes e o plexo

normativo e praacutetico que lhes serve de suporte pendularem e indeterminarem-se entre os

polos da manutenccedilatildeo de certo equiliacutebrio institucional necessaacuterio ndash que suporta graus

variaacuteveis conforme a singularidade do jogo a que estatildeo lanccediladas as dinacircmicas de poder ndash e

37

a conservaccedilatildeo de uma forma de imaginaccedilatildeo social capaz de perpetuar legados

antidemocraacuteticos

sect 2 O QUE UM PASSADO TEM DE INSUPORTAacuteVEL NOTAS SOBRE A

CONTINUIDADE DO PASSADO NO PRESENTE A PARTIR DO CASO BRASILEIRO

Consideremos mais de perto as razotildees concretas pelas quais Paulo Abratildeo e Marcelo

Torelly (2011 p 24) diagnosticaram que a questatildeo da anistia e da responsabilizaccedilatildeo no

Brasil adquiriram uma dimensatildeo paradigmaacutetica na medida em que o caso brasileiro

constitui ldquoum desafio potencial agrave norma global da responsabilizaccedilatildeo individualrdquo Em

sentido anaacutelogo recuperemos brevemente os dilemas que envolvem a transiccedilatildeo brasileira

para colocar agrave prova a realidade praacutetica e poliacutetica da paradoxal continuidade do passado no

presente ndash de que a Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo limita-se como viacuteamos a tratar

abstratamente e apesar de prever aberturas para elementos concretos provenientes dos

singulares arranjos de poder

Em seu interior pode-se constatar sem dificuldades a atualidade da pergunta

proposta por Vladimir Safatle e Edson Teles (2010) ndash ldquoO que resta da ditadurardquo ndash e do

grito efectista e ao mesmo tempo parresiasta do psicanalista Tales AbrsquoSaber que

respondera agrave questatildeo afirmando que da ditadura restava tudo exceto a ditadura ou do

gesto de Paulo Eduardo Arantes (2010 p 205) que natildeo hesitou em afirmar 1964 como ldquoo

ano que natildeo terminourdquo Essas foram algumas das uacuteltimas vagas genealoacutegicas

desencadeadas pelo projeto ldquoDesarquivando a Ditadurardquo de Ceciacutelia MacDowell Santos

Edson Teles e Janaiacutena de Almeida Teles (2009 p 13-14) que se fundava na cartografia do

legado autoritaacuterio e na contribuiccedilatildeo criacutetica agrave constituiccedilatildeo da memoacuteria e da justiccedila no Brasil

contemporacircneo Esses gestos verdadeiramente muito proacuteximos daquele arendtiano que se

perguntava sobre ldquoo que estamos fazendo de noacutes mesmosrdquo (ARENDT 2010 p 06)

permite entrever a dupla pertenccedila das instituiccedilotildees ao passado e ao futuro no interior de uma

interrogaccedilatildeo que natildeo pode ocupar outro limiar senatildeo o da mais absoluta atualidade

Toda pesquisa genealoacutegica natildeo implica fazer do presente e dos instrumentos

democraacuteticos que passam a exigir consolidaccedilatildeo especialmente apoacutes 1988 tabula rasa do

passado de modo a lanccedilar o presente e o passado a uma completa indiferenccedila Tais

cartografias da memoacuteria assumem a tarefa de tornar visiacuteveis as formas presentes por meio

das quais um legado antidemocraacutetico emerge reproduz-se e se dissimula cotidianamente

38

A presenccedila de um legado autoritaacuterio sem a sua representaccedilatildeo ndash senatildeo factiacutecia e natildeo raro

violenta ndash constitui o iacutendice de incompletude do processo de transiccedilatildeo democraacutetica

atestado entre noacutes jaacute haacute alguns dececircnios (PINHEIRO 2002 p 240-242 ABRAtildeO e

TORELLY 2011 p 241)

Evitando toda negatividade da incompletude Glenda Mezzaroba (2003 p 10)

prefere compreender a anistia brasileira como um processo poliacutetico de longa duraccedilatildeo que

iniciado em 1979 natildeo cessou de ser redefinido e ampliado desde entatildeo Se tomarmos

como Mezzaroba a transiccedilatildeo como uma tarefa positiva torna-se preciso estabelecer

algumas linhas gerais de accedilatildeo em que a dinacircmica da mutaccedilatildeo institucional no Brasil

contemporacircneo deve estar implicada sem prescindir de um olhar retrospectivo capaz de

identificar algumas manifestaccedilotildees de espectro autoritaacuterio

Comparando o Brasil de antes e de depois da transiccedilatildeo Kathryn Sikkink e Carrie

Booth Walling (2007 p 437) observam que ldquo() Brazil experienced a greater decline in

its human rights practices than any other transitional country in the regionrdquo Sua anaacutelise

sugere que a experiecircncia brasileira possa ser considerada exemplar de que a transiccedilatildeo

democraacutetica eacute causa necessaacuteria mas natildeo suficiente de uma melhora nas praacuteticas estatais e

sociais relacionadas a direitos humanos

Aleacutem de enfatizar a denegaccedilatildeo dos direitos agrave memoacuteria e agrave verdade o Informe 2010

da Anistia Internacional (2010 p 113-116) apontou que apesar da ediccedilatildeo de um novo

Plano Nacional de Direitos Humanos datado de 2009 e da realizaccedilatildeo de algumas reformas

limitadas na aacuterea de seguranccedila puacuteblica o policiamento ostensivo continuava a empregar

forccedila excessiva a praticar execuccedilotildees extrajudiciais e a tortura mantendo-se impunes seus

perpetradores De acordo com dados do Informe o Estado do Rio de Janeiro por exemplo

registrou mais de dez mil mortes violentas entre os anos de 1998 e 2009 por suposta

resistecircncia policial Entre os anos de 2010 e 2013 tambeacutem se relatou a atuaccedilatildeo contiacutenua de

grupos parapoliciais e de extermiacutenio no Brasil (ANISTIA INTERNACIONAL 2010 p

115 2011 p 112 2012 p 110-111 e 2013 p 52-53)

Uma constante nos informes anuais produzidos pela Anistia Internacional nos

uacuteltimos anos (2010-2013) eacute o relato do envolvimento de diversos agentes de execuccedilatildeo da

lei com o crime organizado e grupos de extermiacutenio Por mais de uma vez os representantes

da Anistia Internacional consignaram que o sistema prisional brasileiro caracterizava-se

pelo uso constante da tortura bem como verificou condiccedilotildees crueacuteis desumanas e

degradantes na maior parte dos estabelecimentos de internamento provisoacuterios e

39

permanentes visitados (ANISTIA INTERNACIONAL 2010 p 115 2011 p 114 2012

p 111 e 2013 p 53)

Agrave conclusatildeo semelhante chegou o Relatoacuterio sobre a visita ao Brasil do Subcomitecirc

de Prevenccedilatildeo da Tortura e outros Tratamentos ou Penas Crueacuteis Desumanos ou

Degradantes da Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas publicado em Fevereiro de 2012 Tendo

visitado instituiccedilotildees para pessoas em situaccedilatildeo de privaccedilatildeo de liberdade ndash como instituiccedilotildees

policiais de detenccedilatildeo provisoacuteria instituiccedilotildees prisionais instituiccedilotildees para Crianccedilas e

Adolescentes bem como centros de tratamento meacutedico para dependentes quiacutemicos ndash nos

Estados de Satildeo Paulo Rio de Janeiro e Espiacuterito Santo verificou-se que muitas das

recomendaccedilotildees feitas ao Estado Brasileiro em 2012 eram objeto de reiteraccedilatildeo pela

Subcomissatildeo Isto eacute a visita do oacutergatildeo desvelou a omissatildeo sistemaacutetica do Estado em

relaccedilatildeo agrave tutela de direitos humanos e fundamentais de pessoas em situaccedilatildeo de privaccedilatildeo de

liberdade

Ainda no campo das relaccedilotildees entre Estado e cidadatildeo ndash com ecircnfase no tratamento

governamental dispensado a grupos vulneraacuteveis politicamente minoritaacuterios e socialmente

marginalizados ndash os Informes editados entre 2010 e 2013 pela Anistia Internacional

reportaram contiacutenuas ameaccedilas e violaccedilotildees de direitos de povos indiacutegenas trabalhadores

sem terras e pequenas comunidades rurais assim como ativistas sociais e defensores de

direitos humanos relataram ameaccedilas ataques e acusaccedilotildees politicamente motivados11

Demais direitos sociais como o direito agrave moradia direitos sexuais e reprodutivos direitos

das mulheres etc foram consistente objeto de preocupaccedilatildeo nos Informes do periacuteodo que

relataram ainda a ameaccedila que obras do Programa de Aceleraccedilatildeo do Crescimento

representavam a direitos de comunidades locais

Projetos de construccedilatildeo de represas de estradas e de portos foram natildeo raro levados

a cabo por meio de remoccedilotildees forccediladas de comunidades locais (ANISTIA

INTERNACIONAL 2010 p 116 ainda 2013 p 54) Exemplar a esse respeito o caso da

comunidade ldquoAldeia Maracanatilderdquo indiacutegenas ocupavam desde 2006 o preacutedio histoacuterico do

Museu do Iacutendio localizado no entorno do Estaacutedio do Maracanatilde na cidade do Rio de

Janeiro e foram removidos apoacutes deferimento de pedido de reintegraccedilatildeo de posse pelo

Batalhatildeo de Operaccedilotildees Especiais e pelo Batalhatildeo de Choque da Poliacutetica Militar do Estado

do Rio de Janeiro a fim de viabilizar a realizaccedilatildeo de obras para a Copa do Mundo de 2014

11

Cf a esse respeito (ANISTIA INTERNACIONAL 2010 p 115-117) (Idem 2011 p 114-116) (Idem

2012 p 111-113) e (Idem 2013 p 53-55) Todos os documentos citados estatildeo disponiacuteveis em liacutengua

portuguesa em lthttpwwwamnestyorggt Acesso em 31mai2013

40

ou ainda o caso da construccedilatildeo da Usina de Belo Monte cujos canteiros foram ocupados

por povos indiacutegenas de diversas etnias a fim de impedir a construccedilatildeo da Hidreleacutetrica sem

consulta preacutevia aos povos alocados na regiatildeo Trata-se de casos emblemaacuteticos de uma

tensatildeo crescente entre projetos governamentais de crescimento econocircmico e suas

consequecircncias imediatamente humanas e ambientais no Brasil contemporacircneo

Em atenccedilatildeo ao fato de que o Brasil eacute um dos uacutenicos paiacuteses do mundo a contar com

um aparato policial militarmente estruturado um Grupo de Trabalho no acircmbito do Exame

Perioacutedico Universal vinculado ao Conselho de Direitos Humanos da Organizaccedilatildeo das

Naccedilotildees Unidas recomendou ao governo brasileiro a desmilitarizaccedilatildeo de sua poliacutecia

ostensiva (EFE 2012) Jorge Zaverucha (2010 p 56) retraccedilou as origens do exerciacutecio do

policiamento ostensivo da Poliacutecia Militar ndash que permaneceu com seus efetivos

aquartelados ateacute 1969 quando no aacutepice da repressatildeo poliacutetica passaram a ser o principal

fiador da ordem puacuteblica Zaverucha natildeo deixou de notar ainda que a Constituiccedilatildeo da

Repuacuteblica de 1988 nada fizera contra a consolidaccedilatildeo da militarizaccedilatildeo da aacuterea de seguranccedila

ao contraacuterio reproduziu no artigo 142 redaccedilatildeo que torna as Forccedilas Armadas ldquogarantidoras

da lei e da ordemrdquo12

Natildeo apenas a estrutura policial militarizada mas tambeacutem o atual desenho

institucional das Forccedilas Armadas constituem-se de espectros agrave sombra dos quais eacute

possiacutevel compreender a genealogia profunda da violecircncia sistecircmica relatada nos Informes

da Anistia Internacional ndash problemas admitidos e encampados como objetivos do terceiro

Plano Nacional de Direitos Humanos (BRASIL 2009 p 23) Apesar disso ainda que

registrada a criaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo da Comissatildeo Nacional da Verdade nos Informe de 2012 e

2013 o acompanhamento do tema pela Anistia Internacional entre os anos de 2010 e 2013

resultou em constataccedilotildees sucessivas de atraso do Estado brasileiro no contexto regional em

relaccedilatildeo ao combate a uma cultura de impunidade por violaccedilotildees do passado (ANISTIA

INTERNACIONAL 2010 p 114 2011 p 116 2012 p 109-110 2013 p 52)13

12

Zaverucha (2010 p 58) imagina duas hipoacuteteses a fim de demonstrar de que maneira o artigo 142

reinscreve uma forma da exceccedilatildeo na Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica de 1988 ldquoO artigo 137 da Constituiccedilatildeo de

1988 refere‑se agrave situaccedilatildeo de Estado de siacutetio tiacutepico caso em que lei e ordem estatildeo em perigo De acordo com

o referido artigo o presidente necessita de autorizaccedilatildeo do Congresso para declarar o Estado de siacutetio Vamos

supor que o Congresso natildeo creia que a lei e a ordem estatildeo ameaccediladas entatildeo o presidente natildeo poderaacute pedir a

intervenccedilatildeo militar Contudo o presidente ante pressatildeo militar pode circundar o Congresso invocando o

artigo 142 e a partir dele solicitar que os militares restabeleccedilam a lei e a ordemrdquo 13

O Informe 2013 expressou preocupaccedilatildeo com os efeitos da Lei de Anistia brasileira como obstaacuteculos agrave

responsabilizaccedilatildeo de violadores de direitos humanos consignando que a posiccedilatildeo do Estado brasileiro instala-

se na contramatildeo da decisatildeo do caso Gomes Lund e outros vs Brasil (Guerrilha do Araguaia) ldquo[]persistiram

os temores sobre a capacidade do Brasil enfrentar a impunidade por crimes contra a humanidade enquanto a

41

Durante a ditadura militar a repressatildeo a tortura e o assassinato sistemaacutetico de

opositores constituiratildeo ao longo de algumas deacutecadas os paradigmas de exerciacutecio do

controle social e da repressatildeo estatais contra as insurreiccedilotildees da luta armada revolucionaacuteria

no campo poliacutetico (NEGRI COCCO 2005 p 103) Aparelho repressivo que apoacutes a

transiccedilatildeo ao regime democraacutetico natildeo seraacute desmontado natildeo sofreraacute purgas tampouco seraacute

reestruturado no Brasil Pelo contraacuterio em pleno funcionamento ndash como demonstram os

dados extraiacutedos dos relatoacuterios em mateacuteria de direitos humanos ndash o aparato de violecircncia

legal permanece atrelado a algumas estruturas herdadas do regime precedente o que

poderia explicar ao menos em parte a escalada da violecircncia discursivamente naturalizada

como ldquoendecircmicardquo no Brasil e no restante do continente latino-americano apoacutes o periacuteodo

ditatorial (PINHEIRO 2002 p 240) Especificamente essas formas institucionais de

violecircncia encontram-se estruturadas sobre o rapport Estado-cidadatildeo que se desenvolve em

culturas poliacuteticas autoritaacuterias marcadas pelo desrespeito aos direitos humanos e pela

reproduccedilatildeo constante da loacutegica da impunidade

Antony W Pereira natildeo deixou de assinalar ldquoa sobrevivecircncia do funcionamento das

instituiccedilotildees juriacutedicas estatais anteriores dentro do quadro normativo ditatorialrdquo

(PINHEIRO 2010 p 09) Durante a ditadura militar brasileira registrou-se um alto grau

de colaboraccedilatildeo entre juristas e magistrados de todos os niacuteveis funcionais chegando mesmo

a uma espeacutecie de consenso civil-militar no seio das elites burocraacuteticas que forneciam os

contornos institucionais do sistema de justiccedila militar (PEREIRA 2010 p 41) Eis o que

explicaria segundo Pereira o pequeno nuacutemero de cassaccedilotildees de magistrados no periacuteodo de

exceccedilatildeo a ausecircncia de purgaccedilotildees quando do processo de redemocratizaccedilatildeo brasileira e a

manutenccedilatildeo hegemocircnica de um sistema de legalidade autoritaacuteria ainda hoje reproduzido e

segundo Paulo Seacutergio Pinheiro (2010 p 12-13) experimentado pelos pobres e pelos

ldquosocialmente marginalizados aos quais o acesso agrave justiccedila resolve-se no acesso agrave sua faceta

repressivardquo

Fundindo-se elites militares e judiciaacuterias teria sido possiacutevel constituir um sistema

juriacutedico hiacutebrido de justiccedila militar o que acarretou uma intensa judicializaccedilatildeo da repressatildeo

e ao mesmo tempo preservou um alto grau de consenso sobre uma suposta benevolecircncia

das instituiccedilotildees militares e judiciaacuterias Os baixos graus de violecircncia letal teriam colaborado

para a legitimaccedilatildeo de um poder por meio do direito (2010 p 283) permitindo a

Lei da Anistia de 1979 estiver em vigor Em 2010 a Corte Interamericana de Direitos Humanos considerou

que a Lei da Anistia brasileira natildeo tinha validade juriacutedicardquo (ANISTIA INTERNACIONAL 2013 p 52)

42

manutenccedilatildeo do consenso e a desnecessidade de substituir a legitimidade institucional pela

violecircncia

A sobrevivecircncia de legados autoritaacuterios que atravessaram certo bloco histoacuterico dos

paiacuteses do Cone Sul teria resistido agraves transiccedilotildees institucionais natildeo houve por exemplo

expurgos no Poder Judiciaacuterio brasileiro A transiccedilatildeo conservadora brasileira visou antes a

restabelecer o status quo ante de modo que ateacute o presente militares e membros do Poder

Judiciaacuterio continuam a ser vistos como grupos ldquoaltamente isolados e privilegiadosrdquo nos

cenaacuterios poliacutetico e institucional (PEREIRA 2010 p 243) Os consensos fortemente

arraigados nessas instituiccedilotildees embaraccedilam a possibilidade de reformas baseando-se na

ficccedilatildeo denunciada por Antony W Pereira de que os tribunais militares agiam secundum

legem

Para aleacutem dos limites do paradigmaacutetico caso brasileiro do ponto de vista das

instituiccedilotildees ndash e no sentido dos quadros normativos incorporados pelo Direito Internacional

dos Direitos Humanos ndash Paul Van Zyl (2009a p 40-48) delineou alternativas para a

construccedilatildeo da paz em cenaacuterios poacutes-conflituais (1) proceder agrave identificaccedilatildeo das instituiccedilotildees

que devem sofrer reforma ou ser abolidas (2) assegurar reformas dos mandatos a

capacitaccedilatildeo e a dotaccedilatildeo de pessoal bem como as operaccedilotildees das instituiccedilotildees especiacuteficas a

fim de garantir sua operacionalidade e a proteccedilatildeo dos direitos humanos (3) sanear o

aparelho estatal por meio da remoccedilatildeo de agentes responsaacuteveis por corrupccedilatildeo ou violaccedilatildeo

de direitos humanos tais como ldquomeios de comunicaccedilatildeo as prisotildees as instituiccedilotildees

prestadoras de serviccedilos de sauacutede e as instituiccedilotildees judiciaisrdquo (ZYL 2009a p 41)

fomentando o debate sobre sua funccedilatildeo na promoccedilatildeo dos direitos humanos (4) purga dos

violadores ocupantes de cargos poliacuteticos (5) reforma do serviccedilo de seguranccedila puacuteblica (6)

as instituiccedilotildees podem instrumentalizar que se evite a dominaccedilatildeo de um grupo homogecircneo

baseado em caracteres identitaacuterios eacutetnicos linguiacutesticos ou religiosos (7) Mediar o

desarmamento a desmobilizaccedilatildeo da populaccedilatildeo e sua reintegraccedilatildeo social (8) Restaurar o

Estado de Direito confrontando a cultura da impunidade ndash pois segundo Zyl (2009a p

40) ainda que a responsabilizaccedilatildeo possa ser diferida a fim de permitir a transiccedilatildeo para um

regime democraacutetico de governo ela natildeo pode ser adiada eternamente (9) Restaurar a

confianccedila nas instituiccedilotildees do Estado e promover a consolidaccedilatildeo democraacutetica

Reconhecendo que ldquoassim como a tortura diversas praacuteticas e estruturas

permanecem como elementos-chave da cena nacionalrdquo o terceiro Plano Nacional de

Direitos Humanos de 2009 prevecirc entre suas diretrizes a supressatildeo ldquode normas

remanescentes de periacuteodos de exceccedilatildeo que afrontem compromissos internacionais e os

43

preceitos de Direitos Humanosrdquo (BRASIL 2009 p 25) Entre esses diplomas normativos

estariam as ainda vigentes Lei Federal n 71701983 (Lei de Seguranccedila Nacional) e a Lei

Federal n 66831979 (Lei de Anistia) ndash especificamente no ponto em que anistia os

agentes da repressatildeo poliacutetica mesmo que o apoie a decisatildeo do Supremo Tribunal Federal

na Accedilatildeo de Descumprimento de Preceito Fundamental n 153 de abril de 2010 No acircmbito

do Direito Penal Militar e das normas relativas a seu processo os coacutedigos penais e

processuais penais militares bem como a Lei de Organizaccedilatildeo da Justiccedila Militar remontam

ao periacuteodo autoritaacuterio (MEZAROBBA 2003 p 09) e atualmente mantecircm vigente nas

instituiccedilotildees de caserna uma ideologia juriacutedico-poliacutetica incompatiacutevel com o sistema

constitucional contemporacircneo

Embora se preveja ldquoa revisatildeo de propostas legislativas envolvendo retrocessos na

garantia dos Direitos Humanos em geral e do direito agrave memoacuteria e agrave verdaderdquo

independentemente de lapso temporal a revogaccedilatildeo de leis de periacuteodos autoritaacuterios fica em

princiacutepio limitada ao periacuteodo compreendido entre 1964-1985 A medida natildeo abrangeria

portanto o Decreto-Lei n 46571942 da lavra de Getuacutelio Vargas que tambeacutem fruto de

um periacuteodo poliacutetico autoritaacuterio ainda regra temas importantes em relaccedilatildeo agrave aplicaccedilatildeo e agrave

interpretaccedilatildeo do direito brasileiro Entre eles a vigecircncia das leis ndash ponto em que foi

relativamente derrogado pela Lei Complementar n 9598 ndash a aplicaccedilatildeo do direito e o

raciociacutenio juriacutedico nas decisotildees judiciais ndash ponto em que o Decreto restringe o uso de

recursos hermenecircuticos simples agrave existecircncia de lacuna no ordenamento ndash e as normas

referentes ao Direito Internacional Privado Em aceno contraacuterio agrave sua abrogaccedilatildeo o antigo

Decreto-Lei recepcionado pela Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica de 1988 como lei em sentido

formal foi recentemente rebatizado de ldquoLei de Introduccedilatildeo agraves Normas do Direito

Brasileirordquo pela Lei Federal n 123672010

O terceiro Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH-III) tambeacutem previu o

incremento do reconhecimento do status constitucional de instrumentos internacionais de

Direitos Humanos recomendando-se ratificar o segundo protocolo facultativo do Pacto

Internacional de Direitos Civis e Poliacuteticos visando agrave aboliccedilatildeo da pena de morte (1989) a

Convenccedilatildeo sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes contra a

Humanidade (1968) adaptando o ordenamento juriacutedico interno pela promulgaccedilatildeo de lei

expressa fixando a imprescritibilidade dos delitos bem como a Convenccedilatildeo Internacional

para a Proteccedilatildeo de Todas as Pessoas contra os Desaparecimentos Forccedilados (2006)

Por fim denota-se especial atenccedilatildeo para com o monitoramento da tramitaccedilatildeo de

processos judiciais que envolvam graves violaccedilotildees de direitos humanos praticados no

44

periacuteodo entre 18 e setembro de 1946 e a data da promulgaccedilatildeo da Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica

de 1988

O que o terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-III) consolida

natildeo deixa de constituir um importante passo em direccedilatildeo ao desmonte de alguns aparatos

autoritaacuterios no entanto eacute sensiacutevel que permaneccedila demasiadamente atreladpo ao desmonte

de dispositivos normativos do que aos burocraacutetico-administrativos locus de inscriccedilatildeo

privilegiado da praacutexis juriacutedica ndash ainda que estejam contempladas ratificaccedilotildees a alguns

protocolos que implicam adesatildeo a mecanismos de monitoramento e controle internacional

de Direitos Humanos

Entre o que postula Zyl (2009a p 40-48) como praacuteticas de consecuccedilatildeo da paz em

tempos poacutes-conflituais demonstrando a centralidade de reformas reestruturaccedilotildees e purgas

administrativas e as medidas oferecidas pelo mais recente plano de direitos humanos

verifica-se um fetiche pela dimensatildeo da normatividade que apesar de relevante acaba por

manter intocadas as estruturas administrativas lato sensu e judiciaacuterias que poderiam

continuar a interpretar algumas leis da mais recente ditadura segundo a loacutegica juriacutedica

preconizada pelos horizontes hermenecircuticos decretados pelo Estado Novo

Sob o ponto de vista especiacutefico do desmonte dos aparatos administrativos e

judiciais do regime preacutevio o PNDH-III ndash superestimado e abominado por advogados como

Ives Gandra Martins como uma deliberada tentativa de golpe de Estado ndash natildeo passa de um

instrumento de manutenccedilatildeo do status quo ao passo em que embora programe a ratificaccedilatildeo

de relevantes normativas de Direito Internacional dos Direitos Humanos em nada altera no

regime estrutural das instituiccedilotildees burocraacuteticas que relativamente agrave efetividade daquelas

normas e das tutelas por elas exigidas continuaratildeo a ser as responsaacuteveis por implementaacute-

las

Contudo o trabalho de identificaccedilatildeo e cartografia dos pontos institucionais notaacuteveis

que devem ser objeto de reformas purgas e reestruturaccedilotildees natildeo pode ser levado a cabo sem

um trabalho da memoacuteria natildeo raro coextensivo com a funccedilatildeo diagnoacutestica desempenhada

pelas Comissotildees de Verdade (CARRILO 2009b p 39) Segundo Zyl (2009a p 36-37) as

Comissotildees auxiliariam a dar iacutempeto agraves transformaccedilotildees institucionais permitindo o

conhecimento e o rompimento com praacuteticas do passado bem como identificando em seu

relatoacuterio final as instituiccedilotildees e oacutergatildeos perpetradores de graves violaccedilotildees dos direitos

humanos de modo a viabilizar mais consistentes medidas de reparaccedilatildeo material e

simboacutelica assim como as reformas institucionais e medidas legais administrativas e

institucionais suficientes para evitar a reemergecircncia dos crimes do passado

45

Nesse sentido a memoacuteria e a verdade ndash processos que tomamos como equivalentes

porque natildeo os dissociamos de uma imediata produccedilatildeo de transiccedilatildeo ndash insinuam-se como os

pressupostos da justiccedila sob suas muacuteltiplas formas e das reformas institucionais o que

permite entrever que no seio do direito de transiccedilatildeo pode-se identificar uma interface

entre memoacuteria e justiccedila mas tambeacutem entre memoacuteria e instituiccedilotildees em transiccedilatildeo Eacute o que

atesta o Relatoacuterio Anual do Alto Comissariado da Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas para os

Direitos Humanos (sect 4) ao reconhecer que ldquoarquivos e arquivistas desempenham um papel

central para reforccedilar os direitos humanosrdquo14

No mesmo sentido o Segundo Relatoacuterio

Nacional do Estado Brasileiro apresentado no mecanismo de revisatildeo perioacutedica universal do

Conselho de Direitos Humanos das Naccedilotildees Unidas de 2012 (sect 123) revelou compreender

ldquoque o trabalho de resgatar o passado eacute imprescindiacutevel para a superaccedilatildeo de violecircncias e

impunidades histoacutericas []rdquo15

Mesmo as poliacuteticas de arquivos ndash considerados tanto em suas dimensotildees pessoais

como oficiais ndash estatildeo necessariamente implicadas nessa zona de muacutetuo contaacutegio entre

memoacuteria e justiccedila na medida em que o testemunho seja colocado a serviccedilo das instituiccedilotildees

e da construccedilatildeo puacuteblica e democraacutetica da verdade No interior dessa dimensatildeo liminar que

eacute o direito de transiccedilatildeo ndash direito constitutivo ou direito entre ndash revela-se o sentido da

afirmativa de Ceciacutelia MacDowell dos Santos (2009 p 472) para quem ldquoO testemunho e a

memoacuteria estatildeo comumente a serviccedilo das instituiccedilotildees do direito na busca da verdade e da

justiccedila Mas a justiccedila tambeacutem estaacute ao serviccedilo da memoacuteriardquo Progressivamente ela deixaria

entrever a centralidade do conceito de memoacuteria da Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo

14

ANNUAL REPORT OF THE UNITED NATIONS HIGH COMMISSIONER FOR HUMAN RIGHTS

Right to the truth report of the Office of the High Commissioner for Human Rights (2009) Disponiacutevel em

lthttpwww2ohchrorgenglishbodieshrcouncildocs12sessionA-HRC-12-19pdfgt Consultado em 13

mai 2013 15

ORGANIZACcedilAO DAS NACcedilOtildeES UNIDAS Segundo Relatoacuterio Nacional do Estado Brasileiro

apresentado no mecanismo de revisatildeo perioacutedica universal do Conselho de Direitos Humanos das Naccedilotildees

Unidas (2012) Disponiacutevel em lthttpwwwsedhgovbrcooperacaorevisao-periodica-

universalRelatorio20Nacional_RPU_Brasil_port_VERSaO_FINALpdfgt Consultado em 13 mai 2013

46

CAPIacuteTULO 3 ndash O CONCEITO DE MEMOacuteRIA NA TEORIA DA JUSTICcedilA

DE TRANSICcedilAtildeO

Em cenaacuterios poacutes-conflituais a construccedilatildeo da memoacuteria das violaccedilotildees de direitos

humanos constitui o centro de gravidade da institucionalizaccedilatildeo da Justiccedila de Transiccedilatildeo

Paul Van Zyl (2009a p 32) define-a brevemente como ldquoo esforccedilo para a construccedilatildeo da paz

sustentaacutevel apoacutes um periacuteodo de conflito violecircncia em massa ou violaccedilatildeo sistemaacutetica dos

direitos humanosrdquo

No entanto eacute preciso notar que todos os mecanismos de reconstruccedilatildeo da paz por

meio da Justiccedila de Transiccedilatildeo estatildeo em maior ou menor grau sujeitos agrave singularidade

histoacuterica da realidade faacutetica poacutes-conflitual sobre a qual opera Kai Ambos (2009 p 21-22)

adverte que o acircmbito de aplicaccedilatildeo da Justiccedila de Transiccedilatildeo natildeo se limita aos quadros

histoacutericos poacutes-conflituais ou aos momentos de rupturas de regimes poliacuteticos mas

compreende igualmente ldquoprocessos de paz sem conflito eou de democracia formalrdquo

Embora sofram o inegaacutevel influxo da singularidade histoacuterica agrave qual se aplicam tais

instrumentos natildeo podem permanecer completamente submetidos agraves necessidades

domeacutesticas Ao contraacuterio do simples e acriacutetico implante de uma modelagem (ZYL 2009a

p 54) sua crescente interpenetraccedilatildeo com o Direito Internacional dos Direitos Humanos na

uacuteltima deacutecada (ZYL 2009a p 32-33) e com quadros legais transnacionais (AMBOS

2009 p 19-20) implica a definiccedilatildeo de um regime juriacutedico miacutenimo compreensivo e

flexiacutevel capaz de adaptar-se agrave singularidade das situaccedilotildees histoacutericas agraves quais se aplica

deixando-se reciprocamente fecundar por ela

Por essa razatildeo Paul Van Zyl (2009a p 48) afirma ser ldquoindispensaacutevel que as

estrateacutegias da justiccedila transicional partam de um extenso processo de consulta local e que

estejam fundamentadas nas condiccedilotildees domeacutesticasrdquo na medida em que a Justiccedila de

Transiccedilatildeo aparece como um universal flexiacutevel a operar sobre uma singularidade histoacuterica e

sociopoliacutetica Eis o que teria tornado possiacutevel superar ao menos relativamente a

polarizaccedilatildeo entre uma concepccedilatildeo de justiccedila universalista e as necessidades derivadas das

singularidades concretas derivadas de momentos de fluxo poliacutetico (TORELLY 2012 p

107)

Trata-se de um processo dinacircmico que se desenvolve por prolongamentos e

singularizaccedilotildees construiacutedos em relaccedilatildeo a outros ldquoprocessos e mecanismos associados com

os quais uma sociedade busca terminar com o legado de um passado de abusos de larga

47

escala a fim de assegurar a prestaccedilatildeo de contas servir agrave justiccedila e atingir a reconciliaccedilatildeordquo

(AMBOS 2009 p 21) Esses processos por sua vez recebem normatizaccedilatildeo internacional

bem como se beneficiam dos suportes financeiro e teacutecnico de organismos internacionais

com experiecircncia em viabilizar e assistir processos de transiccedilatildeo poliacutetico-institucional16

Dessa contaminaccedilatildeo reciacuteproca entre as circunstacircncias faacuteticas domeacutesticas ndash

resultantes de condiccedilotildees transicionais locais histoacutericas e singularizantes ndash e da pretensatildeo agrave

universalidade de que dispotildee o Direito Internacional dos Direitos Humanos aplicaacutevel

como quadro legal transnacional pode-se depreender a muacutetua gecircnese dos processos de

internacionalizaccedilatildeo dos direitos humanos e da Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo

No corpus normativo mas tambeacutem praacutetico do direito de transiccedilatildeo a reciacuteproca

contaminaccedilatildeo entre memoacuteria justiccedila e mutaccedilotildees institucionais terminaria por fazer da

memoacuteria o sustentaacuteculo da verdade e da justiccedila Natildeo haacute praacutetica de verdade ou exerciacutecio de

direito de conhecer o passado de violaccedilotildees de direitos humanos que natildeo parta de um apelo

positivo ou negativo agrave reminiscecircncia da mesma forma as instituiccedilotildees encarregadas da

efetuaccedilatildeo desse direito-entre que se define como Justiccedila de Transiccedilatildeo natildeo operam senatildeo

com fundamento em certa memoacuteria que pode ser representada no interior do processo ou

produzida como vimos como resultado do proacuteprio processo

Essa dupla implicaccedilatildeo entre memoacuteria-verdade e instituiccedilotildees revela a importacircncia

praacutetica de traccedilar os limites conceituais da ideia de memoacuteria com a qual se trabalha no seio

da Justiccedila de Transiccedilatildeo Ao mesmo tempo torna-se desejaacutevel compreender em que medida

as instituiccedilotildees satildeo produtoras de memoacuteria ao mesmo tempo em que a memoacuteria parece

poder servir de ponto de apoio para operar as transformaccedilotildees institucionais e reformas que

caracterizam o vieacutes pragmaacutetico e poliacutetico mais sensiacutevel de toda transiccedilatildeo

Ao interrogar a memoacuteria como conceito-chave das transiccedilotildees poliacuteticas eacute comum

que dois argumentos atravessem a bibliografia tradicional sobre Justiccedila de Transiccedilatildeo satildeo

eles as referecircncias ao passado como chave compreensiva do presente e do futuro das

instituiccedilotildees poliacuteticas juriacutedicas e sociais e aquele que postula a interpenetraccedilatildeo necessaacuteria

entre memoacuteria e subjetividade De seus pontos de vista natildeo se trataria de aceder pura e

simplesmente agrave histoacuteria real tal como o puro acontecimento do passado mas tambeacutem de

procurar de que maneira as pessoas percebem e deixam-se influenciar por aquilo que

aconteceu no passado

16

Segundo o Relatoacuterio Anual do Escritoacuterio do Alto Comissariado nas Naccedilotildees Unidas para os Direitos

Humanos na temaacutetica das Comissotildees de Verdade (OHCHR HRPUB061 p 33-36) Disponiacutevel em lt

httpwwwohchrorgDocumentsPublicationsRuleoflawTruthCommissionsenpdfgt Consultado em 13 mai

2013

48

Eis o que David Bloomfield (2005 p 40) compreendera como a ldquodimensatildeo

mitoloacutegica do passadordquo Portanto ao lado de uma histoacuteria objetiva factual baseada na

realidade haveria sempre um magma confuso de percepccedilotildees subjetivas crenccedilas

mitologias e interpretaccedilotildees da histoacuteria ldquowhich may or may not reflect actual events but will

significantly shape peoplersquos readiness or room for manoeuvre in the presentrdquo

(BLOOMFIELD 2005 p 40)

Dessa forma a mitologia do passado poderia posicionar-se no mesmo grau de

importacircncia que as exigecircncias de precisatildeo histoacuterica afinal compreender o passado

dependeria em alguma medida de compreender a maneira segundo a qual as pessoas o

interpretam As crenccedilas individuais e socialmente partilhadas sobre o passado tornariam

mais ou menos factiacutevel a possibilidade de realizar um processo de conciliaccedilatildeo e

Bloomfield parece aferi-la segundo a distacircncia entre a histoacuteria objetiva e a mitologia

popular criada ao seu redor

Paul Gready (2011 p 93) e Alexandra Barahona de Brito (2009 p 115) tambeacutem

enfatizam o passado como peccedila compreensiva central agraves praacuteticas transicionais Brito afirma

uma estreita correlaccedilatildeo entre passado e processo de democratizaccedilatildeo ao passo em que este

depende de um processo complexo que envolve a constituiccedilatildeo de efetiva cidadania a qual

soacute seria conquistada por meio da eliminaccedilatildeo dos legados autoritaacuterios que a precedem e

foram consolidados pelos governos militares Isso significa concentrar sobre a reforma

institucional o olhar para o futuro de modo que o trabalho da memoacuteria e da justiccedila

transcendam as poliacuteticas ndash sem duacutevida imprescindiacuteveis ndash relacionadas agrave prestaccedilatildeo de

contas sobre o passado

A memoacuteria opera sobretudo na contracorrente da resiliecircncia das estruturas sociais

(PAIGE 2011 p 11) do passado no presente Natildeo por acaso Franccedilois Ost (1999 p 88-

94) considera o direito e logicamente as instituiccedilotildees que com ele se relacionam o

escrivatildeo e o guarda da memoacuteria social afianccedilando sua comunhatildeo e continuidade De

acordo com Ost o direito apresenta-se a um soacute tempo como o conjunto de comandos

especiais ndash conceito proveniente das claacutessicas definiccedilotildees positivo-analiacuteticas que

confundem direito e suas funccedilotildees de gestatildeo ndash bem como o grande corpus inscritor de uma

memoacuteria que possui funccedilatildeo instituinte

Se Franccedilois Ost pudera afirmaacute-lo isso se deve ao fato de a memoacuteria encontrar-se

duplamente implicada do ponto de vista das instituiccedilotildees Como elemento de produccedilatildeo

espera-se que a memoacuteria poliacutetica das violaccedilotildees dos direitos humanos inscrita em arquivos e

documentos constitua o fundamento e a justificativa para reformas saneamentos

49

administrativos purgas aboliccedilotildees de instituiccedilotildees e reestruturaccedilotildees democraacuteticas capazes

de sustentar a emergecircncia de um regime qualitativamente democraacutetico como elemento

produzido pode-se dizer que tambeacutem a Justiccedila de Transiccedilatildeo produz memoacuterias e as

inscreve em arquivos ao processar julgar produzir narrativas oficiais fixar os signos da

verdade histoacuterica de um passado de violaccedilotildees

No interior desse quadro eacute preciso definir o lugar da memoacuteria na Justiccedila de

Transiccedilatildeo a partir de trecircs dimensotildees que se interpenetram e confluem para definir o sentido

da memoacuteria no campo transicional segundo as doutrinas transicionais contemporacircneas (1)

a inscriccedilatildeo normativa da memoacuteria no acircmbito do Direito Internacional dos Direitos

Humanos e sua relaccedilatildeo com o direito agrave verdade (2) As diversas camadas conceituais pelas

quais a memoacuteria deixou-se apanhar do ponto de vista conceitual no campo teoacuterico da

Justiccedila de Transiccedilatildeo ndash o que visa a definir o lugar da memoacuteria como elemento-chave de

compreensatildeo do campo transicional de modo a permitir uma iluminaccedilatildeo reciacuteproca (3) os

limites praacuteticos teacutecnicos e institucionais pelos quais a memoacuteria se torna um objeto de

investimento teoacuterico que como veremos deixam transparecer a existecircncia do

reconhecimento mais ou menos imediato de uma relaccedilatildeo essencial entre memoacuteria e

transiccedilatildeo ndash relaccedilatildeo esta jamais explicitada como tal e todavia sempre mais ou menos

aparente dedutiacutevel ou no limite suposta pelos teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo

Apenas a articulaccedilatildeo da anaacutelise dessas trecircs dimensotildees permitiraacute compreender o

lugar conceitual e a um soacute tempo praacutetico da memoacuteria em relaccedilatildeo ao campo transicional

bem como a concepccedilatildeo de temporalidade que estaacute envolvida nessas apreensotildees do conceito

de memoacuteria pela Justiccedila de Transiccedilatildeo definindo assim o traccedilado de seus limites

conceituais internos

sect 1 MEMOacuteRIA VERDADE E

DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS

Natildeo raro os direitos agrave memoacuteria e agrave verdade emergem em definiccedilotildees que os tomam

pela mesma acepccedilatildeo Joseacute Carlos Moreira da Silva Filho (2011 p 282) por exemplo

definiu-o recentemente relacionando-o agrave ldquonecessaacuteria apuraccedilatildeo dos fatos ocorridos em

periacuteodos repressivos e autoritaacuterios especialmente em ditaduras e totalitarismos

demarcando a necessidade de um amplo acesso aos documentos puacuteblicos O apelo agrave

memoacuteria indica aleacutem disso a necessidade de que o Estado empreenda poliacuteticas de

memoacuteria para reforccedilar a ideia da natildeo repeticcedilatildeordquo Tambeacutem testemunhando uma

50

proximidade entre memoacuteria e verdade Marcelo Torelly (2012 p 271) admite que ldquoa ideia

de lsquodireito agrave memoacuteriarsquo conecta-se agrave de lsquodireito agrave verdadersquo como forma de afirmar o direto

da sociedade mas tambeacutem das viacutetimas de tambeacutem construiacuterem discursos com pretensatildeo

de verdade e apresentarem esses discursos ao Estado como meio de disputa democraacutetica da

versatildeo oficial do passadordquo

A aparente confusatildeo poreacutem natildeo implica que seja impossiacutevel discernir do ponto de

vista semacircntico ou normativo ambos os direitos Sinteticamente ldquoSe o direito agrave verdade

refere-se ao acesso e ao conhecimento de informaccedilotildees [] o direito agrave memoacuteria objetiva

no plano coletivo a inserccedilatildeo ou reinserccedilatildeo de determinadas narrativas no seio socialrdquo

(TORELLY 2012 p 271) Apesar de propor essa distinccedilatildeo segundo a qual a verdade

comporta uma dimensatildeo objetiva do conhecimento da verdade dos fatos enquanto a

memoacuteria entreteacutem-se na dimensatildeo subjetiva da pluralizaccedilatildeo de narrativas sociais ainda

assim seria possiacutevel devido agrave sua proximidade falar em um ldquobinocircmio verdade-memoacuteriardquo

com papeis solidaacuterios (TORELLY 2012 p 271) Promova-se ou natildeo uma distinccedilatildeo entre

as ideias-forccedila de memoacuteria e verdade ambas natildeo deixam seja qual for o caso de serem

correlatas tampouco cessam de ser invocadas como condiccedilotildees-chave na produccedilatildeo das

alteraccedilotildees praacuteticas inerentes agraves transiccedilotildees poliacuteticas Eis precisamente o que Torelly (2012

p 281) afirma ao aludir ao caraacuteter transformador da constituiccedilatildeo de uma memoacuteria social

das violaccedilotildees de direitos humanos vinculando-a ao advento de um futuro de natildeo repeticcedilatildeo

ldquoA consolidaccedilatildeo de uma memoacuteria social criacutetica em relaccedilatildeo ao passado passa a funcionar

como combustiacutevel para a defesa de uma cultura democraacutetica sustentando e legitimando as

reformas poliacuteticas e juriacutedicas que permitem o ressurgimento nacional em uma nova

configuraccedilatildeo poliacutetica []rdquo17

Trata-se de uma definiccedilatildeo que enfoca a funccedilatildeo poliacutetica do direito agrave memoacuteria e agrave

verdade sintetizando-os ao conhecimento da verdade histoacuterico-factual e agrave vedaccedilatildeo ndash

normativa e eacutetico-social ndash da repeticcedilatildeo de um passado de violaccedilotildees de direitos humanos

que seria afianccedilado por poliacuteticas da memoacuteria O conceito estrutura-se portanto sobre uma

articulaccedilatildeo agrave primeira vista inaparente ndash mas necessaacuteria ndash entre passado e futuro de

inspiraccedilatildeo possivelmente adorniana segundo a qual o conhecimento do passado de

17

Sobre o tema Torelly (2012 p 281) afirma ainda ldquoAo lembrar e reparar por meio de mecanismos de

Justiccedila de Transiccedilatildeo o Estado sinaliza uma autocriacutetica quanto ao abuso perpetrado e consolida uma narrativa

(mesmo que tardia) de igualdade perante a lei oferecendo tratamento juriacutedico equacircnime aos cidadatildeos e

reincorporando o legado autoritaacuterio agraves categorias de justiccedila que o proacuteprio autoritarismo afastou Esse

processo sinaliza de modo consciente para um futuro de natildeo repeticcedilatildeo e ainda permite aos mais jovens que

se socializem em uma cultura conscientemente esclarecida do passado e da importacircncia democraacutetica

incorporando os valores construiacutedos na democracia como caracteres culturais permanentes do sistema

simboacutelico da sociedade []rdquo

51

violaccedilotildees de direitos humanos de algum modo asseguraria sua natildeo repeticcedilatildeo no futuro

Parece certo que entre os teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo a aposta seja feita no valor

cognitivo criacutetico e coletivo do esclarecimento sobre a verdade do passado e da produccedilatildeo

de narrativas sociais plurais sobre ele Todavia de um lado reduz-se memoacuteria e verdade a

sua faceta reminiscente cognitivo-pragmaacutetica e de representaccedilatildeo partilhada de outro

extrai-se do proacuteprio fato dessa partilha fomentada ou pelo menos garantida pelas

instituiccedilotildees em transiccedilatildeo um enigmaacutetico potencial transformador que jamais encontra

explicaccedilatildeo adequada na bibliografia dedicada agrave Justiccedila de Transiccedilatildeo

Na dimensatildeo normativa mais ampla preconizada pelo Direito Internacional dos

Direitos Humanos David Bloomfield (2005 p 40) reconhece que o passado eacute composto

por muitas camadas a fim de indicar o substrato cultural mais profundo que lastreia a

compreensatildeo que o direito agrave memoacuteria e agrave verdade poderiam incrementar ldquoThe past has

many layers This fact needs to be acknowledged before addressing the past through a

reconciliation process Many violent conflicts and wars are not simply the outcome of one

particular set of recent circumstances which led to violencerdquo

Segundo Bloomfield a compreensatildeo dessas vaacuterias camadas do passado apela agrave

problemaacutetica questatildeo sobre o quanto longe se deveria ir no passado para realizar uma

reconciliaccedilatildeo Contudo a profundidade do enraizamento histoacuterico-geneacutetico dessa base

cultural autoritaacuteria cuja emergecircncia e visibilidade os direitos agrave memoacuteria e agrave verdade

deveriam afianccedilar natildeo deve ser o uacutenico horizonte de delimitaccedilatildeo de tais direitos

O direito agrave memoacuteria como direito cultural ao qual correspondem deveres de caraacuteter

transgeracional eacute o tecido natildeo raro inaparente sobre o qual se coloca em jogo toda e

qualquer praacutetica juriacutedico-poliacutetica de Justiccedila de Transiccedilatildeo Mesmo as transiccedilotildees

incompletas inacabadas e interrompidas mantecircm com o potencial transicional da

memoacuteria uma relaccedilatildeo inequiacutevoca ainda que seja para separaacute-lo do seio das praacuteticas

poliacuteticas decretando o esquecimento ou sobrecodificando suas emergecircncias no seio social

ou coletivo18

Da perspectiva do Direito Internacional dos Direitos Humanos a produccedilatildeo da

memoacuteria implicada nas operaccedilotildees de transiccedilatildeo poliacutetica eacute o cerne no qual se articulam as

18

Nesse sentido em La meacutemoire lrsquohistoire lrsquooubli Paul Ricœur destacou a relaccedilatildeo dialeacutetica entre memoacuteria

e esquecimento como se as categorias estivessem entregues a uma espeacutecie de jogo entre anverso e verso

ldquoDrsquoune part les notations sur lrsquooubli constituent en grande partie un simple envers de celles portant sur la

meacutemoire se souvenir crsquoest pour un grand part ne pas oublier Drsquoautre part les manifestations individuelles

de lrsquooubli sont inextrincablement troublantes de lrsquooubli mecircleacutees agrave ses formes collectives au point que les

expeacuteriences les plus maleacutefiques de lrsquooubli telle la hantise ne deacuteploient leurs effets les plus maleacutefiqus qursquoagrave

lrsquoeacutechelle des meacutemoires collectives[]rdquo (RICŒUR 2000 p 574-575)

52

dimensotildees dos Direitos Civis e Poliacuteticos bem como dos Direitos Econocircmicos Sociais e

Culturais no contexto das transiccedilotildees Nesse aspecto Javier Ciurlizza (2009a p 27)

estabelece que a memoacuteria ldquonatildeo eacute um exerciacutecio individual no qual algueacutem diz o que sabe

mas sim um processo cultural educativo e poliacutetico de estabelecimento de consensos sobre

a identidade nacionalrdquo Alexandra Barahona de Brito (2009a p 72) em sentido anaacutelogo

tambeacutem reconhece agrave memoacuteria a qualidade de locus privilegiado de interaccedilatildeo entre direitos

assegurando como nuacutecleo significativo do Direito Internacional dos Direitos Humanos

sua indivisibilidade e interdependecircncia

Relatoacuterio Anual do Alto Comissariado para Direitos Humanos das Naccedilotildees Unidas

procedendo a um estudo analiacutetico sobre direitos humanos e Justiccedila de Transiccedilatildeo reiterou

expressamente o potencial dos mecanismos transicionais para incorporar direitos de

natureza econocircmica social e cultural tornando sua investigaccedilatildeo extensatildeo da atividade das

Comissotildees de Verdade (OHCHRA-HRC1218 2009 sectsect 3 59 e 60) confirmando a visatildeo

doutrinaacuteria segundo a qual ao permitir equilibrar poliacutetica e direito a Justiccedila de Transiccedilatildeo

teria sido capaz de dissolver recentemente ndash e talvez ateacute mesmo definitivamente ndash a tensatildeo

entre justiccedila e paz a fim de afirmaacute-las como condicionantes reciacuteprocas19

Ruti Teitel (2000 p 271-218) por sua vez assegura que a dimensatildeo veritativa que

as investigaccedilotildees histoacutericas transicionais engendram ldquoreveal that the relevant truths are

those that are implicated in a particular statersquos legacy or injustice There are not universal

essential or metatruthsrdquo Ainda que memoacuteria verdade e justiccedila revelem-se imperativos de

aspiraccedilotildees mais ou menos universais trata-se sempre de universais cujo conteuacutedo se

esmaece caso lhes seja subtraiacutedo o solo de singularidades ao qual pertencem ou a aacuterea de

jogo e de arranjos poliacuteticos que os designam

Uma vez verificado o protagonismo dos quadros normativos internacionais dos

direitos humanos reconhece-se que a responsabilizaccedilatildeo judicial soacute pode lastrear-se na

produccedilatildeo da memoacuteria e no desvelamento da verdade Do ponto de vista do acesso agrave justiccedila

e agrave reparaccedilatildeo por meio das decisotildees judiciaacuterias eacute que resta demonstrado de que modo o

direito agrave memoacuteria e agrave verdade exercem concretamente uma capacidade integrativa de

direitos ao menos sob a perspectiva da existecircncia de uma norma global de

responsabilizaccedilatildeo que ldquonatildeo depende da adesatildeo de pessoas ou paiacutesesrdquo (MALLINDER

19

Cf nesse particular os paraacutegrafos indicados acima no Relatoacuterio Anual do Escritoacuterio do Alto Comissariado

nas Naccedilotildees Unidas para os Direitos Humanos ldquoAnalytical study on human rigghts and transitional justicerdquo

(OHCHR A-HRC 1218 2009) Disponiacutevel em lthttpwwwunrolorgfiles96696_A-HRC-12-18_Epdfgt

Consultado em 13 mai 2013

53

2011 p 502) Isto significa admitir como fizera Deisy Ventura (2011 p 327-335) que o

costume internacional natildeo deixa de ser uma fonte do Direito Penal Internacional

Embora certo poacutelemos constitua o diapasatildeo quanto agrave validade juriacutedica de anistias

negociadas que visem agrave conciliaccedilatildeo ndash essencialmente vinculadas a uma soluccedilatildeo de exceccedilatildeo

ndash as anistias em branco que acobertem graves violaccedilotildees de direitos humanos

protagonizadas por agentes de Estado por exemplo padecem de um rechaccedilo de caraacuteter

praticamente universal entre os teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo (PENSKY 2011 p 99-

100)

Como resultado da historicidade das lutas pelo reconhecimento normativo e pela

implementaccedilatildeo dos direitos humanos a conclusatildeo a que chega Christine Bell (2009 p

106) eacute a de que se natildeo eacute possiacutevel saber exatamente quais os limites das anistias eacute no

miacutenimo possiacutevel afirmar que a proibiccedilatildeo das anistias em branco estaria contemplada no

novo campo da Justiccedila de Transiccedilatildeo como resultado imediato de sua internacionalizaccedilatildeo

Na medida em que os direitos agrave verdade e agrave memoacuteria encontram-se no cerne nos

processos judiciais que visam agrave responsabilizaccedilatildeo dos agentes violadores de direitos

humanos pode-se notar a centralidade dos direitos agrave memoacuteria e agrave verdade na quadratura

normativa internacional Nesse contexto a produccedilatildeo de memoacuterias institucionais no campo

da responsabilizaccedilatildeo penal internacional ou nos julgamentos transicionais domeacutesticos satildeo

informados pela norma global de responsabilizaccedilatildeo do Direito Internacional dos Direitos

Humanos cuja integridade eacute salvaguardada precisamente pela concreccedilatildeo pragmaacutetica e

judiciaacuteria dos direitos agrave memoacuteria e agrave verdade

sect 2 OS CONTORNOS DO CONCEITO DE MEMOacuteRIA

NO CAMPO TRANSICIONAL

Se foi possiacutevel compreender qual o lugar ocupado pela memoacuteria no seio do Direito

Internacional dos Direitos Humanos bem como sua relaccedilatildeo com o direito agrave verdade seria

preciso delimitar o conceito de memoacuteria sobre o qual os teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo

apoiam suas doutrinas a fim de que se possa verificar ainda uma vez sua reciacuteproca

constitutividade

Com efeito natildeo haacute um senso comum teoacuterico a respeito do conceito de memoacuteria

assim como os horizontes conceituais das praacuteticas da Justiccedila de Transiccedilatildeo padecem de uma

relativa imprecisatildeo categoacuterica e como quisera Paul Gready (2011 p 02) implicam natildeo

54

raro certo vaacutecuo analiacutetico indiciaacuterio da ldquogenerally under-theorized nature of much work on

transitional justicerdquo Idecircntico vaacutecuo conceitual relativo agrave ideia de memoacuteria e aos processos

de memorializaccedilatildeo eacute reconhecido por Judy Barsalou e Victoria Baxter com fundamento

nas praacuteticas concretas das Comissotildees de Verdade20

Apesar da heterogeneidade conceitual de que a ideia de memoacuteria se reveste no

campo transicional eacute possiacutevel estabelecer lineamentos comuns que por reduccedilotildees

sucessivas permitiriam uma progressiva aproximaccedilatildeo e elaboraccedilatildeo de um canevaacutes teoacuterico

comum em que se funda a aparente multiplicidade dos conceitos de memoacuteria envolvidos

pela Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo acerca do qual as instituiccedilotildees desempenham uma

funccedilatildeo ora de registro ora de produccedilatildeo

Nesse sentido podem-se estabelecer dois limites que resultam das apropriaccedilotildees

conceituais da memoacuteria realizadas pela Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo (1) o limite

segundo o qual o conceito de memoacuteria eacute compreendido como representaccedilatildeo coletiva

tendendo agrave formar identidade de grupo ou nacional Por vezes apareceraacute como um

processo cultural que poreacutem natildeo eacute jamais explicitado do ponto de vista de sua dinacircmica

interna (2) o limite em que a memoacuteria eacute apreendida como resultado expressivo de uma

ontologia negativa como representaccedilatildeo ou como representificaccedilatildeo do ausente por meio

dos testemunhos individuais o que implica que a memoacuteria seja tratada ora como um

fenocircmeno despido de fundamento no real ora limitada agrave sua caracteriacutestica psicoloacutegica e

reminiscente Trata-se de demonstrar brevemente como se podem deduzir essas balizas

analiacuteticas para definir os contornos do conceito de memoacuteria na Teoria da Justiccedila de

Transiccedilatildeo

Da perspectiva desse primeiro limite analiacutetico o conceito de memoacuteria aparece ora

como objeto social ora como processo cultural em cuja constituiccedilatildeo encontra-se envolvida

certa comunidade poliacutetica Em comum os teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo insistiratildeo sobre

a prevalecircncia do caraacuteter social e poliacutetico da memoacuteria e da constituiccedilatildeo de subjetividades ou

identidades que ela proporciona Assim Javier Ciurlizza (2009a p 27) afasta a

identificaccedilatildeo vulgar entre memoacuteria e lembranccedila individual considerando-a ldquoum processo

20

ldquoTo date truth commissions have not articulated in much detail what memorialization means how it

should be connected to other transitional justice processes who should take charge and other specific points

of consideration By not taking into greater account the role of memorialization and the educational processes

that should accompany it truth commissions are losing an important opportunity to extend their impactrdquo

(BARSALOU BAXTER 2007 p 10)

55

cultural educativo e poliacutetico de estabelecimento de consensos sobre a identidade

nacionalrdquo

Nesse aspecto a constituiccedilatildeo da memoacuteria confunde-se com a produccedilatildeo de uma

memoacuteria coletiva da qual segundo Peter R Baehr (2007 p 16) as Comissotildees da Verdade

estariam encarregadas no intento de contribuir para ldquoa moral revival and provide the basis

for national unityrdquo

Feacutelix Reaacutetegui Carrillo (2009b p 42) compreende a memoacuteria como uma

representaccedilatildeo social compartilhada que manteacutem uma relaccedilatildeo com as instituiccedilotildees ao passo

em que essa representaccedilatildeo possa ser forjada a partir das narrativas oficiais produzidas em

um registro de verossimilhanccedila e na medida em que sua efetuaccedilatildeo demanda poliacuteticas

puacuteblicas Segundo Carrillo (2009b p 32) o objeto das transiccedilotildees poliacuteticas eacute a proacutepria

cultura que constitui uma dimensatildeo da arquitetura sociopoliacutetica da construccedilatildeo da

democracia integrando o processo poliacutetico

Desde a perspectiva de Carrillo o que estaria em questatildeo nas Comissotildees da

Verdade por exemplo seria a produccedilatildeo de sentido concretizada em um objeto cultural

uma narrativa textual ou natildeo que se avizinha de um objeto complexo e polieacutedrico capaz

de estabelecer a verdade a partir de muacuteltiplas perspectivas sem recorrer ao relativismo

Trata-se de praacutetica que segundo Carrillo (2009b p 40) estabelece-se sobre certas

tecnologias da verdade bem como sobre a base testemunhal que se confunde com as

viacutetimas e os sobreviventes

A narrativa instrumento teacutecnico que se origina das instituiccedilotildees faz-se integrar agrave

memoacuteria como um objeto social normalmente guiado por valores eacutetico-poliacuteticos como a

democracia e os direitos humanos bem como pela correccedilatildeo do registro histoacuterico da

violecircncia Uma vez que tal instrumento teacutecnico desfrute ldquo[]de certa legitimidade

simboacutelica que a converte em socialmente vaacutelidardquo eacute possiacutevel constituir no corpo de um

objeto ldquoao mesmo tempo textual e socialrdquo uma memoacuteria (CARRILLO 2009b p 41)

A representaccedilatildeo social a que se reduz a memoacuteria nesse caso natildeo se limita agrave

partilha de ldquoenunciados com pretensotildees de verdade sobre o passado violento ou

repressivordquo mas constitui segundo Feacutelix Reaacutetegui Carrillo (2009b p 42) aleacutem de ldquouma

fonte de criacutetica e deslegitimaccedilatildeo de certas praacuteticas sociais precedentesrdquo ldquocerta forma de

encarar a luta poliacutetica certos haacutebitos e retoacutericas que determinam a relaccedilatildeo entre as diversas

classes sociais e os conglomerados eacutetnicos da naccedilatildeo ndash e naturalmente uma demanda de

transformaccedilatildeo de tais praacuteticasrdquo Trata-se nesse sentido de uma memoacuteria com caraacuteter

poliacutetico Poliacuteticas puacuteblicas de memoacuteria destinam-se portanto a uma mobilizaccedilatildeo de

56

recursos simboacutelicos que tendem a modificar a ordem significante de coisas repercutindo

sobre outras dimensotildees da organizaccedilatildeo social

Assim Carrillo articula ao redor da memoacuteria compreendida como partilha de uma

representaccedilatildeo social ou como um objeto social as narrativas oficiais provenientes da

atuaccedilatildeo das instituiccedilotildees que refletem a verdade e a memoacuteria de um passado de violaccedilotildees de

direitos agrave axiologia democraacutetica e humanista bem como agrave organizaccedilatildeo poliacutetica das lutas

em prol da transformaccedilatildeo de praacuteticas violadoras

Em sentido anaacutelogo Alexandra Barahona de Brito (2009a p 72) entrevecirc ao menos

duas possibilidades de compreender as poliacuteticas da memoacuteria no seio da Justiccedila de

Transiccedilatildeo ldquoDe forma restrita consiste de poliacuteticas para a verdade e para a justiccedila

(memoacuteria oficial ou puacuteblica) vista mais amplamente eacute sobre como a sociedade interpreta

e apropria o passado em uma tentativa de moldar o seu futuro (memoacuteria social)rdquo

Elizabeth Jelin (2011 p 188-189) por sua vez considera a memoacuteria um processo

eminentemente subjetivo de construccedilatildeo de significaccedilatildeo do passado no ato presente da

recordaccedilatildeo ancorada nas experiecircncias e na ordem do simboacutelico Entretanto afirma Jelin

(2011 p 189) ldquoThere is a dynamic link between individual subjectivities societal or

collective belongingrdquo de modo que o passado e seus significados satildeo incorporados a partir

de vaacuterios produtos culturais que se tornam seus veiacuteculos

De seu turno Teitel adverte que no periacuteodo poacutes-Guerra Fria a Justiccedila de Transiccedilatildeo

incorpora muito de seu discurso normativo vindo de campos de saber externos ao direito

eacutetica medicina teologia etc concebendo interpenetraccedilotildees tambeacutem entre moral e

psicologia de forma a ampliar a ideia de anistia no sentido objetivo da reconciliaccedilatildeo

Poreacutem isso teria acarretado a conversatildeo do paradigma da Justiccedila de Transiccedilatildeo em

algo como ldquouma religiatildeo secularizada sem leirdquo Teitel (2003 p 82) o afirmara na medida

em que diagnostica que o advento deste fenocircmeno baseia-se na corrupccedilatildeo da autoridade

poliacutetica e legal promovida por um deslocamento em direccedilatildeo agrave autoridade moral e religiosa

que prometera a partir de uma linguagem universalizante ldquothe aims of forgiveness and the

possibility of political redemptionrdquo Isso deriva de uma confusatildeo entre as esferas do

privado que envolve a eacutetica e do puacuteblico que envolve o poliacutetico possibilitando que o

discurso moral-religioso introduzisse uma fundamentaccedilatildeo moral na Justiccedila de Transiccedilatildeo ndash

o que Teitel natildeo hesita em interpretar como resultado do contributo de uma teologia

poliacutetica que aposta no potencial emancipador da histoacuteria

Segundo Teitel (2000 p 69-70) a fundamentaccedilatildeo e inspiraccedilatildeo que revestiu a

justiccedila histoacuterica de um caraacuteter messiacircnico encontraria raiacutezes na modernidade iluminista

57

em uma aposta ao mesmo tempo kantiana e marxista na capacidade redentora da histoacuteria e

da verdade que assume a redenccedilatildeo como teleologia e supotildee que verdade e histoacuteria satildeo uma

e mesma coisa

No entanto as teorias contemporacircneas da histoacuteria desafiaram essa visatildeo

reconhecendo a partir de seu giro interpretativo que natildeo haacute uma liccedilatildeo uniacutevoca a extrair do

passado mas o reconhecimento do grau segundo o qual a compreensatildeo histoacuterica eacute

dependente das contingecircncias poliacuteticas e sociais

Embora o canevaacutes da memoacuteria coletiva seja constitutiva de um corpo social ndash e

Teitel assume que as verdades transicionais satildeo construiacutedas por processos de produccedilatildeo da

memoacuteria coletiva ndash a autora lembra que Friedrich Wilhelm Nietzsche e Michel Foucault

exploraram os problemas epistecircmicos que a poliacutetica implica especialmente a iacutentima

relaccedilatildeo entre imposiccedilotildees do poder e conhecimento Por isso interrogar a histoacuteria em

contextos de transiccedilatildeo impotildee um desafio em virtude da natureza poliacutetica da histoacuteria que

natildeo raro resta exposta pelas respostas dadas agrave transiccedilatildeo

A memoacuteria coletiva correlata de determinada identidade social eacute criada no interior

de certos quadros por meio de siacutembolos e rituais no contexto de transiccedilatildeo os quadros

costumeiros de partilha social (poliacuteticos religiosos e sociais) encontram-se estilhaccedilados ou

ao menos ameaccedilados Assim Teitel sublinha a importacircncia e a central constitutividade do

direito em relaccedilatildeo agrave memoacuteria social ao afirmar que ldquoit is law its framework and processes

that in great part shape collective memory In transitions the pivotal role in shaping social

memory is played by the lawrdquo (TEITEL 2000 p 71)

Apesar de sua criacutetica da teleologia redentora da histoacuteria no acircmbito do conceito de

memoacuteria Teitel natildeo supera o referencial conceitual representativo presente nos trabalhos

sobre Justiccedila de Transiccedilatildeo Em verdade termina por definir a memoacuteria no campo

transicional como memoacuteria coletiva isto eacute como um processo de reconstruccedilatildeo da

representaccedilatildeo do passado agrave luz do presente21

Se as histoacuterias de transiccedilatildeo possuem sua

proacutepria narrativa por outro lado vinculam-se a uma mais duradoura histoacuteria do Estado

implicando a um soacute tempo marcas de continuidade e descontinuidade ndash e seu equiliacutebrio

constitui a delicada dinacircmica a ser regulada pela produccedilatildeo da histoacuteria transicional

O mesmo acontece com a verdade definida como um consenso socialmente

partilhado ao passo em que a histoacuteria transicional seja gerada a partir das formas e praacuteticas

21

ldquoCollective memory is a process of reconstructing the representation of the past in the light of the presentrdquo

(TEITEL 2000 p 70)

58

legais dadas no interior de certo sistema de maneira a lanccedilar luzes sobre as instituiccedilotildees

franqueando mudanccedilas poliacuteticas

As narrativas histoacutericas de transiccedilatildeo satildeo produzidas por intermeacutedio de diversos

meios legais como julgamentos que formam precedentes com a gecircnese de corpos

burocraacuteticos para esse gecircnero de propoacutesitos a instalaccedilatildeo de comissotildees de verdade ou a

construccedilatildeo de histoacuterias oficiais Outras formas de prestaccedilatildeo de contas no campo histoacuterico

devem-se a iniciativas privadas de jornalistas historiadores e demais profissionais ligados

a este campo de saberes

Os julgamentos constituem a archē na construccedilatildeo das histoacuterias de transiccedilatildeo uma

vez que satildeo formas duradouras de produccedilatildeo da memoacuteria coletiva embora antes

constituam modos de processar fatos controversos estabelecer a verdade e no campo da

justiccedila criminal responsabilizar com base na verificaccedilatildeo de culpa ainda que sua

importacircncia como criteacuterio de verdade possa ser cultural e historicamente variaacutevel

Por meio dos julgamentos a busca pela verdade histoacuterica encontra-se implicada nos

quadros da prestaccedilatildeo de contas e da busca pela justiccedila Em algum niacutevel o uso de

julgamentos para interrogar a histoacuteria vai ao encontro da ēpistēme geralmente aceita por

nossos sistemas de justiccedila criminal Assim verdade e justiccedila satildeo segundo Teitel (2000 p

72-73) produzidas conjuntamente e desempenham importante papel no sentido de

deslegitimar o regime precedente estabelecendo a legitimidade do regime que o sucedeu

Esses poreacutem constituem os limites do conceito de memoacuteria tal como este

geralmente emerge entre os teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo Se de um lado reconhecem a

dimensatildeo puacuteblica da produccedilatildeo da memoacuteria e da verdade como representaccedilatildeo simboacutelica

apontando para seu caraacuteter coletivo social e poliacutetico parecem apontar ainda que

timidamente um potencial intrinsecamente transformador e redentor da memoacuteria que

sempre se define por uma relaccedilatildeo do passado recuperado no presente com alguma

dimensatildeo do futuro os imperativos de natildeo repeticcedilatildeo a criaccedilatildeo de uma identidade nacional

a construccedilatildeo da pertenccedila social ou a ldquotentativa de moldar o futurordquo por meio de certa

memoacuteria social

Que o conceito de memoacuteria mobilizado pela Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo natildeo se

restrinja a uma apreensatildeo meramente individual da memoacuteria ele estaacute ainda baseado no

testemunho individual e na formaccedilatildeo puacuteblica de uma memoacuteria que se reduz ora agrave faceta da

representaccedilatildeo coletiva ora ao seu registro na dimensatildeo cultural da reminiscecircncia

Apesar de Teitel (2003 p 87) afirmar o contraacuterio e sustentar que a Justiccedila de

Transiccedilatildeo implicaria uma abordagem natildeo-linear do tempo a concepccedilatildeo transicional

59

meramente representativa da memoacuteria erige-se poreacutem sobre uma apreensatildeo da

temporalidade que a limita a uma linearidade unidimensional em que passado e futuro satildeo

rearticulados no presente sem que jamais se explique de que modo puderam se tornar

copresentes Segundo a representaccedilatildeo que a Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo fizera do

tempo passado e futuro natildeo possuem realidade proacutepria pelo contraacuterio constituem duas

dimensotildees negativas o primeiro porque jaacute natildeo eacute mais o segundo porque natildeo eacute ainda ndash

embora seja constantemente assumido pelas teorias e por elas evocado como horizonte de

efetuaccedilatildeo natildeo raro redentor Nesse contexto a transiccedilatildeo eacute apresentada geralmente como

um processo capaz de produzir a passagem de um termo a outro mas sua dinacircmica jamais

eacute explicada a natildeo ser sob a metaacutefora obscura e paradoxal das ldquocontinuidades-rupturasrdquo A

representaccedilatildeo unidimensional e linear da temporalidade deduz-se do modo

desontologizado e negativo como o passado e o futuro satildeo representados pelas

apropriaccedilotildees dos teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo em meio ao magma confuso e

demasiadamente real das singularidades presentes que exigem por vezes sua proacutepria

recusa e destituiccedilatildeo

Nesse passo algo da dinacircmica pela qual a memoacuteria pode ser considerada condiccedilatildeo

para a transformaccedilatildeo do real ndash das subjetividades aos viacutenculos sociais dos viacutenculos

poliacuteticos agraves estruturas institucionais ndash resta incompreendido ou pelo menos elidido do

discurso vagamente redentor que se observa com recorrecircncia nas obras de teoacutericos da

Justiccedila de Transiccedilatildeo Isso deriva de eles terem procurado assentar os processos de

transformaccedilatildeo institucional em um conceito de memoacuteria reduzido a uma representaccedilatildeo

social ou cultural ignorando-a em sua realidade imanente negativizando-a como uma

regiatildeo do existente degradando sua ontologia particular e reduzindo a complexa relaccedilatildeo

entre memoacuteria e transiccedilatildeo a deus ex machina das transformaccedilotildees sociais e poliacuteticas

exigidas em periacuteodos poacutes-conflituais22

Da progressiva definiccedilatildeo do campo teoacuterico ocupado pelo conceito de memoacuteria na

Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo resultou a verificaccedilatildeo de que a memoacuteria eacute geralmente

compreendida como um elemento-chave para viabilizar a transiccedilatildeo reconhece-se

portanto a correlaccedilatildeo entre memoacuteria e transiccedilatildeo e todavia essa relaccedilatildeo eacute sempre obscura

ou pressuposta da mesma forma que a consistecircncia desse passado redentor jamais se

encontra definida em seus proacuteprios termos e enquanto tal Ao mesmo tempo em que ele

22

Cf nesse sentido os uacuteltimos segmentos da presente seccedilatildeo bem como a seccedilatildeo posterior (Capiacutetulo 3 sect 3)

ldquoA centralidade da memoacuteria e seus potenciais transformativosrdquo para acompanhar em maior detalhe a

demonstraccedilatildeo dessas asserccedilotildees

60

natildeo deve ser reduzido agrave reminiscecircncia individual parece consistir em algo que soacute pode ser

contado ou narrado na medida em que carrega conteuacutedos culturais e potenciais

transformativos eacute algo que natildeo dispensa as figuras encarnadas das testemunhas e dos

sobreviventes ndash sujeitos concretos capazes de transformar a experiecircncia real em

representaccedilatildeo simboacutelica apta a forjar o solo comum de uma nova cultura desejosamente

democraacutetica mas tambeacutem o fundamento identitaacuterio social nacional ou eacutetnico

(BARSALOU BAXTER 2007 p 01)

O perigo imanente a essa concepccedilatildeo de memoacuteria ndash que reduz a memoacuteria agravequilo que

os grupos sociais nacionais ou eacutetnicos decalcam dos significantes poliacuteticos institucionais e

estatais ou das representaccedilotildees infraestruturais correntes ndash eacute poliacutetico De um lado arrisca-

se fixar a memoacuteria agrave unidade monoliacutetica contra a qual Priscilla B Hayner (2011 p 84) se

acautela ndash embora ela confesse acreditar ser possiacutevel fixar verdades factuais

inquestionaacuteveis de outro eacute sempre possiacutevel render-se ao discurso redentor e pouco criacutetico

da memoacuteria e da verdade o perigoso momento em que a Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo

pode converter-se em chancela juriacutedica da reconciliaccedilatildeo a qualquer preccedilo e da extorsatildeo do

perdatildeo das quais entre outros nos previne Ruti Teitel (2003 p 81)

Fernando Catroga apresenta um excursus que visa a compreender as relaccedilotildees entre

memoacuteria e histoacuteria como gestos de uma representificaccedilatildeo do ausente ndash enfatizando ainda

mais a emergecircncia do conceito de memoacuteria sob o fundo de uma ontologia negativa Eis o

que definiria um segundo limite analiacutetico a fim de compreender os contornos do conceito

de memoacuteria na Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo

Umbilicalmente ligada agrave histoacuteria a memoacuteria apareceraacute do lado da morte e do

negativo (CATROGA 2009b p 75) desde que se compreenda a histoacuteria como um duplo

narrativo do gesto do sepultamento de um evento e da simulaccedilatildeo ritual de sua presenccedila A

histoacuteria edifica memoacuterias ao passo em que articula visiacutevel e invisiacutevel o que eacute e o que jaacute

natildeo eacute mais no seio das praacuteticas simboacutelicas dando como no cemiteacuterio um lugar ao

cadaacutever descarnado da memoacuteria Trata-se de negociar e esconder a corrupccedilatildeo do corpo e

do ser por meio da representaccedilatildeo ou do signo funeraacuterio

A exemplo de Catroga Jeanne Marie Gagnebin (2006 p 45) compreende o canto

mnemocircnico do poeta homeacuterico como o exemplar de uma luta por manter viva a memoacuteria

de um morto que jaacute natildeo sabe que tuacutemulo e signo se revezam no trabalho da memoacuteria que

todavia reconhece a supremacia do poder da morte do apagamento dos traccedilos que afinal

natildeo podem durar eternamente e testemunha a dupla pertenccedila etimoloacutegica de signo e pedra

61

mortuaacuteria ou tuacutemulo agrave raiz grega sēma Desse modo atesta o nexo entre memoacuteria morte

e trabalho do luto ndash elogio poeacutetico que como quisera Catroga (2009b p 69) representifica

o jaacute ausente dissimulando sua corrupccedilatildeo e necrose

A historiografia no entanto natildeo dispensa completamente o sujeito como suporte

mnemocircnico privilegiado tal como ele aparece entre os teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo na

condiccedilatildeo de superstes na corporificaccedilatildeo da testemunha a condiccedilatildeo existencial vulgar

coexiste com a encarnaccedilatildeo circunstancial de ser um sobrevivente

Eacutemile Benveniste (1969 p 273) demonstrara que o sentido etimoloacutegico de

superstes traduccedilatildeo do grego mārtyros implica dois significados que designam o

sobrevivente mas tambeacutem aquele que testemunha apesar disso identificava ainda que

outra raiz etimoloacutegica latina testis oriunda do direito romano designava aquele que se

colocava como terceiro encarregado de assistir a um ato ritual a ser praticado entre duas

outras pessoas

Atento a essas distinccedilotildees Giorgio Agamben (2008 p 27) afirma que a testemunha

natildeo pode ser o testis mas o superstes Ela nunca comparece como tribunal do juiacutezo ou da

histoacuteria apesar do que sustenta Fernando Catroga (2009b p 74) sobre uma pulsatildeo de

imparcialidade historiograacutefica do superstes que anunciaria uma dimensatildeo da verdade A

verdade segundo Agamben a analisa ao longo da literatura testemunhal sobre Auschwitz

atestaria a lacunaridade proacutepria de todo testemunho aquela entre a verdade e a experiecircncia

do intestemunhaacutevel O testemunho segundo Agamben (2008 p 43) ldquovale essencialmente

por aquilo que nele falta conteacutem no seu centro algo intestemunhaacutevel que destitui a

autoridade dos sobreviventesrdquo como se fazecirc-lo fosse testemunhar sobretudo em nome da

impossibilidade de testemunhar

Sob a forccedila do gesto de sepultamento ou o da sobrevivecircncia do testemunho fixada

em seu suporte o sujeito-testemunho ndash ldquouacutenico capaz de vivificarrdquo a memoacuteria ndash Fernando

Catroga (2009b p 74-75) afirma uma dupla implicaccedilatildeo entre histoacuteria e memoacuteria A

histoacuteria seria fonte da memoacuteria coletiva mas a memoacuteria afianccedilaria a verdade da

interpretaccedilatildeo histoacuterica e de suas mediaccedilotildees criacutetico-racionais

No momento em que se reconhece uma dimensatildeo produtiva da memoacuteria ndash a

produccedilatildeo de signos ndash encontra-se o limite do discurso historiograacutefico sobre a memoacuteria

Natildeo se trata de negar que a histoacuteria com efeito seja uma instacircncia de produccedilatildeo simboacutelica

de memoacuteria Entretanto a histoacuteria se relaciona com a memoacuteria investindo-a a partir do

negativo ora de sua relaccedilatildeo com a morte cujo assombro torna a histoacuteria incapaz de ouvir o

canto de vida e a potente insistecircncia dos vivos na positividade da memoacuteria ndash que satildeo os

62

objetos engendrados por todo trabalho de luto ora de sua relaccedilatildeo com a sem duacutevida

importante mas reduzida compreensatildeo do conceito de memoacuteria pela via exclusivamente

simboacutelica

A histoacuteria constitui uma forma de produccedilatildeo da memoacuteria que natildeo pode dispensar o

sujeito a consciecircncia e a razatildeo e ignora ou encobre que o nuacutecleo de todo o signo natildeo

aponta para estelas ou pedras mortuaacuterias mas para uma irrepresentaacutevel posiccedilatildeo de desejo

(DELEUZE GUATTARI 2010 p 158) Nesse aspecto apesar da mediaccedilatildeo criacutetica que o

saber histoacuterico pode constituir em face da produccedilatildeo oficial das narrativas a histoacuteria aponta

pela criacutetica mesma a operaccedilatildeo de sobrecodificaccedilatildeo dos signos a que a memoacuteria estaacute sujeita

quando da produccedilatildeo de uma histoacuteria oficial pelas narrativas de Estado

Por essa razatildeo Jeanne Marie Gagnebin (2006 p 47) erigiu agrave condiccedilatildeo de tarefa

essencial do historiador contemporacircneo a funccedilatildeo genuinamente poliacutetica de assegurar a natildeo

repeticcedilatildeo ao transmitir o inenarraacutevel manter viva a memoacuteria dos sem-nome e de afirmar

que o inesqueciacutevel existe Eis a tarefa que no seio da Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo

pretendemos conduzir ao limite de seu horizonte conceitual ndash afirmar que ldquoo inesqueciacutevel

existerdquo e fazecirc-lo contra a ordem de toda ontologia negativa23

Dentre os conceitos de memoacuteria elaborados no campo teoacuterico transicional a

memoacuteria natildeo deixou de ser compreendida como representaccedilatildeo tampouco de ser reduzida

ou evocada em correlaccedilatildeo com alguma dimensatildeo do negativo Ela natildeo cessa de ser

invocada como o conhecimento e a produccedilatildeo de arquivos pelas instituiccedilotildees como memoacuteria

coletiva ou partilha consensual de uma representaccedilatildeo social como objeto da cultura e de

poliacuteticas puacuteblicas vocacionadas a alterar estruturas poliacuteticas institucionais e

administrativas como narrativa como fiador da verdade dos signos histoacutericos como

testemunho histoacuteria oficial ou como representaccedilatildeo de um objeto ausente Por essa razatildeo

ao investigar as relaccedilotildees entre memoacuteria histoacuteria e esquecimento Ricœur (2000 p 69) soacute

pocircde afirmar duas dimensotildees de abordagem desse objeto ldquomemoacuteriardquo a cognitiva e a

pragmaacutetica

Na medida em que a Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo limitada por esses contornos

representativos e negativos do conceito de memoacuteria como representificaccedilatildeo do ausente

seja incapaz de apresentar uma soluccedilatildeo para o enigma da relaccedilatildeo entre memoacuteria e

transiccedilatildeo isso talvez seja indiciaacuterio de que o enigma natildeo possa ser esclarecido nesse

23

As partes II e III do presente trabalho destinam-se a desenvolver essa tarefa que Gagnebin afirma ser

essencialmente poliacutetica a partir de uma interlocuccedilatildeo com a filosofia de Henri Bergson

63

terreno Ainda que se atribua ao potencial criacutetico da memoacuteria social e conscientemente

construiacuteda a respeito da importacircncia da democracia e das violaccedilotildees de direitos que tiveram

lugar no passado (TORELLY 2012 p 281-282 TEITEL 2000 p 91-92) a funccedilatildeo de

constituir um elemento fundamental e necessaacuterio agrave construccedilatildeo da factibilidade das

transiccedilotildees este ainda consiste em um avanccedilo respeitaacutevel embora demasiadamente lacunar

com relaccedilatildeo ao ponto nodal da presente investigaccedilatildeo Restaria explicar uma questatildeo

simples mas profundamente problemaacutetica como a criacutetica social consciente poderia forjar

o desejo ndash tarefa aacuterdua e talvez metafiacutesica Eacute possiacutevel que os arcanos da Teoria da

Justiccedila de Transiccedilatildeo soacute admitam receber uma luz ndash malgrado indireta ndash ao passo em que

nos reportemos a horizontes conceituais mais ampliados Eacute provaacutevel ainda que toda a

lacunaridade a respeito da dinacircmica pela qual a memoacuteria pode ser entrevista como

condiccedilatildeo necessaacuteria agrave transiccedilatildeo deva ser atribuiacuteda aos termos e ao campo de sentido em

que o problema da relaccedilatildeo memoacuteria-transiccedilatildeo pode ser interrogado Eis o que tornaria

plausiacutevel desertar o quadro conceitual da Justiccedila de Transiccedilatildeo em proveito da construccedilatildeo

de um campo de sentido conceitualmente mais generoso em que natildeo verifiquemos a

priori um desinvestimento ontoloacutegico estrutural da ideia de memoacuteria na Teoria da Justiccedila

de Transiccedilatildeo jamais compreendida como uma regiatildeo do existente ou a partir de uma

ontologia que natildeo seja sempre e jaacute negativa

Nos quadros conceituais tradicionais ndash representativos e negativos como se

demonstrou ndash o significado da memoacuteria jamais estaraacute suficientemente infenso a assumir

indistintamente a faceta humanista da Justiccedila de Transiccedilatildeo como a negacionista dos

contramovimentos pode assumir o cariz da histoacuteria oficial a versatildeo dos algozes ou o rosto

da narrativa das viacutetimas Isso se deve ao fato de que no momento em que a proteccedilatildeo aos

direitos humanos de agentes de Estado violadores de direitos humanos eacute invocada como

argumento para sustentar a impossibilidade de persecuccedilotildees e responsabilizaccedilotildees criminais

(SABADELL DIMOULIS 2011 p 79-102) ou quando uma miacutetica anistia bilateral

construiacuteda por uma estrateacutegia controlada pelo Executivo (ABRAtildeO 2011 p 123-124) eacute

invocada sob o argumento do garantismo penal que natildeo se pergunta sobre a carecircncia de

autoridade internacional ou juriacutedica das autoanistias esses conceitos arriscam

indeterminarem-se ao infinito

Agenciando dispositivos micropoliacuteticos e macropoliacuteticos em torno de estrateacutegias de

sobrecodificaccedilatildeo da memoacuteria social as instituiccedilotildees imprimem sentidos proacuteprios no campo

de uma memoacuteria social politicamente em disputa Se por um lado natildeo haacute memoacuteria

exclusivamente institucional as instituiccedilotildees sociais e estatais investem de longa data o

64

campo da memoacuteria coletiva ocupando-se da governamentalidade de afetos livres

soldando-os agrave festa ao luto erigindo monumentos preservando documentos interditando

o acesso a eles ou abandonando-os ao esquecimento (LE GOFF 1990 p 426)

Essa eacute a dinacircmica que do ponto de vista das instituiccedilotildees e das poliacuteticas da

memoacuteria estaacute implicada na produccedilatildeo de simboacutelico no contexto das transiccedilotildees Embora isso

represente ainda a reduccedilatildeo da memoacuteria a uma ontologia negativa pois a submete a um

conceito de memoacuteria que se natildeo eacute exclusivamente psicoloacutegico ndash individual ou coletivo

decirc-se no niacutevel do consciente ou do subconsciente ndash dele depende pois concorre para a sua

reduccedilatildeo agrave representaccedilatildeo e ao simboacutelico eacute preciso verificar mais precisamente se e de que

maneira essas apropriaccedilotildees normativas conceituais praacuteticas e institucionais da ideia de

memoacuteria pela Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo implicam relacionar uma memoacuteria

cristalizada ndash em maior ou menor grau indiferente aos dinamismos da memoacuteria ndash e o

advento da transiccedilatildeo da qual a memoacuteria constitui um dos principais nuacutecleos causais

sect 3 A CENTRALIDADE DA MEMOacuteRIA

E SEUS POTENCIAIS TRANSFORMATIVOS

Na medida em que se definiram dois campos de sentido referenciais em correlaccedilatildeo

com os quais a Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo engendra um conceito de memoacuteria ndash ora

decalcado de seu proacuteprio referencial epistecircmico ora apropriando-se de um campo

significante que lhe eacute externo (Capiacutetulo 3 sect 2 supra) ndash definiram-se coextensivamente

os limites teoacutericos do conceito De acordo com tais contornos a memoacuteria soacute pode aparecer

no campo da Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo ao preccedilo de ali ser capturada ora como

memoacuteria psicoloacutegica individual (testemunho) ora como memoacuteria psicoloacutegica social

(narrativas sociais e culturais) ora como substrato necessaacuterio agrave construccedilatildeo de identidades

nacionais e eacutetnicas dos grupos perseguidos (ponto de vista poliacutetico-institucional) e

finalmente como a representificaccedilatildeo individual ou socialmente partilhada de elementos

ausentes a partir de um registro simboacutelico historiograacutefico e negativo na medida em que

apreende o passado como natildeo-ser com a consistecircncia proacutepria de representaccedilatildeo ou

representificaccedilatildeo de um objeto ausente (RICŒUR 2000 p II)

No entanto ainda que se tenha demonstrado os limites conceituais internos e

externos por meio dos quais a memoacuteria se torna um objeto de investimento no campo

teoacuterico da Justiccedila de Transiccedilatildeo conviria estender seus contornos um pouco aleacutem no

65

intuito de alcanccedilar o ponto de em que o conceito eacute apreendido pelas instituiccedilotildees em

transiccedilatildeo e se torna objeto de uma reapropriaccedilatildeo no campo teoacuterico Em outras palavras eacute

preciso verificar com que conceito de memoacuteria as instituiccedilotildees em transiccedilatildeo operam a fim

de aquilatar se nesse novo e aparentemente concreto horizonte de aparecimento o

conceito de memoacuteria poderia desligar-se mais facilmente das feiccedilotildees representativas e

negativas ndash embora pretensamente coletivas sociais ou culturais ndash que constituiacuteram seus

contornos teoacutericos ateacute aqui

Entre os teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo alguns reconheceram a impossibilidade

de fixar o conceito de memoacuteria e mais especificamente os processos de memorializaccedilatildeo

sob a insiacutegnia de uma forma determinada e fechada Nesse sentido poder-se-aacute falar natildeo

apenas de uma variedade de forma que a memoacuteria pode assumir nos contextos poacutes-

conflituais (BARSALOU BAXTER 2007 p 04) como referir-se a certa mutabilidade

interna aos proacuteprios conteuacutedos da memoacuteria Nesse caso as memoacuterias seriam maleaacuteveis

(PHELPS 2012 p 07) e flexiacuteveis na medida em que as neurociecircncias compreenderam seu

papel evolutivo nas funccedilotildees adaptativas (cf CAMPOS SANTOS e XAVIER 1997)24

Por essa razatildeo recentemente alguns autores que aproximaram a Teoria da Justiccedila

de Transiccedilatildeo de um diaacutelogo produtivo com as ciecircncias do ceacuterebro passaram a defender ndash

lastreados em fundamentaccedilotildees neurocientiacuteficas ndash a impossibilidade de tratar-se

adequadamente da memoacuteria representando-a como um elemento estaacutetico (BARSALOU

BAXTER 2007 p 12 e p 16) No limite chegaratildeo a advogar a existecircncia de certa

instabilidade constitutiva da memoacuteria (NAGEL SINOTT-ARMSTRONG 2012 p 05) na

medida em que o proacuteprio processo de evocaccedilatildeo e repeticcedilatildeo de memoacuterias conscientes jaacute

implicaria sua alteraccedilatildeo dinacircmica25

bem como ao passo em que a memoacuteria eacute ressignificada

durante os heterogecircneos processos de transmissatildeo intergeracional26

Isto poreacutem como

demonstrado por Nadel e Sinott-Armstrong (2012 p 05) natildeo se confunde com a

concepccedilatildeo dominante de memoacuteria no seio do campo teoacuterico transicional nem mesmo com

24

CAMPOS Alexandre de SANTOS Andreacutea M G dos XAVIER Gilberto F A Consciecircncia Como Fruto

da Evoluccedilatildeo e do Funcionamento do Sistema Nervoso Psicologia USP Satildeo Paulo v 8 n 2 1997

Disponiacutevel em lthttpwwwscielobrscielophpscript=sci_arttextamppid=S0103-

65641997000200010amplng=enampnrm=isogt Acesso em 20 mai 2013 25

ldquo[] memories once created are not fixed entities The public conception of course is that memories are

permanent imprints that might fade but are otherwise stable We know that is not the case apparently stable

memories can be altered when they are reactivated That is memory is fundamentally malleable [] when

memories are replayed [] this process of reactivating and replaying a memory inalterably changes it going

forwardrdquo (NADEL e SINNOTT-ARMSTRONG 2012 p 05) Em adiccedilatildeo Elizabeth A Phelps (2012 p 07)

reconhece que ldquo[] memories can be quite malleable for reasons that are likely adaptive in everyday life

[]our highly vivid and detailed memories for emotional events may not be as accurate as they seemrdquo 26

ldquoBecause memory is not static and lsquoreceivedrsquo memory is reinterpreted from one generation to another[]rdquo

(BARSALOU BAXTER 2007 p 16)

66

sua apreensatildeo praacutetica e institucional que em comum partem do pressuposto de que as

memoacuterias seriam constituiacutedas de maneira estaacutetica como se fossem ldquo stable and permanent

imprintsrdquo

A exemplo de Nadel e Sinnott-Armstrong ao reconhecerem ainda uma vez certos

dinamismos da memoacuteria Judy Barsalou e Victoria Baxter identificaram com precisatildeo

alguns limites sob os quais o conceito de memoacuteria mas tambeacutem os processos de

memorializaccedilatildeo tornaram-se objetos de investimento pela Teoria da Justiccedila de

Transiccedilatildeo27

Segundo as autoras na medida em que os processos de memorializaccedilatildeo

comportam diversas formas encampam objetivos comemorativos honoriacuteficos satisfativos

ou reparatoacuterios terminam por servir de pano de fundo factual que uma vez reinterpretado

sob nova luz seria capaz de subsidiar a satisfaccedilatildeo de necessidades sociais e poliacuteticas

diversas que vatildeo desde a reintegraccedilatildeo dos ldquosubversivosrdquo e resistentes poliacuteticos agrave nova

ordem ateacute a possibilidade de consolidaccedilatildeo de uma identidade eacutetnica ou nacional

Dessa maneira resta claro que no interior de sua apreensatildeo conceitual a memoacuteria

pode ser capturada no campo teoacuterico transicional a partir de um amplo espectro de

definiccedilatildeo compreendendo tanto as formas de uma memoacuteria individual e psicoloacutegica como

atingir em outro extremo o niacutevel das memoacuterias sociais e poliacuteticas (representaccedilotildees

coletivas) objeto de contestaccedilotildees e de disputas pelo controle hegemocircnico da verdade

Nesse sentido os horizontes de aparecimento da memoacuteria no campo transicional satildeo

relativamente heterogecircneos pois a memoacuteria tanto eacute apreendida como um mecanismo de

subjetivaccedilatildeo microloacutegico erigindo-se pela e a partir da subjetividade individual de

testemunhas e sobreviventes como pode definir-se como aparato macropoliacutetico

potencialmente constitutivo de identidades sociais eacutetnicas e nacionais

Os textos de Barsalou e Baxter como os de Nadel e Sinnott-Armstrong terminam

por legar-nos uma perspectiva relativamente ambiacutegua no que diz respeito ao conceito de

memoacuteria no campo transicional ao mesmo tempo em que se reconhece do ponto de vista

puacuteblico pragmaacutetico e institucional a limitaccedilatildeo de um conceito estaacutetico de memoacuteria ndash

ainda que em toda a Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo tal conceito seja enunciado

27

ldquo[] memorialization takes a variety of forms serving as an umbrella concept encompassing a range of

processes to remember and commemorate Memorialization as a process satisfies the desire to honor those

who suffered or died during conflict and becomes a means of examining the past In this process the past can

be reinterpreted to address a wide range of political or social needs ndash recasting lsquosubversivesrsquo as martyrs or

innocent victims for instance or consolidating a new national identity such as the transformation of South

Africa from apartheid state to lsquoRainbow Nationrsquo Memorialization thus represents a powerful arena of

contested memory and offers the possibility of aiding the formation of new national community and ethnic

identitiesrdquo (BARSALOU BAXTER 2007 p 04)

67

obscuramente como um ldquoprocessordquo jamais esclarecido ou que aspire ao registro das

memoacuterias coletivas ndash o reconhecimento dos dinamismos da memoacuteria a partir das

contribuiccedilotildees da neurociecircncia parece nos reconduzir a uma concepccedilatildeo de memoacuteria

individual pessoal cuja sede arquiviacutestica seria o ceacuterebro humano

Mesmo que a Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo comece a reconhecer com timidez a

natureza constitutivamente dinacircmica da memoacuteria isso implica que toda concepccedilatildeo de

memoacuteria coletiva ou social precise voltar a lastrear-se nas memoacuterias subjetivas e

individuais ndash e isso em um momento em que a memoacuteria passa a ser compreendida

hegemonicamente pelos teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo como vimos como um processo

cultural como memoacuteria social ou coletiva que segundo Maurice Halbwachs teria sido

capaz de emancipar-se dos referenciais tradicionalmente individuais da memoacuteria28

Tudo

se passa como se quando a Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo acreditava ter chegado ao porto

da memoacuteria coletiva emancipada das lembranccedilas individuais ela eacute novamente lanccedilada ao

alto-mar das memoacuterias individuais e psicoloacutegicas Mesmo com esse movimento pendular

jamais desertamos o amplo espectro teoacuterico jaacute traccedilado por Paul Ricœur (2000 p 69)

segundo o qual a memoacuteria eacute apreendida ora de seu ponto de vista cognitivo ora de seu

ponto de vista pragmaacutetico

Desse uacuteltimo ponto de vista ndash vale dizer da perspectiva das instituiccedilotildees e da

pragmaacutetica transicional ndash Louis Bickford teria sugerido a existecircncia de dois paradigmas

sobrepostos para confrontar o passado (BARSALOU BAXTER 2007 p 10) O primeiro

deles chamado de paradigma da Justiccedila de Transiccedilatildeo estaria francamente relacionado agraves

responsabilidades legais do Estado e da comunidade internacional em promover o Estado

de Direito exigindo-se praacuteticas narrativas sobre a verdade do passado (truth-telling)

persecuccedilatildeo e responsabilizaccedilatildeo criminal dos agentes violadores promoccedilatildeo de reparaccedilatildeo agraves

28

Maurice Halbwachs insurgiu-se contra o haacutebito de pensar a memoacuteria como um fenocircmeno exclusivamente

pessoal individual psicoloacutegico e interno afirmando que ldquoOn nrsquoest pas encore habitueacute agrave parler de la meacutemoire

drsquoun groupe mecircme par meacutetaphorerdquo (HALBWACHS 1997 p 97) Eis o que o leva a afirmar que as

lembranccedilas se agrupariam natildeo apenas ao redor de centros pessoais mas seriam igualmente distribuiacutedas no

registro coletivo Maurice Halbwachs sustentou que os quadros sociais da memoacuteria excedem os da histoacuteria

de forma tal que de um lado os quadros sociais da memoacuteria satildeo como ldquocourants de penseacutee et drsquoexpeacuterience

ougrave nous retrouvons notre passeacute que parce qursquoil en a eacuteteacute traverseacuterdquo ldquocourant de penseacutee continurdquo de outro a

memoacuteria coletiva natildeo se reduz agrave memoacuteria histoacuterica por natildeo se encontrar integralmente vertida nela

(HALBWACHS 1997 p 113 e p 131) Todo o projeto de Halbwachs definia-se no sentido de pensar uma

memoacuteria coletiva como memoacuteria concreta de grupos Nesse sentido recusava-se o pressuposto habitual de

que a memoacuteria coletiva pudesse estar baseada unicamente nas memoacuterias individuais Na contramatildeo do

haacutebito Halbwachs concebia a memoacuteria individual como um epifenocircmeno da memoacuteria coletiva subordinando

aquela agrave esta ldquoTout rappel drsquoune seacuterie de souvenirs qui se rapportent au monde exteacuterieur srsquoexplique donc par

les lois de la perception collectiverdquo (HALBWACHS 1997 p 87) ldquo[]chaque meacutemoire individuelle est un

point de vue sur la meacutemoire collective[]rdquo (HALBWACHS 1997 p 94) Assim a memoacuteria coletiva

passaria a ser compreendida como o campo de sentido e o horizonte privilegiado de aparecimento das

memoacuterias individuais

68

viacutetimas e garantias de natildeo repeticcedilatildeo mediadas por reformas institucionais que as

afianccedilassem O segundo paradigma da memoacuteria identifica-se com a promoccedilatildeo de uma

cultura democraacutetica parcialmente amparada na criaccedilatildeo de uma mentalidade de ldquonunca

maisrdquo (never again mentality)

Ambos os paradigmas promovem a interlocuccedilatildeo entre dimensotildees diferentes do

passado ndash a institucional responsabilizadora e reformista por um lado e a cultural e

identitaacuteria por outro Tal interlocuccedilatildeo todavia natildeo consegue arrostar a memoacuteria senatildeo

como algo que deve derivar forccedilosamente de um elemento material nesses termos a

memoacuteria se descola da documentaccedilatildeo dos arquivos testemunhos evidecircncias forenses ou

constitui a mateacuteria indoacutecil de que o presente deve se apropriar para forjar uma cultura

democraacutetica futura Tudo se passa como se a promessa redimisse o passado mas natildeo sem

antes retornar uma uacuteltima vez sobre o irrepetiacutevel que esse passado encerra

Como consequecircncia desse amplo espectro conceitual que tem origem na memoacuteria

individual e encontra seu limite na memoacuteria institucional e na promessa coletiva Judy

Barsalou e Victoria Baxter definem memorializaccedilatildeo como ldquo[]a process that satisfies the

desire to honor those who suffered or died during conflict and as a means to examine the

past and address contemporary issuesrdquo (BARSALOU BAXTER 2007 p 01) Sua relaccedilatildeo

com a dimensatildeo da promessa estendida na direccedilatildeo de um tempo futuro e de um potencial

transformador da memoacuteria logo se clarifica ldquoIt [memorialization] can either promote

social recovery after violent conflicts ends or crystallize a sense of victimization injustice

discrimination and the desire for revengerdquo (BARSALOU BAXTER 2007 p 01)

Eis o que testemunha uma pluralidade de apreensotildees possiacuteveis no seio das quais

buscamos encontrar e definir limites e contornos conceituais a fim de compreender a

questatildeo que como veremos sempre emerge em toda argumentaccedilatildeo sobre a memoacuteria mas

jamais satildeo objeto de uma maior atenccedilatildeo pelos teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo Trata-se do

enigma da relaccedilatildeo entre memoacuteria e transiccedilatildeo cujos arcanos podem ser colocados em

questatildeo a partir de duas interrogaccedilotildees simples (1) por que a memoacuteria ndash compreendida a

partir de seu amplo espectro categoacuterico na Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo ndash aparece com

uma constante centralidade no acircmbito das transiccedilotildees poliacuteticas e (2) se a memoacuteria

individual ou coletiva psicoloacutegica ou cultural narrativa ou simboacutelica aponta para um

conceito representativo e negativo consistente na representificaccedilatildeo de uma realidade

ausente no seio de processos individuais ou culturais de reminiscecircncia como ela pode ser

considerada uma condiccedilatildeo ndash se natildeo suficiente pelo menos necessaacuteria ndash agrave efetuaccedilatildeo de toda

e qualquer transiccedilatildeo

69

Com efeito essas duas questotildees se entrecruzam no ponto em que as memoacuterias

redentoras exercem funccedilotildees simboacutelicas individuais e coletivas capazes de tornar factiacuteveis

as transiccedilotildees Na medida em que demonstramos que no seio da Teoria da Justiccedila de

Transiccedilatildeo apesar do caraacuteter heterogecircneo do conceito de memoacuteria trata-se de um conceito

de amplo espectro e central isto eacute o campo teoacuterico transicional utiliza-se dele de maneira

variaacutevel mas sua emergecircncia eacute nesse mesmo campo uma constante Por outro lado

tambeacutem demonstramos que a Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo constantemente decalca da

memoacuteria certas funccedilotildees transicionais pragmaacuteticas sem memoacuteria natildeo pode haver

consolidaccedilatildeo da justiccedila ndash para isso eacute preciso formar um corpus mnecircmico judiciaacuterio

institucional ndash nem das reparaccedilotildees ndash eacute preciso dar nomes agraves viacutetimas encontrar e identificar

corpos de desaparecidos reintegrar perseguidos poliacuteticos ndash tampouco reformas pois eacute

preciso determinar os responsaacuteveis atribuir as violaccedilotildees do passado a algueacutem purgar os

diretamente envolvidos e os coniventes (TEITEL 2000 p 90) Enfim natildeo eacute possiacutevel

efetuar nenhuma das dimensotildees reconhecidas pela Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo ou pelo

Direito Internacional dos Direitos Humanos como inerentes aos processos de transiccedilatildeo

democraacutetica sem apelar a uma memoacuteria do passado Nem mesmo os compromissos

futuros de natildeo repeticcedilatildeo e de produccedilatildeo de uma cultura social institucional e juriacutedica mais

democraacutetica seriam possiacuteveis sem compreender a consistecircncia intoleraacutevel do que se nos

tornou defeso repetir

Poreacutem nesse momento afirmaacute-lo eacute apenas a tentaccedilatildeo de uma intuiccedilatildeo vaga e

confusa Resta investigar se no horizonte de sentido da Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo

surge ou natildeo uma explicaccedilatildeo sobre o potencial transformativo atribuiacutedo agrave memoacuteria ou se

pelo contraacuterio cairemos uma vez mais no espaccedilo lacunar e negativo no qual tais

doutrinas como vimos capturaram a ideia de memoacuteria

Partindo de dois pressupostos jaacute demonstrados ndash o reconhecimento contiacutenuo do

conceito de memoacuteria como elemento-chave para efetuar as transiccedilotildees democraacuteticas por

um lado e a atribuiccedilatildeo constante mas segundo gradaccedilotildees variaacuteveis de clareza de um

potencial transformativo inerente agrave memoacuteria ndash verifiquemos se e de que forma a Teoria da

Justiccedila de Transiccedilatildeo busca explicar a relaccedilatildeo entre memoacuteria e transiccedilatildeo ou o que

tomamos por equivalente a atribuiccedilatildeo agrave memoacuteria de potenciais transformativos Assim

como os dois pressupostos que referimos e demonstramos acima constituem constantes dos

70

discursos dos teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo algo semelhante se verifica no plano da

relaccedilatildeo ndash sempre pelo menos subreptiacutecia ndash entre eles

Ao defenderem a importacircncia dos processos de memorializaccedilatildeo como um

importante instrumento no quadro das iniciativas transicionais Barsalou e Baxter (2007 p

02) relacionam memorializaccedilatildeo e transiccedilatildeo a ponto de afirmarem que a incapacidade em

lidar com memoriais ldquo[]can imperil transitional justice efforts and peacebuildingrdquo Sob o

ponto de vista da criaccedilatildeo de memoriais e espaccedilos da memoacuteria as autoras atribuem agrave

memoacuteria natildeo apenas uma dimensatildeo constitutiva central das iniciativas transicionais mas

denotam ainda a relaccedilatildeo entre memoacuteria e esforccedilos pela construccedilatildeo da paz

Louis Bickford reafirma os processos de memoralizaccedilatildeo puacuteblica como um elemento

central para a efetuaccedilatildeo das demais dimensotildees inerentes agrave Justiccedila de Transiccedilatildeo natildeo apenas

a memoacuteria constitui o terreno primaacuterio a fim de lidar com um passado traumaacutetico como a

memoacuteria aparece claramente dotada em circunstacircncias concretas ndash como a das Comissotildees

de Verdade ndash de um reconhecido potencial transformativo29

De alguma maneira ndash a cujo

detalhamento Bickford todavia natildeo desce os memoriais puacuteblicos teriam a capacidade

praacutetica de construir ldquobroader cultures of democracy over the long term by generating

conversations among differing communities or engaging new generations in the lessons of

the pastrdquo (BICKFORD et all 2007 p 02) bem como a memorializaccedilatildeo exerceria um

papel central na formaccedilatildeo da formaccedilatildeo da vida ciacutevica e poliacutetica30

Todavia haacute autores a exemplo de A J McAdams que consideram a memoacuteria

essencial agrave transiccedilatildeo mas do ponto de vista de sua negatividade Eacute certo que ldquo[]one

should be always circumspect about arguments that too readily dismiss calls for justice and

accountability by appealing to an all-encompassing lsquopolitical realismrsquordquo (McADAMS

1997 p xiv) poreacutem admite que em certas circunstacircncias se for necessaacuterio agrave construccedilatildeo

da reconciliaccedilatildeo nacional seria responsaacutevel silenciar sobre um legado de abusos de

direitos humanos ldquo[]that is to forget and if possible to forgive the past offenses in the

interest of national reconciliationrdquo (McADAMS 1997 p xiv) Com efeito se nos dermos

conta como quisera Paul Ricœur (2000 p 574-575) de que ldquo[]les notations sur lrsquooubli

29

ldquoIn vastly different contexts communities see public memorialization as central to justice reconciliation

truth-telling reparation and coming to grips with the past []Thus they have become a primary terrain on

which diverse constituencies address the enormous and challenging complexities of a traumatic past

Recognizing the power and potential of memorialization NGOs victimsrsquo groups and truth commissions

from Peru to Sierra Leone have advocated for memorialization as a key component of reform and transitional

justicerdquo (BICKFORD et all 2007 p 01) Disponiacutevel em lt httpictjorgsitesdefaultfilesICTJ-Global-

Memorialization-Democracy-2007-English_0pdfgt Acesso em 20 mai 2013 30

ldquo[] for better or worse memorialization plays a central role in the direction and shape of civic life and

politicsrdquo (BICKFORD et all 2007 p 04)

71

constituent en grande partie un simple envers de celles portant sur la meacutemoire rdquo veremos

que a memoacuteria ndash desta feita elidida e anulada ndash constitui ainda que a partir de sua

negatividade um aspecto essencial agrave factibilidade das transiccedilotildees Prova disso eacute que no

mesmo livro organizado por McAdams Juan Meacutendez critica duramente as poliacuteticas de

esquecimento e perdatildeo irrestritos como ldquoalternativas tentadorasrdquo para viabilizar

reconciliaccedilotildees na medida em que considera a busca por justiccedila retrospectiva ldquoan urgent

task of democratizationrdquo (MENDEacuteZ 1997 p 01)31

Desse modo ainda que de um ponto

de vista negativo a memoacuteria aparece sempre ligada a certa capacidade transformativa que

no texto de McAdams assume a faceta reduzida da realpolitik reconciliadora

De seu turno Juan Meacutendez erige como tarefa fundamental das transiccedilotildees poliacuteticas o

acerto de contas com o passado mesmo porque a accountability decorreria da proacutepria

natureza da transiccedilatildeo32

mas tambeacutem da democracia ldquoThe publicrsquos right to know is a

fundamental tenet of democracy and it should not be sacrificed to the supposedly higher

interest of reconciliationrdquo (MENDEacuteZ 1997 p 08)

Em sentido anaacutelogo Posner e Vemeule (2003 p 05) definem as praacuteticas

transicionais intimamente ligadas agrave memoacuteria Segundo eles esta seria a definiccedilatildeo mais

corrente de Justiccedila de Transiccedilatildeo ldquoIn the literature writers generally understand transitional

justice as backward lookingrdquo Ela implicaria uma seacuterie de praacuteticas compensatoacuterias das

viacutetimas de responsabilizaccedilatildeo por violaccedilotildees de direitos humanos e de revelaccedilatildeo da verdade

sobre o passado No entanto seu pequeno artigo testemunha ao mesmo tempo a relaccedilatildeo

da justiccedila de transiccedilatildeo e de suas praacuteticas compreensivas agrave luz desse passado tambeacutem em

ldquoforward looking termsrdquo Entreter-se com um passado de violaccedilotildees tornaria possiacutevel

recuperar tradiccedilotildees e instituiccedilotildees perdidas promover purgas de agentes responsaacuteveis

realizar reformas sinalizar compromissos com uma ordem poliacutetico-juriacutedica mais

democraacutetica e estabelecer precedentes constitucionais capazes de impedir que liacutederes

futuros repitam os abusos do regime anterior

Tambeacutem Ruti Teitel considera o conhecimento do passado como algo essencial agrave

transiccedilatildeo ndash e natildeo apenas de um ponto de vista pragmaacutetico e instrumental como Posner e

31

ldquo[] the pursuit of retrospective justice is an urgent task of democratization as it highlights the

fundamental character of the new order to be established an order based on the rule of law and on respect for

the dignity and worth of each human person [] In this context the temptation is great to equate

reconciliation with a forgive-and-forget policyrdquo (MEacuteNDEZ 1997 p 01) 32

ldquoThe primary task is to recognize that there is a past to be reckoned with The nature of the transition to

democracy itself means that there is unfinished business with respect to how we put distance between the

challenges of the present and the traumas of the recent past (MEacuteNDEZ 1997 p 03) e completa ldquo[] by

definition any transitional situation will include limits on what can be done about the past []rdquo (MEacuteNDEZ

1997 p 04)

72

Vermeule Teitel (2000 p 69) reconhece que comumente entre os analistas poliacuteticos

contemporacircneos assimilar um passado de violaccedilotildees eacute considerado necessaacuterio para

restaurar o coletivo em periacuteodos de radical cacircmbio poliacutetico33

Desse ponto de vista em

relaccedilatildeo ao qual Teitel (2000 p 116) exprimiraacute discordacircncia o passado desempenharia

uma funccedilatildeo poliacutetica fundacional da nova ordem Ao mesmo tempo sua posiccedilatildeo empresta

ao conhecimento sobre a verdade passada um papel crucial na promoccedilatildeo da transiccedilatildeo

poliacutetica na direccedilatildeo da democracia Tanto que Teitel (2000 p 110) afirma ldquoA societyrsquos

confrontation with its past is deemed necessary to its transition to democracyrdquo e ainda o

reitera claramente em outra oportunidade atribuindo agrave memoacuteria social um potencial

poliacutetico transformativo sui generis ldquoSocietal self-knowledge is not an end in itself but

rather the predicate for the potential of prospective change in human behavior and

consequent liberalizing transformationrdquo (TEITEL 2000 p 115)

Ao tratar da Justiccedila Histoacuterica poreacutem torna-se ainda mais visiacutevel a questatildeo lacunar

que nos competia demonstrar Se por um lado Teitel expressa sua discordacircncia em relaccedilatildeo

agraves anaacutelises poliacuteticas correntes ndash segundo as quais as pesquisas histoacutericas do passado teriam

natureza fundacional ndash por outro lado reitera que tais pesquisas desempenham funccedilatildeo

transicional ldquo[] the role of historical inquiry is not foundational but transitional History

is ever present in the life of the state but in political flux it helps to construct

transformationrdquo (TEITEL 2000 p 115) De algum modo obscuro e preacute-simboacutelico admite-

se que ldquothe transitional narratives advance construction of the contemporary political

orderrdquo (TEITEL 2000 p 116) sem no entanto jamais lanccedilar luzes sobre o que torna

possiacutevel fazer com que o passado efetivamente passe e de uma vez por todas

Uma possiacutevel resposta a essa questatildeo que surge na Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo

com tonalidades vagas poderia residir nos usos pragmaacuteticos da memoacuteria capazes de

conectar como quisera Teitel (2000 p 90) a justiccedila histoacuterica a outras dimensotildees da

Justiccedila de Transiccedilatildeo como as reparaccedilotildees reformas institucionais ou alteraccedilatildeo da cultura

autoritaacuteria preacutevia Ainda assim por mais que a memoacuteria seja constantemente invocada

como fiadora de um futuro democraacutetico como esteio criacutetico das violaccedilotildees dos regimes

poliacuteticos anteriores ao acercar-se da memoacuteria como um elemento meramente instrumental

a Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo revela apenas uma inexplicaacutevel autoposiccedilatildeo analiacutetica tudo

se passa como se a memoacuteria retirasse sua forccedila e justificativa da transiccedilatildeo e esta por sua

vez as retirasse da memoacuteria Em outras palavras os pragmatismos da memoacuteria limitam-se

33

ldquoThe claim is that establishing the ldquotruthrdquo about the statersquos past wrongs like successor constitutions or

trials can serve to lay the foundation of the new political order []rdquo (TEITEL 2000 p 69)

73

a revelar como as instituiccedilotildees tornam a memoacuteria uma mateacuteria da accedilatildeo transicional mas

natildeo logram explicar os mecanismos que levam a passar da memoacuteria agrave accedilatildeo poliacutetica

transicional ndash quando a questatildeo mais fundamental sobre seu potencial transformativo eacute

esta e natildeo a do rapport pragmaacutetico e instrumental que decorre da primeira

Desse modo ao requalificar a verdade do passado como ldquoworkable past for a

changed futurerdquo Teitel (2000 p 91) apreende a memoacuteria exclusivamente como mateacuteria da

accedilatildeo poliacutetica subtraindo-lhe momentaneamente o potencial transformador interno que ateacute

agora lhe era atribuiacutedo Dando-se conta disso a certa altura Teitel (2000 p 111)

pergunta-se ldquoIs it the truth that brings on liberalizing political change or the political

change that enables restoration of democratic government and the truth-tellingrdquo

concluindo de uma perspectiva empiacuterica que ldquoFor the move out of dictatorship did not

await the truth indeed the movement to free elections and a more democratic political

system generally precedes processes of truth productionrdquo

Contudo Teitel (2000 p 111) reconhece na mesma passagem e ainda uma vez a

importacircncia da memoacuteria como sede de um potencial transformativo ldquorevealing the

possibility of future choice is what distinguishes the liberal transition In the transitional

accounts lie the kernels of a liberal future foretoldrdquo Teitel observa que mesmo as

narrativas institucionais frutos da atuaccedilatildeo de agentes responsaacuteveis por alguma das diversas

formas de efetuaccedilatildeo da justiccedila histoacuterica apresentam geralmente um caraacuteter progressivo e

romacircntico Natildeo raro enunciam o conhecimento do passado como um ldquomagical switchrdquo no

sentido de um futuro democraacutetico redimido pela reemergecircncia de uma memoacuteria oculta e

reprimida

In the stories told in the reports it is the revealed truth that helps bring on the switch from

the tragic past to the promise of a hopeful future How does this occur The story told is of

a catastrophe which is somehow turned around An awful fate is averted as in dramatic

narrative by the introduction of a magical switch Transitional justice operates as such a

device through the introduction of persons with special access to privileged knowledge

such as judges in trials commissioners experts and witnesses Mechanisms of liberation

and correction enable the shift in the societal story to move away from catastrophe to

redemptive future The move to a more liberal society is enabled by a reckoning with the

past transitional narratives are generally progressive and romantic (TEITEL 2000 p

111)

A questatildeo que Teitel se propotildee nesse excerto ldquoHow does it occurrdquo natildeo atinge o

fundo da relaccedilatildeo entre memoacuteria e transiccedilatildeo pois se pergunta sobre as passagens entre o

passado traacutegico e a esperanccedilosa promessa de um futuro redentor sob o ponto de vista dos

usos pragmaacuteticos da memoacuteria compreendida como verdade uacutetil sobre o passado e

74

mobilizada em torno de objetivos poliacuteticos predefinidos Apenas nesse sentido e no plano

estritamente simboacutelico dos relatoacuterios ndash objetos de sua reflexatildeo nesse ponto ndash eacute que se pode

atribuir agrave justiccedila de transiccedilatildeo o funcionamento como o ldquomagical switchrdquo que as narrativas

demasiado romacircnticas e progressivas introduzem Poreacutem como natildeo seria paradoxal

afirmar a um soacute tempo34

que ldquoa transiccedilatildeo natildeo espera pela verdaderdquo e que ldquomover-se em

direccedilatildeo a uma sociedade mais liberalrdquo isto eacute efetuar a transiccedilatildeo ldquotorna-se possiacutevel por um

acerto de contas com o passadordquo

Que do ponto de vista praacutetico os mecanismos transicionais confundam-se com o

ldquomagical switchrdquo que permite evitar um futuro de horror e repeticcedilatildeo nada esclarece nem

sobre como a transiccedilatildeo pode avanccedilar sem conhecimento declarado do passado tampouco

sobre como a memoacuteria pode ser um locus de potenciais transformativos Uma vez mais

conveacutem observar que Teitel trabalha com um conceito pragmaacutetico e simboacutelico de

memoacuteria compreendida como verdade uacutetil agrave justiccedila histoacuterica e agraves operaccedilotildees praacuteticas dos

mecanismos transicionais Poreacutem Teitel ou qualquer outro autor da Teoria da Justiccedila de

Transiccedilatildeo jamais se coloca a questatildeo simples sobre o fundamento do potencial

transformador da memoacuteria ou se nos atrelarmos por um instante agrave primeira afirmaccedilatildeo de

Teitel ndash segundo a qual geralmente a transiccedilatildeo natildeo espera pela verdade do passado ndash

jamais encontraremos a questatildeo simples mas crucial sobre as causas profundas que

conduzem a essa transiccedilatildeo que natildeo espera pelo advento da verdade nem se elas

comportariam alguma relaccedilatildeo com a memoacuteria em outro registro que natildeo o pragmaacutetico ou o

simboacutelico Ainda que se possa interpretar as transiccedilotildees como processos poliacuteticos de longa

duraccedilatildeo de tal forma que a transiccedilatildeo poliacutetica ocorra previamente ao acerto de contas com o

passado ainda resta em aberto a questatildeo sobre as causas geneacuteticas dos eventos

transicionais e qual sua potencial relaccedilatildeo com a memoacuteria ndash relaccedilatildeo sempre pressuposta

uma vez que no limite os processos de memorializaccedilatildeo integraratildeo os proacuteprios objetivos

transicionais

Em outro campo analiacutetico teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo tampouco conseguiratildeo

explicar essa questatildeo lacunar a partir da relaccedilatildeo entre memoacuteria e afetos ou emoccedilotildees Natildeo

por outra razatildeo a partir do conceito de memoacuteria traumaacutetica Magdalena Zolkos tambeacutem

enfatiza a relaccedilatildeo entre as memoacuterias do trauma e seu potencial poliacutetico transformativo35

na

34

E conveacutem observar que Teitel (2000 p 111) o faz ao longo da mesma passagem textual 35

ldquoThe concept of traumatic memory suggests that witness testimonies are not simply incorporated within the

transitional reconciliatory machine but are pottentially transformative (and sometimes subversive) of it

75

medida em que ldquoaddressing historical injustice and suffering are the very heart of many

transitional justice projectsrdquo (ZOLKOS 2012 p 19) Todavia o viacutenculo entre memoacuteria

afetos e transiccedilatildeo eacute exprimido e sempre jaacute elidido Tanto que Zolkos (2012 p 19)

qualifica como ldquoaporeacuteticordquo o desejo de fazer justiccedila ao passado reputando-o como o

horizonte-limite do sentido do poliacutetico nas transiccedilotildees36

Tambeacutem recentemente Elizabeth Phelps (2012 p 07) natildeo apenas defendeu um

conceito dinacircmico de memoacuteria lastreado nas pesquisas neurocientiacuteficas que atestaram a sua

maleabilidade como funccedilatildeo de seu caraacuteter adaptativo ao longo da evoluccedilatildeo mas

preocupou-se com o impacto dos afetos na memoacuteria do ponto de vista da praacutetica judiciaacuteria

Aliaacutes eacute em funccedilatildeo da utilidade das memoacuterias na experiecircncia dos tribunais que Phelps

pudera contestar o caraacuteter fixista habitualmente atribuiacutedo agrave memoacuteria na Ciecircncia do Direito

Sua pesquisa parte do pressuposto de que os eventos que se tornam importantes para o

sistema judiciaacuterio satildeo em geral traumaacuteticos envolvendo situaccedilotildees profundamente

emocionais (PHELPS 2012 p 07) Nesse contexto vigem dois sensos comuns teoacutericos

que Phelps desafia o primeiro consiste em reputar que as memoacuterias satildeo dados assimilados

e fixos o segundo consiste em acreditar que as memoacuterias aparentemente mais viacutevidas e

detalhadas ndash geralmente emocionalmente mais intensas ndash satildeo mais precisas que as

demais37

Poreacutem com base em experiecircncias que envolveram a memoacuteria do 11 de setembro

de 2001 bem como em memoacuterias comuns e menos expressivas concluiu-se que perdemos

os detalhes tanto das memoacuterias cotidianas como das relacionadas a eventos

extraordinaacuterios as uacuteltimas nos parecem mais viacutevidas porque satildeo mais importantes

subjetivamente natildeo porque sejam mais detalhadas plenas ou confiaacuteveis Eis porque

quando se trata de memoacuterias sobre eventos puacuteblicos e traumaacuteticos percebe-se um impacto

da afetividade sobre elas

Com efeito a conclusatildeo de Phelps possui um interesse praacutetico quando nos

defrontamos com a questatildeo da acuraacutecia das memoacuterias narradas perante comissotildees ou

tribunais que servem de mateacuteria para a accedilatildeo poliacutetica e institucional nos periacuteodo de fluxo

poliacutetico Nesse sentido e como aliaacutes jaacute se pode verificar outrora de sua pesquisa resulta

uma conclusatildeo indiciaacuteria de que a memoacuteria poderia ser pensada mais em funccedilatildeo de

insofar as they orient political institutions to questions of discontinuous memory irreparable harm and

irreversible temporalityrdquo (ZOLKOS 2012 p 01) 36

ldquoThe aporetic desire to lsquodo justice for the pastrsquo marks the limits of the political in transitional justice []rdquo

(ZOLKOS 2012 p 19) 37

ldquoThe substantial literature on flashbulb memories indicates that memories for some details of shocking and

consequential events may not be as accurate as we think they arerdquo (PHELPS 2012 p 09)

76

coordenadas dinacircmicas que de elementos de fixidez38

No entanto Phelps natildeo chega a

elaborar um conceito autocircnomo e dinacircmico de memoacuteria

Entre os teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo Jon Elster foi um dos mais importantes a

dedicar um estudo ao problema das emoccedilotildees e sua relaccedilatildeo com a memoacuteria e a transiccedilatildeo

Contudo encontraremos mais uma vez uma definiccedilatildeo lacunar limitada por imperativos

pragmaacuteticos Apoacutes definir a transiccedilatildeo em relaccedilatildeo a um acerto de contas com o passado39

um dos primeiros gestos teoacutericos de Memory and Transitional Justice consiste em

apresentar o sentido em que se pode apreender a memoacuteria como ldquocarregada de emoccedilotildeesrdquo e

natildeo como um conhecimento abstrato do passado ldquo[memory] differs from mere abstract

knowledge of a past event in that to remember an event one must have been present when

and close to where it took placerdquo (ELSTER 2003 p 04)40

Do ponto de vista da Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo encontramos nessa definiccedilatildeo

algo semelhante ao que resulta das pesquisas de Phelps natildeo uma memoacuteria dinamizada

pelas emoccedilotildees mas uma reelaboraccedilatildeo do conceito de memoacuteria a partir do referencial

individual e consciente Elster se recusa metodologicamente a apelar a conceitos como o

de ldquomemoacuteria coletivardquo41

Todavia Elster toca o epicentro do problema que move a

presente pesquisa ndash a gecircnese da transiccedilatildeo e sua relaccedilatildeo com a memoacuteria ndash mas de modo

restrito agraves memoacuterias psicoloacutegicas individuais

I have focused on memory as an explanatory factor in transitional justice To serve as an

explanans the concept must be reasonably clear I have used it consistently in the sense of

conscious individual-level recollections of earlier events that the individual either directly

witnessed as an observer or learned about when they happened and close to where they

happened (ELSTER 2003 p 11)

Segundo Elster seria muito difiacutecil construir uma relaccedilatildeo entre memoacuteria e emoccedilatildeo

sem apelar agrave experiecircncia pessoal do indiviacuteduo como correlato necessaacuterio dessa relaccedilatildeo42

A

tese de Elster eacute a de que os processos transicionais satildeo moldados em profundidade pelas

emoccedilotildees dos indiviacuteduos envolvidos tais processos emergem na medida em que as

38

ldquoIf the purpose of memory is to incorporate lessons learned from past experience to promote adaptative

responding in the future then the flexible and dynamic nature of memory makes senserdquo (PHELPS 2012 p

20-21) 39

ldquoTransitional justice is the legal and administrative process carried out after a political transition for the

purpose of addressing the wrongdoings of the previous regimerdquo (ELSTER 2003 p 01) 40

Por essa razatildeo Elster (2003 p 04) escreveraacute ldquoIt seems plausible that abstract knowledge of a past event is

even less motivating than a faded memoryrdquo 41

ldquoIt is tempting to appeal to ideas such as lsquothe construction of collective memoryrsquo but it is a temptation I

believe we should resist Once we leave the terra firma of conscious individual memory the scope for

arbitrary and artificial constructions is endlessrdquo (ELSTER 2003 p 08-09) 42

ldquoMy main reason for focusing on the personal experience of the individual is the link between memory and

emotionrdquo (ELSTER 2003 p 11)

77

memoacuterias satildeo viacutevidas presentes e carregadas de emoccedilatildeo e desaparecem na medida em que

esmaecem43

podendo permanecer inibidas por longas duraccedilotildees sem que por isso deixem

de ser eficazes44

Com efeito sua recusa a propoacutesito de uma concepccedilatildeo mais abrangente de

memoacuteria deriva de uma opccedilatildeo metodoloacutegica ldquoA broader notion of memory makes it more

difficult to link memory with emotion or at least with lsquopersonal emotionsrsquordquo (ELSTER

2003 p 12)

A opccedilatildeo metodoloacutegica de Elster ainda que legiacutetima tem por efeito transformar o

conceito de memoacuteria em um quadro de inteligibilidade ao mesmo tempo desloca a

questatildeo da gecircnese das transiccedilotildees da memoacuteria para sua relaccedilatildeo com as emoccedilotildees mas sem

analisar sua dinacircmica de maneira direta e especiacutefica

Assim como Elizabeth Phelps estabelece o caraacuteter dinacircmico da memoacuteria mas natildeo

restabelece os direitos desse dinamismo formulando um novo conceito Jon Elster indica

uma saiacuteda para explicar a relaccedilatildeo geneacutetica constantemente intuiacuteda ndash mas sempre lacunar ndash

entre memoacuteria e transiccedilatildeo mas natildeo a aprofunda No ainda hoje inexplorado ponto de

convergecircncia entre um possiacutevel conceito dinacircmico de memoacuteria por um lado e sua relaccedilatildeo

com as emoccedilotildees e afetos por outro eacute que se poderaacute analisar o problema da gecircnese das

transiccedilotildees e sua relaccedilatildeo necessaacuteria com a memoacuteria

Uma vez demonstrados os modos segundo os quais o conceito de memoacuteria eacute

apreendido pelos teoacutericos da Justiccedila e Transiccedilatildeo e antes de passar ao epicentro da

argumentaccedilatildeo conveacutem enunciar os elementos que constituem o centro do argumento

problemaacutetico da presente pesquisa Em linhas gerais a Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo

construiu internamente conceitos tendentes agrave estabilidade compreendidos como processos

culturais balizados por objetivos poliacuteticos e pragmaacuteticos lastreados na experiecircncia

empiacuterica das transiccedilotildees poliacuteticas

Sua ēpistēme compreensiva aberta agrave colaboraccedilatildeo de outras ciecircncias conduziu a um

conceito de memoacuteria heterogecircneo e abrangente compreendendo desde determinaccedilotildees de

uma memoacuteria-lembranccedila ndash individual psicoloacutegica e carregada de emoccedilotildees ndash como a

memoacuteria de Jon Elster passando por um conceito estaacutevel e representativo de memoacuteria

43

ldquoI believe that processes of transitional justice are deeply shaped by the emotions of the individuals

involved be they wrongdoers beneficiaries of wrongdoings victims resisters accusers or neutrals These

emotions arise in direct confrontation among the individuals concerned and tend to fade as the memories

faderdquo (ELSTER 2003 p 11) 44

ldquo[]we have also seen several cases in which memories of injustice prove to be remarkably durable Life

in exile and strong social norms may sustain memories or emotions that would otherwise have been subject

to spontaneous decayrdquo (ELSTER 2003 p 11)

78

coletiva como a de Ruti Teitel chegando a uma memoacuteria apreendida do ponto de vista

pragmaacutetico de suas relaccedilotildees para a efetuaccedilatildeo dos mecanismos transicionais Recentemente

poreacutem ndash sem que no atual estado das pesquisas se tenha constituiacutedo um conceito

autocircnomo ndash o aporte experimental das neurociecircncias permitiu que alguns autores

revelassem a natureza dinacircmica e a maleabilidade constitutivas das memoacuterias ndash aiacute incluiacutedas

as memoacuterias traumaacuteticas ndash mas de um ponto de vista limitado agraves memoacuterias uacuteteis ao campo

das praacuteticas judiciaacuterias concretas Por outro lado ao trabalharmos com o referencial das

ciecircncias histoacutericas pudemos verificar a utilizaccedilatildeo da ideia de memoacuteria na Justiccedila de

Transiccedilatildeo em um sentido estritamente representificador de um objeto ausente baseado em

uma ontologia negativa Isto eacute a memoacuteria a partir de sua dimensatildeo simboacutelica representa

ou torna uma vez mais presente algo da ordem do natildeo-ser assim define-se

paradoxalmente a relaccedilatildeo do passado que ldquofoi e natildeo eacute maisrdquo com as exigecircncias eacuteticas de

natildeo repeticcedilatildeo pertencentes a um futuro sem espessura e sem realidade pois concebido

como o que natildeo eacute ainda Eis o que definiria os marcos da temporalidade na Teoria da

Justiccedila de Transiccedilatildeo uma temporalidade da representaccedilatildeo do natildeo-ser unidimensional que

confunde ndash como quisera Deleuze (1966 p 49) em Le Bergsonisme ndash ser e ser presente e

anula tanto a realidade do devir quanto do ser do passado

Assim quando a Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo concebe um conceito de memoacuteria

emancipado das lembranccedilas individuais ndash memoacuteria coletiva ndash esbarra por um lado na

reduccedilatildeo da memoacuteria agrave memoacuteria de grupo e por outro em um conceito de memoacuteria

definido por sua estabilidade consciecircncia e declaratividade forjadas no seio das produccedilotildees

simboacutelicas e narrativas sociais e institucionais que lhe servem de suportes Recentemente

quando a Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo tangencia o caraacuteter dinacircmico de memoacuteria ndash

defina-se ele a partir das memoacuterias traumaacuteticas carregadas de emoccedilotildees e afetos ou da

compreensatildeo empiacuterica das funccedilotildees evolutivas e adaptativas da memoacuteria ndash esbarra-se no

suporte psicoloacutegico individual do qual a Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo acreditara ter se

emancipado

Se o conceito de memoacuteria eacute heterogecircneo de modo mais ou menos expliacutecito poreacutem

todos os teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo admitem que a memoacuteria constitui um elemento-

chave para a efetuaccedilatildeo das transiccedilotildees Com efeito isso pode ser deduzido tanto entre os

que erigem a memoacuteria agrave condiccedilatildeo messiacircnica de redentora do passado quanto os que

pressupotildeem que os mecanismos transicionais praacuteticos encontrem-se apoiados sobre certa

dimensatildeo da verdade e de sua relaccedilatildeo iacutentima com o passado Tambeacutem os autores que

compreendem a memoacuteria como um motor geneacutetico das transiccedilotildees ou aqueles que a

79

consideram um oacutebice potencial agrave reconciliaccedilatildeo e reconstruccedilatildeo coletivas terminam por

afirmar diretamente ou natildeo a memoacuteria como elemento-chave das transiccedilotildees ndash nem que

pela via dos imperativos de sua inibiccedilatildeo e proscriccedilatildeo puacuteblicas

Todavia nenhuma dessas apreensotildees que caracterizam a memoacuteria como o direito

que abre ldquoa brecha da qual nasceraacute a accedilatildeo poliacuteticardquo (ABRAtildeO GENRO 2012 p 55)

enfatizando um potencial transformador intriacutenseco da memoacuteria conseguira explicar

adequadamente a origem e a dinacircmica desse potencial transformativo que redundaria na

efetuaccedilatildeo das transiccedilotildees A questatildeo da gecircnese e da dinacircmica das transiccedilotildees e de sua

relaccedilatildeo com a memoacuteria eacute senatildeo relegada a outros campos de interrogaccedilatildeo epistemoloacutegica

simplesmente elidida

Teitel natildeo deixa de observar que a construccedilatildeo da memoacuteria ndash ora interpretada em

sentido representativo simboacutelico e social ndash ainda desempenha um papel central na criacutetica

ao regime predecessor e na reconstruccedilatildeo democraacutetica de culturas ateacute entatildeo submetidas a

referenciais autoritaacuterios Dessa forma a memoacuteria jamais deixa de ser uma etapa

constitutiva da Justiccedila de Transiccedilatildeo Tanto que mesmo autores como Paulo Abratildeo e Tarso

Genro (2012 p 56) chegam a erigir o direito agrave memoacuteria a ldquocondiccedilatildeo imprescindiacutevel agrave

manutenccedilatildeo do tecido social caso contraacuterio a sociedade repetiraacute obsessivamente o uso

arbitraacuterio da violecircncia []rdquo ou ainda colocam os mecanismos da Justiccedila de Transiccedilatildeo a

serviccedilo da consolidaccedilatildeo da memoacuteria ldquoPara o atingimento desses objetivos de promoccedilatildeo da

memoacuteria um instrumento privilegiado [] satildeo as poliacuteticas denominadas de Justiccedila de

Transiccedilatildeordquo (ABRAtildeO GENRO 2012 p 57)

Seja como for em qualquer acircmbito sempre se atribui um potencial transformativo

agrave memoacuteria embora ele possa manifestar-se como vimos em registros heterogecircneos ndash o

que decorre da proacutepria pluralidade segundo a qual o conceito de memoacuteria eacute apreendido

pelos teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo Esses registros variam em funccedilatildeo da dimensatildeo

conceitual da memoacuteria com a qual se trabalha Agrave memoacuteria poliacutetica correspondem

potenciais transformativos do proacuteprio regime poliacutetico-institucional agrave memoacuteria social e

coletiva atribuem-se potenciais transformadores dos substratos culturais e sociais

autoritaacuterios preacutevios agrave memoacuteria individual e agraves narrativas das testemunhas e sobreviventes

o potencial pragmaacutetico de sustentar por meio da memoacuteria a operaccedilatildeo dos mecanismos

transicionais mais comuns como reformas purgas reparaccedilotildees responsabilizaccedilotildees penais

construccedilatildeo de memoriais etc

Observou-se que toda a literatura da Justiccedila de Transiccedilatildeo reputa inexcediacutevel o nexo

entre memoacuteria ndash ora compreendida na totalidade das camadas antes descritas abrangendo a

80

verdade o direito de conhecer o passado etc ndash e a produccedilatildeo real de uma mudanccedila na

dinacircmica das instituiccedilotildees e nas formas de vida em sociedade mediadas pelo direito Poreacutem

esse nexo jamais eacute exposto Ele padeceria ateacute mesmo de um vaacutecuo conceitual que

abrangeria a definiccedilatildeo conceitual de memoacuteria (BARSALOU e BAXTER 2007 p 02)

Reconhece-se que em geral certa relaccedilatildeo de corpos sociais em transiccedilatildeo com a

memoacuteria da violaccedilatildeo preteacuterita de direitos e prerrogativas democraacuteticas e de cidadania seria

necessaacuteria ndash no limite do ponto de vista educativo e cultural ndash agrave garantia da natildeo repeticcedilatildeo

Eis o que faz a memoacuteria sob o ponto de vista do Direito Internacional dos Direitos

Humanos ser comumente transcrita ora como um direito cultural como um direito que

promove uma cultura democraacutetica de remoccedilatildeo de formas de viver pensar sentir e

experimentar o real gestadas por culturas autoritaacuterias ou violentas Se por um lado haacute

quem diga que a memoacuteria espaccedilos e lugares de memoacuteria museus e memoriais natildeo satildeo

suficientes para promover um cultural shift todavia satildeo condiccedilotildees necessaacuterias a ele Natildeo

raro os processos de memorializaccedilatildeo satildeo descritos como catalisadores do engajamento

ciacutevico (BICKFORD et all 2007 p 07)

Todavia como a memoacuteria pode engendrar esse potencial transformativo ou

transicional eacute o que jamais eacute explicado Ao apontaacute-lo natildeo se trata de recusar realidade a

nenhum desses registros mas de oferecer uma visatildeo integradora dessas camadas de

memoacuteria tanto entre si como entre elas e seus potenciais de accedilatildeo segundo muacuteltiplos

registros de inscriccedilatildeo Se contudo deixarmos sem resposta a questatildeo ldquocomo a memoacuteria

pode ser admitida como causa geneacutetica de transiccedilotildeesrdquo ndash o que equivale a perguntar ldquoem

que consiste esse potencial transicional geralmente atribuiacutedo agrave memoacuteriardquo ndash torna-se

impossiacutevel aperfeiccediloar uma visatildeo integrativa do problema proposto

Uma via capaz de fazecirc-lo deriva da proacutepria Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo e dos

limites conceituais que descrevemos Trata-se de recuperar os pontos que a Teoria da

Justiccedila de Transiccedilatildeo intui mas deixa permanecerem intocados por um lado uma

concepccedilatildeo dinacircmica da memoacuteria ndash que no presente momento consideramos ser natildeo mais

que uma intuiccedilatildeo preacute-conceitual na Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo por outro lado um

conceito de memoacuteria emancipado de seus registros habituais Esse uacuteltimo aspecto implica

recusar as operaccedilotildees de reduccedilatildeo da memoacuteria a alguns de seus registros mais largamente

utilizados pelos teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo Isso natildeo significa negar a realidade da

memoacuteria a qualquer desses registros mas recusar as operaccedilotildees de reduccedilatildeo do conceito a

determinados registros Com efeito natildeo se nega que a memoacuteria comporte vaacuterias camadas

81

eacute precisamente isso que revela ser inadequado reduzi-la a apenas uma ou algumas delas

Natildeo bastasse a lacuna identificada a respeito dos potenciais transformativos

comumente atribuiacutedos agrave memoacuteria na literatura transicional tambeacutem a natureza plural que a

ideia de memoacuteria comporta justifica um esforccedilo de reconceptualizaccedilatildeo da memoacuteria a fim

de integrar em uma visada uacutenica esses muacuteltiplos registros

Para tanto Henri Bergson torna-se um aliado conceitual imprescindiacutevel Natildeo

apenas por trabalhar com uma concepccedilatildeo ontoloacutegica e compreensiva de memoacuteria ndash na

contramatildeo das operaccedilotildees de reduccedilatildeo da memoacuteria a figuras sem espessura da representaccedilatildeo

e do simboacutelico ndash mas porque a intuiccedilatildeo eacute apresentada em La Penseacutee et le Mouvant como

um meacutetodo filosoacutefico por excelecircncia capaz de integrar o conhecimento da ciecircncia ao da

metafiacutesica a mateacuteria ao espiacuterito (BERGSON 2001 p 1424216)45

A escolha desse marco

teoacuterico justifica-se sob trecircs pontos de vista que seratildeo demonstrados ao longo dos proacuteximos

capiacutetulos

(1) a intuiccedilatildeo metafiacutesica constitui uma visatildeo potencialmente integradora da

realidade heterogecircnea que encontramos a respeito do conceito de memoacuteria na

Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo Nesse sentido a precisatildeo metoacutedica que ela implica

deve tornar-se objeto de verificaccedilatildeo

2) baseando-se no meacutetodo da intuiccedilatildeo a filosofia bergsoniana permite

introduzir natildeo apenas no conceito de memoacuteria mas tambeacutem no epicentro de suas

relaccedilotildees com a efetuaccedilatildeo da transiccedilatildeo coordenadas temporais e dinacircmicas em

relaccedilatildeo agraves quais a Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo ateacute hoje formulou apenas

intuiccedilotildees vagas e preacute-conceituais dirigidas a aplicaccedilotildees pragmaacuteticas sem cuidar da

natureza imanente a esses dinamismos

(3) Na contracorrente de toda operaccedilatildeo de reduccedilatildeo da memoacuteria a uma de

suas manifestaccedilotildees superficiais encontradas nas definiccedilotildees das doutrinas

transicionais (memoacuteria-lembranccedila memoacuteria coletiva memoacuteria-siacutembolo memoacuteria-

representaccedilatildeo ou memoacuteria-consciente) Bergson conceituaraacute a memoacuteria

45

ldquoLa science et la meacutetaphysique se rejoignent donc dans lrsquointuitionrdquo (BERGSON 2001 p 1424216) NB

nas citaccedilotildees das obras de Bergson utilizaremos preferencialmente a Eacutedition du Centenaire compilada por

Andreacute Robinet com introduccedilatildeo de Henri Gouhier publicada originalmente em 1959 e reeditada pela sexta

vez em 2001 Assim as numeraccedilotildees de paacutegina obedecem agrave sequecircncia da Ediccedilatildeo do Centenaacuterio de modo que

a primeira numeraccedilatildeo corresponde agrave da paginaccedilatildeo das Œuvres a segunda precedida do sinal ldquordquo indica a

paginaccedilatildeo das publicaccedilotildees originais que Robinet fez constar no corpo das obras completas de Bergson

Trata-se de uma sistemaacutetica de referecircncia corrente entre os comentadores de Bergson de tal forma que a fim

de facilitar a conferecircncia das citaccedilotildees tambeacutem a adotamos

82

obedecendo a referenciais ontoloacutegicos compreensivos No bergsonismo a memoacuteria

jamais seraacute transcrita a partir da negatividade e do natildeo-ser como se fosse a mera

representaccedilatildeo de um objeto ausente Ao contraacuterio ela seraacute continuamente definida

como uma regiatildeo do ser ou do existente a partir de coordenadas dinacircmicas e

temporais e constituiraacute no limite ndash como demonstraremos oportunamente ndash o

fundamento do proacuteprio tempo (duraccedilatildeo real)

Bergson natildeo cessou de sublinhar a impotecircncia das formas meramente pragmaacuteticas

da inteligecircncia para compreender a realidade profunda da transiccedilatildeo ldquoDe la transition il

[lrsquoentendement] deacutetourne son regardrdquo (BERGSON 2001 p 1256-12575-6) Dados os

referenciais ontoloacutegicos a partir dos quais satildeo colocadas as questotildees do movimento e da

mudanccedila deveratildeo aparecer como problemas coextensivos agrave compreensatildeo das transiccedilotildees

poliacuteticas na medida em que Bergson compreende as formas de vida bioloacutegicas e tambeacutem

poliacuteticas indistintamente como derivados ontoloacutegicos Isso significa que todas as formas

podem variar em funccedilatildeo da duraccedilatildeo de tal modo que as coordenadas duracionais a partir

das quais se poderaacute pensar memoacuteria e transiccedilatildeo apontam para o caraacuteter diferencial

constitutivo do real que como demonstramos apenas tiacutemida e recentemente assaltou os

teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo que rapidamente retornaram agrave terra firma das memoacuterias

individuais psicoloacutegicas e conscientes ou insistiram na fixidez de noccedilotildees representativas e

negativas do conceito

Trata-se pois de tentar amarrar um devir que se insinua no interior das proacuteprias

doutrinas transicionais erigir um conceito de memoacuteria que natildeo admita reduccedilatildeo a

coordenadas individuais sociais ou nacionais ndash evitando do ponto de vista eacutetico-poliacutetico o

que Bergson chamou de ldquotendecircncia ao fechamentordquo ndash ao mesmo tempo em que a memoacuteria

possa com razatildeo apresentar-se em seu caraacuteter dinacircmico segundo coordenadas

duracionais como condiccedilatildeo ontoloacutegica e a um soacute tempo poliacutetica das transiccedilotildees Recusando

toda operaccedilatildeo redutora da memoacuteria trata-se de superar a partir de uma interlocuccedilatildeo com a

filosofia de Henri Bergson o conceito meramente cognitivo uacutetil ou pragmaacutetico de

memoacuteria sem deixar de integraacute-lo como uma das dimensotildees desse novo conceito de

memoacuteria

Dessa forma objetiva-se contribuir para suprimir a lacuna explicativa encontrada

na Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo e oferecer uma fundamentaccedilatildeo possiacutevel sobre a funccedilatildeo

transicional da memoacuteria e seu potencial transformativo ndash empiacuterica e vagamente decalcados

pelos teoacutericos das praacuteticas transicionais concretas Nessa medida seraacute possiacutevel

83

reconceptualizar a memoacuteria a partir de um ponto de vista inexplorado pela tradiccedilatildeo das

doutrinas transicionais utilizando os referenciais da ontologia bergsoniana e desentocar

de sua intimidade estranha agrave pragmaacutetica da Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo um conceito

integrador das diversas camadas da memoacuteria de tal forma que se possa compreender de

que modo a memoacuteria pode ser obscuramente erigida no corpo dessa vasta e recente teoria

agrave condiccedilatildeo de uma causa profunda das accedilotildees poliacuteticas transicionais

84

SEGUNDA PARTE

O virtual a ideia de memoacuteria na filosofia de Henri Bergson

85

CAPIacuteTULO 4 ndash UM SALTO NO VIRTUAL DO SER PRESENTE AO SER

DO PASSADO

Como apresentar em poucos mas decisivos traccedilos um filoacutesofo ldquoqui eacutevolue et

change dans le tempsrdquo (JANKEacuteLEacuteVITCH 2008 p 01) cuja filosofia resumida em

apenas quatro obras (GOUHIER In BERGSON 2001 vii) parece ser infinita

Sobretudo como fazecirc-lo sem abandonar as questotildees que elaboradas no corpo dos

capiacutetulos precedentes sugerem os temas da memoacuteria e da transiccedilatildeo que terminam por

mobilizar a integral que percorre o campo especulativo do bergsonismo

Comecemos pelos traccedilos impessoais Henri Bergson nasce em 1859 em Paris no

seio de uma famiacutelia judia Frequenta a escola normal em 1881 e ensina em Clermont-

Ferrand de 1883 a 1888 No ano seguinte com trinta anos de idade sustenta duas teses

sua tese complementar sobre Aristoacuteteles e escreve o Essai sur les donneacutes immediates de

la conscience que lhe renderia vinte e nove anos mais tarde o precircmio Nobel de

Literatura Em 1900 Bergson foi nomeado ao Collegravege de France ocupando a cadeira de

filosofia grega em substituiccedilatildeo a Charles Leacutevecircque

Dentre as sete obras de facto seus quatro livros de jure46

publicados ao longo de

mais de quatro deacutecadas satildeo permeados por uma constante atividade de escritura de que satildeo

testemunha seus escritos cursos e correspondecircncias Todo esse material que vem sendo

intensamente recuperado e tornado puacuteblico nas uacuteltimas deacutecadas natildeo apenas serve para

colmatar determinadas passagens entre suas obras maiores mas datildeo notiacutecia das

articulaccedilotildees entre a radical invenccedilatildeo de conceitos a criacutetica de problemas claacutessicos da

metafiacutesica e sua atuaccedilatildeo como ator poliacutetico e interlocutor privilegiado de seus

contemporacircneos

Esta talvez seja a faceta bergsoniana menos familiar aos leitores brasileiros mas

tambeacutem aos juristas que natildeo raro utilizaram a inspiraccedilatildeo bergsoniana como elementos

46

Os quarto livros de direito de Bergson ndash que ele mesmo considerava ldquosuas obras completasrdquo ndash tanto que

satildeo reunidas por Andreacute Robinet na Eacutedition du Centenaire em comemoraccedilatildeo ao seu nascimento em 1959 ndash

satildeo Essai sur les donneacutes immediates de la conscience (1889) Matiegravere et Meacutemoire (1896) LrsquoEacutevolution

Creacuteatrice (1907) e Les Deux Sources de la Morale et de la Religion (1932) outras obras que consistem na

reuniatildeo de escritos e de conferecircncias satildeo publicadas em 1919 (LrsquoEacutenergie Spirituelle) e 1934 (La Penseacutee et le

Mouvant) Ainda seria o caso de registrar a publicaccedilatildeo de Dureacutee et Simultaneiteacute em 1922 livro em que

Bergson controverte em alguns pontos com a Teoria da Relatividade de Einstein e que se encontra

reproduzido em Meacutelanges de 1972 Aleacutem dos diversos cursos outros escritos de Bergson podem ser

encontrados na recente ediccedilatildeo de Eacutecrits Philosophiques apresentada por Freacutedeacuteric Worms e publicada em

2011 como prolongamento das ediccedilotildees criacuteticas de suas obras retomadas pela Presses Universitaires de

France (PUF) a partir de 2008 Registre-se ainda o interessante trabalho de recoleccedilatildeo de ineacuteditos cursos e

aulas levado a efeito pelos sucessivos volumes dos Annales Bergsoniennes publicados a partir de 2002

tambeacutem pela PUF

86

motores de sua Filosofia ou Teoria do Direito No Brasil seria o caso de registrar alguns

exemplares da importante penetraccedilatildeo de Bergson na leitura de fenocircmenos estudados no

acircmbito das Ciecircncias Humanas e Sociais mas tambeacutem no campo da Ciecircncia Juriacutedica No

primeiro caso a tese seminal de Ecleia Bosi (2010) publicada sob o tiacutetulo Memoacuteria e

sociedade lembranccedilas de velhos em que Matiegravere et Meacutemoire eacute resgatada junto aos

escritos de um dos mais ilustres alunos e polecircmicos leitores de Bergson ndash Maurice

Halbwachs Mais recentemente Ecleia ainda publicou O tempo vivo da memoacuteria livro de

ensaios sobre psicologia social em que retoma temas de sua tese relacionados a Bergson e

Halbwachs como a substacircncia social da memoacuteria e a sobrevivecircncia ou a persistecircncia da

memoacuteria (BOSI 2003 p 13-48)

No acircmbito juriacutedico seria impossiacutevel natildeo lembrar as inspiraccedilotildees bergsonianas que

apreendidas desde pontos de vista muito proacuteprios penetram a anaacutelise de importantes

filoacutesofos do direito brasileiros No campo juriacutedico os mais destacados precursores da

filosofia de Bergson no Brasil foram Miguel Reale e Goffredo Telles Juacutenior dois

importantes professores da Faculdade do Largo de Satildeo Francisco Segundo Reale (2010 p

80) Bergson teria sido ldquoum dos maiores filoacutesofos se natildeo o maior filoacutesofo da Franccedila na

primeira metade do Seacuteculo XXrdquo A filosofia bergsoniana eacute intensamente recuperada pela

filosofia do direito de Reale a fim de auxiliar a compreender as distinccedilotildees de meacutetodo na

Filosofia e na Ciecircncia momento em que Bergson eacute lembrado tambeacutem por seu meacutetodo

intuitivo (REALE 2010 p 140) Por sua vez o autor da ceacutelebre Carta as Brasileiros47

escrevera tambeacutem Direito Quacircntico ensaio sobre o fundamento da ordem juriacutedica

(TELLES JUacuteNIOR 2006a) obra claramente inspirada na cosmologia bergsoniana e em

sua metodologia de diaacutelogo permanente e aberto com as ciecircncias naturais Mesmo no

acircmbito de sua Teoria do Direito Goffredo Telles Juacutenior natildeo cessou de evocar algumas

soluccedilotildees bergsonianas pontuais para problemas da histoacuteria da metafiacutesica ocidental que

poderiam servir ao estudo do Direito eacute o caso da ilusatildeo sobre a existecircncia da desordem

(TELLES JUacuteNIOR 2006b p 06-07) por exemplo

Fora do Brasil Alexandre Lefebvre escreveu duas recentes obras de Filosofia do

Direito que se dedicam a apreendecirc-la no interior da obra de Bergson Seu primeiro livro

The Image of the Law Spinoza Bergson Deleuze publicado em 2008 e Human rights as

a way od life on Bergsonrsquos Political Philosophy de 2013 Nesse mais recente texto natildeo

apenas Bergson aparece como a figura central da interrogaccedilatildeo de Lefebvre como sua

47

Em agosto de 1977 Goffredo Telles Juacutenior lecirc sua Carta aos Brasileiros no paacutetio interno da Faculdade de

Direito em que manifestava seu repuacutedio agrave ditadura militar e conclamava agrave defesa da Democracia

87

filosofia poliacutetica permitiria compreender a relaccedilatildeo entre direitos humanos e a ascese

bergsoniana no contexto de sua filosofia poliacutetica48

Segundo Lefebvre Bergson teria

renovado a forma de compreender os direitos humanos ndash natildeo mais como instrumentos para

proteger seres humanos de abusos mas ldquoas a medium for personal transformationrdquo

(LEFEBVRE 2013 Preface)

Toda a novidade que a leitura de Lefebvre sobre Bergson representa poreacutem natildeo

nos aproveita senatildeo na medida em que auxilia no conjunto de outros comentadores a

elucidar alguns conceitos isso porque a perspectiva de sua obra permanece atrelada ao

espectro da filosofia poliacutetica de Bergson mas natildeo indaga sua mais profunda relaccedilatildeo com a

ontologia na qual buscamos avanccedilar De toda maneirao belo e original livro de Lefebvre

vem ao encontro de uma preocupaccedilatildeo que se intensifica cada vez mais entre os

comentadores estrangeiros de Bergson ndash a maior atenccedilatildeo agrave faceta poliacutetica da filosofia

begsoniana as renovadas leituras e articulaccedilotildees de Deux Sources de la Morale et de la

Religion com suas demais obras a preocupaccedilatildeo em atualizar um Bergson ldquopoliacuteticordquo

Exemplares igualmente recentes disso satildeo os textos que compotildeem o quinto volume

dos Annales Bergsoniennes intitulado ldquoBergson et la politiquerdquo cujo prefaacutecio assinado

por Vincent Peillon considera que os novos estudos sobre o Bergson poliacutetico assinalariam

ldquoun profond bouleversement dans les eacutetudes philosophiques en Francerdquo (PEILLON 2012

p09) Haacute pois todo interesse em recuperar mais que um Bergson poliacutetico a ontologia

duracional de que as transiccedilotildees poliacuteticas natildeo satildeo senatildeo atualizaccedilotildees de niacutevel

Para aleacutem de um Bergson filoacutesofo poliacutetico haacute um Bergson poliacutetico que testemunha

sua iacutentima relaccedilatildeo com a proacutepria gecircnese do Direito Internacional dos Direitos Humanos

Durante certo periacuteodo Bergson trabalhou lado a lado com Woodrow Wilson para

estabelecer a Liga das Naccedilotildees e mais tarde fora indicado para a presidecircncia da Comissatildeo

Internacional para Cooperaccedilatildeo Intelectual da Liga (LEFEBVRE 2013 Preface e

SOULEZ WORMS 2002 p 141-170) Ainda Bergson teria sido uma influecircncia confessa

de John Humphrey o principal responsaacutevel pela redaccedilatildeo da Declaraccedilatildeo Universal dos

Direitos Humanos de 1948 (LEFEBVRE 2013 Preface)

Com efeito toda a escritura de Les Deux Sources transpira a atmosfera de

pressentimento de uma cataacutestrofe que viria a ser a Segunda Guerra Mundial mas ainda

assim eacute um profundo libelo de feacute no aberto Se por um lado Bergson compreendia os

48

ldquoI have interpreted Bergsonrsquos political philosophy in this vein To my mind the great power of Two

Sources lies in its insistence that in the end none of the problems of politics ndash which include huge ones such

as war and fascism as well as everyday ones such as prejudice and exclusion ndash will be resolved without an

attendant transformation in the relationship one has to oneselfrdquo (LEFEBVRE 2013 Preface)

88

direitos humanos como ldquothe best-placed institution to realize the social moral political

and religious ideal that he will call the lsquoopen societyrsquordquo (LEFEBVRE 2013 Chap 1 ndash A

dialogue on war) por outro sabia que nos contextos de guerra as sociedades fecham-se

sobre si tentando reconciliar hipocritamente os direitos humanos com a realidade da

guerra Nesses casos ldquowhile war does not eliminate rights due to all human beings nor

show then to be imaginary it does suspend their application for the time being Duties

toward humanity are [] affirmed in principle but temporarily denied in factrdquo

(LEFEBVRE 2013 Chap 1 ndash A dialogue on war) A fim de compreender o que significa

uma sociedade aberta ou como passar do fechado ao aberto ndash problema que como

veremos sendo essencial agrave filosofia poliacutetica de Bergson confunde-se com aquele que se

propotildee toda transiccedilatildeo poliacutetica ndash precisamos antes entrar de alguma maneira e de uma

vez por todas no Bergsonismo Apenas assim e a esse preccedilo poderemos estimar as

colaboraccedilotildees que uma ontologia da memoacuteria poderia conferir agrave integraccedilatildeo dos

heterogecircneos conceitos de memoacuteria na Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo bem como para a

iluminaccedilatildeo ontoloacutegica mas tambeacutem praacutetica e poliacutetica da constante atribuiccedilatildeo agrave memoacuteria

de potenciais transicionais

sect 1 BERGSONISMO MUacuteLTIPLAS ENTRADAS

Henri Bergson natildeo cessou de dizer que todos os problemas metafiacutesicos da histoacuteria

da filosofia do Ocidente foram colocados muito mais em funccedilatildeo do espaccedilo do que em

funccedilatildeo do tempo (BERGSON 2001 p 1260-126109-11)49

Essa simples afirmaccedilatildeo eacute

capaz de provocar uma completa subversatildeo de toda a histoacuteria da filosofia ocidental

implicando perguntar de iniacutecio por seu sentido senatildeo por suas consequecircncias imediatas

as quais devem ser pouco a pouco desdobradas e conduzidas aos limites de seu horizonte

conceitual

49

Vladimir Jankeacuteleacutevitch (2008 p 03) filoacutesofo e pianista francecircs de ascendecircncia russa bem o percebe e logo

o transcreve em uma metaacutefora musical ou meloacutedica ldquoUne meacutelodie joueacutee agrave lrsquoenvers en commenccedilant par la

derniegravere note et en remontan drsquoaval en amont ne serait qursquoune innommable cacophonie [] Lrsquoordre

temporel nrsquoest pas un accident de la sonate mais son essence elle-mecircme [] La premiegravere condition exigeacutee

pour comprendre le bergsonisme drsquoHenri Bergson est de ne pas le penser agrave rebousse-temps Le bergsonisme

veut ecirctre penseacute dans le sens mecircme de la futurition crsquoest-agrave-dire agrave lrsquoendroitrdquo Natildeo casualmente Deleuze (1966

p 22) reconhece que uma das dimensotildees mais importantes do meacutetodo bergsoniano da intuiccedilatildeo consistiraacute em

colocar os problemas e solucionaacute-los mais em funccedilatildeo do tempo que do espaccedilo Eacute nesse sentido que Bergson

em Matiegravere et Meacutemoire pudera afirmar que ldquoles questions relatives au sujet et agrave lrsquoobjet agrave leur distinction et

agrave leur union doivent se poser en fonction du temps plutocirct que de lrsquoespacerdquo (BERGSON 2001 p 21874)

89

Afinal se sabemos que Bergson eacute geralmente considerado o filoacutesofo da duraccedilatildeo da

vida ou da criaccedilatildeo (DELEUZE 1966 p 01) seria preciso procurar pelo significado

profundo ao qual responde o convite bergsoniano continuamente reiterado de pensar sub

specie durationis ndash convite que natildeo raras vezes rendeu agrave sua filosofia a alcunha de

pensamento antiintelectualista50

Como veremos mais adiante isto teria sido fruto de uma

incompreensatildeo que se encontra hoje amplamente demonstrada na literatura criacutetica que

acompanha a obra de Bergson desde meados dos anos cinquenta do seacuteculo XX

especialmente em Franccedila

A esta questatildeo a do sentido do tempo como horizonte da filosofia bergsoniana

viria acrescer-se ainda um problema anterior o da assunccedilatildeo de sua realidade o que

significa dizer que o tempo existe e mais ainda de que forma compreender que a

temporalidade possa constituir o sentido da mais antiga pergunta da histoacuteria da filosofia ndash

aquela sobre o ser Eis o que implica uma maneira bergsoniana sui generis de ler as

funccedilotildees ocultas e talvez praacuteticas e poliacuteticas da histoacuteria da metafiacutesica que nos propomos a

perscrutar No interior dessa dinacircmica que constitui a proacutepria realidade do tempo seria

preciso desvelar pacientemente no interior da obra de Bergson aquilo que constituiu o fio

condutor do presente trabalho compreender o sentido a um soacute tempo imanente e temporal

dos conceitos de memoacuteria e de transiccedilatildeo e sobretudo da relaccedilatildeo entre memoacuteria e transiccedilatildeo

no bergsonismo Retornaremos a ele incessantemente

Muacuteltiplas poderiam ser as entradas para reconstruir o sentido da pesquisa

bergsoniana sobre os temas da memoacuteria e da transiccedilatildeo como tambeacutem para elucidar o

significado profundo de pensar natildeo apenas a realidade da duraccedilatildeo mas a realidade em

duraccedilatildeo51

Seria plausiacutevel por exemplo ensaiar a via metoacutedica da criacutetica gnosioloacutegica tal

como eacute a escolha de Gilles Deleuze (1966 p 01-28) em seu Le Bergsonisme mas tambeacutem

a de Franklin Leopoldo e Silva (1994 p 29-116) em seu Bergson ndash intuiccedilatildeo e meacutetodo

50

ldquoNous avons insisteacute sur le caractegravere meacutethodique et rationnel de lrsquointuition Toutefois ce nrsquoest pas ainsi

qursquoelle est passeacute agrave la posteriteacute Agrave beaucoup elle a plutocirct sembleacute nrsquoecirctre que lsquosentimentsrsquo lsquoinspirationrsquo ou

sympathie confuserdquo (HUDE In FAGOT-LARGEAULT WORMS 2009 p 197) Cf ainda (DELEUZE

1966 p 01) 51

ldquoIl y a pourtant un sens fondamental penser intuitivement est penser en dureacuteerdquo (BERGSON 2001 p

127530) No mesmo sentido Cf (RIQUIER 2009 p 187) e (PRADO JUacuteNIOR 1989 p 86) que afirma

ldquoA intuiccedilatildeo [] sendo um lsquopensar em duraccedilatildeorsquo se oferece a gecircnese efetiva do sentido e a transiccedilatildeo de um

extremo a outrordquo Trata-se portanto de perspectivar outro ponto de vista a gecircnese e natildeo a estrutura o se

fazendo e natildeo o jaacute feito o processo de produccedilatildeo natildeo o produto em que ele culmina e natildeo eacute possiacutevel fazecirc-lo

sem considerar ldquoa temporalidade da apariccedilatildeo da essecircnciardquo como ldquoum dado constitutivo da proacutepria essecircnciardquo

(PRADO JUacuteNIOR 1989 loc cit) Cf ainda a defesa de Camille de Belloy (2002 p 138) faz da primazia

da questatildeo metoacutedica em Bergson

90

filosoacutefico que dedica agrave questatildeo do meacutetodo toda a primeira parte de seu livro intitulada

ldquoIntuiccedilatildeo e meacutetodo filosoacuteficordquo Evidentemente esta forma de exposiccedilatildeo comporta a

vantagem de construir progressivamente os conceitos da filosofia bergsoniana tomando

singularmente a intuiccedilatildeo por meacutetodo metafiacutesico Ao mesmo tempo se verificarmos que a

formulaccedilatildeo mais precisa da intuiccedilatildeo como meacutetodo filosoacutefico remonta ao iniacutecio de 190052

ndash

e eacute possiacutevel dizecirc-lo a despeito mesmo das criacuteticas que Camille Riquier (2009 p 134)

recentemente expocircs sobre a possibilidade de tratar a intuiccedilatildeo como meacutetodo propriamente

dito ndash assumir inicialmente esse ponto de vista metoacutedico e a criacutetica gnosioloacutegica que o

acompanha poderia implicar brindar-se de antematildeo com aquilo que se deveria engendrar

isto eacute corre-se o risco de tomar como estrutura dada a priori aquilo que a proacutepria obra de

Bergson desenvolve pouco a pouco como a costura procedimental indissociaacutevel da proacutepria

experiecircncia filosoacutefica concreta53

a saber a intuiccedilatildeo

Se Deleuze e Leopoldo e Silva assumem o risco de uma interpretaccedilatildeo retrospectiva

e iniciam por ela natildeo eacute senatildeo tendo em vista necessidades particulares de exposiccedilatildeo em

suas obras e com o constante cuidado de natildeo nutrir sobre a intuiccedilatildeo nenhuma visatildeo de

estrutura mas apreendecirc-la na dinacircmica propriamente duracional de sua gecircnese Deleuze

natildeo sem certa ironia buscava pela via da intuiccedilatildeo infirmar as teses daqueles que

criticaram a filosofia bergsoniana como um vago intuicionismo Com efeito desde o iniacutecio

percebe-se uma necessidade enfaacutetica de afirmar que ldquoLrsquointuition est la meacutethode du

bergsonismerdquo (DELEUZE 1966 p 01) e que ela natildeo se confunde com qualquer

sentimento inspiraccedilatildeo ou simpatia confusos aparentados a uma metafiacutesica

antiintelectualista preacute-kantiana De outro lado pode-se perceber que em seu Le

Bergsonisme trata-se de tornar evidente o liame entre o meacutetodo metafiacutesico da intuiccedilatildeo

proacuteprio agrave filosofia bergsoniana seu monismo virtual e uma ontologia composta por dois

registros de realidade o atual e o virtual Natildeo casualmente Le Bergsonisme eacute o texto de

Deleuze capaz de iluminar a interpretaccedilatildeo de alguns de seus uacuteltimos e mais complexos

textos autorais como Lrsquoactuel et le virtuel (DELEUZE PARNET 2010 p 177-185) e

52

Tanto que Introduction agrave la Meacutetaphysique seraacute publicada apenas em 1903 na Revue de meacutetaphysique et de

morale e apareceraacute reformulada em 1934 no uacuteltimo livro de fato de Bergson La penseacutee et le mouvant Cf

nesse sentido a nota de Bergson quando da republicaccedilatildeo de seu texto (BERGSON 2001 p 1392-1393177-

178) 53

Significativamente a frase com que Vladimir Jankeacuteleacutevitch (2008 p 05) abre o primeiro capiacutetulo de seu

Bergson afirma ldquoLe bergsonisme est une des ces rares philosophies dans lesquelles la theacuteorie de la recherche

se confond avec la recherche elle-mecircme excluant cette espegravece de deacutedoublement reacuteflexif qui engendre les

gnoseacuteologies les propeacutedeutiques et les meacutethodesrdquo evidenciando a imanecircncia do meacutetodo agrave experiecircncia

filosoacutefica no seio da qual este constantemente se desdobra

91

Lrsquoimmanence une vie (DELEUZE 2003 p 359-363) ambos de inspiraccedilatildeo

reveladoramente bergsoniana

Por certo ao escrever Le Bergsonisme Deleuze poderia ter acreditado na

conveniecircncia de afirmar sempre que possiacutevel que a intuiccedilatildeo bergsoniana natildeo conduz a

nenhuma simpatia vaga ou forma gnosioloacutegica preacute-kantiana senatildeo que com suas regras

muito estritas a intuiccedilatildeo constitui ldquoune meacutethode eacutelaboreacutee et mecircme une des meacutethodes les

plus eacutelaboreacutees de la philosophierdquo (DELEUZE 1966 p 01) conclusatildeo que decorreria

imediatamente de uma profunda exigecircncia de precisatildeo filosoacutefica presente nos escritos de

Bergson dedicados agrave intuiccedilatildeo e constantemente reivindicada por ele54

De seu turno e polemizando com Deleuze Camille Riquier afirma a dissociaccedilatildeo de

direito entre intuiccedilatildeo e meacutetodo com base no ldquoDiscours aux eacutetudiants de Madridrdquo de

primeiro de maio de 1916 em que Bergson descreve a intuiccedilatildeo como um penoso esforccedilo

por meio do qual rompemos com as ideias preconcebidas e os haacutebitos intelectuais a fim de

recolocar-nos simpaticamente no interior da realidade55

Contudo verifica-se que em sua

criacutetica ao tratamento da intuiccedilatildeo como meacutetodo Riquier (2009 p 134) embora dirija-se

objetivamente contra o primeiro capiacutetulo de Le Bergsonisme natildeo menciona a exigecircncia de

precisatildeo interna agrave intuiccedilatildeo postergando sua anaacutelise para uma centena de paacuteginas adiante

(RIQUIER 2009 p 247) Desse modo apesar de encontrar uma deduccedilatildeo exegeacutetica

bastante plausiacutevel a distinccedilatildeo de direito entre intuiccedilatildeo e meacutetodo proposta por Riquier natildeo

afasta por si outras leituras que apresentam a vantagem de serem concebidas a partir das

articulaccedilotildees reais da experiecircncia filosoacutefica bergsoniana como quisera tambeacutem Bento

Prado Juacutenior que ndash antes mesmo de Deleuze ndash natildeo deixou de explicitar que ldquoA reflexatildeo

bergsoniana sobre o meacutetodo eacute governada pelo ideal da precisatildeordquo (PRADO JUacuteNIOR 1989

p 27)

A exemplo do que parece ocorrer com Le Bergsonisme mas de modo

intrinsecamente singular Franklin Leopoldo e Silva inicia seu Bergson pela exposiccedilatildeo da

54

Essa exigecircncia expressa no poacutertico da primeira parte da Introduccedilatildeo especialmente escrita para La Penseacutee

et le Mouvant exprime um dos diapasotildees que percorrem toda a obra de Bergson ldquoCe qui a le plus manqueacute agrave

la philosophie crsquoest la preacutecision Les systeacutemes philosophiques ne sont pas tailleacutes agrave la mesure de la reacutealite ougrave

nous vivonsrdquo (BERGSON 2001 p 125301) Bastaria lembrar por exemplo como o fazem Deleuze (1966

p 30-31) e Worms (2011 p 53) que se Essai sur les donneacutes immediates de la conscience dirige-se contra as

ilusotildees e falsos-problemas que envolvem a liberdade Bergson natildeo consegue chegar a eles senatildeo criticando as

traduccedilotildees simboacutelicas representativas e espacializantes dos estados de espiacuterito qualitativos contiacutenuos e

heterogecircneos pela psicologia de seu tempo 55

ldquoLa meacutethode philosophique tel que je me la repreacutesente comprend deux deacutemarches successives de lrsquoesprit

Le second de ces deux moments la deacutemarche finale crsquoest ce que jrsquoappelle intuition ndash un effort tregraves dificille et

tregraves penible par lequel on rompt avec les ideacutees preacuteconccedilues et les habitudes intelectuelles toutes faites pour se

replacer sympathiquement agrave lrsquointeacuterieur de la reacutealiteacuterdquo (BERGSON 1972 p 1197)

92

extensa polecircmica da filosofia bergsoniana em relaccedilatildeo a toda a filosofia metoacutedica que a

precedeu a fim de explicitar o que constitui a exigecircncia singular de sua obra as relaccedilotildees

entre intuiccedilatildeo e discurso filosoacutefico Estas se encontram desde o primeiro momento

erigidas segundo a exigecircncia da adequaccedilatildeo entre meacutetodo filosoacutefico e a realidade agrave qual se

aplica inscrevendo-a tambeacutem ela na perspectiva da precisatildeo Configurada ldquopela aderecircncia

do conceito ao objetordquo (LEOPOLDO E SILVA 1994 p 34) a precisatildeo teria se tornado a

partir de Bergson o criteacuterio da adequaccedilatildeo do conhecimento ao real denunciando uma

apreensatildeo deformante e intrinsecamente simboacutelica da realidade derivada como veremos

das formas especiacuteficas da proacutepria inteligecircncia humana

Se Riquier deseja deduzir a impossibilidade de tratar a intuiccedilatildeo como meacutetodo a

partir de uma deduccedilatildeo que poderiacuteamos chamar de exegeacutetica seria natildeo menos necessaacuterio

considerar por exemplo o fato de que o Avant-propos de La Penseacutee et le Mouvant

apresenta a referida coleccedilatildeo de ensaios e conferecircncias como centradas sobre o problema da

pesquisa em filosofia Aqueles textos segundo Bergson (2001 p 1251) ldquoportent

principalement sur la meacutethode que nous croyons devoir racommander au philosophe

Remonter agrave lrsquoorigine de cette meacutethode deacutefinir la direction qursquoelle imprime agrave la recherche

tel est plus particuliegraverement lrsquoobjet des deux essais composant lrsquointroductionrdquo La Penseacutee

et le Mouvant representa portanto o resultado de uma seacuterie de esforccedilos pontuais de

Bergson a fim de remontar agrave genealogia do meacutetodo que se deve recomendar ao filoacutesofo

Se disso natildeo eacute possiacutevel concluir resolutamente que a intuiccedilatildeo constitui o meacutetodo

filosoacutefico por excelecircncia tampouco autoriza a afirmar rigorosamente uma dissociaccedilatildeo de

direito entre meacutetodo e intuiccedilatildeo de tal forma que pudesse haver para Bergson intuiccedilatildeo

sem inteligecircncia A longue camaraderie com os fenocircmenos de superfiacutecie verificados ao

longo de todo bergsonismo56

o extenso e profiacutecuo diaacutelogo de todos os livros de Bergson

com as ciecircncias de seu tempo ndash psicologia matemaacutetica medicina biologia sociologia

antropologia ndash ou mesmo o cabal objetivo de afirmar na contracorrente da gnosiologia

kantiana a possibilidade de um enriquecimento reciacuteproco entre ciecircncia e filosofia na

direccedilatildeo do real e do absoluto (BERGSON 2001 p 663-664199-200) natildeo seriam

suficientes para indicar uma compenetraccedilatildeo entre meacutetodo e intuiccedilatildeo como um dos

principais horizontes de sentido da filosofia bergsoniana

56

ldquoCar on nrsquoobtient pas de la reacutealiteacute une intuition crsquoest-agrave-dire une sympathie spirituelle avec ce qui elle a de

plus inteacuterieur si lrsquoon nrsquoa pas gagneacute sa confiance par une longue camaraderie avec ses manifestations

superficiellesrdquo (BERGSON 2001 p 1432226)

93

Com efeito se Riquier tem razatildeo em afirmar a dissociaccedilatildeo de jure entre intuiccedilatildeo e

meacutetodo de tal modo que o proacuteprio Bergson identificaria a ocorrecircncia de meacutetodos sem

intuiccedilatildeo e intuiccedilotildees despidas de meacutetodo por outro lado estes natildeo seriam senatildeo os

desenvolvimentos de duas tendecircncias inscritas na inteligecircncia que deveriam ser

reunificadas no campo concreto da experiecircncia57

Ainda aqui valeria o ldquomeacutetodordquo

bergsoniano de divisatildeo a fim de seguir as articulaccedilotildees do real segundo o qual os mistos

que satildeo dados com a experiecircncia podem ser divididos em multiplicidades que diferem por

natureza ndash multiplicidades quantitativas homogecircneas e descontiacutenuas que correspondem ao

espaccedilo e multiplicidades qualitativas heterogecircneas e contiacutenuas agraves quais corresponde a

duraccedilatildeo (DELEUZE 1966 p 31)

Considerando-se ou natildeo a intuiccedilatildeo como o meacutetodo filosoacutefico por excelecircncia e

embora a relaccedilatildeo entre inteligecircncia e intuiccedilatildeo soacute possa ser definitivamente esclarecida com

a descriccedilatildeo da gecircnese da inteligecircncia no seio da vida a criacutetica a um suposto

antiintelectualismo bergsoniano pode ser afastada imediatamente senatildeo pela afirmaccedilatildeo da

intuiccedilatildeo como meacutetodo como enfaticamente quiseram Prado Juacutenior Deleuze Hude e

outros ao menos pela verificaccedilatildeo de que a dissociaccedilatildeo entre intuiccedilatildeo e inteligecircncia natildeo

apenas contraria o sentido global da deacutemarche da obra bergsoniana como antes e

sobretudo contrafaz afirmaccedilotildees muito contundentes como aquela em que Bergson

preconiza que sendo mais que ideia eacute por meio de ideias que a intuiccedilatildeo termina por

comunicar-se isto eacute ldquoLrsquointuition ne se communiquera drsquoailleurs que par lrsquointelligencerdquo

(BERGSON 2001 p 128542) ou aquela em que afirma uma cooperaccedilatildeo entre intelecto e

intuiccedilatildeo ambas reunidas sob o selo da precisatildeo ldquo[] intuitive ou intelectuelle la

connaissance sera marqueacutee au sceau de la preacutecisionrdquo (BERGSON 2001 p 132086)58

De tudo quanto vimos apreendamos trecircs notas originais do bergsonismo que

serviratildeo a compreender o acircnimo que deve orientar as primeiras aproximaccedilotildees de nossa

questatildeo original 1) pensar para Bergson eacute mais do que pensar a duraccedilatildeo como objeto da

57

ldquoPour tout reacutesumer nous volouns une diffeacuterence de meacutethode nous nrsquoadmettons pas une diffeacuterence de

valeur entre la meacutetaphysique et la sciencerdquo (BERGSON 2001 p 128542-43) E ainda ldquoCrsquoest dire que

science et meacutetaphysique diffeacutereront drsquoobjet et de meacutethode mais qursquoelles communieront dans lrsquoexpeacuteriencerdquo

(BERGSON 2001 p 128745) 58

Atestando uma vez mais a relaccedilatildeo entre inteligecircncia e intuiccedilatildeo Freacutedeacuteric Worms recomenda que evitemos

em enxergar na intuiccedilatildeo uma regressatildeo instintiva e afirma ldquoa intuiccedilatildeo natildeo supera a humanidade senatildeo no

sentido revelado pela inteligecircnciardquo (WORMS 2011 p 271) Ainda Petr Tuma (In FAGOT-LARGEAULT

WORMS 2009 p 374) explicita a relaccedilatildeo de complementaridade entre intuiccedilatildeo e inteligecircncia suposta pela

interpretaccedilatildeo de Worms ldquoLrsquointelligence comme faculteacute principale de lrsquohomme se trouve completeacutee par son

jeu avec lrsquointuitionrdquo Finalmente conveacutem assinalar que tambeacutem Henri Hude (In FAGOT-LARGEAULT

WORMS 2009 p 197) natildeo cessou de insistir ldquosur le caractegravere meacutethodique et rationnel de lrsquointuitionrdquo A

orientaccedilatildeo genuinamente antropoloacutegica do trabalho de intuiccedilatildeo em Bergson no entanto eacute um tema de que

natildeo podemos nos ocupar por ora sob pena de estender inconvenientemente esta pequena digressatildeo

94

filosofia mas eacute pensar em duraccedilatildeo o que significa seguir as articulaccedilotildees moventes do real

privilegiar a visatildeo da gecircnese e natildeo a da estrutura dada por natildeo se sabe bem por qual deus

ex machina 2) evitemos o antigo e incoerente haacutebito de procurar pelo antiintelectualismo

no seio daquilo que Bergson designou como ldquoesforccedilo de intuiccedilatildeordquo59

nosso breve desvio

pocircde atestar o liame necessaacuterio entre intuiccedilatildeo e inteligecircncia se por inteligecircncia

compreendermos a exemplo de Bergson ldquoa maneira humana de pensarrdquo60

3) Finalmente

compreendemos que a intuiccedilatildeo constitui uma das muacuteltiplas entradas possiacuteveis agrave filosofia de

Bergson sendo preciso nesse caminho descartar todo raciociacutenio estrutural e retrospectivo

em relaccedilatildeo a esse conceito Se o conhecimento de qualquer realidade exige como quisera o

proacuteprio Bergson uma longa camaradagem com suas manifestaccedilotildees superficiais natildeo se

poderaacute esperar ver na intuiccedilatildeo o fiat da obra bergsoniana uma vez que natildeo eacute por ela que

Bergson comeccedila e porque ela se constitui em um desenvolvimento em tudo coextensivo agrave

experiecircncia concreta

Encerremos esse longo parecircntese sobre a questatildeo da intuiccedilatildeo em Bergson a fim de

retomar nossa questatildeo primeira a das muacuteltiplas entradas para compreender o sentido e a

realidade do tempo em Bergson Aleacutem da intuiccedilatildeo uma segunda possibilidade seria a

esboccedilada por Freacutedeacuteric Worms em Bergson ou os dois sentidos da vida ou como

propusera antes dele Vladimir Jankeacuteleacutevitch com seu Henri Bergson Ela consistiria em

remontar as articulaccedilotildees do bergsonismo a partir do progresso interno de seu

desenvolvimento partindo do Essai sur les donneacutes immediates de la conscience (1889)

passando por Matiegravere et meacutemoire (1896) e LacuteEacutevolution Creacuteatrice (1907) ateacute chegar a Les

Deux Sources de la Morale et de la Religion (1932) Trata-se de uma das ordenaccedilotildees mais

didaacuteticas de Bergson na medida em que o trabalho passa a ser ndash como Jankeacuteleacutevitch e

Worms aliaacutes executam magistralmente ndash proceder agraves cesuras encadear pontos de

continuidade e religar elementos de ruptura entre as quatro principais obras de Bergson

Apesar de os esforccedilos desses ceacutelebres leitores de Bergson convencerem pela uniatildeo

de beleza e inspiraccedilatildeo da continuidade do bergsonismo retrilhar sistematicamente seus

caminhos implica assumir o risco de criar indevidamente no leitor a impressatildeo ndash na qual eacute

preciso evidenciar nenhum desses notaacuteveis inteacuterpretes jamais incorre ndash de um teacutelos

previamente estabelecido pela filosofia bergsoniana Se assim fosse o que explicaria por

exemplo o quarto de seacuteculo que separa a publicaccedilatildeo de LrsquoEacutevolution Creacuteatrice e a de Les

59

A fim de encerrar tais acusaccedilotildees deixemos com Bergson (2001 p 132895) a uacuteltima palavra ldquoNous ne

dirons rien de celui qui voudrait que notre lsquointuitionrsquo fucirct instinct ou sentiment Pas une ligne de ce que nous

avons eacutecrit ne se precircte agrave une telle interpreacutetationrdquo 60

ldquoQursquoest-ce en effet que lrsquointelligence La maniegravere humaine de penserrdquo (BERGSON 2001 p 131984)

95

Deux Sources (GOUHIER 1989 p 87) Se com efeito eacute impossiacutevel deixar de verificar

que Bergson sempre se move de um problema concreto a outro ndash a liberdade a relaccedilatildeo

entre corpo e espiacuterito a gecircnese criadora da vida e de suas formas especiacuteficas a miacutestica e o

aberto ndash e que cada livro terminado engendra jaacute as virtualidades de um problema que eacute

preciso colocar sempre em funccedilatildeo da duraccedilatildeo natildeo haacute meta na filosofia bergsoniana senatildeo

certa direccedilatildeo inespeciacutefica que se resume agrave tentativa de oferecer uma resposta agraves trecircs

grandes e simples questotildees que o senso comum frequentemente se coloca ldquoQuem somos

noacutesrdquo ldquoDe onde noacutes viemosrdquo ldquoPara onde noacutes vamosrdquo (RIQUIER 2009 p 476)

A fim de evitar os riscos da interpretaccedilatildeo retrospectiva bem como os da exposiccedilatildeo

linear gostaria de propor alternativamente uma terceira entrada apenas por supocirc-la mais

adequada aos desenvolvimentos do problema que buscamos enfrentar a partir de Bergson

apresentar os conceitos de memoacuteria e transiccedilatildeo no corpo da filosofia bergsoniana a fim de

explicar a relaccedilatildeo entre memoacuteria e transformaccedilatildeo social ndash lacuna encontrada na primeira

parte no seio heterogecircneo da Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo

Eis porque a questatildeo do sentido e da realidade do tempo devem ser colocadas de

um ponto de vista que natildeo inicia pela exposiccedilatildeo da intuiccedilatildeo filosoacutefica tampouco pela

exposiccedilatildeo sistemaacutetica do desenvolvimento da obra de Bergson Eacute preciso que nos

coloquemos no campo de sentido conceitual de imediato instaurando-o correlativa e

contemporaneamente ao desenvolvimento dos conceitos que o povoam

Antes disso no entanto eacute preciso uma palavra sobre o sentido desse movimento

que nos autoriza colocar-nos subitamente no interior do campo problemaacutetico que se deseja

constituir Escrevesse sobre o canevaacutes das experiecircncias psicoloacutegicas forjasse um campo

transcendental das experiecircncias concretas ou recortasse problemas antropoloacutegicos acerca

dos destinos da espeacutecie humana sobre o fundo do eacutelan vital natildeo raras vezes e ateacute mesmo

constantemente Bergson empresta agrave intuiccedilatildeo a imagem dos saltos toda a sua obra eacute

percorrida por essas imagens haacute saltos na duraccedilatildeo qualitativa no passado na origem da

vida na justiccedila absoluta no aberto etc

Sempre que nos vemos envolvidos por diferenccedilas de natureza ndash entre

multiplicidades quantitativa e qualitativa espaccedilo e tempo mateacuteria e espiacuterito ou entre

fechado e aberto por exemplo ndash retorna a imagem dos saltos que preenchem

positivamente as dificuldades de passar de um registro ontoloacutegico a outro em um momento

em que natildeo se pode ainda passar de um termo a outro por contiguidades Geralmente

trata-se dos momentos em que Bergson deseja desfazer-se de falsos-problemas ou

96

constituir os seus pela intuiccedilatildeo mais adequados que se valem de um contato imediato com

a experiecircncia concreta acerca do qual se mobiliza o esforccedilo de intuiccedilatildeo61

O que apareceraacute ao fundo de cada um deles eacute o salto problemaacutetico e ainda assim

sempre repetido do atual em direccedilatildeo ao virtual sem sair da mesma realidade agrave qual ambos

os registros pertencem ndash campo transcendental ao qual nenhuma realidade pode escapar

pois define a condiccedilatildeo de toda experiecircncia concreta Eacute sobre um salto como esses de uma

diferenccedila de natureza a outra de um registro de realidade a outro que devemos nos

concentrar a fim de realizar a travessia do atual em direccedilatildeo ao virtual sob o aspecto da

duraccedilatildeo Trata-se de interrogar o sentido e a realidade do tempo em Bergson

Para tanto o movimento conceitual que realizaremos mobiliza dois niacuteveis de

realidade solidaacuterios e no entanto qualitativamente distintos o psicoloacutegico e o ontoloacutegico

tal como aparecem a partir do Essai sur les donneacutes immediates de la conscience e de

Matiegravere et Meacutemoire Falamos de uma duraccedilatildeo tomada em uma diferenccedila de vibraccedilatildeo

psicoloacutegica compreendida como duraccedilatildeo interior experiecircncia mais imediata do fluxo

temporal e ontoloacutegica registro de realidade mais proacuteximo da mateacuteria Seu muacutetuo

cruzamento tornaraacute possiacutevel efetuar a passagem do ser presente ao ser do passado ndash eis a

transiccedilatildeo que por ora se trata de engendrar e que permite aceder natildeo apenas agrave duraccedilatildeo

sentida em profundidade como fruto de uma experiecircncia psicoloacutegica ndash verdadeiro fato

fundamental (JANKEacuteLEacuteVITCH 2008 p 07) ndash mas igualmente ao ser presente e ao ser

do passado como iacutendices de um desdobramento ontoloacutegico duacuteplice da duraccedilatildeo o atual e o

virtual

Em relaccedilatildeo agraves alternativas que haacute pouco revisitamos em suas linhas gerais esta

apresenta a vantagem de natildeo incorrer nos riscos de interpretaccedilatildeo retrospectiva e de

continuidade linear que aquelas poderiam sugerir ao leitor tornando mais complexo o

acompanhamento da demonstraccedilatildeo do sentido e da realidade do tempo em Bergson Ainda

esta alternativa permitiraacute acompanhar o desdobramento a um soacute tempo complexo e

contiacutenuo da realidade do virtual bem como seus desdobramentos que de um ponto de

vista inicialmente psicoloacutegico progressivamente se articularaacute com a ontologia da duraccedilatildeo

concedendo-nos a chave de todos os desdobramentos ulteriores em campos muito

heterogecircneos como os terrenos da subjetivaccedilatildeo ou da experiecircncia social

61

Nesse aspecto vecirc-se que a imagem do salto eacute uma figura de acesso agravequilo que a experiecircncia concreta pode

oferecer agrave intuiccedilatildeo Todavia este primeiro salto define apenas o acesso agrave experiecircncia naquilo que ela possui

de concreto e portanto de misto por ora indiviso Uma vez cindido torna-se ainda uma vez possiacutevel saltar de

um termo-limite a outro de uma diferenccedila de natureza a outra Por essa razatildeo Henri Hude (2009 p 182)

afirma que ldquoLrsquoobjet de lrsquointuition crsquoest drsquoabord lrsquoimmediat Lrsquoimmediat est le mode de connaissance qui se

rapporte sans inteacutermediare agrave son objetrdquo

97

sect 2 DURACcedilAtildeO O SENTIDO E A REALIDADE DO TEMPO

Encontramo-nos pois no segmento psicoloacutegico da obra de Bergson que ensaia

tambeacutem e jaacute sua deserccedilatildeo ampliativa em direccedilatildeo agrave ontologia e eacute precisamente esta

articulaccedilatildeo ou esta continuidade entre o psicoloacutegico e o ontoloacutegico que se torna

momentaneamente o epicentro conceitual necessaacuterio para explicar o sentido e a realidade

do tempo como a passagem do ser presente ao ser do passado no bergsonismo Afinal se

por ora utilizamos o termo ontoloacutegico para designar as realidades aproximadas da mateacuteria

excluindo aparentemente o psiacutequico eacute apenas por uma razatildeo de comodidade precaacuteria que

deve deformar-se paulatinamente no sentido de seu contraacuterio A construccedilatildeo progressiva do

conceito de duraccedilatildeo e a procura pelo sentido e pela realidade do tempo tendem a provocar

como veremos duas aberturas nessas mesmas estruturas discursivas a primeira no

ontoloacutegico torna o psiacutequico e o mental uma realidade a segunda no psicoloacutegico torna-o o

seio privilegiado da experiecircncia da duraccedilatildeo assegurando sua realidade e seu sentido

Trata-se portanto de abrir o campo ontoloacutegico pelo campo psicoloacutegico e como

consequecircncia da comunicaccedilatildeo entre ambos afirmar a realidade da duraccedilatildeo em niacuteveis ou

registros diferentes que compotildeem uma soacute realidade ontoloacutegica

O texto introdutoacuterio do Essai sur les donneacutes immediates de la conscience apresenta

o problema da liberdade como comum aos campos da psicologia e da metafiacutesica Sua

origem profunda se deve ao fato de que ldquoNous nous exprimons neacutecessairement par des

mots et nous pensons le plus souvent dans lrsquoespacerdquo (BERGSON 2001 p 03VII) Se a

linguagem corresponde agrave expressatildeo de ideias de acordo com necessidades praacuteticas comuns

agrave accedilatildeo na vida quotidiana como na ciecircncia de algum modo suas traduccedilotildees introduzem

ldquoentre nos ideacutees les mecircmes distinctions nettes et preacutecises la mecircme discontinuiteacute qursquoentre

les objets materieacutelsrdquo (BERGSON 2001 p 03VII) Eis o que nos leva a tomar os siacutembolos

meramente representativos por coisas Trata-se nesse caso natildeo mais que de uma

assimilaccedilatildeo uacutetil que no entanto eacute capaz de engendrar em filosofia problemas

aparentemente insuperaacuteveis que uma vez que tenham sido recolocados poderiam ateacute

mesmo desvanecer por completo segundo Bergson adverte ndash natildeo sem certa audaacutecia

especulativa

Por essa razatildeo os dois primeiros capiacutetulos do Essai concentram-se precisamente

sobre a criacutetica das noccedilotildees de quantidades intensivas e de multiplicidades numeacutericas Eacute

preciso compreender que natildeo se trata de uma criacutetica a conceitos puros mas agrave sua

aplicaccedilatildeo pelas ciecircncias psicoloacutegicas a um campo de experiecircncias irredutiacutevel agrave

98

representaccedilatildeo espacial incutida nesses conceitos Logo se nota portanto que a criacutetica de

Bergson desenrola-se no sentido da irredutibilidade de experiecircncias duracionais a

traduccedilotildees que natildeo apreendem senatildeo um rastro espacializado de uma mudanccedila real e

absoluta Nesse sentido o problema da liberdade indicaraacute que toda polecircmica metafiacutesica e

psicoloacutegica acerca de sua existecircncia entre deterministas e seus adversaacuterios teria origem em

uma operaccedilatildeo de fundo ldquoune confusion preacutealable de la dureacutee avec lrsquoeacutetendue de la

succession avec la simultaneiteacute de la qualiteacute avec la quantiteacute []rdquo(BERGSON 2001 p

03VII)62

Em suma uma insistente confusatildeo entre realidades que comportam diferenccedilas

de natureza de que deriva uma certa maneira de pocircr o problema cuja denuacutencia o ensaio

bergsoniano assumiraacute (WORMS 2011 p 37)

O que estaacute em jogo na introduccedilatildeo dessa diferenccedila ainda imprecisa entre duraccedilatildeo e

espaccedilo eacute precisamente a natureza da duraccedilatildeo Supomos por ora a fim de acompanhar

Bergson que a assimilaccedilatildeo da duraccedilatildeo pelo espaccedilo seja deformante e desnaturante assim

como a traduccedilatildeo de uma sucessatildeo em simultaneidades ou de qualidades em quantidades

Tratar-se-ia pois de conceitos irredutiacuteveis cuja irredutibilidade ainda falta explicar Para

fazecirc-lo deixemos de lado a questatildeo da realidade do espaccedilo e nos concentremos nos

problemas que nos sugerem o desenvolvimento da realidade da duraccedilatildeo

O campo experimental de Bergson satildeo os estados psicoloacutegicos e de consciecircncia

propriamente humanos Eles seratildeo desenvolvidos inicialmente a partir da ideia de

sensaccedilatildeo em primeiro lugar no sentido de identificar e separar as tendecircncias duracionais e

natildeo-duracionais no seio da experiecircncia interior e concreta que nos assinala ldquole fait de

lsquodurerrsquordquo (JANKEacuteLEacuteVITCH 2008 p 07) Se as sensaccedilotildees de esforccedilo e movimento podem

ser naturalmente associadas agrave superfiacutecie a que se aplicam ou agrave trajetoacuteria sobre a qual se

deslocam o mesmo natildeo ocorre quando experimentamos outros estados de alma como ldquoles

joies et les tristesses profondes les passions reacutefleacutechies les eacutemotions estheacutetiquesrdquo

(BERGSON 2001 p 0906) Esses estados parecem bastar a si mesmos excluindo toda

possibilidade de traduccedilatildeo espacial63

parecem ademais emergir subitamente de certa

profundidade da consciecircncia exprimindo dinamicamente uma modificaccedilatildeo da ldquonuance de

62

Bento Prado Juacutenior natildeo apenas lembra que a criacutetica do Essai bergsoniano dirige-se tanto agrave ciecircncia quanto

ao senso comum ao distribuiacuterem fatos psicoloacutegicos em um espaccedilo imaginaacuterio instaurado por coordenadas de

grandeza intensiva mas tambeacutem que colocar em jogo o conceito de grandeza intensiva potildee em xeque ldquoa

possibilidade da constituiccedilatildeo da psicologia como ciecircnciardquo a qual estaacute fundada nessa categoria De todo

modo buscando demonstrar a vacuidade do problema da liberdade Bergson buscaria ldquoinfundar deterministas

e espiritualistasrdquo demonstrando ldquoa raiz comum dessas metafiacutesicasrdquo (PRADO JUacuteNIOR 1989 p 73-74) 63

ldquoCrsquoest que plus on descend dans les profondeurs de la conscience moins on a le droit de traiter les faits

psychologiques comme des choses qui se juxtaposentrdquo (BERGSON 2001 p 1006-07) isto eacute menos

direitos tem uma representaccedilatildeo espacial sobre a coloraccedilatildeo afetiva em profundidade

99

mille perceptions ou souvenirsrdquo penetrados agora de uma nova imagem No entanto toda

descida agrave profundidade obscura da consciecircncia dos desejos e sonhos que a penetram ndash e

que como veremos penetram-se indefinidamente nela ndash repugna agrave consciecircncia reflexa

orientada para a utilidade e para a vida e portanto amante do claro e do distinto

envolvidos pelos horizontes da representaccedilatildeo

Toda afecccedilatildeo tomada em profundidade implica mais uma mudanccedila de qualidade

que de grandeza Um desejo que pacientemente se acumula o futuro prenhe de uma

infinidade de possiacuteveis mais fecundos que o proacuteprio futuro que designa toda a prazerosa

intensidade de nutrir esperanccedila sentimentos profundos de alegria e tristeza sentimentos

esteacuteticos que inspiram certa simpatia fiacutesica de movimentos alheios como a graccedila

assinalariam um progresso qualitativo que no entanto interpretamos como mudanccedila de

grandeza em razatildeo de uma inadequaccedilatildeo entre nossa linguagem e ldquoas sutilezas da anaacutelise

psicoloacutegicardquo (BERGSON 2001 p 1310)

A sensaccedilatildeo esteacutetica talvez constitua um dos mais claros exemplares sobre como

Bergson compreende a natureza qualitativa dos estados psicoloacutegicos Segundo ele o que

constitui o objetivo da arte Natildeo comunicar uma sensaccedilatildeo mas introduzir-nos em uma

emoccedilatildeo64

Para isso eacute necessaacuterio adormecer as resistecircncias de nossa personalidade

docilizar nosso estado de acircnimo a fim de que simpatizemos com o sentimento expresso O

ritmo seja o compreendido pela muacutesica pela poesia pelas artes plaacutesticas ou pela

arquitetura suspende nossas faculdades a fim de envolvecirc-las por completo em uma densa

neacutevoa de emoccedilotildees que natildeo se resumem agravequela sugerida pela obra mas a integra com

milhares de sensaccedilotildees sentimentos e ideias que a atravessam formando assim um estado

uacutenico e inexplicaacutevel tatildeo singular que talvez fosse preciso ldquorevivre la vie de celui qui

lrsquoeacuteprouve [lrsquoeacutemotion] pour lrsquoembrasser dans sa complexe originaliteacuterdquo (BERGSON 2001

p 1513)65

64

Em Puissances du Temps David Lapoujade pergunta-se pela relaccedilatildeo entre o conceito de duraccedilatildeo em

Bergson e o fato de que sua experiecircncia aparece desde seus primeiros escritos ligada agrave sensaccedilatildeo da

passagem do tempo ldquopour saisir la dureacutee [] il faut la sentir srsquoeacutecouler en nousrdquo (LAPOUJADE 2010 p

08) Trata-se poreacutem de compreender o que significar sentir Eacute certo que ao passar o tempo provoca

emoccedilotildees que se confundiriam para Lapoujade com os proacuteprios dados imediatos da consciecircncia Contudo

para compreender o significado profundamente bergsoniano de sentir seria preciso inverter a polaridade

comum entre causa e efeito jaacute natildeo seria o tempo que ao passar provoca emoccedilatildeo eacute a duraccedilatildeo mesma que

em noacutes eacute emoccedilatildeo segundo a foacutermula de Lapoujade Isso indicaria que a emoccedilatildeo ndash ideia que reapareceraacute

incessantemente na obra tardia de Bergson seguida do predicado criadora ndash constitui um dos aspectos

fundamentais da experiecircncia da duraccedilatildeo Isso eacute o que torna a sensaccedilatildeo esteacutetica um exemplar privilegiado para

a compreensatildeo do duracional cuja realidade esboccedila-se jaacute interna e imediatamente 65

A expressatildeo entre colchetes natildeo consta do original

100

A qualidade de singularidade intensiva da emoccedilatildeo esteacutetica produz assim a queda

das barreiras que tempo e espaccedilo interpunham entre a consciecircncia do artista e a do amante

de arte essa ressonacircncia entre consciecircncias ndash como vimos mais que a comunicaccedilatildeo de

uma emoccedilatildeo implica a introduccedilatildeo no solo afetivo de uma emoccedilatildeo enriquecida em diversos

niacuteveis de profundidade pelo eu que a experimenta ndash produz segundo Bergson mudanccedilas

em noacutes ldquoLes intensiteacutes successives du sentiment estheacutethique correspondent donc agrave des

changements drsquoeacutetat survenus en nous et le degreacutes de profondeur au plus ou moins grand

nombre de faits psychiques eacuteleacutementaires que nous deacutemecirclons confusement dans lrsquoeacutemotion

fondamentalerdquo (BERGSON 2001 p 1614)

Bergson reconhece no entanto a raridade desses estados de alma profundos

Torna-se necessaacuterio evitar que sua criacutetica da inadequaccedilatildeo do conceito de quantidades

intensivas traduziacuteveis sempre em diferenccedilas de graus seja compreendida como um tour de

force que toma o excepcional pelo regular Por isso Bergson deve retornar agraves sensaccedilotildees

que nos parecem mais imediatamente espaciais eacute o caso da sensaccedilatildeo de esforccedilo

Com efeito o esforccedilo muscular parece-nos sempre comportar diferenccedilas

quantitativas Representamos esforccedilos musculares mais fracos e mais fortes que implicam

menor ou maior volume de accedilatildeo Se comprimiacutessemos a sensaccedilatildeo de esforccedilo o maacuteximo

possiacutevel concluiriacuteamos facilmente pela existecircncia de um estado puramente psiacutequico que

natildeo ocupa espaccedilo e contudo importa grandeza

Em que consiste nossa percepccedilatildeo de sua intensidade Como se pode afirmar que

experimentamos uma sensaccedilatildeo de crescimento do esforccedilo Natildeo nos afastemos da

experiecircncia Bergson sugere que fechemos o punho o mais forte que pudermos ou

comprimamos constantemente um dos laacutebios contra o outro observando-nos ao longo do

tempo perceberiacuteamos um aumento de superfiacutecie e de esforccedilo quando em verdade trata-se

objetivamente de uma pressatildeo constante e igual exercida sobre a mesma regiatildeo Nossa

consciecircncia todavia perceberia aiacute um crescimento de esforccedilo muscular em razatildeo de uma

mudanccedila qualitativa ocorrida em alguma das percepccedilotildees perifeacutericas (BERGSON 2001 p

2119) Ora sendo qualitativa a modificaccedilatildeo de intensidade de um esforccedilo superficial eacute

forccediloso conduzir sua causa a um sentimento profundo da alma confusamente

percepcionado em superfiacutecie

Investigando estados psicoloacutegicos intermediaacuterios entre sentimentos profundos e

esforccedilos superficiais como a atenccedilatildeo geralmente acompanhada de movimentos (contraccedilatildeo

do frontal elevaccedilatildeo do sobrolho abertura da boca etc) eacute possiacutevel identificar tambeacutem

entre eles uma impressatildeo de aumento de um ldquoesforccedilo imaterialrdquo por manter-se

101

concentrado Com efeito mesmo aiacute o esforccedilo de atenccedilatildeo eacute reconduzido a uma tensatildeo da

alma devendo-se a variaccedilatildeo de intensidade percepcionada agrave tensatildeo muscular que a

acompanha O mesmo ocorre com o que Bergson chama de emoccedilotildees violentas desejo

agudo coacutelera amor apaixonado oacutedio violento que se fazem natildeo raro acompanhar por

sintomas fisioloacutegicos de furor variaccedilotildees qualitativas misturam-se a tensotildees musculares

perifeacutericas e uma variaccedilatildeo de tensatildeo espiritual pode ser logo transcrita em termos de

coordenadas quantitativas e espaciais

Isso tudo importaria reduzir essas sensaccedilotildees superficiais que podem ser transcritas

em termos de grandezas agrave orientaccedilatildeo de movimentos concomitantes que a consciecircncia

mede pelo nuacutemero e extensatildeo ldquodas superfiacutecies interessadasrdquo Bastaria eliminar todo traccedilo

de abalo orgacircnico a fim de que restasse apenas uma emoccedilatildeo agrave qual eacute impossiacutevel atribuir

grandeza de intensidade Seria preciso pois distinguir com precisatildeo entre abalos orgacircnicos

e sentimentos profundos agitaccedilatildeo superficial e perturbaccedilotildees em profundidade

Se Bergson contesta o conceito de intensidade quantitativa eacute visando a comprovar o

fundo qualitativo em profundidade de toda manifestaccedilatildeo superficial A irredutibilidade

entre intenso e extenso entre a qualidade e a quantidade indica desde logo que haacute entre

eles uma diferenccedila natildeo apenas de grau mas de natureza Essa diferenccedila de natureza

impede que a traduccedilatildeo do qualitativo pelo mensuraacutevel seja adequada e mais aleacutem que se

passe do qualitativo ao quantitativo por aproximaccedilotildees ndash sejam elas ampliaccedilotildees ou reduccedilotildees

ndash sucessivas A noccedilatildeo de intensidade implicaria nesse sentido um misto designando ao

mesmo tempo uma apreciaccedilatildeo da grandeza da causa por certa qualidade superficial do

efeito ndash o que corresponderia ao extenso e ao quantitativo bem como ldquola multipliciteacute plus

ou moins consideacuterable de faits psychiques simples que nous devinons ou sein de lrsquoeacutetat

fondamentalrdquo (BERGSON 2001 p 5054) o que designaria natildeo mais uma percepccedilatildeo

clara e distinta ou superficial mas profunda confusa e obscura

A intensidade afigura-se pois um misto bifronte que se compotildee de dados extensos

quantitativos superficiais ou o que eacute dizer o mesmo espaciais e em seu anverso eacute

composto de uma multiplicidade de fatos psiacutequicos simples tomados em sua continuidade

obscura e confusa que Bergson compraz-se em chamar de ldquolrsquoimage drsquoune multipliciteacute

internerdquo Eis o ponto de junccedilatildeo entre estados de consciecircncia meramente representativos e

estados de consciecircncia que se bastam considerados em profundidade O proacuteximo passo

seraacute dissociar representaccedilatildeo e esta multiplicidade interna considerada agora natildeo em

estados separados mas em si mesmos a fim de depurar a duraccedilatildeo de todas as suas

102

representaccedilotildees espaciais e dessa forma liberaacute-la das ilusotildees de que a inteligecircncia a cercou

desde a filosofia dos eleatas

Ateacute agora apreendemos estados psicoloacutegicos como sensaccedilotildees cujas qualidades

desprendem-se de um fundo obscuro e confuso e que chegando agrave superfiacutecie de nosso eu

satildeo apreendidos como estados separados distintos tal como a inteligecircncia os percebe

como dados imediatos de uma consciecircncia Diferentemente dos sentimentos profundos as

sensaccedilotildees apreendidas na superfiacutecie e logo transcritas em quantidades intensivas

variaccedilotildees de grandeza e diferenccedilas de grau oferecem-nos com efeito uma multiplicidade

mas ela nos concederaacute a duraccedilatildeo Tudo indica que natildeo Se a intensidade misto bifronte

prenhe tanto de quantidades intensivas quanto de fatos psiacutequicos simples correspondentes a

multiplicidades internas aponta desde logo para uma divisatildeo entre o espacial e o externo e

o duracional e o interno eacute na duraccedilatildeo dos estados simples interiores e profundos que

devemos buscar a ideia de duraccedilatildeo

Afinal como vimos eacute em profundidade que se constituem tanto os sentimentos

profundos que parecem bastar-se a si mesmos quanto aqueles mais superficiais sempre

em vias de converter-se em extensatildeo segundo os modos simboacutelicos de uma consciecircncia

que os experimenta em profundidade e realiza sua siacutentese por intermeacutedio da inteligecircncia

Em que consiste o que seus dados imediatos ofereceram agrave anaacutelise ateacute o presente De um

lado sua sede estabelecida em profundidade que implica uma mudanccedila de caraacuteter

qualitativo de outro sua siacutentese superficial que se nos representa uma mudanccedila de

qualidade como uma multiplicidade descontiacutenua povoada por estados descontiacutenuos

organizados no espaccedilo que experimentariacuteamos um apoacutes o outro e que variariam segundo

diferenccedilas de grau ou de quantidade

Jaacute se pode notar que o novo problema de Bergson consiste natildeo em mostrar que a

duraccedilatildeo implica multiplicidade ndash afinal o espaccedilo tambeacutem a implica ndash mas caso se trate de

assinalar uma diferenccedila de natureza entre duraccedilatildeo e espaccedilo eacute preciso compreender a que

tipo de multiplicidades correspondem os conceitos de duraccedilatildeo e extensatildeo Toda a questatildeo

da duraccedilatildeo converte-se em uma exigecircncia de apreender as caracteriacutesticas daquilo que

constitui seu tipo proacuteprio de multiplicidade

Se assim for o que explica o fato de que Bergson inicia o segundo capiacutetulo do

Essai pela definiccedilatildeo de nuacutemero Em La Penseacutee et le Mouvant Bergson afirmava que a

origem de seu encantamento com a ideia de tempo remontava ao fato de perceber que nas

103

matemaacuteticas o tempo natildeo desempenhava qualquer papel66

O trabalho de depuraccedilatildeo da

duraccedilatildeo de todo referencial e determinaccedilatildeo espaciais deve comeccedilar assinalando o tipo de

multiplicidade que concorre para um modo da realidade em que a duraccedilatildeo em princiacutepio

natildeo pode constituir causa Isso implica determinar com precisatildeo que tipo de multiplicidade

corresponde agraves coordenadas espaciais para depois definir a multiplicidade que

corresponde agrave duraccedilatildeo como limites de nossa experiecircncia (WORMS 2011 p 41) A

anaacutelise do conceito de nuacutemero eacute aquela que permitiraacute distinguir duas multiplicidades

Bergson (2001 p 5156) define o nuacutemero como ldquoune collection drsquouniteacutesrdquo ou como

ldquola synthegravese de lrsquoun et du multiplerdquo Trata-se de uma coleccedilatildeo de unidades supostas

idecircnticas entre si o que implicaria a ldquointuiccedilatildeo simples de uma multiplicidade de partes e de

unidadesrdquo assemelhadas umas agraves outras No entanto esta unidade eacute sinteacutetica operada pela

consciecircncia uma vez que as partes natildeo se confundem ou natildeo haveria multiplicidade O

que garante que a multiplicidade possa subsistir entre unidades que supomos iguais e cuja

siacutentese mental oferece-nos uma unidade pragmaticamente simples A circunstacircncia de que

se as unidades satildeo absolutamente semelhantes umas agraves outras ao menos diferem entre si

em funccedilatildeo do espaccedilo O que assegura que a siacutentese dessa multiplicidade de unidades

similares entregue-nos um nuacutemero Alguma forma de retenccedilatildeo das unidades sucessivas

sua representaccedilatildeo simultacircnea em um espaccedilo ideal e homogecircneo que acompanha a siacutentese

da multiplicidade numeacuterica em unidade (BERGSON 2001 p 57-5853) Como observa

Bento Prado Juacutenior (1989 p 94) ldquoA enumeraccedilatildeo implica retenccedilatildeo e a retenccedilatildeo por sua

vez implica a siacutentese de instantes sucessivosrdquo no mesmo sentido Freacutedeacuteric Worms (2011

p 47) afirma que ldquoantes de adicionar eacute preciso conservarrdquo o que implica de um lado que

a repeticcedilatildeo nua das unidades natildeo seja jamais suficiente para formar um nuacutemero cuja

siacutentese estaacute a exigir a representaccedilatildeo simultacircnea e distinta da multiplicidade

Dessa maneira um espaccedilo ideal de justaposiccedilatildeo surge como coordenada essencial agrave

operaccedilatildeo de siacutentese numeacuterica eacute impossiacutevel apreender o todo pela mera repeticcedilatildeo ndash sem

nenhuma conservaccedilatildeo ndash de suas unidades ou partes integrantes Se de seu turno a adiccedilatildeo

parece ser uma experiecircncia eminentemente temporal se no-la representamos como uma

soma sucessiva Bergson afirmaraacute que se pode perceber exclusivamente no tempo uma

sucessatildeo mas jamais uma adiccedilatildeo uma sucessatildeo que culminasse em uma soma67

A

66

ldquoNous fucircmes tregraves frappeacute en effet de voir comment le temps reacuteel qui joue le premier rocircle dans toute

philosophie de lrsquoeacutevolution eacutechappe aux matheacutematiquesrdquo (BERGSON 2001 p 125402) 67

ldquoCertes il est possible drsquoapercevoir dans le temps et dans le temps seulement une succession pure et

simple mais non pas une addition crsquoest-agrave-dire une succession qui aboutisse agrave une sommerdquo (BERGSON

2001 p 5458-59) ademais Bergson (2001 p 5459) conclui que ldquo[]toute ideacutee claire du nombre implique

104

intervenccedilatildeo de uma representaccedilatildeo espacial eacute condiccedilatildeo do nuacutemero como eacute do simples ato

de contar

Se por um lado o nuacutemero supotildee a extensatildeo por outro supotildee a descontinuidade

Retornemos por um momento agrave definiccedilatildeo do nuacutemero como siacutentese do uno e do muacuteltiplo

ou como coleccedilatildeo de unidades Ao nos representarmos um nuacutemero acedemos agrave intuiccedilatildeo de

uma totalidade simples no entanto quando nos representamos o nuacutemero como um todo

formado de partes ndash as unidades que compotildeem o nuacutemero ndash notaremos que a unidade

conteacutem uma multiplicidade Portanto a unidade do espiacuterito que reuacutene as partes em um todo

depende do caraacuteter essencialmente divisiacutevel de suas partes isto eacute de uma multiplicidade

de base Essa multiplicidade de base compotildee-se de unidades que supomos idecircnticas e que

satildeo por sua vez divisiacuteveis ao infinito uma vez que sua representaccedilatildeo como totalidade

decorre tal como o nuacutemero que designa o conjunto que ela integra de um ato do espiacuterito

natildeo de uma ldquounidade definitivardquo

Eacute nesse ponto que Bergson comprova ainda uma vez a solidariedade entre o

conceito de nuacutemero sua propriedade de multiplicidade descontiacutenua e divisiacutevel e a

extensatildeo ldquoOr par cela mecircme que lrsquoon admet la possibiliteacute de diviser lrsquouniteacute en autant de

parties que lrsquoon voudra on la tient pour lrsquoeacutetenduerdquo (BERGSON 2001 p 5661)68

A

indivisibilidade das unidades que compotildeem o nuacutemero por serem extensas eacute sempre

precaacuteria provisoacuteria e resultante de um ato sinteacutetico do espiacuterito da mesma forma um

nuacutemero entendido como siacutentese de uma multiplicidade em certa unidade gozaraacute tambeacutem

ele de uma simplicidade exclusivamente provisoacuteria O nuacutemero portanto supotildee o espaccedilo

que eacute definido por Bergson (2001 p 6470) como a concepccedilatildeo de um meio vazio

homogecircneo Ao afirmar que o espaccedilo eacute a concepccedilatildeo de um meio vazio e homogecircneo

Bergson remete sua origem ndash e por extensatildeo a das representaccedilotildees que dele nascem ndash agrave

estrutura subjetiva

Esboccedilada a noccedilatildeo de nuacutemero eacute preciso servir-se dela para opor duas espeacutecies de

multiplicidade Quando ouvimos o som de passos agrave porta ou o badalo de sinos podemos

nos representar essa sensaccedilatildeo espacialmente dissociando-os uns dos outros ndash caso em que

por exemplo contamos os passos ou os toques ndash ou recolhemos a impressatildeo qualitativa e

indivisa que o nuacutemero exerce em noacutes Dessa maneira jaacute natildeo dissociamos em partes mas

nossa consciecircncia o recolhe como uma totalidade indivisa ldquoune multipliciteacute confuse de

une vision dans lrsquoespacerdquo atestando a relaccedilatildeo de pressuposiccedilatildeo necessaacuteria entre o nuacutemero e a concepccedilatildeo de

um espaccedilo ideal vocacionado agrave retenccedilatildeo por meio da justaposiccedilatildeo 68

Ou ainda ao afirmar que ldquo[] lrsquoespace est la matiegravere avec laquelle lrsquoesprit construit le nombre le milieu

ougrave lrsquoesprit la placerdquo (BERGSON 2001 p 5763)

105

sensations et de sentiments que lrsquoanalyse seule distinguerdquo (BERGSON 2001 p 5965)

Eis o que permite compreender por intermeacutedio do conceito de nuacutemero que haacute duas

espeacutecies de multiplicidade a dos objetos materiais que formam imediatamente nuacutemero e

a dos fatos de consciecircncia que por constituiacuterem uma multiplicidade natildeo numeacuterica soacute

podem traduzir-se em nuacutemero agraves custas da mediccedilatildeo simboacutelica que faz intervir o espaccedilo69

Como se caracteriza essa multiplicidade natildeo numeacuterica atribuiacuteda aos fatos da

consciecircncia Em primeiro lugar ao contraacuterio da multiplicidade numeacuterica ela se define

pela simplicidade e pela indivisibilidade constituiacuteda pela adiccedilatildeo sucessiva de elementos

em segundo lugar por sua natureza qualitativa e heterogecircnea como tal os sucessivos

acreacutescimos de elementos natildeo tornam essa multiplicidade maior mas provocam mudanccedilas

integrais de natureza no todo (WORMS 2011 p 52)

Eacute a partir dessa multiplicidade natildeo numeacuterica qualitativa simples indivisiacutevel e

heterogecircnea ndash depurada de toda mediaccedilatildeo simboacutelica que implicaria representar o tempo

como um espaccedilo vazio e homogecircneo onde vecircm ter lugar sucessivos estados de consciecircncia

ndash que se poderaacute remontar agrave duraccedilatildeo por uma entrada genuinamente psicoloacutegica e asceacutetica

Por isso Bergson (2001 p 6167) sugere ldquoNous allons donc demander agrave la conscience de

srsquoisoler du monde exteacuterieur et par un vigoreux effort drsquoabstraction de redevenir elle-

mecircmerdquo

Toda a anaacutelise do conceito de nuacutemero teria nos levado ao menos a colocar sob

suspeita a analogia entre multiplicidades numeacutericas e natildeo numeacutericas Isso se deve a termos

compreendido que as multiplicidades natildeo numeacutericas ao admitirem uma transcriccedilatildeo

simboacutelica pressupotildeem a mediaccedilatildeo simboacutelica do espaccedilo ndash condiccedilatildeo de possibilidade da

retenccedilatildeo por justaposiccedilatildeo e simultaneidade A fim de natildeo desertar o campo da experiecircncia

imaginemos um conjunto de corpos materiais Deles podemos dizer que se diferenciam

entre si em face de serem exteriores uns aos outros ocuparem posiccedilotildees diversas entre si no

espaccedilo afinal satildeo mutuamente impenetraacuteveis A fim de que possamos imaginaacute-los o

espaccedilo interveacutem imediatamente pois eles ocupam um certo fundo homogecircneo no seio do

69

Nesse ponto ndash que passamos a aprofundar em seguida concentrando-nos sobre o significado de

multiplicidade natildeo numeacuterica ndash Gilles Deleuze (1966 p 30-31) sintetiza as caracteriacutesticas da distinccedilatildeo entre

multiplicidades numeacuterica e natildeo numeacuterica ldquoLrsquoimportant crsquoest que la deacutecomposition du mixte nous reacutevegravele

deux types de lsquomultipliciteacutersquo Lrsquoune est representeacutee par lrsquoespace (ou plutocirct si nous tenons compte de toutes les

nuances par le meacutelange impur du temps homogegravene) crsquoest une multipliciteacute drsquoexterioriteacute de simultaneiteacute de

juxtaposition drsquoordre de diffeacuterenciation quantitative de diffeacuterence de degreacute une multipliciteacute numeacuterique

discontinue et actuelle Lrsquoautre se preacutesente dans la dureacutee pure crsquoest une multipliciteacute interne de succession

de fusion drsquoorganisation drsquoheacuteteacuterogeacuteneacuteiteacute de discrimination qualitative ou de diffeacuterence de nature une

multipliciteacute virtuelle et continue irreductible au nombrerdquo Por certo Deleuze introduz jaacute aqui as noccedilotildees de

atual e virtual das quais nos ocuparemos apenas mais adiante

106

qual se distinguem Poderemos aplicar a mesma loacutegica a estados de consciecircncia Imaginaacute-

los como corpos impenetraacuteveis uns aos outros destacando-se de um fundo temporal no

qual sucederiam Segundo Bergson fazecirc-lo suporia conceber o tempo como um meio

indefinido e homogecircneo isto eacute como ldquole fantocircme de lrsquoespace obseacutedant la conscience

reacutefleacutechierdquo (BERGSON 2001 p 6774)

Esta seria uma ideia demasiadamente superficial da duraccedilatildeo que no entanto

permite a Bergson enunciar desde logo ainda hipoteticamente duas concepccedilotildees possiacuteveis

de duraccedilatildeo a pura e a impura A primeira define-se como ldquola forme que prend la

succession de nos eacutetats de conscience quand notre moi se laisse vivre quand il srsquoabstient

drsquoeacutetablir une seacuteparation entre lrsquoeacutetat preacutesent et les eacutetats anteacuterieursrdquo (BERGSON 2001 p

6774-75) isto eacute ela se define pela experiecircncia concreta da duraccedilatildeo ndash o profundo sentir

escoar do tempo mas tambeacutem pela continuidade indivisiacutevel entre o que nos representamos

como estados psiacutequicos Que nosso eu se deixe viver ndash para perseguir a foacutermula

bergsoniana agrave la lettre ndash isso implica uma suspensatildeo da representaccedilatildeo o esforccedilo vigoroso

solicitado por uma consciecircncia que se torna ldquoela mesmardquo pura interioridade na

contracorrente da inteligecircncia analiacutetica enfim esforccedilo vigoroso em eximir-se de justapor

partes como quem apreende uma melodia como um todo contiacutenuo natildeo como um

acumulado de notas e tempos

Uma frase musical equivale agrave duraccedilatildeo da consciecircncia na medida em que pode ser

apreendida como um todo contiacutenuo se partes haacute penetraram-se fundiram-se no sentido do

todo ndash sentido qualitativo que seria alterado em sua natureza natildeo soacute em caso de adiccedilatildeo ou

subtraccedilatildeo de uma das partes mas em todo caso de anaacutelise compreendida como clara

distinccedilatildeo entre partes A inadequaccedilatildeo entre representaccedilatildeo e a sucessatildeo duracional de

estados psiacutequicos origina-se segundo Bergson em uma certa obsessatildeo pela inteligecircncia Eacute

possiacutevel que adoeccedilamos de representaccedilatildeo projetando toda duraccedilatildeo no espaccedilo converte-se

a sucessatildeo em simultaneidade ao contraacuterio de apreender o movimento real e profundo do

durar Como o fundo antropoloacutegico de Les Deux Sources sugeriraacute adiante a doenccedila de que

sofre o homem eacute segundo Lapoujade (2010 p 89) ldquosa normaliteacute mecircme Ce dont il

souffre crsquoest de son intelligence et des lsquorepreacutesentations du reacuteelrsquo qursquoelle impose agrave son

attentionrdquo

A duraccedilatildeo para Bergson pode assumir a imagem de uma frase musical apreendida

em sua integralidade ndash o que supotildee a conservaccedilatildeo e portanto certo niacutevel de memoacuteria deste

todo ndash retenccedilatildeo que jaacute natildeo eacute aprisionada pela representaccedilatildeo espacial como justaposiccedilatildeo ou

simultaneidade como ocorria agraves multiplicidades numeacutericas mas como sucessatildeo pura

107

percebida pela consciecircncia Ele natildeo cessaraacute de retornar a essa imagem musical da duraccedilatildeo

que tatildeo bem se harmoniza em um todo de sentido que acompanha o desenvolvimento de

uma linha meloacutedica em continuidade e heterogeneidade E porque uma melodia natildeo

poderia ser apreendida por uma representaccedilatildeo espacial Porque se em uma partitura

podemos inscrever os signos que nos remetem a certas notas e tempos que compotildeem

como partes no espaccedilo o desenvolvimento de uma linha meloacutedica esta natildeo passaraacute da

projeccedilatildeo espacializada e desnaturada dessa linha que soacute pode efetuar-se na duraccedilatildeo

Mesmo os ritmos as intensidades puras de uma muacutesica soacute podem ser apreendidos pela

experiecircncia simpaacutetica o que significariam nas partituras mesmas as infinitas variaccedilotildees de

allegro ndash como molto allegro allegro vivace allegro moderato allegro pesante ou allegro

maestoso Sabemos que entre eles se passam variaccedilotildees qualitativas mas somos incapazes

de compreender um andamento por meios simboacutelicos por mais vivamente que eles nos

possam sugeri-lo A partitura pode ser o mapa de uma canccedilatildeo mas natildeo pode ser mais que

seu mapa o fluxo duracional contiacutenuo que a efetuaccedilatildeo de uma linha meloacutedica requer para

constituir por muacutetua penetraccedilatildeo um todo de sentido eacute-lhe irredutiacutevel Haveria mais

profundamente que um Bergson matemaacutetico um Bergson muacutesico como uma intuitiva

variaccedilatildeo um Bergson chansonnier

Isso permite definir natildeo apenas a distinccedilatildeo entre duraccedilatildeo concreta (sucessatildeo sem

exterioridade) e tempo homogecircneo sobredeterminado por sua representaccedilatildeo no espaccedilo

(exterioridade sem sucessatildeo) mas chegar ao impasse do movimento o ponto culminante

da argumentaccedilatildeo de Bergson sobre a realidade e o sentido da duraccedilatildeo Aplicando a ele o

procedimento de divisatildeo do misto eacute possiacutevel notar que a experiecircncia da mobilidade

integra-se por uma componente espacial ndash cada uma das posiccedilotildees sucessivas que um moacutevel

ocupa no espaccedilo ndash e outra duracional ldquola sensation absolument indivisible de mouvement

ou de mobiliteacuterdquo (BERGSON 2001 p 7583) como a que experimentamos ao percebermos

subitamente uma estrela cadente Assim o movimento eacute um misto composto de espaccedilo

percorrido e ato de percorrer sucessivas posiccedilotildees

Os sofismas da escola de Eleia teriam surgido precisamente da confusatildeo das duas

componentes o que leva Zenatildeo a recompor os passos de Aquiles com os da tartaruga

embaralhar as escalas de movimentos simples e indivisiacuteveis desdobrando-os

matematicamente no espaccedilo instituindo desse modo um dos mais antigos paradoxos da

histoacuteria da filosofia A matemaacutetica ou qualquer outra forma de representaccedilatildeo por

simultaneidades por apreender o movimento exclusivamente por paradas imaginaacuterias ndash

afinal o moacutevel natildeo se deteacutem realmente em cada ponto do espaccedilo em que percorre mas

108

passa sem jamais parar ndash deixa de apreender o essencial do movimento para rebatecirc-lo

sobre uma simultaneidade de instantes igualmente imaginaacuterios que natildeo acidentalmente

possuem todas as caracteriacutesticas dos corpos materiais satildeo mutuamente impenetraacuteveis e

ocupam lugares diferentes no espaccedilo o que implica uma apreensatildeo simultacircnea desdobrada

no espaccedilo e natildeo sucessiva como totalidade indivisiacutevel Trata-se pois de uma

multiplicidade com exterioridade reciacuteproca e sem sucessatildeo tal como ocorreria com coisas

no espaccedilo Se Zenatildeo pode supor paradas imaginaacuterias de um moacutevel que passa sem jamais se

deter de fato em instante ou lugar algum eacute devido agrave espacializaccedilatildeo e agrave loacutegica de

simultaneidades implicada no proacuteprio ato de anaacutelise do ato do movimento que resulta em

desnaturar a mobilidade em trajetoacuteria descrita e o ato do movimento como ocorrido em

uma representaccedilatildeo espacial do tempo ora tatildeo vazio e homogecircneo quanto o espaccedilo

Natildeo nos enganemos esse tempo vazio homogecircneo e sem qualidades natildeo eacute apenas

o tempo de Zenatildeo mas tambeacutem a ciecircncia natildeo pode passar-se de um tempo que se limita a

contar simultaneidades como contamos a passagem do tempo segundo a mediccedilatildeo espacial

do deslocamento dos ponteiros de um reloacutegio70

Por essa razatildeo toda a mecacircnica precisa

erigir-se sobre um sistema referencial que para definir o tempo exige a simultaneidade de

intervalos de tempo iguais tanto no movimento uniforme quanto no movimento variado

Como distinguir movimento e duraccedilatildeo de suas simbolizaccedilotildees O que permite

distinguir por exemplo o movimento da linha que o moacutevel que o executa descreve no

espaccedilo Tanto a duraccedilatildeo quanto o movimento apresentam-se agrave nossa consciecircncia como

progressos sempre em vias de formaccedilatildeo pois movimento e duraccedilatildeo satildeo siacutenteses mentais

natildeo coisas natildeo eacute possiacutevel assimilar a duraccedilatildeo ndash multiplicidade heterogecircnea indistinta e

dessemelhante para com o nuacutemero ndash ao espaccedilo que comporta apenas multiplicidades

distintas (BERGSON 2001 p 8089) de maneira tal que a duraccedilatildeo implica multiplicidade

sem quantidade que soacute conteacutem o nuacutemero em potecircncia

Essa multiplicidade existe vive e dura como pura sucessatildeo sem exterioridade de

partes organizando-se penetrando-se formando uma continuidade indivisa que se

enriquece e muda agrave medida em que a experiecircncia se acumula na profundidade do eu

podendo a todo momento refratar-se no ponto em que nosso eu toca o mundo exterior de

forma superficial ela se modifica e desnatura ao traduzir-se em linguagem71

Enfim a vida

70

ldquo[] la science nrsquoopegravere sur le temps et le mouvement qursquoagrave la condition drsquoen eacuteliminer drsquoabord lrsquoeacutelement

essentiel et qualitatif ndash du temps la dureacutee et du mouvement la mobiliteacuterdquo (BERGSON 2001 p 7786) 71

ldquo[] toute sensation se modifie en se reacutepeacutetant et [] si elle ne me paraicirct pas changer du jour au lendemain

crsquoest parce que je lrsquoaperccedilois maintenant agrave travers lrsquoobjet qui en est cause agrave travers le mot qui la traduitrdquo

(BERGSON 2001 p 8798)

109

do proacuteprio sentimento que se desenvolve organicamente e muda sem cessar deve-se agrave

continuidade da duraccedilatildeo que conserva a chave da proacutepria liberdade e cujos momentos se

penetram e fundem em um todo de sentido Da mesma forma haacute uma vida obscura das

ideias e Bergson (2001 p 89100) admite que natildeo raro nos apegamos agravequelas que

podemos explicar com mais dificuldade

O espaccedilo que aplicado agrave vida da duraccedilatildeo ndash seu ser e seu sentido ndash a desnatura em

siacutembolos todavia natildeo constitui pura negatividade Uma vez que os animais provavelmente

natildeo representam como os homens Bergson entrevecirc na intuiccedilatildeo do espaccedilo homogecircneo uma

espeacutecie de preparaccedilatildeo para a vida social coalescente no Essai com o olhar avaliador

impessoal e afeto ao inerte analiacutetico do eu superficial Esta tendecircncia pela qual nos

representamos distintamente a exterioridade das coisas e a homogeneidade do meio

espacial em que se situam ldquoest la mecircme qui nous porte agrave vivre en commun et agrave parlerrdquo

(BERGSON 2001 p 91103) deve estar relacionada portanto agraves proacuteprias condiccedilotildees do

viver-junto Bergson observa que quanto mais completamente se realizem as condiccedilotildees da

vida social mais o eu superficial esconde o primeiro e mais e mais os estados que antes se

penetravam na profundidade iacutentima da consciecircncia satildeo exteriorizados e transformados em

representaccedilotildees distintas separados de noacutes Nessa medida o inumeraacutevel em profundidade ndash

que Lapoujade (2010 p 39) denomina ldquoun nombre confus ou obscur de la dureacuteerdquo ndash

conteacutem o nuacutemero em potecircncia nuacutemero efetuado por intermeacutedio da representaccedilatildeo O que

finalmente a representaccedilatildeo o siacutembolo a inteligecircncia e ndash para dizecirc-lo em uma soacute palavra ndash

a intervenccedilatildeo do espaccedilo na pura duraccedilatildeo separa de noacutes eacute o acesso agrave realidade da duraccedilatildeo

em profundidade acesso a esse niacutevel de nosso eu que corresponde a ldquocelui qui sent et se

passionne celui qui deacutelibegravere et se deacutecide [] une force dont les eacutetats et modifications se

peneacutetrent intimement []rdquo (BERGSON 2001 p 8393) e que jaacute natildeo mede a duraccedilatildeo mas

a sente sede subjetiva da liberdade

Dito isso pudemos compreender que a realidade e o todo de sentido do tempo que a

duraccedilatildeo implica decorrem de uma experiecircncia interior concreta apenas ela em primeiro

momento pode franquear-nos o acesso agrave duraccedilatildeo como totalidade orgacircnica jamais

totalizaacutevel pois aberta agrave sucessatildeo e agrave penetraccedilatildeo reciacuteproca que a enriquece continuamente

na fusatildeo de ldquomille sensations sentiments ou ideacuteesrdquo (BERGSON 2001 p 1513)

Se pudemos demonstrar a realidade e o sentido do tempo a partir do conceito de

duraccedilatildeo desprendida diretamente de uma experiecircncia interior cujo esforccedilo de ascese

Bergson natildeo cessa solicitar agrave consciecircncia eacute preciso amplificar essas conclusotildees em dois

110

pontos ao mesmo tempo em que avanccedilamos a anaacutelise na direccedilatildeo da passagem do ser

presente ao ser do passado O primeiro deles diz respeito ao estatuto marcadamente

presente da temporalidade desvelada pela experiecircncia concreta de duraccedilatildeo seria preciso

descobrir no ser presente e na atualidade que ela implica o ser do passado ainda que

momentaneamente dado como siacutentese interior a uma consciecircncia Por outro lado o

segundo ponto de ampliaccedilatildeo diz respeito ao estatuto psicoloacutegico da experiecircncia da

duraccedilatildeo Ao produzir uma distinccedilatildeo tatildeo precisa entre multiplicidades quantitativa e

qualitativa numeacuterica e natildeo numeacuterica e enfim entre tempo e espaccedilo eacute natural pensar que

Bergson exige uma consciecircncia preacutevia agrave constituiccedilatildeo da experiecircncia concreta ndash quando em

tudo trata-se justamente do inverso

sect 3 DO SER PRESENTE AO SER DO PASSADO

Em tudo o que dissemos sobre a duraccedilatildeo como experiecircncia psicoloacutegica pudemos

discernir dois tipos de multiplicidades uma numeacuterica outra natildeo numeacuterica Para

compreender como a experiecircncia duracional assinala jaacute uma passagem do ser presente ao

ser do passado ndash ainda que permaneccedilamos por ora no campo das siacutenteses da consciecircncia ndash

eacute necessaacuterio retomarmos dois tipos de conservaccedilatildeo que ocorrem uma no campo das

multiplicidades numeacutericas envolvendo objetos atuais e outra no das multiplicidades natildeo

numeacutericas envolvendo o virtual

Retornemos ao que Bergson explica sobre o mais simples ato de contar Viacuteamos

nesse sentido que uma tal siacutentese soacute eacute possiacutevel se supusermos uma consciecircncia que se

representa unidades precariamente indivisiacuteveis e absolutamente semelhantes dispostas no

espaccedilo de maneira descontiacutenua no entanto essa siacutentese mental natildeo pode reduzir-se a uma

repeticcedilatildeo nua das unidades caso contraacuterio seria impossiacutevel derivar o nuacutemero de uma soma

de unidades Para que isso seja factiacutevel eacute preciso representar as unidades como uma

multiplicidade simultacircnea e justapondo todas as unidades contemporaneamente no espaccedilo

efetuar a siacutentese que pela retenccedilatildeo de todas essas unidades pode apreendecirc-las de uma soacute

vez

Algo aparentemente semelhante parece operar no seio da duraccedilatildeo mas com

caracteriacutesticas que demonstramos serem absolutamente diferentes a organizaccedilatildeo de

estados de consciecircncia afecccedilotildees sensaccedilotildees colorantes ou musicais supotildeem igualmente

uma consciecircncia que jaacute natildeo efetua uma siacutentese mas opera deixando um instante penetrar

111

no outro indefinidamente estamos portanto diante do sentido sempre em vias de

formaccedilatildeo de uma multiplicidade de fusatildeo o que nos coloca frente a frente com o misteacuterio

de sua continuidade Percebemos facilmente que as multiplicidades numeacutericas satildeo

definidas pelas diferenccedilas de grau a adiccedilatildeo a subtraccedilatildeo e as siacutenteses representativas

envolvidas em uma mudanccedila de nuacutemero natildeo alteram sua natureza intimamente divisiacutevel

Entre uma unidade e outra continua a haver uma diferenccedila de grau que poderia sem

dificuldades ser resumida em uma diferenccedila na posiccedilatildeo que cada unidade ocupa no

espaccedilo o que implicaria sua justaposiccedilatildeo e simultaneidade Contudo o que assegura a

continuidade das multiplicidades qualitativas e sua compenetraccedilatildeo reciacuteproca em que toda

miacutenima variaccedilatildeo acarreta uma diferenccedila de natureza ndash vale dizer ndash uma alteraccedilatildeo

diferencial da curvatura da integral que a definiria

Eacute na obscura noccedilatildeo de continuidade que pela primeira vez viraacute inserir-se uma

necessaacuteria conexatildeo entre duraccedilatildeo e memoacuteria um dos conceitos que forjam o fio diretor da

presente pesquisa Talvez jaacute seja possiacutevel pressentir na ideia de continuidade da duraccedilatildeo a

necessidade de uma espeacutecie de memoacuteria ldquoil srsquoen faut que tous les eacutetats de conscience

viennent se mecircler agrave leur congeacutenegraveres comme des gouttes de pluie agrave lrsquoeau drsquoun eacutetangrdquo

escreve Bergson (2001 p 110-111125) A continuidade implica que o lago como a

duraccedilatildeo se acumule continuamente e amplie-se ao fundir-se no conjunto

Assim como eacute necessaacuterio reter unidades para contaacute-las e o fazemos jaacute no espaccedilo

natildeo seria preciso conservar os estados aniacutemicos anteriores como que agraves costas do

movimento invenciacutevel da sucessatildeo em direccedilatildeo ao devir Caso contraacuterio a ideia de

sucessatildeo passaria a ser para noacutes exclusivamente uma tediosa repeticcedilatildeo do presente como

apreenderiacuteamos uma frase musical ou a profundidade de um sentimento sem supor que a

continuidade implica jaacute uma ligaccedilatildeo entre presente e passado como registros da

realidade Mas se o conservamos seraacute da mesma forma como contamos justapondo

estados de consciecircncia no espaccedilo

Nada do que dissemos antes e no limite nenhum texto de Bergson autoriza uma

tal interpretaccedilatildeo Isso implicaria supor a existecircncia dos estados de consciecircncia como

corpos materiais impenetraacuteveis uns aos outros quando se trata precisamente de evitar

representaacute-los como desdobrando-se lado a lado em um tempo vazio homogecircneo e sem

qualidades ndash que finalmente natildeo passaria de uma representaccedilatildeo bastarda da duraccedilatildeo real

que apraz agrave inteligecircncia e agrave utilidade De uma perspectiva global todo o movimento de

paulatina suspensatildeo da representaccedilatildeo e da inteligecircncia nos dois primeiros capiacutetulos do

Essai tende a este limite conceber uma continuidade independente de coordenadas

112

espaciais apreendida conservada e integrada em uma totalidade movente de sentido

definida por sua abertura agrave sucessatildeo por um lado e dizendo respeito exclusivamente agrave

duraccedilatildeo que lhe serve de esteio imanente por outro

Se quisermos aproveitar a forccedila imageacutetica do exemplo da frase musical proposta

por Bergson concluiremos prontamente pela impossibilidade de justaposiccedilatildeo para

apreensatildeo de totalidades contiacutenuas de qualidades intensivas ou de diferenccedilas de natureza

Como Freacutedeacuteric Worms bem observa ao lado de uma passividade do espiacuterito que constitui

o iacutendice de receptividade da sensaccedilatildeo uma vez suspenso o ato de representaccedilatildeo deve

surgir um novo sujeito em profundidade paradoxalmente pessoal e impessoal capaz de um

ato de retenccedilatildeo que opera ldquoa passagem de uma passividade ou de um efeito sensiacutevel a

outrordquo (WORMS 2011 p 71) Decerto uma diferenccedila abissal persiste entre ouvir uma

nova nota que distinguimos claramente por um esforccedilo de anaacutelise e apreendecirc-la no

conjunto indivisiacutevel de uma melodia Neste caso ldquoa nota natildeo eacute somente lsquopassadarsquo ela

passou nas outras notas natildeo ocorreu apenas uma sucessatildeo mas uma continuaccedilatildeo uma

conservaccedilatildeo e uma integraccedilatildeordquo que se produziram no tempo e natildeo como ldquoconstruccedilotildees

abstratas de uma consciecircncia reflexa (ou de um pensamento exterior a seu conteuacutedo) uma

vez que impotildeem seu efeito a seu conteuacutedo mesmo como um sentido imanente ou uma

unidade indivisiacutevelrdquo (WORMS 2011 loc cit) Nesse aspecto Worms eacute ainda uma vez

categoacuterico ao afirmar que este ato de conservaccedilatildeo ldquoparece evocar a memoacuteriardquo (Idem

ibidem loc cit) A noccedilatildeo de continuidade interna agrave definiccedilatildeo de duraccedilatildeo permite-nos

dizer como vimos que nesse caso evocar a memoacuteria significa jaacute forccedilosamente

pressupocirc-la

Natildeo por outra razatildeo Gilles Deleuze tenderaacute a enxergar na continuidade implicada

pela duraccedilatildeo a imagem da memoacuteria ldquoLa dureacutee est essentiellement meacutemoire conscience

liberteacute Et elle est conscience et liberteacute parce qursquoelle est drsquoabord meacutemoirerdquo (DELEUZE

1966 p 45) A foacutermula deleuziana nesse aspecto natildeo poderia dar testemunho mais fiel do

bergsonismo Confirmando a adequaccedilatildeo da interpretaccedilatildeo deleuziana Bergson implicaraacute

mais claramente duraccedilatildeo e memoacuteria em LrsquoEacutenergie Spirituelle (1919) ldquoToute conscience

est donc meacutemoire ndash conservation et accumulation du passeacute dans le preacutesentrdquo (BERGSON

2001 p 81805) No entanto natildeo seria preciso ir tatildeo longe jaacute em 1896 em Matiegravere et

Meacutemoire era possiacutevel ler ldquoBref la meacutemoire sous ces deux formes en tant qursquoelle

recouvre drsquoune nappe de souvernirs un fond de perception immeacutediate et tant aussi qursquoelle

contracte une multipliciteacute de moments []rdquo (BERGSON 2001 p 18431) Da mesma

forma Vladimir Jankeacuteleacutevitch definia a memoacuteria natildeo como a obstinaccedilatildeo de nossas

113

experiecircncias em sobreviverem a si mesmas mas a partir da continuidade e da penetraccedilatildeo

muacutetua dos estados psicoloacutegicos ldquoelle est ce qui continue les uns agrave travers les autres les

innombrables contenus dont lrsquoensemble forme agrave tout moment lrsquoeacutetat actuel de notre

personne inteacuterieurerdquo (JANKEacuteLEacuteVITCH 2008 p 07)

Eis o que poderia bastar para comprovar que desde o Essai nem tudo se reduz ao

atual e ao presente na ideia de duraccedilatildeo embora a entrada bergsoniana pela pesquisa das

sensaccedilotildees arriscasse em princiacutepio iludir-nos do contraacuterio Descobrir o fundo mnemocircnico

no signo da continuidade da duraccedilatildeo coloca-nos de suacutebito na perspectiva da transiccedilatildeo

ontoloacutegica entre ser presente e ser do passado Natildeo se pode construiacute-la adequadamente no

entanto sem compreender de que modo nosso eu toca a superfiacutecie do real ou como

Bergson prefere colocar o problema que serve de pedra de toque agrave escritura de Matiegravere et

Meacutemoire como se daacute ldquoa relaccedilatildeo do corpo com o espiacuteritordquo Trata-se de saber se poderemos

tambeacutem aiacute descobrir uma passagem entre ser presente (atual) e ser do passado (virtual)

Eis a questatildeo pela qual se deve orientar o proacuteximo segmento de nossa pesquisa

Desde as primeiras linhas de Matiegravere et Meacutemoire engendra-se um movimento

conceitual que define um campo povoado de exterioridades onde tudo parece comeccedilar em

absoluto Como um duplo do gesto do Essai que solicitava um vigoroso esforccedilo agrave

consciecircncia para abolir tudo exceto sua interioridade suspendendo as representaccedilotildees

desde o iniacutecio de seu livro de 1896 Bergson pede que finjamos nada conhecer sobre as

teorias da mateacuteria e do espiacuterito Essa suspensatildeo implica afinar ingenuidade e intuiccedilatildeo que

natildeo estatildeo mais voltadas aos estados de consciecircncia mas abrem-se sobre um campo infinito

de imagens que digamos logo constitui em Bergson o todo do universo72

ldquoEacute preciso olhar

[] como se fosse a primeira vezrdquo (PRADO JUacuteNIOR 1989 p 136)

De seu turno Freacutedeacuteric Worms natildeo hesita em afirmar que o primeiro capiacutetulo de

Matiegravere et Meacutemoire ldquoDe la seacutelection des images pour la repreacutesentation du corpsrdquo funda-se

sobre um princiacutepio duplo de imanecircncia e diferenccedila ldquoimanecircncia (ou pertenccedila) das imagens

percebidas agrave realidade do mundo diferenccedila (de aspecto ou de forma devida a nossas

necessidades ou a nossa accedilatildeo) entre as imagens percebidas e a realidade do mundordquo

(WORMS 2011 p 135) Todavia para conjugar a imanecircncia das imagens e a diferenccedila

72

Seguimos nesse aspecto a interpretaccedilatildeo de Prado Juacutenior (1989 p 117) sobre a passagem do Essai a

Matiegravere et Meacutemoire como uma passagem do interno ao externo ldquoO Essai isolava a consciecircncia de toda

exterioridade para captar-lhe a duraccedilatildeo interna mostrando nela o selo da liberdade Mas a descoberta ficava

limitada agrave esfera que lhe servia de horizonte a subjetividade humana finita Agora eacute necessaacuterio ampliar o

campo da Presenccedila para aleacutem dos estreitos limites da presenccedila interna e verificar o modo de inserccedilatildeo da

liberdade no interior do serrdquo

114

que a percepccedilatildeo engendra eacute preciso antes de tudo gerar ndash natildeo um sujeito portador da

consciecircncia mas o genuiacuteno sujeito do campo transcendental bergsoniano o corpo73

Bergson propotildee a suspensatildeo do intelecto ao mesmo tempo em que reorienta a

intuiccedilatildeo do interno na direccedilatildeo do externo ndash natildeo passariacuteamos tambeacutem aqui do psicoloacutegico

em direccedilatildeo ao ontoloacutegico Momentaneamente com Bento Prado Juacutenior jaacute podemos

pressenti-lo ldquoA passagem da psicologia agrave metafiacutesica eacute uma passagem do lsquointeriorrsquo ao

lsquoexteriorrsquo que ao mesmo tempo elimina a oposiccedilatildeo absoluta entre os dois termos

fazendo-os nascer de uma familiaridade mais profundardquo (PRADO JUacuteNIOR 1989 p 119)

Com essa suspensatildeo dos conceitos preacute-formados e com a reorientaccedilatildeo de nossa tensatildeo para

o fora tudo o que Bergson eacute capaz de constatar logo se transforma em uma surpreendente

descriccedilatildeo do universo em termos de imagens ldquoMe voici donc en preacutesence drsquoimages au

sens plus vague ougrave lrsquoon puisse prendre ce mot images perccedilues quand jrsquoouvre mes sens

inaperccedilus quand je les fermerdquo (BERGSON 2001 p 16911)

Desenvolvendo esse olhar exterior que permite compreender o universo como um

conjunto de imagens eacute possiacutevel perceber a dinacircmica que parece envolvecirc-las

indistintamente ldquoToutes ces images agissent et reacuteagissent les unes sur les autres dans

toutes leurs parties eacuteleacutementaires selon des lois constantes []rdquo (BERGSON 2001 p

16911) Uma dentre essas imagens destaca-se do conjunto embora tenha sua gecircnese nele

ldquoce que je ne la connais pas seulement du dehors par des perceptions mais aussi du dedans

par des affections crsquoest mon corpsrdquo (Idem ibidem loc cit) e passando em revista a cada

uma de suas afecccedilotildees eacute possiacutevel perceber que provenientes de estiacutemulos de fora elas

contecircm como que convites a agir sobre certa regiatildeo do real das imagens Isso implicaraacute que

se todas as imagens exteriores parecem submeter-se homogeneamente agraves leis da natureza

de tal forma que agindo umas sobre as outras nada de novo acrescentariam no mundo o

corpo-imagem bergsoniano percebido do interior por meio de afecccedilotildees sensaccedilotildees

sentimentos e lembranccedilas como o modelo de outros corpos-imagens aparece ao mesmo

tempo como centro de accedilatildeo sobre as demais imagens e a um soacute tempo como centro de

indeterminaccedilatildeo74

Se as afecccedilotildees e sensaccedilotildees percepcionadas nada mais satildeo do que accedilotildees e reaccedilotildees

internas a esse conjunto de imagens tudo o que compotildee um corpo ndash dos nervos aferentes

73

ldquoNatildeo haacute outro sujeito senatildeo o corpordquo afirma Worms (2011 p 145) ao tratar da gecircnese da percepccedilatildeo em

Bergson 74

ldquoTout se passe comme si dans cet ensemble drsquoimages que jrsquoappelle lrsquounivers rien ne se pourrait produire

de reacuteellement nouveau que par lrsquointermeacutediaire de certaines images particulieacuteres dont le type mrsquo est fourni

par mon corpsrdquo (BERGSON 2001 p 17012)

115

ao ceacuterebro como centros organizados de accedilatildeo e indeterminaccedilatildeo ndash bem como tudo o que

vindo de fora produz nele uma afecccedilatildeo constituem partes integrantes do conjunto de

imagens do universo75

Nessa medida se interpretamos este corpo-imagem como um

centro de accedilatildeo sobre as demais imagens compreenderemos a sua singularidade pragmaacutetica

(WORMS 1997 p 21) incapaz de fazer nascer uma representaccedilatildeo como desdobramento

ideal do entorno de imagens Talvez seja importante perceber que Bergson utiliza a noccedilatildeo

de imagem ndash algo que seria menos que uma coisa e mais que uma representaccedilatildeo ndash

justamente a fim de assinalar que esse campo transcendental constitui-se sem sujeito ou

objeto ndash objeto para um sujeito A realidade das imagens tomada no princiacutepio do campo

transcendental designa apenas potenciais de um corpo-imagem e das imagens que fazem

parte de seu mundo circundante ao mesmo tempo em que o integram em sua estrutura

imanente de realidade

Apenas em meio a esse universo de imagens eacute que se poderaacute distinguir o proacuteprio

corpo sua singularidade sensiacutevel eacute o que conservaraacute uma percepccedilatildeo em potecircncia na

medida em que o corpo constitui uma imagem que banhada de outras imagens difere

delas em grau na medida em que natildeo se o conhece exclusivamente de fora Eacute apenas nesse

niacutevel que um corpo-imagem pode ser considerado centro de um sistema mais abrangente

de imagens Natildeo haacute representaccedilatildeo outrossim porque na medida em que o corpo integra o

universo de imagens natildeo haacute qualquer desdobramento de realidade Por isso do ponto de

vista loacutegico o ceacuterebro natildeo pode ser a sede de representaccedilotildees do mundo afinal o que a

hipoacutetese inicial das imagens deseja eacute obstruir toda duplicaccedilatildeo eacute manter-se fiel agrave imanecircncia

de uma soacute estrutura de realidade composta por imagens76

Eacute certo que Bergson observa as

imagens transmitirem movimentos de uma a outra das imagens exteriores ao corpo-

imagem sendo impossiacutevel supor que haja mais nesse corpo ndash seja uma representaccedilatildeo de

uma imagem com a qual natildeo tem contato ou mesmo uma representaccedilatildeo do todo ndash do que

aquilo que constitui o conteuacutedo imediato desse corpo as modificaccedilotildees produzidas pelas

images environnantes e aquilo que o corpo-imagem lhes devolve em termos de

movimentos

75

ldquoMon corps est donc dans lrsquoensemble du monde mateacuteriel une image qui agit comme les autres images

recevant et rendant du mouvement avec cette seule diffeacuterence peut-ecirctre que mon corps paraicirct choisir dans

une certaine mesure la maniegravere de rendre ce qursquoil reccediloitrdquo (BERGSON 2001 p 17114) e ainda ldquoMon

corps objet destineacute agrave mouvoir des objets est donc un centre drsquoactionrdquo (BERGSON 2001 p 17214) ldquoO

corpo eacute uma imagem como as outrasrdquo atesta Worms (2011 p 140) 76

ldquoIl faut donc extirper tout de suite [] le vice logique de la thegravese des savants parce qursquoelle implique une

thegravese ontologique ou meacutetaphysique celle de lrsquoexistence drsquoun deuxiegraveme niveau de realiteacute [] celui de la

reacutepresentationrdquo (WORMS 1997 p 27)

116

Logo se percebe que o corpo eacute passivo e ativo sensoacuterio e motor Na medida em que

haacute universo de imagens exteriores corpo-imagem ndash compreendido como imagem que

experimento por dentro ndash e uma seacuterie de imagens particulares decalcadas do universo

exterior por esse corpo-imagem veremos que interveacutem um terceiro conjunto um conjunto

de imagens particulares em razatildeo de seu contato com o corpo Ainda aqui natildeo haacute nenhuma

interioridade representaccedilatildeo ou desdobramento do real universo de imagens corpo-

imagem e conjunto particular de imagens para um corpo pertencem a uma soacute estrutura de

realidade Notamos outrossim que eacute a accedilatildeo de um corpo sobre as imagens que o rodeiam

e nas quais ele incessantemente se banha que orienta certa ldquopercepccedilatildeordquo o fato de que

certo conjunto de imagens eacute para um corpo um conjunto particular recortado do todo de

imagens Contudo natildeo se produz uma gecircnese adequada da percepccedilatildeo sem saber como ela

estaacute ligada a essa destinaccedilatildeo praacutetica do corpo

Tomando-os no campo transcendental viacuteamos que eacute a accedilatildeo e certo grau de

indeterminaccedilatildeo orgacircnica ndash que introduz o novo ndash que permite afirmar certa situaccedilatildeo

privilegiada do corpo em relaccedilatildeo agraves outras imagens Nesse sentido Bergson deduz a

relaccedilatildeo entre corpo e universo de imagens definida simbolicamente por um conjunto

particular de imagens decalcado do todo das muacuteltiplas vias de accedilatildeo possiacuteveis para um

corpo77

Tais possiacuteveis escapam agrave determinaccedilatildeo riacutegida da influecircncia das outras imagens

mas relacionam-se imediatamente agrave accedilatildeo real Com efeito o corpo decide entre vaacuterios

procedimentos materialmente possiacuteveis e esta decisatildeo eacute orientada pelas necessidades

praacuteticas e vantagens que esse corpo-imagem pode obter das imagens que o circundam

responde portanto agrave utilidade e agrave vida desenhando uma relaccedilatildeo pragmaacutetica entre corpo e

imagens circundantes78

Contudo como um corpo poderia fazecirc-lo sem jaacute se representar

esses possiacuteveis Como imagens sugerem vantagens a um corpo A vantagem ou a utilidade

praacutetica eacute decalcada das imagens circundantes pelo corpo ao passo em que tais imagens as

desenham superficialmente sobre a face que elas voltam para um corpo-imagem como se

emitissem signos que adquirissem para ele um sentido vital Os desenhos superficiais

desses potenciais de accedilatildeo adquirem um sentido que natildeo revela a totalidade da relaccedilotildees de

um dado corpo no universo de imagens de que participa mas prefiguram objetivamente um

ponto de vista que o enriquece e que o faz tomar parte em um conjunto particular de

77

ldquo[] si mon corps est un objet capable drsquoexercer une action reeacutelle et nouvelle sur les objets qui lrsquoentourent

il doit occuper vis-agrave-vis drsquoeux une situation privileacutegieacuteerdquo (BERGSON 2001 p 17214-15) 78

Freacutedeacuteric Worms (1997 p 31) reforccedila essa relaccedilatildeo entre os possiacuteveis da accedilatildeo e a utilidade vital ldquo[] ces

possibles ne sont pas des possibles abstraits ils sont rapporteacutes agrave lrsquoaction crsquoest-agrave-dire agrave la vie et au besoin et

non au choix purrdquo

117

imagens Poreacutem como esse conjunto de imagens ldquointeressantesrdquo objetos para um corpo

ao passo em que estaacute sujeito agrave sua accedilatildeo se desenha como tal Natildeo encontrariacuteamos aqui

uma evocaccedilatildeo da proacutepria percepccedilatildeo como conjunto de objetos para um corpo decalcado do

campo transcendental

Os signos que certa imagem interessante emite satildeo variaacuteveis em relaccedilatildeo ao corpo

Bergson observa que essa variaccedilatildeo se deve sobretudo agrave variaccedilatildeo de uma relaccedilatildeo de

distacircncia que acontece na pura exterioridade79

Eis o que permite entrever o primado que o

bergsonismo concede agrave relaccedilatildeo de distacircncia a um soacute tempo espacial e pragmaacutetica em

relaccedilatildeo aos objetos sobre toda qualidade sensiacutevel Ao mesmo tempo em que as qualidades

sensiacuteveis variam em funccedilatildeo da distacircncia ldquoassegurando os objetos contra a accedilatildeo imediata

de meu corpordquo os objetos que cercam esse corpo refletiriam a sua accedilatildeo possiacutevel sobre eles

Por essa razatildeo haveria uma relaccedilatildeo de correspondecircncia simboacutelica entre corpo e um

conjunto particular de imagens circundantes que Worms (1997 p 33) resume na imagem

de um ldquoreflet sans regardrdquo na falta de um sujeito desse corpo-a-corpo entre imagens que

natildeo eacute mais que uma relaccedilatildeo de exterioridade pura ldquocomme si lrsquoobjet de la vision en

preacuteceacutedait le sujetrdquo e no entanto tudo o que vimos designa um universo jaacute organizado pela

accedilatildeo do corpo Todavia resta explicar como as coisas podem por si mesmas adquirir um

sentido

Isso se deve agrave correspondecircncia real entre os movimentos concretos que ocorrem no

sistema nervoso e a exterioridade das coisas Eacute preciso provar que a sede da percepccedilatildeo eacute

mais o universo de imagens que o interior de um corpo que tanto o decalque das imagens

pelo recorte perceptivo operado no universo de imagens como o reflexo que as imagens

que o circundam oferecem de suas accedilotildees possiacuteveis pertence ao proacuteprio campo de imagens

Trata-se enfim de precisar o lugar da percepccedilatildeo na realidade A experiecircncia pela qual

Bergson procura demonstraacute-lo eacute a do corte de nervos aferentes do sistema ceacuterebro-

espinhal suprimindo assim a percepccedilatildeo Para compreender o que se passou

reconsideremos os trecircs sistemas de imagens universo conjunto de imagens circundantes e

corpo-imagem Cada um deles permanece o que era antes A uacutenica diferenccedila estaacute no fato

de que a ligaccedilatildeo entre corpo e mundo foi seccionada isto eacute jaacute natildeo eacute possiacutevel a um corpo

decalcar por meio do sistema sensoacuterio-motor os movimentos ocorram eles em qualquer

regiatildeo do universo de imagens Por essa razatildeo Bergson (2001 p 17316) conclui que isso

79

ldquo[] jrsquoobserve que la dimension la forme la couleur mecircme des objets exteacuterieurs se modifient selon que

mon corps srsquoen approche ou srsquoen eacuteloigne [] que cette distance elle-mecircme repreacutesente surtout la meacutesure dans

laquelle les corps environnants sont assureacutes en qualque sorte contre lrsquoaction immeacutediate de mon corpsrdquo

(BERGSON 2001 p 17215)

118

soacute pode significar que a percepccedilatildeo traccedila no conjunto de imagens ldquocomo uma sombra ou

um reflexordquo as accedilotildees possiacuteveis de um corpo Eis o que permitiraacute definir a mateacuteria

provisoriamente como ldquolrsquoensemble drsquoimagesrdquo e a percepccedilatildeo como ldquoces mecircmes images

rapporteacutees agrave lrsquoaction possible drsquoune certaine image determineacute mon corpsrdquo (BERGSON

2001 p 17317) Isso natildeo apenas prova a existecircncia independente das imagens em relaccedilatildeo

agrave toda percepccedilatildeo consciente mas permite deduzir que a percepccedilatildeo eacute funccedilatildeo das imagens

de seus movimentos reais enfim da mateacuteria

Se pudemos compreender a gecircnese da percepccedilatildeo no universo de imagens e em que

medida os movimentos reais satildeo efetivamente percepcionados fizemo-lo como um estaacutegio

necessaacuterio para entrever a passagem entre ser presente e ser do passado na proacutepria

percepccedilatildeo Ateacute aqui brindamo-nos com uma percepccedilatildeo impessoal natildeo-subjetiva e

correspondente aos movimentos materiais A fim de encontrar no campo perceptivo o

ponto mais claro em que vem inserir-se a memoacuteria eacute indispensaacutevel que compreendamos a

gecircnese da consciecircncia isto eacute eacute preciso investigar se e como as imagens podem dar conta

de uma percepccedilatildeo consciente Conveacutem lembrar que realizamos com Bergson o

contramovimento do Essai vamos do exterior ao interior a fim de compreender como uma

memoacuteria pode introduzir-se nas percepccedilotildees mais imediatas naquilo que parece mais atual

e dessa forma favorecer a passagem que visamos a construir do atual em direccedilatildeo ao

virtual nos sucessivos cruzamentos entre registros psicoloacutegico e ontoloacutegico

Pode-se adiantar que para engendrar a consciecircncia de um campo de imagens

Bergson precisaraacute deduzir toda experiecircncia sensorial da accedilatildeo do corpo pela mediccedilatildeo do

ceacuterebro ndash que natildeo a produz ndash fazendo intervir uma teoria da percepccedilatildeo pura (WORMS

1997 p 37)

De tudo o que viacuteamos especialmente da experiecircncia do corte de nervos aferentes

do sistema ceacuterebro-espinhal eacute possiacutevel deduzir que o ceacuterebro e tal sistema permanecem

materiais constituem como partes integrantes do corpo-imagem tambeacutem eles imagens e

desempenham uma funccedilatildeo de mediaccedilatildeo entre os movimentos da mateacuteria e a accedilatildeo possiacutevel

de nosso corpo sobre ela o que designa a percepccedilatildeo Eacute possiacutevel perceber ainda que essa

funccedilatildeo mediadora origina uma seleccedilatildeo possiacutevel que daacute ao corpo um conjunto de imagens

circundantes sobre o qual ele poderia agir o que implica reconhecer que a accedilatildeo organiza a

seleccedilatildeo das imagens e de consequecircncia a proacutepria percepccedilatildeo Nesse patamar Bergson

adianta uma tese de LrsquoEacutevolution Creacuteatrice afirmando que entre os extremos da seacuterie

animal o sistema nervoso seraacute construiacutedo a fim de engendrar a indeterminaccedilatildeo da accedilatildeo e

119

inibir o automatismo80

Se a percepccedilatildeo estaacute fundada neste sistema orientado para a accedilatildeo

seria possiacutevel estender essa hipoacutetese agrave percepccedilatildeo ndash percebemos a fim de agir e agimos

com um grau cada vez maior de indeterminaccedilatildeo Dela Bergson deduziraacute a necessidade de

uma percepccedilatildeo consciente

No iniacutecio da seacuterie animal perceberemos que a percepccedilatildeo reduz-se a um simples

contato ao qual se segue imediatamente uma resposta organizada quase como um impulso

mecacircnico que mimetizasse na mateacuteria organizada as accedilotildees e reaccedilotildees de imagens materiais

umas sobre as outras contudo agrave medida em que a indeterminaccedilatildeo insere-se entre contato-

excitaccedilatildeo e accedilatildeo do corpo correspondente a reaccedilatildeo torna-se mais incerta dando mais lugar

agrave hesitaccedilatildeo e aumentando o intervalo entre a accedilatildeo possiacutevel do animal e os objetos

interessantes com efeito os sentidos permitem ir cada vez mais longe Por isso Bergson

(2001 p 18329) escreveraacute que ldquola perception dispose de lrsquoespace dans lrsquoexacte

proportion ougrave lrsquoaction dispose du tempsrdquo isto eacute a percepccedilatildeo se amplifica agrave razatildeo direta do

tempo de hesitaccedilatildeo que a indeterminaccedilatildeo injeta entre estiacutemulo e accedilatildeo Contudo como essa

indeterminaccedilatildeo deveraacute implicar consciecircncia e por que a consciecircncia parece nascer dos

movimentos interiores do ceacuterebro Eis o momento em que a teoria da percepccedilatildeo pura deve

interferir

Em primeiro lugar Bergson a admite como uma simplificaccedilatildeo das condiccedilotildees da

percepccedilatildeo consciente pois segundo ele ldquoEn fait il nrsquoy a pas de perception qui ne soit

impregneacutee de souvenirsrdquo (BERGSON 2001 p 18330) eles definem os milhares de

detalhes de nossa experiecircncia passada que vem misturar-se agrave percepccedilatildeo de uma imagem

atual Sem por ora extrair daiacute todas as consequecircncias conveacutem observar que isso permite

entrever de imediato uma necessaacuteria passagem entre ser presente e ser do passado no seio

da experiecircncia real de uma percepccedilatildeo consciente da mesma forma permite destacar as

lembranccedilas que aiacute intervecircm de certo fundo psicoloacutegico Em segundo lugar por meio dessa

hipoacutetese ideal da percepccedilatildeo pura e impessoal Bergson deseja mostrar que ela estaacute na base

de nosso conhecimento das coisas ao mesmo tempo em que evitaria confundir percepccedilatildeo e

lembranccedila como fenocircmenos que comportariam apenas uma diferenccedila de grau como se a

lembranccedila fosse uma percepccedilatildeo de menor intensidade Se Bergson insiste em ver aqui uma

diferenccedila de natureza eacute por utilizar o estratagema da percepccedilatildeo pura para dividir um misto

da experiecircncia concreta a percepccedilatildeo consciente que nos faraacute retornar sobre a perspectiva

de uma continuidade dos estados conscientes Para compreendecirc-lo dinamicamente e a fim

80

ldquo[] le systhegraveme nerveux est construit drsquoun bout agrave lrsquoautre de la seacuterie animale en vue drsquoune action de

moins en moins neacutecessaire []rdquo (BERGSON 2001 p 18127)

120

de que possamos perceber como a memoacuteria se insere em uma percepccedilatildeo instantacircnea

atenhamos-nos por um momento agrave experiecircncia concreta de uma percepccedilatildeo consciente ao

misto indiferenciado de objetividade e subjetividade que ela supotildee ldquoSi court qursquoon

suppose une perception en effet elle occupe toujours une certaine dureacutee et exige par

conseacutequent un effort de la meacutemoire qui prolonge les uns dans les autres une pluraliteacute de

moments Mecircme [] la lsquosubjectiviteacutersquo de qualiteacutes sensibles consiste surtout dans une espegravece

de contraction du reacuteel opereacutee par notre meacutemoirerdquo (BERGSON 2001 p 18430-31)

Reencontramos na experiecircncia concreta da percepccedilatildeo consciente um misto de duraccedilatildeo e

espaccedilo de mateacuteria e memoacuteria e uma continuidade de penetraccedilatildeo entre um momento e

outro isto eacute algo que evoca duas formas de memoacuteria as lembranccedilas que recobrem uma

percepccedilatildeo imediata e a memoacuteria como contraccedilatildeo de uma multiplicidade de momentos que

fundam ldquoa subjetividade das qualidades sensiacuteveisrdquo A memoacuteria e a subjetividade

encontram-se natildeo em uma interioridade qualquer mas nessa espessura de duraccedilatildeo

irredutiacutevel a um instante que haacute pouco nomeaacutevamos continuidade ndash prova de que

Bergson permanece ainda no mesmo universo de imagens inicialmente dado

Retornemos agora agrave hipoacutetese da percepccedilatildeo pura ciosos de seu valor esquemaacutetico

Com ela Bergson toca o proacuteprio conceito de real aprofundando o sentido do termo

imagem Dado um universo de imagens entre as quais um corpo o real eacute definido antes

pelo potencial das accedilotildees reciacuteprocas entre corpo-imagem e universo de imagens que pelo

conjunto especiacutefico Vimos ainda que esse potencial de accedilatildeo varia em funccedilatildeo das

distacircncias entre corpo e universo de imagens entre imagem-centro e a definiccedilatildeo variaacutevel

das imagens em sua periferia Em razatildeo de ser-nos imediatamente impossiacutevel agir sobre

certa imagem ndash distante demais de nosso corpo logo ausente do recorte que desenha nosso

potencial de accedilatildeo sobre as coisas cujas superfiacutecies emanam seus reflexos ndash isso significa

apenas que esta imagem existindo realmente deixou de ser efetivamente percebida Ela

permanece presente sem ser percebida ao passo em que sobre ela natildeo somos capazes de

nenhum potencial de accedilatildeo imediato No entanto se nosso corpo banhado por imagens

caminhar em sua direccedilatildeo diminuir a distacircncia relativa que o separa dela subitamente ela

passaria a existir para ele e talvez a interessaacute-lo Se tomarmos esse corpo-imagem

banhado de imagens como referecircncia diremos que a accedilatildeo potencial em relaccedilatildeo a certo

conjunto de imagens define objetos para esse corpo Com isso percebemos que o atual

condiz com a efetuaccedilatildeo desse potencial de accedilatildeo que transforma uma imagem em uma

percepccedilatildeo que reflete um potencial de accedilatildeo cuja contiacutenua variaccedilatildeo corresponde agraves

variaccedilotildees qualitativas desse corpo De outro lado ao compreendermos que o real natildeo

121

depende da percepccedilatildeo mas estaacute dado na existecircncia da imagem aquelas que natildeo integram o

recorte interessante sobre cujas superfiacutecies natildeo se desenha qualquer potencial de accedilatildeo de

meu corpo teraacute em relaccedilatildeo a ele uma realidade virtual que consiste em ser sem serem

atualmente percebidas Eis um importante registro de uma ontologia do virtual que

Bergson resume em foacutermulas muito breves81

e que por forccedila de uma analogia

desencadearaacute em relaccedilatildeo agrave memoacuteria uma seacuterie de consequecircncias metafiacutesicas que natildeo nos

cabe adiantar

Verifiquemos em que consiste a diferenccedila entre ser e ser percebido De um ponto

de vista loacutegico Bergson pode antecipar que haacute mais em ser que em ser percebido de tal

forma que a representaccedilatildeo comporta uma diminuiccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave imagem Caso

contraacuterio a passagem entre ser e ser percebido nas condiccedilotildees de um campo transcendental

tal como Bergson o supotildee se tornaria senatildeo impossiacutevel misteriosa Sua explicaccedilatildeo sobre a

dinacircmica dessa diminuiccedilatildeo demanda que tomemos uma imagem pela qual nos

interessamos vivamente Olhando-a no conjunto vemo-la como uma imagem solidaacuteria agrave

totalidade das imagens ora se continuando em algumas ora se prolongando outras No

entanto para representaacute-la para nos interessarmos por ela como operamos Recortamo-la

do conjunto abolindo sua solidariedade contiacutenua para com outras imagens materiais assim

como se podem produzir quadros no cinema82

Dela conservamos apenas ldquola croucircte

exteacuterieure la pellicule superficiellerdquo (BERGSON 2001 p 18633) suprimindo o que a

antecede o que a segue mas tambeacutem seu conteuacutedo isolando seu invoacutelucro por meio do

obscurecimento de seu entorno A representaccedilatildeo designa este resiacuteduo o que resta quando

esvaziamos uma imagem devido a nossas necessidades e funccedilotildees Daiacute porque natildeo haveria

diferenccedila de natureza mas apenas de grau para as imagens entre o fato de simplesmente

ldquoseremrdquo e o de serem conscientemente percebidas ndash uma imagem soacute seraacute atual ou virtual

na medida em que acentuamos o papel do corpo na seleccedilatildeo das imagens e no que respeita

agrave mateacuteria exclusivamente em relaccedilatildeo a ele83

81

ldquoIl est vrai qursquoune image peut ecirctre sans ecirctre perccedilue elle peut ecirctre preacutesente sans ecirctre repreacutesenteacutee et la

distance entre ces deux termes preacutesence et repreacutesentation paraicirct justement mesurer lrsquointervalle entre la

matiegravere elle-mecircme et la perception consciente que nous en avonsrdquo (BERGSON 2001 p 18532) 82

Embora Bergson utilize a metaacutefora do quadro natildeo emprega a do enquadramento no cinema ela nos parece

adequada sobretudo no sentido em que Deleuze a utiliza em seus livros sobre cinema reconhecidamente

inspirados no bergsonismo a fim de esclarecer o conceito de quadro ou enquadramento como um recorte

perceptivo de um universo de imagens Sobre este aspecto conferir Lrsquoimage-mouvement cineacutema 1

(DELEUZE 1983 p 23-45) 83

Eacute precisamente isto o que Deleuze (1966 p 50) assinala no que denomina ldquoa diferenccedila entre ser e ser uacutetilrdquo

(percebido) ldquo[] dans ce cas lrsquoecirctre est seulement celui de la matiegravere ou de lrsquoobjet perccedilu donc un ecirctre

preacutesent qui nrsquoa pas agrave se distinguer de lrsquoutile autrement qursquoen degreacuteerdquo

122

Se imaginaacutessemos portanto uma percepccedilatildeo inconsciente e outra consciente de uma

imagem material deveriacuteamos afirmar que a primeira por natildeo eliminar todas as relaccedilotildees da

imagem no seio contiacutenuo das imagens que conformam a mateacuteria eacute mais vasta que a

percepccedilatildeo consciente que discerne distingue e elimina visando agrave utilidade e agrave necessidade

vital que se do ponto de vista do conhecimento adequado do real implica revestir toda

representaccedilatildeo de negatividade do ponto de vista pragmaacutetico perfaz uma escolha positiva

A explicaccedilatildeo de Bergson (2001 p 19139) funda-se na dependecircncia entre ceacuterebro e

imagem como funccedilatildeo de ldquolrsquoindeacutetermination du vouloirrdquo Diziacuteamos haacute pouco que o sistema

nervoso composto pelo conjunto formado pelo ceacuterebro e suas vias de recepccedilatildeo e resposta

exerce uma funccedilatildeo mediadora entre as imagens do universo e um corpo essa funccedilatildeo estaacute

intimamente vinculada ao movimento que liga as imagens umas agraves outras na exterioridade

de forma tal que sua funccedilatildeo eacute transmitir distribuir ou inibir movimentos84

Com efeito

quando um desses fios mediadores eacute cortado a percepccedilatildeo eacute diminuiacuteda e com ela pode-se

dizer que tambeacutem os movimentos que um certo corpo pode produzir em virtude de

estiacutemulos eacute reduzido pelo menos em funccedilatildeo de uma impossibilidade de coordenaacute-los dada

a ausecircncia ou diminuiccedilatildeo da percepccedilatildeo de certos movimentos Isso eacute o que autoriza a

compreender o sistema nervoso como um sistema sensoacuterio-motor ele natildeo apenas

transmite distribui e inibe movimentos mas constitui o centro de indeterminaccedilatildeo dos

movimentos do proacuteprio corpo que integra eacute nesse centro que ldquoles perceptions naissent et

que les actions se preparentrdquo (BERGSON 2001 p 19646)

Tudo isso equivale a dizer que a correspondecircncia que identificaacutevamos entre

configuraccedilatildeo motora do sistema nervoso e percepccedilatildeo exterior daacute-se entre imagens de

mesma natureza (ceacuterebro e imagem exterior) tambeacutem que as percepccedilotildees conscientes se

formam ali onde estaacute a imagem em sua superfiacutecie Se isto for verdade embora perceptos e

afetos possam misturar-se na experiecircncia concreta percepccedilotildees natildeo podem confundir-se

com afecccedilotildees Enquanto vimos que as percepccedilotildees se efetuam em relaccedilatildeo ao corpo

agenciado com a imagem mas fora dele as afecccedilotildees satildeo produzidas em um ponto

determinado de um corpo derivadas de um misto entre corpo e imagens exteriores85

E no

84

Bergson assinala a correspondecircncia entre configuraccedilotildees motrizes do ceacuterebro e percepccedilatildeo exterior

deixando entrever a funccedilatildeo eletiva dos centros de indeterminaccedilatildeo ldquo[] comme la structure du cerveau donne

le plan minutieux des mouvements entre lesquels vous avez le choix comme drsquoun autre cocircteacute la portion des

images exteacuterieurs qui paraicirct revenir sur elle-mecircme pour constituer la perception dessine justement tous les

points de lrsquounivers sur lesquels ces mouvements auraient prise perception consciente et modification

ceacutereacutebrale se correspondent rigoureusementrdquo (BERGSON 2001 p 190-19139) 85

ldquo[] ma perception est en dehors de mon corps et mon affection au contraire dans mon corpsrdquo

(BERGSON 2001 p 205-20658) e ainda logo adiante ldquoLrsquoaffection est [] ce que nous mecirclons de

123

entanto as afecccedilotildees tambeacutem surgem das imagens como contato entre imagens extensas

expostas agraves forccedilas do meio que ameaccedilam desagregaacute-las Se a percepccedilatildeo era funccedilatildeo da accedilatildeo

potencial de um corpo sobre certo conjunto de imagens recortados do universo material em

dois sentidos ndash como nosso corpo pode agir sobre as coisas mas tambeacutem como as coisas

podem agir sobre ele ndash a distacircncia entre corpo e imagens definia a iminecircncia de

atualizaccedilatildeo desse potencial de accedilatildeo Se corpo e imagem entram em contato a distacircncia

entre as superfiacutecies dos corpos anula-se e a accedilatildeo virtual tende a atualizar-se por uma

coincidecircncia extensa entre corpo e objeto Daiacute porque dizer que a percepccedilatildeo eacute exterior e a

afecccedilatildeo interior ao corpo natildeo sendo mais que o esforccedilo do corpo-imagem sobre si mesmo

Com efeito quando a superfiacutecie do corpo toca a superfiacutecie do objeto supomos percebecirc-lo

quando na verdade uma afecccedilatildeo vem misturar-se agrave percepccedilatildeo como uma impureza

Todo esse longo desvio teria nos dado esquematicamente a teoria da percepccedilatildeo

pura sua divisatildeo em relaccedilatildeo agraves afecccedilotildees bem como uma ideia de consciecircncia derivada dos

corpos vivos considerados como centros de indeterminaccedilatildeo ndash ou como Bergson talvez por

comodidade muitas vezes se expresse ldquovontaderdquo86

Impessoal ela se limitaria por

enquanto a ligar ldquopar le fil continu de la meacutemoirerdquo uma seacuterie de visotildees instantacircneas

dadas pela percepccedilatildeo pura que tanto faria parte das coisas como dos corpos orgacircnicos que

as percebem (BERGSON 2001 p 21267) Segundo essa perspectiva os corpos vivos

receberiam excitaccedilotildees elaborariam reaccedilotildees imprevisiacuteveis por meio de uma escolha que

embora indeterminada natildeo se afigura por isso arbitraacuteria ou caprichosa afinal seria

inspirada em experiecircncias passadas de situaccedilotildees anaacutelogas agrave atualmente percebida

ldquoLrsquoindeacutetermination des actes agrave accomplir exige donc pour ne pas se confondre avec le pur

caprice la conservation des images perccediluesrdquo (BERGSON 2001 p 21367) e portanto

implicaria uma espeacutecie de memoacuteria na ausecircncia da qual perderiacuteamos segundo Bergson

todo poder de dispor do futuro

Por isso retornando agrave direccedilatildeo da experiecircncia concreta que nos doava a percepccedilatildeo

de um objeto atual fundindo-se em milhares e milhares de lembranccedilas sensaccedilotildees e

lrsquointerieur de notre corps agrave lrsquoimage des corps exteacuterieurs elle est ce qursquoil faut extraire drsquoabord de la perception

pour retrouver la pureteacute de lrsquoimagerdquo (BERGSON 2001 p 20659) 86

Como Deleuze (1966 p 47-48) observa com propriedade natildeo se trata de compreender nesse estaacutegio da

pesquisa bergsoniana uma consciecircncia psicoloacutegica e pessoal mas uma consciecircncia coextensiva aos corpos

orgacircnicos e impessoal que oferece uma ldquolinha de subjetividaderdquo que introduziraacute a duraccedilatildeo ao lado da ldquolinha

objetivardquo que corresponde agrave extensatildeo agraves imagens e ao corpo-imagem Segundo Deleuze ambas as linhas agraves

quais correspondem lembranccedila e percepccedilatildeo subjetivo e objetivo bem como o seu cruzamento na afecccedilatildeo

resultariam da divisatildeo do misto que a representaccedilatildeo implica No entanto no estaacutegio da divisatildeo do misto

trata-se de linhas puras que natildeo devem ser embaralhadas

124

sentimentos conveacutem notar que uma tal descriccedilatildeo suporaacute a conservaccedilatildeo das imagens

passadas misturando-se agrave percepccedilatildeo presente na medida da utilidade que lhe suscita a

vivecircncia atual de situaccedilotildees anaacutelogas87

Eacute nessa medida que uma lembranccedila se atualizaria

por um chamado agrave utilidade no presente de tal forma que perceber tornar-se-ia uma

ldquooportunidade de lembrarrdquo Percepccedilatildeo e lembranccedila natildeo cessam de interpenetrarem-se e

fundirem-se na experiecircncia concreta por isso a teoria da percepccedilatildeo pura natildeo passa de uma

hipoacutetese ou de um esquema para dividir o misto precisando a existecircncia de uma diferenccedila

de natureza e natildeo apenas de grau entre percepccedilatildeo e lembranccedila ou exprimindo essa

diferenccedila de natureza em outras palavras eacute preciso evitar compreender a lembranccedila como

uma percepccedilatildeo enfraquecida quando eacute claramente inadequado explicar um conceito pelo

outro pelo simples fato de misturarem-se na experiecircncia concreta

Um dos grandes perigos da confusatildeo de que Bergson (2001 p 21470)

prontamente adverte eacute viciar a teoria da memoacuteria ignorando a diferenccedila entre presente e

passado que embora tenham igualmente realidade como veremos teriam mantida esta

ilusatildeo seus registros embaralhados ao infinito88

No fundo o que a teoria da percepccedilatildeo

pura pretendia estabelecer era a radical diferenccedila de natureza entre percepccedilatildeo e lembranccedila

de tal forma que a realidade pudesse ser ldquotocada penetrada e vividardquo sem construccedilotildees ou

reconstruccedilotildees efetuadas pelo espiacuterito Entretanto na realidade nunca haacute percepccedilatildeo pura

absolutamente imediata porque o instantacircneo que ela supotildee abstratamente para tornar-se

eficaz e tocar as superfiacutecies das coisas mesmas jamais existe como tal isto eacute sempre ocupa

uma duraccedilatildeo cuja continuidade engendra segundo o fio da memoacuteria a subjetividade e a

consciecircncia que faz penetrar essas sucessotildees em um todo contiacutenuo Assim ldquo[] il nrsquoy a

jamais pour nous drsquoinstantaneacute Dans ce que nous appelons de ce nom entre deacutejagrave un travail

de notre meacutemoire et par conseacutequent de notre conscience []rdquo (BERGSON 2001 p 216-

217 72)

Sempre misturada a ela na experiecircncia concreta a memoacuteria eacute praticamente

inseparaacutevel portanto da percepccedilatildeo Ateacute aqui sua funccedilatildeo eacute a de realizar uma passagem

entre o passado e o presente a memoacuteria ldquointercale le passeacute dans le preacutesent contract aussi

dans une intuition unique des moments multiples de la dureacutee et ainsi par sa double

87

Sobre a funccedilatildeo pragmaacutetica da conservaccedilatildeo das imagens passadas Bergson (2001 p 21368) afirma

sinteticamente que ldquoelles ne se conservent que pour se rendrent utiles agrave tout instant elles compleacutetent

lrsquoexpeacuterience preacutesente en lrsquoenrichissant de lrsquoexpeacuterience acquiserdquo e a um soacute tempo esta se acumula e cresce

sem cessar 88

Por essa razatildeo Bergson nos previne ldquoMais cette illusion en recouvre encore une autre qui srsquoeacutetend agrave la

theacuteorie de la connaissance en geacuteneacuteral [] Lrsquoactualiteacute de notre perception consist donc dans son activiteacute

dans les mouvements qui la prolongent et non dans sa plus grande intensiteacute le passeacute nrsquoest qursquoideacutee le preacutesent

est ideacuteo-moteurrdquo (BERGSON 2001 p 21571)

125

opeacuteration est cause qursquoen fait nous percevons dans la matiegravere en nous alors qursquoen droit

nous la percevons en ellerdquo (BERGSON 2001 p 219-22076) Isto significa que a memoacuteria

comunica agrave percepccedilatildeo seu caraacuteter subjetivo espiritual cuja realidade precisamos ainda

que brevemente demonstrar

126

CAPIacuteTULO 5 ndash MEMOacuteRIA FUNDAMENTO DO TEMPO

Falaacutevamos da existecircncia de certo procedimento de construccedilatildeo de passagens entre

psicologia e ontologia no bergsonismo como se Bergson esburacasse um campo a fim de

aceder ao outro mostrando entre eles uma obscura coextensatildeo Os uacuteltimos segmentos

conceituais permitiram abrir pela via psicoloacutegica um acesso agrave duraccedilatildeo real e logo aos

primeiros problemas de uma ontologia realizando o contramovimento abrimos por um

cruzamento entre psicologia e ontologia uma via na qual se engendrou o esquema da

percepccedilatildeo pura a passagem entre ser presente e ser do passado o que nos conduziu a

colocar-nos precisamente a questatildeo da realidade da memoacuteria

A fim de nos mantermos leais a Bergson natildeo podemos abandonar o campo

transcendental tampouco o gesto de absoluta imanecircncia exigido por ele A hipoacutetese central

deste capiacutetulo ndash que tende a problematizar brevemente a realidade virtual da memoacuteria ndash eacute a

de que em Bergson a memoacuteria natildeo pode reduzir-se agraves lembranccedilas de natureza

psicoloacutegica haveria consequecircncias mais amplas envolvidas pelo conceito como uma

memoacuteria ontoloacutegica que eacute o fundamento do desenrolar do tempo89

Em siacutentese a memoacuteria

eacute o que faz o presente passar e nessa medida ela seria mesmo por extensatildeo loacutegica o

fundamento do devir Finalmente tratar-se-aacute de conciliar memoacuteria e duraccedilatildeo solucionando

o problema que nos potildeem alguns textos de Bergson sobre o pluralismo ou o monismo da

concepccedilatildeo de duraccedilatildeo tomada agora segundo uma perspectiva mais ampla para aleacutem da

duraccedilatildeo meramente psicoloacutegica Enfim tudo se resume agrave demonstraccedilatildeo da existecircncia de

uma memoacuteria ontoloacutegica coalescente ao conceito de duraccedilatildeo contemporacircnea ao presente

a fim de deduzir daiacute a impossibilidade de reduzir em Bergson memoacuteria agrave memoacuteria

psicoloacutegica pessoal90

Comecemos por demonstrar a realidade da memoacuteria acompanhando

89

Nesse ponto nossa hipoacutetese tenderaacute a demonstrar a afirmaccedilatildeo que consta igualmente em Le Bergsonisme

de Gilles Deleuze (1966 p 55) bem como na passagem da segunda siacutentese do tempo de Diffeacuterence et

Reacutepeacutetition em que Deleuze (2006 p 124) evocando Bergson afirma ldquoO fundamento do tempo eacute a Memoacuteria

[] a Memoacuteria eacute a siacutentese fundamental do tempo que constitui o ser do passado (o que faz passar o

presente)rdquo 90

Essa reduccedilatildeo eacute o motor declarado da criacutetica que Maurice Halbwachs antigo aluno de Bergson e disciacutepulo

de Durkheim endereccedilava ao bergsonismo em Les Cadres Sociaux de la Meacutemoire (HALBWACHS 1994) e

ulteriormente em La Meacutemoire Collective (Idem 1997) a fim de estabelecer um fundamento social para a

memoacuteria individual ao contraacuterio de deduzir ndash como teria feito Bergson segundo este seu ceacutelebre leitor ndash a

memoacuteria social da individual Embora natildeo convenha que nos ocupemos aqui detalhadamente desta longa e

proliacutefica polecircmica eacute interessante anotar que Worms (2011 p 172) a soluciona no interior da proacutepria obra de

Bergson entrevendo no dualismo da memoacuteria que Bergson desenvolveraacute nos capiacutetulos centrais de Matiegravere et

Meacutemoire a individualidade da lembranccedila pura em seu conteuacutedo global com a unicidade de um

acontecimento em uma vida como ligada agrave passagem do tempo ldquoCom efeito para se lembrar do individual

Bergson eacute o primeiro a mostrar que se tem necessidade de um auxiliar presente pragmaacutetico socialrdquo E

127

os principais desenvolvimentos dos capiacutetulos centrais de Matiegravere et Meacutemoire a fim de

chegar agrave sua consistecircncia virtual

sect 1 O PROBLEMA DO RECONHECIMENTO

O CEacuteREBRO E AS DUAS MEMOacuteRIAS

Jaacute se afirmou que os dois capiacutetulos centrais de Matiegravere et Meacutemoire formam uma

unidade que natildeo admite interpretaccedilatildeo descontiacutenua91

Isso decorre do fato de que a

demonstraccedilatildeo da realidade da memoacuteria em sua consistecircncia virtual depende de um

dualismo mais profundo ao qual natildeo se pode aceder plenamente apenas com o conceito de

percepccedilatildeo pura Nesse sentido vimos que a percepccedilatildeo pura corresponde agrave realidade

espacial da mateacuteria povoando um registro de imagens em si mesmas atuais que natildeo

cessam de repetir-se no presente O movimento geral dos dois capiacutetulos centrais do livro de

Bergson tende a demonstrar dois tipos de reconhecimento que estatildeo em uacuteltima anaacutelise

fundados nesse dualismo a construir no proacuteprio seio da memoacuteria a fim de completar a

descriccedilatildeo do papel do ceacuterebro com relaccedilatildeo ao reconhecimento de imagens bem como de

desconstruir a tese do paralelismo psicofiacutesico ndash que ao inveacutes de compreender a

solidariedade entre o ceacuterebro e o pensamento em seus proacuteprios termos deduziria uma

correspondecircncia mecacircnica entre estado psiacutequico e estado cerebral ocultando consciente

ou inconscientemente teses metafiacutesicas (BERGSON 2001 p 959-960188) O progresso

dessas anaacutelises das quais destacaremos mais o solo metafiacutesico que o epistecircmico ndash do qual

nos permitiremos extrair apenas o essencial para fundar os argumentos de Bergson ndash nos

levaraacute a seu tempo ao questionamento sobre a realidade do virtual sobre o modo de ser

especiacutefico da memoacuteria pura um dos termos revelados pelo dualismo bergsoniano

Com efeito os fenocircmenos de reconhecimento e uma seacuterie de patologias

relacionadas a ele satildeo tomados de empreacutestimo agraves descriccedilotildees dos estudiosos da fisiologia

do ceacuterebro de uma psicologia que no fim do seacuteculo XIX buscava afirmar-se como

ciecircncia mas tambeacutem da medicina formando o solo comum experimental para que Bergson

completa ldquo[] se haacute necessidade de uma ocasiatildeo presente fiacutesica ou social imagem ou relato natildeo se segue

que o conteuacutedo da lembranccedila seja individual psicoloacutegico e passado a lembranccedila ressuscita a individualidade

ou natildeo ressuscita nada eacute preciso tecirc-la vividordquo Embora natildeo seja esta nossa direccedilatildeo principal um obscuro

diaacutelogo com as premissas que Halbwachs extraiu da leitura de Bergson ndash sobretudo a da natureza

eminentemente psicoloacutegica da memoacuteria em sua obra ndash pode encontrar aqui um campo para seu

estabelecimento Eacute necessaacuterio sobretudo refazer o longo caminho do qual deriva essa sinteacutetica objeccedilatildeo que

lhe fizera Freacutedeacuteric Worms 91

ldquoIl est impossible drsquoenvisager seacutepareacutement les deux chapitres centraux de Matiegravere et Meacutemoirerdquo (WORMS

1997 p 91)

128

pudesse examinar concretamente suas teses valendo-se da interpretaccedilatildeo dessas

observaccedilotildees De nossa parte utilizaremos dessas descriccedilotildees apenas o que for necessaacuterio

para demonstrar a base experimental das distinccedilotildees operadas por Bergson afinal a

experiecircncia concreta aqui natildeo eacute senatildeo um instrumento para demonstrar uma tese

ontoloacutegica que ocupa o coraccedilatildeo de Matiegravere et Meacutemoire a da realidade virtual da memoacuteria

a discussatildeo de sua conservaccedilatildeo em si e sua principal distensatildeo o papel que ela

desempenha como fundamento do tempo que nos permite destituir as relaccedilotildees entre tempo

e instantacircneo retornando a um conceito de duraccedilatildeo ontologicamente ampliado

Para introduzir no seio da memoacuteria e de suas relaccedilotildees com o ceacuterebro um dualismo

que resulta do procedimento de divisatildeo do misto empiacuterico Bergson retoma algumas

conclusotildees do primeiro capiacutetulo e brinda-nos com o desenvolvimento de uma ideia de

corpo ainda pensada no campo transcendental mas agora desenvolvida sub specie

durationis O que vem a ser o corpo-imagem assim pensado Entre imagens o corpo natildeo

faz mais que identificar movimentos e transmiti-los mas tambeacutem recolhecirc-los e conservaacute-

los sob a forma de mecanismos motores que seratildeo determinados no caso de reaccedilotildees

involuntaacuterias a estiacutemulos ou escolhidos ndash em virtude do maior proveito pragmaacutetico e em

concorrecircncia com as lembranccedilas ndash no caso de accedilatildeo voluntaacuteria Bergson estaacute a descrever

uma forma de memoacuteria orgacircnica atuante no corpo-imagem que reuacutene essa seacuterie de

impressotildees na medida em que se produzem de tal modo que o corpo seraacute natildeo mais do que

um corte instantacircneo que praticamos no devir em geral (BERGSON 2001 p 22381) O

corpo corresponde a uma espeacutecie de uacuteltima imagem que pensada de direito constituiria o

limite ideal entre o futuro de nossas accedilotildees e o passado de nossas lembranccedilas Consistindo

desse ponto de vista em uma espeacutecie de corpo-limiar essa descriccedilatildeo do corpo-imagem

indicaria de antematildeo o papel que o ceacuterebro desempenha como mediador entre as

representaccedilotildees passadas de nosso organismo e um presente indubitavelmente real que

solicita a nossa accedilatildeo o corpo seria uma espeacutecie de uacuteltima imagem de uacuteltimo

prolongamento das representaccedilotildees em movimentos preparatoacuterios bem como primeiro

prolongamento destes em accedilotildees nascentes Sua hipoacutetese sobre a sobrevivecircncia das imagens

poderaacute ser entatildeo deduzida mediante a suposiccedilatildeo da destruiccedilatildeo dessa ligaccedilatildeo uma vez

cortada a conexatildeo orgacircnica entre nossas representaccedilotildees e o real permanecem no entanto

existentes o corpo-imagem e o universo de imagens no qual este se banha como natildeo

permaneceriam tambeacutem as imagens do passado As lesotildees cerebrais porque dizem

respeito ao elo entre lembranccedilas que podem ser chamadas a agir no presente e este mesmo

129

presente natildeo podem abolir nem as imagens do passado nem as do presente mas a

conexatildeo entre umas e outras isto eacute afetando um aparelho sensoacuterio-motor cujos

movimentos desenham accedilotildees nascentes possiacuteveis no espaccedilo natildeo se abole por completo

nem a linha de objetividade nem a de subjetividade nem as imagens atuais nem o que

podemos chamar precaacuteria e indistintamente de imagens do passado ou lembranccedilas Uma

conexatildeo que diz respeito ao corpo-imagem eacute abolida e isso eacute tudo

Essa descriccedilatildeo leva Bergson (2001 p 224-22582-83) a formular trecircs hipoacuteteses 1ordf)

Uma vez que o corte da conexatildeo implica aboliccedilatildeo natildeo das imagens do passado tampouco

da memoacuteria motora do corpo mas de sua capacidade de tornar essas imagens ndash lembranccedilas

ou motoras ndash eficazes seria possiacutevel dizer que o passado sobrevive de dois modos nos

mecanismos motores (memoacuteria do corpo) e em lembranccedilas independentes (memoacuteria pura)

2ordf) Com base nisso seria possiacutevel deduzir que o reconhecimento das imagens e sua

consequente utilizaccedilatildeo no presente deve efetuar-se tambeacutem de duas formas ora na proacutepria

accedilatildeo por movimentos quando emana do objeto ora no passado por representaccedilotildees

quando emana do sujeito 3ordf) A experiecircncia do corte da conexatildeo ou da lesatildeo cerebral nos

mostraria que se passa por graus insensiacuteveis das lembranccedilas dispostas ao longo do tempo

aos movimentos que desenham sua accedilatildeo possiacutevel no espaccedilo de tal forma que as lesotildees

atingem esses movimentos mas natildeo as lembranccedilas ndash sejam elas motoras ou imagens saiacutedas

do passado Percebe-se nesse sentido que a despeito de Bergson considerar a realidade

em si mesma da memoacuteria atraveacutes dessas proposiccedilotildees bem como a independecircncia de sua

existecircncia em relaccedilatildeo ao corpo sua formulaccedilatildeo permanece intrinsecamente fundada em

uma hipoacutetese bioloacutegica Na medida em que os mecanismos cerebrais constituem o uacuteltimo

prolongamento da seacuterie de nossas representaccedilotildees passadas e dessa forma as medeiam e

inserem na accedilatildeo presente basta cortar essa ligaccedilatildeo e ldquolrsquoimage passeacutee nrsquoest peut-ecirctre pas

deacutetruite mais vous lui enlevez tout moyen drsquoagir sur le reacuteel et par conseacutequent [] de se

reacutealiserrdquo (BERGSON 2001 p 22583) A primeira proposiccedilatildeo segundo a qual o passado

pode sobreviver distintamente em mecanismos motores e em lembranccedilas independentes

deve ser objeto de verificaccedilatildeo ndash seguindo sua tradicional forma de demonstraccedilatildeo pela

experiecircncia e de divisatildeo do concreto depurado de acordo com um dualismo

A descriccedilatildeo de Bergson apoia-se na experiecircncia do aprendizado de uma liccedilatildeo a fim

de compreender a persistecircncia de duas formas de memoacuteria que podemos adiantar

convencionaremos nomear ldquomemoacuteria do corpordquo e ldquomemoacuteria purardquo Ao estudar uma liccedilatildeo

um aluno organiza sua retenccedilatildeo progressivamente por meio de repeticcedilotildees pode analisaacute-la

130

dividi-la em partes escandi-la e como fruto de sucessivas leituras ele percebe que as

partes organizam-se cada vez melhor ateacute o ponto em que saberaacute suas liccedilotildees de cor

Se examinaacutessemos as fases implicadas no aprendizado dessa liccedilatildeo descobririacuteamos

que duas formas de memoacuteria agem em sua base Podemos compreender o aprendizado

como a realizaccedilatildeo de cada uma das sucessivas leituras de tal forma que cada leitura

manifestaraacute uma singularidade proacutepria como um acontecimento determinado em nossa

vida No entanto se aprendemos de cor ndash isto eacute pela repeticcedilatildeo de um esforccedilo de

decomposiccedilatildeo e recomposiccedilatildeo ndash transformamos a liccedilatildeo em um haacutebito Portanto o

primeiro tipo de memoacuteria realiza o registro imediato de um evento uacutenico irrepetiacutevel ou

ldquodatadordquo o acontecimento eacute registrado como uma leitura em particular apreendida em sua

singularidade proacutepria o segundo tipo de memoacuteria que transforma a liccedilatildeo em um haacutebito

desenha a apreensatildeo do todo por meio de uma accedilatildeo ou de um esforccedilo por ldquoimprimirrdquo a

liccedilatildeo na memoacuteria para poder revisitaacute-la quando bem quisermos de acordo com nossa

conveniecircncia ou com sua utilidade no segundo caso o haacutebito de memorizar uma liccedilatildeo

conforma-se segundo sua utilidade futura

Todavia que diferenccedila e sobretudo que tipo de diferenccedila poderiacuteamos descobrir

nessas memoacuterias Entre elas haveria uma mera diferenccedila de grau ou uma diferenccedila de

natureza Para respondecirc-lo encaminhando-nos um passo aleacutem na construccedilatildeo do dualismo

entre memoacuteria do corpo e memoacuteria pura seria preciso observar como se constituem haacutebito

(lembranccedila da liccedilatildeo) e lembranccedila (lembranccedila das leituras) A lembranccedila da leitura deve-se

a uma inscriccedilatildeo imediata do evento na duraccedilatildeo natildeo supotildee uma accedilatildeo mas um registro

duracional tal como registramos um acontecimento em nossas vidas imediatamente como

mera representaccedilatildeo trata-se portanto de uma lembranccedila menos impessoal que constitui

nossa histoacuteria passada segundo uma memoacuteria espontacircnea ou perfeita A lembranccedila da

liccedilatildeo sua transformaccedilatildeo em haacutebito exige por outro lado uma atitude um esforccedilo voltado

para accedilatildeo para o presente Natildeo se trata de uma memoacuteria de registro passiva que decorre

da inscriccedilatildeo de um acontecimento irrepetiacutevel na duraccedilatildeo mas eacute fundada na repeticcedilatildeo em

um investimento inteligente tornando uma seacuterie de movimentos coordenados passados em

um acuacutemulo presente motor Assim aprendemos a liccedilatildeo de cor natildeo basta repeti-la eacute

preciso reintegrar toda a seacuterie de repeticcedilotildees a fim de formar um todo de sentido e apreendecirc-

lo Trata-se de uma memoacuteria agida no presente vivida Quando aprendemos algo de cor

significa que tivemos de empreender o esforccedilo de substituir uma imagem espontacircnea

(memoacuteria pura) por uma motora (memoacuteria do corpo) (BERGSON 2001 p 23190-91)

131

Essas breves consideraccedilotildees tornam possiacutevel conceber duas memoacuterias teoricamente

distintas ldquoLa premieacutere enregistrerait sous forme drsquoimages souvenirs tous les eacuteveacutenements

de notre vie quotidienne agrave meacutesure qursquoils se deacuteroulentrdquo (BERGSON 2001 p 22786)

Memoacuteria perfeita de singularidades ela natildeo negligencia nenhum detalhe e atribui a cada

acontecimento seu lugar e data Ela se deveria de acordo com Bergson agrave necessidade

natural de tornar possiacutevel o reconhecimento inteligente de situaccedilotildees jaacute experimentadas

informando a accedilatildeo presente Poreacutem para isso ela tem de passar pelo corpo e encontrar

nele o seu derradeiro prolongamento aquele que a torna eficaz desenhando jaacute accedilotildees

nascentes no espaccedilo Nesse ponto encontramos a segunda forma de memoacuteria que se

caracteriza pela deposiccedilatildeo no corpo de uma seacuterie de mecanismos sensoacuterio-motores cujas

respostas e amplitude de estiacutemulo multiplicam-se agrave razatildeo direta do enriquecimento de

nossa experiecircncia vivida Eacute preciso lembrar poreacutem que esta consiste em uma experiecircncia

de ordem inteiramente distinta da primeira e no entanto implica uma memoacuteria de

natureza correspondentemente diversa ldquocette conscience de tout un passeacute drsquoefforts

emmagasineacute dans le preacutesent est bien encore une meacutemoire mais une meacutemoire

profondeacutement diffeacuterente de la premiegravere toujours tendue vers lrsquoaction assise dans le

preacutesent et ne regardant que lrsquoavenirrdquo (BERGSON 2001 p 22786)

Entre memoacuteria pura e memoacuteria do corpo verificamos existir portanto uma

diferenccedila de natureza natildeo de grau e seu criteacuterio praacutetico diferencial eacute o sentido em que se

opera o registro92

No caso da memoacuteria pura o registro se opera no sentido das

singularidades de nossa vida pessoal povoada de acontecimentos uacutenicos e faticamente

irrepetiacuteveis no fundo eacute a sua inscriccedilatildeo na duraccedilatildeo real que assegura sua irrepetibilidade

embora eventos similares sempre possam voltar a ocorrer no espaccedilo e talvez destaquem

uacutetil e excepcionalmente do fundo da memoacuteria pura uma lembranccedila que venha em seu

socorro93

No caso da memoacuteria do corpo haacute um registro mais excepcional ndash porque ativo ndash

decorrente do esforccedilo de repeticcedilatildeo voltado para a accedilatildeo ou para o presente de tal modo que

se depositam em mecanismos sensoacuterio-motores sob a forma de um acuacutemulo que constitui o

haacutebito Como as lembranccedilas aprendidas satildeo mais uacuteteis eacute natural repararmos mais nos

registros produzidos pela memoacuteria do corpo que naqueles frutos da memoacuteria pura

92

ldquo[] comment ne pas reconnaicirctre que la diffeacuterence est radicale entre ce qui doit se constituer par la

reacutepeacutetition et ce qui par essence ne peut se reacutepeacuteterrdquo pergunta-se Bergson (2001 p 22988) como iacutendice do

criteacuterio distintivo por natureza das duas memoacuterias 93

Bergson precisa a excepcionalidade do haacutebito em relaccedilatildeo ao registro passivo de singularidades na duraccedilatildeo

operada pela memoacuteria pura ldquoLes souvenirs qursquoon acquiert volontairement par reacutepetition sont rares

exceptionnels Au contraire lrsquoenregistrement par la meacutemoire de faits et drsquoimages en leurs genre se porsuit agrave

tous les moments de la dureacuteerdquo (BERGSON 2001 p 228-22988)

132

Entretanto essas definiccedilotildees reenviam a dois outros problemas primeiro o que justifica a

percepccedilatildeo e a formaccedilatildeo de haacutebitos motores Segundo como as lembranccedilas-imagens

entram nos esquemas da utilidade no presente Natildeo seriam elas intrinsecamente inuacuteteis

uma vez que os haacutebitos motores mostram-se suficientes agrave vida adaptada de qualquer

organismo94

Esses satildeo precisamente os problemas que se encontram por traacutes do

mecanismo do reconhecimento mas para compreendecirc-los eacute preciso voltar ao corpo e a seu

significado liminar

Quando pensado sub specie durationis Bergson dizia natildeo entrever no corpo-

imagem mais do que um limite movente entre passado e futuro Afinal tomado como

limiar duracional extenso o corpo-imagem natildeo pode consistir em nada aleacutem de uma

imagem atual banhada de outras imagens atuais e apreendida em uma representaccedilatildeo

instantacircnea Tomado como ponto de inserccedilatildeo no devir o corpo-imagem comporta no

entanto por si mesmo como vimos uma memoacuteria orgacircnica que chamamos ldquomemoacuteria do

corpordquo Esta participa dos movimentos extraiacutedos dos processos de percepccedilatildeo e adaptaccedilatildeo

do corpo-imagem a seu meio ndash o que se afigura uma necessidade de todo organismo ndash e

resulta no registro do passado dos movimentos e de suas repeticcedilotildees em geral sob a forma

de haacutebitos motores Ao mesmo tempo a consciecircncia registra todo o desenrolar singular de

cada um desses e de outros acontecimentos uma vez que opera no seio da memoacuteria pura

forja suas memoacuterias-lembranccedilas que em si e por si mesmas natildeo possuem qualquer

utilidade e tampouco podem agir sobre o presente O que Bergson (2001 p 23191) afirma

eacute que essas memoacuterias caminham lado a lado e prestam-se muacutetuo apoio A conservaccedilatildeo das

lembranccedilas-imagens nos coloca todavia lado a lado com o risco ndash no limite patoloacutegico ndash

da confusatildeo entre os imperativos pragmaacuteticos e de utilidade envolvidos pela necessaacuteria

adaptaccedilatildeo de um organismo ao meio em que vive e essas ldquoimagens de sonhordquo95

Como

afastar esse risco senatildeo pelo caraacuteter intrinsecamente pragmaacutetico dessa consciecircncia em

tensatildeo com a vida Atrelada unicamente agrave utilidade a consciecircncia que efetua o registro dos

eventos singulares que se fundem na memoacuteria pura eacute a mesma que a um soacute tempo

descarta em relaccedilatildeo agrave atualidade vivida todas as imagens passadas que natildeo possam

coordenar-se agrave percepccedilatildeo atual formando com ela um conjunto uacutetil A consciecircncia age

simultaneamente vinculada agrave memoacuteria e atenta agrave vida ela tira partido da memoacuteria em

detrimento da memoacuteria para fazecirc-la servir agrave vida agrave accedilatildeo e ao presente Por isso a

94

Bergson (2001 p 23089) com efeito afirma sobre a memoacuteria do corpo ldquo[] un ecirctre vivant qui se

contenterait de vivre nrsquoaurait pas besoin drsquoautre choserdquo 95

ldquoEn se conservant dans la meacutemoire en se reproduisant dans la conscience ne vont-elles pas deacutenaturer le

caractegravere pratique de la vie mecirclant le recircve agrave la reacutealiteacuterdquo (BERGSON 2001 p 23090)

133

memoacuteria pura pode ser definida em relaccedilatildeo agrave consciecircncia como uma memoacuteria inibida ou

de recalque96

soacute age subordinada agrave consciecircncia Eis aiacute o mecanismo que as torna

ldquolembranccedilas impotentesrdquo97

ndash elas satildeo impotentes exclusivamente em face de uma diferenccedila

pragmaacutetica em relaccedilatildeo a uma consciecircncia atual que natildeo eacute mais que a representaccedilatildeo ideal e

liminar de uma adaptaccedilatildeo de nosso corpo ao presente por isso comeccedilaacutevamos por ele

Dessa forma eacute possiacutevel entrever em siacutentese duas memoacuterias segundo as quais o

passado se conserva e que natildeo satildeo senatildeo teoricamente distintas lembranccedilas-imagens

pessoais que desenham todos os acontecimentos em sua singularidade e mecanismos

motores que satildeo capazes de utilizar o passado na direccedilatildeo da utilidade e da vida Mais

adiante essa dissociaccedilatildeo se mostraraacute particularmente importante a fim de evitar certos

enganos comuns Entre eles aquele que sustenta a tese da localizaccedilatildeo das lembranccedilas-

imagens no corpo designando o ceacuterebro como ldquoo oacutergatildeo da representaccedilatildeordquo por excelecircncia

(BERGSON 2001 p 23596) outro consiste em misturar indefinidamente no ato de

reconhecimento pelo qual reavemos o passado no presente suas componentes motoras

com as lembranccedilas-imagens Eacute portanto sob esse duplo aspecto que se torna necessaacuterio

compreender dinamicamente o fenocircmeno do reconhecimento capaz de ligar o passado ao

presente

O ponto de partida de Bergson eacute conhecido ndash as teorias do reconhecimento

contrariariam absolutamente a experiecircncia ao aplicarem-se a fazer o fenocircmeno surgir de

uma reaproximaccedilatildeo entre percepccedilatildeo e lembranccedila ignorando sua jaacute demonstrada diferenccedila

de natureza A experiecircncia biofisioloacutegica e meacutedica sobre o tema indicaria que na maioria

das vezes a lembranccedila soacute surge uma vez reconhecida a percepccedilatildeo (BERGSON 2001 p

23798) Portanto sua tese oposta desta vez ao enganoso pensamento associacionista e

96

ldquo[] les souvernirs tendent agrave srsquoincarner font pression pour ecirctre reccedilus ndash si bien qursquoil faut tout un

refoulement issu du preacutesent et de lsquolrsquoattention agrave la viersquo pour repousser ceux qui sont inutiles ou dangereuxrdquo

(DELEUZE 1966 p 69-70) Em um sentido genealoacutegico Freacutedeacuteric Worms explica a origem da concepccedilatildeo de

Bergson ldquoNotons drsquoembleacutee comment la conscience retrouve ici le pouvoir de seacutelection qursquoelle avait deacutejagrave

dans la perception augmenteacutee drsquoune force drsquoinhibition dont Bergson avant Freud emprunt la notion agrave Ribot

celui-ci avait deacutecrit dans le cas drsquoattention notamment comment les mouvements du corps ont une fonction

critique et neacutegative qui inhibe et refoule le contenu de la conscience psychologiquerdquo (WORMS 1997 p

108) 97

Freacutedeacuteric Worms (2011 p 175) explicou o sentido das expressotildees ldquoimpotenterdquo ldquoinagenterdquo e ldquoinconscienterdquo

com as quais Bergson dotou a memoacuteria pura demonstrando que todas satildeo indiciaacuterias de uma ontologia

virtual ldquoO passado puro eacute lsquoinagentersquo lsquoimpotentersquo eis sobre o que Bergson natildeo cessa de insistir tal eacute a

diferenccedila fundamental que explica todas as outras estando aiacute compreendida uma inconsciecircncia que natildeo eacute

uma inexistecircncia uma virtualidade que natildeo eacute senatildeo o contraacuterio do atual e do ativo um passado enfim que

natildeo se opotildee ao presente senatildeo porque este se define pela vidardquo E ainda completa ldquoessa diferenccedila entre

potecircncia e impotecircncia que natildeo eacute uma diferenccedila entre existecircncia e inexistecircncia que deve mesmo permitir

criticar esta anuncia uma comunidade de natureza mais profunda entre as duas memoacuterias []rdquo (Idem

ibidem p 176-177)

134

que deve conduzir-nos definitivamente ao problema da realidade da memoacuteria pura ndash uma

vez que a memoacuteria do corpo demonstrou-se pelos mecanismos sensoacuterios-motores que se

depositam no haacutebito ndash seraacute a de que a mera associaccedilatildeo entre percepccedilatildeo e lembranccedila natildeo

explica suficientemente o processo de reconhecimento98

Caso contraacuterio supondo a

dependecircncia que associaria definitivamente lembranccedila e percepccedilatildeo seria forccediloso que com

a aboliccedilatildeo patoloacutegica do reconhecimento declaraacutessemos ndash contra todo iacutendice cliacutenico dos

estudos da cegueira psiacutequica99

por exemplo ndash a aboliccedilatildeo da percepccedilatildeo que lhe seria

correlata

O proacuteprio fenocircmeno da cegueira psiacutequica autorizaria a definir dois tipos de

reconhecimento que como veremos seguem as linhas de articulaccedilatildeo conceituais jaacute

desenhadas pela definiccedilatildeo das duas memoacuterias O primeiro um reconhecimento instantacircneo

do corpo que natildeo engendra ou supotildee nenhuma lembranccedila aproximado da transcriccedilatildeo de

uma percepccedilatildeo pura (BERGSON 2001 p 238-240100-103) Trata-se nesse caso de um

fenocircmeno de ordem motora que age na base do reconhecimento de movimentos natildeo-

organizados uma vez que a memoacuteria do corpo os tenha organizado seraacute possiacutevel servir-se

do objeto reconhecido adaptar-se pragmaticamente a ele esboccedilando os movimentos que

lhe correspondem100

Se Bergson (2001 p 239-240) pode afirmar que ldquoIl nrsquoy a pas de

perception qui ne se prolonge en mouvementrdquo evocando a autoridade de Ribot e

Maudsley eacute porque haacute uma certa consciecircncia evidentemente orgacircnica impessoal dos

movimentos nascentes coordenando-os agrave percepccedilatildeo servindo-se e criando haacutebitos motores

organizando e reorganizando suas tendecircncias pragmaacuteticas que nos permitem servir-nos de

um objeto reconhececirc-lo Essas repeticcedilotildees tendem a consolidar as conexotildees e para

compreender o porquecirc basta observar como nosso sistema nervoso eacute disposto em vista da

construccedilatildeo de aparelhos motores que satildeo ligados por centros a excitaccedilotildees sensiacuteveis ao

mesmo tempo em que a dispersatildeo definida pela ramificaccedilatildeo de seus terminais torna as

conexotildees possiacuteveis ilimitadas por isso eacute sempre possiacutevel enriquecer as conexotildees entre

percepccedilotildees e movimentos correspondentes preacute-formados de tal forma que toda percepccedilatildeo

atual possui um ldquoacompanhamento motor organizadordquo (BERGSON 2001 p 240102) que

98

ldquo[] en reacutealiteacute lrsquoassociation drsquoune perception agrave un souvenir ne suffit pas du tout agrave rendre compte du

processus de la reconnaissance Car si la reconnaisance se faisait ainsi elle serait abolie quand les anciennes

images ont disparu elle aurait toujours lieu quand ces images sont conserveacuteesrdquo (BERGSON 2001 p

23798-99) 99

A cegueira psiacutequica eacute definida por Bergson (2001 loc cit) como a incapacidade de efetuar a recogniccedilatildeo

de objetos no espaccedilo que de fato permanecem objetos de uma percepccedilatildeo sem reconhecimento 100

Sobre a relaccedilatildeo entre o reconhecimento motor do corpo e o uso pragmaacutetico de um objeto Bergson (2001

p 239 101) salienta ldquoReconnaicirctre un objet usuel consist surtout agrave savoir srsquoen servirrdquo eis portanto uma

feiccedilatildeo definitivamente pragmaacutetica do reconhecimento operado pelo sistema sensoacuterio-motor

135

nos daacute o sentimento de reconhecimento usual o que faz supor uma consciecircncia dessa

organizaccedilatildeo Com isso Bergson parece uma vez mais deduzir do campo inicialmente dado

de imagens o jogo entre corpo e campo em outras palavras porque as imagens agem umas

sobre as outras e os corpos fontes de indeterminaccedilatildeo estatildeo implicados nessa dinacircmica eacute

como se a circunstacircncia de um corpo ser uma imagem em meio a imagens fosse jaacute um

convite agrave accedilatildeo

Ao lado desse jogo entre percepccedilatildeo movimentos preacute-formados e formaccedilatildeo

dinacircmica de novos movimentos nascentes cada vez mais adaptados pragmaticamente ao

presente subsistem os sucessivos registros duracionais que acompanham o seu desenrolar

no tempo que Bergson (2001 p 241103) chama de ldquonossa vida psicoloacutegicardquo A memoacuteria

pura natildeo cessa de operar e de ser inibida pela tendecircncia pragmaacutetica dessa consciecircncia que

age apenas para adaptar um corpo-imagem agraves imagens nas quais se banha Jaacute vimos que o

equiliacutebrio sensoacuterio-motor estabelecido em funccedilatildeo dessa adaptaccedilatildeo entre percepccedilatildeo e

movimentos de resposta implica que a ldquoconsciecircncia praacutetica e uacutetil do momento presenterdquo

(Idem ibidem loc cit) iniba sem cessar as lembranccedilas que exercer pressatildeo desde o fundo

da memoacuteria pura deixando passar apenas as lembranccedilas-imagens uacuteteis101

Eacute nesse ponto

que as lembranccedilas-imagens podem intervir no processo de reconhecimento

A todo momento ao acompanhar a percepccedilatildeo como seu duplo ou sua sombra a

memoacuteria pura registra cada acontecimento contemporaneamente agrave montagem dos

aparelhos motores pela memoacuteria do corpo Dada essa coalescecircncia Bergson (2001 p

241103) afirma que ldquoelle se survit [] avec tout le deacutetail de ses eacuteveacutenements localiseacutes dans

le tempsrdquo A consequecircncia ontoloacutegica imediata que jaacute se pode deduzir aqui eacute que sendo

contemporacircnea ao presente a existecircncia da memoacuteria natildeo exige um presente descarnado

acompanhando sombriamente o presente que se faz a memoacuteria natildeo eacute o fruto maduro

demais de um presente que passou ndash ela sobrevive em si como se houvesse como veremos

mais adiante um registro duplo do mesmo plano de realidade Ainda que seja

contemporacircnea ao presente a memoacuteria no entanto natildeo age inibida pragmaticamente ndash o

que assinala a marca da impotecircncia e da inutilidade das lembranccedilas puras ndash a memoacuteria se

define pela espera como se aguardasse uma fissura no mecanismo para dentro do qual

empurraria suas imagens

101

Em Le Recircve texto de uma conferecircncia proferida em marccedilo de 1901 no Institut Geacuteneacuteral Psychologique e

republicada dezoito anos mais tarde em LrsquoEacutenergie Spirituelle Bergson (2001 p 88999) se exprime sobre

essa forma de pressatildeo que as lembranccedilas exercem do fundo da memoacuteria pura ldquoIl ne faut pas croire que les

souvenirs logeacutes au fond de la meacutemoire y restent inertes et indiffeacuterentes Il sont dans lrsquoattente ils sont presque

attentifsrdquo A mesma passagem autoriza que definamos a espera como um elemento da memoacuteria pura (cf

infra)

136

No entanto como eacute possiacutevel remontar ao passado para dele retirar imagens

Bergson explica esse processo como algo essencialmente ativo isto eacute como um esforccedilo

por meio do qual nos liberamos do interesse pragmaacutetico circunscrito agrave accedilatildeo a fim de

descobrir a lembranccedila-imagem singular relacionada com o presente Isso eacute possiacutevel em

funccedilatildeo da proacutepria consciecircncia praacutetica Em copresenccedila com o presente sobrevive o

conjunto das imagens passadas Eacute certo que essa sobrevivecircncia seu modo especiacutefico

exige ainda uma demonstraccedilatildeo da qual no momento conhecemos apenas os iacutendices mais

gerais mas seguindo Bergson suponhamos por ora sua existecircncia Dada esta copresenccedila

de nosso passado e nosso presente eacute preciso que a lembranccedila-imagem colhida no passado

em que remontamos natildeo seja arbitraacuteria eacute preciso que haja certo discernimento certo bom

senso ndash que satildeo outros nomes pelos quais Bergson designa a ldquoconsciecircncia praacuteticardquo ndash na

escolha de uma imagem da qual vamos nos servir no presente Natildeo soacute os movimentos satildeo

prolongamentos da percepccedilatildeo como satildeo no sentido inverso prolongamentos dessas

lembranccedilas-imagens que por sua vez descolam-se da memoacuteria pura entatildeo os

movimentos efetuados ou nascentes delimitam pragmaticamente o campo de lembranccedilas-

imagens virtuais como delimitam por um recorte externamente a percepccedilatildeo de objetos-

imagens atuais De seu turno o que chamamos de recalque pragmaacutetico das lembranccedilas-

imagens que inibem as inuacuteteis envolve o deslocamento do passado pelo presente requer a

assunccedilatildeo de uma atitude presente102

Eacute preciso poreacutem conduzir o argumento da sobrevivecircncia da memoacuteria e por

extensatildeo o de sua conservaccedilatildeo independente do corpo ateacute suas uacuteltimas consequecircncias A

fim de estendecirc-lo o maacuteximo possiacutevel as doenccedilas do reconhecimento ofereceriam a

experiecircncia suficiente para determinar ateacute que ponto as lembranccedilas podem realmente

desaparecer Aproximando-se dessas descriccedilotildees cliacutenicas Bergson (2001 p 242-243105-

107) observa dois traccedilos caracteriacutesticos comuns agraves cegueiras psiacutequicas a perda do sentido

de orientaccedilatildeo de um lado e a incapacidade de desenhar objetos por meio de traccedilos

contiacutenuos ndash caracteriacutesticas geralmente apresentadas por pacientes acometidos por essas

doenccedilas Juntamente a casos de cegueira verbal ndash que consistem no esquecimento de certas

letras do alfabeto ndash todas as descriccedilotildees cliacutenicas convergem de maneira a revelar que o que

eacute afetado por essas patologias natildeo eacute a lembranccedila ou a percepccedilatildeo em sentido objetivo mas

o haacutebito de distinguir as articulaccedilotildees do objeto percebido isto eacute ldquodrsquoen compleacuteter la

102

ldquo[] la suppression des anciennes images tient agrave leur inhibition par lrsquoatittude preacutesente []rdquo (BERGSON

2001 p 241104)

137

perception visuelle par une tendence motrice agrave en dessiner son schegravemerdquo (BERGSON

2001 p 243107)

Isso nos deixa no limiar em direccedilatildeo ao uacuteltimo movimento do segundo capiacutetulo de

Matiegravere et Meacutemoire que corresponderaacute ao estudo de sua terceira hipoacutetese segundo a qual

se realiza uma passagem gradual das lembranccedilas aos movimentos no reconhecimento

concreto A fim de verificaacute-la seraacute necessaacuterio efetuar a passagem do reconhecimento

automaacutetico que mobiliza o haacutebito e se realiza por movimentos por distraccedilatildeo ao

reconhecimento atento em que lembranccedilas-imagens intervecircm positivamente

Essa passagem entre reconhecimentos automaacutetico e atento supotildee compreender as

relaccedilotildees entre percepccedilatildeo e lembranccedila Natildeo eacute possiacutevel compreender como uma lembranccedila

insere-se de grau em grau em uma atitude ou movimento sem determinar como nos

representamos as relaccedilotildees entre percepccedilatildeo atenccedilatildeo e lembranccedila Comecemos por definir

em que consiste a atenccedilatildeo Geralmente a definimos como uma espeacutecie de intensificaccedilatildeo

do estado intelectual a fim de tornar uma percepccedilatildeo mais intensa destacando os detalhes

de um objeto essa poreacutem eacute uma ideia obscura Seguindo Ribot tambeacutem nesse aspecto

Bergson (2001 p 246109-110) prefere definir a atenccedilatildeo em funccedilatildeo de uma adaptaccedilatildeo

geral do corpo Essa definiccedilatildeo lhe parece mais adequada na medida em que os fenocircmenos

de inibiccedilatildeo preparam a atenccedilatildeo voluntaacuteria103

Agindo na percepccedilatildeo supondo a inibiccedilatildeo dos

movimentos que decorreriam da percepccedilatildeo automaticamente a atenccedilatildeo implicaraacute pois

uma parada dos movimentos que perseguem um resultado uacutetil imediato aqui viratildeo inserir-

se segundo Bergson ldquomovimentos mais sutisrdquo que satildeo os prolongamentos da lembranccedila

A percepccedilatildeo exterior provoca nossos movimentos que a desenvolvem em linhas gerais por

outro lado a memoacuteria dirige agrave percepccedilatildeo recebida imagens antigas e semelhantes cujo

esboccedilo jaacute teria sido traccedilado por nossos movimentos Em siacutentese a memoacuteria mais imediata

no limite duplica nossa percepccedilatildeo presente devolvendo-lhe imagens semelhantes ou a

imagem idecircntica agrave percepccedilatildeo Essa duplicaccedilatildeo eacute o resultado de uma seacuterie de tentativas de

siacutentese implicados na atenccedilatildeo seu resultado natildeo seraacute assimeacutetrico tampouco arbitraacuterio

uma vez que movimentos de imitaccedilatildeo presidem como viacuteamos a seleccedilatildeo das lembranccedilas-

imagens nas quais a percepccedilatildeo se prolonga (BERGSON 2001 p 248112) Nesse limiar a

lembranccedila-imagem que interpreta nossa percepccedilatildeo atual insere-se nela sendo impossiacutevel

distinguir de fato o que dividimos de direito Fecha-se assim um circuito pelo qual se

forma uma imagem-percepccedilatildeo orientada ao espiacuterito e uma imagem-lembranccedila que tende

103

ldquo[] les phenomegravenes drsquoinhibition ne sont qursquoune preacuteparation aux mouvements effectifs de lrsquoattention

volontairerdquo (BERGSON 2001 p 246110)

138

em direccedilatildeo ao espaccedilo No interior dele tudo se dispotildee em diferentes niacuteveis de um

complexo percepccedilatildeo-memoacuteria a imagem atual remete a uma imagem virtual que lhe eacute

solidaacuteria em cada um desses niacuteveis mesmo no mais imediato em que uma lembranccedila-

imagem virtual duplica o objeto atual a memoacuteria estaacute inteiramente presente em seu maior

niacutevel de tensatildeo Ou seja se passarmos sucessivamente de um niacutevel a outro verificaremos

que eacute a mesma vida psicoloacutegica que se repete indefinidamente em sua totalidade mais ou

menos contraiacuteda104

Portanto o limite da memoacuteria eacute a memoacuteria pura correspondente ao

registro singular na duraccedilatildeo dos acontecimentos que desenham o curso de nossa existecircncia

passada Eis a memoacuteria espontacircnea ou perfeita tal como se registra na proacutepria duraccedilatildeo

tendo sua existecircncia atrelada ao tempo

Tudo isto seraacute objeto de uma longa demonstraccedilatildeo empiacuterica que natildeo nos cabe

acompanhar senatildeo em seus termos mais gerais sob pena de tornar este desvio necessaacuterio

grande demais105

A verificaccedilatildeo dessa hipoacutetese se desenvolve a partir de uma seacuterie de

confrontaccedilotildees de patologias do reconhecimento contemplando os reconhecimentos visual

auditivo e de palavras Por meio delas Bergson indica a partir de numerosos exemplos que

lesotildees cerebrais natildeo aboliriam as lembranccedilas mas ora implicariam um oacutebice agrave seleccedilatildeo das

imagens ndash ou seja agrave recepccedilatildeo dos movimentos ndash ora importariam a ausecircncia no corpo de

um ponto de aplicaccedilatildeo por meio do qual as lembranccedilas se prolongariam em accedilatildeo ndash isto eacute

afetariam a capacidade de preparaccedilatildeo sensoacuterio-motora mantendo as lembranccedilas

permanentemente em sua condiccedilatildeo de impotecircncia decorrente da inibiccedilatildeo pela consciecircncia

praacutetica

Haacute todavia um ponto notaacutevel a destacar no interior desse desenvolvimento que nos

conduz agrave impossibilidade de localizaccedilatildeo das lembranccedilas no ceacuterebro ou em qualquer outro

ponto da mateacuteria ou do espaccedilo Ele se torna importante ao passo em que eacute o momento

culminante de toda a anaacutelise cliacutenica a que Bergson se dedica nessa longa demonstraccedilatildeo

afinal se ldquoas lembranccedilas natildeo podem estar contidasrdquo em determinado lugar ndash preconceito

intelectual derrisoacuterio segundo Bergson106

ndash eacute porque se conservam em si mesmas

104

ldquoLa mecircme vie psycologique serait donc reacutepeacuteteacutee un nombre indeacutefini de fois aux eacutetages successifs de la

meacutemoire et le mecircme acte de lrsquoesprit pourrait se jouer agrave bien des hauteurs diffeacuterentes Dans lrsquoeffort

drsquoattention lrsquoesprit se donne toujours tout entier mais se simplifie ou se complique selon le niveau qursquoil

choisit pour accomplir ses eacutevolutions Crsquoest ordinairement la perception preacutesente qui deacutetermine lrsquoorientation

de nocirctre esprit mais selon le deacutegreacute de tension que nocirctre esprit adopte selon la hauteur ougrave il se place cette

perception deacuteveloppe en nous un plus ou moins grand nombre de souvenirs-imagesrdquo (BERGSON 2001 p

250-251115-116) 105

O trecho que comentamos em suas linhas gerais e que indicamos ao leitor que se interesse em seguir mais

detalhadamente o seu curso corresponde a (BERGSON 2001 p 252117-118 a p 270140) 106

Isso se deve ao fato de que para Bergson a memoacuteria eacute inassimilaacutevel a dispositivos ou entes corpoacutereos

tampouco a espaccedilos ou agrave extensatildeo em geral Por isso ele natildeo cessa de ironizar sua constante assimilaccedilatildeo a

139

independentemente da mateacuteria do espaccedilo ou do que mais cedo chamaacutevamos de imagens

que existem atualmente Em outras palavras demonstraacute-lo nos oferece um ingresso para

problematizar a consistecircncia virtual da memoacuteria

Tudo se concentra no momento capital em que Bergson na impossibilidade de

remontar todas as experiecircncias cliacutenicas de Matiegravere et Meacutemoire retoma em uma

conferecircncia intitulada Lrsquoacircme et le corps (1912) publicada sete anos mais tarde em

LrsquoEneacutergie Spirituelle a demonstraccedilatildeo de que levada a seu limite a tese do paralelismo

psicofiacutesico se contradiz107

Aproveitemo-nos portanto do mesmo artifiacutecio demonstrativo

utilizado por Bergson Eis o argumento de Bergson em sua integralidade

[] les purs souvenirs appeleacutes du fond de la meacutemoire se deveacuteloppent en

souvenirs-images de plus en plus capables de srsquoinseacuterer dans le schegraveme moteur Agrave

mesure que ces souvenirs prennent la forme drsquoune reacutepresentation plus complegravete

plus concregravete et plus consciente ils tendent drsquoavantage agrave se confondre avec la

perception qui les attire ou dont ils adoptent le quadre La preacutetendu destruction

des souvernirs par les leacutesions ceacuterebrales nrsquoest qursquoune interruption du progregravess

continu par lequel le souvenir srsquoactualise Et par conseacutequent si lrsquoon veut agrave toute

force localiser les suvenirs auditifs des mots par exemple en un point deacutetermineacute

du cerveau on sera ameneacute par des raisons drsquoeacutegale valeur agrave distinguer ce centre

imaginatif du centre percepetif ou agrave confondre les deux ensemble (BERGSON

2001 p 270140)

Onde estaria portanto a contradiccedilatildeo da tese paralelista com a experiecircncia Se nos

concentramos por um momento na explicaccedilatildeo psicoloacutegica baseada na dependecircncia entre

percepccedilatildeo e ceacuterebro somos levados a confundir o cerebral e o mental de tal forma que a

percepccedilatildeo se depositaria em algum lugar no ceacuterebro por outro lado se confundimos o

centro material da percepccedilatildeo com o da representaccedilatildeo ndash de modo que atribuiacutemos ao ceacuterebro

a funccedilatildeo de engendrar representaccedilotildees ndash ao observarmos os casos cliacutenicos das afasias das

cegueiras psiacutequicas ou auditivas natildeo eacute possiacutevel compreender por que um doente

dispositivos ldquoA vrai dire je ne suis pas sucircr que la question lsquoougraversquo ait encore un sens quand on ne parle pas

drsquoun corps Des clicheacutes photographiques se conservent dans une boicircte des disques phonographiques se

conservent dans des casiers mais pourquoi des souvenirs qui ne sont pas des choses visibles et tangibles

auraient-ils besoin drsquoun contenant et comment pourraint-ils en avoirrdquo (BERGSON 2001 p 85755) Se

Bergson aceita a ideia de um continente onde as lembranccedilas ficariam alojadas eacute apenas em sentido

puramente metafoacuterico e completa graciosamente ldquoet je dirai alors tout bonnement qursquoils se sont dans

lrsquoespritrdquo (BERGSON 2001 p 856-857755) 107

O que Bergson (2001 p 85249) diz em LrsquoAcircme et le Corps eacute essencial para afianccedilar ao leitor que ao

reduzir a longa cadeia de demonstraccedilotildees experimentais de Bergson a esse ponto notaacutevel continuamos a

seguir no que importa as principais articulaccedilotildees conceituais que elas insinuam ldquoIl mrsquoest impossible

drsquoeacutenumerer ici les faits et les raisons sur lesquels cette conception se fonde [] Comment faire Il y aurait

drsquoabord un moyen semble-t-il drsquoen finir rapidement avec la theacuteorie que je combat ce serait de montrer que

lrsquohypothegravese drsquoune eacutequivalence entre le ceacutereacutebral et le mental est contradictoire avec elle-mecircme quand on la

prend dans toute sa rigueur [] Jrsquoai tenteacute cette deacutemonstration autrefois []rdquo Sobre o mesmo assunto em

Matiegravere et Meacutemoire ldquo[] nous devons poursuivre cette illusion jusqursquoau point preacutecis ougrave elle aboutit agrave une

contradiction manifesterdquo (BERGSON 2001 p 270140)

140

acometido de cegueira psiacutequica percebe objetos mas natildeo os reconhece A mesma

perplexidade resultaria do caso de um paciente acometido por cegueira auditiva ele natildeo

pode interpretar os sons que no entanto ouve Ora a lesatildeo natildeo teria afetado este centro

que corresponde agrave percepccedilatildeo e agrave memoacuteria do objeto A soluccedilatildeo imediata eacute distinguir as

localizaccedilotildees cerebrais de tal forma que haveria centros perceptivos e elementos nervosos

relacionados agrave lembranccedila Eacute necessaacuterio lembrar que a tese do paralelismo insiste sobre a

existecircncia de uma diferenccedila meramente de grau e natildeo de natureza entre percepccedilatildeo e

lembranccedila como se as uacuteltimas fossem versotildees desintensificadas das primeiras Entretanto

se centros perceptivos e mnemocircnicos estatildeo localizados distintamente como uma

lembranccedila intensificando-se tornar-se-ia percepccedilatildeo Como uma percepccedilatildeo

enfraquecendo-se tornar-se-ia lembranccedila ndash supondo que ambas tenham a mesma natureza

Natildeo haacute resposta satisfatoacuteria possiacutevel porque as alternativas contraditoacuterias estatildeo

envolvidas por uma ilusatildeo comum que consiste em tratar percepccedilatildeo e lembranccedila-imagem

de uma perspectiva exclusivamente estaacutetica o que conduz a compreender as lembranccedilas

como se fossem coisas que supotildeem uma localizaccedilatildeo no espaccedilo e natildeo no tempo

Considerando o mesmo problema sob o ponto de vista dinacircmico seria necessaacuterio supor a

diferenccedila de natureza entre uma e outra definindo e distinguindo a percepccedilatildeo completa

ldquopor sua coalescecircncia com uma imagem-lembranccedila que lanccedilamos ao encontro delardquo108

Chegamos assim ao ponto em que Bergson efetua uma profunda fratura na

ontologia que desenvolvia ateacute aqui levando-a do atual em direccedilatildeo ao virtual do ser

presente ao ser do passado ao outro dos termos que conformam a construccedilatildeo progressiva

dessas passagens feitas no cerne de uma mesma realidade Eacute certo que Bergson natildeo cessa

de definir a imagem-lembranccedila reduzida ao estado de lembranccedila pura como ineficaz

impotente Seraacute necessaacuterio precisar o sentido dessas definiccedilotildees que consistiriam em

algumas das caracteriacutesticas do virtual que jaacute se pode antecipar O virtual designa de certa

forma o pragmaticamente recalcado por uma consciecircncia que se define pela atenccedilatildeo agrave vida

e ao presente

Para demonstrar esse viacutenculo bastaria perceber que para tornar uma lembranccedila

saiacuteda da memoacuteria pura uma lembranccedila eficaz eacute necessaacuterio engendrar um processo de

atualizaccedilatildeo que consiste na ldquoseacuterie drsquoeacutetapes pas lesquelles cette image arrive agrave obtenir du

corps des deacutemarches utilesrdquo (BERGSON 2001 p 275146) sendo a excitaccedilatildeo dos centros

108

ldquo[] la perception complegravete ne se deacutefinit et ne se distingue que par sa coalescence avec une image-

souvenir que nous lanccedilons au-devant drsquoellerdquo (BERGSON 2001 p 271142)

141

sensoriais a uacuteltima dessas etapas A imagem virtual evolui em direccedilatildeo a uma sensaccedilatildeo

apenas virtual esta evolui em direccedilatildeo a movimentos reais os quais ao realizarem-se

realizam tambeacutem a sensaccedilatildeo da qual constituem um prolongamento O desdobramento

natural de nossa deacutemarche consiste em interrogar o problema da sobrevivecircncia das

imagens e com ele o modo ontoloacutegico de que o ser do passado participa

sect 2 COEXISTEcircNCIAS

A CONSISTEcircNCIA VIRTUAL DA MEMOacuteRIA

Do virtual ao atual da memoacuteria pura agrave percepccedilatildeo pura Bergson natildeo cessa de

afirmar que se trata de divisotildees de direito e natildeo de fato Assim se desejaacutessemos

representar agrave inteligecircncia ndash e isto no bergsonismo equivale a dizer espacialmente ndash como

tudo se passa disporiacuteamos lembranccedila pura lembranccedila-imagem e percepccedilatildeo em uma

mesma linha segmentada sem jamais fazer jus aos limiares indiscerniacuteveis e agrave continuidade

de penetraccedilatildeo que operam a passagem de uma na outra seguindo intuitivamente a

experiecircncia concreta Momentaneamente encontramos um dos centros de nosso

argumento que a fim de compreender a centralidade da memoacuteria no processo transicional

pretende estabelecer seu sentido sobre bases ontoloacutegicas irredutiacuteveis agrave memoacuteria

psicoloacutegica ndash motivo pelo qual se torna necessaacuterio investigar em Bergson uma ontologia

da memoacuteria ou uma ontologia do virtual No entanto eacute importante lembrar que a diferenccedila

de natureza que Bergson introduz entre percepccedilatildeo e lembranccedila seraacute pouco a pouco

estendida agrave diferenccedila entre atual e virtual presente e passado O que dissimula o caraacuteter

niacutetido da diferenccedila eacute o processo de atualizaccedilatildeo das lembranccedilas109

Retornemos da representaccedilatildeo inteligente agrave intuiccedilatildeo tal como ela segue as linhas de

fato de uma experiecircncia concreta do trabalho da memoacuteria Como recuperar uma lembranccedila

um acontecimento de nossa vida passada A resposta de Bergson ndash sobre a qual Deleuze

(1966 p 53) insistiu sem cessar e a cuja insistecircncia tambeacutem Worms (2011 p 175) deu

razatildeo ndash eacute por meio de um salto no passado destacando-nos do atual e nos colocando

subitamente no virtual Para compreender o que significa esse salto ndash especialmente para

Bergson a quem a continuidade parece um elemento conceitual tatildeo importante ndash

109

Por isso sobre a distinccedilatildeo de direito entre lembranccedila pura lembranccedila-imagem e percepccedilatildeo Bergson

(2001 p 276148) afirma ldquoqursquoil est impossible de dire avec preacutecision ougrave lrsquoun des termes finit ougrave commence

lrsquoautrerdquo Worms (1997 p 141) observa que ldquo[] la diffeacuterence de nature entre souvenirs et perceptions si elle

est formuleacutee comme diffeacuterence entre le lsquovirtuelrsquo et lrsquoactuelrsquo est-elle masqueacutee par le mouvement mecircme

drsquoactualisation par lequel les souvenirs se reacutealisentrdquo

142

precisamos retomar algumas conclusotildees precedentes e que retiram a primazia de nosso

haacutebito intelectual de pensar no presente

Na seccedilatildeo precedente haviacuteamos observado a existecircncia de dois tipos de memoacuteria

que nos levavam a conceber natildeo apenas duas formas de sobrevivecircncia do passado ndash em

mecanismos motores e no proacuteprio passado ndash mas tambeacutem a identificar dois modos

(automaacutetico e atento) pelos quais o reconhecimento se processa Atento agrave dinacircmica

segundo a qual percebemos os objetos no espaccedilo Bergson concebeu uma seacuterie de niacuteveis de

consciecircncia coalescentes com a percepccedilatildeo idealmente pura do objeto atual engendrados

segundo diferenccedilas de contraccedilatildeo no que nomeou circuito perceptivo Sua concepccedilatildeo

terminava por demonstrar o que no niacutevel da percepccedilatildeo pura Bergson podia apenas supor

que toda percepccedilatildeo eacute jaacute um misto em que as lembranccedilas-imagens constituem a impureza

em outras palavras que toda percepccedilatildeo implica ao mesmo tempo lembranccedila que seu niacutevel

mais contraiacutedo corresponde ao duplo virtual de uma imagem atualmente percebida Em

cada um dos niacuteveis de consciecircncia mais ou menos contraiacutedos em relaccedilatildeo agrave percepccedilatildeo

atual encontraacutevamos a integral de nossa memoacuteria Naquele momento adiantaacutevamos esta

conclusatildeo isso eacute o que supotildee uma coexistecircncia virtual da lembranccedila em relaccedilatildeo agrave

percepccedilatildeo em outras palavras dizer que a percepccedilatildeo eacute jaacute lembranccedila significa que o

processo perceptivo por mais puro que se o suponha deixa passar um miacutenimo de virtual

que no niacutevel mais contraiacutedo consiste na lembranccedila-imagem do estado atual de nosso

corpo que percebe um objeto atual

Essas conclusotildees nos levam a desmitificar segundo Deleuze (1966 p 53) duas

falsas crenccedilas a de que o passado soacute se constitui depois de ter sido presente e a de que ele

pode ser reconstruiacutedo pelo novo presente em relaccedilatildeo ao qual ele eacute passado Muito pelo

contraacuterio a supor-se uma memoacuteria de coexistecircncia contemporacircnea ao presente que passa

adiantaacutevamos a conclusatildeo de que haacute um passado que jamais fora presente um passado que

natildeo eacute um presente sucedido e descarnado mas sua imagem virtual coextensiva que jaacute se

prolonga na direccedilatildeo da memoacuteria pura Seguindo Deleuze adicionariacuteamos em relaccedilatildeo agrave

segunda falsa crenccedila ndash sobre a qual Bergson natildeo cessa de insistir ndash que natildeo se reconstroacutei o

passado pela via do presente110

Isso eacute o suficiente para compreendermos o que significa saltar no virtual por que

Bergson exige precisamente essa imagem que Deleuze diz ser ldquoquase kierkegaardianardquo

110

ldquoCrsquoest en vain qursquoon en chercherait la trace [du passeacute] dans quelque chose drsquoactuel et de deacutejagrave reacutealiseacute

autant vaudrait chercher lrsquoobscuriteacute sous la lumiegravererdquo (BERGSON 2001 p 278150) A expressatildeo entre

colchetes natildeo consta do original

143

compreende-se tambeacutem em que sentido Bergson emprega constantemente a expressatildeo

drsquoembleacutee que em portuguecircs equivale tatildeo bem a expressotildees como ldquode suacutebitordquo ldquode

imediatordquo ldquode prontordquo todas iacutendices de um modo Sua funccedilatildeo semacircntica poderia jaacute indicar

que uma diferenccedila de atitude eacute o que se passa entre as realidades do presente e do passado

Worms a esse propoacutesito sublinha a importacircncia de natildeo interpretar a diferenccedila de natureza

entre o ser presente e o ser do passado como uma diferenccedila ontoloacutegica radical como a que

haveria entre dois tipos de ser Uma interpretaccedilatildeo como essa implicaria naturalmente

deformar o gesto bergsoniano da imanecircncia pelo qual permanecemos leais a uma soacute

estrutura de realidade a de seu campo transcendental em que satildeo dadas as imagens e a

partir do qual tudo eacute deduzido Mais apropriadamente seria o caso de conceber a diferenccedila

entre presente e passado como ldquouma diferenccedila pragmaacutetica ligada agrave accedilatildeo do corpo e agrave

vidardquo (WORMS 2011 p 175)

No entanto um salto natildeo indicaria um dualismo metafiacutesico de substacircncia Tudo

converge para responder negativamente a essa questatildeo Se por um salto ou por uma

atitude sui generis ndash como Bergson (2001 p 276148) algumas vezes se expressa ndash eacute

possiacutevel distender a consciecircncia e colocar-se diretamente no passado haacute uma simples

diferenccedila de accedilatildeo ou de modo ndash natildeo radicalmente ontoloacutegica ndash entre presente e passado

atual e virtual A tese de Worms nesse aspecto seria confirmada por um outro dado o que

concerne agrave memoacuteria pura inibida ou recalcada pela atenccedilatildeo agrave vida

Decerto Bergson natildeo cessa de ligar o passado puro ao elemento de impotecircncia ao

mesmo tempo natildeo cessa de dizer como vimos que a memoacuteria pura eacute uma espera ldquoquase

atentardquo por uma fissura que a deixe passar algumas imagens no presente A forccedila inibidora

que coloca a memoacuteria a serviccedilo da vida implica que a memoacuteria pura enquanto inuacutetil

permaneccedila impotente inconsciente incapaz de atuar daiacute porque ela se define pela pressatildeo

ndash que empurraria no presente todas as suas imagens se pudesse ndash bloqueada pela forccedila de

inibiccedilatildeo que a determina como espera Em relaccedilatildeo ao virtual a espera eacute tambeacutem o seu

modo especiacutefico se por virtual compreendermos simplesmente ldquoo que natildeo atuardquo

(WORMS 2011 p 175)

Dizecirc-lo inconsciente ou impotente demanda estabelececirc-lo desde um ponto de vista

no segundo capiacutetulo de Matiegravere et Meacutemoire em que tudo gira em torno do atual eacute a

consciecircncia pragmaacutetica voltada para a vida que perspectiva o virtual como impotente e

inconsciente para o atual o virtual eacute o que natildeo atua e ele o eacute exclusivamente ao passo em

que natildeo toma parte dessa consciecircncia pragmaacutetica em que eacute mantido fora dela Suas

imagens esperam no fundo da memoacuteria pura enquanto natildeo satildeo solicitadas pela vida Em

144

relaccedilatildeo agrave consciecircncia o virtual eacute atualmente pressatildeo e espera mas potencialmente accedilatildeo e

afecccedilatildeo Nada disso no entanto os retira do existente se perspectivarmos o virtual desde

seu proacuteprio ponto de vista a memoacuteria pura eacute o que existe para si como potencial de accedilatildeo

e afecccedilatildeo e entatildeo ela jaacute natildeo poderia definir-se por uma impotecircncia ontoloacutegica mas

exclusivamente pragmaacutetica Pragmaacutetica aqui significa ldquocom relaccedilatildeo agrave vidardquo ldquodo ponto de

vista do presenterdquo Ontologicamente a memoacuteria eacute potecircncia pura ndash potecircncia definida como

o que natildeo age mas exerce pressatildeo permanece agrave espreita Eis o que definiria um registro

ontoloacutegico diverso do virtual dado na mesma estrutura de realidade a que pertence o ser do

presente

A tese fundamental que consiste em explicar o mecanismo de vigiacutelia por analogia

ao do sonho em Le Recircve natildeo mostraria nada aleacutem dessa diferenccedila pragmaacutetica do atual ao

virtual111

ldquoNous nrsquoapercevons de la chose que son eacutebauche celle-ci lance un appel au

souvenir de la chose complegravete et le souvenir de la chose complegravete dont notre esprit

nrsquoavait pas conscience qui nous restait en tout cas inteacuterieur comme une simple penseacutee

profite de lrsquooccasion pour srsquoeacutelancer dehorsrdquo (BERGSON 2001 p 88999) O sonho

consiste senatildeo no estado de consciecircncia em que as lembranccedilas puras encontram-se

inteiramente potentes livres e agentes ao menos em um estado mais distendido de atenccedilatildeo

agrave vida em que nossa consciecircncia encontra-se indiferente agrave loacutegica embora natildeo seja incapaz

dela ndash e por vezes diz Bergson (2001 p 890-891100-101) ela nos prega peccedilas buscando

uma continuidade entre imagens disparatadas fazendo-nos natildeo raro tocar o absurdo Essa

indiferenccedila relativa assinala em relaccedilatildeo agrave vida e agrave vigiacutelia um relaxamento e uma distraccedilatildeo

pragmaacutetica em geral sonhamos natildeo vivemos entatildeo eacute da potecircncia especiacutefica do virtual

que a consciecircncia se deixa penetrar quando os mecanismos de inibiccedilatildeo da memoacuteria pura

encontram-se relativamente suspensos ndash porque com efeito natildeo satildeo jamais abolidos Uma

matildee pode dormir pesadamente ao lado de seu filho a ponto de natildeo ser acordada pelo som

de um trovatildeo mas o menor suspiro do bebecirc pode despertaacute-la ldquoNous ne dormons pas pour

ce qui continue agrave nous inteacuteresserrdquo (BERGSON 2001 p 893103) Eis a bela imagem que

Bergson convoca a fim de ilustrar a coalescecircncia entre o eu dos sonhos que se desinteressa

e adormece e o da vigiacutelia que precisa adormecer para continuar interessado Caso natildeo

adormecesse jamais se cansaria afinal estar a todo momento atento agrave vida e sobretudo

ldquoAvoir du bon sens est tregraves fatigantrdquo (Idem ibidem p 892103)

111

ldquo[] agrave lrsquoeacutetat de la veille la connaissance que nous prenons drsquoun objet implique une opeacuteration analogue agrave

celle qui srsquoaccompli en recircverdquo (BERGSON 2001 p 88999)

145

A partir desse breve desvio compreendemos o sentido do salto bergsoniano

compreendemos tambeacutem em profundidade o que Bergson quer dizer quando afirma que

ldquo[] nous nrsquoatteindrons jamais le passeacute si nous nrsquoy placcedilons pas drsquoembleacuteerdquo Indicando uma

diferenccedila pragmaacutetica isso significa que a fim de precisar o trabalho ativo da lembranccedila

deve-se dirigir um esforccedilo ou uma atitude que nos destaque do presente para colocarmo-

nos de imediato no passado em geral depois em certa regiatildeo dele Saltamos no virtual no

passado na memoacuteria em decorrecircncia de adotarmos uma atitude apropriada antes de as

lembranccedilas distraiacuterem-nos para a vida eacute mantendo-nos algo distraiacutedos para a vida que

recuperamos as lembranccedilas fazendo-as participar de um quadro em que o presente as

exige em que o atual as colore e as faz viver

Toda a criacutetica do bergsonismo ao associacionismo reside no fato de este ter

considerado essa dinacircmica de atualizaccedilatildeo que corresponde agrave proacutepria continuidade do

devir como uma multiplicidade descontiacutenua de elementos inertes e justapostos

confundindo percepccedilatildeo e lembranccedila em um misto mal analisado Bergson de seu turno

quer seguir as linhas de realidade da experiecircncia concreta sem destituir dela a duraccedilatildeo que

ela ocupa Eacute nesse sentido que a aplicaccedilatildeo das conclusotildees do Essai ndash especialmente

aquelas que o levavam a diferenciar multiplicidades quantitativas e qualitativas ndash autoriza a

rejeitar o argumento associacionista que confunde a diferenccedila de natureza entre percepccedilatildeo

e lembranccedila com uma simples diferenccedila de grau O significado proacuteprio dessa diferenccedila de

natureza eacute a distinccedilatildeo entre presente e passado corresponde se a levarmos agraves uacuteltimas

consequecircncias agraves duas metades da mesma ontologia de que nos ocupamos o atual e o

virtual Por essa razatildeo eacute ela que serve de ingresso para demonstrar a realidade da memoacuteria

o virtual como um modo do ser e assim evitar o mau haacutebito intelectual de confundir ser e

ser presente ndash o que nos leva a reduzir o real a uma de suas metades

Como definir o presente senatildeo em funccedilatildeo de um corpo-imagem Como defini-lo

senatildeo em relaccedilatildeo agrave vida ao esforccedilo pragmaacutetico por perseverar entre as imagens Se entre o

presente e o passado natildeo haacute uma diferenccedila apenas de grau mas de natureza eacute nisso

precisamente que a diferenccedila se resolve ndash como a diferenccedila entre memoacuteria do corpo e

memoacuteria pura da duraccedilatildeo resolvia-se na distinccedilatildeo entre o repetiacutevel por mecanismos

sensoacuterio-motores e o registro infinitesimal de acontecimentos irrepetiacuteveis Em siacutentese a

diferenccedila de natureza entre presente e passado se expressa no fato de que ldquoMon preacutesent est

ce qui mrsquointeacuteresse ce qui vit pour moi et pour tout dire ce qui me provoque agrave lrsquoaction au

lieu que mon passeacute est essentiellement impuissantrdquo (BERGSON 2001 p 280) Acabamos

146

de definir o sentido desses termos segundo diferentes planos de consciecircncia na obra de

Bergson ndash e um dos sentidos sumamente importantes encontra-se implicado na

perspectivaccedilatildeo do virtual pela atenccedilatildeo agrave vida O que Bergson requer nesse ponto da

argumentaccedilatildeo eacute algo bem mais simples eacute que perspectivemos o virtual segundo o ponto de

vista em que ele aparece concretamente a uma consciecircncia atenta agrave vida112

Se na intenccedilatildeo de esclarecer o sentido e a realidade da lembranccedila pura deixarmo-

nos ficar por um instante nessa perspectiva o momento presente surge como o decorrer do

tempo ao contraacuterio ao tempo decorrido chamaremos passado e precisariacuteamos o instante

presente como o momento em que ele decorre Eis aqui uma ilusatildeo uma intromissatildeo do

espaccedilo jaacute estamos a nos representar o presente como um instantacircneo ideal quando

sabemos suficientemente bem que concretamente ele ocupa uma duraccedilatildeo Essa duraccedilatildeo

estende-se nos dois sentidos em direccedilatildeo ao passado do qual ela proveacutem e em direccedilatildeo ao

futuro ao qual ela tende Podemos entatildeo do ponto de vista de um presente psicoloacutegico

concreto dizer que ele se constitui na percepccedilatildeo de um passado imediato e de uma

determinaccedilatildeo do futuro imediato formando um todo indiviso (BERGSON 2001 p

280153) Ora o menor intervalo de tempo que acaba de passar prolonga-se no presente em

uma sensaccedilatildeo o menor intervalo de tempo no qual meu presente se precipita desenha jaacute

os movimentos que comporatildeo minha accedilatildeo mais imediata Por isso Bergson pode afirmar

que todo presente psicoloacutegico eacute sensoacuterio-motor ndash misto indecomponiacutevel de direito do

prolongamento da uacuteltima sensaccedilatildeo e do proacuteximo devir em movimentos e accedilotildees Ou seja

ldquo[] mon preacutesent consiste dans la conscience que jrsquoai de mon corpsrdquo (BERGSON 2001 p

281153) pensado sub specie durationis ele natildeo designa mais do que um estado atual um

corte artificial de meu devir daquilo que estaacute em vias de formaccedilatildeo Essa continuidade de

devir designa a proacutepria realidade do tempo na qual a mateacuteria tambeacutem deve ter lugar como

repeticcedilatildeo incessante do atual113

As sensaccedilotildees atuais manifestam-se na superfiacutecie do corpo ocupando extensatildeo

localizadas elas satildeo fontes de movimentos e compotildeem um certo estado da materialidade

112

Eis como segue a argumentaccedilatildeo reforccedilando que a ideia de impotecircncia da memoacuteria pura eacute decalcada

forccedilosamente de um ponto de vista atual sobre o virtual ldquoOn chercherait vainement en effet agrave caracteacuteriser le

souvenir drsquoun eacutetat passeacute si lrsquoon ne commenccedilait par deacutefinir la marque concregravete accepteacutee par la conscience de

la reacutealiteacute presenterdquo (BERGSON 2001 p 280152) Ora o que Bergson define aqui como ldquoa marca concreta

da realidade presente aceita pela consciecircnciardquo constitui o iacutendice da perspectivaccedilatildeo do virtual pelo atual que

permite definir ndash do ponto de vista do atual de uma consciecircncia pragmaacutetica atenta agrave vida ndash as lembranccedilas

puras como impotentes inagentes inuacuteteis Como demonstramos do ponto de vista do ldquoeu dos sonhosrdquo

desinteressado da vida seria um contrassenso dizecirc-lo 113

ldquoLa matiegravere en tant qursquoeacutetendue dans lrsquoespace devant se deacutefinir selon nous un preacutesente qui recommance

sans cesse inversement notre preacutesent est la mateacuterialiteacute mecircme de notre existence crsquoest-agrave-dire un ensemble de

sensations et de mouvements rien drsquoautre choserdquo (BERGSON 2001 p 281154)

147

do corpo que tambeacutem estaacute em devir como a variaccedilatildeo das sensaccedilotildees demonstrariam sem

dificuldade De seu turno a lembranccedila pura apresenta caracteriacutesticas completamente

diversas inextensa natildeo ocupa a superfiacutecie do corpo em ponto algum embora possa

produzir sensaccedilotildees ao atualizar-se deixando de ser lembranccedila pura de acordo com sua

utilidade para a vida Impotente ela natildeo se conservaria no corpo mas sobreviveria em si

mesma em ldquoestado latenterdquo ndash outra maneira de definir a espera e a espreita do virtual

A lembranccedila espera e espreita durante todo o tempo em que natildeo eacute uacutetil e

permanecemos interessados ou em que age livremente porque precisamos descansar e

geralmente sem abolir os mecanismos de atenccedilatildeo agrave vida adotamos a atitude de nos

desinteressarmos e adormecer Dessa forma do ponto de vista da consciecircncia pertence agrave

memoacuteria o signo de uma impotecircncia radical No domiacutenio psicoloacutegico da consciecircncia ndash que

eacute a marca do presente do atualmente vivido do que age ndash o real resolve-se no atual o

virtual inibido e inuacutetil cai em um estado de inconsciecircncia o que eacute dizer impotecircncia Para

uma consciecircncia obcecada pela vida o que cai em um estado inconsciente pareceria cair

muito naturalmente na inexistecircncia Fora dessa consciecircncia poreacutem assumindo o ponto de

vista daquilo que permanece inibido porque inuacutetil e inconsciente porque virtual nada do

que existe precisa ser atual perspectiva do sonhador ou do distraiacutedo

Tocamos finalmente o conceito de real em Bergson Determinar quais as

condiccedilotildees para afirmar algo como real ou existente constitui boa parte da soluccedilatildeo do

problema da realidade do virtual agrave qual os comentadores geralmente datildeo muito pouca

atenccedilatildeo Em Matiegravere et Meacutemoire as componentes do conceito de realidade ontoloacutegica jaacute

aparecem um deles subentendido na existecircncia de um registro duracional espontacircneo ou

perfeito dos acontecimento de nossa vida outro mais explicitamente no campo das

imagens Resumamos tudo em uma palavra para Bergson no campo da experiecircncia o ser

se define pela potecircncia de ser experimentado Para afirmaacute-lo eacute preciso contudo algumas

cautelas ldquoSer experimentadordquo natildeo deve ser interpretado aqui nos estreitos limites de uma

experiecircncia pessoal e psicoloacutegica mas mais amplamente no campo transcendental que

define em Bergson as condiccedilotildees da experiecircncia concreta bem como do surgimento do

corpo orgacircnico de diferentes planos de consciecircncia aiacute incluiacutedo o niacutevel psicoloacutegico Nele a

realidade de uma imagem se constitui pelo potencial de agir e ser agido como uma

lembranccedila pura de seu ponto de vista virtual define-se como real segundo o mesmo

criteacuterio Ao mesmo tempo supotildee integrar-se ao campo constituindo uma espeacutecie de seacuterie

148

(BERGSON 2001 p 288163) Detenhamo-nos por um momento na anaacutelise desses

pontos

Isolemos o campo transcendental com as imagens que o compotildeem e nos

perguntemos o que basta para definir sua realidade Do ponto de vista orgacircnico e impessoal

do corpo-imagem o que a define natildeo eacute o fato de ser percebida ndash sabemos que um corpo-

imagem natildeo eacute capaz de perceber a totalidade das imagens atualmente dadas ndash mas o poder

ser percebido em resumo um potencial de percepccedilatildeo Basta lembrarmos o que define a

percepccedilatildeo pura deixando por ora de lado sua imagem virtual coalescente que

concretamente vem aiacute misturar-se trata-se precisamente do acompanhamento de

superfiacutecie dos movimentos nascentes dos potenciais de accedilatildeo de um corpo definidos pela

distacircncia entre corpo-imagem e as imagens que o circundam em funccedilatildeo de cuja variaccedilatildeo

diferenciam-se tambeacutem as promessas e ameaccedilas que essas imagens envolvem114

Enfim

essa variaccedilatildeo define os potenciais de accedilatildeo reciacuteprocos entre corpo-imagem e o restante do

universo de imagens Se ser eacute poder ser percebido ldquoserrdquo se define pelo potencial de accedilatildeo ndash

entendido como potencial de agir e de ser agido ndash com relaccedilatildeo a um corpo-imagem que se

banha em um universo de imagens Esse universo de imagens corresponde natildeo apenas a

uma seacuterie mas tambeacutem agraves linhas esquemaacuteticas da analogia que Bergson propotildee para

definir a sobrevivecircncia da memoacuteria em relaccedilatildeo agrave da mateacuteria A memoacuteria deve sobreviver

integralmente quando natildeo a percebemos distintamente da mesma forma como o universo

atual de imagens natildeo eacute abolido quando ndash reevoquemos a primeira metaacutefora com a qual

Bergson deseja que experimentemos o campo transcendental ndash fechamos nossos sentidos

para ele e deixamos de percebecirc-lo115

Quer se trate de imagens atuais quer de imagens

virtuais estas natildeo satildeo abolidas apenas porque deixamos de percebecirc-las porque fechamos

114

Eacute significativo que Bergson (2001 p 286160) afirme que ldquoles objets situeacutes autour de nous repreacutesentent agrave

des degreacutees differeacutents une action que nous pouvons accomplir sur les choses ou que nous devrons subir

drsquoellesrdquo esse excerto textualmente tatildeo distante encontra-se em paralelo com a primeira descriccedilatildeo das

imagens materiais no campo transcendental que ainda natildeo supotildeem uma vida ldquoToutes ces images agissent et

reacuteagissent les unes sur les autres dans toutes leurs parties eleacutementaires selons des lois constantes []rdquo

(BERGSON 2001 p 16911) 115

A bela imagem analoacutegica bergsoniana para aproximar os estados de inconsciecircncia da mateacuteria e da

memoacuteria eacute a seguinte ldquoTout le monde admet en effet que les images actuellement preacutesentes agrave notre

perception ne sont pas le tout de la matiegravere Mais drsquoautre part que peut-ecirctre un objet mateacuteriel non perccedilu une

image non imagineacutee sinon une espegravece drsquoeacutetat mental inconscient Au delagrave de murs de votre chambre que

vous percevez en ce moment il y a des chambres voisines puis le reste de la maison enfin la rue et la ville

ougrave vous demeurez Peu importe la theacuteorie de la matiegravere agrave laquelle vous vous ralliez reacutealiste ou ideacutealiste

vous pensez eacutevidemment quand vous parler de la ville de la rue des autres chambres de la maison agrave autant

de perceptions absentes de votre conscience et pourtant donneacutees en dehors drsquoelle Elles ne se creacuteent pas agrave

meacutesure que votre conscience les accueillent elles eacutetaient donc deacutejagrave en quelque maniegravere et puisque par

hypothegravese votre conscience ne les appreacutehendait pas comment pouvaitent-elles exister en soi sinon agrave lrsquoeacutetat

inconscient Drsquoougrave vient alors qursquoune existence en dehors de la conscience nous paraicirct claire quand il srsquoagit

des objets obscure quand nous parlons du sujet rdquo (BERGSON 2001 p 284158)

149

nossos sentidos para elas Quando adormecemos profundamente natildeo abolimos o mundo

real quando vivemos natildeo abolimos as imagens de sonho Daiacute porque a analogia que

Bergson propotildee entre lembranccedilas inconscientes e regiotildees natildeo percebidas da mateacuteria natildeo eacute

apenas um artifiacutecio retoacuterico Ela se sustenta ontologicamente sobre um criteacuterio de real que

exige que a percepccedilatildeo seja tomada em um sentido muito preciso Dados no campo

transcendental um corpo-imagem participa de uma seacuterie apresenta uma conexatildeo loacutegica ou

causal com aquilo que o precede e o segue ao passo em que eacute dado no interior do proacuteprio

campo por isso insistiacuteamos em dizer que se trata de um ldquocorpo-imagem banhado de

imagensrdquo Sua existecircncia soacute pode ser definida por um potencial de accedilatildeo na medida em que

se exerce em funccedilatildeo de uma seacuterie da qual participa

Eacute possiacutevel objetar que a definiccedilatildeo de Bergson eacute demasiadamente fenomenoloacutegica

dizer que ldquoser eacute poder ser percebidordquo implicaria pressupor junto ao ser uma consciecircncia (ao

menos potencial) predisposta a percebecirc-lo em potecircncia No entanto Bergson dispensa

radicalmente o estratagema da subjetividade transcendental (PRADO JUacuteNIOR 1989 p

145) Por essa razatildeo afirmamos de um lado que o conceito de real em Bergson deveria

ser definido segundo um potencial de accedilatildeo que implica poder agir e ser agido e natildeo

simplesmente como ldquopercepccedilatildeordquo que eacute um termo que nos habituamos a psicologizar Eacute

importante observar que na mesma medida em que tendemos a psicologizar o termo

ldquopercepccedilatildeordquo admitimos sem dificuldade que a proacutepria mateacuteria inorganizada comporte

potenciais de accedilatildeo e em certo niacutevel interaja em seacuteries heterogecircneas sem por isso nos

representarmos que aiacute opera uma consciecircncia de tipo psicoloacutegico Ao mesmo tempo

advertimos que adotariacuteamos momentaneamente o ponto de vista do corpo-imagem um

ponto de vista orgacircnico que comporta certo niacutevel de consciecircncia embora natildeo forccedilosamente

psicoloacutegico ou antropoloacutegico

Para desfazer de uma vez por todas os possiacuteveis enganos conduzamos esse criteacuterio

de realidade ao seu limite suponhamos um campo transcendental povoado de elementos

inorgacircnicos de imagens que natildeo se experimentam por dentro um mundo feito apenas de

mateacuteria Se aiacute podemos enxergar a constituiccedilatildeo de uma seacuterie de imagens como assegurar

sua realidade sem uma consciecircncia que abra e feche seus sentidos no horizonte das

imagens dadas no campo transcendental Ora suprimamos toda consciecircncia com isso

perdemos os centros de indeterminaccedilatildeo que agem entre as imagens mas natildeo as imagens

mesmas Inconscientes as imagens natildeo cessaratildeo de agir e reagir umas sobre as outras sem

introduzir no mundo nada de novo segundo as leis constantes da natureza Ainda assim

elas existiratildeo pois se definem por potenciais de accedilatildeo e reaccedilatildeo determinados por meio dos

150

quais interagem mecanicamente Accedilotildees e reaccedilotildees natildeo cessaratildeo de variar mas de modo

determinado e constante Os organismos e as consciecircncias satildeo dispensaacuteveis e no limite

natildeo podem fundar uma ontologia da imanecircncia como a de Bergson justamente pela forccedila

de seu criteacuterio de real Potenciais de accedilatildeo accedilatildeo e reaccedilatildeo efetivas ndash pouco importa se

determinados ou natildeo ndash satildeo o quanto basta para definir algo como existente do ponto de

vista da mateacuteria inorganizada116

Para existir basta o inconsciente compreendido natildeo como

uma regiatildeo psicoloacutegica agrave moda freudiana mas como o extraconsciente como ldquoexistence

en dehors de la consciencerdquo (BERGSON 2001 p 284158) ao longo de todo o

bergsonismo eacute uma existecircncia fora da consciecircncia que define o real O real eacute o que pode

existir em estado consciente (ser percebido ser agido efetivamente) ou em estado

inconsciente (poder ser percebido poder ser agido virtualmente) Foi para atingir esse mais

alto grau de coerecircncia que definiacuteamos o sentido da impotecircncia da memoacuteria como originada

da perspectiva do que eacute agido e atual assim resguardaacutevamos da perspectiva do virtual os

potenciais de ser percebido e ser agido que permanecem em estado inconsciente

Um excerto de Dureacutee et Simultanacuteeacuteiteacute de 1922 dedica-se agrave questatildeo da realidade e

devemos verificar nossa hipoacutetese tambeacutem aqui Ele oferece ainda o mesmo criteacuterio de real

mas o desenvolve em um contexto de todo diferente consistente em determinar

criticamente a natureza do tempo em relaccedilatildeo agrave Teoria da Relatividade de Einstein A

grande preocupaccedilatildeo de Bergson nesse aspecto seria a de distinguir os elementos reais e

convencionais com os quais a fiacutesica definia o tempo Isso o conduz a questionar o que se

entende por ldquorealidaderdquo compreendida como realidade ldquoem geralrdquo e nessa medida

converge com nossa anaacutelise Apoacutes observar a inexistecircncia de consenso filosoacutefico sobre o

tema117

Bergson anuncia que continuaraacute a seguir sua uacutenica regra metodoloacutegica para aquele

ensaio ldquoa de natildeo afirmar nada que natildeo possa ser aceito por qualquer filoacutesofo qualquer

cientistardquo sobre a realidade especiacutefica do tempo

Como nos representamos comumente o tempo Certamente natildeo sem um antes e

um depois isto eacute fora de uma seacuterie contiacutenua sem uma sucessatildeo em funccedilatildeo da qual o

tempo se define para noacutes Toda a argumentaccedilatildeo de Bergson envolve-se pela demonstraccedilatildeo

116

ldquo[] les choses une fois constitueacutees manifestent agrave la surface par leurs changements de situations les

modifications profondes qui srsquoaccomplissent au sein du Tout Nous disons alors qursquoelles agissent les unes sur

les autres Cette action nous apparaicirct sans doute sous forme de mouvementrdquo (BERGSON 2001 p 750-

751302) Do modo como Bergson se expressa em LrsquoEacutevolution Creacuteatrice percebe-se que o potencial de accedilatildeo

(agir e ser agido) o que jaacute implica supocirc-lo integrado a uma seacuterie eacute suficiente para assegurar movimento e de

consequecircncia existecircncia no tempo na duraccedilatildeo 117

ldquo[] o problema recebeu tantas soluccedilotildees quantas satildeo as nuanccedilas que o realismo e o idealismo comportamrdquo

(BERGSON 2006 p 76)

151

de que onde natildeo haacute memoacuteria natildeo poderia haver sucessatildeo e por extensatildeo loacutegica tempo118

Nesse caso ou haacute antes ou depois jamais a conjugaccedilatildeo de ambos que eacute imprescindiacutevel

para haver tempo Diante disso Bergson pode definir de uma vez por todas seu criteacuterio de

real em relaccedilatildeo ao tempo ldquo[] quando quisermos saber se estamos lidando com o tempo

real ou com um tempo fictiacutecio teremos simplesmente de nos perguntar se o objeto que nos

apresentam poderia ou natildeo ser percebido tornar-se conscienterdquo (BERGSON 2006 p 77)

As duas uacuteltimas oraccedilotildees parecem revelar uma inadequaccedilatildeo em nosso conceito de

real afinal haacute pouco diziacuteamos que ele natildeo se define por uma consciecircncia No entanto isto

ocorre apenas em aparecircncia Em primeiro lugar observe-se que Bergson retorna a seu

criteacuterio de real expressando-o em termos equivalentes aos da definiccedilatildeo de 1896 ldquoser eacute

poder ser percebidordquo Nada precisamos aprofundar sobre o sentido de percepccedilatildeo

continuam a valer aqui as razotildees retrospectivas

Em segundo lugar a expressatildeo ldquo[] tornar-se conscienterdquo eacute a que parece opor

embaraccedilos ndash mas eles satildeo meramente fictiacutecios e decorrem do haacutebito intelectual de supor

que sempre que se diz ldquoconsciecircnciardquo estaacute-se a dizer ldquoconsciecircncia psicoloacutegicardquo ou

ldquoconsciecircncia humanardquo Veremos que por traacutes dessa leitura natildeo encontraremos nada aleacutem

de um preconceito antropoloacutegico Comecemos observando nesse proacuteprio excerto a que

outro conceito Bergson compara esse elemento de consciecircncia Apoacutes definir o tempo como

o senso comum o define ndash como sucessatildeo seacuterie que encadeia antes e depois ndash Bergson

(2006 p 77) acrescenta que seria impossiacutevel supor sucessatildeo ldquo[] ali onde natildeo haacute alguma

memoacuteria alguma consciecircncia real ou virtual []rdquo Ou seja nesse trecho o sentido de

consciecircncia afasta-se do preconceito antropoloacutegico para ser compreendida antes como

ldquoalguma memoacuteriardquo ldquoreal ou virtualrdquo A consciecircncia aqui equivale agrave memoacuteria elementar

impessoal natildeo-psicoloacutegica e ontoloacutegica que a duraccedilatildeo real supotildee na retenccedilatildeo e penetraccedilatildeo

de instantes que opera Afinal ela soacute pode consistir em sucessatildeo multiplicidade

qualitativa heterogecircnea e de penetraccedilatildeo se ldquoalguma memoacuteriardquo age para fundir essa

multiplicidade em um contiacutenuo

Em terceiro lugar se retornarmos a uma das regiotildees mais importantes da

argumentaccedilatildeo metafiacutesica de Bergson em Dureacutee et Simultaneacuteiteacute sobre o tempo nos

depararemos com um aprofundamento dessa ideia de consciecircncia que seraacute uacutetil para dirimir

qualquer duacutevida sobre o sentido em que ela eacute empregada para definir o criteacuterio de

realidade ldquoO que queremos estabelecerrdquo diz Bergson ldquoeacute que natildeo se pode falar de uma

118

De nossa parte essa demonstraccedilatildeo seraacute detalhada na proacutexima seccedilatildeo ldquoO ser do passado como fundamento

do tempo memoacuteria repeticcedilatildeo devirrdquo

152

realidade que dura sem introduzir nela uma consciecircnciardquo ldquo[] eacute impossiacutevel imaginar ou

conceber um traccedilo-de-uniatildeo entre o antes e o depois sem um elemento de memoacuteria e por

conseguinte de consciecircnciardquo e no iniacutecio do paraacutegrafo subsequente ldquoTalvez o emprego

dessa palavra repugne se associarem a ela um sentido antropomoacuterfico Mas para conceber

uma coisa que dura natildeo eacute de modo algum necessaacuterio pegar a memoacuteria que nos eacute proacutepria e

transportaacute-la mesmo atenuada para o interior da coisardquo (BERGSON 2006 p 56)119

Em

resumo com consciecircncia ou com memoacuteria Bergson quer dizer continuidade da duraccedilatildeo

interpenetraccedilatildeo e fusatildeo de elementos de uma seacuterie natildeo consciecircncia humana120

O que o conceito de real e seu criteacuterio de verificaccedilatildeo assim discutidos datildeo a ver eacute

uma espeacutecie de grito que atravessa o bergsonismo ldquoNatildeo antropologize demais a memoacuteria

nem a consciecircnciardquo Eis um dos significados profundos que impedem que se coloque

Bergson no rol dos psicoacutelogos Tampouco o campo transcendental deve equivaler a uma

consciecircncia transcendental uma vez que ldquoa consciecircncia filosoacutefica soacute surge no interior de

um campo que a precede e natildeo pode ser isolada de suas raiacutezes preacute-filosoacuteficasrdquo (PRADO

JUacuteNIOR 1989 p 205) Ele eacute a regiatildeo do ser em que se constituem seacuteries extensas e

inextensas ou duracionais

Esse longo desvio nos permite retomar definitivamente a demonstraccedilatildeo do modo de

conservaccedilatildeo em si mesmo das lembranccedilas puras no exato ponto em que o abandonamos

para investigar o conceito bergsoniano de real Enriquecidos pela ideia de que o ser ou o

real para Bergson devem definir-se como potencial de accedilatildeo ndash compreendido como poder

de agir e ser agido que supotildee sua participaccedilatildeo em uma seacuterie ndash remontamos do campo

transcendental em direccedilatildeo agrave consciecircncia implicada no organismo atento para a vida

Adotamos uma vez mais seu ponto de vista em relaccedilatildeo ao qual a lembranccedila pura mostra

apenas uma face de impotecircncia e inconsciecircncia ndash nesse ponto jaacute podemos afirmar que a

primeira eacute o signo do virtual a segunda o signo do real como existecircncia fora da

consciecircncia Agrave lembranccedila pura pertencem a espera e a espreita na medida em que o

presente eacute ldquoo que vive para mimrdquo De seu turno ldquo[] le passeacute nrsquoa plus drsquointerecirct pour nousrdquo

(BERGSON 2001 p 285159) e eacute desse ponto de vista impotente porque inconsciente

Inclinando-se incessantemente em direccedilatildeo ao futuro o presente condiz com a distacircncia

relativa em que podemos agir ou sofrer a accedilatildeo das imagens agrave nossa volta e assim se

119

A referecircncia corresponde a todos os trechos citados 120

Deleuze (1966 p 45) converge com essa interpretaccedilatildeo ao afirmar ldquoLa dureacutee est essentiellement meacutemoire

conscience liberteacute Et elle est conscience et liberteacute parce qursquoelle est drsquoabord meacutemoirerdquo

153

desenha no espaccedilo o esquema de nosso futuro imediato Coexistente com esse ldquoinstanterdquo

que define o de uma percepccedilatildeo atual ndash que emprestando uma inspirada expressatildeo

poderiacuteamos compreender como ldquoo miacutenimo de tempo contiacutenuo pensaacutevelrdquo (DELEUZE

1996 p 184) ndash decorre a duraccedilatildeo em que essa percepccedilatildeo sucede

Essa coextensatildeo nos parece misteriosa ndash como nos parece misteriosa a realidade do

passado em si mesmo ndash em face de determinaccedilotildees bioloacutegicas especiacuteficas ldquoLe mecircme

instinct en vertu duquel nous ouvrons indeacutefiniment devant nous lrsquoespace fait que nous

refermons derriegravere nous le temps agrave meacutesure qursquoil srsquoeacutecoulerdquo (BERGSON 2001 p 286160-

161) Assim somos levados a aceitar de bom grado que o universo material ultrapasse

nossa percepccedilatildeo presente mas tambeacutem confundimos no que diz respeito ao escoar do

tempo ser e ser presente De seu turno Bergson insiste sem cessar na analogia do estatuto

virtual do inconsciente suposto por regiotildees natildeo percebidas da mateacuteria e o das lembranccedilas

puras121

No entanto se as lembranccedilas saiacutedas do fundo da memoacuteria podem parecer encerrar

algo fantasmaacutetico e irreal isso natildeo se deve senatildeo agrave accedilatildeo inibidora e organizadora da accedilatildeo

imediatamente futura de uma consciecircncia atenta agrave vida ndash funccedilatildeo de um recalque vital

Da mesma forma que os objetos dispostos no espaccedilo parecem formar uma seacuterie na

extensatildeo as lembranccedilas puras no ponto mais distendido de uma consciecircncia apresentar-

se-iam tambeacutem como uma seacuterie contiacutenua Assim podendo ser percebidas e participando de

uma seacuterie temporal preenchem-se as condiccedilotildees para a existecircncia ndash no campo da

experiecircncia ndash das lembranccedilas afinal a impotecircncia atribuiacuteda agraves lembranccedilas por uma

atenccedilatildeo agrave vida que natildeo cessa de vigiaacute-las e inibi-las natildeo determina outra coisa senatildeo a

pressatildeo que exercem do fundo da memoacuteria feita de espera e espreita sua impotecircncia atual

assinala do ponto de vista do virtual um potencial de agirem e serem agidas um potencial

de atualizaccedilatildeo sua participaccedilatildeo em uma continuidade temporal virtual assegura sua

potencial participaccedilatildeo em outra seacuterie de efetuaccedilatildeo projetando-se no espaccedilo Por essa

razatildeo tudo o que compotildee a memoacuteria pura define-se como real mas virtual porque

inconsciente ndash exatamente como as regiotildees da mateacuteria natildeo percebidas por um corpo-

imagem promessas ou ameaccedilas fora da consciecircncia e no entanto plenamente reais O

potencial do virtual eacute o mesmo de um golpe desferido pelas costas e no escuro ndash ele toca a

121

ldquoEn reacutealiteacute lrsquoadheacuterence de ce souvenir agrave notre eacutetat preacutesent est tout agrave fait comparable agrave celle des objets

inaperccedilus aux objets que nous percevons et lrsquoinconscient joue dans les deux cas un rocircle du mecircme genrerdquo

(BERGSON 2001 p 286-287161) ou entatildeo ao afirmar ldquoNous nrsquoavons pas affaire en ce qui concerne les

objets inaperccedilus dans lrsquoespace et les souvenirs inconscients dans le temps agrave deux formes radicalment

diffeacuterentes de lrsquoexistence mais les exigences de lrsquoaction sont inverses []rdquo (BERGSON 2001 p 288162-

163)

154

sombra do irrepresentaacutevel que com efeito soacute o eacute do ponto de vista dos recortes imoacuteveis

que o atual produz no devir

Se pudemos nos convencer de que a memoacuteria se conserva o problema que se

insinua agrave anaacutelise eacute a determinaccedilatildeo do ldquolugarrdquo em que ela se conserva e se essa questatildeo se

insinua diz Bergson isso se deve inteiramente agrave nossa obsessatildeo pelas imagens obtidas no

espaccedilo Jaacute conhecemos os motivos ndash e tambeacutem alguns gracejos ndash com os quais Bergson

rejeitava a hipoacutetese da conservaccedilatildeo cerebral ou a tese do paralelismo psicofiacutesico Ao

discorrer sobre o papel do ceacuterebro a seccedilatildeo precedente demonstrou abundantemente as

articulaccedilotildees conceituais que conduzem essas teses ao absurdo ou ao paradoxo Se o ceacuterebro

eacute como demonstramos uma parte do corpo bioloacutegico uma imagem material ele nunca

ocupa mais do que o momento presente Sendo sempre o estado estacionaacuterio de um devir

em vias de formaccedilatildeo de minhas sensaccedilotildees e de meus movimentos dos prolongamentos de

uns nos outros logo se torna desnecessaacuterio pensar a conservaccedilatildeo do passado em analogia a

clichecircs fotograacuteficos a serem armazenados em algum lugar Se Bergson (2001 p 290166)

afirma a sobrevivecircncia em si do passado eacute ultrapassando a suposiccedilatildeo do haacutebito intelectual

de pensar a conservaccedilatildeo como relaccedilatildeo espacial inaplicaacutevel agrave duraccedilatildeo entre um continente

que conserva e um conteuacutedo a ser conservado A conservaccedilatildeo eacute antes de mais nada

retenccedilatildeo ou registro na duraccedilatildeo ndash isto eacute memoacuteria

Contudo como o passado pode por hipoacutetese conservar-se em si mesmo se deixou

de ser A essa contradiccedilatildeo Bergson responde afirmando que ldquola question est preacuteciseacutement

de savoir si le passeacute a cesseacute drsquoexister ou srsquoil a simplement cesseacute drsquoecirctre utilerdquo (BERGSON

2001 p 291166) O que estaacute na raiz dessa contradiccedilatildeo aparente eacute a reduccedilatildeo do ser ao ser

presente ndash confusatildeo explicada ao nos representarmos o tempo de modo espacializado e ao

ignorarmos a realidade movente do devir122

Se o presente for apenas um limite ideal

moacutevel entre o passado e o futuro nada teraacute menos realidade que ele ao mesmo tempo em

que ele eacute jaacute se passou Se o presente por outro lado for o presente concreto ocupando

uma duraccedilatildeo tomando parte em uma continuidade ele teraacute muito de passado imediato por

meio do qual reconstruiacutemos a unidade e o sentido de uma percepccedilatildeo123

As razotildees de fundo

122

ldquoVous deacutefinissez arbitrairement le preacutesent ce qui est alors que le preacutesent est simplement ce qui si faitrdquo

(BERGSON 2001 p 291166) 123

Bergson explica por que percebemos praticamente soacute o passado por meio do ceacutelebre exemplo de uma

instantacircnea emissatildeo luminosa ldquoDans la fraction de seconde que dure la plus courte perception possible de

lumiegravere des trillions de vibrations ont pris place dont la premiegravere est seacutepareacutee de la derniegravere par un intervalle

eacutenormeacutement diviseacuterdquo (BERGSON 2001 p 291166-167) Dessa forma nossa mais instantacircnea percepccedilatildeo

consistiria em uma siacutentese mental de uma incalculaacutevel multidatildeo de elementos rememorados por isso

Bergson pode afirmar que a percepccedilatildeo pura eacute jaacute lembranccedila e que o presente puro natildeo passa do

inapreensiacutevel avanccedilar do passado a roer o futuro

155

satildeo psico-bioloacutegicas como tudo em nossa consciecircncia psiacutequica nos inclina agrave vida damos

primazia agravequilo que se desenrola atualmente natildeo agravequilo que jaacute se desenrolou eis o fruto de

nossa adaptaccedilatildeo ao presente mais proacutexima dos haacutebitos engendrados pela memoacuteria motora

que das lembranccedilas puras

No entanto entre a memoacuteria motora e a memoacuteria pura apenas esta uacuteltima seria a

verdadeira registrando em continuidade seacuteries de acontecimentos uacutenicos e irrepetiacuteveis no

dorso inextenso da duraccedilatildeo real Apesar de opostos haacutebito e memoacuteria pura agenciam-se na

experiecircncia concreta em que o corpo se determina como o lugar de passagem dos

movimentos recebidos e devolvidos mediaccedilatildeo para com as imagens que o cercam A

ceacutelebre imagem do cone invertido sobre um plano daacute-nos enfim a relaccedilatildeo coextensiva

entre elas O cone invertido designa a totalidade de nossas lembranccedilas acumuladas

distribuiacutedas em diferentes niacuteveis de consciecircncia ndash repeticcedilotildees mais distendidas na medida

em que nos aproximamos da base mais contraiacutedas ao passo em que nos deslocamos em

direccedilatildeo ao veacutertice Este designa o estado atual de nosso corpo e de seus mecanismos

sensoacuterio-motores que tocando o plano em determinado ponto representa seu recorte

perceptivo como o niacutevel mais contraiacutedo da base do cone e portanto da memoacuteria pura com

a qual toda percepccedilatildeo atual coexiste e na qual se duplica O equiliacutebrio entre as duas

memoacuterias definiria o senso praacutetico do homem de accedilatildeo enquanto a primazia do presente

designaria natildeo apenas as formas de vida inferior mas tambeacutem o homem impulsivo por sua

vez o que vive em meio aos milhares de imagem do passado caracteriza-se como o

sonhador que de seu turno natildeo estaacute melhor adaptado agrave vida O que a vida exige eacute que a

percepccedilatildeo seja pragmaacutetica isto eacute que ela seja capaz de responder a uma tendecircncia ou a

uma necessidade (BERGSON 2001 p 299176)

A uacuteltima questatildeo que nos resta abordar eacute como Bergson descreve a dinacircmica de

atualizaccedilatildeo de lembranccedilas especialmente como selecionar em uma multidatildeo de imagens

semelhantes agrave situaccedilatildeo presente aquela mais uacutetil para a accedilatildeo Essa questatildeo se torna

relevante na medida em que torna possiacutevel aprofundar a questatildeo da distribuiccedilatildeo das

lembranccedilas em diferentes niacuteveis de consciecircncia mais ou menos contraiacutedos Se retornarmos

ao diagrama do cone invertido Bergson (2001 p 305184) havia suposto que a totalidade

de nossas lembranccedilas ndash o que para ele equivale agrave nossa personalidade ndash coexiste indivisa e

contraiacuteda em relaccedilatildeo agrave nossa percepccedilatildeo presente Concentrada no ponto moacutevel que

descreve o estado atual de nosso corpo e seu recorte perceptivo com relaccedilatildeo ao plano da

representaccedilatildeo a consciecircncia teria de expandir-se na direccedilatildeo da base a fim de que

156

colocando-se no passado em algum niacutevel de consciecircncia dele pudesse encontrar aiacute uma

lembranccedila uacutetil

Esse movimento de contraccedilatildeo e de expansatildeo pelo qual a consciecircncia passa de um

niacutevel de consciecircncia a outro decorre das necessidades fundamentais da vida (BERGSON

2001 p 305185) Em cada um dos extremos ndash veacutertice da percepccedilatildeo informada pelos

haacutebitos motores ou base da memoacuteria pura ndash natildeo eacute possiacutevel encontrar isoladamente

nenhuma razatildeo para fixar a atenccedilatildeo em uma parte determinada do passado afinal no

veacutertice todo haacutebito motor adaptado ao presente seria semelhante e contiacuteguo agrave percepccedilatildeo

enquanto na base toda lembranccedila pareceria radicalmente diversa e descolada da percepccedilatildeo

atual ndash mesmo porque colocados de iniacutecio na base nossa atenccedilatildeo agrave vida por demais

desinteressada jaacute natildeo seria capaz de determinar os efeitos de semelhanccedila e continuidade

(BERGSON 2001 p 306186)

Descritos esses dois limites extremos eacute necessaacuterio observar que concretamente eles

jamais satildeo atingidos ldquoNotre vie psychologique normale oscille [] entre ces deux

extremiteacutesrdquo (BERGSON 2001 p 307187) sem jamais entregar-se a um estado puramente

sensoacuterio-motor nem a um devaneio absolutamente desligado de uma vaga atividade atual

Com efeito o estado sensoacuterio-motor orienta a memoacuteria da qual eacute seu prolongamento ativo

por sua vez a memoacuteria pressiona no sentido desse prolongamento do qual ela constitui a

base a fim de inserir aiacute a maior quantidade de imagens possiacutevel Disso resulta uma seacuterie de

estados possiacuteveis da memoacuteria correspondentes a niacuteveis diferentes de contraccedilatildeo e distensatildeo

da consciecircncia Para representaacute-los mais facilmente basta imaginar que no diagrama do

cone insere-se entre a base e o veacutertice uma seacuterie de secccedilotildees virtuais paralelas agrave base

Cada uma delas apresenta um estado da memoacuteria mais ou menos contraiacutedo conforme

esteja mais proacuteximo da percepccedilatildeo ou da memoacuteria pura ao mesmo tempo cada um desses

niacuteveis implica a totalidade de nosso passado ndash a repeticcedilatildeo integral de nossa memoacuteria Em

cada um desses niacuteveis embora natildeo se trate de lembranccedilas justapostas umas agraves outras ldquohaacute

pontos brilhantesrdquo lembranccedilas dominantes que se multiplicam cada vez mais ao passo em

que se remonta em direccedilatildeo agrave base nela haacute apenas constelaccedilotildees claras e vastas

Poreacutem como a atualizaccedilatildeo e a seleccedilatildeo de um desses estados se operam Tudo se

passa com dois movimentos simultacircneos pelos quais nossa memoacuteria responde ao apelo do

presente Um de translaccedilatildeo pelo qual a memoacuteria vai ao encontro do estado presente em

vista da accedilatildeo outro de rotaccedilatildeo pelo qual orientando-se de acordo com a situaccedilatildeo em

questatildeo apresenta-lhe sua face mais uacutetil (BERGSON 2001 p 307-308188) A cada um

desses infinitos niacuteveis de contraccedilatildeo que reduzem mais ou menos a integral de nossa

157

memoacuteria em virtude do presente corresponde um sem nuacutemero de formas de associaccedilatildeo por

semelhanccedila e contiguidade Natildeo por acaso Bergson (2001 p 309189-190) observa que

ldquoDans le plan extrecircme qui repreacutesente la base de la meacutemoire il nrsquoy a pas de souvenir qui ne

soit lieacute par contiguumliteacute agrave la totaliteacute des eacuteveacutenements qui le preacutecegravedent et aussi de ceux que le

suiventrdquo

Eacute a continuidade da duraccedilatildeo em sua forma mais pura e distendida que encontramos

dessa maneira a memoacuteria elementar que natildeo cessa de formar seacuteries por contiguidade ndash o

que constitui como vimos um dos criteacuterios do real para Bergson Portanto eacute a ele que

devemos retornar a fim de desdobrar as consequecircncias efetivamente ontoloacutegicas desse

conceito de memoacuteria Apenas um tal desdobramento tornaraacute possiacutevel apreender o

significado de afirmar o ser do passado como fundamento do tempo

sect 3 O SER DO PASSADO COMO FUNDAMENTO DO TEMPO

MEMOacuteRIA REPETICcedilAtildeO E DEVIR

De um ponto de vista ontoloacutegico a consistecircncia virtual da memoacuteria define o ser do

passado Se como vimos a memoacuteria soacute pode conservar-se em si no proacuteprio tempo o

ceacutelebre esquema do cone de memoacuteria apresenta a coexistecircncia da totalidade de nosso

passado ndash inteiramente presente em cada um dos infinitos niacuteveis que separam a base do

cone de seu veacutertice presente ndash com o estado atual de nosso corpo sensoacuterio-motor

conferindo agrave percepccedilatildeo um horizonte de realidade temporal De acordo com esse horizonte

o presente mais imediato consistiria na integral de nosso passado em seu niacutevel mais

contraiacutedo ponto perceptivo sobre o plano da representaccedilatildeo As linhas gerais desse

esquema em que coexistem memoacuteria do corpo percepccedilatildeo presente e memoacuteria pura

distribuiacutedos em diversos niacuteveis de repeticcedilatildeo psiacutequica determinam a realidade proacutepria do

ser do passado e com ele a realidade da memoacuteria

Correlata a essa realidade eacute a necessidade de pocircr-se de iniacutecio no passado saltar

pragmaticamente do registro do atual ao virtual em que se conservam as lembranccedilas a fim

de enriquecer a percepccedilatildeo presente com uma lembranccedila uacutetil ndash selecionada em vista das

necessidades presentes no transcurso da accedilatildeo ndash no tempo de hesitaccedilatildeo entre a siacutentese de

registro dos movimentos que se prolongam em lembranccedilas e a do prolongamento das

sensaccedilotildees misturadas a lembranccedilas que deflagram a accedilatildeo de um corpo Esse tempo de

hesitaccedilatildeo ndash mais ou menos amplo ndash eacute o que define o grau de indeterminaccedilatildeo que se pode

158

inserir nas accedilotildees Tudo decorre da coexistecircncia da memoacuteria pura que se natildeo existe no

mesmo sentido do atual ndash definido pela atividade pelo puro devir em relaccedilatildeo ao qual eacute

levado a abrir-se ndash insiste ou simplesmente eacute (DELEUZE 1966 p 49-50) Ela eacute sem

agir eacute ser mas sem ser uacutetil Da perspectiva do atual a memoacuteria pura definia-se como

impotente e inconsciente da do virtual potecircncia fora da consciecircncia psicoloacutegica e sem

relaccedilatildeo (senatildeo virtual) com o atual ponto em que memoacuteria e imemorial parecem coincidir

A memoacuteria pura constitui o iacutendice de que a memoacuteria antes de ser psicoloacutegica eacute

ontoloacutegica sendo necessaacuterio precisar como Bergson a compreende Na medida em que

esse iacutendice que liga a realidade da lembranccedila agravequela de um fundo obscuro no qual jamais

conseguimos nos colocar por inteiro ndash e no entanto ele estaacute inteiramente presente em cada

um dos niacuteveis subsequentes a esse limite puro ndash seraacute possiacutevel reafirmar natildeo apenas sua

realidade mas que a memoacuteria constitui condiccedilatildeo para o presente passar Nesse sentido a

memoacuteria poderaacute ser compreendida como fundamento do tempo Do ponto de vista do

atual o tempo se define pela sucessatildeo real pelo escoamento do presente ao mesmo tempo

veremos que eacute soacute do ponto de vista da memoacuteria que se pode entrever no presente que

passa o puro devir A essa problemaacutetica vem juntar-se a seguinte questatildeo sob o ponto de

vista da coexistecircncia de duraccedilotildees muito diferentes da sua percepccedilatildeo simultacircnea haacute um soacute

tempo ou muitos Haacute uma soacute memoacuteria ou muitas Trata-se do enigma da pluralidade ou

da unicidade do tempo em Bergson na qual deve verificar-se ainda uma vez a questatildeo do

tempo real

A fim de responder a essas trecircs questotildees essenciais agrave determinaccedilatildeo do problema de

uma ontologia do virtual em Bergson vecircm cruzar-se com os capiacutetulos centrais de Matiegravere

et Meacutemoire as anaacutelises de Dureacutee et Simultaneacuteiteacute (1922) especialmente seu capiacutetulo

terceiro sobre a natureza do tempo o mais profundamente metafiacutesico de toda essa

polecircmica e no qual a realidade do tempo eacute colocada mais em termos ontoloacutegicos que

psicoloacutegicos ndash daiacute porque merecer nesse momento atenccedilatildeo analiacutetica

Assim como no Essai em Dureacutee et Simultaneacuteiteacute o tempo seraacute definido antes de

tudo em funccedilatildeo da continuidade de nossa vida interior No entanto a essa definiccedilatildeo segue-

se um raacutepido movimento que abstrai a consciecircncia individual e que consiste em questionar

o significado impessoal dessa continuidade definida por uma imanecircncia a si mesma ldquoO

que eacute essa continuidade A de um escoamento ou de uma passagem mas de um

escoamento e de uma passagem que se bastam a si mesmos uma vez que o escoamento

natildeo supotildee uma coisa que se escoa e a passagem natildeo pressupotildee estados pelos quais se passa

159

[]rdquo (BERGSON 2006 p 51) Enquanto experimentamos em profundidade a realidade

movente de uma transiccedilatildeo a inteligecircncia faz com que instantacircneos e estados recortados de

seu movimento absoluto nos obsedem O que eacute vivido natildeo satildeo os estados ou as coisas

mas as passagens natildeo os instantes artificialmente captados mas as transiccedilotildees que duram

entre esses instantes ndash apreensotildees inertes em relaccedilatildeo agraves quais podemos afirmar que algo se

passou alterou-se Portanto a realidade do tempo pode tocar a superfiacutecie das coisas mas

penetra apenas entre o que uma inteligecircncia arbitrariamente decreta serem dois de seus

estados

Prova disso eacute que Bergson define essa transiccedilatildeo naturalmente experimentada de

duas formas ldquoeacute a proacutepria duraccedilatildeordquo ldquoEla eacute memoacuteriardquo Se pudermos definir a memoacuteria

como fundamento do tempo toda a questatildeo estaacute em determinar que tipo de duraccedilatildeo ou

que tipo de memoacuteria permite definir a continuidade implicada em uma transiccedilatildeo que basta

a si mesma que natildeo depende dos estados em que se encarna e que altera que constitui a

proacutepria substacircncia incessantemente movente que longe de atravessar pelas coisas parece

ser algo pelo que as coisas atravessam

Eis aqui o gesto radicalmente ontoloacutegico de Bergson ao definir essa continuidade

que implica sucessatildeo atual e empurrando o passado no presente e este no puro devir faz o

presente passar ldquoEla eacute memoacuteria mas natildeo memoacuteria pessoal exterior agravequilo que ela reteacutem

distinta de um passado cuja conservaccedilatildeo ela garantiria eacute uma memoacuteria interior agrave proacutepria

mudanccedila memoacuteria que prolonga o antes no depois e os impede de serem puros

instantacircneos que aparecem e desaparecem num presente que renasceria incessantementerdquo

(BERGSON 2006 p 51) Essencialmente virtual a memoacuteria eacute apresentada com as

propriedades da proacutepria duraccedilatildeo isto eacute como ldquoqualidadeldquo como ldquoheterogeneidaderdquo como

ldquoo que difere de sirdquo (DELEUZE 2002 p 34) independente dos estados cuja realidade

movente depende dela ela se manteacutem ldquoexterior agravequilo que ela reteacutemrdquo ela eacute impessoal

pois parece dispensar uma consciecircncia psicoloacutegica para constituir uma pura ldquocontinuidade

do antes no depoisrdquo Memoacuteria pura sem imagem-lembranccedila virtual absoluto limite

inconsciente que no entanto age na realidade do tempo sem se confundir com os estados

atuais que soacute podem alterar-se no imenso corpo-mundo dessa memoacuteria que assegura a

sucessatildeo do presente

Contudo a sucessatildeo natildeo eacute senatildeo um ponto de vista do atual sobre uma

continuidade virtual que impotildee uma memoacuteria coexistente com o presente Do ponto de

vista de um atual que parece perseverar em si mesmo o que senatildeo a memoacuteria viria inserir

a diferenccedila na repeticcedilatildeo engendrar um tempo de sucessatildeo contiacutenua Por si o presente eacute

160

um instantacircneo atualmente impotente que nem se torna passado nem se abre ao devir Se

o presente natildeo adveacutem sem memoacuteria o presente e o devir encontram nela o seu

fundamento se por ldquofundamentordquo entendermos aqui a mediaccedilatildeo que torna possiacutevel o

porvir Se um presente pode bastar-se em sua realidade atual jamais constituiria por si

sem a memoacuteria um presente que passa jamais se inseriria em uma seacuterie temporal

contiacutenua Desse ponto de vista talvez muito abstrato e instantacircneo Bergson pode dizer que

nada tem menos realidade que esse presente Contudo se tomado a partir da experiecircncia

concreta ele ocupa uma duraccedilatildeo ele se insere em uma seacuterie que natildeo comeccedila nem termina

por ele mas que o integra ndash e o que significa integrar o presente em uma seacuterie temporal

senatildeo ligaacute-lo por uma espeacutecie de memoacuteria ao passado e ao porvir O que estaacute implicado aiacute

senatildeo duraccedilatildeo sucessatildeo real memoacuteria ndash que natildeo se confunde com a linha abstrata que a

inteligecircncia decalca dela

Para provaacute-lo natildeo eacute preciso uma consciecircncia humana por certo basta a memoacuteria

muito impessoal do corpo os haacutebitos motores os prolongamentos mnemocircnicos impessoais

mais imediatos dos movimentos percebidos Tudo parece muito atual quase instantacircneo

natildeo fosse o tempo de hesitaccedilatildeo miacutenima que o aparelho sensoacuterio-motor deixa passar entre

estiacutemulo e reaccedilatildeo poreacutem no menor tempo contiacutenuo de percepccedilatildeo-accedilatildeo de um organismo

o que manteacutem a continuidade de uma na outra eacute ainda uma espeacutecie de memoacuteria Isso eacute

suficiente para provar que natildeo eacute preciso uma memoacuteria humana de tipo psicoloacutegico para

engendrar o tempo ele se basta com essa memoacuteria impessoal que prolonga o antes e o

depois ndash e como vimos ela eacute facilmente divisaacutevel no vivo Poreacutem ainda que esse exemplo

seja suficiente natildeo levamos com ele o conceito de memoacuteria como fundamento do tempo

a seu limite proacuteprio as imagens materiais em seu campo transcendental haveraacute a mesma

espeacutecie de memoacuteria entre elas

A reposta eacute forccedilosamente positiva e nos permite ver que mesmo aqui o gesto

ontoloacutegico de uma memoacuteria que ldquoprolonga o antes no depoisrdquo que eacute a ldquomemoacuteria interna agrave

proacutepria mudanccedilardquo jaacute se encontra suposto pela proacutepria realidade do campo transcendental

Caso contraacuterio como as imagens agiriam e reagiriam umas sobre as outras O que ligaria

mesmo imediatamente accedilatildeo e reaccedilatildeo Como exerceriam de maneira determinada o

potencial de accedilatildeo que haacute pouco definia sua realidade Haacute ainda um miacutenimo de tempo

contiacutenuo no qual accedilatildeo-reaccedilatildeo por simultacircneas que sejam satildeo recolhidas uma na outra Isso

prova que a mateacuteria dura que mesmo a repeticcedilatildeo material mais pura e nua ndash aquela que

natildeo parece introduzir no mundo nada de novo ndash implica uma memoacuteria da variaccedilatildeo de

potenciais nesse sentido muito elementar continuidade do antes no depois um

161

prolongamento que natildeo pode ser senatildeo temporal quando tomamos as imagens em seu

conjunto Natildeo haacute realidade em Bergson sem um miacutenimo de tempo contiacutenuo sem uma

duraccedilatildeo espessa a implicar uma memoacuteria que basta a si mesma ndash melodia pura sem

qualidades ldquosucessatildeo sem separaccedilatildeordquo (BERGSON 2006 p 52) No entanto com isso

deslocamos relativamente o problema da memoacuteria como fundamento do tempo soacute seraacute

possiacutevel afirmaacute-lo na medida em que se possa demonstrar que a duraccedilatildeo eacute necessaacuteria

mesmo agravequilo que aparentemente natildeo dura coisas simultaneamente percebidas

Tudo isso pode parecer ainda anaacutelogo demais a uma percepccedilatildeo interior e consciente

do tempo por mais que nos esforcemos por experimentaacute-lo da forma como Bergson

requer ontologicamente em si mesmo como continuidade pura e transiccedilatildeo ininterrupta

que bastando a si mesma parece implicar uma siacutentese passiva da memoacuteria independente

de um sujeito que contrai os instantes Se supomos que a mateacuteria e mesmo as

simultaneidades exigem uma duraccedilatildeo eacute preciso passar do tempo interior ao tempo das

coisas Como isso eacute possiacutevel Em geral fazemo-lo por uma ampliaccedilatildeo progressiva de

nosso recorte perceptivo do mundo material imaginando horizontes cada vez mais amplos

e todos submetidos pelo menos de direito ao sentimento de duraccedilatildeo que nossa consciecircncia

experimenta ao perceber uma dada regiatildeo da mateacuteria Se as coisas sob a eacutegide da

percepccedilatildeo consciente parecem durar da mesma forma que nossa consciecircncia ndash e se toda

percepccedilatildeo como vimos implica a um soacute tempo uma realidade dentro de noacutes (a de nosso

corpo) e fora de noacutes (a da superfiacutecie material percebida) ndash eacute loacutegico deduzir que o universo

dure como se houvesse ldquouma consciecircncia impessoal que seria o traccedilo-de-uniatildeo entre todas

as consciecircncias individuais assim como entre essas consciecircncias e o resto da naturezardquo

(BERGSON 2006 p 52-53) Assim em um uacutenico ato dois ou mais acontecimentos

seriam captados pela mesma percepccedilatildeo instantacircnea simultacircneos estariacuteamos diante de uma

realidade externa a noacutes que dura e uma interna que se sente durar

Se a deduccedilatildeo de um tempo das coisas a partir de um tempo interno repousa sobre a

simultaneidade verificada ao menos entre um momento de nossa vida interior um

momento de nosso corpo e um momento de toda a mateacuteria circundante uma questatildeo se

ligaria agrave da memoacuteria como fundamento do tempo haveria uma multiplicidade de duraccedilotildees

ou tudo se passaria como parece haveria uma soacute duraccedilatildeo a envolver todo o universo

Deparamos com as teses pluralistas ou monistas sobre a realidade da duraccedilatildeo Apoacutes

uma longa demonstraccedilatildeo de sua realidade jaacute natildeo precisamos questionaacute-la senatildeo com

relaccedilatildeo ao seu sentido A soluccedilatildeo desse ponto eacute essencial agrave demonstraccedilatildeo da memoacuteria ou

do ser do passado como fundamento do tempo de um ponto de vista ontoloacutegico afinal eacute

162

ela (a memoacuteria) que pode entregar-nos a duraccedilatildeo em sua realidade ontoloacutegica mais

profunda ela responde por seu sentido mais extremo No entanto por capital que seja essa

questatildeo a demonstraccedilatildeo de Bergson parece agrave primeira vista muito obscura e ateacute mesmo

evasiva124

acompanhemos como Bergson desenvolve esse raciociacutenio analoacutegico que ele

admite ldquomal ser conscienterdquo

Parte-se do pressuposto de que consciecircncias humanas tenham a mesma natureza

isto significa que diversas que sejam elas duram da mesma maneira ldquovivem a mesma

duraccedilatildeordquo (BERGSON 2001 p 54) Isso posto imaginamos seacuteries de consciecircncias

humanas distribuiacutedas por toda a extensatildeo do universo material de tal forma que ndash

proacuteximas umas das outras ndash ldquoduas delas tenham em comum a porccedilatildeo extrema do campo de

sua experiecircncia exteriorrdquo (Idem ibidem loc cit) Definem-se assim dois campos

contiacuteguos de experiecircncia externa que participam respectivamente da duraccedilatildeo de cada uma

das consciecircncias assim distribuiacutedas Como entre as duas consciecircncias trata-se da mesma

duraccedilatildeo entre as duas experiecircncias tratar-se-aacute tambeacutem de uma mesma duraccedilatildeo uma vez

que as porccedilotildees extremas do campo de cada uma das experiecircncias exteriores coincidem satildeo

comuns Logo ldquomediante esse traccedilo-de-uniatildeo elas se juntam em uma experiecircncia uacutenica

desenrolando-se numa duraccedilatildeo uacutenica que seraacute como queiram a de uma ou de outra das

duas consciecircnciasrdquo (BERGSON 2006 p 54-55) Eacute nesse ponto que Bergson insere um

raciociacutenio analoacutegico progressivo que consiste em repetir a experiecircncia indefinidamente

abrangendo a totalidade do mundo material Assim ateacute os confins da mateacuteria veremos que

ldquouma mesma duraccedilatildeo vai recolher ao longo de seu caminho os acontecimentos da

totalidade do mundo materialrdquo (BERGSON 2006 p 55)

Prestemos atenccedilatildeo por um momento agraves consciecircncias humanas que asseguram que

essa duraccedilatildeo seja a mesma de um extremo a outro da totalidade do mundo material sua

funccedilatildeo se resume em retransmitir a duraccedilatildeo que se difunde por todo o horizonte

material125

Suprimidas essas consciecircncias natildeo restaraacute mais do que ldquoo tempo impessoal em

que todas as coisas se escoaratildeordquo deixando entrever que eacute uma e mesma duraccedilatildeo que pela

multiplicaccedilatildeo de nossa consciecircncia transportamos agrave seacuterie das imagens materiais que

compotildeem o universo atestando ldquopela identidade de suas duraccedilotildees internas e pela

contiguidade de suas experiecircncias exteriores a unidade de um Tempo impessoalrdquo

124

ldquo[] caso fosse preciso decidir a questatildeo optariacuteamos no atual estado de nossos conhecimentos pela

hipoacutetese de um Tempo material uno e universal Natildeo eacute mais que uma hipoacutetese mas estaacute fundada num

raciociacutenio por analogia que devemos ter por conclusivo enquanto natildeo nos tiverem oferecido nada mais

satisfatoacuteriordquo (BERGSON 2006 p 54) 125

ldquo[] e poderemos entatildeo eliminar as consciecircncias humanas que tiacutenhamos disposto aqui e acolaacute como

retransmissores para o movimento de nosso pensamento []rdquo (BERGSON 2006 p 55)

163

(BERGSON 2006 p 55) Em siacutentese certo nuacutemero de consciecircncias de mesma natureza e

simultacircneas aplicadas duas a duas a regiotildees contiacuteguas da mateacuteria assegurariam pela

simultaneidade da percepccedilatildeo comum que as coisas duram Suprimidas essas consciecircncias

restaria apenas a simultaneidade da experiecircncia potencial do todo da mateacuteria assegurada

por um Tempo uacutenico universal que implicaria um niacutevel de consciecircncia ou de memoacuteria

A demonstraccedilatildeo bergsoniana que retraccedilamos em suas precisas articulaccedilotildees parece

remeter a um problema jaacute resolvido por ocasiatildeo da demonstraccedilatildeo da realidade do ser do

passado e de sua conservaccedilatildeo em si mesmo Se ldquonatildeo se pode falar de uma realidade que

dura sem introduzir nela uma consciecircnciardquo (BERGSON 2006 p 56) estamos

devidamente advertidos de que natildeo se pode emprestar a essa palavra um sentido

antropomoacuterfico Ao suprimir as consciecircncias humanas eacute precisamente disso que se trata

Com efeito viacuteamos que Bergson afirma ser desnecessaacuterio conceber a duraccedilatildeo nesses

termos ldquopegar a memoacuteria que nos eacute proacutepria e transportaacute-la mesmo atenuada para o

interior da coisa [] Eacute o caminho inverso que eacute preciso seguirrdquo (BERGSON 2006 p 56)

o de um tempo impessoal e em tudo inumano Eacute precisamente a ideia de simultaneidade ndash

de todo diferente em relaccedilatildeo agrave tendecircncia espacializante que se apresentava no Essai ndash que

tornaraacute possiacutevel revelar um tempo impessoal e inumano fundado em uma memoacuteria

elementar ou ontoloacutegica

De que maneira memoacuteria e consciecircncia estatildeo implicadas nesse tempo elementar

que fundaria a continuidade de um instante no outro Na medida em que eacute impossiacutevel

haver tempo ali onde natildeo haacute sucessatildeo e eacute impossiacutevel haver sucessatildeo de fato que natildeo

corresponda agrave efetuaccedilatildeo de uma continuidade virtual se supusermos como Bergson (2006

p 57) que ldquoa duraccedilatildeo eacute essencialmente uma continuaccedilatildeo do que natildeo eacute mais no que eacute Eis o

tempo real ou seja percebido e vividordquo

O tempo ldquoreal percebido e vividordquo equivale a perspectivaacute-lo desde um registro

atual que natildeo pode dar-se sem supor um campo de virtualidades heterogecircneo e contiacutenuo

que se prolonga no espaccedilo em multiplicidades descontiacutenuas em instantes que sucedem uns

aos outros Eis a copresenccedila de uma memoacuteria elementar ligando dois instantes

engendrando o presente como presente que passa e como abertura ao puro devir o atual

como a mateacuteria natildeo pode senatildeo repetir-se sozinho como ele seria capaz de desaparecer e

engendrar o porvir Para que o presente se torne ldquopresente que passardquo eacute preciso divisar o

virtual que entra no atual ndash tempo que parece poder ser dividido agrave vontade na medida em

que a inteligecircncia o concebe como solidaacuterio agrave linha que o simboliza Equivale a dizer que

seria preciso captar o fluir do tempo como um progresso indivisiacutevel e global como quem

164

apreende o todo de uma frase meloacutedica ldquofechando os olhosrdquo abstraindo suas qualidades

suprimindo as notas e os tempos que a efetuariam recolocando-a na duraccedilatildeo pura

Metodicamente trata-se de perspectivar o tempo natildeo pelo campo do atual ndash atendendo

assim ao chamado da inteligecircncia ndash mas pelo virtual e pela intuiccedilatildeo ldquo[] nossa duraccedilatildeo

interior considerada do primeiro ao uacuteltimo momento de nossa vida consciente eacute algo

parecido com essa melodiardquo (BERGSON 2006 p 58)

A indivisibilidade dessa continuidade do passado no presente e do presente no

porvir eacute algo que Bergson natildeo cessa de afirmar Se pensamos a ligaccedilatildeo entre o passado e o

futuro imediatos como a que se efetua entre dois instantes eacute porque o passado jaacute implica

uma siacutentese passiva e portanto algum niacutevel ndash ainda que impessoal e inumano ndash de

consciecircncia126

Os instantes assinalam apenas paradas artificiais que nossa atenccedilatildeo para a

vida naturalmente agrave vontade no espaccedilo procura recortar em um contiacutenuo indivisiacutevel

falhando como quem tentasse atravessar uma chama com uma lacircmina natildeo dividimos a

chama sua continuidade heterogecircnea mas apenas o espaccedilo que ela parece desenhar em seu

fundo (BERGSON 2006 p 58) Tudo se passa como se a atenccedilatildeo decalcasse o contiacutenuo

no espaccedilo transformando-o em um simples siacutembolo perdendo a continuidade indefinida e

absolutamente movente De um lado isso implica que do ponto de vista do virtual a

duraccedilatildeo natildeo seja mensuraacutevel do ponto de vista do atual que substitui a continuidade

temporal por seu decalque espacial permite que se passe do tempo indivisiacutevel ao

mensuraacutevel

Bergson estaacute ciente de que esse eacute o tempo que acreditamos viver na maior parte das

vezes natildeo o do infinito escoar de nossa duraccedilatildeo interior indivisiacutevel e movente mas o

tempo mensurado coletivo ou coacutesmico exigido pelos imperativos da vida social127

Para

tanto basta projetar nossa proacutepria duraccedilatildeo em movimento no espaccedilo ndash como a trajetoacuteria

dos astros ou dos ponteiros de um reloacutegio por um movimento apreendido segundo a linha

de seu decalque bastam para fundar um tempo mensuraacutevel dando-nos um tempo

infinitamente divisiacutevel povoado de instantes inextensos semelhantes ao ponto geomeacutetrico

aristoteacutelico que jamais permite compreender como se atravessa de um ponto a outro Natildeo

suponhamos esta criacutetica uma prova do radical psicologismo de Bergson ndash ele eacute o primeiro

126

ldquo[] natildeo se pode conceber um tempo sem representaacute-lo percebido e vivo Duraccedilatildeo implica portanto

consciecircncia e pomos consciecircncia no fundo das coisas pelo proacuteprio fato de lhe atribuirmos um tempo que

durardquo (BERGSON 2006 p 57) Em outras palavras a duraccedilatildeo engendra algo como uma consciecircncia na

medida em que sua continuidade implica uma siacutentese passiva uma contraccedilatildeo passiva ndash natildeo realizada por uma

consciecircncia humana ndash que eacute a proacutepria memoacuteria elementar que se efetua como prolongamento sucessivo 127

ldquo[] vivemos uma vida social e ateacute coacutesmica tanto ou mais do que uma vida individualrdquo (BERGSON

2006 p 60)

165

a enunciar a importacircncia vital desse tempo essa projeccedilatildeo responde agrave tendecircncia

espacializante e decalcocircmana de nossa atenccedilatildeo agrave vida128

Ela tende naturalmente ao espaccedilo

ldquoeacute uma e vaacuteriasrdquo ldquoreparte-se sem se dividirrdquo (BERGSON 2006 p 61) permite agrave

percepccedilatildeo apreender simultaneidades129

tornando interessante contar simultaneidades

proacuteprias a movimentos de corpos que natildeo sejam os do nosso

Eacute precisamente esse tempo de simultaneidades que permite resolver de uma soacute vez

a questatildeo que nos colocaacutevamos sobre a pluralidade ou o monismo da duraccedilatildeo verificando

uma uacuteltima vez a validade da hipoacutetese bergsoniana sobre o monismo de um tempo

elementar e impessoal que supotildee a memoacuteria como fundamento do tempo Nesse particular

Deleuze (1966 p 80-81) chamava a atenccedilatildeo para o exemplo com que Bergson ilustrava a

capacidade da atenccedilatildeo de ser ldquouma e vaacuteriasrdquo

Quando estamos sentados agrave beira de um rio o correr da aacutegua o deslizar de um

barco ou o voo de um paacutessaro e o murmuacuterio ininterrupto de nossa vida profunda

satildeo para noacutes trecircs coisas diferentes e uma soacute como quisermos Podemos

interiorizar o todo lidar com uma percepccedilatildeo uacutenica que carrega confundidos os

trecircs fluxos em seu curso ou podemos manter exteriores os dois primeiros e

repartir entatildeo nossa atenccedilatildeo entre o dentro e o fora ou melhor ainda podemos

fazer as duas coisas concomitantemente nossa atenccedilatildeo ligando e no entanto

separando os trecircs escoamentos graccedilas ao singular privileacutegio que ela possui de

ser uma e vaacuterias (BERGSON 2006 p 61)

No exemplo de Bergson nossa atenccedilatildeo captura um agenciamento de fluxos

simultacircneos podendo dividir-se entre a apreensatildeo de sua unidade ndash dependente do fluxo da

consciecircncia que realiza esta siacutentese (no caso a nossa duraccedilatildeo interna) ndash bem como na

apreensatildeo de cada um dos fluxos (escoar do rio voo do paacutessaro e consciecircncia interior)

Contudo outra opccedilatildeo por fim apresenta-se agrave nossa atenccedilatildeo podemos apreender unidade e

multiplicidade dos fluxos de uma soacute vez simultaneamente representando os fluxos como

contidos em um soacute ndash o nosso ndash e ao mesmo tempo como contidos em si mesmos O que

explica essas siacutenteses tatildeo disparatadas que ora nos datildeo uma duraccedilatildeo ora uma pluralidade

delas podendo implicar ainda uma terceira possibilidade de siacutentese que corresponde agrave

divisatildeo da atenccedilatildeo para apreender simultaneamente todas as direccedilotildees unitaacuteria e muacuteltiplas

desses fluxos

128

ldquo[] eacute do nosso maior interesse tomar por lsquodesenrolar do temporsquo um movimento independente daquele de

nosso proacuteprio corpo A bem dizer encontramo-lo jaacute tomado A sociedade adotou-o para noacutes Eacute o movimento

de rotaccedilatildeo da Terrardquo (BERGSON 2006 p 60) 129

ldquoChamo lsquosimultacircneasrsquo duas percepccedilotildees instantacircneas apreendidas num uacutenico e mesmo ato mental podendo

a atenccedilatildeo mais uma vez fazer delas uma ou duas agrave vontaderdquo (BERGSON 2006 p 60)

166

Parece que nos representamos os fluxos como a apreensatildeo simultacircnea de instantes

mas essa percepccedilatildeo eacute enganosa Seu erro consiste em representar como instantes imoacuteveis

fluxos atuais (Bergson diz ldquofluxos exterioresrdquo) que duram realmente concretamente que

ocupam uma duraccedilatildeo indivisiacutevel Mesmo assim Bergson afirma a existecircncia desses

muacuteltiplos fluxos exteriores como conciliaacute-los com um tempo uacutenico e universal Tudo

parece resolver-se mais uma vez em um jogo perspectivo e analoacutegico Assim como nossa

atenccedilatildeo soacute pode apreender em nossa consciecircncia a existecircncia de dois fluxos exteriores

simultacircneos supondo a duraccedilatildeo interior em que se sintetizam natildeo poderiam coexistir dois

fluxos quaisquer sem supor um terceiro fluxo em que estivessem contidos130

Se posso dizer que o fluxo de minha consciecircncia eacute simultacircneo a outro fluxo

qualquer ndash o deslizar de um barco ou o voo de um paacutessaro ndash eacute porque minha consciecircncia

desdobra-se para abarcar a si mesma como fluxo atual singular simultacircneo ao do

movimento (ou fluxo) externo atestando sua simultaneidade de acordo com um terceiro

fluxo virtual no qual ela desdobra os outros dois fluxos atuais (o murmuacuterio de minha vida

interior o voo do paacutessaro) Por isso Deleuze fala de uma triplicidade fundamental de

fluxos Soluciona-se a aparente contradiccedilatildeo que pluralidade e unidade dos fluxos e da

duraccedilatildeo parecem envolver ao surpreender-nos ldquodesdobrando e multiplicando nossa

consciecircncia transportando-a para os confins extremos de nossa experiecircncia exterior []rdquo

(BERGSON 2006 p 55) essa atitude de desdobramento de nossa consciecircncia eacute capaz de

dar-nos acesso agrave realidade do tempo universal impessoal uno e virtual que sendo

multiplicidade heterogecircnea e qualitativa reuacutene uma pluralidade de fluxos exteriores que se

desdobram simultaneamente no registro do atual Como o atual ocupa do ponto de vista do

virtual uma duraccedilatildeo e portanto uma memoacuteria ndash isto eacute como ldquoos fluxos duram realmenterdquo

ndash natildeo haacute como pensar a realidade do tempo como a sucessatildeo de presentes sempre jaacute

abertos ao devir imediato sem introduzir aiacute virtualmente uma memoacuteria elementar

ontoloacutegica fundamental que opera a siacutentese passiva que importa do ponto de vista do

atual ldquoligar instantesrdquo ldquofazecirc-los passarrdquo

Soacute haacute sucessatildeo atual do tempo porque o tempo eacute memoacuteria coexistecircncia virtual do

presente que age com o que acabou de agir e destes com o que estaacute em vias de formaccedilatildeo

130

Com efeito eacute o que Deleuze auxiliou a esclarecer com precedecircncia nessa difiacutecil passagem da obra de

Bergson ldquoLrsquoeacutecoulement de lrsquoeau le vol de lrsquooiseau le murmure de ma vie forment trois flux mais ils ne

sont tels que parce que ma dureacutee est lrsquoun drsquoentre eux et aussi lrsquoeacuteleacutement qui contient les deux autres Pourquoi

ne pas se contenter de deux flux ma dureacutee et le vol de lrsquooiseau par exemple Crsquoest que jamais deux flux

pourraient ecirctre dits coexistants ou simultaneacutes srsquoils nrsquoeacutetaient contenus dans un mecircme troisiegraveme le vol de

lrsquooiseau et ma propre dureacutee ne sont simultaneacutes que dans la meacutesure ougrave ma proacutepre dureacutee se deacutedouble et se

reacutefleacutechit en une autre qui la contient en mecircme temps qursquoelle contient le vol de lrsquooiseau il y a donc une

tripliciteacute fondamental des fluxrdquo (DELEUZE 1966 p 81-82)

167

Eacute nesse sentido que uma memoacuteria ontoloacutegica eacute fundamento do tempo que se pode afirmar

que sem memoacuteria haacute apenas repeticcedilatildeo do presente eacute impossiacutevel engendrar o novo Se

Bergson afirma que natildeo haacute duraccedilatildeo onde natildeo haacute essa memoacuteria elementar eacute porque a

memoacuteria eacute o que faz o tempo passar diferindo radicalmente de si mesma ela insere a

diferenccedila na repeticcedilatildeo do presente e o abre ao porvir Porque a realidade profunda do

tempo natildeo se resolve no desenrolar de um fio eacute a simultaneidade compreendida como

coexistecircncia de fluxos ndash natildeo de instantes que implicam a perspectiva do atual ndash que

constitui a chave para compreender a realidade e o monismo de um tempo virtual em

Bergson131

Natildeo por acaso eacute isso o que Dureacutee et Simultaneacuteiteacute natildeo cessa de repetir que apenas

esse tempo eacute real que apenas ele pode ser vivido Se ele pode povoar-se por fluxos plurais

que podem ser divididos eacute sob a condiccedilatildeo de deixar ver abaixo do ponto em que

divisamos apenas simultaneidades o iacutendice inconfundiacutevel que se insinua sob uma

pluralidade de fluxos exteriores que duram concretamente o fato de que eles duram

realmente ocupam uma duraccedilatildeo O monismo da duraccedilatildeo constituiraacute portanto uma

memoacuteria elementar na qual se desenha a coexistecircncia virtual de todos os graus de toda a

pluralidade de fluxos atuais em um soacute fluxo virtual que os conteacutem e que se confunde com

a realidade fundamental do tempo a multiplicidade virtual e no entanto real da memoacuteria

131

ldquoLa theacuteorie bergsonienne de la simultaneacuteiteacute vient donc confirmer la conception de la dureacutee comme

coexistence virtuelle de tous les degreacutes en un seul et mecircme tempsrdquo (DELEUZE 1966 p 86)

168

TERCEIRA PARTE

Linhas de atualizaccedilatildeo Bergson o aberto e a transiccedilatildeo

169

CAPIacuteTULO 6 ndash O ABERTO E A TRANSICcedilAtildeO DEMOCRACIA E

DIREITOS HUMANOS

Seguindo as linhas ontoloacutegicas descritas em suas obras precedentes em

LrsquoEacutevolution Creacuteatrice de 1907 Bergson conduziu sua ontologia a um limite

aparentemente imponderaacutevel aquele em que ela se confunde parcialmente com a gecircnese

imprevista das formas de vida em que a duraccedilatildeo implica uma vitalidade inorgacircnica e

potente e coincide em certo niacutevel com a proacutepria vida na medida em que ambas remetem

ao virtual como a realidade proacutepria de sua potecircncia A correlaccedilatildeo entre ontologia e formas

de vida permite recolocar em profundidade a questatildeo do sentido da transiccedilatildeo e assim

compreender qual seu viacutenculo com a memoacuteria na dimensatildeo da experiecircncia social ndash que

afinal constitui o campo por excelecircncia ao qual se aplica a Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo

Ao mesmo tempo colocar em jogo o sentido de transiccedilatildeo ndash que em Bergson recebe

transcriccedilotildees muito heterogecircneas (ontoloacutegicas fiacutesicas psicoloacutegicas morais sociais e

poliacuteticas) ndash permite aprofundaacute-lo em uma direccedilatildeo ainda mais radical a de seu viacutenculo

indissoluacutevel com a democracia e os direitos humanos que natildeo receberatildeo aqui uma

explicaccedilatildeo meramente histoacuterica mas genealoacutegica e estrutural aparentada ao virtual que

podem fazer passar Apenas essa explicaccedilatildeo nos autorizaraacute a compreender que as relaccedilotildees

entre transiccedilatildeo democracia e direitos humanos devem-se superficialmente agrave histoacuteria de

sua gecircnese em comum132

mas eacute justamente essa gecircnese histoacuterica partilhada que exige que

compreendamos suas implicaccedilotildees e relaccedilotildees em profundidade deduzindo delas mesmas a

funccedilatildeo transicional da memoacuteria na Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo

Esse objetivo que se confunde no limite com o de nossa proacutepria tese exige no

entanto um passo adiante consistente em compreender em que medida ele pode remeter agrave

ideia de aberto Todo esse conjunto problemaacutetico seraacute atravessado ainda que

subrepticiamente por sua relaccedilatildeo com a questatildeo das formas de vida e mais

especificamente pela questatildeo da forma de vida humana ndash a que Bergson por vezes chama

ldquoestrutura geral do espiacuterito humanordquo e que decidimos nomear ldquociacuterculo antropoloacutegicordquo

funccedilatildeo da inteligecircncia tal como saiacuteda das matildeos da natureza ndash mas tambeacutem de seu apego

mais profundo agrave proacutepria vida O homem no limiar da espeacutecie no limiar de sua forma de

vida eacute o que reencontraremos aqui em todo o seu renovado interesse deslocado na direccedilatildeo

132

Cf nesse sentido Capiacutetulo 1 ldquoA Gecircnese da Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo e o Direito Internacional dos

Direitos Humanosrdquo

170

do poliacutetico Natildeo se trata poreacutem de Bergson autor de uma teoria meramente moral ou

teoloacutegica O fechado e o aberto conceitos em funccedilatildeo dos quais todos os problemas

apareceratildeo colocados em Les Deux Sources de la Morale et de la Religion satildeo eles

proacuteprios construiacutedos em funccedilatildeo das quedas bioloacutegicas que desenham a superfiacutecie de uma

forma de vida dotada de uma irresistiacutevel tendecircncia ao fechamento agrave adaptaccedilatildeo e ao apego

agrave vida e dos movimentos de ruptura dos ciacuterculos especiacuteficos e do devir que o aberto ndash

como uma clareira no seio do ciacuterculo antropoloacutegico ndash natildeo cessa de comunicar e prolongar

fazendo do homem uma espeacutecie de termo da evoluccedilatildeo ao mesmo tempo em que o super-

homem que ele anuncia parece depocirc-lo incessantemente como um animal que convalesce

de inteligecircncia e representaccedilatildeo ndash patologia que explicaraacute todo o aparente absurdo e

irracionalidade das religiotildees estaacuteticas ao mesmo tempo em que despiraacute a obrigaccedilatildeo moral

de seu veacuteu racional Tudo enfim se coloca em funccedilatildeo da vida das potecircncias inorgacircnicas

de seu eacutelan e dessa maneira da duraccedilatildeo do virtual e das linhas de atualizaccedilatildeo da

memoacuteria

Fazecirc-lo implica no entanto retraccedilar passagens que natildeo podemos nos abster de

reconstruir uma vez que restrinjamos a anaacutelise ao estrato poliacutetico da obra de Bergson Trecircs

questotildees seratildeo os pontos de articulaccedilatildeo necessaacuterios para ultimar os temas do aberto e da

transiccedilatildeo sua compenetraccedilatildeo e suas distensotildees reciacuteprocas na direccedilatildeo da Teoria da Justiccedila

da Transiccedilatildeo

A primeira resume-se em definir de um ponto de vista biossocial o ciacuterculo

antropoloacutegico a forma de vida humana e suas tendecircncias ao fechamento Em seu

LrsquoEacutevolution Creacuteatrie Bergson o definia segundo inuacutemeras distensotildees da atualizaccedilatildeo da

inteligecircncia no entanto no niacutevel poliacutetico eacute preciso qualificaacute-la do ponto de vista dos

quadros sociais da experiecircncia que Bergson remontaraacute sem cessar ao bioloacutegico133

em um

sentido muito compreensivo que nos remete ao vital Assim trata-se da questatildeo da forma

de vida antropoloacutegica mas submetida a uma nova configuraccedilatildeo que leva as descriccedilotildees de

LrsquoEacutevolution Creacuteatrice a um campo de provas bastante heterogecircneo Precisamente esse

novo terreno de experimentaccedilatildeo permitiraacute definir em funccedilatildeo de uma forma de vida

antropoloacutegica ndash que pouco a pouco pareceraacute determinar-se por uma tendecircncia bioloacutegica ao

fechamento ndash questotildees relativas agrave moral agrave obrigaccedilatildeo e agrave relaccedilatildeo social temas que uma

vez que sejam esclarecidos em seu sentido dinacircmico contribuiratildeo para definir o problema

133

Por isso Alexandre Lefebvre (2013 ldquoBergsonrsquos Critical Philosophyrdquo In Introduction) afirma de modo

categoacuterico que o coraccedilatildeo criacutetico de Les Deux Sources estaacute no fato de que ldquo[] the source of morality is

biologyrdquo E mais adiante ldquothe source of closed morality is not society its biologyrdquo (LEFEBVRE 2013 Part

I ldquo3The colsed society Bergson and Durkheimrdquo)

171

da gecircnese dos potenciais transicionais da memoacuteria no acircmbito da Teoria da Justiccedila de

Transiccedilatildeo

A segunda questatildeo resume-se em uma tarefa que tambeacutem admite ser colocada sob a

forma de problema ldquoComo abrir o fechadordquo Tendo por base os dois capiacutetulos centrais de

Les Deux Sources uma vez que esta questatildeo esteja ndash como tudo aliaacutes ndash colocada em

funccedilatildeo da questatildeo das formas de vida tenderaacute a responder de que maneira reverter a

tendecircncia natural aparentemente irresistiacutevel ao fechamento Contudo antes disso o

fechado precisa ser conduzido um pouco aleacutem Compreendido em funccedilatildeo da proacutepria

maladie muito humana atribuiacuteda agrave inteligecircncia e agrave representaccedilatildeo como as tendecircncias

naturais que constituem causas da depressatildeo da dissoluccedilatildeo social e do desencorajamento a

tendecircncia ao fechamento encontraraacute nas religiotildees estaacuteticas uma espeacutecie de resposta vital

que possibilitaraacute ao homem permanecer apegado agrave vida malgrado toda convalescenccedila de

representaccedilatildeo Interpretando a religiatildeo em funccedilatildeo da vida Bergson descobriraacute que um salto

eacute possiacutevel a experiecircncia miacutestica tornar-se-aacute o campo de provas para a potecircncia de uma

religiatildeo dinacircmica capaz de ser definida em funccedilatildeo do aberto servir de iacutendice a uma ruptura

do ciacuterculo antropoloacutegico que pode levar o homem mais longe e mais alto do que a intuiccedilatildeo

filosoacutefica o pudera Eacute nesse sentido que Bergson poderia aparecer como uma espeacutecie de

ldquomeacutedico da civilizaccedilatildeordquo (LAPOUJADE 2010 p 77)

Contudo se responder agrave questatildeo ldquocomo abrir o fechadordquo aponta para uma praacutetica

vital natildeo esgotaraacute o fundo do problema que propomos Seraacute preciso colocar o aberto em

funccedilatildeo de um novo e uacuteltimo problema de que Bergson parece tratar com certa urgecircncia

praacutetica e poliacutetica devida agrave Primeira Guerra ndash atestada mais de uma vez entre seus

comentadores (WORMS 2011 p 292-293 SITBON-PEILLON 2012 p 15)134

Trata-se

da questatildeo que liga Bergson agrave poliacutetica definitivamente ldquoComo perseverar no abertordquo se o

miacutestico e o artista compartilham o gecircnio constituem indiviacuteduos excepcionais uacutenicos da

espeacutecie como fazer com que o aberto se comunique ou se transmita passe do individual ao

social Eacute a afetividade ou a emoccedilatildeo criadora que eles engendram que poderaacute comunicar o

aberto em profundidade tudo se passa como se sob os eus sociais definidos em

superfiacutecie houvesse uma comunidade de eus mais ou menos profundos que lanccedilados a

uma emoccedilatildeo criadora se deixariam penetrar em um niacutevel subrepresentativo O aberto se

define em funccedilatildeo da emoccedilatildeo criadora assim como as formas de vida e as conquistas

134

Nesse aspecto cf a ceacutelebre obra de Philippe Soulez (1989) Bergson politique em adiccedilatildeo Bergson a

biografia escrita a quatro matildeos por Soulez e Worms (2002) e ainda o prefaacutecio deste uacuteltimo ao quinto

volume dos Annales Bergsoniennes que tematizam renovadamente a filosofia poliacutetica de Bergson (WORMS

2012 p 29-34) Cf ainda (LEFEBVRE 2013 Part I ldquo1 A dialogue on warrdquo)

172

poliacuteticas mais antinaturais ndash a democracia os direitos humanos ndash satildeo engendradas por ela

uma espeacutecie de supraconsciecircncia Uma vez que esse noacute problemaacutetico seja constituiacutedo eacute a

questatildeo da transiccedilatildeo que se colocaraacute integralmente sob sua insiacutegnia assim como Bergson

coloca a questatildeo das sociedades fechadas e abertas da guerra e da paz ou da teacutecnica e da

mecacircnica em funccedilatildeo do aberto como eacutetica vital ndash o que como vimos significaraacute tambeacutem

em profundidade uma eacutetica ontoloacutegica

Definidas as trecircs questotildees que nos conduziratildeo ndash como se caracteriza o fechado a

sociedade humana saiacuteda das matildeos da natureza ndash como abrir o fechado e como perseverar

no aberto passemos imediatamente agrave determinaccedilatildeo do que constitui o fechado como

tendecircncia vital bem como de suas transcriccedilotildees no seio de uma filosofia moral que uma

vez que tenha sido fundada em uma metafiacutesica do idecircntico e do eterno natildeo estaraacute menos

envolvida em ilusotildees do que toda a metafiacutesica que Bergson criticou precedentemente

sect 1 O FECHADO O SOCIAL E O VITAL

Encontramos o fechado no ponto em que no limite de uma de suas linhas

divergentes o vital remete ao social no homem Portanto o fechado designa uma tendecircncia

de caraacuteter bioloacutegico originada no momento de descida da tensatildeo virtual que corresponde ao

eacutelan vital e sua alienaccedilatildeo em uma forma de vida atual a vida que encontra a mateacuteria tende

a fazer como vimos uma volta sobre si mesma fechar-se em um ciacuterculo adaptar-se agrave

ineacutercia da mateacuteria compor com ela um corpo fiacutesico organizar-se instrumental perceptiva

e afetivamente Contudo percebamos o fechado ali onde ele se manifesta no seio das

experiecircncias sociais mais tenras dos lugares de forccedila comuns a toda infacircncia e de onde

emanam os mandamentos Se o fizeacutessemos perceberiacuteamos que lhes obedecemos mais em

virtude do peso que comportam que da autoridade pessoal de quem os emite Eis o que

chamaremos mais tarde de ldquopeso da sociedaderdquo sob sua forma de pressatildeo sobre as vontades

individuais ponta uacuteltima de uma forccedila de aplicaccedilatildeo global que em tudo parece

assemelhar-se agrave solidariedade orgacircnica que manteacutem vinculadas as partes de um corpo

bioloacutegico135

A analogia contudo deveraacute ceder natildeo soacute a um liame constitutivo entre

135

ldquo[] crsquoest la socieacuteteacute Philosophant alors sur elle nous la comparerions agrave un organisme dont les cellules

unies par drsquoinvisibles liens se subordonnent les unes aux autres dans une hieacuterarchie savante et se plient

naturellement pour le plus grand bien du tout agrave une discipline qui pourra exiger le sacrifice de la partierdquo

(BERGSON 2001 p 98101-02)

173

memoacuteria e interdiccedilatildeo que aparece jaacute nas primeiras linhas de Deux Sources136

mas tambeacutem

ao fato da liberdade das vontades livres insuscetiacuteveis agrave necessidade que parecem constituir

a causa de toda associaccedilatildeo (BERGSON 2001 p 981-98202)

Embora se possa reconhecer tudo isso sem dificuldade parece haver nessa analogia

mais que uma simples comparaccedilatildeo ela constitui o iacutendice de uma miacutemesis entre sociedade e

organismos vivos em que o haacutebito desempenha o mesmo papel que a necessidade no plano

da natureza e de tal forma que ldquola vie sociale nous apparaicirct comme un systegraveme

drsquohabitudes plus ou moins fortement enracineacutees qui reacutepondent aux besoins de la

communauteacuterdquo (BERGSON 2001 p 98202) No interior dessa rija tessitura de deveres

haacutebitos de obedecer e de mandar explicam-se por certa delegaccedilatildeo social da qual

confusamente sentimos emanar uma ordem impessoal que exerce pressatildeo sobre nossa

vontade Se nos afastamos dela logo somos a ela reconduzidos e assim haacutebito e obrigaccedilatildeo

parecem coincidir

Com efeito a pressatildeo exercida pela obrigaccedilatildeo social implica uma diferenccedila natildeo

apenas de intensidade em relaccedilatildeo agrave massa confusa de nossos haacutebitos mas de natureza isso

se deve natildeo apenas agrave intensidade infinitamente maior com que opera a obrigaccedilatildeo social

mas ao fato de que as obrigaccedilotildees sociais mais ou menos intensas e no limite

infinitesimais satildeo objeto de uma exigecircncia comum que tem iniacutecio no ciacuterculo de nossas

relaccedilotildees mais proacuteximas e estende-se ateacute o ciacuterculo de nossas relaccedilotildees mais distantes cujo

limite eacute a proacutepria sociedade Dessa maneira as obrigaccedilotildees se prestam apoio muacutetuo

entrosam-se e constituem um bloco formado por ciacuterculos cada vez mais abrangentes de

exigecircncias sociais Que cada obrigaccedilatildeo mesmo a mais frugal ou a infinitamente pequena

vinculem eacute graccedilas ao todo da obrigaccedilatildeo do qual retiram sua forccedila da obrigaccedilatildeo em geral agrave

qual satildeo aparentadas agrave autoridade global do conjunto Sua analogia para com os

organismos revela mais que a mimeacutetica entre haacutebito e certa necessidade orgacircnica Na

medida em que o organismo manteacutem-se iacutentegro mediante a forccedila e a vitalidade indivisiacuteveis

das quais cada ceacutelula retira seu vigor um conjunto total de obrigaccedilotildees pressiona as

vontades por meio de um anaacutelogo da ldquovitalidade uacutenicardquo da qual as menores obrigaccedilotildees

retiram sua forccedila Assim como cada ceacutelula exprime superficialmente o todo de uma

136

ldquoLe souvenir du fruit deacutefendu est ce qursquoil y a de plus ancien dans la meacutemoire de chacun de nous comme

dans celle de lrsquohumaniteacuterdquo (BERGSON 2001 p 98101)

174

vitalidade a comparaccedilatildeo deixa entrever que cada obrigaccedilatildeo exprime o todo da

obrigaccedilatildeo137

Embora toda sociedade seja constituiacuteda por indiviacuteduos livres e o fato da

liberdade138

seja o limite da analogia que Bergson propotildee a comparaccedilatildeo natildeo cessa de ser

alimentada pela proacutepria sociedade Assemelhando as leis que mantecircm a ordem social agraves

leis da natureza interessa agrave proacutepria sociedade manter a aparecircncia de que suas leis

organizam-se mecacircnica e necessariamente se leis sociais e fiacutesicas podem ser aproximadas

as primeiras pareceratildeo adquirir a regularidade e a feiccedilatildeo eterna das segundas Confundidas

logo as leis fiacutesicas teratildeo adquirido a imperiosidade dos mandamentos sociais e estes teratildeo

adquirido a inelutabilidade natural das primeiras139

Servindo ao haacutebito a inteligecircncia nos

brinda com a representaccedilatildeo de nossa liberdade individual a reboque de todas as forccedilas

sociais acumuladas contra um nosso possiacutevel gesto egoiacutesta O ponto de vista que enxerga

os indiviacuteduos unidos por meio de uma solidariedade social similar agrave dos organismos

permite afirmar que ldquolrsquoobligation est agrave la neacutecessiteacute ce que lrsquohabitude est agrave la naturerdquo

(BERGSON 2001 p 98607) Eis o ciacuterculo em que toda individualidade permanece

engastada a de uma obrigaccedilatildeo que natildeo vem de fora dos indiviacuteduos mas eacute constitutiva

deles enquanto tais natildeo haacute sociedade ou obrigaccedilatildeo ndash Bergson natildeo deixaraacute de afirmaacute-lo ndash

sem que se suponha a liberdade ao mesmo tempo natildeo haacute obrigaccedilatildeo que natildeo venha de

137

ldquoLa force qursquoune obligation tire de toutes les autres est plutocirct comparable au souffle de vie que chacune

des cellules aspire indivisible et complet du fond de lrsquoorganisme dont elle est un eacuteleacutement La socieacuteteacute

immanente agrave chacun de ses membres a des exigences qui grandes ou petites nrsquoen expriment pas moins

chacune le toute de sa vitaliteacuterdquo (BERGSON 2001 p 98303) 138

Bergson descreve o ato livre ao final do Essai como um ato exterior que expressa a integral do eu ou de

uma alma definida por sua profundidade Como a realizaccedilatildeo de uma accedilatildeo que jaacute natildeo exprime uma ideia

superficial mas responde ao conjunto de nossos sentimentos pensamentos de nossas aspiraccedilotildees mais

iacutentimas agrave concepccedilatildeo particular de vida que equivale agrave nossa experiecircncia passada (LAPOUJADE 2010 p

15) Ou entatildeo como o mais alto grau de dois elementos que operam na proacutepria duraccedilatildeo ldquopor um lado []

exprime a totalidade do conteuacutedo ou da histoacuteria do eu singular por outro faz sentir uma forccedila ou uma

lsquoatividade vivarsquo pela qual o eu se produz a si mesmordquo (WORMS 2011 p 83) Ou entatildeo finalmente ldquolrsquoacte

libre est la lsquomanifestation exteacuterieurersquo de notre personaliteacute tout entiegravererdquo (RIQUIER 2009 p 312-313) O ato

livre eacute o contemporacircneo das variaccedilotildees contiacutenuas que constituem o eu profundo do aspecto confuso obscuro

e infinitamente moacutevel da subjetivaccedilatildeo bergsoniana sub specie durationis Sua dinacircmica eacute a mesma das

sensaccedilotildees que se modificam ao se repetir ou dos sentimentos que parecem serem seres que vivem e se

alteram sem cessar (BERGSON 2001 p 8899) Rachando a crosta superficial do eu social a liberdade potildee-

no na presenccedila de si mesmo na imanecircncia de si que eacute jaacute a diferenccedila para consigo que o ato livre expressa na

duraccedilatildeo Essa ldquorelaccedilatildeo dinacircmicardquo com a atividade do eu eacute o que o vincula agrave duraccedilatildeo como uma ldquoforccedilardquo que

faz dela no eu profundo ldquoa condiccedilatildeo metafiacutesica ou mesmo simplesmente fiacutesica da liberdaderdquo (WORMS

2011 p 84) Nesse sentido a liberdade apareceraacute em Bergson como o correlato psicoloacutegico de um

imprevisto mais profundamente ontoloacutegico 139

ldquo[] si la loi physique tend agrave revecirctir pour notre imagination la forme drsquoun commandement quand elle

atteint une certaine geacuteneacuteraliteacute reacuteciproquement un impeacuteratif qui srsquoadresse agrave tout le monde se preacutesente un peu agrave

nous comme un loi de la nature [] Une infraction agrave lrsquoordre social revecirct ainsi un caractegravere anti-naturel []rdquo

(BERGSON 2001 p 98405)

175

fora ldquoChacun de nous appartient agrave la socieacuteteacute autant qursquoagrave lui-mecircmerdquo (BERGSON 2001 p

98607)

Natildeo haacute nenhuma antinomia entre o individual e o social mas uma solidariedade e

uma constitutividade reciacuteprocas Com efeito a perspectiva da consciecircncia em profundidade

poderia revelar o rosto incomensuraacutevel de uma personalidade de um ponto de vista

superficial poreacutem o indiviacuteduo parece ser em tudo solidaacuterio a seus semelhantes submetido

a uma disciplina que cria entre ele e os demais uma dependecircncia muacutetua que define certo

equiliacutebrio superficial e no entanto soacutelido Vecirc-se pois que o tecido social eacute constitutivo do

eu superficial que nele se insere que toma corpo com as demais personalidades

exteriorizadas Solidaacuterio significa portanto tambeacutem soacutelido e indica o viacutenculo pelo qual a

obrigaccedilatildeo liga cada um de noacutes aos outros mas nos liga tambeacutem a noacutes mesmos Tudo se

passa como se uma vez que nosso eu tivesse de integrar-se agrave tessitura social ele fosse ao

mesmo tempo constituinte e constituiacutedo em relaccedilatildeo a ela O eu superficial eacute o ponto de

fixidez do eu social pois eacute constituiacutedo e cultivado em seu meio eacute a vida pela qual nos

tornamos presentes a uma sociedade mas tambeacutem eacute o signo da presenccedila da sociedade em

noacutes140

Essa presenccedila da sociedade em noacutes eacute que explicaria em que medida ela exerce um

poder irresistiacutevel capaz de aplacar por muito tempo a liberdade mais profunda Nossa

memoacuteria e nossa imaginaccedilatildeo em larga medida vivem do que a sociedade introduziu nelas

Robinson Crusoeacute em sua ilha ou o guarda Florestal de Kipling que todas as noites vestia

seu traje de gala para jantar em um casebre isolado na Iacutendia ndash a fim de natildeo perder o

respeito por si mesmo ndash denotam precisamente que natildeo eacute a presenccedila de outros homens que

determina a da sociedade uma pulsatildeo social constitutiva da proacutepria subjetividade do

ldquorespeito por si mesmordquo pode encontrar na solidatildeo o oco suficiente com o qual fazer eco

Robinson ou o guarda florestal nutrem-se da energia da sociedade agrave qual continuam

idealmente ligados seja atraveacutes dos utensiacutelios manufaturados com que Crusoeacute sobrevive

seja atraveacutes de um viacutenculo moral como o do guarda de Kipling (BERGSON 2001 p 987-

98807-10)

A presenccedila da sociedade no indiviacuteduo poderia revelar-se ainda mais sensivelmente

no caso excepcional do criminoso que se sente impelido a cobrir as evidecircncias desmanchar

a memoacuteria de um crime como se ele jamais tivesse sido praticado ou que o leva a

confessar o crime a um amigo a fim de por meio dele evitar a ruptura social que tortura

140

ldquo[] la solidariteacute sociale nrsquoexiste que du moment ougrave un moi social se surajoute en chacun de nous au moi

individuel Cultiver ce lsquomoi socialrsquo est lrsquoessentiel de notre obligation vis-agrave-vis de la socieacuteteacuterdquo (BERGSON

2001 p 986-98708)

176

sua consciecircncia sob a forma de remorso Tanto em um caso como em outro o princiacutepio

parece ser sempre o de uma inexplicaacutevel pulsatildeo social que trata de evitar a ruptura com o

todo da comunidade que o crime implica Por isso apagar vestiacutegios pode ser mais que

evitar o castigo ndash pode ser evitar o abandono ndash ou confessar o crime a um conhecido pode

significar reintegraccedilatildeo agrave consideraccedilatildeo de algueacutem que eacute agora o uacuteltimo fio que o liga agrave

tessitura social

Ao mesmo tempo em que a experiecircncia de anguacutestia moral no grande criminoso se

explicaria tanto pela presenccedila da sociedade no indiviacuteduo quanto pela inserccedilatildeo do indiviacuteduo

nela experiecircncias mais comuns ndash a do bom pai esposo e cidadatildeo ndash tambeacutem prefiguram a

constitutividade reciacuteproca entre eu individual e eu social Tomemos essa experiecircncia na

dinacircmica natildeo mais excepcional do grande criminoso mas na das obrigaccedilotildees mais

comezinhas que penetram a existecircncia quotidiana de um indiviacuteduo141

Se tomarmos o

indiviacuteduo por centro veremos avolumarem ao seu redor ciacuterculos concecircntricos e cada vez

mais amplos de prescriccedilotildees e obrigaccedilotildees de que sua vida diaacuteria deixa-se atravessar Com

efeito apesar de em cada um desses ciacuterculos e de em cada uma das situaccedilotildees uma opccedilatildeo

ser possiacutevel uma resistecircncia poder ser sempre divisaacutevel eacute mais natural ajustar-se agrave norma

quase que automaticamente (BERGSON 2001 p 99013) Mesmo que nos deixemos ir a

esmo eacute natural que cumpramos o que a sociedade espera de noacutes se nossos deveres natildeo satildeo

cumpridos de modo autocircmato o satildeo pela forccedila do haacutebito da ineacutercia de quem ndash pela

educaccedilatildeo e pelo cultivo social ndash jaacute foi inserido na tessitura dos deveres agrave custa de certo

esforccedilo No entanto a liberdade no seio social sempre denota que uma resistecircncia ao dever

eacute possiacutevel resistecircncia dirigida ao desejo ou agrave accedilatildeo egoiacutesta que visa ao bem de si proacuteprio

natildeo ao do todo Nesse sentido suplantar o proacuteprio desejo e cumprir o dever social deve ser

encarado como uma forccedila suplementar como uma resistecircncia a si mesmo (BERGSON

2001 p 99114)

Natildeo raro para resistir agrave resistecircncia que nosso desejo opotildee ao dever encontramos

razotildees para fazecirc-lo Com efeito chegamos a tais razotildees pela via intelectual cumprimos

uma obrigaccedilatildeo como que persuadidos por suas razotildees e todavia isso natildeo significa ndash como

veremos mais adiante ndash que a fonte da obrigaccedilatildeo seja racional (BERGSON 2001 p

99216) Sob a razatildeo estaacute a pressatildeo do todo da obrigaccedilatildeo do sentimento moral que busca

razotildees mas natildeo eacute determinado pela razatildeo O que Bergson quer evitar aqui eacute que

confundamos a tendecircncia a ceder diante do todo da obrigaccedilatildeo ndash o que se explicaraacute como

141

ldquoCrsquoest la socieacuteteacute qui trace agrave lrsquoindividu le programme de son existence quotidiennerdquo (BERGSON 2001 p

99012)

177

uma tendecircncia natural ndash e o meacutetodo racional pelo qual um ser inteligente age sobre si

mesmo removendo o obstaacuteculo que impedia que tal tendecircncia se manifestasse As

filosofias morais que o fazem estariam uma vez mais inebriadas pela inteligecircncia

Contudo em que consiste a forccedila dessa tendecircncia natural que pode assim

manifestar-se Eacute a ela que Bergson nomeia ldquotodo da obrigaccedilatildeordquo ldquoextrait concentreacute

quintessence des mille habitudes espeacuteciales que nous avons contracteacutees drsquoobeir aux mille

exigences particuliegraveres de la vie socialerdquo (BERGSON 2001 p 99317) A inteligecircncia que

se aplica a essa forccedila natildeo eacute sua fonte de impulsatildeo mas de loacutegica pode tatildeo somente

conferir maior niacutevel de coerecircncia racional agraves exigecircncias sociais mas natildeo seraacute essa

coerecircncia a explicar a pressatildeo que o todo da obrigaccedilatildeo exerce sobre as condutas

individuais142

A funccedilatildeo da razatildeo em moral eacute meramente reguladora enquanto essa pressatildeo

deveraacute explicar-se pela proacutepria vida

De fato Bergson assente em considerar que tardiamente sociedades civilizadas

foram capazes de conduzir as maacuteximas e regras morais historicamente erigidas a certa

sistemaacutetica bastante coerente de tal modo que um ser inteligente que se conduza por meio

delas irrefletidamente conduzir-se-aacute com certa racionalidade Todavia eacute a vida que

explica a obrigaccedilatildeo natildeo a razatildeo143

as obrigaccedilotildees nas sociedades primitivas natildeo mais

apresentaratildeo esse caraacuteter sistemaacutetico e ordenado e todavia tambeacutem entre elas vigoraraacute a

pressatildeo do todo da obrigaccedilatildeo ainda que sua moral participe bastante do acaso e do

incoerente (BERGSON 2001 p 99418) A fim de compreender o significado do todo da

obrigaccedilatildeo bastaria imaginar que a obrigaccedilatildeo exerce pressatildeo sobre uma vontade como um

haacutebito cada obrigaccedilatildeo arrasta atraacutes de si ndash agrave maneira de uma verdadeira memoacuteria social ndash

ldquola masse accumuleacutee des autresrdquo (BERGSON 2001 p 99519) e assim utiliza-se da

pressatildeo de seu conjunto Nesse sentido jaacute se pode entrever em que sentido a obrigaccedilatildeo

derivada do todo da obrigaccedilatildeo natildeo eacute mais que um ldquoil faut parce qursquoil fautrdquo um comando

simples ponta de lanccedila que exerce em um soacute local a pressatildeo do todo Eis porque ela natildeo

comporta razotildees nem se fundamenta em um a priori racional o todo da obrigaccedilatildeo como

grande memoacuteria social eacute uma construccedilatildeo cultural no tempo um efeito de cristalizaccedilatildeo no

tempo que assumindo analogamente as formas das leis fiacutesicas emite uma ilusatildeo de

142

Afinal diz Bergson (2001 p 99417) ldquoJamais aux heures de tentation on ne sacrifierait au seul besoin de

coheacuterence logique son inteacuterecirct sa passion sa vaniteacute Parce que la raison intervient en effet comme reacutegulatrice

chez un ecirctre raisonnable pour assurer cette coheacuterence entre des reacutegles ou maximes obligatoires la

philosophie a pu voir en elle un principe drsquoobligation Autant vaudrait croire que crsquoest le volant qui fait

tourner la machinerdquo 143

ldquo[] lrsquoessence de lrsquoobligation est autre chose qursquoune exigence de la raisonrdquo (BERGSON 2001 p 994-

99518)

178

eternidade Essa ilusatildeo natildeo dura mais que um momento o do puxatildeo que representa um

dever a ser cumprido pela mera pressatildeo que o todo exerce em sua regiatildeo ldquoil faut parce

qursquoil fautrdquo ndash eacute tudo o que temos Por essa razatildeo criticando a filosofia moral de Kant sob

esse aspecto Bergson (2001 p 99620) ironicamente afirma que ldquoun impeacuteratif absolument

cateacutegorique est de nature instinctive ou sonambulique []rdquo praticamente inevitaacutevel como

dever e radicalmente desarrazoado organizado pelo haacutebito que no homem natildeo passa da

imitaccedilatildeo do instinto

Decerto no campo da obrigaccedilatildeo natildeo se trata de qualquer haacutebito mas de um haacutebito

mais poderoso constituiacutedo de forccedilas acumuladas de todos os haacutebitos elementares o que

melhor imita o instinto em sua inevitabilidade Bergson leva muito longe essa miacutemesis pela

qual o haacutebito no homem prefigura o instinto nos animais Tatildeo longe que a obrigaccedilatildeo seraacute

explicada pela vida pela comunidade que o vital determina em mateacuteria social em linhas

divergentes da evoluccedilatildeo como as sociedades de tipo instintivo e as humanas Se as

procurarmos em cada uma das linhas de evoluccedilatildeo encontraremos um mesmo eacutelan

repartido entre a sociabilidade perfeita e o viacutenculo instintualmente orgacircnico das

predisposiccedilotildees sociais de insetos como as formigas e as abelhas e de outro as sociedades

humanas em que o viacutenculo quase-orgacircnico entre seus membros eacute obtido pela via da

inteligecircncia por meio do haacutebito que confere ordem e regularidade agraves accedilotildees Assim as

sociedades inteligentes se caracterizariam por um haacutebito genealogicamente enraizado de

contrair haacutebitos capazes de fundar o todo da obrigaccedilatildeo por mais que os haacutebitos contraiacutedos

sejam sempre contingentes (BERGSON 2001 p 996-99721) A obrigaccedilatildeo deriva mais

fundamentalmente de uma ldquointenccedilatildeordquo que a natureza faz passar pelas sociedades

inteligentes e que persiste nas civilizaccedilotildees mais espiritualizadas a obtenccedilatildeo de uma

sociedade em que certa margem de liberdade de accedilatildeo natildeo ameaccedilasse a tessitura social EM

LrsquoEacutevolution Creacuteatrice instinto e inteligecircncia satildeo descritos como formas de consciecircncia

que em estado rudimentar interpenetram-se e dissociam-se ao crescer originando as duas

linhas divergentes de evoluccedilatildeo ndash artroacutepodes e vertebrados (BERGSON 2001 p 608134)

As sociedades dos himenoacutepteros prolongam os instintos e utilizam instrumentos

organizados e invariaacuteveis as sociedades humanas prolongam a inteligecircncia e utilizam

instrumentos fabricados variaacuteveis e imprevistos Na medida em que os instrumentos

organizados ou natildeo satildeo empregados por cada uma dessas sociedades na execuccedilatildeo de

trabalhos especializados e ao mesmo tempo organizados e reciprocamente

complementares eacute porque algo como ldquoum vago ideal de vida socialrdquo torna-se imanente

tanto ao instinto como agrave inteligecircncia em virtude de uma comunidade de eacutelan

179

Entretanto natildeo se pode reduzir as configuraccedilotildees plurais das sociedades humanas

agravequilo que sucede por organizaccedilatildeo da natureza nas sociedades instintivas Enquanto os

indiviacuteduos que pertencem a sociedades instintivas participam da divisatildeo social do trabalho

fixados a uma funccedilatildeo especializada que decorre de sua estrutura orgacircnica invariaacutevel a

inteligecircncia fabricadora dos homens natildeo cessa de inventar instrumentos cada vez mais

adaptados a uma accedilatildeo progressivamente mais livre Pelas mesmas razotildees as sociedades

instintivas tendem a cristalizarem-se nas formas de organizaccedilatildeo saiacutedas das matildeos da

natureza enquanto as sociedades humanas detecircm a capacidade de variaacute-las144

No primeiro

caso as obrigaccedilotildees satildeo impostas por natureza no segundo apenas a necessidade de haver

uma regra eacute natural seu conteuacutedo estaacute sempre aberto agrave variabilidade e agrave inteligecircncia

humanas Natildeo fossem essas caracteriacutesticas a obrigaccedilatildeo seria instintual isso natildeo significa

que natildeo estejamos mesmo entre seres humanos diante de um instinto virtual que liga a

obrigaccedilatildeo aos fenocircmenos mais gerais da vida Esse instinto virtual consiste precisamente

em uma funccedilatildeo bioloacutegica anaacuteloga agrave do instinto nos animais mas preenchida por outros

meios que natildeo o instinto (WORMS 2011 p 300) Esse instinto virtual natildeo se manifesta

em instinto mas em reequiliacutebrios psicoloacutegicos ou inteligentes de uma regularidade

perturbada ndash o homem estaacute vinculado pelo todo da obrigaccedilatildeo e por isso se culpabiliza por

violar interditos ou ceder a desejos egoiacutestas procura e contrafaz razotildees para obedecer por

ineacutercia Haacute uma pulsatildeo social bioloacutegica naturalizada que superficialmente assume a forma

de um imperativo da qual todo imperativo retira seu vigor O fundo natural de toda

obrigaccedilatildeo ndash falemos de comunidades primitivas ou de sociedades ldquocultivadasrdquo ndash eacute o todo

da obrigaccedilatildeo a forma da obrigaccedilatildeo em geral que se apresenta sob um vieacutes cada vez mais

elementar e puro de necessidade145

Se o natural eacute recoberto pelo adquirido em grande

parte todavia o adquirido natildeo se transmite hereditariamente como o natural que persiste

por baixo de todo verniz de cultura Tudo se passa como se o primitivo natural fosse um

insistente contemporacircneo o imemorial sob o cultivado146

Eacute portanto mais em funccedilatildeo do

primitivo que do adquirido que se pode explicar o todo da obrigaccedilatildeo A um soacute tempo

144

ldquo[] dans une ruche ou dans une fourmiliegravere lrsquoindividu est riveacute agrave son emploi par sa structure et

lrsquoorganisation est relativement invariable tandis que la citeacute humaine est de forme variable ouverte agrave tous les

progregravesrdquo (BERGSON 2001 p 99722) 145

ldquo[] plus nous descendons de ces obligations particuliegraveres qui sont au sommet vers lrsquoobligation en

geacuteneacuteral ou comme nous disions vers le tout de lrsquoobligation qui est agrave la base plus lrsquoobligation nous apparaicirct

comme la forme mecircme que la neacutecessiteacute prend dans le domaine de la vie []rdquo (BERGSON 2001 p 99924) 146

ldquoNos socieacuteteacutes civiliseacutees si diffeacuterentes qursquoelles soient de la socieacuteteacute agrave laquelle nous eacutetions immeacutediatement

destineacutes par la nature preacutesentent drsquoailleurs avec elle une ressemblence fondamentalerdquo (BERGSON 2001 p

999-100025)

180

mesmo as sociedades civilizadas teratildeo de ser definidas como sociedades fechadas sob o

ponto de vista do todo da obrigaccedilatildeo de raiz bioloacutegica que as constitui

As sociedades fechadas definem-se pela tendecircncia natural a incluir certos

indiviacuteduos excluindo outros147

Eacute nos quadros de uma forma de vida atual depositada

biologicamente e que constitui uma tendecircncia ao fechamento das sociedades que se torna

preciso compreender em que sentido a exigecircncia social se encontra no fundo da obrigaccedilatildeo

moral Isso se deve a algo sobre o que Bergson natildeo cessaraacute de insistir entre sociedades

fechadas e a socidade aberta que se define como o conjunto da humanidade inteira natildeo haacute

uma diferenccedila meramente de grau mas de natureza Contudo frequentemente nos iludimos

a respeito dessa diferenccedila acreditamos ser possiacutevel passar do amor agrave famiacutelia agrave naccedilatildeo ao

amor agrave humanidade Todavia a moral macbethiana dos tempos de guerra (ldquoFair is foul

and foul is fairrdquo) deveria bastar para compreendermos que os deveres relativos agraves

exigecircncias sociais fundamentais tendem a uma sociedade fechada que inclui alguns e

exclui os demais natildeo agrave humanidade inteira O respeito agrave vida e agrave propriedade ndash comuns

como exigecircncia da vida social ndash correspondem agraves sociedades fechadas e natildeo agraves abertas

bastaria ver que a guerra os suspende e transformam o assassinato e a pilhagem em atos

meritoacuterios Fossem deveres para com a humanidade inteira e natildeo apenas dados no interior

de sociedades marcadas pelo fechamento tais deveres jamais seriam suspensos assim

como nenhum tempo de paz poderia constituir uma preparaccedilatildeo silenciosa para os tempos

de guerra No interior das sociedades fechadas a exigecircncia social que se encontra no fundo

das obrigaccedilotildees morais visa agrave coesatildeo social tatildeo densamente que Bergson (2001 p

100127) afirma que ldquolrsquoinstinct social que nous avons aperccedilu au fond de lrsquoobligation

sociale vise toujours [] une socieacuteteacute close si vaste soit-ellerdquo A moral das sociedades

civilizadas natildeo passa portanto do verniz espesso que recobre tal instinto virtual e em

larga medida essa moral cultivada retira em boa parte do proacuteprio instinto que ela ajuda a

recobrir o vigor de seus imperativos sonambuacutelicos Eles contudo natildeo visam agrave

humanidade ou ao aberto ldquo[] entre la socieacuteteacute ougrave nous vivons et lrsquohumaniteacute en geacuteneacuteral il y

a [] le mecircme contraste entre qursquoentre le clos et lrsquoouvert la diffeacuterence entre les deux

objets est de nature et non plus simplement de deacutegrerdquo (BERGSON 2001 p 100128)

147

ldquo[] le mecircme instinct tendrait probablement agrave reconstituir aujourdrsquohui si toutes les acquisitions

mateacuterielles et spirituelles de la civilisation disparaissaient du milieu social ougrave nous le trouvons deacuteposeacutees

elles nrsquoen ont pas moins pour essence de comprendre agrave chaque moment un certain nombre drsquoindividus

drsquoexclure les autresrdquo (BERGSON 2001 p 100025) Ainda ldquo[] ce nrsquoest pas en eacutelargissant la citeacute qursquoon

arrive agrave lrsquohumaniteacute entre une morale sociale et une morale humaine la differeacutence nrsquoest pas de degreacute mais de

naturerdquo (Idem ibidem p 100431)

181

Iludimo-nos frequentemente sobre a possibilidade de ampliar de grau em grau a

solidariedade entre os homens representando a famiacutelia e a naccedilatildeo como ciacuterculos contidos

em um ciacuterculo mais abrangente em tudo semelhante aos menores e que corresponderia agrave

humanidade Todavia basta comparar o amor agrave humanidade ao amor agrave paacutetria por

exemplo para concluir que as exigecircncias relativas agrave coesatildeo social derivam em grande

parte justamente do fechamento da necessidade de defender-se de inimigos do exterior a

religiatildeo por outro lado operaria a milagrosa passagem do amor a nossos parentes e

concidadatildeos ao amor agrave humanidade148

auxiliaria a iludir-nos de que chegaremos a amar a

humanidade de grau em grau quando para isso seria necessaacuterio um salto Signo dessa

diferenccedila de natureza o salto exprime a passagem a uma outra forma de obrigaccedilatildeo social

diferente da pressatildeo da moral fechada e vem ao encontro do amor agrave humanidade que

Bergson chama de ldquomoral completa ou absolutardquo

A moral completa diverge da forma de pressatildeo social emprestada ao todo da

obrigaccedilatildeo nas sociedades fechadas ela natildeo se resolve em imperativos impessoais Pelo

contraacuterio encarna-se em personalidades excepcionais que se convertem em exemplo Tais

exemplos triunfais ou heroicos jaacute natildeo impotildeem a aceitaccedilatildeo de nenhuma lei de qualquer

universal mas constituem a singularidade que convida agrave imitaccedilatildeo comum ndash arrastam

multidotildees atraacutes de si sem sequer exortaacute-los Eacute como se houvesse apenas um chamado agrave

miacutemesis natildeo haacute empurratildeo pressatildeo haacute apenas um chamado que procede de uma

personalidade moral excepcional Sua forccedila adveacutem da proacutepria existecircncia dessa

personalidade moral arrebatante que natildeo persuade pela razatildeo mas funde as maacuteximas em

sua singularidade (BERGSON 2001 p 1003-100429-31) Sua diferenccedila radical para com

a moral das sociedades fechadas estaacute precisamente em fazer ndash como os santos do

cristianismo os profetas de Israel os saacutebios gregos ou os iluminados do budismo ndash um

apelo agrave humanidade inteira natildeo mais agraves exigecircncias sociais149

A miacutemesis permite que uma

foacutermula do aberto persista entre noacutes por muito tempo inconsciente ou descarnada agrave

espreita ou em estado virtual Sua espera talvez indefinida determina-se em funccedilatildeo do

tempo da oportunidade dos potenciais de subjetivaccedilatildeo basta que a foacutermula se preencha

de mateacuteria e a mateacuteria se anime para que possa nascer uma nova forma de vida150

Nesse

148

ldquo[] la religion convie lrsquohomme agrave aimer le genre humainrdquo (BERGSON 2001 p 100228) 149

ldquo[] la seconde morale [] diffeacutere de la premiegravere en ce qursquoelle est humaine au lieu drsquoecirctre seulement

socialerdquo (BERGSON 2001 p 100431) 150

Eis a bela passagem em que Bergson (2001 p 100532) descreve a sobrevivecircncia virtual do aberto em

algumas foacutermulas ldquo[] il suffit [] que la formule soit lagrave elle prendra tout son sens lrsquoideacutee qui viendra le

remplir se fera agissante quand une occasion se preacutesentera Il est vrai que pour beaucoup lrsquooccasion ne se

preacutesentera pas ou lrsquoaacutection sera remise agrave plus tard Chez certains la volonteacute srsquoeacutebranlera bien un peu mais si

182

sentido o chamado que proveacutem do aberto e atravessa uma personalidade excepcional ecoa

como uma linha de atualizaccedilatildeo imponderaacutevel constitui-se na espreita que define o virtual e

sustenta-se pela miacutemesis mais ou menos descarnada dos seguidores que natildeo raro

inconscientemente atendem a seu chamado

A atitude moral do homem que responde agraves exigecircncias sociais de fechamento eacute

sem duacutevida a de um ser inteligente que sobretudo pode agir de maneira utilitaacuteria e

egoiacutesta Se agir assim arriscaraacute contrariar aquilo que exige o interesse geral Todavia logo

se vecirc que a moral utilitaacuteria e egoiacutesta do ser inteligente preocupado com seu proacuteprio bem-

estar dissimula sob si a accedilatildeo do instinto natural que o impulsiona agrave integraccedilatildeo social151

Natildeo haacute nenhum paradoxo nessa dinacircmica na medida em que essa pulsatildeo social relaciona-

se agrave obrigaccedilatildeo o indiviacuteduo viveraacute tanto pela sociedade quanto para si mesmo Eis porque a

alma se fecha em um ciacuterculo ndash porque social e individual se curto-circuitam (BERGSON

2001 p 100634) A alma aberta por sua vez implica uma atitude inteiramente diversa

ela abrange uma potecircncia amorosa definida mais do que pelo amor agrave humanidade pelo

amor aos animais plantas a toda a natureza e a todo o existente ndash e ao dizecirc-lo ainda natildeo

teremos ido longe demais Ela abrange todo o ser e todo poder ser independentemente de

seus conteuacutedos acidentais a alma aberta constitui-se por uma forma de amor total natildeo

totalizaacutevel aberto virtual e imponderaacutevel152

Entre as almas fechada e aberta verifica-se a

mesma diferenccedila de natureza que verificaacutevamos entre sociedades fechada e aberta O amor

ao todo natildeo eacute o amor familiar ou nacional dilatados pois os primeiros implicam exclusatildeo

podem incitar agrave violecircncia e agrave guerra o uacuteltimo por sua vez atinge a humanidade e a

ultrapassa cria-se um amor sobre-humano Em siacutentese o amor agrave humanidade vale por

aquilo que a ultrapassa

A atitude moral da alma aberta exige no entanto uma explicaccedilatildeo Sabemos de

onde uma moral fechada extrai sua forccedila ndash ela foi pretendida pela natureza ela eacute

engendrada pelo todo da obrigaccedilatildeo pelo qual o instinto exerce pressatildeo sobre o haacutebito

Contudo a atitude moral da alma aberta parece exigir um esforccedilo na medida em que natildeo eacute

predisposta pela natureza Se ela natildeo eacute o resultado de um alargamento progressivo dos

amores da alma fechada e se ela se constitui a partir de um chamado por que ele seria

peu que la secousse reccedilue pourra en effet ecirctre attribueacutee agrave la seule dilatation du devoir social eacutelargit et affaibli

en devoir humain Mais que les formules se remplissent de matiegravere et que la matiegravere srsquoanime crsquoest une vie

nouvelle qui srsquoannonce nous compenons nous sentons qursquoune autre morale survientrdquo 151

ldquo[] au-dessous de lrsquoactiviteacute intelligente qui aurait en effet agrave opter entre lrsquointerecirct personnel et lrsquointerecirct

drsquoautrui il y a bien un substratum drsquoactiviteacute instinctive primitivement eacutetablie par la nature ouacute lrsquoindividuel et

le social sont tout pregraves de se confondrerdquo (BERGSON 2001 p 100633) 152

ldquoSa forme ne deacutepend pas de son contenu [] La chariteacute subsisterait chez celui qui la possegravede lors mecircme

qursquoil nrsquoy aurait plus drsquoautre vivant sur la terrerdquo (BERGSON 2001 p 100734)

183

atendido de onde ela retira a sua forccedila A resposta aparentemente lacocircnica de Bergson

pode soar surpreendente mas confere ao afeto e agrave emoccedilatildeo um lugar privilegiado em sua

obra (WORMS 2011 p 324) ndash jaacute natildeo estivesse este dado pelo proacuteprio lugar do

imponderaacutevel sentimento de amor que o aberto implica ldquoEn dehors de lrsquoinstinct et de

lrsquohabitude il nrsquoy a de lrsquoaction direct sur le vouloir que celle de la sensibiliteacute La propulsion

exerceacutee par le sentiment peut drsquoailleurs ressembler de pregraves agrave lrsquoobligationrdquo (BERGSON

2001 p 100835) Tudo se passa como se focircssemos inteiramente penetrados por uma

emoccedilatildeo musical natildeo se trata de introduzir uma emoccedilatildeo em noacutes mas de introduzir-nos em

uma emoccedilatildeo fundamental ao sabor da qual todo o nosso ser vibra com a qual todos os

nossos sentimentos ressoam e a que todas as nossas accedilotildees e desejos parecem responder

(BERGSON 2001 p 100836) A emoccedilatildeo eacute criadora na medida em que lanccedila ao mundo

uma nova nota fundamental e com ela sentimentos elementares aos quais uma

personalidade pode fazer eco ou com os quais poderaacute ressoar

Notemos que Bergson sempre faz interferir uma metaacutefora musical no momento em

que o novo ou o devir explicam-se pela duraccedilatildeo ou pelo tempo Jaacute natildeo haacute mais uma

duraccedilatildeo meloacutedica mas uma nota fundamental que se propaga entre personalidades no

tempo que pode permanecer agrave espreita que pode ser agida que pode estimular a criaccedilatildeo

mas tambeacutem a accedilatildeo com a qual esta se confunde no seio do poliacutetico e do social O proacuteprio

tempo define-se portanto segundo um segmento afetivo Eacute preciso tempo para que a

sensibilidade recolha um afeto vibre com ele estenda-o modifique-o ou o comunique da

mesma forma eacute no tempo que uma nota fundamental eacute criada eacute na duraccedilatildeo que ela pode

ecoar indefinidamente seguindo seu contiacutenuo virtual coexistindo com um sem nuacutemero de

outras notas fundamentais e melodias que por sua vez engendram outros afetos e outras

linhas de subjetivaccedilatildeo capazes de interferir com uma personalidade Sob a emoccedilatildeo ou a

criaccedilatildeo natildeo haacute como natildeo perceber a duraccedilatildeo em que elas se desenrolam sem cessar

Contudo eacute preciso discernir de que tipo de emoccedilatildeo se estaacute falando em que consiste

essa emoccedilatildeo na qual toda criaccedilatildeo ndash artiacutestica ou cientiacutefica ndash apareceraacute enodada Bergson

(2001 p 101140) fala dela como de um estremecimento afetivo da alma de um revolver

das profundezas um estimulante para a accedilatildeo e o pensamento ndash emoccedilatildeo capaz de gerar

ideias Haacute com efeito algo como uma emoccedilatildeo que coincide apenas com uma agitaccedilatildeo

afetiva superficial decorre de uma ideia ou imagem representada deve-se em suma a um

estado intelectual do qual procede A sensibilidade agita-se como efeito de uma agitaccedilatildeo

superficial relativa a estados intelectuais nada profundos Trata-se pois de uma emoccedilatildeo

infraintelectual Por outro lado a emoccedilatildeo que Bergson afirma ser verdadeiramente criadora

184

eacute supraintelectual153

natildeo no sentido em que eacute axiologicamente superior agrave inteligecircncia mas

que eacute anterior a ela no tempo Natildeo nascendo de uma ideia a emoccedilatildeo engendra ideias e

representaccedilotildees designa a potecircncia da alma para uma sensibilidade profunda que se

prolonga em gecircnio esforccedilo e paciecircncia por toda parte na ciecircncia como na literatura154

Trata-se portanto de uma emoccedilatildeo ativa que natildeo apenas impele agrave accedilatildeo mas conduz-se por

uma sensibilidade em profundidade da integral da alma tal como aparecia no Essai

Worms (2011 p 324) assinala que essa emoccedilatildeo proveacutem da alma como ldquouma tomada do eu

por inteiro e natildeo de uma parte emotiva ou de uma faculdade separada []rdquo nesse sentido

a emoccedilatildeo designa o fundo ativo e total de uma personalidade que se constitui pela accedilatildeo da

proacutepria duraccedilatildeo que faz memoacuteria consigo que natildeo cessa de variar Emoccedilatildeo criaccedilatildeo e

duraccedilatildeo confundem-se ao infinito no niacutevel de atualizaccedilatildeo de uma personalidade com elas

eacute a proacutepria personalidade que eacute criada como linha de subjetivaccedilatildeo que uma obra ou nota

fundamental podem ajudar a completar

Sendo supra e natildeo infraintelectual diziacuteamos a emoccedilatildeo antecede a representaccedilatildeo

engendra a ideia ao inveacutes de ser engendrada por ela Tudo se passa como se a inteligecircncia

fosse entatildeo impelida por uma espeacutecie de gozo antecipado em resolver um problema em

avanccedilar sem cessar vitalizando as representaccedilotildees que gera e com as quais seu encontro se

determina no enunciado de um problema capaz talvez de conduzi-la a uma soluccedilatildeo

Tambeacutem a coincidecircncia entre um autor e seu assunto vecirc a inteligecircncia consumir-se em

ldquolrsquoeacutemotion originale et uniquerdquo (BERGSON 2001 p 101443) em uma intuiccedilatildeo Se a

inteligecircncia pode abandonar-se a articular e rearticular ideias palavras e soacutelidos a emoccedilatildeo

natildeo trabalha a frio a intuiccedilatildeo funde os materiais fornecidos pela inteligecircncia e a emoccedilatildeo

constitui a causa virtual das ideias representaccedilotildees e palavras que a exprimem155

Com

efeito se a gecircnese moral se deve em profundidade agrave emoccedilatildeo ela sempre pode cristalizar-se

em representaccedilatildeo e constituir uma estrutura como se o aberto da emoccedilatildeo se fechasse na

clausura da representaccedilatildeo exatamente como o eacutelan eacute abertura vital que volta a se fechar

sob uma forma de vida atual No social como no vital natildeo se pode explicar o

engendramento pelo engendrado o virtual pelo atual apenas o contraacuterio eacute possiacutevel Para

aderirmos a uma moral natildeo basta a coerecircncia racional eacute preciso que a atmosfera da

emoccedilatildeo que a criou esteja de alguma forma presente assim jaacute natildeo nos obrigamos

153

ldquoCreacuteation signifie avant tout eacutemotionrdquo (BERGSON 2001 p 101342) 154

ldquoSeule en effet lrsquoeacutemotion du second genre peut devenir geacuteneacuteratrice drsquoideacuteesrdquo (BERGSON 2001 p

101241) 155

ldquo[] agrave cocircteacute de lrsquoeacutemotion qui est lrsquoeffet de la repreacutesentation qui la contient virtuellement et qui srsquoy

surajoute il y a celle qui precegravede la repreacutesentation qui la contient virtuellement et qui en est jusqursquoagrave un

certain point la causerdquo (BERGSON 2001 p 101444)

185

puramente mas cedemos agrave inclinaccedilatildeo que a emoccedilatildeo nos imprime (BERGSON 2001 p

101545)

Na medida em que a moralidade fechada do instinto social define-se pela pressatildeo

capaz de opor agraves vontades individuais cristalizando-se a emoccedilatildeo em imperativo a

moralidade aberta define-se por uma aspiraccedilatildeo que resiste a essa natureza e ao inveacutes do

prazer e do estado de bem-estar geral que caracterizam a normalidade do que Bergson

chama de ldquosociedades afrodisiacuteacasrdquo o aberto concede-nos um sentimento no qual todo

prazer se envolve e absorve ndash a alegria Enquanto o prazer remete ao fechado ao

imobilismo confortaacutevel do bem-estar a alegria remete ao entusiasmo e agrave aspiraccedilatildeo proacutepria

dos miacutesticos e das individualidades excepcionais156

Na medida em que a vida se dividiu

em espeacutecies e tendo obtido a espeacutecie humana dividiu-a em indiviacuteduos como seus

momentos de parada virtual satildeo os indiviacuteduos que podem conduzir a vida um pouco aleacutem

de si mesmos eacute por meio de certos indiviacuteduos excepcionais que a humanidade pode ser

arrastada a um sentimento de coincidir com o esforccedilo gerador da vida (BERGSON 2001

p 102051) Suas personalidades compreendidas como singularidades abertas agrave accedilatildeo da

duraccedilatildeo variando em funccedilatildeo dela constituem os pontos luminosos em que o aberto

constitui-se como o momento em que o esforccedilo criador da vida ultrapassa a forma criada

em que a potecircncia inorgacircnica do virtual leva o atual mais aleacutem de si mesmo e se inventam

novas formas de vida e de pensamento Essa invenccedilatildeo soacute eacute possiacutevel poreacutem no seio afetivo

de uma emoccedilatildeo criadora que constitui essa propulsatildeo profunda de que a criaccedilatildeo eacute o

expresso157

As formas de vida atuais especiacuteficas ou morais satildeo apenas a imagem fria e

paacutelida dessa emoccedilatildeo criadora cinzas sobre a brasa sua cristalizaccedilatildeo temporaacuteria

Encontramo-nos portanto diante de duas morais Uma fechada agrave qual o homem

estaacute predestinado por sua estrutura natural que visa a conservaacute-lo como ser ao mesmo

tempo inteligente e sociaacutevel outra aberta pela qual alguns indiviacuteduos excepcionais

parecem romper parcialmente com a natureza ndash no sentido da moralidade fechada agrave qual

estavam predestinados ndash colocando-se uma vez mais no sentido do eacutelan vital (BERGSON

2001 p 102356) Eis o que faz com que a moral fechada constitua apenas um momento

156

ldquoIls sont [plaisir et bien-ecirctre] en effet arrecirct ou piegravetinement sur place tandis qursquoelle [la joie] est marche en

avantrdquo (BERGSON 2001 p 102457) As expressotildees entre colchetes natildeo constam do original 157

ldquo[] crsquoest toujours dans un contact avec le principe geacuteneacuterateur de lrsquoespegravece humaine qursquoon srsquoest senti

puiser la force drsquoaimer lrsquohumaniteacute Je parle bien entendu drsquoun amour qui absorbe et reacutechauffe lrsquoacircme entiegravererdquo

(BERGSON 2001 p 102152)

186

da moralidade aberta158

como se o dinacircmico absorvesse o estaacutetico e o explicasse em

profundidade

O fechado saiacutedo das matildeos da natureza e o aberto pelo qual se rompe em certa

medida com a natureza naturada para aceder agrave natureza naturante constituem o dualismo

fundamental que atravessa por toda a extensatildeo de Les Deux Sources (WORMS 2011 p

286) No entanto natildeo haveria uma alma que se abre Entre o estaacutetico e o dinacircmico natildeo

haveria uma moral de transiccedilatildeo (BERGSON 2001 p 102862) Esse natildeo seria

precisamente o estado da inteligecircncia entre o infra e o supraintelectual meio-termo entre

duas tendecircncias puras Com efeito eis o que Bergson afirma159

e a inteligecircncia definir-se-

ia entatildeo por uma insuficiecircncia de impulsatildeo Persistindo na ataraxia ou na apatia a

inteligecircncia encontraria na pura contemplaccedilatildeo e em uma moralidade do desprendimento

da alma estoica um prolongamento natural Todavia uma alma e uma moralidade de

transiccedilatildeo entre o aberto e o fechado parecem colocar de imediato uma questatildeo de que

ainda natildeo podemos nos aproximar senatildeo por tateio a questatildeo sobre como abrir o fechado

Se por ora natildeo podemos tocar senatildeo sua sombra estamos advertidos que a alma pode ser

atravessada por dois movimentos de sentidos inversos ldquoCe qui est aspiratoin tend agrave se

consolider en prenant la forme de lrsquoobligation strict Ce qui est obligation strict tend agrave

grossir et agrave srsquoeacutelargir en englobant lrsquoaspirationrdquo (BERGSON 2001 p 103064)

Cristalizaccedilatildeo e fluxo solidificaccedilatildeo e fusatildeo

Sob o plano intelectual em que os imperativos morais interpenetram-se sob a forma

de conceitos pressatildeo e aspiraccedilatildeo satildeo duas forccedilas profundas que correspondem a duas

formas de obrigaccedilatildeo (BERGSON 2001 p 104382) Como expressos de tendecircncias puras

ao fechamento e agrave abertura que natildeo existem senatildeo como limites ideais um misto de ambas

forjaraacute a estrutura social afinal assim como o homem natildeo eacute puramente inteligecircncia ou

intuiccedilatildeo as sociedades humanas natildeo satildeo nem puramente instintuais e orgacircnicas como natildeo

poderiam ser puramente miacutesticas160

Poreacutem assim como isso natildeo retira a realidade da

obrigaccedilatildeo nua tampouco subtrairaacute de nossa consideraccedilatildeo o fato de que mesmo no interior

das sociedades mais civilizadas satildeo as almas miacutesticas que as arrastam em seu conjunto

sem cessar elas eacute que podem ser revivificadas por cada um de noacutes seguidores ou

imitadores e ela natildeo cessa de exercer sobre noacutes certa atraccedilatildeo que Bergson diz ser ldquovirtualrdquo

Pressatildeo e aspiraccedilatildeo correspondem a duas ordens de forccedilas uma infraintelectual instintiva

158

ldquoLa morale courant nrsquoest pas abolie mais elle se preacutesente comme un moment le long drsquoun progregravesrdquo

(BERGSON 2001 p 102558) 159

ldquoEntre les deux il y a lrsquointelligence mecircmerdquo (BERGSON 2001 p 102963) 160

ldquoLrsquoaspiration pure est une limite ideacuteale comme lrsquoobligation nuerdquo (BERGSON 2001 p 104685)

187

naturalizada como um fato da vida outra supraintelectual intuitiva que faz passar por uma

forma dada o impulso vital que eacute a causa profunda de sua gecircnese Se respondemos ao

chamado miacutestico em maior ou menor grau isso se deve agrave forccedila da proacutepria emoccedilatildeo outrora

provocada A correlaccedilatildeo das duas formas em regiotildees diferentes da alma permite uma

projeccedilatildeo contiacutegua agrave inteligecircncia (BERGSON 2001 p 1046-104785-86) Eis o que nos

coloca acima da sociabilidade meramente animal mas abaixo de uma sociedade aberta eis

tambeacutem a regiatildeo em que a moral parece compor-se por projeccedilatildeo com a razatildeo o que

permite reconduzi-la coerentemente a princiacutepios

Bergson insiste no entanto que esta eacute uma projeccedilatildeo meramente racional da moral

Como vimos sua causa natildeo eacute intelectual mas mais profunda161

seu enigma eacute explicado

pela vida em sentido infra ou supraintelectual nos sentidos de sua cristalizaccedilatildeo ou de sua

gecircnese dinacircmica A polecircmica estabelece-se de forma franca com a filosofia moral kantiana

mas tambeacutem se dirige contra qualquer pretensatildeo de fundar a moral a partir da loacutegica Nem

o egoiacutesmo nem a paixatildeo cedem agrave inteligecircncia ou ao espiacuterito especulativo Ao mesmo

tempo natildeo se poderia fundar a moral em criteacuterios unicamente racionais sem inserir sub-

repticiamente forccedilas de ordem diferente (BERGSON 2001 p 105090-91) A sociedade

estaacute dada na proacutepria forma de vida humana sob a forma de instinto virtual haacutebito de

contrair haacutebitos e por meio dessa dinacircmica tenderaacute a conservar-se o maacuteximo que puder

Nesse contexto o que a razatildeo faraacute eacute eleger um princiacutepio sistematicamente coerente

adequado a esta finalidade conservadora da sociabilidade que seraacute repartido coletivamente

segundo a pressatildeo que o todo da obrigaccedilatildeo exerce estaacute portanto carregado das tendecircncias

que a moral social depositou nele A razatildeo veraacute aspiraccedilotildees prolongando princiacutepios morais

prestes a se tornarem imperativos mas tanto uns quanto outros resultam da atmosfera

social na qual satildeo ldquopressentidosrdquo (BERGSON 2001 p 105292-93) Se uma obrigaccedilatildeo eacute

necessaacuteria e ateacute mesmo biologicamente predisposta seus conteuacutedos equivalem a valecircncias

livres que podem ser soldadas agrave inteligecircncia a qual permanece incapaz por si de explicar

a origem da obrigaccedilatildeo Com efeito a vida poderia ter se limitado a fabricar sociedades

fechadas e a garantir sua coesatildeo por meio de viacutenculos obrigacionais estritos entre seres

inteligentes cuja inteligecircncia natildeo teria chegado ao ponto de estimular nenhuma

transformaccedilatildeo radical (BERGSON 2001 p 105597)

161

ldquo[] de ce qursquoon aura constateacute le caractegravere rationnel de la conduite morale il ne suivra pas que la morale

ait son origine ou mecircme son fondement dans la pure raisonrdquo (BERGSON 2001 p 104786) ldquoBref et pour

tout reacutesumer il ne peut ecirctre question de fonder la morale sur le culte de la raisonrdquo (Idem ibidem p 105090)

188

Sua mutaccedilatildeo depende portanto de um salto qualitativo em relaccedilatildeo agrave inteligecircncia

de almas que Bergson diz serem excepcionais ou privilegiadas que natildeo se limitavam pela

solidariedade ao grupo mas abriam-se ao amor agrave humanidade Do ponto de vista da vida

sua apariccedilatildeo teria sido tatildeo luminosa e intensa que tudo se passa como se cada indiviacuteduo

constituiacutesse em si mesmo uma nova espeacutecie ponto de passagem do eacutelan vital a partir do

qual seu impulso pode prolongar-se mais aleacutem de uma forma de vida atual (BERGSON

2001 p 105698) Jaacute natildeo seriam mais sujeitos manifestando seu amor mas um amor

manifestando-se atraveacutes dessas individualidades penetradas por uma emoccedilatildeo criadora que

seria como um transbordamento de vitalidade A simples evocaccedilatildeo de seus nomes ainda

hoje comunicam algo dessa forccedila original produzem uma atraccedilatildeo mais ou menos

irresistiacutevel sejam eles Buda Jesus ou Soacutecrates

Os nomes ainda parecem fazer passar atraveacutes de si algo de um impulso original

como se fossem clareiras rescendentes de uma emoccedilatildeo criadora que coincide com o

proacuteprio eacutelan vital Nesse plano eacute possiacutevel notar que pressatildeo social e impulso de amor satildeo

duas manifestaccedilotildees complementares da mesma vida em sentidos diferentes tais como

duraccedilatildeo e espaccedilo ou espiacuterito e mateacuteria originalmente articuladas para conservar a forma

social caracteriacutestica da espeacutecie humana excepcionalmente e graccedilas a indiviacuteduos satildeo

capazes de se transfigurar (BERGSON 2001 p 105798-99) Eis em que sentido a

experiecircncia miacutestica se torna o campo de provas privilegiado dessa tese para aleacutem de

qualquer interpretaccedilatildeo da proacutepria miacutestica e a despeito de seus conteuacutedos nela os miacutesticos

jaacute natildeo satildeo mais seres de pura contemplaccedilatildeo e ecircxtase mas verdadeiros homens de accedilatildeo

encarnaccedilotildees de potenciais de transformaccedilatildeo de modos de vida aqueles que ldquosrsquoouvrent

simplement au flot qui les envahitrdquo (BERGSON 2001 p 1059102)

Na medida em que compreendemos o fundo vital por detraacutes da obrigaccedilatildeo e da

moralidade em sentidos tanto infra quanto supraintelectuais a religiatildeo natildeo deixaria de

colocar novos problemas com relaccedilatildeo agrave vida mas tambeacutem com relaccedilatildeo agrave inteligecircncia A

fim de que possamos nos aproximar do cerne da discussatildeo da transiccedilatildeo ndash que se dissimula

sob as questotildees ldquocomo abrir o fechadordquo e ldquocomo perseverar no abertordquo ndash seria preciso

atendo-nos apenas ao essencial aprofundar como a religiatildeo constitui tambeacutem ela uma

exigecircncia da proacutepria vida

A primeira perplexidade de supor a existecircncia de uma religiatildeo natural aos homens

pressentida em diferentes niacuteveis de elaboraccedilatildeo nas sociedades humanas ditas primitivas e

presente tambeacutem nas sociedades civilizadas eacute a aparente contradiccedilatildeo entre o mosaico de

189

aberraccedilotildees que as religiotildees constituem em relaccedilatildeo agrave inteligecircncia No entanto a tese

genuinamente antropoloacutegica de Bergson sobre a existecircncia de uma religiatildeo natural ou

primitiva que natildeo teria desaparecido na civilizaccedilatildeo ndash mas se encontraria recoberta por

camadas superficiais de educaccedilatildeo e variabilidade cultural ndash vai precisamente ao encontro

da destituiccedilatildeo desse aparente paradoxo Se por um lado as supersticcedilotildees que habitam o

fundo de toda religiatildeo parecem humilhar a inteligecircncia (BERGSON 2001 p 1061105)

por outro elas natildeo constituem exclusividade das mentalidades preacute-loacutegicas de Leacutevy-Bruhl

tais exigecircncias religiosas primitivas encontrar-se-iam copresentes aos modos de vida

civilizados na medida em que se constituiriam a partir da ldquostructure geacuteneacuterale de lrsquoesprit

humainrdquo (BERGSON 2001 p 1063107) Natildeo haacute pois diferenccedila de natureza entre a

mentalidade primitiva e a inteligecircncia saiacutedas das matildeos da natureza elas correspondem a

uma e mesma direccedilatildeo de desenvolvimento do eacutelan vital tatildeo inatos quanto a linguagem o

bom senso e o senso social no homem normal Natildeo eacute portanto em razatildeo da sociabilidade

que o homem difere estruturalmente dos himenoacutepteros ndash vimos outrossim que a

sociabilidade eacute uma tendecircncia comum a ambas as linhas divergentes de evoluccedilatildeo ndash mas

sim em razatildeo da indeterminaccedilatildeo que a inteligecircncia insere como potencial especiacutefico da

forma de vida do primeiro e que o instinto do segundo inibe Incapazes da inteligecircncia da

representaccedilatildeo e da invenccedilatildeo os insetos permanecem vinculados agrave vida pelo instinto que

nada mais eacute que o prolongamento natural do eacutelan nas formas de vida que o instinto habita

Na medida em que os insetos natildeo representam e o instinto assegura que suas accedilotildees sejam

necessaacuterias fixas e organicamente ordenadas as sociedades de himenoacutepteros natildeo

desenvolvem as supersticcedilotildees proacuteprias aos homens

Poreacutem como explicar no homem representaccedilotildees que engendram supersticcedilotildees A

resposta de Bergson descarta a imaginaccedilatildeo as funccedilotildees loacutegicas do espiacuterito para limitar-se agrave

descriccedilatildeo de uma funccedilatildeo que apesar de indeterminada encontra-se preacute-formada no

homem e ligada agrave vida em geral Trata-se da funccedilatildeo fabuladora que permitiraacute que tudo seja

explicado em profundidade pela vida em razatildeo de lrsquoattachement agrave la vie mas que

encontraraacute uma explicaccedilatildeo superficial a um soacute tempo individual e social162

Isso implica

poreacutem que compreendamos o sentido dessa necessidade natural a exigir uma funccedilatildeo

fabuladora como o efeito da religiatildeo

162

ldquo[] par rapport agrave la religion cette faculteacute [la fonction fabulatrice] serait effet et non pas cause Un

besoin peut-ecirctre individuel en tout cas social a ducirc exiger de lrsquoesprit ce genre drsquoactiviteacuterdquo (BERGSON 2001

p 1067112)

190

Tudo se passa como se a inteligecircncia consistisse em uma inclinaccedilatildeo perigosa tanto

ao indiviacuteduo quanto agrave sociedade Se entre os himenoacutepteros o instinto forja as accedilotildees que

correspondem a uma sociedade perfeita em que cada indiviacuteduo se encontra

organizadamente vinculado ao todo desempenha sua funccedilatildeo resultante de uma dada

inclinaccedilatildeo natural e estrutural entre os indiviacuteduos que participam de sociedades humanas

a inteligecircncia exerce uma funccedilatildeo duacuteplice na natureza A inteligecircncia permite a reflexatildeo ndash

que eacute capaz de transformar invenccedilatildeo em variabilidade e liberdade de accedilatildeo ndash inserindo

intervalos temporais cada vez maiores de hesitaccedilatildeo entre estiacutemulo e resposta e tornando

possiacutevel uma accedilatildeo tatildeo refletida quanto livre Ao mesmo tempo ao implicar a liberdade

mesma a inteligecircncia parece ameaccedilar a coesatildeo social ndash eacute portadora de perigos tanto quanto

do imprevisiacutevel ontoloacutegico que constitui a accedilatildeo livre A fim de assegurar a sociabilidade a

natureza encontrou na funccedilatildeo fabuladora um meio para prevenir-se contra as ameaccedilas que

levar a inteligecircncia e a indeterminaccedilatildeo tatildeo longe poderiam representar ao indiviacuteduo e agrave

coesatildeo social dessa forma a via encontrada teria sido invadir a inteligecircncia pouco a pouco

com a supersticcedilatildeo aproveitar os efeitos alucinatoacuterios da ficccedilatildeo ndash eficazes a ponto de

reorientarem condutas concretas desapegadas agrave vida ndash sem prejudicar a proacutepria

inteligecircncia163

Essa visatildeo eacute poreacutem ainda de todo esquemaacutetica A fim de confirmaacute-la seria preciso

compreender como a proacutepria natureza se previne em face da inteligecircncia e por outro lado

qual a origem da tendecircncia que encontra na funccedilatildeo fabuladora esse modo de prevenccedilatildeo

Para tanto conviria lembrar que por mais que as sociedades de himenoacutepteros e as de

homens procedam umas a partir do instinto outras a partir da inteligecircncia a comunidade

de eacutelan que descerraacutevamos acerca delas daacute conta de sua origem comum Tal origem

permitia entrever desde LrsquoEacutevolution Creacuteatrice que tanto o instinto encontrava-se

penetrado de certo niacutevel de inteligecircncia como a inteligecircncia aureolava-se de instinto como

uma nuvem de virtualidades copresentes agrave ela Eis o que definiria uma vez mais em

funccedilatildeo da inteligecircncia uma espeacutecie de instinto virtual que natildeo permite que o homem

divague infinitamente por meio da inteligecircncia e permaneccedila apegado agrave vida Se Bergson

diz que antes de filosofar eacute preciso viver eacute para assinalar que mesmo entre os homens o

instinto estaacute permanentemente agrave espreita ndash o que consiste no modo do virtual ndash ou que o

163

Ao inveacutes de as imagens alucionatoacuterias e das supersticcedilotildees contradizerem a inteligecircncia ldquoUne fiction si

lrsquoimage est vive et obseacutedante pourra preacuteciseacutement imiter la perception et par lagrave empecirccher ou modifier

lrsquoaction Une expeacuterience systegravematiquement fausse se dressant devant lrsquointelligence pourra lrsquoarrecircter au

moment ouacute elle irait trop loin dans les conseacutequences qursquoelle tire de lrsquoexpeacuterience vrai Ainsi aurait donc

proceacutedeacute la naturerdquo (BERGSON 2001 p 1067113)

191

instinto vigia sem cessar a inteligecircncia inibe a tendecircncia que a inteligecircncia tem a

especulaccedilatildeo desligada da vida e manteacutem um corpo atento agraves promessas e ameaccedilas de seu

entorno

Dito isso seria pois o caso de perguntar em que consiste essa tendecircncia que cria

nos homens uma faculdade que sugere a seres livres e inteligentes imagens quase

alucinatoacuterias Ao mesmo tempo trata-se de interrogar em que consiste a necessidade vital

a que essas imagens respondem Essas questotildees satildeo modos natildeo isomoacuterficos de propor em

profundidade o problema que concerne a Bergson no segundo capiacutetulo de Les Deux

Sources a saber em que consiste a complexa relaccedilatildeo entre fabulaccedilatildeo e vida Para

respondecirc-lo eacute preciso remontar a algumas descriccedilotildees de sua evoluccedilatildeo criadora sobre a

forma de vida humana ou o que chamamos de ciacuterculo antropoloacutegico ao qual a religiatildeo

encontra-se ligada bem como ao instinto virtual que circunda a inteligecircncia dos

vertebrados superiores (BERGSON 2001 p 1068-1069114)

O homem tal como saiacutedo das matildeos da natureza apresenta duas caracteriacutesticas a

inteligecircncia e a sociabilidade Para compreender em que sentido Bergson pode afirmar a

existecircncia de uma religiatildeo natural ao homem e como ela constitui uma exigecircncia vital que

se utiliza da inteligecircncia para reequilibrar a proacutepria vida seria preciso recolocar a

inteligecircncia e a sociabilidade na evoluccedilatildeo geral da vida interpretaacute-las biologicamente ndash no

sentido abrangente que Bergson advoga

Se retomarmos os dois sentidos em que a vida evoluiu veremos que a sociabilidade

encontra-se presente de modo bem-acabado em duas linhas divergentes que se originaram

de uma comunidade de eacutelan por essa razatildeo cada uma das linhas representam

desenvolvimentos diferenciados mas complementares da mesma tendecircncia natural agrave

sociabilidade Haacute pouco bastava que lanccedilaacutessemos os olhos agraves sociedades de insetos

himenoacutepteros (formigas abelhas) para percebermos uma forma imutaacutevel de organizaccedilatildeo

social baseada no instinto fixa e ordenada Na outra das linhas a dos homens poreacutem

verifica-se o desenvolvimento da sociabilidade segundo direccedilotildees inteligentes e inventivas

o que conduz a uma sociedade marcada pela variabilidade de formas de organizaccedilatildeo social

e permite que elas descrevam uma histoacuteria progressiva da evoluccedilatildeo desses modos de

relaccedilatildeo intersubjetiva Ao lado do instinto ndash prolongamento do esforccedilo organizador da

natureza ndash ou da inteligecircncia aureolada por franjas virtuais de instinto seja como for a

comunidade de eacutelan atesta que ldquole social est au fond du vitalrdquo (BERGSON 2001 p

1075123) Sendo a sociabilidade uma direccedilatildeo da vida que se reparte na medida em que

192

cresce ndash e que obseda ateacute mesmo as estruturas orgacircnicas individuais164

ndash ela se

manifestaraacute diferentemente nas linhas evolutivas e originaraacute dos dois tipos de sociedades

que viemos a conhecer as sociedades dos insetos e a dos homens

Na linha que corresponde agrave forma de vida humana ao ciacuterculo antropoloacutegico a

inteligecircncia eacute outorgada aos indiviacuteduos juntamente com a liberdade a indeterminaccedilatildeo e o

poder de iniciativa Pelo imprevisiacutevel que sua linha comporta e faz passar mas tambeacutem

pela tendecircncia ao egoiacutesmo que pode implicar a inteligecircncia ameaccedila romper em certos

pontos a coesatildeo social de tal forma que a natureza precisa encontrar um contrapeso agrave

inteligecircncia O instinto que inibido pela inteligecircncia persiste ao seu redor por forccedila de uma

comunidade original de eacutelan natildeo pode constituir esse contrapeso por seus proacuteprios meios

Em estado virtual ndash o que aqui significa natildeo agente e inibido ndash eacute apenas como resiacuteduo que

ele pode influir sobre a inteligecircncia todavia sob que forma um instinto virtual cujo lugar

encontra-se tomado pela inteligecircncia poderia atuar sobre ela Uma vez que o instinto natildeo

eacute inteligecircncia natildeo pode produzir representaccedilotildees no entanto pode agir sobre a inteligecircncia

ndash a produtora dessas representaccedilotildees possiacuteveis ndash na medida em que ainda eacute capaz de

suscitar imaginaacuterios contrapostos agrave representaccedilatildeo real Assim a inteligecircncia por meios

absolutamente proacuteprios poderaacute contrapor-se ao trabalho intelectual (BERGSON 2001 p

1076124) Eacute precisamente esta dinacircmica que define a funccedilatildeo fabuladora como o efeito do

apego agrave vida que reequilibra a coesatildeo social que tendecircncias e representaccedilotildees inteligentes

ameaccedilam romper No entanto devemos definir melhor em que consiste a funccedilatildeo social da

fabulaccedilatildeo bem como precisar como ela pode explicar-se pela proacutepria vida

Uma vez que constitui o prolongamento do trabalho organizador que a proacutepria vida

efetua em cada uma das linhas divergentes em que o eacutelan se reparte o instinto eacute

coextensivo agrave vida Se pressentiacuteamos nos indiviacuteduos uma certa tendecircncia virtual agrave

sociabilidade de suas partes constitutivas organizadas isso se deve ao fato de que o instinto

social nada mais revela que o espiacuterito de subordinaccedilatildeo e de coordenaccedilatildeo que se distribui e

anima as ceacutelulas tecidos e oacutergatildeos de todos os corpos vivos (BERGSON 2001 p

1077125) Por um lado Bergson natildeo cessa de afirmar a raridade da transmissibilidade dos

caracteres adquiridos por outro repete sem cessar a persistecircncia de tudo aquilo de que a

natureza dotou a forma de vida humana isto eacute das sociedades contemporacircneas agraves

sociedades primitivas virtualidades de instinto espreitam a inteligecircncia incessantemente

164

ldquoAgrave lrsquoeacutetat de simple tendence elle [la sociabiliteacute] est partout dans la nature [] La hantise de la forme

sociale qursquoon trouve dans un grand nombre drsquoespegraveces se reacutevegravele donc jusque dans la structure des individusrdquo

(BERGSON 2001 p 1074121) A expressatildeo entre colchetes natildeo se encontra no original

193

Daiacute porque o instinto no homem natildeo se encontraria suprimido mas inibido ou eclipsado

por uma outra tendecircncia de atualizaccedilatildeo da consciecircncia assim o instinto passa a secundar

como uma vaga nuvem de virtuais os nuacutecleos luminosos da inteligecircncia (BERGSON

2001 p 1077125-126)

Ao mesmo tempo em que a inteligecircncia permite inventar e progredir ameaccedila

prejudicar a disciplina social em dois sentidos que por constituiacuterem correlatos da

inteligecircncia satildeo inencontraacuteveis entre as formas de sociabilidade instintuais por um lado o

egoiacutesmo que ameaccedila a sociedade de desorganizaccedilatildeo e no limite de dissoluccedilatildeo e os

efeitos individuais nocivos originados por representaccedilotildees conscientes de eventos

imprevisiacuteveis que Bergson resumiraacute na representaccedilatildeo do acaso gerador de toda sorte de

supersticcedilotildees

Haacute pois em primeiro lugar um poder dissolvente da inteligecircncia que encontraraacute na

religiatildeo estaacutetica ndash aguilhoada agrave funccedilatildeo fabuladora como sua faculdade especiacutefica ndash uma

reaccedilatildeo defensiva da natureza Com isso estariacuteamos diante de uma ldquoreligiatildeo naturalrdquo ou

ldquoprimitivardquo que natildeo implica nenhum coacutedigo moral ou conteuacutedo de crenccedila especiacutefico165

sua

forccedila suficientemente potente contra o poder dissolvente da inteligecircncia reside no fato de

que a religiatildeo estaacutetica implica a existecircncia formal de costumes por intermeacutedio dos quais os

homens vinculam-se entre si e se desligam das projeccedilotildees utilitaacuterias e egoiacutestas que a

inteligecircncia naturalmente aconselha166

Assim torna-se possiacutevel estabelecer as expectativas

sociais sob certa atmosfera moral de confianccedila reciacuteproca

Do mesmo modo como a natureza se garante contra a desorganizaccedilatildeo e a

dissoluccedilatildeo ldquoLa reacutepresentation intelectuelle qui reacutetablit ainsi lrsquoeacutequilibre au profit de la

nature est drsquoordre religieuxrdquo (BERGSON 2001 p 1084134-135) e visa a proteger o

homem dos efeitos deprimentes de seu apego agrave vida pela representaccedilatildeo intelectual de sua

proacutepria morte Enquanto todos os outros seres vivos apegados intensamente agrave vida apenas

adotam instintivamente o sentido de seu impulso o homem eacute o animal consciente de que se

destina a morrer Eis o que o impede de a exemplo de outras formas de vida simplesmente

165

Tanto que Bergson afirmaraacute que os deuses em particular satildeo contingentes mas a confianccedila ndash objeto da

religiatildeo estaacutetica e que ele denomina ldquototalidade de deusesrdquo ou ldquodeus em geralrdquo ndash seria necessaacuteria ldquoLe

pantheacuteon existe indeacutependamment de lrsquohomme mais il deacutepend de lrsquohomme drsquoy faire entrer un dieu et de lui

confeacuterer ainsi lrsquoexistence [] chaque dieu determineacute est contingent alors que la totaliteacute des dieux ou plutocirct

le dieu en geacuteneacuteral est neacuteceacutessairerdquo (BERGSON 2001 p 1145211) 166

ldquoTout ce qui est habituel aux membres du groupe tout ce que la socieacuteteacute attend des individus devra donc

prendre un caractegravere religieux srsquoil est vrai que par lrsquoobservation de la coutume et par elle seulement

lrsquohomme est attacheacute aux autres hommes et deacutetacheacute ainsi de lui-mecircme [] Agrave lrsquoorigine la coutume est toute la

morale et comme la religion interdit de srsquoen eacutecarter la morale est coextensive agrave la religionrdquo (BERGSON

2001 p 1079128)

194

confiar no futuro inibir toda representaccedilatildeo mortificadora ou ameaccediladora proveniente do

devir Poreacutem de onde procede essa consciecircncia sobre a proacutepria finitude senatildeo da

inteligecircncia A reflexatildeo que nasce junto com a inteligecircncia permite que o homem perceba

que tudo o que existe agrave sua volta perece assim logicamente deduz-se que ele tambeacutem

deva estar destinado a morrer Isso eacute o que constitui o deprimente de sua relaccedilatildeo de apego

agrave vida (BERGSON 2001 p 1085-1086136-137)

Na medida em que a inteligecircncia possui um efeito depressor sobre o indiviacuteduo a

funccedilatildeo fabuladora pode constituir o baacutelsamo de que a natureza equipou o vivente

Contrapondo agrave ideia de uma morte inevitaacutevel a imagem de uma vida apoacutes a morte lanccedilada

ao seio da proacutepria inteligecircncia torna-se possiacutevel reordenar as coisas ter novamente

confianccedila na vida e equilibrar as repeticcedilotildees de ideias negativas sobre o devir Desse ponto

de vista ldquola religion est une reacuteaction deacuteffensive de la nature contre la repreacutesentation par

lrsquointelligence de lrsquoinevitabiliteacute de la morterdquo (BERGSON 2001 p 1086137) tanto

indiviacuteduo como sociedade terminam por tirar proveito disso Assim como ao primitivo

bastaria ver sua imagem refletida em uma poccedila drsquoaacutegua para perceber pela primeira vez a

existecircncia de uma sua imagem completamente separada de seu corpo ndash modo no qual ela

poderia quem sabe sobreviver indefinidamente ndash isso seria suficiente para pensar de

modo inteiramente natural que o homem sobreviva em um estado espectral (comumente

em estado de sombra ou fantasma) agrave proacutepria morte (BERGSON 2001 p 1088139) A

sociedade tiraraacute proveito das imagens da vida apoacutes a morte assim lanccediladas em face das

representaccedilotildees da inevitabilidade do desaparecimento na medida em que isso tornaraacute

possiacutevel manter-se estaacutevel e duraacutevel prolongando a histoacuteria dos contemporacircneos e das

geraccedilotildees futuras na dos antepassados que cultuados poderatildeo ver-se transformados em

deuses Misturados com os vivos os mortos podem ainda agir sobre eles conservando-se

em estado espectral sua reminiscecircncia permitiraacute engendrar lendas e mitos em tudo

patrocinadas pelas fabulaccedilotildees coletivas167

Seja como for as duas garantias pelas quais a funccedilatildeo fabuladora responde ndash aquelas

contra a dissoluccedilatildeo ou a desorganizaccedilatildeo e a depressatildeo ndash permitem finalmente

compreender a religiatildeo como ponto de apoio natural contra a imprevisibilidade e o

sentimento de risco que a aplicaccedilatildeo da proacutepria inteligecircncia agrave vida parece implicar Todavia

esse sentimento ndash que natildeo se pode encontrar entre os animais seguros de si ndash deve-se

167

ldquoLes morts vont alors devenir des personnages avec lesquels il faut compter Il peuvent nuire Il peuvent

rendre service Ils disposent jusqursquoagrave un certain point de ce que nous appelons les forces de la naturerdquo

(BERGSON 2001 p 1090141)

195

justamente ao fato de que entre a representaccedilatildeo de um objetivo a atingir e o ato que visa a

ele ndash entre presa e captura entre flecha e alvo ndash vem inserir-se a inteligecircncia combinatoacuteria

de meios e fins Tornada presente a inteligecircncia eacute a indeterminaccedilatildeo da accedilatildeo a

representaccedilatildeo de certa margem de imprevisto como ameaccedilas filiadas ao proacuteprio tempo

que se tornam presentes agrave inteligecircncia Na medida em que a morte eacute obra do acaso por

excelecircncia pode-se afirmar em geral que todas as representaccedilotildees religiosas constituem

reaccedilotildees defensivas da natureza contra a representaccedilatildeo pela inteligecircncia de uma faixa

desestimulante de imprevisibilidade ndash natildeo raro vinculada ao medo e agrave necessidade ndash entre

a iniciativa tomada e o efeito almejado (BERGSON 2001 p 1094146) A experiecircncia da

vontade de ter sucesso que prova de que modo a supersticcedilatildeo pode entre homens muito

contemporacircneos inserir-se como representaccedilatildeo no seio da inteligecircncia poderia ser feita

ainda hoje e de modo muito simples poderia ser vivida imediatamente em um cassino em

um jogo de roleta por exemplo Logo esse homem se veraacute ndash imaginariamente ndash

empurrando a bolinha com a matildeo para mais proacuteximo do nuacutemero escolhido tentando

expulsar o acaso para ganhar a aposta Ora o mesmo ocorre com o selvagem que apela agrave

supersticcedilatildeo agrave magia ou agrave religiatildeo para que sua flecha atinja o alvo (BERGSON 2001 p

1094147) A supersticcedilatildeo toda vez em um caso como em outro natildeo passaraacute da

remodelaccedilatildeo em consecuccedilotildees mecacircnicas de causas e efeitos ndash isto eacute por vias racionais

Em resumo ldquoAgrave lrsquoorigine des croyances que nous venons drsquoenvisager nous avons

trouveacute une reacuteaction deacutefensive de la nature contre un deacutecouragement qui aurait sa source

dans lrsquointelligencerdquo (BERGSON 2001 p 1104159) Essa reaccedilatildeo suscita no proacuteprio seio

da inteligecircncia imagens e ideias que frustram a representaccedilatildeo deprimente ou a impedem de

se tornar completa Eis a dinacircmica segundo a qual a confianccedila no devir torna-se o

significado vital profundo de toda crenccedila garantia contra o medo e o receio que deprimem

o apego agrave vida ou ameaccedilam a coesatildeo social A reaccedilatildeo da natureza eacute positiva natildeo temerosa

a religiatildeo eacute antes de tudo uma reaccedilatildeo da vida contra o temor e assegura Bergson (2001 p

1105160) ldquoelle nrsquoest pas du tout de suite croyance agrave des dieuxrdquo ndash como se a confianccedila que

o otimismo do eacutelan vital inspira fosse uma espeacutecie de crenccedila ateia no porvir ou como se a

feacute fosse a razatildeo natural da religiatildeo sua condiccedilatildeo apenas formal e sem conteuacutedo Bergson o

comprova pela relaccedilatildeo do homem com a forccedila incomensuraacutevel da natureza na medida em

que um fenocircmeno qualquer jamais precisa de uma individualidade ou personalidade

completa agrave qual demos a matildeo ndash bastaria ver o que se passa com a longa e peculiar narraccedilatildeo

de William James em que toda a teologia sob todos os aspectos daacute um testemunho

profundo de confianccedila original na vida (BERGSON 2001 p 1105-1107161-162)

196

Natildeo haacute nessa religiatildeo deveras originaacuteria nenhuma determinaccedilatildeo semiespeculativa

de uma realidade preacute-loacutegica da mente primitiva Pelo contraacuterio haacute a forma de vida

copresente ao primitivo como ao homem contemporacircneo de uma inteligecircncia que ameaccedila

seu apego agrave vida e agrave sociedade O instinto e a vida satildeo os vigias da inteligecircncia168

Haacute um

jogo combinatoacuterio entre instinto e inteligecircncia que o determina De todo modo este teria

sido o erro que Bergson reprovara a Leacutevy-Bruhl vincular a religiatildeo a uma suposta

realidade preacute-loacutegica inerente agrave mentalidade do homem primitivo quando na verdade ldquola

religion eacutetant coextensive agrave notre espegravece doit tenir agrave notre structurerdquo afinal ldquo[] crsquoest

drsquoune neacutecessiteacute vitale qursquoont ducirc sortir les dispositions et les convictions originellesrdquo

(BERGSON 2001 p 1125185)

A religiatildeo estaacutetica ndash signo fabulador de lrsquoattachement agrave la vie ndash vincula-se agrave vida

em profundidade na medida em que se destina naturalmente a afastar os perigos a que a

inteligecircncia tende a expor o homem (BERGSON 2001 p 1133196) nesse sentido

fazendo as vezes de um representante do instinto virtual ela eacute infraintelectual e natural agrave

linha de evoluccedilatildeo que encontra no homem seu termo Com a funccedilatildeo fabuladora o homem

deveria escapar dos perigos globalmente dados com sua inteligecircncia saindo-se bem tanto

no plano individual da garantia contra a depressatildeo quando no plano social ou coletivo da

garantia contra a dissoluccedilatildeo ou a desorganizaccedilatildeo

Poreacutem assim como a moral natildeo eacute somente estaacutetica e infraintelectual a religiatildeo

tampouco eacute apenas esta natural Ainda no plano da vida mas projetando-se no sentido da

evoluccedilatildeo do eacutelan vital a religiatildeo pode envolver-se em uma dimensatildeo supraintelectual

estariacuteamos diante da religiatildeo dinacircmica capaz de desprender o homem de seu infinito girar

sobre o raio dado com o ciacuterculo da espeacutecie e de possibilitar a ele inserir-se novamente na

corrente evolutiva viva prolongando-a Globalmente a religiatildeo se explica biologicamente

ndash no sentido amplo e compreensivo que Bergson quisera atribuir a essa palavra A proacutepria

funccedilatildeo fabuladora comum agraves artes dramaacuteticas e agraves praacuteticas literaacuterias natildeo seria senatildeo a

continuidade luacutedica ou liacuterica desses esquemas vitais fabricadores de personagens com os

quais nossa tendecircncia agrave supersticcedilatildeo busca reequilibrar em noacutes os perigos do egoiacutesmo e da

depressatildeo contidos na tendecircncia como na atividade intelectual Natildeo haveria portanto

grande distacircncia no que diz respeito agrave faculdade fabuladora entre o romance

contemporacircneo e os contos antigos as lendas os conteuacutedos folcloacutericos ou mitoloacutegicos

168

ldquoLrsquointelligence est donc neacutecessairement surveilleacutee par lrsquoinstinct ou plutocirct par la vie origine commune de

lrsquoinstinct et de lrsquointelligencerdquo (BERGSON 2001 p 1112169)

197

A natureza entrega-nos uma humanidade aguilhoada ao ciacuterculo antropoloacutegico que

tende a uma sociedade fechada por forccedila natural da obrigaccedilatildeo e pela coesatildeo criada pela

religiatildeo estaacutetica e por sua funccedilatildeo fabuladora No interior dessa forma de vida propriamente

humana e natural indiviacuteduo e sociedade implicam-se reciprocamente circularmente

todavia esse ciacuterculo recebe em si mesmo uma fratura no dia em que se tornou possiacutevel ao

homem recolocar-se no sentido do impulso criador que se depositara em sua forma de vida

inteligente impelindo a natureza humana para frente ao inveacutes de deixaacute-la girar

infinitamente sobre o eixo que sua forma descreve (BERGSON 2001 p 1144210) A

abertura assim efetuada pela possibilidade inventiva copresente agrave inteligecircncia e agrave funccedilatildeo

fabuladora doava aos homens a possibilidade de uma religiatildeo que Bergson afirma ser

individual e ao mesmo tempo profundamente social Eis a miacutestica como cintilacircncia do

aberto em tudo diversa da religiatildeo estaacutetica que coagindo agrave disciplina (miacutemesis do

automatismo que fixaria haacutebitos no corpo) implicaraacute a solidificaccedilatildeo da crenccedila originada

das necessidades vitais em ritos e cerimocircnias que ao mesmo tempo em que reforccedilam a

disciplina produzem um estreitamento da solidariedade entre uma forma de culto e as

divindades a ele relativas

Nesse quadro a funccedilatildeo geral da religiatildeo estaacutetica poderia resumir-se a corrigir a

dupla imperfeiccedilatildeo humana que do ponto de vista estritamente natural a inteligecircncia

implica Seu ocircnus consiste como vimos na possibilidade de representando pela

inteligecircncia maior bem-estar sucesso de gozo de utilidades conduzir-se com egoiacutesmo a

despeito dos laccedilos de solidariedade social trata-se do potencial dissolvente ou

desorganizador da inteligecircncia que encontra no egoiacutesmo sua forma subjetiva mais bem

acabada O uacuteltimo de seus ocircnus constitui-se nos efeitos deprimentes que a inteligecircncia

pode opor ao apego agrave vida Representando-se como destinado a morrer o indiviacuteduo

deixaria afrouxarem-se os laccedilos que o unem ao todo social a si mesmo e ao fundo da vida

do qual proveacutem Incapaz de conter a fuacuteria imprevisiacutevel da natureza ou a inevitabilidade

dos eventos movidos pela forccedila do acaso a inteligecircncia teria por efeito um

desencorajamento natural ao qual a funccedilatildeo fabuladora tende a responder de imediato

inserindo imagens quase alucinatoacuterias no seio da proacutepria inteligecircncia fazendo com que o

primitivo recorra agrave religiatildeo para que suas flechas encontrem o destino desejado como o

homem pareceraacute soprar e mover imaginariamente com a matildeo no ar a bolinha lanccedilada agrave

roleta acreditando poder manejar as causas do acaso169

Maacutequinas de fabricar deuses e de

169

ldquoLa religion est ce qui doit combler chez des ecirctres doueacutes de reacuteflexion un deacuteficit eacuteventuel de

lrsquoattachement agrave la vierdquo (BERGSON 2001 p 1154223)

198

fabular narrativas seratildeo montadas por toda parte onde o homem sente esmaecer sua forccedila

vital e sua confianccedila na vida e no devir A funccedilatildeo fabuladora nesse contexto natildeo deixa de

ser inteligecircncia sem ser inteligecircncia pura ndash ela eacute ainda um refluxo do instinto virtual que

natildeo permite duvidar da vida segundo o qual ndash enquanto o homem se ressente de ser o

uacutenico animal que sabe que vai morrer ndash ldquoLe reste de la nature srsquoeacutepanouit dans une

tranquiliteacute parfaiterdquo (BERGSON 2001 p 1149216) A funccedilatildeo fabuladora eacute a encarregada

de fabricar uma religiatildeo natural pela qual o vital reage contra o que haveria de deprimente

para o indiviacuteduo e de dissolvente para a sociedade no exerciacutecio da inteligecircncia170

Por isso

a natureza entrega o individual e o social fechados em um ciacuterculo em uma forma de vida

definida pelas doenccedilas da representaccedilatildeo e da inteligecircncia bem como pelas formas

virtualmente instintuais e fabuladoras de reequilibraacute-las Nem sempre se atenta para o fato

de que uma compreensatildeo bioloacutegica da religiatildeo implica apontar que a religiatildeo estaacutetica ou

natural concorre precisamente para fornecer aos homens os instrumentos de sua

sociabilidade bem como da constituiccedilatildeo social de sua individualidade Ela corresponde ao

mesmo tempo a funccedilotildees morais e nacionais visa a estreitar e a conservar aquilo que

constitui e fortalece um grupo a tradiccedilatildeo a necessidade a vontade de defender o grupo

contra outros situando-o acima de tudo171

A religiatildeo engendra um homem sociaacutevel e no

entanto preso ao ciacuterculo antropoloacutegico de uma inteligecircncia que alargada e compensada no

que apresenta de ameaccedilador ao indiviacuteduo e agrave sociedade ainda natildeo conheceu o aberto ndash e

que todavia seu vir agrave existecircncia jaacute implica e revela

sect 2 ABRIR O FECHADO RUPTURA E DEVIR

A sociedade tal como saiacuteda das matildeos da natureza tende ndash como vimos ndash ao

fechado Em seu interior a religiatildeo natildeo apenas eacute constitutiva da moral como da identidade

de grupo que assegura as identidades individuais a coesatildeo social a divisatildeo do trabalho os

elementos da tradiccedilatildeo da moral e do grupo nacional a conservaccedilatildeo do que pareceu ser um

infinito girar sobre o eixo social devido ao ciacuterculo antropoloacutegico Se a funccedilatildeo fabuladora

insere imagens quase alucinatoacuterias na inteligecircncia humana ndash semelhantes como diz

170

ldquo[] lrsquointelligence serait un obstacle agrave la seacutereacuteniteacute qursquoon trouve partout ailleurs et [] lrsquoobstacle doit ecirctre

surmonteacute lrsquoeacutequilibre reacutetablirdquo (BERGSON 2001 p 1152219) 171

ldquoAgrave conserver agrave resserrer ce lien vise incontestablement la religion que nous avons trouveacutee naturelle elle

est commune aux membres drsquoun groupe elle les associe intimement dans des rites et des ceacutereacutemonies elle

distingue le groupe des autres groupes elle garantit le succegraves de lrsquoentreprise commune et assure contre le

danger communrdquo (BERGSON 2001 p 1152218)

199

Bergson (2001 p 1154223) agraves histoacuterias com as quais embalamos as crianccedilas e as

colocamos para dormir ndash eacute a fim de fazer frente aos perigos que a representaccedilatildeo

inteligente dada com a reflexatildeo172

implica Nesse sentido uma religiatildeo natural primitiva

ou se o quisermos estaacutetica mostrou-se profundamente vital ao ligar o homem agrave vida e o

indiviacuteduo agrave sociedade No entanto o ponto de vista da sociedade tal como saiacuteda das matildeos

da natureza natildeo eacute o de sua gecircnese ou de seu movimento mas se perspectiva como uma

parada virtual do movimento criador pelo qual o eacutelan depositou em um ponto extremo a

forma de vida a que nomeamos humanidade (BERGSON 2001 p 1154223) A fim de

superar o desencorajamento para a vida o homem deveria caminhar muito mais no sentido

das vagas franjas de intuiccedilatildeo que permaneceram ao redor de sua inteligecircncia que no

sentido da proacutepria inteligecircncia que tende precisamente agraves representaccedilotildees

desencorajadoras Eis o que implicaria a necessidade de apreender o fenocircmeno religioso

natildeo mais do ponto de vista estaacutetico de sua parada virtual funcional e coextensiva a uma

forma de vida marcada pela inteligecircncia mas do ponto de vista de sua gecircnese ou de seu

movimento real Se o vir agrave existecircncia de uma forma de sociabilidade fechada jaacute denuncia o

aberto eacute porque eacute dele que ela mesma procede em profundidade Assim como uma parada

virtual soacute pode explicar-se pela realidade de um movimento absoluto ou como um instante

soacute pode explicar-se segundo o indomaacutevel fluxo da duraccedilatildeo o estaacutetico soacute pode ser

compreendido em funccedilatildeo do dinacircmico e o fechado em funccedilatildeo da vitalidade do aberto que

lhe trouxera agrave luz

Viacuteamos toda essa extensa questatildeo resumir-se na pergunta ldquoComo abrir o fechadordquo

como produzir no ciacuterculo social no qual uma forma de vida gira infinitamente a fim de

conservar-se como tal uma ruptura ou transcrevendo um problema poliacutetico em termos

mais profundamente ontoloacutegicos como dissolver uma forma (de vida) e liberar seus

devires Eis o que estaacute em questatildeo na profunda discussatildeo sobre a abertura do fechado que

conduz Les Deux Sources na direccedilatildeo do campo de experiecircncia miacutestica (SITBON-

PEILLON 2002 p 185) Ou como quisera Worms (2011 p 323) se haacute toda uma

distacircncia infinita ndash uma diferenccedila de natureza ndash entre o fechado e o aberto entre a naccedilatildeo e

a humanidade como efetuar esse salto radical que traduz tambeacutem a diferenccedila entre os

niacuteveis do infra e do supraintelectual Afinal natildeo teria sido o proacuteprio Bergson (2001 p

1202284) a declarar que ldquoDe la socieacuteteacute close agrave la socieacuteteacute ouverte de la citeacute agrave lrsquohumaniteacute

on ne passera jamais par voie drsquoeacutelargissement Elles ne sont pas de mecircme essencerdquo

172

ldquo[] lrsquoinvention qui porte en elle la reacuteflexion srsquoeacutepanouit en liberteacuterdquo (BERGSON 2001 p 1153222)

200

Para solucionar essas questotildees que se dissimulam sob a aparente simplicidade

pragmaacutetica da pergunta sobre como abrir o fechado seraacute preciso compreender o fenocircmeno

religioso como um misto de fechamento e abertura seraacute necessaacuterio desenvolver um olhar

capaz de compreender o entreaberto ainda que ele possa rapidamente ser reconduzido ao

fechamento e agrave consolidaccedilatildeo Talvez esse fosse o sentido de uma moral de transiccedilatildeo

(BERGSON 2001 p 102862) e de sua atitude subjetiva correspondente quando Bergson

afirmava que entre a alma fechada e a aberta haveria a alma que se abre A fim de

solucionar a gecircnese da transiccedilatildeo no seio da Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo natildeo estariacuteamos

agrave procura do ponto de transiccedilatildeo coextensivo a essa atitude subjetiva da alma que se abre e

portanto de um ponto de vista dinacircmico

Todavia viacuteamos que o infinito girar sur place que caracterizava a forma de vida

humana tal como saiacuteda das matildeos da natureza era suspenso justamente por esta natildeo ser dada

como forma pura reencontraacutevamos em seu interior um ponto de ruptura do fechamento

uma brecha de reflexatildeo hesitaccedilatildeo liberdade e de duraccedilatildeo que o eacutelan introduzia e que por

meio do homem orientava-se no mesmo sentido do eacutelan ndash o sentido da criaccedilatildeo173

Na

medida em que natildeo subsiste no homem nem instinto tampouco inteligecircncia puros mas

pontos luminosos aureolados de vagas nuvens de virtuais instintivos174

o misticismo ndash

definido em funccedilatildeo de sua relaccedilatildeo com o impulso vital (BERGSON 2001 p 1156225) ndash

eacute o que completaraacute em accedilatildeo essa vaga franja de intuiccedilatildeo que aureola a inteligecircncia e que

produz um apego agrave vida em sentido totalmente diverso daquele que a religiatildeo estaacutetica

produzia

Contudo como se produz essa passagem do estaacutetico ao dinacircmico Bergson (2001

p 1156225) admite que o misticismo natildeo apenas eacute uma essecircncia rara vinculada a

personalidades tatildeo excepcionais que seriam mais que humanas mas que em geral ele

pode ser encontrado em estado de diluiccedilatildeo e assim tornado eficaz Da perspectiva de uma

religiatildeo mista composta por ritos cerimocircnias e tradiccedilotildees mas tambeacutem por um vago

perfume miacutestico que se comunica ao todo tudo se passa como se a diferenccedila de natureza

que haacute entre o estaacutetico e o dinacircmico se resolvesse em uma seacuterie de diferenccedilas de grau

(BERGSON 2001 p 1156225) Se o miacutestico eacute um indiviacuteduo excepcional e

essencialmente raro se a maioria natildeo podendo subir tatildeo alto quanto esse homem

173

Por essa razatildeo Brigitte Sitbon-Peillon (2002 p 187) escrevera que ldquoLa chance de lrsquohomme crsquoest

justement lrsquoimpureteacute dans laquelle tout existerdquo 174

A proacutepoacutesito Bergson (2001 p 610136-137) o afirmara em LrsquoEacutevolution Creacuteatriceldquo Il nrsquoy a pas

drsquointeligence ougrave lrsquoon ne deacutecouvre des traces drsquoinstinct pas drsquoinstinct surtout qui ne soit entoureacute drsquoune frange

drsquointelligencerdquo

201

privilegiado no entanto sente que algo de si lhes faz eco e responde assim a seu apelo o

misticismo constituiraacute um apelo agrave aspiraccedilatildeo que produz algo novo no antigo175

No interior

desse misto foacutermulas e ritos aparentemente vazios repetidos ao longo da duraccedilatildeo podem

fazer surgir inconscientemente o estado de espiacuterito capaz de preenchecirc-las Se a repeticcedilatildeo

pode gerar o ecircmulo espiritual de grandes homens de gecircnio eacute porque o que parece idecircntico

na repeticcedilatildeo eacute apenas uma forma abstrata a repeticcedilatildeo e a imitaccedilatildeo conservam virtualmente

o potencial de engendrarem criaccedilotildees transmitirem estados de espiacuterito reabrir uma alma

fechada e dissolver o estaacutetico Na medida em que Bergson (2001 p 1158228) diz que um

professor mediacuteocre que repete maquinalmente foacutermulas concebidas por grandes espiacuteritos

pode despertar em um aluno a vocaccedilatildeo que a ele proacuteprio eacute de todo inaudiacutevel tornando-o

inconscientemente ldquoen eacutemule de ces grands hommesrdquo o modo do inconsciente reenvia a

um virtual agrave espreita que definiraacute natildeo apenas o aberto mas a atitude subjetiva

correspondente da alma aberta e do miacutestico Nessa medida tudo se passa como se

atenuaacutessemos a diferenccedila entre o fechado e o aberto como se lanccedilaacutessemos uma ponte entre

o estaacutetico e o dinacircmico (BERGSON 2001 p 1158-1159229) ou como se descobriacutessemos

no ciacuterculo social uma ruptura pela qual a duraccedilatildeo ndash que eacute tambeacutem liberdade e criaccedilatildeo ndash se

infiltra Dessa maneira mesmo a mais vazia repeticcedilatildeo girando em falso poderaacute transmitir

essa liberdade insidiosa e incendiaacuteria que se inscreve igualmente no anthropos e em suas

formas de laccedilo social

Essa liberdade forma subjetiva da duraccedilatildeo encontra no modo de vida miacutestico seu

exemplar e seu intenso campo de provas Natildeo se trata de recuperar cada um dos pontos

notaacuteveis da argumentaccedilatildeo de Bergson sobre o misticismo grego oriental e cristatildeo

(BERGSON 2001 p 1159-1172229-246) mas de demonstrar o profundo papel da

miacutestica como forccedila especiacutefica das transiccedilotildees de alma mas tambeacutem das formas sociais de

vida Nesse sentido a miacutestica deve ser compreendida independentemente de seus

conteuacutedos ndash de crenccedila ou patoloacutegicos ndash meramente acidentais (BERGSON 2001 p

1170243) Eacute preciso compreender o miacutestico ldquopriveacute de ses extases de ses visions de tous

ces eacutetats anormaux et morbidesrdquo que natildeo satildeo condiccedilotildees necessaacuterias mas eventuais nas

quais o misticismo se produz (SITBON-PEILLON 2002 p 188) Este eacute o sentido

transcendental no qual Bergson toma a experiecircncia miacutestica concreta ndash se compreendermos

transcendental uma vez mais como o que define as condiccedilotildees da experiecircncia concreta

175

ldquoAinsi se constituera une religion mixte qui impliquera une orientation nouvelle de lrsquoancienne une

aspiration plus ou moins prononceacutee du dieu antique issu de la fonction fabulatrice []rdquo (BERGSON 2001

p 1157227)

202

Nesse sentido a experiecircncia de revelaccedilatildeo interior que William James descrevera a partir da

inalaccedilatildeo do protoacutexido de nitrogecircnio e que Bergson compara ao estado de embriaguez

dionisiacuteaca seria tambeacutem ela integralmente miacutestica na medida em que a intoxicaccedilatildeo natildeo

passaria do ensejo para a emergecircncia de um estado de alma que jaacute estava prefigurado ldquoIl

eucirct pu ecirctre eacutevoqueacute spirituellement par un effort accompli sur le plan spirituel qui eacutetait le

sienrdquo (BERGSON 2001 p 1160231) Mesmo a filosofia grega que conduzira o

pensamento humano a seu mais alto grau de abstraccedilatildeo e generalidade natildeo teria se passado

da experiecircncia dionisiacuteaca da embriaguez denotando que mesmo no fundo de uma

evoluccedilatildeo puramente racional estaacute um impulso ou um abalo que natildeo foram de ordem

racional176

Aquilo a que as experiecircncias gregas orientais ndash especialmente hindu e budista ndash e

cristatildes tendem eacute a um misticismo que seraacute completo apenas entre estas uacuteltimas O que

define o misticismo completo emancipado de suas circunstacircncias acidentais eacute uma

tomada de contato uma coincidecircncia parcial com o esforccedilo criador que a vida manifesta

segundo Bergson (2001 p 1162233) Essa definiccedilatildeo do misticismo afigura-se de todo

capital e por diversas razotildees Em primeiro plano porque toma o misticismo naquilo que

constitui as condiccedilotildees transcendentais de sua experiecircncia concreta independentemente de

elementos acidentais Nesse sentido o misticismo eacute definido como um esforccedilo ativo e

como uma coincidecircncia parcial com o esforccedilo criador que a vida manifesta Natildeo por acaso

Bergson (Ibidem loc cit) diraacute desse esforccedilo que ele ldquoest de Dieu si nrsquoest pas Dieu lui-

mecircmerdquo Em segundo plano o misticismo que coincide com a vida encontra no indiviacuteduo

miacutestico a ponta extrema de seu esforccedilo criador a agir sobre a proacutepria forma de vida na qual

se encarna e a qual supera sem cessar ldquoLe grand mystique serait une individualiteacute qui

franchirait les limites assigneacutees agrave lrsquoespegravece par sa mateacuterialiteacute qui continuerait et

prolongerait ainsi lrsquoaction divinerdquo (Idem ibidem loc cit) Se haacute um Deus em Bergson ele

natildeo seria laacute muito diverso do eacutelan vital177

o miacutestico por sua vez natildeo seria nada muito

diverso de um super-homem a prolongar o movimento do eacutelan em uma direccedilatildeo Por essa

razatildeo o miacutestico pode ser definido como individualidade que supera os limites impostos

pela espeacutecie e pela forma de vida por sua materialidade e continua a accedilatildeo divina que se

confunde aqui com a accedilatildeo da proacutepria vida Eacute nessa medida que uma vez que a religiatildeo

176

ldquo[] crsquoest une force extra-rationelle qui suscita ce deacuteveloppement rationel et qui la conduisit agrave son terme

au-delagrave de la raisonrdquo (BERGSON 2001 p 1161232) 177

A propoacutesito Deleuze (1966 p 118) afirma que o Deus bergsoniano possui todas as caracteriacutesticas do

Impulso vital No mesmo sentido Worms (2011 p 249) afirmaraacute que Deus coincide com ldquoo processo de

criaccedilatildeo e de crescimento operante na realidade materialrdquo Por fim Cf (BOUANICHE 2002 p 162) cuja

leitura empresta ao Deus bergsoniano as feiccedilotildees de um fluxo criador e vital

203

estaacutetica fora definida como a religiatildeo natural a religiatildeo dinacircmica propulsionada por um

misticismo ativo poderaacute ser definida como salto fora da espeacutecie e da natureza

(BERGSON 2001 p 1164236)

Deixando o cristianismo dos grandes miacutesticos cristatildeos de lado como seu conteuacutedo

meramente acidental178

Bergson afirma que apenas entre eles teria sido possiacutevel encontrar

uma experiecircncia miacutestica completa que seria definida como accedilatildeo criaccedilatildeo e amor Agraves

experiecircncias orientais teria faltado o caraacuteter ativo da miacutestica agraves gregas o impulso natildeo

teria sido prolongado muito aleacutem e teria encontrado uma intelectualidade natildeo dilatada179

Os miacutesticos cristatildeos por sua vez ndash Santa Teresa Satildeo Francisco de Assis Joana DrsquoArc ndash

teriam sido os modelos de individualidades excepcionais que realizaram uma miacutestica

completa e ativa no domiacutenio da accedilatildeo Assimilados natildeo raro a doentes os miacutesticos e as

agitaccedilotildees profundas de suas almas eram capazes de subverter a cisatildeo entre o normal e o

patoloacutegico em proveito de um ldquoequiliacutebrio superiorrdquo (BERGSON 2001 p 1169-1170242-

243)

Poreacutem como esse reequiliacutebrio se processa e como uma alma encontra em si uma

abertura a partir da experiecircncia miacutestica Bergson define a experiecircncia miacutestica como uma

experiecircncia em que a alma eacute arrastada irresistivelmente por uma forccedila agrave qual cede Na

medida em que uma alma eacute abalada em suas profundezas pela corrente que a arrastaraacute estaacute

dada a abertura a alma cessa de girar sobre si mesma escapa agrave forma de vida descrita

biologicamente pela espeacutecie e que condiciona o indiviacuteduo a ela circularmente salta para

fora da natureza ao ouvir um chamado que a solicita ldquosempre em frenterdquo A iluminaccedilatildeo

confunde-se com esse momento imponderaacutevel de gozo em que os problemas se dissipam e

tudo parece resolver-se em uma visatildeo simboacutelica que anuncia a proacutepria presenccedila de Deus

Contudo ela natildeo se deteacutem nem na contemplaccedilatildeo nem no ecircxtase ela age movida por um

impulso que a arremessa agrave accedilatildeo (BERGSON 2001 p 1170-1171243-245) A alma

miacutestica que parece pendular sob uma noite escura como jamais houve torna-se um

instrumento maravilhoso pelo qual a vida e Deus mesmo agem nela em uma uniatildeo total e

definitiva ldquoDisons que crsquoest deacutesormais pour lrsquoacircme une surabondance de vie Crsquoest un

immense eacutelanrdquo (BERGSON 2001 p 1172246)

178

ldquoLe mysticisme complet est en effet celui des grands mystiques chreacutetiens Laissons de cocircteacute pour le

moment leur christianisme et consideacuterons chez eux la forme sans matiegravererdquo (BERGSON p 1168240) 179

ldquo[] ni dans la Gregravece ni dans lrsquoInde antique il nrsquoy eut de mysticisme complet tantocirct parce que lrsquoeacutelan fut

insuffisant tantocirct parce qursquoil fut contrarieacute par ler circonstances mateacuterielles ou par une intellectualiteacute trop

eacutetroiterdquo (BERGSON 2001 p 1668240)

204

O contato da alma com o princiacutepio do qual emana uma superabundacircncia de

vitalidade testemunha que nela liberdade e esforccedilo criador coincidem Trata-se de um

misticismo que natildeo se deteacutem no ecircxtase no gozo miacutestico mas atinge a suprema alegria de

uma alma que se faz preencher por um amor universal comparaacutevel apenas agravequele que Deus

experimenta em relaccedilatildeo ao todo Trata-se enfim do mesmo amor pelo todo ndash salto para

fora dos ciacuterculos fechados da moral famiacutelia paacutetria humanidade O amor e a emoccedilatildeo

criadora que estatildeo implicados na experiecircncia miacutestica superam a proacutepria natureza que

quisera que nos mantiveacutessemos fechados aos grupos familiar e social que encontraacutessemos

na paacutetria o sentido de nossa existecircncia e em uma fraternidade ideal e descarnada o

fundamento de nossa moral Contudo o amor miacutestico eacute supraintelectual natildeo constitui nem

o prolongamento sensiacutevel do instinto nem a continuidade racional de uma ideia180

Eacute nessa medida que Bergson poderaacute descrever o misticismo como portador de uma

essecircncia mais metafiacutesica do que moral ele conduz agrave experiecircncia capaz de interrogar os

arcanos da criaccedilatildeo que tem lugar por toda parte assume o sentido do impulso vital

comunicado a homens privilegiados que desejam imprimi-lo agrave humanidade inteira

transformando-a Se do ponto de vista da espeacutecie o homem encontra-se limitado como ser

vivo a alimentar-se de outros seres vivos ndash o que torna um imperativo pragmaacutetico que ele

fixe sua atenccedilatildeo na terra ndash e se isso bem o impulsiona em direccedilatildeo ao fechamento por

outro lado a humanidade conserva dois instrumentos uacuteteis agrave abertura a inteligecircncia que

pode ser prolongada como conveacutem em mecacircnica que no seu limite conserva o potencial

capaz de liberar a atividade humana e por outro lado a capacidade de variar as formas de

vida Em um momento mais recuado essa capacidade encontrava seu limite na criaccedilatildeo de

sociedades espirituais hoje poreacutem seria capaz de engendrar uma organizaccedilatildeo social e

poliacutetica que assegure agrave mecacircnica sua destinaccedilatildeo libertaacuteria e cosmopolita (BERGSON

2001 p 1175249) que veremos confundir-se com a proacutepria democracia O maquinismo

no entanto implica o perigo de que ao longo da experiecircncia histoacuterica ele se voltasse

contra seus proacuteprios propoacutesitos

O valor filosoacutefico do misticismo seria ainda mais visiacutevel na medida em que nos

desembaraccedilaacutessemos de uma objeccedilatildeo comum que reputa a experiecircncia miacutestica como um

evento excepcional e por ser essencialmente individual e diverso da experiecircncia cientiacutefica

insuscetiacutevel de solucionar problemas A fim de descartar essa objeccedilatildeo seria necessaacuterio

lembrar que satisfaz os criteacuterios de uma experiecircncia cientiacutefica aquela que seja suscetiacutevel de

180

ldquoIl ne srsquoagit donc pas ici de la fraterniteacute dont on a construit lrsquoideacutee pour en faire un ideacuteal Et il ne srsquoagit pas

non plus de lrsquointensification drsquoune sympathie ineacutee de lrsquohomme pour lrsquohommerdquo (BERGSON 1174248)

205

repeticcedilatildeo ou de controle (BERGSON 2001 p 1183260) Na medida em que a experiecircncia

pela qual passa o miacutestico eacute algo que todos podem experimentar ao menos de direito ndash

senatildeo de fato ndash bastando ter a disposiccedilatildeo e a energia para tanto a objeccedilatildeo talvez restasse

prejudicada Ainda que algueacutem natildeo experimente jamais um estado miacutestico eacute sempre

possiacutevel sentir algo da experiecircncia ressoar em si mesmo eacute o que acontecia com William

James por exemplo Com efeito assim como haveria pessoas insensiacuteveis agrave muacutesica haveria

pessoas insensiacuteveis agrave miacutestica mas disso natildeo se poderia extrair argumento algum nem

contra a muacutesica nem contra a miacutestica segundo Bergson (2001 p 1184261)

Em favor da validade da miacutestica haveria um firme consenso entre os miacutesticos que

definem apesar de uma variabilidade potencial de estados o mesmo tipo de experiecircncias

Sua psicologia indica em face do ensino regular da teologia uma grande docilidade em

aprender e em seguir seus diretores de consciecircncia e ao mesmo tempo um instinto seguro

que se manifesta em uma forma de liberdade superior capaz de abandonar todo ensino e

natildeo reconhecer outra autoridade senatildeo essa liberdade (BERGSON 2001 p 1185262)

Pressente-se sob seus gestos doacuteceis o advento de rupturas que constituem o signo de uma

intuiccedilatildeo mais profunda originada pelo contato com o Ser que se comunica com eles

Contudo a miacutestica por si soacute ndash como a ciecircncia ou a metafiacutesica por si soacutes ndash natildeo poderiam

dar ao filoacutesofo certeza absoluta Eacute preciso que sua interpenetraccedilatildeo origine pontos de

contato acumulaccedilotildees graduais de resultados adquiridos que longe de levarem a um

sistema concreto conduzem ao plano da experiecircncia ndash uacutenico esteio de qualquer

conhecimento

O que Bergson propotildee soacute eacute possiacutevel na medida em que a inteligecircncia foi aureolada

de intuiccedilatildeo que no entanto permanece no homem desinteressada e inconsciente Assim a

experiecircncia miacutestica de alguma maneira parece estender a experiecircncia interior da duraccedilatildeo

que nos conduz por aprofundamento agraves raiacutezes de nosso ser e ao princiacutepio da vida em

geral Em que sentido isso acontece Em primeiro plano os miacutesticos estatildeo sempre

dispostos a abandonar os falsos problemas (BERGSON 2001 p 1188266) Todas as

dificuldades e perplexidades ante as quais a filosofia se deteve satildeo de todo inexistentes

para eles A precedecircncia do nada sobre o ser da desordem sobre a ordem da eternidade

sobre o tempo ou do imoacutevel sobre o moacutevel satildeo reduzidas ao estado de simples miragens da

representaccedilatildeo de ilusotildees naturais positivas talvez no sentido deveras pragmaacutetico do viver

mas natildeo do especular ldquoCes questions un mystique estimera qursquoelles ne se posent mecircme

pasrdquo (BERGSON 2001 p 1189267) ilusotildees devidas agrave estrutura da inteligecircncia humana jaacute

natildeo lhe produzem qualquer anguacutestia metafiacutesica Uma vez que experimenta Deus que toca

206

no fundo do real natildeo experimenta nada de negativo sua existecircncia eacute uma positividade tal

como ele experimenta mas o que essa experiecircncia significa senatildeo criaccedilatildeo e amor emoccedilatildeo

criadora

O misticismo natildeo cessa de exprimir a foacutermula segundo a qual Deus eacute amor em

sentido forte o amor natildeo eacute um atributo ou um sentimento de Deus mas Deus ele proacuteprio

Nesse plano em que sente o amor abrasar-lhe a alma por dentro o miacutestico coincide

plenamente com esta emoccedilatildeo carregada de pensamento que precede e gera ideias que

conduz agrave inspiraccedilatildeo (BERGSON 2001 p 1189268) Esse tipo de emoccedilatildeo superior natildeo

possui objeto basta-se a si mesma natildeo eacute o amor de ningueacutem mas sentimento repartido

segundo singularidades musicais ldquoUne autre musique sera un autre amourrdquo (BERGSON

2001 p 1191270) Amor atuante que a nada se dirige mas cria criadores seres dignos de

prolongaacute-lo como cria mundos inteiros ndash energia criadora que faz a vida penetrar na

mateacuteria como a matildeo na limalha181

Com efeito no mundo que conhecemos o eacutelan vital

originou linhas evolutivas divergentes Na linha em que forjou o homem linha em que

conseguiu fazer passar o essencial de sua impulsatildeo o homem gira no interior do ciacuterculo

antropoloacutegico A abertura estaacute dada na medida em que a intuiccedilatildeo miacutestica se permite

colocar esse problema foram chamados agrave existecircncia seres destinados a amar e a serem

amados eles soacute poderiam ser criados em um universo que teve de ser criado assim como

uma grande variedade de novas espeacutecies que foram sua preparaccedilatildeo seu sustentaacuteculo seu

resiacuteduo E no entanto ainda assim os homens soacute viveriam pela metade se natildeo fosse pela

genialidade e pelo esforccedilo de indiviacuteduos excepcionais em se colocarem novamente na

direccedilatildeo criadora do eacutelan do qual tudo proveacutem Nesse sentido a miacutestica natildeo apenas

representou um triunfo sobre a mateacuteria os instrumentos e a necessidade mas indicou ao

mesmo tempo ao metafiacutesico a direccedilatildeo na qual a vida escoava (BERGSON 2001 p

1194274)

Esse eacute o ponto em que o valor metafiacutesico da experiecircncia miacutestica concretiza-se sob o

olhar do filoacutesofo Com efeito diante disso que no misticismo pode confundir-se com o que

haacute de mais inefaacutevel para um ponto de vista unicamente inteligente do ponto de vista da

intuiccedilatildeo permanece soldado agrave experiecircncia miacutestica concreta que Bergson jamais abandona

em sua descriccedilatildeo O valor metafiacutesico da miacutestica estaacute em ensinar que ldquoo fechamento e a

abertura natildeo satildeo apenas as dimensotildees morais da relaccedilatildeo da humanidade consigo mesma

mas tambeacutem as dimensotildees metafiacutesicas da relaccedilatildeo do homem com a vida com seu princiacutepio

181

ldquoDes ecirctres ont eacuteteacute appeleacutes agrave lrsquoexistence ce qui eacutetaient destineacutes agrave aimer et agrave ecirctre aimeacutes lrsquoeacutenergie creacuteatrice

devant se deacutefinir par lrsquoamourrdquo (BERGSON 2001 p 1194273)

207

primeiro e com o universo em seu conjuntordquo (WORMS 2011 p 367) Fica ainda uma

vez claro em que medida a obra bergsoniana ao encaminhar-se no sentido da superaccedilatildeo

do anthropos ndash compreendido como a forma de vida humana ou o ciacuterculo da espeacutecie ndash

encontra uma espeacutecie de destino biopoliacutetico182

A experiecircncia miacutestica recebe a impulsatildeo

capaz de revelar a dupla tarefa do homem no aberto romper sua forma de vida

emancipando-a tanto das necessidades e da mateacuteria pela inteligecircncia e pela mecacircnica

como superando a proacutepria forma de vida em que foi dada O miacutestico nesse sentido

gostaria de encaminhar toda a humanidade no sentido do divino compreende a

humanidade como ldquoune machine agrave faire des dieuxrdquo (BERGSON 2001 p 1245338) na

medida em que ela descreve a linha de evoluccedilatildeo que apesar de fundar-se em uma forma de

vida eacute capaz de fundi-la fazendo dela o ponto de inflexatildeo da proacutepria forma na qual uma

vida foi dada Trata-se em uacuteltima anaacutelise de encontrar no interior de si mesmo e de uma

forma de vida o aberto que se infiltra por ela e a recoloca em devir que reabre o fechado

Nesse sentido o misticismo bergsoniano natildeo pode conduzir senatildeo a uma ontologia

biopoliacutetica Natildeo eacute difiacutecil perceber que toda a tendecircncia ao fechamento e agrave constituiccedilatildeo de

sistemas organizados fechados que atravessa a integralidade da vida aparece em relaccedilatildeo a

ela como um obstaacuteculo a ser superado as formas de vida que se multiplicam em linhas

evolutivas divergentes como se fossem tentativas de fazer passar um pequeno veio de vida

e de duraccedilatildeo poderatildeo ser na linha do homem colocadas sempre em jogo ndash as experiecircncias

miacutesticas natildeo apenas o comprovam mas servem como terreno de experiecircncia e denotam a

subordinaccedilatildeo da histoacuteria ao devir Isto eacute se uma humanidade divina eacute possiacutevel ndash mesmo no

182

Bergson pode ser aproximado de uma redefiniccedilatildeo do conceito de biopoliacutetica de muitas maneiras e no

entanto aqui pretendemos natildeo mais fazer do que amarrar um devir desse conceito sob a epiacutegrafe de

LrsquoEgravevolution Creacuteatrice Seria possiacutevel encontrar originalmente em Foucault esse sentido positivo de

biopoliacutetica como potecircncia de variaccedilatildeo das formas de vida e como resistecircncia aos mecanismos de seguranccedila e

biopoder desde 1976 quando Foucault (2009 p 158) enuncia pela primeira vez sua tese ldquoFoi a vida muito

mais do que o direito que se tornou objeto das disputas poliacuteticas ainda que estas uacuteltimas se formulem atraveacutes

de afirmaccedilotildees de direitosrdquo Esses dois sentidos satildeo objeto de uma distinccedilatildeo semacircntica em La Faacutebrica de

Porcelana de Antonio Negri (2008 p 43) que passa a utilizar a diacuteade biopoder-biopoliacutetica para designar

pelo primeiro um poder exercido sobre a vida e pelo segundo um poder imanente agrave vida oposto ao primeiro

como contrapoder resistecircncia e potecircncia Uma deacutecada antes outro filoacutesofo poliacutetico italiano Maurizio

Lazaratto (1997 p 01) reclamava a Deleuze e sobretudo a Bergson um conceito de vida inorgacircnica

definida como ldquole temps et ses virtualiteacutesrdquo ldquole temps comme lsquosource de creacuteation continuelle drsquoimpreacutevisibles

nouveauteacutesrsquo lsquoce qui fait que tout se faitrsquo rdquo Ao fazecirc-lo Lazaratto pretendia redefinir o conceito de biopoliacutetica

em sentido bergsoniano de tal modo que ldquoLe concept de bio-politique doit comprendre non seulement les

processus biologiques de lrsquoespegravece mais aussi cette vie a-organique qui est agrave son origine comme elle est agrave

lrsquoorigine du vivant et du monderdquo (Idem ibidem loc cit) Trata-se de um vitalismo temporal natildeo orgacircnico

Essa vida inorgacircnica que Deleuze (2003 p 359-363) subtraiu sem cessar do bergsonismo a ponto de definir

no limiar de sua existecircncia todo seu projeto filosoacutefico por sua imanecircncia absoluta encontra no conceito

bergsoniano de uma vida remissiacutevel como vimos ao tempo como diferenciador profundo o conceito no qual

fundir uma ontologia virtual Seja como for fica justificado em que sentido se pode depreender do

bergsonismo um vitalismo do tempo virtual e genealogicamente biopoliacutetico e aleacutem disso esclarece-se

definitivamente o sentido muito preciso em que nos permitimos empregar essa expressatildeo

208

niacutevel individual ndash se essa experiecircncia tende a abarcar a humanidade inteira se ela toma

contato com o princiacutepio do qual proveacutem o Todo o homem soacute passa a possuir uma histoacuteria

na medida em que faz passar pelo interior de sua forma de vida um veio de devir

A fim de evitar mal-entendidos seria o caso de compreender a duplicidade do que

queremos significar por ldquoforma de vidardquo Com efeito a expressatildeo recebe uma transcriccedilatildeo

bioloacutegica no sentido bastante compreensivo que Bergson (2001 p 1061104) lhe

outorgara Descobriacuteamos no fundo da natureza uma tendecircncia ao fechamento capaz de

doar formas de vida e organizaccedilatildeo marcadas ateacute aqui pelas relaccedilotildees de grupo baseadas na

exclusatildeo sua tendecircncia agrave guerra do ponto de vista exterior ao grupo e agrave coesatildeo do ponto

de vista interior ao grupo ndash coesatildeo esta mantida natildeo apenas por uma moral que tende ao

fechamento como agrave religiatildeo estaacutetica que desempenhada automaticamente pelo instinto nos

animais e pelo instinto virtual nos homens cria formas de vida seguras de si previne a

sociedade e o indiviacuteduo das ameaccedilas de depressatildeo egoiacutesmo e desagregaccedilatildeo entre as

formas de vida inteligentes Haacute portanto nos himenoacutepteros como nos homens uma

sociedade saiacuteda das matildeos da natureza ela implica uma organizaccedilatildeo poliacutetico-social que

define natildeo apenas os modos de existecircncia dos indiviacuteduos em funccedilatildeo do grupo mas

sobretudo as formas de vida do proacuteprio grupo Lembremos que entre as formas de vida

inteligentes nas sociedades humanas primitivas ndash cujas tendecircncias natildeo deixam nem por

um momento de encontrar-se sob uma camada mais ou menos espessa de cultura nas

sociedades contemporacircneas (eis o que define a tese bergsoniana da persistecircncia do

natural)183

ndash a religiatildeo estaacutetica defendendo-se contra os efeitos perigosos e dissolventes

das relaccedilotildees do homem para com o grupo a que pertence e em profundidade do homem

com a proacutepria vida criavam-se tradiccedilotildees costumes ritos cerimocircnias e por meio delas

assegurava-se a coesatildeo do grupo sob uma forma nacional Sob todos os aspectos as

exigecircncias de abertura agraves quais a experiecircncia miacutestica responde revelam-se cada vez mais

exigecircncias praacuteticas e poliacuteticas especialmente no iniacutecio do quarto capiacutetulo de Les Dex

Sources

Dessa forma natildeo haacute apenas uma correlaccedilatildeo entre ontologia e formas de vida ndash

tomadas no sentido muito compreensivo que Bergson outorga a essa expressatildeo ndash mas

183

Se Bergson natildeo cessa de retornar ao primitivo parece fazecirc-lo em um sentido tambeacutem metafiacutesico que

SITBON-PEILLON (2002 p 194) considerou ldquoLe primitif serait [] la meacutetaphore du philosophe qui

lsquodeacutebarrasseacute de lrsquoacquisrsquo jetterait un lsquoregard naiumlfrsquo lsquoen soi et autour de soirsquo et ainsi arracheacute au symbolisme

tenterait de faire retour ver cet archaiumlsme qui est le fond de toute penseacuteerdquo Isso poreacutem na medida em que

ldquoLa philosophie de Bergson incarnerait [] la persistance du primitif dans la conscience et dans la penseacutee

rationellerdquo (Idem loc cit) Sobre as relaccedilotildees de aproximaccedilatildeo e distacircncia desta tese bergsoniana com La

penseacutee sauvage de Claude Leacutevi-Strauss (1962) Cf (KECK 2002 p 205-209)

209

essas formas de vida sendo biologicamente constituiacutedas implicam jaacute suas transcriccedilotildees

poliacuteticas referentes aos modos de existecircncia dos indiviacuteduos em funccedilatildeo da sociedades e dos

grupos aos quais pertencem e agraves formas de vida e de organizaccedilatildeo contempladas no interior

dos ciacuterculos concecircntricos de obrigaccedilotildees (entre os humanos os ciacuterculos da famiacutelia paacutetria

humanidade) que essas formas de vida genuinamente poliacuteticas compreendem Sob essa luz

de todo nova no bergsonismo e genuiacutena em Les Deux Sources a dualidade do aberto e do

fechado responde metafisicamente agraves exigecircncias de um problema praacutetico e poliacutetico184

ndash

ou nesse sentido inteiramente novo que se dissimula sob a obra bergsoniana ndash a um

problema originalmente biopoliacutetico ldquoComo abrir o fechadordquo eacute uma questatildeo que

perpassaraacute natildeo apenas a atualidade do momento histoacuterico que a Europa de Bergson

atravessava ndash a da indecidibilidade e dos umbrais de uma Europa que de um lado

impulsionava a mecacircnica e inventava os direitos humanos manifestando uma potente

tendecircncia agrave abertura e de outro captura o maquinismo nos aparelhos e estrateacutegias da

guerra agrave qual tendia e que nos tempos de Les Deux Sources comeccedilava a se insinuar185

A questatildeo permanece atual a toda sociedade humana na medida em que a

cristalizaccedilatildeo de tradiccedilotildees costumes e formas de vida revela uma tendecircncia ao fechamento

e agrave obrigaccedilatildeo moral sonambuacutelica que imita o automatismo do instinto186

nenhuma

transformaccedilatildeo pode efetuar-se sem abrir o fechado sem encontrar do ponto de vista das

formas de vida poliacutetica os pontos de ruptura das formas de vida biologicamente

construiacutedas para as sociedades humanas Se o primitivo natildeo deixava de ser como uma

memoacuteria social original e natural agrave estrutura espiritual que a vida montou nos homens

mesmo a mais civilizada Europa dos anos trinta poderia como de fato pocircde tender ao

fechamento agrave guerra e agrave hierarquia Isso natildeo eacute menos possiacutevel ainda hoje e natildeo eacute menos

possiacutevel em sociedades em transiccedilatildeo cujo problema essencial parece colocar-se do mesmo

modo como parecia colocar-se para Bergson ldquocomo abrir o fechadordquo Eis o que permite

que a transiccedilatildeo na qual a humanidade permanece por sua proacutepria estrutura natural ndash sua

existecircncia bioloacutegica e poliacutetica define-se antes de tudo por uma potecircncia biopoliacutetica de

184

ldquoEacute pois toda a filosofia de Bergson que se explica assim retrospectivamente em uma perspectiva

indissociavelmente praacutetica metafiacutesica e moral que liga nossa vida e toda vida em seus respectivos duplosrdquo

(WORMS 2011 p 368) ainda ldquo[] tudo se passa como se depois de ter oposto o fechado e o aberto por si

mesmos e como limites absolutos pudeacutessemos nos servir deles para nos orientarmos nos problemas

propriamente humanos e histoacutericos []rdquo (WORMS 2011 p 364) 185

ldquoDans Les Deux Sources [] Bergson part drsquoune contradiction anthropologique heacuteriteacutee de lrsquohistoire

politique celle de lrsquoirrationaliteacute des comportaments humains des croyences religieuses mais aussi et peut-

ecirctre surtout de la guerrerdquo (KECK 2002 p 214) 186

ldquoLrsquoactualiteacute pour aujourdrsquohui des Deux Sources est alors indissociable de certaines actualisations []

[] les problegravemes historiques deacutecrits pour Bergson (machinisme guerre civilisation aphrodisiaque) sont

enconre les nocirctres []rdquo (AMALRIC 2012 p 295)

210

variar ou cristalizar-se nelas ndash encontre no aberto uma tarefa eacutetica cosmopolita trata-se

natildeo apenas de abrir o fechado mas de combater o fechamento e de combatecirc-lo a fim de

perseverar no aberto Eacute possiacutevel pressentir de imediato que tudo isso deve receber

transcriccedilotildees poliacuteticas A moralidade do aberto agrave qual corresponde uma atitude subjetiva

proacutepria ndash a da alma aberta e no limite a do miacutestico que o propaga incendiariamente aos

indiviacuteduos falando-lhes em profundidade rompendo a casca parasitaacuteria do eu social e

evocando a liberdade radical e ontoloacutegica que os constitui como progecircneres da duraccedilatildeo ndash

fornece um criteacuterio eacutetico que dispensa toda transcendecircncia187

Tal liberdade natildeo se explica

mais pela razatildeo pelo sujeito e por seus criteacuterios dissociados da vida mas o aberto

constitui-se a partir dela Sua eacutetica funda-se no proacuteprio contato com a vida e com a emoccedilatildeo

criadora que dela procede opondo-se a toda exclusatildeo e a todo limite ela engendra uma

eacutetica amorosa que engloba o Todo responde a um apelo que conduz agrave paz e desfaz-se da

pressatildeo que tende agrave guerra188

Diante de tudo isso busquemos esboccedilar globalmente a resposta que o bergsonismo

oferece agrave questatildeo ldquoComo abrir o fechadordquo Essa questatildeo ndash que parece encaminhar-nos

subitamente na direccedilatildeo praacutetica de uma filosofia poliacutetica ndash tambeacutem poderia ser enunciada

em ldquoComo o estaacutetico se torna dinacircmicordquo ldquoComo o atual se virtualizardquo ou ainda

segundo uma transcriccedilatildeo propriamente biopoliacutetica ldquoComo lanccedilar uma forma de vida a um

devirrdquo Em uma nota redigida em resposta agrave obra que Loisy consagrara a Les Deux

Sources Bergson (2002 p 134) precisara a centralidade da questatildeo da abertura do fechado

em relaccedilatildeo agrave filosofia poliacutetica que desenvolveraacute no uacuteltimo capiacutetulo de seu livro suas

ldquoRemarques Finalesrdquo ldquo[] le moyen de reacuteforme essentiel selon moi nrsquoest pas [] la

lsquoscience psychiquersquo ni lsquolrsquoattent du heacuterosrsquo mais une certaine ouverture do clos une certaine

direction imprimeacutee au vouloir pour neutraliser lrsquohomme fondamentalrdquo Eis o gesto decisivo

187

ldquo[] a distinccedilatildeo entre o fechado e o aberto continua atraveacutes desse livro e para aleacutem dele a valer por si

mesma e a fornecer um criteacuterio uacuteltimo de orientaccedilatildeo a uma humanidade que renuncia a todo criteacuterio

transcendente mas que sente ou que sabe que permanecem criteacuterios morais imanentes a sua vidardquo (WORMS

2011 p 369) 188

Worms (2011 p 327) critica a leitura que Simone Weil (1990) devotou ao criteacuterio moral bergsoniano em

Lrsquoenracinement Seu argumento eacute o de que natildeo basta agrave moral do aberto o contato com a vitalidade e o

aumento de forccedila que se definam pela exclusatildeo e pela guerra A miacutestica em sentido bergsoniano soacute eacute

completa quando confundindo-se com um amor universal que natildeo comporta qualquer exclusatildeo define-se

pela abertura sem precedentes inclui o Todo e apela agrave paz A mesma criacutetica valeria para outro autor Luis

Quintanilla (1953) que em Bergsonismo y politica critica a moral bergsoniana pelas mesmas razotildees que

Weil embora geralmente o faccedila a partir da leitura de Georges Sorel e natildeo das obras de Bergson mesmas O

proacuteprio Bergson (2001 p 1240332) diraacute nesse sentido que ldquosi lrsquoon se tient au mysticisme vrai on le jugera

incompatible avec lrsquoimperialismerdquo

211

e subversivo que atravessa a obra bergsoniana a partir das sucessivas articulaccedilotildees entre

fechado e aberto (AMALRIC 2012 p 270)

Eacute nesse sentido que o aberto natildeo deixa de ser um ponto de vista que permite agrave

filosofia pensar o real para aleacutem dos modelos de clausura das sociedades fechadas

(AMALRIC 2012 p 276) Mas como o fechado deveacutem aberto Em uma palavra por

meio de uma atitude ndash que eacute ao mesmo tempo uma posiccedilatildeo subjetiva e uma accedilatildeo livre em

profundidade ndash de abertura do fechado Se Bergson insiste tatildeo intensamente sobre as

personalidades individuais excepcionais sobre os indiviacuteduos miacutesticos que tocando o eacutelan

vital em um ponto ou descobrindo-o sob o simbolismo de sua apariccedilatildeo natildeo eacute para atrelar

o devir das formas de relaccedilatildeo intersubjetiva ao heroiacutesmo que redundaria facilmente em um

culto da individualidade A questatildeo do devir das formas de vida ndash naquilo que elas

engendram de mais profundamente bioloacutegico e poliacutetico as tendecircncias de sociabilidade

forjadas pela natureza ndash encontra nas individualidades excepcionais a prova concreta

experimentada da possibilidade de abrir o fechado Moralistas artistas ou miacutesticos essas

individualidades excepcionais e de gecircnio natildeo satildeo o que carrega por si a humanidade para

aleacutem dela mesma satildeo a prova viva e histoacuterica de que eacute possiacutevel fazecirc-lo e de que se eles o

puderam foi por adotarem uma atitude aberta que eacute ao mesmo tempo um modo e

subjetivaccedilatildeo e uma accedilatildeo ndash ou em uma soacute palavra a efetuaccedilatildeo de um potencial de variaccedilatildeo

biopoliacutetica que conduz a humanidade para aleacutem de si mesma

Nesse plano tudo se passa como se a existecircncia de alguns super-homens que se

recolocaram no sentido do eacutelan fosse a prova histoacuterica da possibilidade que a humanidade

experimenta a todo momento ao redor de si como os virtuais imanentes agrave proacutepria condiccedilatildeo

humana que permitiriam ultrapassaacute-la A expressatildeo tatildeo ceacutelebre quanto equiacutevoca que se

encontra nas uacuteltimas linhas de Les Deux Sources pela qual Bergson concebe a humanidade

como ldquoune machine de faire des dieuxrdquo natildeo possuiraacute outro sentido senatildeo o de sintetizar

em uma foacutermula que combina a mecacircnica que pode nos liberar da necessidade ao destino

miacutestico ldquodivinordquo ou sobre-humano que nos reserva como continuaccedilotildees do eacutelan o destino

biopoliacutetico da humanidade Fazecirc-lo no entanto ndash Bergson o diz ndash implica uma escolha

entre viver apenas ou esforccedilar-se por realizar a funccedilatildeo essencial do universo Tal esforccedilo

condensa no homem a tendecircncia profundamente vital agrave abertura de uma alma que se abre

atitude subjetiva e efetuaccedilatildeo ativa como nos grandes esquemas da liberdade nos quadros

analiacuteticos do Essai subjetivaccedilatildeo e accedilatildeo se confundem ao infinito supondo a duraccedilatildeo como

memoacuteria elementar da mudanccedila e abertura ontoloacutegica ao porvir

212

Assim como a natureza definia formas de vida tendentes ao fechado fazendo

sistema organizando-se e a girando sobre si mesmas na mesma medida em que essa

tendecircncia ao fechamento parece implicar uma determinaccedilatildeo bio-ontoloacutegica de toda

individualidade (SITBON-PEILLON 2002 p 184) ela soacute se processa de um ponto de

vista dinacircmico supondo o aberto ndash o que deixa entrever uma abertura possiacutevel Assim

como a religiatildeo primitiva e natural permanece no homem e determina a partir da estrutura

geral de seu espiacuterito as formas de organizaccedilatildeo sociais tambeacutem a abertura permanece

contemporacircnea do fechamento capaz de abrir-se segundo comprova a experiecircncia pelo

menos na miacutestica Sabe-se que natildeo se passa de um termo a outro por alargamento

sucessivo aberto e fechado aparecem em primeiro momento como dois termos que

comportam uma irredutiacutevel diferenccedila de natureza da mesma forma natildeo se passa do amor

agrave famiacutelia ou agrave paacutetria ao amor ao Todo e agrave humanidade por via de intensificaccedilatildeo uma vez

que uma diferenccedila de natureza e natildeo de grau os perpassa (BERGSON 2001 p

1202284)

Todavia um outro tipo de passagem se faz possiacutevel e as experiecircncias miacutesticas

indicam precisamente o caminho que se deve percorrer Aqueacutem do misticismo vimos que

Bergson descreve ateacute mesmo uma alma de transiccedilatildeo como que ldquoentreabertardquo ao dinacircmico

signo de que uma franja indecisa virtual de instinto e intuiccedilatildeo natildeo cessa de aureolar a

inteligecircncia Satildeo precisamente essas franjas indecisas rodeadas por nuvens de virtuais que

encaminham agrave proacutepria vida elas entreabrem no homem o prolongamento de sua forma de

vida aparentemente imoacutevel na corrente evolutiva da qual essa forma procede189

Eacute como Todo virtual que o eacutelan se insinua no homem mostrando-se capaz de

produzir em sua forma de vida toda sorte de devires e de rupturas Cedendo agrave sua

reimpulsatildeo o homem salta para fora da natureza torna-se no dizer de Bergson ldquodivinordquo ndash

na medida em que se torna sobre-humano ndash mas ao mesmo tempo natildeo sai completamente

da natureza por isso Bergson afirma que essas individualidades ao tomarem contato com

o princiacutepio de todas as formas de vida constituem como indiviacuteduos ldquoune nouvelle

espegravecerdquo Seu salto para fora da natureza seria em termos espinosanos uma procura pelo

fora da natureza naturada ndash o que soacute pode definir-se como o reencontro em tudo divino

com a natureza naturante afinal ldquo[] crsquoest pour revenir agrave la Nature naturante que nous

nous deacutetachons de la Nature natureacuteerdquo (BERGSON 2001 p 102456)

189

ldquolsquoAffrangissementrsquo qui est affranchissement de lrsquoeacutelan vital par quoi lrsquoeacutevolution au lieu de srsquoimmobiliser

dans les formes de vie collective que les instincts et les tendences organiques de lrsquohomme primitif instituegraverent

dans le temps voisins de ses origines fut capable par un veacuteritable changement drsquoaboutir aux socieacuteteacutes

actuellesrdquo (SITBON-PEILLON 2002 p 187)

213

Eacute no misto do puro e do impuro do aberto e do fechado do devir e da forma que o

homem encontra uma saiacuteda para a liberdade (SITBON-PEILLON 2002 p 187) e a

liberdade em Bergson natildeo eacute mais que a transcriccedilatildeo em um modo de subjetivaccedilatildeo e afetivo

da criaccedilatildeo e do imprevisto ontoloacutegicos Uma ontologia profunda que se confunde com as

potecircncias virtuais do eacutelan atravessa pelas formas de vida depositando-se ao mesmo tempo

em que fratura a mateacuteria As franjas indecisas de inteligecircncia instinto e intuiccedilatildeo presentes

na estrutura geral do espiacuterito humano satildeo fixadas intensificadas e tornadas completas em

accedilatildeo pelos miacutesticos Eacute nesse sentido que viacuteamos o miacutestico ser tomado por Bergson a

despeito de toda crenccedila ecircxtase visatildeo estados moacuterbidos e anormais puramente acidentais

Importa considerar o misticismo completo como aquele que retira do impulso vital a

energia da accedilatildeo e do novo que o miacutestico estaacute prestes a lanccedilar no mundo Uma vez

completo no misticismo natildeo haacute apenas gozo e contemplaccedilatildeo mas transformaccedilatildeo da

alegria do gozo miacutestico ndash que se desembaraccedila dos falsos-problemas por meio de um

simbolismo que deixa transparecer em seu fundo intensivo o proacuteprio eacutelan e suas potecircncias

ndash em alegria da accedilatildeo (WORMS 2011 p 332) Enriquecendo a metafiacutesica com a

experiecircncia e com o contato com o eacutelan ao fazer do proacuteprio corpo o lugar do encontro com

uma potecircncia inumana posto que sobre-humana (SITBON-PEILLON 2002 p 188) os

miacutesticos pensam como homens de accedilatildeo e agem como homens de pensamento Assim como

o primitivo ndash que nos conduz ao fechamento ndash o miacutestico que encaminha ao aberto eacute

tambeacutem uma tendecircncia do espiacuterito190

uma direccedilatildeo da proacutepria realidade em que um

homem com a atitude e o esforccedilo apropriados pode efetuar-se

Pode-se pressentir como a questatildeo a que nos dedicamos longamente ateacute aqui ndash

ldquoComo abrir o fechadordquo ndash deve receber uma transcriccedilatildeo poliacutetica e sofrer uma distensatildeo

praacutetica no uacuteltimo capiacutetulo de Les Deux Sources a ponto de implicar no limite toda uma

filosofia poliacutetica do aberto Com efeito se o misto impuro eacute uma condiccedilatildeo que faz da

atitude e do esforccedilo de abertura seus correlatos na liberdade no interior da filosofia

poliacutetica bergsoniana mecacircnica e miacutestica se unem agrave emoccedilatildeo criadora para converter o

problema da instauraccedilatildeo do aberto na questatildeo ldquoComo perseverar no abertordquo Sem duacutevida

as Remarques Finales desta muacuteltipla obra bergsoniana tensiona ao maacuteximo os conceitos

metafiacutesicos a fim de transcrevecirc-los sob uma rubrica poliacutetica Natildeo eacute por acaso portanto que

agrave guerra e ao maquinismo capturado pelos aparelhos de Estado ver-se-aacute insinuar-se em

Bergson natildeo apenas o problema da direccedilatildeo miacutestica da teacutecnica mas o da direccedilatildeo miacutestica no

190

A propoacutesito ldquoToute reacutealiteacute est donc tendancerdquo escrevera Bergson (2001 p 1420211) ldquosi lrsquoon convient

drsquoappeler tendance un changement de direction agrave lrsquoeacutetat naissantrdquo

214

sentido das proacuteprias formas de organizaccedilatildeo poliacutetico-sociais que encontram na democracia e

nos direitos humanos dois modos coextensivos de manter aberto aquilo que a natureza

tende a fechar Eis o que devemos interrogar agrave luz desse novo campo problemaacutetico que se

define de um lado pela transcriccedilatildeo da intuiccedilatildeo metafiacutesica enriquecida pela experiecircncia

miacutestica e por outro a partir do contato miacutestico com o princiacutepio inumano que impulsiona a

vida mais aleacutem de si mesma e reconduz a natureza naturada agrave natureza naturante da qual

proveacutem

sect 3 PERSEVERAR NO ABERTO

TRANSICcedilAtildeO DEMOCRACIA E DIREITOS HUMANOS

A questatildeo ldquoComo perseverar no abertordquo precisa ser desenvolvida em trecircs direccedilotildees

coextensivas A primeira compreendida como etapa demonstrativa visa a esclarecer de

que maneira Bergson desenvolve a relaccedilatildeo entre mecacircnica e miacutestica nas Remarques

Finales de Les Deux Sources Trata-se de compreender os perigos sociais como a guerra

na era industrial a que a tendecircncia ao fechamento estaria em vias de levar a Europa no

momento da escritura da obra de Bergson mas tambeacutem de perceber em que sentido uma

moralidade aberta encontra na luta contra o fechamento sua distensatildeo poliacutetica mais proacutepria

e ainda como a democracia e os direitos humanos permitem avanccedilar na luta genuinamente

biopoliacutetica contra o fechamento em direccedilatildeo agrave perseveraccedilatildeo no aberto

Em uma segunda direccedilatildeo seria preciso enfrentar uma questatildeo na qual jaacute

resvalamos mas cujo epicentro permaneceu intocado Bergson afirma sucessivamente

propriedades quase incendiaacuterias do aberto como se ele se comunicasse por contaminaccedilatildeo

imediata de alma em alma Trata-se de perscrutar como isso eacute possiacutevel como o aberto se

comunica de alma em alma Sem isso restaria difiacutecil colocar nossa uacuteltima questatildeo e

uacuteltima direccedilatildeo de desenvolvimento que visa a relacionar o aberto e a transiccedilatildeo agraves questotildees

da democracia e dos direitos humanos

No extremo desse ponto seraacute possiacutevel interrogar as relaccedilotildees entre memoacuteria e

transiccedilatildeo no bergsonismo agrave luz do conceito de aberto da aspiraccedilatildeo moral e do devir que

elas realmente implicam atingindo finalmente apoacutes esse longo poreacutem imprescindiacutevel

plexo de demonstraccedilotildees o epicentro conceitual que nos conduz a apresentar a partir do

bergsonismo a inextrincaacutevel relaccedilatildeo entre memoacuteria e transiccedilatildeo que se encontra pressuposta

na Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo desde sua rubrica ontoloacutegica e a um soacute tempo poliacutetica

ou como preferimos biopoliacutetica

215

Todas essas perguntas ligam-se naturalmente agrave questatildeo precedente agrave qual

oferecemos uma resposta na uacuteltima seccedilatildeo ldquoComo abrir o fechadordquo Por essa razatildeo os

uacuteltimos desenvolvimentos que desaacuteguam na relaccedilatildeo entre mecacircnica e miacutestica no perigo da

guerra e na constante ameaccedila de fechamento a que podem estar ainda hoje submetidas as

democracias ocidentais como no tempo de Bergson191

natildeo poderatildeo deixar de ser seguidos

em suas articulaccedilotildees proacuteprias

Sigamos as grandes linhas de articulaccedilatildeo contidas no uacuteltimo capiacutetulo de Les Deux

Sources de la Morale et de la Religion Jaacute nas primeiras palavras do capiacutetulo vemos

Bergson (2001 p 1201283) remontar aos iacutendices biopoliacuteticos que atravessaram toda a sua

obra e esfumaram-se no caminho em um misto ldquoUn des reacutesultats de notre analyse a eacuteteacute de

distinguer profondeacutement dans le domaine social le clos de lrsquoouvertrdquo Satildeo precisamente

tais iacutendices ndash que chamamos biopoliacuteticos na medida em que possuem raiacutezes

compreensivamente bioloacutegicas192

ndash que permitem redesenhar as feiccedilotildees geneacutericas das

sociedades caracterizadas pelo fechamento ou pela abertura

As sociedades fechadas seratildeo definidas pela exclusatildeo como princiacutepio que forja a

coesatildeo do grupo e origina a necessidade de defender-se contra o outro o outsider e o

inimigo Sociedades estereotipadas e instintuais diferem das sociedades humanas pela

presenccedila da inteligecircncia nestas uacuteltimas e pelo potencial de variaccedilatildeo dos modos de relaccedilatildeo

intersubjetiva que podem produzir Elas contudo natildeo sentem menos a pressatildeo natural em

direccedilatildeo agrave sociabilidade originaacuteria no fundo de si ao mesmo tempo em que somos livres

para variar modos de existecircncia em comum o todo da obrigaccedilatildeo pesa sobre nossos atos

com toda a pressatildeo da natureza que exige uma forma de sociabilidade Saiacuteda das matildeos da

natureza ela natildeo passa de uma sociedade fechada que conserva no entanto em seu

interior um ponto de ruptura a partir do qual poderaacute abrir-se Enquanto isso natildeo ocorre o

todo da obrigaccedilatildeo e uma religiatildeo estaacutetica compensaratildeo os riscos egoiacutestas depressores e

dissolventes que a inteligecircncia importa em relaccedilatildeo aos indiviacuteduos e agraves sociedades humanas

que eles comporatildeo ndash ambas natildeo deixam de ser porque capazes de ressoarem em alguma

191

A esse respeito Worms (2011 p 368-369) ressaltou a atualidade da moralidade aberta bergsoniana bem

como uma seacuterie de outros autores buscaram atualizar a filosofia poliacutetica bergsoniana em funccedilatildeo do aberto O

resultado encontra-se reunido no quinto volume dos Annales bergsoniennes (Bergson et la politique de

Jauregraves agrave aujourdrsquohui) organizado por Worms (2012) do qual nos aproveitaremos para desenvolver algumas

reflexotildees sobre a filosofia poliacutetica proacutepria ao bergsonismo 192

Embora natildeo pretenda levar longe demais a analogia ndash uma vez que o homem e os himenoacutepteros

aproximam-se por estar no extremo das linhas de evoluccedilatildeo mas ainda assim ocupam extremos de linhas

diferentes e divergentes ndash Bergson afirma que ldquoLrsquohomme eacutetait fait pour elle [la socieacuteteacute] comme la fourmi

pour la fourmiliegravererdquo (BERGSON 2001 p 1201283)

216

medida com a inteligecircncia constitutivas de uma sociedade de tipo fechado (BERGSON

2001 p 1202284)

Da sociedade fechada agrave aberta percorre-se uma diferenccedila de natureza natildeo de grau

ldquoLa socieacuteteacute ouverte est celle qui embracerait en principe lrsquohumaniteacute entiegravererdquo ela possui

uma vocaccedilatildeo cosmopolita ndash e uma vez que sua energia adveacutem da proacutepria vida procede

por criaccedilotildees divergentes mais ou menos profundas em relaccedilatildeo ao homem que logo se

fecham e cristalizam em formas tradiccedilotildees costumes ou em instituiccedilotildees Assim que o

aberto faz uma volta sobre si fecha-se em um ciacuterculo a aspiraccedilatildeo enclausura-se em

pressatildeo torna-se obrigaccedilatildeo do todo e o ponto de fusatildeo passa a fundar Cada

transformaccedilatildeo de direccedilotildees insuspeitas e jamais predeterminadas exige um esforccedilo criador

proacuteprio e desenvolve-se em uma direccedilatildeo absolutamente singular e imprevisiacutevel como se a

mutaccedilatildeo de uma forma revelasse certa transparecircncia do devir em geral a que as formas

servem de instrumentos ou ensejos Os obstaacuteculos ou formas natildeo passam de ocasiotildees para

um devir que tem as mesmas caracteriacutesticas da duraccedilatildeo e do virtual uma transformaccedilatildeo

qualitativa e imprevisiacutevel (BERGSON 2001 p 1202-1203284-285) Nenhuma ideia

preexistiraacute a esse devir mas iraacute operar sua criaccedilatildeo imprevisiacutevel contemporaneamente a ele

Se o impulso vital a exigecircncia de criaccedilatildeo parece ceder diante do fechamento ou do

ciacuterculo da espeacutecie ateacute que outra oportunidade se apresente ele seraacute continuado e gestado

por meio de individualidades excepcionais193

Aberto e fechado dinacircmico e estaacutetico

podem entatildeo coexistir sob a forma de um misto No registro da moral Bergson entrevecirc a

coexistecircncia entre uma moral estaacutetica que se fixou nos costumes ideias e instituiccedilotildees cuja

forccedila reduz-se em uacuteltima anaacutelise agrave natural necessidade da vida em comum e de outro lado

uma moral dinacircmica ldquoqui est eacutelan et qui se rattache agrave la vie en geacuteneacuteral creacuteatrice de la

nature qui a creacutee lrsquoexigence socialerdquo (BERGSON 2001 p 1204286) Coexistem pois

pressatildeo e aspiraccedilatildeo como o infraintelectual a inteligecircncia ndash a procurar razotildees onde haacute

apenas niacuteveis mais ou menos intensos de vida ndash e o supraintelectual

A tese da persistecircncia do natural segundo a qual ldquoo primitivo natildeo deixa de serrdquo

nem mesmo sob as camadas mais recentes de cultura natildeo consiste em nada aleacutem de

afirmar a coexistecircncia de tendecircncias virtuais ao fechamento e agrave abertura O primitivo natildeo

193

ldquo[] de mecircme que lrsquoaspiration morale nouvelle ne prend corps qursquoen empruntant agrave la socieacuteteacute close sa

forme naturelle qui est lrsquoobligation ainsi la religion dynamique ne se propage que par des images et de

symboles que fournit la fonction fabulatricerdquo (BERGSON 2001 p 1203285) Assim o fechamento natildeo

consiste em uma tendecircncia natural negativa mas em um modo de comunicar claramente sob a forma de

pressatildeo ou siacutembolos uma aquisiccedilatildeo moral inteiramente construiacuteda no aberto e no dinacircmico O erro

consistiria natildeo apenas em atribuir uma funccedilatildeo unicamente negativa ao fechado mas em tentar explicar o

aberto por intermeacutedio do fechado

217

tem outro significado profundo senatildeo a dessa coexistecircncia de tendecircncias que atesta ter

havido uma sociedade fundamental e fechada saiacuteda das matildeos da natureza (BERGSON

2001 p 1206289)194

Por outro lado a tese da persistecircncia do natural permite infirmar e

criticar ateacute mesmo duramente a tese filosoacutefica natildeo demonstrada da transmissibilidade dos

caracteres adquiridos que explorada insistentemente em LrsquoEacutevolution Creacuteatrice natildeo

precisa ser revisitada aqui

Tudo indica que a sociedade natural seria constituiacuteda como um pequeno grupo no

entanto na mesma medida em que a natureza forjara inicialmente uma sociedade pequena

possibilitou tambeacutem que elas crescessem na medida em que engendrou a guerra e com ela

a possibilidade de associaccedilatildeo entre pequenos grupos que visavam a defender-se Embora

essas uniotildees sejam por si mesmas pouco duraacuteveis a guerra e a conquista encontram-se na

base dos impeacuterios como a experiecircncia histoacuterica de anexaccedilotildees territoriais e escravizaccedilatildeo de

populaccedilotildees para explorar seu trabalho teria demonstrado (BERGSON 2001 p 1210293-

294) No entanto ainda que se conceda certa aparecircncia de liberdade agraves populaccedilotildees

subjugadas logo a inteligecircncia passa a agir e faz sentir seus efeitos dissolventes As

grandes naccedilotildees modernas soacute poderiam ter-se construiacutedo nesse sentido ao neutralizarem

por meio do patriotismo ndash princiacutepio que se erige do fundo das proacuteprias comunidades

elementares dissolventes ndash a tendecircncia agrave desagregaccedilatildeo (BERGSON 2001 p 1210294)

virtude que ultrapassa o apego antigo agraves comunidades na medida em que pode tingir-se de

misticismo e de religiosidade195

A sociedade natural compreendida como um grupo

completo capaz de defender-se de outros grupos eacute marcada estruturalmente pela

inteligecircncia e pela liberdade que soacute podem ser contidas no seio da tendecircncia agrave

sociabilidade por outros artifiacutecios natildeo menos naturais a hierarquia e a disciplina haacute os

que mandam e os que obedecem ndash eis o dimorfismo de natureza psiacutequica que natildeo implica

duas categorias irredutiacuteveis (senhores e servos) Em verdade ambas as tendecircncias fazem

parte de noacutes integram nossa estrutura psiacutequica embora em geral a tendecircncia de obedecer

se manifeste mais constantemente que a de mandar ndash os tempos de revoluccedilatildeo o

demonstrariam melhor que qualquer outro exemplo196

Natildeo somos servos ou senhores por

194

ldquo[] la nature est indestructiblerdquo (BERGSON 2001 p 1206289) ldquo[] les dispositions de lrsquoespegravece

subsistent immuables au fond de chacun de nousrdquo (BERGSON 2001 p 1207291) isto eacute ldquolrsquoancien eacutetat

drsquoacircme subsiste dissimuleacute sous des habitudes sans lesquelles il nrsquoy aurait pas de civilisationrdquo (Idem ibidem

p 1209203) 195

ldquoIl fallait un sentiment aussi eacuteleveacute imitateur de lrsquoeacutetat mystique pour avoir raison drsquoun sentiment aussi

profond que lrsquoeacutegoiumlsme de la triburdquo (BERGSON 2001 p 1211295) 196

ldquoCrsquoest de quoi nous avons la vision nette en temps de reacutevolution Des citoyens modestes humbles et

oacutebeissants jusqursquoalors se reacuteveillent un matin avec la preacutetention drsquoecirctre des conducteurs drsquohommesrdquo

(BERGSON 2001 p 1212296-297)

218

natureza mas carregamos dentro de noacutes os iacutendices biopoliacuteticos que correspondem a esse

dimorfismo governamental na medida em que a vida social estaacute compreendida no plano da

estrutura da espeacutecie Eacute como se houvesse no mais submisso dos cidadatildeos um chefe

adormecido O que estaria na origem do engano quanto agrave separaccedilatildeo dos homens em classes

de mandantes ou de submissos natildeo passaria de um efeito cultural pelo qual por meios

historicamente muito heterogecircneos cultivou-se a naturalizaccedilatildeo da superioridade de estirpe

da classe governante Eis como se naturaliza o dimorfismo social do homem que estaacute

contido como tendecircncia inteiramente em cada indiviacuteduo da espeacutecie

Tudo se passa como se no interior dessa breve histoacuteria natural das formas humanas

de governamentalidade Bergson engendrasse uma fenomenologia da revoluccedilatildeo para

explicar o advento da democracia O instinto resiste a obrigaccedilatildeo via de regra perpetua-se

no seio do comum e no entanto a proacutepria classe dominante pode ou por uma

incapacidade evidente ou por abusos gritantes fazecirc-lo ceder na direccedilatildeo de um sentimento

de justiccedila capaz de dissipar a ilusatildeo segundo a qual a classe politicamente dirigente era

vista como naturalmente superior Toda a distacircncia entre senhores e suacuteditos esmaece Uma

vez que as classes superiores inspiram um respeito natural e quase religioso nas demais

compreende-se por que a humanidade soacute tenha chegado muito tarde agrave democracia

Concebecirc-la segundo Bergson implica um esforccedilo no sentido contraacuterio ao da natureza ela

seria a uacutenica forma de organizaccedilatildeo poliacutetica que para aleacutem de toda histoacuteria das lutas contra

a desigualdade transcende as condiccedilotildees da sociedade fechada e atribui ao homem direitos

inviolaacuteveis que para manterem-se inviolados exigem de todos fidelidade ao dever

Como a miacutestica a democracia eacute um salto para fora da natureza mas natildeo de toda a

natureza a democracia eacute a forma de organizaccedilatildeo poliacutetica que na medida em que atribui a

todos direitos iguais faz de todo homem legislador universal e suacutedito proclama e

reconcilia a igualdade e a liberdade eleva a fraternidade a genuiacutena condiccedilatildeo poliacutetica Uma

vez que a fraternidade torne-se essencial Bergson natildeo hesita em ir mais longe Para aleacutem

de descobrir ressonacircncias puritanas na Declaraccedilatildeo de Direitos do Homem ndash provenientes

da Declaraccedilatildeo Americana de Independecircncia ndash ele afirma que ldquola deacutemocratie est drsquoessence

eacutevangeliquerdquo que ldquoelle a pour moteur lrsquoamourrdquo (BERGSON 2001 p 1213300) Haveria

pois sob a superfiacutecie das foacutermulas democraacuteticas signos que evocam sua origem religiosa

dinacircmica Mesmo porque seria impossiacutevel definir a democracia senatildeo em termos vagos

tudo nela eacute questatildeo de permitir perseverar no aberto de deixar o futuro aberto a todo

progresso ldquonotamment agrave la creacuteation de conditions nouvelles ougrave deviendront possibles des

219

formes de liberteacute et drsquoeacutegaliteacute aujourdrsquohui irreacutealisablesrdquo (BERGSON 2001 p 1213300-

301)

Ama et fac quod vis eacute a essecircncia da democracia Esta direccedilatildeo quase sempre

introduzida no mundo pela forma do protesto permitiu conceber o advento dos direitos

humanos como desafios lanccedilados a abusos a fim de liquidar com o intoleraacutevel Toda a

fenomenologia da revolta que Bergson esboccedila nessas paacuteginas encontraraacute em uma

assertiva de Egravemile Faguet um ponto miacutestico de aprofundamento Faguet teria escrito que a

Revoluccedilatildeo Francesa natildeo fora feita em prol da liberdade e da igualdade mas porque se

morria de fome Bergson assente mas pergunta ldquopourquoi crsquoest agrave partir drsquoun certain

moment qursquoon nrsquoa plus voulu lsquocrever de faimrsquordquo Algo se passou da ordem de um devir das

formas de vida Na medida em que as intenccedilotildees com que uma ideia eacute lanccedilada continuam a

imantaacute-la por um longo tempo eacute preciso lembrar que toda foacutermula democraacutetica origina-se

da revoluccedilatildeo exprime um desejo revolucionaacuterio formula o que deve ser a fim de liquidar

o que eacute ndash e nesse sentido implica um trabalho praacutetico a um soacute tempo negativo e positivo

A ele corresponde o que Bergson diz ser um estado de alma democraacutetico que descreve um

esforccedilo no sentido inverso da natureza

A natureza inclina toda sociedade que se constitui agrave guerra forma grupos por

segregaccedilatildeo e exclusatildeo manteacutem-nos coesos organizados hierarquizados sob a autoridade

absoluta do chefe tudo isso segundo Bergson (2001 p 1216302) significa guerra A

inteligecircncia fabricadora com que a natureza dotou o homem tambeacutem o predispocircs agrave guerra

na medida em que permitiu que nascesse nele o sentimento de propriedade ligado aos

instrumentos que fabrica aos lugares que frequenta aos alimentos de que se nutre aos

escravos que possui etc Eis o que faz da propriedade uma tendecircncia natural que conduz agrave

guerra persiste no homem um instinto guerreiro que preparado para a violecircncia encontra

no fundo de si mesmo uma euforia que logo seraacute aplacada pelo sofrimento mas que natildeo

deixa de constituir uma forma de encorajamento e de reaccedilatildeo defensiva contra o medo197

Sob o ponto de vista do instinto guerreiro haacute guerras ldquonaturaisrdquo

Bergson natildeo cessa de auscultar nessas paacuteginas os diversos modos pelos quais a

Europa do poacutes-Primeira Guerra ndash olvidada muito rapidamente dos dilaceramentos recentes

ndash reencontrava esse instinto guerreiro e uma tendecircncia ao fechamento sem precedentes

Decerto o instinto guerreiro de que Bergson fala natildeo pode ser encontrado em estado puro

na medida em que a inteligecircncia interfere com ele projeta sobre esse instinto motivos

197

ldquo[] lrsquoorigine de la guerre est la proprieacuteteacute individuelle ou collective et comme lrsquohumaniteacute est predestineacutee

agrave la proprieacuteteacute par sa estructure la guerre est naturellerdquo (BERGSON 2001 p 1217303)

220

racionais que tendem a desaparecer na medida em que as guerras se tornem mais crueacuteis

Sob esse comeacutercio entre a guerra e a inteligecircncia e mais especificamente sob a relaccedilatildeo

entre a guerra e a industriosidade humana ndash que natildeo devemos esquecer fora forjada desde

a origem por uma inteligecircncia fabricadora ndash insinua-se o problema da teacutecnica envolvido

pelos perigos do fechamento198

Eacute preciso compreender as razotildees que levam Bergson agrave questatildeo da teacutecnica elas natildeo

estatildeo menos ligadas agraves formas de vida poliacutetica e agrave vida em geral que todas as demais

questotildees Com efeito no poacutertico da anaacutelise desse problema Bergson (2001 p 1220306)

chegaraacute a declarar que tendo esclarecido as origens da moral e da religiatildeo tendo obtido

algumas conclusotildees natildeo precisaria ir adiante199

No entanto a distensatildeo praacutetica e poliacutetica

que conduzia seu aparato conceitual metafiacutesico ndash sobretudo as noccedilotildees de aberto e fechado

ndash ao limite de genuiacutenos iacutendices biopoliacuteticos copresentes agraves sociedades humanas pareceratildeo

exigir um passo aleacutem200

Mais precisamente o que o impulsiona eacute perceber que as

tendecircncias da sociedade fechada parecem persistir na sociedade que se abre na medida em

que todas elas (obediecircncia fixismo hierarquia disciplina autoridade propriedade)

convergem primitivamente no instinto de guerra eacute preciso investigar se esse instinto pode

ser ativado ou inibido e de que maneira poderia secirc-lo

Sociedades como as europeias contemporacircneas agrave escritura de Les Deux Sources ndash

que aliaacutes parecem natildeo ter perdido nada de sua atualidade ndash satildeo aquelas que implicam em

mais alto grau certa dependecircncia entre os modos de vida e de existecircncia e o

198

ldquoLa derniegravere guerre avec celles qursquoon entrevoit pour lrsquoavenir si par malheur nous devons avoir encore des

guerres est lieacutee au caractegravere industriel de notre civilisationrdquo (BERGSON 2001 p 1220307) 199

ldquoNous pourrions en rester lagraverdquo (BERGSON 2001 p 1220306) 200

Seria impossiacutevel natildeo enxergar por exemplo em um longo paraacutegrafo em que Bergson pesquisa a

superpopulaccedilatildeo a divisatildeo do trabalho a circulaccedilatildeo dos produtos e a distribuiccedilatildeo de recursos e mateacuterias-

primas industriais ndash e toda a exigecircncia de regulamentaccedilatildeo que poderia ser estabelecida por organismos

internacionais ndash como causas possiacuteveis da ativaccedilatildeo do instinto de guerra os iacutendices daquilo que algumas

deacutecadas mais tarde Foucault chamaria de ldquobiopoliacutetica das populaccedilotildeesrdquo ou de ldquobiopoderrdquo poder sobre a vida

Bergson entrevecirc a necessidade de uma racionalizaccedilatildeo da produccedilatildeo do homem pelo homem atraveacutes de

regulaccedilotildees juriacutedico-administrativas e internacionais ndash em tudo coalescentes com a ideia foucaultiana de uma

ldquobiopoliacutetica das populaccedilotildeesrdquo fabricadora em que eacute o vital das populaccedilotildees que estaacute em jogo Para reter dessa

passagem apenas o essencial para demonstrar em que outro sentido o destino da filosofia bergsoniana natildeo

escapa a certa biopoliacutetica ldquo[] le scheacutema que nous venons de tracer marque suffisament les causes

essentielles accroisement de population perte de deacuteboucheacutes privation de combustible et de matiegraveres

premiegraveres Eliminer ces causes ou en atteacutenuer lrsquoeffet voilagrave la tacircche drsquoun organisme international qui vise agrave

lrsquoabolition de la guerre [] ce qui est certain crsquoest que lrsquoEurope est superpeupleacutee que le monde le sera

bientocirct et que si lrsquoon ne lsquorationalisersquo pas la production de lrsquohomme lui-mecircme comme on commence agrave le faire

pour son travail on aura la guerre [] Vous nrsquoeacuteviterez pas la reacuteglementation (vilain mot mais qui dit bien ce

qursquoil veut dire en ce qursquoil met impeacuterativement des rallonges agrave reacutegle et agrave regraveglement) Que sera-ce quand

viendront des problegravemes presque aussi graves celui de la reacutepartition de matiegraveres premiegraveres celuis de la plus

ou moins libre circulation des produits plus geacuteneacuteralement celui de faire droit agrave des exigences antagonistes

preacutesenteacutees de part et drsquoautre comme vitales Crsquoest un errreur dangereuse que de croire qursquoun organisme

international obtiendra la paix deacutefinitive sans intervenir drsquoautoriteacute dans la leacutegislation des divers pays et

peut-ecirctre mecircme dans leur administrationrdquo (BERGSON 2001 p 1221-1222308-309)

221

desenvolvimento industrial Eis o que definira sociedades afrodisiacuteacas sociedades de

prazer e gozo imoacuteveis tatildeo apaacuteticas quanto narcoacuteticas201

e que seriam talvez ainda hoje as

nossas ndash sociedades portanto provavelmente muito distantes do misticismo

ldquoincontestablement agrave lrsquoorigine des grandes transformations moralesrdquo (BERGSON 2001 p

1223310) as quais natildeo se tornaratildeo possiacuteveis senatildeo por um esforccedilo apropriado no sentido

do eacutelan vital a que corresponde tambeacutem um desejo profundo de fazecirc-lo202

Todavia

mesmo com relaccedilatildeo agraves sociedades afrodisiacuteacas natildeo haacute jamais um pessimismo bergsoniano

mas a insinuaccedilatildeo do aberto ldquoseraacute que a humanidade jaacute natildeo estaraacute suprida dos meios de

modificar-serdquo ou ldquotalvez esteja ela mais perto do que nunca do alvo que ela mesma

supotildeerdquo

Se Bergson recusa todo fatalismo em histoacuteria eacute na medida em que natildeo enxerga nela

um simples movimento pendular mas uma espiral ndash que implica a memoacuteria que impede

repeticcedilotildees puras ou nuas Jamais haacute simples alternacircncias de fluxo e refluxo na histoacuteria

nunca haacute um movimento pendular simples mas o desenvolvimento de tendecircncias segundo

a lei da dicotomia e a lei do duplo frenesi (BERGSON 2001 p 1227316) Sob a histoacuteria

soccedilobra o fundo do vital as lutas histoacutericas natildeo seriam senatildeo os signos superficiais e

expressivos de uma evoluccedilatildeo de tendecircncias mais profunda que em todos os aspectos

assemelha-se agraves tendecircncias de linhas de desenvolvimento da proacutepria vida Haacute portanto

uma coextensatildeo entre o movimento vital dos fluxos e suas transcriccedilotildees histoacutericas A

essecircncia de uma tendecircncia vital ndash afirmara o Bergson (2001 p 581102) de LrsquoEacutevolution

Creacuteatrice ndash eacute desenvolver-se em forma de feixe Na medida em que se desenvolve cresce

e cria as linhas divergentes segundo as quais um impulso original se dividiraacute203

O que

Bergson nomeia lei de dicotomia e lei de duplo frenesi tende a explicar esse movimento

global pelo qual uma tendecircncia se atualiza trata-se da dinacircmica de atualizaccedilatildeo de um

virtual propriamente dito ndash estejamos no campo da ontologia e da vida ou no da forma de

vida poliacutetica e da histoacuteria Com efeito em um caso estaremos no domiacutenio do imprevisiacutevel

no outro no da liberdade De todo modo imprevisto e liberdade constituem

essencialmente o mesmo embora determinem atualizaccedilotildees em niacuteveis diferentes que

coexistem entre si Definamos portanto as duas direccedilotildees em que uma atualizaccedilatildeo se

processa em geral A lei de dicotomia pode definir-se como a que provoca uma atualizaccedilatildeo

201

Bergson vai ainda mais longe ao afirmar que ldquoToute notre civilisation est aphrodisiaquerdquo (BERGSON

2001 p 1232322) 202

ldquoLrsquohumaniteacute ne se modifiera que si elle veut se modifierrdquo (BERGSON 2001 p 1223311) 203

Do ponto de vista de suas linhas divergentes criadas nas quais se reparte o eacutelan inicial ldquo[] une tendence

est la pousseacutee drsquoune multipliciteacute indistinctrdquo (BERGSON 2001 p 1225313)

222

por dissociaccedilatildeo ndash portanto por diferenccedila ndash do que originalmente constituiacutea uma tendecircncia

simples multiplicidade virtual e indistinta Por sua vez a lei de duplo frenesi consiste na

exigecircncia imanente a cada uma das tendecircncias criadas segundo a lei de dicotomia em

continuar-se indefinidamente exigir sua atualizaccedilatildeo ateacute o limite de uma tendecircncia criada

como linha divergente pela lei de dicotomia Bergson (2001 p 1227316) diz que cada

uma das tendecircncias exige ser realizada ateacute o seu limite mas pondera que talvez natildeo

houvesse esse extremo Encontrado esse limite virtual tendo chegado ao fundo de uma das

tendecircncias com toda a memoacuteria adquirida que isso implica voltar-nos-iacuteamos agrave atualizaccedilatildeo

da tendecircncia desprezada ndash e que permanecera agrave espera e agrave espreita ndash ateacute seu fundo204

Assim como uma inteligecircncia sobre-humana natildeo pode prever o devir histoacuterico

Bergson teraacute razatildeo em hesitar sobre a proximidade da humanidade a uma transformaccedilatildeo

miacutestica da moral A descriccedilatildeo do movimento de atualizaccedilatildeo de um impulso virtual

indiviso seu crescimento e dissociaccedilatildeo diferencial em tendecircncias autocircnomas a atualizaccedilatildeo

ateacute o fundo de uma enquanto a outra espera e espreita teria sido necessaacuteria para

compreender a questatildeo da teacutecnica e sua relaccedilatildeo com a miacutestica no acircmbito das sociedades

afrodisiacuteacas Como nunca a humanidade em geral parece buscar o luxo e o conforto por

meio da ciecircncia e das invenccedilotildees da teacutecnica responde a necessidades antigas na medida em

que cria novas que aceleram a insatisfaccedilatildeo das multidotildees Se a vida material dos homens

amplia-se significativamente entre os seacuteculos XV e XVI superando todo ideal asceacutetico que

constituiacutea a atmosfera da era medieval e fora diluiacutedo no comum dos homens eacute porque a

isso correspondem as evoluccedilotildees particulares de duas tendecircncias divergentes (BERGSON

2001 p 1230319) como se houvesse um progresso por oscilaccedilatildeo que potencialmente nos

conduziria a um retorno agrave vida simples ndash embora Bergson natildeo cesse de tratar disso como

algo aberto ao futuro e agrave sua imprevisatildeo Assim como o pensamento socraacutetico teria sido a

origem da vida cirenaica de prazeres e da vida ciacutenica de desprendimento violento

estendendo-se mais tarde no epicurismo e no estoicismo seria possiacutevel entrever uma

origem e um impulso comuns agrave sociedade afrodisiacuteaca e agrave vida simples Eacute no interior do

proacuteprio epicurismo ndash que popularmente consistiu natildeo raro na busca desenfreada de

prazeres ndash que Bergson encontra um Epicuro que desenvolveraacute o prazer supremo no

sentido da desnecessidade de prazeres205

Eacute nessas condiccedilotildees que um retorno agrave

204

ldquo[] quand on ne pourra plus avancer on reviendra avec tout lrsquoacquis se lancer dans la direction

neacutegligeacutee ou abandoneacuteerdquo (BERGSON 2001 p 1228316) 205

Esse coup drsquoœil sobre a histoacuteria das ideias resulta em que ldquo[] les deux principes sont au fond de lrsquoideacutee

qursquoon srsquoest toujours faite du bonheurrdquo (BERGSON 2001 p 1230319)

223

simplicidade natildeo seria certo por um lado mas tampouco teria algo de improvaacutevel afinal

ldquoune freacuteneacutesie apelle la freacuteneacutesie antagonisterdquo (BERGSON 2001 p 1233323)

Na medida em que pelo avanccedilo da ciecircncia superam-se necessidades antigas e

criam-se necessidades novas encontramos satisfaccedilotildees de luxo em invenccedilotildees mecacircnicas ndash a

proliferaccedilatildeo dos automoacuteveis como um luxo ostentatoacuterio o provaria suficientemente

(BERGSON 2001 p 1234324) Necessidades artificiais impulsionam ainda mais o

maquinismo embora a invenccedilatildeo mecacircnica persista um dom natural Seu progresso foi

limitado sempre pela mateacuteria e pela energia de que se aproveitava (esforccedilo muscular forccedila

do vento ou da aacutegua a energia acumulada por milhotildees de anos da hulha ou do petroacuteleo)

os saltos da teacutecnica habituaram-se a vencer distacircncias cada vez maiores na medida em que

a ciecircncia moderna integrou-se a ela e embora ciecircncia e teacutecnica possam distinguir-se

O que Bergson reprova agrave teacutecnica e ao espiacuterito de invenccedilatildeo eacute que natildeo tenham se

dirigido comumente aos interesses da humanidade inventando necessidades artificiais e

supeacuterfluas sem cessar natildeo asseguraram a satisfaccedilatildeo de necessidades mais elementares e

ainda que alterassem profundamente as relaccedilotildees capital-trabalho natildeo significaram aos

operaacuterios maior tempo de descanso e de liberdade206

Tais problemas poderiam poreacutem ser

corrigidos na medida em que a humanidade se esforccedilasse na direccedilatildeo de uma vida simples

racionalizasse a utilizaccedilatildeo do maquinismo orientada por certo misticismo e por certa ascese

(BERGSON 2001 p 1238329) A humanidade natildeo poderaacute fazecirc-lo contudo premida pela

fome e pela miseacuteria Se a miacutestica apela agrave mecacircnica eacute na medida em que para superar a

mateacuteria o homem precisa forccedilaacute-la encontrar nela um consistente ponto de apoio

(BERGSON 2001 p 1238329) Desde os instrumentos mais simples agraves maacutequinas mais

complexas e potentes que extraem seu potencial de accedilatildeo de uma energia acumulada por

milhotildees de anos todos prolongam o corpo e a inteligecircncia fabricadora com a qual a

natureza dotou o homem a teacutecnica e a mecacircnica o desenvolvem em um corpo aumentado a

exigir uma alma agrave sua altura ndash eis porque de certo ponto de vista tambeacutem a mecacircnica

parece convidar agrave miacutestica agrave constituiccedilatildeo de um suplemento de alma e a uma transformaccedilatildeo

moral capazes de preencher a distacircncia entre corpos totipotentes e as diminutas almas

humanas

206

ldquoDrsquoune maniegravere geacuteneacuteral lrsquoindustrie ne srsquoest pas assez soucieacutee de la plus ou moins grande importance des

besoins agrave satisfaire Volontiers elle suivait la mode fabriquant sans autre penseacutee que de vendrerdquo (BERGSON

2001 p 1236326) ldquo[] nous lui reprocherons [le machinisme] drsquoen avoir trop encourageacute drsquoartificiels

drsquoavoir pousseacute au luxe drsquoavoir favoriseacute les villes au deacutetriment des campagnes enfin drsquoavoir eacutelargi la distance

et transformeacute les rapports entre le patron et lrsquoouvrier entre le capital et le travailrdquo (BERGSON 2001 p

1236-1237327)

224

Mecacircnica e miacutestica natildeo seriam nesse sentido tendecircncias divergentes sujeitas agraves

leis de dicotomia e frenesi Direccedilotildees antagocircnicas originadas em um mesmo impulso

original de uma comunidade de eacutelan207

Eacute a miacutestica que permanece agrave espera e agrave espreita ndash

modo do virtual ndash enquanto nossa civilizaccedilatildeo leva a mecacircnica a seu limite e pareceraacute natildeo

parar de desenvolvecirc-lo senatildeo no limiar da cataacutestrofe Eis o que resulta da lei de dicotomia e

de duplo frenesi ldquo[] lrsquoaction en marche creacutee sa propre route creacutee pour une forte part les

conditions ougrave elle srsquoaccomplira et deacutefie ainsi le calcul On poussera donc de plus en plus

loin on ne srsquoarrecirctera bien souvent que devant lrsquoimminence drsquoune catastropherdquo

(BERGSON 2001 p 1227315) A descriccedilatildeo bergsoniana cada vez mais atual na medida

em que a mecacircnica parece conduzir-nos ainda hoje aos umbrais de uma cataacutestrofe

ambiental eacute o que estaacute a exigir uma profunda transformaccedilatildeo espiritual e moral capaz de

reunir os desiacutegnios da mecacircnica aos da miacutestica e por essa via reuni-los agrave proacutepria vida

A invenccedilatildeo coloca agrave disposiccedilatildeo do homem energias e potenciais de accedilatildeo

insuspeitados Restaria esforccedilar-se em relaccedilatildeo ao espiacuterito na direccedilatildeo da miacutestica tanto

quanto nossa civilizaccedilatildeo esforccedilou-se para dominar a mateacuteria Eis a procura pelo ldquode forardquo

capaz de fazer o homem emancipar-se da forma de vida que lhe fora atribuiacuteda pela

evoluccedilatildeo da vida assim livrar-se-aacute da proacutepria necessidade de ser uma espeacutecie Em relaccedilatildeo

a esse apelo que penetra miacutestica e devir liberaccedilatildeo e vida simples a humanidade soacute poderaacute

responder por si mesma nos termos de sua proacutepria liberdade que eacute tambeacutem a ressonacircncia

e a sobrevivecircncia do imprevisiacutevel ontoloacutegico que a constitui como tal208

A transiccedilatildeo da

alma que se abre que se prepara para cavalgar o corcel negro do devir implica o aberto

No entanto trata-se de saber como o aberto pode comunicar-se de alma a alma em que

consiste seu caraacuteter incendiaacuterio

Antes de nos encaminharmos definitivamente agraves derradeiras consideraccedilotildees da

presente seccedilatildeo antes mesmo de tornarmos evidente a relaccedilatildeo entre a transiccedilatildeo e a memoacuteria

que se insinua sem cessar sob os problemas de abrir o fechado de combater o fechamento

207

ldquoLes origines de cette meacutecanique sont peut-ecirctre plus mystiques qursquoon ne le croirait elle ne retrouvera sa

direction vraie elle ne rendra des services proportionneacutes agrave sa puissance que si lrsquohumaniteacute qursquoelle a courbeacutee

encore davantage vers la terre arrive par elle agrave se redresser et agrave regarder le cielrdquo (BERGSON 2001 p

1239331) 208

Tais satildeo as uacuteltimas linhas de Les Deux Sources em que Bergson evoca a liberdade mas tambeacutem o

potencial transespeciacutefico e biopoliacutetico da humanidade que retoma contato com o eacutelan vital (essa ldquomaacutequina de

fabricar deusesrdquo) e assumir a atitude espiritual correspondente ldquoA elle [lrsquohumaniteacute] de voir drsquoabord si elle

veut continuer agrave vivre A elle de se demander ensuite si elle veut vivre seulement ou fournir en autre lrsquoeffort

neacutecessaire pour que srsquoaccomplisse jusque sur notre planegravete reacutefractaire la fonction essentielle de lrsquounivers

qui est une machine agrave faire des dieuxrdquo (BERGSON 2001 p 1245338)

225

ou de perseverar no aberto ndash questotildees que nos encaminhavam inegavelmente a suas

transcriccedilotildees poliacuteticas no plano da democracia e dos direitos humanos ndash seria necessaacuterio

realizar um breve e derradeiro desvio a fim de compreender dinamicamente como o aberto

se comunica de uma alma a outra Com efeito pudemos compreender de maneira

esquemaacutetica as consequecircncias genuinamente praacuteticas que se dissimulam sob questotildees

aparentemente metafiacutesicas (abrir o fechado combater o fechamento perseverar no aberto)

Trata-se entatildeo de retrabalhar em detalhe alguns pontos-chave para compreender o caraacuteter

incendiaacuterio do aberto que se encontram expostos de maneira muito difusa na obra de

Bergson Esse curto desvio seraacute importante para compreender em que sentido natildeo haacute

transiccedilatildeo sem memoacuteria ndash e assumiremos aqui uma dupla articulaccedilatildeo entre os niacuteveis

psicoloacutegico e poliacutetico em que uma transiccedilatildeo se produz o que por si soacute auxiliaraacute a

esclarecer em que sentido o aberto pode ser tomado como o destino metafiacutesico de que as

transiccedilotildees poliacuteticas satildeo signo

Eacute em funccedilatildeo de uma teoria de emoccedilatildeo e de certa comunidade afetiva em

profundidade ndash que conviria chamar comunidade de eus profundos ndash que aspiraccedilatildeo

propulsatildeo e abertura satildeo mobilizados em funccedilatildeo de uma transformaccedilatildeo No entanto por

mais que seja possiacutevel pressentir sob toda abertura do estaacutetico em dinacircmico uma

comunidade de eus profundos que reemerge agrave superfiacutecie definidora das relaccedilotildees sociais

solidificadas pelo haacutebito e pelo todo da obrigaccedilatildeo propaga-se incendiariamente resfria-se

e volta a consolidar-se fechando-se sobre si mesma natildeo podemos nos brindar de antematildeo

com o que devemos demonstrar Uma comunidade de eus profundos soacute seraacute atingida no

extremo desse desvio e ao passo em que possamos esboccedilaacute-la entre as condiccedilotildees de

possibilidade da efetuaccedilatildeo de uma transformaccedilatildeo ou de uma transiccedilatildeo poliacutetica Eacute a esse noacute

problemaacutetico que as questotildees ldquocomo o aberto se comunica de alma em almardquo e ldquoem que

consiste a dinacircmica de sua propagaccedilatildeo incendiaacuteriardquo tendem a nos conduzir As

propriedades incendiaacuterias do aberto seriam muito mais do que uma bela imagem se

puderem ser explicadas dinamicamente em profundidade ligadas a uma teoria da emoccedilatildeo

criadora e a uma imitaccedilatildeo inventiva

Frisemos algo sobre o que jaacute insistimos longamente em outro momento mas que

recebeu em Les Deux Sources sua uacuteltima e definitiva distensatildeo praacutetica e poliacutetica Embora

desejemos conduzir a anaacutelise a partir do entrecruzamento entre dois niacuteveis da duraccedilatildeo ndash os

niacuteveis psicoloacutegico e poliacutetico-social ndash talvez natildeo seja demasiado ter em mente que o que

assegura essa coexistecircncia de niacuteveis eacute uma outra mais profunda e virtual e que

corresponde agrave proacutepria ontologia virtual da qual esses niacuteveis procedem Nesse sentido em

226

qualquer niacutevel em que o tomemos o que reabre o fechado o que racha o ciacuterculo descrito

pelo aparentemente natural e infinito tourner sur place que define uma forma de vida e os

coacutedigos sonambuacutelicos da moralidade estaacutetica satildeo algo como uma contraefetuaccedilatildeo virtual

que soacute se apreende em uma retomada de contato da forma com o eacutelan que eacute a condiccedilatildeo de

seu vir a ser tanto sob o ponto de vista do atual quanto do virtual O que eacute o aberto senatildeo

uma ruptura ou uma fenda na natureza naturada pela qual a duraccedilatildeo essencialmente

naturante natildeo cessa de forccedilar passagem O que Bergson define como ldquoa aberturardquo senatildeo o

conjunto de condiccedilotildees ndash entre as quais uma comunicaccedilatildeo do aberto de alma em alma ndash

pela qual eacute o devir como multiplicidade heterogecircnea e qualitativa que se comunica de

cima a baixo da ontologia agraves formas de vida do imprevisto agrave liberdade da evoluccedilatildeo das

espeacutecies ao salto inumano e sobre-humano de que o anthropos prova ser capaz na

experiecircncia miacutestica da memoacuteria elementar e ontoloacutegica que registra a passagem contiacutenua

da duraccedilatildeo agrave sua transfiguraccedilatildeo em memoacuteria psicoloacutegica e lembranccedila-imagem que torna

possiacutevel remuer la cendre do aberto A coalescecircncia entre o ontoloacutegico e os niacuteveis

psiacutequico poliacutetico-social ou histoacuterico que resta demonstrada em seus uacuteltimos termos

apenas agora ao cabo de Les Deux Sources ndash livro no interior do qual eacute uma atualizaccedilatildeo

em niacutevel do mesmo movimento que se passa em cada um desses niacuteveis na medida em que

ele eacute remissiacutevel em uacuteltima anaacutelise ao monismo poderoso e diferencial do eacutelan ndash jaacute seria

suficiente para termos presente que a origem com a qual o miacutestico toma contato designa

uma profunda forma de memoacuteria que se confunde com a integral da vida e de seus virtuais

A miacutestica designa a possibilidade de retomar o contato com essa memoacuteria cosmoloacutegica ndash

natildeo apenas bioloacutegica mas tambeacutem inorgacircnica e vital ndash e que persiste na forma de vida

humana Eis o que explica toda a centralidade da miacutestica como campo de provas no uacuteltimo

livro de jure de Bergson Essa tendecircncia que sobrevive no homem ao menos como virtual

ndash agrave espera e agrave espreita ndash soacute deseja que chegue a sua vez para que ela possa ser levada a

seu proacuteprio desespero conceitual para que tenha lugar seu desenvolvimento no sentido

mais radical para que sua linha de ruptura possa ser efetuada e conduzida a seu proacuteprio

frenesi

A fim de explicar como ela pode por um lado adormecer por duraccedilotildees muito

longas e por outro ser suscitada em duraccedilotildees muito curtas seria preciso entrever sua

relaccedilatildeo com uma teoria da emoccedilatildeo e da imitaccedilatildeo ndash nas quais tocamos apenas com as

pontas dos dedos ateacute aqui ndash em funccedilatildeo precisamente de uma espeacutecie de fenomenologia da

revoluccedilatildeo que encontraacutevamos nas Remarques Finales da obra de Bergson Nem mesmo os

mais contemporacircneos comentadores de Bergson ndash e que tentam reatualizar hoje o

227

bergsonismo como filosofia poliacutetica ndash levaram-na tatildeo longe O desafio que Bergson lanccedila

ao final do livro em tudo correlato aos devires democraacuteticos que o aberto inspirou mostra-

se paulatinamente ser algo da ordem de um desejo profundo e autecircntico virtual e

indomaacutevel puro ato de liberdade que eacute o representante psicoloacutegico de uma emoccedilatildeo

criadora de atmosfera incendiaacuteria Como explicar que certo dia homens outrora

obedientes e submissos decidam insurgir-se porque passar fome jaacute natildeo eacute mais toleraacutevel

Como natildeo enxergar nessa questatildeo a gecircnese dos proacuteprios direitos humanos como fruto do

desejo e de uma emoccedilatildeo criadora coletiva que se tornou necessaacuterio explicar ndash uma vez que

as lutas natildeo satildeo senatildeo os signos mais superficiais dessa clareira obscura e profunda que eacute o

aberto Se os direitos humanos como quisera Bergson se introduzem no mundo pela via

do protesto o desejo e a emoccedilatildeo satildeo seus precursores sombrios Cinzas que ainda fazem

rescender o perfume do aberto eles envolvem natildeo apenas um potencial emancipatoacuterio

contra a dominaccedilatildeo e a opressatildeo mas satildeo o iacutendice atual dos virtuais que sob eles

encontram-se agrave espreita agrave espera de variar formas de vida Por meio deles ou por meios

totalmente outros eacute contra o fechamento que se luta sem cessar contra a solidificaccedilatildeo da

desigualdade em haacutebito e da liberdade em coacutedigo moral

Contudo o que explicaraacute que se combata o fechamento do aberto sem cessar

Retornemos a uma distinccedilatildeo essencial entre o aberto e o fechado que se faz atravessar por

uma diferenccedila de natureza ndash e natildeo de grau Em virtude dessa diferenccedila Bergson recusava

vigorosamente a possibilidade de passar do fechado ao aberto pela via do alargamento

progressivo o amor ao Todo e a alma aberta jamais resultariam da extrapolaccedilatildeo do amor agrave

famiacutelia ou agrave paacutetria de que satildeo com efeito naturalmente capazes as almas fechadas209

Vimos a propoacutesito que todo esse contexto definia a questatildeo metafiacutesica e ao mesmo tempo

praacutetica e poliacutetica que segundo o proacuteprio Bergson constituiacutea o cerne problemaacutetico de Les

Deux Sources ndash ldquocomo abrir o fechadordquo ldquocomo reabrir o fechadordquo Sob essa questatildeo ndash

Worms bem o percebera ndash encontra-se muito mais do que uma simples questatildeo moral ou

poliacutetica destacada da ontologia210

pelo contraacuterio ela implica a ontologia bergsoniana

209

Pelo contraacuterio Antoine Janvier (2012 p 217-218) afirmaraacute que o processo de produzir difundir e

comunicar emoccedilatildeo recebe em Les Deux Sources o nome de amor mas pela vida inteira pelo Todo como a

descriccedilatildeo bergsoniana da alma aberta o provaria Cf nesse aspecto (BERGSON 2001 p 1006-100734) 210

ldquo[] o fechamento e a abertura natildeo satildeo apenas as dimensotildees morais da relaccedilatildeo da humanidade consigo

mesma mas tambeacutem as dimensotildees metafiacutesicas do homem com a vida com seu princiacutepio primeiro e com o

universo em seu conjuntordquo (WORMS 2011 p 367) ou ainda ao falar do que se encontra envolvido nos

problemas verdadeiros que Les Deux Sources desvela Worms diraacute que naquele livro ldquo[] encontraremos

natildeo apenas a gecircnese positiva da moral teoacuterica mas tambeacutem e sobretudo uma nova soluccedilatildeo para o problema

cosmoloacutegico para o problema da criaccedilatildeo que renova todo o pensamento de Bergsonrdquo (Idem ibidem p

347) Antoine Janvier (2012 p 210 e p 222) seguindo a inspiraccedilatildeo de Le Bergsonisme de Deleuze natildeo

deixa de considerar esta obra de Bergson como um desdobramento da ontologia da duraccedilatildeo em sentido

228

mesma o Todo virtual que se confunde com o eacutelan causa profunda do vir a ser do real em

sua integralidade

De outro lado sabemos o que permite no seio da forma de vida humana no

especiacutefico ciacuterculo antropoloacutegico que o aberto possa passar Se por um lado a natureza e o

instinto impotildeem o fechado e a vida social a inteligecircncia tambeacutem se introduz na estrutura

em geral do espiacuterito humano e com ela uma potecircncia de hesitaccedilatildeo que corresponde a uma

atualizaccedilatildeo de niacutevel psicoloacutegico da proacutepria imprevisibilidade ontoloacutegica da duraccedilatildeo

mesma enquanto diferenccedila consigo mesma ndash algo a que chamamos liberdade Nessa

abertura demasiado estreita em que ela se insere todo tipo de jogo se torna possiacutevel a partir

da tensatildeo constitutiva de nossa liberdade entre inteligecircncia e sociedade (DELEUZE 1966

p 112) Natildeo sem razatildeo o todo da obrigaccedilatildeo seraacute explicado pelo instinto virtual como

resistecircncia agrave resistecircncia porque o dado fundamental da inteligecircncia eacute o de resistir ao

fechamento que a natureza impotildee (BERGSON 2001 p 99113) Haacute uma indisciplina

natural nas crianccedilas porque a inteligecircncia abandonada a si mesma eacute fabricadora e

inventiva a variaccedilatildeo eacute o princiacutepio superior (supraintelectual) que natildeo cessa de ressoar nela

em um niacutevel apenas intelectual pragmaacutetico corporal atento ao presente e agraves exigecircncias da

utilidade e da vida A inteligecircncia e a invenccedilatildeo poreacutem natildeo satildeo nunca deixadas a si

mesmas ndash haacute sempre um instinto virtual que as vigia que reequilibra suas tendecircncias que

previne contra seus perigos e confabula para o social

Por outro lado ainda que o instinto virtual no homem pressione a inteligecircncia

tomando seu lugar instaura um intervalo entre accedilatildeo e reaccedilatildeo intervalo que Deleuze afirma

ser intracerebral Precisamente esse intervalo torna possiacutevel uma variaccedilatildeo de haacutebitos no

jogo entre inteligecircncia e sociedade ndash entre tendecircncias ao egoiacutesmo ao proveito individual e

pressatildeo exercida pelo todo da obrigaccedilatildeo ndash e indica dessa forma o sentido em que a

liberdade poderaacute alargar-se (JANVIER 2012 p 209) Tudo se passa como se essa

hesitaccedilatildeo duracional que a inteligecircncia implica encaminhasse ao aberto Precisamente essa

liberdade intervalar eacute o que explica certo privileacutegio do homem em relaccedilatildeo agraves demais

formas de vida do ponto de vista da evoluccedilatildeo ele seria o uacutenico capaz de encontrar no

ciacuterculo antropoloacutegico a condiccedilatildeo de ruptura e superaccedilatildeo de sua proacutepria forma de vida ndash eis

o que tornaria o homem em nossos termos o animal biopoliacutetico por excelecircncia definido

por sua potecircncia de variaccedilatildeo e invenccedilatildeo de formas de vida Natildeo por acaso Deleuze

(ibidem loc cit) diraacute que eacute toda a memoacuteria e toda a liberdade que se infiltram por esse

poliacutetico No mesmo sentido por fim ldquoLrsquoamour est [] le nom de la dureacutee saisi agrave son niveau le plus profonde

le plus fondamental []rdquo (AMALRIC 2012 p 274)

229

intervalo e se tornam atualizaacuteveis instaurando o privileacutegio da abertura no homem

indicaratildeo a sociedade aberta como limite ideal capaz de albergar por princiacutepio a

humanidade inteira e ir mais aleacutem ndash exprimir-se como amor ao Todo (BERGSON 2001 p

1202284 e ainda p 1006-100734) significado profundo da democracia

O aberto eacute o iacutendice dos devires de uma humanidade poacutes-humana na medida em que

se daacute conta de sua natureza transespeciacutefica O que a alma aberta encontraraacute no interior de si

eacute apenas a reiteraccedilatildeo do gesto constituinte da proacutepria vida assim tornava-se possiacutevel

definir a atitude miacutestica antes de tudo como uma tomada de contato e como coincidecircncia

parcial do miacutestico com a proacutepria vida (BERGSON 2001 p 1162233) Eacute portanto no

sentido do eacutelan e por extensatildeo da proacutepria ontologia virtual da qual sai o cosmos que as

almas as formas de vida e de existecircncia em comum se abrem Por essas razotildees a alma

aberta natildeo eacute um dado puro e simples da natureza sempre e jaacute atualizado mas o resultado

de um esforccedilo que desenvolve uma virtualidade copresente agrave inteligecircncia e ao instinto em

certo sentido (JANVIER 2012 p 214-215) No interior da forma de vida os virtuais de

uma alma aberta encontram-se nesse sentido prefigurados na direccedilatildeo da abertura que a

inteligecircncia indica a inteligecircncia e a variaccedilatildeo de haacutebitos que a inteligecircncia implica ao

resistir agrave pressatildeo de uma moralidade fechada satildeo indiciaacuterios de uma direccedilatildeo a seguir mas

natildeo atualizam por si mesmas nenhuma linha que dela proceda em potencial Essa linha

consiste em uma espeacutecie de apelo do virtual ldquoappel agrave la coappartenance originaire agrave lrsquoeacutelan

vitalrdquo (ZANFI 2012 p 231) ao qual respondem as individualidades excepcionais e

intuitivas dos grandes homens morais dos artistas mas tambeacutem dos miacutesticos

Se pudemos reencontrar brevemente o aberto como virtual do proacuteprio homem

essa abertura que assim se insinua constitui apenas uma das condiccedilotildees de uma

transformaccedilatildeo qualquer Eis o que nos daacute ao mesmo tempo a chave do vitalismo virtual

com que Bergson dissipa os falsos-problemas e as ilusotildees metafiacutesicas para retomar um

contato com o real211

Todo um novo esforccedilo deve constituir-se no sentido de esclarecer

sua dinacircmica que nos indica precisamente o lugar de uma teoria das emoccedilotildees e da

imitaccedilatildeo involuntaacuteria e inventiva ndash esta profundamente influenciada por Gabriel Tarde

(AMALRIC 2012 p 284)212

Perguntar-se sobre a dinacircmica segundo a qual uma

211

ldquo[] penser toutes choses en termes de dureacutee et de mouvement crsquoest-agrave-dire comme des produits de lrsquoeacutelan

vitalrdquo (JANVIER 2012 p 203) 212

A audaacutecia da cosmologia bergsoniana e de sua filosofia do devir eacute nesse sentido muito proacutexima daquela

de Gabriel Tarde para quem ldquoexistir eacute diferirrdquo A afirmaccedilatildeo que constitui a cosmologia de Tarde eacute lapidar

natildeo apenas por exprimir a precedecircncia da diferenccedila ou sua natureza infinitesimal mas por forrar o real com

a diferenccedila e submeter a proacutepria identidade a ela A aproximaccedilatildeo entre as cosmologias de Tarde e Bergson eacute

nesse particular notaacutevel ldquoExistir eacute diferir na verdade a diferenccedila eacute em um certo sentido o lado substancial

230

transformaccedilatildeo dos haacutebitos sociais dos coacutedigos morais ou das formas de organizaccedilatildeo

poliacutetica se produz eacute finalmente interrogar ldquocomo efetuar o abertordquo Eacute apenas nesse passo

que uma teoria da emoccedilatildeo criadora receberaacute em Les Deux Sources um estatuto especial

(DELEUZE 1966 p 116)

A resposta de Bergson a essa questatildeo eacute bastante clara A alma aberta natildeo estaacute

jamais dada como atual pela natureza o que a natureza assegurou foi a sociabilidade por

meio de um instinto virtual e a variabilidade dos haacutebitos em virtude da inteligecircncia Saltar

para fora da natureza naturada para fora do adquirido ldquoexige toujours un effortrdquo

(BERGSON 2001 p 100735) Sua forma de transcrever nossa questatildeo ldquocomo efetuar o

abertordquo eacute perguntar-se ldquoDrsquoougrave vient que les hommes qui en ont donneacute lrsquoexemple ont trouveacute

drsquoautres hommes pour les suivre Et quelle est la force qui fait pendant ici la pression

socialrdquo (Idem ibidem p 1007-100835) Sua resposta embora concisa natildeo seraacute menos

clara ldquoNous nrsquoavons pas le choix En dehors de lrsquoinstinct et de lrsquohabitude il nrsquoy a drsquoaction

direct sur le vouloir que celle de la sensibiliteacute La propulsion exerceacutee par le sentiment peut

drsquoailleurs ressembler de pregraves agrave lrsquoobligationrdquo (Idem ibidem p 100835)

Eis o ponto em que uma afetividade ndash cujos termos ainda estatildeo por definir ndash

encontra seu lugar no interior da filosofia moral e poliacutetica bergsoniana Aleacutem do instinto e

do haacutebito apenas a sensibilidade poderaacute interferir com o querer e eacute precisamente essa

accedilatildeo direta da sensibilidade sobre o querer que Bergson chamaraacute emoccedilatildeo (JANVIER

2012 p 215) Contudo natildeo seraacute esta uma emoccedilatildeo qualquer sua accedilatildeo direta sobre o querer

eacute algo que natildeo se confunde com a accedilatildeo do instinto ou do haacutebito ndash formulado pela

inteligecircncia mas fixado pelo instinto ndash sobre o querer A emoccedilatildeo estaacute para aleacutem disso

constitui o fora do instinto e do haacutebito consiste na libertaccedilatildeo do homem em relaccedilatildeo a todo

adquirido que natildeo a precede de modo nenhum Bergson (2001 p 101140) afirmaraacute pelo

contraacuterio que eacute sempre uma emoccedilatildeo nova o que estaacute na origem das grandes criaccedilotildees da

arte da ciecircncia ou da civilizaccedilatildeo Trata-se portanto natildeo de uma emoccedilatildeo que se segue de

uma representaccedilatildeo ou de uma ideia ndash ela jamais se definiraacute pois como intelectual ou

das coisas o que elas tem ao mesmo tempo de mais proacuteprio e de mais comum [] a identidade eacute apenas um

miacutenimo e portanto apenas uma espeacutecie e uma espeacutecie infinitamente rara de diferenccedila assim como o

repouso eacute apenas um caso do movimento e o ciacuterculo uma variedade singular da elipserdquo (TARDE 2007 p

98) Toda a cosmologia bergsoniana parece ser a prova dessa maacutexima afinal Bergson realiza um vai e vem

constante entre o espiacuterito e o mundo material perguntando se a incessante mudanccedila que experimentamos por

dentro nosso sentimento de duraccedilatildeo poderia aplicar-se agravequilo que existe em geral Testemunhando essa

proximidade entre Tarde e Bergson satildeo as proacuteprias foacutermulas cosmoloacutegicas que chegam a se tocar por

caminhos muito distintos ldquo[] pour un ecirctre conscient exister consiste agrave changer changer agrave se mucircrir se

mucircrir agrave se creacuteer indeacutefiniment soi-mecircme En dirait-on autant de lrsquoexistence en geacuteneacuteralrdquo (BERGSON 2001 p

50007)

231

infraintelectual ndash mas de uma emoccedilatildeo que eacute um estimulante do pensamento e da

invenccedilatildeo213

Trata-se de uma emoccedilatildeo que responde agrave questatildeo que Deleuze se colocava em

Diffeacuterence et Reacutepeacutetition ldquocomo engendrar pensar no pensamentordquo Deleuze encontraraacute no

teatro de Antonin Artaud uma foacutermula muito geral que natildeo deixa de transpirar certo

bergsonismo ldquoeacute preciso accediloitar nosso proacuteprio inatismordquo Artaud ndash como todo artista de

gecircnio ndash natildeo deixava de saltar tambeacutem ele agrave sua maneira e como conveacutem para fora da

natureza naturada para fora do inatismo que significaraacute para Bergson todo o adquirido

instinto virtual e inteligecircncia atenccedilatildeo agrave vida e imobilidade do pensamento

Em Bergson eacute a emoccedilatildeo criadora que accediloita nosso inatismo engendra o pensar no

pensamento e nos permite saltar para fora do constituiacutedo e do adquirido naturais ndash o

miacutestico eacute esse artista nada suicida que executa ldquoo salto vitalrdquo Natildeo sendo consecutiva nem

a uma ideia nem a uma sensaccedilatildeo tampouco a uma representaccedilatildeo a emoccedilatildeo seraacute geradora

de ideias e de pensamento definindo-se menos por elas e mais como ldquoun eacutebranlement

affectif de lrsquoacircme [] un soulegravevement des profondeursrdquo (BERGSON 2001 p 101140) A

emoccedilatildeo criadora eacute portanto duplamente irredutiacutevel ela natildeo se reduz nem agraves excitaccedilotildees

fiacutesicas superficiais ou agraves sensaccedilotildees que se produzem em um corpo nem agraves ideias e

representaccedilotildees que gera como suas expressotildees Nesse sentido Bergson (2001 p 101241)

poderaacute definir a emoccedilatildeo criadora como emoccedilatildeo supraintelectual querendo significar com

isso natildeo uma superioridade de valor mas uma anterioridade no tempo como a que se

encontra presente na relaccedilatildeo entre aquilo que engendra e aquilo que eacute engendrado O apelo

bergsoniano eacute pois o de natildeo confundir produto e produzir a emoccedilatildeo criadora

supraintelectual definida como sensibilidade profunda eacute o que engendra na medida em

que essa vibraccedilatildeo da integral da alma ldquocrsquoest bien lrsquoimprevisible mecircme qui nous saisitrdquo

(JANVIER 2012 p 215) Natildeo casualmente denotando ainda uma vez a correlaccedilatildeo entre

os devires em sentido ontoloacutegico e nos demais registros (sociais morais ou poliacuteticos por

exemplo) Yala Kisukidi realizaraacute uma releitura do estatuto do fechado e do aberto em

funccedilatildeo da teoria das multiplicidades presentes no Essai sur les donneacutees immediates de la

conscience e natildeo hesitaraacute em vincular ao fechado as multiplicidades de tipo quantitativo e

ao aberto a multiplicidade qualitativa heterogecircnea e contiacutenua que corresponde no Ensaio

agrave proacutepria duraccedilatildeo214

213

ldquo[] lrsquoinvention quoique drsquoordre intelectuel peut avoir de la sensibiliteacute pour substancerdquo (BERGSON

2001 p 101140) 214

ldquoLe clos est le reacutegne du multiple en un sens quantitatif Multipliciteacute des parties qui forment les diffeacuterents

groupes humains Chaque groupe se recconnagraveit comme Un en tant qursquoil est identique agrave lui-mecircme ndash toute

identiteacute supposant lrsquoexclusion et la deacutefense contre lrsquoeacutetranger [] Contre cette multipliciteacute particularisante

232

Assim como os atos de liberdade em profundidade tais como aparecem no Essai

satildeo raros e excepcionais a emoccedilatildeo criadora natildeo deixa de ser uma forma de afetividade

excepcional que se traduz em forccedilas de aspiraccedilatildeo (JANVIER 2012 p 216) No entanto

seriam eles atos exclusivamente individuais prerrogativas dos grandes homens morais das

individualidades excepcionais dos homens de gecircnio e dos miacutesticos Eis a questatildeo que

parece insinuar sub-repticiamente o problema da comunicaccedilatildeo do aberto entre as almas

Aleacutem de jaacute sabermos que o aberto natildeo constitui um dado natural atualizado dois

outros argumentos seratildeo suficientes para respondermos negativamente a essa questatildeo O

primeiro deles reside na circunstacircncia de a alma aberta tal como caracterizada por

Bergson depender com efeito de um esforccedilo individual mas implicar uma postura

transitiva (AMALRIC 2012 p 282) Isso se provaria ateacute mesmo metafoacuterica e

imageticamente Se Bergson insiste nas propriedades incendiaacuterias segundo as quais o

aberto se transmite a atitude vital dos iniciadores dos indiviacuteduos excepcionais constitui

apenas um foco inicial Seu destino eacute tornar-se forccedila de aspiraccedilatildeo em virtude de sua

capacidade imanente de propagar-se de tornar-se coletiva Ao responder por que as

individualidades excepcionais tecircm imitadores Bergson (2001 p 1003-100430-31) diraacute

que ldquoleur existence est un appelrdquo ndash chamado em tudo diverso da pressatildeo quase-meloacutedico

na medida em que implica uma moral integralmente diferente de uma emoccedilatildeo superior

nova e irredutiacutevel Estar na presenccedila de uma personalidade moral eacute encontrar-se por isso

mesmo na presenccedila de uma clareira aberta a fogo

No entanto em algumas passagens difusas mas decisivas veremos que a

necessidade de estar em presenccedila de uma grande personalidade moral relativiza-se

paulatinamente Em primeiro lugar porque haacute ldquo[des] heacuteros obscurs de la vie moralerdquo

(BERGSON 2001 p 47) Pouco a pouco ao lado do exemplo das grandes personalidades

morais de homens excepcionais e de grandes iniciadores encontraremos existecircncias natildeo

menos exemplares e miacutesticas muito proacuteximas de noacutes ndash mas tambeacutem individualidades

distantes podem inflamar-nos certa aspiraccedilatildeo215

Com isso Bergson quer dizer que de

algum modo eacute possiacutevel sentir no mais profundo de noacutes um eco ou uma ressonacircncia do

aberto ndash mas isso tambeacutem implica que o aberto esteja como seu eco ao alcance de todos

Em segundo lugar veremos que estar em presenccedila de uma grande personalidade

moral relativiza-se definitivamente tambeacutem em um sentido que nos permitiraacute encontrar

lrsquoouvert comme assomption drsquoune humaniteacute divine se deacutefinit selon une multipliciteacute qualitative [] elle est

dans le cadre de la philosophie morale de Bergson un effet de creacuteationrdquo (KISUKIDI 2012 p 250) 215

ldquoCe pouvait ecirctre un parent un ami que nous eacutevoquions ainsi par la penseacutee Mais ce pouvait aussi bien ecirctre

un homme que nous nrsquoavions jamais rencontreacute []rdquo (BERGSON 2001 p 100430)

233

uma transcriccedilatildeo mais psicoloacutegica do que ontoloacutegica da memoacuteria Natildeo eacute de todo preciso

estar ou ter estado na presenccedila dos grandes homens de bem porque essa presenccedila pode ser

evocada a cada instante pela memoacuteria e pela histoacuteria na medida em que elas envolvem um

ponto de vista interno agrave sua accedilatildeo Os heroacuteis obscuros da vida moral ndash adormecidos talvez

no mais profundo de noacutes mesmos (AMALRIC 2012 p 283) ndash poderatildeo manifestar sua

personalidade em noacutes a todo momento bastaraacute ldquoque nous [les] eacutevoquions ainsi par la

penseacuteerdquo que apreendamos a abertura de uma existecircncia da qual nunca fomos

contemporacircneos de uma vida que nos foi simplesmente contada (BERGSON 2001 p

100430) Nesses dois sentidos ndash o das personalidades insuspeitadamente muito proacuteximas e

o das individualidades muito distantes ndash o aberto tal como manifestado nas vidas desses

heroacuteis obscuros que natildeo cessam de enviar-nos seus apelos eacute a exemplo de sua moral

irredutiacutevel ao individual (AMALRIC 2012 p 282)

Eis o apelo que natildeo cessa de procurar um eco no coletivo como em cada um de

noacutes se o aberto se propaga de maneira incendiaacuteria eacute porque deve haver algo como uma

difusatildeo e comunicaccedilatildeo entre as almas que apenas a imitaccedilatildeo e a ressonacircncia explicariam

O que essas personalidades excepcionais saiacutedas no entanto do mais comum de noacutes

mesmos suscitam eacute uma forccedila de aspiraccedilatildeo capaz de ecoar em cada um de noacutes Em seus

atos encontramos como que um modelo da accedilatildeo que natildeo implica um caminho de todo

dado e simplesmente a trilhar mas permite a uma personalidade entrever no mais

profundo de si a projeccedilatildeo da abertura singular que uma personalidade excepcional se

tornara para ela Por mais que a imite a singularidade irredutiacutevel da personalidade ndash feita

de duraccedilatildeo ndash inibe o idecircntico A propagaccedilatildeo do aberto daacute-se sem duacutevida por imitaccedilatildeo e

mediada por almas individuais transitivas do aberto contudo a imitaccedilatildeo pela qual o aberto

se propaga e se transmite de alma em alma natildeo se reduz a uma mimeacutetica superficial Esse eacute

o sentido da figura do eco ou da ressonacircncia ndash se a emoccedilatildeo criadora eacute uma vibraccedilatildeo da

alma um seu eacutebranlement ecoaacute-la ou ressoar com ela significa vibrar-junto percuti-la no

mais profundo de noacutes mesmos ao mesmo tempo em que ela ganha a tonalidade e a

coloraccedilatildeo singulares e irredutiacuteveis da alma na qual encontrou eco

Por essa razatildeo David Amalric (2012 p 283) natildeo apenas associaraacute a propagaccedilatildeo do

aberto entre as almas agrave inspiraccedilatildeo que o conceito de imitaccedilatildeo inventiva recebe das obras de

Gabriel Tarde mas afirmaraacute tratar-se em Bergson de uma teoria da propagaccedilatildeo imitativa

Por um lado ela daraacute ao fenocircmeno da imitaccedilatildeo e da proacutepria emoccedilatildeo criadora uma

dimensatildeo afetiva ndash como um entusiasmo incendiaacuterio (BERGSON 2001 p 102659) ndash e a

um soacute tempo coletiva por outro a imitaccedilatildeo seraacute um processo que ocorre em profundidade

234

que implica como consequecircncia da proacutepria natureza criativa e profundamente duracional

de toda personalidade um coeficiente de reinvenccedilatildeo e de reapropriaccedilatildeo dessa tensatildeo que se

manifesta originalmente como a abertura dos atos e das almas das individualidades

excepcionais Finalmente eacute como se tudo se tornasse uma experiecircncia coletiva de

libertaccedilatildeo em que a consciecircncia e a representaccedilatildeo satildeo no limite inteiramente

desnecessaacuterias agrave imitaccedilatildeo que como em Tarde seraacute inventiva e involuntaacuteria (AMALRIC

2012 p 284) Assim poderemos enxergar finalmente o fenocircmeno do aberto inserido no

tecido afetivo da sociedade recondicionando parcialmente as formas do viver-junto

Bastaraacute a emoccedilatildeo criadora bastaraacute ter respirado sua atmosfera e ter penetrado uma

emoccedilatildeo para agir de acordo com ela (BERGSON 2001 p 101545) Ela natildeo eacute o efeito da

representaccedilatildeo mas geradora de ideias Ela natildeo introduz sentimentos em noacutes mas introduz-

nos no interior de emoccedilotildees verdadeiramente impessoais como o que fazem as sublimes

canccedilotildees de amor ldquoTelle musique sublime exprime lrsquoamour Ce nrsquoest pourtant lrsquoamour de

personne Une autre musique sera un autre amour Il y aura deux atmosphegraveres de sentiment

distinctes deux parfums diffeacuterents et dans le deux cas lrsquoamour sera qualifieacute par son

essence non par son objetrdquo (BERGSON 2001 p 1191-1192270)216

Eis a sociedade que se abre a que se encontra a meio caminho entre o fechado e o

aberto seu limite ideal Sabemos no entanto que o incecircndio natildeo duraraacute para sempre Logo

ele se apagaraacute e as formas de vida que o eacutelan fundia em uma potecircncia superior que se

confundia com os virtuais e com seu proacuteprio devir voltaratildeo a solidificar-se e a tocar-se

pelas bordas superficialmente como se a vida se fechasse em uma forma de memoacuteria atual

e esquecidiccedila de si mesma As vibraccedilotildees pareceratildeo ter cessado as personalidades

gloriosas desaparecido o fechado pareceraacute ter recoberto integralmente o aberto ldquoCes

deux morales juxtaposeacutees semblent maintenant nrsquoen plus faire qursquoune la premiegravere ayant

precircteacute agrave la seconde un peu de ce qursquoelle a drsquoimpeacuteratif et ayant drsquoailleurs reccedilu de celle-ci en

eacutechange une signification moins eacutetroitement social et plus largement humainerdquo

(BERGSON 2001 p 1016-101747) Tudo se converte entatildeo em estrateacutegias para

combater o fechamento Em responder ldquoO que resta quando nenhum outro devir parece

possiacutevelrdquo Se nos perguntaacutevamos ldquoComo perseverar no abertordquo colocado do ponto de

216

Bergson (2001 p 100836) diraacute ainda sobre a impessoalidade da emoccedilatildeo musical que nos introduz em

emoccedilotildees como signo do Todo ldquoQue la musique exprime la joie la tristesse la pitieacute la sympathie nous

sommes agrave chaque instant ce qursquoelle exprime Non seulement nous mais beaucoup drsquoautres mais tous les

autres aussi Quand la musique pleure crsquoest lrsquohumaniteacute crsquoest la nature entiegravere qui pleure avec elle A vrai

dire elle nrsquointroduit pas ces sentiments en nous elle nous introduit plutocirct en eux comme des passants qursquoon

pousserait dans une danse Ainsi procegravedent les initiateurs en morale La vie a pour eux des reacutessonances de

sentiments insoupccedilonneacutees comme en pourrait donner une symphonie nouvelle ils nous font entrer avec eux

dans cette musique pour que nous la traduisons en mouvementrdquo

235

vista da sociedade que acabou de fechar-se sobre si mesma esse problema transfigura a

questatildeo inicial ldquoComo reabrir o fechadordquo Eis os termos em que o combate contra o

fechamento se transcreve

Eacute a questatildeo do devir em sentido a um soacute tempo ontoloacutegico e biopoliacutetico

cosmoloacutegico e moral que nos coloca no epicentro das relaccedilotildees entre memoacuteria e transiccedilatildeo

Respondendo a ela de uma maneira muito lacocircnica e talvez por isso mesmo infinitamente

pregnante Bergson parece fundir todos os niacuteveis embaralhar todos os registros em uma

foacutermula de todo decisiva ldquoremuons la cendre nous trouverons des parties encore chaudes

et finalement jaillira lrsquoeacutetincelle le feu pourra se rallumer et srsquoil se rallume il gagnera de

proche en procherdquo (BERGSON 2001 p 101747) Poreacutem o que se encontra em jogo

nessa foacutermula Natildeo se trata de estender um pouco mais aleacutem o gozo de suas imagens

iacutegneas do aberto O que o combate contra o fechamento solicita eacute de um lado perseverar

no aberto de outro reabrir o fechado Esse combate natildeo poderia ser mais poliacutetico e vital

Ele natildeo cessa de se dissimular sob as imagens explosivas e incendiaacuterias de que Bergson

(2001 p 825-82614-15) dotou natildeo apenas o aberto mas a proacutepria liberdade e a vida em

LrsquoEacutenergie Spirituelle217

Eacute preciso procurar o tecido de sentido do qual essas imagens natildeo

satildeo senatildeo um signo do aberto da mesma forma como o remexer das cinzas natildeo deve ser

senatildeo o indiacutecio do incendiaacuterio

Prestemos atenccedilatildeo sobretudo a esta foacutermula bergsoniana lacocircnica e magistral agrave

qual David Amalric (2012 p 284-287) dedicou belas paacuteginas Remuons la cendre

Sabemos que as experiecircncias de abertura satildeo sempre efecircmeras sempre ameaccediladas pelo

fechamento ndash lembremo-nos que Bergson natildeo se cansava de dizer que o instinto vigia

Sabemos que ldquo[] apregraves chacune [des expeacuteriences qui tendent vers la socieacuteteacute ouverte] se

referme le cercle momentaneacutement ouverterdquo (BERGSON 2001 p 100532) Parte da

aspiraccedilatildeo social torna-se pressatildeo e a obrigaccedilatildeo termina por recobrir o todo O verbo

remuer conjugado sob a forma imperativa na foacutermula bergsoniana indica ao mesmo

tempo um gesto e um convite agrave accedilatildeo segundo David Amalric (2012 p 285) como se nos

dissesse ldquomecircme lorsque lrsquoouvert a eacuteteacute entiegraverement recouvert par le clos lorsqursquoil nrsquoy a

guegravere plus de personnaliteacutes exceptionelles pour les susciter agrave nouveau il est encore

possible de faire quelque choserdquo218

O que Amalric natildeo nota ndash ao menos natildeo

217

Eacute nesse sentido que Deleuze diraacute que para Bergson ldquoLa liberteacute a preacutecisement ce sens physique lsquofaire

deacutetonerrsquo un explosif lrsquoutiliser pour des mouvements de plus en plus puissantsrdquo (DELEUZE 1966 p 113) 218

Bergson afirma ainda que ldquoLe souvenir de ce qursquoelles [les acircmes mystiques] ont eacuteteacute de ce qursquoelles ont

fait srsquoest deacuteposeacute dans la meacutemoire de lrsquohumaniteacute Chacun de nous peut les revivifier []rdquo (BERGSON 2001

p 104685)

236

expressamente ndash eacute que a escolha do verbo remuer natildeo eacute acidental Com efeito remuer eacute

sinocircnimo de bouger mouvoir deacuteplacer transmite a ideia de movimento de deslocamento

de mudanccedila de lugar e portanto de um gesto que na forma imperativa flexionada na

primeira pessoa do plural faz-se coextensiva de um convite agrave accedilatildeo Assim ldquoremuonsrdquo no

contexto da foacutermula bergsoniana pode ser traduzido sem prejuiacutezo de sentido por

ldquomovamosrdquo ldquoremexamosrdquo ldquodesloquemosrdquo ldquotroquemos de lugarrdquo a cinza o que restou do

aberto No entanto remuer possui em francecircs um emprego figurado muito particular

equivalente a ldquoprovoquer de lrsquoeacutemotionrdquo ldquoemocionar-serdquo Um escritor atento agrave etimologia

como Bergson demonstrou mais de uma vez estar consciente de que ldquomouvoirrdquo e

ldquosrsquoeacutemouvoirrdquo mover e emocionar-se possuem a mesma raiz etimoloacutegica David

Lapoujade (2010 p 73) em uma passagem talvez insoacutelita ndash porque relacionada agrave intuiccedilatildeo

e agrave simpatia ndash natildeo deixou de observar essa proximidade ldquoConnaicirctre pour Bergson crsquoest

toujours entrer dans un mouvement comme on srsquoeacutemeut drsquoune meacutelodie ou comme on entre

dans une danserdquo Contudo se conhecer eacute entrar em um movimento da mesma forma como

uma melodia nos moveemociona ou como entramos em uma danccedila eacute porque ldquoIl y a

quelque chose de plus profond que notre intelligence plus profond mecircme que notre vie

affective ou eacutemotionelle crsquoest le rythme particulier de dureacutee par lequel nous entrons en

relation avec drsquoautres reacutealiteacutesrdquo (Idem ibidem loc cit) - entatildeo jaacute natildeo haveria onde nos

fechar nessa aberta claridade

Remuer la cendre eacute com efeito um princiacutepio de agitaccedilatildeo e movimento um

turbilhonamento e um convite agrave accedilatildeo mas mais profundamente um convite coletivo a

fazer rescender o perfume do tempo Se a cinza eacute o que resta quando nenhum outro devir

parece possiacutevel quando o aberto parece fechar-se e solidificar-se em haacutebito e coacutedigo

moral trata-se de remexer a cinza ndash que natildeo eacute senatildeo a memoacuteria dos atos dos miacutesticos das

grandes personalidades morais como dos heroacuteis obscuros dos iniciadores e artistas de

gecircnio ndash para revivificaacute-la (BERGSON 2001 p 101747 p 104685) A memoacuteria eacute tudo o

que resta quando nenhum outro devir parece possiacutevel ela estaacute por isso mesmo fora do

possiacutevel constitui uma potecircncia virtual memoacuteria do jamais vivido memoacuteria para o futuro

(LAPOUJADE 2010 p 21-22) Fundamento do tempo a memoacuteria nos lembra de que

mesmo a evocaccedilatildeo e a miacutemesis de uma existecircncia miacutestica que jamais conhecemos que

jamais vivemos em nossa proacutepria vida que nunca foi agida e portanto define-se pela

espera e pela espreita que satildeo modos do virtual natildeo apenas estaacute ao alcance de nossa

experiecircncia mas jamais implicaraacute uma repeticcedilatildeo pura e sim uma reapropriaccedilatildeo e uma

imitaccedilatildeo inventivas Toda rememoraccedilatildeo como toda memoacuteria ontoloacutegica e elementar

237

implica o Todo virtual que eacute o fundamento do tempo e que reabre o devir o devir e o

virtual satildeo o que passa por contrabando no menor contiacutenuo de tempo dedicado agrave

reminiscecircncia Como em Matiegravere et meacutemoire eacute a duraccedilatildeo inteira que se atualiza em cada

niacutevel de memoacuteria

Contudo um uacuteltimo problema que nos levaraacute a responder de uma vez por todas agrave

questatildeo de como o aberto se comunica de alma em alma e ainda nos ofereceraacute a antevisatildeo

do que ateacute agora sem a definir chamamos de comunidade de eus profundos Todo esse

problema resume-se em responder ldquoComo o aberto encontra-se ao alcance de nossa

experiecircncia e ao menos de direito da experiecircncia de todosrdquo Eacute nesse ponto que veremos

uma ontologia do virtual que se insinuava como causa profunda da evoluccedilatildeo e das formas

de vida reabrir-se em cosmologia infiltrar-se definitivamente nas formas que engendra

Caterina Zanfi afirma que por meio da dualidade entre aberto e fechado Bergson

introduz em Les Deux Sources uma forma de sociabilidade que natildeo se constitui como

desdobramento do haacutebito e das convenccedilotildees utilitaacuterias mas sim um novo tipo de

sociabilidade ldquoqui puise dans une source plus profonde racine de la coappartenence et de

la solidariteacute des ecirctres fondement plus profond de la intersubjectiviteacuterdquo (ZANFI 2012 p

231) Essa nova forma de sociabilidade esboccedila-se em uma passagem senatildeo prematura de

todo insoacutelita em que Bergson deduz da incomensurabilidade da personalidade do eu

profundo para com todos os demais mas tambeacutem de sua irredutibilidade agraves figuras sociais

do eu superficial a potecircncia de um equiliacutebrio social superior Sabemos que o eu superficial

ndash progenitura do espaccedilo do soacutelido e da inteligecircncia natural ndash eacute desde o Essai a parcela

socializada de noacutes mesmos mas tambeacutem a mais inautecircntica e submissa Ao questionar o

indiviacuteduo em sociedade eacute o indiviacuteduo integral em que o superficial coexiste com o

profundo que o constitui como uniatildeo coesa No entanto se o eu superficial explica a

obrigaccedilatildeo e a moral fechada natildeo explicaraacute a liberdade ou a alma que se abre Por essa

razatildeo Bergson (2001 p 98607) pergunta prefigurando esse novo tipo de sociabilidade

em profundidade de que falou Caterine Zanfi ldquoSrsquoinstaller dans cette partie socialiseacutee de

lui-mecircme est-ce pour notre moi le seul moyen de srsquoattacher agrave quelque chose de solide

Ce le serait si nous ne pouvions autrement nous soustraire agrave une vie drsquoimpulsion de

caprice et de regretrdquo Insinua-se portanto uma outra forma de solidez e solidariedade

social que natildeo a superficial ldquo[] au plus profond de nous-mecircmesrdquo Bergson continua ldquosi

nous savons le chercher nous deacutecouvrirons peut-ecirctre un eacutequilibre drsquoun autre genre plus

deacutesirable encore que lrsquoeacutequilibre superficielrdquo

238

Estariacuteamos diante pois de dois tipos de equiliacutebrio a que correspondem dois tipos

de sociabilidade um superficial outro profundo De acordo com a imagem das plantas

aquaacuteticas que Bergson evoca eacute possiacutevel encontrar estabilidade e solidez em ambos os

sentidos na superfiacutecie a reuniatildeo das folhas permite que umas apoiem-se nas outras mas eacute

em profundidade que cada uma encontra-se firmemente enraizada a um solo comum Haacute

sem duacutevida uma sociedade superficial pela qual cada um manteacutem-se unido aos demais em

razatildeo da pressatildeo exercida por um conjunto impessoal de comandos morais que

correspondem agrave sociedade fechada O novo sentido de nossa vida social que Bergson

introduz pela imagem das plantas aquaacuteticas que se enraiacutezam em um solo comum constitui

esse novo sentido o que chamamos de comunidade de eus profundos na qual ldquo[] dans

lrsquoenracinement dans la vie commun agrave tous les individus on trouve la source meacutetaphysique

de la socialiteacuterdquo (ZANFI 2012 p 231)

Que Bergson se limite agrave imagem das plantas aquaacuteticas enraizadas a um solo comum

da mesma forma como indiviacuteduos estatildeo em profundidade enraizados ao mesmo eacutelan que

eacute a fonte de toda sociabilidade e invenccedilatildeo poliacutetica natildeo se trata de uma metaacutefora inerme e

sem maiores consequecircncias Ela atesta a correlaccedilatildeo entre o ontoloacutegico e todos os demais

niacuteveis de produccedilatildeo da vida de suas formas e de seus acontecimentos materiais ou

espirituais sobre a qual natildeo cessamos de insistir Natildeo casualmente Caterina Zanfi adverte

que a forccedila de uma transformaccedilatildeo manifesta-se sobretudo no indiviacuteduo mas ela eacute

transitiva e tende a tornar-se aspiraccedilatildeo chamado de heroacuteis obscuros da moral na medida

em que ldquofait appel agrave la coappartenence originaire de lrsquoeacutelan vital qui justifie lrsquoaccessibiliteacute

ideacutealement universal agrave ce renouvellement mecircmerdquo (ZANFI 2012 p 231-232) Com efeito

ideacutealement significa aqui de direito Eacute a dimensatildeo profunda da duraccedilatildeo a consistecircncia

virtual de uma memoacuteria elementar que faz o tempo passar que constituiacutea a condiccedilatildeo da

simultaneidade de fluxos atuais e que nesse plano eacute a condiccedilatildeo virtual da comunicaccedilatildeo

em profundidade da emoccedilatildeo criadora de sua propagaccedilatildeo incendiaacuteria e independente tanto

do instinto quanto do haacutebito das ideias como das representaccedilotildees Eis o que o acordo entre

os miacutesticos ndash que testemunham pontos de partida e chegada comuns ndash mas tambeacutem a

dimensatildeo de uma consciecircncia preacute-individual e preacute-subjetiva que garantia a simultaneidade

de fluxos atuais asseguram (ZANFI 2012 p 232 BERGSON 2001 p 1184261)

Eacute certo que Deleuze (1966 p 115-117) havia localizado a emoccedilatildeo criadora

bergsoniana em um intervalo intercerebral resultante dos jogos de invenccedilatildeo entre a

inteligecircncia e a sociedade e que a hesitaccedilatildeo da inteligecircncia natildeo seria senatildeo a imitaccedilatildeo

singularizante de uma hesitaccedilatildeo superior da duraccedilatildeo nas coisas A liberdade entatildeo soacute eacute

239

dada como resistecircncia A pressatildeo e o todo da obrigaccedilatildeo como resistecircncia agraves resistecircncias

satildeo infinitamente desdobradas nesse jogo Tudo se passa como se nesse intervalo viesse

atualizar-se em certos niacuteveis psicoloacutegicos mas tambeacutem sociais e poliacuteticos ndash que coexistem

com o Todo virtual do qual dependem ndash uma imensa memoacuteria cosmoloacutegica

Encontrariacuteamos desse modo a forma de solidariedade e o solo mais proacuteprio no qual estaacute

enraizada uma comunidade de eus profundos que encontra no aberto seu limite de direito

Bergson por sua vez apresenta prefiguraccedilotildees de que uma comunicaccedilatildeo incendiaacuteria

instala-se em profundidade e eacute ao mesmo tempo a fonte original de toda transformaccedilatildeo

social e poliacutetica Ela eacute a fonte ontoloacutegica de toda fenomenologia da revoluccedilatildeo espeacutecie de

uacuteltima resposta para aleacutem da qual nada haacute a procurar (JANVIER 2012 p 221) para

justificar uma mudanccedila na reparticcedilatildeo de nossos desejos que por ser um prolongamento da

proacutepria vida eacute indeterminada e imperceptiacutevel A arte e a miacutestica colocam-nos cada uma agrave

sua maneira no interior de uma emoccedilatildeo permitem perceber que a emoccedilatildeo criadora

estabelece-se constitui certa atmosfera instala-se em uma comunidade de eus profundos e

propaga-se de alma em alma como o aberto Assim a criaccedilatildeo artiacutestica que inicialmente

choca pode terminar por alterar o proacuteprio gosto do puacuteblico A obra expressatildeo da criaccedilatildeo ndash

ao mesmo tempo forccedila e mateacuteria ndash pode operar essa transformaccedilatildeo na medida em que ela

imprime um eacutelan que o artista comunicou que se confunde com aquele do artista que

permanece invisiacutevel e presente nele (BERGSON 2001 p 103875) O miacutestico instaura

essa mesma comunicaccedilatildeo em profundidade Ocorre agraves personalidades miacutesticas o mesmo

que sucede aos artistas de gecircnio que produzem obras que nos ultrapassam (Idem ibidem p

1157226)

Nada aleacutem de uma comunidade de eus profundos que se compotildee com a atmosfera

de uma emoccedilatildeo criadora que comunica o aberto de alma em alma como um entusiasmo

incendiaacuterio de uma verdadeira comunidade espiritual amorosa e ilimitada pode explicar

que homens ateacute outro dia humildes e submissos tenham resolvido repentinamente natildeo

mais querer morrer de fome criar direitos que exprimem um amor tatildeo universal aos

homens quanto a emoccedilatildeo criadora que ambienta a comunidade de eus profundos que natildeo

se confunde em nenhum grau com uma famiacutelia um grupo social ou uma paacutetria mas

testemunha um universalismo imanente ao Todo vital O aberto o devir e a ruptura que os

periacuteodos revolucionaacuterios datildeo a ver satildeo apenas o desdobramento no niacutevel poliacutetico de uma

criaccedilatildeo ontologicamente mais profunda que natildeo cessa de se produzir no universo Sua

moral realiza-se no caminho inverso ao da natureza em tudo contraposto ao fechado a

moral aberta eacute incompatiacutevel com a segregaccedilatildeo a hierarquia a disciplina e a guerra Em

240

tudo imanente agrave proacutepria vida a moralidade e as almas abertas compreendem o Todo o

virtual A democracia os direitos humanos o universalismo eacutetico e a paz tornam-se formas

de perseverar no aberto de combater o fechamento em seu proacuteprio terreno ndash embora

incessantemente ameaccediladas por ele Nesse extremo virtual ao qual tendem a intuiccedilatildeo

miacutestica e a comunidade de eus profundos poreacutem jaacute natildeo encontraremos nada semelhante

ao homem A comunidade de eus profundos consiste nos virtuais jamais vividos por nossos

eus superficiais mas coexistentes com eles Profundamente pessoais os virtuais do eacutelan

testemunham a um soacute tempo a presenccedila do impessoal em noacutes do advento de uma

humanidade divina do super-homem que o artista toca pelas bordas e que o miacutestico jaacute

pode ser inteiramente ndash espeacutecie que superou o homem que se compotildee de uma soacute

singularidade centelha obscura do aberto incecircndio no tecido cerrado e gris das formas de

vida

Na medida em que esclarecemos esse novo tipo de sociabilidade a comunidade de

eus profundos como substrato afetivo-espiritual inconsciente ou como fonte transicional

torna-se necessaacuterio compreender os termos praacuteticos e poliacuteticos em que ela se desdobra

Embora permaneccedilamos atentos agrave correlaccedilatildeo entre uma ontologia do virtual e seus

desdobramentos em uma filosofia poliacutetica os temas da transiccedilatildeo e do aberto ndash como os

papeis que a democracia e os direitos humanos assumiratildeo na filosofia poliacutetica bergsoniana

ndash revelaratildeo ao cabo o uacuteltimo niacutevel em que a memoacuteria constitui condiccedilatildeo necessaacuteria agrave

transiccedilatildeo poliacutetica em sentido institucional e social Em profundidade nos niacuteveis mais

puramente ontoloacutegicos vimos a memoacuteria confundir-se ao infinito com um virtual que eacute o

proacuteprio tecido sobre o qual os atuais se bordam isolamos uma memoacuteria elementar e

ontoloacutegica que constituiacutea o fundamento do passar do tempo que registrando os fluxos

duracionais sem cessar rompia o ciacuterculo do presente no qual o atual encontrava-se

enodado e o empurrava no sentido do devir O que temos ateacute aqui eacute uma coleccedilatildeo de

diversos niacuteveis ou de diversos fluxos coexistentes graccedilas ao virtual do qual procedem

desse movimento universal que coincide com o da proacutepria vitalidade inorgacircnica do eacutelan de

seus virtuais da potecircncia diferencial de sua multiplicidade heterogecircnea

Nesse quadro vimos a proacutepria liberdade surgir como o representante psicoloacutegico ou

poliacutetico-social de um operador mais profundo ndash o imprevisto ontoloacutegico que a duraccedilatildeo

implica Toda transformaccedilatildeo social coletiva natildeo deriva como pudemos perceber de outra

fonte A figura impessoal e preacute-individual do miacutestico constitui sua prova implicando uma

moralidade de aspiraccedilatildeo e supraintelectual eacute a proacutepria forma de vida da espeacutecie a natureza

241

naturada que o miacutestico supera isso contudo natildeo eacute possiacutevel senatildeo a partir do contato com

o eacutelan vital com o precursor sombrio do devir que sob a forma do amor universal e de

uma emoccedilatildeo criadora que se transmite de alma em alma que faz seus apelos ao mais

profundo de noacutes mesmos e natildeo cessa de procurar por ressonacircncias eacute uma forma de afeto

do proacuteprio tempo

Eacute pelo proacuteprio tempo que uma forma de vida se deixa afetar em profundidade para

entrar em um devir O mesmo vale para qualquer transformaccedilatildeo social para toda transiccedilatildeo

No entanto resta explicar como a democracia e os direitos humanos podem constituir no

bergsonismo formas de perseverar duravelmente no aberto Seria preciso encontrar o

limite da questatildeo ldquocomo perseverar no abertordquo ldquocomo combater o fechamentordquo

interrogando aquilo que eacute mais proacuteprio da Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo a transcriccedilatildeo dos

problemas do aberto em dispositivos concretos e em estruturas institucionais Eis o que nos

coloca diante de um aparente paradoxo procurar modos duraacuteveis de perseverar no aberto

natildeo implicaria coagulaacute-lo em uma forma fazecirc-lo fechar-se sobre si No limite natildeo

estariacuteamos combatendo o fechamento com mais fechamento Satildeo precisamente essas

questotildees que exigem descer aos desdobramentos praacuteticos e poliacuteticos da metafiacutesica vital e

virtual de Bergson Tais desdobramentos revelaratildeo natildeo apenas a relaccedilatildeo entre uma moral

universal imanente e concreta com a democracia e os direitos humanos mas a centralidade

destes uacuteltimos para a produccedilatildeo de transformaccedilatildeo social Ao mesmo tempo seraacute possiacutevel

compreender de que maneira a memoacuteria das violaccedilotildees de direitos humanos as narraccedilotildees da

violecircncia ndash em niacuteveis social e institucional ndash podem encontrar-se no coraccedilatildeo dos devires

sem os quais nenhuma transiccedilatildeo se produz Eacute no sentido desse desdobramento derradeiro e

limiar que devemos conduzir nossa investigaccedilatildeo

Caso se compreenda a exemplo de Bergson a ldquosociedade que se abrerdquo como a

realidade da maior parte das sociedades compostas de um misto de tendecircncias ao

fechamento e agrave abertura seraacute possiacutevel revelar que uma questatildeo praacutetica e poliacutetica se destaca

na anaacutelise da sociedade fechada e se relaciona com a subsistecircncia de uma tensatildeo natural ao

fechamento ldquo[] puisque les tendences de la socieacuteteacute close nous ont paru subsister

indeacuteracinables dans la socieacuteteacute qui srsquoouvre puisque tous ces instincts de discipline

convergeaient primitivement vers lrsquoinstinct de guerre nous devons nous demander dans

quelle mesure lrsquoinstinct originel pourra ecirctre reacuteprimeacute ou tourneacutee []rdquo (BERGSON 2001 p

1220307) O que estaacute no coraccedilatildeo da filosofia poliacutetica bergsoniana aparece entatildeo muito

claramente trata-se de encontrar na moral de aspiraccedilatildeo que o aberto implica e para a qual

empurra as almas que se abrem uma possibilidade de superar a forma de sociabilidade

242

produzida de acordo com a natureza e com o instinto virtual que vigia as variaccedilotildees da

inteligecircncia De seu ponto de vista mais concreto e praacutetico trata-se de transformar a ordem

social das organizaccedilotildees humanas na medida em que elas satildeo atravessadas por um misto de

tendecircncias ao aberto e ao fechado (KISUKIDI 2012 p 246) A tendecircncia ao fechamento

aprisiona o homem no interior das formas de sociabilidade superficiais em formas de

organizaccedilatildeo e em modos de vida jaacute adquiridos de outro lado a tendecircncia agrave abertura renova

as alianccedilas entre homem e virtual e quebrando o ciacuterculo antropoloacutegico no interior do qual

a natureza o concebeu permite-lhe reencontrar sua destinaccedilatildeo metafiacutesica ao mesmo tempo

em que coloca em jogo suas formas de vida seus modos de existecircncia e relaccedilatildeo social

Na medida em que o aberto impulsiona o homem para aleacutem de si mesmo seraacute na

direccedilatildeo do eacutelan do qual procede ndash contraefetuaccedilatildeo virtual ndash mas tambeacutem na direccedilatildeo do

Todo por meio de processos de atualizaccedilatildeo que criam as linhas nas quais essa nova

tomada de contato com o eacutelan vital iraacute dividir-se e atualizar-se ateacute certo limite A alma que

se abre em direccedilatildeo ao Todo diz Bergson vai mesmo muito longe Natildeo se confunde com

uma alma fechada que ama sua famiacutelia sua paacutetria os grupos sociais aos quais pertence ou

afirma cumprir as foacutermulas vazias superficialmente universais a alma que se abre goza de

um amor que se estende a toda a humanidade a toda a natureza aos virtuais inorgacircnicos da

proacutepria vida (BERGSON 2001 p 1006-100734) Sob o aberto pulsa uma eacutetica

universalista em profundidade capaz de explicar a correlaccedilatildeo entre as transformaccedilotildees

sociais e a consolidaccedilatildeo da democracia e dos direitos humanos

Contudo prestemos atenccedilatildeo a essa alma que se abre por um momento e vejamos

se natildeo encontramos nela a atitude miacutestica que exprime a continuidade do eacutelan vital da qual

ela mas tambeacutem toda a espeacutecie humana procede finalmente Tanto o indiviacuteduo como a

espeacutecie humana representam interrupccedilotildees momentacircneas do eacutelan criador sua parada diante

de um obstaacuteculo A centralidade da figura do miacutestico explica-se em virtude do que sua

experiecircncia demonstra finalmente ndash a possibilidade da abertura da conversatildeo do estaacutetico

em dinacircmico da dissoluccedilatildeo da forma em energia da reabertura do que parecia fechado Se

mais aleacutem Bergson poderaacute convidar agrave accedilatildeo aqueles que experimentam um tempo de

fechamento praticamente absoluto dizendo ldquoRemuons la cendrerdquo exaltando os heroacuteis

obscuros da moral ou as narrativas de vidas de homens memoraacuteveis que jamais

conhecemos eacute porque recuperamos as existecircncias miacutesticas naquilo que elas tem de

poderosamente impessoal no ponto em que uma vida se confunde com um modo de

subjetivaccedilatildeo em ato com a efetuaccedilatildeo de um prolongamento do eacutelan vital com o qual

tomou contato Essa superaccedilatildeo de si ndash de que todo indiviacuteduo eacute capaz no limite ao menos

243

de jure ndash soacute eacute possiacutevel como acesso a uma comunidade de eus profundos capaz de

conceber uma outra forma de relaccedilatildeo social que jaacute natildeo se confunde com nenhum niacutevel

comunitaacuterio superficial (famiacutelia paacutetria foacutermulas universalistas abstratas e descarnadas

tampouco impeacuterio territoacuterio classe social ou gecircnero) Ao lado dos laccedilos profundos que

nos remetem a um eacutelan comum agrave metafiacutesica da criaccedilatildeo da qual todos tomamos parte em

profundidade haacute sempre o modo de subjetivaccedilatildeo que constitui um universal na sua

diferenccedila e uma diferenccedila em seu universal Eacute nesse sentido que Yala Kisukidi (2012 p

247) afirmaraacute que eacute o miacutestico como sujeito sem identidade que permitiraacute natildeo apenas uma

teoria do impessoal mas a refundaccedilatildeo do universalismo moral bergsoniano de acordo com

uma metafiacutesica da criaccedilatildeo O miacutestico eacute portanto a figura paradigmaacutetica do sujeito sem

identidade ndash que natildeo designa nada aleacutem do eu profundo em continuidade com o real

compreendido como criaccedilatildeo de imprevisiacutevel novidade (KIDUSIKI 2012 p 248)219

Com efeito eacute preciso compreender de um lado que o universalismo bergsoniano

natildeo estaacute jamais dado natildeo eacute desde sempre atual Assim como a abertura de uma alma o

universalismo exige o esforccedilo de uma criaccedilatildeo de si por si mesmo de uma abertura de si ao

impessoal que designa jaacute o Todo com seus virtuais O que estaacute dado pela natureza o que

eacute sempre jaacute atual eacute a pulsatildeo de fechamento e o haacutebito de contrair haacutebitos a autoridade a

hierarquia e o fixismo a guerra e as formas cerradas de sociabilidade que natildeo cessam de

vigiar as variaccedilotildees virtuais em que o tecido social se engaja e entreteacutem Seu fundamento

tampouco seraacute racional e esclarecido na medida em que ele pulsa do proacuteprio eacutelan vital a

razatildeo constitui apenas uma faculdade na qual as tendecircncias inteligentes depuseram o eacutelan

assim como natildeo pode explicaacute-lo natildeo pode explicar um universalismo que encontra nele

seu enraizamento imanente e profundamente ontoloacutegico

O universalismo moral bergsoniano dependeraacute desse modo integralmente de uma

metafiacutesica da criaccedilatildeo contudo sabemos que a criaccedilatildeo implica pelo menos duas metades

uma atual e outra virtual A criaccedilatildeo em ato a pura exigecircncia de criaccedilatildeo que se confunde

com o proacuteprio eacutelan vital encontra-se sem duacutevida no registro do virtual aquilo que eacute

criado segundo sua proacutepria linha divergente que parte do virtual e cria a si mesma em

seus proacuteprios termos designa uma expressatildeo dessa energia criadora (KISUKIDI 2012 p

248-249) De modo anaacutelogo Deleuze (1966 p 117-118) teraacute descoberto na emoccedilatildeo

criadora trecircs sentidos da criaccedilatildeo 1) enquanto ela exprime a criaccedilatildeo em sua totalidade 2)

219

ldquoLe mystique appelle au deacutepassament des deacuteterminations de lrsquoespegravece []rdquo (KISUKIDI 2012 p 249) ou

ainda ldquo[] lrsquoespegravece humaine est traverseacutee par lrsquouniteacute drsquoun courant qui lrsquoappelle agrave se deacutepasser en se recreacuteantrdquo

(Idem ibidem p 251)

244

enquanto ela cria a obra na qual se exprime 3) enquanto ela comunica essa variabilidade

inventiva de alma em alma o que implica descobrir sob a criaccedilatildeo uma espeacutecie de

memoacuteria coacutesmica capaz a cada vez de encarnar-se em emoccedilatildeo e de comunicar ndash e de

sempre tornar a comunicar ndash o eacutelan Assim como a memoacuteria pura servia-se do jogo

intervalar entre excitaccedilatildeo e reaccedilatildeo para insinuar-se em lembranccedilas-imagens a memoacuteria

coacutesmica do eacutelan serve-se do jogo intervalar entre pressatildeo e resistecircncia para romper o

ciacuterculo social que prende o indiviacuteduo a determinadas formas de vida220

A memoacuteria eacute pois

em cada um dos niacuteveis em que se atualiza integralmente sempre profundamente vital

Assim se o que Yala Kusikidi chamou de ldquouma refundaccedilatildeo da moral universalrdquo no interior

da filosofia poliacutetica de Bergson soacute pode ocorrer em funccedilatildeo de uma metafiacutesica da criaccedilatildeo ndash

mesmo porque o universalismo jamais eacute um a priori natildeo se encontra jamais natural ou

biologicamente dado ndash seraacute forccediloso reconhecer que o universalismo soacute pode consistir em

um efeito de criaccedilatildeo221

Poreacutem em que sentido deve-se compreender esse universalismo ligado ao

paradigma subjetivo nomaacutedico que eacute o miacutestico Que ele natildeo seja a priori e racional mas o

efeito afetivo de uma criaccedilatildeo jaacute pode fazer-nos entrevecirc-lo como concreto e imanente agrave

vida Assim como a figura nocircmade do miacutestico efetua em sua proacutepria existecircncia um

universalismo que eacute o efeito de uma criaccedilatildeo ndash que dissolvendo sua identidade individual e

de grupo descortina a comunidade de eus profundos que ele jaacute integra e que natildeo se

ressente de nenhum dos limites impostos pelo fechamento (impeacuterio paacutetria classe famiacutelia

ou gecircnero) ndash poderia haver em um niacutevel coletivo um universalismo concreto e imanente

agrave proacutepria vida como efeito de uma criaccedilatildeo e de uma emoccedilatildeo coletivas que encontram na

comunidade de eus profundos o solo comum impessoal no qual um novo tipo de

sociabilidade e de equiliacutebrio superiores poderiam ser encontrados Nesse ponto a

dissoluccedilatildeo das identidades individual e de grupo assinala a coincidecircncia entre o impessoal

e o universal

No entanto seria ainda o caso de perguntar se essa moral universal concreta e

imanente que encontra no impessoal o traccedilado dos destinos metafiacutesicos da proacutepria

humanidade consegue verdadeiramente desprender-se das contingecircncias em que parece

originar-se Em outras palavras como o misticismo cristatildeo ndash que Bergson como vimos

220

ldquoEt qursquoest-ce que crsquoest que cette eacutemotion creacuteatrice sinon preacuteciseacutement une Meacutemoire cosmique qui

actualise agrave la fois tous les niveaux qui libegravere lrsquohomme du plan qui lui est propre pour en faire un creacuteateur

adeacutequat agrave toute le mouvement de la creacuteationrdquo (DELEUZE 1966 p 117) 221

ldquoLrsquouniversel nrsquoest jamais donneacute mais est toujours le produit drsquoun effet de creacuteationrdquo (KISUKIDI 2012 p

250)

245

reputa ser o misticismo completo ndash eacute mais miacutestico que cristatildeo mais impessoal e universal

que contingencial Metodologicamente Bergson soacute se aproxima do misticismo cristatildeo

para reputaacute-lo a experiecircncia miacutestica completa por excelecircncia na medida em que ele possa

dissociar-se dos conteuacutedos de crenccedila proacuteprios ao catolicismo A miacutestica eacute uma experiecircncia

de retomada de contato com o eacutelan vital e natildeo haacute nenhum conteuacutedo de crenccedila a procurar

para aleacutem disso pois eacute a experiecircncia suprema universal (ao alcance de todos de jure) que

promove a coincidecircncia parcial de nossa vida com algo que nos excede em potecircncia ndash

chamemo-lo Deus ou eacutelan vital Nesse aspecto haacute uma distinccedilatildeo bastante precisa que

permite ao bergsonismo utilizar-se das experiecircncias miacutesticas cristatildes independentemente da

mateacuteria religiosa contingente e particular sobre a qual ela parece aplicar-se (KISUKIDI

2012 p 253) Que certa experiecircncia miacutestica seja aparentemente cristatilde estabeleccedila-se no

sentido do cristianismo de seus textos e conteuacutedos de crenccedila a impessoalidade e o

nomadismo miacutesticos provariam sem cessar o seu poder de passar-se do particular do

contingente e dos seus siacutembolos atingindo no contato com o eacutelan uma universalidade

puramente concreta e imanente agrave proacutepria vida Para Bergson evangeacutelico quer dizer em

profundidade universal assim como divino quer dizer virtual e vital Outra interpretaccedilatildeo

tornar-se-ia aporeacutetica na medida em que o misticismo soacute toca o eacutelan porque contraefetua

sua proacutepria forma contingencial o dado atualmente como efeito de um esforccedilo e de uma

criaccedilatildeo em profundidade Atingimos portanto no misticismo a diferenccedila profunda

inteiramente indiferente agraves diferenccedilas superficiais Nesse contexto de nenhum outro modo

impessoal e universal poderiam confundir-se ao infinito de nenhuma outra maneira o

particular superficial (identidades grupos) poderia ser absorvido no Todo universal que o

virtual designa

Disso decorre como Yala Kisukidi (2012 p 254) bem percebe que natildeo haja um

modelo abstrato nem mesmo o derivado de uma faculdade reacutegia de humanidade no

universalismo bergsoniano Uma vez que o destino metafiacutesico imanente do homem seja

precisamente o super-homem natildeo haveraacute nenhum humanismo intraespeciacutefico definidor do

amor ao Todo Definir uma humanidade por outro termo senatildeo o indefinido e talvez vago

aberto seria recair em construccedilotildees antropoloacutegicas artificiais tendentes precisamente agravequilo

que o aberto desejava conjurar na natureza (a exclusatildeo a dominaccedilatildeo a guerra)

Se pudemos revelar um quadro eacutetico do qual o aberto participa no sentido de um

universalismo concreto e imanente agrave proacutepria criaccedilatildeo trata-se de diagnosticar de que

maneira o aberto pode ser transcrito em termos praacuteticos e poliacuteticos investigando de que

forma a democracia e os direitos humanos encontram aiacute sua inserccedilatildeo O espaccedilo poliacutetico das

246

sociedades concretas natildeo eacute integralmente fechado ou aberto estes satildeo limites puros ideais

ou metafiacutesicos designam antes tendecircncias que efetuaccedilotildees nuas de tal modo que o espaccedilo

poliacutetico seraacute definido mais em funccedilatildeo do misto das duas tendecircncias que de apenas uma

delas Se sociedades concretas estatildeo mais proacuteximas portanto de sociedades que se abrem

do que de sociedades pura e simplesmente fechadas ou abertas ndash limites ideais aos quais as

formas de relaccedilotildees coletivas satildeo incessantemente puxadas

Todo devir democraacutetico seraacute explicado nesses termos a partir de um duplo

registro a comunidade de eus profundos por um lado e por outro uma emancipaccedilatildeo da

natureza O que constitui a condiccedilatildeo de possibilidade de uma accedilatildeo poliacutetica que visa agrave

transformaccedilatildeo social em geral agravequilo que chamamos de transiccedilatildeo ndash a emoccedilatildeo criadora que

ecoa na comunidade de eus profundos e reabre o que permanecera ateacute entatildeo fechado ndash

vem unir-se a uma tendecircncia de emancipaccedilatildeo da natureza que soacute pode efetuar-se na medida

em que o homem resiste a ela em que o profundo resiste a perseverar no social e no

superficial que o define222

Bergson natildeo deixou de entrever desde o iniacutecio de Les Deux

Sources que a emancipaccedilatildeo humana em relaccedilatildeo agrave natureza naturada e agraves formas de

existecircncia e de sociabilidade que ela implica Se Bergson (2001 p 98607) pudera dizer

que o indiviacuteduo pertence tanto agrave sociedade como a si mesmo fora para mostrar a

coexistecircncia diferencial entre dois ritmos um que define as ilusotildees de um sujeito fixo que

se resolve na camada mais superficial de uma identidade forjada em funccedilatildeo e por forccedila das

convenccedilotildees sociais outro que define a verdade sombria de um sujeito integralmente

constituiacutedo pelos tempos da memoacuteria e do devir e que como tal toma parte na

comunidade universal de eus profundos como uma comunidade que vem Pertencendo a si

mesmo em profundidade o indiviacuteduo torna-se o portador do novo anunciador da ruptura e

precursor das emergecircncias do profundo que contraefetua e dissolve o superficial

ldquoLrsquoindividu qui fait partie de la socieacuteteacute peut infleacutechir et mecircme briser une neacutecessiteacute qui

imite celle-lagrave [de lrsquoorganisme]rdquo (BERGSON 2001 p 98507) Que o eu bergsoniano

esteja sujeito a um duplo regime o do si e o do social pontos em que ele eacute ora vitalidade

inorgacircnica selvagem ora organizaccedilatildeo sob uma forma cortecircs e sociaacutevel eacute apenas a tensatildeo e

a resistecircncia do profundo em relaccedilatildeo ao superficial que explicaraacute a passagem do superficial

222

A comunidade de eus profundos que emerge de uma divisatildeo do sujeito jaacute presente no Essai eacute pressentida

por Yala Kisukidi (2012 p 258) como o que integra a proacutepria condiccedilatildeo de possibilidade de uma accedilatildeo poliacutetica

visando agrave transiccedilatildeo ldquoEn effet la condition de possibiliteacute drsquoune action politique visant la transformation de

lrsquoorganisation sociale et une certaine forme drsquoeacutemacipation de la nature srsquoarticule autour drsquoune theacuteorie de la

division du sujet reprenant la division entre le moi social et le moi profond deacutevelopeacutee dans lrsquoEssai sur les

donneacutees immeacutediates de la consciencerdquo

247

ao profundo ldquoCrsquoest cette reacutesistance qui se meut en action et rend possible lrsquoouverture des

socieacuteteacutesrdquo (KISUKIDI 2012 p 259)

Por essa razatildeo insistimos tatildeo longamente nos conceitos de emoccedilatildeo imitaccedilatildeo e

criaccedilatildeo como essencialmente ligados agrave possibilidade de um trabalho coletivo de resistecircncia

agrave natureza naturada Sua dimensatildeo coletiva explica-se ontologicamente A comunidade de

eus profundos natildeo eacute apenas o ponto em que o impessoal se confunde com o universal mas

aquele em que esses dois termos coincidem em profundidade ndash ontologicamente ndash com o

comum que jaacute estaacute para aleacutem de todo grupo coletivo concreto Se a miacutestica eacute uma

experiecircncia que estaacute virtualmente ao alcance de todos ndash o que implica que ela natildeo esteja

dada nem seja atual ndash eacute porque ela desenha um territoacuterio ilimitado transfronteiriccedilo e

cosmopolita em que o impessoal o universal e o comum se confundem ao infinito

Procuremos no entanto compreender a correlaccedilatildeo entre democracia e resistecircncia

que recebe em Bergson uma importacircncia vital A democracia seria sob todos os aspectos

vista como um efeito de criaccedilatildeo originado da resistecircncia coletiva em ceder agraves normas

sociais que a natureza envolve baseadas na exclusatildeo na propriedade individual e coletiva

na guerra no dimorfismo do homem social nas fabulaccedilotildees que legitimam a dominaccedilatildeo de

grupos sociais ou chefes baseadas em raccedila estirpe etc (BERGSON 2001 p 1213-

1214298-299 e p 1036-103773-74 e AMALRIC 2012 p 290) Bergson caracterizou

ademais o todo da obrigaccedilatildeo como ldquoresistecircncia agraves resistecircnciasrdquo precisamente em virtude

da tensatildeo que o jogo entre a liberdade dos eus profundos e as exigecircncias de uma

sociabilidade superficial parecem gerar a todo momento O que define o espaccedilo

democraacutetico eacute portanto a tensatildeo entre as tendecircncias agrave abertura e ao fechamento que criam

certa resistecircncia agrave natureza e agrave fixidez da forma de vida que ela engendrou como parada do

eacutelan criador Tudo se passa como se houvesse uma atitude correspondente a essa

resistecircncia mais original e mais profunda voltada contra o instinto virtual que organiza o

haacutebito contra o haacutebito de contrair haacutebitos e que combate a feiccedilatildeo conservadora do rapport

intersubjetivo nas sociedades humanas saiacutedas das matildeos da natureza haveria um estado de

alma democraacutetico capaz de resistir a essas tendecircncias de fechamento (KISUKIDI 2012 p

260)

Sabemos que o aberto como o universalismo concreto e imanente ao Todo vital ou

mesmo a democracia natildeo satildeo jamais dados atuais mas efeitos de uma criaccedilatildeo isso

permitiraacute caracterizar a poliacutetica precisamente como uma accedilatildeo coletiva de abertura do

fechado que corresponde em todos os seus pontos agrave liberaccedilatildeo das determinaccedilotildees naturais

das fabulaccedilotildees que naturalizam as articulaccedilotildees de dominaccedilatildeo social e poliacutetica mas tambeacutem

248

alteram profundamente as instituiccedilotildees de maneira a efetuar o aberto em algum niacutevel e

encontrar nessas proacuteprias instituiccedilotildees sua realizaccedilatildeo (AMALRIC 2012 p 279) Que toda

abertura natildeo cesse de estar ameaccedilada por um refechamento que as tendecircncias mais

elementares agraves sociedades naturais permaneccedilam indefinidamente ligadas aos corpos sociais

que se abrem na direccedilatildeo do universal imanente a democracia e os direitos humanos

apareceratildeo como possibilidades de concretizar o aberto e passar de uma justiccedila estaacutetica a

uma justiccedila dinacircmica instalada na duraccedilatildeo As instituiccedilotildees passam a ter um papel de

resistecircncia de terceiro niacutevel na medida em que asseguram que sociedades inteiras

perseverem no aberto de maneira duraacutevel Na medida em que o aberto seja

institucionalizado ele passa a ser efetuado sob a forma de uma estrutura juriacutedico-poliacutetica

que a um soacute tempo assegura a durabilidade do aberto e recusa seu fechamento

(AMALRIC 2012 p 288)

Poreacutem como democracia e direitos humanos podem relacionar-se com o aberto

Na medida em que constituem suas efetuaccedilotildees ou atualizaccedilotildees no campo poliacutetico Natildeo haacute

democracia tampouco atenuaccedilatildeo do dimorfismo social caracteriacutestico das sociedades saiacutedas

das matildeos da natureza sem que o proacuteprio regime poliacutetico democraacutetico garanta a todos os

indiviacuteduos direitos iguais Eacute precisamente esta relaccedilatildeo em sentido forte que Bergson (2001

p 1214299) enuncia em um contiacutenuo ldquoDe toutes le conceptions politiques [la

deacutemocratie] crsquoest en effet la plus eacuteloigneacutee de la nature la seule qui transcende en intention

au moins les conditions de la lsquosocieacuteteacute closersquo Elle attribue agrave lrsquohomme des droits

inviolablesrdquo A continuidade fundamental entre democracia e direitos humanos atesta que

sua gecircnese reciacuteproca natildeo apenas eacute capaz de reconciliar liberdade e igualdade declarar o

povo como soberano engendrar o corpo de cidadatildeos ao mesmo tempo como legislador e

suacutedito atenuar o dimorfismo social que a natureza impocircs mas tambeacutem realiza atraveacutes dos

direitos humanos concebidos na estrutura poliacutetica democraacutetica a fraternidade como valor

essencial produzindo-se tambeacutem ela no interior de uma atmosfera afetiva e criadora que

Bergson afirma ser de essecircncia ldquoevangeacutelicardquo ldquola fraterniteacute est lrsquoessentiel ce qui

permettrait de dire que la deacutemocratie est drsquoessence eacutevangeacutelique et qursquoelle a pour moteur

lrsquoamourrdquo (BERGSON 2001 p 1215300)

Com isso Bergson insiste sobre o caraacuteter eminentemente religioso da democracia ndash

o que se provaria tambeacutem pela influecircncia do puritanismo nas grandes declaraccedilotildees de

direitos do final do seacuteculo XVIII (BERGSON 2001 p 1215300) No entanto eacute preciso

compreender o que Bergson estaacute a dizer quando se refere ao caraacuteter religioso das foacutermulas

democraacuteticas ou quando afirma a essecircncia evangeacutelica da democracia Por um lado

249

acabamos de notar que o que forja todo devir democraacutetico mas tambeacutem os direitos

humanos nascidos ndash como diz o proacuteprio Bergson ndash do protesto como desafio lanccedilado no

mundo supotildee um ensejo depende de um trabalho poliacutetico coletivo em profundidade e

contra as tendecircncias naturais de fechamento Se a democracia compreendida como regime

poliacutetico que possui a intenccedilatildeo de superar as determinaccedilotildees da sociedade fechada tem um

caraacuteter religioso este natildeo poderia ser equivalente ao das religiotildees estaacuteticas de seus ritos e

tradiccedilotildees canocircnicos mas unicamente o das religiotildees dinacircmicas que encontram no

misticismo completo ndash do ponto de vista histoacuterico acidentalmente cristatildeo ndash a condiccedilatildeo

profundamente metafiacutesica de seu vir a ser Se a essecircncia da democracia pode afirmar-se

evangeacutelica eacute como vimos em virtude do universalismo concreto que ela cria e implica

dos direitos devidos agrave humanidade em geral como expressatildeo da fraternidade que dissolve

os limites territoriais entre as naccedilotildees e conciliando igualdade e liberdade avanccedila um passo

em direccedilatildeo a um amor que se confunde com o da alma aberta que se dirige ao Todo Por

isso a foacutermula democraacutetica eacute Ama et fac quod vis Por essa razatildeo liberdade igualdade e

fraternidade encontram nas sociedades natildeo democraacuteticas fechadas suas caracteriacutesticas

contraditoacuterias autoridade hierarquia fixidez ndash natildeo casualmente caracteriacutesticas presentes

nas descriccedilotildees comuns a todas as sociedades que se encontram ainda hoje sob regimes

autoritaacuterios ou ditatoriais ou que teriam saiacutedo dele em um passado histoacuterico relativamente

recente

Haacute poreacutem nas sociedades fechadas que assim se abrem que satildeo tambeacutem as

sociedades que combatem o fechamento a fim de conquistar o direito a ter direitos em uma

dimensatildeo universal uma espeacutecie de pulsatildeo transicional ndash profundamente dinacircmica

inteiramente miacutestica ndash que coincide com a resistecircncia mais profunda e original que

descobriacuteamos como impulso poliacutetico que faz reemergir uma comunidade de eus profundos

capaz de por meio das instituiccedilotildees engendrar estruturas democraacuteticas duraacuteveis no interior

de cuja abertura perseveram Eacute nesse sentido o de uma religiatildeo dinacircmica ou o de um

misticismo profundo que natildeo dependem de nenhum conteuacutedo acidental de crenccedilas que a

democracia e os direitos humanos poderiam possuir uma essecircncia evangeacutelica Eacute na medida

em que se combate o fechamento se resiste agrave persistecircncia do natural e das tendecircncias ao

fechamento que se podem instituir estruturas poliacutetico-juriacutedicas capazes de tornar duraacutevel o

aberto e o universal concreto e imanente ndash ao qual corresponde uma eacutetica da abertura que

jamais deixou de ser atual (WORMS 2011 p 368-369 AMALRIC 2012 p 295) ndash como

efeito de criaccedilotildees A essecircncia da democracia eacute evangeacutelica finalmente em um uacuteltimo

sentido que o amor e a fraternidade universais provariam sem dificuldades Na medida em

250

que a democracia eacute realizaccedilatildeo de uma resistecircncia em profundidade agrave persistecircncia dos

traccedilos das sociedades naturais suas instituiccedilotildees juriacutedico-poliacuteticas e suas estruturas efetuam

o aberto e permitem perseverar nele constituem os signos histoacutericos indiciaacuterios de um

ldquoavenir [qui] doit rester ouvert agrave tous les progregraves notamment agrave la creacuteation de conditions

nouvelles ougrave deviendront possibles des formes de liberteacute et drsquoeacutegaliteacute aujourdrsquohui

irreacutealisables peut-ecirctre inconcevablesrdquo (BERGSON 2001 p 1215300-301) A estrutura e

a instituiccedilatildeo democraacuteticas jaacute natildeo representam um refechamento do aberto mas sua

consolidaccedilatildeo e ateacute mesmo certa ruptura momentacircnea com a atmosfera incendiaacuteria e com

o estado de alma iacutegneo que as criou (AMALRIC 2012 p 289) estas cessam de transmitir-

se maciccedilamente por propagaccedilatildeo em profundidade e passam a prolongar o aberto na

construccedilatildeo de formas poliacuteticas e juriacutedicas aberturas institucionais para novos modos de

existecircncia individuais e em comum novas formas de vida poliacutetica e social Com efeito

toda alteraccedilatildeo que a retomada de contato com o eacutelan vital com a comunidade de eus

profundos efetua eacute parcial pois o aberto constitui um limite ideal o destino metafiacutesico da

humanidade em sua luta infinita contra o fechamento Poreacutem se as novas instituiccedilotildees que

consolidam o aberto na universalidade concreta criada pela profunda resistecircncia que

originou a democracia e os direitos humanos ndash e mais aleacutem persiste em perseverar no

coraccedilatildeo do aberto ndash eacute porque ldquolrsquointention avec laquelle une ideacutee a eacuteteacute lanceacutee y reste

invisiblement adheacuterente comme agrave la flegraveche sa direction Les formules deacutemocratiques

ennonceacutees drsquoabord dans une penseacutee de protestation se sont ressenties de leur originerdquo

(BERGSON 2001 p 1216301) Assim a democracia e os direitos humanos definem-se

como o que manteacutem aberto de tal forma que as condiccedilotildees estruturais sociopoliacuteticas

duraacuteveis da invenccedilatildeo de formas de vida e modos de existecircncia em comum se confundam

no limite com o combate que o proacuteprio homem trava contra o fechamento A democracia

eacute pois mais do que um evento na histoacuteria da abertura (AMALRIC 2012 p 293) ou uma

estrutural formal de manutenccedilatildeo do aberto ela constitui um apelo praacutetico a que resistamos

ao fechamento e o combatamos desde o seu interior levando a tendecircncia que o aberto

constitui ao seu proacuteprio limite

251

sect 4 RETORNAR AO CONCRETO

MEMOacuteRIA E JUSTICcedilA DE TRANSICcedilAtildeO

ldquo[] ne perdez pas le concret revenez-y constamentrdquo

(DELEUZE In MARTIN 1993 p 09)

Ateacute aqui apanhamos e transcrevemos a questatildeo que a memoacuteria e a efetuaccedilatildeo da

transiccedilatildeo envolvem nos planos pragmaacutetico e empiacuterico em uma densa malha de conceitos e

demonstraccedilotildees retomadas fio por fio no corpo da ontologia da memoacuteria de Henri Bergson

Nesse sentido a passagem da sociedade fechada agrave sociedade aberta torna-se a forma

expressiva por intermeacutedio da qual o bergsonismo propotildee agrave sua maneira e em seu proacuteprio

campo o problema por excelecircncia da Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo O fato de esta poder

fundar-se em uma memoacuteria para o porvir constituiu o leitmotiv de toda enquete que

conduzimos ateacute este ponto mobilizados pelo impulso de elucidar as relaccedilotildees entre

memoacuteria e transiccedilatildeo

Essa procura exige poreacutem um uacuteltimo e decisivo passo que em tudo busca

reencontrar radicalmente o espiacuterito especulativo que se confunde com o empirismo

superior de Bergson Se retomarmos as linhas de argumentaccedilatildeo de Bergson em todas as

suas obras do Essai a Deux Sources encontraremos sempre a efetuaccedilatildeo de passagens de

um concreto a outro mediada por uma potente invenccedilatildeo conceitual o fato da liberdade a

gecircnese do espaccedilo e do sensiacutevel a partir do virtual a gecircnese da vida em suas muacuteltiplas

formas as transiccedilotildees sociais e morais etc223

Desse modo natildeo apenas o presente estudo

demanda que interroguemos as distensotildees radicalmente praacuteticas e poliacuteticas da passagem do

fechado ao aberto como o proacuteprio meacutetodo filosoacutefico bergsoniano ndash que natildeo cessa de

mediar conceitualmente a passagem entre dois concretos ndash o exigiria224

A passagem de uma sociedade fechada a uma sociedade aberta ndash que aqui se

confunde com a transiccedilatildeo efetiva que pode ser mediada pelos instrumentos praacuteticos

poliacuteticos e juriacutedico-institucionais da Justiccedila de Transiccedilatildeo ndash implica uma transiccedilatildeo de um

concreto a outro Com efeito abertura e fechamento descrevem apenas tendecircncias forccedilas e

223

ldquoTudo se passa como se a intuiccedilatildeo inicial pelo problema que levanta abrisse e delimitasse um horizonte

para uma investigaccedilatildeo empiacuterica a uacutenica capaz de lhe responder assim como ela eacute a uacutenica capaz de esclarececirc-

lo [] [] como se a lsquocomposiccedilatildeo de um livrorsquo fosse em Bergson o esforccedilo mediador entre a intuiccedilatildeo

imediata e seu desdobramento efetivo portanto o verdadeiro ato esteacutetico ou criativo proacuteprio de sua filosofia

[]rdquo afirma Freacutedeacuteric Worms (2010 p 24-25) sobre o meacutetodo que atravessa os livros de Bergson 224

Mesmo porque segundo Worms (2010 p 25-26) cada livro de Bergson pode ser lido ldquono cruzamento de

dois problemas o problema intuitivo que o inscreve no movimento da obra mas tambeacutem o problema

empiacuterico pelo qual ele reuacutene os saberes de seu tempordquo

252

virtualidades que espreitam o atual pensados como tais natildeo configuram mais que um

limite ideal de direito o que tambeacutem significa virtual225

Todavia quando se trata de

sociedades e formas de vida em comum que efetuam a transiccedilatildeo do fechado para o aberto

encontramos a encarnaccedilatildeo das tendecircncias da aspiraccedilatildeo arrastando atraacutes de si resfriadas e

decantadas formas de vida e de sensibilidade Eis o que natildeo cessa de apelar a um

complemento de concretude capaz de restabelecer com ainda mais clareza o nexo entre

uma ontologia da memoacuteria e sua poliacutetica

Nesses termos faccedilamos com que a contribuiccedilatildeo bergsoniana que propomos agrave

Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo possa retornar ao campo empiacuterico e real do qual esta

procede Se Paul Gready (2011 p 02) pocircde afirmar a natureza subteorizada da teoria da

Justiccedila de Transiccedilatildeo talvez fosse o caso de questionar se tal caracteriacutestica natildeo decorre

com mais razatildeo do esteio praacutetico e empiacuterico do qual ela decalca seus conceitos do que de

uma insuficiecircncia teoacuterica deliberada de seus responsaacuteveis Em outras palavras eacute porque

todo problema relativo agrave Justiccedila de Transiccedilatildeo define-se pela mesma questatildeo metodoloacutegica

bergsoniana ndash ldquocomo passar de um concreto a outro atraveacutes de mediaccedilotildees conceituais e

imageacuteticasrdquo ndash que esta teoria em constituiccedilatildeo mereceria encontrar em uma filosofia como

a de Bergson uma iluminaccedilatildeo metodicamente estruturada para suas principais questotildees ndash

ainda que elas se deem privilegiadamente em alguns niacuteveis como o poliacutetico social e

institucional e menos claramente em outros Dentre as principais questotildees que podem ser

formuladas a partir da Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo compreende-se naturalmente o

problema dos arcanos dos potenciais transformativos atribuiacutedos agrave memoacuteria objeto da

presente investigaccedilatildeo Propusemos elucidaacute-lo a partir de uma compreensatildeo ontoloacutegica da

memoacuteria segundo a qual esta jamais poderia reduzir-se a uma lembranccedila-imagem

individual ou a uma representaccedilatildeo social descarnada ndash memoacuteria como representaccedilatildeo de um

objeto ausente acepccedilatildeo negativa que subtrai a memoacuteria ao seu solo de realidade e agrave qual

parecem render-se diversos teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo (Capiacutetulos 2 e 3) Nesse

sentido natildeo cessamos de afirmar seja pelas insinuaccedilotildees teoacutericas inconclusas dos teoacutericos

da Justiccedila de Transiccedilatildeo seja pela mediaccedilatildeo da ontologia da duraccedilatildeo de Bergson a

memoacuteria como ldquouma regiatildeo do existenterdquo

225

ldquo[] une socieacuteteacute mystique qui engloberait lrsquohumaniteacute entiegravere et qui marcherait animeacute drsquoune volonteacute

commune agrave la creacuteation sans cesse renouveleacutee drsquoune humaniteacute plus complegravete ne se reacutealisera evidemment pas

plus dans lrsquoavenir que nrsquoont existeacute dans le passeacute des socieacuteteacutes humaines agrave fonctionnement organique

comparables agrave des socieacuteteacutes animales Lrsquoaspiration pure est une limite ideacuteale comme lrsquoobligation nuerdquo

(BERGSON 2001 p 104685)

253

A fim de mediar conceitualmente a passagem entre esses dois concretos ndash entre um

regime poliacutetico nacionalista hierarquizado fixo autoritaacuterio ditatorial e violador de

direitos humanos (fechado) e um regime poliacutetico plural e democraacutetico mais livre e igual na

medida em que se incumbe da proteccedilatildeo e da tutela concreta e universal dos direitos

humanos (aberto) ndash perguntemos qual o lugar que a memoacuteria ocupa no acircmbito de uma

transiccedilatildeo concreta

Trata-se sem duacutevida de um lugar de centralidade tal como regularmente

outorgado pelos teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo mas a ele vem agregar-se uma nova e

insuspeitada dimensatildeo Se a memoacuteria deve assumir na dinacircmica das pulsotildees transicionais

coletivas um lugar de centralidade seraacute de um ponto de vista bergsoniano que em

profundidade atesta a correlaccedilatildeo entre o ontoloacutegico e todos os demais niacuteveis que natildeo

passam de atualizaccedilotildees ou encarnaccedilotildees suas em estados de coisas ndash entre eles o registro do

poliacutetico-social que interessa sobretudo agrave Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo e a seu conceito

canocircnico de memoacuteria Por um lado natildeo cessamos de insistir nessa correlaccedilatildeo por outro a

centralidade da memoacuteria como uma condiccedilatildeo da transiccedilatildeo pode ser justificada em cada um

dos niacuteveis em que sua ontologia eacute atualizada

O contato com o princiacutepio mais original que o miacutestico produz natildeo deixa de ser o

contato com uma memoacuteria cosmoloacutegica o novo imponderaacutevel que um ato de liberdade

exprime junto com a integral de uma personalidade que se subjetiva por meio dele natildeo

deixa tampouco de ser uma atualizaccedilatildeo do imprevisto ontoloacutegico do Todo virtual que

assegura seu devir em um niacutevel psicoloacutegico (WORMS 2010 p 83-97)226

Caberia poreacutem retornar agraves perguntas simples e pragmaacuteticas e interrogar que

resposta o bergsonismo oferece agrave pergunta ldquopor que narrar o passadordquo Como a memoacuteria

envolvida por uma fabulaccedilatildeo pode constituir de uma vez por todas uma condiccedilatildeo para

efetuar a transiccedilatildeo para reabrir o que encontramos fechado para atualizar o aberto em uma

forma de organizaccedilatildeo poliacutetico-social duraacutevel e democraacutetica baseada na inviolabilidade dos

226

Em breves poreacutem consistentes traccedilos Henri Gouhier (1999 p 82) define o homem do ponto de vista da

Eacutevolution Creacuteatrice a partir de uma tripla determinaccedilatildeo 1) Retomando o tema aristoteacutelico Bergson descreve

o homem como um animal inteligente 2) A inteligecircncia por sua vez ao mesmo tempo em que define o

ciacuterculo bioloacutegico da espeacutecie humana conteacutem os potenciais ou os virtuais por meio dos quais o homem poderaacute

ir aleacutem de si mesmo 3) Eacute na linha de desenvolvimento do homem no ponto em que a inteligecircncia torna suas

accedilotildees cada vez mais explosivas indeterminadas e livres ndash pois marcadas pela criaccedilatildeo imprevisiacutevel de formas

que redundam no homo faber ndash que o homem eacute o esteio de uma antropologia criadora Forma fraturada em

direccedilatildeo ao aberto ateacute mesmo a personalidade seraacute definida em funccedilatildeo da totalidade do passado e de um

efeito de criaccedilatildeo Por isso Bergson (1972 p 1064-1065) define a pessoa como ldquoUn mouvement en avant

continuel qui ramasse la totaliteacute du passeacute et creacutee le futur telle est la nature de la personnerdquo Cf ainda nesse

uacuteltimo sentido os comentaacuterio de Henri Gouhier (1989 p 98-99) acerca do conceito movente e dinacircmico de

pessoa e personalidade em Bergson

254

direitos humanos assim como em um universalismo concreto e em uacuteltima anaacutelise

imanente agrave proacutepria vida ao Todo Essas questotildees permitem-nos descrever agrave luz de todo o

desenvolvimento conceitual que as precedeu o lugar da memoacuteria e das narrativas da

violecircncia como condiccedilatildeo das transiccedilotildees

Assumamos o ponto de vista da memoacuteria e da transiccedilatildeo tal como geralmente

recebem suas transcriccedilotildees sociais coletivas ou superficiais na Teoria da Justiccedila de

Transiccedilatildeo encontraremos memoacuterias-lembranccedila testemunhos memoacuterias coletivas

exerciacutecios puacuteblicos institucionais poliacuteticos e sociais de rememoraccedilatildeo do passado

construccedilatildeo de memoriais e narrativas sobre a violecircncia e a violaccedilatildeo de direitos humanos

Conviria perguntar como justificar uma ontologia da memoacuteria nesse plano a um soacute tempo

simboacutelico e pragmaacutetico

Agrave luz de tudo o que vimos o esforccedilo227

de narrar a violecircncia consiste em uma

alternativa para retomar o contato com memoacuterias mais profundas inconscientes e

metaindividuais trata-se de apropriar-se da fabulaccedilatildeo em sentido poliacutetico a fim de

compreender o fechamento como resultado das investidas sociais no sentido da aniquilaccedilatildeo

do proacuteprio homem Da fabulaccedilatildeo nasce um sem-nuacutemero de funccedilotildees da memoacuteria nas

transiccedilotildees Todas essas funccedilotildees poderiam ser resumidas em uma expressatildeo largamente

aceita segundo a qual ldquolembramos para natildeo repetirrdquo ldquonarramos para que jamais aconteccedilardquo

Sua aparente fragilidade e vagueza natildeo devem enganar-nos ndash natildeo se trata de uma imagem

se pudermos ligaacute-la ao sentido poliacutetico e transicional das fabulaccedilotildees e enunciaccedilotildees

coletivas da memoacuteria Desde Auschwitz e natildeo sem razatildeo natildeo cessamos de ligar as

narrativas de destruiccedilatildeo do homem e da violaccedilatildeo dos seus direitos ao plus jamais ccedila

adorniano Eacute possiacutevel recordar e narrar da mesma forma como fabulamos naturalmente o

fazemos a fim de manter a feacute em um futuro social desejado evitar a depressatildeo e o

desencorajamento Assim como no seio da religiatildeo estaacutetica a fabulaccedilatildeo cumpria as funccedilotildees

de manter o indiviacuteduo apegado agrave vida narrar a violecircncia que o passado conheceu e que

pode perpetuar-se ainda hoje eacute um modo simboacutelico semi-intelectual e linguageiro de

remuer la cendre Simetricamente como a fabulaccedilatildeo em sentido religioso coincidia com

uma intromissatildeo do instinto virtual no acircmbito da inteligecircncia a fabulaccedilatildeo em sentido

poliacutetico pode consistir em uma intromissatildeo da intuiccedilatildeo miacutestica ndash que natildeo deixa de ser um

sentido virtual da vida ndash no plano intelectual As narrativas da violecircncia constituem desse

227

Talvez conviesse recordar que para Bergson o esforccedilo voluntaacuterio eacute aquele que coincide com a totalidade

indivisiacutevel de uma personalidade que Bergson (1972 p 845) definia em termos tatildeo ontoloacutegicos como

psicoloacutegicos como ldquoune certaine continuiteacute drsquoeacutecoulementrdquo Cf ainda (GOUHIER 1989 p 87-90)

255

modo o representante simboacutelico de uma efervescecircncia mais profunda As lutas natildeo satildeo

senatildeo o signo indiciaacuterio e sobretudo acidental de uma pulsatildeo transformadora mais

profunda Por isso aquilo em que as narrativas e a produccedilatildeo de simboacutelico consistem eacute no

iacutendice do incendiaacuterio que se revivifica sob as cinzas com que o fechado descoloriu o real

Ela implica jaacute uma accedilatildeo que pode consistir em um chamado Nada disso poreacutem

estabelece-se por causalidade mas por invenccedilatildeo uma memoacuteria poliacutetica nunca eacute apenas a

recuperaccedilatildeo de uma verdade ideada do passado mas compreende ndash pelo menos

virtualmente ndash uma evocaccedilatildeo miacutestica das personalidades excepcionais e um chamado agrave

accedilatildeo Eacute tambeacutem nesse sentido que o misticismo bergsoniano jaacute natildeo se reduz agrave

contemplaccedilatildeo dos antigos ndash os miacutesticos satildeo antes de mais nada homens de accedilatildeo Nessa

medida todo simboacutelico e toda narraccedilatildeo da violecircncia dissimula sob seus signos uma

verdade ontoloacutegica mais profunda eacute uma memoacuteria ontoloacutegica virtual e potente ndash como

uma memoacuteria que jamais foi presente uma memoacuteria para o devir cujo correlato subjetivo eacute

plural e nomaacutedico (comunidade de eus profundos) ndash que se dissimula sob a superfiacutecie atual

e luminosa dos signos do passado recuperado

Se pudemos apreender algo de decisivamente positivo no vitalismo bergsoniano eacute

que o que morre satildeo os indiviacuteduos natildeo o eacutelan jamais a vida em geral O que eacute

incessantemente destruiacutedo e fechado sobre si eacute um equiliacutebrio superficial que corresponde

agraves dimensotildees mais aparentes e atuais de uma comunidade poliacutetica O que resta quando tudo

parece fechado eacute uma forma de exercer a memoacuteria em profundidade ndash remuer la cendre e

fazer rescender o perfume do tempo permanecer agrave espera e agrave espreita ndash praticar esses dois

modos que definem o virtual suscitar os devires operar os acontecimentos a fim de

reingressar no seio de uma emoccedilatildeo criadora que deixando de ser atual jamais deixou de

ser ndash ponto de vista de uma memoacuteria que jamais foi presente memoacuteria para o futuro As

narrativas da violecircncia da destruiccedilatildeo do homem ndash que como a vida da qual procede ldquoeacute

um indestrutiacutevel que no entanto pode ser destruiacutedordquo como anos mais tarde diraacute Maurice

Blanchot (2007 p 80) ndash indicam precisamente o ponto em que tudo o que resta eacute uma

obscura comunidade de eus profundos e a chance de um novo contato coletivo com o eacutelan

criador capaz de superar o fechamento e de assegurar sob todos os aspectos e pelo menos

de direito a potecircncia de reabrir o fechado de resistir a ele de forjar uma democracia

duraacutevel no interior de cujo universalismo ndash efeito de criaccedilatildeo ndash o aberto possa insinuar-se e

prolongar-se como invenccedilatildeo de novas formas de vida e de existecircncia em comum Eacute junto a

uma comunidade de eus profundos que natildeo cessa de combater e de resistir ao fechamento

256

que se poderaacute procurar um equiliacutebrio superior de ordem completamente diversa daquele

equiliacutebrio social superficial que o fechado impotildee

Demos um derradeiro passo adiante efetuemos a passagem de um concreto a outro

Com efeito eacute comum que se escrevam teses cujo termo se encontre em um horizonte de

futuriccedilatildeo que natildeo passam de uma suspensatildeo irrealizaacutevel imobilizada pela miragem do

possiacutevel Guardemo-nos de imobilizar-nos nesses limiares indecisos Demonstremos por

meio de um exemplo concreto que as condiccedilotildees para a efetuaccedilatildeo da transiccedilatildeo mesmo no

caso brasileiro se natildeo se encontram inteiramente dadas do ponto de vista do atual

encontram-se virtualmente depositadas em uma memoacuteria ontoloacutegico-poliacutetica que com

certa sensibilidade seria possiacutevel pressentir desde logo Natildeo se trata de interrogar a ordem

do possiacutevel mas de estimar a emergecircncia de uma nova partilha e de uma nova ordem dos

afetos que parece estar em obra

Muitos exemplos poderiam ser ofertados a esse tiacutetulo desde accedilotildees de meacutedia e longa

duraccedilatildeo do Estado brasileiro como a atuaccedilatildeo das Comissotildees e Caravanas da Anistia a

poliacutetica reparatoacuteria aos perseguidos poliacuteticos as comissotildees de mortos e desaparecidos com

atuaccedilatildeo em diversos niacuteveis governamentais bem como em niacutevel federal a instauraccedilatildeo da

Comissatildeo Nacional da Verdade bem como de comissotildees estaduais a construccedilatildeo de

memoriais da ditadura em espaccedilos que antes acolhiam instituiccedilotildees policiais e

administrativas responsaacuteveis pela repressatildeo pela tortura e pelo desaparecimento

sistemaacutetico de perseguidos poliacuteticos ou como as iniciativas de judicializaccedilatildeo nacional e

internacional das questotildees relacionadas agrave Justiccedila de Transiccedilatildeo no Brasil Seria desejaacutevel

no entanto fugir a esses lugares-comuns a fim de procurar aquilo que eacute comum a todos

esses lugares a partir de um retorno empiacuterico sobre a proacutepria Teoria da Justiccedila de

Transiccedilatildeo

Com efeito seus teoacutericos reconhecem comumente os espaccedilos institucionais e

aparelhos de Estado como espaccedilos privilegiados em que se inscreve a Justiccedila de Transiccedilatildeo

como um direito-entre Embora fortemente relacionadas ao Estado Jon Elster (2006 p

114) e Ruti Teitel (2000 p 80) afirmam que as praacuteticas transicionais tambeacutem podem

operar-se na interface ou nas margens dos aparelhos de Estado entre suas instituiccedilotildees e

os dinamismos poliacutetico-sociais concretos228

Tanto Estados entidades supranacionais

228

Ruti Teitel tambeacutem o enuncia de dois pontos de vista o do papel da sociedade civil na recoleccedilatildeo social

das memoacuterias e o da importacircncia da articulaccedilatildeo entre accedilotildees individuais e sociedade civil ldquoWhen political

impetus for an official investigation was lacking the construction of collective memory and the investigation

257

corporaccedilotildees privadas e ateacute mesmo indiviacuteduos podem com efeito protagonizar praacuteticas de

Justiccedila de Transiccedilatildeo Seria um erro comparaacutevel apenas ao de reduzir a realidade da

memoacuteria agrave memoacuteria psicoloacutegica individual ou agrave representaccedilatildeo o de supor que as medidas

de Justiccedila de Transiccedilatildeo devam permanecer encerradas nas tramas burocraacuteticas ndash embora

por forccedila da circunstacircncia de os Estados serem muito comumente os violadores de

direitos humanos por excelecircncia as reformas reestruturaccedilotildees e purgas devem ter por

finalidade produzir uma sensiacutevel alteraccedilatildeo de seus aparelhos

Se as observaccedilotildees empiacutericas de Elster e de Teitel estiverem corretas encontramos

nelas algo mais que uma margem a linha de fuga que nos conduz a um foco potencial de

efetuaccedilatildeo das transiccedilotildees poliacuteticas ndash foco este que deve ser procurado em um ldquomais aleacutemrdquo

do Estado Embora o Estado e seus aparatos possam ser o objeto e por vezes os motores

pragmaacuteticos e institucionais aparentemente privilegiados das transiccedilotildees em contextos de

fluxo poliacutetico a gecircnese das transiccedilotildees natildeo se localiza forccedilosa ou exclusivamente no

interior do Estado assim como o movimento natildeo pode ser explicado de maneira causal

pelo estado de repouso Seria o caso de inverter a formulaccedilatildeo de Teitel e Elster nas

transiccedilotildees o ldquomais aleacutemrdquo do Estado natildeo se encontra nas margens mas se confunde com o

princiacutepio geneacutetico que impulsiona a efetivaccedilatildeo das transiccedilotildees reais reinstaurando as

margens dos aparelhos de Estado e suas instituiccedilotildees que se refecham sobre aquela Se

Teitel e Elster afirmam sua relativa marginalidade isso se deve a uma visatildeo retrospectiva

que confunde produzir e produto gecircnese e estrutura dinacircmico e estaacutetico e que permite

absorver inteligentemente os primeiros nos segundos

Reaproximando-nos do caso brasileiro basta recordar que as forccedilas motrizes da

reabertura poliacutetica e da redemocratizaccedilatildeo ndash embora tenha se tratado de uma abertura

intensamente controlada pelo Estado e mediada por suas instituiccedilotildees legais e

administrativas ndash localiza-se com maior vigor nos corpos de movimentos sociais que

impulsionaram tais mudanccedilas desde o movimento da Anistia ateacute a mobilizaccedilatildeo nacional

pelas Diretas Jaacute (ANSARA 2009 p 150-153 MARTINS 2010 p 145-170) Nesses

casos o duradouro controle do Estado brasileiro iniciado pelo governo Geisel exerceu-se

sobre uma pulsatildeo democratizante coletiva e ficou conhecido como ldquoabertura lenta gradual

e segurardquo Seus efeitos imediatos foram a gecircnese de uma Lei de Anistia violadora de

Direitos Humanos ndash como reconhecido pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no

and documentation of past repression were taken up by the civil societyrsquos nongovernmental organizations

[]rdquo (TEITEL 2000 p 80) adiante Teitel (2000 p 152) prossegue ldquoThough liberal intuitions emphasize

the significance of individual action the predicate for change to a civil society as suggested in the ancient

account is not simply an individual matter but involves a relation between individual and collectiverdquo

258

julgamento do Caso Gomes Lund e outros vs Brasil (Caso Araguaia) ndash e resultaram em

uma democratizaccedilatildeo vertical (TORELLY 2012 p 210-217)

Para aleacutem da atuaccedilatildeo do Estado seria conveniente recordar a luta dos familiares

dos desaparecidos poliacuteticos que iniciada durante a ditadura militar estende-se ateacute hoje

com contribuiccedilotildees inestimaacuteveis de seus protagonistas ao restabelecimento da memoacuteria

poliacutetica do periacuteodo ditatorial no Brasil (TELES 2009 p 151-176) Suas contribuiccedilotildees que

penetram nas instituiccedilotildees apenas mais recentemente com as Comissotildees e Caravanas da

Anistia mas tambeacutem com a tomada de depoimentos e testemunhos no acircmbito de

Comissotildees da Verdade satildeo emblemaacuteticas de uma narraccedilatildeo que procura ndash a teor de toda

literatura memorialista produzida no periacuteodo ndash ldquonatildeo deixar que tudo se perca se evaporerdquo

(FORTES 2012 p 93) Eis a definiccedilatildeo de uma pulsatildeo ou de uma vis memorialista que

por vezes faz com que testemunho e literatura memorial confundam-se ao infinito229

Embora respeitaacuteveis autores brasileiros da Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo

considerem que as questotildees poliacuteticas envolvidas na anistia e na transiccedilatildeo democraacutetica

brasileira natildeo teriam gerado nada aleacutem de uma mobilizaccedilatildeo popular de baixa intensidade

(ABRAtildeO TORELLY 2011 p 238-239) um fenocircmeno novo parece emergir com forccedila

singular Ele consiste no ingresso repentino de muitas pautas poliacuteticas relacionadas agrave

Justiccedila de Transiccedilatildeo no Brasil como questotildees relevantes e unificadoras para movimentos

sociais cujos atores satildeo os jovens O Levante Popular da Juventude eacute nesse aspecto uma

experiecircncia de todo exemplar embora natildeo dedique sua atenccedilatildeo exclusivamente agraves questotildees

da Justiccedila de Transiccedilatildeo ndash e eacute precisamente isso o que constitui o iacutendice de um potencial de

abertura desse movimento230

229

Eacute nesse sentido que Salinas assumindo o tom do sujeito que procura no iacutentimo da proacutepria experiecircncia a

razatildeo para escrever as memoacuterias que sejam capazes de transmiti-la inteiramente afirma em um tom

confessional e ao mesmo tempo irocircnico ldquo[]se escrevo ndash as memoacuterias ndash eacute para dar a mim mesmo

conceder-me em benefiacutecio proacuteprio uma lsquoANISTIA AMPLA GERAL E IRRESTRITArsquo jaacute que ningueacutem me

concederdquo (FORTES 2012 p 93) Enquanto a confissatildeo de ter de buscar uma justificativa para narrar suas

memoacuterias remete ao sujeito que luta contra a desapariccedilatildeo da memoacuteria declarada sua completa absorccedilatildeo na

iteraccedilatildeo de pesadelos e deliacuterios a ironia de ldquoconceder-se uma anistia ampla geral e irrestritardquo que ningueacutem

lhe concede assinala o ponto de inserccedilatildeo do sujeito na lei e nas instituiccedilotildees de grande escala Eis a criacutetica que

permite entrever que o fundamento da lei eacute essencialmente irocircnico a denunciar precisamente o fato de que os

responsaacuteveis pela repressatildeo concederam-se a si mesmos ndash como Salinas gostaria de fazer pela via da escritura

ndash sua anistia e seu perdatildeo Em tudo ldquoContra a ficccedilatildeo do Gecircnio Maligno oficial se impotildee o minucioso relato

histoacuterico []rdquo (FORTES 2012 p 42) 230

Outro exemplo iniciativa da juventude eacute o Coletivo Quem grupo anocircnimo sem vinculaccedilatildeo partidaacuteria que

sequer se define como movimento mas como projeto que inspirado pela arte do artista plaacutestico Cildo

Meireles visa a ldquoResgatar atualizar e reconfigurar manifestaccedilotildees artiacutesticas de resistecircncia agrave ditadurardquo O

grupo notabilizou-se por carimbar a partir de 2010 perguntas incocircmodas em ceacutedulas de Real como ldquoQuem

torturou Dilma Rousseff rdquo ldquoQuem torturou Frei Tito rdquo e ldquoQuem matou Alexandre Vannucchi Leme rdquo Ao

contraacuterio do Levante Popular da Juventude o foco de suas intervenccedilotildees simboacutelicas e artiacutesticas satildeo as

questotildees relativas agrave transiccedilatildeo brasileira no que converge com algumas pautas do Levante Popular da

259

Os integrantes do Levante Popular da Juventude definem-se como ldquouma

organizaccedilatildeo de jovens militantes voltada para a luta de massas em busca da transformaccedilatildeo

da sociedaderdquo231

Trata-se de uma iniciativa que busca articular a juventude brasileira

atuante nos movimentos sociais em niacuteveis nacional regional e local Suas lutas atravessam

temas tatildeo plurais (BRITO e FERREIRA 2011 p 11) como a construccedilatildeo de uma

democracia popular distribuiccedilatildeo de renda sustentabilidade ambiental lutas contra o

machismo a homofobia a lesbofobia a transfobia e o racismo a democratizaccedilatildeo da

educaccedilatildeo em todos os niacuteveis bem como o acesso universal ao transporte puacuteblico gratuito e

de qualidade a efetivaccedilatildeo dos direitos agrave cultura e ao lazer na contracorrente de sua

mercantilizaccedilatildeo a luta contra a precarizaccedilatildeo do trabalho e pela extensatildeo das garantias e

direitos sociais reconhecidos aos trabalhadores urbanos e rurais o combate ao

individualismo e agrave estagnaccedilatildeo ndash valores do capital ndash e ldquoa praacutetica permanente

de solidariedade com todos os povos que sofrem e lutamrdquo232

Criado em meados de 2005 a partir de uma Consulta Popular ndash agrupamento de

diversos movimentos sociais ligados ao Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra

(RUSKOWSKI 2012 p 30) ndash a forma de apariccedilatildeo puacuteblica de maior intensidade do

Levante Popular da Juventude deu-se apenas em 2012 com as praacuteticas de ldquoesculachosrdquo

(CARTA MAIOR 2012) De composiccedilatildeo heterogecircnea compreendendo integrantes de

diversas origens econocircmicas sociais e culturais (SILVA e RUSKOWSKI 2010 p 32) o

Levante Popular da Juventude notabilizou-se pela praacutetica de esculachos inspirados nos

escrachos argentinos e chilenos ndash atos de execraccedilatildeo puacuteblica realizados diante das

residecircncias de torturadores em diversas capitais brasileiras

Longe de ser uma organizaccedilatildeo em sentido proacuteprio que nasce de certa

intencionalidade com visatildeo prospectiva e estrateacutegica de atuaccedilatildeo o Levante teria surgido

de ldquoum sentimento uma percepccedilatildeo de que era necessaacuterio construir um espaccedilo de

organizaccedilatildeo da juventuderdquo233

Ganhando corpo o movimento passa a estabelecer seus

eixos de accedilatildeo a partir do tripeacute ldquoorganizaccedilatildeo formaccedilatildeo e lutardquo enriquecendo-se com a

Juventude que passamos a analisar mais minuciosamente adiante Sobre o Coletivo Quem cf

lthttpquemtorturouwordpresscoma-propostagt Acesso em 15mai2013 231

Cf lthttplevanteorgbrgt Acesso em 15mai2013 232

Cf lthttplevanteorgbrCartaCompromissoLevantePopulardaJuventudehtmgt Acesso em 15mai2013 233

ldquoNatildeo tinha uma visatildeo estrateacutegica uma leitura da conjuntura muito profunda que diria que ndash lsquoNatildeo

precisamos ter uma organizaccedilatildeo com tal e tal caraacuteter e talrsquo Natildeo tinha muito isso Tinha um sentimento uma

percepccedilatildeo de que era necessaacuterio construir um espaccedilo de organizaccedilatildeo da juventude e aiacute se tirou o Francisco

pra fazer isso e tal E eacute por isso que o Levante nunca teve um modelo organizativo muito bem definido

Sempre foi meio gelatinoso assimrdquo Fala de Luiacutes integrante do Levante entrevistado por (SILVA e

RUSKOWSKI 2010 p 32)

260

transmissatildeo da experiecircncia de participantes de outros movimentos sociais como o

Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra o Movimento dos Atingidos por Barragens o

Movimento dos Pequenos Agricultores o Movimento dos Trabalhadores Desempregados

etc Os encontros estaduais mais que simples reuniotildees deliberativas propulsionam-se a

partir da hibridizaccedilatildeo cultural que reuacutene sob a mesma rubrica a capoeira e o hip hop ldquoa

miacutestica e a noiterdquo (SILVA e RUSKOWSKI 2010 p 34)234

ao mesmo tempo em que

constituem lugares para formaccedilatildeo poliacutetica definiccedilatildeo dos rumos do movimento e discussatildeo

de accedilotildees e praacuteticas de lutas Tudo concorre para a integraccedilatildeo dos jovens em novas e plurais

chaves de leitura da realidade social no interior da qual estatildeo inseridos mas mais aleacutem

para que possam apropriar-se de estrateacutegias compreensivas e praacuteticas que lhes permitem

acreditar na possibilidade de reabrir o fechado alterar suas condiccedilotildees de vida e os modos

de existecircncia no contexto poliacutetico e social de que fazem parte

Agrave luz de tudo isso o Levante Popular da Juventude constitui um movimento social

exemplar para pensar a correlaccedilatildeo entre uma memoacuteria ontoloacutegica transcrita em diversos e

heterogecircneos niacuteveis e a produccedilatildeo de uma transiccedilatildeo real em um campo concreto Sua

exemplaridade decorre de trecircs fatores que devemos considerar na medida em que permitem

reatar o aparato conceitual de Bergson agraves dimensotildees mais concretas da efetuaccedilatildeo da Justiccedila

de Transiccedilatildeo Nesse sentido consideremos as accedilotildees poliacuteticas do Levante mais diretamente

relacionadas com as questotildees envolvidas pela Justiccedila de Transiccedilatildeo

Geralmente os jovens do Levante reuacutenem-se em datas ou eventos significativos

como o aniversaacuterio do Golpe Militar de 1964 ndash comemorado sem pudores por alguns

setores militares ndash ou as reuniotildees das Comissotildees da Verdade em diversos niacuteveis

federativos Suas accedilotildees poliacuteticas consideradas por muitos desrespeitosas ou borderlines

da praacutetica de vandalismo estatildeo diretamente ligadas a manifestaccedilotildees de execraccedilatildeo puacuteblica

de torturadores de alteraccedilatildeo do nome de vias puacuteblicas ndash que porventura tenham o nome

de colaboradores do regime autoritaacuterio ou de agentes da repressatildeo poliacutetica ndash pichaccedilotildees

proacuteximas agraves residecircncias de torturadores com a inscriccedilatildeo ldquoaqui mora um torturadorrdquo

manifestaccedilotildees puacuteblicas a fim de incitar o Estado brasileiro a cumprir a sentenccedila da Corte

Interamericana de Direitos Humanos no caso Gomes Lund (caso Araguaia) defesas

puacuteblicas da instauraccedilatildeo da Comissatildeo Nacional da Verdade entoaccedilatildeo de canccedilotildees de

protesto e resistecircncia que evocam a memoacuteria da resistecircncia agrave ditadura chamamento em voz

alta ndash seguido de um uniacutessono ldquopresenterdquo ndash dos nomes dos companheiros tombados na

234

Cf ainda (RUSKOWSKI 2012 p 33) para maior detalhamento sobre o sentido das praacuteticas culturais no

Levante Popular da Juventude

261

luta como forma de prestar-lhes homenagem poacutestuma teatros puacuteblicos que recordam a

memoacuteria das prisotildees torturas e desapariccedilotildees etc Do ponto de vista estrateacutegico alguns

integrantes do movimento afirmam que tal praacutexis constitui uma tentativa de renovar as

praacuteticas de lutas de massas e de fazecirc-lo articulando a juventude (CARTA MAIOR 2012)

Poreacutem o que mais chama a atenccedilatildeo eacute o engajamento massivo de jovens que pouco

ou nada viveram do periacuteodo da repressatildeo poliacutetica no Brasil Se o Estado e suas

instituiccedilotildees possuem obrigaccedilotildees internacionais a cumprir ao redor do tema se os

familiares de perseguidos e desaparecidos poliacuteticos carregam ainda feridas abertas dos

tempos de repressatildeo seria preciso indagar o que leva jovens a engajarem-se politicamente

em questotildees que poderiam parecer-lhes integralmente anacrocircnicas Eis a questatildeo que se

coloca em termos socioloacutegicos e poliacuteticos na medida em que remete agrave discussatildeo das

formas de vida e de sociabilidade coletivas como compreender que jovens com seus vinte

ou trinta anos de idade que pouco ou sequer viveram a intensidade real da repressatildeo

possam unir-se aos mais velhos agrave espessura fantasmaacutetica dos mortos e dos desaparecidos

De que modo podem fazer de sua praacutexis o testemunho concreto da partilha em

profundidade do significado da democracia e dos direitos humanos como um compromisso

poliacutetico aberto e transgeracional Como esses jovens encontram sentido no levantar-se

Como explicar essa partilha miacutestica que pouco a pouco penetra o seio social em camadas

insuspeitaacuteveis entre aqueles que natildeo viveram Para compreendecirc-lo retornemos agrave

fenomenologia da revoluccedilatildeo de Les Deux Sources Ali Bergson lembrava a afirmaccedilatildeo de

Eacutemile Faguet que dizia que a Revoluccedilatildeo Francesa havia acontecido natildeo pela igualdade e

pela liberdade mas por que se morria de fome E por que pergunta-se Bergson de repente

decidiu-se que jaacute natildeo era mais aceitaacutevel morrer-se de fome Seria o caso de perguntar por

que jovens de vinte e poucos anos levantaram-se de repente Por que enfim em

determinado momento desejaram trocar os afetos da ordem por uma outra ordem dos

afetos

Eis a faceta concreta de uma memoacuteria ontoloacutegica em Bergson o devir e o aberto

advecircm da deposiccedilatildeo inconsciente e infinitesimal dos eventos na memoacuteria do espiacuterito que eacute

tambeacutem o virtual a memoacuteria em profundidade O miacutestico que Bergson define como o

grande homem de accedilatildeo mas tambeacutem o artista e o moralista ndash aqueles que produzem

alteraccedilotildees de valores que instauram pelo exemplo uma abertura na moralidade social ndash

satildeo individuaccedilotildees coextensivas a uma operaccedilatildeo ontoloacutegica de uma memoacuteria mais

profunda

262

Por essa razatildeo eacute enganoso pensar o devir do ponto de vista exclusivamente

individual Natildeo eacute o devir que eacute produzido por indiviacuteduos satildeo os indiviacuteduos que prolongam

o devir cuja potecircncia em Bergson confunde-se com a de Deus ndash nada aleacutem de ldquoum

esforccedilo criadorrdquo que natildeo se encontra fora deste mundo mas entranhado nele seu motor

inaparente sempre sujeito aos dinamismos do acaso De algum modo reencontramos aqui

o eacutelan vital que natildeo se confunde com a vida orgacircnica mas com a sombria operaccedilatildeo do

tempo universal em sua multiplicidade de fluxos coexistentes no seio de uma memoacuteria-ser

Nesse sentido o miacutestico mero instrumento do Deus bergsoniano eacute a prova viva de que o

devir penetra em profundidade as singularidades impessoais e as inventa Natildeo haacute sujeitos

fixos apenas ilusotildees superficiais em profundidade opera-se o acuacutemulo infinito das

experiecircncias e afetos na memoacuteria dessas individuaccedilotildees Eis a personalidade bergsoniana

atravessada pelo eacutelan vital

Se os jovens hoje se levantam se trocam os afetos da ordem por uma outra ordem

dos afetos eacute porque de algum modo houve um encantamento riacutetmico de seus eus em

profundidade e o daqueles que os precederam na luta pela transfiguraccedilatildeo do real Poreacutem

para que essas almas que se abrem possam efetuar o aberto eacute preciso contraefetuar o

fechado saltar para o exterior dos coacutedigos sociais da ficccedilatildeo do indiviacuteduo e do ciacuterculo teso

da proacutepria espeacutecie das tendecircncias sociais e intelectuais naturais ao homem Por essa razatildeo

talvez tudo o que faccedilam pareccedila tatildeo liminar dos coacutedigos sociais agraves almas fechadas sobre si

e sobre o ciacuterculo da obrigaccedilatildeo social Isso poreacutem natildeo passa de um jogo perspectivo entre

duas formas de sociabilidade ldquoDe um lado a nova intensidade e a euforia inesperadas De

outro o mundo das obrigaccedilotildees e do reloacutegio De um lado a dimensatildeo ignorada pela caretice

geral estado de graccedila alegre durarrdquo escreve Salinas (FORTES 2012 p 95) Um

movimento social pode mover-se e emocionar-se (srsquoeacutemouvoir) como uma comunidade de

eus profundos Almas que se abrem seus agentes e lutas encarnam a distensatildeo praacutetica e

empiacuterica de uma outra forma de equiliacutebrio social em profundidade Do ponto de vista da

ontologia da memoacuteria que as sustenta suas accedilotildees poliacuteticas e praacuteticas culturais jaacute natildeo satildeo

meros representantes de conteuacutedos ausentes ou figuraccedilotildees imaginaacuterias mas um modo de

fabulaccedilatildeo coletiva que pode engendrar na noite praacuteticas miacutesticas que fazem pressentir a

promessa de abertura social e poliacutetica da transfiguraccedilatildeo que natildeo pode cadaverizar-se na

utopia no deliacuterio ou no sonho

O aberto como tendecircncia ou limite ideal tem por destino encarnar-se em uma accedilatildeo

mas sempre no seio de uma certa atmosfer que rescende emoccedilotildees profundas e que a

prepara e prenuncia Assim a evocaccedilatildeo dos nomes dos companheiros tomados na luta

263

perseguidos mortos e desaparecidos natildeo eacute o retrato calado das paredes de honra dos

edifiacutecios burocraacuteticos mas a memoacuteria viva de um uacutenico nome que pode conter um desejo

inteiro Sua evocaccedilatildeo coletiva metaforiza nada mais do que o retorno e a rebeliatildeo de

memoacuterias profundas inconscientes de desejos selvagens incompreensiacuteveis de uma

memoacuteria para um porvir jamais vivido (LAPOUJADE 2010 p 15) mas cuja presenccedila

irresistiacutevel eacute evocada e aspirada pelo nome que conteacutem um desejo inteiro

Os teatros puacuteblicos natildeo satildeo um exerciacutecio de representaccedilatildeo em que a prisatildeo a

tortura ou a morte satildeo encenadas ndash satildeo uma forma de conspirar com as potecircncias virtuais

de uma memoacuteria inconsciente e inaparente modo de inventar uma atmosfera e um campo

de sentido que impulsione a accedilatildeo inspirada em atos exemplares assim como as sinfonias

de Beethoven introduziam Bergson em uma emoccedilatildeo criadora fazendo sentir o fundo

ontoloacutegico da natureza naturante sob sua melodia acidental os teatros de crueldade com

jovens seminus enfiados em paus-de-arara satildeo representaccedilotildees que respondem a um apelo

supraintelectual trata-se de uma maneira natildeo-especulativa de produzir uma rebeliatildeo das

memoacuterias vivas subterracircneas e sujeitadas Tais teatros valem mais pela emoccedilatildeo na qual

nos inserem que pelos conteuacutedos de verdade que expressam a uma inteligecircncia

Uma comunidade de eus profundos estaacute sempre mais perto da memoacuteria ontoloacutegica

que os sobreviventes que sempre colocam suas questotildees em termos de reminiscecircncia

linguagem e conteuacutedo vivido ldquo[] como evocar com exatidatildeo o primeiro ato do pesadelo

que a consciecircncia tem dificuldade de reviver e se esforccedila por manter recalcado fora de seu

acircmbitordquo (FORTES 2012 p 42) pergunta-se Salinas em suas memoacuterias ndash questatildeo que o

sobrevivente endereccedila-se ao sentir a pulsatildeo memorial que o atravessa sem saber por onde

comeccedilar Afinal comeccedilar por que sonho que deliacuterio que pesadelo se tudo se confunde

com os fantasmas dessa memoacuteria que foi inscrita clastreana ou kafkianamente no corpo

ldquo[] dor que continua doendo ateacute hoje e que vai acabar por me matarrdquo ldquobem presente no

meu corpo ferida aberta latejando na memoacuteriardquo

Uma comunidade de eus profundos jamais se coloca a questatildeo do sobrevivente ou

da testemunha porque natildeo pode fazecirc-lo Sua potecircncia especiacutefica eacute a de afastar a

inteligecircncia que parece irrealizar a inscriccedilatildeo da tortura na superfiacutecie dos corpos e deixar-

se invadir por esse ldquofluxo tatildeo sonhado que de repente arrebentardquo (FORTES 2012 p 97)

Os cantos de protesto os hinos os cartazes e frases pichadas nos muros formam corpos

mais ou menos materiais rasuram a ficccedilatildeo oficial e as injunccedilotildees de esquecimento e podem

ser ainda a maneira inteligente e linguageira de combater o fechado as transcriccedilotildees

simboacutelicas e culturais de uma memoacuteria que existe como um fluxo de emoccedilatildeo incoerciacutevel

264

cujo afeto inconsciente a um soacute tempo colmata a lacuna que liga o passado ao futuro e

prepara para a accedilatildeo Ao reveacutes do testemunho ldquoque vale pelo que neles faltardquo (AGAMBEN

2008 p 43) essas representaccedilotildees geradas por uma emoccedilatildeo criadora profunda valem pelo

aberto que as excede e que elas podem auxiliar a comunicar de alma em alma por

incandescecircncia ou por contaminaccedilatildeo

O Levante Popular da Juventude eacute ainda exemplar de uma ontologia da memoacuteria

em sentidos radicalmente mais praacuteticos Suas praacuteticas simboacutelicas e sua miacutestica natildeo

exaurem sua conexatildeo com dimensotildees mais concretas da efetuaccedilatildeo da transiccedilatildeo Se a

Justiccedila de Transiccedilatildeo eacute voltada primariamente agrave transformaccedilatildeo das instituiccedilotildees do Estado

um movimento popular como o Levante Popular da Juventude exerce a funccedilatildeo de

catalisador dos grandes temas e problemas oriundos de uma transiccedilatildeo incompleta no

interior da opiniatildeo puacuteblica Sua praacutexis tende a produzir emergecircncias simboacutelicas que

interpelam as almas fechadas colaborando para colocar sob nova luz ou reatualizar

questotildees que boa parte da sociedade brasileira considera anacrocircnicas ou de segunda ordem

ignorando que os problemas nacionais de primeira ordem podem encontrar justamente ali

no aparente anacronismo da transiccedilatildeo inconclusa sua estrutura fundamental Assim os

gestos poliacuteticos do Levante natildeo apenas anunciam mas tendem a engendrar e a produzir a

intensificaccedilatildeo do movimento poliacutetico acerca da transiccedilatildeo brasileira ndash se suas lutas natildeo

realizam o aberto a que aspiram ao menos tendem a contraefetuar o fechado a alterar e

dinamizar relaccedilotildees de forccedilas por muito tempo bloqueadas politicamente no Brasil Sua

praacutexis seja a da accedilatildeo simboacutelica ou a da accedilatildeo poliacutetica eacute uma forma de remuer la cendre

define-se pela insistecircncia pela espera e pela espreita ndash modos ontoloacutegicos de uma memoacuteria

virtual que jamais deixou de ser

Na medida em que se reconhecem os potenciais efetivos de movimentos sociais

como propulsores das alteraccedilotildees pragmaacuteticas e institucionais como catalisadores da

opiniatildeo puacuteblica para a atualidade do tema o Levante Popular da Juventude constitui um

exemplar de accedilotildees transicionais que engendram uma forma de Justiccedila de Transiccedilatildeo que

nem fica confinada aos aparelhos de Estado nem eacute simples ou completamente refrataacuteria a

eles Se pudemos caracterizar a Justiccedila de Transiccedilatildeo como um direito-entre o Levante

Popular da Juventude eacute um exemplar de movimento social-entre ao menos em dois

sentidos Em primeiro lugar como vimos tudo se passa como se ele pudesse tocar as

instituiccedilotildees e impulsionaacute-las agrave efetuaccedilatildeo das accedilotildees de Justiccedila de Transiccedilatildeo Exemplar da

justiccedila em sentido absoluto em Bergson que jaacute natildeo evoca ideias de relaccedilatildeo medida ou

proporccedilatildeo a ideia de justiccedila de movimentos sociais que baseiam sua praacutexis na defesa dos

265

direitos humanos ndash a exemplo do Levante Popular da Juventude ndash resolve-se em uma

afirmaccedilatildeo pura e simples de um direito inviolaacutevel da incomensurabilidade da pessoa e de

seus valores (BERGSON 2001 p 103571 ainda LEFEBVRE 2013 Chap 7)

Em um segundo sentido radicalmente praacutetico e poliacutetico o Levante Popular da

Juventude apresenta-se como um movimento social-entre na medida em que sua praacutexis de

luta tem por efeito imediato trazer agrave luz os compromissos inaceitaacuteveis de uma democracia

em que a transiccedilatildeo eacute ainda hoje um processo poliacutetico inconcluso com aquilo que ldquoresta

da ditadurardquo Sua praacutexis revela tais compromissos toda vez que eacute combatida como praacutetica

antidemocraacutetica criminosa ou desprovida de sentido pelas instituiccedilotildees e pela miacutedia Eacute

impossiacutevel natildeo recordar que em 31 de marccedilo de 2012 em um contexto de intensa reaccedilatildeo

dos segmentos militares contra a possibilidade de instituiccedilatildeo da Comissatildeo Nacional da

Verdade uma manifestaccedilatildeo organizada pelo Levante que contava com o apoio e a

participaccedilatildeo de partidos poliacuteticos de esquerda e de familiares de mortos e desaparecidos e

que execrava militares que chegavam ao Clube Militar do Rio de Janeiro para participar de

uma comemoraccedilatildeo pela ldquorevoluccedilatildeo de 64rdquo foi violentamente reprimida pela tropa de

Choque da Poliacutecia Militar do Estado do Rio de Janeiro que utilizou bombas de efeito

moral gaacutes de pimenta e armas natildeo-letais ndash como natildeo seriam elas a nova roupagem legal da

antiga tortura dos departamentos de investigaccedilatildeo ndash para dispersar a multidatildeo A cobertura

da miacutedia nacional desastrosa defendia inconfessadamente a repressatildeo dos manifestantes

pela razatildeo de os ativistas poliacuteticos terem provocado uma ldquoconfusatildeo naquilo que era para

ser apenas uma comemoraccedilatildeordquo (O GLOBO 2012) As razotildees da festa por certo nada

tinham de questionaacuteveis

A praacutexis do Levante relativa agraves questotildees da Justiccedila de Transiccedilatildeo eacute de modo geral

reprimida ora pela via do real ndash os embates com a poliacutecia ndash ora pela via do simboacutelico ndash a

desqualificaccedilatildeo de suas accedilotildees pelas miacutedias de massa que natildeo cessam de tentar controlar as

margens criacuteticas da opiniatildeo puacuteblica Eis o que revela alguns dos sentidos imediatamente

praacuteticos e poliacuteticos em que a transiccedilatildeo precisa ainda efetuar-se no Brasil tanto do ponto

de vista da democratizaccedilatildeo das instituiccedilotildees do Estado quanto da democratizaccedilatildeo da

informaccedilatildeo e da possibilidade efetiva de desbloqueio da discussatildeo poliacutetica no espaccedilo

puacuteblico Em cada um desses sentidos ndash tanto o de suas accedilotildees poliacuteticas quanto o de suas

formas de relacionar-se com as instituiccedilotildees ou de debater-se contra elas ndash o Levante

Popular da Juventude atualiza uma ontologia poliacutetica da memoacuteria em que a memoacuteria

constitui o fundo virtual de toda praacutetica poliacutetica ostensiva Nas reuniotildees ou manifestaccedilotildees

o Todo vibra em uma mesma intensidade da presenccedila natildeo raro inconsciente mas sensiacutevel

266

da memoacuteria em comum ponto de ressonacircncia afetivo para criando uma abertura no

superficial superar nossas formas de vida atuais (ciacuterculos sociais individuais inerentes agrave

espeacutecie) e saltar na ontologia devolver ao virtual da memoacuteria o que ela tem de afeto real

de energia eficaz e de profunda liberdade de uma comunidade que inagente e virtual jaacute

estaacute uma comunidade de eus profundos

Com efeito nada disso estaacute dado supotildee ao contraacuterio um esforccedilo e uma

sensibilidade especiais na medida em que todo devir implica um modo de afeto do tempo

pelo qual o tempo afeta a noacutes mesmos e o proacuteprio conjunto do real Eacute preciso algo como

um salto ontoloacutegico uma descida agrave profundidade uma funccedilatildeo de ruptura que com efeito

comeccedila pela redescoberta da memoacuteria das individualidades excepcionais pela partilha da

emoccedilatildeo criadora que persiste como brasa viva sob as cinzas das foacutermulas soacutelidas vaacutecuas e

resfriadas

O que as narrativas da violecircncia da violaccedilatildeo de direitos humanos e da destruiccedilatildeo

do homem permitem eacute precisamente um contato com essa massa indefiniacutevel de utopias que

natildeo satildeo senatildeo afetos elididos talvez jamais vividos por noacutes mesmos e cujo acesso atesta a

reemergecircncia de uma comunidade de eus profundos que se confunde agora com a proacutepria

vitalidade inorgacircnica com a qual se pode combater o fechamento Esse contato

inteiramente miacutestico pode ser involuntaacuterio inconsciente e erraacutetico devido a uma atmosfera

emotiva incendiaacuteria mas tambeacutem pode ser suscitado e revivificado por contiacutenuos esforccedilos

e labores da reminiscecircncia

Como sopros que buscam reavivar uma pequena incandescecircncia sob as cinzas as

narrativas da violecircncia podem pelo simboacutelico pela linguagem ou pela inteligecircncia dar

acesso agravequilo que engendrou todos os seus signos uma emoccedilatildeo criadora profunda que

pode ser revivificada uma exigecircncia de criaccedilatildeo capaz de reabrir o fechado de produzir

uma pulsatildeo transicional coletiva de recolocar a totalidade das estruturas poliacutetico-juriacutedicas

e das formas decantadas de laccedilo social sob a clareira do porvir que se insinua no aberto

Eis no sentido mais social e mais superficial a funccedilatildeo das memoacuterias-lembranccedila das

memoacuterias-signo das narrativas coletivas que ela pode engendrar e que tambeacutem podem

encontrar na arte um ponto de apoio e de fabulaccedilatildeo em comum235

tais produtos poreacutem

natildeo seratildeo mais do que o representante superficial social simboacutelico e inteligiacutevel de uma

235

ldquoA utopia natildeo eacute um bom conceito haacute antes uma lsquofabulaccedilatildeorsquo comum ao povo e agrave arte Seria preciso

retomar a noccedilatildeo bergsoniana de fabulaccedilatildeo para dar-lhe um sentido poliacuteticordquo (DELEUZE 2008 p 215)

267

emoccedilatildeo mais profunda que os engendra e que pode ser sempre recuperada e reavivada sob

as cinzas do fechamento

Essas questotildees sendo simples natildeo mereceratildeo uma resposta menos sutil Tomemos

ldquomemoacuteriardquo e ldquotransiccedilatildeordquo em qualquer sentido como nos aprouver e nos veremos forccedilados

a afirmar que a memoacuteria eacute condiccedilatildeo da transiccedilatildeo em cada um dos niacuteveis em que a

apreendamos ndash pois eacute a totalidade da memoacuteria e da duraccedilatildeo que se atualiza em cada um

desses niacuteveis coexistentes entre si Isso equivale a dizer que natildeo haacute transiccedilatildeo sem memoacuteria

na mesma medida em que natildeo haacute memoacuteria sem transiccedilatildeo ndash a ontologia da duraccedilatildeo natildeo

cessa de implicaacute-las ao infinito ndash uma no tempo do devir outra no registro do passado que

o fundamenta e abrindo-o o torna possiacutevel

No interior da Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo a centralidade aparente desse

argumento tatildeo simples contrasta com a dificuldade de conduzi-lo a seu proacuteprio limite

conceitual ndash o que procuramos realizar a partir do bergsonismo e da renovada atualidade

das traduccedilotildees poliacuteticas que ele tem recebido nos uacuteltimos anos Todo exerciacutecio social

poliacutetico e puacuteblico de memoacuteria deveraacute encontrar daqui por diante sua fundamentaccedilatildeo no

aberto e nos devires que apenas a memoacuteria pode liberar Eacute apenas mediatamente que a

memoacuteria satisfaz funccedilotildees cognitivas ou praacuteticas ndash como as de compreender o presente em

funccedilatildeo do passado reformar as instituiccedilotildees purgar violadores de direitos humanos dos

aparatos de Estado etc Essas natildeo passam de transcriccedilotildees intelectuais praacuteticas e poliacuteticas ndash

essenciais sem duacutevida agraves transiccedilotildees como agrave vida em comum ndash de uma necessidade

ontoloacutegica virtual e mais profunda que conviria pressentir

Na medida em que a memoacuteria funda o devir e o abre em uma regiatildeo do atual natildeo

haacute memoacuteria que natildeo se defina em funccedilatildeo da potecircncia que ela encerra para o porvir por

essa razatildeo natildeo deve haver transiccedilatildeo que natildeo se defina em funccedilatildeo do aberto ndash e bem assim

da democracia e dos direitos humanos que o aberto supotildee como suas efetuaccedilotildees estruturais

ndash como natildeo deveraacute haver transiccedilatildeo que natildeo se defina em funccedilatildeo da liberdade e da

memoacuteria ndash em cada um dos seus niacuteveis de coexistecircncia ndash que uma atualizaccedilatildeo poliacutetica do

aberto envolve como uma nuvem de virtuais potentes o bastante para rachar qualquer

cristal de tempo

268

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Toda pesquisa estabelece-se em desafio ao lacunar e ao problemaacutetico Eis o

horizonte de sentido que melhor definiria os esforccedilos que envidamos a fim de contribuir

com a Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo contemporacircnea ndash campo de elaboraccedilatildeo teoacuterica

relativamente recente e por isso mesmo portador de uma undertheorized nature que lhe eacute

constitutiva Nessas linhas esse campo teoacuterico foi interrogado a partir de uma perspectiva

que julgamos ser essencial e definidora da integral de seus horizontes conceituais o

questionamento aberto e radical do sentido da transiccedilatildeo a partir de uma relaccedilatildeo constante

identificada entre seus modernos teoacutericos entre memoacuteria e efetuaccedilatildeo da transiccedilatildeo

Tratou-se pois natildeo apenas de penetrar o territoacuterio movediccedilo variaacutevel e por isso

nem sempre seguro de um campo conceitual e semacircntico em franca e permanente

elaboraccedilatildeo foi preciso engendraacute-lo em seus proacuteprios termos e em seus aspectos

definidores mais gerais Por essa razatildeo foi necessaacuterio que o constituiacutessemos a partir de sua

articulaccedilatildeo geneacutetica com o Direito Internacional dos Direitos Humanos

Nessa oportunidade pocircde-se identificar uma reciacuteproca constitutividade entre o

Direito Internacional dos Direitos Humanos e a Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo que se

definiria em pelo menos dois sentidos (1) Do ponto de vista normativo segundo o qual o

Direito Internacional dos Direitos Humanos determina um quadro deocircntico universal

flexiacutevel delimitando as grandes estruturas geralmente reconhecidas como objetivos

inerentes agrave Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo justiccedila reparaccedilatildeo reformas institucionais e

purgas direito agrave memoacuteria e agrave verdade (2) Do ponto de vista de sua gecircnese histoacuterica

reciacuteproca as experiecircncias transicionais internacionais ndash especialmente do poacutes-Segunda

Guerra ndash constituiacuteram elementos determinantes natildeo apenas da superaccedilatildeo do referencial

estatalista da proteccedilatildeo e promoccedilatildeo dos direitos humanos tais experiecircncias transicionais ndash

que se confundem historicamente com os tribunais de Nuremberg e Toacutequio no acerto de

contas poacutes-Segunda Guerra ndash foram precursoras do estabelecimento de uma base

normativa internacional de promoccedilatildeo e proteccedilatildeo dos direitos humanos ao mesmo tempo

em que constituiacuteam em si mesmas concretizaccedilotildees praacuteticas das primeiras iniciativas

internacionalistas no campo da Justiccedila de Transiccedilatildeo

A determinaccedilatildeo da gecircnese reciacuteproca entre o Direito Internacional dos Direitos

Humanos e a Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo ndash que muito antes de formar um corpo teoacuterico

no qual veio a resultar deve seu nascimento agraves praacuteticas empiacutericas e tateantes de tribunais

269

internacionais e domeacutesticos ndash conduziu-nos a qualificaacute-la a partir dos signos caracteriacutesticos

inerentes aos proacuteprios direitos humanos os paradoxos e os duplos que atravessam por suas

praacuteticas imanentes e gramaacuteticas de resistecircncia democraacutetica Marcada por esses signos a

Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo podia entatildeo ainda nos quadros de uma norma internacional

de transiccedilatildeo delimitada por seus teoacutericos ostentar a qualidade liminar de um direito-entre

regimes enfocando-se seu marco teoacuterico de um ponto de vista predominantemente

estrutural de modo a privilegiar o papel dessa doutrina na delimitaccedilatildeo das transformaccedilotildees

institucionais que devem ser promovidas em contextos de fluxo poliacutetico Nesse terreno

permitimo-nos uma breve incursatildeo em um tema que natildeo constituindo nosso objeto

primordial tem recebido uma atenccedilatildeo cada vez mais intensa dos pesquisadores das

Ciecircncias Poliacuteticas Sociais e Juriacutedicas o caso brasileiro de transiccedilatildeo Com efeito esse

pequeno desvio nos servia para demonstrar concretamente a qualidade liminar dos direitos

de transiccedilatildeo quando compreendidos como processos de longa duraccedilatildeo ainda para colocar

agrave prova as premissas segundo as quais uma norma global internacional sustenta as

operaccedilotildees transicionais em relaccedilatildeo ao desafio por elas lanccedilado agrave continuidade de praacuteticas

instituiccedilotildees e modos de vida e de pensamento forjados sob um regime antidemocraacutetico e

autoritaacuterio

Apenas na medida em que o campo teoacuterico da Justiccedila de Transiccedilatildeo pocircde ser

delimitado em suas linhas mais gerais e imediatamente pragmaacuteticas foi possiacutevel produzir a

excisatildeo temaacutetica ndash e a um soacute tempo problemaacutetica ndash que constituiu o leitmotiv da presente

tese A fim de definir o horizonte de aparecimento da relaccedilatildeo entre memoacuteria e transiccedilatildeo

era necessaacuterio atravessar trecircs etapas demonstrativas (1) prolongar a linha geneacutetica que

atestava a constitutividade reciacuteproca entre o Direito Internacional dos Direitos Humanos e

a Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo derivando o perfil normativo miacutenimo dos direitos agrave

memoacuteria e agrave verdade bem como sua aparente correlaccedilatildeo em face dos objetivos

institucionais transicionais (justiccedila reparaccedilatildeo reformas purgas etc) isso permitiu

entrever ainda de um ponto de vista meramente pragmaacutetico a relaccedilatildeo proacutexima entre o

binocircmio memoacuteria-verdade e a implementaccedilatildeo dos objetivos inerentes agraves transiccedilotildees

democraacuteticas (Capiacutetulo 3 sect 1) (2) determinar de que modo a Teoria da Justiccedila de

Transiccedilatildeo apropriou-se do conceito de memoacuteria nesse sentido foi possiacutevel delimitar os

contornos do conceito de memoacuteria no campo teoacuterico transicional a partir de dois limites

analiacuteticos Trata-se de um conceito de memoacuteria limitado ora a suas funccedilotildees cognitivo-

pragmaacuteticas ora confinado no interior de uma ontologia de tipo negativo que converte a

memoacuteria em representaccedilatildeo do ausente negando-a como regiatildeo do existente (Capiacutetulo 3 sect

270

2) e (3) a partir da constante relaccedilatildeo entre memoacuteria e transiccedilatildeo verificada na literatura da

Justiccedila de Transiccedilatildeo demonstrou-se que natildeo apenas a memoacuteria aparece como conceito

central agraves transiccedilotildees mas que a ela se atribuem potenciais transformativos ou

transcicionais Ao mesmo tempo uma lacuna teoacuterica foi verificada nesse particular jamais

ficava claro como os teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo puderam atribuir potenciais

transicionais agrave memoacuteria Eis aliaacutes a circunstacircncia que justifica a relativa extensatildeo deste

trabalho quando o problema que desafia a pesquisa eacute lacunar significa que ele natildeo estaacute

previamente dado mas precisa ser estabelecido em relaccedilatildeo com o campo de saberes no

qual encontra seu horizonte de emergecircncia Ao mesmo tempo em que a Teoria da Justiccedila

de Transiccedilatildeo elide a interrogaccedilatildeo ldquocomo a memoacuteria pode ser condiccedilatildeo agraves transiccedilotildeesrdquo ou

ldquoem que sentido a memoacuteria pode conter potenciais transicionais transformativosrdquo ela

mesma prenuncia o sentido de sua evoluccedilatildeo teoacuterica em relaccedilatildeo ao conceito de memoacuteria Jaacute

natildeo se trata mais de pensar uma memoacuteria coletiva ou nacional fixa construiacuteda como mera

representaccedilatildeo partilhada constitutiva de identidades de grupo nem mesmo de ceder agraves

tentaccedilotildees de reduzir a memoacuteria agraves lembranccedilas individuais e psicoloacutegicas diante das

recentes descobertas da neurociecircncia acerca dos processos dinacircmicos em que a aquisiccedilatildeo

de memoacuteria e sua evocaccedilatildeo estatildeo implicadas (Capiacutetulo 3 sect 3)

Os objetivos de nossa investigaccedilatildeo ganham sua coloraccedilatildeo a partir de uma questatildeo

que natildeo foi posta ndash mas parece estar em vias de secirc-lo ndash pelos teoacutericos da Justiccedila de

Transiccedilatildeo como conceituar a memoacuteria de um ponto de vista dinacircmico que natildeo a faccedila

retornar aos limites da memoacuteria meramente individual Como explicar ndash epicentro

problemaacutetico de nossa tese ndash os potenciais transformativos da memoacuteria uma vez que ela

natildeo passaria de um conceito tendencialmente representativo e fixista na Teoria da Justiccedila

de Transiccedilatildeo

A fim de responder a essas questotildees nossa hipoacutetese principal eacute a de que seria

necessaacuterio estabelecer uma integraccedilatildeo das diversas camadas de memoacuteria descritas pelos

teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo sob a epiacutegrafe de um conceito de memoacuteria mais

compreensivo alicerccedilado sobre uma ontologia positiva Assim abandonamos o ponto de

vista estaacutetico e estrutural que caracterizava o olhar da Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo sobre

o problema em proveito de uma perspectiva dinacircmica na qual se pudesse apreender a

gecircnese dos potenciais transformativos da memoacuteria integrando os conceitos heterogecircneos

de memoacuteria ao conceito bergsoniano de memoacuteria A essa elaboraccedilatildeo dedicamos todo o

plexo conceitual articulado a partir da filosofia de Henri Bergson sem descurar da

271

literatura secundaacuteria que se dedicou modernamente a esclarecer pontos esfumados no

interior do bergsonismo (Partes II e III)

No interior de sua ontologia virtual buscamos demonstrar progressivamente a

consistecircncia real do passado evitando confundir ser e ser-presente (Capiacutetulo 4) atingimos

a elaboraccedilatildeo de um conceito de memoacuteria elementar dinacircmica duracional e impessoal ndash

liberada dos imperativos individuais ndash demonstrando o sentido de afirmaacute-la como

fundamento do tempo (Capiacutetulo 5) Assim procuramos demonstrar de que maneira o

conceito bergsoniano de memoacuteria poderia constituir uma resposta possiacutevel ao apelo por

uma memoacuteria dinacircmica e ao mesmo tempo natildeo meramente psicoloacutegica ou individual

que proveacutem da Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo Nesse sentido era inerente agrave demonstraccedilatildeo

do conceito refazer um longo percurso pelo qual Bergson chega agrave siacutentese de dois registros

ontoloacutegicos diversos ndash o atual e o virtual ndash iniciando-o pela demonstraccedilatildeo do sentido e da

realidade do tempo (Capiacutetulo 4 sect 2) bem como da realidade do passado (Capiacutetulo 4 sect 3)

de forma que se pudesse apresentar o gesto bergsoniano de imanecircncia em toda a sua

extensatildeo a duraccedilatildeo como um tempo de coexistecircncia entre registros ontoloacutegicos

pertencentes a uma mesma estrutura de realidade (Capiacutetulo 5 sectsect 1 e 2)

Tudo isso foi necessaacuterio para demonstrar de que forma Bergson estabelece a

imprescindibilidade da memoacuteria agrave transiccedilatildeo real236

ndash compreendida nesse ponto como

transiccedilatildeo ontoloacutegica como diferenccedila e como variaccedilatildeo nos registros do virtual e do atual

Em outras palavras era preciso demonstrar detalhadamente de que maneira uma memoacuteria

ontoloacutegica elementar e impessoal constitui a condiccedilatildeo para abrir o tempo presente o

registro do atual ao devir (Capiacutetulo 5 sect 3) Chegaacutevamos assim ao nuacutecleo ontoloacutegico no

qual todas as outras camadas de memoacuteria vecircm envolver-se

Eacute apenas na medida em que estabelecemos um fundo ontoloacutegico no qual memoacuteria

presente e devir (transiccedilatildeo) encontram-se rearticulados de acordo com uma temporalidade

de coexistecircncias ndash assegurada em uacuteltima anaacutelise por uma memoacuteria virtual elementar e

impessoal que funda a coexistecircncia de todos os fluxos bem como lhes doa seus diferentes

niacuteveis de realidade ndash que poderiacuteamos retornar progressivamente ao campo de interesse

mais imediato das doutrinas transicionais

Les Deux Sources de la Morale et de la Religion eacute o campo privilegiado em que

Bergson reencontraraacute sob novas determinaccedilotildees problemaacuteticas morais sociais e poliacuteticas

236

Interrogaccedilatildeo como vimos muito cara aos teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo ndash embora jamais detalhada em

sua dinacircmica constituinte ndash na medida em que as praacuteticas transicionais natildeo satildeo meramente formais mas

alteram a ordem do real

272

o eacutelan vital ndash potecircncia criadora que coincide como vimos com a duraccedilatildeo e a vida

consistente em uma gigantesca memoacuteria cosmoloacutegica virtual e vital Eis a fonte

bergsoniana da evoluccedilatildeo das formas de vida entre as quais encontramos os elementos

instituais adormecidos a inteligecircncia e as vagas franjas de intuiccedilatildeo que permitem

determinar a forma de vida inerente agrave espeacutecie humana

Eacute em funccedilatildeo dessa forma de vida definida por seus delineamentos bioloacutegicos que

Bergson explicaraacute as tendecircncias de fechamento que rondam o social a partir do vital eacute

tambeacutem a partir de uma pequena fenda no ciacuterculo da espeacutecie ndash as franjas de intuiccedilatildeo ndash que

se poderaacute constituir o aberto natildeo apenas como o sentido da superaccedilatildeo do proacuteprio homem

em seus horizontes antropoloacutegicos especiacuteficos e bioloacutegicos mas engendrar outras formas

de vida e de sociabilidade poliacutetica na contracorrente das tendecircncias naturais ao

fechamento agrave guerra e agrave inteligecircncia

A memoacuteria no sentido ontoloacutegico ou do proacuteprio eacutelan vital natildeo cessa de ser

evocada como o esteio de todo potencial transformativo A um soacute tempo ontoloacutegica e

virtual dinacircmica e natildeo-psicoloacutegica ela eacute a fonte originaacuteria que faz passar um pouco de

tempo indeterminaccedilatildeo e liberdade pelo interior das formas de vida que como o proacuteprio

advento da evoluccedilatildeo provaria natildeo estatildeo dadas todas de uma vez nem de uma vez por

todas Ontologicamente fora do possiacutevel ndash que natildeo passa de um olhar retrospectivo e

impotente sobre o jaacute realizado ndash a memoacuteria se define como memoacuteria que nunca foi

presente isto eacute memoacuteria para o futuro memoacuteria para o devir potecircncia ontoloacutegica

transicional Dela originam-se a transiccedilatildeo real e o movimento eacute artificial imaginaacute-los sem

referecircncia agrave temporalidade real Em uacuteltima anaacutelise suas virtualidades sustentam a integral

da realidade e a coexistecircncia dos fluxos atuais Eis o ponto em que o aspecto ontoloacutegico da

memoacuteria ao reabrir a potecircncia dos devires daacute a ver seu conteuacutedo imediatamente poliacutetico ndash

se por poliacutetica compreendermos as potecircncias de variaccedilatildeo das formas de vida em comum

modos de pensamento e sensibilidade

A memoacuteria eacute profundamente poliacutetica porque eacute tudo o que resta quando o atual

parece obturar o possiacutevel Quando as incandescecircncias do aberto parecem esfriar e fundir-se

novamente a um estado fechando-se sobre si mesmas ndash quando nenhuma alma parece

abrir-se na direccedilatildeo profunda do vital ndash resta apenas remexer as cinzas da memoacuteria das

personalidades excepcionais procurando fazer rescender o perfume do tempo O gesto

distraiacutedo ndash mas nem por isso inerme ou metafoacuterico ndash indica a potecircncia de ressonacircncia de

uma intuiccedilatildeo que jaacute natildeo eacute atual e que definindo-se por sua virtualidade pode reabrir o

porvir a multidotildees inteiras Eis o que provava certa fenomenologia bergsoniana da

273

revoluccedilatildeo que se perguntava ldquopor que decidimos certo dia que jaacute natildeo era mais toleraacutevel

morrer de fomerdquo

Se a alma aberta nunca estaacute dada de antematildeo pela natureza mas implica um esforccedilo

em um sentido determinado uma sociabilidade em profundidade (que chamamos

comunidade de eus profundos) e uma teoria da emoccedilatildeo criadora auxiliaram-nos a explicar

como o incendiaacuterio se propaga de alma em alma como uma intuiccedilatildeo miacutestica se comunica

em profundidade racha a superfiacutecie verminal dos eus sociais e coloca em xeque suas

formas de vida individuais e intersubjetivas (Capiacutetulo 6 sect 2 e sect 3)

O miacutestico eacute a prova atleacutetica de um contato possiacutevel com a vida em profundidade

Independente de todo conteuacutedo contingencial de crenccedila ele eacute definido como subjetividade

impessoal e nomaacutedica na medida em que toma contato com o princiacutepio criador e pode

fundar uma moralidade universal e concreta do aberto (Capiacutetulo 6 sect 3) O miacutestico resulta

como vimos (Capiacutetulo 6 sect 2) de duas linhas que se entrecruzam um salto inumano para

fora da espeacutecie (e do ciacuterculo antropoloacutegico que tende agrave inteligecircncia ao fechado agrave guerra e

agrave sociabilidade superficial) e uma comunidade de eus profundos ndash atmosfera em que uma

emoccedilatildeo criadora se expande e difunde com um potencial incendiaacuterio inconsciente e

virtual O miacutestico eacute portador de um amor ao Todo incapaz de conter-se nos ciacuterculos

preacutevios (amor agrave famiacutelia ao grupo agrave paacutetria) Esse amor absoluto que supera mesmo a

humanidade eacute o destino potencial encerrado pelo advento da democracia e dos direitos

humanos esse amor eacute o que estaacute sempre em jogo nas formas poliacuteticas

Se a democracia e os direitos humanos tendem ao aberto agrave construccedilatildeo de uma

moralidade concreta antinatural antagonista do fechado (Capiacutetulo 6 sect 1) eacute porque satildeo

frutos desses saltos miacutesticos inumanos (ou super-humanos) para fora das constriccedilotildees

bioloacutegicas definidas pelo ciacuterculo da espeacutecie Instituiccedilotildees democraacuteticas constituiratildeo nesse

sentido garantias que ao contraacuterio de representarem um refechamento do aberto fazem

permanecer aberto e fundam uma moral concreta universal (Capiacutetulo 6 sect 3) Do ponto de

vista do bergsonismo insistimos que estas seriam as metas de toda mutaccedilatildeo estrutural ou

institucional promovida por transiccedilotildees democraacuteticas abrir o fechado combater o

fechamento e perseverar no aberto isto eacute fornecer condiccedilotildees estruturais para potenciar as

formas de vida auxiliando que se precipitem no aberto Ama et fac quod vis

A relaccedilatildeo ontoloacutegica entre memoacuteria e devir assegura como demonstramos ao longo

da argumentaccedilatildeo (Partes II e III) todos os demais niacuteveis em que memoacuteria e transiccedilatildeo

podem ser apreendidos pela Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo ndash mesmo os niacuteveis mais

simboacutelicos ou pragmaacuteticos mesmo os conceitos mais psicoloacutegicos ou representativos

274

Nessa medida a memoacuteria tal como eacute conceituada pelo bergsonismo natildeo apenas condiz

com um conceito dinacircmico (registro contiacutenuo e incessante do fluir duracional) e natildeo-

individual ou psicoloacutegico mas integra outras transcriccedilotildees possiacuteveis no acircmbito do conceito

de memoacuteria como seus representantes de niacutevel psicoloacutegico simboacutelico ou pragmaacutetico No

limite as memoacuterias-lembranccedila individuais natildeo passam de um representante de niacutevel

psicoloacutegico e individual de uma memoacuteria virtual impessoal ontoloacutegica e mais profunda a

memoacuteria coletiva tomada em sentido dinacircmico soacute aparece como representaccedilatildeo da

identidade de grupos na medida em que seja apreendida da perspectiva de seu fechamento

ndash e bem o sabemos que o amor agrave paacutetria agrave comunidade ou agrave famiacutelia nada mais satildeo do que

representantes dessa tendecircncia natural ao fechamento social que Bergson combateu

Por essa razatildeo por mais heterogecircneos pragmaacuteticos ou cognitivos que sejam os

contornos do conceito de memoacuteria no campo teoacuterico da Justiccedila de Transiccedilatildeo o problema

que as transiccedilotildees poliacuteticas interpelam a partir da memoacuteria eacute sempre ldquocomo efetuar o

abertordquo Ainda que as narrativas e fabulaccedilotildees introduzam ndash por comodidade ou convenccedilatildeo

ndash um magical switch pelo qual o redentor sublima o traacutegico pudemos compreender em

profundidade que toda forma de exerciacutecio da memoacuteria em qualquer niacutevel ndash embora nem

sempre suficiente para explicar a dinacircmica de seus potenciais transicionais ndash constitui um

gesto potencial pelo qual remexendo as cinzas do passado poderemos colocar novamente

sob o influxo do aberto as formas de vida e pensamento individuais sociais e poliacuteticos na

contracorrente de sua estagnaccedilatildeo em uma eacutetica da violecircncia e da repeticcedilatildeo obsedante de

um passado antidemocraacutetico que resultam de seu abandono agraves pulsotildees naturais de

fechamento e de guerra Eis em que sentido a memoacuteria ndash ponto de fissura pelo qual o

aberto e a proacutepria duraccedilatildeo se infiltram ndash longe de assegurar pura e simplesmente a natildeo-

repeticcedilatildeo torna-se a sua condiccedilatildeo ontoloacutegica imprescindiacutevel

Se devecircssemos resumir tudo em uma palavra a memoacuteria eacute tudo o que resta quando

o possiacutevel jaacute natildeo socorre com suas miragens o que um presente tem de intoleraacutevel Todo

potencial poliacutetico encerrado pela fabulaccedilatildeo da memoacuteria em todo e qualquer niacutevel reside

nessa virtugrave obscura agrave inteligecircncia mas capaz de abrir o fechado de combatecirc-lo na

experiecircncia concreta e de perseverar no aberto Se natildeo haacute transiccedilatildeo sem memoacuteria eacute porque

eacute de seu impulso ontoloacutegico e vital em termos muito compreensivos que procede toda

transiccedilatildeo genuiacutena eacute de seu fundo virtual e ao mesmo tempo real que suas linhas de

efetuaccedilatildeo procedem e que derivam outros devires A insistecircncia da memoacuteria no real

equivale em tudo agrave persistecircncia sombria inaparente e selvagem das potecircncias inorgacircnicas

de uma vida

275

REFEREcircNCIAS

A) Documentos citados sobre Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo e Direito Internacional

dos Direitos Humanos

ABRAtildeO Paulo A lei de anistia no Brasil as alternativas para a verdade e a justiccedila

Acervo v 24 n 1 janjun 2011 Rio de Janeiro 2011 p 119-138

_____ PAYNE Leigh A TORELLY Marcelo D Anistia na era da responsabilizaccedilatildeo o

Brasil em perspectiva internacional e comparada Comissatildeo de Anistia Ministeacuterio da

Justiccedila Brasiacutelia 2011

_____ _____ _____ A anistia na era da responsabilizaccedilatildeo contexto global comparativo

e introduccedilatildeo ao caso brasileiro In ABRAtildeO Paulo PAYNE Leigh A TORELLY

Marcelo D Anistia na era da responsabilizaccedilatildeo o Brasil em perspectiva internacional e

comparada Comissatildeo de Anistia Ministeacuterio da Justiccedila Brasiacutelia 2011 p 18-31

_____ TORELLY Marcelo D As dimensotildees da Justiccedila de Transiccedilatildeo no Brasil a eficaacutecia

da Lei de Anistia e as alternativas para a verdade e a justiccedila In _____ PAYNE Leigh A

TORELLY Marcelo D Anistia na era da responsabilizaccedilatildeo o Brasil em perspectiva

internacional e comparada Comissatildeo de Anistia Ministeacuterio da Justiccedila Brasiacutelia 2011 p

212-248

_____ GENRO Tarso Os direitos da transiccedilatildeo e a democracia no Brasil estudos sobre

justiccedila de transiccedilatildeo e teoria da democracia Coleccedilatildeo Justiccedila e Democracia v 1 Belo

Horizonte Editora Foacuterum 2012

ABrsquoSAacuteBER Tales Brasil a ausecircncia significante poliacutetica (uma comunicaccedilatildeo) In

SAFATLE Vladimir TELES Edson (Orgs) O que resta da ditadura a exceccedilatildeo

brasileira Satildeo Paulo Boitempo 2010 p 187-202

ALMEIDA Guilherme Assis de Direitos Humanos e natildeo-violecircncia Satildeo Paulo Atlas

2001

_____ A Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos de 1948 matriz do Direito

Internacional dos Direitos Humanos In ALMEIDA Guilherme Assis de PERRONE-

MOYSEacuteS Claacuteudia (Orgs) Direito internacional dos direitos humanos Satildeo Paulo Atlas

2002 p 13-23

_____ PERRONE-MOYSEacuteS Claacuteudia (Orgs) Direito internacional dos direitos

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AMBOS Kai The legal framework of transitional justice a systematic study with a

special focus on the role of the ICC In AMBOS et al (eds) Building a future of peace

and justice studies on transitional justice peace and development Berlin Heidelberg

Springer-Verlag 2009 p 19-103

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2009

ANISTIA INTERNACIONAL Informe 2010 o estado dos direitos humanos no mundo

New York 2010

_____ Informe 2011 o estado dos direitos humanos no mundo New York 2011

_____ Informe 2012 o estado dos direitos humanos no mundo New York 2012

_____ Informe 2013 o estado dos direitos humanos no mundo New York 2013

ARANTES Paulo Eduardo 1964 o ano que natildeo terminou In SAFATLE Vladimir

TELES Edson (Orgs) O que resta da ditadura a exceccedilatildeo brasileira Satildeo Paulo

Boitempo 2010 p 205-236

AVELAR Idelber Alegorias da derrota A ficccedilatildeo poacutes-ditatorial e o trabalho do luto na

Ameacuterica Latina Traduccedilatildeo de Saulo Gouveia Belo Horizonte Editora da UFMG 2003

BARSALOU Judy BAXTER Elizabeth The urge to remember the role of memorials in

social reconstruction and transitional justice United States Institute of Peace Stabilization

and Reconstruction Series No 5 January 2007 Disponiacutevel em lt

httpwwwusiporgfilesresourcessrs5pdfgt Acesso em 31mai2013

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Paris Presses Universitaires de France 2012

_____ Bergson ou os dois sentidos da vida Traduccedilatildeo de Aristoteles Angheben Predebon

Satildeo Paulo FAPUNIFESP 2011

_____ Ce qui est vital dans LrsquoEacutevolution Creacuteatrice In WORMS Freacutedeacuteric FAGTO-

LARGEAULT Anne (Egraveds) Annales bergsoniennes IV LrsquoEacutevolution creacuteatrice 1907-2007

eacutepistemologie et meacutetaphysique Paris Presses Universitaires de lsquoFrance 2009 p 641-652

_____ Introduction agrave Matiegravere et Meacutemoire de Bergson Suivie drsquoune bregraveve introduction

aux autres livres de Bergson Paris Presses Universitaires de France 1997

_____ Preacutesentation In _____ (Eacuted) Annales bergsoniennes V Bergson et la politique de

Jauregraves agrave aujourdrsquohui Paris Presses Universitaires de France 2012 p 29-34

ZANFI Caterine Le sujet en socieacuteteacute chez Bergson du moi superficiel agrave la socieacuteteacute

ouverte In WORMS Freacutedeacuteric (Eacuted) Annales bergsoniennes V Bergson et la politique de

Jauregraves agrave aujourdrsquohui Paris Presses Universitaires de France 2012 p 223-243

C) Textos citados publicados em jornais perioacutedicos e sites

BRUNO Caacutessio GOacuteES Bruno Comemoraccedilatildeo de militares termina em pancadaria no

centro do Rio Rio de Janeiro 29032012 Disponiacutevel em

lthttpogloboglobocompaiscomemoracao-de-militares-termina-em-pancadaria-no-

centro-do-rio-4446158ixzz1qXWTOUrNgt Acesso em 15mai2013

COLETIVO QUEM Quem torturou Disponiacutevel em

lthttpquemtorturouwordpresscomgt Acesso em 15032013

EFE Paiacuteses da ONU recomendam fim da Poliacutecia Militar no Brasil Jornal Folha de Satildeo

Paulo 30 mai 2012 Cotidiano Disponiacutevel em

lthttpwww1folhauolcombrcotidiano1097828-paises-da-onu-recomendam-fim-da-

policia-militar-no-brasilshtmlgt Acesso em 13 mai 2013

LEVANTE POPULAR DA JUVENTUDE Levante popular da juventude Disponiacutevel em

lt httpwwwlevanteorgbrgt Acesso em 15032013

WEISSHEIMER Marco Aureacutelio Levante Popular da Juventude quer renovar praacuteticas da

esquerda Carta Maior Satildeo Paulo 22102012 Disponiacutevel em

lthttpwwwcartamaiorcombrtemplatesmateriaMostrarcfmmateria_id=21117gt

Acesso em 15mai2013

Page 3: MEMÓRIA E JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO: UM ESTUDO À LUZ DA … · 2014. 2. 21. · evocada em um dos textos de Lembrar, escrever, esquecer (GAGNEBIN, 2006, p. 47), consiste na nota fundamental

MEMOacuteRIA E JUSTICcedilA DE TRANSICcedilAtildeO

UM ESTUDO Agrave LUZ DA FILOSOFIA DE HENRI BERGSON

por

MURILO DUARTE COSTA CORREcircA

Tese aprovada como requisito parcial para obtenccedilatildeo do grau de Doutor em Filosofia e Teoria

Geral do Direito no Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Direito da Faculdade de Direito da

Universidade de Satildeo Paulo pela comissatildeo formada pelos seguintes professores

Orientador Prof Dr Guilherme Assis de Almeida

Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Direito USP

Membro Profordf Associada Elza da Cunha Pereira Boiteux

Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Direito USP

Membro Profordf Associada Deisy de Freitas Lima Ventura

Instituto de Relaccedilotildees Internacionais USP

Membro Prof Titular Joseacute Antocircnio Peres Gediel

Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Direito UFPR

Membro Prof Dr Eladio Constantino Pablo Craia

Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia PUC-PR

Satildeo Paulo _______ de ________________ de 2013

para Maria

devoraccedilotildees para outros devires

4

AGRADECIMENTOS

A experiecircncia da escrita eacute uma espeacutecie de atletismo que cria um pedaccedilo de concreto

ao mesmo tempo em que interroga os limites das forccedilas imaginativas e conceituais em

relaccedilatildeo a ele Essa pequena passagem que se tentou produzir dos ldquoafetos da ordemrdquo para

ldquouma outra ordem dos afetosrdquo teria sido ndash senatildeo impossiacutevel ndash por certo vatilde sem os

encontros intensivos que a experiecircncia de escrevecirc-la proporcionou Essas pequenas

devoraccedilotildees de Bergson teriam sido muito menos saborosas sem a presenccedila doce de minha

amada Maria Fernanda Battaglin Loureiro a quem dedico cada uma dessas ndash por vezes

longas hermeacuteticas e com sorte voluntariosamente joycianas ndash linhas Agrave sua companhia

amaacutevel e inquieta dedico tambeacutem tantas outras ndash todas as outras ndash porque natildeo se escreve

se natildeo for para penetrar o amor com a alma e a alma com o amor

Agrave minha famiacutelia (Mirian Camile) e agrave famiacutelia de Maria (Ceacutelia Wilson Otaacutevia

Joatildeo) agradeccedilo por toda amabilidade e aconchego de sempre pelas conversas de almoccedilos

de domingo Estar com vocecircs eacute sempre domingo

Ao orientador deste trabalho Prof Dr Guilherme Assis de Almeida agradeccedilo pela

orientaccedilatildeo mas sobretudo pela inspiraccedilatildeo que representa raro professor digno de

admiraccedilatildeo por aliar erudiccedilatildeo criativa sensibilidade teoacuterica e preocupaccedilatildeo concreta com a

efetividade dos direitos humanos ndash marca indeleacutevel de sua orientaccedilatildeo da qual este trabalho

natildeo poderia pretender ser mais do que um singelo legado

Ao Professor Associado Eduardo Carlos Bianca Bittar agradeccedilo por ter me

apresentado ao Prof Guilherme mas tambeacutem pela atenccedilatildeo que sempre dispensou a minhas

duacutevidas e inquietaccedilotildees teoacuterias tambeacutem por toda a Teoria e Criacutetica dos Direitos Humanos

que aprendi consigo ndash aprendizado indispensaacutevel agrave formulaccedilatildeo dos problemas que se

seguem

Agrave Professora Associada Elza da Cunha Pereira Boiteux agradeccedilo pelas aulas pelo

apoio e pelo incentivo nesses anos de doutorado Sobretudo pelo exemplo de simplicidade

sensibilidade e saber

Aos Professores Associados Samuel Barbosa e Deisy Ventura agradeccedilo por todas

as sugestotildees e por todo o auxiacutelio que na etapa de qualificaccedilatildeo deste trabalho foram

determinantes para o seu aperfeiccediloamento

Agrave Professora Associada do Departamento de Antropologia Social da Universidade

de Satildeo Paulo Fernanda Arecircas Peixoto agradeccedilo pela gentil acolhida por todas as

5

discussotildees francas sobre o sentido dos quadros socias da memoacuteria a partir de Halbwachs e

Bergson e por tudo o que pude aprender junto a suas aulas e aos colegas da poacutes-graduaccedilatildeo

em Antropologia em As Artes da Memoacuteria Algumas questotildees que a professora Fernanda

nos franqueou satildeo ao menos incidentalmente retomadas aqui

Agrave Professora Maria Adriana Camargo Capello da Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia da

UFPR renovo minha gratidatildeo por ter me conduzido aos fabulosos textos de Bergson em

2009 Ainda que insensivelmente ela e o amigo Marcelo Barbosa satildeo tambeacutem credores

desses aprofundamentos na filosofia bergsoniana da diferenccedila

Ao Prof Dr Eladio Constantino Pablo Craia do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em

Filosofia da PUC-PR pela amizade simples e leve pelos cafeacutes e pela conversa infinita e

para sempre inacabada sobre a Filosofia Francesa Contemporacircnea suas consequecircncias

ontoloacutegicas e poliacuteticas Sobretudo por sua atenciosa e sempre enriquecedora

disponsibilidade em ler alguns dos originais

Ao Prof Titular da Faculdade de Direito da UFPR Joseacute Antonio Peres Gediel

meus agradecimentos e minha admiraccedilatildeo por ter sido um dos mais eruditos professores de

meus tempos de graduaccedilatildeo por ainda hoje servir-me de exemplo de que o rigoroso e

radical questionamento do Direito se faz com um peacute dentro dele e com outros dois fora

Tambeacutem por aceitar com generosidade minhas participaccedilotildees sempre descontiacutenuas em seu

grupo de pesquisas sobre o corpo

Aos amigos Abili Laacutezaro Castro de Lima Alexandre Morais da Rosa Benedito

Costa Bruno Cava Cleverson Leite Bastos Christina Miranda Ribas Cristiano Knapp

Deisy Ventura Eduardo Sterzi Felipe Augusto Vicario de Carli Gabriel Merheb Petrus

Gilson Bonato Giuseppe Cocco Guilherme Roman Borges Gustavo Chaves Heloiacutesa

Fernandes Cacircmara Idelber Avelar Joseacute Roberto Vieira Laurent de Sutter Leonardo

DrsquoAacutevila de Oliveira Maria de Faacutetima S Tecchio Miguel Gualano de Godoy Paacutedua

Fernandes Ricardo Prestes Pazello e Verocircnica Stigger agradeccedilo pelas amizade e pelas

oportunidades formais e informais de discussatildeo de alguns desses estudos e ideias Aos

alunos orientandos e professores da Faculdade de Direito da Universidade Estadual de

Ponta Grossa agradeccedilo pela presenccedila geradora de ideias alegres e inconstantes Estas

paacuteginas tambeacutem satildeo dedicadas a vocecircs

6

O tempo insiste porque existe

um tempo que haacute de vir

Vinicius de Moraes

7

RESUMO

O presente estudo tem por objeto investigar a gecircnese dos potenciais

transformativos geralmente atribuiacutedos agrave memoacuteria pelos modernos teoacutericos da Justiccedila de

Transiccedilatildeo A partir de sua relaccedilatildeo geneacutetica com o Direito Internacional dos Direitos

Humanos elucidaram-se os contornos do conceito de memoacuteria na Teoria da Justiccedila de

Transiccedilatildeo demonstrando-se tanto a centralidade da memoacuteria na efetuaccedilatildeo das praacuteticas

transicionais como uma constante atribuiccedilatildeo de potenciais transformativos agrave memoacuteria

Uma vez diagnosticada a lacunaridae dessa relaccedilatildeo ndash jamais explicada em sua dinacircmica

proacutepria entre os teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo ndash formulou-se a hipoacutetese de que um

conceito ontoloacutegico dinacircmico e metaindividual de memoacuteria tal como registrado pela

filosofia de Henri Bergson poderia abranger os heterogecircneos conceitos de memoacuteria dos

teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo com a vantagem analiacutetica de permitir integrar a lacuna

teoacuterica encontrada explicando-se como se podem atribuir potenciais transicionais agrave

memoacuteria Para tanto foi necessaacuterio demonstrar que a filosofia bergsoniana da duraccedilatildeo

instaura um viacutenculo entre ontologia e poliacutetica duraccedilatildeo real memoacuteria e variaccedilatildeo das formas

de vida Em seguida buscamos derivar dessa ontologia poliacutetica bergsoniana as

consequecircncias subjetivas morais e institucionais correlatas a dois grandes referenciais que

Bergson e a Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo possuem em comum a democracia e os direitos

humanos Dessa forma pretendeu-se estabelecer um problema ainda natildeo investigado no

acircmbito da Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo e oferecer-lhe uma soluccedilatildeo original agrave luz de sua

interlocuccedilatildeo com a filosofia de Henri Bergson seu conceito de memoacuteria e suas

implicaccedilotildees poliacuteticas

Palavras-chave Memoacuteria Justiccedila de Transiccedilatildeo Henri Bergson

8

ABSTRACT

The present essay aims to investigate the genesis of transformative potencies

generally assigned to memory by modern Transitional Justicersquos theorists Starting on its

genetic relationship with International Human Rights Law this essay have clarified the

patterns of memory in Transitional Justice proving the central role played by memory in

the field of transitional practices as well as it has demonstrated the constant assignment of

transformative potencies to memory Once established these patterns this study diagnosed

a theoretical gap on connecting memory and transition on Transitional Justice theory

Therefore according to our hypothesis an ontological dynamic and meta-individual

concept of memory as registered on Bergsonrsquos philosophy would comprehend

Transitional Justicersquos heterogenic notions of memory and could go far beyond them By

this mean we were able to fulfill the theoretical gap encountered in order to clarify how is

possible to assign transitional potencies to memory Thus this study demonstrates that

Bergsonrsquos durational philosophy promotes a connection between ontology and politics

real duration memory and variation of ways of life Afterwards we derivated from that

bergsonian political ontology subjective moral and institutional consequences related to

democracy and human rights ndash referrals that Bergson and Transitional Justicersquos theorists

have in common We have tried to establish a problem not yet investigated by Transitional

Justice Theory and offer a original solution to it since Henri Bergsonrsquos philosophy his

concept of memory and its political implications

Key-words Memory Transitional Justice Henri Bergson

9

SUMAacuteRIO

RESUMO 7

ABSTRACT 8

INTRODUCcedilAtildeO 11

PRIMEIRA PARTE

O ATUAL MEMOacuteRIA E TRANSICcedilAtildeO NA TEORIA DA JUSTICcedilA DE

TRANSICcedilAtildeO 15

CAPIacuteTULO 1 ndash A GEcircNESE DA TEORIA DA JUSTICcedilA DE TRANSICcedilAtildeO E O

DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS 16

CAPIacuteTULO 2 ndash DIREITO-ENTRE O JURIacuteDICO E AS INSTITUICcedilOtildeES NO SEIO DAS

TRANSICcedilOtildeES 30

sect 1 Direito instituiccedilotildees e transiccedilatildeo 30

sect 2 O que um passado tem de insuportaacutevel notas sobre a continuidade do passado no

presente a partir do caso brasileiro 37

CAPIacuteTULO 3 ndash O CONCEITO DE MEMOacuteRIA NA TEORIA DA JUSTICcedilA DE

TRANSICcedilAtildeO 46

sect 1 Memoacuteria verdade e Direito Internacional dos Direitos Humanos 49

sect 2 Os contornos do conceito de memoacuteria no campo transicional 53

sect 3 A centralidade da memoacuteria e seus potenciais transformativos 64

SEGUNDA PARTE

O VIRTUAL A IDEIA DE MEMOacuteRIA NA FILOSOFIA DE HENRI BERGSON 84

CAPIacuteTULO 4 ndash UM SALTO NO VIRTUAL DO SER PRESENTE AO SER DO

PASSADO 85

sect 1 Bergsonismo muacuteltiplas entradas 88

sect 2 Duraccedilatildeo o sentido e a realidade do tempo 97

sect 3 Do ser presente ao ser do passado 110

CAPIacuteTULO 5 ndash MEMOacuteRIA FUNDAMENTO DO TEMPO 126

sect 1 O problema do reconhecimento o ceacuterebro e as duas memoacuterias 127

sect 2 Coexistecircncias a consistecircncia virtual da memoacuteria 141

sect 3 O ser do passado como fundamento do tempomemoacuteria repeticcedilatildeo e devir 157

TERCEIRA PARTE

LINHAS DE ATUALIZACcedilAtildeO BERGSON O ABERTO E A TRANSICcedilAtildeO 168

CAPIacuteTULO 6 ndash O ABERTO E A JUSTICcedilA DE TRANSICcedilAtildeO DEMOCRACIA E

DIREITOS HUMANOS 169

sect 1 O fechado o social e o vital 172

sect 2 Abrir o fechado ruptura e devir 198

10

sect 3 Perseverar no abertotransiccedilatildeo democracia e direitos humanos 214

sect 4 Retornar ao concretomemoacuteria e justiccedila de transiccedilatildeo 251

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 268

REFEREcircNCIAS 275

11

INTRODUCcedilAtildeO

ldquoSua narrativa afirma que o inesqueciacutevel existerdquo A frase de Krikor Beledian

evocada em um dos textos de Lembrar escrever esquecer (GAGNEBIN 2006 p 47)

consiste na nota fundamental que percorre todas essas paacuteginas por ressonacircncia ou

incandescecircncia Ela eacute seu princiacutepio de impureza e contaminaccedilatildeo No entanto ela eacute lida a

partir de uma forma de exerciacutecio quase patoloacutegico do pensamento eacute dizer ela eacute lida

literalmente levada ao limite de sua proacutepria expressatildeo ao limiar do que Beledian talvez

jamais quisera dizer ao enunciaacute-la

Assim afirmar que o inesqueciacutevel existe torna-se natildeo uma tarefa essencial poliacutetica

e eacutetica sem gloacuteria do historiador que luta contra a repeticcedilatildeo do horror Ela eacute isso mas eacute

mais que isso A afirmaccedilatildeo de que o inesqueciacutevel existe eacute aqui assumida como um iacutendice

de positividade instaurador de um limiar significante a partir do qual jaacute natildeo parece mais tatildeo

absurdo afirmar a realidade ou o ser da memoacuteria Ela eacute o inesqueciacutevel ndash mas tambeacutem a

obscura espectral e ativa presenccedila do imemorial

As paacuteginas que se seguem consistem pois em uma maacutequina de produzir essa

afirmaccedilatildeo ldquoo inesqueciacutevel existerdquo Jaacute natildeo se trata de algo que desejando-o natildeo queremos

esquecer mas de um apelo agrave compreensatildeo da memoacuteria como uma regiatildeo do existente do

real Isso implica recusar toda estrateacutegia de reduccedilatildeo do conceito de memoacuteria a seus

aspectos de lembranccedila individual ou psicoloacutegica de representaccedilatildeo coletivamente

partilhada fundadora de identidades de grupo ou de forma vazia e ontologicamente

negativa de representificaccedilatildeo de algo ausente O passado nesse caso seria apenas o que

natildeo eacute mais o futuro o que natildeo eacute ainda

Nesse sentido as formulaccedilotildees modernas e contemporacircneas da Teoria da Justiccedila de

Transiccedilatildeo1 satildeo mobilizadas como campo teoacuterico e problemaacutetico concreto a partir do qual

essa recusa eacute colocada em jogo Contemplando praacuteticas institucionais e simboacutelicas a serem

efetuadas em momentos de fluxo poliacutetico (justiccedila reparaccedilatildeo reformas purgas etc) eacute nos

quadros da Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo que a memoacuteria aparece continuamente como

elemento chave para sua efetuaccedilatildeo Portanto eacute no seio da Justiccedila de Transiccedilatildeo que as

interrogaccedilotildees sobre uma memoacuteria despida de qualquer realidade podem adquirir contornos

metafiacutesicos mas tambeacutem poliacuteticos relacionados agrave constituiccedilatildeo de novas formas de vida

1 Paul Van Zyl (2009a p 32) define brevemente Justiccedila de Transiccedilatildeo como ldquoo esforccedilo para a construccedilatildeo da

paz sustentaacutevel apoacutes um periacuteodo de conflito violecircncia em massa ou violaccedilatildeo sistemaacutetica dos direitos

humanosrdquo

12

A dimensatildeo poliacutetica da memoacuteria na Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo constitui ainda

uma constante Comumente satildeo atribuiacutedos potenciais transformativos agrave memoacuteria de forma

que a veremos aparecer como uma espeacutecie de condiccedilatildeo (positiva ou negativa) sempre

ligada agrave efetuaccedilatildeo das transiccedilotildees reais O que permanece lacunar e sem explicaccedilatildeo ndash lacuna

que devemos demonstrar em detalhe ndash consiste justamente no aparente automatismo dessa

atribuiccedilatildeo No entanto como atribuir a um conceito individual os potenciais de produzir

mutaccedilotildees poliacuteticas de grande escala Como emprestar potenciais transformativos e

dinacircmicos a um conceito coletivo mas representativo e estaacutetico Como a contumaz faceta

ontoloacutegica negativa pela qual se pensa a memoacuteria ndash como conceito sem realidade proacutepria ndash

poderia engendrar as positividades que uma transiccedilatildeo real exige e nas quais ganha corpo

concreto Ao se fazer da memoacuteria uma espeacutecie de deus ex machina das transiccedilotildees reais

todas essas questotildees permaneceriam sem explicaccedilatildeo

Essa lacuna eacute progressivamente identificada e estabelecida a partir de uma

correlaccedilatildeo geneacutetica entre a moderna Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo e o Direito

Internacional dos Direitos Humanos Em seus quadros definimos estruturalmente as

formas e praacuteticas da Justiccedila de Transiccedilatildeo aprofundando-as progressivamente a fim de

esclarecer o sentido do binocircmio memoacuteria-verdade Ele nos forneceria a chave de

interrogaccedilotildees metaestruturais pelas quais poderemos estabelecer os contornos analiacuteticos do

conceito de memoacuteria tal como ele eacute heterogeneamente engendrado pelos teoacutericos da

Justiccedila de Transiccedilatildeo

Realizado esse percurso ao qual dedicamos a primeira parte deste trabalho

resultaria necessaacuterio interrogar de que maneira se poderia integrar a lacuna encontrada

pois natildeo conseguir explicar a origem dos potenciais transformativos da memoacuteria implica

expocirc-la ao risco poliacutetico de denegaacute-la impunemente ou de soldaacute-la acriticamente agraves

narrativas oficiais Ao mesmo tempo a lacuna uma vez estabelecida teria deixado exposto

e aberto o fundamento infundado dos potencias transicionais continuamente atribuiacutedos agrave

memoacuteria pela Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo

Poreacutem intuiccedilotildees preacute-conceituais e natildeo hegemocircnicas no campo teoacuterico da Justiccedila de

Transiccedilatildeo ofereceriam tendecircncias cujos devires poderiacuteamos amarrar integrando a um novo

e mais compreensivo conceito natildeo apenas as heterogecircneas camadas de memoacuteria elaboradas

pelos teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo mas tambeacutem oferecer uma contribuiccedilatildeo a este

campo teoacuterico e juriacutedico a partir de uma interlocuccedilatildeo com a filosofia de Henri Bergson

Poreacutem por que Bergson Eacute preciso explicar como o bergsonismo nos auxilia a

ldquoamarrar deviresrdquo conceituais que se insinuam a partir do proacuteprio marco teoacuterico da Justiccedila

13

de Transiccedilatildeo Ao longo do terceiro capiacutetulo registramos a apariccedilatildeo de duas noccedilotildees preacute-

conceituais de memoacuteria entre os teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo A primeira

reconceptualizava a memoacuteria como memoacuteria dinacircmica instaacutevel flexiacutevel a partir das

recentes descobertas das neurociecircncias sobre as funccedilotildees evolutivas e adaptativas da

memoacuteria (BARSALOU BAXTER 2007 p 04 PHELPS 2012 p 07 e NAGEL

SINOTT-ARMSTRONG 2012 p 05) A segunda conceituava a memoacuteria

independentemente dos referenciais da lembranccedila individual Cada uma dessas tendecircncias

de efetuaccedilatildeo do conceito precisaria cruzar-se com a outra a fim de produzir uma memoacuteria

ao mesmo tempo dinacircmica e emancipada dos referenciais meramente individuais No

entanto ateacute o presente a Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo natildeo conseguiu apreendecirc-la nesse

sentido Os autores que compreendem o sentido dinacircmico da memoacuteria ndash por influecircncia do

campo experimental das neurociecircncias ndash estabelecem o conceito a partir do campo das

memoacuterias individuais e psicoloacutegicas Os que engendram um conceito de memoacuteria que visa

a superar o campo individual ndash ainda que a qualifiquem vagamente como um ldquoprocessordquo

jamais detalhado ndash natildeo escapam ao fixismo e agrave loacutegica da representaccedilatildeo Aleacutem disso restara

em aberto determinar de que maneira se podem atribuir potenciais transformativos agrave

memoacuteria isto eacute o que justifica que ela apareccedila constantemente como elemento chave agrave

efetuaccedilatildeo das transiccedilotildees

Eacute no sentido de esclarecer esses dois problemas que mobilizamos a filosofia de

Henri Bergson (1) engendrar um conceito de memoacuteria mais compreensivo ao mesmo

tempo dinacircmico e emancipado de um referencial forccedilosamente individual promovendo

uma interlocuccedilatildeo interdisciplinar com sua filosofia a partir de problemas estabelecidos na

Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo (2) a partir do estabelecimento desse conceito ndash que

adquire em Bergson tonalidades ontoloacutegicas ndash trata-se de apresentar uma colaboraccedilatildeo

original para elucidar a gecircnese dos potenciais transformativos atribuiacutedos agrave memoacuteria nesse

campo teoacuterico afastando os riscos poliacuteticos inerentes agrave lacunaridade Esses objetivos

baseiam-se na hipoacutetese de que eacute necessaacuterio rearticular o conceito de memoacuteria na teoria da

Justiccedila de Transiccedilatildeo de um ponto de vista ontoloacutegico e ainda assim dinacircmico e natildeo

meramente individual ou psicoloacutegico a fim de explicar a relaccedilatildeo sempre solicitada mas

elidida entre memoacuteria e transiccedilatildeo

Por isso seraacute necessaacuterio reconstituir as linhas gerais da argumentaccedilatildeo de Bergson

sobre a memoacuteria compreendendo-a como uma ldquoregiatildeo do existenterdquo Essa memoacuteria ndash

dando consistecircncia agrave afirmaccedilatildeo de que ldquoo inesqueciacutevel existerdquo ndash seraacute qualificada como o

virtual um dos registros que juntamente com o atual consistem nas duas metades que

14

compotildeem uma mesma estrutura do real para Bergson Enquanto o atual apareceraacute soldado

ao espaccedilo e agrave inteligecircncia ndash embora continuamente variaacutevel em funccedilatildeo do tempo ndash o

virtual designa a duraccedilatildeo real potecircncia de variaccedilatildeo das formas inorgacircnicas orgacircnicas e

poliacuteticas Desse ponto de vista esclarecer de que forma a memoacuteria pode consistir em

fundamento do tempo eacute muito mais do que um exerciacutecio abstrato e metafiacutesico estabelececirc-

lo implica jaacute compreender em profundidade a partir do ser ndash que para dizecirc-lo em uma

palavra em Bergson confunde-se com o devir ndash a centralidade da memoacuteria como

elemento chave nas estrateacutegias genuinamente poliacuteticas para fender as camadas soacutelidas do

atual ou do presente Como natildeo seria esta precisamente a questatildeo uacuteltima de toda a Justiccedila

de Transiccedilatildeo ldquocomo reabrir o fechadordquo Como responder a ela evocando uma memoacuteria

fixa e representativa ou meramente dinacircmica e individual ndash ainda que conserve uma

natureza profundamente emocional (ELSTER 2003 p 11)

Toda a longa demonstraccedilatildeo que tem por objeto a filosofia bergsoniana articulada a

partir das relaccedilotildees entre memoacuteria e transiccedilatildeo em seus diversos niacuteveis de atualizaccedilatildeo (do

ontoloacutegico ao poliacutetico) envolve as diversas e heterogecircneas camadas de memoacuteria a partir de

um solo comum e imanente uma ontologia da memoacuteria capaz de explicar mesmo o ato

aparentemente mais individual ndash seja ele o ato de reminiscecircncia do vivido seja ele o ato de

liberdade que como veremos manteacutem uma relaccedilatildeo essencial com a memoacuteria no

bergsonismo

Nas linhas que se seguem a esta breve introduccedilatildeo seraacute preciso avaliar tambeacutem

como Bergson mobiliza seu conceito ontoloacutegico e potente de memoacuteria ndash que se confunde

com as virtualidades que produzem atualizaccedilotildees e variaccedilotildees contiacutenuas no Todo do real ndash a

fim de construir um viacutenculo agraves nossas vistas indissoluacutevel entre sua ontologia da memoacuteria

e a dimensatildeo da poliacutetica Como extensatildeo desse mesmo gesto seraacute preciso verificar de que

modo Bergson poderia auxiliar a lanccedilar luzes sobre os arcanos dos potenciais

transformativos da memoacuteria do ponto de vista da mutaccedilatildeo institucional e poliacutetica concreta

Nesse limiar envolvem-se os conceitos de aberto e transiccedilatildeo entrevistos a partir da

intuiccedilatildeo miacutestica e da emoccedilatildeo criadora como motores profundos das transiccedilotildees poliacuteticas

mas tambeacutem da constituiccedilatildeo de instituiccedilotildees democraacuteticas derivadas do apelo universal que

proveacutem dos Direitos Humanos capazes de nos permitir reabrir o fechado combater o

fechamento e perseverar no aberto (Terceira Parte)

15

PRIMEIRA PARTE

O atual memoacuteria e transiccedilatildeo na Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo

16

CAPIacuteTULO 1 ndash A GEcircNESE DA TEORIA DA JUSTICcedilA DE TRANSICcedilAtildeO

E O DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS

A literatura claacutessica da Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo ao registrar a longa histoacuteria

das experiecircncias juriacutedicas transicionais natildeo raro a faz remontar a periacuteodos arcaicos que se

confundem com as primeiras emergecircncias de uma forma democraacutetica de governo no

Ocidente Jon Elster (2006 p 17) o confirma ao assinalar que ldquoLa justicia transicional

democraacutetica es casi tan antigua como la democracia mismardquo

No entanto evitaremos recuar tatildeo intensamente Interessa-nos por ora avaliar

como o conceito de memoacuteria constroacutei-se como o epicentro da Teoria da Justiccedila de

Transiccedilatildeo bem como analisar sua heterogecircnea composiccedilatildeo nos estritos limites do marco

da produccedilatildeo teoacuterica que se seguiu ao fenocircmeno da internacionalizaccedilatildeo dos direitos

humanos trata-se portanto para o momento de esclarecer que elegemos como ponto focal

de nossa investigaccedilatildeo sobre o conceito de memoacuteria sua elaboraccedilatildeo na moderna Teoria da

Justiccedila de Transiccedilatildeo uma vez que desejamos avaliar a gecircnese reciacuteproca entre o processo

histoacuterico de internacionalizaccedilatildeo dos Direitos Humanos e a emergecircncia de uma doutrina

moderna da Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo erigida sobre fundamentos transnacionais

privilegiadamente ao longo da primeira metade do Seacuteculo XX Com isso pretendemos

demonstrar a impossibilidade de se compreender a moderna formulaccedilatildeo da Justiccedila de

Transiccedilatildeo dissociada dos processos que conduziram agrave adoccedilatildeo de mecanismos

internacionais de proteccedilatildeo e promoccedilatildeo dos direitos humanos especialmente no contexto

histoacuterico-poliacutetico e mundial que se seguiu agraves consequecircncias imprevistas que decorreram

das duas grandes guerras mundiais

O dia 4 de agosto de 1914 assinala o advento da I Guerra Mundial como o evento

explosivo que dilacerara a cena e a comunidade poliacutetica dos paiacuteses europeus Em um

cenaacuterio de inflaccedilatildeo destruiccedilatildeo da classe de pequenos proprietaacuterios e desemprego radical

assiste-se agrave paulatina migraccedilatildeo de compactos grupos humanos que natildeo eram bem-vistos ou

bem-vindos em lugar algum do continente Europeu Deixando seus Estados de origem

esses indiviacuteduos tornavam-se apaacutetridas inassimilaacuteveis e uma vez que perdiam seus

direitos seriam de agora em diante vistos por toda parte como ldquoo refugo da terrardquo

(ARENDT 2009 p 300) ndash expressatildeo que o jornal oficial das SS utilizava para qualificar

os judeus desnacionalizados em massa pelo III Reich entre os quais a proacutepria Arendt em

1933 apoacutes passar por um breve periacuteodo de encarceramento

17

No crepuacutesculo da Primeira Guerra Mundial assiste-se do ponto de vista

macropoliacutetico agrave raacutepida degradaccedilatildeo das estruturas despoacuteticas imperiais europeias Com ela

todas as nacionalidades efervescentes que se encontravam sob o manto imperial satildeo

violentamente liberadas das estruturas nacionais unitaacuterias que as submetiam e voltam-se

umas contra as outras eslovacos contra tchecos croatas contra seacutervios ucranianos contra

poloneses

Nesse cenaacuterio poliacutetico intensamente degradado os dois segmentos humanos que

mais sofreratildeo as consequecircncias dessa realidade dilacerante seratildeo os apaacutetridas e as minorias

que segundo Arendt (2009 p 302) ldquohaviam perdido aqueles direitos que ateacute entatildeo eram

tidos e ateacute definidos como inalienaacuteveis (Direitos do Homem)rdquo dado que jaacute natildeo dispunham

de governos nacionais proacuteprios que os representassem e protegessem ademais

encontravam-se forccedilados a viver sob as leis de exceccedilatildeo dos Tratados das Minorias que

praticamente todos os governos dos Estados sucessoacuterios haviam assinado sob protesto e

natildeo reconheciam como lei

As etnias minoritaacuterias e sem Estado logo veriam a precaacuteria condiccedilatildeo de cidadania

na qual se encontravam ser rapidamente assimilada agrave dos apaacutetridas Entre os anos de 1915

e 1935 mesmo naccedilotildees tradicionalmente reconhecidas pela defesa e proteccedilatildeo dos direitos

humanos ndash como Franccedila Beacutelgica Itaacutelia Aacuteustria e mais tarde Alemanha ndash editaram leis

que permitiram a desnaturalizaccedilatildeo e a desnacionalizaccedilatildeo massiva de cidadatildeos culminando

na lei de Nuremberg que distinguiria em 1935 entre cidadatildeos alematildees de pleno direito e

cidadatildeos sem quaisquer direitos poliacuteticos (AGAMBEN 1996 p 22)

De posse desse poderoso instrumento juriacutedico-poliacutetico que logo se converteria em

instrumento das poliacuteticas totalitaacuterias que faziam sua escalada global a situaccedilatildeo das

minorias e dos apaacutetridas ndash outrora excepcional ndash generaliza-se velozmente a tal ponto que

em certo momento diversos paiacuteses europeus possuiacuteam a capacidade juriacutedica de utilizaacute-lo

para se desfazerem de massas populacionais inteiras

Diante da incapacidade constitucional dos Estados europeus de protegerem os

Direitos Humanos daqueles que haviam perdido com a sua nacionalidade seus direitos de

cidadania a escala de valores dos paiacuteses totalitaacuterios passa a impor-se por toda a parte

Arendt registra que judeus ciganos e trotskistas eram recebidos como ldquoo refugo da terrardquo2

2 Eacute tambeacutem Arendt (2009 p 302) quem destaca a relaccedilatildeo entre os meios teacutecnico-juriacutedicos que tornavam a

desnacionalizaccedilatildeo de cidadatildeos indesejaacuteveis uma capacidade de diversos Estados europeus no periacuteodo do poacutes-

Primeira Guerra e a difusatildeo do antissemitismo a desnacionalizaccedilatildeo teria sido segundo Arendt o mais eficaz

instrumento de propagaccedilatildeo de valores antijudaicos ldquoO jornal oficial da SS o Schwartze Korps disse

explicitamente em 1938 que se o mundo ainda natildeo estava convencido de que os judeus eram o refugo da

18

aonde quer que fossem Mais do que uma tentativa alematilde de livrar-se dos judeus sua

perseguiccedilatildeo tinha o propoacutesito de espalhar o antissemitismo como um valor pelos paiacuteses

europeus democraacuteticos Esse tipo de propaganda segundo Arendt teria sido especialmente

eficaz porque sua retoacuterica intriacutenseca anulava a tese jusnaturalista iluminista e redentora

que advogava a existecircncia de direitos humanos inalienaacuteveis ao mesmo tempo em que

revelava a hipocrisia e a covardia dos paiacuteses democraacuteticos em relaccedilatildeo agrave proteccedilatildeo dos

direitos humanos

Segundo Arendt a desintegraccedilatildeo interna dos Estados-Naccedilatildeo observou-se a partir da

Primeira Guerra Mundial uma vez que os Tratados de Paz impostos aos Estados

sucessoacuterios geravam tensatildeo tanto entre as ldquominorias nacionaisrdquo quanto no acircmbito dos

novos Estados As minorias acreditavam-se injusticcediladas pela arbitrariedade dos Tratados

de Paz que contemplavam apenas a alguns povos com Estados enquanto sujeitavam os

demais agrave servidatildeo e agrave falta de autodeterminaccedilatildeo poliacutetica os Estados receacutem-criados por sua

vez viam os Tratados das Minorias como prova de discriminaccedilatildeo pois somente os Estados

sucessoacuterios restavam-lhes subordinados

Concebidos como um mecanismo de assimilaccedilatildeo das minorias agraves estruturas

sistemaacuteticas dos Estados-Naccedilatildeo a proteccedilatildeo dos Minority Treaties apenas alcanccedilava as

nacionalidades com certa densidade demograacutefica natildeo sendo aplicaacutevel a todas as minorias

ndash as quais foram deixadas sem governo proacuteprio e completamente agrave margem do direito No

entanto os povos contemplados com Estados ainda que politicamente majoritaacuterios

padeciam de certa fraqueza numeacuterica e cultural diante da vultosa diversidade das minorias

nem os Tratados das Minorias tampouco a Liga das Naccedilotildees puderam contudo evitar que

as minorias nacionais fossem assimiladas mais ou menos agrave forccedila agraves estruturas dos Estados

sucessoacuterios

Ignorando completamente a Liga das Naccedilotildees e buscando solucionar de forma

autocircnoma o seu problema de autodeterminaccedilatildeo poliacutetica ndash inencontraacutevel no seio dos

Estados sucessoacuterios ndash as minorias organizam-se ao redor do Congresso dos Grupos

Nacionais Organizados nos Estados Europeus Uma vez que todas as nacionalidades

aderiram ao Congresso terminaram por superar em nuacutemero os povos estatais ainda o

Congresso dos Grupos Nacionais representava uma forma de organizaccedilatildeo que ultrapassava

os tratados da Liga das Naccedilotildees na medida em que estes ignoravam o caraacuteter interestatal

terra iria convencer-se tatildeo logo transformados em mendigos sem identificaccedilatildeo sem nacionalidade sem

dinheiro e sem passaporte esses judeus comeccedilassem a atormentaacute-los em suas fronteirasrdquo (Idem ibidem loc

cit)

19

das nacionalidades minoritaacuterias Isso colocava em xeque o princiacutepio territorial em que se

encontrava baseada a Liga ao mesmo tempo em que apressando sua superaccedilatildeo

antecipava o que viria a ser uma importante caracteriacutestica na gecircnese do Direito

Internacional dos Direitos Humanos no periacuteodo do Poacutes-Segunda Guerra Mundial a

superaccedilatildeo do princiacutepio territorial fiador do poder domeacutestico dos Estados-Naccedilatildeo gerador

da necessidade de deslocar a base normativa dos Direitos Humanos em direccedilatildeo a uma

fundamentaccedilatildeo que jaacute natildeo permanecesse confinada agraves estruturas meramente domeacutesticas ou

nacionais

Disseminados por todos os Estados sucessoacuterios alematildees e judeus dominaram

politicamente o Congresso deflagrando uma relaccedilatildeo colaborativa harmoniosa e suficiente

para manter a agremiaccedilatildeo coesa Em 1933 no entanto com a ascensatildeo de Hitler ao poder

na Alemanha a delegaccedilatildeo judaica exige uma moccedilatildeo congressual de protesto contra o

tratamento dispensado aos judeus pelo governo do III Reich Ao passo em que os alematildees

nacionalmente minoritaacuterios anunciam sua solidariedade agrave Alemanha nazista e conseguem o

apoio da maioria das naccedilotildees minoritaacuterias o antissemitismo floresce em todos os Estados

sucessoacuterios tendo por consequecircncia o abandono do Congresso dos Grupos Nacionais pela

delegaccedilatildeo judaica (ARENDT 2009 p 308)

A importacircncia dos Tratados das Minorias consistiu em terem sido os primeiros

documentos legais que reconheceram a existecircncia das minorias agrave margem do ordenamento

juriacutedico-poliacutetico como instituiccedilatildeo permanente necessitando de uma garantia adicional de

seus direitos Isso significou que se tornava expliacutecito o que ateacute entatildeo o sistema dos

Estados-Naccedilatildeo pregava apenas obscuramente por meio de suas praacuteticas ndash que apenas os

nacionais poderiam ser cidadatildeos efetivos que a lei de um paiacutes natildeo poderia ser responsaacutevel

por pessoas que de alguma forma resistiam agrave assimilaccedilatildeo Dessa forma o Estado passava

de instrumento da lei em instrumento da Naccedilatildeo muito antes de Hitler ter proclamado que

ldquoa lei eacute aquilo que eacute bom para o povo alematildeordquo ndash o desfecho previsiacutevel segundo Arendt

(2009 p 309) das estruturas de Estados-Naccedilatildeo que a forma constitucional de governo

travestiu por longo tempo em impeacuterio da lei

Os Tratados das Minorias visavam a assegurar aos povos nacionais ldquosem Estadordquo

uma garantia adicional de seus direitos ao passo em que estes de jure integravam o corpo

poliacutetico de determinado Estado As Naccedilotildees europeias tradicionais natildeo foram obrigadas a

aderir a eles na medida em que suas estruturas constitucionais jaacute se supunham edificadas

sobre a ideologia da proteccedilatildeo dos direitos do homem distintamente do que acontecia agraves

recentes naccedilotildees sucessoacuterias das quais se exigia proteccedilatildeo adicional agraves minorias

20

Por longo tempo considerado apenas uma anomalia legal desprovida de

importacircncia o apaacutetrida recebeu atenccedilatildeo muito tardia quando sua posiccedilatildeo legal foi tambeacutem

aplicada aos refugiados expulsos de seus paiacuteses e desnacionalizados pelos vitoriosos nas

revoluccedilotildees Na eacutepoca que precedeu a Segunda Guerra a desnacionalizaccedilatildeo em massa

constituiacutea um fenocircmeno novo e imprevisto pressupunha uma estrutura estatal que ou era

totalitaacuteria ou jaacute demonstrava completa incapacidade de tolerar oposiccedilatildeo tanto que em

Origens do Totalistarismo Arendt (2009 p 312) sente-se tentada a ldquomedir o grau de

infecccedilatildeo totalitaacuteria de um governo pelo grau em que usa o soberano direito de

desnacionalizaccedilatildeo []rdquo

Com a insidiosa multiplicaccedilatildeo do nuacutemero de apaacutetridas o direito de asilo ndash ateacute

entatildeo siacutembolo dos direitos do homem (ALMEIDA 2001 p 85-96) ndash eacute abolido praacutetica e

tacitamente No mesmo sentido a Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem nunca fora

incorporada agrave legislaccedilatildeo interna de nenhum Estado-Naccedilatildeo ateacute este momento Os refugiados

tornam-se um problema pois ao mesmo tempo em que os Estados natildeo conseguiam

desvencilhar-se deles tambeacutem natildeo desejavam tornaacute-los cidadatildeos Constatava-se o

esgotamento das alternativas tradicionais como a repatriaccedilatildeo ou a naturalizaccedilatildeo As

pessoas sem Estado por sua vez insistiam em suas nacionalidades e resistiam agrave

assimilaccedilatildeo por quaisquer outras naccedilotildees

Fracassadas as tentativas de repatriaccedilotildees e naturalizaccedilotildees os apaacutetridas

encontravam-se gravados com uma espeacutecie de condiccedilatildeo de indeportabilidade que logo se

tornaria regra nos campos de concentraccedilatildeo e extermiacutenio (ARENDT 2009 p 317) Um

homem sem Estado era uma anormalidade um fenocircmeno imprevisto que natildeo gozava de

qualquer posiccedilatildeo apropriada na estrutura da lei em geral Ficava pois agrave mercecirc da poliacutecia

que natildeo hesitava em perpetrar ilegalidades para diminuir o nuacutemero de indeacutesirables em seu

paiacutes expulsando-os contrabandeando-os para paiacuteses vizinhos ndash e estes natildeo hesitavam em

retribuir o gesto do mesmo modo Eclodiam conflitos entre poliacutecias transfronteiriccedilas

cresciam as sentenccedilas de prisotildees de apaacutetridas falhavam todas as tentativas internacionais

de estabelecer alguma condiccedilatildeo de legalidade para as massas de povos sem Estado Assim

os campos de internamento tornavam-se o uacutenico substitutivo de uma paacutetria e

generalizavam-se progressivamente como soluccedilatildeo para displaced people

Os mecanismos de naturalizaccedilatildeo falharam a priori frente agrave virtual demanda de

naturalizaccedilatildeo em massa ndash mas sua ineficaacutecia deveu-se tambeacutem agrave circunstacircncia de que os

povos sem Estado tampouco viam grande vantagem na naturalizaccedilatildeo ndash jaacute que os

naturalizados eram frequentemente ameaccedilados com a desnacionalizaccedilatildeo e com a

21

consequente privaccedilatildeo de direitos O apaacutetrida sem direito de residir ou trabalhar era

obrigado a viver constantemente fora da lei embora por sua condiccedilatildeo estivesse sujeito ao

encarceramento sem ter jamais cometido um crime ldquoUma vez que ele constituiacutea a

anomalia natildeo-prevista na lei geral era melhor que se convertesse na anomalia que ela

previa o criminosordquo afirma Arendt (2009 p 319)3 Ao passo em que campos de

concentraccedilatildeo satildeo progressivamente criados em praticamente todos os paiacuteses o mundo

europeu civilizado e livre passa a articular-se com o plexo de valores e a legislaccedilatildeo dos

paiacuteses totalitaacuterios por meio das poliacutecias nacionais que se implantariam em prol da

Seguranccedila Nacional

O que o cenaacuterio europeu do entreguerras colocava em xeque era precisamente a

categoacuterica pretensatildeo expressa na Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo do fim

do seacuteculo XVIII que a um soacute tempo erigia o homem agrave condiccedilatildeo de fonte e objetivo dos

Direitos do Homem aos quais emprestava as qualidades de direitos inalienaacuteveis

irredutiacuteveis recebidos por nascimento e indedutiacuteveis de outros direitos ou de outra

autoridade diversa da natureza humana Tais direitos eram constantemente invocados para

garantir certas prerrogativas dos sujeitos em face do arbiacutetrio dos Estados soberanos sendo

tal soberania proclamada em nome de um conceito abstrato de Homem4 impossiacutevel de ser

apreendido senatildeo diluiacutedo no conceito deveras geral de povo o qual teria direito a um

autogoverno soberano Nesse ponto Hannah Arendt identifica o paradoxo jaacute enunciado na

declaraccedilatildeo de direitos referida a um homem abstrato destacado de todo contexto social ou

comunitaacuterio que compunha o povo de um Estado-Naccedilatildeo associando-se a proteccedilatildeo dos

direitos humanos agrave soberania nacional

Giorgio Agamben (1996 p 24) renova a criacutetica arendtiana ao identificar o que

reputa ser a real funccedilatildeo biopoliacutetica da Declaraccedilatildeo de Direitos de 1789 inscrever a vida nua

natural na ordem juriacutedico-poliacutetica do Estado-Naccedilatildeo5 Agamben diagnostica a ambiguidade

3 Arendt (2009 p 320) diagnostica que ldquoA melhor forma de determinar se uma pessoa foi expulsa do acircmbito

da lei eacute perguntar se para ela seria melhor cometer um crime Se um pequeno furto pode melhorar a sua

posiccedilatildeo legal pelo menos temporariamente podemos estar certos de que foi destituiacuteda dos direitos humanos

Pois o crime passa a ser entatildeo a melhor forma de certa igualdade humana mesmo que ela seja reconhecida

como exceccedilatildeo agrave norma O fato ndash importante ndash eacute que a lei prevecirc essa exceccedilatildeordquo 4 Abstraccedilatildeo constitutiva do conceito moderno de homem ou de natureza humana jaacute denunciada e natildeo sem

ironia por espiacuteritos poliacuteticos tatildeo heterogecircneos como os de Edmund Burke (1820) em seu ldquoReflections on the

Revolution in Francerdquo e Karl Marx (2010) em ldquoSobre a questatildeo judaicardquo Sobre o primeiro conferir ainda

(ARENDT 2009 p 333-336) e para um breve comentaacuterio sobre o segundo ver tambeacutem (DOUZINAS

2000 p 371) 5 ldquoQuella nuda vita (la creatura umana) che nellrsquoAncien Reacutegime apparteneva a Dio e nel mondo classico

era chiaramente distinta (come zoeacute) dalla vita politica (bios) entra ora in primo piano nella cura dello Stato e

diventa per cosigrave dire il suo fondamento terreno Stato-nazione significa Stato che fa della nativitagrave della

nascita (cioegrave della nuda vita umana) il fondamento della propria sovranitagraverdquo (AGAMBEN 1996 p 24)

22

expressa pelo tiacutetulo da Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo em

que natildeo fica claro se ldquoHomemrdquo e ldquoCidadatildeordquo nomeiam duas realidades distintas ou se ao

reveacutes formam uma diacuteade na qual o primeiro termo (ldquoHomemrdquo) eacute apenas o conteuacutedo do

segundo (ldquoCidadatildeordquo)

O liame entre princiacutepios de natividade e da soberania restaria claro na medida em

que a aquisiccedilatildeo dos direitos humanos por nascimento (art 1ordm) aparece condicionada agrave

formaccedilatildeo de uma associaccedilatildeo poliacutetica soberana (arts 2ordm e 3ordm) capaz de garantir sua eficaacutecia

por meio do emprego da forccedila puacuteblica (art 12) instituiacuteda em benefiacutecio de todos6 A raiz

etimoloacutegica latina comum a natio e nascere confirmaria ainda uma vez e de um ponto de

vista genealoacutegico o fenocircmeno do nascimento como a fundamentaccedilatildeo uacuteltima dos Estados-

Naccedilatildeo O que Arendt enxergava como a diluiccedilatildeo da condiccedilatildeo humana concreta na

antropologia filosoacutefica universal e abstrata do iluminismo moderno e em sua reduccedilatildeo

poliacutetica ao conceito de povo constituiria mais profundamente segundo Agamben a

fundamentaccedilatildeo da soberania nacional moderna erigida sobre o que Arendt chamava ldquovida

nua naturalrdquo

Condicionou-se a visatildeo da humanidade como uma famiacutelia de naccedilotildees de forma que

o povo e natildeo o homem representava a imagem do homo cujos direitos eram garantidos

pela Declaraccedilatildeo identificando direitos do homem e direitos dos povos no sistema europeu

de Estados-Naccedilatildeo Com o aparecimento crescente de pessoas e povos cujos direitos natildeo

eram salvaguardados por essa sistemaacutetica os Direitos do Homem ndash supostamente

inalienaacuteveis ndash mostravam-se inexequiacuteveis sempre que surgiam pessoas que natildeo eram

cidadatildes de qualquer Estado soberano (ARENDT 2009 p 327)

A perda da proteccedilatildeo do governo significava a um soacute tempo a perda da condiccedilatildeo de

legalidade em seu paiacutes ndash e em qualquer outro paiacutes Trata-se da degradaccedilatildeo uacuteltima do direito

a ter direitos que decorre natildeo da perda do direito agrave vida agrave liberdade ou agrave propriedade mas

do fato de existirem sujeitos que natildeo pertenciam a qualquer comunidade que se

encontravam em um limiar de absoluta indiferenccedila juriacutedica A lei tornava-se um

mecanismo de produccedilatildeo de indiferenccedila legal incapaz de imaginaacute-los sequer como sujeitos

6 Os dispositivos referidos integram a Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo de 1789

In verbis Artigo I ldquoLes hommes naissent et demeurent libres et eacutegaux en droits Les distinctions sociales ne

peuvent ecirctre fondeacutees que sur lrsquoutiliteacute communerdquo artigo II ldquoLe but de toute association politique est la

conservation des droits naturels et imprescriptibles de lrsquohomme Ces droits sont la liberteacute la proprieacuteteacute la

sucircreteacute et la reacutesistance agrave lrsquooppressionrdquo artigo III ldquoLe principe de toute Souveraineteacute reacuteside essentiellement

dans la Nation Nul corps nul individu ne peut exercer drsquoautoriteacute qui nrsquoen eacutemane expresseacutementrdquo artigo XII

ldquoLa garantie des droits de lrsquoHomme et du Citoyen neacutecessite une force publique cette force est donc institueacutee

pour lrsquoavantage de tous et non pour lrsquoutiliteacute particuliegravere de ceux auxquels elle est confieacuteerdquo Disponiacutevel em

lthttpwwwassemblee-nationalefrhistoiredudh1789aspgt Acesso em 11 maio 2013

23

sem espessura O que tornava todos os residentes dos campos intrinsecamente mataacuteveis foi

a criaccedilatildeo preteacuterita de uma condiccedilatildeo de completa privaccedilatildeo de direitos que se manifestava

segundo Arendt (2009 p 330) ldquona privaccedilatildeo de um lugar no mundo que torne a opiniatildeo

significativa e a accedilatildeo eficazrdquo7

O paradoxo praacutetico dos direitos humanos na modernidade encontra-se logo

enunciado quando os direitos do homem deveriam socorrer aquele que perdeu todo o

status poliacutetico e qualquer outra qualidade ndash exceto a de ser unicamente humano ndash a

estrutura juriacutedico-poliacutetica dos Estados-Naccedilatildeo europeus determinava que os direitos

humanos jaacute natildeo poderiam mais vir em seu socorro Precisamente essa lacuna ndash horizonte

natildeo de anomia mas de um direito que quedava absolutamente indiferente em relaccedilatildeo agrave

proteccedilatildeo e tutela da figura humana em seu estado puro e sem qualidades ndash constituiraacute uma

das forccedilas motrizes da gecircnese reciacuteproca da refundamentaccedilatildeo dos direitos humanos e da

emergecircncia de praacuteticas de Justiccedila de Transiccedilatildeo Esse contexto relaciona-se com as praacuteticas

adotadas nos julgamentos de Nuremberg e Toacutequio de modo que as raiacutezes mais profundas

do processo moderno de internacionalizaccedilatildeo da Justiccedila de Transiccedilatildeo remontam aos marcos

histoacutericos e teoacutericos que determinaram a constituiccedilatildeo do proacuteprio Direito Internacional dos

Direitos Humanos (FUTAMURA 2008 p 30-51)

A situaccedilatildeo histoacuterica paradoxal que atravessou o entreguerras e atingiu o fim da

primeira metade do seacuteculo XX apoia-se na cesura ndash ainda natildeo completamente desaparecida

da realidade dos Estados-Naccedilatildeo ndash entre homem e cidadatildeo No interior dessa cesura Arendt

e Agamben viram tornar-se aparente o terriacutevel contraste entre o idealismo iluminista

fundador dos Direitos Humanos inalienaacuteveis ndash contido nas declaraccedilotildees liberal-burguesas e

na filosofia moral kantiana na qual estas se inspiraram ndash e a existecircncia de seres humanos

sem direito algum que ao serem privados do direito a ter direitos (ARENDT 2009 p

330) tornavam-se o refugo da terra e no plano de suas concretas existecircncias colocavam

em xeque a validade e a universalidade dos direitos inerentes a uma descarnada condiccedilatildeo

humana

O diagnoacutestico de Arendt estabelecido sobre a desarticulaccedilatildeo entre a vida nua

natural de homens desprovidos de toda condiccedilatildeo de legalidade e sua condiccedilatildeo de

cidadania soacute permitia compreender certa natureza humana e metafiacutesica como o elemento

evanescente do cidadatildeo nacional ndash este sim uacutenica condiccedilatildeo do laccedilo juriacutedico-poliacutetico capaz

7 De acordo com Arendt (2009 p 330) ldquoSoacute conseguimos perceber a existecircncia de um direito a ter direitos (e

isto significa viver em uma estrutura onde se eacute julgado pelas accedilotildees e opiniotildees) e de um direito de pertencer a

algum tipo de comunidade organizada quando surgiram milhotildees de pessoas que haviam perdido esses

direitos e natildeo podiam recuperaacute-los devido agrave nova situaccedilatildeo poliacutetica globalrdquo

24

de assegurar a algueacutem o direito a ter direitos no contexto europeu do entreguerras Foi

precisamente essa desarticulaccedilatildeo entre homem e cidadatildeo que tornou juridicamente

possiacutevel ou ao menos indiferente a praacutetica de descartabilidade de seres humanos nos

campos de concentraccedilatildeo e extermiacutenio

Diante disso a reaccedilatildeo de uma miacutetica ldquoconsciecircncia universalrdquo teria orquestrado no

poacutes-Segunda Guerra a refundamentaccedilatildeo dos direitos humanos sob uma base normativa

internacional dotando-os progressivamente de instrumentos de controle de monitoramento

e de mecanismos de promoccedilatildeo e proteccedilatildeo visando a solucionar o paradoxo diagnosticado

por Arendt por intermeacutedio da superaccedilatildeo do modelo westfaliano de normas de muacutetua

abstenccedilatildeo na dinacircmica relacional dos Estados-Naccedilatildeo (LAFER 2008 p 297) Eis o que

designa no periacuteodo do poacutes-1945 uma nova fase dos Direitos Humanos que compreende a

institucionalizaccedilatildeo da comunidade internacional e a criaccedilatildeo de novos documentos

internacionais ndash especialmente a partir do advento fundacional da Declaraccedilatildeo Universal

dos Direitos Humanos (ALMEIDA 2001 p 13-14)8 ndash mas tambeacutem desenvolve um

periacuteodo de crescente positivaccedilatildeo internacional ampliado com a ediccedilatildeo dos Pactos

Internacionais de Direitos Civis e Poliacuteticos e de Direitos Econocircmicos Sociais e Culturais

em 1966

Dezenas de documentos internacionais contemplando mecanismos de efetivaccedilatildeo e

proteccedilatildeo internacional dos Direitos Humanos seguem-se a 1966 consagrando-se na

Conferecircncia de Teeratilde de 1968 (art 13) a interdependecircncia e a indivisibilidade entre

Direitos Civis e Poliacuteticos e Direitos Econocircmicos Sociais e Culturais conquistada apoacutes

longas e difiacuteceis negociaccedilotildees multilaterais (DOUZINAS 2007 p 15) Do ponto de vista

da construccedilatildeo de um regime juriacutedico universal para os Direitos Humanos seu apogeu teria

sido a criaccedilatildeo do Tribunal Penal Internacional como mecanismo supraestatal e permanente

de tomada e prestaccedilatildeo de contas (AMBOS 2009 p 67-86)

A fim de compreender esse percurso histoacuterico Ruti Teitel (2003 p 70-71)

descreve a evoluccedilatildeo das praacuteticas da Justiccedila de Transiccedilatildeo ndash e a consequente formulaccedilatildeo

teoacuterica de que essas praacuteticas passaratildeo a depender ndash a partir de trecircs recortes histoacutericos9

Embora reconheccedila que as origens da moderna Justiccedila de Transiccedilatildeo remontam agrave Primeira

Guerra Mundial eacute apenas apoacutes a Segunda que ela se torna excepcional e atravessa um

processo de intensa internacionalizaccedilatildeo Uma segunda fase posterior ao fim da Guerra

8 Ver ainda nesse sentido (LAFER 2008 p 298) e ( PIOVESAN 2012 p 175)

9 Argumento genealoacutegico que poucos anos mais tarde reapareceraacute resumido em (TEITEL 2005 p 839-

840)

25

Fria emerge de forma associada agraves vagas democraacuteticas europeias que tecircm iniacutecio no ano de

1989 e que persistem ateacute o final do seacuteculo XX Uma terceira e uacuteltima fase relaciona-se

com as condiccedilotildees contemporacircneas de persistecircncia de conflitos que desenham as fundaccedilotildees

de um direito normalizado de violecircncia Em seu acircmbito Teitel afirma que a Justiccedila de

Transiccedilatildeo que dali emerge jaacute natildeo se filia pura e simplesmente ao internacionalismo ou agrave

construccedilatildeo dos Estados nacionais como resultou das duas primeiras fases mas parece

mover-se da exceccedilatildeo em direccedilatildeo agrave norma a fim de tornar-se o paradigma de todo o rule of

law

Se nos ativermos agrave descriccedilatildeo que Ruti Teitel realiza da primeira fase notaremos

que o julgamento de Nuremberg lanccedila luzes sobre a gecircnese conjunta de uma moderna

Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo e o fenocircmeno de internacionalizaccedilatildeo dos direitos humanos

no poacutes-Segunda Guerra Dessa perspectiva Nuremberg teria representado o triunfo da

Justiccedila de Transiccedilatildeo nos quadros do Direito Internacional dos Direitos Humanos (TEITEL

2003 p 70) ao mesmo tempo em que testemunhava o surgimento de um novo tipo de

ordem normativa poacutes-guerra ndash o que caracterizou por excelecircncia o turning point no

acircmbito do Direito Internacional (DOUZINAS 2007 p 21-22)

O julgamento de Nuremberg teria constituiacutedo um evento sem precedentes na

histoacuteria do Ocidente capaz de unir as duas pontas de uma longa histoacuteria dos combates

poliacuteticos em defesa dos Direitos Humanos de um lado a tradiccedilatildeo da duradoura histoacuteria do

universalismo humanista europeu ndash sumariada na reabilitaccedilatildeo do argumento jusnaturalista

no quadro legal internacional dos direitos humanos ndash e de outro a criaccedilatildeo de novas

categorias como a de crimes contra a humanidade agraves quais se chegava pelo

reconhecimento da forccedila vinculante do costume internacional dos paiacuteses cosidetti

civilizados orientados por princiacutepios universalmente reconhecidos pela Humanidade ndash

argumento costumeiro que foi capaz de suplantar os argumentos situacionistas dos

defensores dos agentes nazistas baseados no princiacutepio da ilegitimidade de tribunais de

exceccedilatildeo na impossibilidade de justiccedila retroativa no argumento poliacutetico do justiciamento

dos perdedores ou no demasiadamente juriacutedico argumento do estrito cumprimento do

dever legal e da adesatildeo das condutas dos agentes violadores de direitos humanos aos

princiacutepios e agraves formas de uma legalidade entatildeo vigentes no Estado alematildeo do III Reich

Ao criminalizarem as violaccedilotildees cometidas pelos Estados nos quadros de um

esquema universal de direitos os julgamentos do poacutes-Segunda Guerra forjaram natildeo apenas

um precedente excepcional mas tambeacutem constituiacuteram o legado formador da base dos

modernos direitos humanos (TEITEL 2000) Como reaccedilatildeo criacutetica agraves falhas dos

26

julgamentos nacionais predominantes no poacutes-Primeira Guerra ndash insuficientes para evitar a

carnificina que teria lugar algumas deacutecadas mais tarde ndash os tribunais de Nuremberg e

Toacutequio deslocaram os padrotildees nacionais canocircnicos em proveito de uma concepccedilatildeo

internacional de justiccedila

Esse deslocamento teve como consequecircncia a extensatildeo dos efeitos de

accountability (prestaccedilatildeo de contas) na direccedilatildeo da responsabilizaccedilatildeo criminal internacional

do Estado e de seus agentes envolvidos na perpetraccedilatildeo de crimes contra a humanidade

alcanccedilando servidores dos mais altos escalotildees do III Reich (TEITEL 2003 p 73) No

entanto esta viragem da Justiccedila de Transiccedilatildeo de fundamentaccedilatildeo nacional em direccedilatildeo a uma

ancoragem internacional natildeo permaneceu imune agraves criacuteticas de que Nuremberg seria uma

justificativa para a intervenccedilatildeo dos Aliados na Guerra ou agraves criacuteticas de que a justiccedila levada

a efeito por esse julgamento natildeo passaria de uma resposta legal internacional dirigida pela

lei do conflito

Especialmente sensiacutevel apoacutes a polarizaccedilatildeo poliacutetica decorrente do contexto da

Guerra Fria seu legado desenvolveu-se de modo que a forccedila de seu precedente contribuiu

com o incremento do Direito Internacional dos Direitos Humanos favorecendo a adoccedilatildeo

da Convenccedilatildeo para a Prevenccedilatildeo e Repressatildeo do Crime de Genociacutedio bem como para a

criaccedilatildeo do Tribunal Penal Internacional como uma de suas mais recentes consequecircncias

de modo que o periacuteodo do poacutes-guerra teria sido ldquoo apogeu da crenccedila do direito como um

instrumento de modernizaccedilatildeo do Estadordquo (TEITEL 2003 p 74)

As transiccedilotildees poliacuteticas que se verificam a partir dos anos 1980 nos paiacuteses do Cone

Sul entatildeo governados por juntas militares que se estabeleceram a partir de golpes de

Estado gerados no seio da polarizaccedilatildeo entre capitalistas e comunistas teriam sido algumas

das ondas concecircntricas desencadeadas pelo colapso da antiga Uniatildeo Sovieacutetica

O que prova o caraacuteter paradigmaacutetico do modelo de Justiccedila de Transiccedilatildeo de

Nuremberg segundo Ruti Teitel (2003 p 75) eacute que os paiacuteses do Cone Sul teriam

questionado em suas transiccedilotildees poliacuteticas em que medida se poderia aderir agravequele modelo

sendo duvidoso o ecircxito de transiccedilotildees baseadas em julgamentos internacionais optando-se

quando muito por deixaacute-los ao encargo domeacutestico Assim a modernizaccedilatildeo e a adoccedilatildeo de

uma forma de Estado de Direito (rule of law) teriam sido equacionadas com a instituiccedilatildeo

de tribunais e a promoccedilatildeo de julgamentos a fim de possibilitar as transiccedilotildees poliacuteticas e a

consequente legitimaccedilatildeo dos regimes sucessores

Apesar disso Teitel (2003 p 76) natildeo deixa de observar que ainda que os

julgamentos tenham sido majoritariamente domeacutesticos nas transiccedilotildees poacutes-Guerra Fria o

27

direito internacional natildeo deixou de desempenhar um papel construtivo fundado no

profundo e paradigmaacutetico horizonte de sentido instaurado por Nuremberg que definiu o

rule of law em termos universalizantes aplicado agora a contextos locais marcados por

uma ineacutedita tensatildeo entre responsabilizaccedilatildeo e anistia entre justiccedila e reconciliaccedilatildeo O

criteacuterio de justo passa a depender mais da singularidade do contexto poliacutetico transicional

que dos valores ideais do modelo de rule of law adotado tendo por consequecircncia a

emergecircncia de uma seacuterie de concepccedilotildees de justiccedila imperfeitas e parciais

Nos anos 1980 as praacuteticas da Justiccedila de Transiccedilatildeo e sua correspondente teoria

assumem uma postura questionadora em face do modelo de Nuremberg de modo que as

formas adotadas pelas transiccedilotildees singulares passam a ser intensamente condicionadas pelo

contexto poliacutetico singular ao qual se aplicam (TEITEL 2003 p 78) Os dilemas entre

justiccedila e verdade responsabilidade e reconciliaccedilatildeo seratildeo construiacutedos no corpo das

experiecircncias mais centradas em concepccedilotildees restaurativas e comunitaacuterias testemunhando

uma interaccedilatildeo complexa entre dimensotildees do universal do global e do local apesar de

revelarem uma abordagem mais limitada decorrente dessas tensotildees e da revivescecircncia dos

problemas da legitimidade e da soberania governamental domeacutestica (TEITEL 2003 p

89)

Ruti Teitel (2003 p 73) reconhece que a polarizaccedilatildeo macropoliacutetica gerada pela

Guerra Fria implicou a impossibilidade de universalizar o modelo da Justiccedila de Transiccedilatildeo

construiacutedo no poacutes-Segunda Guerra No entanto Teitel limita-se a afirmar que o modelo do

poacutes-guerra europeu possuiacutea um propoacutesito liberal acentuado e que o internacionalismo

contemporacircneo teria sido profundamente transformado pelos uacuteltimos desenvolvimentos da

globalizaccedilatildeo ndash particularidade que iria ao encontro do que descreve como a terceira fase

genealoacutegica em que diante de um contexto de fragmentaccedilatildeo e persistecircncia dos conflitos a

Justiccedila de Transiccedilatildeo deixaria de ser exceccedilatildeo e passaria a constituir a regra instauradora de

um novo paradigma do rule of law (TEITEL 2005 p 840) Nesse sentido a jurisprudecircncia

internacional atestaria a expansatildeo e a normalizaccedilatildeo do discurso humanitaacuterio de modo que

as fontes de legitimidade disponiacuteveis implicariam um continuum entre o local e o

transnacional

Recentemente o jurista grego Costas Douzinas (2007 p 29) demonstrou como a

retoacuterica dos direitos humanos pocircde ser generalizada e entregue a um uso paradoxal

especialmente a partir dos anos quarenta do seacuteculo XX No seio das batalhas ideoloacutegicas

que pautaram os anos de Guerra Fria os direitos humanos encontrar-se-iam subordinados

agraves prioridades poliacuteticas anticomunistas dos paiacuteses de capitalismo desenvolvido as quais

28

teriam terminado por submeter qualquer potencial emancipatoacuterio encerrado pelos

universais do Ocidente

A partir de 1989 o triunfo aparentemente definitivo dos valores humanitaacuterios natildeo

teria impedido uma recaptura constante da retoacuterica dos direitos humanos no interior do

eufemiacutestico vocabulaacuterio beacutelico das intervenccedilotildees humanitaacuterias lideradas pelos Estados

Unidos da Ameacuterica tampouco teria impedido o desenvolvimento da poliacutetica estadunidense

de ativo envolvimento em questotildees domeacutesticas segundo Douzinas

No interior do mesmo bloco histoacuterico Antonio Negri e Michael Hardt descrevem o

direito de intervenccedilatildeo baseado em uma moralidade que se representa como universal no

coraccedilatildeo do que nomearam ldquoprocesso de constituiccedilatildeo do Impeacuteriordquo anexando uma ciecircncia

poliacutetica fundada no bellum justum como um de seus nefastos poreacutem eficazes instrumentos

operatoacuterios

A nova ordem global natildeo se caracterizaria tanto pela hegemonia de um Estado

mas antes pela difusatildeo generalizada em escala total de uma loacutegica de

governamentalidade imanente flexiacutevel e modulaacutevel capaz de operar como dispositivo de

biopoder em um contexto transnacional coalescente com um permanente estado de

emergecircncia e exceccedilatildeo No interior dessa loacutegica a retoacuterica dos direitos humanos seria a

exemplo do que afirma Costas Douzinas capturada sob a forma do apelo a valores

essenciais de justiccedila de modo que ldquoo direito de poliacutecia eacute legitimado por valores

universaisrdquo (NEGRI HARDT 2006 p 36)

Tanto a genealogia proposta por Teitel como as criacuteticas de Negri Hardt e

Douzinas auxiliam a compreender que se de um lado internacionalizaccedilatildeo dos direitos

humanos e das formas de Justiccedila de Transiccedilatildeo satildeo dois fenocircmenos coalescentes de outro

seu desenvolvimento histoacuterico-poliacutetico eacute essencialmente ambiacuteguo e natildeo implica um

progresso linear unidimensional redentor ou triunfante Costas Douzinas (2007 p 32-33)

parece apreendecirc-lo apropriadamente ao afirmar que os direitos humanos tornam-se a um soacute

tempo maiores e menores Maiores ao passo em que se tornam imprescindiacuteveis e sua

retoacuterica admite os mais variados usos estrateacutegicos menores ao passo em que nos paiacuteses

objeto de ldquointervenccedilotildees humanitaacuteriasrdquo ndash como Afeganistatildeo e Iraque por exemplo ndash o uso

paradoxal de sua retoacuterica impotildee um modelo empobrecido de democracia que eacute tornado

mais importante que a efetiva proteccedilatildeo aos direitos humanos

Essa loacutegica de submissatildeo dos direitos humanos a usos estrateacutegicos nos campos

poliacutetico e econocircmico teria em larga medida determinado o processo continental de

esmagamento das fraacutegeis democracias nacionais latino-americanas desencadeado a partir

29

do golpe de Estado de 1964 no Brasil alastrando-se sistemicamente nos anos seguintes

por diversos paiacuteses da Ameacuterica Latina como Meacutexico (1968) Chile e Uruguai (1973) e

Argentina (1976)

As praacuteticas desenvolvimentistas dos anos cinquenta e sessenta natildeo apenas natildeo seratildeo

desmontadas como seratildeo adaptadas ao discurso nacionalista testemunhando a faceta

conservadora do crescimento econocircmico que ora assumindo a alternativa da antecipaccedilatildeo

neoliberal ndash visiacutevel no modelo argentino ndash ora tornando o Estado o elemento central de

intervenccedilatildeo poliacutetico-econocircmica na construccedilatildeo de alianccedilas com o capital multinacional ndash

mas conservando a proteccedilatildeo do mercado interno como nos modelos brasileiro e mexicano

ndash acabaraacute por conduzir os paiacuteses latino-americanos ao endividamento externo sem que o

crescimento econocircmico tivesse significado outra coisa que natildeo o aprofundamento da

pobreza (NEGRI COCCO 2005 p 104-107)

ldquoA funccedilatildeo das ditadurasrdquo segundo Idelber Avelar (2003 p 262-263) ldquofoi a

instalaccedilatildeo da etapa poacutes-moderna do capitalrdquo em seu sentido jamesoniano em que o capital

transnacional torna-se global e parece colonizar a totalidade do horizonte epocal tornando

problemaacutetica a proacutepria compreensatildeo do presente Na foacutermula do escritor uruguaio Eduardo

Galeano que Avelar recorda para caracterizar a funccedilatildeo histoacuterica das ditaduras ldquotorturou-se

o povo para que os preccedilos pudessem ser livresrdquo

Apesar de contraindicar qualquer messianismo ou triunfalismo intriacutensecos agrave

afirmaccedilatildeo histoacuterica dos direitos humanos a verificaccedilatildeo desses paradoxos e duplos em

nenhum momento advogaraacute a descartabilidade dos direitos humanos Pelo contraacuterio seu

caraacuteter antimessiacircnico designa antes a singularidade das lutas por direitos como um

terreno imanente de combate de reivindicaccedilatildeo e de produccedilatildeo de direitos Douzinas

reconhece nesse sentido que os direitos humanos constituem ainda certo resiacuteduo

transcendental afinal natildeo haacute hoje nenhuma outra linguagem agrave disposiccedilatildeo dos pobres dos

oprimidos e dos torturados senatildeo a da reivindicaccedilatildeo de direitos

Afirmar como Douzinas (2007 p 33) ldquoHuman rights have only paradoxes to

offerrdquo natildeo testemunha nenhum niilismo poliacutetico ou vazio programaacutetico fundamentais

Maiores e menores ao mesmo tempo os direitos humanos constituem o terreno a todo

instante em disputa ainda que nos faccedilam experimentar a mesma estranheza que

experimentava a Alice de Lewis Caroll que se sente crescer e diminuir os direitos

humanos constituem um infinito jogo de paradoxos e de duplos

30

CAPIacuteTULO 2 ndash DIREITO-ENTRE O JURIacuteDICO E AS INSTITUICcedilOtildeES NO

SEIO DAS TRANSICcedilOtildeES

sect 1 DIREITO INSTITUICcedilOtildeES E TRANSICcedilAtildeO

Afirmou-se que o duplo e o paradoxo parecem ser as figuras constitutivas de todo o

pensamento sobre os direitos humanos mas natildeo seria menos vaacutelido dizer o mesmo sobre a

Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo Um consenso teoacuterico que atravessa pela quase totalidade de

sua bibliografia recente eacute aquele segundo o qual a Justiccedila de Transiccedilatildeo deixa-se penetrar e

constituir por seacuteries de duplos implicando ao mesmo tempo continuidade e

descontinuidade (TEITEL 2000 p 30) um olhar para o passado e para o futuro (TEITEL

2000 p 113 TEITEL 2010 p 36) estabilidade e instabilidade poliacutetico-institucionais Eacute

no seio dessas continuidades-rupturas influenciadas pelos singulares arranjos de forccedilas

que rejeitando ecleticamente as perspectivas realistas e idealistas Teitel (2000 p 06)

afirma que ldquothe conception of justice in periods of political change is extraordinary and

constructivist It is alternately constituted by and constitutive of the transitionrdquo

Tentando superaacute-la Teitel interpreta a dicotomia entre realistas e idealistas no

terreno da Justiccedila de Transiccedilatildeo como o efeito de superfiacutecie de uma antinomia mais

profunda verificada entre poliacutetica e direito Enquanto os idealistas apostariam na

autonomia do direito e em seu papel determinante sobre a poliacutetica teoacutericos realistas

compreenderiam o direito nos periacuteodos poacutes-conflituais como uma determinaccedilatildeo decorrente

dos arranjos do campo de forccedilas poliacuteticas Ambas as perspectivas no entanto teriam

fracassado em descrever o papel constitutivo que o direito assume em sociedades que

atravessam periacuteodos de radical transformaccedilatildeo poliacutetica Embora haja sensiacuteveis constriccedilotildees

provenientes de seus quadros legais natildeo haacute uma simples e transcendente hegemonia de

regras universais de direitos humanos tampouco uma pura determinaccedilatildeo das instituiccedilotildees e

do direito pela poliacutetica

Se Teitel opta por descrever o papel construtivista que o direito desempenha nos

contextos de transiccedilatildeo eacute com o intuito de assinalar que as instituiccedilotildees satildeo ao mesmo tempo

objeto e causa de transformaccedilotildees operadas no seio de uma singular e contingente dinacircmica

transicional Natildeo haveria portanto modelo universal de accountability capaz de descrever

as razotildees suficientes para converter um Estado autoritaacuterio e violento em Estado

democraacutetico e de Direito

31

O direito eacute constitutivo das instituiccedilotildees ao passo em que medeia a preservaccedilatildeo de

certo niacutevel de continuidade formal e em que incorpora ao mesmo tempo uma genuiacutena

instacircncia de descontinuidade transformativa (TEITEL 2000 p 220 GREADY 2011 p

151) Sua funccedilatildeo eacute a de cesura e a de margem sua qualidade liminar trata-se de um

direito que estaacute entre dois regimes mais proacuteximo de um poder constituinte que no entanto

uma vez despojado de seus caracteres mais claacutessicos natildeo eacute onipotente tampouco

incondicionado uma vez que se estrutura sobre os quadros legais transnacionais dos

Direitos Humanos da Justiccedila de Transiccedilatildeo e das variaccedilotildees que se verificam nos arranjos de

poder locais

O relevante papel desempenhado pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos

nesse aspecto deriva de sua capacidade de mediar com sucesso correntes teoacutericas

derivadas do juspositivismo e do jusnaturalismo superando a relaccedilatildeo convencional entre

direito e poliacutetica ou como quisera Paul Gready (2011 p 10) balanceando-os Embora seja

possiacutevel agrave transiccedilatildeo operar uma alteraccedilatildeo da regra de reconhecimento Teitel afirma que eacute

mais comum haver uma reinterpretaccedilatildeo racionalizadora das bases normativas existentes

testemunhando uma forma especial de continuidade-ruptura

Como resultado do processo de internacionalizaccedilatildeo dos Direitos Humanos

afetaram-se igualmente os quadros da doutrina e das praacuteticas da Justiccedila de Transiccedilatildeo10

Consequentemente a Justiccedila de Transiccedilatildeo enriquece-se passando a compreender a

participaccedilatildeo de diversos niacuteveis que concorrem para sua produccedilatildeo institucional como

instituiccedilotildees supranacionais Estados-Naccedilatildeo organismos e indiviacuteduos (ELSTER 2006 p

114)

As instituiccedilotildees supranacionais compreendem os Tribunais Internacionais aiacute

incluiacutedas as Cortes Internacionais de Direitos Humanos que sem representar sucessores ou

vencedores atuam em nome da proacutepria comunidade internacional A paulatina criaccedilatildeo de

oacutergatildeos e mecanismos de controle internacionais com abrangecircncia universal como o

Tribunal Penal Internacional ou regional como os Tribunais Europeus a Corte

Interamericana de Direitos Humanos a Comissatildeo Interamericana de Direitos Humanos

etc determinaram no uacuteltimo dececircnio significativos influxos da internacionalizaccedilatildeo dos

Direitos Humanos sobre o quadro legal da Justiccedila de Transiccedilatildeo (ZYL 2009a p 32-33)

Segundo Paul Van Zyl (2009a p 33) esse horizonte de compreensatildeo e influecircncia

implica a vinculaccedilatildeo dos Estados a normas internacionais claras que determinam

10

Cf supra Capiacutetulo 1 ldquoA gecircnese da Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo e o Direito Internacional dos Direitos

Humanosrdquo

32

proibiccedilotildees universais especialmente com a ratificaccedilatildeo de mais de cem paiacuteses da criaccedilatildeo do

Tribunal Penal Internacional No que concerne agrave Justiccedila de Transiccedilatildeo mais

especificamente no ano 2000 o Secretaacuterio Geral da ONU apresentou relatoacuterio no qual se

consagrava com precedecircncia o foco das Naccedilotildees Unidas sobre as questotildees da justiccedila

transicional

Kai Ambos (2009 p 29-30) compreende o proacuteprio desenvolvimento do regime

legal da Justiccedila de Transiccedilatildeo nos quadros do Direito Internacional dos Direitos Humanos

na medida em que esse regime normativo estrutura-se em correlaccedilatildeo com a revisatildeo e sua

reafirmaccedilatildeo histoacuterica a partir de 1948 em convenccedilotildees que tinham por objeto o Genociacutedio

as Convenccedilotildees de Genebra ndash para melhoria da sorte dos exeacutercitos em campanha (I) para

melhoria da sorte dos feridos enfermos e naacuteufragos das forccedilas armadas no mar (II)

relativa ao tratamento de prisioneiros de guerra (III) e agrave proteccedilatildeo de civis em tempos de

guerra (IV) ndash em 1949 mas tambeacutem em conexatildeo com a Convenccedilatildeo Internacional contra a

Tortura e outros Tratamentos e Penas Crueacuteis Desumanos e Degradantes aprovada pela

Assembleia Geral da Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas em de 10 de dezembro de 1984

Em segundo plano do ponto de vista regional observa-se o fortalecimento dos

regimes democraacuteticos na Ameacuterica Latina Aacutesia e Aacutefrica com a intensificaccedilatildeo do

surgimento e da participaccedilatildeo de organizaccedilotildees da sociedade civil no combate a graves

violaccedilotildees de direitos humanos Por essa razatildeo Javier Ciurlizza (2009a p 25) constata a

especial influecircncia do sistema interamericano de proteccedilatildeo e promoccedilatildeo de direitos humanos

sobre a escala internacional da definiccedilatildeo dos quadros normativos da Justiccedila de Transiccedilatildeo

reconhecendo que ldquoo sistema interamericano de direitos humanos desenvolveu ampla

jurisprudecircncia relacionada agraves obrigaccedilotildees internacionais dos Estadosrdquo

Kai Ambos (2009 p 34-36) de seu turno cita extensa jurisprudecircncia de casos da

Corte Interamericana de Direitos Humanos a fim de obter o perfil normativo internacional

da Justiccedila de Transiccedilatildeo envolvendo entre os conteuacutedos de seu conceito de justiccedila o dever

dos Estados de punir graves violaccedilotildees de direitos humanos ndash especialmente os objetos de

proteccedilatildeo dos diplomas internacionais citados ndash efetivar o direito agrave verdade das viacutetimas

isto eacute ldquoo esclarecimento de fatos ilegais e as responsabilidades correspondentesrdquo

compreendendo natildeo apenas o ldquodireito coletivo que assegura agrave sociedade o acesso agrave

informaccedilatildeo essencial ao funcionamento de sistemas democraacuteticosrdquo mas tambeacutem ldquoo direito

privado dos familiares das viacutetimas que adquire uma forma compensatoacuteria especialmente

nos casos em que leis de anistia foram adotadasrdquo (AMBOS 2009 p 34-35)

33

Ainda enovelam-se aos direitos das viacutetimas tutelados pela quadratura internacional

da Justiccedila de Transiccedilatildeo o direito agrave justiccedila ndash consubstanciado em formas de ldquoproteccedilatildeo

judicial tanto pelo acesso ao sistema legal do Estado violador (o qual de acordo com os

direitos humanos tem a obrigaccedilatildeo de investigar processar e sancionar o responsaacutevel) ou

pela via de um foacuterum puacuteblico alternativo no qual viacutetimas podem confrontar e desafiar os

violadoresrdquo (AMBOS 2009 p 36) ndash e o direito agrave reparaccedilatildeo que compreende indenizaccedilatildeo

integral compensaccedilatildeo reabilitaccedilatildeo fornecimento de garantias de natildeo repeticcedilatildeo e outros

mecanismos reparatoacuterios como o reconhecimento do estatuto de viacutetima e o

restabelecimento de seus direitos (AMBOS 2009 p 37-39)

Ao lado disso Kai Ambos descreve alternativas admissiacuteveis agrave persecuccedilatildeo criminal

dos responsaacuteveis por graves violaccedilotildees ao Direito Internacional dos Direitos Humanos que

compreendem Comissotildees de Verdade e Reconciliaccedilatildeo (AMBOS 2009 p 40-47)

saneamentos e purgaccedilotildees administrativas que visem a excluir a manutenccedilatildeo de agentes

responsaacuteveis por violaccedilotildees de direitos humanos em cargos e funccedilotildees vinculados ao aparato

burocraacutetico do Estado bem como a impedir seu retorno ainda Ambos inclui reformas

institucionais a fim de remover os dispositivos autoritaacuterios que guarneccedilam as instituiccedilotildees

em transiccedilatildeo processos de desarmamento desmobilizaccedilatildeo e reintegraccedilatildeo social e o uso de

formas tradicionais e locais geralmente natildeo-ocidentais de justiccedila e reconciliaccedilatildeo

(AMBOS 2009 p 48)

Na esteira de Ambos Paul Van Zyl (2009a p 34-39) por sua vez sumaria cinco

elementos que estruturam a Justiccedila de Transiccedilatildeo justiccedila (atento a suas funccedilotildees penais mas

tambeacutem simboacutelicas e afetivas) busca da verdade reparaccedilatildeo agraves viacutetimas reformas

institucionais e reconciliaccedilatildeo

Uma recente criacutetica endereccedilada agrave hegemonia teoacuterica das dimensotildees ndash sem duacutevida

relevantes ndash da justiccedila legal e da prestaccedilatildeo de contas pelos Estados violadores encontrou

na proposiccedilatildeo de ampliaccedilatildeo do conteuacutedo cognitivo engendrado na disciplina internacional

da Justiccedila de Transiccedilatildeo uma interessante alternativa analiacutetica Baseando-se em uma

abordagem sincreacutetica que pretende reconciliar justiccedilas restaurativa e distributiva Wendy

Lambourne (2009 p 37-47) propotildee uma Justiccedila Transformativa vocacionada a religar

passado e futuro de maneira duradoura por meio de mecanismos e processos localmente

relevantes capazes de promover prestaccedilatildeo de contas verdade e memoacuteria justiccedila

socioeconocircmica e justiccedila poliacutetica integrando-se a um processo compreensivo de

construccedilatildeo da paz

34

David Bloomfield (2005 p 45-46) e Luc Huyse (2005 p 164-165) tambeacutem

indicam a centralidade da interferecircncia da disciplina normativa internacional e de

organismos da comunidade internacional nos processos de reconciliaccedilatildeo Bloomfield

compreende que a comunidade internacional pode colaborar com a construccedilatildeo de

processos de reconciliaccedilatildeo apoacutes eventos conflitivos como fonte potencial de informaccedilotildees

experiecircncia e educaccedilatildeo mas tambeacutem com o lento poreacutem inexoraacutevel processo de

desenvolvimento do Direito Internacional dos Direitos Humanos capaz de sustentar a

forma de uma ordem juriacutedica internacional

Huyse evidencia que organismos internacionais podem intervir como aparatos

auxiliares da transiccedilatildeo em contextos poacutes-conflituais especialmente pelo uso de relatoacuterios

dentre outros mecanismos de monitoramento internacionais A Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees

Unidas organismos internacionais natildeo-governamentais como o International Centre of

Transitional Justice (ICTJ) o Centre for the Study of Violence and Reconciliation (CSVR)

o African Transitional Justice Research Network (ATJRN) e o Transitional Justice

Institute (TJI) podem colaborar com a operacionalidade teoacuterica ou teacutecnica dos processos de

transiccedilatildeo em seus contextos singulares (BRITO 2009a p 56-57)

Ainda sob o ponto de vista das interaccedilotildees entre o Direito Internacional dos Direitos

Humanos e seus principais organismos eacute possiacutevel entrever a amplitude da tese de Ruti

Teitel sobre a constitutividade do direito de transiccedilatildeo Sendo um direito-entre regimes

para aleacutem do princiacutepio territorialista de juridicidade dos Estados-Naccedilatildeo (SANTOS 2009

p 474-476) o direito transicional permite posicionar o papel das instituiccedilotildees na

consecuccedilatildeo da transiccedilatildeo

As instituiccedilotildees devem tornar-se objeto de uma mutaccedilatildeo profunda que compreende

reformas institucionais purgas e responsabilizaccedilatildeo de agentes que cometeram graves

violaccedilotildees de direitos humanos bem como sua consequente remoccedilatildeo de cargos puacuteblicos

adotando-se programas de depuraccedilatildeo e saneamento administrativo (ZYL 2009a p 38

ELSTER 2006 p 113) Tal mutaccedilatildeo constituiria uma resposta agrave persistecircncia de estruturas

e praacuteticas burocraacuteticas autoritaacuterias o que exige que as instituiccedilotildees tambeacutem sejam

requisitadas como mediadoras da concretizaccedilatildeo das demais tarefas da Justiccedila de Transiccedilatildeo

que como o proacuteprio Zyl (2009a p 54) adverte torna necessaacuterio engendrar um amplo

processo de consulta local uma vez que se estaacute a operar no terreno da singularidade

histoacuterica e cultural ndash ainda que se reconheccedilam certas vinculaccedilotildees normativas como

universais

35

Se Paul Van Zyl estiver correto ao descrever a justiccedila a verdade a reparaccedilatildeo a

reconciliaccedilatildeo e as reformas institucionais como estruturas mais gerais mas nem por isso

ideais da Justiccedila de Transiccedilatildeo as uacuteltimas aparecem como um campo privilegiado de

disputas poliacuteticas uma vez que constituem natildeo apenas o objeto de uma transformaccedilatildeo

mas principalmente satildeo exigidas como as instacircncias por meios das quais dever-se-aacute

operar uma tal transformaccedilatildeo transicional

Isso denota a centralidade dos aparelhos de Estado encarregados da identificaccedilatildeo

processamento e responsabilizaccedilatildeo de agentes puacuteblicos que cometeram graves violaccedilotildees de

direitos humanos da institucionalizaccedilatildeo de Comissotildees de Verdade e Reconciliaccedilatildeo e de

poliacuteticas reparatoacuterias destinadas aos perseguidos poliacuteticos e resistentes de um periacuteodo de

exceccedilatildeo As instituiccedilotildees incorporam a um soacute tempo uma instacircncia produzida e produtora

de justiccedila responsabilizaccedilatildeo inclusatildeo poliacutetica bem como de uma narrativa sobre o

passado Mesmo porque esses satildeo propoacutesitos da Justiccedila de Transiccedilatildeo justiccedila inclusatildeo

poliacutetica reconciliaccedilatildeo e paz nunca podem ser admitidas como a priori histoacuterico de

contextos poacutes-conflituais pois natildeo defluem de tais contextos naturalmente mas como

resultados de um esforccedilo comum de criaccedilatildeo de direitos e de modificaccedilotildees institucionais

Registram-se ainda organismos natildeo-estatais que tambeacutem concorrem em algum

niacutevel para a concretizaccedilatildeo da Justiccedila de Transiccedilatildeo como as organizaccedilotildees sociais partidos

poliacuteticos Igrejas empresas entidades sindicais etc ndash natildeo raras vezes tornados alvos

poliacuteticos do regime autoritaacuterio precedente e de seus aparatos de perseguiccedilatildeo e censura Por

sua vez a justiccedila privada assume a forma dos justiciamentos individuais e suas execuccedilotildees

extralegais podendo tomar a forma da humilhaccedilatildeo deliberada e puacuteblica ldquoEn America

Latinardquo recorda Elster (2006 p 119) ldquolos oficiales amnistiados que son conocidos por

haber participado en torturas o desapariciones han sidos condenados a un ostracismo social

de caraacutecter informalrdquo Um exemplar contemporacircneo embora constitua uma forma

geralmente natildeo-violenta e portadora de um acentuado caraacuteter poliacutetico de execraccedilatildeo

puacuteblica satildeo as praacuteticas de escrachos inventados na Argentina (BRITO GONZAacuteLEZ-

ENRIacuteQUEZ e AGUILAR 2001 p 157) e recentemente incorporadas como ldquoesculachosrdquo

pelos jovens ativistas poliacuteticos do Levante Popular da Juventude no Brasil Nesse caso a

importacircncia das accedilotildees legais ndash partam de instituiccedilotildees nacionais ou supranacionais ndash

segundo Elster deriva de uma necessidade de antecipar-se agrave vinganccedila privada ou de

bloquear sua emergecircncia

Abratildeo Payne e Torelly (2011 p 28) natildeo cessam de destacar que o caso brasileiro eacute

paradigmaacutetico uma vez que suas praacuteticas transicionais estatalistas desafiam a autoridade

36

da base normativa internacional dos Direitos Humanos Nesse particular a decisatildeo da

Corte de San Joseacute da Costa Rica impocircs uma seacuterie de obrigaccedilotildees ao Estado brasileiro em

razatildeo do Caso Araguaia sem que ateacute o presente se tenha dado integral cumprimento a ela

Nesse sentido Abratildeo Payne e Torelly (2011 p 24) afirmaram que ldquo[]o caso brasileiro

constitui-se um desafio potencial agrave norma global da responsabilizaccedilatildeo individual

sugerindo que a insurgecircncia dessa norma natildeo mudou necessariamente o comportamento

dos Estadosrdquo donde o cariz paradigmaacutetico da experiecircncia anistiadora brasileira que ao

mesmo tempo em que desafia demonstra tambeacutem do ponto de vista praacutetico o viacutenculo

geneacutetico que as doutrinas da Justiccedila de Transiccedilatildeo e o Direito Internacional dos Direitos

Humanos entretecircm

Ao mesmo tempo em que as instituiccedilotildees encerram uma possibilidade dinacircmica de

alteraccedilatildeo estrutural loacutegica e semacircntica da qual constituem um dos cernes privilegiados o

direito de transiccedilatildeo como um direito entre tambeacutem deve compreendecirc-las como campo no

qual podem persistir ndash e natildeo raro reproduzirem-se ndash formas autoritaacuterias de imaginaccedilatildeo

poliacutetico-social

Se como quisera Clifford Geertz (1983 p 232) o direito constitui um modo de

imaginaccedilatildeo social que ldquovem acompanhado de um conjunto de atitudes praacuteticas sobre o

gerenciamento de disputas que essa proacutepria forma de ver o mundo impotildee aos que a ela se

apegamrdquo (Idem ibidem p 173) eacute no seio das transiccedilotildees poliacuteticas e dos cenaacuterios poacutes-

conflituais ndash em que direito e instituiccedilotildees interpenetram-se reciacuteproca e constitutivamente ndash

que se pode verificar de que modo o direito constitui produto de hibridizaccedilotildees culturais

Nesses contextos o direito e as instituiccedilotildees assumem posiccedilotildees aparentemente paradoxais

porque se encontram no ponto de contato intenso em que se produz essa mesticcedilagem e

com mais razatildeo porque seus elementos de continuidade e de ruptura podem indeterminar-

se temporariamente (TEITEL 2000 p 17-18) Eis o que revelaria o caraacuteter intimamente

liminar de todas as transiccedilotildees bem como das estruturas juriacutedicas e conceituais que as

secundam

Vistos sob a perspectiva da continuidade o direito e as instituiccedilotildees podem tanto

estar ao lado da construccedilatildeo de uma desejaacutevel estabilidade poliacutetico-institucional como

engendrar uma negativa reproduccedilatildeo de determinado imaginaacuterio social poliacutetico e cultural

autoritaacuterio Eacute sempre possiacutevel imaginar os desenhos institucionais existentes e o plexo

normativo e praacutetico que lhes serve de suporte pendularem e indeterminarem-se entre os

polos da manutenccedilatildeo de certo equiliacutebrio institucional necessaacuterio ndash que suporta graus

variaacuteveis conforme a singularidade do jogo a que estatildeo lanccediladas as dinacircmicas de poder ndash e

37

a conservaccedilatildeo de uma forma de imaginaccedilatildeo social capaz de perpetuar legados

antidemocraacuteticos

sect 2 O QUE UM PASSADO TEM DE INSUPORTAacuteVEL NOTAS SOBRE A

CONTINUIDADE DO PASSADO NO PRESENTE A PARTIR DO CASO BRASILEIRO

Consideremos mais de perto as razotildees concretas pelas quais Paulo Abratildeo e Marcelo

Torelly (2011 p 24) diagnosticaram que a questatildeo da anistia e da responsabilizaccedilatildeo no

Brasil adquiriram uma dimensatildeo paradigmaacutetica na medida em que o caso brasileiro

constitui ldquoum desafio potencial agrave norma global da responsabilizaccedilatildeo individualrdquo Em

sentido anaacutelogo recuperemos brevemente os dilemas que envolvem a transiccedilatildeo brasileira

para colocar agrave prova a realidade praacutetica e poliacutetica da paradoxal continuidade do passado no

presente ndash de que a Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo limita-se como viacuteamos a tratar

abstratamente e apesar de prever aberturas para elementos concretos provenientes dos

singulares arranjos de poder

Em seu interior pode-se constatar sem dificuldades a atualidade da pergunta

proposta por Vladimir Safatle e Edson Teles (2010) ndash ldquoO que resta da ditadurardquo ndash e do

grito efectista e ao mesmo tempo parresiasta do psicanalista Tales AbrsquoSaber que

respondera agrave questatildeo afirmando que da ditadura restava tudo exceto a ditadura ou do

gesto de Paulo Eduardo Arantes (2010 p 205) que natildeo hesitou em afirmar 1964 como ldquoo

ano que natildeo terminourdquo Essas foram algumas das uacuteltimas vagas genealoacutegicas

desencadeadas pelo projeto ldquoDesarquivando a Ditadurardquo de Ceciacutelia MacDowell Santos

Edson Teles e Janaiacutena de Almeida Teles (2009 p 13-14) que se fundava na cartografia do

legado autoritaacuterio e na contribuiccedilatildeo criacutetica agrave constituiccedilatildeo da memoacuteria e da justiccedila no Brasil

contemporacircneo Esses gestos verdadeiramente muito proacuteximos daquele arendtiano que se

perguntava sobre ldquoo que estamos fazendo de noacutes mesmosrdquo (ARENDT 2010 p 06)

permite entrever a dupla pertenccedila das instituiccedilotildees ao passado e ao futuro no interior de uma

interrogaccedilatildeo que natildeo pode ocupar outro limiar senatildeo o da mais absoluta atualidade

Toda pesquisa genealoacutegica natildeo implica fazer do presente e dos instrumentos

democraacuteticos que passam a exigir consolidaccedilatildeo especialmente apoacutes 1988 tabula rasa do

passado de modo a lanccedilar o presente e o passado a uma completa indiferenccedila Tais

cartografias da memoacuteria assumem a tarefa de tornar visiacuteveis as formas presentes por meio

das quais um legado antidemocraacutetico emerge reproduz-se e se dissimula cotidianamente

38

A presenccedila de um legado autoritaacuterio sem a sua representaccedilatildeo ndash senatildeo factiacutecia e natildeo raro

violenta ndash constitui o iacutendice de incompletude do processo de transiccedilatildeo democraacutetica

atestado entre noacutes jaacute haacute alguns dececircnios (PINHEIRO 2002 p 240-242 ABRAtildeO e

TORELLY 2011 p 241)

Evitando toda negatividade da incompletude Glenda Mezzaroba (2003 p 10)

prefere compreender a anistia brasileira como um processo poliacutetico de longa duraccedilatildeo que

iniciado em 1979 natildeo cessou de ser redefinido e ampliado desde entatildeo Se tomarmos

como Mezzaroba a transiccedilatildeo como uma tarefa positiva torna-se preciso estabelecer

algumas linhas gerais de accedilatildeo em que a dinacircmica da mutaccedilatildeo institucional no Brasil

contemporacircneo deve estar implicada sem prescindir de um olhar retrospectivo capaz de

identificar algumas manifestaccedilotildees de espectro autoritaacuterio

Comparando o Brasil de antes e de depois da transiccedilatildeo Kathryn Sikkink e Carrie

Booth Walling (2007 p 437) observam que ldquo() Brazil experienced a greater decline in

its human rights practices than any other transitional country in the regionrdquo Sua anaacutelise

sugere que a experiecircncia brasileira possa ser considerada exemplar de que a transiccedilatildeo

democraacutetica eacute causa necessaacuteria mas natildeo suficiente de uma melhora nas praacuteticas estatais e

sociais relacionadas a direitos humanos

Aleacutem de enfatizar a denegaccedilatildeo dos direitos agrave memoacuteria e agrave verdade o Informe 2010

da Anistia Internacional (2010 p 113-116) apontou que apesar da ediccedilatildeo de um novo

Plano Nacional de Direitos Humanos datado de 2009 e da realizaccedilatildeo de algumas reformas

limitadas na aacuterea de seguranccedila puacuteblica o policiamento ostensivo continuava a empregar

forccedila excessiva a praticar execuccedilotildees extrajudiciais e a tortura mantendo-se impunes seus

perpetradores De acordo com dados do Informe o Estado do Rio de Janeiro por exemplo

registrou mais de dez mil mortes violentas entre os anos de 1998 e 2009 por suposta

resistecircncia policial Entre os anos de 2010 e 2013 tambeacutem se relatou a atuaccedilatildeo contiacutenua de

grupos parapoliciais e de extermiacutenio no Brasil (ANISTIA INTERNACIONAL 2010 p

115 2011 p 112 2012 p 110-111 e 2013 p 52-53)

Uma constante nos informes anuais produzidos pela Anistia Internacional nos

uacuteltimos anos (2010-2013) eacute o relato do envolvimento de diversos agentes de execuccedilatildeo da

lei com o crime organizado e grupos de extermiacutenio Por mais de uma vez os representantes

da Anistia Internacional consignaram que o sistema prisional brasileiro caracterizava-se

pelo uso constante da tortura bem como verificou condiccedilotildees crueacuteis desumanas e

degradantes na maior parte dos estabelecimentos de internamento provisoacuterios e

39

permanentes visitados (ANISTIA INTERNACIONAL 2010 p 115 2011 p 114 2012

p 111 e 2013 p 53)

Agrave conclusatildeo semelhante chegou o Relatoacuterio sobre a visita ao Brasil do Subcomitecirc

de Prevenccedilatildeo da Tortura e outros Tratamentos ou Penas Crueacuteis Desumanos ou

Degradantes da Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas publicado em Fevereiro de 2012 Tendo

visitado instituiccedilotildees para pessoas em situaccedilatildeo de privaccedilatildeo de liberdade ndash como instituiccedilotildees

policiais de detenccedilatildeo provisoacuteria instituiccedilotildees prisionais instituiccedilotildees para Crianccedilas e

Adolescentes bem como centros de tratamento meacutedico para dependentes quiacutemicos ndash nos

Estados de Satildeo Paulo Rio de Janeiro e Espiacuterito Santo verificou-se que muitas das

recomendaccedilotildees feitas ao Estado Brasileiro em 2012 eram objeto de reiteraccedilatildeo pela

Subcomissatildeo Isto eacute a visita do oacutergatildeo desvelou a omissatildeo sistemaacutetica do Estado em

relaccedilatildeo agrave tutela de direitos humanos e fundamentais de pessoas em situaccedilatildeo de privaccedilatildeo de

liberdade

Ainda no campo das relaccedilotildees entre Estado e cidadatildeo ndash com ecircnfase no tratamento

governamental dispensado a grupos vulneraacuteveis politicamente minoritaacuterios e socialmente

marginalizados ndash os Informes editados entre 2010 e 2013 pela Anistia Internacional

reportaram contiacutenuas ameaccedilas e violaccedilotildees de direitos de povos indiacutegenas trabalhadores

sem terras e pequenas comunidades rurais assim como ativistas sociais e defensores de

direitos humanos relataram ameaccedilas ataques e acusaccedilotildees politicamente motivados11

Demais direitos sociais como o direito agrave moradia direitos sexuais e reprodutivos direitos

das mulheres etc foram consistente objeto de preocupaccedilatildeo nos Informes do periacuteodo que

relataram ainda a ameaccedila que obras do Programa de Aceleraccedilatildeo do Crescimento

representavam a direitos de comunidades locais

Projetos de construccedilatildeo de represas de estradas e de portos foram natildeo raro levados

a cabo por meio de remoccedilotildees forccediladas de comunidades locais (ANISTIA

INTERNACIONAL 2010 p 116 ainda 2013 p 54) Exemplar a esse respeito o caso da

comunidade ldquoAldeia Maracanatilderdquo indiacutegenas ocupavam desde 2006 o preacutedio histoacuterico do

Museu do Iacutendio localizado no entorno do Estaacutedio do Maracanatilde na cidade do Rio de

Janeiro e foram removidos apoacutes deferimento de pedido de reintegraccedilatildeo de posse pelo

Batalhatildeo de Operaccedilotildees Especiais e pelo Batalhatildeo de Choque da Poliacutetica Militar do Estado

do Rio de Janeiro a fim de viabilizar a realizaccedilatildeo de obras para a Copa do Mundo de 2014

11

Cf a esse respeito (ANISTIA INTERNACIONAL 2010 p 115-117) (Idem 2011 p 114-116) (Idem

2012 p 111-113) e (Idem 2013 p 53-55) Todos os documentos citados estatildeo disponiacuteveis em liacutengua

portuguesa em lthttpwwwamnestyorggt Acesso em 31mai2013

40

ou ainda o caso da construccedilatildeo da Usina de Belo Monte cujos canteiros foram ocupados

por povos indiacutegenas de diversas etnias a fim de impedir a construccedilatildeo da Hidreleacutetrica sem

consulta preacutevia aos povos alocados na regiatildeo Trata-se de casos emblemaacuteticos de uma

tensatildeo crescente entre projetos governamentais de crescimento econocircmico e suas

consequecircncias imediatamente humanas e ambientais no Brasil contemporacircneo

Em atenccedilatildeo ao fato de que o Brasil eacute um dos uacutenicos paiacuteses do mundo a contar com

um aparato policial militarmente estruturado um Grupo de Trabalho no acircmbito do Exame

Perioacutedico Universal vinculado ao Conselho de Direitos Humanos da Organizaccedilatildeo das

Naccedilotildees Unidas recomendou ao governo brasileiro a desmilitarizaccedilatildeo de sua poliacutecia

ostensiva (EFE 2012) Jorge Zaverucha (2010 p 56) retraccedilou as origens do exerciacutecio do

policiamento ostensivo da Poliacutecia Militar ndash que permaneceu com seus efetivos

aquartelados ateacute 1969 quando no aacutepice da repressatildeo poliacutetica passaram a ser o principal

fiador da ordem puacuteblica Zaverucha natildeo deixou de notar ainda que a Constituiccedilatildeo da

Repuacuteblica de 1988 nada fizera contra a consolidaccedilatildeo da militarizaccedilatildeo da aacuterea de seguranccedila

ao contraacuterio reproduziu no artigo 142 redaccedilatildeo que torna as Forccedilas Armadas ldquogarantidoras

da lei e da ordemrdquo12

Natildeo apenas a estrutura policial militarizada mas tambeacutem o atual desenho

institucional das Forccedilas Armadas constituem-se de espectros agrave sombra dos quais eacute

possiacutevel compreender a genealogia profunda da violecircncia sistecircmica relatada nos Informes

da Anistia Internacional ndash problemas admitidos e encampados como objetivos do terceiro

Plano Nacional de Direitos Humanos (BRASIL 2009 p 23) Apesar disso ainda que

registrada a criaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo da Comissatildeo Nacional da Verdade nos Informe de 2012 e

2013 o acompanhamento do tema pela Anistia Internacional entre os anos de 2010 e 2013

resultou em constataccedilotildees sucessivas de atraso do Estado brasileiro no contexto regional em

relaccedilatildeo ao combate a uma cultura de impunidade por violaccedilotildees do passado (ANISTIA

INTERNACIONAL 2010 p 114 2011 p 116 2012 p 109-110 2013 p 52)13

12

Zaverucha (2010 p 58) imagina duas hipoacuteteses a fim de demonstrar de que maneira o artigo 142

reinscreve uma forma da exceccedilatildeo na Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica de 1988 ldquoO artigo 137 da Constituiccedilatildeo de

1988 refere‑se agrave situaccedilatildeo de Estado de siacutetio tiacutepico caso em que lei e ordem estatildeo em perigo De acordo com

o referido artigo o presidente necessita de autorizaccedilatildeo do Congresso para declarar o Estado de siacutetio Vamos

supor que o Congresso natildeo creia que a lei e a ordem estatildeo ameaccediladas entatildeo o presidente natildeo poderaacute pedir a

intervenccedilatildeo militar Contudo o presidente ante pressatildeo militar pode circundar o Congresso invocando o

artigo 142 e a partir dele solicitar que os militares restabeleccedilam a lei e a ordemrdquo 13

O Informe 2013 expressou preocupaccedilatildeo com os efeitos da Lei de Anistia brasileira como obstaacuteculos agrave

responsabilizaccedilatildeo de violadores de direitos humanos consignando que a posiccedilatildeo do Estado brasileiro instala-

se na contramatildeo da decisatildeo do caso Gomes Lund e outros vs Brasil (Guerrilha do Araguaia) ldquo[]persistiram

os temores sobre a capacidade do Brasil enfrentar a impunidade por crimes contra a humanidade enquanto a

41

Durante a ditadura militar a repressatildeo a tortura e o assassinato sistemaacutetico de

opositores constituiratildeo ao longo de algumas deacutecadas os paradigmas de exerciacutecio do

controle social e da repressatildeo estatais contra as insurreiccedilotildees da luta armada revolucionaacuteria

no campo poliacutetico (NEGRI COCCO 2005 p 103) Aparelho repressivo que apoacutes a

transiccedilatildeo ao regime democraacutetico natildeo seraacute desmontado natildeo sofreraacute purgas tampouco seraacute

reestruturado no Brasil Pelo contraacuterio em pleno funcionamento ndash como demonstram os

dados extraiacutedos dos relatoacuterios em mateacuteria de direitos humanos ndash o aparato de violecircncia

legal permanece atrelado a algumas estruturas herdadas do regime precedente o que

poderia explicar ao menos em parte a escalada da violecircncia discursivamente naturalizada

como ldquoendecircmicardquo no Brasil e no restante do continente latino-americano apoacutes o periacuteodo

ditatorial (PINHEIRO 2002 p 240) Especificamente essas formas institucionais de

violecircncia encontram-se estruturadas sobre o rapport Estado-cidadatildeo que se desenvolve em

culturas poliacuteticas autoritaacuterias marcadas pelo desrespeito aos direitos humanos e pela

reproduccedilatildeo constante da loacutegica da impunidade

Antony W Pereira natildeo deixou de assinalar ldquoa sobrevivecircncia do funcionamento das

instituiccedilotildees juriacutedicas estatais anteriores dentro do quadro normativo ditatorialrdquo

(PINHEIRO 2010 p 09) Durante a ditadura militar brasileira registrou-se um alto grau

de colaboraccedilatildeo entre juristas e magistrados de todos os niacuteveis funcionais chegando mesmo

a uma espeacutecie de consenso civil-militar no seio das elites burocraacuteticas que forneciam os

contornos institucionais do sistema de justiccedila militar (PEREIRA 2010 p 41) Eis o que

explicaria segundo Pereira o pequeno nuacutemero de cassaccedilotildees de magistrados no periacuteodo de

exceccedilatildeo a ausecircncia de purgaccedilotildees quando do processo de redemocratizaccedilatildeo brasileira e a

manutenccedilatildeo hegemocircnica de um sistema de legalidade autoritaacuteria ainda hoje reproduzido e

segundo Paulo Seacutergio Pinheiro (2010 p 12-13) experimentado pelos pobres e pelos

ldquosocialmente marginalizados aos quais o acesso agrave justiccedila resolve-se no acesso agrave sua faceta

repressivardquo

Fundindo-se elites militares e judiciaacuterias teria sido possiacutevel constituir um sistema

juriacutedico hiacutebrido de justiccedila militar o que acarretou uma intensa judicializaccedilatildeo da repressatildeo

e ao mesmo tempo preservou um alto grau de consenso sobre uma suposta benevolecircncia

das instituiccedilotildees militares e judiciaacuterias Os baixos graus de violecircncia letal teriam colaborado

para a legitimaccedilatildeo de um poder por meio do direito (2010 p 283) permitindo a

Lei da Anistia de 1979 estiver em vigor Em 2010 a Corte Interamericana de Direitos Humanos considerou

que a Lei da Anistia brasileira natildeo tinha validade juriacutedicardquo (ANISTIA INTERNACIONAL 2013 p 52)

42

manutenccedilatildeo do consenso e a desnecessidade de substituir a legitimidade institucional pela

violecircncia

A sobrevivecircncia de legados autoritaacuterios que atravessaram certo bloco histoacuterico dos

paiacuteses do Cone Sul teria resistido agraves transiccedilotildees institucionais natildeo houve por exemplo

expurgos no Poder Judiciaacuterio brasileiro A transiccedilatildeo conservadora brasileira visou antes a

restabelecer o status quo ante de modo que ateacute o presente militares e membros do Poder

Judiciaacuterio continuam a ser vistos como grupos ldquoaltamente isolados e privilegiadosrdquo nos

cenaacuterios poliacutetico e institucional (PEREIRA 2010 p 243) Os consensos fortemente

arraigados nessas instituiccedilotildees embaraccedilam a possibilidade de reformas baseando-se na

ficccedilatildeo denunciada por Antony W Pereira de que os tribunais militares agiam secundum

legem

Para aleacutem dos limites do paradigmaacutetico caso brasileiro do ponto de vista das

instituiccedilotildees ndash e no sentido dos quadros normativos incorporados pelo Direito Internacional

dos Direitos Humanos ndash Paul Van Zyl (2009a p 40-48) delineou alternativas para a

construccedilatildeo da paz em cenaacuterios poacutes-conflituais (1) proceder agrave identificaccedilatildeo das instituiccedilotildees

que devem sofrer reforma ou ser abolidas (2) assegurar reformas dos mandatos a

capacitaccedilatildeo e a dotaccedilatildeo de pessoal bem como as operaccedilotildees das instituiccedilotildees especiacuteficas a

fim de garantir sua operacionalidade e a proteccedilatildeo dos direitos humanos (3) sanear o

aparelho estatal por meio da remoccedilatildeo de agentes responsaacuteveis por corrupccedilatildeo ou violaccedilatildeo

de direitos humanos tais como ldquomeios de comunicaccedilatildeo as prisotildees as instituiccedilotildees

prestadoras de serviccedilos de sauacutede e as instituiccedilotildees judiciaisrdquo (ZYL 2009a p 41)

fomentando o debate sobre sua funccedilatildeo na promoccedilatildeo dos direitos humanos (4) purga dos

violadores ocupantes de cargos poliacuteticos (5) reforma do serviccedilo de seguranccedila puacuteblica (6)

as instituiccedilotildees podem instrumentalizar que se evite a dominaccedilatildeo de um grupo homogecircneo

baseado em caracteres identitaacuterios eacutetnicos linguiacutesticos ou religiosos (7) Mediar o

desarmamento a desmobilizaccedilatildeo da populaccedilatildeo e sua reintegraccedilatildeo social (8) Restaurar o

Estado de Direito confrontando a cultura da impunidade ndash pois segundo Zyl (2009a p

40) ainda que a responsabilizaccedilatildeo possa ser diferida a fim de permitir a transiccedilatildeo para um

regime democraacutetico de governo ela natildeo pode ser adiada eternamente (9) Restaurar a

confianccedila nas instituiccedilotildees do Estado e promover a consolidaccedilatildeo democraacutetica

Reconhecendo que ldquoassim como a tortura diversas praacuteticas e estruturas

permanecem como elementos-chave da cena nacionalrdquo o terceiro Plano Nacional de

Direitos Humanos de 2009 prevecirc entre suas diretrizes a supressatildeo ldquode normas

remanescentes de periacuteodos de exceccedilatildeo que afrontem compromissos internacionais e os

43

preceitos de Direitos Humanosrdquo (BRASIL 2009 p 25) Entre esses diplomas normativos

estariam as ainda vigentes Lei Federal n 71701983 (Lei de Seguranccedila Nacional) e a Lei

Federal n 66831979 (Lei de Anistia) ndash especificamente no ponto em que anistia os

agentes da repressatildeo poliacutetica mesmo que o apoie a decisatildeo do Supremo Tribunal Federal

na Accedilatildeo de Descumprimento de Preceito Fundamental n 153 de abril de 2010 No acircmbito

do Direito Penal Militar e das normas relativas a seu processo os coacutedigos penais e

processuais penais militares bem como a Lei de Organizaccedilatildeo da Justiccedila Militar remontam

ao periacuteodo autoritaacuterio (MEZAROBBA 2003 p 09) e atualmente mantecircm vigente nas

instituiccedilotildees de caserna uma ideologia juriacutedico-poliacutetica incompatiacutevel com o sistema

constitucional contemporacircneo

Embora se preveja ldquoa revisatildeo de propostas legislativas envolvendo retrocessos na

garantia dos Direitos Humanos em geral e do direito agrave memoacuteria e agrave verdaderdquo

independentemente de lapso temporal a revogaccedilatildeo de leis de periacuteodos autoritaacuterios fica em

princiacutepio limitada ao periacuteodo compreendido entre 1964-1985 A medida natildeo abrangeria

portanto o Decreto-Lei n 46571942 da lavra de Getuacutelio Vargas que tambeacutem fruto de

um periacuteodo poliacutetico autoritaacuterio ainda regra temas importantes em relaccedilatildeo agrave aplicaccedilatildeo e agrave

interpretaccedilatildeo do direito brasileiro Entre eles a vigecircncia das leis ndash ponto em que foi

relativamente derrogado pela Lei Complementar n 9598 ndash a aplicaccedilatildeo do direito e o

raciociacutenio juriacutedico nas decisotildees judiciais ndash ponto em que o Decreto restringe o uso de

recursos hermenecircuticos simples agrave existecircncia de lacuna no ordenamento ndash e as normas

referentes ao Direito Internacional Privado Em aceno contraacuterio agrave sua abrogaccedilatildeo o antigo

Decreto-Lei recepcionado pela Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica de 1988 como lei em sentido

formal foi recentemente rebatizado de ldquoLei de Introduccedilatildeo agraves Normas do Direito

Brasileirordquo pela Lei Federal n 123672010

O terceiro Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH-III) tambeacutem previu o

incremento do reconhecimento do status constitucional de instrumentos internacionais de

Direitos Humanos recomendando-se ratificar o segundo protocolo facultativo do Pacto

Internacional de Direitos Civis e Poliacuteticos visando agrave aboliccedilatildeo da pena de morte (1989) a

Convenccedilatildeo sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes contra a

Humanidade (1968) adaptando o ordenamento juriacutedico interno pela promulgaccedilatildeo de lei

expressa fixando a imprescritibilidade dos delitos bem como a Convenccedilatildeo Internacional

para a Proteccedilatildeo de Todas as Pessoas contra os Desaparecimentos Forccedilados (2006)

Por fim denota-se especial atenccedilatildeo para com o monitoramento da tramitaccedilatildeo de

processos judiciais que envolvam graves violaccedilotildees de direitos humanos praticados no

44

periacuteodo entre 18 e setembro de 1946 e a data da promulgaccedilatildeo da Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica

de 1988

O que o terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-III) consolida

natildeo deixa de constituir um importante passo em direccedilatildeo ao desmonte de alguns aparatos

autoritaacuterios no entanto eacute sensiacutevel que permaneccedila demasiadamente atreladpo ao desmonte

de dispositivos normativos do que aos burocraacutetico-administrativos locus de inscriccedilatildeo

privilegiado da praacutexis juriacutedica ndash ainda que estejam contempladas ratificaccedilotildees a alguns

protocolos que implicam adesatildeo a mecanismos de monitoramento e controle internacional

de Direitos Humanos

Entre o que postula Zyl (2009a p 40-48) como praacuteticas de consecuccedilatildeo da paz em

tempos poacutes-conflituais demonstrando a centralidade de reformas reestruturaccedilotildees e purgas

administrativas e as medidas oferecidas pelo mais recente plano de direitos humanos

verifica-se um fetiche pela dimensatildeo da normatividade que apesar de relevante acaba por

manter intocadas as estruturas administrativas lato sensu e judiciaacuterias que poderiam

continuar a interpretar algumas leis da mais recente ditadura segundo a loacutegica juriacutedica

preconizada pelos horizontes hermenecircuticos decretados pelo Estado Novo

Sob o ponto de vista especiacutefico do desmonte dos aparatos administrativos e

judiciais do regime preacutevio o PNDH-III ndash superestimado e abominado por advogados como

Ives Gandra Martins como uma deliberada tentativa de golpe de Estado ndash natildeo passa de um

instrumento de manutenccedilatildeo do status quo ao passo em que embora programe a ratificaccedilatildeo

de relevantes normativas de Direito Internacional dos Direitos Humanos em nada altera no

regime estrutural das instituiccedilotildees burocraacuteticas que relativamente agrave efetividade daquelas

normas e das tutelas por elas exigidas continuaratildeo a ser as responsaacuteveis por implementaacute-

las

Contudo o trabalho de identificaccedilatildeo e cartografia dos pontos institucionais notaacuteveis

que devem ser objeto de reformas purgas e reestruturaccedilotildees natildeo pode ser levado a cabo sem

um trabalho da memoacuteria natildeo raro coextensivo com a funccedilatildeo diagnoacutestica desempenhada

pelas Comissotildees de Verdade (CARRILO 2009b p 39) Segundo Zyl (2009a p 36-37) as

Comissotildees auxiliariam a dar iacutempeto agraves transformaccedilotildees institucionais permitindo o

conhecimento e o rompimento com praacuteticas do passado bem como identificando em seu

relatoacuterio final as instituiccedilotildees e oacutergatildeos perpetradores de graves violaccedilotildees dos direitos

humanos de modo a viabilizar mais consistentes medidas de reparaccedilatildeo material e

simboacutelica assim como as reformas institucionais e medidas legais administrativas e

institucionais suficientes para evitar a reemergecircncia dos crimes do passado

45

Nesse sentido a memoacuteria e a verdade ndash processos que tomamos como equivalentes

porque natildeo os dissociamos de uma imediata produccedilatildeo de transiccedilatildeo ndash insinuam-se como os

pressupostos da justiccedila sob suas muacuteltiplas formas e das reformas institucionais o que

permite entrever que no seio do direito de transiccedilatildeo pode-se identificar uma interface

entre memoacuteria e justiccedila mas tambeacutem entre memoacuteria e instituiccedilotildees em transiccedilatildeo Eacute o que

atesta o Relatoacuterio Anual do Alto Comissariado da Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas para os

Direitos Humanos (sect 4) ao reconhecer que ldquoarquivos e arquivistas desempenham um papel

central para reforccedilar os direitos humanosrdquo14

No mesmo sentido o Segundo Relatoacuterio

Nacional do Estado Brasileiro apresentado no mecanismo de revisatildeo perioacutedica universal do

Conselho de Direitos Humanos das Naccedilotildees Unidas de 2012 (sect 123) revelou compreender

ldquoque o trabalho de resgatar o passado eacute imprescindiacutevel para a superaccedilatildeo de violecircncias e

impunidades histoacutericas []rdquo15

Mesmo as poliacuteticas de arquivos ndash considerados tanto em suas dimensotildees pessoais

como oficiais ndash estatildeo necessariamente implicadas nessa zona de muacutetuo contaacutegio entre

memoacuteria e justiccedila na medida em que o testemunho seja colocado a serviccedilo das instituiccedilotildees

e da construccedilatildeo puacuteblica e democraacutetica da verdade No interior dessa dimensatildeo liminar que

eacute o direito de transiccedilatildeo ndash direito constitutivo ou direito entre ndash revela-se o sentido da

afirmativa de Ceciacutelia MacDowell dos Santos (2009 p 472) para quem ldquoO testemunho e a

memoacuteria estatildeo comumente a serviccedilo das instituiccedilotildees do direito na busca da verdade e da

justiccedila Mas a justiccedila tambeacutem estaacute ao serviccedilo da memoacuteriardquo Progressivamente ela deixaria

entrever a centralidade do conceito de memoacuteria da Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo

14

ANNUAL REPORT OF THE UNITED NATIONS HIGH COMMISSIONER FOR HUMAN RIGHTS

Right to the truth report of the Office of the High Commissioner for Human Rights (2009) Disponiacutevel em

lthttpwww2ohchrorgenglishbodieshrcouncildocs12sessionA-HRC-12-19pdfgt Consultado em 13

mai 2013 15

ORGANIZACcedilAO DAS NACcedilOtildeES UNIDAS Segundo Relatoacuterio Nacional do Estado Brasileiro

apresentado no mecanismo de revisatildeo perioacutedica universal do Conselho de Direitos Humanos das Naccedilotildees

Unidas (2012) Disponiacutevel em lthttpwwwsedhgovbrcooperacaorevisao-periodica-

universalRelatorio20Nacional_RPU_Brasil_port_VERSaO_FINALpdfgt Consultado em 13 mai 2013

46

CAPIacuteTULO 3 ndash O CONCEITO DE MEMOacuteRIA NA TEORIA DA JUSTICcedilA

DE TRANSICcedilAtildeO

Em cenaacuterios poacutes-conflituais a construccedilatildeo da memoacuteria das violaccedilotildees de direitos

humanos constitui o centro de gravidade da institucionalizaccedilatildeo da Justiccedila de Transiccedilatildeo

Paul Van Zyl (2009a p 32) define-a brevemente como ldquoo esforccedilo para a construccedilatildeo da paz

sustentaacutevel apoacutes um periacuteodo de conflito violecircncia em massa ou violaccedilatildeo sistemaacutetica dos

direitos humanosrdquo

No entanto eacute preciso notar que todos os mecanismos de reconstruccedilatildeo da paz por

meio da Justiccedila de Transiccedilatildeo estatildeo em maior ou menor grau sujeitos agrave singularidade

histoacuterica da realidade faacutetica poacutes-conflitual sobre a qual opera Kai Ambos (2009 p 21-22)

adverte que o acircmbito de aplicaccedilatildeo da Justiccedila de Transiccedilatildeo natildeo se limita aos quadros

histoacutericos poacutes-conflituais ou aos momentos de rupturas de regimes poliacuteticos mas

compreende igualmente ldquoprocessos de paz sem conflito eou de democracia formalrdquo

Embora sofram o inegaacutevel influxo da singularidade histoacuterica agrave qual se aplicam tais

instrumentos natildeo podem permanecer completamente submetidos agraves necessidades

domeacutesticas Ao contraacuterio do simples e acriacutetico implante de uma modelagem (ZYL 2009a

p 54) sua crescente interpenetraccedilatildeo com o Direito Internacional dos Direitos Humanos na

uacuteltima deacutecada (ZYL 2009a p 32-33) e com quadros legais transnacionais (AMBOS

2009 p 19-20) implica a definiccedilatildeo de um regime juriacutedico miacutenimo compreensivo e

flexiacutevel capaz de adaptar-se agrave singularidade das situaccedilotildees histoacutericas agraves quais se aplica

deixando-se reciprocamente fecundar por ela

Por essa razatildeo Paul Van Zyl (2009a p 48) afirma ser ldquoindispensaacutevel que as

estrateacutegias da justiccedila transicional partam de um extenso processo de consulta local e que

estejam fundamentadas nas condiccedilotildees domeacutesticasrdquo na medida em que a Justiccedila de

Transiccedilatildeo aparece como um universal flexiacutevel a operar sobre uma singularidade histoacuterica e

sociopoliacutetica Eis o que teria tornado possiacutevel superar ao menos relativamente a

polarizaccedilatildeo entre uma concepccedilatildeo de justiccedila universalista e as necessidades derivadas das

singularidades concretas derivadas de momentos de fluxo poliacutetico (TORELLY 2012 p

107)

Trata-se de um processo dinacircmico que se desenvolve por prolongamentos e

singularizaccedilotildees construiacutedos em relaccedilatildeo a outros ldquoprocessos e mecanismos associados com

os quais uma sociedade busca terminar com o legado de um passado de abusos de larga

47

escala a fim de assegurar a prestaccedilatildeo de contas servir agrave justiccedila e atingir a reconciliaccedilatildeordquo

(AMBOS 2009 p 21) Esses processos por sua vez recebem normatizaccedilatildeo internacional

bem como se beneficiam dos suportes financeiro e teacutecnico de organismos internacionais

com experiecircncia em viabilizar e assistir processos de transiccedilatildeo poliacutetico-institucional16

Dessa contaminaccedilatildeo reciacuteproca entre as circunstacircncias faacuteticas domeacutesticas ndash

resultantes de condiccedilotildees transicionais locais histoacutericas e singularizantes ndash e da pretensatildeo agrave

universalidade de que dispotildee o Direito Internacional dos Direitos Humanos aplicaacutevel

como quadro legal transnacional pode-se depreender a muacutetua gecircnese dos processos de

internacionalizaccedilatildeo dos direitos humanos e da Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo

No corpus normativo mas tambeacutem praacutetico do direito de transiccedilatildeo a reciacuteproca

contaminaccedilatildeo entre memoacuteria justiccedila e mutaccedilotildees institucionais terminaria por fazer da

memoacuteria o sustentaacuteculo da verdade e da justiccedila Natildeo haacute praacutetica de verdade ou exerciacutecio de

direito de conhecer o passado de violaccedilotildees de direitos humanos que natildeo parta de um apelo

positivo ou negativo agrave reminiscecircncia da mesma forma as instituiccedilotildees encarregadas da

efetuaccedilatildeo desse direito-entre que se define como Justiccedila de Transiccedilatildeo natildeo operam senatildeo

com fundamento em certa memoacuteria que pode ser representada no interior do processo ou

produzida como vimos como resultado do proacuteprio processo

Essa dupla implicaccedilatildeo entre memoacuteria-verdade e instituiccedilotildees revela a importacircncia

praacutetica de traccedilar os limites conceituais da ideia de memoacuteria com a qual se trabalha no seio

da Justiccedila de Transiccedilatildeo Ao mesmo tempo torna-se desejaacutevel compreender em que medida

as instituiccedilotildees satildeo produtoras de memoacuteria ao mesmo tempo em que a memoacuteria parece

poder servir de ponto de apoio para operar as transformaccedilotildees institucionais e reformas que

caracterizam o vieacutes pragmaacutetico e poliacutetico mais sensiacutevel de toda transiccedilatildeo

Ao interrogar a memoacuteria como conceito-chave das transiccedilotildees poliacuteticas eacute comum

que dois argumentos atravessem a bibliografia tradicional sobre Justiccedila de Transiccedilatildeo satildeo

eles as referecircncias ao passado como chave compreensiva do presente e do futuro das

instituiccedilotildees poliacuteticas juriacutedicas e sociais e aquele que postula a interpenetraccedilatildeo necessaacuteria

entre memoacuteria e subjetividade De seus pontos de vista natildeo se trataria de aceder pura e

simplesmente agrave histoacuteria real tal como o puro acontecimento do passado mas tambeacutem de

procurar de que maneira as pessoas percebem e deixam-se influenciar por aquilo que

aconteceu no passado

16

Segundo o Relatoacuterio Anual do Escritoacuterio do Alto Comissariado nas Naccedilotildees Unidas para os Direitos

Humanos na temaacutetica das Comissotildees de Verdade (OHCHR HRPUB061 p 33-36) Disponiacutevel em lt

httpwwwohchrorgDocumentsPublicationsRuleoflawTruthCommissionsenpdfgt Consultado em 13 mai

2013

48

Eis o que David Bloomfield (2005 p 40) compreendera como a ldquodimensatildeo

mitoloacutegica do passadordquo Portanto ao lado de uma histoacuteria objetiva factual baseada na

realidade haveria sempre um magma confuso de percepccedilotildees subjetivas crenccedilas

mitologias e interpretaccedilotildees da histoacuteria ldquowhich may or may not reflect actual events but will

significantly shape peoplersquos readiness or room for manoeuvre in the presentrdquo

(BLOOMFIELD 2005 p 40)

Dessa forma a mitologia do passado poderia posicionar-se no mesmo grau de

importacircncia que as exigecircncias de precisatildeo histoacuterica afinal compreender o passado

dependeria em alguma medida de compreender a maneira segundo a qual as pessoas o

interpretam As crenccedilas individuais e socialmente partilhadas sobre o passado tornariam

mais ou menos factiacutevel a possibilidade de realizar um processo de conciliaccedilatildeo e

Bloomfield parece aferi-la segundo a distacircncia entre a histoacuteria objetiva e a mitologia

popular criada ao seu redor

Paul Gready (2011 p 93) e Alexandra Barahona de Brito (2009 p 115) tambeacutem

enfatizam o passado como peccedila compreensiva central agraves praacuteticas transicionais Brito afirma

uma estreita correlaccedilatildeo entre passado e processo de democratizaccedilatildeo ao passo em que este

depende de um processo complexo que envolve a constituiccedilatildeo de efetiva cidadania a qual

soacute seria conquistada por meio da eliminaccedilatildeo dos legados autoritaacuterios que a precedem e

foram consolidados pelos governos militares Isso significa concentrar sobre a reforma

institucional o olhar para o futuro de modo que o trabalho da memoacuteria e da justiccedila

transcendam as poliacuteticas ndash sem duacutevida imprescindiacuteveis ndash relacionadas agrave prestaccedilatildeo de

contas sobre o passado

A memoacuteria opera sobretudo na contracorrente da resiliecircncia das estruturas sociais

(PAIGE 2011 p 11) do passado no presente Natildeo por acaso Franccedilois Ost (1999 p 88-

94) considera o direito e logicamente as instituiccedilotildees que com ele se relacionam o

escrivatildeo e o guarda da memoacuteria social afianccedilando sua comunhatildeo e continuidade De

acordo com Ost o direito apresenta-se a um soacute tempo como o conjunto de comandos

especiais ndash conceito proveniente das claacutessicas definiccedilotildees positivo-analiacuteticas que

confundem direito e suas funccedilotildees de gestatildeo ndash bem como o grande corpus inscritor de uma

memoacuteria que possui funccedilatildeo instituinte

Se Franccedilois Ost pudera afirmaacute-lo isso se deve ao fato de a memoacuteria encontrar-se

duplamente implicada do ponto de vista das instituiccedilotildees Como elemento de produccedilatildeo

espera-se que a memoacuteria poliacutetica das violaccedilotildees dos direitos humanos inscrita em arquivos e

documentos constitua o fundamento e a justificativa para reformas saneamentos

49

administrativos purgas aboliccedilotildees de instituiccedilotildees e reestruturaccedilotildees democraacuteticas capazes

de sustentar a emergecircncia de um regime qualitativamente democraacutetico como elemento

produzido pode-se dizer que tambeacutem a Justiccedila de Transiccedilatildeo produz memoacuterias e as

inscreve em arquivos ao processar julgar produzir narrativas oficiais fixar os signos da

verdade histoacuterica de um passado de violaccedilotildees

No interior desse quadro eacute preciso definir o lugar da memoacuteria na Justiccedila de

Transiccedilatildeo a partir de trecircs dimensotildees que se interpenetram e confluem para definir o sentido

da memoacuteria no campo transicional segundo as doutrinas transicionais contemporacircneas (1)

a inscriccedilatildeo normativa da memoacuteria no acircmbito do Direito Internacional dos Direitos

Humanos e sua relaccedilatildeo com o direito agrave verdade (2) As diversas camadas conceituais pelas

quais a memoacuteria deixou-se apanhar do ponto de vista conceitual no campo teoacuterico da

Justiccedila de Transiccedilatildeo ndash o que visa a definir o lugar da memoacuteria como elemento-chave de

compreensatildeo do campo transicional de modo a permitir uma iluminaccedilatildeo reciacuteproca (3) os

limites praacuteticos teacutecnicos e institucionais pelos quais a memoacuteria se torna um objeto de

investimento teoacuterico que como veremos deixam transparecer a existecircncia do

reconhecimento mais ou menos imediato de uma relaccedilatildeo essencial entre memoacuteria e

transiccedilatildeo ndash relaccedilatildeo esta jamais explicitada como tal e todavia sempre mais ou menos

aparente dedutiacutevel ou no limite suposta pelos teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo

Apenas a articulaccedilatildeo da anaacutelise dessas trecircs dimensotildees permitiraacute compreender o

lugar conceitual e a um soacute tempo praacutetico da memoacuteria em relaccedilatildeo ao campo transicional

bem como a concepccedilatildeo de temporalidade que estaacute envolvida nessas apreensotildees do conceito

de memoacuteria pela Justiccedila de Transiccedilatildeo definindo assim o traccedilado de seus limites

conceituais internos

sect 1 MEMOacuteRIA VERDADE E

DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS

Natildeo raro os direitos agrave memoacuteria e agrave verdade emergem em definiccedilotildees que os tomam

pela mesma acepccedilatildeo Joseacute Carlos Moreira da Silva Filho (2011 p 282) por exemplo

definiu-o recentemente relacionando-o agrave ldquonecessaacuteria apuraccedilatildeo dos fatos ocorridos em

periacuteodos repressivos e autoritaacuterios especialmente em ditaduras e totalitarismos

demarcando a necessidade de um amplo acesso aos documentos puacuteblicos O apelo agrave

memoacuteria indica aleacutem disso a necessidade de que o Estado empreenda poliacuteticas de

memoacuteria para reforccedilar a ideia da natildeo repeticcedilatildeordquo Tambeacutem testemunhando uma

50

proximidade entre memoacuteria e verdade Marcelo Torelly (2012 p 271) admite que ldquoa ideia

de lsquodireito agrave memoacuteriarsquo conecta-se agrave de lsquodireito agrave verdadersquo como forma de afirmar o direto

da sociedade mas tambeacutem das viacutetimas de tambeacutem construiacuterem discursos com pretensatildeo

de verdade e apresentarem esses discursos ao Estado como meio de disputa democraacutetica da

versatildeo oficial do passadordquo

A aparente confusatildeo poreacutem natildeo implica que seja impossiacutevel discernir do ponto de

vista semacircntico ou normativo ambos os direitos Sinteticamente ldquoSe o direito agrave verdade

refere-se ao acesso e ao conhecimento de informaccedilotildees [] o direito agrave memoacuteria objetiva

no plano coletivo a inserccedilatildeo ou reinserccedilatildeo de determinadas narrativas no seio socialrdquo

(TORELLY 2012 p 271) Apesar de propor essa distinccedilatildeo segundo a qual a verdade

comporta uma dimensatildeo objetiva do conhecimento da verdade dos fatos enquanto a

memoacuteria entreteacutem-se na dimensatildeo subjetiva da pluralizaccedilatildeo de narrativas sociais ainda

assim seria possiacutevel devido agrave sua proximidade falar em um ldquobinocircmio verdade-memoacuteriardquo

com papeis solidaacuterios (TORELLY 2012 p 271) Promova-se ou natildeo uma distinccedilatildeo entre

as ideias-forccedila de memoacuteria e verdade ambas natildeo deixam seja qual for o caso de serem

correlatas tampouco cessam de ser invocadas como condiccedilotildees-chave na produccedilatildeo das

alteraccedilotildees praacuteticas inerentes agraves transiccedilotildees poliacuteticas Eis precisamente o que Torelly (2012

p 281) afirma ao aludir ao caraacuteter transformador da constituiccedilatildeo de uma memoacuteria social

das violaccedilotildees de direitos humanos vinculando-a ao advento de um futuro de natildeo repeticcedilatildeo

ldquoA consolidaccedilatildeo de uma memoacuteria social criacutetica em relaccedilatildeo ao passado passa a funcionar

como combustiacutevel para a defesa de uma cultura democraacutetica sustentando e legitimando as

reformas poliacuteticas e juriacutedicas que permitem o ressurgimento nacional em uma nova

configuraccedilatildeo poliacutetica []rdquo17

Trata-se de uma definiccedilatildeo que enfoca a funccedilatildeo poliacutetica do direito agrave memoacuteria e agrave

verdade sintetizando-os ao conhecimento da verdade histoacuterico-factual e agrave vedaccedilatildeo ndash

normativa e eacutetico-social ndash da repeticcedilatildeo de um passado de violaccedilotildees de direitos humanos

que seria afianccedilado por poliacuteticas da memoacuteria O conceito estrutura-se portanto sobre uma

articulaccedilatildeo agrave primeira vista inaparente ndash mas necessaacuteria ndash entre passado e futuro de

inspiraccedilatildeo possivelmente adorniana segundo a qual o conhecimento do passado de

17

Sobre o tema Torelly (2012 p 281) afirma ainda ldquoAo lembrar e reparar por meio de mecanismos de

Justiccedila de Transiccedilatildeo o Estado sinaliza uma autocriacutetica quanto ao abuso perpetrado e consolida uma narrativa

(mesmo que tardia) de igualdade perante a lei oferecendo tratamento juriacutedico equacircnime aos cidadatildeos e

reincorporando o legado autoritaacuterio agraves categorias de justiccedila que o proacuteprio autoritarismo afastou Esse

processo sinaliza de modo consciente para um futuro de natildeo repeticcedilatildeo e ainda permite aos mais jovens que

se socializem em uma cultura conscientemente esclarecida do passado e da importacircncia democraacutetica

incorporando os valores construiacutedos na democracia como caracteres culturais permanentes do sistema

simboacutelico da sociedade []rdquo

51

violaccedilotildees de direitos humanos de algum modo asseguraria sua natildeo repeticcedilatildeo no futuro

Parece certo que entre os teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo a aposta seja feita no valor

cognitivo criacutetico e coletivo do esclarecimento sobre a verdade do passado e da produccedilatildeo

de narrativas sociais plurais sobre ele Todavia de um lado reduz-se memoacuteria e verdade a

sua faceta reminiscente cognitivo-pragmaacutetica e de representaccedilatildeo partilhada de outro

extrai-se do proacuteprio fato dessa partilha fomentada ou pelo menos garantida pelas

instituiccedilotildees em transiccedilatildeo um enigmaacutetico potencial transformador que jamais encontra

explicaccedilatildeo adequada na bibliografia dedicada agrave Justiccedila de Transiccedilatildeo

Na dimensatildeo normativa mais ampla preconizada pelo Direito Internacional dos

Direitos Humanos David Bloomfield (2005 p 40) reconhece que o passado eacute composto

por muitas camadas a fim de indicar o substrato cultural mais profundo que lastreia a

compreensatildeo que o direito agrave memoacuteria e agrave verdade poderiam incrementar ldquoThe past has

many layers This fact needs to be acknowledged before addressing the past through a

reconciliation process Many violent conflicts and wars are not simply the outcome of one

particular set of recent circumstances which led to violencerdquo

Segundo Bloomfield a compreensatildeo dessas vaacuterias camadas do passado apela agrave

problemaacutetica questatildeo sobre o quanto longe se deveria ir no passado para realizar uma

reconciliaccedilatildeo Contudo a profundidade do enraizamento histoacuterico-geneacutetico dessa base

cultural autoritaacuteria cuja emergecircncia e visibilidade os direitos agrave memoacuteria e agrave verdade

deveriam afianccedilar natildeo deve ser o uacutenico horizonte de delimitaccedilatildeo de tais direitos

O direito agrave memoacuteria como direito cultural ao qual correspondem deveres de caraacuteter

transgeracional eacute o tecido natildeo raro inaparente sobre o qual se coloca em jogo toda e

qualquer praacutetica juriacutedico-poliacutetica de Justiccedila de Transiccedilatildeo Mesmo as transiccedilotildees

incompletas inacabadas e interrompidas mantecircm com o potencial transicional da

memoacuteria uma relaccedilatildeo inequiacutevoca ainda que seja para separaacute-lo do seio das praacuteticas

poliacuteticas decretando o esquecimento ou sobrecodificando suas emergecircncias no seio social

ou coletivo18

Da perspectiva do Direito Internacional dos Direitos Humanos a produccedilatildeo da

memoacuteria implicada nas operaccedilotildees de transiccedilatildeo poliacutetica eacute o cerne no qual se articulam as

18

Nesse sentido em La meacutemoire lrsquohistoire lrsquooubli Paul Ricœur destacou a relaccedilatildeo dialeacutetica entre memoacuteria

e esquecimento como se as categorias estivessem entregues a uma espeacutecie de jogo entre anverso e verso

ldquoDrsquoune part les notations sur lrsquooubli constituent en grande partie un simple envers de celles portant sur la

meacutemoire se souvenir crsquoest pour un grand part ne pas oublier Drsquoautre part les manifestations individuelles

de lrsquooubli sont inextrincablement troublantes de lrsquooubli mecircleacutees agrave ses formes collectives au point que les

expeacuteriences les plus maleacutefiques de lrsquooubli telle la hantise ne deacuteploient leurs effets les plus maleacutefiqus qursquoagrave

lrsquoeacutechelle des meacutemoires collectives[]rdquo (RICŒUR 2000 p 574-575)

52

dimensotildees dos Direitos Civis e Poliacuteticos bem como dos Direitos Econocircmicos Sociais e

Culturais no contexto das transiccedilotildees Nesse aspecto Javier Ciurlizza (2009a p 27)

estabelece que a memoacuteria ldquonatildeo eacute um exerciacutecio individual no qual algueacutem diz o que sabe

mas sim um processo cultural educativo e poliacutetico de estabelecimento de consensos sobre

a identidade nacionalrdquo Alexandra Barahona de Brito (2009a p 72) em sentido anaacutelogo

tambeacutem reconhece agrave memoacuteria a qualidade de locus privilegiado de interaccedilatildeo entre direitos

assegurando como nuacutecleo significativo do Direito Internacional dos Direitos Humanos

sua indivisibilidade e interdependecircncia

Relatoacuterio Anual do Alto Comissariado para Direitos Humanos das Naccedilotildees Unidas

procedendo a um estudo analiacutetico sobre direitos humanos e Justiccedila de Transiccedilatildeo reiterou

expressamente o potencial dos mecanismos transicionais para incorporar direitos de

natureza econocircmica social e cultural tornando sua investigaccedilatildeo extensatildeo da atividade das

Comissotildees de Verdade (OHCHRA-HRC1218 2009 sectsect 3 59 e 60) confirmando a visatildeo

doutrinaacuteria segundo a qual ao permitir equilibrar poliacutetica e direito a Justiccedila de Transiccedilatildeo

teria sido capaz de dissolver recentemente ndash e talvez ateacute mesmo definitivamente ndash a tensatildeo

entre justiccedila e paz a fim de afirmaacute-las como condicionantes reciacuteprocas19

Ruti Teitel (2000 p 271-218) por sua vez assegura que a dimensatildeo veritativa que

as investigaccedilotildees histoacutericas transicionais engendram ldquoreveal that the relevant truths are

those that are implicated in a particular statersquos legacy or injustice There are not universal

essential or metatruthsrdquo Ainda que memoacuteria verdade e justiccedila revelem-se imperativos de

aspiraccedilotildees mais ou menos universais trata-se sempre de universais cujo conteuacutedo se

esmaece caso lhes seja subtraiacutedo o solo de singularidades ao qual pertencem ou a aacuterea de

jogo e de arranjos poliacuteticos que os designam

Uma vez verificado o protagonismo dos quadros normativos internacionais dos

direitos humanos reconhece-se que a responsabilizaccedilatildeo judicial soacute pode lastrear-se na

produccedilatildeo da memoacuteria e no desvelamento da verdade Do ponto de vista do acesso agrave justiccedila

e agrave reparaccedilatildeo por meio das decisotildees judiciaacuterias eacute que resta demonstrado de que modo o

direito agrave memoacuteria e agrave verdade exercem concretamente uma capacidade integrativa de

direitos ao menos sob a perspectiva da existecircncia de uma norma global de

responsabilizaccedilatildeo que ldquonatildeo depende da adesatildeo de pessoas ou paiacutesesrdquo (MALLINDER

19

Cf nesse particular os paraacutegrafos indicados acima no Relatoacuterio Anual do Escritoacuterio do Alto Comissariado

nas Naccedilotildees Unidas para os Direitos Humanos ldquoAnalytical study on human rigghts and transitional justicerdquo

(OHCHR A-HRC 1218 2009) Disponiacutevel em lthttpwwwunrolorgfiles96696_A-HRC-12-18_Epdfgt

Consultado em 13 mai 2013

53

2011 p 502) Isto significa admitir como fizera Deisy Ventura (2011 p 327-335) que o

costume internacional natildeo deixa de ser uma fonte do Direito Penal Internacional

Embora certo poacutelemos constitua o diapasatildeo quanto agrave validade juriacutedica de anistias

negociadas que visem agrave conciliaccedilatildeo ndash essencialmente vinculadas a uma soluccedilatildeo de exceccedilatildeo

ndash as anistias em branco que acobertem graves violaccedilotildees de direitos humanos

protagonizadas por agentes de Estado por exemplo padecem de um rechaccedilo de caraacuteter

praticamente universal entre os teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo (PENSKY 2011 p 99-

100)

Como resultado da historicidade das lutas pelo reconhecimento normativo e pela

implementaccedilatildeo dos direitos humanos a conclusatildeo a que chega Christine Bell (2009 p

106) eacute a de que se natildeo eacute possiacutevel saber exatamente quais os limites das anistias eacute no

miacutenimo possiacutevel afirmar que a proibiccedilatildeo das anistias em branco estaria contemplada no

novo campo da Justiccedila de Transiccedilatildeo como resultado imediato de sua internacionalizaccedilatildeo

Na medida em que os direitos agrave verdade e agrave memoacuteria encontram-se no cerne nos

processos judiciais que visam agrave responsabilizaccedilatildeo dos agentes violadores de direitos

humanos pode-se notar a centralidade dos direitos agrave memoacuteria e agrave verdade na quadratura

normativa internacional Nesse contexto a produccedilatildeo de memoacuterias institucionais no campo

da responsabilizaccedilatildeo penal internacional ou nos julgamentos transicionais domeacutesticos satildeo

informados pela norma global de responsabilizaccedilatildeo do Direito Internacional dos Direitos

Humanos cuja integridade eacute salvaguardada precisamente pela concreccedilatildeo pragmaacutetica e

judiciaacuteria dos direitos agrave memoacuteria e agrave verdade

sect 2 OS CONTORNOS DO CONCEITO DE MEMOacuteRIA

NO CAMPO TRANSICIONAL

Se foi possiacutevel compreender qual o lugar ocupado pela memoacuteria no seio do Direito

Internacional dos Direitos Humanos bem como sua relaccedilatildeo com o direito agrave verdade seria

preciso delimitar o conceito de memoacuteria sobre o qual os teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo

apoiam suas doutrinas a fim de que se possa verificar ainda uma vez sua reciacuteproca

constitutividade

Com efeito natildeo haacute um senso comum teoacuterico a respeito do conceito de memoacuteria

assim como os horizontes conceituais das praacuteticas da Justiccedila de Transiccedilatildeo padecem de uma

relativa imprecisatildeo categoacuterica e como quisera Paul Gready (2011 p 02) implicam natildeo

54

raro certo vaacutecuo analiacutetico indiciaacuterio da ldquogenerally under-theorized nature of much work on

transitional justicerdquo Idecircntico vaacutecuo conceitual relativo agrave ideia de memoacuteria e aos processos

de memorializaccedilatildeo eacute reconhecido por Judy Barsalou e Victoria Baxter com fundamento

nas praacuteticas concretas das Comissotildees de Verdade20

Apesar da heterogeneidade conceitual de que a ideia de memoacuteria se reveste no

campo transicional eacute possiacutevel estabelecer lineamentos comuns que por reduccedilotildees

sucessivas permitiriam uma progressiva aproximaccedilatildeo e elaboraccedilatildeo de um canevaacutes teoacuterico

comum em que se funda a aparente multiplicidade dos conceitos de memoacuteria envolvidos

pela Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo acerca do qual as instituiccedilotildees desempenham uma

funccedilatildeo ora de registro ora de produccedilatildeo

Nesse sentido podem-se estabelecer dois limites que resultam das apropriaccedilotildees

conceituais da memoacuteria realizadas pela Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo (1) o limite

segundo o qual o conceito de memoacuteria eacute compreendido como representaccedilatildeo coletiva

tendendo agrave formar identidade de grupo ou nacional Por vezes apareceraacute como um

processo cultural que poreacutem natildeo eacute jamais explicitado do ponto de vista de sua dinacircmica

interna (2) o limite em que a memoacuteria eacute apreendida como resultado expressivo de uma

ontologia negativa como representaccedilatildeo ou como representificaccedilatildeo do ausente por meio

dos testemunhos individuais o que implica que a memoacuteria seja tratada ora como um

fenocircmeno despido de fundamento no real ora limitada agrave sua caracteriacutestica psicoloacutegica e

reminiscente Trata-se de demonstrar brevemente como se podem deduzir essas balizas

analiacuteticas para definir os contornos do conceito de memoacuteria na Teoria da Justiccedila de

Transiccedilatildeo

Da perspectiva desse primeiro limite analiacutetico o conceito de memoacuteria aparece ora

como objeto social ora como processo cultural em cuja constituiccedilatildeo encontra-se envolvida

certa comunidade poliacutetica Em comum os teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo insistiratildeo sobre

a prevalecircncia do caraacuteter social e poliacutetico da memoacuteria e da constituiccedilatildeo de subjetividades ou

identidades que ela proporciona Assim Javier Ciurlizza (2009a p 27) afasta a

identificaccedilatildeo vulgar entre memoacuteria e lembranccedila individual considerando-a ldquoum processo

20

ldquoTo date truth commissions have not articulated in much detail what memorialization means how it

should be connected to other transitional justice processes who should take charge and other specific points

of consideration By not taking into greater account the role of memorialization and the educational processes

that should accompany it truth commissions are losing an important opportunity to extend their impactrdquo

(BARSALOU BAXTER 2007 p 10)

55

cultural educativo e poliacutetico de estabelecimento de consensos sobre a identidade

nacionalrdquo

Nesse aspecto a constituiccedilatildeo da memoacuteria confunde-se com a produccedilatildeo de uma

memoacuteria coletiva da qual segundo Peter R Baehr (2007 p 16) as Comissotildees da Verdade

estariam encarregadas no intento de contribuir para ldquoa moral revival and provide the basis

for national unityrdquo

Feacutelix Reaacutetegui Carrillo (2009b p 42) compreende a memoacuteria como uma

representaccedilatildeo social compartilhada que manteacutem uma relaccedilatildeo com as instituiccedilotildees ao passo

em que essa representaccedilatildeo possa ser forjada a partir das narrativas oficiais produzidas em

um registro de verossimilhanccedila e na medida em que sua efetuaccedilatildeo demanda poliacuteticas

puacuteblicas Segundo Carrillo (2009b p 32) o objeto das transiccedilotildees poliacuteticas eacute a proacutepria

cultura que constitui uma dimensatildeo da arquitetura sociopoliacutetica da construccedilatildeo da

democracia integrando o processo poliacutetico

Desde a perspectiva de Carrillo o que estaria em questatildeo nas Comissotildees da

Verdade por exemplo seria a produccedilatildeo de sentido concretizada em um objeto cultural

uma narrativa textual ou natildeo que se avizinha de um objeto complexo e polieacutedrico capaz

de estabelecer a verdade a partir de muacuteltiplas perspectivas sem recorrer ao relativismo

Trata-se de praacutetica que segundo Carrillo (2009b p 40) estabelece-se sobre certas

tecnologias da verdade bem como sobre a base testemunhal que se confunde com as

viacutetimas e os sobreviventes

A narrativa instrumento teacutecnico que se origina das instituiccedilotildees faz-se integrar agrave

memoacuteria como um objeto social normalmente guiado por valores eacutetico-poliacuteticos como a

democracia e os direitos humanos bem como pela correccedilatildeo do registro histoacuterico da

violecircncia Uma vez que tal instrumento teacutecnico desfrute ldquo[]de certa legitimidade

simboacutelica que a converte em socialmente vaacutelidardquo eacute possiacutevel constituir no corpo de um

objeto ldquoao mesmo tempo textual e socialrdquo uma memoacuteria (CARRILLO 2009b p 41)

A representaccedilatildeo social a que se reduz a memoacuteria nesse caso natildeo se limita agrave

partilha de ldquoenunciados com pretensotildees de verdade sobre o passado violento ou

repressivordquo mas constitui segundo Feacutelix Reaacutetegui Carrillo (2009b p 42) aleacutem de ldquouma

fonte de criacutetica e deslegitimaccedilatildeo de certas praacuteticas sociais precedentesrdquo ldquocerta forma de

encarar a luta poliacutetica certos haacutebitos e retoacutericas que determinam a relaccedilatildeo entre as diversas

classes sociais e os conglomerados eacutetnicos da naccedilatildeo ndash e naturalmente uma demanda de

transformaccedilatildeo de tais praacuteticasrdquo Trata-se nesse sentido de uma memoacuteria com caraacuteter

poliacutetico Poliacuteticas puacuteblicas de memoacuteria destinam-se portanto a uma mobilizaccedilatildeo de

56

recursos simboacutelicos que tendem a modificar a ordem significante de coisas repercutindo

sobre outras dimensotildees da organizaccedilatildeo social

Assim Carrillo articula ao redor da memoacuteria compreendida como partilha de uma

representaccedilatildeo social ou como um objeto social as narrativas oficiais provenientes da

atuaccedilatildeo das instituiccedilotildees que refletem a verdade e a memoacuteria de um passado de violaccedilotildees de

direitos agrave axiologia democraacutetica e humanista bem como agrave organizaccedilatildeo poliacutetica das lutas

em prol da transformaccedilatildeo de praacuteticas violadoras

Em sentido anaacutelogo Alexandra Barahona de Brito (2009a p 72) entrevecirc ao menos

duas possibilidades de compreender as poliacuteticas da memoacuteria no seio da Justiccedila de

Transiccedilatildeo ldquoDe forma restrita consiste de poliacuteticas para a verdade e para a justiccedila

(memoacuteria oficial ou puacuteblica) vista mais amplamente eacute sobre como a sociedade interpreta

e apropria o passado em uma tentativa de moldar o seu futuro (memoacuteria social)rdquo

Elizabeth Jelin (2011 p 188-189) por sua vez considera a memoacuteria um processo

eminentemente subjetivo de construccedilatildeo de significaccedilatildeo do passado no ato presente da

recordaccedilatildeo ancorada nas experiecircncias e na ordem do simboacutelico Entretanto afirma Jelin

(2011 p 189) ldquoThere is a dynamic link between individual subjectivities societal or

collective belongingrdquo de modo que o passado e seus significados satildeo incorporados a partir

de vaacuterios produtos culturais que se tornam seus veiacuteculos

De seu turno Teitel adverte que no periacuteodo poacutes-Guerra Fria a Justiccedila de Transiccedilatildeo

incorpora muito de seu discurso normativo vindo de campos de saber externos ao direito

eacutetica medicina teologia etc concebendo interpenetraccedilotildees tambeacutem entre moral e

psicologia de forma a ampliar a ideia de anistia no sentido objetivo da reconciliaccedilatildeo

Poreacutem isso teria acarretado a conversatildeo do paradigma da Justiccedila de Transiccedilatildeo em

algo como ldquouma religiatildeo secularizada sem leirdquo Teitel (2003 p 82) o afirmara na medida

em que diagnostica que o advento deste fenocircmeno baseia-se na corrupccedilatildeo da autoridade

poliacutetica e legal promovida por um deslocamento em direccedilatildeo agrave autoridade moral e religiosa

que prometera a partir de uma linguagem universalizante ldquothe aims of forgiveness and the

possibility of political redemptionrdquo Isso deriva de uma confusatildeo entre as esferas do

privado que envolve a eacutetica e do puacuteblico que envolve o poliacutetico possibilitando que o

discurso moral-religioso introduzisse uma fundamentaccedilatildeo moral na Justiccedila de Transiccedilatildeo ndash

o que Teitel natildeo hesita em interpretar como resultado do contributo de uma teologia

poliacutetica que aposta no potencial emancipador da histoacuteria

Segundo Teitel (2000 p 69-70) a fundamentaccedilatildeo e inspiraccedilatildeo que revestiu a

justiccedila histoacuterica de um caraacuteter messiacircnico encontraria raiacutezes na modernidade iluminista

57

em uma aposta ao mesmo tempo kantiana e marxista na capacidade redentora da histoacuteria e

da verdade que assume a redenccedilatildeo como teleologia e supotildee que verdade e histoacuteria satildeo uma

e mesma coisa

No entanto as teorias contemporacircneas da histoacuteria desafiaram essa visatildeo

reconhecendo a partir de seu giro interpretativo que natildeo haacute uma liccedilatildeo uniacutevoca a extrair do

passado mas o reconhecimento do grau segundo o qual a compreensatildeo histoacuterica eacute

dependente das contingecircncias poliacuteticas e sociais

Embora o canevaacutes da memoacuteria coletiva seja constitutiva de um corpo social ndash e

Teitel assume que as verdades transicionais satildeo construiacutedas por processos de produccedilatildeo da

memoacuteria coletiva ndash a autora lembra que Friedrich Wilhelm Nietzsche e Michel Foucault

exploraram os problemas epistecircmicos que a poliacutetica implica especialmente a iacutentima

relaccedilatildeo entre imposiccedilotildees do poder e conhecimento Por isso interrogar a histoacuteria em

contextos de transiccedilatildeo impotildee um desafio em virtude da natureza poliacutetica da histoacuteria que

natildeo raro resta exposta pelas respostas dadas agrave transiccedilatildeo

A memoacuteria coletiva correlata de determinada identidade social eacute criada no interior

de certos quadros por meio de siacutembolos e rituais no contexto de transiccedilatildeo os quadros

costumeiros de partilha social (poliacuteticos religiosos e sociais) encontram-se estilhaccedilados ou

ao menos ameaccedilados Assim Teitel sublinha a importacircncia e a central constitutividade do

direito em relaccedilatildeo agrave memoacuteria social ao afirmar que ldquoit is law its framework and processes

that in great part shape collective memory In transitions the pivotal role in shaping social

memory is played by the lawrdquo (TEITEL 2000 p 71)

Apesar de sua criacutetica da teleologia redentora da histoacuteria no acircmbito do conceito de

memoacuteria Teitel natildeo supera o referencial conceitual representativo presente nos trabalhos

sobre Justiccedila de Transiccedilatildeo Em verdade termina por definir a memoacuteria no campo

transicional como memoacuteria coletiva isto eacute como um processo de reconstruccedilatildeo da

representaccedilatildeo do passado agrave luz do presente21

Se as histoacuterias de transiccedilatildeo possuem sua

proacutepria narrativa por outro lado vinculam-se a uma mais duradoura histoacuteria do Estado

implicando a um soacute tempo marcas de continuidade e descontinuidade ndash e seu equiliacutebrio

constitui a delicada dinacircmica a ser regulada pela produccedilatildeo da histoacuteria transicional

O mesmo acontece com a verdade definida como um consenso socialmente

partilhado ao passo em que a histoacuteria transicional seja gerada a partir das formas e praacuteticas

21

ldquoCollective memory is a process of reconstructing the representation of the past in the light of the presentrdquo

(TEITEL 2000 p 70)

58

legais dadas no interior de certo sistema de maneira a lanccedilar luzes sobre as instituiccedilotildees

franqueando mudanccedilas poliacuteticas

As narrativas histoacutericas de transiccedilatildeo satildeo produzidas por intermeacutedio de diversos

meios legais como julgamentos que formam precedentes com a gecircnese de corpos

burocraacuteticos para esse gecircnero de propoacutesitos a instalaccedilatildeo de comissotildees de verdade ou a

construccedilatildeo de histoacuterias oficiais Outras formas de prestaccedilatildeo de contas no campo histoacuterico

devem-se a iniciativas privadas de jornalistas historiadores e demais profissionais ligados

a este campo de saberes

Os julgamentos constituem a archē na construccedilatildeo das histoacuterias de transiccedilatildeo uma

vez que satildeo formas duradouras de produccedilatildeo da memoacuteria coletiva embora antes

constituam modos de processar fatos controversos estabelecer a verdade e no campo da

justiccedila criminal responsabilizar com base na verificaccedilatildeo de culpa ainda que sua

importacircncia como criteacuterio de verdade possa ser cultural e historicamente variaacutevel

Por meio dos julgamentos a busca pela verdade histoacuterica encontra-se implicada nos

quadros da prestaccedilatildeo de contas e da busca pela justiccedila Em algum niacutevel o uso de

julgamentos para interrogar a histoacuteria vai ao encontro da ēpistēme geralmente aceita por

nossos sistemas de justiccedila criminal Assim verdade e justiccedila satildeo segundo Teitel (2000 p

72-73) produzidas conjuntamente e desempenham importante papel no sentido de

deslegitimar o regime precedente estabelecendo a legitimidade do regime que o sucedeu

Esses poreacutem constituem os limites do conceito de memoacuteria tal como este

geralmente emerge entre os teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo Se de um lado reconhecem a

dimensatildeo puacuteblica da produccedilatildeo da memoacuteria e da verdade como representaccedilatildeo simboacutelica

apontando para seu caraacuteter coletivo social e poliacutetico parecem apontar ainda que

timidamente um potencial intrinsecamente transformador e redentor da memoacuteria que

sempre se define por uma relaccedilatildeo do passado recuperado no presente com alguma

dimensatildeo do futuro os imperativos de natildeo repeticcedilatildeo a criaccedilatildeo de uma identidade nacional

a construccedilatildeo da pertenccedila social ou a ldquotentativa de moldar o futurordquo por meio de certa

memoacuteria social

Que o conceito de memoacuteria mobilizado pela Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo natildeo se

restrinja a uma apreensatildeo meramente individual da memoacuteria ele estaacute ainda baseado no

testemunho individual e na formaccedilatildeo puacuteblica de uma memoacuteria que se reduz ora agrave faceta da

representaccedilatildeo coletiva ora ao seu registro na dimensatildeo cultural da reminiscecircncia

Apesar de Teitel (2003 p 87) afirmar o contraacuterio e sustentar que a Justiccedila de

Transiccedilatildeo implicaria uma abordagem natildeo-linear do tempo a concepccedilatildeo transicional

59

meramente representativa da memoacuteria erige-se poreacutem sobre uma apreensatildeo da

temporalidade que a limita a uma linearidade unidimensional em que passado e futuro satildeo

rearticulados no presente sem que jamais se explique de que modo puderam se tornar

copresentes Segundo a representaccedilatildeo que a Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo fizera do

tempo passado e futuro natildeo possuem realidade proacutepria pelo contraacuterio constituem duas

dimensotildees negativas o primeiro porque jaacute natildeo eacute mais o segundo porque natildeo eacute ainda ndash

embora seja constantemente assumido pelas teorias e por elas evocado como horizonte de

efetuaccedilatildeo natildeo raro redentor Nesse contexto a transiccedilatildeo eacute apresentada geralmente como

um processo capaz de produzir a passagem de um termo a outro mas sua dinacircmica jamais

eacute explicada a natildeo ser sob a metaacutefora obscura e paradoxal das ldquocontinuidades-rupturasrdquo A

representaccedilatildeo unidimensional e linear da temporalidade deduz-se do modo

desontologizado e negativo como o passado e o futuro satildeo representados pelas

apropriaccedilotildees dos teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo em meio ao magma confuso e

demasiadamente real das singularidades presentes que exigem por vezes sua proacutepria

recusa e destituiccedilatildeo

Nesse passo algo da dinacircmica pela qual a memoacuteria pode ser considerada condiccedilatildeo

para a transformaccedilatildeo do real ndash das subjetividades aos viacutenculos sociais dos viacutenculos

poliacuteticos agraves estruturas institucionais ndash resta incompreendido ou pelo menos elidido do

discurso vagamente redentor que se observa com recorrecircncia nas obras de teoacutericos da

Justiccedila de Transiccedilatildeo Isso deriva de eles terem procurado assentar os processos de

transformaccedilatildeo institucional em um conceito de memoacuteria reduzido a uma representaccedilatildeo

social ou cultural ignorando-a em sua realidade imanente negativizando-a como uma

regiatildeo do existente degradando sua ontologia particular e reduzindo a complexa relaccedilatildeo

entre memoacuteria e transiccedilatildeo a deus ex machina das transformaccedilotildees sociais e poliacuteticas

exigidas em periacuteodos poacutes-conflituais22

Da progressiva definiccedilatildeo do campo teoacuterico ocupado pelo conceito de memoacuteria na

Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo resultou a verificaccedilatildeo de que a memoacuteria eacute geralmente

compreendida como um elemento-chave para viabilizar a transiccedilatildeo reconhece-se

portanto a correlaccedilatildeo entre memoacuteria e transiccedilatildeo e todavia essa relaccedilatildeo eacute sempre obscura

ou pressuposta da mesma forma que a consistecircncia desse passado redentor jamais se

encontra definida em seus proacuteprios termos e enquanto tal Ao mesmo tempo em que ele

22

Cf nesse sentido os uacuteltimos segmentos da presente seccedilatildeo bem como a seccedilatildeo posterior (Capiacutetulo 3 sect 3)

ldquoA centralidade da memoacuteria e seus potenciais transformativosrdquo para acompanhar em maior detalhe a

demonstraccedilatildeo dessas asserccedilotildees

60

natildeo deve ser reduzido agrave reminiscecircncia individual parece consistir em algo que soacute pode ser

contado ou narrado na medida em que carrega conteuacutedos culturais e potenciais

transformativos eacute algo que natildeo dispensa as figuras encarnadas das testemunhas e dos

sobreviventes ndash sujeitos concretos capazes de transformar a experiecircncia real em

representaccedilatildeo simboacutelica apta a forjar o solo comum de uma nova cultura desejosamente

democraacutetica mas tambeacutem o fundamento identitaacuterio social nacional ou eacutetnico

(BARSALOU BAXTER 2007 p 01)

O perigo imanente a essa concepccedilatildeo de memoacuteria ndash que reduz a memoacuteria agravequilo que

os grupos sociais nacionais ou eacutetnicos decalcam dos significantes poliacuteticos institucionais e

estatais ou das representaccedilotildees infraestruturais correntes ndash eacute poliacutetico De um lado arrisca-

se fixar a memoacuteria agrave unidade monoliacutetica contra a qual Priscilla B Hayner (2011 p 84) se

acautela ndash embora ela confesse acreditar ser possiacutevel fixar verdades factuais

inquestionaacuteveis de outro eacute sempre possiacutevel render-se ao discurso redentor e pouco criacutetico

da memoacuteria e da verdade o perigoso momento em que a Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo

pode converter-se em chancela juriacutedica da reconciliaccedilatildeo a qualquer preccedilo e da extorsatildeo do

perdatildeo das quais entre outros nos previne Ruti Teitel (2003 p 81)

Fernando Catroga apresenta um excursus que visa a compreender as relaccedilotildees entre

memoacuteria e histoacuteria como gestos de uma representificaccedilatildeo do ausente ndash enfatizando ainda

mais a emergecircncia do conceito de memoacuteria sob o fundo de uma ontologia negativa Eis o

que definiria um segundo limite analiacutetico a fim de compreender os contornos do conceito

de memoacuteria na Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo

Umbilicalmente ligada agrave histoacuteria a memoacuteria apareceraacute do lado da morte e do

negativo (CATROGA 2009b p 75) desde que se compreenda a histoacuteria como um duplo

narrativo do gesto do sepultamento de um evento e da simulaccedilatildeo ritual de sua presenccedila A

histoacuteria edifica memoacuterias ao passo em que articula visiacutevel e invisiacutevel o que eacute e o que jaacute

natildeo eacute mais no seio das praacuteticas simboacutelicas dando como no cemiteacuterio um lugar ao

cadaacutever descarnado da memoacuteria Trata-se de negociar e esconder a corrupccedilatildeo do corpo e

do ser por meio da representaccedilatildeo ou do signo funeraacuterio

A exemplo de Catroga Jeanne Marie Gagnebin (2006 p 45) compreende o canto

mnemocircnico do poeta homeacuterico como o exemplar de uma luta por manter viva a memoacuteria

de um morto que jaacute natildeo sabe que tuacutemulo e signo se revezam no trabalho da memoacuteria que

todavia reconhece a supremacia do poder da morte do apagamento dos traccedilos que afinal

natildeo podem durar eternamente e testemunha a dupla pertenccedila etimoloacutegica de signo e pedra

61

mortuaacuteria ou tuacutemulo agrave raiz grega sēma Desse modo atesta o nexo entre memoacuteria morte

e trabalho do luto ndash elogio poeacutetico que como quisera Catroga (2009b p 69) representifica

o jaacute ausente dissimulando sua corrupccedilatildeo e necrose

A historiografia no entanto natildeo dispensa completamente o sujeito como suporte

mnemocircnico privilegiado tal como ele aparece entre os teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo na

condiccedilatildeo de superstes na corporificaccedilatildeo da testemunha a condiccedilatildeo existencial vulgar

coexiste com a encarnaccedilatildeo circunstancial de ser um sobrevivente

Eacutemile Benveniste (1969 p 273) demonstrara que o sentido etimoloacutegico de

superstes traduccedilatildeo do grego mārtyros implica dois significados que designam o

sobrevivente mas tambeacutem aquele que testemunha apesar disso identificava ainda que

outra raiz etimoloacutegica latina testis oriunda do direito romano designava aquele que se

colocava como terceiro encarregado de assistir a um ato ritual a ser praticado entre duas

outras pessoas

Atento a essas distinccedilotildees Giorgio Agamben (2008 p 27) afirma que a testemunha

natildeo pode ser o testis mas o superstes Ela nunca comparece como tribunal do juiacutezo ou da

histoacuteria apesar do que sustenta Fernando Catroga (2009b p 74) sobre uma pulsatildeo de

imparcialidade historiograacutefica do superstes que anunciaria uma dimensatildeo da verdade A

verdade segundo Agamben a analisa ao longo da literatura testemunhal sobre Auschwitz

atestaria a lacunaridade proacutepria de todo testemunho aquela entre a verdade e a experiecircncia

do intestemunhaacutevel O testemunho segundo Agamben (2008 p 43) ldquovale essencialmente

por aquilo que nele falta conteacutem no seu centro algo intestemunhaacutevel que destitui a

autoridade dos sobreviventesrdquo como se fazecirc-lo fosse testemunhar sobretudo em nome da

impossibilidade de testemunhar

Sob a forccedila do gesto de sepultamento ou o da sobrevivecircncia do testemunho fixada

em seu suporte o sujeito-testemunho ndash ldquouacutenico capaz de vivificarrdquo a memoacuteria ndash Fernando

Catroga (2009b p 74-75) afirma uma dupla implicaccedilatildeo entre histoacuteria e memoacuteria A

histoacuteria seria fonte da memoacuteria coletiva mas a memoacuteria afianccedilaria a verdade da

interpretaccedilatildeo histoacuterica e de suas mediaccedilotildees criacutetico-racionais

No momento em que se reconhece uma dimensatildeo produtiva da memoacuteria ndash a

produccedilatildeo de signos ndash encontra-se o limite do discurso historiograacutefico sobre a memoacuteria

Natildeo se trata de negar que a histoacuteria com efeito seja uma instacircncia de produccedilatildeo simboacutelica

de memoacuteria Entretanto a histoacuteria se relaciona com a memoacuteria investindo-a a partir do

negativo ora de sua relaccedilatildeo com a morte cujo assombro torna a histoacuteria incapaz de ouvir o

canto de vida e a potente insistecircncia dos vivos na positividade da memoacuteria ndash que satildeo os

62

objetos engendrados por todo trabalho de luto ora de sua relaccedilatildeo com a sem duacutevida

importante mas reduzida compreensatildeo do conceito de memoacuteria pela via exclusivamente

simboacutelica

A histoacuteria constitui uma forma de produccedilatildeo da memoacuteria que natildeo pode dispensar o

sujeito a consciecircncia e a razatildeo e ignora ou encobre que o nuacutecleo de todo o signo natildeo

aponta para estelas ou pedras mortuaacuterias mas para uma irrepresentaacutevel posiccedilatildeo de desejo

(DELEUZE GUATTARI 2010 p 158) Nesse aspecto apesar da mediaccedilatildeo criacutetica que o

saber histoacuterico pode constituir em face da produccedilatildeo oficial das narrativas a histoacuteria aponta

pela criacutetica mesma a operaccedilatildeo de sobrecodificaccedilatildeo dos signos a que a memoacuteria estaacute sujeita

quando da produccedilatildeo de uma histoacuteria oficial pelas narrativas de Estado

Por essa razatildeo Jeanne Marie Gagnebin (2006 p 47) erigiu agrave condiccedilatildeo de tarefa

essencial do historiador contemporacircneo a funccedilatildeo genuinamente poliacutetica de assegurar a natildeo

repeticcedilatildeo ao transmitir o inenarraacutevel manter viva a memoacuteria dos sem-nome e de afirmar

que o inesqueciacutevel existe Eis a tarefa que no seio da Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo

pretendemos conduzir ao limite de seu horizonte conceitual ndash afirmar que ldquoo inesqueciacutevel

existerdquo e fazecirc-lo contra a ordem de toda ontologia negativa23

Dentre os conceitos de memoacuteria elaborados no campo teoacuterico transicional a

memoacuteria natildeo deixou de ser compreendida como representaccedilatildeo tampouco de ser reduzida

ou evocada em correlaccedilatildeo com alguma dimensatildeo do negativo Ela natildeo cessa de ser

invocada como o conhecimento e a produccedilatildeo de arquivos pelas instituiccedilotildees como memoacuteria

coletiva ou partilha consensual de uma representaccedilatildeo social como objeto da cultura e de

poliacuteticas puacuteblicas vocacionadas a alterar estruturas poliacuteticas institucionais e

administrativas como narrativa como fiador da verdade dos signos histoacutericos como

testemunho histoacuteria oficial ou como representaccedilatildeo de um objeto ausente Por essa razatildeo

ao investigar as relaccedilotildees entre memoacuteria histoacuteria e esquecimento Ricœur (2000 p 69) soacute

pocircde afirmar duas dimensotildees de abordagem desse objeto ldquomemoacuteriardquo a cognitiva e a

pragmaacutetica

Na medida em que a Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo limitada por esses contornos

representativos e negativos do conceito de memoacuteria como representificaccedilatildeo do ausente

seja incapaz de apresentar uma soluccedilatildeo para o enigma da relaccedilatildeo entre memoacuteria e

transiccedilatildeo isso talvez seja indiciaacuterio de que o enigma natildeo possa ser esclarecido nesse

23

As partes II e III do presente trabalho destinam-se a desenvolver essa tarefa que Gagnebin afirma ser

essencialmente poliacutetica a partir de uma interlocuccedilatildeo com a filosofia de Henri Bergson

63

terreno Ainda que se atribua ao potencial criacutetico da memoacuteria social e conscientemente

construiacuteda a respeito da importacircncia da democracia e das violaccedilotildees de direitos que tiveram

lugar no passado (TORELLY 2012 p 281-282 TEITEL 2000 p 91-92) a funccedilatildeo de

constituir um elemento fundamental e necessaacuterio agrave construccedilatildeo da factibilidade das

transiccedilotildees este ainda consiste em um avanccedilo respeitaacutevel embora demasiadamente lacunar

com relaccedilatildeo ao ponto nodal da presente investigaccedilatildeo Restaria explicar uma questatildeo

simples mas profundamente problemaacutetica como a criacutetica social consciente poderia forjar

o desejo ndash tarefa aacuterdua e talvez metafiacutesica Eacute possiacutevel que os arcanos da Teoria da

Justiccedila de Transiccedilatildeo soacute admitam receber uma luz ndash malgrado indireta ndash ao passo em que

nos reportemos a horizontes conceituais mais ampliados Eacute provaacutevel ainda que toda a

lacunaridade a respeito da dinacircmica pela qual a memoacuteria pode ser entrevista como

condiccedilatildeo necessaacuteria agrave transiccedilatildeo deva ser atribuiacuteda aos termos e ao campo de sentido em

que o problema da relaccedilatildeo memoacuteria-transiccedilatildeo pode ser interrogado Eis o que tornaria

plausiacutevel desertar o quadro conceitual da Justiccedila de Transiccedilatildeo em proveito da construccedilatildeo

de um campo de sentido conceitualmente mais generoso em que natildeo verifiquemos a

priori um desinvestimento ontoloacutegico estrutural da ideia de memoacuteria na Teoria da Justiccedila

de Transiccedilatildeo jamais compreendida como uma regiatildeo do existente ou a partir de uma

ontologia que natildeo seja sempre e jaacute negativa

Nos quadros conceituais tradicionais ndash representativos e negativos como se

demonstrou ndash o significado da memoacuteria jamais estaraacute suficientemente infenso a assumir

indistintamente a faceta humanista da Justiccedila de Transiccedilatildeo como a negacionista dos

contramovimentos pode assumir o cariz da histoacuteria oficial a versatildeo dos algozes ou o rosto

da narrativa das viacutetimas Isso se deve ao fato de que no momento em que a proteccedilatildeo aos

direitos humanos de agentes de Estado violadores de direitos humanos eacute invocada como

argumento para sustentar a impossibilidade de persecuccedilotildees e responsabilizaccedilotildees criminais

(SABADELL DIMOULIS 2011 p 79-102) ou quando uma miacutetica anistia bilateral

construiacuteda por uma estrateacutegia controlada pelo Executivo (ABRAtildeO 2011 p 123-124) eacute

invocada sob o argumento do garantismo penal que natildeo se pergunta sobre a carecircncia de

autoridade internacional ou juriacutedica das autoanistias esses conceitos arriscam

indeterminarem-se ao infinito

Agenciando dispositivos micropoliacuteticos e macropoliacuteticos em torno de estrateacutegias de

sobrecodificaccedilatildeo da memoacuteria social as instituiccedilotildees imprimem sentidos proacuteprios no campo

de uma memoacuteria social politicamente em disputa Se por um lado natildeo haacute memoacuteria

exclusivamente institucional as instituiccedilotildees sociais e estatais investem de longa data o

64

campo da memoacuteria coletiva ocupando-se da governamentalidade de afetos livres

soldando-os agrave festa ao luto erigindo monumentos preservando documentos interditando

o acesso a eles ou abandonando-os ao esquecimento (LE GOFF 1990 p 426)

Essa eacute a dinacircmica que do ponto de vista das instituiccedilotildees e das poliacuteticas da

memoacuteria estaacute implicada na produccedilatildeo de simboacutelico no contexto das transiccedilotildees Embora isso

represente ainda a reduccedilatildeo da memoacuteria a uma ontologia negativa pois a submete a um

conceito de memoacuteria que se natildeo eacute exclusivamente psicoloacutegico ndash individual ou coletivo

decirc-se no niacutevel do consciente ou do subconsciente ndash dele depende pois concorre para a sua

reduccedilatildeo agrave representaccedilatildeo e ao simboacutelico eacute preciso verificar mais precisamente se e de que

maneira essas apropriaccedilotildees normativas conceituais praacuteticas e institucionais da ideia de

memoacuteria pela Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo implicam relacionar uma memoacuteria

cristalizada ndash em maior ou menor grau indiferente aos dinamismos da memoacuteria ndash e o

advento da transiccedilatildeo da qual a memoacuteria constitui um dos principais nuacutecleos causais

sect 3 A CENTRALIDADE DA MEMOacuteRIA

E SEUS POTENCIAIS TRANSFORMATIVOS

Na medida em que se definiram dois campos de sentido referenciais em correlaccedilatildeo

com os quais a Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo engendra um conceito de memoacuteria ndash ora

decalcado de seu proacuteprio referencial epistecircmico ora apropriando-se de um campo

significante que lhe eacute externo (Capiacutetulo 3 sect 2 supra) ndash definiram-se coextensivamente

os limites teoacutericos do conceito De acordo com tais contornos a memoacuteria soacute pode aparecer

no campo da Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo ao preccedilo de ali ser capturada ora como

memoacuteria psicoloacutegica individual (testemunho) ora como memoacuteria psicoloacutegica social

(narrativas sociais e culturais) ora como substrato necessaacuterio agrave construccedilatildeo de identidades

nacionais e eacutetnicas dos grupos perseguidos (ponto de vista poliacutetico-institucional) e

finalmente como a representificaccedilatildeo individual ou socialmente partilhada de elementos

ausentes a partir de um registro simboacutelico historiograacutefico e negativo na medida em que

apreende o passado como natildeo-ser com a consistecircncia proacutepria de representaccedilatildeo ou

representificaccedilatildeo de um objeto ausente (RICŒUR 2000 p II)

No entanto ainda que se tenha demonstrado os limites conceituais internos e

externos por meio dos quais a memoacuteria se torna um objeto de investimento no campo

teoacuterico da Justiccedila de Transiccedilatildeo conviria estender seus contornos um pouco aleacutem no

65

intuito de alcanccedilar o ponto de em que o conceito eacute apreendido pelas instituiccedilotildees em

transiccedilatildeo e se torna objeto de uma reapropriaccedilatildeo no campo teoacuterico Em outras palavras eacute

preciso verificar com que conceito de memoacuteria as instituiccedilotildees em transiccedilatildeo operam a fim

de aquilatar se nesse novo e aparentemente concreto horizonte de aparecimento o

conceito de memoacuteria poderia desligar-se mais facilmente das feiccedilotildees representativas e

negativas ndash embora pretensamente coletivas sociais ou culturais ndash que constituiacuteram seus

contornos teoacutericos ateacute aqui

Entre os teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo alguns reconheceram a impossibilidade

de fixar o conceito de memoacuteria e mais especificamente os processos de memorializaccedilatildeo

sob a insiacutegnia de uma forma determinada e fechada Nesse sentido poder-se-aacute falar natildeo

apenas de uma variedade de forma que a memoacuteria pode assumir nos contextos poacutes-

conflituais (BARSALOU BAXTER 2007 p 04) como referir-se a certa mutabilidade

interna aos proacuteprios conteuacutedos da memoacuteria Nesse caso as memoacuterias seriam maleaacuteveis

(PHELPS 2012 p 07) e flexiacuteveis na medida em que as neurociecircncias compreenderam seu

papel evolutivo nas funccedilotildees adaptativas (cf CAMPOS SANTOS e XAVIER 1997)24

Por essa razatildeo recentemente alguns autores que aproximaram a Teoria da Justiccedila

de Transiccedilatildeo de um diaacutelogo produtivo com as ciecircncias do ceacuterebro passaram a defender ndash

lastreados em fundamentaccedilotildees neurocientiacuteficas ndash a impossibilidade de tratar-se

adequadamente da memoacuteria representando-a como um elemento estaacutetico (BARSALOU

BAXTER 2007 p 12 e p 16) No limite chegaratildeo a advogar a existecircncia de certa

instabilidade constitutiva da memoacuteria (NAGEL SINOTT-ARMSTRONG 2012 p 05) na

medida em que o proacuteprio processo de evocaccedilatildeo e repeticcedilatildeo de memoacuterias conscientes jaacute

implicaria sua alteraccedilatildeo dinacircmica25

bem como ao passo em que a memoacuteria eacute ressignificada

durante os heterogecircneos processos de transmissatildeo intergeracional26

Isto poreacutem como

demonstrado por Nadel e Sinott-Armstrong (2012 p 05) natildeo se confunde com a

concepccedilatildeo dominante de memoacuteria no seio do campo teoacuterico transicional nem mesmo com

24

CAMPOS Alexandre de SANTOS Andreacutea M G dos XAVIER Gilberto F A Consciecircncia Como Fruto

da Evoluccedilatildeo e do Funcionamento do Sistema Nervoso Psicologia USP Satildeo Paulo v 8 n 2 1997

Disponiacutevel em lthttpwwwscielobrscielophpscript=sci_arttextamppid=S0103-

65641997000200010amplng=enampnrm=isogt Acesso em 20 mai 2013 25

ldquo[] memories once created are not fixed entities The public conception of course is that memories are

permanent imprints that might fade but are otherwise stable We know that is not the case apparently stable

memories can be altered when they are reactivated That is memory is fundamentally malleable [] when

memories are replayed [] this process of reactivating and replaying a memory inalterably changes it going

forwardrdquo (NADEL e SINNOTT-ARMSTRONG 2012 p 05) Em adiccedilatildeo Elizabeth A Phelps (2012 p 07)

reconhece que ldquo[] memories can be quite malleable for reasons that are likely adaptive in everyday life

[]our highly vivid and detailed memories for emotional events may not be as accurate as they seemrdquo 26

ldquoBecause memory is not static and lsquoreceivedrsquo memory is reinterpreted from one generation to another[]rdquo

(BARSALOU BAXTER 2007 p 16)

66

sua apreensatildeo praacutetica e institucional que em comum partem do pressuposto de que as

memoacuterias seriam constituiacutedas de maneira estaacutetica como se fossem ldquo stable and permanent

imprintsrdquo

A exemplo de Nadel e Sinnott-Armstrong ao reconhecerem ainda uma vez certos

dinamismos da memoacuteria Judy Barsalou e Victoria Baxter identificaram com precisatildeo

alguns limites sob os quais o conceito de memoacuteria mas tambeacutem os processos de

memorializaccedilatildeo tornaram-se objetos de investimento pela Teoria da Justiccedila de

Transiccedilatildeo27

Segundo as autoras na medida em que os processos de memorializaccedilatildeo

comportam diversas formas encampam objetivos comemorativos honoriacuteficos satisfativos

ou reparatoacuterios terminam por servir de pano de fundo factual que uma vez reinterpretado

sob nova luz seria capaz de subsidiar a satisfaccedilatildeo de necessidades sociais e poliacuteticas

diversas que vatildeo desde a reintegraccedilatildeo dos ldquosubversivosrdquo e resistentes poliacuteticos agrave nova

ordem ateacute a possibilidade de consolidaccedilatildeo de uma identidade eacutetnica ou nacional

Dessa maneira resta claro que no interior de sua apreensatildeo conceitual a memoacuteria

pode ser capturada no campo teoacuterico transicional a partir de um amplo espectro de

definiccedilatildeo compreendendo tanto as formas de uma memoacuteria individual e psicoloacutegica como

atingir em outro extremo o niacutevel das memoacuterias sociais e poliacuteticas (representaccedilotildees

coletivas) objeto de contestaccedilotildees e de disputas pelo controle hegemocircnico da verdade

Nesse sentido os horizontes de aparecimento da memoacuteria no campo transicional satildeo

relativamente heterogecircneos pois a memoacuteria tanto eacute apreendida como um mecanismo de

subjetivaccedilatildeo microloacutegico erigindo-se pela e a partir da subjetividade individual de

testemunhas e sobreviventes como pode definir-se como aparato macropoliacutetico

potencialmente constitutivo de identidades sociais eacutetnicas e nacionais

Os textos de Barsalou e Baxter como os de Nadel e Sinnott-Armstrong terminam

por legar-nos uma perspectiva relativamente ambiacutegua no que diz respeito ao conceito de

memoacuteria no campo transicional ao mesmo tempo em que se reconhece do ponto de vista

puacuteblico pragmaacutetico e institucional a limitaccedilatildeo de um conceito estaacutetico de memoacuteria ndash

ainda que em toda a Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo tal conceito seja enunciado

27

ldquo[] memorialization takes a variety of forms serving as an umbrella concept encompassing a range of

processes to remember and commemorate Memorialization as a process satisfies the desire to honor those

who suffered or died during conflict and becomes a means of examining the past In this process the past can

be reinterpreted to address a wide range of political or social needs ndash recasting lsquosubversivesrsquo as martyrs or

innocent victims for instance or consolidating a new national identity such as the transformation of South

Africa from apartheid state to lsquoRainbow Nationrsquo Memorialization thus represents a powerful arena of

contested memory and offers the possibility of aiding the formation of new national community and ethnic

identitiesrdquo (BARSALOU BAXTER 2007 p 04)

67

obscuramente como um ldquoprocessordquo jamais esclarecido ou que aspire ao registro das

memoacuterias coletivas ndash o reconhecimento dos dinamismos da memoacuteria a partir das

contribuiccedilotildees da neurociecircncia parece nos reconduzir a uma concepccedilatildeo de memoacuteria

individual pessoal cuja sede arquiviacutestica seria o ceacuterebro humano

Mesmo que a Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo comece a reconhecer com timidez a

natureza constitutivamente dinacircmica da memoacuteria isso implica que toda concepccedilatildeo de

memoacuteria coletiva ou social precise voltar a lastrear-se nas memoacuterias subjetivas e

individuais ndash e isso em um momento em que a memoacuteria passa a ser compreendida

hegemonicamente pelos teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo como vimos como um processo

cultural como memoacuteria social ou coletiva que segundo Maurice Halbwachs teria sido

capaz de emancipar-se dos referenciais tradicionalmente individuais da memoacuteria28

Tudo

se passa como se quando a Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo acreditava ter chegado ao porto

da memoacuteria coletiva emancipada das lembranccedilas individuais ela eacute novamente lanccedilada ao

alto-mar das memoacuterias individuais e psicoloacutegicas Mesmo com esse movimento pendular

jamais desertamos o amplo espectro teoacuterico jaacute traccedilado por Paul Ricœur (2000 p 69)

segundo o qual a memoacuteria eacute apreendida ora de seu ponto de vista cognitivo ora de seu

ponto de vista pragmaacutetico

Desse uacuteltimo ponto de vista ndash vale dizer da perspectiva das instituiccedilotildees e da

pragmaacutetica transicional ndash Louis Bickford teria sugerido a existecircncia de dois paradigmas

sobrepostos para confrontar o passado (BARSALOU BAXTER 2007 p 10) O primeiro

deles chamado de paradigma da Justiccedila de Transiccedilatildeo estaria francamente relacionado agraves

responsabilidades legais do Estado e da comunidade internacional em promover o Estado

de Direito exigindo-se praacuteticas narrativas sobre a verdade do passado (truth-telling)

persecuccedilatildeo e responsabilizaccedilatildeo criminal dos agentes violadores promoccedilatildeo de reparaccedilatildeo agraves

28

Maurice Halbwachs insurgiu-se contra o haacutebito de pensar a memoacuteria como um fenocircmeno exclusivamente

pessoal individual psicoloacutegico e interno afirmando que ldquoOn nrsquoest pas encore habitueacute agrave parler de la meacutemoire

drsquoun groupe mecircme par meacutetaphorerdquo (HALBWACHS 1997 p 97) Eis o que o leva a afirmar que as

lembranccedilas se agrupariam natildeo apenas ao redor de centros pessoais mas seriam igualmente distribuiacutedas no

registro coletivo Maurice Halbwachs sustentou que os quadros sociais da memoacuteria excedem os da histoacuteria

de forma tal que de um lado os quadros sociais da memoacuteria satildeo como ldquocourants de penseacutee et drsquoexpeacuterience

ougrave nous retrouvons notre passeacute que parce qursquoil en a eacuteteacute traverseacuterdquo ldquocourant de penseacutee continurdquo de outro a

memoacuteria coletiva natildeo se reduz agrave memoacuteria histoacuterica por natildeo se encontrar integralmente vertida nela

(HALBWACHS 1997 p 113 e p 131) Todo o projeto de Halbwachs definia-se no sentido de pensar uma

memoacuteria coletiva como memoacuteria concreta de grupos Nesse sentido recusava-se o pressuposto habitual de

que a memoacuteria coletiva pudesse estar baseada unicamente nas memoacuterias individuais Na contramatildeo do

haacutebito Halbwachs concebia a memoacuteria individual como um epifenocircmeno da memoacuteria coletiva subordinando

aquela agrave esta ldquoTout rappel drsquoune seacuterie de souvenirs qui se rapportent au monde exteacuterieur srsquoexplique donc par

les lois de la perception collectiverdquo (HALBWACHS 1997 p 87) ldquo[]chaque meacutemoire individuelle est un

point de vue sur la meacutemoire collective[]rdquo (HALBWACHS 1997 p 94) Assim a memoacuteria coletiva

passaria a ser compreendida como o campo de sentido e o horizonte privilegiado de aparecimento das

memoacuterias individuais

68

viacutetimas e garantias de natildeo repeticcedilatildeo mediadas por reformas institucionais que as

afianccedilassem O segundo paradigma da memoacuteria identifica-se com a promoccedilatildeo de uma

cultura democraacutetica parcialmente amparada na criaccedilatildeo de uma mentalidade de ldquonunca

maisrdquo (never again mentality)

Ambos os paradigmas promovem a interlocuccedilatildeo entre dimensotildees diferentes do

passado ndash a institucional responsabilizadora e reformista por um lado e a cultural e

identitaacuteria por outro Tal interlocuccedilatildeo todavia natildeo consegue arrostar a memoacuteria senatildeo

como algo que deve derivar forccedilosamente de um elemento material nesses termos a

memoacuteria se descola da documentaccedilatildeo dos arquivos testemunhos evidecircncias forenses ou

constitui a mateacuteria indoacutecil de que o presente deve se apropriar para forjar uma cultura

democraacutetica futura Tudo se passa como se a promessa redimisse o passado mas natildeo sem

antes retornar uma uacuteltima vez sobre o irrepetiacutevel que esse passado encerra

Como consequecircncia desse amplo espectro conceitual que tem origem na memoacuteria

individual e encontra seu limite na memoacuteria institucional e na promessa coletiva Judy

Barsalou e Victoria Baxter definem memorializaccedilatildeo como ldquo[]a process that satisfies the

desire to honor those who suffered or died during conflict and as a means to examine the

past and address contemporary issuesrdquo (BARSALOU BAXTER 2007 p 01) Sua relaccedilatildeo

com a dimensatildeo da promessa estendida na direccedilatildeo de um tempo futuro e de um potencial

transformador da memoacuteria logo se clarifica ldquoIt [memorialization] can either promote

social recovery after violent conflicts ends or crystallize a sense of victimization injustice

discrimination and the desire for revengerdquo (BARSALOU BAXTER 2007 p 01)

Eis o que testemunha uma pluralidade de apreensotildees possiacuteveis no seio das quais

buscamos encontrar e definir limites e contornos conceituais a fim de compreender a

questatildeo que como veremos sempre emerge em toda argumentaccedilatildeo sobre a memoacuteria mas

jamais satildeo objeto de uma maior atenccedilatildeo pelos teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo Trata-se do

enigma da relaccedilatildeo entre memoacuteria e transiccedilatildeo cujos arcanos podem ser colocados em

questatildeo a partir de duas interrogaccedilotildees simples (1) por que a memoacuteria ndash compreendida a

partir de seu amplo espectro categoacuterico na Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo ndash aparece com

uma constante centralidade no acircmbito das transiccedilotildees poliacuteticas e (2) se a memoacuteria

individual ou coletiva psicoloacutegica ou cultural narrativa ou simboacutelica aponta para um

conceito representativo e negativo consistente na representificaccedilatildeo de uma realidade

ausente no seio de processos individuais ou culturais de reminiscecircncia como ela pode ser

considerada uma condiccedilatildeo ndash se natildeo suficiente pelo menos necessaacuteria ndash agrave efetuaccedilatildeo de toda

e qualquer transiccedilatildeo

69

Com efeito essas duas questotildees se entrecruzam no ponto em que as memoacuterias

redentoras exercem funccedilotildees simboacutelicas individuais e coletivas capazes de tornar factiacuteveis

as transiccedilotildees Na medida em que demonstramos que no seio da Teoria da Justiccedila de

Transiccedilatildeo apesar do caraacuteter heterogecircneo do conceito de memoacuteria trata-se de um conceito

de amplo espectro e central isto eacute o campo teoacuterico transicional utiliza-se dele de maneira

variaacutevel mas sua emergecircncia eacute nesse mesmo campo uma constante Por outro lado

tambeacutem demonstramos que a Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo constantemente decalca da

memoacuteria certas funccedilotildees transicionais pragmaacuteticas sem memoacuteria natildeo pode haver

consolidaccedilatildeo da justiccedila ndash para isso eacute preciso formar um corpus mnecircmico judiciaacuterio

institucional ndash nem das reparaccedilotildees ndash eacute preciso dar nomes agraves viacutetimas encontrar e identificar

corpos de desaparecidos reintegrar perseguidos poliacuteticos ndash tampouco reformas pois eacute

preciso determinar os responsaacuteveis atribuir as violaccedilotildees do passado a algueacutem purgar os

diretamente envolvidos e os coniventes (TEITEL 2000 p 90) Enfim natildeo eacute possiacutevel

efetuar nenhuma das dimensotildees reconhecidas pela Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo ou pelo

Direito Internacional dos Direitos Humanos como inerentes aos processos de transiccedilatildeo

democraacutetica sem apelar a uma memoacuteria do passado Nem mesmo os compromissos

futuros de natildeo repeticcedilatildeo e de produccedilatildeo de uma cultura social institucional e juriacutedica mais

democraacutetica seriam possiacuteveis sem compreender a consistecircncia intoleraacutevel do que se nos

tornou defeso repetir

Poreacutem nesse momento afirmaacute-lo eacute apenas a tentaccedilatildeo de uma intuiccedilatildeo vaga e

confusa Resta investigar se no horizonte de sentido da Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo

surge ou natildeo uma explicaccedilatildeo sobre o potencial transformativo atribuiacutedo agrave memoacuteria ou se

pelo contraacuterio cairemos uma vez mais no espaccedilo lacunar e negativo no qual tais

doutrinas como vimos capturaram a ideia de memoacuteria

Partindo de dois pressupostos jaacute demonstrados ndash o reconhecimento contiacutenuo do

conceito de memoacuteria como elemento-chave para efetuar as transiccedilotildees democraacuteticas por

um lado e a atribuiccedilatildeo constante mas segundo gradaccedilotildees variaacuteveis de clareza de um

potencial transformativo inerente agrave memoacuteria ndash verifiquemos se e de que forma a Teoria da

Justiccedila de Transiccedilatildeo busca explicar a relaccedilatildeo entre memoacuteria e transiccedilatildeo ou o que

tomamos por equivalente a atribuiccedilatildeo agrave memoacuteria de potenciais transformativos Assim

como os dois pressupostos que referimos e demonstramos acima constituem constantes dos

70

discursos dos teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo algo semelhante se verifica no plano da

relaccedilatildeo ndash sempre pelo menos subreptiacutecia ndash entre eles

Ao defenderem a importacircncia dos processos de memorializaccedilatildeo como um

importante instrumento no quadro das iniciativas transicionais Barsalou e Baxter (2007 p

02) relacionam memorializaccedilatildeo e transiccedilatildeo a ponto de afirmarem que a incapacidade em

lidar com memoriais ldquo[]can imperil transitional justice efforts and peacebuildingrdquo Sob o

ponto de vista da criaccedilatildeo de memoriais e espaccedilos da memoacuteria as autoras atribuem agrave

memoacuteria natildeo apenas uma dimensatildeo constitutiva central das iniciativas transicionais mas

denotam ainda a relaccedilatildeo entre memoacuteria e esforccedilos pela construccedilatildeo da paz

Louis Bickford reafirma os processos de memoralizaccedilatildeo puacuteblica como um elemento

central para a efetuaccedilatildeo das demais dimensotildees inerentes agrave Justiccedila de Transiccedilatildeo natildeo apenas

a memoacuteria constitui o terreno primaacuterio a fim de lidar com um passado traumaacutetico como a

memoacuteria aparece claramente dotada em circunstacircncias concretas ndash como a das Comissotildees

de Verdade ndash de um reconhecido potencial transformativo29

De alguma maneira ndash a cujo

detalhamento Bickford todavia natildeo desce os memoriais puacuteblicos teriam a capacidade

praacutetica de construir ldquobroader cultures of democracy over the long term by generating

conversations among differing communities or engaging new generations in the lessons of

the pastrdquo (BICKFORD et all 2007 p 02) bem como a memorializaccedilatildeo exerceria um

papel central na formaccedilatildeo da formaccedilatildeo da vida ciacutevica e poliacutetica30

Todavia haacute autores a exemplo de A J McAdams que consideram a memoacuteria

essencial agrave transiccedilatildeo mas do ponto de vista de sua negatividade Eacute certo que ldquo[]one

should be always circumspect about arguments that too readily dismiss calls for justice and

accountability by appealing to an all-encompassing lsquopolitical realismrsquordquo (McADAMS

1997 p xiv) poreacutem admite que em certas circunstacircncias se for necessaacuterio agrave construccedilatildeo

da reconciliaccedilatildeo nacional seria responsaacutevel silenciar sobre um legado de abusos de

direitos humanos ldquo[]that is to forget and if possible to forgive the past offenses in the

interest of national reconciliationrdquo (McADAMS 1997 p xiv) Com efeito se nos dermos

conta como quisera Paul Ricœur (2000 p 574-575) de que ldquo[]les notations sur lrsquooubli

29

ldquoIn vastly different contexts communities see public memorialization as central to justice reconciliation

truth-telling reparation and coming to grips with the past []Thus they have become a primary terrain on

which diverse constituencies address the enormous and challenging complexities of a traumatic past

Recognizing the power and potential of memorialization NGOs victimsrsquo groups and truth commissions

from Peru to Sierra Leone have advocated for memorialization as a key component of reform and transitional

justicerdquo (BICKFORD et all 2007 p 01) Disponiacutevel em lt httpictjorgsitesdefaultfilesICTJ-Global-

Memorialization-Democracy-2007-English_0pdfgt Acesso em 20 mai 2013 30

ldquo[] for better or worse memorialization plays a central role in the direction and shape of civic life and

politicsrdquo (BICKFORD et all 2007 p 04)

71

constituent en grande partie un simple envers de celles portant sur la meacutemoire rdquo veremos

que a memoacuteria ndash desta feita elidida e anulada ndash constitui ainda que a partir de sua

negatividade um aspecto essencial agrave factibilidade das transiccedilotildees Prova disso eacute que no

mesmo livro organizado por McAdams Juan Meacutendez critica duramente as poliacuteticas de

esquecimento e perdatildeo irrestritos como ldquoalternativas tentadorasrdquo para viabilizar

reconciliaccedilotildees na medida em que considera a busca por justiccedila retrospectiva ldquoan urgent

task of democratizationrdquo (MENDEacuteZ 1997 p 01)31

Desse modo ainda que de um ponto

de vista negativo a memoacuteria aparece sempre ligada a certa capacidade transformativa que

no texto de McAdams assume a faceta reduzida da realpolitik reconciliadora

De seu turno Juan Meacutendez erige como tarefa fundamental das transiccedilotildees poliacuteticas o

acerto de contas com o passado mesmo porque a accountability decorreria da proacutepria

natureza da transiccedilatildeo32

mas tambeacutem da democracia ldquoThe publicrsquos right to know is a

fundamental tenet of democracy and it should not be sacrificed to the supposedly higher

interest of reconciliationrdquo (MENDEacuteZ 1997 p 08)

Em sentido anaacutelogo Posner e Vemeule (2003 p 05) definem as praacuteticas

transicionais intimamente ligadas agrave memoacuteria Segundo eles esta seria a definiccedilatildeo mais

corrente de Justiccedila de Transiccedilatildeo ldquoIn the literature writers generally understand transitional

justice as backward lookingrdquo Ela implicaria uma seacuterie de praacuteticas compensatoacuterias das

viacutetimas de responsabilizaccedilatildeo por violaccedilotildees de direitos humanos e de revelaccedilatildeo da verdade

sobre o passado No entanto seu pequeno artigo testemunha ao mesmo tempo a relaccedilatildeo

da justiccedila de transiccedilatildeo e de suas praacuteticas compreensivas agrave luz desse passado tambeacutem em

ldquoforward looking termsrdquo Entreter-se com um passado de violaccedilotildees tornaria possiacutevel

recuperar tradiccedilotildees e instituiccedilotildees perdidas promover purgas de agentes responsaacuteveis

realizar reformas sinalizar compromissos com uma ordem poliacutetico-juriacutedica mais

democraacutetica e estabelecer precedentes constitucionais capazes de impedir que liacutederes

futuros repitam os abusos do regime anterior

Tambeacutem Ruti Teitel considera o conhecimento do passado como algo essencial agrave

transiccedilatildeo ndash e natildeo apenas de um ponto de vista pragmaacutetico e instrumental como Posner e

31

ldquo[] the pursuit of retrospective justice is an urgent task of democratization as it highlights the

fundamental character of the new order to be established an order based on the rule of law and on respect for

the dignity and worth of each human person [] In this context the temptation is great to equate

reconciliation with a forgive-and-forget policyrdquo (MEacuteNDEZ 1997 p 01) 32

ldquoThe primary task is to recognize that there is a past to be reckoned with The nature of the transition to

democracy itself means that there is unfinished business with respect to how we put distance between the

challenges of the present and the traumas of the recent past (MEacuteNDEZ 1997 p 03) e completa ldquo[] by

definition any transitional situation will include limits on what can be done about the past []rdquo (MEacuteNDEZ

1997 p 04)

72

Vermeule Teitel (2000 p 69) reconhece que comumente entre os analistas poliacuteticos

contemporacircneos assimilar um passado de violaccedilotildees eacute considerado necessaacuterio para

restaurar o coletivo em periacuteodos de radical cacircmbio poliacutetico33

Desse ponto de vista em

relaccedilatildeo ao qual Teitel (2000 p 116) exprimiraacute discordacircncia o passado desempenharia

uma funccedilatildeo poliacutetica fundacional da nova ordem Ao mesmo tempo sua posiccedilatildeo empresta

ao conhecimento sobre a verdade passada um papel crucial na promoccedilatildeo da transiccedilatildeo

poliacutetica na direccedilatildeo da democracia Tanto que Teitel (2000 p 110) afirma ldquoA societyrsquos

confrontation with its past is deemed necessary to its transition to democracyrdquo e ainda o

reitera claramente em outra oportunidade atribuindo agrave memoacuteria social um potencial

poliacutetico transformativo sui generis ldquoSocietal self-knowledge is not an end in itself but

rather the predicate for the potential of prospective change in human behavior and

consequent liberalizing transformationrdquo (TEITEL 2000 p 115)

Ao tratar da Justiccedila Histoacuterica poreacutem torna-se ainda mais visiacutevel a questatildeo lacunar

que nos competia demonstrar Se por um lado Teitel expressa sua discordacircncia em relaccedilatildeo

agraves anaacutelises poliacuteticas correntes ndash segundo as quais as pesquisas histoacutericas do passado teriam

natureza fundacional ndash por outro lado reitera que tais pesquisas desempenham funccedilatildeo

transicional ldquo[] the role of historical inquiry is not foundational but transitional History

is ever present in the life of the state but in political flux it helps to construct

transformationrdquo (TEITEL 2000 p 115) De algum modo obscuro e preacute-simboacutelico admite-

se que ldquothe transitional narratives advance construction of the contemporary political

orderrdquo (TEITEL 2000 p 116) sem no entanto jamais lanccedilar luzes sobre o que torna

possiacutevel fazer com que o passado efetivamente passe e de uma vez por todas

Uma possiacutevel resposta a essa questatildeo que surge na Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo

com tonalidades vagas poderia residir nos usos pragmaacuteticos da memoacuteria capazes de

conectar como quisera Teitel (2000 p 90) a justiccedila histoacuterica a outras dimensotildees da

Justiccedila de Transiccedilatildeo como as reparaccedilotildees reformas institucionais ou alteraccedilatildeo da cultura

autoritaacuteria preacutevia Ainda assim por mais que a memoacuteria seja constantemente invocada

como fiadora de um futuro democraacutetico como esteio criacutetico das violaccedilotildees dos regimes

poliacuteticos anteriores ao acercar-se da memoacuteria como um elemento meramente instrumental

a Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo revela apenas uma inexplicaacutevel autoposiccedilatildeo analiacutetica tudo

se passa como se a memoacuteria retirasse sua forccedila e justificativa da transiccedilatildeo e esta por sua

vez as retirasse da memoacuteria Em outras palavras os pragmatismos da memoacuteria limitam-se

33

ldquoThe claim is that establishing the ldquotruthrdquo about the statersquos past wrongs like successor constitutions or

trials can serve to lay the foundation of the new political order []rdquo (TEITEL 2000 p 69)

73

a revelar como as instituiccedilotildees tornam a memoacuteria uma mateacuteria da accedilatildeo transicional mas

natildeo logram explicar os mecanismos que levam a passar da memoacuteria agrave accedilatildeo poliacutetica

transicional ndash quando a questatildeo mais fundamental sobre seu potencial transformativo eacute

esta e natildeo a do rapport pragmaacutetico e instrumental que decorre da primeira

Desse modo ao requalificar a verdade do passado como ldquoworkable past for a

changed futurerdquo Teitel (2000 p 91) apreende a memoacuteria exclusivamente como mateacuteria da

accedilatildeo poliacutetica subtraindo-lhe momentaneamente o potencial transformador interno que ateacute

agora lhe era atribuiacutedo Dando-se conta disso a certa altura Teitel (2000 p 111)

pergunta-se ldquoIs it the truth that brings on liberalizing political change or the political

change that enables restoration of democratic government and the truth-tellingrdquo

concluindo de uma perspectiva empiacuterica que ldquoFor the move out of dictatorship did not

await the truth indeed the movement to free elections and a more democratic political

system generally precedes processes of truth productionrdquo

Contudo Teitel (2000 p 111) reconhece na mesma passagem e ainda uma vez a

importacircncia da memoacuteria como sede de um potencial transformativo ldquorevealing the

possibility of future choice is what distinguishes the liberal transition In the transitional

accounts lie the kernels of a liberal future foretoldrdquo Teitel observa que mesmo as

narrativas institucionais frutos da atuaccedilatildeo de agentes responsaacuteveis por alguma das diversas

formas de efetuaccedilatildeo da justiccedila histoacuterica apresentam geralmente um caraacuteter progressivo e

romacircntico Natildeo raro enunciam o conhecimento do passado como um ldquomagical switchrdquo no

sentido de um futuro democraacutetico redimido pela reemergecircncia de uma memoacuteria oculta e

reprimida

In the stories told in the reports it is the revealed truth that helps bring on the switch from

the tragic past to the promise of a hopeful future How does this occur The story told is of

a catastrophe which is somehow turned around An awful fate is averted as in dramatic

narrative by the introduction of a magical switch Transitional justice operates as such a

device through the introduction of persons with special access to privileged knowledge

such as judges in trials commissioners experts and witnesses Mechanisms of liberation

and correction enable the shift in the societal story to move away from catastrophe to

redemptive future The move to a more liberal society is enabled by a reckoning with the

past transitional narratives are generally progressive and romantic (TEITEL 2000 p

111)

A questatildeo que Teitel se propotildee nesse excerto ldquoHow does it occurrdquo natildeo atinge o

fundo da relaccedilatildeo entre memoacuteria e transiccedilatildeo pois se pergunta sobre as passagens entre o

passado traacutegico e a esperanccedilosa promessa de um futuro redentor sob o ponto de vista dos

usos pragmaacuteticos da memoacuteria compreendida como verdade uacutetil sobre o passado e

74

mobilizada em torno de objetivos poliacuteticos predefinidos Apenas nesse sentido e no plano

estritamente simboacutelico dos relatoacuterios ndash objetos de sua reflexatildeo nesse ponto ndash eacute que se pode

atribuir agrave justiccedila de transiccedilatildeo o funcionamento como o ldquomagical switchrdquo que as narrativas

demasiado romacircnticas e progressivas introduzem Poreacutem como natildeo seria paradoxal

afirmar a um soacute tempo34

que ldquoa transiccedilatildeo natildeo espera pela verdaderdquo e que ldquomover-se em

direccedilatildeo a uma sociedade mais liberalrdquo isto eacute efetuar a transiccedilatildeo ldquotorna-se possiacutevel por um

acerto de contas com o passadordquo

Que do ponto de vista praacutetico os mecanismos transicionais confundam-se com o

ldquomagical switchrdquo que permite evitar um futuro de horror e repeticcedilatildeo nada esclarece nem

sobre como a transiccedilatildeo pode avanccedilar sem conhecimento declarado do passado tampouco

sobre como a memoacuteria pode ser um locus de potenciais transformativos Uma vez mais

conveacutem observar que Teitel trabalha com um conceito pragmaacutetico e simboacutelico de

memoacuteria compreendida como verdade uacutetil agrave justiccedila histoacuterica e agraves operaccedilotildees praacuteticas dos

mecanismos transicionais Poreacutem Teitel ou qualquer outro autor da Teoria da Justiccedila de

Transiccedilatildeo jamais se coloca a questatildeo simples sobre o fundamento do potencial

transformador da memoacuteria ou se nos atrelarmos por um instante agrave primeira afirmaccedilatildeo de

Teitel ndash segundo a qual geralmente a transiccedilatildeo natildeo espera pela verdade do passado ndash

jamais encontraremos a questatildeo simples mas crucial sobre as causas profundas que

conduzem a essa transiccedilatildeo que natildeo espera pelo advento da verdade nem se elas

comportariam alguma relaccedilatildeo com a memoacuteria em outro registro que natildeo o pragmaacutetico ou o

simboacutelico Ainda que se possa interpretar as transiccedilotildees como processos poliacuteticos de longa

duraccedilatildeo de tal forma que a transiccedilatildeo poliacutetica ocorra previamente ao acerto de contas com o

passado ainda resta em aberto a questatildeo sobre as causas geneacuteticas dos eventos

transicionais e qual sua potencial relaccedilatildeo com a memoacuteria ndash relaccedilatildeo sempre pressuposta

uma vez que no limite os processos de memorializaccedilatildeo integraratildeo os proacuteprios objetivos

transicionais

Em outro campo analiacutetico teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo tampouco conseguiratildeo

explicar essa questatildeo lacunar a partir da relaccedilatildeo entre memoacuteria e afetos ou emoccedilotildees Natildeo

por outra razatildeo a partir do conceito de memoacuteria traumaacutetica Magdalena Zolkos tambeacutem

enfatiza a relaccedilatildeo entre as memoacuterias do trauma e seu potencial poliacutetico transformativo35

na

34

E conveacutem observar que Teitel (2000 p 111) o faz ao longo da mesma passagem textual 35

ldquoThe concept of traumatic memory suggests that witness testimonies are not simply incorporated within the

transitional reconciliatory machine but are pottentially transformative (and sometimes subversive) of it

75

medida em que ldquoaddressing historical injustice and suffering are the very heart of many

transitional justice projectsrdquo (ZOLKOS 2012 p 19) Todavia o viacutenculo entre memoacuteria

afetos e transiccedilatildeo eacute exprimido e sempre jaacute elidido Tanto que Zolkos (2012 p 19)

qualifica como ldquoaporeacuteticordquo o desejo de fazer justiccedila ao passado reputando-o como o

horizonte-limite do sentido do poliacutetico nas transiccedilotildees36

Tambeacutem recentemente Elizabeth Phelps (2012 p 07) natildeo apenas defendeu um

conceito dinacircmico de memoacuteria lastreado nas pesquisas neurocientiacuteficas que atestaram a sua

maleabilidade como funccedilatildeo de seu caraacuteter adaptativo ao longo da evoluccedilatildeo mas

preocupou-se com o impacto dos afetos na memoacuteria do ponto de vista da praacutetica judiciaacuteria

Aliaacutes eacute em funccedilatildeo da utilidade das memoacuterias na experiecircncia dos tribunais que Phelps

pudera contestar o caraacuteter fixista habitualmente atribuiacutedo agrave memoacuteria na Ciecircncia do Direito

Sua pesquisa parte do pressuposto de que os eventos que se tornam importantes para o

sistema judiciaacuterio satildeo em geral traumaacuteticos envolvendo situaccedilotildees profundamente

emocionais (PHELPS 2012 p 07) Nesse contexto vigem dois sensos comuns teoacutericos

que Phelps desafia o primeiro consiste em reputar que as memoacuterias satildeo dados assimilados

e fixos o segundo consiste em acreditar que as memoacuterias aparentemente mais viacutevidas e

detalhadas ndash geralmente emocionalmente mais intensas ndash satildeo mais precisas que as

demais37

Poreacutem com base em experiecircncias que envolveram a memoacuteria do 11 de setembro

de 2001 bem como em memoacuterias comuns e menos expressivas concluiu-se que perdemos

os detalhes tanto das memoacuterias cotidianas como das relacionadas a eventos

extraordinaacuterios as uacuteltimas nos parecem mais viacutevidas porque satildeo mais importantes

subjetivamente natildeo porque sejam mais detalhadas plenas ou confiaacuteveis Eis porque

quando se trata de memoacuterias sobre eventos puacuteblicos e traumaacuteticos percebe-se um impacto

da afetividade sobre elas

Com efeito a conclusatildeo de Phelps possui um interesse praacutetico quando nos

defrontamos com a questatildeo da acuraacutecia das memoacuterias narradas perante comissotildees ou

tribunais que servem de mateacuteria para a accedilatildeo poliacutetica e institucional nos periacuteodo de fluxo

poliacutetico Nesse sentido e como aliaacutes jaacute se pode verificar outrora de sua pesquisa resulta

uma conclusatildeo indiciaacuteria de que a memoacuteria poderia ser pensada mais em funccedilatildeo de

insofar as they orient political institutions to questions of discontinuous memory irreparable harm and

irreversible temporalityrdquo (ZOLKOS 2012 p 01) 36

ldquoThe aporetic desire to lsquodo justice for the pastrsquo marks the limits of the political in transitional justice []rdquo

(ZOLKOS 2012 p 19) 37

ldquoThe substantial literature on flashbulb memories indicates that memories for some details of shocking and

consequential events may not be as accurate as we think they arerdquo (PHELPS 2012 p 09)

76

coordenadas dinacircmicas que de elementos de fixidez38

No entanto Phelps natildeo chega a

elaborar um conceito autocircnomo e dinacircmico de memoacuteria

Entre os teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo Jon Elster foi um dos mais importantes a

dedicar um estudo ao problema das emoccedilotildees e sua relaccedilatildeo com a memoacuteria e a transiccedilatildeo

Contudo encontraremos mais uma vez uma definiccedilatildeo lacunar limitada por imperativos

pragmaacuteticos Apoacutes definir a transiccedilatildeo em relaccedilatildeo a um acerto de contas com o passado39

um dos primeiros gestos teoacutericos de Memory and Transitional Justice consiste em

apresentar o sentido em que se pode apreender a memoacuteria como ldquocarregada de emoccedilotildeesrdquo e

natildeo como um conhecimento abstrato do passado ldquo[memory] differs from mere abstract

knowledge of a past event in that to remember an event one must have been present when

and close to where it took placerdquo (ELSTER 2003 p 04)40

Do ponto de vista da Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo encontramos nessa definiccedilatildeo

algo semelhante ao que resulta das pesquisas de Phelps natildeo uma memoacuteria dinamizada

pelas emoccedilotildees mas uma reelaboraccedilatildeo do conceito de memoacuteria a partir do referencial

individual e consciente Elster se recusa metodologicamente a apelar a conceitos como o

de ldquomemoacuteria coletivardquo41

Todavia Elster toca o epicentro do problema que move a

presente pesquisa ndash a gecircnese da transiccedilatildeo e sua relaccedilatildeo com a memoacuteria ndash mas de modo

restrito agraves memoacuterias psicoloacutegicas individuais

I have focused on memory as an explanatory factor in transitional justice To serve as an

explanans the concept must be reasonably clear I have used it consistently in the sense of

conscious individual-level recollections of earlier events that the individual either directly

witnessed as an observer or learned about when they happened and close to where they

happened (ELSTER 2003 p 11)

Segundo Elster seria muito difiacutecil construir uma relaccedilatildeo entre memoacuteria e emoccedilatildeo

sem apelar agrave experiecircncia pessoal do indiviacuteduo como correlato necessaacuterio dessa relaccedilatildeo42

A

tese de Elster eacute a de que os processos transicionais satildeo moldados em profundidade pelas

emoccedilotildees dos indiviacuteduos envolvidos tais processos emergem na medida em que as

38

ldquoIf the purpose of memory is to incorporate lessons learned from past experience to promote adaptative

responding in the future then the flexible and dynamic nature of memory makes senserdquo (PHELPS 2012 p

20-21) 39

ldquoTransitional justice is the legal and administrative process carried out after a political transition for the

purpose of addressing the wrongdoings of the previous regimerdquo (ELSTER 2003 p 01) 40

Por essa razatildeo Elster (2003 p 04) escreveraacute ldquoIt seems plausible that abstract knowledge of a past event is

even less motivating than a faded memoryrdquo 41

ldquoIt is tempting to appeal to ideas such as lsquothe construction of collective memoryrsquo but it is a temptation I

believe we should resist Once we leave the terra firma of conscious individual memory the scope for

arbitrary and artificial constructions is endlessrdquo (ELSTER 2003 p 08-09) 42

ldquoMy main reason for focusing on the personal experience of the individual is the link between memory and

emotionrdquo (ELSTER 2003 p 11)

77

memoacuterias satildeo viacutevidas presentes e carregadas de emoccedilatildeo e desaparecem na medida em que

esmaecem43

podendo permanecer inibidas por longas duraccedilotildees sem que por isso deixem

de ser eficazes44

Com efeito sua recusa a propoacutesito de uma concepccedilatildeo mais abrangente de

memoacuteria deriva de uma opccedilatildeo metodoloacutegica ldquoA broader notion of memory makes it more

difficult to link memory with emotion or at least with lsquopersonal emotionsrsquordquo (ELSTER

2003 p 12)

A opccedilatildeo metodoloacutegica de Elster ainda que legiacutetima tem por efeito transformar o

conceito de memoacuteria em um quadro de inteligibilidade ao mesmo tempo desloca a

questatildeo da gecircnese das transiccedilotildees da memoacuteria para sua relaccedilatildeo com as emoccedilotildees mas sem

analisar sua dinacircmica de maneira direta e especiacutefica

Assim como Elizabeth Phelps estabelece o caraacuteter dinacircmico da memoacuteria mas natildeo

restabelece os direitos desse dinamismo formulando um novo conceito Jon Elster indica

uma saiacuteda para explicar a relaccedilatildeo geneacutetica constantemente intuiacuteda ndash mas sempre lacunar ndash

entre memoacuteria e transiccedilatildeo mas natildeo a aprofunda No ainda hoje inexplorado ponto de

convergecircncia entre um possiacutevel conceito dinacircmico de memoacuteria por um lado e sua relaccedilatildeo

com as emoccedilotildees e afetos por outro eacute que se poderaacute analisar o problema da gecircnese das

transiccedilotildees e sua relaccedilatildeo necessaacuteria com a memoacuteria

Uma vez demonstrados os modos segundo os quais o conceito de memoacuteria eacute

apreendido pelos teoacutericos da Justiccedila e Transiccedilatildeo e antes de passar ao epicentro da

argumentaccedilatildeo conveacutem enunciar os elementos que constituem o centro do argumento

problemaacutetico da presente pesquisa Em linhas gerais a Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo

construiu internamente conceitos tendentes agrave estabilidade compreendidos como processos

culturais balizados por objetivos poliacuteticos e pragmaacuteticos lastreados na experiecircncia

empiacuterica das transiccedilotildees poliacuteticas

Sua ēpistēme compreensiva aberta agrave colaboraccedilatildeo de outras ciecircncias conduziu a um

conceito de memoacuteria heterogecircneo e abrangente compreendendo desde determinaccedilotildees de

uma memoacuteria-lembranccedila ndash individual psicoloacutegica e carregada de emoccedilotildees ndash como a

memoacuteria de Jon Elster passando por um conceito estaacutevel e representativo de memoacuteria

43

ldquoI believe that processes of transitional justice are deeply shaped by the emotions of the individuals

involved be they wrongdoers beneficiaries of wrongdoings victims resisters accusers or neutrals These

emotions arise in direct confrontation among the individuals concerned and tend to fade as the memories

faderdquo (ELSTER 2003 p 11) 44

ldquo[]we have also seen several cases in which memories of injustice prove to be remarkably durable Life

in exile and strong social norms may sustain memories or emotions that would otherwise have been subject

to spontaneous decayrdquo (ELSTER 2003 p 11)

78

coletiva como a de Ruti Teitel chegando a uma memoacuteria apreendida do ponto de vista

pragmaacutetico de suas relaccedilotildees para a efetuaccedilatildeo dos mecanismos transicionais Recentemente

poreacutem ndash sem que no atual estado das pesquisas se tenha constituiacutedo um conceito

autocircnomo ndash o aporte experimental das neurociecircncias permitiu que alguns autores

revelassem a natureza dinacircmica e a maleabilidade constitutivas das memoacuterias ndash aiacute incluiacutedas

as memoacuterias traumaacuteticas ndash mas de um ponto de vista limitado agraves memoacuterias uacuteteis ao campo

das praacuteticas judiciaacuterias concretas Por outro lado ao trabalharmos com o referencial das

ciecircncias histoacutericas pudemos verificar a utilizaccedilatildeo da ideia de memoacuteria na Justiccedila de

Transiccedilatildeo em um sentido estritamente representificador de um objeto ausente baseado em

uma ontologia negativa Isto eacute a memoacuteria a partir de sua dimensatildeo simboacutelica representa

ou torna uma vez mais presente algo da ordem do natildeo-ser assim define-se

paradoxalmente a relaccedilatildeo do passado que ldquofoi e natildeo eacute maisrdquo com as exigecircncias eacuteticas de

natildeo repeticcedilatildeo pertencentes a um futuro sem espessura e sem realidade pois concebido

como o que natildeo eacute ainda Eis o que definiria os marcos da temporalidade na Teoria da

Justiccedila de Transiccedilatildeo uma temporalidade da representaccedilatildeo do natildeo-ser unidimensional que

confunde ndash como quisera Deleuze (1966 p 49) em Le Bergsonisme ndash ser e ser presente e

anula tanto a realidade do devir quanto do ser do passado

Assim quando a Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo concebe um conceito de memoacuteria

emancipado das lembranccedilas individuais ndash memoacuteria coletiva ndash esbarra por um lado na

reduccedilatildeo da memoacuteria agrave memoacuteria de grupo e por outro em um conceito de memoacuteria

definido por sua estabilidade consciecircncia e declaratividade forjadas no seio das produccedilotildees

simboacutelicas e narrativas sociais e institucionais que lhe servem de suportes Recentemente

quando a Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo tangencia o caraacuteter dinacircmico de memoacuteria ndash

defina-se ele a partir das memoacuterias traumaacuteticas carregadas de emoccedilotildees e afetos ou da

compreensatildeo empiacuterica das funccedilotildees evolutivas e adaptativas da memoacuteria ndash esbarra-se no

suporte psicoloacutegico individual do qual a Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo acreditara ter se

emancipado

Se o conceito de memoacuteria eacute heterogecircneo de modo mais ou menos expliacutecito poreacutem

todos os teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo admitem que a memoacuteria constitui um elemento-

chave para a efetuaccedilatildeo das transiccedilotildees Com efeito isso pode ser deduzido tanto entre os

que erigem a memoacuteria agrave condiccedilatildeo messiacircnica de redentora do passado quanto os que

pressupotildeem que os mecanismos transicionais praacuteticos encontrem-se apoiados sobre certa

dimensatildeo da verdade e de sua relaccedilatildeo iacutentima com o passado Tambeacutem os autores que

compreendem a memoacuteria como um motor geneacutetico das transiccedilotildees ou aqueles que a

79

consideram um oacutebice potencial agrave reconciliaccedilatildeo e reconstruccedilatildeo coletivas terminam por

afirmar diretamente ou natildeo a memoacuteria como elemento-chave das transiccedilotildees ndash nem que

pela via dos imperativos de sua inibiccedilatildeo e proscriccedilatildeo puacuteblicas

Todavia nenhuma dessas apreensotildees que caracterizam a memoacuteria como o direito

que abre ldquoa brecha da qual nasceraacute a accedilatildeo poliacuteticardquo (ABRAtildeO GENRO 2012 p 55)

enfatizando um potencial transformador intriacutenseco da memoacuteria conseguira explicar

adequadamente a origem e a dinacircmica desse potencial transformativo que redundaria na

efetuaccedilatildeo das transiccedilotildees A questatildeo da gecircnese e da dinacircmica das transiccedilotildees e de sua

relaccedilatildeo com a memoacuteria eacute senatildeo relegada a outros campos de interrogaccedilatildeo epistemoloacutegica

simplesmente elidida

Teitel natildeo deixa de observar que a construccedilatildeo da memoacuteria ndash ora interpretada em

sentido representativo simboacutelico e social ndash ainda desempenha um papel central na criacutetica

ao regime predecessor e na reconstruccedilatildeo democraacutetica de culturas ateacute entatildeo submetidas a

referenciais autoritaacuterios Dessa forma a memoacuteria jamais deixa de ser uma etapa

constitutiva da Justiccedila de Transiccedilatildeo Tanto que mesmo autores como Paulo Abratildeo e Tarso

Genro (2012 p 56) chegam a erigir o direito agrave memoacuteria a ldquocondiccedilatildeo imprescindiacutevel agrave

manutenccedilatildeo do tecido social caso contraacuterio a sociedade repetiraacute obsessivamente o uso

arbitraacuterio da violecircncia []rdquo ou ainda colocam os mecanismos da Justiccedila de Transiccedilatildeo a

serviccedilo da consolidaccedilatildeo da memoacuteria ldquoPara o atingimento desses objetivos de promoccedilatildeo da

memoacuteria um instrumento privilegiado [] satildeo as poliacuteticas denominadas de Justiccedila de

Transiccedilatildeordquo (ABRAtildeO GENRO 2012 p 57)

Seja como for em qualquer acircmbito sempre se atribui um potencial transformativo

agrave memoacuteria embora ele possa manifestar-se como vimos em registros heterogecircneos ndash o

que decorre da proacutepria pluralidade segundo a qual o conceito de memoacuteria eacute apreendido

pelos teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo Esses registros variam em funccedilatildeo da dimensatildeo

conceitual da memoacuteria com a qual se trabalha Agrave memoacuteria poliacutetica correspondem

potenciais transformativos do proacuteprio regime poliacutetico-institucional agrave memoacuteria social e

coletiva atribuem-se potenciais transformadores dos substratos culturais e sociais

autoritaacuterios preacutevios agrave memoacuteria individual e agraves narrativas das testemunhas e sobreviventes

o potencial pragmaacutetico de sustentar por meio da memoacuteria a operaccedilatildeo dos mecanismos

transicionais mais comuns como reformas purgas reparaccedilotildees responsabilizaccedilotildees penais

construccedilatildeo de memoriais etc

Observou-se que toda a literatura da Justiccedila de Transiccedilatildeo reputa inexcediacutevel o nexo

entre memoacuteria ndash ora compreendida na totalidade das camadas antes descritas abrangendo a

80

verdade o direito de conhecer o passado etc ndash e a produccedilatildeo real de uma mudanccedila na

dinacircmica das instituiccedilotildees e nas formas de vida em sociedade mediadas pelo direito Poreacutem

esse nexo jamais eacute exposto Ele padeceria ateacute mesmo de um vaacutecuo conceitual que

abrangeria a definiccedilatildeo conceitual de memoacuteria (BARSALOU e BAXTER 2007 p 02)

Reconhece-se que em geral certa relaccedilatildeo de corpos sociais em transiccedilatildeo com a

memoacuteria da violaccedilatildeo preteacuterita de direitos e prerrogativas democraacuteticas e de cidadania seria

necessaacuteria ndash no limite do ponto de vista educativo e cultural ndash agrave garantia da natildeo repeticcedilatildeo

Eis o que faz a memoacuteria sob o ponto de vista do Direito Internacional dos Direitos

Humanos ser comumente transcrita ora como um direito cultural como um direito que

promove uma cultura democraacutetica de remoccedilatildeo de formas de viver pensar sentir e

experimentar o real gestadas por culturas autoritaacuterias ou violentas Se por um lado haacute

quem diga que a memoacuteria espaccedilos e lugares de memoacuteria museus e memoriais natildeo satildeo

suficientes para promover um cultural shift todavia satildeo condiccedilotildees necessaacuterias a ele Natildeo

raro os processos de memorializaccedilatildeo satildeo descritos como catalisadores do engajamento

ciacutevico (BICKFORD et all 2007 p 07)

Todavia como a memoacuteria pode engendrar esse potencial transformativo ou

transicional eacute o que jamais eacute explicado Ao apontaacute-lo natildeo se trata de recusar realidade a

nenhum desses registros mas de oferecer uma visatildeo integradora dessas camadas de

memoacuteria tanto entre si como entre elas e seus potenciais de accedilatildeo segundo muacuteltiplos

registros de inscriccedilatildeo Se contudo deixarmos sem resposta a questatildeo ldquocomo a memoacuteria

pode ser admitida como causa geneacutetica de transiccedilotildeesrdquo ndash o que equivale a perguntar ldquoem

que consiste esse potencial transicional geralmente atribuiacutedo agrave memoacuteriardquo ndash torna-se

impossiacutevel aperfeiccediloar uma visatildeo integrativa do problema proposto

Uma via capaz de fazecirc-lo deriva da proacutepria Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo e dos

limites conceituais que descrevemos Trata-se de recuperar os pontos que a Teoria da

Justiccedila de Transiccedilatildeo intui mas deixa permanecerem intocados por um lado uma

concepccedilatildeo dinacircmica da memoacuteria ndash que no presente momento consideramos ser natildeo mais

que uma intuiccedilatildeo preacute-conceitual na Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo por outro lado um

conceito de memoacuteria emancipado de seus registros habituais Esse uacuteltimo aspecto implica

recusar as operaccedilotildees de reduccedilatildeo da memoacuteria a alguns de seus registros mais largamente

utilizados pelos teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo Isso natildeo significa negar a realidade da

memoacuteria a qualquer desses registros mas recusar as operaccedilotildees de reduccedilatildeo do conceito a

determinados registros Com efeito natildeo se nega que a memoacuteria comporte vaacuterias camadas

81

eacute precisamente isso que revela ser inadequado reduzi-la a apenas uma ou algumas delas

Natildeo bastasse a lacuna identificada a respeito dos potenciais transformativos

comumente atribuiacutedos agrave memoacuteria na literatura transicional tambeacutem a natureza plural que a

ideia de memoacuteria comporta justifica um esforccedilo de reconceptualizaccedilatildeo da memoacuteria a fim

de integrar em uma visada uacutenica esses muacuteltiplos registros

Para tanto Henri Bergson torna-se um aliado conceitual imprescindiacutevel Natildeo

apenas por trabalhar com uma concepccedilatildeo ontoloacutegica e compreensiva de memoacuteria ndash na

contramatildeo das operaccedilotildees de reduccedilatildeo da memoacuteria a figuras sem espessura da representaccedilatildeo

e do simboacutelico ndash mas porque a intuiccedilatildeo eacute apresentada em La Penseacutee et le Mouvant como

um meacutetodo filosoacutefico por excelecircncia capaz de integrar o conhecimento da ciecircncia ao da

metafiacutesica a mateacuteria ao espiacuterito (BERGSON 2001 p 1424216)45

A escolha desse marco

teoacuterico justifica-se sob trecircs pontos de vista que seratildeo demonstrados ao longo dos proacuteximos

capiacutetulos

(1) a intuiccedilatildeo metafiacutesica constitui uma visatildeo potencialmente integradora da

realidade heterogecircnea que encontramos a respeito do conceito de memoacuteria na

Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo Nesse sentido a precisatildeo metoacutedica que ela implica

deve tornar-se objeto de verificaccedilatildeo

2) baseando-se no meacutetodo da intuiccedilatildeo a filosofia bergsoniana permite

introduzir natildeo apenas no conceito de memoacuteria mas tambeacutem no epicentro de suas

relaccedilotildees com a efetuaccedilatildeo da transiccedilatildeo coordenadas temporais e dinacircmicas em

relaccedilatildeo agraves quais a Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo ateacute hoje formulou apenas

intuiccedilotildees vagas e preacute-conceituais dirigidas a aplicaccedilotildees pragmaacuteticas sem cuidar da

natureza imanente a esses dinamismos

(3) Na contracorrente de toda operaccedilatildeo de reduccedilatildeo da memoacuteria a uma de

suas manifestaccedilotildees superficiais encontradas nas definiccedilotildees das doutrinas

transicionais (memoacuteria-lembranccedila memoacuteria coletiva memoacuteria-siacutembolo memoacuteria-

representaccedilatildeo ou memoacuteria-consciente) Bergson conceituaraacute a memoacuteria

45

ldquoLa science et la meacutetaphysique se rejoignent donc dans lrsquointuitionrdquo (BERGSON 2001 p 1424216) NB

nas citaccedilotildees das obras de Bergson utilizaremos preferencialmente a Eacutedition du Centenaire compilada por

Andreacute Robinet com introduccedilatildeo de Henri Gouhier publicada originalmente em 1959 e reeditada pela sexta

vez em 2001 Assim as numeraccedilotildees de paacutegina obedecem agrave sequecircncia da Ediccedilatildeo do Centenaacuterio de modo que

a primeira numeraccedilatildeo corresponde agrave da paginaccedilatildeo das Œuvres a segunda precedida do sinal ldquordquo indica a

paginaccedilatildeo das publicaccedilotildees originais que Robinet fez constar no corpo das obras completas de Bergson

Trata-se de uma sistemaacutetica de referecircncia corrente entre os comentadores de Bergson de tal forma que a fim

de facilitar a conferecircncia das citaccedilotildees tambeacutem a adotamos

82

obedecendo a referenciais ontoloacutegicos compreensivos No bergsonismo a memoacuteria

jamais seraacute transcrita a partir da negatividade e do natildeo-ser como se fosse a mera

representaccedilatildeo de um objeto ausente Ao contraacuterio ela seraacute continuamente definida

como uma regiatildeo do ser ou do existente a partir de coordenadas dinacircmicas e

temporais e constituiraacute no limite ndash como demonstraremos oportunamente ndash o

fundamento do proacuteprio tempo (duraccedilatildeo real)

Bergson natildeo cessou de sublinhar a impotecircncia das formas meramente pragmaacuteticas

da inteligecircncia para compreender a realidade profunda da transiccedilatildeo ldquoDe la transition il

[lrsquoentendement] deacutetourne son regardrdquo (BERGSON 2001 p 1256-12575-6) Dados os

referenciais ontoloacutegicos a partir dos quais satildeo colocadas as questotildees do movimento e da

mudanccedila deveratildeo aparecer como problemas coextensivos agrave compreensatildeo das transiccedilotildees

poliacuteticas na medida em que Bergson compreende as formas de vida bioloacutegicas e tambeacutem

poliacuteticas indistintamente como derivados ontoloacutegicos Isso significa que todas as formas

podem variar em funccedilatildeo da duraccedilatildeo de tal modo que as coordenadas duracionais a partir

das quais se poderaacute pensar memoacuteria e transiccedilatildeo apontam para o caraacuteter diferencial

constitutivo do real que como demonstramos apenas tiacutemida e recentemente assaltou os

teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo que rapidamente retornaram agrave terra firma das memoacuterias

individuais psicoloacutegicas e conscientes ou insistiram na fixidez de noccedilotildees representativas e

negativas do conceito

Trata-se pois de tentar amarrar um devir que se insinua no interior das proacuteprias

doutrinas transicionais erigir um conceito de memoacuteria que natildeo admita reduccedilatildeo a

coordenadas individuais sociais ou nacionais ndash evitando do ponto de vista eacutetico-poliacutetico o

que Bergson chamou de ldquotendecircncia ao fechamentordquo ndash ao mesmo tempo em que a memoacuteria

possa com razatildeo apresentar-se em seu caraacuteter dinacircmico segundo coordenadas

duracionais como condiccedilatildeo ontoloacutegica e a um soacute tempo poliacutetica das transiccedilotildees Recusando

toda operaccedilatildeo redutora da memoacuteria trata-se de superar a partir de uma interlocuccedilatildeo com a

filosofia de Henri Bergson o conceito meramente cognitivo uacutetil ou pragmaacutetico de

memoacuteria sem deixar de integraacute-lo como uma das dimensotildees desse novo conceito de

memoacuteria

Dessa forma objetiva-se contribuir para suprimir a lacuna explicativa encontrada

na Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo e oferecer uma fundamentaccedilatildeo possiacutevel sobre a funccedilatildeo

transicional da memoacuteria e seu potencial transformativo ndash empiacuterica e vagamente decalcados

pelos teoacutericos das praacuteticas transicionais concretas Nessa medida seraacute possiacutevel

83

reconceptualizar a memoacuteria a partir de um ponto de vista inexplorado pela tradiccedilatildeo das

doutrinas transicionais utilizando os referenciais da ontologia bergsoniana e desentocar

de sua intimidade estranha agrave pragmaacutetica da Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo um conceito

integrador das diversas camadas da memoacuteria de tal forma que se possa compreender de

que modo a memoacuteria pode ser obscuramente erigida no corpo dessa vasta e recente teoria

agrave condiccedilatildeo de uma causa profunda das accedilotildees poliacuteticas transicionais

84

SEGUNDA PARTE

O virtual a ideia de memoacuteria na filosofia de Henri Bergson

85

CAPIacuteTULO 4 ndash UM SALTO NO VIRTUAL DO SER PRESENTE AO SER

DO PASSADO

Como apresentar em poucos mas decisivos traccedilos um filoacutesofo ldquoqui eacutevolue et

change dans le tempsrdquo (JANKEacuteLEacuteVITCH 2008 p 01) cuja filosofia resumida em

apenas quatro obras (GOUHIER In BERGSON 2001 vii) parece ser infinita

Sobretudo como fazecirc-lo sem abandonar as questotildees que elaboradas no corpo dos

capiacutetulos precedentes sugerem os temas da memoacuteria e da transiccedilatildeo que terminam por

mobilizar a integral que percorre o campo especulativo do bergsonismo

Comecemos pelos traccedilos impessoais Henri Bergson nasce em 1859 em Paris no

seio de uma famiacutelia judia Frequenta a escola normal em 1881 e ensina em Clermont-

Ferrand de 1883 a 1888 No ano seguinte com trinta anos de idade sustenta duas teses

sua tese complementar sobre Aristoacuteteles e escreve o Essai sur les donneacutes immediates de

la conscience que lhe renderia vinte e nove anos mais tarde o precircmio Nobel de

Literatura Em 1900 Bergson foi nomeado ao Collegravege de France ocupando a cadeira de

filosofia grega em substituiccedilatildeo a Charles Leacutevecircque

Dentre as sete obras de facto seus quatro livros de jure46

publicados ao longo de

mais de quatro deacutecadas satildeo permeados por uma constante atividade de escritura de que satildeo

testemunha seus escritos cursos e correspondecircncias Todo esse material que vem sendo

intensamente recuperado e tornado puacuteblico nas uacuteltimas deacutecadas natildeo apenas serve para

colmatar determinadas passagens entre suas obras maiores mas datildeo notiacutecia das

articulaccedilotildees entre a radical invenccedilatildeo de conceitos a criacutetica de problemas claacutessicos da

metafiacutesica e sua atuaccedilatildeo como ator poliacutetico e interlocutor privilegiado de seus

contemporacircneos

Esta talvez seja a faceta bergsoniana menos familiar aos leitores brasileiros mas

tambeacutem aos juristas que natildeo raro utilizaram a inspiraccedilatildeo bergsoniana como elementos

46

Os quarto livros de direito de Bergson ndash que ele mesmo considerava ldquosuas obras completasrdquo ndash tanto que

satildeo reunidas por Andreacute Robinet na Eacutedition du Centenaire em comemoraccedilatildeo ao seu nascimento em 1959 ndash

satildeo Essai sur les donneacutes immediates de la conscience (1889) Matiegravere et Meacutemoire (1896) LrsquoEacutevolution

Creacuteatrice (1907) e Les Deux Sources de la Morale et de la Religion (1932) outras obras que consistem na

reuniatildeo de escritos e de conferecircncias satildeo publicadas em 1919 (LrsquoEacutenergie Spirituelle) e 1934 (La Penseacutee et le

Mouvant) Ainda seria o caso de registrar a publicaccedilatildeo de Dureacutee et Simultaneiteacute em 1922 livro em que

Bergson controverte em alguns pontos com a Teoria da Relatividade de Einstein e que se encontra

reproduzido em Meacutelanges de 1972 Aleacutem dos diversos cursos outros escritos de Bergson podem ser

encontrados na recente ediccedilatildeo de Eacutecrits Philosophiques apresentada por Freacutedeacuteric Worms e publicada em

2011 como prolongamento das ediccedilotildees criacuteticas de suas obras retomadas pela Presses Universitaires de

France (PUF) a partir de 2008 Registre-se ainda o interessante trabalho de recoleccedilatildeo de ineacuteditos cursos e

aulas levado a efeito pelos sucessivos volumes dos Annales Bergsoniennes publicados a partir de 2002

tambeacutem pela PUF

86

motores de sua Filosofia ou Teoria do Direito No Brasil seria o caso de registrar alguns

exemplares da importante penetraccedilatildeo de Bergson na leitura de fenocircmenos estudados no

acircmbito das Ciecircncias Humanas e Sociais mas tambeacutem no campo da Ciecircncia Juriacutedica No

primeiro caso a tese seminal de Ecleia Bosi (2010) publicada sob o tiacutetulo Memoacuteria e

sociedade lembranccedilas de velhos em que Matiegravere et Meacutemoire eacute resgatada junto aos

escritos de um dos mais ilustres alunos e polecircmicos leitores de Bergson ndash Maurice

Halbwachs Mais recentemente Ecleia ainda publicou O tempo vivo da memoacuteria livro de

ensaios sobre psicologia social em que retoma temas de sua tese relacionados a Bergson e

Halbwachs como a substacircncia social da memoacuteria e a sobrevivecircncia ou a persistecircncia da

memoacuteria (BOSI 2003 p 13-48)

No acircmbito juriacutedico seria impossiacutevel natildeo lembrar as inspiraccedilotildees bergsonianas que

apreendidas desde pontos de vista muito proacuteprios penetram a anaacutelise de importantes

filoacutesofos do direito brasileiros No campo juriacutedico os mais destacados precursores da

filosofia de Bergson no Brasil foram Miguel Reale e Goffredo Telles Juacutenior dois

importantes professores da Faculdade do Largo de Satildeo Francisco Segundo Reale (2010 p

80) Bergson teria sido ldquoum dos maiores filoacutesofos se natildeo o maior filoacutesofo da Franccedila na

primeira metade do Seacuteculo XXrdquo A filosofia bergsoniana eacute intensamente recuperada pela

filosofia do direito de Reale a fim de auxiliar a compreender as distinccedilotildees de meacutetodo na

Filosofia e na Ciecircncia momento em que Bergson eacute lembrado tambeacutem por seu meacutetodo

intuitivo (REALE 2010 p 140) Por sua vez o autor da ceacutelebre Carta as Brasileiros47

escrevera tambeacutem Direito Quacircntico ensaio sobre o fundamento da ordem juriacutedica

(TELLES JUacuteNIOR 2006a) obra claramente inspirada na cosmologia bergsoniana e em

sua metodologia de diaacutelogo permanente e aberto com as ciecircncias naturais Mesmo no

acircmbito de sua Teoria do Direito Goffredo Telles Juacutenior natildeo cessou de evocar algumas

soluccedilotildees bergsonianas pontuais para problemas da histoacuteria da metafiacutesica ocidental que

poderiam servir ao estudo do Direito eacute o caso da ilusatildeo sobre a existecircncia da desordem

(TELLES JUacuteNIOR 2006b p 06-07) por exemplo

Fora do Brasil Alexandre Lefebvre escreveu duas recentes obras de Filosofia do

Direito que se dedicam a apreendecirc-la no interior da obra de Bergson Seu primeiro livro

The Image of the Law Spinoza Bergson Deleuze publicado em 2008 e Human rights as

a way od life on Bergsonrsquos Political Philosophy de 2013 Nesse mais recente texto natildeo

apenas Bergson aparece como a figura central da interrogaccedilatildeo de Lefebvre como sua

47

Em agosto de 1977 Goffredo Telles Juacutenior lecirc sua Carta aos Brasileiros no paacutetio interno da Faculdade de

Direito em que manifestava seu repuacutedio agrave ditadura militar e conclamava agrave defesa da Democracia

87

filosofia poliacutetica permitiria compreender a relaccedilatildeo entre direitos humanos e a ascese

bergsoniana no contexto de sua filosofia poliacutetica48

Segundo Lefebvre Bergson teria

renovado a forma de compreender os direitos humanos ndash natildeo mais como instrumentos para

proteger seres humanos de abusos mas ldquoas a medium for personal transformationrdquo

(LEFEBVRE 2013 Preface)

Toda a novidade que a leitura de Lefebvre sobre Bergson representa poreacutem natildeo

nos aproveita senatildeo na medida em que auxilia no conjunto de outros comentadores a

elucidar alguns conceitos isso porque a perspectiva de sua obra permanece atrelada ao

espectro da filosofia poliacutetica de Bergson mas natildeo indaga sua mais profunda relaccedilatildeo com a

ontologia na qual buscamos avanccedilar De toda maneirao belo e original livro de Lefebvre

vem ao encontro de uma preocupaccedilatildeo que se intensifica cada vez mais entre os

comentadores estrangeiros de Bergson ndash a maior atenccedilatildeo agrave faceta poliacutetica da filosofia

begsoniana as renovadas leituras e articulaccedilotildees de Deux Sources de la Morale et de la

Religion com suas demais obras a preocupaccedilatildeo em atualizar um Bergson ldquopoliacuteticordquo

Exemplares igualmente recentes disso satildeo os textos que compotildeem o quinto volume

dos Annales Bergsoniennes intitulado ldquoBergson et la politiquerdquo cujo prefaacutecio assinado

por Vincent Peillon considera que os novos estudos sobre o Bergson poliacutetico assinalariam

ldquoun profond bouleversement dans les eacutetudes philosophiques en Francerdquo (PEILLON 2012

p09) Haacute pois todo interesse em recuperar mais que um Bergson poliacutetico a ontologia

duracional de que as transiccedilotildees poliacuteticas natildeo satildeo senatildeo atualizaccedilotildees de niacutevel

Para aleacutem de um Bergson filoacutesofo poliacutetico haacute um Bergson poliacutetico que testemunha

sua iacutentima relaccedilatildeo com a proacutepria gecircnese do Direito Internacional dos Direitos Humanos

Durante certo periacuteodo Bergson trabalhou lado a lado com Woodrow Wilson para

estabelecer a Liga das Naccedilotildees e mais tarde fora indicado para a presidecircncia da Comissatildeo

Internacional para Cooperaccedilatildeo Intelectual da Liga (LEFEBVRE 2013 Preface e

SOULEZ WORMS 2002 p 141-170) Ainda Bergson teria sido uma influecircncia confessa

de John Humphrey o principal responsaacutevel pela redaccedilatildeo da Declaraccedilatildeo Universal dos

Direitos Humanos de 1948 (LEFEBVRE 2013 Preface)

Com efeito toda a escritura de Les Deux Sources transpira a atmosfera de

pressentimento de uma cataacutestrofe que viria a ser a Segunda Guerra Mundial mas ainda

assim eacute um profundo libelo de feacute no aberto Se por um lado Bergson compreendia os

48

ldquoI have interpreted Bergsonrsquos political philosophy in this vein To my mind the great power of Two

Sources lies in its insistence that in the end none of the problems of politics ndash which include huge ones such

as war and fascism as well as everyday ones such as prejudice and exclusion ndash will be resolved without an

attendant transformation in the relationship one has to oneselfrdquo (LEFEBVRE 2013 Preface)

88

direitos humanos como ldquothe best-placed institution to realize the social moral political

and religious ideal that he will call the lsquoopen societyrsquordquo (LEFEBVRE 2013 Chap 1 ndash A

dialogue on war) por outro sabia que nos contextos de guerra as sociedades fecham-se

sobre si tentando reconciliar hipocritamente os direitos humanos com a realidade da

guerra Nesses casos ldquowhile war does not eliminate rights due to all human beings nor

show then to be imaginary it does suspend their application for the time being Duties

toward humanity are [] affirmed in principle but temporarily denied in factrdquo

(LEFEBVRE 2013 Chap 1 ndash A dialogue on war) A fim de compreender o que significa

uma sociedade aberta ou como passar do fechado ao aberto ndash problema que como

veremos sendo essencial agrave filosofia poliacutetica de Bergson confunde-se com aquele que se

propotildee toda transiccedilatildeo poliacutetica ndash precisamos antes entrar de alguma maneira e de uma

vez por todas no Bergsonismo Apenas assim e a esse preccedilo poderemos estimar as

colaboraccedilotildees que uma ontologia da memoacuteria poderia conferir agrave integraccedilatildeo dos

heterogecircneos conceitos de memoacuteria na Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo bem como para a

iluminaccedilatildeo ontoloacutegica mas tambeacutem praacutetica e poliacutetica da constante atribuiccedilatildeo agrave memoacuteria

de potenciais transicionais

sect 1 BERGSONISMO MUacuteLTIPLAS ENTRADAS

Henri Bergson natildeo cessou de dizer que todos os problemas metafiacutesicos da histoacuteria

da filosofia do Ocidente foram colocados muito mais em funccedilatildeo do espaccedilo do que em

funccedilatildeo do tempo (BERGSON 2001 p 1260-126109-11)49

Essa simples afirmaccedilatildeo eacute

capaz de provocar uma completa subversatildeo de toda a histoacuteria da filosofia ocidental

implicando perguntar de iniacutecio por seu sentido senatildeo por suas consequecircncias imediatas

as quais devem ser pouco a pouco desdobradas e conduzidas aos limites de seu horizonte

conceitual

49

Vladimir Jankeacuteleacutevitch (2008 p 03) filoacutesofo e pianista francecircs de ascendecircncia russa bem o percebe e logo

o transcreve em uma metaacutefora musical ou meloacutedica ldquoUne meacutelodie joueacutee agrave lrsquoenvers en commenccedilant par la

derniegravere note et en remontan drsquoaval en amont ne serait qursquoune innommable cacophonie [] Lrsquoordre

temporel nrsquoest pas un accident de la sonate mais son essence elle-mecircme [] La premiegravere condition exigeacutee

pour comprendre le bergsonisme drsquoHenri Bergson est de ne pas le penser agrave rebousse-temps Le bergsonisme

veut ecirctre penseacute dans le sens mecircme de la futurition crsquoest-agrave-dire agrave lrsquoendroitrdquo Natildeo casualmente Deleuze (1966

p 22) reconhece que uma das dimensotildees mais importantes do meacutetodo bergsoniano da intuiccedilatildeo consistiraacute em

colocar os problemas e solucionaacute-los mais em funccedilatildeo do tempo que do espaccedilo Eacute nesse sentido que Bergson

em Matiegravere et Meacutemoire pudera afirmar que ldquoles questions relatives au sujet et agrave lrsquoobjet agrave leur distinction et

agrave leur union doivent se poser en fonction du temps plutocirct que de lrsquoespacerdquo (BERGSON 2001 p 21874)

89

Afinal se sabemos que Bergson eacute geralmente considerado o filoacutesofo da duraccedilatildeo da

vida ou da criaccedilatildeo (DELEUZE 1966 p 01) seria preciso procurar pelo significado

profundo ao qual responde o convite bergsoniano continuamente reiterado de pensar sub

specie durationis ndash convite que natildeo raras vezes rendeu agrave sua filosofia a alcunha de

pensamento antiintelectualista50

Como veremos mais adiante isto teria sido fruto de uma

incompreensatildeo que se encontra hoje amplamente demonstrada na literatura criacutetica que

acompanha a obra de Bergson desde meados dos anos cinquenta do seacuteculo XX

especialmente em Franccedila

A esta questatildeo a do sentido do tempo como horizonte da filosofia bergsoniana

viria acrescer-se ainda um problema anterior o da assunccedilatildeo de sua realidade o que

significa dizer que o tempo existe e mais ainda de que forma compreender que a

temporalidade possa constituir o sentido da mais antiga pergunta da histoacuteria da filosofia ndash

aquela sobre o ser Eis o que implica uma maneira bergsoniana sui generis de ler as

funccedilotildees ocultas e talvez praacuteticas e poliacuteticas da histoacuteria da metafiacutesica que nos propomos a

perscrutar No interior dessa dinacircmica que constitui a proacutepria realidade do tempo seria

preciso desvelar pacientemente no interior da obra de Bergson aquilo que constituiu o fio

condutor do presente trabalho compreender o sentido a um soacute tempo imanente e temporal

dos conceitos de memoacuteria e de transiccedilatildeo e sobretudo da relaccedilatildeo entre memoacuteria e transiccedilatildeo

no bergsonismo Retornaremos a ele incessantemente

Muacuteltiplas poderiam ser as entradas para reconstruir o sentido da pesquisa

bergsoniana sobre os temas da memoacuteria e da transiccedilatildeo como tambeacutem para elucidar o

significado profundo de pensar natildeo apenas a realidade da duraccedilatildeo mas a realidade em

duraccedilatildeo51

Seria plausiacutevel por exemplo ensaiar a via metoacutedica da criacutetica gnosioloacutegica tal

como eacute a escolha de Gilles Deleuze (1966 p 01-28) em seu Le Bergsonisme mas tambeacutem

a de Franklin Leopoldo e Silva (1994 p 29-116) em seu Bergson ndash intuiccedilatildeo e meacutetodo

50

ldquoNous avons insisteacute sur le caractegravere meacutethodique et rationnel de lrsquointuition Toutefois ce nrsquoest pas ainsi

qursquoelle est passeacute agrave la posteriteacute Agrave beaucoup elle a plutocirct sembleacute nrsquoecirctre que lsquosentimentsrsquo lsquoinspirationrsquo ou

sympathie confuserdquo (HUDE In FAGOT-LARGEAULT WORMS 2009 p 197) Cf ainda (DELEUZE

1966 p 01) 51

ldquoIl y a pourtant un sens fondamental penser intuitivement est penser en dureacuteerdquo (BERGSON 2001 p

127530) No mesmo sentido Cf (RIQUIER 2009 p 187) e (PRADO JUacuteNIOR 1989 p 86) que afirma

ldquoA intuiccedilatildeo [] sendo um lsquopensar em duraccedilatildeorsquo se oferece a gecircnese efetiva do sentido e a transiccedilatildeo de um

extremo a outrordquo Trata-se portanto de perspectivar outro ponto de vista a gecircnese e natildeo a estrutura o se

fazendo e natildeo o jaacute feito o processo de produccedilatildeo natildeo o produto em que ele culmina e natildeo eacute possiacutevel fazecirc-lo

sem considerar ldquoa temporalidade da apariccedilatildeo da essecircnciardquo como ldquoum dado constitutivo da proacutepria essecircnciardquo

(PRADO JUacuteNIOR 1989 loc cit) Cf ainda a defesa de Camille de Belloy (2002 p 138) faz da primazia

da questatildeo metoacutedica em Bergson

90

filosoacutefico que dedica agrave questatildeo do meacutetodo toda a primeira parte de seu livro intitulada

ldquoIntuiccedilatildeo e meacutetodo filosoacuteficordquo Evidentemente esta forma de exposiccedilatildeo comporta a

vantagem de construir progressivamente os conceitos da filosofia bergsoniana tomando

singularmente a intuiccedilatildeo por meacutetodo metafiacutesico Ao mesmo tempo se verificarmos que a

formulaccedilatildeo mais precisa da intuiccedilatildeo como meacutetodo filosoacutefico remonta ao iniacutecio de 190052

ndash

e eacute possiacutevel dizecirc-lo a despeito mesmo das criacuteticas que Camille Riquier (2009 p 134)

recentemente expocircs sobre a possibilidade de tratar a intuiccedilatildeo como meacutetodo propriamente

dito ndash assumir inicialmente esse ponto de vista metoacutedico e a criacutetica gnosioloacutegica que o

acompanha poderia implicar brindar-se de antematildeo com aquilo que se deveria engendrar

isto eacute corre-se o risco de tomar como estrutura dada a priori aquilo que a proacutepria obra de

Bergson desenvolve pouco a pouco como a costura procedimental indissociaacutevel da proacutepria

experiecircncia filosoacutefica concreta53

a saber a intuiccedilatildeo

Se Deleuze e Leopoldo e Silva assumem o risco de uma interpretaccedilatildeo retrospectiva

e iniciam por ela natildeo eacute senatildeo tendo em vista necessidades particulares de exposiccedilatildeo em

suas obras e com o constante cuidado de natildeo nutrir sobre a intuiccedilatildeo nenhuma visatildeo de

estrutura mas apreendecirc-la na dinacircmica propriamente duracional de sua gecircnese Deleuze

natildeo sem certa ironia buscava pela via da intuiccedilatildeo infirmar as teses daqueles que

criticaram a filosofia bergsoniana como um vago intuicionismo Com efeito desde o iniacutecio

percebe-se uma necessidade enfaacutetica de afirmar que ldquoLrsquointuition est la meacutethode du

bergsonismerdquo (DELEUZE 1966 p 01) e que ela natildeo se confunde com qualquer

sentimento inspiraccedilatildeo ou simpatia confusos aparentados a uma metafiacutesica

antiintelectualista preacute-kantiana De outro lado pode-se perceber que em seu Le

Bergsonisme trata-se de tornar evidente o liame entre o meacutetodo metafiacutesico da intuiccedilatildeo

proacuteprio agrave filosofia bergsoniana seu monismo virtual e uma ontologia composta por dois

registros de realidade o atual e o virtual Natildeo casualmente Le Bergsonisme eacute o texto de

Deleuze capaz de iluminar a interpretaccedilatildeo de alguns de seus uacuteltimos e mais complexos

textos autorais como Lrsquoactuel et le virtuel (DELEUZE PARNET 2010 p 177-185) e

52

Tanto que Introduction agrave la Meacutetaphysique seraacute publicada apenas em 1903 na Revue de meacutetaphysique et de

morale e apareceraacute reformulada em 1934 no uacuteltimo livro de fato de Bergson La penseacutee et le mouvant Cf

nesse sentido a nota de Bergson quando da republicaccedilatildeo de seu texto (BERGSON 2001 p 1392-1393177-

178) 53

Significativamente a frase com que Vladimir Jankeacuteleacutevitch (2008 p 05) abre o primeiro capiacutetulo de seu

Bergson afirma ldquoLe bergsonisme est une des ces rares philosophies dans lesquelles la theacuteorie de la recherche

se confond avec la recherche elle-mecircme excluant cette espegravece de deacutedoublement reacuteflexif qui engendre les

gnoseacuteologies les propeacutedeutiques et les meacutethodesrdquo evidenciando a imanecircncia do meacutetodo agrave experiecircncia

filosoacutefica no seio da qual este constantemente se desdobra

91

Lrsquoimmanence une vie (DELEUZE 2003 p 359-363) ambos de inspiraccedilatildeo

reveladoramente bergsoniana

Por certo ao escrever Le Bergsonisme Deleuze poderia ter acreditado na

conveniecircncia de afirmar sempre que possiacutevel que a intuiccedilatildeo bergsoniana natildeo conduz a

nenhuma simpatia vaga ou forma gnosioloacutegica preacute-kantiana senatildeo que com suas regras

muito estritas a intuiccedilatildeo constitui ldquoune meacutethode eacutelaboreacutee et mecircme une des meacutethodes les

plus eacutelaboreacutees de la philosophierdquo (DELEUZE 1966 p 01) conclusatildeo que decorreria

imediatamente de uma profunda exigecircncia de precisatildeo filosoacutefica presente nos escritos de

Bergson dedicados agrave intuiccedilatildeo e constantemente reivindicada por ele54

De seu turno e polemizando com Deleuze Camille Riquier afirma a dissociaccedilatildeo de

direito entre intuiccedilatildeo e meacutetodo com base no ldquoDiscours aux eacutetudiants de Madridrdquo de

primeiro de maio de 1916 em que Bergson descreve a intuiccedilatildeo como um penoso esforccedilo

por meio do qual rompemos com as ideias preconcebidas e os haacutebitos intelectuais a fim de

recolocar-nos simpaticamente no interior da realidade55

Contudo verifica-se que em sua

criacutetica ao tratamento da intuiccedilatildeo como meacutetodo Riquier (2009 p 134) embora dirija-se

objetivamente contra o primeiro capiacutetulo de Le Bergsonisme natildeo menciona a exigecircncia de

precisatildeo interna agrave intuiccedilatildeo postergando sua anaacutelise para uma centena de paacuteginas adiante

(RIQUIER 2009 p 247) Desse modo apesar de encontrar uma deduccedilatildeo exegeacutetica

bastante plausiacutevel a distinccedilatildeo de direito entre intuiccedilatildeo e meacutetodo proposta por Riquier natildeo

afasta por si outras leituras que apresentam a vantagem de serem concebidas a partir das

articulaccedilotildees reais da experiecircncia filosoacutefica bergsoniana como quisera tambeacutem Bento

Prado Juacutenior que ndash antes mesmo de Deleuze ndash natildeo deixou de explicitar que ldquoA reflexatildeo

bergsoniana sobre o meacutetodo eacute governada pelo ideal da precisatildeordquo (PRADO JUacuteNIOR 1989

p 27)

A exemplo do que parece ocorrer com Le Bergsonisme mas de modo

intrinsecamente singular Franklin Leopoldo e Silva inicia seu Bergson pela exposiccedilatildeo da

54

Essa exigecircncia expressa no poacutertico da primeira parte da Introduccedilatildeo especialmente escrita para La Penseacutee

et le Mouvant exprime um dos diapasotildees que percorrem toda a obra de Bergson ldquoCe qui a le plus manqueacute agrave

la philosophie crsquoest la preacutecision Les systeacutemes philosophiques ne sont pas tailleacutes agrave la mesure de la reacutealite ougrave

nous vivonsrdquo (BERGSON 2001 p 125301) Bastaria lembrar por exemplo como o fazem Deleuze (1966

p 30-31) e Worms (2011 p 53) que se Essai sur les donneacutes immediates de la conscience dirige-se contra as

ilusotildees e falsos-problemas que envolvem a liberdade Bergson natildeo consegue chegar a eles senatildeo criticando as

traduccedilotildees simboacutelicas representativas e espacializantes dos estados de espiacuterito qualitativos contiacutenuos e

heterogecircneos pela psicologia de seu tempo 55

ldquoLa meacutethode philosophique tel que je me la repreacutesente comprend deux deacutemarches successives de lrsquoesprit

Le second de ces deux moments la deacutemarche finale crsquoest ce que jrsquoappelle intuition ndash un effort tregraves dificille et

tregraves penible par lequel on rompt avec les ideacutees preacuteconccedilues et les habitudes intelectuelles toutes faites pour se

replacer sympathiquement agrave lrsquointeacuterieur de la reacutealiteacuterdquo (BERGSON 1972 p 1197)

92

extensa polecircmica da filosofia bergsoniana em relaccedilatildeo a toda a filosofia metoacutedica que a

precedeu a fim de explicitar o que constitui a exigecircncia singular de sua obra as relaccedilotildees

entre intuiccedilatildeo e discurso filosoacutefico Estas se encontram desde o primeiro momento

erigidas segundo a exigecircncia da adequaccedilatildeo entre meacutetodo filosoacutefico e a realidade agrave qual se

aplica inscrevendo-a tambeacutem ela na perspectiva da precisatildeo Configurada ldquopela aderecircncia

do conceito ao objetordquo (LEOPOLDO E SILVA 1994 p 34) a precisatildeo teria se tornado a

partir de Bergson o criteacuterio da adequaccedilatildeo do conhecimento ao real denunciando uma

apreensatildeo deformante e intrinsecamente simboacutelica da realidade derivada como veremos

das formas especiacuteficas da proacutepria inteligecircncia humana

Se Riquier deseja deduzir a impossibilidade de tratar a intuiccedilatildeo como meacutetodo a

partir de uma deduccedilatildeo que poderiacuteamos chamar de exegeacutetica seria natildeo menos necessaacuterio

considerar por exemplo o fato de que o Avant-propos de La Penseacutee et le Mouvant

apresenta a referida coleccedilatildeo de ensaios e conferecircncias como centradas sobre o problema da

pesquisa em filosofia Aqueles textos segundo Bergson (2001 p 1251) ldquoportent

principalement sur la meacutethode que nous croyons devoir racommander au philosophe

Remonter agrave lrsquoorigine de cette meacutethode deacutefinir la direction qursquoelle imprime agrave la recherche

tel est plus particuliegraverement lrsquoobjet des deux essais composant lrsquointroductionrdquo La Penseacutee

et le Mouvant representa portanto o resultado de uma seacuterie de esforccedilos pontuais de

Bergson a fim de remontar agrave genealogia do meacutetodo que se deve recomendar ao filoacutesofo

Se disso natildeo eacute possiacutevel concluir resolutamente que a intuiccedilatildeo constitui o meacutetodo

filosoacutefico por excelecircncia tampouco autoriza a afirmar rigorosamente uma dissociaccedilatildeo de

direito entre meacutetodo e intuiccedilatildeo de tal forma que pudesse haver para Bergson intuiccedilatildeo

sem inteligecircncia A longue camaraderie com os fenocircmenos de superfiacutecie verificados ao

longo de todo bergsonismo56

o extenso e profiacutecuo diaacutelogo de todos os livros de Bergson

com as ciecircncias de seu tempo ndash psicologia matemaacutetica medicina biologia sociologia

antropologia ndash ou mesmo o cabal objetivo de afirmar na contracorrente da gnosiologia

kantiana a possibilidade de um enriquecimento reciacuteproco entre ciecircncia e filosofia na

direccedilatildeo do real e do absoluto (BERGSON 2001 p 663-664199-200) natildeo seriam

suficientes para indicar uma compenetraccedilatildeo entre meacutetodo e intuiccedilatildeo como um dos

principais horizontes de sentido da filosofia bergsoniana

56

ldquoCar on nrsquoobtient pas de la reacutealiteacute une intuition crsquoest-agrave-dire une sympathie spirituelle avec ce qui elle a de

plus inteacuterieur si lrsquoon nrsquoa pas gagneacute sa confiance par une longue camaraderie avec ses manifestations

superficiellesrdquo (BERGSON 2001 p 1432226)

93

Com efeito se Riquier tem razatildeo em afirmar a dissociaccedilatildeo de jure entre intuiccedilatildeo e

meacutetodo de tal modo que o proacuteprio Bergson identificaria a ocorrecircncia de meacutetodos sem

intuiccedilatildeo e intuiccedilotildees despidas de meacutetodo por outro lado estes natildeo seriam senatildeo os

desenvolvimentos de duas tendecircncias inscritas na inteligecircncia que deveriam ser

reunificadas no campo concreto da experiecircncia57

Ainda aqui valeria o ldquomeacutetodordquo

bergsoniano de divisatildeo a fim de seguir as articulaccedilotildees do real segundo o qual os mistos

que satildeo dados com a experiecircncia podem ser divididos em multiplicidades que diferem por

natureza ndash multiplicidades quantitativas homogecircneas e descontiacutenuas que correspondem ao

espaccedilo e multiplicidades qualitativas heterogecircneas e contiacutenuas agraves quais corresponde a

duraccedilatildeo (DELEUZE 1966 p 31)

Considerando-se ou natildeo a intuiccedilatildeo como o meacutetodo filosoacutefico por excelecircncia e

embora a relaccedilatildeo entre inteligecircncia e intuiccedilatildeo soacute possa ser definitivamente esclarecida com

a descriccedilatildeo da gecircnese da inteligecircncia no seio da vida a criacutetica a um suposto

antiintelectualismo bergsoniano pode ser afastada imediatamente senatildeo pela afirmaccedilatildeo da

intuiccedilatildeo como meacutetodo como enfaticamente quiseram Prado Juacutenior Deleuze Hude e

outros ao menos pela verificaccedilatildeo de que a dissociaccedilatildeo entre intuiccedilatildeo e inteligecircncia natildeo

apenas contraria o sentido global da deacutemarche da obra bergsoniana como antes e

sobretudo contrafaz afirmaccedilotildees muito contundentes como aquela em que Bergson

preconiza que sendo mais que ideia eacute por meio de ideias que a intuiccedilatildeo termina por

comunicar-se isto eacute ldquoLrsquointuition ne se communiquera drsquoailleurs que par lrsquointelligencerdquo

(BERGSON 2001 p 128542) ou aquela em que afirma uma cooperaccedilatildeo entre intelecto e

intuiccedilatildeo ambas reunidas sob o selo da precisatildeo ldquo[] intuitive ou intelectuelle la

connaissance sera marqueacutee au sceau de la preacutecisionrdquo (BERGSON 2001 p 132086)58

De tudo quanto vimos apreendamos trecircs notas originais do bergsonismo que

serviratildeo a compreender o acircnimo que deve orientar as primeiras aproximaccedilotildees de nossa

questatildeo original 1) pensar para Bergson eacute mais do que pensar a duraccedilatildeo como objeto da

57

ldquoPour tout reacutesumer nous volouns une diffeacuterence de meacutethode nous nrsquoadmettons pas une diffeacuterence de

valeur entre la meacutetaphysique et la sciencerdquo (BERGSON 2001 p 128542-43) E ainda ldquoCrsquoest dire que

science et meacutetaphysique diffeacutereront drsquoobjet et de meacutethode mais qursquoelles communieront dans lrsquoexpeacuteriencerdquo

(BERGSON 2001 p 128745) 58

Atestando uma vez mais a relaccedilatildeo entre inteligecircncia e intuiccedilatildeo Freacutedeacuteric Worms recomenda que evitemos

em enxergar na intuiccedilatildeo uma regressatildeo instintiva e afirma ldquoa intuiccedilatildeo natildeo supera a humanidade senatildeo no

sentido revelado pela inteligecircnciardquo (WORMS 2011 p 271) Ainda Petr Tuma (In FAGOT-LARGEAULT

WORMS 2009 p 374) explicita a relaccedilatildeo de complementaridade entre intuiccedilatildeo e inteligecircncia suposta pela

interpretaccedilatildeo de Worms ldquoLrsquointelligence comme faculteacute principale de lrsquohomme se trouve completeacutee par son

jeu avec lrsquointuitionrdquo Finalmente conveacutem assinalar que tambeacutem Henri Hude (In FAGOT-LARGEAULT

WORMS 2009 p 197) natildeo cessou de insistir ldquosur le caractegravere meacutethodique et rationnel de lrsquointuitionrdquo A

orientaccedilatildeo genuinamente antropoloacutegica do trabalho de intuiccedilatildeo em Bergson no entanto eacute um tema de que

natildeo podemos nos ocupar por ora sob pena de estender inconvenientemente esta pequena digressatildeo

94

filosofia mas eacute pensar em duraccedilatildeo o que significa seguir as articulaccedilotildees moventes do real

privilegiar a visatildeo da gecircnese e natildeo a da estrutura dada por natildeo se sabe bem por qual deus

ex machina 2) evitemos o antigo e incoerente haacutebito de procurar pelo antiintelectualismo

no seio daquilo que Bergson designou como ldquoesforccedilo de intuiccedilatildeordquo59

nosso breve desvio

pocircde atestar o liame necessaacuterio entre intuiccedilatildeo e inteligecircncia se por inteligecircncia

compreendermos a exemplo de Bergson ldquoa maneira humana de pensarrdquo60

3) Finalmente

compreendemos que a intuiccedilatildeo constitui uma das muacuteltiplas entradas possiacuteveis agrave filosofia de

Bergson sendo preciso nesse caminho descartar todo raciociacutenio estrutural e retrospectivo

em relaccedilatildeo a esse conceito Se o conhecimento de qualquer realidade exige como quisera o

proacuteprio Bergson uma longa camaradagem com suas manifestaccedilotildees superficiais natildeo se

poderaacute esperar ver na intuiccedilatildeo o fiat da obra bergsoniana uma vez que natildeo eacute por ela que

Bergson comeccedila e porque ela se constitui em um desenvolvimento em tudo coextensivo agrave

experiecircncia concreta

Encerremos esse longo parecircntese sobre a questatildeo da intuiccedilatildeo em Bergson a fim de

retomar nossa questatildeo primeira a das muacuteltiplas entradas para compreender o sentido e a

realidade do tempo em Bergson Aleacutem da intuiccedilatildeo uma segunda possibilidade seria a

esboccedilada por Freacutedeacuteric Worms em Bergson ou os dois sentidos da vida ou como

propusera antes dele Vladimir Jankeacuteleacutevitch com seu Henri Bergson Ela consistiria em

remontar as articulaccedilotildees do bergsonismo a partir do progresso interno de seu

desenvolvimento partindo do Essai sur les donneacutes immediates de la conscience (1889)

passando por Matiegravere et meacutemoire (1896) e LacuteEacutevolution Creacuteatrice (1907) ateacute chegar a Les

Deux Sources de la Morale et de la Religion (1932) Trata-se de uma das ordenaccedilotildees mais

didaacuteticas de Bergson na medida em que o trabalho passa a ser ndash como Jankeacuteleacutevitch e

Worms aliaacutes executam magistralmente ndash proceder agraves cesuras encadear pontos de

continuidade e religar elementos de ruptura entre as quatro principais obras de Bergson

Apesar de os esforccedilos desses ceacutelebres leitores de Bergson convencerem pela uniatildeo

de beleza e inspiraccedilatildeo da continuidade do bergsonismo retrilhar sistematicamente seus

caminhos implica assumir o risco de criar indevidamente no leitor a impressatildeo ndash na qual eacute

preciso evidenciar nenhum desses notaacuteveis inteacuterpretes jamais incorre ndash de um teacutelos

previamente estabelecido pela filosofia bergsoniana Se assim fosse o que explicaria por

exemplo o quarto de seacuteculo que separa a publicaccedilatildeo de LrsquoEacutevolution Creacuteatrice e a de Les

59

A fim de encerrar tais acusaccedilotildees deixemos com Bergson (2001 p 132895) a uacuteltima palavra ldquoNous ne

dirons rien de celui qui voudrait que notre lsquointuitionrsquo fucirct instinct ou sentiment Pas une ligne de ce que nous

avons eacutecrit ne se precircte agrave une telle interpreacutetationrdquo 60

ldquoQursquoest-ce en effet que lrsquointelligence La maniegravere humaine de penserrdquo (BERGSON 2001 p 131984)

95

Deux Sources (GOUHIER 1989 p 87) Se com efeito eacute impossiacutevel deixar de verificar

que Bergson sempre se move de um problema concreto a outro ndash a liberdade a relaccedilatildeo

entre corpo e espiacuterito a gecircnese criadora da vida e de suas formas especiacuteficas a miacutestica e o

aberto ndash e que cada livro terminado engendra jaacute as virtualidades de um problema que eacute

preciso colocar sempre em funccedilatildeo da duraccedilatildeo natildeo haacute meta na filosofia bergsoniana senatildeo

certa direccedilatildeo inespeciacutefica que se resume agrave tentativa de oferecer uma resposta agraves trecircs

grandes e simples questotildees que o senso comum frequentemente se coloca ldquoQuem somos

noacutesrdquo ldquoDe onde noacutes viemosrdquo ldquoPara onde noacutes vamosrdquo (RIQUIER 2009 p 476)

A fim de evitar os riscos da interpretaccedilatildeo retrospectiva bem como os da exposiccedilatildeo

linear gostaria de propor alternativamente uma terceira entrada apenas por supocirc-la mais

adequada aos desenvolvimentos do problema que buscamos enfrentar a partir de Bergson

apresentar os conceitos de memoacuteria e transiccedilatildeo no corpo da filosofia bergsoniana a fim de

explicar a relaccedilatildeo entre memoacuteria e transformaccedilatildeo social ndash lacuna encontrada na primeira

parte no seio heterogecircneo da Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo

Eis porque a questatildeo do sentido e da realidade do tempo devem ser colocadas de

um ponto de vista que natildeo inicia pela exposiccedilatildeo da intuiccedilatildeo filosoacutefica tampouco pela

exposiccedilatildeo sistemaacutetica do desenvolvimento da obra de Bergson Eacute preciso que nos

coloquemos no campo de sentido conceitual de imediato instaurando-o correlativa e

contemporaneamente ao desenvolvimento dos conceitos que o povoam

Antes disso no entanto eacute preciso uma palavra sobre o sentido desse movimento

que nos autoriza colocar-nos subitamente no interior do campo problemaacutetico que se deseja

constituir Escrevesse sobre o canevaacutes das experiecircncias psicoloacutegicas forjasse um campo

transcendental das experiecircncias concretas ou recortasse problemas antropoloacutegicos acerca

dos destinos da espeacutecie humana sobre o fundo do eacutelan vital natildeo raras vezes e ateacute mesmo

constantemente Bergson empresta agrave intuiccedilatildeo a imagem dos saltos toda a sua obra eacute

percorrida por essas imagens haacute saltos na duraccedilatildeo qualitativa no passado na origem da

vida na justiccedila absoluta no aberto etc

Sempre que nos vemos envolvidos por diferenccedilas de natureza ndash entre

multiplicidades quantitativa e qualitativa espaccedilo e tempo mateacuteria e espiacuterito ou entre

fechado e aberto por exemplo ndash retorna a imagem dos saltos que preenchem

positivamente as dificuldades de passar de um registro ontoloacutegico a outro em um momento

em que natildeo se pode ainda passar de um termo a outro por contiguidades Geralmente

trata-se dos momentos em que Bergson deseja desfazer-se de falsos-problemas ou

96

constituir os seus pela intuiccedilatildeo mais adequados que se valem de um contato imediato com

a experiecircncia concreta acerca do qual se mobiliza o esforccedilo de intuiccedilatildeo61

O que apareceraacute ao fundo de cada um deles eacute o salto problemaacutetico e ainda assim

sempre repetido do atual em direccedilatildeo ao virtual sem sair da mesma realidade agrave qual ambos

os registros pertencem ndash campo transcendental ao qual nenhuma realidade pode escapar

pois define a condiccedilatildeo de toda experiecircncia concreta Eacute sobre um salto como esses de uma

diferenccedila de natureza a outra de um registro de realidade a outro que devemos nos

concentrar a fim de realizar a travessia do atual em direccedilatildeo ao virtual sob o aspecto da

duraccedilatildeo Trata-se de interrogar o sentido e a realidade do tempo em Bergson

Para tanto o movimento conceitual que realizaremos mobiliza dois niacuteveis de

realidade solidaacuterios e no entanto qualitativamente distintos o psicoloacutegico e o ontoloacutegico

tal como aparecem a partir do Essai sur les donneacutes immediates de la conscience e de

Matiegravere et Meacutemoire Falamos de uma duraccedilatildeo tomada em uma diferenccedila de vibraccedilatildeo

psicoloacutegica compreendida como duraccedilatildeo interior experiecircncia mais imediata do fluxo

temporal e ontoloacutegica registro de realidade mais proacuteximo da mateacuteria Seu muacutetuo

cruzamento tornaraacute possiacutevel efetuar a passagem do ser presente ao ser do passado ndash eis a

transiccedilatildeo que por ora se trata de engendrar e que permite aceder natildeo apenas agrave duraccedilatildeo

sentida em profundidade como fruto de uma experiecircncia psicoloacutegica ndash verdadeiro fato

fundamental (JANKEacuteLEacuteVITCH 2008 p 07) ndash mas igualmente ao ser presente e ao ser

do passado como iacutendices de um desdobramento ontoloacutegico duacuteplice da duraccedilatildeo o atual e o

virtual

Em relaccedilatildeo agraves alternativas que haacute pouco revisitamos em suas linhas gerais esta

apresenta a vantagem de natildeo incorrer nos riscos de interpretaccedilatildeo retrospectiva e de

continuidade linear que aquelas poderiam sugerir ao leitor tornando mais complexo o

acompanhamento da demonstraccedilatildeo do sentido e da realidade do tempo em Bergson Ainda

esta alternativa permitiraacute acompanhar o desdobramento a um soacute tempo complexo e

contiacutenuo da realidade do virtual bem como seus desdobramentos que de um ponto de

vista inicialmente psicoloacutegico progressivamente se articularaacute com a ontologia da duraccedilatildeo

concedendo-nos a chave de todos os desdobramentos ulteriores em campos muito

heterogecircneos como os terrenos da subjetivaccedilatildeo ou da experiecircncia social

61

Nesse aspecto vecirc-se que a imagem do salto eacute uma figura de acesso agravequilo que a experiecircncia concreta pode

oferecer agrave intuiccedilatildeo Todavia este primeiro salto define apenas o acesso agrave experiecircncia naquilo que ela possui

de concreto e portanto de misto por ora indiviso Uma vez cindido torna-se ainda uma vez possiacutevel saltar de

um termo-limite a outro de uma diferenccedila de natureza a outra Por essa razatildeo Henri Hude (2009 p 182)

afirma que ldquoLrsquoobjet de lrsquointuition crsquoest drsquoabord lrsquoimmediat Lrsquoimmediat est le mode de connaissance qui se

rapporte sans inteacutermediare agrave son objetrdquo

97

sect 2 DURACcedilAtildeO O SENTIDO E A REALIDADE DO TEMPO

Encontramo-nos pois no segmento psicoloacutegico da obra de Bergson que ensaia

tambeacutem e jaacute sua deserccedilatildeo ampliativa em direccedilatildeo agrave ontologia e eacute precisamente esta

articulaccedilatildeo ou esta continuidade entre o psicoloacutegico e o ontoloacutegico que se torna

momentaneamente o epicentro conceitual necessaacuterio para explicar o sentido e a realidade

do tempo como a passagem do ser presente ao ser do passado no bergsonismo Afinal se

por ora utilizamos o termo ontoloacutegico para designar as realidades aproximadas da mateacuteria

excluindo aparentemente o psiacutequico eacute apenas por uma razatildeo de comodidade precaacuteria que

deve deformar-se paulatinamente no sentido de seu contraacuterio A construccedilatildeo progressiva do

conceito de duraccedilatildeo e a procura pelo sentido e pela realidade do tempo tendem a provocar

como veremos duas aberturas nessas mesmas estruturas discursivas a primeira no

ontoloacutegico torna o psiacutequico e o mental uma realidade a segunda no psicoloacutegico torna-o o

seio privilegiado da experiecircncia da duraccedilatildeo assegurando sua realidade e seu sentido

Trata-se portanto de abrir o campo ontoloacutegico pelo campo psicoloacutegico e como

consequecircncia da comunicaccedilatildeo entre ambos afirmar a realidade da duraccedilatildeo em niacuteveis ou

registros diferentes que compotildeem uma soacute realidade ontoloacutegica

O texto introdutoacuterio do Essai sur les donneacutes immediates de la conscience apresenta

o problema da liberdade como comum aos campos da psicologia e da metafiacutesica Sua

origem profunda se deve ao fato de que ldquoNous nous exprimons neacutecessairement par des

mots et nous pensons le plus souvent dans lrsquoespacerdquo (BERGSON 2001 p 03VII) Se a

linguagem corresponde agrave expressatildeo de ideias de acordo com necessidades praacuteticas comuns

agrave accedilatildeo na vida quotidiana como na ciecircncia de algum modo suas traduccedilotildees introduzem

ldquoentre nos ideacutees les mecircmes distinctions nettes et preacutecises la mecircme discontinuiteacute qursquoentre

les objets materieacutelsrdquo (BERGSON 2001 p 03VII) Eis o que nos leva a tomar os siacutembolos

meramente representativos por coisas Trata-se nesse caso natildeo mais que de uma

assimilaccedilatildeo uacutetil que no entanto eacute capaz de engendrar em filosofia problemas

aparentemente insuperaacuteveis que uma vez que tenham sido recolocados poderiam ateacute

mesmo desvanecer por completo segundo Bergson adverte ndash natildeo sem certa audaacutecia

especulativa

Por essa razatildeo os dois primeiros capiacutetulos do Essai concentram-se precisamente

sobre a criacutetica das noccedilotildees de quantidades intensivas e de multiplicidades numeacutericas Eacute

preciso compreender que natildeo se trata de uma criacutetica a conceitos puros mas agrave sua

aplicaccedilatildeo pelas ciecircncias psicoloacutegicas a um campo de experiecircncias irredutiacutevel agrave

98

representaccedilatildeo espacial incutida nesses conceitos Logo se nota portanto que a criacutetica de

Bergson desenrola-se no sentido da irredutibilidade de experiecircncias duracionais a

traduccedilotildees que natildeo apreendem senatildeo um rastro espacializado de uma mudanccedila real e

absoluta Nesse sentido o problema da liberdade indicaraacute que toda polecircmica metafiacutesica e

psicoloacutegica acerca de sua existecircncia entre deterministas e seus adversaacuterios teria origem em

uma operaccedilatildeo de fundo ldquoune confusion preacutealable de la dureacutee avec lrsquoeacutetendue de la

succession avec la simultaneiteacute de la qualiteacute avec la quantiteacute []rdquo(BERGSON 2001 p

03VII)62

Em suma uma insistente confusatildeo entre realidades que comportam diferenccedilas

de natureza de que deriva uma certa maneira de pocircr o problema cuja denuacutencia o ensaio

bergsoniano assumiraacute (WORMS 2011 p 37)

O que estaacute em jogo na introduccedilatildeo dessa diferenccedila ainda imprecisa entre duraccedilatildeo e

espaccedilo eacute precisamente a natureza da duraccedilatildeo Supomos por ora a fim de acompanhar

Bergson que a assimilaccedilatildeo da duraccedilatildeo pelo espaccedilo seja deformante e desnaturante assim

como a traduccedilatildeo de uma sucessatildeo em simultaneidades ou de qualidades em quantidades

Tratar-se-ia pois de conceitos irredutiacuteveis cuja irredutibilidade ainda falta explicar Para

fazecirc-lo deixemos de lado a questatildeo da realidade do espaccedilo e nos concentremos nos

problemas que nos sugerem o desenvolvimento da realidade da duraccedilatildeo

O campo experimental de Bergson satildeo os estados psicoloacutegicos e de consciecircncia

propriamente humanos Eles seratildeo desenvolvidos inicialmente a partir da ideia de

sensaccedilatildeo em primeiro lugar no sentido de identificar e separar as tendecircncias duracionais e

natildeo-duracionais no seio da experiecircncia interior e concreta que nos assinala ldquole fait de

lsquodurerrsquordquo (JANKEacuteLEacuteVITCH 2008 p 07) Se as sensaccedilotildees de esforccedilo e movimento podem

ser naturalmente associadas agrave superfiacutecie a que se aplicam ou agrave trajetoacuteria sobre a qual se

deslocam o mesmo natildeo ocorre quando experimentamos outros estados de alma como ldquoles

joies et les tristesses profondes les passions reacutefleacutechies les eacutemotions estheacutetiquesrdquo

(BERGSON 2001 p 0906) Esses estados parecem bastar a si mesmos excluindo toda

possibilidade de traduccedilatildeo espacial63

parecem ademais emergir subitamente de certa

profundidade da consciecircncia exprimindo dinamicamente uma modificaccedilatildeo da ldquonuance de

62

Bento Prado Juacutenior natildeo apenas lembra que a criacutetica do Essai bergsoniano dirige-se tanto agrave ciecircncia quanto

ao senso comum ao distribuiacuterem fatos psicoloacutegicos em um espaccedilo imaginaacuterio instaurado por coordenadas de

grandeza intensiva mas tambeacutem que colocar em jogo o conceito de grandeza intensiva potildee em xeque ldquoa

possibilidade da constituiccedilatildeo da psicologia como ciecircnciardquo a qual estaacute fundada nessa categoria De todo

modo buscando demonstrar a vacuidade do problema da liberdade Bergson buscaria ldquoinfundar deterministas

e espiritualistasrdquo demonstrando ldquoa raiz comum dessas metafiacutesicasrdquo (PRADO JUacuteNIOR 1989 p 73-74) 63

ldquoCrsquoest que plus on descend dans les profondeurs de la conscience moins on a le droit de traiter les faits

psychologiques comme des choses qui se juxtaposentrdquo (BERGSON 2001 p 1006-07) isto eacute menos

direitos tem uma representaccedilatildeo espacial sobre a coloraccedilatildeo afetiva em profundidade

99

mille perceptions ou souvenirsrdquo penetrados agora de uma nova imagem No entanto toda

descida agrave profundidade obscura da consciecircncia dos desejos e sonhos que a penetram ndash e

que como veremos penetram-se indefinidamente nela ndash repugna agrave consciecircncia reflexa

orientada para a utilidade e para a vida e portanto amante do claro e do distinto

envolvidos pelos horizontes da representaccedilatildeo

Toda afecccedilatildeo tomada em profundidade implica mais uma mudanccedila de qualidade

que de grandeza Um desejo que pacientemente se acumula o futuro prenhe de uma

infinidade de possiacuteveis mais fecundos que o proacuteprio futuro que designa toda a prazerosa

intensidade de nutrir esperanccedila sentimentos profundos de alegria e tristeza sentimentos

esteacuteticos que inspiram certa simpatia fiacutesica de movimentos alheios como a graccedila

assinalariam um progresso qualitativo que no entanto interpretamos como mudanccedila de

grandeza em razatildeo de uma inadequaccedilatildeo entre nossa linguagem e ldquoas sutilezas da anaacutelise

psicoloacutegicardquo (BERGSON 2001 p 1310)

A sensaccedilatildeo esteacutetica talvez constitua um dos mais claros exemplares sobre como

Bergson compreende a natureza qualitativa dos estados psicoloacutegicos Segundo ele o que

constitui o objetivo da arte Natildeo comunicar uma sensaccedilatildeo mas introduzir-nos em uma

emoccedilatildeo64

Para isso eacute necessaacuterio adormecer as resistecircncias de nossa personalidade

docilizar nosso estado de acircnimo a fim de que simpatizemos com o sentimento expresso O

ritmo seja o compreendido pela muacutesica pela poesia pelas artes plaacutesticas ou pela

arquitetura suspende nossas faculdades a fim de envolvecirc-las por completo em uma densa

neacutevoa de emoccedilotildees que natildeo se resumem agravequela sugerida pela obra mas a integra com

milhares de sensaccedilotildees sentimentos e ideias que a atravessam formando assim um estado

uacutenico e inexplicaacutevel tatildeo singular que talvez fosse preciso ldquorevivre la vie de celui qui

lrsquoeacuteprouve [lrsquoeacutemotion] pour lrsquoembrasser dans sa complexe originaliteacuterdquo (BERGSON 2001

p 1513)65

64

Em Puissances du Temps David Lapoujade pergunta-se pela relaccedilatildeo entre o conceito de duraccedilatildeo em

Bergson e o fato de que sua experiecircncia aparece desde seus primeiros escritos ligada agrave sensaccedilatildeo da

passagem do tempo ldquopour saisir la dureacutee [] il faut la sentir srsquoeacutecouler en nousrdquo (LAPOUJADE 2010 p

08) Trata-se poreacutem de compreender o que significar sentir Eacute certo que ao passar o tempo provoca

emoccedilotildees que se confundiriam para Lapoujade com os proacuteprios dados imediatos da consciecircncia Contudo

para compreender o significado profundamente bergsoniano de sentir seria preciso inverter a polaridade

comum entre causa e efeito jaacute natildeo seria o tempo que ao passar provoca emoccedilatildeo eacute a duraccedilatildeo mesma que

em noacutes eacute emoccedilatildeo segundo a foacutermula de Lapoujade Isso indicaria que a emoccedilatildeo ndash ideia que reapareceraacute

incessantemente na obra tardia de Bergson seguida do predicado criadora ndash constitui um dos aspectos

fundamentais da experiecircncia da duraccedilatildeo Isso eacute o que torna a sensaccedilatildeo esteacutetica um exemplar privilegiado para

a compreensatildeo do duracional cuja realidade esboccedila-se jaacute interna e imediatamente 65

A expressatildeo entre colchetes natildeo consta do original

100

A qualidade de singularidade intensiva da emoccedilatildeo esteacutetica produz assim a queda

das barreiras que tempo e espaccedilo interpunham entre a consciecircncia do artista e a do amante

de arte essa ressonacircncia entre consciecircncias ndash como vimos mais que a comunicaccedilatildeo de

uma emoccedilatildeo implica a introduccedilatildeo no solo afetivo de uma emoccedilatildeo enriquecida em diversos

niacuteveis de profundidade pelo eu que a experimenta ndash produz segundo Bergson mudanccedilas

em noacutes ldquoLes intensiteacutes successives du sentiment estheacutethique correspondent donc agrave des

changements drsquoeacutetat survenus en nous et le degreacutes de profondeur au plus ou moins grand

nombre de faits psychiques eacuteleacutementaires que nous deacutemecirclons confusement dans lrsquoeacutemotion

fondamentalerdquo (BERGSON 2001 p 1614)

Bergson reconhece no entanto a raridade desses estados de alma profundos

Torna-se necessaacuterio evitar que sua criacutetica da inadequaccedilatildeo do conceito de quantidades

intensivas traduziacuteveis sempre em diferenccedilas de graus seja compreendida como um tour de

force que toma o excepcional pelo regular Por isso Bergson deve retornar agraves sensaccedilotildees

que nos parecem mais imediatamente espaciais eacute o caso da sensaccedilatildeo de esforccedilo

Com efeito o esforccedilo muscular parece-nos sempre comportar diferenccedilas

quantitativas Representamos esforccedilos musculares mais fracos e mais fortes que implicam

menor ou maior volume de accedilatildeo Se comprimiacutessemos a sensaccedilatildeo de esforccedilo o maacuteximo

possiacutevel concluiriacuteamos facilmente pela existecircncia de um estado puramente psiacutequico que

natildeo ocupa espaccedilo e contudo importa grandeza

Em que consiste nossa percepccedilatildeo de sua intensidade Como se pode afirmar que

experimentamos uma sensaccedilatildeo de crescimento do esforccedilo Natildeo nos afastemos da

experiecircncia Bergson sugere que fechemos o punho o mais forte que pudermos ou

comprimamos constantemente um dos laacutebios contra o outro observando-nos ao longo do

tempo perceberiacuteamos um aumento de superfiacutecie e de esforccedilo quando em verdade trata-se

objetivamente de uma pressatildeo constante e igual exercida sobre a mesma regiatildeo Nossa

consciecircncia todavia perceberia aiacute um crescimento de esforccedilo muscular em razatildeo de uma

mudanccedila qualitativa ocorrida em alguma das percepccedilotildees perifeacutericas (BERGSON 2001 p

2119) Ora sendo qualitativa a modificaccedilatildeo de intensidade de um esforccedilo superficial eacute

forccediloso conduzir sua causa a um sentimento profundo da alma confusamente

percepcionado em superfiacutecie

Investigando estados psicoloacutegicos intermediaacuterios entre sentimentos profundos e

esforccedilos superficiais como a atenccedilatildeo geralmente acompanhada de movimentos (contraccedilatildeo

do frontal elevaccedilatildeo do sobrolho abertura da boca etc) eacute possiacutevel identificar tambeacutem

entre eles uma impressatildeo de aumento de um ldquoesforccedilo imaterialrdquo por manter-se

101

concentrado Com efeito mesmo aiacute o esforccedilo de atenccedilatildeo eacute reconduzido a uma tensatildeo da

alma devendo-se a variaccedilatildeo de intensidade percepcionada agrave tensatildeo muscular que a

acompanha O mesmo ocorre com o que Bergson chama de emoccedilotildees violentas desejo

agudo coacutelera amor apaixonado oacutedio violento que se fazem natildeo raro acompanhar por

sintomas fisioloacutegicos de furor variaccedilotildees qualitativas misturam-se a tensotildees musculares

perifeacutericas e uma variaccedilatildeo de tensatildeo espiritual pode ser logo transcrita em termos de

coordenadas quantitativas e espaciais

Isso tudo importaria reduzir essas sensaccedilotildees superficiais que podem ser transcritas

em termos de grandezas agrave orientaccedilatildeo de movimentos concomitantes que a consciecircncia

mede pelo nuacutemero e extensatildeo ldquodas superfiacutecies interessadasrdquo Bastaria eliminar todo traccedilo

de abalo orgacircnico a fim de que restasse apenas uma emoccedilatildeo agrave qual eacute impossiacutevel atribuir

grandeza de intensidade Seria preciso pois distinguir com precisatildeo entre abalos orgacircnicos

e sentimentos profundos agitaccedilatildeo superficial e perturbaccedilotildees em profundidade

Se Bergson contesta o conceito de intensidade quantitativa eacute visando a comprovar o

fundo qualitativo em profundidade de toda manifestaccedilatildeo superficial A irredutibilidade

entre intenso e extenso entre a qualidade e a quantidade indica desde logo que haacute entre

eles uma diferenccedila natildeo apenas de grau mas de natureza Essa diferenccedila de natureza

impede que a traduccedilatildeo do qualitativo pelo mensuraacutevel seja adequada e mais aleacutem que se

passe do qualitativo ao quantitativo por aproximaccedilotildees ndash sejam elas ampliaccedilotildees ou reduccedilotildees

ndash sucessivas A noccedilatildeo de intensidade implicaria nesse sentido um misto designando ao

mesmo tempo uma apreciaccedilatildeo da grandeza da causa por certa qualidade superficial do

efeito ndash o que corresponderia ao extenso e ao quantitativo bem como ldquola multipliciteacute plus

ou moins consideacuterable de faits psychiques simples que nous devinons ou sein de lrsquoeacutetat

fondamentalrdquo (BERGSON 2001 p 5054) o que designaria natildeo mais uma percepccedilatildeo

clara e distinta ou superficial mas profunda confusa e obscura

A intensidade afigura-se pois um misto bifronte que se compotildee de dados extensos

quantitativos superficiais ou o que eacute dizer o mesmo espaciais e em seu anverso eacute

composto de uma multiplicidade de fatos psiacutequicos simples tomados em sua continuidade

obscura e confusa que Bergson compraz-se em chamar de ldquolrsquoimage drsquoune multipliciteacute

internerdquo Eis o ponto de junccedilatildeo entre estados de consciecircncia meramente representativos e

estados de consciecircncia que se bastam considerados em profundidade O proacuteximo passo

seraacute dissociar representaccedilatildeo e esta multiplicidade interna considerada agora natildeo em

estados separados mas em si mesmos a fim de depurar a duraccedilatildeo de todas as suas

102

representaccedilotildees espaciais e dessa forma liberaacute-la das ilusotildees de que a inteligecircncia a cercou

desde a filosofia dos eleatas

Ateacute agora apreendemos estados psicoloacutegicos como sensaccedilotildees cujas qualidades

desprendem-se de um fundo obscuro e confuso e que chegando agrave superfiacutecie de nosso eu

satildeo apreendidos como estados separados distintos tal como a inteligecircncia os percebe

como dados imediatos de uma consciecircncia Diferentemente dos sentimentos profundos as

sensaccedilotildees apreendidas na superfiacutecie e logo transcritas em quantidades intensivas

variaccedilotildees de grandeza e diferenccedilas de grau oferecem-nos com efeito uma multiplicidade

mas ela nos concederaacute a duraccedilatildeo Tudo indica que natildeo Se a intensidade misto bifronte

prenhe tanto de quantidades intensivas quanto de fatos psiacutequicos simples correspondentes a

multiplicidades internas aponta desde logo para uma divisatildeo entre o espacial e o externo e

o duracional e o interno eacute na duraccedilatildeo dos estados simples interiores e profundos que

devemos buscar a ideia de duraccedilatildeo

Afinal como vimos eacute em profundidade que se constituem tanto os sentimentos

profundos que parecem bastar-se a si mesmos quanto aqueles mais superficiais sempre

em vias de converter-se em extensatildeo segundo os modos simboacutelicos de uma consciecircncia

que os experimenta em profundidade e realiza sua siacutentese por intermeacutedio da inteligecircncia

Em que consiste o que seus dados imediatos ofereceram agrave anaacutelise ateacute o presente De um

lado sua sede estabelecida em profundidade que implica uma mudanccedila de caraacuteter

qualitativo de outro sua siacutentese superficial que se nos representa uma mudanccedila de

qualidade como uma multiplicidade descontiacutenua povoada por estados descontiacutenuos

organizados no espaccedilo que experimentariacuteamos um apoacutes o outro e que variariam segundo

diferenccedilas de grau ou de quantidade

Jaacute se pode notar que o novo problema de Bergson consiste natildeo em mostrar que a

duraccedilatildeo implica multiplicidade ndash afinal o espaccedilo tambeacutem a implica ndash mas caso se trate de

assinalar uma diferenccedila de natureza entre duraccedilatildeo e espaccedilo eacute preciso compreender a que

tipo de multiplicidades correspondem os conceitos de duraccedilatildeo e extensatildeo Toda a questatildeo

da duraccedilatildeo converte-se em uma exigecircncia de apreender as caracteriacutesticas daquilo que

constitui seu tipo proacuteprio de multiplicidade

Se assim for o que explica o fato de que Bergson inicia o segundo capiacutetulo do

Essai pela definiccedilatildeo de nuacutemero Em La Penseacutee et le Mouvant Bergson afirmava que a

origem de seu encantamento com a ideia de tempo remontava ao fato de perceber que nas

103

matemaacuteticas o tempo natildeo desempenhava qualquer papel66

O trabalho de depuraccedilatildeo da

duraccedilatildeo de todo referencial e determinaccedilatildeo espaciais deve comeccedilar assinalando o tipo de

multiplicidade que concorre para um modo da realidade em que a duraccedilatildeo em princiacutepio

natildeo pode constituir causa Isso implica determinar com precisatildeo que tipo de multiplicidade

corresponde agraves coordenadas espaciais para depois definir a multiplicidade que

corresponde agrave duraccedilatildeo como limites de nossa experiecircncia (WORMS 2011 p 41) A

anaacutelise do conceito de nuacutemero eacute aquela que permitiraacute distinguir duas multiplicidades

Bergson (2001 p 5156) define o nuacutemero como ldquoune collection drsquouniteacutesrdquo ou como

ldquola synthegravese de lrsquoun et du multiplerdquo Trata-se de uma coleccedilatildeo de unidades supostas

idecircnticas entre si o que implicaria a ldquointuiccedilatildeo simples de uma multiplicidade de partes e de

unidadesrdquo assemelhadas umas agraves outras No entanto esta unidade eacute sinteacutetica operada pela

consciecircncia uma vez que as partes natildeo se confundem ou natildeo haveria multiplicidade O

que garante que a multiplicidade possa subsistir entre unidades que supomos iguais e cuja

siacutentese mental oferece-nos uma unidade pragmaticamente simples A circunstacircncia de que

se as unidades satildeo absolutamente semelhantes umas agraves outras ao menos diferem entre si

em funccedilatildeo do espaccedilo O que assegura que a siacutentese dessa multiplicidade de unidades

similares entregue-nos um nuacutemero Alguma forma de retenccedilatildeo das unidades sucessivas

sua representaccedilatildeo simultacircnea em um espaccedilo ideal e homogecircneo que acompanha a siacutentese

da multiplicidade numeacuterica em unidade (BERGSON 2001 p 57-5853) Como observa

Bento Prado Juacutenior (1989 p 94) ldquoA enumeraccedilatildeo implica retenccedilatildeo e a retenccedilatildeo por sua

vez implica a siacutentese de instantes sucessivosrdquo no mesmo sentido Freacutedeacuteric Worms (2011

p 47) afirma que ldquoantes de adicionar eacute preciso conservarrdquo o que implica de um lado que

a repeticcedilatildeo nua das unidades natildeo seja jamais suficiente para formar um nuacutemero cuja

siacutentese estaacute a exigir a representaccedilatildeo simultacircnea e distinta da multiplicidade

Dessa maneira um espaccedilo ideal de justaposiccedilatildeo surge como coordenada essencial agrave

operaccedilatildeo de siacutentese numeacuterica eacute impossiacutevel apreender o todo pela mera repeticcedilatildeo ndash sem

nenhuma conservaccedilatildeo ndash de suas unidades ou partes integrantes Se de seu turno a adiccedilatildeo

parece ser uma experiecircncia eminentemente temporal se no-la representamos como uma

soma sucessiva Bergson afirmaraacute que se pode perceber exclusivamente no tempo uma

sucessatildeo mas jamais uma adiccedilatildeo uma sucessatildeo que culminasse em uma soma67

A

66

ldquoNous fucircmes tregraves frappeacute en effet de voir comment le temps reacuteel qui joue le premier rocircle dans toute

philosophie de lrsquoeacutevolution eacutechappe aux matheacutematiquesrdquo (BERGSON 2001 p 125402) 67

ldquoCertes il est possible drsquoapercevoir dans le temps et dans le temps seulement une succession pure et

simple mais non pas une addition crsquoest-agrave-dire une succession qui aboutisse agrave une sommerdquo (BERGSON

2001 p 5458-59) ademais Bergson (2001 p 5459) conclui que ldquo[]toute ideacutee claire du nombre implique

104

intervenccedilatildeo de uma representaccedilatildeo espacial eacute condiccedilatildeo do nuacutemero como eacute do simples ato

de contar

Se por um lado o nuacutemero supotildee a extensatildeo por outro supotildee a descontinuidade

Retornemos por um momento agrave definiccedilatildeo do nuacutemero como siacutentese do uno e do muacuteltiplo

ou como coleccedilatildeo de unidades Ao nos representarmos um nuacutemero acedemos agrave intuiccedilatildeo de

uma totalidade simples no entanto quando nos representamos o nuacutemero como um todo

formado de partes ndash as unidades que compotildeem o nuacutemero ndash notaremos que a unidade

conteacutem uma multiplicidade Portanto a unidade do espiacuterito que reuacutene as partes em um todo

depende do caraacuteter essencialmente divisiacutevel de suas partes isto eacute de uma multiplicidade

de base Essa multiplicidade de base compotildee-se de unidades que supomos idecircnticas e que

satildeo por sua vez divisiacuteveis ao infinito uma vez que sua representaccedilatildeo como totalidade

decorre tal como o nuacutemero que designa o conjunto que ela integra de um ato do espiacuterito

natildeo de uma ldquounidade definitivardquo

Eacute nesse ponto que Bergson comprova ainda uma vez a solidariedade entre o

conceito de nuacutemero sua propriedade de multiplicidade descontiacutenua e divisiacutevel e a

extensatildeo ldquoOr par cela mecircme que lrsquoon admet la possibiliteacute de diviser lrsquouniteacute en autant de

parties que lrsquoon voudra on la tient pour lrsquoeacutetenduerdquo (BERGSON 2001 p 5661)68

A

indivisibilidade das unidades que compotildeem o nuacutemero por serem extensas eacute sempre

precaacuteria provisoacuteria e resultante de um ato sinteacutetico do espiacuterito da mesma forma um

nuacutemero entendido como siacutentese de uma multiplicidade em certa unidade gozaraacute tambeacutem

ele de uma simplicidade exclusivamente provisoacuteria O nuacutemero portanto supotildee o espaccedilo

que eacute definido por Bergson (2001 p 6470) como a concepccedilatildeo de um meio vazio

homogecircneo Ao afirmar que o espaccedilo eacute a concepccedilatildeo de um meio vazio e homogecircneo

Bergson remete sua origem ndash e por extensatildeo a das representaccedilotildees que dele nascem ndash agrave

estrutura subjetiva

Esboccedilada a noccedilatildeo de nuacutemero eacute preciso servir-se dela para opor duas espeacutecies de

multiplicidade Quando ouvimos o som de passos agrave porta ou o badalo de sinos podemos

nos representar essa sensaccedilatildeo espacialmente dissociando-os uns dos outros ndash caso em que

por exemplo contamos os passos ou os toques ndash ou recolhemos a impressatildeo qualitativa e

indivisa que o nuacutemero exerce em noacutes Dessa maneira jaacute natildeo dissociamos em partes mas

nossa consciecircncia o recolhe como uma totalidade indivisa ldquoune multipliciteacute confuse de

une vision dans lrsquoespacerdquo atestando a relaccedilatildeo de pressuposiccedilatildeo necessaacuteria entre o nuacutemero e a concepccedilatildeo de

um espaccedilo ideal vocacionado agrave retenccedilatildeo por meio da justaposiccedilatildeo 68

Ou ainda ao afirmar que ldquo[] lrsquoespace est la matiegravere avec laquelle lrsquoesprit construit le nombre le milieu

ougrave lrsquoesprit la placerdquo (BERGSON 2001 p 5763)

105

sensations et de sentiments que lrsquoanalyse seule distinguerdquo (BERGSON 2001 p 5965)

Eis o que permite compreender por intermeacutedio do conceito de nuacutemero que haacute duas

espeacutecies de multiplicidade a dos objetos materiais que formam imediatamente nuacutemero e

a dos fatos de consciecircncia que por constituiacuterem uma multiplicidade natildeo numeacuterica soacute

podem traduzir-se em nuacutemero agraves custas da mediccedilatildeo simboacutelica que faz intervir o espaccedilo69

Como se caracteriza essa multiplicidade natildeo numeacuterica atribuiacuteda aos fatos da

consciecircncia Em primeiro lugar ao contraacuterio da multiplicidade numeacuterica ela se define

pela simplicidade e pela indivisibilidade constituiacuteda pela adiccedilatildeo sucessiva de elementos

em segundo lugar por sua natureza qualitativa e heterogecircnea como tal os sucessivos

acreacutescimos de elementos natildeo tornam essa multiplicidade maior mas provocam mudanccedilas

integrais de natureza no todo (WORMS 2011 p 52)

Eacute a partir dessa multiplicidade natildeo numeacuterica qualitativa simples indivisiacutevel e

heterogecircnea ndash depurada de toda mediaccedilatildeo simboacutelica que implicaria representar o tempo

como um espaccedilo vazio e homogecircneo onde vecircm ter lugar sucessivos estados de consciecircncia

ndash que se poderaacute remontar agrave duraccedilatildeo por uma entrada genuinamente psicoloacutegica e asceacutetica

Por isso Bergson (2001 p 6167) sugere ldquoNous allons donc demander agrave la conscience de

srsquoisoler du monde exteacuterieur et par un vigoreux effort drsquoabstraction de redevenir elle-

mecircmerdquo

Toda a anaacutelise do conceito de nuacutemero teria nos levado ao menos a colocar sob

suspeita a analogia entre multiplicidades numeacutericas e natildeo numeacutericas Isso se deve a termos

compreendido que as multiplicidades natildeo numeacutericas ao admitirem uma transcriccedilatildeo

simboacutelica pressupotildeem a mediaccedilatildeo simboacutelica do espaccedilo ndash condiccedilatildeo de possibilidade da

retenccedilatildeo por justaposiccedilatildeo e simultaneidade A fim de natildeo desertar o campo da experiecircncia

imaginemos um conjunto de corpos materiais Deles podemos dizer que se diferenciam

entre si em face de serem exteriores uns aos outros ocuparem posiccedilotildees diversas entre si no

espaccedilo afinal satildeo mutuamente impenetraacuteveis A fim de que possamos imaginaacute-los o

espaccedilo interveacutem imediatamente pois eles ocupam um certo fundo homogecircneo no seio do

69

Nesse ponto ndash que passamos a aprofundar em seguida concentrando-nos sobre o significado de

multiplicidade natildeo numeacuterica ndash Gilles Deleuze (1966 p 30-31) sintetiza as caracteriacutesticas da distinccedilatildeo entre

multiplicidades numeacuterica e natildeo numeacuterica ldquoLrsquoimportant crsquoest que la deacutecomposition du mixte nous reacutevegravele

deux types de lsquomultipliciteacutersquo Lrsquoune est representeacutee par lrsquoespace (ou plutocirct si nous tenons compte de toutes les

nuances par le meacutelange impur du temps homogegravene) crsquoest une multipliciteacute drsquoexterioriteacute de simultaneiteacute de

juxtaposition drsquoordre de diffeacuterenciation quantitative de diffeacuterence de degreacute une multipliciteacute numeacuterique

discontinue et actuelle Lrsquoautre se preacutesente dans la dureacutee pure crsquoest une multipliciteacute interne de succession

de fusion drsquoorganisation drsquoheacuteteacuterogeacuteneacuteiteacute de discrimination qualitative ou de diffeacuterence de nature une

multipliciteacute virtuelle et continue irreductible au nombrerdquo Por certo Deleuze introduz jaacute aqui as noccedilotildees de

atual e virtual das quais nos ocuparemos apenas mais adiante

106

qual se distinguem Poderemos aplicar a mesma loacutegica a estados de consciecircncia Imaginaacute-

los como corpos impenetraacuteveis uns aos outros destacando-se de um fundo temporal no

qual sucederiam Segundo Bergson fazecirc-lo suporia conceber o tempo como um meio

indefinido e homogecircneo isto eacute como ldquole fantocircme de lrsquoespace obseacutedant la conscience

reacutefleacutechierdquo (BERGSON 2001 p 6774)

Esta seria uma ideia demasiadamente superficial da duraccedilatildeo que no entanto

permite a Bergson enunciar desde logo ainda hipoteticamente duas concepccedilotildees possiacuteveis

de duraccedilatildeo a pura e a impura A primeira define-se como ldquola forme que prend la

succession de nos eacutetats de conscience quand notre moi se laisse vivre quand il srsquoabstient

drsquoeacutetablir une seacuteparation entre lrsquoeacutetat preacutesent et les eacutetats anteacuterieursrdquo (BERGSON 2001 p

6774-75) isto eacute ela se define pela experiecircncia concreta da duraccedilatildeo ndash o profundo sentir

escoar do tempo mas tambeacutem pela continuidade indivisiacutevel entre o que nos representamos

como estados psiacutequicos Que nosso eu se deixe viver ndash para perseguir a foacutermula

bergsoniana agrave la lettre ndash isso implica uma suspensatildeo da representaccedilatildeo o esforccedilo vigoroso

solicitado por uma consciecircncia que se torna ldquoela mesmardquo pura interioridade na

contracorrente da inteligecircncia analiacutetica enfim esforccedilo vigoroso em eximir-se de justapor

partes como quem apreende uma melodia como um todo contiacutenuo natildeo como um

acumulado de notas e tempos

Uma frase musical equivale agrave duraccedilatildeo da consciecircncia na medida em que pode ser

apreendida como um todo contiacutenuo se partes haacute penetraram-se fundiram-se no sentido do

todo ndash sentido qualitativo que seria alterado em sua natureza natildeo soacute em caso de adiccedilatildeo ou

subtraccedilatildeo de uma das partes mas em todo caso de anaacutelise compreendida como clara

distinccedilatildeo entre partes A inadequaccedilatildeo entre representaccedilatildeo e a sucessatildeo duracional de

estados psiacutequicos origina-se segundo Bergson em uma certa obsessatildeo pela inteligecircncia Eacute

possiacutevel que adoeccedilamos de representaccedilatildeo projetando toda duraccedilatildeo no espaccedilo converte-se

a sucessatildeo em simultaneidade ao contraacuterio de apreender o movimento real e profundo do

durar Como o fundo antropoloacutegico de Les Deux Sources sugeriraacute adiante a doenccedila de que

sofre o homem eacute segundo Lapoujade (2010 p 89) ldquosa normaliteacute mecircme Ce dont il

souffre crsquoest de son intelligence et des lsquorepreacutesentations du reacuteelrsquo qursquoelle impose agrave son

attentionrdquo

A duraccedilatildeo para Bergson pode assumir a imagem de uma frase musical apreendida

em sua integralidade ndash o que supotildee a conservaccedilatildeo e portanto certo niacutevel de memoacuteria deste

todo ndash retenccedilatildeo que jaacute natildeo eacute aprisionada pela representaccedilatildeo espacial como justaposiccedilatildeo ou

simultaneidade como ocorria agraves multiplicidades numeacutericas mas como sucessatildeo pura

107

percebida pela consciecircncia Ele natildeo cessaraacute de retornar a essa imagem musical da duraccedilatildeo

que tatildeo bem se harmoniza em um todo de sentido que acompanha o desenvolvimento de

uma linha meloacutedica em continuidade e heterogeneidade E porque uma melodia natildeo

poderia ser apreendida por uma representaccedilatildeo espacial Porque se em uma partitura

podemos inscrever os signos que nos remetem a certas notas e tempos que compotildeem

como partes no espaccedilo o desenvolvimento de uma linha meloacutedica esta natildeo passaraacute da

projeccedilatildeo espacializada e desnaturada dessa linha que soacute pode efetuar-se na duraccedilatildeo

Mesmo os ritmos as intensidades puras de uma muacutesica soacute podem ser apreendidos pela

experiecircncia simpaacutetica o que significariam nas partituras mesmas as infinitas variaccedilotildees de

allegro ndash como molto allegro allegro vivace allegro moderato allegro pesante ou allegro

maestoso Sabemos que entre eles se passam variaccedilotildees qualitativas mas somos incapazes

de compreender um andamento por meios simboacutelicos por mais vivamente que eles nos

possam sugeri-lo A partitura pode ser o mapa de uma canccedilatildeo mas natildeo pode ser mais que

seu mapa o fluxo duracional contiacutenuo que a efetuaccedilatildeo de uma linha meloacutedica requer para

constituir por muacutetua penetraccedilatildeo um todo de sentido eacute-lhe irredutiacutevel Haveria mais

profundamente que um Bergson matemaacutetico um Bergson muacutesico como uma intuitiva

variaccedilatildeo um Bergson chansonnier

Isso permite definir natildeo apenas a distinccedilatildeo entre duraccedilatildeo concreta (sucessatildeo sem

exterioridade) e tempo homogecircneo sobredeterminado por sua representaccedilatildeo no espaccedilo

(exterioridade sem sucessatildeo) mas chegar ao impasse do movimento o ponto culminante

da argumentaccedilatildeo de Bergson sobre a realidade e o sentido da duraccedilatildeo Aplicando a ele o

procedimento de divisatildeo do misto eacute possiacutevel notar que a experiecircncia da mobilidade

integra-se por uma componente espacial ndash cada uma das posiccedilotildees sucessivas que um moacutevel

ocupa no espaccedilo ndash e outra duracional ldquola sensation absolument indivisible de mouvement

ou de mobiliteacuterdquo (BERGSON 2001 p 7583) como a que experimentamos ao percebermos

subitamente uma estrela cadente Assim o movimento eacute um misto composto de espaccedilo

percorrido e ato de percorrer sucessivas posiccedilotildees

Os sofismas da escola de Eleia teriam surgido precisamente da confusatildeo das duas

componentes o que leva Zenatildeo a recompor os passos de Aquiles com os da tartaruga

embaralhar as escalas de movimentos simples e indivisiacuteveis desdobrando-os

matematicamente no espaccedilo instituindo desse modo um dos mais antigos paradoxos da

histoacuteria da filosofia A matemaacutetica ou qualquer outra forma de representaccedilatildeo por

simultaneidades por apreender o movimento exclusivamente por paradas imaginaacuterias ndash

afinal o moacutevel natildeo se deteacutem realmente em cada ponto do espaccedilo em que percorre mas

108

passa sem jamais parar ndash deixa de apreender o essencial do movimento para rebatecirc-lo

sobre uma simultaneidade de instantes igualmente imaginaacuterios que natildeo acidentalmente

possuem todas as caracteriacutesticas dos corpos materiais satildeo mutuamente impenetraacuteveis e

ocupam lugares diferentes no espaccedilo o que implica uma apreensatildeo simultacircnea desdobrada

no espaccedilo e natildeo sucessiva como totalidade indivisiacutevel Trata-se pois de uma

multiplicidade com exterioridade reciacuteproca e sem sucessatildeo tal como ocorreria com coisas

no espaccedilo Se Zenatildeo pode supor paradas imaginaacuterias de um moacutevel que passa sem jamais se

deter de fato em instante ou lugar algum eacute devido agrave espacializaccedilatildeo e agrave loacutegica de

simultaneidades implicada no proacuteprio ato de anaacutelise do ato do movimento que resulta em

desnaturar a mobilidade em trajetoacuteria descrita e o ato do movimento como ocorrido em

uma representaccedilatildeo espacial do tempo ora tatildeo vazio e homogecircneo quanto o espaccedilo

Natildeo nos enganemos esse tempo vazio homogecircneo e sem qualidades natildeo eacute apenas

o tempo de Zenatildeo mas tambeacutem a ciecircncia natildeo pode passar-se de um tempo que se limita a

contar simultaneidades como contamos a passagem do tempo segundo a mediccedilatildeo espacial

do deslocamento dos ponteiros de um reloacutegio70

Por essa razatildeo toda a mecacircnica precisa

erigir-se sobre um sistema referencial que para definir o tempo exige a simultaneidade de

intervalos de tempo iguais tanto no movimento uniforme quanto no movimento variado

Como distinguir movimento e duraccedilatildeo de suas simbolizaccedilotildees O que permite

distinguir por exemplo o movimento da linha que o moacutevel que o executa descreve no

espaccedilo Tanto a duraccedilatildeo quanto o movimento apresentam-se agrave nossa consciecircncia como

progressos sempre em vias de formaccedilatildeo pois movimento e duraccedilatildeo satildeo siacutenteses mentais

natildeo coisas natildeo eacute possiacutevel assimilar a duraccedilatildeo ndash multiplicidade heterogecircnea indistinta e

dessemelhante para com o nuacutemero ndash ao espaccedilo que comporta apenas multiplicidades

distintas (BERGSON 2001 p 8089) de maneira tal que a duraccedilatildeo implica multiplicidade

sem quantidade que soacute conteacutem o nuacutemero em potecircncia

Essa multiplicidade existe vive e dura como pura sucessatildeo sem exterioridade de

partes organizando-se penetrando-se formando uma continuidade indivisa que se

enriquece e muda agrave medida em que a experiecircncia se acumula na profundidade do eu

podendo a todo momento refratar-se no ponto em que nosso eu toca o mundo exterior de

forma superficial ela se modifica e desnatura ao traduzir-se em linguagem71

Enfim a vida

70

ldquo[] la science nrsquoopegravere sur le temps et le mouvement qursquoagrave la condition drsquoen eacuteliminer drsquoabord lrsquoeacutelement

essentiel et qualitatif ndash du temps la dureacutee et du mouvement la mobiliteacuterdquo (BERGSON 2001 p 7786) 71

ldquo[] toute sensation se modifie en se reacutepeacutetant et [] si elle ne me paraicirct pas changer du jour au lendemain

crsquoest parce que je lrsquoaperccedilois maintenant agrave travers lrsquoobjet qui en est cause agrave travers le mot qui la traduitrdquo

(BERGSON 2001 p 8798)

109

do proacuteprio sentimento que se desenvolve organicamente e muda sem cessar deve-se agrave

continuidade da duraccedilatildeo que conserva a chave da proacutepria liberdade e cujos momentos se

penetram e fundem em um todo de sentido Da mesma forma haacute uma vida obscura das

ideias e Bergson (2001 p 89100) admite que natildeo raro nos apegamos agravequelas que

podemos explicar com mais dificuldade

O espaccedilo que aplicado agrave vida da duraccedilatildeo ndash seu ser e seu sentido ndash a desnatura em

siacutembolos todavia natildeo constitui pura negatividade Uma vez que os animais provavelmente

natildeo representam como os homens Bergson entrevecirc na intuiccedilatildeo do espaccedilo homogecircneo uma

espeacutecie de preparaccedilatildeo para a vida social coalescente no Essai com o olhar avaliador

impessoal e afeto ao inerte analiacutetico do eu superficial Esta tendecircncia pela qual nos

representamos distintamente a exterioridade das coisas e a homogeneidade do meio

espacial em que se situam ldquoest la mecircme qui nous porte agrave vivre en commun et agrave parlerrdquo

(BERGSON 2001 p 91103) deve estar relacionada portanto agraves proacuteprias condiccedilotildees do

viver-junto Bergson observa que quanto mais completamente se realizem as condiccedilotildees da

vida social mais o eu superficial esconde o primeiro e mais e mais os estados que antes se

penetravam na profundidade iacutentima da consciecircncia satildeo exteriorizados e transformados em

representaccedilotildees distintas separados de noacutes Nessa medida o inumeraacutevel em profundidade ndash

que Lapoujade (2010 p 39) denomina ldquoun nombre confus ou obscur de la dureacuteerdquo ndash

conteacutem o nuacutemero em potecircncia nuacutemero efetuado por intermeacutedio da representaccedilatildeo O que

finalmente a representaccedilatildeo o siacutembolo a inteligecircncia e ndash para dizecirc-lo em uma soacute palavra ndash

a intervenccedilatildeo do espaccedilo na pura duraccedilatildeo separa de noacutes eacute o acesso agrave realidade da duraccedilatildeo

em profundidade acesso a esse niacutevel de nosso eu que corresponde a ldquocelui qui sent et se

passionne celui qui deacutelibegravere et se deacutecide [] une force dont les eacutetats et modifications se

peneacutetrent intimement []rdquo (BERGSON 2001 p 8393) e que jaacute natildeo mede a duraccedilatildeo mas

a sente sede subjetiva da liberdade

Dito isso pudemos compreender que a realidade e o todo de sentido do tempo que a

duraccedilatildeo implica decorrem de uma experiecircncia interior concreta apenas ela em primeiro

momento pode franquear-nos o acesso agrave duraccedilatildeo como totalidade orgacircnica jamais

totalizaacutevel pois aberta agrave sucessatildeo e agrave penetraccedilatildeo reciacuteproca que a enriquece continuamente

na fusatildeo de ldquomille sensations sentiments ou ideacuteesrdquo (BERGSON 2001 p 1513)

Se pudemos demonstrar a realidade e o sentido do tempo a partir do conceito de

duraccedilatildeo desprendida diretamente de uma experiecircncia interior cujo esforccedilo de ascese

Bergson natildeo cessa solicitar agrave consciecircncia eacute preciso amplificar essas conclusotildees em dois

110

pontos ao mesmo tempo em que avanccedilamos a anaacutelise na direccedilatildeo da passagem do ser

presente ao ser do passado O primeiro deles diz respeito ao estatuto marcadamente

presente da temporalidade desvelada pela experiecircncia concreta de duraccedilatildeo seria preciso

descobrir no ser presente e na atualidade que ela implica o ser do passado ainda que

momentaneamente dado como siacutentese interior a uma consciecircncia Por outro lado o

segundo ponto de ampliaccedilatildeo diz respeito ao estatuto psicoloacutegico da experiecircncia da

duraccedilatildeo Ao produzir uma distinccedilatildeo tatildeo precisa entre multiplicidades quantitativa e

qualitativa numeacuterica e natildeo numeacuterica e enfim entre tempo e espaccedilo eacute natural pensar que

Bergson exige uma consciecircncia preacutevia agrave constituiccedilatildeo da experiecircncia concreta ndash quando em

tudo trata-se justamente do inverso

sect 3 DO SER PRESENTE AO SER DO PASSADO

Em tudo o que dissemos sobre a duraccedilatildeo como experiecircncia psicoloacutegica pudemos

discernir dois tipos de multiplicidades uma numeacuterica outra natildeo numeacuterica Para

compreender como a experiecircncia duracional assinala jaacute uma passagem do ser presente ao

ser do passado ndash ainda que permaneccedilamos por ora no campo das siacutenteses da consciecircncia ndash

eacute necessaacuterio retomarmos dois tipos de conservaccedilatildeo que ocorrem uma no campo das

multiplicidades numeacutericas envolvendo objetos atuais e outra no das multiplicidades natildeo

numeacutericas envolvendo o virtual

Retornemos ao que Bergson explica sobre o mais simples ato de contar Viacuteamos

nesse sentido que uma tal siacutentese soacute eacute possiacutevel se supusermos uma consciecircncia que se

representa unidades precariamente indivisiacuteveis e absolutamente semelhantes dispostas no

espaccedilo de maneira descontiacutenua no entanto essa siacutentese mental natildeo pode reduzir-se a uma

repeticcedilatildeo nua das unidades caso contraacuterio seria impossiacutevel derivar o nuacutemero de uma soma

de unidades Para que isso seja factiacutevel eacute preciso representar as unidades como uma

multiplicidade simultacircnea e justapondo todas as unidades contemporaneamente no espaccedilo

efetuar a siacutentese que pela retenccedilatildeo de todas essas unidades pode apreendecirc-las de uma soacute

vez

Algo aparentemente semelhante parece operar no seio da duraccedilatildeo mas com

caracteriacutesticas que demonstramos serem absolutamente diferentes a organizaccedilatildeo de

estados de consciecircncia afecccedilotildees sensaccedilotildees colorantes ou musicais supotildeem igualmente

uma consciecircncia que jaacute natildeo efetua uma siacutentese mas opera deixando um instante penetrar

111

no outro indefinidamente estamos portanto diante do sentido sempre em vias de

formaccedilatildeo de uma multiplicidade de fusatildeo o que nos coloca frente a frente com o misteacuterio

de sua continuidade Percebemos facilmente que as multiplicidades numeacutericas satildeo

definidas pelas diferenccedilas de grau a adiccedilatildeo a subtraccedilatildeo e as siacutenteses representativas

envolvidas em uma mudanccedila de nuacutemero natildeo alteram sua natureza intimamente divisiacutevel

Entre uma unidade e outra continua a haver uma diferenccedila de grau que poderia sem

dificuldades ser resumida em uma diferenccedila na posiccedilatildeo que cada unidade ocupa no

espaccedilo o que implicaria sua justaposiccedilatildeo e simultaneidade Contudo o que assegura a

continuidade das multiplicidades qualitativas e sua compenetraccedilatildeo reciacuteproca em que toda

miacutenima variaccedilatildeo acarreta uma diferenccedila de natureza ndash vale dizer ndash uma alteraccedilatildeo

diferencial da curvatura da integral que a definiria

Eacute na obscura noccedilatildeo de continuidade que pela primeira vez viraacute inserir-se uma

necessaacuteria conexatildeo entre duraccedilatildeo e memoacuteria um dos conceitos que forjam o fio diretor da

presente pesquisa Talvez jaacute seja possiacutevel pressentir na ideia de continuidade da duraccedilatildeo a

necessidade de uma espeacutecie de memoacuteria ldquoil srsquoen faut que tous les eacutetats de conscience

viennent se mecircler agrave leur congeacutenegraveres comme des gouttes de pluie agrave lrsquoeau drsquoun eacutetangrdquo

escreve Bergson (2001 p 110-111125) A continuidade implica que o lago como a

duraccedilatildeo se acumule continuamente e amplie-se ao fundir-se no conjunto

Assim como eacute necessaacuterio reter unidades para contaacute-las e o fazemos jaacute no espaccedilo

natildeo seria preciso conservar os estados aniacutemicos anteriores como que agraves costas do

movimento invenciacutevel da sucessatildeo em direccedilatildeo ao devir Caso contraacuterio a ideia de

sucessatildeo passaria a ser para noacutes exclusivamente uma tediosa repeticcedilatildeo do presente como

apreenderiacuteamos uma frase musical ou a profundidade de um sentimento sem supor que a

continuidade implica jaacute uma ligaccedilatildeo entre presente e passado como registros da

realidade Mas se o conservamos seraacute da mesma forma como contamos justapondo

estados de consciecircncia no espaccedilo

Nada do que dissemos antes e no limite nenhum texto de Bergson autoriza uma

tal interpretaccedilatildeo Isso implicaria supor a existecircncia dos estados de consciecircncia como

corpos materiais impenetraacuteveis uns aos outros quando se trata precisamente de evitar

representaacute-los como desdobrando-se lado a lado em um tempo vazio homogecircneo e sem

qualidades ndash que finalmente natildeo passaria de uma representaccedilatildeo bastarda da duraccedilatildeo real

que apraz agrave inteligecircncia e agrave utilidade De uma perspectiva global todo o movimento de

paulatina suspensatildeo da representaccedilatildeo e da inteligecircncia nos dois primeiros capiacutetulos do

Essai tende a este limite conceber uma continuidade independente de coordenadas

112

espaciais apreendida conservada e integrada em uma totalidade movente de sentido

definida por sua abertura agrave sucessatildeo por um lado e dizendo respeito exclusivamente agrave

duraccedilatildeo que lhe serve de esteio imanente por outro

Se quisermos aproveitar a forccedila imageacutetica do exemplo da frase musical proposta

por Bergson concluiremos prontamente pela impossibilidade de justaposiccedilatildeo para

apreensatildeo de totalidades contiacutenuas de qualidades intensivas ou de diferenccedilas de natureza

Como Freacutedeacuteric Worms bem observa ao lado de uma passividade do espiacuterito que constitui

o iacutendice de receptividade da sensaccedilatildeo uma vez suspenso o ato de representaccedilatildeo deve

surgir um novo sujeito em profundidade paradoxalmente pessoal e impessoal capaz de um

ato de retenccedilatildeo que opera ldquoa passagem de uma passividade ou de um efeito sensiacutevel a

outrordquo (WORMS 2011 p 71) Decerto uma diferenccedila abissal persiste entre ouvir uma

nova nota que distinguimos claramente por um esforccedilo de anaacutelise e apreendecirc-la no

conjunto indivisiacutevel de uma melodia Neste caso ldquoa nota natildeo eacute somente lsquopassadarsquo ela

passou nas outras notas natildeo ocorreu apenas uma sucessatildeo mas uma continuaccedilatildeo uma

conservaccedilatildeo e uma integraccedilatildeordquo que se produziram no tempo e natildeo como ldquoconstruccedilotildees

abstratas de uma consciecircncia reflexa (ou de um pensamento exterior a seu conteuacutedo) uma

vez que impotildeem seu efeito a seu conteuacutedo mesmo como um sentido imanente ou uma

unidade indivisiacutevelrdquo (WORMS 2011 loc cit) Nesse aspecto Worms eacute ainda uma vez

categoacuterico ao afirmar que este ato de conservaccedilatildeo ldquoparece evocar a memoacuteriardquo (Idem

ibidem loc cit) A noccedilatildeo de continuidade interna agrave definiccedilatildeo de duraccedilatildeo permite-nos

dizer como vimos que nesse caso evocar a memoacuteria significa jaacute forccedilosamente

pressupocirc-la

Natildeo por outra razatildeo Gilles Deleuze tenderaacute a enxergar na continuidade implicada

pela duraccedilatildeo a imagem da memoacuteria ldquoLa dureacutee est essentiellement meacutemoire conscience

liberteacute Et elle est conscience et liberteacute parce qursquoelle est drsquoabord meacutemoirerdquo (DELEUZE

1966 p 45) A foacutermula deleuziana nesse aspecto natildeo poderia dar testemunho mais fiel do

bergsonismo Confirmando a adequaccedilatildeo da interpretaccedilatildeo deleuziana Bergson implicaraacute

mais claramente duraccedilatildeo e memoacuteria em LrsquoEacutenergie Spirituelle (1919) ldquoToute conscience

est donc meacutemoire ndash conservation et accumulation du passeacute dans le preacutesentrdquo (BERGSON

2001 p 81805) No entanto natildeo seria preciso ir tatildeo longe jaacute em 1896 em Matiegravere et

Meacutemoire era possiacutevel ler ldquoBref la meacutemoire sous ces deux formes en tant qursquoelle

recouvre drsquoune nappe de souvernirs un fond de perception immeacutediate et tant aussi qursquoelle

contracte une multipliciteacute de moments []rdquo (BERGSON 2001 p 18431) Da mesma

forma Vladimir Jankeacuteleacutevitch definia a memoacuteria natildeo como a obstinaccedilatildeo de nossas

113

experiecircncias em sobreviverem a si mesmas mas a partir da continuidade e da penetraccedilatildeo

muacutetua dos estados psicoloacutegicos ldquoelle est ce qui continue les uns agrave travers les autres les

innombrables contenus dont lrsquoensemble forme agrave tout moment lrsquoeacutetat actuel de notre

personne inteacuterieurerdquo (JANKEacuteLEacuteVITCH 2008 p 07)

Eis o que poderia bastar para comprovar que desde o Essai nem tudo se reduz ao

atual e ao presente na ideia de duraccedilatildeo embora a entrada bergsoniana pela pesquisa das

sensaccedilotildees arriscasse em princiacutepio iludir-nos do contraacuterio Descobrir o fundo mnemocircnico

no signo da continuidade da duraccedilatildeo coloca-nos de suacutebito na perspectiva da transiccedilatildeo

ontoloacutegica entre ser presente e ser do passado Natildeo se pode construiacute-la adequadamente no

entanto sem compreender de que modo nosso eu toca a superfiacutecie do real ou como

Bergson prefere colocar o problema que serve de pedra de toque agrave escritura de Matiegravere et

Meacutemoire como se daacute ldquoa relaccedilatildeo do corpo com o espiacuteritordquo Trata-se de saber se poderemos

tambeacutem aiacute descobrir uma passagem entre ser presente (atual) e ser do passado (virtual)

Eis a questatildeo pela qual se deve orientar o proacuteximo segmento de nossa pesquisa

Desde as primeiras linhas de Matiegravere et Meacutemoire engendra-se um movimento

conceitual que define um campo povoado de exterioridades onde tudo parece comeccedilar em

absoluto Como um duplo do gesto do Essai que solicitava um vigoroso esforccedilo agrave

consciecircncia para abolir tudo exceto sua interioridade suspendendo as representaccedilotildees

desde o iniacutecio de seu livro de 1896 Bergson pede que finjamos nada conhecer sobre as

teorias da mateacuteria e do espiacuterito Essa suspensatildeo implica afinar ingenuidade e intuiccedilatildeo que

natildeo estatildeo mais voltadas aos estados de consciecircncia mas abrem-se sobre um campo infinito

de imagens que digamos logo constitui em Bergson o todo do universo72

ldquoEacute preciso olhar

[] como se fosse a primeira vezrdquo (PRADO JUacuteNIOR 1989 p 136)

De seu turno Freacutedeacuteric Worms natildeo hesita em afirmar que o primeiro capiacutetulo de

Matiegravere et Meacutemoire ldquoDe la seacutelection des images pour la repreacutesentation du corpsrdquo funda-se

sobre um princiacutepio duplo de imanecircncia e diferenccedila ldquoimanecircncia (ou pertenccedila) das imagens

percebidas agrave realidade do mundo diferenccedila (de aspecto ou de forma devida a nossas

necessidades ou a nossa accedilatildeo) entre as imagens percebidas e a realidade do mundordquo

(WORMS 2011 p 135) Todavia para conjugar a imanecircncia das imagens e a diferenccedila

72

Seguimos nesse aspecto a interpretaccedilatildeo de Prado Juacutenior (1989 p 117) sobre a passagem do Essai a

Matiegravere et Meacutemoire como uma passagem do interno ao externo ldquoO Essai isolava a consciecircncia de toda

exterioridade para captar-lhe a duraccedilatildeo interna mostrando nela o selo da liberdade Mas a descoberta ficava

limitada agrave esfera que lhe servia de horizonte a subjetividade humana finita Agora eacute necessaacuterio ampliar o

campo da Presenccedila para aleacutem dos estreitos limites da presenccedila interna e verificar o modo de inserccedilatildeo da

liberdade no interior do serrdquo

114

que a percepccedilatildeo engendra eacute preciso antes de tudo gerar ndash natildeo um sujeito portador da

consciecircncia mas o genuiacuteno sujeito do campo transcendental bergsoniano o corpo73

Bergson propotildee a suspensatildeo do intelecto ao mesmo tempo em que reorienta a

intuiccedilatildeo do interno na direccedilatildeo do externo ndash natildeo passariacuteamos tambeacutem aqui do psicoloacutegico

em direccedilatildeo ao ontoloacutegico Momentaneamente com Bento Prado Juacutenior jaacute podemos

pressenti-lo ldquoA passagem da psicologia agrave metafiacutesica eacute uma passagem do lsquointeriorrsquo ao

lsquoexteriorrsquo que ao mesmo tempo elimina a oposiccedilatildeo absoluta entre os dois termos

fazendo-os nascer de uma familiaridade mais profundardquo (PRADO JUacuteNIOR 1989 p 119)

Com essa suspensatildeo dos conceitos preacute-formados e com a reorientaccedilatildeo de nossa tensatildeo para

o fora tudo o que Bergson eacute capaz de constatar logo se transforma em uma surpreendente

descriccedilatildeo do universo em termos de imagens ldquoMe voici donc en preacutesence drsquoimages au

sens plus vague ougrave lrsquoon puisse prendre ce mot images perccedilues quand jrsquoouvre mes sens

inaperccedilus quand je les fermerdquo (BERGSON 2001 p 16911)

Desenvolvendo esse olhar exterior que permite compreender o universo como um

conjunto de imagens eacute possiacutevel perceber a dinacircmica que parece envolvecirc-las

indistintamente ldquoToutes ces images agissent et reacuteagissent les unes sur les autres dans

toutes leurs parties eacuteleacutementaires selon des lois constantes []rdquo (BERGSON 2001 p

16911) Uma dentre essas imagens destaca-se do conjunto embora tenha sua gecircnese nele

ldquoce que je ne la connais pas seulement du dehors par des perceptions mais aussi du dedans

par des affections crsquoest mon corpsrdquo (Idem ibidem loc cit) e passando em revista a cada

uma de suas afecccedilotildees eacute possiacutevel perceber que provenientes de estiacutemulos de fora elas

contecircm como que convites a agir sobre certa regiatildeo do real das imagens Isso implicaraacute que

se todas as imagens exteriores parecem submeter-se homogeneamente agraves leis da natureza

de tal forma que agindo umas sobre as outras nada de novo acrescentariam no mundo o

corpo-imagem bergsoniano percebido do interior por meio de afecccedilotildees sensaccedilotildees

sentimentos e lembranccedilas como o modelo de outros corpos-imagens aparece ao mesmo

tempo como centro de accedilatildeo sobre as demais imagens e a um soacute tempo como centro de

indeterminaccedilatildeo74

Se as afecccedilotildees e sensaccedilotildees percepcionadas nada mais satildeo do que accedilotildees e reaccedilotildees

internas a esse conjunto de imagens tudo o que compotildee um corpo ndash dos nervos aferentes

73

ldquoNatildeo haacute outro sujeito senatildeo o corpordquo afirma Worms (2011 p 145) ao tratar da gecircnese da percepccedilatildeo em

Bergson 74

ldquoTout se passe comme si dans cet ensemble drsquoimages que jrsquoappelle lrsquounivers rien ne se pourrait produire

de reacuteellement nouveau que par lrsquointermeacutediaire de certaines images particulieacuteres dont le type mrsquo est fourni

par mon corpsrdquo (BERGSON 2001 p 17012)

115

ao ceacuterebro como centros organizados de accedilatildeo e indeterminaccedilatildeo ndash bem como tudo o que

vindo de fora produz nele uma afecccedilatildeo constituem partes integrantes do conjunto de

imagens do universo75

Nessa medida se interpretamos este corpo-imagem como um

centro de accedilatildeo sobre as demais imagens compreenderemos a sua singularidade pragmaacutetica

(WORMS 1997 p 21) incapaz de fazer nascer uma representaccedilatildeo como desdobramento

ideal do entorno de imagens Talvez seja importante perceber que Bergson utiliza a noccedilatildeo

de imagem ndash algo que seria menos que uma coisa e mais que uma representaccedilatildeo ndash

justamente a fim de assinalar que esse campo transcendental constitui-se sem sujeito ou

objeto ndash objeto para um sujeito A realidade das imagens tomada no princiacutepio do campo

transcendental designa apenas potenciais de um corpo-imagem e das imagens que fazem

parte de seu mundo circundante ao mesmo tempo em que o integram em sua estrutura

imanente de realidade

Apenas em meio a esse universo de imagens eacute que se poderaacute distinguir o proacuteprio

corpo sua singularidade sensiacutevel eacute o que conservaraacute uma percepccedilatildeo em potecircncia na

medida em que o corpo constitui uma imagem que banhada de outras imagens difere

delas em grau na medida em que natildeo se o conhece exclusivamente de fora Eacute apenas nesse

niacutevel que um corpo-imagem pode ser considerado centro de um sistema mais abrangente

de imagens Natildeo haacute representaccedilatildeo outrossim porque na medida em que o corpo integra o

universo de imagens natildeo haacute qualquer desdobramento de realidade Por isso do ponto de

vista loacutegico o ceacuterebro natildeo pode ser a sede de representaccedilotildees do mundo afinal o que a

hipoacutetese inicial das imagens deseja eacute obstruir toda duplicaccedilatildeo eacute manter-se fiel agrave imanecircncia

de uma soacute estrutura de realidade composta por imagens76

Eacute certo que Bergson observa as

imagens transmitirem movimentos de uma a outra das imagens exteriores ao corpo-

imagem sendo impossiacutevel supor que haja mais nesse corpo ndash seja uma representaccedilatildeo de

uma imagem com a qual natildeo tem contato ou mesmo uma representaccedilatildeo do todo ndash do que

aquilo que constitui o conteuacutedo imediato desse corpo as modificaccedilotildees produzidas pelas

images environnantes e aquilo que o corpo-imagem lhes devolve em termos de

movimentos

75

ldquoMon corps est donc dans lrsquoensemble du monde mateacuteriel une image qui agit comme les autres images

recevant et rendant du mouvement avec cette seule diffeacuterence peut-ecirctre que mon corps paraicirct choisir dans

une certaine mesure la maniegravere de rendre ce qursquoil reccediloitrdquo (BERGSON 2001 p 17114) e ainda ldquoMon

corps objet destineacute agrave mouvoir des objets est donc un centre drsquoactionrdquo (BERGSON 2001 p 17214) ldquoO

corpo eacute uma imagem como as outrasrdquo atesta Worms (2011 p 140) 76

ldquoIl faut donc extirper tout de suite [] le vice logique de la thegravese des savants parce qursquoelle implique une

thegravese ontologique ou meacutetaphysique celle de lrsquoexistence drsquoun deuxiegraveme niveau de realiteacute [] celui de la

reacutepresentationrdquo (WORMS 1997 p 27)

116

Logo se percebe que o corpo eacute passivo e ativo sensoacuterio e motor Na medida em que

haacute universo de imagens exteriores corpo-imagem ndash compreendido como imagem que

experimento por dentro ndash e uma seacuterie de imagens particulares decalcadas do universo

exterior por esse corpo-imagem veremos que interveacutem um terceiro conjunto um conjunto

de imagens particulares em razatildeo de seu contato com o corpo Ainda aqui natildeo haacute nenhuma

interioridade representaccedilatildeo ou desdobramento do real universo de imagens corpo-

imagem e conjunto particular de imagens para um corpo pertencem a uma soacute estrutura de

realidade Notamos outrossim que eacute a accedilatildeo de um corpo sobre as imagens que o rodeiam

e nas quais ele incessantemente se banha que orienta certa ldquopercepccedilatildeordquo o fato de que

certo conjunto de imagens eacute para um corpo um conjunto particular recortado do todo de

imagens Contudo natildeo se produz uma gecircnese adequada da percepccedilatildeo sem saber como ela

estaacute ligada a essa destinaccedilatildeo praacutetica do corpo

Tomando-os no campo transcendental viacuteamos que eacute a accedilatildeo e certo grau de

indeterminaccedilatildeo orgacircnica ndash que introduz o novo ndash que permite afirmar certa situaccedilatildeo

privilegiada do corpo em relaccedilatildeo agraves outras imagens Nesse sentido Bergson deduz a

relaccedilatildeo entre corpo e universo de imagens definida simbolicamente por um conjunto

particular de imagens decalcado do todo das muacuteltiplas vias de accedilatildeo possiacuteveis para um

corpo77

Tais possiacuteveis escapam agrave determinaccedilatildeo riacutegida da influecircncia das outras imagens

mas relacionam-se imediatamente agrave accedilatildeo real Com efeito o corpo decide entre vaacuterios

procedimentos materialmente possiacuteveis e esta decisatildeo eacute orientada pelas necessidades

praacuteticas e vantagens que esse corpo-imagem pode obter das imagens que o circundam

responde portanto agrave utilidade e agrave vida desenhando uma relaccedilatildeo pragmaacutetica entre corpo e

imagens circundantes78

Contudo como um corpo poderia fazecirc-lo sem jaacute se representar

esses possiacuteveis Como imagens sugerem vantagens a um corpo A vantagem ou a utilidade

praacutetica eacute decalcada das imagens circundantes pelo corpo ao passo em que tais imagens as

desenham superficialmente sobre a face que elas voltam para um corpo-imagem como se

emitissem signos que adquirissem para ele um sentido vital Os desenhos superficiais

desses potenciais de accedilatildeo adquirem um sentido que natildeo revela a totalidade da relaccedilotildees de

um dado corpo no universo de imagens de que participa mas prefiguram objetivamente um

ponto de vista que o enriquece e que o faz tomar parte em um conjunto particular de

77

ldquo[] si mon corps est un objet capable drsquoexercer une action reeacutelle et nouvelle sur les objets qui lrsquoentourent

il doit occuper vis-agrave-vis drsquoeux une situation privileacutegieacuteerdquo (BERGSON 2001 p 17214-15) 78

Freacutedeacuteric Worms (1997 p 31) reforccedila essa relaccedilatildeo entre os possiacuteveis da accedilatildeo e a utilidade vital ldquo[] ces

possibles ne sont pas des possibles abstraits ils sont rapporteacutes agrave lrsquoaction crsquoest-agrave-dire agrave la vie et au besoin et

non au choix purrdquo

117

imagens Poreacutem como esse conjunto de imagens ldquointeressantesrdquo objetos para um corpo

ao passo em que estaacute sujeito agrave sua accedilatildeo se desenha como tal Natildeo encontrariacuteamos aqui

uma evocaccedilatildeo da proacutepria percepccedilatildeo como conjunto de objetos para um corpo decalcado do

campo transcendental

Os signos que certa imagem interessante emite satildeo variaacuteveis em relaccedilatildeo ao corpo

Bergson observa que essa variaccedilatildeo se deve sobretudo agrave variaccedilatildeo de uma relaccedilatildeo de

distacircncia que acontece na pura exterioridade79

Eis o que permite entrever o primado que o

bergsonismo concede agrave relaccedilatildeo de distacircncia a um soacute tempo espacial e pragmaacutetica em

relaccedilatildeo aos objetos sobre toda qualidade sensiacutevel Ao mesmo tempo em que as qualidades

sensiacuteveis variam em funccedilatildeo da distacircncia ldquoassegurando os objetos contra a accedilatildeo imediata

de meu corpordquo os objetos que cercam esse corpo refletiriam a sua accedilatildeo possiacutevel sobre eles

Por essa razatildeo haveria uma relaccedilatildeo de correspondecircncia simboacutelica entre corpo e um

conjunto particular de imagens circundantes que Worms (1997 p 33) resume na imagem

de um ldquoreflet sans regardrdquo na falta de um sujeito desse corpo-a-corpo entre imagens que

natildeo eacute mais que uma relaccedilatildeo de exterioridade pura ldquocomme si lrsquoobjet de la vision en

preacuteceacutedait le sujetrdquo e no entanto tudo o que vimos designa um universo jaacute organizado pela

accedilatildeo do corpo Todavia resta explicar como as coisas podem por si mesmas adquirir um

sentido

Isso se deve agrave correspondecircncia real entre os movimentos concretos que ocorrem no

sistema nervoso e a exterioridade das coisas Eacute preciso provar que a sede da percepccedilatildeo eacute

mais o universo de imagens que o interior de um corpo que tanto o decalque das imagens

pelo recorte perceptivo operado no universo de imagens como o reflexo que as imagens

que o circundam oferecem de suas accedilotildees possiacuteveis pertence ao proacuteprio campo de imagens

Trata-se enfim de precisar o lugar da percepccedilatildeo na realidade A experiecircncia pela qual

Bergson procura demonstraacute-lo eacute a do corte de nervos aferentes do sistema ceacuterebro-

espinhal suprimindo assim a percepccedilatildeo Para compreender o que se passou

reconsideremos os trecircs sistemas de imagens universo conjunto de imagens circundantes e

corpo-imagem Cada um deles permanece o que era antes A uacutenica diferenccedila estaacute no fato

de que a ligaccedilatildeo entre corpo e mundo foi seccionada isto eacute jaacute natildeo eacute possiacutevel a um corpo

decalcar por meio do sistema sensoacuterio-motor os movimentos ocorram eles em qualquer

regiatildeo do universo de imagens Por essa razatildeo Bergson (2001 p 17316) conclui que isso

79

ldquo[] jrsquoobserve que la dimension la forme la couleur mecircme des objets exteacuterieurs se modifient selon que

mon corps srsquoen approche ou srsquoen eacuteloigne [] que cette distance elle-mecircme repreacutesente surtout la meacutesure dans

laquelle les corps environnants sont assureacutes en qualque sorte contre lrsquoaction immeacutediate de mon corpsrdquo

(BERGSON 2001 p 17215)

118

soacute pode significar que a percepccedilatildeo traccedila no conjunto de imagens ldquocomo uma sombra ou

um reflexordquo as accedilotildees possiacuteveis de um corpo Eis o que permitiraacute definir a mateacuteria

provisoriamente como ldquolrsquoensemble drsquoimagesrdquo e a percepccedilatildeo como ldquoces mecircmes images

rapporteacutees agrave lrsquoaction possible drsquoune certaine image determineacute mon corpsrdquo (BERGSON

2001 p 17317) Isso natildeo apenas prova a existecircncia independente das imagens em relaccedilatildeo

agrave toda percepccedilatildeo consciente mas permite deduzir que a percepccedilatildeo eacute funccedilatildeo das imagens

de seus movimentos reais enfim da mateacuteria

Se pudemos compreender a gecircnese da percepccedilatildeo no universo de imagens e em que

medida os movimentos reais satildeo efetivamente percepcionados fizemo-lo como um estaacutegio

necessaacuterio para entrever a passagem entre ser presente e ser do passado na proacutepria

percepccedilatildeo Ateacute aqui brindamo-nos com uma percepccedilatildeo impessoal natildeo-subjetiva e

correspondente aos movimentos materiais A fim de encontrar no campo perceptivo o

ponto mais claro em que vem inserir-se a memoacuteria eacute indispensaacutevel que compreendamos a

gecircnese da consciecircncia isto eacute eacute preciso investigar se e como as imagens podem dar conta

de uma percepccedilatildeo consciente Conveacutem lembrar que realizamos com Bergson o

contramovimento do Essai vamos do exterior ao interior a fim de compreender como uma

memoacuteria pode introduzir-se nas percepccedilotildees mais imediatas naquilo que parece mais atual

e dessa forma favorecer a passagem que visamos a construir do atual em direccedilatildeo ao

virtual nos sucessivos cruzamentos entre registros psicoloacutegico e ontoloacutegico

Pode-se adiantar que para engendrar a consciecircncia de um campo de imagens

Bergson precisaraacute deduzir toda experiecircncia sensorial da accedilatildeo do corpo pela mediccedilatildeo do

ceacuterebro ndash que natildeo a produz ndash fazendo intervir uma teoria da percepccedilatildeo pura (WORMS

1997 p 37)

De tudo o que viacuteamos especialmente da experiecircncia do corte de nervos aferentes

do sistema ceacuterebro-espinhal eacute possiacutevel deduzir que o ceacuterebro e tal sistema permanecem

materiais constituem como partes integrantes do corpo-imagem tambeacutem eles imagens e

desempenham uma funccedilatildeo de mediaccedilatildeo entre os movimentos da mateacuteria e a accedilatildeo possiacutevel

de nosso corpo sobre ela o que designa a percepccedilatildeo Eacute possiacutevel perceber ainda que essa

funccedilatildeo mediadora origina uma seleccedilatildeo possiacutevel que daacute ao corpo um conjunto de imagens

circundantes sobre o qual ele poderia agir o que implica reconhecer que a accedilatildeo organiza a

seleccedilatildeo das imagens e de consequecircncia a proacutepria percepccedilatildeo Nesse patamar Bergson

adianta uma tese de LrsquoEacutevolution Creacuteatrice afirmando que entre os extremos da seacuterie

animal o sistema nervoso seraacute construiacutedo a fim de engendrar a indeterminaccedilatildeo da accedilatildeo e

119

inibir o automatismo80

Se a percepccedilatildeo estaacute fundada neste sistema orientado para a accedilatildeo

seria possiacutevel estender essa hipoacutetese agrave percepccedilatildeo ndash percebemos a fim de agir e agimos

com um grau cada vez maior de indeterminaccedilatildeo Dela Bergson deduziraacute a necessidade de

uma percepccedilatildeo consciente

No iniacutecio da seacuterie animal perceberemos que a percepccedilatildeo reduz-se a um simples

contato ao qual se segue imediatamente uma resposta organizada quase como um impulso

mecacircnico que mimetizasse na mateacuteria organizada as accedilotildees e reaccedilotildees de imagens materiais

umas sobre as outras contudo agrave medida em que a indeterminaccedilatildeo insere-se entre contato-

excitaccedilatildeo e accedilatildeo do corpo correspondente a reaccedilatildeo torna-se mais incerta dando mais lugar

agrave hesitaccedilatildeo e aumentando o intervalo entre a accedilatildeo possiacutevel do animal e os objetos

interessantes com efeito os sentidos permitem ir cada vez mais longe Por isso Bergson

(2001 p 18329) escreveraacute que ldquola perception dispose de lrsquoespace dans lrsquoexacte

proportion ougrave lrsquoaction dispose du tempsrdquo isto eacute a percepccedilatildeo se amplifica agrave razatildeo direta do

tempo de hesitaccedilatildeo que a indeterminaccedilatildeo injeta entre estiacutemulo e accedilatildeo Contudo como essa

indeterminaccedilatildeo deveraacute implicar consciecircncia e por que a consciecircncia parece nascer dos

movimentos interiores do ceacuterebro Eis o momento em que a teoria da percepccedilatildeo pura deve

interferir

Em primeiro lugar Bergson a admite como uma simplificaccedilatildeo das condiccedilotildees da

percepccedilatildeo consciente pois segundo ele ldquoEn fait il nrsquoy a pas de perception qui ne soit

impregneacutee de souvenirsrdquo (BERGSON 2001 p 18330) eles definem os milhares de

detalhes de nossa experiecircncia passada que vem misturar-se agrave percepccedilatildeo de uma imagem

atual Sem por ora extrair daiacute todas as consequecircncias conveacutem observar que isso permite

entrever de imediato uma necessaacuteria passagem entre ser presente e ser do passado no seio

da experiecircncia real de uma percepccedilatildeo consciente da mesma forma permite destacar as

lembranccedilas que aiacute intervecircm de certo fundo psicoloacutegico Em segundo lugar por meio dessa

hipoacutetese ideal da percepccedilatildeo pura e impessoal Bergson deseja mostrar que ela estaacute na base

de nosso conhecimento das coisas ao mesmo tempo em que evitaria confundir percepccedilatildeo e

lembranccedila como fenocircmenos que comportariam apenas uma diferenccedila de grau como se a

lembranccedila fosse uma percepccedilatildeo de menor intensidade Se Bergson insiste em ver aqui uma

diferenccedila de natureza eacute por utilizar o estratagema da percepccedilatildeo pura para dividir um misto

da experiecircncia concreta a percepccedilatildeo consciente que nos faraacute retornar sobre a perspectiva

de uma continuidade dos estados conscientes Para compreendecirc-lo dinamicamente e a fim

80

ldquo[] le systhegraveme nerveux est construit drsquoun bout agrave lrsquoautre de la seacuterie animale en vue drsquoune action de

moins en moins neacutecessaire []rdquo (BERGSON 2001 p 18127)

120

de que possamos perceber como a memoacuteria se insere em uma percepccedilatildeo instantacircnea

atenhamos-nos por um momento agrave experiecircncia concreta de uma percepccedilatildeo consciente ao

misto indiferenciado de objetividade e subjetividade que ela supotildee ldquoSi court qursquoon

suppose une perception en effet elle occupe toujours une certaine dureacutee et exige par

conseacutequent un effort de la meacutemoire qui prolonge les uns dans les autres une pluraliteacute de

moments Mecircme [] la lsquosubjectiviteacutersquo de qualiteacutes sensibles consiste surtout dans une espegravece

de contraction du reacuteel opereacutee par notre meacutemoirerdquo (BERGSON 2001 p 18430-31)

Reencontramos na experiecircncia concreta da percepccedilatildeo consciente um misto de duraccedilatildeo e

espaccedilo de mateacuteria e memoacuteria e uma continuidade de penetraccedilatildeo entre um momento e

outro isto eacute algo que evoca duas formas de memoacuteria as lembranccedilas que recobrem uma

percepccedilatildeo imediata e a memoacuteria como contraccedilatildeo de uma multiplicidade de momentos que

fundam ldquoa subjetividade das qualidades sensiacuteveisrdquo A memoacuteria e a subjetividade

encontram-se natildeo em uma interioridade qualquer mas nessa espessura de duraccedilatildeo

irredutiacutevel a um instante que haacute pouco nomeaacutevamos continuidade ndash prova de que

Bergson permanece ainda no mesmo universo de imagens inicialmente dado

Retornemos agora agrave hipoacutetese da percepccedilatildeo pura ciosos de seu valor esquemaacutetico

Com ela Bergson toca o proacuteprio conceito de real aprofundando o sentido do termo

imagem Dado um universo de imagens entre as quais um corpo o real eacute definido antes

pelo potencial das accedilotildees reciacuteprocas entre corpo-imagem e universo de imagens que pelo

conjunto especiacutefico Vimos ainda que esse potencial de accedilatildeo varia em funccedilatildeo das

distacircncias entre corpo e universo de imagens entre imagem-centro e a definiccedilatildeo variaacutevel

das imagens em sua periferia Em razatildeo de ser-nos imediatamente impossiacutevel agir sobre

certa imagem ndash distante demais de nosso corpo logo ausente do recorte que desenha nosso

potencial de accedilatildeo sobre as coisas cujas superfiacutecies emanam seus reflexos ndash isso significa

apenas que esta imagem existindo realmente deixou de ser efetivamente percebida Ela

permanece presente sem ser percebida ao passo em que sobre ela natildeo somos capazes de

nenhum potencial de accedilatildeo imediato No entanto se nosso corpo banhado por imagens

caminhar em sua direccedilatildeo diminuir a distacircncia relativa que o separa dela subitamente ela

passaria a existir para ele e talvez a interessaacute-lo Se tomarmos esse corpo-imagem

banhado de imagens como referecircncia diremos que a accedilatildeo potencial em relaccedilatildeo a certo

conjunto de imagens define objetos para esse corpo Com isso percebemos que o atual

condiz com a efetuaccedilatildeo desse potencial de accedilatildeo que transforma uma imagem em uma

percepccedilatildeo que reflete um potencial de accedilatildeo cuja contiacutenua variaccedilatildeo corresponde agraves

variaccedilotildees qualitativas desse corpo De outro lado ao compreendermos que o real natildeo

121

depende da percepccedilatildeo mas estaacute dado na existecircncia da imagem aquelas que natildeo integram o

recorte interessante sobre cujas superfiacutecies natildeo se desenha qualquer potencial de accedilatildeo de

meu corpo teraacute em relaccedilatildeo a ele uma realidade virtual que consiste em ser sem serem

atualmente percebidas Eis um importante registro de uma ontologia do virtual que

Bergson resume em foacutermulas muito breves81

e que por forccedila de uma analogia

desencadearaacute em relaccedilatildeo agrave memoacuteria uma seacuterie de consequecircncias metafiacutesicas que natildeo nos

cabe adiantar

Verifiquemos em que consiste a diferenccedila entre ser e ser percebido De um ponto

de vista loacutegico Bergson pode antecipar que haacute mais em ser que em ser percebido de tal

forma que a representaccedilatildeo comporta uma diminuiccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave imagem Caso

contraacuterio a passagem entre ser e ser percebido nas condiccedilotildees de um campo transcendental

tal como Bergson o supotildee se tornaria senatildeo impossiacutevel misteriosa Sua explicaccedilatildeo sobre a

dinacircmica dessa diminuiccedilatildeo demanda que tomemos uma imagem pela qual nos

interessamos vivamente Olhando-a no conjunto vemo-la como uma imagem solidaacuteria agrave

totalidade das imagens ora se continuando em algumas ora se prolongando outras No

entanto para representaacute-la para nos interessarmos por ela como operamos Recortamo-la

do conjunto abolindo sua solidariedade contiacutenua para com outras imagens materiais assim

como se podem produzir quadros no cinema82

Dela conservamos apenas ldquola croucircte

exteacuterieure la pellicule superficiellerdquo (BERGSON 2001 p 18633) suprimindo o que a

antecede o que a segue mas tambeacutem seu conteuacutedo isolando seu invoacutelucro por meio do

obscurecimento de seu entorno A representaccedilatildeo designa este resiacuteduo o que resta quando

esvaziamos uma imagem devido a nossas necessidades e funccedilotildees Daiacute porque natildeo haveria

diferenccedila de natureza mas apenas de grau para as imagens entre o fato de simplesmente

ldquoseremrdquo e o de serem conscientemente percebidas ndash uma imagem soacute seraacute atual ou virtual

na medida em que acentuamos o papel do corpo na seleccedilatildeo das imagens e no que respeita

agrave mateacuteria exclusivamente em relaccedilatildeo a ele83

81

ldquoIl est vrai qursquoune image peut ecirctre sans ecirctre perccedilue elle peut ecirctre preacutesente sans ecirctre repreacutesenteacutee et la

distance entre ces deux termes preacutesence et repreacutesentation paraicirct justement mesurer lrsquointervalle entre la

matiegravere elle-mecircme et la perception consciente que nous en avonsrdquo (BERGSON 2001 p 18532) 82

Embora Bergson utilize a metaacutefora do quadro natildeo emprega a do enquadramento no cinema ela nos parece

adequada sobretudo no sentido em que Deleuze a utiliza em seus livros sobre cinema reconhecidamente

inspirados no bergsonismo a fim de esclarecer o conceito de quadro ou enquadramento como um recorte

perceptivo de um universo de imagens Sobre este aspecto conferir Lrsquoimage-mouvement cineacutema 1

(DELEUZE 1983 p 23-45) 83

Eacute precisamente isto o que Deleuze (1966 p 50) assinala no que denomina ldquoa diferenccedila entre ser e ser uacutetilrdquo

(percebido) ldquo[] dans ce cas lrsquoecirctre est seulement celui de la matiegravere ou de lrsquoobjet perccedilu donc un ecirctre

preacutesent qui nrsquoa pas agrave se distinguer de lrsquoutile autrement qursquoen degreacuteerdquo

122

Se imaginaacutessemos portanto uma percepccedilatildeo inconsciente e outra consciente de uma

imagem material deveriacuteamos afirmar que a primeira por natildeo eliminar todas as relaccedilotildees da

imagem no seio contiacutenuo das imagens que conformam a mateacuteria eacute mais vasta que a

percepccedilatildeo consciente que discerne distingue e elimina visando agrave utilidade e agrave necessidade

vital que se do ponto de vista do conhecimento adequado do real implica revestir toda

representaccedilatildeo de negatividade do ponto de vista pragmaacutetico perfaz uma escolha positiva

A explicaccedilatildeo de Bergson (2001 p 19139) funda-se na dependecircncia entre ceacuterebro e

imagem como funccedilatildeo de ldquolrsquoindeacutetermination du vouloirrdquo Diziacuteamos haacute pouco que o sistema

nervoso composto pelo conjunto formado pelo ceacuterebro e suas vias de recepccedilatildeo e resposta

exerce uma funccedilatildeo mediadora entre as imagens do universo e um corpo essa funccedilatildeo estaacute

intimamente vinculada ao movimento que liga as imagens umas agraves outras na exterioridade

de forma tal que sua funccedilatildeo eacute transmitir distribuir ou inibir movimentos84

Com efeito

quando um desses fios mediadores eacute cortado a percepccedilatildeo eacute diminuiacuteda e com ela pode-se

dizer que tambeacutem os movimentos que um certo corpo pode produzir em virtude de

estiacutemulos eacute reduzido pelo menos em funccedilatildeo de uma impossibilidade de coordenaacute-los dada

a ausecircncia ou diminuiccedilatildeo da percepccedilatildeo de certos movimentos Isso eacute o que autoriza a

compreender o sistema nervoso como um sistema sensoacuterio-motor ele natildeo apenas

transmite distribui e inibe movimentos mas constitui o centro de indeterminaccedilatildeo dos

movimentos do proacuteprio corpo que integra eacute nesse centro que ldquoles perceptions naissent et

que les actions se preparentrdquo (BERGSON 2001 p 19646)

Tudo isso equivale a dizer que a correspondecircncia que identificaacutevamos entre

configuraccedilatildeo motora do sistema nervoso e percepccedilatildeo exterior daacute-se entre imagens de

mesma natureza (ceacuterebro e imagem exterior) tambeacutem que as percepccedilotildees conscientes se

formam ali onde estaacute a imagem em sua superfiacutecie Se isto for verdade embora perceptos e

afetos possam misturar-se na experiecircncia concreta percepccedilotildees natildeo podem confundir-se

com afecccedilotildees Enquanto vimos que as percepccedilotildees se efetuam em relaccedilatildeo ao corpo

agenciado com a imagem mas fora dele as afecccedilotildees satildeo produzidas em um ponto

determinado de um corpo derivadas de um misto entre corpo e imagens exteriores85

E no

84

Bergson assinala a correspondecircncia entre configuraccedilotildees motrizes do ceacuterebro e percepccedilatildeo exterior

deixando entrever a funccedilatildeo eletiva dos centros de indeterminaccedilatildeo ldquo[] comme la structure du cerveau donne

le plan minutieux des mouvements entre lesquels vous avez le choix comme drsquoun autre cocircteacute la portion des

images exteacuterieurs qui paraicirct revenir sur elle-mecircme pour constituer la perception dessine justement tous les

points de lrsquounivers sur lesquels ces mouvements auraient prise perception consciente et modification

ceacutereacutebrale se correspondent rigoureusementrdquo (BERGSON 2001 p 190-19139) 85

ldquo[] ma perception est en dehors de mon corps et mon affection au contraire dans mon corpsrdquo

(BERGSON 2001 p 205-20658) e ainda logo adiante ldquoLrsquoaffection est [] ce que nous mecirclons de

123

entanto as afecccedilotildees tambeacutem surgem das imagens como contato entre imagens extensas

expostas agraves forccedilas do meio que ameaccedilam desagregaacute-las Se a percepccedilatildeo era funccedilatildeo da accedilatildeo

potencial de um corpo sobre certo conjunto de imagens recortados do universo material em

dois sentidos ndash como nosso corpo pode agir sobre as coisas mas tambeacutem como as coisas

podem agir sobre ele ndash a distacircncia entre corpo e imagens definia a iminecircncia de

atualizaccedilatildeo desse potencial de accedilatildeo Se corpo e imagem entram em contato a distacircncia

entre as superfiacutecies dos corpos anula-se e a accedilatildeo virtual tende a atualizar-se por uma

coincidecircncia extensa entre corpo e objeto Daiacute porque dizer que a percepccedilatildeo eacute exterior e a

afecccedilatildeo interior ao corpo natildeo sendo mais que o esforccedilo do corpo-imagem sobre si mesmo

Com efeito quando a superfiacutecie do corpo toca a superfiacutecie do objeto supomos percebecirc-lo

quando na verdade uma afecccedilatildeo vem misturar-se agrave percepccedilatildeo como uma impureza

Todo esse longo desvio teria nos dado esquematicamente a teoria da percepccedilatildeo

pura sua divisatildeo em relaccedilatildeo agraves afecccedilotildees bem como uma ideia de consciecircncia derivada dos

corpos vivos considerados como centros de indeterminaccedilatildeo ndash ou como Bergson talvez por

comodidade muitas vezes se expresse ldquovontaderdquo86

Impessoal ela se limitaria por

enquanto a ligar ldquopar le fil continu de la meacutemoirerdquo uma seacuterie de visotildees instantacircneas

dadas pela percepccedilatildeo pura que tanto faria parte das coisas como dos corpos orgacircnicos que

as percebem (BERGSON 2001 p 21267) Segundo essa perspectiva os corpos vivos

receberiam excitaccedilotildees elaborariam reaccedilotildees imprevisiacuteveis por meio de uma escolha que

embora indeterminada natildeo se afigura por isso arbitraacuteria ou caprichosa afinal seria

inspirada em experiecircncias passadas de situaccedilotildees anaacutelogas agrave atualmente percebida

ldquoLrsquoindeacutetermination des actes agrave accomplir exige donc pour ne pas se confondre avec le pur

caprice la conservation des images perccediluesrdquo (BERGSON 2001 p 21367) e portanto

implicaria uma espeacutecie de memoacuteria na ausecircncia da qual perderiacuteamos segundo Bergson

todo poder de dispor do futuro

Por isso retornando agrave direccedilatildeo da experiecircncia concreta que nos doava a percepccedilatildeo

de um objeto atual fundindo-se em milhares e milhares de lembranccedilas sensaccedilotildees e

lrsquointerieur de notre corps agrave lrsquoimage des corps exteacuterieurs elle est ce qursquoil faut extraire drsquoabord de la perception

pour retrouver la pureteacute de lrsquoimagerdquo (BERGSON 2001 p 20659) 86

Como Deleuze (1966 p 47-48) observa com propriedade natildeo se trata de compreender nesse estaacutegio da

pesquisa bergsoniana uma consciecircncia psicoloacutegica e pessoal mas uma consciecircncia coextensiva aos corpos

orgacircnicos e impessoal que oferece uma ldquolinha de subjetividaderdquo que introduziraacute a duraccedilatildeo ao lado da ldquolinha

objetivardquo que corresponde agrave extensatildeo agraves imagens e ao corpo-imagem Segundo Deleuze ambas as linhas agraves

quais correspondem lembranccedila e percepccedilatildeo subjetivo e objetivo bem como o seu cruzamento na afecccedilatildeo

resultariam da divisatildeo do misto que a representaccedilatildeo implica No entanto no estaacutegio da divisatildeo do misto

trata-se de linhas puras que natildeo devem ser embaralhadas

124

sentimentos conveacutem notar que uma tal descriccedilatildeo suporaacute a conservaccedilatildeo das imagens

passadas misturando-se agrave percepccedilatildeo presente na medida da utilidade que lhe suscita a

vivecircncia atual de situaccedilotildees anaacutelogas87

Eacute nessa medida que uma lembranccedila se atualizaria

por um chamado agrave utilidade no presente de tal forma que perceber tornar-se-ia uma

ldquooportunidade de lembrarrdquo Percepccedilatildeo e lembranccedila natildeo cessam de interpenetrarem-se e

fundirem-se na experiecircncia concreta por isso a teoria da percepccedilatildeo pura natildeo passa de uma

hipoacutetese ou de um esquema para dividir o misto precisando a existecircncia de uma diferenccedila

de natureza e natildeo apenas de grau entre percepccedilatildeo e lembranccedila ou exprimindo essa

diferenccedila de natureza em outras palavras eacute preciso evitar compreender a lembranccedila como

uma percepccedilatildeo enfraquecida quando eacute claramente inadequado explicar um conceito pelo

outro pelo simples fato de misturarem-se na experiecircncia concreta

Um dos grandes perigos da confusatildeo de que Bergson (2001 p 21470)

prontamente adverte eacute viciar a teoria da memoacuteria ignorando a diferenccedila entre presente e

passado que embora tenham igualmente realidade como veremos teriam mantida esta

ilusatildeo seus registros embaralhados ao infinito88

No fundo o que a teoria da percepccedilatildeo

pura pretendia estabelecer era a radical diferenccedila de natureza entre percepccedilatildeo e lembranccedila

de tal forma que a realidade pudesse ser ldquotocada penetrada e vividardquo sem construccedilotildees ou

reconstruccedilotildees efetuadas pelo espiacuterito Entretanto na realidade nunca haacute percepccedilatildeo pura

absolutamente imediata porque o instantacircneo que ela supotildee abstratamente para tornar-se

eficaz e tocar as superfiacutecies das coisas mesmas jamais existe como tal isto eacute sempre ocupa

uma duraccedilatildeo cuja continuidade engendra segundo o fio da memoacuteria a subjetividade e a

consciecircncia que faz penetrar essas sucessotildees em um todo contiacutenuo Assim ldquo[] il nrsquoy a

jamais pour nous drsquoinstantaneacute Dans ce que nous appelons de ce nom entre deacutejagrave un travail

de notre meacutemoire et par conseacutequent de notre conscience []rdquo (BERGSON 2001 p 216-

217 72)

Sempre misturada a ela na experiecircncia concreta a memoacuteria eacute praticamente

inseparaacutevel portanto da percepccedilatildeo Ateacute aqui sua funccedilatildeo eacute a de realizar uma passagem

entre o passado e o presente a memoacuteria ldquointercale le passeacute dans le preacutesent contract aussi

dans une intuition unique des moments multiples de la dureacutee et ainsi par sa double

87

Sobre a funccedilatildeo pragmaacutetica da conservaccedilatildeo das imagens passadas Bergson (2001 p 21368) afirma

sinteticamente que ldquoelles ne se conservent que pour se rendrent utiles agrave tout instant elles compleacutetent

lrsquoexpeacuterience preacutesente en lrsquoenrichissant de lrsquoexpeacuterience acquiserdquo e a um soacute tempo esta se acumula e cresce

sem cessar 88

Por essa razatildeo Bergson nos previne ldquoMais cette illusion en recouvre encore une autre qui srsquoeacutetend agrave la

theacuteorie de la connaissance en geacuteneacuteral [] Lrsquoactualiteacute de notre perception consist donc dans son activiteacute

dans les mouvements qui la prolongent et non dans sa plus grande intensiteacute le passeacute nrsquoest qursquoideacutee le preacutesent

est ideacuteo-moteurrdquo (BERGSON 2001 p 21571)

125

opeacuteration est cause qursquoen fait nous percevons dans la matiegravere en nous alors qursquoen droit

nous la percevons en ellerdquo (BERGSON 2001 p 219-22076) Isto significa que a memoacuteria

comunica agrave percepccedilatildeo seu caraacuteter subjetivo espiritual cuja realidade precisamos ainda

que brevemente demonstrar

126

CAPIacuteTULO 5 ndash MEMOacuteRIA FUNDAMENTO DO TEMPO

Falaacutevamos da existecircncia de certo procedimento de construccedilatildeo de passagens entre

psicologia e ontologia no bergsonismo como se Bergson esburacasse um campo a fim de

aceder ao outro mostrando entre eles uma obscura coextensatildeo Os uacuteltimos segmentos

conceituais permitiram abrir pela via psicoloacutegica um acesso agrave duraccedilatildeo real e logo aos

primeiros problemas de uma ontologia realizando o contramovimento abrimos por um

cruzamento entre psicologia e ontologia uma via na qual se engendrou o esquema da

percepccedilatildeo pura a passagem entre ser presente e ser do passado o que nos conduziu a

colocar-nos precisamente a questatildeo da realidade da memoacuteria

A fim de nos mantermos leais a Bergson natildeo podemos abandonar o campo

transcendental tampouco o gesto de absoluta imanecircncia exigido por ele A hipoacutetese central

deste capiacutetulo ndash que tende a problematizar brevemente a realidade virtual da memoacuteria ndash eacute a

de que em Bergson a memoacuteria natildeo pode reduzir-se agraves lembranccedilas de natureza

psicoloacutegica haveria consequecircncias mais amplas envolvidas pelo conceito como uma

memoacuteria ontoloacutegica que eacute o fundamento do desenrolar do tempo89

Em siacutentese a memoacuteria

eacute o que faz o presente passar e nessa medida ela seria mesmo por extensatildeo loacutegica o

fundamento do devir Finalmente tratar-se-aacute de conciliar memoacuteria e duraccedilatildeo solucionando

o problema que nos potildeem alguns textos de Bergson sobre o pluralismo ou o monismo da

concepccedilatildeo de duraccedilatildeo tomada agora segundo uma perspectiva mais ampla para aleacutem da

duraccedilatildeo meramente psicoloacutegica Enfim tudo se resume agrave demonstraccedilatildeo da existecircncia de

uma memoacuteria ontoloacutegica coalescente ao conceito de duraccedilatildeo contemporacircnea ao presente

a fim de deduzir daiacute a impossibilidade de reduzir em Bergson memoacuteria agrave memoacuteria

psicoloacutegica pessoal90

Comecemos por demonstrar a realidade da memoacuteria acompanhando

89

Nesse ponto nossa hipoacutetese tenderaacute a demonstrar a afirmaccedilatildeo que consta igualmente em Le Bergsonisme

de Gilles Deleuze (1966 p 55) bem como na passagem da segunda siacutentese do tempo de Diffeacuterence et

Reacutepeacutetition em que Deleuze (2006 p 124) evocando Bergson afirma ldquoO fundamento do tempo eacute a Memoacuteria

[] a Memoacuteria eacute a siacutentese fundamental do tempo que constitui o ser do passado (o que faz passar o

presente)rdquo 90

Essa reduccedilatildeo eacute o motor declarado da criacutetica que Maurice Halbwachs antigo aluno de Bergson e disciacutepulo

de Durkheim endereccedilava ao bergsonismo em Les Cadres Sociaux de la Meacutemoire (HALBWACHS 1994) e

ulteriormente em La Meacutemoire Collective (Idem 1997) a fim de estabelecer um fundamento social para a

memoacuteria individual ao contraacuterio de deduzir ndash como teria feito Bergson segundo este seu ceacutelebre leitor ndash a

memoacuteria social da individual Embora natildeo convenha que nos ocupemos aqui detalhadamente desta longa e

proliacutefica polecircmica eacute interessante anotar que Worms (2011 p 172) a soluciona no interior da proacutepria obra de

Bergson entrevendo no dualismo da memoacuteria que Bergson desenvolveraacute nos capiacutetulos centrais de Matiegravere et

Meacutemoire a individualidade da lembranccedila pura em seu conteuacutedo global com a unicidade de um

acontecimento em uma vida como ligada agrave passagem do tempo ldquoCom efeito para se lembrar do individual

Bergson eacute o primeiro a mostrar que se tem necessidade de um auxiliar presente pragmaacutetico socialrdquo E

127

os principais desenvolvimentos dos capiacutetulos centrais de Matiegravere et Meacutemoire a fim de

chegar agrave sua consistecircncia virtual

sect 1 O PROBLEMA DO RECONHECIMENTO

O CEacuteREBRO E AS DUAS MEMOacuteRIAS

Jaacute se afirmou que os dois capiacutetulos centrais de Matiegravere et Meacutemoire formam uma

unidade que natildeo admite interpretaccedilatildeo descontiacutenua91

Isso decorre do fato de que a

demonstraccedilatildeo da realidade da memoacuteria em sua consistecircncia virtual depende de um

dualismo mais profundo ao qual natildeo se pode aceder plenamente apenas com o conceito de

percepccedilatildeo pura Nesse sentido vimos que a percepccedilatildeo pura corresponde agrave realidade

espacial da mateacuteria povoando um registro de imagens em si mesmas atuais que natildeo

cessam de repetir-se no presente O movimento geral dos dois capiacutetulos centrais do livro de

Bergson tende a demonstrar dois tipos de reconhecimento que estatildeo em uacuteltima anaacutelise

fundados nesse dualismo a construir no proacuteprio seio da memoacuteria a fim de completar a

descriccedilatildeo do papel do ceacuterebro com relaccedilatildeo ao reconhecimento de imagens bem como de

desconstruir a tese do paralelismo psicofiacutesico ndash que ao inveacutes de compreender a

solidariedade entre o ceacuterebro e o pensamento em seus proacuteprios termos deduziria uma

correspondecircncia mecacircnica entre estado psiacutequico e estado cerebral ocultando consciente

ou inconscientemente teses metafiacutesicas (BERGSON 2001 p 959-960188) O progresso

dessas anaacutelises das quais destacaremos mais o solo metafiacutesico que o epistecircmico ndash do qual

nos permitiremos extrair apenas o essencial para fundar os argumentos de Bergson ndash nos

levaraacute a seu tempo ao questionamento sobre a realidade do virtual sobre o modo de ser

especiacutefico da memoacuteria pura um dos termos revelados pelo dualismo bergsoniano

Com efeito os fenocircmenos de reconhecimento e uma seacuterie de patologias

relacionadas a ele satildeo tomados de empreacutestimo agraves descriccedilotildees dos estudiosos da fisiologia

do ceacuterebro de uma psicologia que no fim do seacuteculo XIX buscava afirmar-se como

ciecircncia mas tambeacutem da medicina formando o solo comum experimental para que Bergson

completa ldquo[] se haacute necessidade de uma ocasiatildeo presente fiacutesica ou social imagem ou relato natildeo se segue

que o conteuacutedo da lembranccedila seja individual psicoloacutegico e passado a lembranccedila ressuscita a individualidade

ou natildeo ressuscita nada eacute preciso tecirc-la vividordquo Embora natildeo seja esta nossa direccedilatildeo principal um obscuro

diaacutelogo com as premissas que Halbwachs extraiu da leitura de Bergson ndash sobretudo a da natureza

eminentemente psicoloacutegica da memoacuteria em sua obra ndash pode encontrar aqui um campo para seu

estabelecimento Eacute necessaacuterio sobretudo refazer o longo caminho do qual deriva essa sinteacutetica objeccedilatildeo que

lhe fizera Freacutedeacuteric Worms 91

ldquoIl est impossible drsquoenvisager seacutepareacutement les deux chapitres centraux de Matiegravere et Meacutemoirerdquo (WORMS

1997 p 91)

128

pudesse examinar concretamente suas teses valendo-se da interpretaccedilatildeo dessas

observaccedilotildees De nossa parte utilizaremos dessas descriccedilotildees apenas o que for necessaacuterio

para demonstrar a base experimental das distinccedilotildees operadas por Bergson afinal a

experiecircncia concreta aqui natildeo eacute senatildeo um instrumento para demonstrar uma tese

ontoloacutegica que ocupa o coraccedilatildeo de Matiegravere et Meacutemoire a da realidade virtual da memoacuteria

a discussatildeo de sua conservaccedilatildeo em si e sua principal distensatildeo o papel que ela

desempenha como fundamento do tempo que nos permite destituir as relaccedilotildees entre tempo

e instantacircneo retornando a um conceito de duraccedilatildeo ontologicamente ampliado

Para introduzir no seio da memoacuteria e de suas relaccedilotildees com o ceacuterebro um dualismo

que resulta do procedimento de divisatildeo do misto empiacuterico Bergson retoma algumas

conclusotildees do primeiro capiacutetulo e brinda-nos com o desenvolvimento de uma ideia de

corpo ainda pensada no campo transcendental mas agora desenvolvida sub specie

durationis O que vem a ser o corpo-imagem assim pensado Entre imagens o corpo natildeo

faz mais que identificar movimentos e transmiti-los mas tambeacutem recolhecirc-los e conservaacute-

los sob a forma de mecanismos motores que seratildeo determinados no caso de reaccedilotildees

involuntaacuterias a estiacutemulos ou escolhidos ndash em virtude do maior proveito pragmaacutetico e em

concorrecircncia com as lembranccedilas ndash no caso de accedilatildeo voluntaacuteria Bergson estaacute a descrever

uma forma de memoacuteria orgacircnica atuante no corpo-imagem que reuacutene essa seacuterie de

impressotildees na medida em que se produzem de tal modo que o corpo seraacute natildeo mais do que

um corte instantacircneo que praticamos no devir em geral (BERGSON 2001 p 22381) O

corpo corresponde a uma espeacutecie de uacuteltima imagem que pensada de direito constituiria o

limite ideal entre o futuro de nossas accedilotildees e o passado de nossas lembranccedilas Consistindo

desse ponto de vista em uma espeacutecie de corpo-limiar essa descriccedilatildeo do corpo-imagem

indicaria de antematildeo o papel que o ceacuterebro desempenha como mediador entre as

representaccedilotildees passadas de nosso organismo e um presente indubitavelmente real que

solicita a nossa accedilatildeo o corpo seria uma espeacutecie de uacuteltima imagem de uacuteltimo

prolongamento das representaccedilotildees em movimentos preparatoacuterios bem como primeiro

prolongamento destes em accedilotildees nascentes Sua hipoacutetese sobre a sobrevivecircncia das imagens

poderaacute ser entatildeo deduzida mediante a suposiccedilatildeo da destruiccedilatildeo dessa ligaccedilatildeo uma vez

cortada a conexatildeo orgacircnica entre nossas representaccedilotildees e o real permanecem no entanto

existentes o corpo-imagem e o universo de imagens no qual este se banha como natildeo

permaneceriam tambeacutem as imagens do passado As lesotildees cerebrais porque dizem

respeito ao elo entre lembranccedilas que podem ser chamadas a agir no presente e este mesmo

129

presente natildeo podem abolir nem as imagens do passado nem as do presente mas a

conexatildeo entre umas e outras isto eacute afetando um aparelho sensoacuterio-motor cujos

movimentos desenham accedilotildees nascentes possiacuteveis no espaccedilo natildeo se abole por completo

nem a linha de objetividade nem a de subjetividade nem as imagens atuais nem o que

podemos chamar precaacuteria e indistintamente de imagens do passado ou lembranccedilas Uma

conexatildeo que diz respeito ao corpo-imagem eacute abolida e isso eacute tudo

Essa descriccedilatildeo leva Bergson (2001 p 224-22582-83) a formular trecircs hipoacuteteses 1ordf)

Uma vez que o corte da conexatildeo implica aboliccedilatildeo natildeo das imagens do passado tampouco

da memoacuteria motora do corpo mas de sua capacidade de tornar essas imagens ndash lembranccedilas

ou motoras ndash eficazes seria possiacutevel dizer que o passado sobrevive de dois modos nos

mecanismos motores (memoacuteria do corpo) e em lembranccedilas independentes (memoacuteria pura)

2ordf) Com base nisso seria possiacutevel deduzir que o reconhecimento das imagens e sua

consequente utilizaccedilatildeo no presente deve efetuar-se tambeacutem de duas formas ora na proacutepria

accedilatildeo por movimentos quando emana do objeto ora no passado por representaccedilotildees

quando emana do sujeito 3ordf) A experiecircncia do corte da conexatildeo ou da lesatildeo cerebral nos

mostraria que se passa por graus insensiacuteveis das lembranccedilas dispostas ao longo do tempo

aos movimentos que desenham sua accedilatildeo possiacutevel no espaccedilo de tal forma que as lesotildees

atingem esses movimentos mas natildeo as lembranccedilas ndash sejam elas motoras ou imagens saiacutedas

do passado Percebe-se nesse sentido que a despeito de Bergson considerar a realidade

em si mesma da memoacuteria atraveacutes dessas proposiccedilotildees bem como a independecircncia de sua

existecircncia em relaccedilatildeo ao corpo sua formulaccedilatildeo permanece intrinsecamente fundada em

uma hipoacutetese bioloacutegica Na medida em que os mecanismos cerebrais constituem o uacuteltimo

prolongamento da seacuterie de nossas representaccedilotildees passadas e dessa forma as medeiam e

inserem na accedilatildeo presente basta cortar essa ligaccedilatildeo e ldquolrsquoimage passeacutee nrsquoest peut-ecirctre pas

deacutetruite mais vous lui enlevez tout moyen drsquoagir sur le reacuteel et par conseacutequent [] de se

reacutealiserrdquo (BERGSON 2001 p 22583) A primeira proposiccedilatildeo segundo a qual o passado

pode sobreviver distintamente em mecanismos motores e em lembranccedilas independentes

deve ser objeto de verificaccedilatildeo ndash seguindo sua tradicional forma de demonstraccedilatildeo pela

experiecircncia e de divisatildeo do concreto depurado de acordo com um dualismo

A descriccedilatildeo de Bergson apoia-se na experiecircncia do aprendizado de uma liccedilatildeo a fim

de compreender a persistecircncia de duas formas de memoacuteria que podemos adiantar

convencionaremos nomear ldquomemoacuteria do corpordquo e ldquomemoacuteria purardquo Ao estudar uma liccedilatildeo

um aluno organiza sua retenccedilatildeo progressivamente por meio de repeticcedilotildees pode analisaacute-la

130

dividi-la em partes escandi-la e como fruto de sucessivas leituras ele percebe que as

partes organizam-se cada vez melhor ateacute o ponto em que saberaacute suas liccedilotildees de cor

Se examinaacutessemos as fases implicadas no aprendizado dessa liccedilatildeo descobririacuteamos

que duas formas de memoacuteria agem em sua base Podemos compreender o aprendizado

como a realizaccedilatildeo de cada uma das sucessivas leituras de tal forma que cada leitura

manifestaraacute uma singularidade proacutepria como um acontecimento determinado em nossa

vida No entanto se aprendemos de cor ndash isto eacute pela repeticcedilatildeo de um esforccedilo de

decomposiccedilatildeo e recomposiccedilatildeo ndash transformamos a liccedilatildeo em um haacutebito Portanto o

primeiro tipo de memoacuteria realiza o registro imediato de um evento uacutenico irrepetiacutevel ou

ldquodatadordquo o acontecimento eacute registrado como uma leitura em particular apreendida em sua

singularidade proacutepria o segundo tipo de memoacuteria que transforma a liccedilatildeo em um haacutebito

desenha a apreensatildeo do todo por meio de uma accedilatildeo ou de um esforccedilo por ldquoimprimirrdquo a

liccedilatildeo na memoacuteria para poder revisitaacute-la quando bem quisermos de acordo com nossa

conveniecircncia ou com sua utilidade no segundo caso o haacutebito de memorizar uma liccedilatildeo

conforma-se segundo sua utilidade futura

Todavia que diferenccedila e sobretudo que tipo de diferenccedila poderiacuteamos descobrir

nessas memoacuterias Entre elas haveria uma mera diferenccedila de grau ou uma diferenccedila de

natureza Para respondecirc-lo encaminhando-nos um passo aleacutem na construccedilatildeo do dualismo

entre memoacuteria do corpo e memoacuteria pura seria preciso observar como se constituem haacutebito

(lembranccedila da liccedilatildeo) e lembranccedila (lembranccedila das leituras) A lembranccedila da leitura deve-se

a uma inscriccedilatildeo imediata do evento na duraccedilatildeo natildeo supotildee uma accedilatildeo mas um registro

duracional tal como registramos um acontecimento em nossas vidas imediatamente como

mera representaccedilatildeo trata-se portanto de uma lembranccedila menos impessoal que constitui

nossa histoacuteria passada segundo uma memoacuteria espontacircnea ou perfeita A lembranccedila da

liccedilatildeo sua transformaccedilatildeo em haacutebito exige por outro lado uma atitude um esforccedilo voltado

para accedilatildeo para o presente Natildeo se trata de uma memoacuteria de registro passiva que decorre

da inscriccedilatildeo de um acontecimento irrepetiacutevel na duraccedilatildeo mas eacute fundada na repeticcedilatildeo em

um investimento inteligente tornando uma seacuterie de movimentos coordenados passados em

um acuacutemulo presente motor Assim aprendemos a liccedilatildeo de cor natildeo basta repeti-la eacute

preciso reintegrar toda a seacuterie de repeticcedilotildees a fim de formar um todo de sentido e apreendecirc-

lo Trata-se de uma memoacuteria agida no presente vivida Quando aprendemos algo de cor

significa que tivemos de empreender o esforccedilo de substituir uma imagem espontacircnea

(memoacuteria pura) por uma motora (memoacuteria do corpo) (BERGSON 2001 p 23190-91)

131

Essas breves consideraccedilotildees tornam possiacutevel conceber duas memoacuterias teoricamente

distintas ldquoLa premieacutere enregistrerait sous forme drsquoimages souvenirs tous les eacuteveacutenements

de notre vie quotidienne agrave meacutesure qursquoils se deacuteroulentrdquo (BERGSON 2001 p 22786)

Memoacuteria perfeita de singularidades ela natildeo negligencia nenhum detalhe e atribui a cada

acontecimento seu lugar e data Ela se deveria de acordo com Bergson agrave necessidade

natural de tornar possiacutevel o reconhecimento inteligente de situaccedilotildees jaacute experimentadas

informando a accedilatildeo presente Poreacutem para isso ela tem de passar pelo corpo e encontrar

nele o seu derradeiro prolongamento aquele que a torna eficaz desenhando jaacute accedilotildees

nascentes no espaccedilo Nesse ponto encontramos a segunda forma de memoacuteria que se

caracteriza pela deposiccedilatildeo no corpo de uma seacuterie de mecanismos sensoacuterio-motores cujas

respostas e amplitude de estiacutemulo multiplicam-se agrave razatildeo direta do enriquecimento de

nossa experiecircncia vivida Eacute preciso lembrar poreacutem que esta consiste em uma experiecircncia

de ordem inteiramente distinta da primeira e no entanto implica uma memoacuteria de

natureza correspondentemente diversa ldquocette conscience de tout un passeacute drsquoefforts

emmagasineacute dans le preacutesent est bien encore une meacutemoire mais une meacutemoire

profondeacutement diffeacuterente de la premiegravere toujours tendue vers lrsquoaction assise dans le

preacutesent et ne regardant que lrsquoavenirrdquo (BERGSON 2001 p 22786)

Entre memoacuteria pura e memoacuteria do corpo verificamos existir portanto uma

diferenccedila de natureza natildeo de grau e seu criteacuterio praacutetico diferencial eacute o sentido em que se

opera o registro92

No caso da memoacuteria pura o registro se opera no sentido das

singularidades de nossa vida pessoal povoada de acontecimentos uacutenicos e faticamente

irrepetiacuteveis no fundo eacute a sua inscriccedilatildeo na duraccedilatildeo real que assegura sua irrepetibilidade

embora eventos similares sempre possam voltar a ocorrer no espaccedilo e talvez destaquem

uacutetil e excepcionalmente do fundo da memoacuteria pura uma lembranccedila que venha em seu

socorro93

No caso da memoacuteria do corpo haacute um registro mais excepcional ndash porque ativo ndash

decorrente do esforccedilo de repeticcedilatildeo voltado para a accedilatildeo ou para o presente de tal modo que

se depositam em mecanismos sensoacuterio-motores sob a forma de um acuacutemulo que constitui o

haacutebito Como as lembranccedilas aprendidas satildeo mais uacuteteis eacute natural repararmos mais nos

registros produzidos pela memoacuteria do corpo que naqueles frutos da memoacuteria pura

92

ldquo[] comment ne pas reconnaicirctre que la diffeacuterence est radicale entre ce qui doit se constituer par la

reacutepeacutetition et ce qui par essence ne peut se reacutepeacuteterrdquo pergunta-se Bergson (2001 p 22988) como iacutendice do

criteacuterio distintivo por natureza das duas memoacuterias 93

Bergson precisa a excepcionalidade do haacutebito em relaccedilatildeo ao registro passivo de singularidades na duraccedilatildeo

operada pela memoacuteria pura ldquoLes souvenirs qursquoon acquiert volontairement par reacutepetition sont rares

exceptionnels Au contraire lrsquoenregistrement par la meacutemoire de faits et drsquoimages en leurs genre se porsuit agrave

tous les moments de la dureacuteerdquo (BERGSON 2001 p 228-22988)

132

Entretanto essas definiccedilotildees reenviam a dois outros problemas primeiro o que justifica a

percepccedilatildeo e a formaccedilatildeo de haacutebitos motores Segundo como as lembranccedilas-imagens

entram nos esquemas da utilidade no presente Natildeo seriam elas intrinsecamente inuacuteteis

uma vez que os haacutebitos motores mostram-se suficientes agrave vida adaptada de qualquer

organismo94

Esses satildeo precisamente os problemas que se encontram por traacutes do

mecanismo do reconhecimento mas para compreendecirc-los eacute preciso voltar ao corpo e a seu

significado liminar

Quando pensado sub specie durationis Bergson dizia natildeo entrever no corpo-

imagem mais do que um limite movente entre passado e futuro Afinal tomado como

limiar duracional extenso o corpo-imagem natildeo pode consistir em nada aleacutem de uma

imagem atual banhada de outras imagens atuais e apreendida em uma representaccedilatildeo

instantacircnea Tomado como ponto de inserccedilatildeo no devir o corpo-imagem comporta no

entanto por si mesmo como vimos uma memoacuteria orgacircnica que chamamos ldquomemoacuteria do

corpordquo Esta participa dos movimentos extraiacutedos dos processos de percepccedilatildeo e adaptaccedilatildeo

do corpo-imagem a seu meio ndash o que se afigura uma necessidade de todo organismo ndash e

resulta no registro do passado dos movimentos e de suas repeticcedilotildees em geral sob a forma

de haacutebitos motores Ao mesmo tempo a consciecircncia registra todo o desenrolar singular de

cada um desses e de outros acontecimentos uma vez que opera no seio da memoacuteria pura

forja suas memoacuterias-lembranccedilas que em si e por si mesmas natildeo possuem qualquer

utilidade e tampouco podem agir sobre o presente O que Bergson (2001 p 23191) afirma

eacute que essas memoacuterias caminham lado a lado e prestam-se muacutetuo apoio A conservaccedilatildeo das

lembranccedilas-imagens nos coloca todavia lado a lado com o risco ndash no limite patoloacutegico ndash

da confusatildeo entre os imperativos pragmaacuteticos e de utilidade envolvidos pela necessaacuteria

adaptaccedilatildeo de um organismo ao meio em que vive e essas ldquoimagens de sonhordquo95

Como

afastar esse risco senatildeo pelo caraacuteter intrinsecamente pragmaacutetico dessa consciecircncia em

tensatildeo com a vida Atrelada unicamente agrave utilidade a consciecircncia que efetua o registro dos

eventos singulares que se fundem na memoacuteria pura eacute a mesma que a um soacute tempo

descarta em relaccedilatildeo agrave atualidade vivida todas as imagens passadas que natildeo possam

coordenar-se agrave percepccedilatildeo atual formando com ela um conjunto uacutetil A consciecircncia age

simultaneamente vinculada agrave memoacuteria e atenta agrave vida ela tira partido da memoacuteria em

detrimento da memoacuteria para fazecirc-la servir agrave vida agrave accedilatildeo e ao presente Por isso a

94

Bergson (2001 p 23089) com efeito afirma sobre a memoacuteria do corpo ldquo[] un ecirctre vivant qui se

contenterait de vivre nrsquoaurait pas besoin drsquoautre choserdquo 95

ldquoEn se conservant dans la meacutemoire en se reproduisant dans la conscience ne vont-elles pas deacutenaturer le

caractegravere pratique de la vie mecirclant le recircve agrave la reacutealiteacuterdquo (BERGSON 2001 p 23090)

133

memoacuteria pura pode ser definida em relaccedilatildeo agrave consciecircncia como uma memoacuteria inibida ou

de recalque96

soacute age subordinada agrave consciecircncia Eis aiacute o mecanismo que as torna

ldquolembranccedilas impotentesrdquo97

ndash elas satildeo impotentes exclusivamente em face de uma diferenccedila

pragmaacutetica em relaccedilatildeo a uma consciecircncia atual que natildeo eacute mais que a representaccedilatildeo ideal e

liminar de uma adaptaccedilatildeo de nosso corpo ao presente por isso comeccedilaacutevamos por ele

Dessa forma eacute possiacutevel entrever em siacutentese duas memoacuterias segundo as quais o

passado se conserva e que natildeo satildeo senatildeo teoricamente distintas lembranccedilas-imagens

pessoais que desenham todos os acontecimentos em sua singularidade e mecanismos

motores que satildeo capazes de utilizar o passado na direccedilatildeo da utilidade e da vida Mais

adiante essa dissociaccedilatildeo se mostraraacute particularmente importante a fim de evitar certos

enganos comuns Entre eles aquele que sustenta a tese da localizaccedilatildeo das lembranccedilas-

imagens no corpo designando o ceacuterebro como ldquoo oacutergatildeo da representaccedilatildeordquo por excelecircncia

(BERGSON 2001 p 23596) outro consiste em misturar indefinidamente no ato de

reconhecimento pelo qual reavemos o passado no presente suas componentes motoras

com as lembranccedilas-imagens Eacute portanto sob esse duplo aspecto que se torna necessaacuterio

compreender dinamicamente o fenocircmeno do reconhecimento capaz de ligar o passado ao

presente

O ponto de partida de Bergson eacute conhecido ndash as teorias do reconhecimento

contrariariam absolutamente a experiecircncia ao aplicarem-se a fazer o fenocircmeno surgir de

uma reaproximaccedilatildeo entre percepccedilatildeo e lembranccedila ignorando sua jaacute demonstrada diferenccedila

de natureza A experiecircncia biofisioloacutegica e meacutedica sobre o tema indicaria que na maioria

das vezes a lembranccedila soacute surge uma vez reconhecida a percepccedilatildeo (BERGSON 2001 p

23798) Portanto sua tese oposta desta vez ao enganoso pensamento associacionista e

96

ldquo[] les souvernirs tendent agrave srsquoincarner font pression pour ecirctre reccedilus ndash si bien qursquoil faut tout un

refoulement issu du preacutesent et de lsquolrsquoattention agrave la viersquo pour repousser ceux qui sont inutiles ou dangereuxrdquo

(DELEUZE 1966 p 69-70) Em um sentido genealoacutegico Freacutedeacuteric Worms explica a origem da concepccedilatildeo de

Bergson ldquoNotons drsquoembleacutee comment la conscience retrouve ici le pouvoir de seacutelection qursquoelle avait deacutejagrave

dans la perception augmenteacutee drsquoune force drsquoinhibition dont Bergson avant Freud emprunt la notion agrave Ribot

celui-ci avait deacutecrit dans le cas drsquoattention notamment comment les mouvements du corps ont une fonction

critique et neacutegative qui inhibe et refoule le contenu de la conscience psychologiquerdquo (WORMS 1997 p

108) 97

Freacutedeacuteric Worms (2011 p 175) explicou o sentido das expressotildees ldquoimpotenterdquo ldquoinagenterdquo e ldquoinconscienterdquo

com as quais Bergson dotou a memoacuteria pura demonstrando que todas satildeo indiciaacuterias de uma ontologia

virtual ldquoO passado puro eacute lsquoinagentersquo lsquoimpotentersquo eis sobre o que Bergson natildeo cessa de insistir tal eacute a

diferenccedila fundamental que explica todas as outras estando aiacute compreendida uma inconsciecircncia que natildeo eacute

uma inexistecircncia uma virtualidade que natildeo eacute senatildeo o contraacuterio do atual e do ativo um passado enfim que

natildeo se opotildee ao presente senatildeo porque este se define pela vidardquo E ainda completa ldquoessa diferenccedila entre

potecircncia e impotecircncia que natildeo eacute uma diferenccedila entre existecircncia e inexistecircncia que deve mesmo permitir

criticar esta anuncia uma comunidade de natureza mais profunda entre as duas memoacuterias []rdquo (Idem

ibidem p 176-177)

134

que deve conduzir-nos definitivamente ao problema da realidade da memoacuteria pura ndash uma

vez que a memoacuteria do corpo demonstrou-se pelos mecanismos sensoacuterios-motores que se

depositam no haacutebito ndash seraacute a de que a mera associaccedilatildeo entre percepccedilatildeo e lembranccedila natildeo

explica suficientemente o processo de reconhecimento98

Caso contraacuterio supondo a

dependecircncia que associaria definitivamente lembranccedila e percepccedilatildeo seria forccediloso que com

a aboliccedilatildeo patoloacutegica do reconhecimento declaraacutessemos ndash contra todo iacutendice cliacutenico dos

estudos da cegueira psiacutequica99

por exemplo ndash a aboliccedilatildeo da percepccedilatildeo que lhe seria

correlata

O proacuteprio fenocircmeno da cegueira psiacutequica autorizaria a definir dois tipos de

reconhecimento que como veremos seguem as linhas de articulaccedilatildeo conceituais jaacute

desenhadas pela definiccedilatildeo das duas memoacuterias O primeiro um reconhecimento instantacircneo

do corpo que natildeo engendra ou supotildee nenhuma lembranccedila aproximado da transcriccedilatildeo de

uma percepccedilatildeo pura (BERGSON 2001 p 238-240100-103) Trata-se nesse caso de um

fenocircmeno de ordem motora que age na base do reconhecimento de movimentos natildeo-

organizados uma vez que a memoacuteria do corpo os tenha organizado seraacute possiacutevel servir-se

do objeto reconhecido adaptar-se pragmaticamente a ele esboccedilando os movimentos que

lhe correspondem100

Se Bergson (2001 p 239-240) pode afirmar que ldquoIl nrsquoy a pas de

perception qui ne se prolonge en mouvementrdquo evocando a autoridade de Ribot e

Maudsley eacute porque haacute uma certa consciecircncia evidentemente orgacircnica impessoal dos

movimentos nascentes coordenando-os agrave percepccedilatildeo servindo-se e criando haacutebitos motores

organizando e reorganizando suas tendecircncias pragmaacuteticas que nos permitem servir-nos de

um objeto reconhececirc-lo Essas repeticcedilotildees tendem a consolidar as conexotildees e para

compreender o porquecirc basta observar como nosso sistema nervoso eacute disposto em vista da

construccedilatildeo de aparelhos motores que satildeo ligados por centros a excitaccedilotildees sensiacuteveis ao

mesmo tempo em que a dispersatildeo definida pela ramificaccedilatildeo de seus terminais torna as

conexotildees possiacuteveis ilimitadas por isso eacute sempre possiacutevel enriquecer as conexotildees entre

percepccedilotildees e movimentos correspondentes preacute-formados de tal forma que toda percepccedilatildeo

atual possui um ldquoacompanhamento motor organizadordquo (BERGSON 2001 p 240102) que

98

ldquo[] en reacutealiteacute lrsquoassociation drsquoune perception agrave un souvenir ne suffit pas du tout agrave rendre compte du

processus de la reconnaissance Car si la reconnaisance se faisait ainsi elle serait abolie quand les anciennes

images ont disparu elle aurait toujours lieu quand ces images sont conserveacuteesrdquo (BERGSON 2001 p

23798-99) 99

A cegueira psiacutequica eacute definida por Bergson (2001 loc cit) como a incapacidade de efetuar a recogniccedilatildeo

de objetos no espaccedilo que de fato permanecem objetos de uma percepccedilatildeo sem reconhecimento 100

Sobre a relaccedilatildeo entre o reconhecimento motor do corpo e o uso pragmaacutetico de um objeto Bergson (2001

p 239 101) salienta ldquoReconnaicirctre un objet usuel consist surtout agrave savoir srsquoen servirrdquo eis portanto uma

feiccedilatildeo definitivamente pragmaacutetica do reconhecimento operado pelo sistema sensoacuterio-motor

135

nos daacute o sentimento de reconhecimento usual o que faz supor uma consciecircncia dessa

organizaccedilatildeo Com isso Bergson parece uma vez mais deduzir do campo inicialmente dado

de imagens o jogo entre corpo e campo em outras palavras porque as imagens agem umas

sobre as outras e os corpos fontes de indeterminaccedilatildeo estatildeo implicados nessa dinacircmica eacute

como se a circunstacircncia de um corpo ser uma imagem em meio a imagens fosse jaacute um

convite agrave accedilatildeo

Ao lado desse jogo entre percepccedilatildeo movimentos preacute-formados e formaccedilatildeo

dinacircmica de novos movimentos nascentes cada vez mais adaptados pragmaticamente ao

presente subsistem os sucessivos registros duracionais que acompanham o seu desenrolar

no tempo que Bergson (2001 p 241103) chama de ldquonossa vida psicoloacutegicardquo A memoacuteria

pura natildeo cessa de operar e de ser inibida pela tendecircncia pragmaacutetica dessa consciecircncia que

age apenas para adaptar um corpo-imagem agraves imagens nas quais se banha Jaacute vimos que o

equiliacutebrio sensoacuterio-motor estabelecido em funccedilatildeo dessa adaptaccedilatildeo entre percepccedilatildeo e

movimentos de resposta implica que a ldquoconsciecircncia praacutetica e uacutetil do momento presenterdquo

(Idem ibidem loc cit) iniba sem cessar as lembranccedilas que exercer pressatildeo desde o fundo

da memoacuteria pura deixando passar apenas as lembranccedilas-imagens uacuteteis101

Eacute nesse ponto

que as lembranccedilas-imagens podem intervir no processo de reconhecimento

A todo momento ao acompanhar a percepccedilatildeo como seu duplo ou sua sombra a

memoacuteria pura registra cada acontecimento contemporaneamente agrave montagem dos

aparelhos motores pela memoacuteria do corpo Dada essa coalescecircncia Bergson (2001 p

241103) afirma que ldquoelle se survit [] avec tout le deacutetail de ses eacuteveacutenements localiseacutes dans

le tempsrdquo A consequecircncia ontoloacutegica imediata que jaacute se pode deduzir aqui eacute que sendo

contemporacircnea ao presente a existecircncia da memoacuteria natildeo exige um presente descarnado

acompanhando sombriamente o presente que se faz a memoacuteria natildeo eacute o fruto maduro

demais de um presente que passou ndash ela sobrevive em si como se houvesse como veremos

mais adiante um registro duplo do mesmo plano de realidade Ainda que seja

contemporacircnea ao presente a memoacuteria no entanto natildeo age inibida pragmaticamente ndash o

que assinala a marca da impotecircncia e da inutilidade das lembranccedilas puras ndash a memoacuteria se

define pela espera como se aguardasse uma fissura no mecanismo para dentro do qual

empurraria suas imagens

101

Em Le Recircve texto de uma conferecircncia proferida em marccedilo de 1901 no Institut Geacuteneacuteral Psychologique e

republicada dezoito anos mais tarde em LrsquoEacutenergie Spirituelle Bergson (2001 p 88999) se exprime sobre

essa forma de pressatildeo que as lembranccedilas exercem do fundo da memoacuteria pura ldquoIl ne faut pas croire que les

souvenirs logeacutes au fond de la meacutemoire y restent inertes et indiffeacuterentes Il sont dans lrsquoattente ils sont presque

attentifsrdquo A mesma passagem autoriza que definamos a espera como um elemento da memoacuteria pura (cf

infra)

136

No entanto como eacute possiacutevel remontar ao passado para dele retirar imagens

Bergson explica esse processo como algo essencialmente ativo isto eacute como um esforccedilo

por meio do qual nos liberamos do interesse pragmaacutetico circunscrito agrave accedilatildeo a fim de

descobrir a lembranccedila-imagem singular relacionada com o presente Isso eacute possiacutevel em

funccedilatildeo da proacutepria consciecircncia praacutetica Em copresenccedila com o presente sobrevive o

conjunto das imagens passadas Eacute certo que essa sobrevivecircncia seu modo especiacutefico

exige ainda uma demonstraccedilatildeo da qual no momento conhecemos apenas os iacutendices mais

gerais mas seguindo Bergson suponhamos por ora sua existecircncia Dada esta copresenccedila

de nosso passado e nosso presente eacute preciso que a lembranccedila-imagem colhida no passado

em que remontamos natildeo seja arbitraacuteria eacute preciso que haja certo discernimento certo bom

senso ndash que satildeo outros nomes pelos quais Bergson designa a ldquoconsciecircncia praacuteticardquo ndash na

escolha de uma imagem da qual vamos nos servir no presente Natildeo soacute os movimentos satildeo

prolongamentos da percepccedilatildeo como satildeo no sentido inverso prolongamentos dessas

lembranccedilas-imagens que por sua vez descolam-se da memoacuteria pura entatildeo os

movimentos efetuados ou nascentes delimitam pragmaticamente o campo de lembranccedilas-

imagens virtuais como delimitam por um recorte externamente a percepccedilatildeo de objetos-

imagens atuais De seu turno o que chamamos de recalque pragmaacutetico das lembranccedilas-

imagens que inibem as inuacuteteis envolve o deslocamento do passado pelo presente requer a

assunccedilatildeo de uma atitude presente102

Eacute preciso poreacutem conduzir o argumento da sobrevivecircncia da memoacuteria e por

extensatildeo o de sua conservaccedilatildeo independente do corpo ateacute suas uacuteltimas consequecircncias A

fim de estendecirc-lo o maacuteximo possiacutevel as doenccedilas do reconhecimento ofereceriam a

experiecircncia suficiente para determinar ateacute que ponto as lembranccedilas podem realmente

desaparecer Aproximando-se dessas descriccedilotildees cliacutenicas Bergson (2001 p 242-243105-

107) observa dois traccedilos caracteriacutesticos comuns agraves cegueiras psiacutequicas a perda do sentido

de orientaccedilatildeo de um lado e a incapacidade de desenhar objetos por meio de traccedilos

contiacutenuos ndash caracteriacutesticas geralmente apresentadas por pacientes acometidos por essas

doenccedilas Juntamente a casos de cegueira verbal ndash que consistem no esquecimento de certas

letras do alfabeto ndash todas as descriccedilotildees cliacutenicas convergem de maneira a revelar que o que

eacute afetado por essas patologias natildeo eacute a lembranccedila ou a percepccedilatildeo em sentido objetivo mas

o haacutebito de distinguir as articulaccedilotildees do objeto percebido isto eacute ldquodrsquoen compleacuteter la

102

ldquo[] la suppression des anciennes images tient agrave leur inhibition par lrsquoatittude preacutesente []rdquo (BERGSON

2001 p 241104)

137

perception visuelle par une tendence motrice agrave en dessiner son schegravemerdquo (BERGSON

2001 p 243107)

Isso nos deixa no limiar em direccedilatildeo ao uacuteltimo movimento do segundo capiacutetulo de

Matiegravere et Meacutemoire que corresponderaacute ao estudo de sua terceira hipoacutetese segundo a qual

se realiza uma passagem gradual das lembranccedilas aos movimentos no reconhecimento

concreto A fim de verificaacute-la seraacute necessaacuterio efetuar a passagem do reconhecimento

automaacutetico que mobiliza o haacutebito e se realiza por movimentos por distraccedilatildeo ao

reconhecimento atento em que lembranccedilas-imagens intervecircm positivamente

Essa passagem entre reconhecimentos automaacutetico e atento supotildee compreender as

relaccedilotildees entre percepccedilatildeo e lembranccedila Natildeo eacute possiacutevel compreender como uma lembranccedila

insere-se de grau em grau em uma atitude ou movimento sem determinar como nos

representamos as relaccedilotildees entre percepccedilatildeo atenccedilatildeo e lembranccedila Comecemos por definir

em que consiste a atenccedilatildeo Geralmente a definimos como uma espeacutecie de intensificaccedilatildeo

do estado intelectual a fim de tornar uma percepccedilatildeo mais intensa destacando os detalhes

de um objeto essa poreacutem eacute uma ideia obscura Seguindo Ribot tambeacutem nesse aspecto

Bergson (2001 p 246109-110) prefere definir a atenccedilatildeo em funccedilatildeo de uma adaptaccedilatildeo

geral do corpo Essa definiccedilatildeo lhe parece mais adequada na medida em que os fenocircmenos

de inibiccedilatildeo preparam a atenccedilatildeo voluntaacuteria103

Agindo na percepccedilatildeo supondo a inibiccedilatildeo dos

movimentos que decorreriam da percepccedilatildeo automaticamente a atenccedilatildeo implicaraacute pois

uma parada dos movimentos que perseguem um resultado uacutetil imediato aqui viratildeo inserir-

se segundo Bergson ldquomovimentos mais sutisrdquo que satildeo os prolongamentos da lembranccedila

A percepccedilatildeo exterior provoca nossos movimentos que a desenvolvem em linhas gerais por

outro lado a memoacuteria dirige agrave percepccedilatildeo recebida imagens antigas e semelhantes cujo

esboccedilo jaacute teria sido traccedilado por nossos movimentos Em siacutentese a memoacuteria mais imediata

no limite duplica nossa percepccedilatildeo presente devolvendo-lhe imagens semelhantes ou a

imagem idecircntica agrave percepccedilatildeo Essa duplicaccedilatildeo eacute o resultado de uma seacuterie de tentativas de

siacutentese implicados na atenccedilatildeo seu resultado natildeo seraacute assimeacutetrico tampouco arbitraacuterio

uma vez que movimentos de imitaccedilatildeo presidem como viacuteamos a seleccedilatildeo das lembranccedilas-

imagens nas quais a percepccedilatildeo se prolonga (BERGSON 2001 p 248112) Nesse limiar a

lembranccedila-imagem que interpreta nossa percepccedilatildeo atual insere-se nela sendo impossiacutevel

distinguir de fato o que dividimos de direito Fecha-se assim um circuito pelo qual se

forma uma imagem-percepccedilatildeo orientada ao espiacuterito e uma imagem-lembranccedila que tende

103

ldquo[] les phenomegravenes drsquoinhibition ne sont qursquoune preacuteparation aux mouvements effectifs de lrsquoattention

volontairerdquo (BERGSON 2001 p 246110)

138

em direccedilatildeo ao espaccedilo No interior dele tudo se dispotildee em diferentes niacuteveis de um

complexo percepccedilatildeo-memoacuteria a imagem atual remete a uma imagem virtual que lhe eacute

solidaacuteria em cada um desses niacuteveis mesmo no mais imediato em que uma lembranccedila-

imagem virtual duplica o objeto atual a memoacuteria estaacute inteiramente presente em seu maior

niacutevel de tensatildeo Ou seja se passarmos sucessivamente de um niacutevel a outro verificaremos

que eacute a mesma vida psicoloacutegica que se repete indefinidamente em sua totalidade mais ou

menos contraiacuteda104

Portanto o limite da memoacuteria eacute a memoacuteria pura correspondente ao

registro singular na duraccedilatildeo dos acontecimentos que desenham o curso de nossa existecircncia

passada Eis a memoacuteria espontacircnea ou perfeita tal como se registra na proacutepria duraccedilatildeo

tendo sua existecircncia atrelada ao tempo

Tudo isto seraacute objeto de uma longa demonstraccedilatildeo empiacuterica que natildeo nos cabe

acompanhar senatildeo em seus termos mais gerais sob pena de tornar este desvio necessaacuterio

grande demais105

A verificaccedilatildeo dessa hipoacutetese se desenvolve a partir de uma seacuterie de

confrontaccedilotildees de patologias do reconhecimento contemplando os reconhecimentos visual

auditivo e de palavras Por meio delas Bergson indica a partir de numerosos exemplos que

lesotildees cerebrais natildeo aboliriam as lembranccedilas mas ora implicariam um oacutebice agrave seleccedilatildeo das

imagens ndash ou seja agrave recepccedilatildeo dos movimentos ndash ora importariam a ausecircncia no corpo de

um ponto de aplicaccedilatildeo por meio do qual as lembranccedilas se prolongariam em accedilatildeo ndash isto eacute

afetariam a capacidade de preparaccedilatildeo sensoacuterio-motora mantendo as lembranccedilas

permanentemente em sua condiccedilatildeo de impotecircncia decorrente da inibiccedilatildeo pela consciecircncia

praacutetica

Haacute todavia um ponto notaacutevel a destacar no interior desse desenvolvimento que nos

conduz agrave impossibilidade de localizaccedilatildeo das lembranccedilas no ceacuterebro ou em qualquer outro

ponto da mateacuteria ou do espaccedilo Ele se torna importante ao passo em que eacute o momento

culminante de toda a anaacutelise cliacutenica a que Bergson se dedica nessa longa demonstraccedilatildeo

afinal se ldquoas lembranccedilas natildeo podem estar contidasrdquo em determinado lugar ndash preconceito

intelectual derrisoacuterio segundo Bergson106

ndash eacute porque se conservam em si mesmas

104

ldquoLa mecircme vie psycologique serait donc reacutepeacuteteacutee un nombre indeacutefini de fois aux eacutetages successifs de la

meacutemoire et le mecircme acte de lrsquoesprit pourrait se jouer agrave bien des hauteurs diffeacuterentes Dans lrsquoeffort

drsquoattention lrsquoesprit se donne toujours tout entier mais se simplifie ou se complique selon le niveau qursquoil

choisit pour accomplir ses eacutevolutions Crsquoest ordinairement la perception preacutesente qui deacutetermine lrsquoorientation

de nocirctre esprit mais selon le deacutegreacute de tension que nocirctre esprit adopte selon la hauteur ougrave il se place cette

perception deacuteveloppe en nous un plus ou moins grand nombre de souvenirs-imagesrdquo (BERGSON 2001 p

250-251115-116) 105

O trecho que comentamos em suas linhas gerais e que indicamos ao leitor que se interesse em seguir mais

detalhadamente o seu curso corresponde a (BERGSON 2001 p 252117-118 a p 270140) 106

Isso se deve ao fato de que para Bergson a memoacuteria eacute inassimilaacutevel a dispositivos ou entes corpoacutereos

tampouco a espaccedilos ou agrave extensatildeo em geral Por isso ele natildeo cessa de ironizar sua constante assimilaccedilatildeo a

139

independentemente da mateacuteria do espaccedilo ou do que mais cedo chamaacutevamos de imagens

que existem atualmente Em outras palavras demonstraacute-lo nos oferece um ingresso para

problematizar a consistecircncia virtual da memoacuteria

Tudo se concentra no momento capital em que Bergson na impossibilidade de

remontar todas as experiecircncias cliacutenicas de Matiegravere et Meacutemoire retoma em uma

conferecircncia intitulada Lrsquoacircme et le corps (1912) publicada sete anos mais tarde em

LrsquoEneacutergie Spirituelle a demonstraccedilatildeo de que levada a seu limite a tese do paralelismo

psicofiacutesico se contradiz107

Aproveitemo-nos portanto do mesmo artifiacutecio demonstrativo

utilizado por Bergson Eis o argumento de Bergson em sua integralidade

[] les purs souvenirs appeleacutes du fond de la meacutemoire se deveacuteloppent en

souvenirs-images de plus en plus capables de srsquoinseacuterer dans le schegraveme moteur Agrave

mesure que ces souvenirs prennent la forme drsquoune reacutepresentation plus complegravete

plus concregravete et plus consciente ils tendent drsquoavantage agrave se confondre avec la

perception qui les attire ou dont ils adoptent le quadre La preacutetendu destruction

des souvernirs par les leacutesions ceacuterebrales nrsquoest qursquoune interruption du progregravess

continu par lequel le souvenir srsquoactualise Et par conseacutequent si lrsquoon veut agrave toute

force localiser les suvenirs auditifs des mots par exemple en un point deacutetermineacute

du cerveau on sera ameneacute par des raisons drsquoeacutegale valeur agrave distinguer ce centre

imaginatif du centre percepetif ou agrave confondre les deux ensemble (BERGSON

2001 p 270140)

Onde estaria portanto a contradiccedilatildeo da tese paralelista com a experiecircncia Se nos

concentramos por um momento na explicaccedilatildeo psicoloacutegica baseada na dependecircncia entre

percepccedilatildeo e ceacuterebro somos levados a confundir o cerebral e o mental de tal forma que a

percepccedilatildeo se depositaria em algum lugar no ceacuterebro por outro lado se confundimos o

centro material da percepccedilatildeo com o da representaccedilatildeo ndash de modo que atribuiacutemos ao ceacuterebro

a funccedilatildeo de engendrar representaccedilotildees ndash ao observarmos os casos cliacutenicos das afasias das

cegueiras psiacutequicas ou auditivas natildeo eacute possiacutevel compreender por que um doente

dispositivos ldquoA vrai dire je ne suis pas sucircr que la question lsquoougraversquo ait encore un sens quand on ne parle pas

drsquoun corps Des clicheacutes photographiques se conservent dans une boicircte des disques phonographiques se

conservent dans des casiers mais pourquoi des souvenirs qui ne sont pas des choses visibles et tangibles

auraient-ils besoin drsquoun contenant et comment pourraint-ils en avoirrdquo (BERGSON 2001 p 85755) Se

Bergson aceita a ideia de um continente onde as lembranccedilas ficariam alojadas eacute apenas em sentido

puramente metafoacuterico e completa graciosamente ldquoet je dirai alors tout bonnement qursquoils se sont dans

lrsquoespritrdquo (BERGSON 2001 p 856-857755) 107

O que Bergson (2001 p 85249) diz em LrsquoAcircme et le Corps eacute essencial para afianccedilar ao leitor que ao

reduzir a longa cadeia de demonstraccedilotildees experimentais de Bergson a esse ponto notaacutevel continuamos a

seguir no que importa as principais articulaccedilotildees conceituais que elas insinuam ldquoIl mrsquoest impossible

drsquoeacutenumerer ici les faits et les raisons sur lesquels cette conception se fonde [] Comment faire Il y aurait

drsquoabord un moyen semble-t-il drsquoen finir rapidement avec la theacuteorie que je combat ce serait de montrer que

lrsquohypothegravese drsquoune eacutequivalence entre le ceacutereacutebral et le mental est contradictoire avec elle-mecircme quand on la

prend dans toute sa rigueur [] Jrsquoai tenteacute cette deacutemonstration autrefois []rdquo Sobre o mesmo assunto em

Matiegravere et Meacutemoire ldquo[] nous devons poursuivre cette illusion jusqursquoau point preacutecis ougrave elle aboutit agrave une

contradiction manifesterdquo (BERGSON 2001 p 270140)

140

acometido de cegueira psiacutequica percebe objetos mas natildeo os reconhece A mesma

perplexidade resultaria do caso de um paciente acometido por cegueira auditiva ele natildeo

pode interpretar os sons que no entanto ouve Ora a lesatildeo natildeo teria afetado este centro

que corresponde agrave percepccedilatildeo e agrave memoacuteria do objeto A soluccedilatildeo imediata eacute distinguir as

localizaccedilotildees cerebrais de tal forma que haveria centros perceptivos e elementos nervosos

relacionados agrave lembranccedila Eacute necessaacuterio lembrar que a tese do paralelismo insiste sobre a

existecircncia de uma diferenccedila meramente de grau e natildeo de natureza entre percepccedilatildeo e

lembranccedila como se as uacuteltimas fossem versotildees desintensificadas das primeiras Entretanto

se centros perceptivos e mnemocircnicos estatildeo localizados distintamente como uma

lembranccedila intensificando-se tornar-se-ia percepccedilatildeo Como uma percepccedilatildeo

enfraquecendo-se tornar-se-ia lembranccedila ndash supondo que ambas tenham a mesma natureza

Natildeo haacute resposta satisfatoacuteria possiacutevel porque as alternativas contraditoacuterias estatildeo

envolvidas por uma ilusatildeo comum que consiste em tratar percepccedilatildeo e lembranccedila-imagem

de uma perspectiva exclusivamente estaacutetica o que conduz a compreender as lembranccedilas

como se fossem coisas que supotildeem uma localizaccedilatildeo no espaccedilo e natildeo no tempo

Considerando o mesmo problema sob o ponto de vista dinacircmico seria necessaacuterio supor a

diferenccedila de natureza entre uma e outra definindo e distinguindo a percepccedilatildeo completa

ldquopor sua coalescecircncia com uma imagem-lembranccedila que lanccedilamos ao encontro delardquo108

Chegamos assim ao ponto em que Bergson efetua uma profunda fratura na

ontologia que desenvolvia ateacute aqui levando-a do atual em direccedilatildeo ao virtual do ser

presente ao ser do passado ao outro dos termos que conformam a construccedilatildeo progressiva

dessas passagens feitas no cerne de uma mesma realidade Eacute certo que Bergson natildeo cessa

de definir a imagem-lembranccedila reduzida ao estado de lembranccedila pura como ineficaz

impotente Seraacute necessaacuterio precisar o sentido dessas definiccedilotildees que consistiriam em

algumas das caracteriacutesticas do virtual que jaacute se pode antecipar O virtual designa de certa

forma o pragmaticamente recalcado por uma consciecircncia que se define pela atenccedilatildeo agrave vida

e ao presente

Para demonstrar esse viacutenculo bastaria perceber que para tornar uma lembranccedila

saiacuteda da memoacuteria pura uma lembranccedila eficaz eacute necessaacuterio engendrar um processo de

atualizaccedilatildeo que consiste na ldquoseacuterie drsquoeacutetapes pas lesquelles cette image arrive agrave obtenir du

corps des deacutemarches utilesrdquo (BERGSON 2001 p 275146) sendo a excitaccedilatildeo dos centros

108

ldquo[] la perception complegravete ne se deacutefinit et ne se distingue que par sa coalescence avec une image-

souvenir que nous lanccedilons au-devant drsquoellerdquo (BERGSON 2001 p 271142)

141

sensoriais a uacuteltima dessas etapas A imagem virtual evolui em direccedilatildeo a uma sensaccedilatildeo

apenas virtual esta evolui em direccedilatildeo a movimentos reais os quais ao realizarem-se

realizam tambeacutem a sensaccedilatildeo da qual constituem um prolongamento O desdobramento

natural de nossa deacutemarche consiste em interrogar o problema da sobrevivecircncia das

imagens e com ele o modo ontoloacutegico de que o ser do passado participa

sect 2 COEXISTEcircNCIAS

A CONSISTEcircNCIA VIRTUAL DA MEMOacuteRIA

Do virtual ao atual da memoacuteria pura agrave percepccedilatildeo pura Bergson natildeo cessa de

afirmar que se trata de divisotildees de direito e natildeo de fato Assim se desejaacutessemos

representar agrave inteligecircncia ndash e isto no bergsonismo equivale a dizer espacialmente ndash como

tudo se passa disporiacuteamos lembranccedila pura lembranccedila-imagem e percepccedilatildeo em uma

mesma linha segmentada sem jamais fazer jus aos limiares indiscerniacuteveis e agrave continuidade

de penetraccedilatildeo que operam a passagem de uma na outra seguindo intuitivamente a

experiecircncia concreta Momentaneamente encontramos um dos centros de nosso

argumento que a fim de compreender a centralidade da memoacuteria no processo transicional

pretende estabelecer seu sentido sobre bases ontoloacutegicas irredutiacuteveis agrave memoacuteria

psicoloacutegica ndash motivo pelo qual se torna necessaacuterio investigar em Bergson uma ontologia

da memoacuteria ou uma ontologia do virtual No entanto eacute importante lembrar que a diferenccedila

de natureza que Bergson introduz entre percepccedilatildeo e lembranccedila seraacute pouco a pouco

estendida agrave diferenccedila entre atual e virtual presente e passado O que dissimula o caraacuteter

niacutetido da diferenccedila eacute o processo de atualizaccedilatildeo das lembranccedilas109

Retornemos da representaccedilatildeo inteligente agrave intuiccedilatildeo tal como ela segue as linhas de

fato de uma experiecircncia concreta do trabalho da memoacuteria Como recuperar uma lembranccedila

um acontecimento de nossa vida passada A resposta de Bergson ndash sobre a qual Deleuze

(1966 p 53) insistiu sem cessar e a cuja insistecircncia tambeacutem Worms (2011 p 175) deu

razatildeo ndash eacute por meio de um salto no passado destacando-nos do atual e nos colocando

subitamente no virtual Para compreender o que significa esse salto ndash especialmente para

Bergson a quem a continuidade parece um elemento conceitual tatildeo importante ndash

109

Por isso sobre a distinccedilatildeo de direito entre lembranccedila pura lembranccedila-imagem e percepccedilatildeo Bergson

(2001 p 276148) afirma ldquoqursquoil est impossible de dire avec preacutecision ougrave lrsquoun des termes finit ougrave commence

lrsquoautrerdquo Worms (1997 p 141) observa que ldquo[] la diffeacuterence de nature entre souvenirs et perceptions si elle

est formuleacutee comme diffeacuterence entre le lsquovirtuelrsquo et lrsquoactuelrsquo est-elle masqueacutee par le mouvement mecircme

drsquoactualisation par lequel les souvenirs se reacutealisentrdquo

142

precisamos retomar algumas conclusotildees precedentes e que retiram a primazia de nosso

haacutebito intelectual de pensar no presente

Na seccedilatildeo precedente haviacuteamos observado a existecircncia de dois tipos de memoacuteria

que nos levavam a conceber natildeo apenas duas formas de sobrevivecircncia do passado ndash em

mecanismos motores e no proacuteprio passado ndash mas tambeacutem a identificar dois modos

(automaacutetico e atento) pelos quais o reconhecimento se processa Atento agrave dinacircmica

segundo a qual percebemos os objetos no espaccedilo Bergson concebeu uma seacuterie de niacuteveis de

consciecircncia coalescentes com a percepccedilatildeo idealmente pura do objeto atual engendrados

segundo diferenccedilas de contraccedilatildeo no que nomeou circuito perceptivo Sua concepccedilatildeo

terminava por demonstrar o que no niacutevel da percepccedilatildeo pura Bergson podia apenas supor

que toda percepccedilatildeo eacute jaacute um misto em que as lembranccedilas-imagens constituem a impureza

em outras palavras que toda percepccedilatildeo implica ao mesmo tempo lembranccedila que seu niacutevel

mais contraiacutedo corresponde ao duplo virtual de uma imagem atualmente percebida Em

cada um dos niacuteveis de consciecircncia mais ou menos contraiacutedos em relaccedilatildeo agrave percepccedilatildeo

atual encontraacutevamos a integral de nossa memoacuteria Naquele momento adiantaacutevamos esta

conclusatildeo isso eacute o que supotildee uma coexistecircncia virtual da lembranccedila em relaccedilatildeo agrave

percepccedilatildeo em outras palavras dizer que a percepccedilatildeo eacute jaacute lembranccedila significa que o

processo perceptivo por mais puro que se o suponha deixa passar um miacutenimo de virtual

que no niacutevel mais contraiacutedo consiste na lembranccedila-imagem do estado atual de nosso

corpo que percebe um objeto atual

Essas conclusotildees nos levam a desmitificar segundo Deleuze (1966 p 53) duas

falsas crenccedilas a de que o passado soacute se constitui depois de ter sido presente e a de que ele

pode ser reconstruiacutedo pelo novo presente em relaccedilatildeo ao qual ele eacute passado Muito pelo

contraacuterio a supor-se uma memoacuteria de coexistecircncia contemporacircnea ao presente que passa

adiantaacutevamos a conclusatildeo de que haacute um passado que jamais fora presente um passado que

natildeo eacute um presente sucedido e descarnado mas sua imagem virtual coextensiva que jaacute se

prolonga na direccedilatildeo da memoacuteria pura Seguindo Deleuze adicionariacuteamos em relaccedilatildeo agrave

segunda falsa crenccedila ndash sobre a qual Bergson natildeo cessa de insistir ndash que natildeo se reconstroacutei o

passado pela via do presente110

Isso eacute o suficiente para compreendermos o que significa saltar no virtual por que

Bergson exige precisamente essa imagem que Deleuze diz ser ldquoquase kierkegaardianardquo

110

ldquoCrsquoest en vain qursquoon en chercherait la trace [du passeacute] dans quelque chose drsquoactuel et de deacutejagrave reacutealiseacute

autant vaudrait chercher lrsquoobscuriteacute sous la lumiegravererdquo (BERGSON 2001 p 278150) A expressatildeo entre

colchetes natildeo consta do original

143

compreende-se tambeacutem em que sentido Bergson emprega constantemente a expressatildeo

drsquoembleacutee que em portuguecircs equivale tatildeo bem a expressotildees como ldquode suacutebitordquo ldquode

imediatordquo ldquode prontordquo todas iacutendices de um modo Sua funccedilatildeo semacircntica poderia jaacute indicar

que uma diferenccedila de atitude eacute o que se passa entre as realidades do presente e do passado

Worms a esse propoacutesito sublinha a importacircncia de natildeo interpretar a diferenccedila de natureza

entre o ser presente e o ser do passado como uma diferenccedila ontoloacutegica radical como a que

haveria entre dois tipos de ser Uma interpretaccedilatildeo como essa implicaria naturalmente

deformar o gesto bergsoniano da imanecircncia pelo qual permanecemos leais a uma soacute

estrutura de realidade a de seu campo transcendental em que satildeo dadas as imagens e a

partir do qual tudo eacute deduzido Mais apropriadamente seria o caso de conceber a diferenccedila

entre presente e passado como ldquouma diferenccedila pragmaacutetica ligada agrave accedilatildeo do corpo e agrave

vidardquo (WORMS 2011 p 175)

No entanto um salto natildeo indicaria um dualismo metafiacutesico de substacircncia Tudo

converge para responder negativamente a essa questatildeo Se por um salto ou por uma

atitude sui generis ndash como Bergson (2001 p 276148) algumas vezes se expressa ndash eacute

possiacutevel distender a consciecircncia e colocar-se diretamente no passado haacute uma simples

diferenccedila de accedilatildeo ou de modo ndash natildeo radicalmente ontoloacutegica ndash entre presente e passado

atual e virtual A tese de Worms nesse aspecto seria confirmada por um outro dado o que

concerne agrave memoacuteria pura inibida ou recalcada pela atenccedilatildeo agrave vida

Decerto Bergson natildeo cessa de ligar o passado puro ao elemento de impotecircncia ao

mesmo tempo natildeo cessa de dizer como vimos que a memoacuteria pura eacute uma espera ldquoquase

atentardquo por uma fissura que a deixe passar algumas imagens no presente A forccedila inibidora

que coloca a memoacuteria a serviccedilo da vida implica que a memoacuteria pura enquanto inuacutetil

permaneccedila impotente inconsciente incapaz de atuar daiacute porque ela se define pela pressatildeo

ndash que empurraria no presente todas as suas imagens se pudesse ndash bloqueada pela forccedila de

inibiccedilatildeo que a determina como espera Em relaccedilatildeo ao virtual a espera eacute tambeacutem o seu

modo especiacutefico se por virtual compreendermos simplesmente ldquoo que natildeo atuardquo

(WORMS 2011 p 175)

Dizecirc-lo inconsciente ou impotente demanda estabelececirc-lo desde um ponto de vista

no segundo capiacutetulo de Matiegravere et Meacutemoire em que tudo gira em torno do atual eacute a

consciecircncia pragmaacutetica voltada para a vida que perspectiva o virtual como impotente e

inconsciente para o atual o virtual eacute o que natildeo atua e ele o eacute exclusivamente ao passo em

que natildeo toma parte dessa consciecircncia pragmaacutetica em que eacute mantido fora dela Suas

imagens esperam no fundo da memoacuteria pura enquanto natildeo satildeo solicitadas pela vida Em

144

relaccedilatildeo agrave consciecircncia o virtual eacute atualmente pressatildeo e espera mas potencialmente accedilatildeo e

afecccedilatildeo Nada disso no entanto os retira do existente se perspectivarmos o virtual desde

seu proacuteprio ponto de vista a memoacuteria pura eacute o que existe para si como potencial de accedilatildeo

e afecccedilatildeo e entatildeo ela jaacute natildeo poderia definir-se por uma impotecircncia ontoloacutegica mas

exclusivamente pragmaacutetica Pragmaacutetica aqui significa ldquocom relaccedilatildeo agrave vidardquo ldquodo ponto de

vista do presenterdquo Ontologicamente a memoacuteria eacute potecircncia pura ndash potecircncia definida como

o que natildeo age mas exerce pressatildeo permanece agrave espreita Eis o que definiria um registro

ontoloacutegico diverso do virtual dado na mesma estrutura de realidade a que pertence o ser do

presente

A tese fundamental que consiste em explicar o mecanismo de vigiacutelia por analogia

ao do sonho em Le Recircve natildeo mostraria nada aleacutem dessa diferenccedila pragmaacutetica do atual ao

virtual111

ldquoNous nrsquoapercevons de la chose que son eacutebauche celle-ci lance un appel au

souvenir de la chose complegravete et le souvenir de la chose complegravete dont notre esprit

nrsquoavait pas conscience qui nous restait en tout cas inteacuterieur comme une simple penseacutee

profite de lrsquooccasion pour srsquoeacutelancer dehorsrdquo (BERGSON 2001 p 88999) O sonho

consiste senatildeo no estado de consciecircncia em que as lembranccedilas puras encontram-se

inteiramente potentes livres e agentes ao menos em um estado mais distendido de atenccedilatildeo

agrave vida em que nossa consciecircncia encontra-se indiferente agrave loacutegica embora natildeo seja incapaz

dela ndash e por vezes diz Bergson (2001 p 890-891100-101) ela nos prega peccedilas buscando

uma continuidade entre imagens disparatadas fazendo-nos natildeo raro tocar o absurdo Essa

indiferenccedila relativa assinala em relaccedilatildeo agrave vida e agrave vigiacutelia um relaxamento e uma distraccedilatildeo

pragmaacutetica em geral sonhamos natildeo vivemos entatildeo eacute da potecircncia especiacutefica do virtual

que a consciecircncia se deixa penetrar quando os mecanismos de inibiccedilatildeo da memoacuteria pura

encontram-se relativamente suspensos ndash porque com efeito natildeo satildeo jamais abolidos Uma

matildee pode dormir pesadamente ao lado de seu filho a ponto de natildeo ser acordada pelo som

de um trovatildeo mas o menor suspiro do bebecirc pode despertaacute-la ldquoNous ne dormons pas pour

ce qui continue agrave nous inteacuteresserrdquo (BERGSON 2001 p 893103) Eis a bela imagem que

Bergson convoca a fim de ilustrar a coalescecircncia entre o eu dos sonhos que se desinteressa

e adormece e o da vigiacutelia que precisa adormecer para continuar interessado Caso natildeo

adormecesse jamais se cansaria afinal estar a todo momento atento agrave vida e sobretudo

ldquoAvoir du bon sens est tregraves fatigantrdquo (Idem ibidem p 892103)

111

ldquo[] agrave lrsquoeacutetat de la veille la connaissance que nous prenons drsquoun objet implique une opeacuteration analogue agrave

celle qui srsquoaccompli en recircverdquo (BERGSON 2001 p 88999)

145

A partir desse breve desvio compreendemos o sentido do salto bergsoniano

compreendemos tambeacutem em profundidade o que Bergson quer dizer quando afirma que

ldquo[] nous nrsquoatteindrons jamais le passeacute si nous nrsquoy placcedilons pas drsquoembleacuteerdquo Indicando uma

diferenccedila pragmaacutetica isso significa que a fim de precisar o trabalho ativo da lembranccedila

deve-se dirigir um esforccedilo ou uma atitude que nos destaque do presente para colocarmo-

nos de imediato no passado em geral depois em certa regiatildeo dele Saltamos no virtual no

passado na memoacuteria em decorrecircncia de adotarmos uma atitude apropriada antes de as

lembranccedilas distraiacuterem-nos para a vida eacute mantendo-nos algo distraiacutedos para a vida que

recuperamos as lembranccedilas fazendo-as participar de um quadro em que o presente as

exige em que o atual as colore e as faz viver

Toda a criacutetica do bergsonismo ao associacionismo reside no fato de este ter

considerado essa dinacircmica de atualizaccedilatildeo que corresponde agrave proacutepria continuidade do

devir como uma multiplicidade descontiacutenua de elementos inertes e justapostos

confundindo percepccedilatildeo e lembranccedila em um misto mal analisado Bergson de seu turno

quer seguir as linhas de realidade da experiecircncia concreta sem destituir dela a duraccedilatildeo que

ela ocupa Eacute nesse sentido que a aplicaccedilatildeo das conclusotildees do Essai ndash especialmente

aquelas que o levavam a diferenciar multiplicidades quantitativas e qualitativas ndash autoriza a

rejeitar o argumento associacionista que confunde a diferenccedila de natureza entre percepccedilatildeo

e lembranccedila com uma simples diferenccedila de grau O significado proacuteprio dessa diferenccedila de

natureza eacute a distinccedilatildeo entre presente e passado corresponde se a levarmos agraves uacuteltimas

consequecircncias agraves duas metades da mesma ontologia de que nos ocupamos o atual e o

virtual Por essa razatildeo eacute ela que serve de ingresso para demonstrar a realidade da memoacuteria

o virtual como um modo do ser e assim evitar o mau haacutebito intelectual de confundir ser e

ser presente ndash o que nos leva a reduzir o real a uma de suas metades

Como definir o presente senatildeo em funccedilatildeo de um corpo-imagem Como defini-lo

senatildeo em relaccedilatildeo agrave vida ao esforccedilo pragmaacutetico por perseverar entre as imagens Se entre o

presente e o passado natildeo haacute uma diferenccedila apenas de grau mas de natureza eacute nisso

precisamente que a diferenccedila se resolve ndash como a diferenccedila entre memoacuteria do corpo e

memoacuteria pura da duraccedilatildeo resolvia-se na distinccedilatildeo entre o repetiacutevel por mecanismos

sensoacuterio-motores e o registro infinitesimal de acontecimentos irrepetiacuteveis Em siacutentese a

diferenccedila de natureza entre presente e passado se expressa no fato de que ldquoMon preacutesent est

ce qui mrsquointeacuteresse ce qui vit pour moi et pour tout dire ce qui me provoque agrave lrsquoaction au

lieu que mon passeacute est essentiellement impuissantrdquo (BERGSON 2001 p 280) Acabamos

146

de definir o sentido desses termos segundo diferentes planos de consciecircncia na obra de

Bergson ndash e um dos sentidos sumamente importantes encontra-se implicado na

perspectivaccedilatildeo do virtual pela atenccedilatildeo agrave vida O que Bergson requer nesse ponto da

argumentaccedilatildeo eacute algo bem mais simples eacute que perspectivemos o virtual segundo o ponto de

vista em que ele aparece concretamente a uma consciecircncia atenta agrave vida112

Se na intenccedilatildeo de esclarecer o sentido e a realidade da lembranccedila pura deixarmo-

nos ficar por um instante nessa perspectiva o momento presente surge como o decorrer do

tempo ao contraacuterio ao tempo decorrido chamaremos passado e precisariacuteamos o instante

presente como o momento em que ele decorre Eis aqui uma ilusatildeo uma intromissatildeo do

espaccedilo jaacute estamos a nos representar o presente como um instantacircneo ideal quando

sabemos suficientemente bem que concretamente ele ocupa uma duraccedilatildeo Essa duraccedilatildeo

estende-se nos dois sentidos em direccedilatildeo ao passado do qual ela proveacutem e em direccedilatildeo ao

futuro ao qual ela tende Podemos entatildeo do ponto de vista de um presente psicoloacutegico

concreto dizer que ele se constitui na percepccedilatildeo de um passado imediato e de uma

determinaccedilatildeo do futuro imediato formando um todo indiviso (BERGSON 2001 p

280153) Ora o menor intervalo de tempo que acaba de passar prolonga-se no presente em

uma sensaccedilatildeo o menor intervalo de tempo no qual meu presente se precipita desenha jaacute

os movimentos que comporatildeo minha accedilatildeo mais imediata Por isso Bergson pode afirmar

que todo presente psicoloacutegico eacute sensoacuterio-motor ndash misto indecomponiacutevel de direito do

prolongamento da uacuteltima sensaccedilatildeo e do proacuteximo devir em movimentos e accedilotildees Ou seja

ldquo[] mon preacutesent consiste dans la conscience que jrsquoai de mon corpsrdquo (BERGSON 2001 p

281153) pensado sub specie durationis ele natildeo designa mais do que um estado atual um

corte artificial de meu devir daquilo que estaacute em vias de formaccedilatildeo Essa continuidade de

devir designa a proacutepria realidade do tempo na qual a mateacuteria tambeacutem deve ter lugar como

repeticcedilatildeo incessante do atual113

As sensaccedilotildees atuais manifestam-se na superfiacutecie do corpo ocupando extensatildeo

localizadas elas satildeo fontes de movimentos e compotildeem um certo estado da materialidade

112

Eis como segue a argumentaccedilatildeo reforccedilando que a ideia de impotecircncia da memoacuteria pura eacute decalcada

forccedilosamente de um ponto de vista atual sobre o virtual ldquoOn chercherait vainement en effet agrave caracteacuteriser le

souvenir drsquoun eacutetat passeacute si lrsquoon ne commenccedilait par deacutefinir la marque concregravete accepteacutee par la conscience de

la reacutealiteacute presenterdquo (BERGSON 2001 p 280152) Ora o que Bergson define aqui como ldquoa marca concreta

da realidade presente aceita pela consciecircnciardquo constitui o iacutendice da perspectivaccedilatildeo do virtual pelo atual que

permite definir ndash do ponto de vista do atual de uma consciecircncia pragmaacutetica atenta agrave vida ndash as lembranccedilas

puras como impotentes inagentes inuacuteteis Como demonstramos do ponto de vista do ldquoeu dos sonhosrdquo

desinteressado da vida seria um contrassenso dizecirc-lo 113

ldquoLa matiegravere en tant qursquoeacutetendue dans lrsquoespace devant se deacutefinir selon nous un preacutesente qui recommance

sans cesse inversement notre preacutesent est la mateacuterialiteacute mecircme de notre existence crsquoest-agrave-dire un ensemble de

sensations et de mouvements rien drsquoautre choserdquo (BERGSON 2001 p 281154)

147

do corpo que tambeacutem estaacute em devir como a variaccedilatildeo das sensaccedilotildees demonstrariam sem

dificuldade De seu turno a lembranccedila pura apresenta caracteriacutesticas completamente

diversas inextensa natildeo ocupa a superfiacutecie do corpo em ponto algum embora possa

produzir sensaccedilotildees ao atualizar-se deixando de ser lembranccedila pura de acordo com sua

utilidade para a vida Impotente ela natildeo se conservaria no corpo mas sobreviveria em si

mesma em ldquoestado latenterdquo ndash outra maneira de definir a espera e a espreita do virtual

A lembranccedila espera e espreita durante todo o tempo em que natildeo eacute uacutetil e

permanecemos interessados ou em que age livremente porque precisamos descansar e

geralmente sem abolir os mecanismos de atenccedilatildeo agrave vida adotamos a atitude de nos

desinteressarmos e adormecer Dessa forma do ponto de vista da consciecircncia pertence agrave

memoacuteria o signo de uma impotecircncia radical No domiacutenio psicoloacutegico da consciecircncia ndash que

eacute a marca do presente do atualmente vivido do que age ndash o real resolve-se no atual o

virtual inibido e inuacutetil cai em um estado de inconsciecircncia o que eacute dizer impotecircncia Para

uma consciecircncia obcecada pela vida o que cai em um estado inconsciente pareceria cair

muito naturalmente na inexistecircncia Fora dessa consciecircncia poreacutem assumindo o ponto de

vista daquilo que permanece inibido porque inuacutetil e inconsciente porque virtual nada do

que existe precisa ser atual perspectiva do sonhador ou do distraiacutedo

Tocamos finalmente o conceito de real em Bergson Determinar quais as

condiccedilotildees para afirmar algo como real ou existente constitui boa parte da soluccedilatildeo do

problema da realidade do virtual agrave qual os comentadores geralmente datildeo muito pouca

atenccedilatildeo Em Matiegravere et Meacutemoire as componentes do conceito de realidade ontoloacutegica jaacute

aparecem um deles subentendido na existecircncia de um registro duracional espontacircneo ou

perfeito dos acontecimento de nossa vida outro mais explicitamente no campo das

imagens Resumamos tudo em uma palavra para Bergson no campo da experiecircncia o ser

se define pela potecircncia de ser experimentado Para afirmaacute-lo eacute preciso contudo algumas

cautelas ldquoSer experimentadordquo natildeo deve ser interpretado aqui nos estreitos limites de uma

experiecircncia pessoal e psicoloacutegica mas mais amplamente no campo transcendental que

define em Bergson as condiccedilotildees da experiecircncia concreta bem como do surgimento do

corpo orgacircnico de diferentes planos de consciecircncia aiacute incluiacutedo o niacutevel psicoloacutegico Nele a

realidade de uma imagem se constitui pelo potencial de agir e ser agido como uma

lembranccedila pura de seu ponto de vista virtual define-se como real segundo o mesmo

criteacuterio Ao mesmo tempo supotildee integrar-se ao campo constituindo uma espeacutecie de seacuterie

148

(BERGSON 2001 p 288163) Detenhamo-nos por um momento na anaacutelise desses

pontos

Isolemos o campo transcendental com as imagens que o compotildeem e nos

perguntemos o que basta para definir sua realidade Do ponto de vista orgacircnico e impessoal

do corpo-imagem o que a define natildeo eacute o fato de ser percebida ndash sabemos que um corpo-

imagem natildeo eacute capaz de perceber a totalidade das imagens atualmente dadas ndash mas o poder

ser percebido em resumo um potencial de percepccedilatildeo Basta lembrarmos o que define a

percepccedilatildeo pura deixando por ora de lado sua imagem virtual coalescente que

concretamente vem aiacute misturar-se trata-se precisamente do acompanhamento de

superfiacutecie dos movimentos nascentes dos potenciais de accedilatildeo de um corpo definidos pela

distacircncia entre corpo-imagem e as imagens que o circundam em funccedilatildeo de cuja variaccedilatildeo

diferenciam-se tambeacutem as promessas e ameaccedilas que essas imagens envolvem114

Enfim

essa variaccedilatildeo define os potenciais de accedilatildeo reciacuteprocos entre corpo-imagem e o restante do

universo de imagens Se ser eacute poder ser percebido ldquoserrdquo se define pelo potencial de accedilatildeo ndash

entendido como potencial de agir e de ser agido ndash com relaccedilatildeo a um corpo-imagem que se

banha em um universo de imagens Esse universo de imagens corresponde natildeo apenas a

uma seacuterie mas tambeacutem agraves linhas esquemaacuteticas da analogia que Bergson propotildee para

definir a sobrevivecircncia da memoacuteria em relaccedilatildeo agrave da mateacuteria A memoacuteria deve sobreviver

integralmente quando natildeo a percebemos distintamente da mesma forma como o universo

atual de imagens natildeo eacute abolido quando ndash reevoquemos a primeira metaacutefora com a qual

Bergson deseja que experimentemos o campo transcendental ndash fechamos nossos sentidos

para ele e deixamos de percebecirc-lo115

Quer se trate de imagens atuais quer de imagens

virtuais estas natildeo satildeo abolidas apenas porque deixamos de percebecirc-las porque fechamos

114

Eacute significativo que Bergson (2001 p 286160) afirme que ldquoles objets situeacutes autour de nous repreacutesentent agrave

des degreacutees differeacutents une action que nous pouvons accomplir sur les choses ou que nous devrons subir

drsquoellesrdquo esse excerto textualmente tatildeo distante encontra-se em paralelo com a primeira descriccedilatildeo das

imagens materiais no campo transcendental que ainda natildeo supotildeem uma vida ldquoToutes ces images agissent et

reacuteagissent les unes sur les autres dans toutes leurs parties eleacutementaires selons des lois constantes []rdquo

(BERGSON 2001 p 16911) 115

A bela imagem analoacutegica bergsoniana para aproximar os estados de inconsciecircncia da mateacuteria e da

memoacuteria eacute a seguinte ldquoTout le monde admet en effet que les images actuellement preacutesentes agrave notre

perception ne sont pas le tout de la matiegravere Mais drsquoautre part que peut-ecirctre un objet mateacuteriel non perccedilu une

image non imagineacutee sinon une espegravece drsquoeacutetat mental inconscient Au delagrave de murs de votre chambre que

vous percevez en ce moment il y a des chambres voisines puis le reste de la maison enfin la rue et la ville

ougrave vous demeurez Peu importe la theacuteorie de la matiegravere agrave laquelle vous vous ralliez reacutealiste ou ideacutealiste

vous pensez eacutevidemment quand vous parler de la ville de la rue des autres chambres de la maison agrave autant

de perceptions absentes de votre conscience et pourtant donneacutees en dehors drsquoelle Elles ne se creacuteent pas agrave

meacutesure que votre conscience les accueillent elles eacutetaient donc deacutejagrave en quelque maniegravere et puisque par

hypothegravese votre conscience ne les appreacutehendait pas comment pouvaitent-elles exister en soi sinon agrave lrsquoeacutetat

inconscient Drsquoougrave vient alors qursquoune existence en dehors de la conscience nous paraicirct claire quand il srsquoagit

des objets obscure quand nous parlons du sujet rdquo (BERGSON 2001 p 284158)

149

nossos sentidos para elas Quando adormecemos profundamente natildeo abolimos o mundo

real quando vivemos natildeo abolimos as imagens de sonho Daiacute porque a analogia que

Bergson propotildee entre lembranccedilas inconscientes e regiotildees natildeo percebidas da mateacuteria natildeo eacute

apenas um artifiacutecio retoacuterico Ela se sustenta ontologicamente sobre um criteacuterio de real que

exige que a percepccedilatildeo seja tomada em um sentido muito preciso Dados no campo

transcendental um corpo-imagem participa de uma seacuterie apresenta uma conexatildeo loacutegica ou

causal com aquilo que o precede e o segue ao passo em que eacute dado no interior do proacuteprio

campo por isso insistiacuteamos em dizer que se trata de um ldquocorpo-imagem banhado de

imagensrdquo Sua existecircncia soacute pode ser definida por um potencial de accedilatildeo na medida em que

se exerce em funccedilatildeo de uma seacuterie da qual participa

Eacute possiacutevel objetar que a definiccedilatildeo de Bergson eacute demasiadamente fenomenoloacutegica

dizer que ldquoser eacute poder ser percebidordquo implicaria pressupor junto ao ser uma consciecircncia (ao

menos potencial) predisposta a percebecirc-lo em potecircncia No entanto Bergson dispensa

radicalmente o estratagema da subjetividade transcendental (PRADO JUacuteNIOR 1989 p

145) Por essa razatildeo afirmamos de um lado que o conceito de real em Bergson deveria

ser definido segundo um potencial de accedilatildeo que implica poder agir e ser agido e natildeo

simplesmente como ldquopercepccedilatildeordquo que eacute um termo que nos habituamos a psicologizar Eacute

importante observar que na mesma medida em que tendemos a psicologizar o termo

ldquopercepccedilatildeordquo admitimos sem dificuldade que a proacutepria mateacuteria inorganizada comporte

potenciais de accedilatildeo e em certo niacutevel interaja em seacuteries heterogecircneas sem por isso nos

representarmos que aiacute opera uma consciecircncia de tipo psicoloacutegico Ao mesmo tempo

advertimos que adotariacuteamos momentaneamente o ponto de vista do corpo-imagem um

ponto de vista orgacircnico que comporta certo niacutevel de consciecircncia embora natildeo forccedilosamente

psicoloacutegico ou antropoloacutegico

Para desfazer de uma vez por todas os possiacuteveis enganos conduzamos esse criteacuterio

de realidade ao seu limite suponhamos um campo transcendental povoado de elementos

inorgacircnicos de imagens que natildeo se experimentam por dentro um mundo feito apenas de

mateacuteria Se aiacute podemos enxergar a constituiccedilatildeo de uma seacuterie de imagens como assegurar

sua realidade sem uma consciecircncia que abra e feche seus sentidos no horizonte das

imagens dadas no campo transcendental Ora suprimamos toda consciecircncia com isso

perdemos os centros de indeterminaccedilatildeo que agem entre as imagens mas natildeo as imagens

mesmas Inconscientes as imagens natildeo cessaratildeo de agir e reagir umas sobre as outras sem

introduzir no mundo nada de novo segundo as leis constantes da natureza Ainda assim

elas existiratildeo pois se definem por potenciais de accedilatildeo e reaccedilatildeo determinados por meio dos

150

quais interagem mecanicamente Accedilotildees e reaccedilotildees natildeo cessaratildeo de variar mas de modo

determinado e constante Os organismos e as consciecircncias satildeo dispensaacuteveis e no limite

natildeo podem fundar uma ontologia da imanecircncia como a de Bergson justamente pela forccedila

de seu criteacuterio de real Potenciais de accedilatildeo accedilatildeo e reaccedilatildeo efetivas ndash pouco importa se

determinados ou natildeo ndash satildeo o quanto basta para definir algo como existente do ponto de

vista da mateacuteria inorganizada116

Para existir basta o inconsciente compreendido natildeo como

uma regiatildeo psicoloacutegica agrave moda freudiana mas como o extraconsciente como ldquoexistence

en dehors de la consciencerdquo (BERGSON 2001 p 284158) ao longo de todo o

bergsonismo eacute uma existecircncia fora da consciecircncia que define o real O real eacute o que pode

existir em estado consciente (ser percebido ser agido efetivamente) ou em estado

inconsciente (poder ser percebido poder ser agido virtualmente) Foi para atingir esse mais

alto grau de coerecircncia que definiacuteamos o sentido da impotecircncia da memoacuteria como originada

da perspectiva do que eacute agido e atual assim resguardaacutevamos da perspectiva do virtual os

potenciais de ser percebido e ser agido que permanecem em estado inconsciente

Um excerto de Dureacutee et Simultanacuteeacuteiteacute de 1922 dedica-se agrave questatildeo da realidade e

devemos verificar nossa hipoacutetese tambeacutem aqui Ele oferece ainda o mesmo criteacuterio de real

mas o desenvolve em um contexto de todo diferente consistente em determinar

criticamente a natureza do tempo em relaccedilatildeo agrave Teoria da Relatividade de Einstein A

grande preocupaccedilatildeo de Bergson nesse aspecto seria a de distinguir os elementos reais e

convencionais com os quais a fiacutesica definia o tempo Isso o conduz a questionar o que se

entende por ldquorealidaderdquo compreendida como realidade ldquoem geralrdquo e nessa medida

converge com nossa anaacutelise Apoacutes observar a inexistecircncia de consenso filosoacutefico sobre o

tema117

Bergson anuncia que continuaraacute a seguir sua uacutenica regra metodoloacutegica para aquele

ensaio ldquoa de natildeo afirmar nada que natildeo possa ser aceito por qualquer filoacutesofo qualquer

cientistardquo sobre a realidade especiacutefica do tempo

Como nos representamos comumente o tempo Certamente natildeo sem um antes e

um depois isto eacute fora de uma seacuterie contiacutenua sem uma sucessatildeo em funccedilatildeo da qual o

tempo se define para noacutes Toda a argumentaccedilatildeo de Bergson envolve-se pela demonstraccedilatildeo

116

ldquo[] les choses une fois constitueacutees manifestent agrave la surface par leurs changements de situations les

modifications profondes qui srsquoaccomplissent au sein du Tout Nous disons alors qursquoelles agissent les unes sur

les autres Cette action nous apparaicirct sans doute sous forme de mouvementrdquo (BERGSON 2001 p 750-

751302) Do modo como Bergson se expressa em LrsquoEacutevolution Creacuteatrice percebe-se que o potencial de accedilatildeo

(agir e ser agido) o que jaacute implica supocirc-lo integrado a uma seacuterie eacute suficiente para assegurar movimento e de

consequecircncia existecircncia no tempo na duraccedilatildeo 117

ldquo[] o problema recebeu tantas soluccedilotildees quantas satildeo as nuanccedilas que o realismo e o idealismo comportamrdquo

(BERGSON 2006 p 76)

151

de que onde natildeo haacute memoacuteria natildeo poderia haver sucessatildeo e por extensatildeo loacutegica tempo118

Nesse caso ou haacute antes ou depois jamais a conjugaccedilatildeo de ambos que eacute imprescindiacutevel

para haver tempo Diante disso Bergson pode definir de uma vez por todas seu criteacuterio de

real em relaccedilatildeo ao tempo ldquo[] quando quisermos saber se estamos lidando com o tempo

real ou com um tempo fictiacutecio teremos simplesmente de nos perguntar se o objeto que nos

apresentam poderia ou natildeo ser percebido tornar-se conscienterdquo (BERGSON 2006 p 77)

As duas uacuteltimas oraccedilotildees parecem revelar uma inadequaccedilatildeo em nosso conceito de

real afinal haacute pouco diziacuteamos que ele natildeo se define por uma consciecircncia No entanto isto

ocorre apenas em aparecircncia Em primeiro lugar observe-se que Bergson retorna a seu

criteacuterio de real expressando-o em termos equivalentes aos da definiccedilatildeo de 1896 ldquoser eacute

poder ser percebidordquo Nada precisamos aprofundar sobre o sentido de percepccedilatildeo

continuam a valer aqui as razotildees retrospectivas

Em segundo lugar a expressatildeo ldquo[] tornar-se conscienterdquo eacute a que parece opor

embaraccedilos ndash mas eles satildeo meramente fictiacutecios e decorrem do haacutebito intelectual de supor

que sempre que se diz ldquoconsciecircnciardquo estaacute-se a dizer ldquoconsciecircncia psicoloacutegicardquo ou

ldquoconsciecircncia humanardquo Veremos que por traacutes dessa leitura natildeo encontraremos nada aleacutem

de um preconceito antropoloacutegico Comecemos observando nesse proacuteprio excerto a que

outro conceito Bergson compara esse elemento de consciecircncia Apoacutes definir o tempo como

o senso comum o define ndash como sucessatildeo seacuterie que encadeia antes e depois ndash Bergson

(2006 p 77) acrescenta que seria impossiacutevel supor sucessatildeo ldquo[] ali onde natildeo haacute alguma

memoacuteria alguma consciecircncia real ou virtual []rdquo Ou seja nesse trecho o sentido de

consciecircncia afasta-se do preconceito antropoloacutegico para ser compreendida antes como

ldquoalguma memoacuteriardquo ldquoreal ou virtualrdquo A consciecircncia aqui equivale agrave memoacuteria elementar

impessoal natildeo-psicoloacutegica e ontoloacutegica que a duraccedilatildeo real supotildee na retenccedilatildeo e penetraccedilatildeo

de instantes que opera Afinal ela soacute pode consistir em sucessatildeo multiplicidade

qualitativa heterogecircnea e de penetraccedilatildeo se ldquoalguma memoacuteriardquo age para fundir essa

multiplicidade em um contiacutenuo

Em terceiro lugar se retornarmos a uma das regiotildees mais importantes da

argumentaccedilatildeo metafiacutesica de Bergson em Dureacutee et Simultaneacuteiteacute sobre o tempo nos

depararemos com um aprofundamento dessa ideia de consciecircncia que seraacute uacutetil para dirimir

qualquer duacutevida sobre o sentido em que ela eacute empregada para definir o criteacuterio de

realidade ldquoO que queremos estabelecerrdquo diz Bergson ldquoeacute que natildeo se pode falar de uma

118

De nossa parte essa demonstraccedilatildeo seraacute detalhada na proacutexima seccedilatildeo ldquoO ser do passado como fundamento

do tempo memoacuteria repeticcedilatildeo devirrdquo

152

realidade que dura sem introduzir nela uma consciecircnciardquo ldquo[] eacute impossiacutevel imaginar ou

conceber um traccedilo-de-uniatildeo entre o antes e o depois sem um elemento de memoacuteria e por

conseguinte de consciecircnciardquo e no iniacutecio do paraacutegrafo subsequente ldquoTalvez o emprego

dessa palavra repugne se associarem a ela um sentido antropomoacuterfico Mas para conceber

uma coisa que dura natildeo eacute de modo algum necessaacuterio pegar a memoacuteria que nos eacute proacutepria e

transportaacute-la mesmo atenuada para o interior da coisardquo (BERGSON 2006 p 56)119

Em

resumo com consciecircncia ou com memoacuteria Bergson quer dizer continuidade da duraccedilatildeo

interpenetraccedilatildeo e fusatildeo de elementos de uma seacuterie natildeo consciecircncia humana120

O que o conceito de real e seu criteacuterio de verificaccedilatildeo assim discutidos datildeo a ver eacute

uma espeacutecie de grito que atravessa o bergsonismo ldquoNatildeo antropologize demais a memoacuteria

nem a consciecircnciardquo Eis um dos significados profundos que impedem que se coloque

Bergson no rol dos psicoacutelogos Tampouco o campo transcendental deve equivaler a uma

consciecircncia transcendental uma vez que ldquoa consciecircncia filosoacutefica soacute surge no interior de

um campo que a precede e natildeo pode ser isolada de suas raiacutezes preacute-filosoacuteficasrdquo (PRADO

JUacuteNIOR 1989 p 205) Ele eacute a regiatildeo do ser em que se constituem seacuteries extensas e

inextensas ou duracionais

Esse longo desvio nos permite retomar definitivamente a demonstraccedilatildeo do modo de

conservaccedilatildeo em si mesmo das lembranccedilas puras no exato ponto em que o abandonamos

para investigar o conceito bergsoniano de real Enriquecidos pela ideia de que o ser ou o

real para Bergson devem definir-se como potencial de accedilatildeo ndash compreendido como poder

de agir e ser agido que supotildee sua participaccedilatildeo em uma seacuterie ndash remontamos do campo

transcendental em direccedilatildeo agrave consciecircncia implicada no organismo atento para a vida

Adotamos uma vez mais seu ponto de vista em relaccedilatildeo ao qual a lembranccedila pura mostra

apenas uma face de impotecircncia e inconsciecircncia ndash nesse ponto jaacute podemos afirmar que a

primeira eacute o signo do virtual a segunda o signo do real como existecircncia fora da

consciecircncia Agrave lembranccedila pura pertencem a espera e a espreita na medida em que o

presente eacute ldquoo que vive para mimrdquo De seu turno ldquo[] le passeacute nrsquoa plus drsquointerecirct pour nousrdquo

(BERGSON 2001 p 285159) e eacute desse ponto de vista impotente porque inconsciente

Inclinando-se incessantemente em direccedilatildeo ao futuro o presente condiz com a distacircncia

relativa em que podemos agir ou sofrer a accedilatildeo das imagens agrave nossa volta e assim se

119

A referecircncia corresponde a todos os trechos citados 120

Deleuze (1966 p 45) converge com essa interpretaccedilatildeo ao afirmar ldquoLa dureacutee est essentiellement meacutemoire

conscience liberteacute Et elle est conscience et liberteacute parce qursquoelle est drsquoabord meacutemoirerdquo

153

desenha no espaccedilo o esquema de nosso futuro imediato Coexistente com esse ldquoinstanterdquo

que define o de uma percepccedilatildeo atual ndash que emprestando uma inspirada expressatildeo

poderiacuteamos compreender como ldquoo miacutenimo de tempo contiacutenuo pensaacutevelrdquo (DELEUZE

1996 p 184) ndash decorre a duraccedilatildeo em que essa percepccedilatildeo sucede

Essa coextensatildeo nos parece misteriosa ndash como nos parece misteriosa a realidade do

passado em si mesmo ndash em face de determinaccedilotildees bioloacutegicas especiacuteficas ldquoLe mecircme

instinct en vertu duquel nous ouvrons indeacutefiniment devant nous lrsquoespace fait que nous

refermons derriegravere nous le temps agrave meacutesure qursquoil srsquoeacutecoulerdquo (BERGSON 2001 p 286160-

161) Assim somos levados a aceitar de bom grado que o universo material ultrapasse

nossa percepccedilatildeo presente mas tambeacutem confundimos no que diz respeito ao escoar do

tempo ser e ser presente De seu turno Bergson insiste sem cessar na analogia do estatuto

virtual do inconsciente suposto por regiotildees natildeo percebidas da mateacuteria e o das lembranccedilas

puras121

No entanto se as lembranccedilas saiacutedas do fundo da memoacuteria podem parecer encerrar

algo fantasmaacutetico e irreal isso natildeo se deve senatildeo agrave accedilatildeo inibidora e organizadora da accedilatildeo

imediatamente futura de uma consciecircncia atenta agrave vida ndash funccedilatildeo de um recalque vital

Da mesma forma que os objetos dispostos no espaccedilo parecem formar uma seacuterie na

extensatildeo as lembranccedilas puras no ponto mais distendido de uma consciecircncia apresentar-

se-iam tambeacutem como uma seacuterie contiacutenua Assim podendo ser percebidas e participando de

uma seacuterie temporal preenchem-se as condiccedilotildees para a existecircncia ndash no campo da

experiecircncia ndash das lembranccedilas afinal a impotecircncia atribuiacuteda agraves lembranccedilas por uma

atenccedilatildeo agrave vida que natildeo cessa de vigiaacute-las e inibi-las natildeo determina outra coisa senatildeo a

pressatildeo que exercem do fundo da memoacuteria feita de espera e espreita sua impotecircncia atual

assinala do ponto de vista do virtual um potencial de agirem e serem agidas um potencial

de atualizaccedilatildeo sua participaccedilatildeo em uma continuidade temporal virtual assegura sua

potencial participaccedilatildeo em outra seacuterie de efetuaccedilatildeo projetando-se no espaccedilo Por essa

razatildeo tudo o que compotildee a memoacuteria pura define-se como real mas virtual porque

inconsciente ndash exatamente como as regiotildees da mateacuteria natildeo percebidas por um corpo-

imagem promessas ou ameaccedilas fora da consciecircncia e no entanto plenamente reais O

potencial do virtual eacute o mesmo de um golpe desferido pelas costas e no escuro ndash ele toca a

121

ldquoEn reacutealiteacute lrsquoadheacuterence de ce souvenir agrave notre eacutetat preacutesent est tout agrave fait comparable agrave celle des objets

inaperccedilus aux objets que nous percevons et lrsquoinconscient joue dans les deux cas un rocircle du mecircme genrerdquo

(BERGSON 2001 p 286-287161) ou entatildeo ao afirmar ldquoNous nrsquoavons pas affaire en ce qui concerne les

objets inaperccedilus dans lrsquoespace et les souvenirs inconscients dans le temps agrave deux formes radicalment

diffeacuterentes de lrsquoexistence mais les exigences de lrsquoaction sont inverses []rdquo (BERGSON 2001 p 288162-

163)

154

sombra do irrepresentaacutevel que com efeito soacute o eacute do ponto de vista dos recortes imoacuteveis

que o atual produz no devir

Se pudemos nos convencer de que a memoacuteria se conserva o problema que se

insinua agrave anaacutelise eacute a determinaccedilatildeo do ldquolugarrdquo em que ela se conserva e se essa questatildeo se

insinua diz Bergson isso se deve inteiramente agrave nossa obsessatildeo pelas imagens obtidas no

espaccedilo Jaacute conhecemos os motivos ndash e tambeacutem alguns gracejos ndash com os quais Bergson

rejeitava a hipoacutetese da conservaccedilatildeo cerebral ou a tese do paralelismo psicofiacutesico Ao

discorrer sobre o papel do ceacuterebro a seccedilatildeo precedente demonstrou abundantemente as

articulaccedilotildees conceituais que conduzem essas teses ao absurdo ou ao paradoxo Se o ceacuterebro

eacute como demonstramos uma parte do corpo bioloacutegico uma imagem material ele nunca

ocupa mais do que o momento presente Sendo sempre o estado estacionaacuterio de um devir

em vias de formaccedilatildeo de minhas sensaccedilotildees e de meus movimentos dos prolongamentos de

uns nos outros logo se torna desnecessaacuterio pensar a conservaccedilatildeo do passado em analogia a

clichecircs fotograacuteficos a serem armazenados em algum lugar Se Bergson (2001 p 290166)

afirma a sobrevivecircncia em si do passado eacute ultrapassando a suposiccedilatildeo do haacutebito intelectual

de pensar a conservaccedilatildeo como relaccedilatildeo espacial inaplicaacutevel agrave duraccedilatildeo entre um continente

que conserva e um conteuacutedo a ser conservado A conservaccedilatildeo eacute antes de mais nada

retenccedilatildeo ou registro na duraccedilatildeo ndash isto eacute memoacuteria

Contudo como o passado pode por hipoacutetese conservar-se em si mesmo se deixou

de ser A essa contradiccedilatildeo Bergson responde afirmando que ldquola question est preacuteciseacutement

de savoir si le passeacute a cesseacute drsquoexister ou srsquoil a simplement cesseacute drsquoecirctre utilerdquo (BERGSON

2001 p 291166) O que estaacute na raiz dessa contradiccedilatildeo aparente eacute a reduccedilatildeo do ser ao ser

presente ndash confusatildeo explicada ao nos representarmos o tempo de modo espacializado e ao

ignorarmos a realidade movente do devir122

Se o presente for apenas um limite ideal

moacutevel entre o passado e o futuro nada teraacute menos realidade que ele ao mesmo tempo em

que ele eacute jaacute se passou Se o presente por outro lado for o presente concreto ocupando

uma duraccedilatildeo tomando parte em uma continuidade ele teraacute muito de passado imediato por

meio do qual reconstruiacutemos a unidade e o sentido de uma percepccedilatildeo123

As razotildees de fundo

122

ldquoVous deacutefinissez arbitrairement le preacutesent ce qui est alors que le preacutesent est simplement ce qui si faitrdquo

(BERGSON 2001 p 291166) 123

Bergson explica por que percebemos praticamente soacute o passado por meio do ceacutelebre exemplo de uma

instantacircnea emissatildeo luminosa ldquoDans la fraction de seconde que dure la plus courte perception possible de

lumiegravere des trillions de vibrations ont pris place dont la premiegravere est seacutepareacutee de la derniegravere par un intervalle

eacutenormeacutement diviseacuterdquo (BERGSON 2001 p 291166-167) Dessa forma nossa mais instantacircnea percepccedilatildeo

consistiria em uma siacutentese mental de uma incalculaacutevel multidatildeo de elementos rememorados por isso

Bergson pode afirmar que a percepccedilatildeo pura eacute jaacute lembranccedila e que o presente puro natildeo passa do

inapreensiacutevel avanccedilar do passado a roer o futuro

155

satildeo psico-bioloacutegicas como tudo em nossa consciecircncia psiacutequica nos inclina agrave vida damos

primazia agravequilo que se desenrola atualmente natildeo agravequilo que jaacute se desenrolou eis o fruto de

nossa adaptaccedilatildeo ao presente mais proacutexima dos haacutebitos engendrados pela memoacuteria motora

que das lembranccedilas puras

No entanto entre a memoacuteria motora e a memoacuteria pura apenas esta uacuteltima seria a

verdadeira registrando em continuidade seacuteries de acontecimentos uacutenicos e irrepetiacuteveis no

dorso inextenso da duraccedilatildeo real Apesar de opostos haacutebito e memoacuteria pura agenciam-se na

experiecircncia concreta em que o corpo se determina como o lugar de passagem dos

movimentos recebidos e devolvidos mediaccedilatildeo para com as imagens que o cercam A

ceacutelebre imagem do cone invertido sobre um plano daacute-nos enfim a relaccedilatildeo coextensiva

entre elas O cone invertido designa a totalidade de nossas lembranccedilas acumuladas

distribuiacutedas em diferentes niacuteveis de consciecircncia ndash repeticcedilotildees mais distendidas na medida

em que nos aproximamos da base mais contraiacutedas ao passo em que nos deslocamos em

direccedilatildeo ao veacutertice Este designa o estado atual de nosso corpo e de seus mecanismos

sensoacuterio-motores que tocando o plano em determinado ponto representa seu recorte

perceptivo como o niacutevel mais contraiacutedo da base do cone e portanto da memoacuteria pura com

a qual toda percepccedilatildeo atual coexiste e na qual se duplica O equiliacutebrio entre as duas

memoacuterias definiria o senso praacutetico do homem de accedilatildeo enquanto a primazia do presente

designaria natildeo apenas as formas de vida inferior mas tambeacutem o homem impulsivo por sua

vez o que vive em meio aos milhares de imagem do passado caracteriza-se como o

sonhador que de seu turno natildeo estaacute melhor adaptado agrave vida O que a vida exige eacute que a

percepccedilatildeo seja pragmaacutetica isto eacute que ela seja capaz de responder a uma tendecircncia ou a

uma necessidade (BERGSON 2001 p 299176)

A uacuteltima questatildeo que nos resta abordar eacute como Bergson descreve a dinacircmica de

atualizaccedilatildeo de lembranccedilas especialmente como selecionar em uma multidatildeo de imagens

semelhantes agrave situaccedilatildeo presente aquela mais uacutetil para a accedilatildeo Essa questatildeo se torna

relevante na medida em que torna possiacutevel aprofundar a questatildeo da distribuiccedilatildeo das

lembranccedilas em diferentes niacuteveis de consciecircncia mais ou menos contraiacutedos Se retornarmos

ao diagrama do cone invertido Bergson (2001 p 305184) havia suposto que a totalidade

de nossas lembranccedilas ndash o que para ele equivale agrave nossa personalidade ndash coexiste indivisa e

contraiacuteda em relaccedilatildeo agrave nossa percepccedilatildeo presente Concentrada no ponto moacutevel que

descreve o estado atual de nosso corpo e seu recorte perceptivo com relaccedilatildeo ao plano da

representaccedilatildeo a consciecircncia teria de expandir-se na direccedilatildeo da base a fim de que

156

colocando-se no passado em algum niacutevel de consciecircncia dele pudesse encontrar aiacute uma

lembranccedila uacutetil

Esse movimento de contraccedilatildeo e de expansatildeo pelo qual a consciecircncia passa de um

niacutevel de consciecircncia a outro decorre das necessidades fundamentais da vida (BERGSON

2001 p 305185) Em cada um dos extremos ndash veacutertice da percepccedilatildeo informada pelos

haacutebitos motores ou base da memoacuteria pura ndash natildeo eacute possiacutevel encontrar isoladamente

nenhuma razatildeo para fixar a atenccedilatildeo em uma parte determinada do passado afinal no

veacutertice todo haacutebito motor adaptado ao presente seria semelhante e contiacuteguo agrave percepccedilatildeo

enquanto na base toda lembranccedila pareceria radicalmente diversa e descolada da percepccedilatildeo

atual ndash mesmo porque colocados de iniacutecio na base nossa atenccedilatildeo agrave vida por demais

desinteressada jaacute natildeo seria capaz de determinar os efeitos de semelhanccedila e continuidade

(BERGSON 2001 p 306186)

Descritos esses dois limites extremos eacute necessaacuterio observar que concretamente eles

jamais satildeo atingidos ldquoNotre vie psychologique normale oscille [] entre ces deux

extremiteacutesrdquo (BERGSON 2001 p 307187) sem jamais entregar-se a um estado puramente

sensoacuterio-motor nem a um devaneio absolutamente desligado de uma vaga atividade atual

Com efeito o estado sensoacuterio-motor orienta a memoacuteria da qual eacute seu prolongamento ativo

por sua vez a memoacuteria pressiona no sentido desse prolongamento do qual ela constitui a

base a fim de inserir aiacute a maior quantidade de imagens possiacutevel Disso resulta uma seacuterie de

estados possiacuteveis da memoacuteria correspondentes a niacuteveis diferentes de contraccedilatildeo e distensatildeo

da consciecircncia Para representaacute-los mais facilmente basta imaginar que no diagrama do

cone insere-se entre a base e o veacutertice uma seacuterie de secccedilotildees virtuais paralelas agrave base

Cada uma delas apresenta um estado da memoacuteria mais ou menos contraiacutedo conforme

esteja mais proacuteximo da percepccedilatildeo ou da memoacuteria pura ao mesmo tempo cada um desses

niacuteveis implica a totalidade de nosso passado ndash a repeticcedilatildeo integral de nossa memoacuteria Em

cada um desses niacuteveis embora natildeo se trate de lembranccedilas justapostas umas agraves outras ldquohaacute

pontos brilhantesrdquo lembranccedilas dominantes que se multiplicam cada vez mais ao passo em

que se remonta em direccedilatildeo agrave base nela haacute apenas constelaccedilotildees claras e vastas

Poreacutem como a atualizaccedilatildeo e a seleccedilatildeo de um desses estados se operam Tudo se

passa com dois movimentos simultacircneos pelos quais nossa memoacuteria responde ao apelo do

presente Um de translaccedilatildeo pelo qual a memoacuteria vai ao encontro do estado presente em

vista da accedilatildeo outro de rotaccedilatildeo pelo qual orientando-se de acordo com a situaccedilatildeo em

questatildeo apresenta-lhe sua face mais uacutetil (BERGSON 2001 p 307-308188) A cada um

desses infinitos niacuteveis de contraccedilatildeo que reduzem mais ou menos a integral de nossa

157

memoacuteria em virtude do presente corresponde um sem nuacutemero de formas de associaccedilatildeo por

semelhanccedila e contiguidade Natildeo por acaso Bergson (2001 p 309189-190) observa que

ldquoDans le plan extrecircme qui repreacutesente la base de la meacutemoire il nrsquoy a pas de souvenir qui ne

soit lieacute par contiguumliteacute agrave la totaliteacute des eacuteveacutenements qui le preacutecegravedent et aussi de ceux que le

suiventrdquo

Eacute a continuidade da duraccedilatildeo em sua forma mais pura e distendida que encontramos

dessa maneira a memoacuteria elementar que natildeo cessa de formar seacuteries por contiguidade ndash o

que constitui como vimos um dos criteacuterios do real para Bergson Portanto eacute a ele que

devemos retornar a fim de desdobrar as consequecircncias efetivamente ontoloacutegicas desse

conceito de memoacuteria Apenas um tal desdobramento tornaraacute possiacutevel apreender o

significado de afirmar o ser do passado como fundamento do tempo

sect 3 O SER DO PASSADO COMO FUNDAMENTO DO TEMPO

MEMOacuteRIA REPETICcedilAtildeO E DEVIR

De um ponto de vista ontoloacutegico a consistecircncia virtual da memoacuteria define o ser do

passado Se como vimos a memoacuteria soacute pode conservar-se em si no proacuteprio tempo o

ceacutelebre esquema do cone de memoacuteria apresenta a coexistecircncia da totalidade de nosso

passado ndash inteiramente presente em cada um dos infinitos niacuteveis que separam a base do

cone de seu veacutertice presente ndash com o estado atual de nosso corpo sensoacuterio-motor

conferindo agrave percepccedilatildeo um horizonte de realidade temporal De acordo com esse horizonte

o presente mais imediato consistiria na integral de nosso passado em seu niacutevel mais

contraiacutedo ponto perceptivo sobre o plano da representaccedilatildeo As linhas gerais desse

esquema em que coexistem memoacuteria do corpo percepccedilatildeo presente e memoacuteria pura

distribuiacutedos em diversos niacuteveis de repeticcedilatildeo psiacutequica determinam a realidade proacutepria do

ser do passado e com ele a realidade da memoacuteria

Correlata a essa realidade eacute a necessidade de pocircr-se de iniacutecio no passado saltar

pragmaticamente do registro do atual ao virtual em que se conservam as lembranccedilas a fim

de enriquecer a percepccedilatildeo presente com uma lembranccedila uacutetil ndash selecionada em vista das

necessidades presentes no transcurso da accedilatildeo ndash no tempo de hesitaccedilatildeo entre a siacutentese de

registro dos movimentos que se prolongam em lembranccedilas e a do prolongamento das

sensaccedilotildees misturadas a lembranccedilas que deflagram a accedilatildeo de um corpo Esse tempo de

hesitaccedilatildeo ndash mais ou menos amplo ndash eacute o que define o grau de indeterminaccedilatildeo que se pode

158

inserir nas accedilotildees Tudo decorre da coexistecircncia da memoacuteria pura que se natildeo existe no

mesmo sentido do atual ndash definido pela atividade pelo puro devir em relaccedilatildeo ao qual eacute

levado a abrir-se ndash insiste ou simplesmente eacute (DELEUZE 1966 p 49-50) Ela eacute sem

agir eacute ser mas sem ser uacutetil Da perspectiva do atual a memoacuteria pura definia-se como

impotente e inconsciente da do virtual potecircncia fora da consciecircncia psicoloacutegica e sem

relaccedilatildeo (senatildeo virtual) com o atual ponto em que memoacuteria e imemorial parecem coincidir

A memoacuteria pura constitui o iacutendice de que a memoacuteria antes de ser psicoloacutegica eacute

ontoloacutegica sendo necessaacuterio precisar como Bergson a compreende Na medida em que

esse iacutendice que liga a realidade da lembranccedila agravequela de um fundo obscuro no qual jamais

conseguimos nos colocar por inteiro ndash e no entanto ele estaacute inteiramente presente em cada

um dos niacuteveis subsequentes a esse limite puro ndash seraacute possiacutevel reafirmar natildeo apenas sua

realidade mas que a memoacuteria constitui condiccedilatildeo para o presente passar Nesse sentido a

memoacuteria poderaacute ser compreendida como fundamento do tempo Do ponto de vista do

atual o tempo se define pela sucessatildeo real pelo escoamento do presente ao mesmo tempo

veremos que eacute soacute do ponto de vista da memoacuteria que se pode entrever no presente que

passa o puro devir A essa problemaacutetica vem juntar-se a seguinte questatildeo sob o ponto de

vista da coexistecircncia de duraccedilotildees muito diferentes da sua percepccedilatildeo simultacircnea haacute um soacute

tempo ou muitos Haacute uma soacute memoacuteria ou muitas Trata-se do enigma da pluralidade ou

da unicidade do tempo em Bergson na qual deve verificar-se ainda uma vez a questatildeo do

tempo real

A fim de responder a essas trecircs questotildees essenciais agrave determinaccedilatildeo do problema de

uma ontologia do virtual em Bergson vecircm cruzar-se com os capiacutetulos centrais de Matiegravere

et Meacutemoire as anaacutelises de Dureacutee et Simultaneacuteiteacute (1922) especialmente seu capiacutetulo

terceiro sobre a natureza do tempo o mais profundamente metafiacutesico de toda essa

polecircmica e no qual a realidade do tempo eacute colocada mais em termos ontoloacutegicos que

psicoloacutegicos ndash daiacute porque merecer nesse momento atenccedilatildeo analiacutetica

Assim como no Essai em Dureacutee et Simultaneacuteiteacute o tempo seraacute definido antes de

tudo em funccedilatildeo da continuidade de nossa vida interior No entanto a essa definiccedilatildeo segue-

se um raacutepido movimento que abstrai a consciecircncia individual e que consiste em questionar

o significado impessoal dessa continuidade definida por uma imanecircncia a si mesma ldquoO

que eacute essa continuidade A de um escoamento ou de uma passagem mas de um

escoamento e de uma passagem que se bastam a si mesmos uma vez que o escoamento

natildeo supotildee uma coisa que se escoa e a passagem natildeo pressupotildee estados pelos quais se passa

159

[]rdquo (BERGSON 2006 p 51) Enquanto experimentamos em profundidade a realidade

movente de uma transiccedilatildeo a inteligecircncia faz com que instantacircneos e estados recortados de

seu movimento absoluto nos obsedem O que eacute vivido natildeo satildeo os estados ou as coisas

mas as passagens natildeo os instantes artificialmente captados mas as transiccedilotildees que duram

entre esses instantes ndash apreensotildees inertes em relaccedilatildeo agraves quais podemos afirmar que algo se

passou alterou-se Portanto a realidade do tempo pode tocar a superfiacutecie das coisas mas

penetra apenas entre o que uma inteligecircncia arbitrariamente decreta serem dois de seus

estados

Prova disso eacute que Bergson define essa transiccedilatildeo naturalmente experimentada de

duas formas ldquoeacute a proacutepria duraccedilatildeordquo ldquoEla eacute memoacuteriardquo Se pudermos definir a memoacuteria

como fundamento do tempo toda a questatildeo estaacute em determinar que tipo de duraccedilatildeo ou

que tipo de memoacuteria permite definir a continuidade implicada em uma transiccedilatildeo que basta

a si mesma que natildeo depende dos estados em que se encarna e que altera que constitui a

proacutepria substacircncia incessantemente movente que longe de atravessar pelas coisas parece

ser algo pelo que as coisas atravessam

Eis aqui o gesto radicalmente ontoloacutegico de Bergson ao definir essa continuidade

que implica sucessatildeo atual e empurrando o passado no presente e este no puro devir faz o

presente passar ldquoEla eacute memoacuteria mas natildeo memoacuteria pessoal exterior agravequilo que ela reteacutem

distinta de um passado cuja conservaccedilatildeo ela garantiria eacute uma memoacuteria interior agrave proacutepria

mudanccedila memoacuteria que prolonga o antes no depois e os impede de serem puros

instantacircneos que aparecem e desaparecem num presente que renasceria incessantementerdquo

(BERGSON 2006 p 51) Essencialmente virtual a memoacuteria eacute apresentada com as

propriedades da proacutepria duraccedilatildeo isto eacute como ldquoqualidadeldquo como ldquoheterogeneidaderdquo como

ldquoo que difere de sirdquo (DELEUZE 2002 p 34) independente dos estados cuja realidade

movente depende dela ela se manteacutem ldquoexterior agravequilo que ela reteacutemrdquo ela eacute impessoal

pois parece dispensar uma consciecircncia psicoloacutegica para constituir uma pura ldquocontinuidade

do antes no depoisrdquo Memoacuteria pura sem imagem-lembranccedila virtual absoluto limite

inconsciente que no entanto age na realidade do tempo sem se confundir com os estados

atuais que soacute podem alterar-se no imenso corpo-mundo dessa memoacuteria que assegura a

sucessatildeo do presente

Contudo a sucessatildeo natildeo eacute senatildeo um ponto de vista do atual sobre uma

continuidade virtual que impotildee uma memoacuteria coexistente com o presente Do ponto de

vista de um atual que parece perseverar em si mesmo o que senatildeo a memoacuteria viria inserir

a diferenccedila na repeticcedilatildeo engendrar um tempo de sucessatildeo contiacutenua Por si o presente eacute

160

um instantacircneo atualmente impotente que nem se torna passado nem se abre ao devir Se

o presente natildeo adveacutem sem memoacuteria o presente e o devir encontram nela o seu

fundamento se por ldquofundamentordquo entendermos aqui a mediaccedilatildeo que torna possiacutevel o

porvir Se um presente pode bastar-se em sua realidade atual jamais constituiria por si

sem a memoacuteria um presente que passa jamais se inseriria em uma seacuterie temporal

contiacutenua Desse ponto de vista talvez muito abstrato e instantacircneo Bergson pode dizer que

nada tem menos realidade que esse presente Contudo se tomado a partir da experiecircncia

concreta ele ocupa uma duraccedilatildeo ele se insere em uma seacuterie que natildeo comeccedila nem termina

por ele mas que o integra ndash e o que significa integrar o presente em uma seacuterie temporal

senatildeo ligaacute-lo por uma espeacutecie de memoacuteria ao passado e ao porvir O que estaacute implicado aiacute

senatildeo duraccedilatildeo sucessatildeo real memoacuteria ndash que natildeo se confunde com a linha abstrata que a

inteligecircncia decalca dela

Para provaacute-lo natildeo eacute preciso uma consciecircncia humana por certo basta a memoacuteria

muito impessoal do corpo os haacutebitos motores os prolongamentos mnemocircnicos impessoais

mais imediatos dos movimentos percebidos Tudo parece muito atual quase instantacircneo

natildeo fosse o tempo de hesitaccedilatildeo miacutenima que o aparelho sensoacuterio-motor deixa passar entre

estiacutemulo e reaccedilatildeo poreacutem no menor tempo contiacutenuo de percepccedilatildeo-accedilatildeo de um organismo

o que manteacutem a continuidade de uma na outra eacute ainda uma espeacutecie de memoacuteria Isso eacute

suficiente para provar que natildeo eacute preciso uma memoacuteria humana de tipo psicoloacutegico para

engendrar o tempo ele se basta com essa memoacuteria impessoal que prolonga o antes e o

depois ndash e como vimos ela eacute facilmente divisaacutevel no vivo Poreacutem ainda que esse exemplo

seja suficiente natildeo levamos com ele o conceito de memoacuteria como fundamento do tempo

a seu limite proacuteprio as imagens materiais em seu campo transcendental haveraacute a mesma

espeacutecie de memoacuteria entre elas

A reposta eacute forccedilosamente positiva e nos permite ver que mesmo aqui o gesto

ontoloacutegico de uma memoacuteria que ldquoprolonga o antes no depoisrdquo que eacute a ldquomemoacuteria interna agrave

proacutepria mudanccedilardquo jaacute se encontra suposto pela proacutepria realidade do campo transcendental

Caso contraacuterio como as imagens agiriam e reagiriam umas sobre as outras O que ligaria

mesmo imediatamente accedilatildeo e reaccedilatildeo Como exerceriam de maneira determinada o

potencial de accedilatildeo que haacute pouco definia sua realidade Haacute ainda um miacutenimo de tempo

contiacutenuo no qual accedilatildeo-reaccedilatildeo por simultacircneas que sejam satildeo recolhidas uma na outra Isso

prova que a mateacuteria dura que mesmo a repeticcedilatildeo material mais pura e nua ndash aquela que

natildeo parece introduzir no mundo nada de novo ndash implica uma memoacuteria da variaccedilatildeo de

potenciais nesse sentido muito elementar continuidade do antes no depois um

161

prolongamento que natildeo pode ser senatildeo temporal quando tomamos as imagens em seu

conjunto Natildeo haacute realidade em Bergson sem um miacutenimo de tempo contiacutenuo sem uma

duraccedilatildeo espessa a implicar uma memoacuteria que basta a si mesma ndash melodia pura sem

qualidades ldquosucessatildeo sem separaccedilatildeordquo (BERGSON 2006 p 52) No entanto com isso

deslocamos relativamente o problema da memoacuteria como fundamento do tempo soacute seraacute

possiacutevel afirmaacute-lo na medida em que se possa demonstrar que a duraccedilatildeo eacute necessaacuteria

mesmo agravequilo que aparentemente natildeo dura coisas simultaneamente percebidas

Tudo isso pode parecer ainda anaacutelogo demais a uma percepccedilatildeo interior e consciente

do tempo por mais que nos esforcemos por experimentaacute-lo da forma como Bergson

requer ontologicamente em si mesmo como continuidade pura e transiccedilatildeo ininterrupta

que bastando a si mesma parece implicar uma siacutentese passiva da memoacuteria independente

de um sujeito que contrai os instantes Se supomos que a mateacuteria e mesmo as

simultaneidades exigem uma duraccedilatildeo eacute preciso passar do tempo interior ao tempo das

coisas Como isso eacute possiacutevel Em geral fazemo-lo por uma ampliaccedilatildeo progressiva de

nosso recorte perceptivo do mundo material imaginando horizontes cada vez mais amplos

e todos submetidos pelo menos de direito ao sentimento de duraccedilatildeo que nossa consciecircncia

experimenta ao perceber uma dada regiatildeo da mateacuteria Se as coisas sob a eacutegide da

percepccedilatildeo consciente parecem durar da mesma forma que nossa consciecircncia ndash e se toda

percepccedilatildeo como vimos implica a um soacute tempo uma realidade dentro de noacutes (a de nosso

corpo) e fora de noacutes (a da superfiacutecie material percebida) ndash eacute loacutegico deduzir que o universo

dure como se houvesse ldquouma consciecircncia impessoal que seria o traccedilo-de-uniatildeo entre todas

as consciecircncias individuais assim como entre essas consciecircncias e o resto da naturezardquo

(BERGSON 2006 p 52-53) Assim em um uacutenico ato dois ou mais acontecimentos

seriam captados pela mesma percepccedilatildeo instantacircnea simultacircneos estariacuteamos diante de uma

realidade externa a noacutes que dura e uma interna que se sente durar

Se a deduccedilatildeo de um tempo das coisas a partir de um tempo interno repousa sobre a

simultaneidade verificada ao menos entre um momento de nossa vida interior um

momento de nosso corpo e um momento de toda a mateacuteria circundante uma questatildeo se

ligaria agrave da memoacuteria como fundamento do tempo haveria uma multiplicidade de duraccedilotildees

ou tudo se passaria como parece haveria uma soacute duraccedilatildeo a envolver todo o universo

Deparamos com as teses pluralistas ou monistas sobre a realidade da duraccedilatildeo Apoacutes

uma longa demonstraccedilatildeo de sua realidade jaacute natildeo precisamos questionaacute-la senatildeo com

relaccedilatildeo ao seu sentido A soluccedilatildeo desse ponto eacute essencial agrave demonstraccedilatildeo da memoacuteria ou

do ser do passado como fundamento do tempo de um ponto de vista ontoloacutegico afinal eacute

162

ela (a memoacuteria) que pode entregar-nos a duraccedilatildeo em sua realidade ontoloacutegica mais

profunda ela responde por seu sentido mais extremo No entanto por capital que seja essa

questatildeo a demonstraccedilatildeo de Bergson parece agrave primeira vista muito obscura e ateacute mesmo

evasiva124

acompanhemos como Bergson desenvolve esse raciociacutenio analoacutegico que ele

admite ldquomal ser conscienterdquo

Parte-se do pressuposto de que consciecircncias humanas tenham a mesma natureza

isto significa que diversas que sejam elas duram da mesma maneira ldquovivem a mesma

duraccedilatildeordquo (BERGSON 2001 p 54) Isso posto imaginamos seacuteries de consciecircncias

humanas distribuiacutedas por toda a extensatildeo do universo material de tal forma que ndash

proacuteximas umas das outras ndash ldquoduas delas tenham em comum a porccedilatildeo extrema do campo de

sua experiecircncia exteriorrdquo (Idem ibidem loc cit) Definem-se assim dois campos

contiacuteguos de experiecircncia externa que participam respectivamente da duraccedilatildeo de cada uma

das consciecircncias assim distribuiacutedas Como entre as duas consciecircncias trata-se da mesma

duraccedilatildeo entre as duas experiecircncias tratar-se-aacute tambeacutem de uma mesma duraccedilatildeo uma vez

que as porccedilotildees extremas do campo de cada uma das experiecircncias exteriores coincidem satildeo

comuns Logo ldquomediante esse traccedilo-de-uniatildeo elas se juntam em uma experiecircncia uacutenica

desenrolando-se numa duraccedilatildeo uacutenica que seraacute como queiram a de uma ou de outra das

duas consciecircnciasrdquo (BERGSON 2006 p 54-55) Eacute nesse ponto que Bergson insere um

raciociacutenio analoacutegico progressivo que consiste em repetir a experiecircncia indefinidamente

abrangendo a totalidade do mundo material Assim ateacute os confins da mateacuteria veremos que

ldquouma mesma duraccedilatildeo vai recolher ao longo de seu caminho os acontecimentos da

totalidade do mundo materialrdquo (BERGSON 2006 p 55)

Prestemos atenccedilatildeo por um momento agraves consciecircncias humanas que asseguram que

essa duraccedilatildeo seja a mesma de um extremo a outro da totalidade do mundo material sua

funccedilatildeo se resume em retransmitir a duraccedilatildeo que se difunde por todo o horizonte

material125

Suprimidas essas consciecircncias natildeo restaraacute mais do que ldquoo tempo impessoal em

que todas as coisas se escoaratildeordquo deixando entrever que eacute uma e mesma duraccedilatildeo que pela

multiplicaccedilatildeo de nossa consciecircncia transportamos agrave seacuterie das imagens materiais que

compotildeem o universo atestando ldquopela identidade de suas duraccedilotildees internas e pela

contiguidade de suas experiecircncias exteriores a unidade de um Tempo impessoalrdquo

124

ldquo[] caso fosse preciso decidir a questatildeo optariacuteamos no atual estado de nossos conhecimentos pela

hipoacutetese de um Tempo material uno e universal Natildeo eacute mais que uma hipoacutetese mas estaacute fundada num

raciociacutenio por analogia que devemos ter por conclusivo enquanto natildeo nos tiverem oferecido nada mais

satisfatoacuteriordquo (BERGSON 2006 p 54) 125

ldquo[] e poderemos entatildeo eliminar as consciecircncias humanas que tiacutenhamos disposto aqui e acolaacute como

retransmissores para o movimento de nosso pensamento []rdquo (BERGSON 2006 p 55)

163

(BERGSON 2006 p 55) Em siacutentese certo nuacutemero de consciecircncias de mesma natureza e

simultacircneas aplicadas duas a duas a regiotildees contiacuteguas da mateacuteria assegurariam pela

simultaneidade da percepccedilatildeo comum que as coisas duram Suprimidas essas consciecircncias

restaria apenas a simultaneidade da experiecircncia potencial do todo da mateacuteria assegurada

por um Tempo uacutenico universal que implicaria um niacutevel de consciecircncia ou de memoacuteria

A demonstraccedilatildeo bergsoniana que retraccedilamos em suas precisas articulaccedilotildees parece

remeter a um problema jaacute resolvido por ocasiatildeo da demonstraccedilatildeo da realidade do ser do

passado e de sua conservaccedilatildeo em si mesmo Se ldquonatildeo se pode falar de uma realidade que

dura sem introduzir nela uma consciecircnciardquo (BERGSON 2006 p 56) estamos

devidamente advertidos de que natildeo se pode emprestar a essa palavra um sentido

antropomoacuterfico Ao suprimir as consciecircncias humanas eacute precisamente disso que se trata

Com efeito viacuteamos que Bergson afirma ser desnecessaacuterio conceber a duraccedilatildeo nesses

termos ldquopegar a memoacuteria que nos eacute proacutepria e transportaacute-la mesmo atenuada para o

interior da coisa [] Eacute o caminho inverso que eacute preciso seguirrdquo (BERGSON 2006 p 56)

o de um tempo impessoal e em tudo inumano Eacute precisamente a ideia de simultaneidade ndash

de todo diferente em relaccedilatildeo agrave tendecircncia espacializante que se apresentava no Essai ndash que

tornaraacute possiacutevel revelar um tempo impessoal e inumano fundado em uma memoacuteria

elementar ou ontoloacutegica

De que maneira memoacuteria e consciecircncia estatildeo implicadas nesse tempo elementar

que fundaria a continuidade de um instante no outro Na medida em que eacute impossiacutevel

haver tempo ali onde natildeo haacute sucessatildeo e eacute impossiacutevel haver sucessatildeo de fato que natildeo

corresponda agrave efetuaccedilatildeo de uma continuidade virtual se supusermos como Bergson (2006

p 57) que ldquoa duraccedilatildeo eacute essencialmente uma continuaccedilatildeo do que natildeo eacute mais no que eacute Eis o

tempo real ou seja percebido e vividordquo

O tempo ldquoreal percebido e vividordquo equivale a perspectivaacute-lo desde um registro

atual que natildeo pode dar-se sem supor um campo de virtualidades heterogecircneo e contiacutenuo

que se prolonga no espaccedilo em multiplicidades descontiacutenuas em instantes que sucedem uns

aos outros Eis a copresenccedila de uma memoacuteria elementar ligando dois instantes

engendrando o presente como presente que passa e como abertura ao puro devir o atual

como a mateacuteria natildeo pode senatildeo repetir-se sozinho como ele seria capaz de desaparecer e

engendrar o porvir Para que o presente se torne ldquopresente que passardquo eacute preciso divisar o

virtual que entra no atual ndash tempo que parece poder ser dividido agrave vontade na medida em

que a inteligecircncia o concebe como solidaacuterio agrave linha que o simboliza Equivale a dizer que

seria preciso captar o fluir do tempo como um progresso indivisiacutevel e global como quem

164

apreende o todo de uma frase meloacutedica ldquofechando os olhosrdquo abstraindo suas qualidades

suprimindo as notas e os tempos que a efetuariam recolocando-a na duraccedilatildeo pura

Metodicamente trata-se de perspectivar o tempo natildeo pelo campo do atual ndash atendendo

assim ao chamado da inteligecircncia ndash mas pelo virtual e pela intuiccedilatildeo ldquo[] nossa duraccedilatildeo

interior considerada do primeiro ao uacuteltimo momento de nossa vida consciente eacute algo

parecido com essa melodiardquo (BERGSON 2006 p 58)

A indivisibilidade dessa continuidade do passado no presente e do presente no

porvir eacute algo que Bergson natildeo cessa de afirmar Se pensamos a ligaccedilatildeo entre o passado e o

futuro imediatos como a que se efetua entre dois instantes eacute porque o passado jaacute implica

uma siacutentese passiva e portanto algum niacutevel ndash ainda que impessoal e inumano ndash de

consciecircncia126

Os instantes assinalam apenas paradas artificiais que nossa atenccedilatildeo para a

vida naturalmente agrave vontade no espaccedilo procura recortar em um contiacutenuo indivisiacutevel

falhando como quem tentasse atravessar uma chama com uma lacircmina natildeo dividimos a

chama sua continuidade heterogecircnea mas apenas o espaccedilo que ela parece desenhar em seu

fundo (BERGSON 2006 p 58) Tudo se passa como se a atenccedilatildeo decalcasse o contiacutenuo

no espaccedilo transformando-o em um simples siacutembolo perdendo a continuidade indefinida e

absolutamente movente De um lado isso implica que do ponto de vista do virtual a

duraccedilatildeo natildeo seja mensuraacutevel do ponto de vista do atual que substitui a continuidade

temporal por seu decalque espacial permite que se passe do tempo indivisiacutevel ao

mensuraacutevel

Bergson estaacute ciente de que esse eacute o tempo que acreditamos viver na maior parte das

vezes natildeo o do infinito escoar de nossa duraccedilatildeo interior indivisiacutevel e movente mas o

tempo mensurado coletivo ou coacutesmico exigido pelos imperativos da vida social127

Para

tanto basta projetar nossa proacutepria duraccedilatildeo em movimento no espaccedilo ndash como a trajetoacuteria

dos astros ou dos ponteiros de um reloacutegio por um movimento apreendido segundo a linha

de seu decalque bastam para fundar um tempo mensuraacutevel dando-nos um tempo

infinitamente divisiacutevel povoado de instantes inextensos semelhantes ao ponto geomeacutetrico

aristoteacutelico que jamais permite compreender como se atravessa de um ponto a outro Natildeo

suponhamos esta criacutetica uma prova do radical psicologismo de Bergson ndash ele eacute o primeiro

126

ldquo[] natildeo se pode conceber um tempo sem representaacute-lo percebido e vivo Duraccedilatildeo implica portanto

consciecircncia e pomos consciecircncia no fundo das coisas pelo proacuteprio fato de lhe atribuirmos um tempo que

durardquo (BERGSON 2006 p 57) Em outras palavras a duraccedilatildeo engendra algo como uma consciecircncia na

medida em que sua continuidade implica uma siacutentese passiva uma contraccedilatildeo passiva ndash natildeo realizada por uma

consciecircncia humana ndash que eacute a proacutepria memoacuteria elementar que se efetua como prolongamento sucessivo 127

ldquo[] vivemos uma vida social e ateacute coacutesmica tanto ou mais do que uma vida individualrdquo (BERGSON

2006 p 60)

165

a enunciar a importacircncia vital desse tempo essa projeccedilatildeo responde agrave tendecircncia

espacializante e decalcocircmana de nossa atenccedilatildeo agrave vida128

Ela tende naturalmente ao espaccedilo

ldquoeacute uma e vaacuteriasrdquo ldquoreparte-se sem se dividirrdquo (BERGSON 2006 p 61) permite agrave

percepccedilatildeo apreender simultaneidades129

tornando interessante contar simultaneidades

proacuteprias a movimentos de corpos que natildeo sejam os do nosso

Eacute precisamente esse tempo de simultaneidades que permite resolver de uma soacute vez

a questatildeo que nos colocaacutevamos sobre a pluralidade ou o monismo da duraccedilatildeo verificando

uma uacuteltima vez a validade da hipoacutetese bergsoniana sobre o monismo de um tempo

elementar e impessoal que supotildee a memoacuteria como fundamento do tempo Nesse particular

Deleuze (1966 p 80-81) chamava a atenccedilatildeo para o exemplo com que Bergson ilustrava a

capacidade da atenccedilatildeo de ser ldquouma e vaacuteriasrdquo

Quando estamos sentados agrave beira de um rio o correr da aacutegua o deslizar de um

barco ou o voo de um paacutessaro e o murmuacuterio ininterrupto de nossa vida profunda

satildeo para noacutes trecircs coisas diferentes e uma soacute como quisermos Podemos

interiorizar o todo lidar com uma percepccedilatildeo uacutenica que carrega confundidos os

trecircs fluxos em seu curso ou podemos manter exteriores os dois primeiros e

repartir entatildeo nossa atenccedilatildeo entre o dentro e o fora ou melhor ainda podemos

fazer as duas coisas concomitantemente nossa atenccedilatildeo ligando e no entanto

separando os trecircs escoamentos graccedilas ao singular privileacutegio que ela possui de

ser uma e vaacuterias (BERGSON 2006 p 61)

No exemplo de Bergson nossa atenccedilatildeo captura um agenciamento de fluxos

simultacircneos podendo dividir-se entre a apreensatildeo de sua unidade ndash dependente do fluxo da

consciecircncia que realiza esta siacutentese (no caso a nossa duraccedilatildeo interna) ndash bem como na

apreensatildeo de cada um dos fluxos (escoar do rio voo do paacutessaro e consciecircncia interior)

Contudo outra opccedilatildeo por fim apresenta-se agrave nossa atenccedilatildeo podemos apreender unidade e

multiplicidade dos fluxos de uma soacute vez simultaneamente representando os fluxos como

contidos em um soacute ndash o nosso ndash e ao mesmo tempo como contidos em si mesmos O que

explica essas siacutenteses tatildeo disparatadas que ora nos datildeo uma duraccedilatildeo ora uma pluralidade

delas podendo implicar ainda uma terceira possibilidade de siacutentese que corresponde agrave

divisatildeo da atenccedilatildeo para apreender simultaneamente todas as direccedilotildees unitaacuteria e muacuteltiplas

desses fluxos

128

ldquo[] eacute do nosso maior interesse tomar por lsquodesenrolar do temporsquo um movimento independente daquele de

nosso proacuteprio corpo A bem dizer encontramo-lo jaacute tomado A sociedade adotou-o para noacutes Eacute o movimento

de rotaccedilatildeo da Terrardquo (BERGSON 2006 p 60) 129

ldquoChamo lsquosimultacircneasrsquo duas percepccedilotildees instantacircneas apreendidas num uacutenico e mesmo ato mental podendo

a atenccedilatildeo mais uma vez fazer delas uma ou duas agrave vontaderdquo (BERGSON 2006 p 60)

166

Parece que nos representamos os fluxos como a apreensatildeo simultacircnea de instantes

mas essa percepccedilatildeo eacute enganosa Seu erro consiste em representar como instantes imoacuteveis

fluxos atuais (Bergson diz ldquofluxos exterioresrdquo) que duram realmente concretamente que

ocupam uma duraccedilatildeo indivisiacutevel Mesmo assim Bergson afirma a existecircncia desses

muacuteltiplos fluxos exteriores como conciliaacute-los com um tempo uacutenico e universal Tudo

parece resolver-se mais uma vez em um jogo perspectivo e analoacutegico Assim como nossa

atenccedilatildeo soacute pode apreender em nossa consciecircncia a existecircncia de dois fluxos exteriores

simultacircneos supondo a duraccedilatildeo interior em que se sintetizam natildeo poderiam coexistir dois

fluxos quaisquer sem supor um terceiro fluxo em que estivessem contidos130

Se posso dizer que o fluxo de minha consciecircncia eacute simultacircneo a outro fluxo

qualquer ndash o deslizar de um barco ou o voo de um paacutessaro ndash eacute porque minha consciecircncia

desdobra-se para abarcar a si mesma como fluxo atual singular simultacircneo ao do

movimento (ou fluxo) externo atestando sua simultaneidade de acordo com um terceiro

fluxo virtual no qual ela desdobra os outros dois fluxos atuais (o murmuacuterio de minha vida

interior o voo do paacutessaro) Por isso Deleuze fala de uma triplicidade fundamental de

fluxos Soluciona-se a aparente contradiccedilatildeo que pluralidade e unidade dos fluxos e da

duraccedilatildeo parecem envolver ao surpreender-nos ldquodesdobrando e multiplicando nossa

consciecircncia transportando-a para os confins extremos de nossa experiecircncia exterior []rdquo

(BERGSON 2006 p 55) essa atitude de desdobramento de nossa consciecircncia eacute capaz de

dar-nos acesso agrave realidade do tempo universal impessoal uno e virtual que sendo

multiplicidade heterogecircnea e qualitativa reuacutene uma pluralidade de fluxos exteriores que se

desdobram simultaneamente no registro do atual Como o atual ocupa do ponto de vista do

virtual uma duraccedilatildeo e portanto uma memoacuteria ndash isto eacute como ldquoos fluxos duram realmenterdquo

ndash natildeo haacute como pensar a realidade do tempo como a sucessatildeo de presentes sempre jaacute

abertos ao devir imediato sem introduzir aiacute virtualmente uma memoacuteria elementar

ontoloacutegica fundamental que opera a siacutentese passiva que importa do ponto de vista do

atual ldquoligar instantesrdquo ldquofazecirc-los passarrdquo

Soacute haacute sucessatildeo atual do tempo porque o tempo eacute memoacuteria coexistecircncia virtual do

presente que age com o que acabou de agir e destes com o que estaacute em vias de formaccedilatildeo

130

Com efeito eacute o que Deleuze auxiliou a esclarecer com precedecircncia nessa difiacutecil passagem da obra de

Bergson ldquoLrsquoeacutecoulement de lrsquoeau le vol de lrsquooiseau le murmure de ma vie forment trois flux mais ils ne

sont tels que parce que ma dureacutee est lrsquoun drsquoentre eux et aussi lrsquoeacuteleacutement qui contient les deux autres Pourquoi

ne pas se contenter de deux flux ma dureacutee et le vol de lrsquooiseau par exemple Crsquoest que jamais deux flux

pourraient ecirctre dits coexistants ou simultaneacutes srsquoils nrsquoeacutetaient contenus dans un mecircme troisiegraveme le vol de

lrsquooiseau et ma propre dureacutee ne sont simultaneacutes que dans la meacutesure ougrave ma proacutepre dureacutee se deacutedouble et se

reacutefleacutechit en une autre qui la contient en mecircme temps qursquoelle contient le vol de lrsquooiseau il y a donc une

tripliciteacute fondamental des fluxrdquo (DELEUZE 1966 p 81-82)

167

Eacute nesse sentido que uma memoacuteria ontoloacutegica eacute fundamento do tempo que se pode afirmar

que sem memoacuteria haacute apenas repeticcedilatildeo do presente eacute impossiacutevel engendrar o novo Se

Bergson afirma que natildeo haacute duraccedilatildeo onde natildeo haacute essa memoacuteria elementar eacute porque a

memoacuteria eacute o que faz o tempo passar diferindo radicalmente de si mesma ela insere a

diferenccedila na repeticcedilatildeo do presente e o abre ao porvir Porque a realidade profunda do

tempo natildeo se resolve no desenrolar de um fio eacute a simultaneidade compreendida como

coexistecircncia de fluxos ndash natildeo de instantes que implicam a perspectiva do atual ndash que

constitui a chave para compreender a realidade e o monismo de um tempo virtual em

Bergson131

Natildeo por acaso eacute isso o que Dureacutee et Simultaneacuteiteacute natildeo cessa de repetir que apenas

esse tempo eacute real que apenas ele pode ser vivido Se ele pode povoar-se por fluxos plurais

que podem ser divididos eacute sob a condiccedilatildeo de deixar ver abaixo do ponto em que

divisamos apenas simultaneidades o iacutendice inconfundiacutevel que se insinua sob uma

pluralidade de fluxos exteriores que duram concretamente o fato de que eles duram

realmente ocupam uma duraccedilatildeo O monismo da duraccedilatildeo constituiraacute portanto uma

memoacuteria elementar na qual se desenha a coexistecircncia virtual de todos os graus de toda a

pluralidade de fluxos atuais em um soacute fluxo virtual que os conteacutem e que se confunde com

a realidade fundamental do tempo a multiplicidade virtual e no entanto real da memoacuteria

131

ldquoLa theacuteorie bergsonienne de la simultaneacuteiteacute vient donc confirmer la conception de la dureacutee comme

coexistence virtuelle de tous les degreacutes en un seul et mecircme tempsrdquo (DELEUZE 1966 p 86)

168

TERCEIRA PARTE

Linhas de atualizaccedilatildeo Bergson o aberto e a transiccedilatildeo

169

CAPIacuteTULO 6 ndash O ABERTO E A TRANSICcedilAtildeO DEMOCRACIA E

DIREITOS HUMANOS

Seguindo as linhas ontoloacutegicas descritas em suas obras precedentes em

LrsquoEacutevolution Creacuteatrice de 1907 Bergson conduziu sua ontologia a um limite

aparentemente imponderaacutevel aquele em que ela se confunde parcialmente com a gecircnese

imprevista das formas de vida em que a duraccedilatildeo implica uma vitalidade inorgacircnica e

potente e coincide em certo niacutevel com a proacutepria vida na medida em que ambas remetem

ao virtual como a realidade proacutepria de sua potecircncia A correlaccedilatildeo entre ontologia e formas

de vida permite recolocar em profundidade a questatildeo do sentido da transiccedilatildeo e assim

compreender qual seu viacutenculo com a memoacuteria na dimensatildeo da experiecircncia social ndash que

afinal constitui o campo por excelecircncia ao qual se aplica a Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo

Ao mesmo tempo colocar em jogo o sentido de transiccedilatildeo ndash que em Bergson recebe

transcriccedilotildees muito heterogecircneas (ontoloacutegicas fiacutesicas psicoloacutegicas morais sociais e

poliacuteticas) ndash permite aprofundaacute-lo em uma direccedilatildeo ainda mais radical a de seu viacutenculo

indissoluacutevel com a democracia e os direitos humanos que natildeo receberatildeo aqui uma

explicaccedilatildeo meramente histoacuterica mas genealoacutegica e estrutural aparentada ao virtual que

podem fazer passar Apenas essa explicaccedilatildeo nos autorizaraacute a compreender que as relaccedilotildees

entre transiccedilatildeo democracia e direitos humanos devem-se superficialmente agrave histoacuteria de

sua gecircnese em comum132

mas eacute justamente essa gecircnese histoacuterica partilhada que exige que

compreendamos suas implicaccedilotildees e relaccedilotildees em profundidade deduzindo delas mesmas a

funccedilatildeo transicional da memoacuteria na Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo

Esse objetivo que se confunde no limite com o de nossa proacutepria tese exige no

entanto um passo adiante consistente em compreender em que medida ele pode remeter agrave

ideia de aberto Todo esse conjunto problemaacutetico seraacute atravessado ainda que

subrepticiamente por sua relaccedilatildeo com a questatildeo das formas de vida e mais

especificamente pela questatildeo da forma de vida humana ndash a que Bergson por vezes chama

ldquoestrutura geral do espiacuterito humanordquo e que decidimos nomear ldquociacuterculo antropoloacutegicordquo

funccedilatildeo da inteligecircncia tal como saiacuteda das matildeos da natureza ndash mas tambeacutem de seu apego

mais profundo agrave proacutepria vida O homem no limiar da espeacutecie no limiar de sua forma de

vida eacute o que reencontraremos aqui em todo o seu renovado interesse deslocado na direccedilatildeo

132

Cf nesse sentido Capiacutetulo 1 ldquoA Gecircnese da Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo e o Direito Internacional dos

Direitos Humanosrdquo

170

do poliacutetico Natildeo se trata poreacutem de Bergson autor de uma teoria meramente moral ou

teoloacutegica O fechado e o aberto conceitos em funccedilatildeo dos quais todos os problemas

apareceratildeo colocados em Les Deux Sources de la Morale et de la Religion satildeo eles

proacuteprios construiacutedos em funccedilatildeo das quedas bioloacutegicas que desenham a superfiacutecie de uma

forma de vida dotada de uma irresistiacutevel tendecircncia ao fechamento agrave adaptaccedilatildeo e ao apego

agrave vida e dos movimentos de ruptura dos ciacuterculos especiacuteficos e do devir que o aberto ndash

como uma clareira no seio do ciacuterculo antropoloacutegico ndash natildeo cessa de comunicar e prolongar

fazendo do homem uma espeacutecie de termo da evoluccedilatildeo ao mesmo tempo em que o super-

homem que ele anuncia parece depocirc-lo incessantemente como um animal que convalesce

de inteligecircncia e representaccedilatildeo ndash patologia que explicaraacute todo o aparente absurdo e

irracionalidade das religiotildees estaacuteticas ao mesmo tempo em que despiraacute a obrigaccedilatildeo moral

de seu veacuteu racional Tudo enfim se coloca em funccedilatildeo da vida das potecircncias inorgacircnicas

de seu eacutelan e dessa maneira da duraccedilatildeo do virtual e das linhas de atualizaccedilatildeo da

memoacuteria

Fazecirc-lo implica no entanto retraccedilar passagens que natildeo podemos nos abster de

reconstruir uma vez que restrinjamos a anaacutelise ao estrato poliacutetico da obra de Bergson Trecircs

questotildees seratildeo os pontos de articulaccedilatildeo necessaacuterios para ultimar os temas do aberto e da

transiccedilatildeo sua compenetraccedilatildeo e suas distensotildees reciacuteprocas na direccedilatildeo da Teoria da Justiccedila

da Transiccedilatildeo

A primeira resume-se em definir de um ponto de vista biossocial o ciacuterculo

antropoloacutegico a forma de vida humana e suas tendecircncias ao fechamento Em seu

LrsquoEacutevolution Creacuteatrie Bergson o definia segundo inuacutemeras distensotildees da atualizaccedilatildeo da

inteligecircncia no entanto no niacutevel poliacutetico eacute preciso qualificaacute-la do ponto de vista dos

quadros sociais da experiecircncia que Bergson remontaraacute sem cessar ao bioloacutegico133

em um

sentido muito compreensivo que nos remete ao vital Assim trata-se da questatildeo da forma

de vida antropoloacutegica mas submetida a uma nova configuraccedilatildeo que leva as descriccedilotildees de

LrsquoEacutevolution Creacuteatrice a um campo de provas bastante heterogecircneo Precisamente esse

novo terreno de experimentaccedilatildeo permitiraacute definir em funccedilatildeo de uma forma de vida

antropoloacutegica ndash que pouco a pouco pareceraacute determinar-se por uma tendecircncia bioloacutegica ao

fechamento ndash questotildees relativas agrave moral agrave obrigaccedilatildeo e agrave relaccedilatildeo social temas que uma

vez que sejam esclarecidos em seu sentido dinacircmico contribuiratildeo para definir o problema

133

Por isso Alexandre Lefebvre (2013 ldquoBergsonrsquos Critical Philosophyrdquo In Introduction) afirma de modo

categoacuterico que o coraccedilatildeo criacutetico de Les Deux Sources estaacute no fato de que ldquo[] the source of morality is

biologyrdquo E mais adiante ldquothe source of closed morality is not society its biologyrdquo (LEFEBVRE 2013 Part

I ldquo3The colsed society Bergson and Durkheimrdquo)

171

da gecircnese dos potenciais transicionais da memoacuteria no acircmbito da Teoria da Justiccedila de

Transiccedilatildeo

A segunda questatildeo resume-se em uma tarefa que tambeacutem admite ser colocada sob a

forma de problema ldquoComo abrir o fechadordquo Tendo por base os dois capiacutetulos centrais de

Les Deux Sources uma vez que esta questatildeo esteja ndash como tudo aliaacutes ndash colocada em

funccedilatildeo da questatildeo das formas de vida tenderaacute a responder de que maneira reverter a

tendecircncia natural aparentemente irresistiacutevel ao fechamento Contudo antes disso o

fechado precisa ser conduzido um pouco aleacutem Compreendido em funccedilatildeo da proacutepria

maladie muito humana atribuiacuteda agrave inteligecircncia e agrave representaccedilatildeo como as tendecircncias

naturais que constituem causas da depressatildeo da dissoluccedilatildeo social e do desencorajamento a

tendecircncia ao fechamento encontraraacute nas religiotildees estaacuteticas uma espeacutecie de resposta vital

que possibilitaraacute ao homem permanecer apegado agrave vida malgrado toda convalescenccedila de

representaccedilatildeo Interpretando a religiatildeo em funccedilatildeo da vida Bergson descobriraacute que um salto

eacute possiacutevel a experiecircncia miacutestica tornar-se-aacute o campo de provas para a potecircncia de uma

religiatildeo dinacircmica capaz de ser definida em funccedilatildeo do aberto servir de iacutendice a uma ruptura

do ciacuterculo antropoloacutegico que pode levar o homem mais longe e mais alto do que a intuiccedilatildeo

filosoacutefica o pudera Eacute nesse sentido que Bergson poderia aparecer como uma espeacutecie de

ldquomeacutedico da civilizaccedilatildeordquo (LAPOUJADE 2010 p 77)

Contudo se responder agrave questatildeo ldquocomo abrir o fechadordquo aponta para uma praacutetica

vital natildeo esgotaraacute o fundo do problema que propomos Seraacute preciso colocar o aberto em

funccedilatildeo de um novo e uacuteltimo problema de que Bergson parece tratar com certa urgecircncia

praacutetica e poliacutetica devida agrave Primeira Guerra ndash atestada mais de uma vez entre seus

comentadores (WORMS 2011 p 292-293 SITBON-PEILLON 2012 p 15)134

Trata-se

da questatildeo que liga Bergson agrave poliacutetica definitivamente ldquoComo perseverar no abertordquo se o

miacutestico e o artista compartilham o gecircnio constituem indiviacuteduos excepcionais uacutenicos da

espeacutecie como fazer com que o aberto se comunique ou se transmita passe do individual ao

social Eacute a afetividade ou a emoccedilatildeo criadora que eles engendram que poderaacute comunicar o

aberto em profundidade tudo se passa como se sob os eus sociais definidos em

superfiacutecie houvesse uma comunidade de eus mais ou menos profundos que lanccedilados a

uma emoccedilatildeo criadora se deixariam penetrar em um niacutevel subrepresentativo O aberto se

define em funccedilatildeo da emoccedilatildeo criadora assim como as formas de vida e as conquistas

134

Nesse aspecto cf a ceacutelebre obra de Philippe Soulez (1989) Bergson politique em adiccedilatildeo Bergson a

biografia escrita a quatro matildeos por Soulez e Worms (2002) e ainda o prefaacutecio deste uacuteltimo ao quinto

volume dos Annales Bergsoniennes que tematizam renovadamente a filosofia poliacutetica de Bergson (WORMS

2012 p 29-34) Cf ainda (LEFEBVRE 2013 Part I ldquo1 A dialogue on warrdquo)

172

poliacuteticas mais antinaturais ndash a democracia os direitos humanos ndash satildeo engendradas por ela

uma espeacutecie de supraconsciecircncia Uma vez que esse noacute problemaacutetico seja constituiacutedo eacute a

questatildeo da transiccedilatildeo que se colocaraacute integralmente sob sua insiacutegnia assim como Bergson

coloca a questatildeo das sociedades fechadas e abertas da guerra e da paz ou da teacutecnica e da

mecacircnica em funccedilatildeo do aberto como eacutetica vital ndash o que como vimos significaraacute tambeacutem

em profundidade uma eacutetica ontoloacutegica

Definidas as trecircs questotildees que nos conduziratildeo ndash como se caracteriza o fechado a

sociedade humana saiacuteda das matildeos da natureza ndash como abrir o fechado e como perseverar

no aberto passemos imediatamente agrave determinaccedilatildeo do que constitui o fechado como

tendecircncia vital bem como de suas transcriccedilotildees no seio de uma filosofia moral que uma

vez que tenha sido fundada em uma metafiacutesica do idecircntico e do eterno natildeo estaraacute menos

envolvida em ilusotildees do que toda a metafiacutesica que Bergson criticou precedentemente

sect 1 O FECHADO O SOCIAL E O VITAL

Encontramos o fechado no ponto em que no limite de uma de suas linhas

divergentes o vital remete ao social no homem Portanto o fechado designa uma tendecircncia

de caraacuteter bioloacutegico originada no momento de descida da tensatildeo virtual que corresponde ao

eacutelan vital e sua alienaccedilatildeo em uma forma de vida atual a vida que encontra a mateacuteria tende

a fazer como vimos uma volta sobre si mesma fechar-se em um ciacuterculo adaptar-se agrave

ineacutercia da mateacuteria compor com ela um corpo fiacutesico organizar-se instrumental perceptiva

e afetivamente Contudo percebamos o fechado ali onde ele se manifesta no seio das

experiecircncias sociais mais tenras dos lugares de forccedila comuns a toda infacircncia e de onde

emanam os mandamentos Se o fizeacutessemos perceberiacuteamos que lhes obedecemos mais em

virtude do peso que comportam que da autoridade pessoal de quem os emite Eis o que

chamaremos mais tarde de ldquopeso da sociedaderdquo sob sua forma de pressatildeo sobre as vontades

individuais ponta uacuteltima de uma forccedila de aplicaccedilatildeo global que em tudo parece

assemelhar-se agrave solidariedade orgacircnica que manteacutem vinculadas as partes de um corpo

bioloacutegico135

A analogia contudo deveraacute ceder natildeo soacute a um liame constitutivo entre

135

ldquo[] crsquoest la socieacuteteacute Philosophant alors sur elle nous la comparerions agrave un organisme dont les cellules

unies par drsquoinvisibles liens se subordonnent les unes aux autres dans une hieacuterarchie savante et se plient

naturellement pour le plus grand bien du tout agrave une discipline qui pourra exiger le sacrifice de la partierdquo

(BERGSON 2001 p 98101-02)

173

memoacuteria e interdiccedilatildeo que aparece jaacute nas primeiras linhas de Deux Sources136

mas tambeacutem

ao fato da liberdade das vontades livres insuscetiacuteveis agrave necessidade que parecem constituir

a causa de toda associaccedilatildeo (BERGSON 2001 p 981-98202)

Embora se possa reconhecer tudo isso sem dificuldade parece haver nessa analogia

mais que uma simples comparaccedilatildeo ela constitui o iacutendice de uma miacutemesis entre sociedade e

organismos vivos em que o haacutebito desempenha o mesmo papel que a necessidade no plano

da natureza e de tal forma que ldquola vie sociale nous apparaicirct comme un systegraveme

drsquohabitudes plus ou moins fortement enracineacutees qui reacutepondent aux besoins de la

communauteacuterdquo (BERGSON 2001 p 98202) No interior dessa rija tessitura de deveres

haacutebitos de obedecer e de mandar explicam-se por certa delegaccedilatildeo social da qual

confusamente sentimos emanar uma ordem impessoal que exerce pressatildeo sobre nossa

vontade Se nos afastamos dela logo somos a ela reconduzidos e assim haacutebito e obrigaccedilatildeo

parecem coincidir

Com efeito a pressatildeo exercida pela obrigaccedilatildeo social implica uma diferenccedila natildeo

apenas de intensidade em relaccedilatildeo agrave massa confusa de nossos haacutebitos mas de natureza isso

se deve natildeo apenas agrave intensidade infinitamente maior com que opera a obrigaccedilatildeo social

mas ao fato de que as obrigaccedilotildees sociais mais ou menos intensas e no limite

infinitesimais satildeo objeto de uma exigecircncia comum que tem iniacutecio no ciacuterculo de nossas

relaccedilotildees mais proacuteximas e estende-se ateacute o ciacuterculo de nossas relaccedilotildees mais distantes cujo

limite eacute a proacutepria sociedade Dessa maneira as obrigaccedilotildees se prestam apoio muacutetuo

entrosam-se e constituem um bloco formado por ciacuterculos cada vez mais abrangentes de

exigecircncias sociais Que cada obrigaccedilatildeo mesmo a mais frugal ou a infinitamente pequena

vinculem eacute graccedilas ao todo da obrigaccedilatildeo do qual retiram sua forccedila da obrigaccedilatildeo em geral agrave

qual satildeo aparentadas agrave autoridade global do conjunto Sua analogia para com os

organismos revela mais que a mimeacutetica entre haacutebito e certa necessidade orgacircnica Na

medida em que o organismo manteacutem-se iacutentegro mediante a forccedila e a vitalidade indivisiacuteveis

das quais cada ceacutelula retira seu vigor um conjunto total de obrigaccedilotildees pressiona as

vontades por meio de um anaacutelogo da ldquovitalidade uacutenicardquo da qual as menores obrigaccedilotildees

retiram sua forccedila Assim como cada ceacutelula exprime superficialmente o todo de uma

136

ldquoLe souvenir du fruit deacutefendu est ce qursquoil y a de plus ancien dans la meacutemoire de chacun de nous comme

dans celle de lrsquohumaniteacuterdquo (BERGSON 2001 p 98101)

174

vitalidade a comparaccedilatildeo deixa entrever que cada obrigaccedilatildeo exprime o todo da

obrigaccedilatildeo137

Embora toda sociedade seja constituiacuteda por indiviacuteduos livres e o fato da

liberdade138

seja o limite da analogia que Bergson propotildee a comparaccedilatildeo natildeo cessa de ser

alimentada pela proacutepria sociedade Assemelhando as leis que mantecircm a ordem social agraves

leis da natureza interessa agrave proacutepria sociedade manter a aparecircncia de que suas leis

organizam-se mecacircnica e necessariamente se leis sociais e fiacutesicas podem ser aproximadas

as primeiras pareceratildeo adquirir a regularidade e a feiccedilatildeo eterna das segundas Confundidas

logo as leis fiacutesicas teratildeo adquirido a imperiosidade dos mandamentos sociais e estes teratildeo

adquirido a inelutabilidade natural das primeiras139

Servindo ao haacutebito a inteligecircncia nos

brinda com a representaccedilatildeo de nossa liberdade individual a reboque de todas as forccedilas

sociais acumuladas contra um nosso possiacutevel gesto egoiacutesta O ponto de vista que enxerga

os indiviacuteduos unidos por meio de uma solidariedade social similar agrave dos organismos

permite afirmar que ldquolrsquoobligation est agrave la neacutecessiteacute ce que lrsquohabitude est agrave la naturerdquo

(BERGSON 2001 p 98607) Eis o ciacuterculo em que toda individualidade permanece

engastada a de uma obrigaccedilatildeo que natildeo vem de fora dos indiviacuteduos mas eacute constitutiva

deles enquanto tais natildeo haacute sociedade ou obrigaccedilatildeo ndash Bergson natildeo deixaraacute de afirmaacute-lo ndash

sem que se suponha a liberdade ao mesmo tempo natildeo haacute obrigaccedilatildeo que natildeo venha de

137

ldquoLa force qursquoune obligation tire de toutes les autres est plutocirct comparable au souffle de vie que chacune

des cellules aspire indivisible et complet du fond de lrsquoorganisme dont elle est un eacuteleacutement La socieacuteteacute

immanente agrave chacun de ses membres a des exigences qui grandes ou petites nrsquoen expriment pas moins

chacune le toute de sa vitaliteacuterdquo (BERGSON 2001 p 98303) 138

Bergson descreve o ato livre ao final do Essai como um ato exterior que expressa a integral do eu ou de

uma alma definida por sua profundidade Como a realizaccedilatildeo de uma accedilatildeo que jaacute natildeo exprime uma ideia

superficial mas responde ao conjunto de nossos sentimentos pensamentos de nossas aspiraccedilotildees mais

iacutentimas agrave concepccedilatildeo particular de vida que equivale agrave nossa experiecircncia passada (LAPOUJADE 2010 p

15) Ou entatildeo como o mais alto grau de dois elementos que operam na proacutepria duraccedilatildeo ldquopor um lado []

exprime a totalidade do conteuacutedo ou da histoacuteria do eu singular por outro faz sentir uma forccedila ou uma

lsquoatividade vivarsquo pela qual o eu se produz a si mesmordquo (WORMS 2011 p 83) Ou entatildeo finalmente ldquolrsquoacte

libre est la lsquomanifestation exteacuterieurersquo de notre personaliteacute tout entiegravererdquo (RIQUIER 2009 p 312-313) O ato

livre eacute o contemporacircneo das variaccedilotildees contiacutenuas que constituem o eu profundo do aspecto confuso obscuro

e infinitamente moacutevel da subjetivaccedilatildeo bergsoniana sub specie durationis Sua dinacircmica eacute a mesma das

sensaccedilotildees que se modificam ao se repetir ou dos sentimentos que parecem serem seres que vivem e se

alteram sem cessar (BERGSON 2001 p 8899) Rachando a crosta superficial do eu social a liberdade potildee-

no na presenccedila de si mesmo na imanecircncia de si que eacute jaacute a diferenccedila para consigo que o ato livre expressa na

duraccedilatildeo Essa ldquorelaccedilatildeo dinacircmicardquo com a atividade do eu eacute o que o vincula agrave duraccedilatildeo como uma ldquoforccedilardquo que

faz dela no eu profundo ldquoa condiccedilatildeo metafiacutesica ou mesmo simplesmente fiacutesica da liberdaderdquo (WORMS

2011 p 84) Nesse sentido a liberdade apareceraacute em Bergson como o correlato psicoloacutegico de um

imprevisto mais profundamente ontoloacutegico 139

ldquo[] si la loi physique tend agrave revecirctir pour notre imagination la forme drsquoun commandement quand elle

atteint une certaine geacuteneacuteraliteacute reacuteciproquement un impeacuteratif qui srsquoadresse agrave tout le monde se preacutesente un peu agrave

nous comme un loi de la nature [] Une infraction agrave lrsquoordre social revecirct ainsi un caractegravere anti-naturel []rdquo

(BERGSON 2001 p 98405)

175

fora ldquoChacun de nous appartient agrave la socieacuteteacute autant qursquoagrave lui-mecircmerdquo (BERGSON 2001 p

98607)

Natildeo haacute nenhuma antinomia entre o individual e o social mas uma solidariedade e

uma constitutividade reciacuteprocas Com efeito a perspectiva da consciecircncia em profundidade

poderia revelar o rosto incomensuraacutevel de uma personalidade de um ponto de vista

superficial poreacutem o indiviacuteduo parece ser em tudo solidaacuterio a seus semelhantes submetido

a uma disciplina que cria entre ele e os demais uma dependecircncia muacutetua que define certo

equiliacutebrio superficial e no entanto soacutelido Vecirc-se pois que o tecido social eacute constitutivo do

eu superficial que nele se insere que toma corpo com as demais personalidades

exteriorizadas Solidaacuterio significa portanto tambeacutem soacutelido e indica o viacutenculo pelo qual a

obrigaccedilatildeo liga cada um de noacutes aos outros mas nos liga tambeacutem a noacutes mesmos Tudo se

passa como se uma vez que nosso eu tivesse de integrar-se agrave tessitura social ele fosse ao

mesmo tempo constituinte e constituiacutedo em relaccedilatildeo a ela O eu superficial eacute o ponto de

fixidez do eu social pois eacute constituiacutedo e cultivado em seu meio eacute a vida pela qual nos

tornamos presentes a uma sociedade mas tambeacutem eacute o signo da presenccedila da sociedade em

noacutes140

Essa presenccedila da sociedade em noacutes eacute que explicaria em que medida ela exerce um

poder irresistiacutevel capaz de aplacar por muito tempo a liberdade mais profunda Nossa

memoacuteria e nossa imaginaccedilatildeo em larga medida vivem do que a sociedade introduziu nelas

Robinson Crusoeacute em sua ilha ou o guarda Florestal de Kipling que todas as noites vestia

seu traje de gala para jantar em um casebre isolado na Iacutendia ndash a fim de natildeo perder o

respeito por si mesmo ndash denotam precisamente que natildeo eacute a presenccedila de outros homens que

determina a da sociedade uma pulsatildeo social constitutiva da proacutepria subjetividade do

ldquorespeito por si mesmordquo pode encontrar na solidatildeo o oco suficiente com o qual fazer eco

Robinson ou o guarda florestal nutrem-se da energia da sociedade agrave qual continuam

idealmente ligados seja atraveacutes dos utensiacutelios manufaturados com que Crusoeacute sobrevive

seja atraveacutes de um viacutenculo moral como o do guarda de Kipling (BERGSON 2001 p 987-

98807-10)

A presenccedila da sociedade no indiviacuteduo poderia revelar-se ainda mais sensivelmente

no caso excepcional do criminoso que se sente impelido a cobrir as evidecircncias desmanchar

a memoacuteria de um crime como se ele jamais tivesse sido praticado ou que o leva a

confessar o crime a um amigo a fim de por meio dele evitar a ruptura social que tortura

140

ldquo[] la solidariteacute sociale nrsquoexiste que du moment ougrave un moi social se surajoute en chacun de nous au moi

individuel Cultiver ce lsquomoi socialrsquo est lrsquoessentiel de notre obligation vis-agrave-vis de la socieacuteteacuterdquo (BERGSON

2001 p 986-98708)

176

sua consciecircncia sob a forma de remorso Tanto em um caso como em outro o princiacutepio

parece ser sempre o de uma inexplicaacutevel pulsatildeo social que trata de evitar a ruptura com o

todo da comunidade que o crime implica Por isso apagar vestiacutegios pode ser mais que

evitar o castigo ndash pode ser evitar o abandono ndash ou confessar o crime a um conhecido pode

significar reintegraccedilatildeo agrave consideraccedilatildeo de algueacutem que eacute agora o uacuteltimo fio que o liga agrave

tessitura social

Ao mesmo tempo em que a experiecircncia de anguacutestia moral no grande criminoso se

explicaria tanto pela presenccedila da sociedade no indiviacuteduo quanto pela inserccedilatildeo do indiviacuteduo

nela experiecircncias mais comuns ndash a do bom pai esposo e cidadatildeo ndash tambeacutem prefiguram a

constitutividade reciacuteproca entre eu individual e eu social Tomemos essa experiecircncia na

dinacircmica natildeo mais excepcional do grande criminoso mas na das obrigaccedilotildees mais

comezinhas que penetram a existecircncia quotidiana de um indiviacuteduo141

Se tomarmos o

indiviacuteduo por centro veremos avolumarem ao seu redor ciacuterculos concecircntricos e cada vez

mais amplos de prescriccedilotildees e obrigaccedilotildees de que sua vida diaacuteria deixa-se atravessar Com

efeito apesar de em cada um desses ciacuterculos e de em cada uma das situaccedilotildees uma opccedilatildeo

ser possiacutevel uma resistecircncia poder ser sempre divisaacutevel eacute mais natural ajustar-se agrave norma

quase que automaticamente (BERGSON 2001 p 99013) Mesmo que nos deixemos ir a

esmo eacute natural que cumpramos o que a sociedade espera de noacutes se nossos deveres natildeo satildeo

cumpridos de modo autocircmato o satildeo pela forccedila do haacutebito da ineacutercia de quem ndash pela

educaccedilatildeo e pelo cultivo social ndash jaacute foi inserido na tessitura dos deveres agrave custa de certo

esforccedilo No entanto a liberdade no seio social sempre denota que uma resistecircncia ao dever

eacute possiacutevel resistecircncia dirigida ao desejo ou agrave accedilatildeo egoiacutesta que visa ao bem de si proacuteprio

natildeo ao do todo Nesse sentido suplantar o proacuteprio desejo e cumprir o dever social deve ser

encarado como uma forccedila suplementar como uma resistecircncia a si mesmo (BERGSON

2001 p 99114)

Natildeo raro para resistir agrave resistecircncia que nosso desejo opotildee ao dever encontramos

razotildees para fazecirc-lo Com efeito chegamos a tais razotildees pela via intelectual cumprimos

uma obrigaccedilatildeo como que persuadidos por suas razotildees e todavia isso natildeo significa ndash como

veremos mais adiante ndash que a fonte da obrigaccedilatildeo seja racional (BERGSON 2001 p

99216) Sob a razatildeo estaacute a pressatildeo do todo da obrigaccedilatildeo do sentimento moral que busca

razotildees mas natildeo eacute determinado pela razatildeo O que Bergson quer evitar aqui eacute que

confundamos a tendecircncia a ceder diante do todo da obrigaccedilatildeo ndash o que se explicaraacute como

141

ldquoCrsquoest la socieacuteteacute qui trace agrave lrsquoindividu le programme de son existence quotidiennerdquo (BERGSON 2001 p

99012)

177

uma tendecircncia natural ndash e o meacutetodo racional pelo qual um ser inteligente age sobre si

mesmo removendo o obstaacuteculo que impedia que tal tendecircncia se manifestasse As

filosofias morais que o fazem estariam uma vez mais inebriadas pela inteligecircncia

Contudo em que consiste a forccedila dessa tendecircncia natural que pode assim

manifestar-se Eacute a ela que Bergson nomeia ldquotodo da obrigaccedilatildeordquo ldquoextrait concentreacute

quintessence des mille habitudes espeacuteciales que nous avons contracteacutees drsquoobeir aux mille

exigences particuliegraveres de la vie socialerdquo (BERGSON 2001 p 99317) A inteligecircncia que

se aplica a essa forccedila natildeo eacute sua fonte de impulsatildeo mas de loacutegica pode tatildeo somente

conferir maior niacutevel de coerecircncia racional agraves exigecircncias sociais mas natildeo seraacute essa

coerecircncia a explicar a pressatildeo que o todo da obrigaccedilatildeo exerce sobre as condutas

individuais142

A funccedilatildeo da razatildeo em moral eacute meramente reguladora enquanto essa pressatildeo

deveraacute explicar-se pela proacutepria vida

De fato Bergson assente em considerar que tardiamente sociedades civilizadas

foram capazes de conduzir as maacuteximas e regras morais historicamente erigidas a certa

sistemaacutetica bastante coerente de tal modo que um ser inteligente que se conduza por meio

delas irrefletidamente conduzir-se-aacute com certa racionalidade Todavia eacute a vida que

explica a obrigaccedilatildeo natildeo a razatildeo143

as obrigaccedilotildees nas sociedades primitivas natildeo mais

apresentaratildeo esse caraacuteter sistemaacutetico e ordenado e todavia tambeacutem entre elas vigoraraacute a

pressatildeo do todo da obrigaccedilatildeo ainda que sua moral participe bastante do acaso e do

incoerente (BERGSON 2001 p 99418) A fim de compreender o significado do todo da

obrigaccedilatildeo bastaria imaginar que a obrigaccedilatildeo exerce pressatildeo sobre uma vontade como um

haacutebito cada obrigaccedilatildeo arrasta atraacutes de si ndash agrave maneira de uma verdadeira memoacuteria social ndash

ldquola masse accumuleacutee des autresrdquo (BERGSON 2001 p 99519) e assim utiliza-se da

pressatildeo de seu conjunto Nesse sentido jaacute se pode entrever em que sentido a obrigaccedilatildeo

derivada do todo da obrigaccedilatildeo natildeo eacute mais que um ldquoil faut parce qursquoil fautrdquo um comando

simples ponta de lanccedila que exerce em um soacute local a pressatildeo do todo Eis porque ela natildeo

comporta razotildees nem se fundamenta em um a priori racional o todo da obrigaccedilatildeo como

grande memoacuteria social eacute uma construccedilatildeo cultural no tempo um efeito de cristalizaccedilatildeo no

tempo que assumindo analogamente as formas das leis fiacutesicas emite uma ilusatildeo de

142

Afinal diz Bergson (2001 p 99417) ldquoJamais aux heures de tentation on ne sacrifierait au seul besoin de

coheacuterence logique son inteacuterecirct sa passion sa vaniteacute Parce que la raison intervient en effet comme reacutegulatrice

chez un ecirctre raisonnable pour assurer cette coheacuterence entre des reacutegles ou maximes obligatoires la

philosophie a pu voir en elle un principe drsquoobligation Autant vaudrait croire que crsquoest le volant qui fait

tourner la machinerdquo 143

ldquo[] lrsquoessence de lrsquoobligation est autre chose qursquoune exigence de la raisonrdquo (BERGSON 2001 p 994-

99518)

178

eternidade Essa ilusatildeo natildeo dura mais que um momento o do puxatildeo que representa um

dever a ser cumprido pela mera pressatildeo que o todo exerce em sua regiatildeo ldquoil faut parce

qursquoil fautrdquo ndash eacute tudo o que temos Por essa razatildeo criticando a filosofia moral de Kant sob

esse aspecto Bergson (2001 p 99620) ironicamente afirma que ldquoun impeacuteratif absolument

cateacutegorique est de nature instinctive ou sonambulique []rdquo praticamente inevitaacutevel como

dever e radicalmente desarrazoado organizado pelo haacutebito que no homem natildeo passa da

imitaccedilatildeo do instinto

Decerto no campo da obrigaccedilatildeo natildeo se trata de qualquer haacutebito mas de um haacutebito

mais poderoso constituiacutedo de forccedilas acumuladas de todos os haacutebitos elementares o que

melhor imita o instinto em sua inevitabilidade Bergson leva muito longe essa miacutemesis pela

qual o haacutebito no homem prefigura o instinto nos animais Tatildeo longe que a obrigaccedilatildeo seraacute

explicada pela vida pela comunidade que o vital determina em mateacuteria social em linhas

divergentes da evoluccedilatildeo como as sociedades de tipo instintivo e as humanas Se as

procurarmos em cada uma das linhas de evoluccedilatildeo encontraremos um mesmo eacutelan

repartido entre a sociabilidade perfeita e o viacutenculo instintualmente orgacircnico das

predisposiccedilotildees sociais de insetos como as formigas e as abelhas e de outro as sociedades

humanas em que o viacutenculo quase-orgacircnico entre seus membros eacute obtido pela via da

inteligecircncia por meio do haacutebito que confere ordem e regularidade agraves accedilotildees Assim as

sociedades inteligentes se caracterizariam por um haacutebito genealogicamente enraizado de

contrair haacutebitos capazes de fundar o todo da obrigaccedilatildeo por mais que os haacutebitos contraiacutedos

sejam sempre contingentes (BERGSON 2001 p 996-99721) A obrigaccedilatildeo deriva mais

fundamentalmente de uma ldquointenccedilatildeordquo que a natureza faz passar pelas sociedades

inteligentes e que persiste nas civilizaccedilotildees mais espiritualizadas a obtenccedilatildeo de uma

sociedade em que certa margem de liberdade de accedilatildeo natildeo ameaccedilasse a tessitura social EM

LrsquoEacutevolution Creacuteatrice instinto e inteligecircncia satildeo descritos como formas de consciecircncia

que em estado rudimentar interpenetram-se e dissociam-se ao crescer originando as duas

linhas divergentes de evoluccedilatildeo ndash artroacutepodes e vertebrados (BERGSON 2001 p 608134)

As sociedades dos himenoacutepteros prolongam os instintos e utilizam instrumentos

organizados e invariaacuteveis as sociedades humanas prolongam a inteligecircncia e utilizam

instrumentos fabricados variaacuteveis e imprevistos Na medida em que os instrumentos

organizados ou natildeo satildeo empregados por cada uma dessas sociedades na execuccedilatildeo de

trabalhos especializados e ao mesmo tempo organizados e reciprocamente

complementares eacute porque algo como ldquoum vago ideal de vida socialrdquo torna-se imanente

tanto ao instinto como agrave inteligecircncia em virtude de uma comunidade de eacutelan

179

Entretanto natildeo se pode reduzir as configuraccedilotildees plurais das sociedades humanas

agravequilo que sucede por organizaccedilatildeo da natureza nas sociedades instintivas Enquanto os

indiviacuteduos que pertencem a sociedades instintivas participam da divisatildeo social do trabalho

fixados a uma funccedilatildeo especializada que decorre de sua estrutura orgacircnica invariaacutevel a

inteligecircncia fabricadora dos homens natildeo cessa de inventar instrumentos cada vez mais

adaptados a uma accedilatildeo progressivamente mais livre Pelas mesmas razotildees as sociedades

instintivas tendem a cristalizarem-se nas formas de organizaccedilatildeo saiacutedas das matildeos da

natureza enquanto as sociedades humanas detecircm a capacidade de variaacute-las144

No primeiro

caso as obrigaccedilotildees satildeo impostas por natureza no segundo apenas a necessidade de haver

uma regra eacute natural seu conteuacutedo estaacute sempre aberto agrave variabilidade e agrave inteligecircncia

humanas Natildeo fossem essas caracteriacutesticas a obrigaccedilatildeo seria instintual isso natildeo significa

que natildeo estejamos mesmo entre seres humanos diante de um instinto virtual que liga a

obrigaccedilatildeo aos fenocircmenos mais gerais da vida Esse instinto virtual consiste precisamente

em uma funccedilatildeo bioloacutegica anaacuteloga agrave do instinto nos animais mas preenchida por outros

meios que natildeo o instinto (WORMS 2011 p 300) Esse instinto virtual natildeo se manifesta

em instinto mas em reequiliacutebrios psicoloacutegicos ou inteligentes de uma regularidade

perturbada ndash o homem estaacute vinculado pelo todo da obrigaccedilatildeo e por isso se culpabiliza por

violar interditos ou ceder a desejos egoiacutestas procura e contrafaz razotildees para obedecer por

ineacutercia Haacute uma pulsatildeo social bioloacutegica naturalizada que superficialmente assume a forma

de um imperativo da qual todo imperativo retira seu vigor O fundo natural de toda

obrigaccedilatildeo ndash falemos de comunidades primitivas ou de sociedades ldquocultivadasrdquo ndash eacute o todo

da obrigaccedilatildeo a forma da obrigaccedilatildeo em geral que se apresenta sob um vieacutes cada vez mais

elementar e puro de necessidade145

Se o natural eacute recoberto pelo adquirido em grande

parte todavia o adquirido natildeo se transmite hereditariamente como o natural que persiste

por baixo de todo verniz de cultura Tudo se passa como se o primitivo natural fosse um

insistente contemporacircneo o imemorial sob o cultivado146

Eacute portanto mais em funccedilatildeo do

primitivo que do adquirido que se pode explicar o todo da obrigaccedilatildeo A um soacute tempo

144

ldquo[] dans une ruche ou dans une fourmiliegravere lrsquoindividu est riveacute agrave son emploi par sa structure et

lrsquoorganisation est relativement invariable tandis que la citeacute humaine est de forme variable ouverte agrave tous les

progregravesrdquo (BERGSON 2001 p 99722) 145

ldquo[] plus nous descendons de ces obligations particuliegraveres qui sont au sommet vers lrsquoobligation en

geacuteneacuteral ou comme nous disions vers le tout de lrsquoobligation qui est agrave la base plus lrsquoobligation nous apparaicirct

comme la forme mecircme que la neacutecessiteacute prend dans le domaine de la vie []rdquo (BERGSON 2001 p 99924) 146

ldquoNos socieacuteteacutes civiliseacutees si diffeacuterentes qursquoelles soient de la socieacuteteacute agrave laquelle nous eacutetions immeacutediatement

destineacutes par la nature preacutesentent drsquoailleurs avec elle une ressemblence fondamentalerdquo (BERGSON 2001 p

999-100025)

180

mesmo as sociedades civilizadas teratildeo de ser definidas como sociedades fechadas sob o

ponto de vista do todo da obrigaccedilatildeo de raiz bioloacutegica que as constitui

As sociedades fechadas definem-se pela tendecircncia natural a incluir certos

indiviacuteduos excluindo outros147

Eacute nos quadros de uma forma de vida atual depositada

biologicamente e que constitui uma tendecircncia ao fechamento das sociedades que se torna

preciso compreender em que sentido a exigecircncia social se encontra no fundo da obrigaccedilatildeo

moral Isso se deve a algo sobre o que Bergson natildeo cessaraacute de insistir entre sociedades

fechadas e a socidade aberta que se define como o conjunto da humanidade inteira natildeo haacute

uma diferenccedila meramente de grau mas de natureza Contudo frequentemente nos iludimos

a respeito dessa diferenccedila acreditamos ser possiacutevel passar do amor agrave famiacutelia agrave naccedilatildeo ao

amor agrave humanidade Todavia a moral macbethiana dos tempos de guerra (ldquoFair is foul

and foul is fairrdquo) deveria bastar para compreendermos que os deveres relativos agraves

exigecircncias sociais fundamentais tendem a uma sociedade fechada que inclui alguns e

exclui os demais natildeo agrave humanidade inteira O respeito agrave vida e agrave propriedade ndash comuns

como exigecircncia da vida social ndash correspondem agraves sociedades fechadas e natildeo agraves abertas

bastaria ver que a guerra os suspende e transformam o assassinato e a pilhagem em atos

meritoacuterios Fossem deveres para com a humanidade inteira e natildeo apenas dados no interior

de sociedades marcadas pelo fechamento tais deveres jamais seriam suspensos assim

como nenhum tempo de paz poderia constituir uma preparaccedilatildeo silenciosa para os tempos

de guerra No interior das sociedades fechadas a exigecircncia social que se encontra no fundo

das obrigaccedilotildees morais visa agrave coesatildeo social tatildeo densamente que Bergson (2001 p

100127) afirma que ldquolrsquoinstinct social que nous avons aperccedilu au fond de lrsquoobligation

sociale vise toujours [] une socieacuteteacute close si vaste soit-ellerdquo A moral das sociedades

civilizadas natildeo passa portanto do verniz espesso que recobre tal instinto virtual e em

larga medida essa moral cultivada retira em boa parte do proacuteprio instinto que ela ajuda a

recobrir o vigor de seus imperativos sonambuacutelicos Eles contudo natildeo visam agrave

humanidade ou ao aberto ldquo[] entre la socieacuteteacute ougrave nous vivons et lrsquohumaniteacute en geacuteneacuteral il y

a [] le mecircme contraste entre qursquoentre le clos et lrsquoouvert la diffeacuterence entre les deux

objets est de nature et non plus simplement de deacutegrerdquo (BERGSON 2001 p 100128)

147

ldquo[] le mecircme instinct tendrait probablement agrave reconstituir aujourdrsquohui si toutes les acquisitions

mateacuterielles et spirituelles de la civilisation disparaissaient du milieu social ougrave nous le trouvons deacuteposeacutees

elles nrsquoen ont pas moins pour essence de comprendre agrave chaque moment un certain nombre drsquoindividus

drsquoexclure les autresrdquo (BERGSON 2001 p 100025) Ainda ldquo[] ce nrsquoest pas en eacutelargissant la citeacute qursquoon

arrive agrave lrsquohumaniteacute entre une morale sociale et une morale humaine la differeacutence nrsquoest pas de degreacute mais de

naturerdquo (Idem ibidem p 100431)

181

Iludimo-nos frequentemente sobre a possibilidade de ampliar de grau em grau a

solidariedade entre os homens representando a famiacutelia e a naccedilatildeo como ciacuterculos contidos

em um ciacuterculo mais abrangente em tudo semelhante aos menores e que corresponderia agrave

humanidade Todavia basta comparar o amor agrave humanidade ao amor agrave paacutetria por

exemplo para concluir que as exigecircncias relativas agrave coesatildeo social derivam em grande

parte justamente do fechamento da necessidade de defender-se de inimigos do exterior a

religiatildeo por outro lado operaria a milagrosa passagem do amor a nossos parentes e

concidadatildeos ao amor agrave humanidade148

auxiliaria a iludir-nos de que chegaremos a amar a

humanidade de grau em grau quando para isso seria necessaacuterio um salto Signo dessa

diferenccedila de natureza o salto exprime a passagem a uma outra forma de obrigaccedilatildeo social

diferente da pressatildeo da moral fechada e vem ao encontro do amor agrave humanidade que

Bergson chama de ldquomoral completa ou absolutardquo

A moral completa diverge da forma de pressatildeo social emprestada ao todo da

obrigaccedilatildeo nas sociedades fechadas ela natildeo se resolve em imperativos impessoais Pelo

contraacuterio encarna-se em personalidades excepcionais que se convertem em exemplo Tais

exemplos triunfais ou heroicos jaacute natildeo impotildeem a aceitaccedilatildeo de nenhuma lei de qualquer

universal mas constituem a singularidade que convida agrave imitaccedilatildeo comum ndash arrastam

multidotildees atraacutes de si sem sequer exortaacute-los Eacute como se houvesse apenas um chamado agrave

miacutemesis natildeo haacute empurratildeo pressatildeo haacute apenas um chamado que procede de uma

personalidade moral excepcional Sua forccedila adveacutem da proacutepria existecircncia dessa

personalidade moral arrebatante que natildeo persuade pela razatildeo mas funde as maacuteximas em

sua singularidade (BERGSON 2001 p 1003-100429-31) Sua diferenccedila radical para com

a moral das sociedades fechadas estaacute precisamente em fazer ndash como os santos do

cristianismo os profetas de Israel os saacutebios gregos ou os iluminados do budismo ndash um

apelo agrave humanidade inteira natildeo mais agraves exigecircncias sociais149

A miacutemesis permite que uma

foacutermula do aberto persista entre noacutes por muito tempo inconsciente ou descarnada agrave

espreita ou em estado virtual Sua espera talvez indefinida determina-se em funccedilatildeo do

tempo da oportunidade dos potenciais de subjetivaccedilatildeo basta que a foacutermula se preencha

de mateacuteria e a mateacuteria se anime para que possa nascer uma nova forma de vida150

Nesse

148

ldquo[] la religion convie lrsquohomme agrave aimer le genre humainrdquo (BERGSON 2001 p 100228) 149

ldquo[] la seconde morale [] diffeacutere de la premiegravere en ce qursquoelle est humaine au lieu drsquoecirctre seulement

socialerdquo (BERGSON 2001 p 100431) 150

Eis a bela passagem em que Bergson (2001 p 100532) descreve a sobrevivecircncia virtual do aberto em

algumas foacutermulas ldquo[] il suffit [] que la formule soit lagrave elle prendra tout son sens lrsquoideacutee qui viendra le

remplir se fera agissante quand une occasion se preacutesentera Il est vrai que pour beaucoup lrsquooccasion ne se

preacutesentera pas ou lrsquoaacutection sera remise agrave plus tard Chez certains la volonteacute srsquoeacutebranlera bien un peu mais si

182

sentido o chamado que proveacutem do aberto e atravessa uma personalidade excepcional ecoa

como uma linha de atualizaccedilatildeo imponderaacutevel constitui-se na espreita que define o virtual e

sustenta-se pela miacutemesis mais ou menos descarnada dos seguidores que natildeo raro

inconscientemente atendem a seu chamado

A atitude moral do homem que responde agraves exigecircncias sociais de fechamento eacute

sem duacutevida a de um ser inteligente que sobretudo pode agir de maneira utilitaacuteria e

egoiacutesta Se agir assim arriscaraacute contrariar aquilo que exige o interesse geral Todavia logo

se vecirc que a moral utilitaacuteria e egoiacutesta do ser inteligente preocupado com seu proacuteprio bem-

estar dissimula sob si a accedilatildeo do instinto natural que o impulsiona agrave integraccedilatildeo social151

Natildeo haacute nenhum paradoxo nessa dinacircmica na medida em que essa pulsatildeo social relaciona-

se agrave obrigaccedilatildeo o indiviacuteduo viveraacute tanto pela sociedade quanto para si mesmo Eis porque a

alma se fecha em um ciacuterculo ndash porque social e individual se curto-circuitam (BERGSON

2001 p 100634) A alma aberta por sua vez implica uma atitude inteiramente diversa

ela abrange uma potecircncia amorosa definida mais do que pelo amor agrave humanidade pelo

amor aos animais plantas a toda a natureza e a todo o existente ndash e ao dizecirc-lo ainda natildeo

teremos ido longe demais Ela abrange todo o ser e todo poder ser independentemente de

seus conteuacutedos acidentais a alma aberta constitui-se por uma forma de amor total natildeo

totalizaacutevel aberto virtual e imponderaacutevel152

Entre as almas fechada e aberta verifica-se a

mesma diferenccedila de natureza que verificaacutevamos entre sociedades fechada e aberta O amor

ao todo natildeo eacute o amor familiar ou nacional dilatados pois os primeiros implicam exclusatildeo

podem incitar agrave violecircncia e agrave guerra o uacuteltimo por sua vez atinge a humanidade e a

ultrapassa cria-se um amor sobre-humano Em siacutentese o amor agrave humanidade vale por

aquilo que a ultrapassa

A atitude moral da alma aberta exige no entanto uma explicaccedilatildeo Sabemos de

onde uma moral fechada extrai sua forccedila ndash ela foi pretendida pela natureza ela eacute

engendrada pelo todo da obrigaccedilatildeo pelo qual o instinto exerce pressatildeo sobre o haacutebito

Contudo a atitude moral da alma aberta parece exigir um esforccedilo na medida em que natildeo eacute

predisposta pela natureza Se ela natildeo eacute o resultado de um alargamento progressivo dos

amores da alma fechada e se ela se constitui a partir de um chamado por que ele seria

peu que la secousse reccedilue pourra en effet ecirctre attribueacutee agrave la seule dilatation du devoir social eacutelargit et affaibli

en devoir humain Mais que les formules se remplissent de matiegravere et que la matiegravere srsquoanime crsquoest une vie

nouvelle qui srsquoannonce nous compenons nous sentons qursquoune autre morale survientrdquo 151

ldquo[] au-dessous de lrsquoactiviteacute intelligente qui aurait en effet agrave opter entre lrsquointerecirct personnel et lrsquointerecirct

drsquoautrui il y a bien un substratum drsquoactiviteacute instinctive primitivement eacutetablie par la nature ouacute lrsquoindividuel et

le social sont tout pregraves de se confondrerdquo (BERGSON 2001 p 100633) 152

ldquoSa forme ne deacutepend pas de son contenu [] La chariteacute subsisterait chez celui qui la possegravede lors mecircme

qursquoil nrsquoy aurait plus drsquoautre vivant sur la terrerdquo (BERGSON 2001 p 100734)

183

atendido de onde ela retira a sua forccedila A resposta aparentemente lacocircnica de Bergson

pode soar surpreendente mas confere ao afeto e agrave emoccedilatildeo um lugar privilegiado em sua

obra (WORMS 2011 p 324) ndash jaacute natildeo estivesse este dado pelo proacuteprio lugar do

imponderaacutevel sentimento de amor que o aberto implica ldquoEn dehors de lrsquoinstinct et de

lrsquohabitude il nrsquoy a de lrsquoaction direct sur le vouloir que celle de la sensibiliteacute La propulsion

exerceacutee par le sentiment peut drsquoailleurs ressembler de pregraves agrave lrsquoobligationrdquo (BERGSON

2001 p 100835) Tudo se passa como se focircssemos inteiramente penetrados por uma

emoccedilatildeo musical natildeo se trata de introduzir uma emoccedilatildeo em noacutes mas de introduzir-nos em

uma emoccedilatildeo fundamental ao sabor da qual todo o nosso ser vibra com a qual todos os

nossos sentimentos ressoam e a que todas as nossas accedilotildees e desejos parecem responder

(BERGSON 2001 p 100836) A emoccedilatildeo eacute criadora na medida em que lanccedila ao mundo

uma nova nota fundamental e com ela sentimentos elementares aos quais uma

personalidade pode fazer eco ou com os quais poderaacute ressoar

Notemos que Bergson sempre faz interferir uma metaacutefora musical no momento em

que o novo ou o devir explicam-se pela duraccedilatildeo ou pelo tempo Jaacute natildeo haacute mais uma

duraccedilatildeo meloacutedica mas uma nota fundamental que se propaga entre personalidades no

tempo que pode permanecer agrave espreita que pode ser agida que pode estimular a criaccedilatildeo

mas tambeacutem a accedilatildeo com a qual esta se confunde no seio do poliacutetico e do social O proacuteprio

tempo define-se portanto segundo um segmento afetivo Eacute preciso tempo para que a

sensibilidade recolha um afeto vibre com ele estenda-o modifique-o ou o comunique da

mesma forma eacute no tempo que uma nota fundamental eacute criada eacute na duraccedilatildeo que ela pode

ecoar indefinidamente seguindo seu contiacutenuo virtual coexistindo com um sem nuacutemero de

outras notas fundamentais e melodias que por sua vez engendram outros afetos e outras

linhas de subjetivaccedilatildeo capazes de interferir com uma personalidade Sob a emoccedilatildeo ou a

criaccedilatildeo natildeo haacute como natildeo perceber a duraccedilatildeo em que elas se desenrolam sem cessar

Contudo eacute preciso discernir de que tipo de emoccedilatildeo se estaacute falando em que consiste

essa emoccedilatildeo na qual toda criaccedilatildeo ndash artiacutestica ou cientiacutefica ndash apareceraacute enodada Bergson

(2001 p 101140) fala dela como de um estremecimento afetivo da alma de um revolver

das profundezas um estimulante para a accedilatildeo e o pensamento ndash emoccedilatildeo capaz de gerar

ideias Haacute com efeito algo como uma emoccedilatildeo que coincide apenas com uma agitaccedilatildeo

afetiva superficial decorre de uma ideia ou imagem representada deve-se em suma a um

estado intelectual do qual procede A sensibilidade agita-se como efeito de uma agitaccedilatildeo

superficial relativa a estados intelectuais nada profundos Trata-se pois de uma emoccedilatildeo

infraintelectual Por outro lado a emoccedilatildeo que Bergson afirma ser verdadeiramente criadora

184

eacute supraintelectual153

natildeo no sentido em que eacute axiologicamente superior agrave inteligecircncia mas

que eacute anterior a ela no tempo Natildeo nascendo de uma ideia a emoccedilatildeo engendra ideias e

representaccedilotildees designa a potecircncia da alma para uma sensibilidade profunda que se

prolonga em gecircnio esforccedilo e paciecircncia por toda parte na ciecircncia como na literatura154

Trata-se portanto de uma emoccedilatildeo ativa que natildeo apenas impele agrave accedilatildeo mas conduz-se por

uma sensibilidade em profundidade da integral da alma tal como aparecia no Essai

Worms (2011 p 324) assinala que essa emoccedilatildeo proveacutem da alma como ldquouma tomada do eu

por inteiro e natildeo de uma parte emotiva ou de uma faculdade separada []rdquo nesse sentido

a emoccedilatildeo designa o fundo ativo e total de uma personalidade que se constitui pela accedilatildeo da

proacutepria duraccedilatildeo que faz memoacuteria consigo que natildeo cessa de variar Emoccedilatildeo criaccedilatildeo e

duraccedilatildeo confundem-se ao infinito no niacutevel de atualizaccedilatildeo de uma personalidade com elas

eacute a proacutepria personalidade que eacute criada como linha de subjetivaccedilatildeo que uma obra ou nota

fundamental podem ajudar a completar

Sendo supra e natildeo infraintelectual diziacuteamos a emoccedilatildeo antecede a representaccedilatildeo

engendra a ideia ao inveacutes de ser engendrada por ela Tudo se passa como se a inteligecircncia

fosse entatildeo impelida por uma espeacutecie de gozo antecipado em resolver um problema em

avanccedilar sem cessar vitalizando as representaccedilotildees que gera e com as quais seu encontro se

determina no enunciado de um problema capaz talvez de conduzi-la a uma soluccedilatildeo

Tambeacutem a coincidecircncia entre um autor e seu assunto vecirc a inteligecircncia consumir-se em

ldquolrsquoeacutemotion originale et uniquerdquo (BERGSON 2001 p 101443) em uma intuiccedilatildeo Se a

inteligecircncia pode abandonar-se a articular e rearticular ideias palavras e soacutelidos a emoccedilatildeo

natildeo trabalha a frio a intuiccedilatildeo funde os materiais fornecidos pela inteligecircncia e a emoccedilatildeo

constitui a causa virtual das ideias representaccedilotildees e palavras que a exprimem155

Com

efeito se a gecircnese moral se deve em profundidade agrave emoccedilatildeo ela sempre pode cristalizar-se

em representaccedilatildeo e constituir uma estrutura como se o aberto da emoccedilatildeo se fechasse na

clausura da representaccedilatildeo exatamente como o eacutelan eacute abertura vital que volta a se fechar

sob uma forma de vida atual No social como no vital natildeo se pode explicar o

engendramento pelo engendrado o virtual pelo atual apenas o contraacuterio eacute possiacutevel Para

aderirmos a uma moral natildeo basta a coerecircncia racional eacute preciso que a atmosfera da

emoccedilatildeo que a criou esteja de alguma forma presente assim jaacute natildeo nos obrigamos

153

ldquoCreacuteation signifie avant tout eacutemotionrdquo (BERGSON 2001 p 101342) 154

ldquoSeule en effet lrsquoeacutemotion du second genre peut devenir geacuteneacuteratrice drsquoideacuteesrdquo (BERGSON 2001 p

101241) 155

ldquo[] agrave cocircteacute de lrsquoeacutemotion qui est lrsquoeffet de la repreacutesentation qui la contient virtuellement et qui srsquoy

surajoute il y a celle qui precegravede la repreacutesentation qui la contient virtuellement et qui en est jusqursquoagrave un

certain point la causerdquo (BERGSON 2001 p 101444)

185

puramente mas cedemos agrave inclinaccedilatildeo que a emoccedilatildeo nos imprime (BERGSON 2001 p

101545)

Na medida em que a moralidade fechada do instinto social define-se pela pressatildeo

capaz de opor agraves vontades individuais cristalizando-se a emoccedilatildeo em imperativo a

moralidade aberta define-se por uma aspiraccedilatildeo que resiste a essa natureza e ao inveacutes do

prazer e do estado de bem-estar geral que caracterizam a normalidade do que Bergson

chama de ldquosociedades afrodisiacuteacasrdquo o aberto concede-nos um sentimento no qual todo

prazer se envolve e absorve ndash a alegria Enquanto o prazer remete ao fechado ao

imobilismo confortaacutevel do bem-estar a alegria remete ao entusiasmo e agrave aspiraccedilatildeo proacutepria

dos miacutesticos e das individualidades excepcionais156

Na medida em que a vida se dividiu

em espeacutecies e tendo obtido a espeacutecie humana dividiu-a em indiviacuteduos como seus

momentos de parada virtual satildeo os indiviacuteduos que podem conduzir a vida um pouco aleacutem

de si mesmos eacute por meio de certos indiviacuteduos excepcionais que a humanidade pode ser

arrastada a um sentimento de coincidir com o esforccedilo gerador da vida (BERGSON 2001

p 102051) Suas personalidades compreendidas como singularidades abertas agrave accedilatildeo da

duraccedilatildeo variando em funccedilatildeo dela constituem os pontos luminosos em que o aberto

constitui-se como o momento em que o esforccedilo criador da vida ultrapassa a forma criada

em que a potecircncia inorgacircnica do virtual leva o atual mais aleacutem de si mesmo e se inventam

novas formas de vida e de pensamento Essa invenccedilatildeo soacute eacute possiacutevel poreacutem no seio afetivo

de uma emoccedilatildeo criadora que constitui essa propulsatildeo profunda de que a criaccedilatildeo eacute o

expresso157

As formas de vida atuais especiacuteficas ou morais satildeo apenas a imagem fria e

paacutelida dessa emoccedilatildeo criadora cinzas sobre a brasa sua cristalizaccedilatildeo temporaacuteria

Encontramo-nos portanto diante de duas morais Uma fechada agrave qual o homem

estaacute predestinado por sua estrutura natural que visa a conservaacute-lo como ser ao mesmo

tempo inteligente e sociaacutevel outra aberta pela qual alguns indiviacuteduos excepcionais

parecem romper parcialmente com a natureza ndash no sentido da moralidade fechada agrave qual

estavam predestinados ndash colocando-se uma vez mais no sentido do eacutelan vital (BERGSON

2001 p 102356) Eis o que faz com que a moral fechada constitua apenas um momento

156

ldquoIls sont [plaisir et bien-ecirctre] en effet arrecirct ou piegravetinement sur place tandis qursquoelle [la joie] est marche en

avantrdquo (BERGSON 2001 p 102457) As expressotildees entre colchetes natildeo constam do original 157

ldquo[] crsquoest toujours dans un contact avec le principe geacuteneacuterateur de lrsquoespegravece humaine qursquoon srsquoest senti

puiser la force drsquoaimer lrsquohumaniteacute Je parle bien entendu drsquoun amour qui absorbe et reacutechauffe lrsquoacircme entiegravererdquo

(BERGSON 2001 p 102152)

186

da moralidade aberta158

como se o dinacircmico absorvesse o estaacutetico e o explicasse em

profundidade

O fechado saiacutedo das matildeos da natureza e o aberto pelo qual se rompe em certa

medida com a natureza naturada para aceder agrave natureza naturante constituem o dualismo

fundamental que atravessa por toda a extensatildeo de Les Deux Sources (WORMS 2011 p

286) No entanto natildeo haveria uma alma que se abre Entre o estaacutetico e o dinacircmico natildeo

haveria uma moral de transiccedilatildeo (BERGSON 2001 p 102862) Esse natildeo seria

precisamente o estado da inteligecircncia entre o infra e o supraintelectual meio-termo entre

duas tendecircncias puras Com efeito eis o que Bergson afirma159

e a inteligecircncia definir-se-

ia entatildeo por uma insuficiecircncia de impulsatildeo Persistindo na ataraxia ou na apatia a

inteligecircncia encontraria na pura contemplaccedilatildeo e em uma moralidade do desprendimento

da alma estoica um prolongamento natural Todavia uma alma e uma moralidade de

transiccedilatildeo entre o aberto e o fechado parecem colocar de imediato uma questatildeo de que

ainda natildeo podemos nos aproximar senatildeo por tateio a questatildeo sobre como abrir o fechado

Se por ora natildeo podemos tocar senatildeo sua sombra estamos advertidos que a alma pode ser

atravessada por dois movimentos de sentidos inversos ldquoCe qui est aspiratoin tend agrave se

consolider en prenant la forme de lrsquoobligation strict Ce qui est obligation strict tend agrave

grossir et agrave srsquoeacutelargir en englobant lrsquoaspirationrdquo (BERGSON 2001 p 103064)

Cristalizaccedilatildeo e fluxo solidificaccedilatildeo e fusatildeo

Sob o plano intelectual em que os imperativos morais interpenetram-se sob a forma

de conceitos pressatildeo e aspiraccedilatildeo satildeo duas forccedilas profundas que correspondem a duas

formas de obrigaccedilatildeo (BERGSON 2001 p 104382) Como expressos de tendecircncias puras

ao fechamento e agrave abertura que natildeo existem senatildeo como limites ideais um misto de ambas

forjaraacute a estrutura social afinal assim como o homem natildeo eacute puramente inteligecircncia ou

intuiccedilatildeo as sociedades humanas natildeo satildeo nem puramente instintuais e orgacircnicas como natildeo

poderiam ser puramente miacutesticas160

Poreacutem assim como isso natildeo retira a realidade da

obrigaccedilatildeo nua tampouco subtrairaacute de nossa consideraccedilatildeo o fato de que mesmo no interior

das sociedades mais civilizadas satildeo as almas miacutesticas que as arrastam em seu conjunto

sem cessar elas eacute que podem ser revivificadas por cada um de noacutes seguidores ou

imitadores e ela natildeo cessa de exercer sobre noacutes certa atraccedilatildeo que Bergson diz ser ldquovirtualrdquo

Pressatildeo e aspiraccedilatildeo correspondem a duas ordens de forccedilas uma infraintelectual instintiva

158

ldquoLa morale courant nrsquoest pas abolie mais elle se preacutesente comme un moment le long drsquoun progregravesrdquo

(BERGSON 2001 p 102558) 159

ldquoEntre les deux il y a lrsquointelligence mecircmerdquo (BERGSON 2001 p 102963) 160

ldquoLrsquoaspiration pure est une limite ideacuteale comme lrsquoobligation nuerdquo (BERGSON 2001 p 104685)

187

naturalizada como um fato da vida outra supraintelectual intuitiva que faz passar por uma

forma dada o impulso vital que eacute a causa profunda de sua gecircnese Se respondemos ao

chamado miacutestico em maior ou menor grau isso se deve agrave forccedila da proacutepria emoccedilatildeo outrora

provocada A correlaccedilatildeo das duas formas em regiotildees diferentes da alma permite uma

projeccedilatildeo contiacutegua agrave inteligecircncia (BERGSON 2001 p 1046-104785-86) Eis o que nos

coloca acima da sociabilidade meramente animal mas abaixo de uma sociedade aberta eis

tambeacutem a regiatildeo em que a moral parece compor-se por projeccedilatildeo com a razatildeo o que

permite reconduzi-la coerentemente a princiacutepios

Bergson insiste no entanto que esta eacute uma projeccedilatildeo meramente racional da moral

Como vimos sua causa natildeo eacute intelectual mas mais profunda161

seu enigma eacute explicado

pela vida em sentido infra ou supraintelectual nos sentidos de sua cristalizaccedilatildeo ou de sua

gecircnese dinacircmica A polecircmica estabelece-se de forma franca com a filosofia moral kantiana

mas tambeacutem se dirige contra qualquer pretensatildeo de fundar a moral a partir da loacutegica Nem

o egoiacutesmo nem a paixatildeo cedem agrave inteligecircncia ou ao espiacuterito especulativo Ao mesmo

tempo natildeo se poderia fundar a moral em criteacuterios unicamente racionais sem inserir sub-

repticiamente forccedilas de ordem diferente (BERGSON 2001 p 105090-91) A sociedade

estaacute dada na proacutepria forma de vida humana sob a forma de instinto virtual haacutebito de

contrair haacutebitos e por meio dessa dinacircmica tenderaacute a conservar-se o maacuteximo que puder

Nesse contexto o que a razatildeo faraacute eacute eleger um princiacutepio sistematicamente coerente

adequado a esta finalidade conservadora da sociabilidade que seraacute repartido coletivamente

segundo a pressatildeo que o todo da obrigaccedilatildeo exerce estaacute portanto carregado das tendecircncias

que a moral social depositou nele A razatildeo veraacute aspiraccedilotildees prolongando princiacutepios morais

prestes a se tornarem imperativos mas tanto uns quanto outros resultam da atmosfera

social na qual satildeo ldquopressentidosrdquo (BERGSON 2001 p 105292-93) Se uma obrigaccedilatildeo eacute

necessaacuteria e ateacute mesmo biologicamente predisposta seus conteuacutedos equivalem a valecircncias

livres que podem ser soldadas agrave inteligecircncia a qual permanece incapaz por si de explicar

a origem da obrigaccedilatildeo Com efeito a vida poderia ter se limitado a fabricar sociedades

fechadas e a garantir sua coesatildeo por meio de viacutenculos obrigacionais estritos entre seres

inteligentes cuja inteligecircncia natildeo teria chegado ao ponto de estimular nenhuma

transformaccedilatildeo radical (BERGSON 2001 p 105597)

161

ldquo[] de ce qursquoon aura constateacute le caractegravere rationnel de la conduite morale il ne suivra pas que la morale

ait son origine ou mecircme son fondement dans la pure raisonrdquo (BERGSON 2001 p 104786) ldquoBref et pour

tout reacutesumer il ne peut ecirctre question de fonder la morale sur le culte de la raisonrdquo (Idem ibidem p 105090)

188

Sua mutaccedilatildeo depende portanto de um salto qualitativo em relaccedilatildeo agrave inteligecircncia

de almas que Bergson diz serem excepcionais ou privilegiadas que natildeo se limitavam pela

solidariedade ao grupo mas abriam-se ao amor agrave humanidade Do ponto de vista da vida

sua apariccedilatildeo teria sido tatildeo luminosa e intensa que tudo se passa como se cada indiviacuteduo

constituiacutesse em si mesmo uma nova espeacutecie ponto de passagem do eacutelan vital a partir do

qual seu impulso pode prolongar-se mais aleacutem de uma forma de vida atual (BERGSON

2001 p 105698) Jaacute natildeo seriam mais sujeitos manifestando seu amor mas um amor

manifestando-se atraveacutes dessas individualidades penetradas por uma emoccedilatildeo criadora que

seria como um transbordamento de vitalidade A simples evocaccedilatildeo de seus nomes ainda

hoje comunicam algo dessa forccedila original produzem uma atraccedilatildeo mais ou menos

irresistiacutevel sejam eles Buda Jesus ou Soacutecrates

Os nomes ainda parecem fazer passar atraveacutes de si algo de um impulso original

como se fossem clareiras rescendentes de uma emoccedilatildeo criadora que coincide com o

proacuteprio eacutelan vital Nesse plano eacute possiacutevel notar que pressatildeo social e impulso de amor satildeo

duas manifestaccedilotildees complementares da mesma vida em sentidos diferentes tais como

duraccedilatildeo e espaccedilo ou espiacuterito e mateacuteria originalmente articuladas para conservar a forma

social caracteriacutestica da espeacutecie humana excepcionalmente e graccedilas a indiviacuteduos satildeo

capazes de se transfigurar (BERGSON 2001 p 105798-99) Eis em que sentido a

experiecircncia miacutestica se torna o campo de provas privilegiado dessa tese para aleacutem de

qualquer interpretaccedilatildeo da proacutepria miacutestica e a despeito de seus conteuacutedos nela os miacutesticos

jaacute natildeo satildeo mais seres de pura contemplaccedilatildeo e ecircxtase mas verdadeiros homens de accedilatildeo

encarnaccedilotildees de potenciais de transformaccedilatildeo de modos de vida aqueles que ldquosrsquoouvrent

simplement au flot qui les envahitrdquo (BERGSON 2001 p 1059102)

Na medida em que compreendemos o fundo vital por detraacutes da obrigaccedilatildeo e da

moralidade em sentidos tanto infra quanto supraintelectuais a religiatildeo natildeo deixaria de

colocar novos problemas com relaccedilatildeo agrave vida mas tambeacutem com relaccedilatildeo agrave inteligecircncia A

fim de que possamos nos aproximar do cerne da discussatildeo da transiccedilatildeo ndash que se dissimula

sob as questotildees ldquocomo abrir o fechadordquo e ldquocomo perseverar no abertordquo ndash seria preciso

atendo-nos apenas ao essencial aprofundar como a religiatildeo constitui tambeacutem ela uma

exigecircncia da proacutepria vida

A primeira perplexidade de supor a existecircncia de uma religiatildeo natural aos homens

pressentida em diferentes niacuteveis de elaboraccedilatildeo nas sociedades humanas ditas primitivas e

presente tambeacutem nas sociedades civilizadas eacute a aparente contradiccedilatildeo entre o mosaico de

189

aberraccedilotildees que as religiotildees constituem em relaccedilatildeo agrave inteligecircncia No entanto a tese

genuinamente antropoloacutegica de Bergson sobre a existecircncia de uma religiatildeo natural ou

primitiva que natildeo teria desaparecido na civilizaccedilatildeo ndash mas se encontraria recoberta por

camadas superficiais de educaccedilatildeo e variabilidade cultural ndash vai precisamente ao encontro

da destituiccedilatildeo desse aparente paradoxo Se por um lado as supersticcedilotildees que habitam o

fundo de toda religiatildeo parecem humilhar a inteligecircncia (BERGSON 2001 p 1061105)

por outro elas natildeo constituem exclusividade das mentalidades preacute-loacutegicas de Leacutevy-Bruhl

tais exigecircncias religiosas primitivas encontrar-se-iam copresentes aos modos de vida

civilizados na medida em que se constituiriam a partir da ldquostructure geacuteneacuterale de lrsquoesprit

humainrdquo (BERGSON 2001 p 1063107) Natildeo haacute pois diferenccedila de natureza entre a

mentalidade primitiva e a inteligecircncia saiacutedas das matildeos da natureza elas correspondem a

uma e mesma direccedilatildeo de desenvolvimento do eacutelan vital tatildeo inatos quanto a linguagem o

bom senso e o senso social no homem normal Natildeo eacute portanto em razatildeo da sociabilidade

que o homem difere estruturalmente dos himenoacutepteros ndash vimos outrossim que a

sociabilidade eacute uma tendecircncia comum a ambas as linhas divergentes de evoluccedilatildeo ndash mas

sim em razatildeo da indeterminaccedilatildeo que a inteligecircncia insere como potencial especiacutefico da

forma de vida do primeiro e que o instinto do segundo inibe Incapazes da inteligecircncia da

representaccedilatildeo e da invenccedilatildeo os insetos permanecem vinculados agrave vida pelo instinto que

nada mais eacute que o prolongamento natural do eacutelan nas formas de vida que o instinto habita

Na medida em que os insetos natildeo representam e o instinto assegura que suas accedilotildees sejam

necessaacuterias fixas e organicamente ordenadas as sociedades de himenoacutepteros natildeo

desenvolvem as supersticcedilotildees proacuteprias aos homens

Poreacutem como explicar no homem representaccedilotildees que engendram supersticcedilotildees A

resposta de Bergson descarta a imaginaccedilatildeo as funccedilotildees loacutegicas do espiacuterito para limitar-se agrave

descriccedilatildeo de uma funccedilatildeo que apesar de indeterminada encontra-se preacute-formada no

homem e ligada agrave vida em geral Trata-se da funccedilatildeo fabuladora que permitiraacute que tudo seja

explicado em profundidade pela vida em razatildeo de lrsquoattachement agrave la vie mas que

encontraraacute uma explicaccedilatildeo superficial a um soacute tempo individual e social162

Isso implica

poreacutem que compreendamos o sentido dessa necessidade natural a exigir uma funccedilatildeo

fabuladora como o efeito da religiatildeo

162

ldquo[] par rapport agrave la religion cette faculteacute [la fonction fabulatrice] serait effet et non pas cause Un

besoin peut-ecirctre individuel en tout cas social a ducirc exiger de lrsquoesprit ce genre drsquoactiviteacuterdquo (BERGSON 2001

p 1067112)

190

Tudo se passa como se a inteligecircncia consistisse em uma inclinaccedilatildeo perigosa tanto

ao indiviacuteduo quanto agrave sociedade Se entre os himenoacutepteros o instinto forja as accedilotildees que

correspondem a uma sociedade perfeita em que cada indiviacuteduo se encontra

organizadamente vinculado ao todo desempenha sua funccedilatildeo resultante de uma dada

inclinaccedilatildeo natural e estrutural entre os indiviacuteduos que participam de sociedades humanas

a inteligecircncia exerce uma funccedilatildeo duacuteplice na natureza A inteligecircncia permite a reflexatildeo ndash

que eacute capaz de transformar invenccedilatildeo em variabilidade e liberdade de accedilatildeo ndash inserindo

intervalos temporais cada vez maiores de hesitaccedilatildeo entre estiacutemulo e resposta e tornando

possiacutevel uma accedilatildeo tatildeo refletida quanto livre Ao mesmo tempo ao implicar a liberdade

mesma a inteligecircncia parece ameaccedilar a coesatildeo social ndash eacute portadora de perigos tanto quanto

do imprevisiacutevel ontoloacutegico que constitui a accedilatildeo livre A fim de assegurar a sociabilidade a

natureza encontrou na funccedilatildeo fabuladora um meio para prevenir-se contra as ameaccedilas que

levar a inteligecircncia e a indeterminaccedilatildeo tatildeo longe poderiam representar ao indiviacuteduo e agrave

coesatildeo social dessa forma a via encontrada teria sido invadir a inteligecircncia pouco a pouco

com a supersticcedilatildeo aproveitar os efeitos alucinatoacuterios da ficccedilatildeo ndash eficazes a ponto de

reorientarem condutas concretas desapegadas agrave vida ndash sem prejudicar a proacutepria

inteligecircncia163

Essa visatildeo eacute poreacutem ainda de todo esquemaacutetica A fim de confirmaacute-la seria preciso

compreender como a proacutepria natureza se previne em face da inteligecircncia e por outro lado

qual a origem da tendecircncia que encontra na funccedilatildeo fabuladora esse modo de prevenccedilatildeo

Para tanto conviria lembrar que por mais que as sociedades de himenoacutepteros e as de

homens procedam umas a partir do instinto outras a partir da inteligecircncia a comunidade

de eacutelan que descerraacutevamos acerca delas daacute conta de sua origem comum Tal origem

permitia entrever desde LrsquoEacutevolution Creacuteatrice que tanto o instinto encontrava-se

penetrado de certo niacutevel de inteligecircncia como a inteligecircncia aureolava-se de instinto como

uma nuvem de virtualidades copresentes agrave ela Eis o que definiria uma vez mais em

funccedilatildeo da inteligecircncia uma espeacutecie de instinto virtual que natildeo permite que o homem

divague infinitamente por meio da inteligecircncia e permaneccedila apegado agrave vida Se Bergson

diz que antes de filosofar eacute preciso viver eacute para assinalar que mesmo entre os homens o

instinto estaacute permanentemente agrave espreita ndash o que consiste no modo do virtual ndash ou que o

163

Ao inveacutes de as imagens alucionatoacuterias e das supersticcedilotildees contradizerem a inteligecircncia ldquoUne fiction si

lrsquoimage est vive et obseacutedante pourra preacuteciseacutement imiter la perception et par lagrave empecirccher ou modifier

lrsquoaction Une expeacuterience systegravematiquement fausse se dressant devant lrsquointelligence pourra lrsquoarrecircter au

moment ouacute elle irait trop loin dans les conseacutequences qursquoelle tire de lrsquoexpeacuterience vrai Ainsi aurait donc

proceacutedeacute la naturerdquo (BERGSON 2001 p 1067113)

191

instinto vigia sem cessar a inteligecircncia inibe a tendecircncia que a inteligecircncia tem a

especulaccedilatildeo desligada da vida e manteacutem um corpo atento agraves promessas e ameaccedilas de seu

entorno

Dito isso seria pois o caso de perguntar em que consiste essa tendecircncia que cria

nos homens uma faculdade que sugere a seres livres e inteligentes imagens quase

alucinatoacuterias Ao mesmo tempo trata-se de interrogar em que consiste a necessidade vital

a que essas imagens respondem Essas questotildees satildeo modos natildeo isomoacuterficos de propor em

profundidade o problema que concerne a Bergson no segundo capiacutetulo de Les Deux

Sources a saber em que consiste a complexa relaccedilatildeo entre fabulaccedilatildeo e vida Para

respondecirc-lo eacute preciso remontar a algumas descriccedilotildees de sua evoluccedilatildeo criadora sobre a

forma de vida humana ou o que chamamos de ciacuterculo antropoloacutegico ao qual a religiatildeo

encontra-se ligada bem como ao instinto virtual que circunda a inteligecircncia dos

vertebrados superiores (BERGSON 2001 p 1068-1069114)

O homem tal como saiacutedo das matildeos da natureza apresenta duas caracteriacutesticas a

inteligecircncia e a sociabilidade Para compreender em que sentido Bergson pode afirmar a

existecircncia de uma religiatildeo natural ao homem e como ela constitui uma exigecircncia vital que

se utiliza da inteligecircncia para reequilibrar a proacutepria vida seria preciso recolocar a

inteligecircncia e a sociabilidade na evoluccedilatildeo geral da vida interpretaacute-las biologicamente ndash no

sentido abrangente que Bergson advoga

Se retomarmos os dois sentidos em que a vida evoluiu veremos que a sociabilidade

encontra-se presente de modo bem-acabado em duas linhas divergentes que se originaram

de uma comunidade de eacutelan por essa razatildeo cada uma das linhas representam

desenvolvimentos diferenciados mas complementares da mesma tendecircncia natural agrave

sociabilidade Haacute pouco bastava que lanccedilaacutessemos os olhos agraves sociedades de insetos

himenoacutepteros (formigas abelhas) para percebermos uma forma imutaacutevel de organizaccedilatildeo

social baseada no instinto fixa e ordenada Na outra das linhas a dos homens poreacutem

verifica-se o desenvolvimento da sociabilidade segundo direccedilotildees inteligentes e inventivas

o que conduz a uma sociedade marcada pela variabilidade de formas de organizaccedilatildeo social

e permite que elas descrevam uma histoacuteria progressiva da evoluccedilatildeo desses modos de

relaccedilatildeo intersubjetiva Ao lado do instinto ndash prolongamento do esforccedilo organizador da

natureza ndash ou da inteligecircncia aureolada por franjas virtuais de instinto seja como for a

comunidade de eacutelan atesta que ldquole social est au fond du vitalrdquo (BERGSON 2001 p

1075123) Sendo a sociabilidade uma direccedilatildeo da vida que se reparte na medida em que

192

cresce ndash e que obseda ateacute mesmo as estruturas orgacircnicas individuais164

ndash ela se

manifestaraacute diferentemente nas linhas evolutivas e originaraacute dos dois tipos de sociedades

que viemos a conhecer as sociedades dos insetos e a dos homens

Na linha que corresponde agrave forma de vida humana ao ciacuterculo antropoloacutegico a

inteligecircncia eacute outorgada aos indiviacuteduos juntamente com a liberdade a indeterminaccedilatildeo e o

poder de iniciativa Pelo imprevisiacutevel que sua linha comporta e faz passar mas tambeacutem

pela tendecircncia ao egoiacutesmo que pode implicar a inteligecircncia ameaccedila romper em certos

pontos a coesatildeo social de tal forma que a natureza precisa encontrar um contrapeso agrave

inteligecircncia O instinto que inibido pela inteligecircncia persiste ao seu redor por forccedila de uma

comunidade original de eacutelan natildeo pode constituir esse contrapeso por seus proacuteprios meios

Em estado virtual ndash o que aqui significa natildeo agente e inibido ndash eacute apenas como resiacuteduo que

ele pode influir sobre a inteligecircncia todavia sob que forma um instinto virtual cujo lugar

encontra-se tomado pela inteligecircncia poderia atuar sobre ela Uma vez que o instinto natildeo

eacute inteligecircncia natildeo pode produzir representaccedilotildees no entanto pode agir sobre a inteligecircncia

ndash a produtora dessas representaccedilotildees possiacuteveis ndash na medida em que ainda eacute capaz de

suscitar imaginaacuterios contrapostos agrave representaccedilatildeo real Assim a inteligecircncia por meios

absolutamente proacuteprios poderaacute contrapor-se ao trabalho intelectual (BERGSON 2001 p

1076124) Eacute precisamente esta dinacircmica que define a funccedilatildeo fabuladora como o efeito do

apego agrave vida que reequilibra a coesatildeo social que tendecircncias e representaccedilotildees inteligentes

ameaccedilam romper No entanto devemos definir melhor em que consiste a funccedilatildeo social da

fabulaccedilatildeo bem como precisar como ela pode explicar-se pela proacutepria vida

Uma vez que constitui o prolongamento do trabalho organizador que a proacutepria vida

efetua em cada uma das linhas divergentes em que o eacutelan se reparte o instinto eacute

coextensivo agrave vida Se pressentiacuteamos nos indiviacuteduos uma certa tendecircncia virtual agrave

sociabilidade de suas partes constitutivas organizadas isso se deve ao fato de que o instinto

social nada mais revela que o espiacuterito de subordinaccedilatildeo e de coordenaccedilatildeo que se distribui e

anima as ceacutelulas tecidos e oacutergatildeos de todos os corpos vivos (BERGSON 2001 p

1077125) Por um lado Bergson natildeo cessa de afirmar a raridade da transmissibilidade dos

caracteres adquiridos por outro repete sem cessar a persistecircncia de tudo aquilo de que a

natureza dotou a forma de vida humana isto eacute das sociedades contemporacircneas agraves

sociedades primitivas virtualidades de instinto espreitam a inteligecircncia incessantemente

164

ldquoAgrave lrsquoeacutetat de simple tendence elle [la sociabiliteacute] est partout dans la nature [] La hantise de la forme

sociale qursquoon trouve dans un grand nombre drsquoespegraveces se reacutevegravele donc jusque dans la structure des individusrdquo

(BERGSON 2001 p 1074121) A expressatildeo entre colchetes natildeo se encontra no original

193

Daiacute porque o instinto no homem natildeo se encontraria suprimido mas inibido ou eclipsado

por uma outra tendecircncia de atualizaccedilatildeo da consciecircncia assim o instinto passa a secundar

como uma vaga nuvem de virtuais os nuacutecleos luminosos da inteligecircncia (BERGSON

2001 p 1077125-126)

Ao mesmo tempo em que a inteligecircncia permite inventar e progredir ameaccedila

prejudicar a disciplina social em dois sentidos que por constituiacuterem correlatos da

inteligecircncia satildeo inencontraacuteveis entre as formas de sociabilidade instintuais por um lado o

egoiacutesmo que ameaccedila a sociedade de desorganizaccedilatildeo e no limite de dissoluccedilatildeo e os

efeitos individuais nocivos originados por representaccedilotildees conscientes de eventos

imprevisiacuteveis que Bergson resumiraacute na representaccedilatildeo do acaso gerador de toda sorte de

supersticcedilotildees

Haacute pois em primeiro lugar um poder dissolvente da inteligecircncia que encontraraacute na

religiatildeo estaacutetica ndash aguilhoada agrave funccedilatildeo fabuladora como sua faculdade especiacutefica ndash uma

reaccedilatildeo defensiva da natureza Com isso estariacuteamos diante de uma ldquoreligiatildeo naturalrdquo ou

ldquoprimitivardquo que natildeo implica nenhum coacutedigo moral ou conteuacutedo de crenccedila especiacutefico165

sua

forccedila suficientemente potente contra o poder dissolvente da inteligecircncia reside no fato de

que a religiatildeo estaacutetica implica a existecircncia formal de costumes por intermeacutedio dos quais os

homens vinculam-se entre si e se desligam das projeccedilotildees utilitaacuterias e egoiacutestas que a

inteligecircncia naturalmente aconselha166

Assim torna-se possiacutevel estabelecer as expectativas

sociais sob certa atmosfera moral de confianccedila reciacuteproca

Do mesmo modo como a natureza se garante contra a desorganizaccedilatildeo e a

dissoluccedilatildeo ldquoLa reacutepresentation intelectuelle qui reacutetablit ainsi lrsquoeacutequilibre au profit de la

nature est drsquoordre religieuxrdquo (BERGSON 2001 p 1084134-135) e visa a proteger o

homem dos efeitos deprimentes de seu apego agrave vida pela representaccedilatildeo intelectual de sua

proacutepria morte Enquanto todos os outros seres vivos apegados intensamente agrave vida apenas

adotam instintivamente o sentido de seu impulso o homem eacute o animal consciente de que se

destina a morrer Eis o que o impede de a exemplo de outras formas de vida simplesmente

165

Tanto que Bergson afirmaraacute que os deuses em particular satildeo contingentes mas a confianccedila ndash objeto da

religiatildeo estaacutetica e que ele denomina ldquototalidade de deusesrdquo ou ldquodeus em geralrdquo ndash seria necessaacuteria ldquoLe

pantheacuteon existe indeacutependamment de lrsquohomme mais il deacutepend de lrsquohomme drsquoy faire entrer un dieu et de lui

confeacuterer ainsi lrsquoexistence [] chaque dieu determineacute est contingent alors que la totaliteacute des dieux ou plutocirct

le dieu en geacuteneacuteral est neacuteceacutessairerdquo (BERGSON 2001 p 1145211) 166

ldquoTout ce qui est habituel aux membres du groupe tout ce que la socieacuteteacute attend des individus devra donc

prendre un caractegravere religieux srsquoil est vrai que par lrsquoobservation de la coutume et par elle seulement

lrsquohomme est attacheacute aux autres hommes et deacutetacheacute ainsi de lui-mecircme [] Agrave lrsquoorigine la coutume est toute la

morale et comme la religion interdit de srsquoen eacutecarter la morale est coextensive agrave la religionrdquo (BERGSON

2001 p 1079128)

194

confiar no futuro inibir toda representaccedilatildeo mortificadora ou ameaccediladora proveniente do

devir Poreacutem de onde procede essa consciecircncia sobre a proacutepria finitude senatildeo da

inteligecircncia A reflexatildeo que nasce junto com a inteligecircncia permite que o homem perceba

que tudo o que existe agrave sua volta perece assim logicamente deduz-se que ele tambeacutem

deva estar destinado a morrer Isso eacute o que constitui o deprimente de sua relaccedilatildeo de apego

agrave vida (BERGSON 2001 p 1085-1086136-137)

Na medida em que a inteligecircncia possui um efeito depressor sobre o indiviacuteduo a

funccedilatildeo fabuladora pode constituir o baacutelsamo de que a natureza equipou o vivente

Contrapondo agrave ideia de uma morte inevitaacutevel a imagem de uma vida apoacutes a morte lanccedilada

ao seio da proacutepria inteligecircncia torna-se possiacutevel reordenar as coisas ter novamente

confianccedila na vida e equilibrar as repeticcedilotildees de ideias negativas sobre o devir Desse ponto

de vista ldquola religion est une reacuteaction deacuteffensive de la nature contre la repreacutesentation par

lrsquointelligence de lrsquoinevitabiliteacute de la morterdquo (BERGSON 2001 p 1086137) tanto

indiviacuteduo como sociedade terminam por tirar proveito disso Assim como ao primitivo

bastaria ver sua imagem refletida em uma poccedila drsquoaacutegua para perceber pela primeira vez a

existecircncia de uma sua imagem completamente separada de seu corpo ndash modo no qual ela

poderia quem sabe sobreviver indefinidamente ndash isso seria suficiente para pensar de

modo inteiramente natural que o homem sobreviva em um estado espectral (comumente

em estado de sombra ou fantasma) agrave proacutepria morte (BERGSON 2001 p 1088139) A

sociedade tiraraacute proveito das imagens da vida apoacutes a morte assim lanccediladas em face das

representaccedilotildees da inevitabilidade do desaparecimento na medida em que isso tornaraacute

possiacutevel manter-se estaacutevel e duraacutevel prolongando a histoacuteria dos contemporacircneos e das

geraccedilotildees futuras na dos antepassados que cultuados poderatildeo ver-se transformados em

deuses Misturados com os vivos os mortos podem ainda agir sobre eles conservando-se

em estado espectral sua reminiscecircncia permitiraacute engendrar lendas e mitos em tudo

patrocinadas pelas fabulaccedilotildees coletivas167

Seja como for as duas garantias pelas quais a funccedilatildeo fabuladora responde ndash aquelas

contra a dissoluccedilatildeo ou a desorganizaccedilatildeo e a depressatildeo ndash permitem finalmente

compreender a religiatildeo como ponto de apoio natural contra a imprevisibilidade e o

sentimento de risco que a aplicaccedilatildeo da proacutepria inteligecircncia agrave vida parece implicar Todavia

esse sentimento ndash que natildeo se pode encontrar entre os animais seguros de si ndash deve-se

167

ldquoLes morts vont alors devenir des personnages avec lesquels il faut compter Il peuvent nuire Il peuvent

rendre service Ils disposent jusqursquoagrave un certain point de ce que nous appelons les forces de la naturerdquo

(BERGSON 2001 p 1090141)

195

justamente ao fato de que entre a representaccedilatildeo de um objetivo a atingir e o ato que visa a

ele ndash entre presa e captura entre flecha e alvo ndash vem inserir-se a inteligecircncia combinatoacuteria

de meios e fins Tornada presente a inteligecircncia eacute a indeterminaccedilatildeo da accedilatildeo a

representaccedilatildeo de certa margem de imprevisto como ameaccedilas filiadas ao proacuteprio tempo

que se tornam presentes agrave inteligecircncia Na medida em que a morte eacute obra do acaso por

excelecircncia pode-se afirmar em geral que todas as representaccedilotildees religiosas constituem

reaccedilotildees defensivas da natureza contra a representaccedilatildeo pela inteligecircncia de uma faixa

desestimulante de imprevisibilidade ndash natildeo raro vinculada ao medo e agrave necessidade ndash entre

a iniciativa tomada e o efeito almejado (BERGSON 2001 p 1094146) A experiecircncia da

vontade de ter sucesso que prova de que modo a supersticcedilatildeo pode entre homens muito

contemporacircneos inserir-se como representaccedilatildeo no seio da inteligecircncia poderia ser feita

ainda hoje e de modo muito simples poderia ser vivida imediatamente em um cassino em

um jogo de roleta por exemplo Logo esse homem se veraacute ndash imaginariamente ndash

empurrando a bolinha com a matildeo para mais proacuteximo do nuacutemero escolhido tentando

expulsar o acaso para ganhar a aposta Ora o mesmo ocorre com o selvagem que apela agrave

supersticcedilatildeo agrave magia ou agrave religiatildeo para que sua flecha atinja o alvo (BERGSON 2001 p

1094147) A supersticcedilatildeo toda vez em um caso como em outro natildeo passaraacute da

remodelaccedilatildeo em consecuccedilotildees mecacircnicas de causas e efeitos ndash isto eacute por vias racionais

Em resumo ldquoAgrave lrsquoorigine des croyances que nous venons drsquoenvisager nous avons

trouveacute une reacuteaction deacutefensive de la nature contre un deacutecouragement qui aurait sa source

dans lrsquointelligencerdquo (BERGSON 2001 p 1104159) Essa reaccedilatildeo suscita no proacuteprio seio

da inteligecircncia imagens e ideias que frustram a representaccedilatildeo deprimente ou a impedem de

se tornar completa Eis a dinacircmica segundo a qual a confianccedila no devir torna-se o

significado vital profundo de toda crenccedila garantia contra o medo e o receio que deprimem

o apego agrave vida ou ameaccedilam a coesatildeo social A reaccedilatildeo da natureza eacute positiva natildeo temerosa

a religiatildeo eacute antes de tudo uma reaccedilatildeo da vida contra o temor e assegura Bergson (2001 p

1105160) ldquoelle nrsquoest pas du tout de suite croyance agrave des dieuxrdquo ndash como se a confianccedila que

o otimismo do eacutelan vital inspira fosse uma espeacutecie de crenccedila ateia no porvir ou como se a

feacute fosse a razatildeo natural da religiatildeo sua condiccedilatildeo apenas formal e sem conteuacutedo Bergson o

comprova pela relaccedilatildeo do homem com a forccedila incomensuraacutevel da natureza na medida em

que um fenocircmeno qualquer jamais precisa de uma individualidade ou personalidade

completa agrave qual demos a matildeo ndash bastaria ver o que se passa com a longa e peculiar narraccedilatildeo

de William James em que toda a teologia sob todos os aspectos daacute um testemunho

profundo de confianccedila original na vida (BERGSON 2001 p 1105-1107161-162)

196

Natildeo haacute nessa religiatildeo deveras originaacuteria nenhuma determinaccedilatildeo semiespeculativa

de uma realidade preacute-loacutegica da mente primitiva Pelo contraacuterio haacute a forma de vida

copresente ao primitivo como ao homem contemporacircneo de uma inteligecircncia que ameaccedila

seu apego agrave vida e agrave sociedade O instinto e a vida satildeo os vigias da inteligecircncia168

Haacute um

jogo combinatoacuterio entre instinto e inteligecircncia que o determina De todo modo este teria

sido o erro que Bergson reprovara a Leacutevy-Bruhl vincular a religiatildeo a uma suposta

realidade preacute-loacutegica inerente agrave mentalidade do homem primitivo quando na verdade ldquola

religion eacutetant coextensive agrave notre espegravece doit tenir agrave notre structurerdquo afinal ldquo[] crsquoest

drsquoune neacutecessiteacute vitale qursquoont ducirc sortir les dispositions et les convictions originellesrdquo

(BERGSON 2001 p 1125185)

A religiatildeo estaacutetica ndash signo fabulador de lrsquoattachement agrave la vie ndash vincula-se agrave vida

em profundidade na medida em que se destina naturalmente a afastar os perigos a que a

inteligecircncia tende a expor o homem (BERGSON 2001 p 1133196) nesse sentido

fazendo as vezes de um representante do instinto virtual ela eacute infraintelectual e natural agrave

linha de evoluccedilatildeo que encontra no homem seu termo Com a funccedilatildeo fabuladora o homem

deveria escapar dos perigos globalmente dados com sua inteligecircncia saindo-se bem tanto

no plano individual da garantia contra a depressatildeo quando no plano social ou coletivo da

garantia contra a dissoluccedilatildeo ou a desorganizaccedilatildeo

Poreacutem assim como a moral natildeo eacute somente estaacutetica e infraintelectual a religiatildeo

tampouco eacute apenas esta natural Ainda no plano da vida mas projetando-se no sentido da

evoluccedilatildeo do eacutelan vital a religiatildeo pode envolver-se em uma dimensatildeo supraintelectual

estariacuteamos diante da religiatildeo dinacircmica capaz de desprender o homem de seu infinito girar

sobre o raio dado com o ciacuterculo da espeacutecie e de possibilitar a ele inserir-se novamente na

corrente evolutiva viva prolongando-a Globalmente a religiatildeo se explica biologicamente

ndash no sentido amplo e compreensivo que Bergson quisera atribuir a essa palavra A proacutepria

funccedilatildeo fabuladora comum agraves artes dramaacuteticas e agraves praacuteticas literaacuterias natildeo seria senatildeo a

continuidade luacutedica ou liacuterica desses esquemas vitais fabricadores de personagens com os

quais nossa tendecircncia agrave supersticcedilatildeo busca reequilibrar em noacutes os perigos do egoiacutesmo e da

depressatildeo contidos na tendecircncia como na atividade intelectual Natildeo haveria portanto

grande distacircncia no que diz respeito agrave faculdade fabuladora entre o romance

contemporacircneo e os contos antigos as lendas os conteuacutedos folcloacutericos ou mitoloacutegicos

168

ldquoLrsquointelligence est donc neacutecessairement surveilleacutee par lrsquoinstinct ou plutocirct par la vie origine commune de

lrsquoinstinct et de lrsquointelligencerdquo (BERGSON 2001 p 1112169)

197

A natureza entrega-nos uma humanidade aguilhoada ao ciacuterculo antropoloacutegico que

tende a uma sociedade fechada por forccedila natural da obrigaccedilatildeo e pela coesatildeo criada pela

religiatildeo estaacutetica e por sua funccedilatildeo fabuladora No interior dessa forma de vida propriamente

humana e natural indiviacuteduo e sociedade implicam-se reciprocamente circularmente

todavia esse ciacuterculo recebe em si mesmo uma fratura no dia em que se tornou possiacutevel ao

homem recolocar-se no sentido do impulso criador que se depositara em sua forma de vida

inteligente impelindo a natureza humana para frente ao inveacutes de deixaacute-la girar

infinitamente sobre o eixo que sua forma descreve (BERGSON 2001 p 1144210) A

abertura assim efetuada pela possibilidade inventiva copresente agrave inteligecircncia e agrave funccedilatildeo

fabuladora doava aos homens a possibilidade de uma religiatildeo que Bergson afirma ser

individual e ao mesmo tempo profundamente social Eis a miacutestica como cintilacircncia do

aberto em tudo diversa da religiatildeo estaacutetica que coagindo agrave disciplina (miacutemesis do

automatismo que fixaria haacutebitos no corpo) implicaraacute a solidificaccedilatildeo da crenccedila originada

das necessidades vitais em ritos e cerimocircnias que ao mesmo tempo em que reforccedilam a

disciplina produzem um estreitamento da solidariedade entre uma forma de culto e as

divindades a ele relativas

Nesse quadro a funccedilatildeo geral da religiatildeo estaacutetica poderia resumir-se a corrigir a

dupla imperfeiccedilatildeo humana que do ponto de vista estritamente natural a inteligecircncia

implica Seu ocircnus consiste como vimos na possibilidade de representando pela

inteligecircncia maior bem-estar sucesso de gozo de utilidades conduzir-se com egoiacutesmo a

despeito dos laccedilos de solidariedade social trata-se do potencial dissolvente ou

desorganizador da inteligecircncia que encontra no egoiacutesmo sua forma subjetiva mais bem

acabada O uacuteltimo de seus ocircnus constitui-se nos efeitos deprimentes que a inteligecircncia

pode opor ao apego agrave vida Representando-se como destinado a morrer o indiviacuteduo

deixaria afrouxarem-se os laccedilos que o unem ao todo social a si mesmo e ao fundo da vida

do qual proveacutem Incapaz de conter a fuacuteria imprevisiacutevel da natureza ou a inevitabilidade

dos eventos movidos pela forccedila do acaso a inteligecircncia teria por efeito um

desencorajamento natural ao qual a funccedilatildeo fabuladora tende a responder de imediato

inserindo imagens quase alucinatoacuterias no seio da proacutepria inteligecircncia fazendo com que o

primitivo recorra agrave religiatildeo para que suas flechas encontrem o destino desejado como o

homem pareceraacute soprar e mover imaginariamente com a matildeo no ar a bolinha lanccedilada agrave

roleta acreditando poder manejar as causas do acaso169

Maacutequinas de fabricar deuses e de

169

ldquoLa religion est ce qui doit combler chez des ecirctres doueacutes de reacuteflexion un deacuteficit eacuteventuel de

lrsquoattachement agrave la vierdquo (BERGSON 2001 p 1154223)

198

fabular narrativas seratildeo montadas por toda parte onde o homem sente esmaecer sua forccedila

vital e sua confianccedila na vida e no devir A funccedilatildeo fabuladora nesse contexto natildeo deixa de

ser inteligecircncia sem ser inteligecircncia pura ndash ela eacute ainda um refluxo do instinto virtual que

natildeo permite duvidar da vida segundo o qual ndash enquanto o homem se ressente de ser o

uacutenico animal que sabe que vai morrer ndash ldquoLe reste de la nature srsquoeacutepanouit dans une

tranquiliteacute parfaiterdquo (BERGSON 2001 p 1149216) A funccedilatildeo fabuladora eacute a encarregada

de fabricar uma religiatildeo natural pela qual o vital reage contra o que haveria de deprimente

para o indiviacuteduo e de dissolvente para a sociedade no exerciacutecio da inteligecircncia170

Por isso

a natureza entrega o individual e o social fechados em um ciacuterculo em uma forma de vida

definida pelas doenccedilas da representaccedilatildeo e da inteligecircncia bem como pelas formas

virtualmente instintuais e fabuladoras de reequilibraacute-las Nem sempre se atenta para o fato

de que uma compreensatildeo bioloacutegica da religiatildeo implica apontar que a religiatildeo estaacutetica ou

natural concorre precisamente para fornecer aos homens os instrumentos de sua

sociabilidade bem como da constituiccedilatildeo social de sua individualidade Ela corresponde ao

mesmo tempo a funccedilotildees morais e nacionais visa a estreitar e a conservar aquilo que

constitui e fortalece um grupo a tradiccedilatildeo a necessidade a vontade de defender o grupo

contra outros situando-o acima de tudo171

A religiatildeo engendra um homem sociaacutevel e no

entanto preso ao ciacuterculo antropoloacutegico de uma inteligecircncia que alargada e compensada no

que apresenta de ameaccedilador ao indiviacuteduo e agrave sociedade ainda natildeo conheceu o aberto ndash e

que todavia seu vir agrave existecircncia jaacute implica e revela

sect 2 ABRIR O FECHADO RUPTURA E DEVIR

A sociedade tal como saiacuteda das matildeos da natureza tende ndash como vimos ndash ao

fechado Em seu interior a religiatildeo natildeo apenas eacute constitutiva da moral como da identidade

de grupo que assegura as identidades individuais a coesatildeo social a divisatildeo do trabalho os

elementos da tradiccedilatildeo da moral e do grupo nacional a conservaccedilatildeo do que pareceu ser um

infinito girar sobre o eixo social devido ao ciacuterculo antropoloacutegico Se a funccedilatildeo fabuladora

insere imagens quase alucinatoacuterias na inteligecircncia humana ndash semelhantes como diz

170

ldquo[] lrsquointelligence serait un obstacle agrave la seacutereacuteniteacute qursquoon trouve partout ailleurs et [] lrsquoobstacle doit ecirctre

surmonteacute lrsquoeacutequilibre reacutetablirdquo (BERGSON 2001 p 1152219) 171

ldquoAgrave conserver agrave resserrer ce lien vise incontestablement la religion que nous avons trouveacutee naturelle elle

est commune aux membres drsquoun groupe elle les associe intimement dans des rites et des ceacutereacutemonies elle

distingue le groupe des autres groupes elle garantit le succegraves de lrsquoentreprise commune et assure contre le

danger communrdquo (BERGSON 2001 p 1152218)

199

Bergson (2001 p 1154223) agraves histoacuterias com as quais embalamos as crianccedilas e as

colocamos para dormir ndash eacute a fim de fazer frente aos perigos que a representaccedilatildeo

inteligente dada com a reflexatildeo172

implica Nesse sentido uma religiatildeo natural primitiva

ou se o quisermos estaacutetica mostrou-se profundamente vital ao ligar o homem agrave vida e o

indiviacuteduo agrave sociedade No entanto o ponto de vista da sociedade tal como saiacuteda das matildeos

da natureza natildeo eacute o de sua gecircnese ou de seu movimento mas se perspectiva como uma

parada virtual do movimento criador pelo qual o eacutelan depositou em um ponto extremo a

forma de vida a que nomeamos humanidade (BERGSON 2001 p 1154223) A fim de

superar o desencorajamento para a vida o homem deveria caminhar muito mais no sentido

das vagas franjas de intuiccedilatildeo que permaneceram ao redor de sua inteligecircncia que no

sentido da proacutepria inteligecircncia que tende precisamente agraves representaccedilotildees

desencorajadoras Eis o que implicaria a necessidade de apreender o fenocircmeno religioso

natildeo mais do ponto de vista estaacutetico de sua parada virtual funcional e coextensiva a uma

forma de vida marcada pela inteligecircncia mas do ponto de vista de sua gecircnese ou de seu

movimento real Se o vir agrave existecircncia de uma forma de sociabilidade fechada jaacute denuncia o

aberto eacute porque eacute dele que ela mesma procede em profundidade Assim como uma parada

virtual soacute pode explicar-se pela realidade de um movimento absoluto ou como um instante

soacute pode explicar-se segundo o indomaacutevel fluxo da duraccedilatildeo o estaacutetico soacute pode ser

compreendido em funccedilatildeo do dinacircmico e o fechado em funccedilatildeo da vitalidade do aberto que

lhe trouxera agrave luz

Viacuteamos toda essa extensa questatildeo resumir-se na pergunta ldquoComo abrir o fechadordquo

como produzir no ciacuterculo social no qual uma forma de vida gira infinitamente a fim de

conservar-se como tal uma ruptura ou transcrevendo um problema poliacutetico em termos

mais profundamente ontoloacutegicos como dissolver uma forma (de vida) e liberar seus

devires Eis o que estaacute em questatildeo na profunda discussatildeo sobre a abertura do fechado que

conduz Les Deux Sources na direccedilatildeo do campo de experiecircncia miacutestica (SITBON-

PEILLON 2002 p 185) Ou como quisera Worms (2011 p 323) se haacute toda uma

distacircncia infinita ndash uma diferenccedila de natureza ndash entre o fechado e o aberto entre a naccedilatildeo e

a humanidade como efetuar esse salto radical que traduz tambeacutem a diferenccedila entre os

niacuteveis do infra e do supraintelectual Afinal natildeo teria sido o proacuteprio Bergson (2001 p

1202284) a declarar que ldquoDe la socieacuteteacute close agrave la socieacuteteacute ouverte de la citeacute agrave lrsquohumaniteacute

on ne passera jamais par voie drsquoeacutelargissement Elles ne sont pas de mecircme essencerdquo

172

ldquo[] lrsquoinvention qui porte en elle la reacuteflexion srsquoeacutepanouit en liberteacuterdquo (BERGSON 2001 p 1153222)

200

Para solucionar essas questotildees que se dissimulam sob a aparente simplicidade

pragmaacutetica da pergunta sobre como abrir o fechado seraacute preciso compreender o fenocircmeno

religioso como um misto de fechamento e abertura seraacute necessaacuterio desenvolver um olhar

capaz de compreender o entreaberto ainda que ele possa rapidamente ser reconduzido ao

fechamento e agrave consolidaccedilatildeo Talvez esse fosse o sentido de uma moral de transiccedilatildeo

(BERGSON 2001 p 102862) e de sua atitude subjetiva correspondente quando Bergson

afirmava que entre a alma fechada e a aberta haveria a alma que se abre A fim de

solucionar a gecircnese da transiccedilatildeo no seio da Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo natildeo estariacuteamos

agrave procura do ponto de transiccedilatildeo coextensivo a essa atitude subjetiva da alma que se abre e

portanto de um ponto de vista dinacircmico

Todavia viacuteamos que o infinito girar sur place que caracterizava a forma de vida

humana tal como saiacuteda das matildeos da natureza era suspenso justamente por esta natildeo ser dada

como forma pura reencontraacutevamos em seu interior um ponto de ruptura do fechamento

uma brecha de reflexatildeo hesitaccedilatildeo liberdade e de duraccedilatildeo que o eacutelan introduzia e que por

meio do homem orientava-se no mesmo sentido do eacutelan ndash o sentido da criaccedilatildeo173

Na

medida em que natildeo subsiste no homem nem instinto tampouco inteligecircncia puros mas

pontos luminosos aureolados de vagas nuvens de virtuais instintivos174

o misticismo ndash

definido em funccedilatildeo de sua relaccedilatildeo com o impulso vital (BERGSON 2001 p 1156225) ndash

eacute o que completaraacute em accedilatildeo essa vaga franja de intuiccedilatildeo que aureola a inteligecircncia e que

produz um apego agrave vida em sentido totalmente diverso daquele que a religiatildeo estaacutetica

produzia

Contudo como se produz essa passagem do estaacutetico ao dinacircmico Bergson (2001

p 1156225) admite que o misticismo natildeo apenas eacute uma essecircncia rara vinculada a

personalidades tatildeo excepcionais que seriam mais que humanas mas que em geral ele

pode ser encontrado em estado de diluiccedilatildeo e assim tornado eficaz Da perspectiva de uma

religiatildeo mista composta por ritos cerimocircnias e tradiccedilotildees mas tambeacutem por um vago

perfume miacutestico que se comunica ao todo tudo se passa como se a diferenccedila de natureza

que haacute entre o estaacutetico e o dinacircmico se resolvesse em uma seacuterie de diferenccedilas de grau

(BERGSON 2001 p 1156225) Se o miacutestico eacute um indiviacuteduo excepcional e

essencialmente raro se a maioria natildeo podendo subir tatildeo alto quanto esse homem

173

Por essa razatildeo Brigitte Sitbon-Peillon (2002 p 187) escrevera que ldquoLa chance de lrsquohomme crsquoest

justement lrsquoimpureteacute dans laquelle tout existerdquo 174

A proacutepoacutesito Bergson (2001 p 610136-137) o afirmara em LrsquoEacutevolution Creacuteatriceldquo Il nrsquoy a pas

drsquointeligence ougrave lrsquoon ne deacutecouvre des traces drsquoinstinct pas drsquoinstinct surtout qui ne soit entoureacute drsquoune frange

drsquointelligencerdquo

201

privilegiado no entanto sente que algo de si lhes faz eco e responde assim a seu apelo o

misticismo constituiraacute um apelo agrave aspiraccedilatildeo que produz algo novo no antigo175

No interior

desse misto foacutermulas e ritos aparentemente vazios repetidos ao longo da duraccedilatildeo podem

fazer surgir inconscientemente o estado de espiacuterito capaz de preenchecirc-las Se a repeticcedilatildeo

pode gerar o ecircmulo espiritual de grandes homens de gecircnio eacute porque o que parece idecircntico

na repeticcedilatildeo eacute apenas uma forma abstrata a repeticcedilatildeo e a imitaccedilatildeo conservam virtualmente

o potencial de engendrarem criaccedilotildees transmitirem estados de espiacuterito reabrir uma alma

fechada e dissolver o estaacutetico Na medida em que Bergson (2001 p 1158228) diz que um

professor mediacuteocre que repete maquinalmente foacutermulas concebidas por grandes espiacuteritos

pode despertar em um aluno a vocaccedilatildeo que a ele proacuteprio eacute de todo inaudiacutevel tornando-o

inconscientemente ldquoen eacutemule de ces grands hommesrdquo o modo do inconsciente reenvia a

um virtual agrave espreita que definiraacute natildeo apenas o aberto mas a atitude subjetiva

correspondente da alma aberta e do miacutestico Nessa medida tudo se passa como se

atenuaacutessemos a diferenccedila entre o fechado e o aberto como se lanccedilaacutessemos uma ponte entre

o estaacutetico e o dinacircmico (BERGSON 2001 p 1158-1159229) ou como se descobriacutessemos

no ciacuterculo social uma ruptura pela qual a duraccedilatildeo ndash que eacute tambeacutem liberdade e criaccedilatildeo ndash se

infiltra Dessa maneira mesmo a mais vazia repeticcedilatildeo girando em falso poderaacute transmitir

essa liberdade insidiosa e incendiaacuteria que se inscreve igualmente no anthropos e em suas

formas de laccedilo social

Essa liberdade forma subjetiva da duraccedilatildeo encontra no modo de vida miacutestico seu

exemplar e seu intenso campo de provas Natildeo se trata de recuperar cada um dos pontos

notaacuteveis da argumentaccedilatildeo de Bergson sobre o misticismo grego oriental e cristatildeo

(BERGSON 2001 p 1159-1172229-246) mas de demonstrar o profundo papel da

miacutestica como forccedila especiacutefica das transiccedilotildees de alma mas tambeacutem das formas sociais de

vida Nesse sentido a miacutestica deve ser compreendida independentemente de seus

conteuacutedos ndash de crenccedila ou patoloacutegicos ndash meramente acidentais (BERGSON 2001 p

1170243) Eacute preciso compreender o miacutestico ldquopriveacute de ses extases de ses visions de tous

ces eacutetats anormaux et morbidesrdquo que natildeo satildeo condiccedilotildees necessaacuterias mas eventuais nas

quais o misticismo se produz (SITBON-PEILLON 2002 p 188) Este eacute o sentido

transcendental no qual Bergson toma a experiecircncia miacutestica concreta ndash se compreendermos

transcendental uma vez mais como o que define as condiccedilotildees da experiecircncia concreta

175

ldquoAinsi se constituera une religion mixte qui impliquera une orientation nouvelle de lrsquoancienne une

aspiration plus ou moins prononceacutee du dieu antique issu de la fonction fabulatrice []rdquo (BERGSON 2001

p 1157227)

202

Nesse sentido a experiecircncia de revelaccedilatildeo interior que William James descrevera a partir da

inalaccedilatildeo do protoacutexido de nitrogecircnio e que Bergson compara ao estado de embriaguez

dionisiacuteaca seria tambeacutem ela integralmente miacutestica na medida em que a intoxicaccedilatildeo natildeo

passaria do ensejo para a emergecircncia de um estado de alma que jaacute estava prefigurado ldquoIl

eucirct pu ecirctre eacutevoqueacute spirituellement par un effort accompli sur le plan spirituel qui eacutetait le

sienrdquo (BERGSON 2001 p 1160231) Mesmo a filosofia grega que conduzira o

pensamento humano a seu mais alto grau de abstraccedilatildeo e generalidade natildeo teria se passado

da experiecircncia dionisiacuteaca da embriaguez denotando que mesmo no fundo de uma

evoluccedilatildeo puramente racional estaacute um impulso ou um abalo que natildeo foram de ordem

racional176

Aquilo a que as experiecircncias gregas orientais ndash especialmente hindu e budista ndash e

cristatildes tendem eacute a um misticismo que seraacute completo apenas entre estas uacuteltimas O que

define o misticismo completo emancipado de suas circunstacircncias acidentais eacute uma

tomada de contato uma coincidecircncia parcial com o esforccedilo criador que a vida manifesta

segundo Bergson (2001 p 1162233) Essa definiccedilatildeo do misticismo afigura-se de todo

capital e por diversas razotildees Em primeiro plano porque toma o misticismo naquilo que

constitui as condiccedilotildees transcendentais de sua experiecircncia concreta independentemente de

elementos acidentais Nesse sentido o misticismo eacute definido como um esforccedilo ativo e

como uma coincidecircncia parcial com o esforccedilo criador que a vida manifesta Natildeo por acaso

Bergson (Ibidem loc cit) diraacute desse esforccedilo que ele ldquoest de Dieu si nrsquoest pas Dieu lui-

mecircmerdquo Em segundo plano o misticismo que coincide com a vida encontra no indiviacuteduo

miacutestico a ponta extrema de seu esforccedilo criador a agir sobre a proacutepria forma de vida na qual

se encarna e a qual supera sem cessar ldquoLe grand mystique serait une individualiteacute qui

franchirait les limites assigneacutees agrave lrsquoespegravece par sa mateacuterialiteacute qui continuerait et

prolongerait ainsi lrsquoaction divinerdquo (Idem ibidem loc cit) Se haacute um Deus em Bergson ele

natildeo seria laacute muito diverso do eacutelan vital177

o miacutestico por sua vez natildeo seria nada muito

diverso de um super-homem a prolongar o movimento do eacutelan em uma direccedilatildeo Por essa

razatildeo o miacutestico pode ser definido como individualidade que supera os limites impostos

pela espeacutecie e pela forma de vida por sua materialidade e continua a accedilatildeo divina que se

confunde aqui com a accedilatildeo da proacutepria vida Eacute nessa medida que uma vez que a religiatildeo

176

ldquo[] crsquoest une force extra-rationelle qui suscita ce deacuteveloppement rationel et qui la conduisit agrave son terme

au-delagrave de la raisonrdquo (BERGSON 2001 p 1161232) 177

A propoacutesito Deleuze (1966 p 118) afirma que o Deus bergsoniano possui todas as caracteriacutesticas do

Impulso vital No mesmo sentido Worms (2011 p 249) afirmaraacute que Deus coincide com ldquoo processo de

criaccedilatildeo e de crescimento operante na realidade materialrdquo Por fim Cf (BOUANICHE 2002 p 162) cuja

leitura empresta ao Deus bergsoniano as feiccedilotildees de um fluxo criador e vital

203

estaacutetica fora definida como a religiatildeo natural a religiatildeo dinacircmica propulsionada por um

misticismo ativo poderaacute ser definida como salto fora da espeacutecie e da natureza

(BERGSON 2001 p 1164236)

Deixando o cristianismo dos grandes miacutesticos cristatildeos de lado como seu conteuacutedo

meramente acidental178

Bergson afirma que apenas entre eles teria sido possiacutevel encontrar

uma experiecircncia miacutestica completa que seria definida como accedilatildeo criaccedilatildeo e amor Agraves

experiecircncias orientais teria faltado o caraacuteter ativo da miacutestica agraves gregas o impulso natildeo

teria sido prolongado muito aleacutem e teria encontrado uma intelectualidade natildeo dilatada179

Os miacutesticos cristatildeos por sua vez ndash Santa Teresa Satildeo Francisco de Assis Joana DrsquoArc ndash

teriam sido os modelos de individualidades excepcionais que realizaram uma miacutestica

completa e ativa no domiacutenio da accedilatildeo Assimilados natildeo raro a doentes os miacutesticos e as

agitaccedilotildees profundas de suas almas eram capazes de subverter a cisatildeo entre o normal e o

patoloacutegico em proveito de um ldquoequiliacutebrio superiorrdquo (BERGSON 2001 p 1169-1170242-

243)

Poreacutem como esse reequiliacutebrio se processa e como uma alma encontra em si uma

abertura a partir da experiecircncia miacutestica Bergson define a experiecircncia miacutestica como uma

experiecircncia em que a alma eacute arrastada irresistivelmente por uma forccedila agrave qual cede Na

medida em que uma alma eacute abalada em suas profundezas pela corrente que a arrastaraacute estaacute

dada a abertura a alma cessa de girar sobre si mesma escapa agrave forma de vida descrita

biologicamente pela espeacutecie e que condiciona o indiviacuteduo a ela circularmente salta para

fora da natureza ao ouvir um chamado que a solicita ldquosempre em frenterdquo A iluminaccedilatildeo

confunde-se com esse momento imponderaacutevel de gozo em que os problemas se dissipam e

tudo parece resolver-se em uma visatildeo simboacutelica que anuncia a proacutepria presenccedila de Deus

Contudo ela natildeo se deteacutem nem na contemplaccedilatildeo nem no ecircxtase ela age movida por um

impulso que a arremessa agrave accedilatildeo (BERGSON 2001 p 1170-1171243-245) A alma

miacutestica que parece pendular sob uma noite escura como jamais houve torna-se um

instrumento maravilhoso pelo qual a vida e Deus mesmo agem nela em uma uniatildeo total e

definitiva ldquoDisons que crsquoest deacutesormais pour lrsquoacircme une surabondance de vie Crsquoest un

immense eacutelanrdquo (BERGSON 2001 p 1172246)

178

ldquoLe mysticisme complet est en effet celui des grands mystiques chreacutetiens Laissons de cocircteacute pour le

moment leur christianisme et consideacuterons chez eux la forme sans matiegravererdquo (BERGSON p 1168240) 179

ldquo[] ni dans la Gregravece ni dans lrsquoInde antique il nrsquoy eut de mysticisme complet tantocirct parce que lrsquoeacutelan fut

insuffisant tantocirct parce qursquoil fut contrarieacute par ler circonstances mateacuterielles ou par une intellectualiteacute trop

eacutetroiterdquo (BERGSON 2001 p 1668240)

204

O contato da alma com o princiacutepio do qual emana uma superabundacircncia de

vitalidade testemunha que nela liberdade e esforccedilo criador coincidem Trata-se de um

misticismo que natildeo se deteacutem no ecircxtase no gozo miacutestico mas atinge a suprema alegria de

uma alma que se faz preencher por um amor universal comparaacutevel apenas agravequele que Deus

experimenta em relaccedilatildeo ao todo Trata-se enfim do mesmo amor pelo todo ndash salto para

fora dos ciacuterculos fechados da moral famiacutelia paacutetria humanidade O amor e a emoccedilatildeo

criadora que estatildeo implicados na experiecircncia miacutestica superam a proacutepria natureza que

quisera que nos mantiveacutessemos fechados aos grupos familiar e social que encontraacutessemos

na paacutetria o sentido de nossa existecircncia e em uma fraternidade ideal e descarnada o

fundamento de nossa moral Contudo o amor miacutestico eacute supraintelectual natildeo constitui nem

o prolongamento sensiacutevel do instinto nem a continuidade racional de uma ideia180

Eacute nessa medida que Bergson poderaacute descrever o misticismo como portador de uma

essecircncia mais metafiacutesica do que moral ele conduz agrave experiecircncia capaz de interrogar os

arcanos da criaccedilatildeo que tem lugar por toda parte assume o sentido do impulso vital

comunicado a homens privilegiados que desejam imprimi-lo agrave humanidade inteira

transformando-a Se do ponto de vista da espeacutecie o homem encontra-se limitado como ser

vivo a alimentar-se de outros seres vivos ndash o que torna um imperativo pragmaacutetico que ele

fixe sua atenccedilatildeo na terra ndash e se isso bem o impulsiona em direccedilatildeo ao fechamento por

outro lado a humanidade conserva dois instrumentos uacuteteis agrave abertura a inteligecircncia que

pode ser prolongada como conveacutem em mecacircnica que no seu limite conserva o potencial

capaz de liberar a atividade humana e por outro lado a capacidade de variar as formas de

vida Em um momento mais recuado essa capacidade encontrava seu limite na criaccedilatildeo de

sociedades espirituais hoje poreacutem seria capaz de engendrar uma organizaccedilatildeo social e

poliacutetica que assegure agrave mecacircnica sua destinaccedilatildeo libertaacuteria e cosmopolita (BERGSON

2001 p 1175249) que veremos confundir-se com a proacutepria democracia O maquinismo

no entanto implica o perigo de que ao longo da experiecircncia histoacuterica ele se voltasse

contra seus proacuteprios propoacutesitos

O valor filosoacutefico do misticismo seria ainda mais visiacutevel na medida em que nos

desembaraccedilaacutessemos de uma objeccedilatildeo comum que reputa a experiecircncia miacutestica como um

evento excepcional e por ser essencialmente individual e diverso da experiecircncia cientiacutefica

insuscetiacutevel de solucionar problemas A fim de descartar essa objeccedilatildeo seria necessaacuterio

lembrar que satisfaz os criteacuterios de uma experiecircncia cientiacutefica aquela que seja suscetiacutevel de

180

ldquoIl ne srsquoagit donc pas ici de la fraterniteacute dont on a construit lrsquoideacutee pour en faire un ideacuteal Et il ne srsquoagit pas

non plus de lrsquointensification drsquoune sympathie ineacutee de lrsquohomme pour lrsquohommerdquo (BERGSON 1174248)

205

repeticcedilatildeo ou de controle (BERGSON 2001 p 1183260) Na medida em que a experiecircncia

pela qual passa o miacutestico eacute algo que todos podem experimentar ao menos de direito ndash

senatildeo de fato ndash bastando ter a disposiccedilatildeo e a energia para tanto a objeccedilatildeo talvez restasse

prejudicada Ainda que algueacutem natildeo experimente jamais um estado miacutestico eacute sempre

possiacutevel sentir algo da experiecircncia ressoar em si mesmo eacute o que acontecia com William

James por exemplo Com efeito assim como haveria pessoas insensiacuteveis agrave muacutesica haveria

pessoas insensiacuteveis agrave miacutestica mas disso natildeo se poderia extrair argumento algum nem

contra a muacutesica nem contra a miacutestica segundo Bergson (2001 p 1184261)

Em favor da validade da miacutestica haveria um firme consenso entre os miacutesticos que

definem apesar de uma variabilidade potencial de estados o mesmo tipo de experiecircncias

Sua psicologia indica em face do ensino regular da teologia uma grande docilidade em

aprender e em seguir seus diretores de consciecircncia e ao mesmo tempo um instinto seguro

que se manifesta em uma forma de liberdade superior capaz de abandonar todo ensino e

natildeo reconhecer outra autoridade senatildeo essa liberdade (BERGSON 2001 p 1185262)

Pressente-se sob seus gestos doacuteceis o advento de rupturas que constituem o signo de uma

intuiccedilatildeo mais profunda originada pelo contato com o Ser que se comunica com eles

Contudo a miacutestica por si soacute ndash como a ciecircncia ou a metafiacutesica por si soacutes ndash natildeo poderiam

dar ao filoacutesofo certeza absoluta Eacute preciso que sua interpenetraccedilatildeo origine pontos de

contato acumulaccedilotildees graduais de resultados adquiridos que longe de levarem a um

sistema concreto conduzem ao plano da experiecircncia ndash uacutenico esteio de qualquer

conhecimento

O que Bergson propotildee soacute eacute possiacutevel na medida em que a inteligecircncia foi aureolada

de intuiccedilatildeo que no entanto permanece no homem desinteressada e inconsciente Assim a

experiecircncia miacutestica de alguma maneira parece estender a experiecircncia interior da duraccedilatildeo

que nos conduz por aprofundamento agraves raiacutezes de nosso ser e ao princiacutepio da vida em

geral Em que sentido isso acontece Em primeiro plano os miacutesticos estatildeo sempre

dispostos a abandonar os falsos problemas (BERGSON 2001 p 1188266) Todas as

dificuldades e perplexidades ante as quais a filosofia se deteve satildeo de todo inexistentes

para eles A precedecircncia do nada sobre o ser da desordem sobre a ordem da eternidade

sobre o tempo ou do imoacutevel sobre o moacutevel satildeo reduzidas ao estado de simples miragens da

representaccedilatildeo de ilusotildees naturais positivas talvez no sentido deveras pragmaacutetico do viver

mas natildeo do especular ldquoCes questions un mystique estimera qursquoelles ne se posent mecircme

pasrdquo (BERGSON 2001 p 1189267) ilusotildees devidas agrave estrutura da inteligecircncia humana jaacute

natildeo lhe produzem qualquer anguacutestia metafiacutesica Uma vez que experimenta Deus que toca

206

no fundo do real natildeo experimenta nada de negativo sua existecircncia eacute uma positividade tal

como ele experimenta mas o que essa experiecircncia significa senatildeo criaccedilatildeo e amor emoccedilatildeo

criadora

O misticismo natildeo cessa de exprimir a foacutermula segundo a qual Deus eacute amor em

sentido forte o amor natildeo eacute um atributo ou um sentimento de Deus mas Deus ele proacuteprio

Nesse plano em que sente o amor abrasar-lhe a alma por dentro o miacutestico coincide

plenamente com esta emoccedilatildeo carregada de pensamento que precede e gera ideias que

conduz agrave inspiraccedilatildeo (BERGSON 2001 p 1189268) Esse tipo de emoccedilatildeo superior natildeo

possui objeto basta-se a si mesma natildeo eacute o amor de ningueacutem mas sentimento repartido

segundo singularidades musicais ldquoUne autre musique sera un autre amourrdquo (BERGSON

2001 p 1191270) Amor atuante que a nada se dirige mas cria criadores seres dignos de

prolongaacute-lo como cria mundos inteiros ndash energia criadora que faz a vida penetrar na

mateacuteria como a matildeo na limalha181

Com efeito no mundo que conhecemos o eacutelan vital

originou linhas evolutivas divergentes Na linha em que forjou o homem linha em que

conseguiu fazer passar o essencial de sua impulsatildeo o homem gira no interior do ciacuterculo

antropoloacutegico A abertura estaacute dada na medida em que a intuiccedilatildeo miacutestica se permite

colocar esse problema foram chamados agrave existecircncia seres destinados a amar e a serem

amados eles soacute poderiam ser criados em um universo que teve de ser criado assim como

uma grande variedade de novas espeacutecies que foram sua preparaccedilatildeo seu sustentaacuteculo seu

resiacuteduo E no entanto ainda assim os homens soacute viveriam pela metade se natildeo fosse pela

genialidade e pelo esforccedilo de indiviacuteduos excepcionais em se colocarem novamente na

direccedilatildeo criadora do eacutelan do qual tudo proveacutem Nesse sentido a miacutestica natildeo apenas

representou um triunfo sobre a mateacuteria os instrumentos e a necessidade mas indicou ao

mesmo tempo ao metafiacutesico a direccedilatildeo na qual a vida escoava (BERGSON 2001 p

1194274)

Esse eacute o ponto em que o valor metafiacutesico da experiecircncia miacutestica concretiza-se sob o

olhar do filoacutesofo Com efeito diante disso que no misticismo pode confundir-se com o que

haacute de mais inefaacutevel para um ponto de vista unicamente inteligente do ponto de vista da

intuiccedilatildeo permanece soldado agrave experiecircncia miacutestica concreta que Bergson jamais abandona

em sua descriccedilatildeo O valor metafiacutesico da miacutestica estaacute em ensinar que ldquoo fechamento e a

abertura natildeo satildeo apenas as dimensotildees morais da relaccedilatildeo da humanidade consigo mesma

mas tambeacutem as dimensotildees metafiacutesicas da relaccedilatildeo do homem com a vida com seu princiacutepio

181

ldquoDes ecirctres ont eacuteteacute appeleacutes agrave lrsquoexistence ce qui eacutetaient destineacutes agrave aimer et agrave ecirctre aimeacutes lrsquoeacutenergie creacuteatrice

devant se deacutefinir par lrsquoamourrdquo (BERGSON 2001 p 1194273)

207

primeiro e com o universo em seu conjuntordquo (WORMS 2011 p 367) Fica ainda uma

vez claro em que medida a obra bergsoniana ao encaminhar-se no sentido da superaccedilatildeo

do anthropos ndash compreendido como a forma de vida humana ou o ciacuterculo da espeacutecie ndash

encontra uma espeacutecie de destino biopoliacutetico182

A experiecircncia miacutestica recebe a impulsatildeo

capaz de revelar a dupla tarefa do homem no aberto romper sua forma de vida

emancipando-a tanto das necessidades e da mateacuteria pela inteligecircncia e pela mecacircnica

como superando a proacutepria forma de vida em que foi dada O miacutestico nesse sentido

gostaria de encaminhar toda a humanidade no sentido do divino compreende a

humanidade como ldquoune machine agrave faire des dieuxrdquo (BERGSON 2001 p 1245338) na

medida em que ela descreve a linha de evoluccedilatildeo que apesar de fundar-se em uma forma de

vida eacute capaz de fundi-la fazendo dela o ponto de inflexatildeo da proacutepria forma na qual uma

vida foi dada Trata-se em uacuteltima anaacutelise de encontrar no interior de si mesmo e de uma

forma de vida o aberto que se infiltra por ela e a recoloca em devir que reabre o fechado

Nesse sentido o misticismo bergsoniano natildeo pode conduzir senatildeo a uma ontologia

biopoliacutetica Natildeo eacute difiacutecil perceber que toda a tendecircncia ao fechamento e agrave constituiccedilatildeo de

sistemas organizados fechados que atravessa a integralidade da vida aparece em relaccedilatildeo a

ela como um obstaacuteculo a ser superado as formas de vida que se multiplicam em linhas

evolutivas divergentes como se fossem tentativas de fazer passar um pequeno veio de vida

e de duraccedilatildeo poderatildeo ser na linha do homem colocadas sempre em jogo ndash as experiecircncias

miacutesticas natildeo apenas o comprovam mas servem como terreno de experiecircncia e denotam a

subordinaccedilatildeo da histoacuteria ao devir Isto eacute se uma humanidade divina eacute possiacutevel ndash mesmo no

182

Bergson pode ser aproximado de uma redefiniccedilatildeo do conceito de biopoliacutetica de muitas maneiras e no

entanto aqui pretendemos natildeo mais fazer do que amarrar um devir desse conceito sob a epiacutegrafe de

LrsquoEgravevolution Creacuteatrice Seria possiacutevel encontrar originalmente em Foucault esse sentido positivo de

biopoliacutetica como potecircncia de variaccedilatildeo das formas de vida e como resistecircncia aos mecanismos de seguranccedila e

biopoder desde 1976 quando Foucault (2009 p 158) enuncia pela primeira vez sua tese ldquoFoi a vida muito

mais do que o direito que se tornou objeto das disputas poliacuteticas ainda que estas uacuteltimas se formulem atraveacutes

de afirmaccedilotildees de direitosrdquo Esses dois sentidos satildeo objeto de uma distinccedilatildeo semacircntica em La Faacutebrica de

Porcelana de Antonio Negri (2008 p 43) que passa a utilizar a diacuteade biopoder-biopoliacutetica para designar

pelo primeiro um poder exercido sobre a vida e pelo segundo um poder imanente agrave vida oposto ao primeiro

como contrapoder resistecircncia e potecircncia Uma deacutecada antes outro filoacutesofo poliacutetico italiano Maurizio

Lazaratto (1997 p 01) reclamava a Deleuze e sobretudo a Bergson um conceito de vida inorgacircnica

definida como ldquole temps et ses virtualiteacutesrdquo ldquole temps comme lsquosource de creacuteation continuelle drsquoimpreacutevisibles

nouveauteacutesrsquo lsquoce qui fait que tout se faitrsquo rdquo Ao fazecirc-lo Lazaratto pretendia redefinir o conceito de biopoliacutetica

em sentido bergsoniano de tal modo que ldquoLe concept de bio-politique doit comprendre non seulement les

processus biologiques de lrsquoespegravece mais aussi cette vie a-organique qui est agrave son origine comme elle est agrave

lrsquoorigine du vivant et du monderdquo (Idem ibidem loc cit) Trata-se de um vitalismo temporal natildeo orgacircnico

Essa vida inorgacircnica que Deleuze (2003 p 359-363) subtraiu sem cessar do bergsonismo a ponto de definir

no limiar de sua existecircncia todo seu projeto filosoacutefico por sua imanecircncia absoluta encontra no conceito

bergsoniano de uma vida remissiacutevel como vimos ao tempo como diferenciador profundo o conceito no qual

fundir uma ontologia virtual Seja como for fica justificado em que sentido se pode depreender do

bergsonismo um vitalismo do tempo virtual e genealogicamente biopoliacutetico e aleacutem disso esclarece-se

definitivamente o sentido muito preciso em que nos permitimos empregar essa expressatildeo

208

niacutevel individual ndash se essa experiecircncia tende a abarcar a humanidade inteira se ela toma

contato com o princiacutepio do qual proveacutem o Todo o homem soacute passa a possuir uma histoacuteria

na medida em que faz passar pelo interior de sua forma de vida um veio de devir

A fim de evitar mal-entendidos seria o caso de compreender a duplicidade do que

queremos significar por ldquoforma de vidardquo Com efeito a expressatildeo recebe uma transcriccedilatildeo

bioloacutegica no sentido bastante compreensivo que Bergson (2001 p 1061104) lhe

outorgara Descobriacuteamos no fundo da natureza uma tendecircncia ao fechamento capaz de

doar formas de vida e organizaccedilatildeo marcadas ateacute aqui pelas relaccedilotildees de grupo baseadas na

exclusatildeo sua tendecircncia agrave guerra do ponto de vista exterior ao grupo e agrave coesatildeo do ponto

de vista interior ao grupo ndash coesatildeo esta mantida natildeo apenas por uma moral que tende ao

fechamento como agrave religiatildeo estaacutetica que desempenhada automaticamente pelo instinto nos

animais e pelo instinto virtual nos homens cria formas de vida seguras de si previne a

sociedade e o indiviacuteduo das ameaccedilas de depressatildeo egoiacutesmo e desagregaccedilatildeo entre as

formas de vida inteligentes Haacute portanto nos himenoacutepteros como nos homens uma

sociedade saiacuteda das matildeos da natureza ela implica uma organizaccedilatildeo poliacutetico-social que

define natildeo apenas os modos de existecircncia dos indiviacuteduos em funccedilatildeo do grupo mas

sobretudo as formas de vida do proacuteprio grupo Lembremos que entre as formas de vida

inteligentes nas sociedades humanas primitivas ndash cujas tendecircncias natildeo deixam nem por

um momento de encontrar-se sob uma camada mais ou menos espessa de cultura nas

sociedades contemporacircneas (eis o que define a tese bergsoniana da persistecircncia do

natural)183

ndash a religiatildeo estaacutetica defendendo-se contra os efeitos perigosos e dissolventes

das relaccedilotildees do homem para com o grupo a que pertence e em profundidade do homem

com a proacutepria vida criavam-se tradiccedilotildees costumes ritos cerimocircnias e por meio delas

assegurava-se a coesatildeo do grupo sob uma forma nacional Sob todos os aspectos as

exigecircncias de abertura agraves quais a experiecircncia miacutestica responde revelam-se cada vez mais

exigecircncias praacuteticas e poliacuteticas especialmente no iniacutecio do quarto capiacutetulo de Les Dex

Sources

Dessa forma natildeo haacute apenas uma correlaccedilatildeo entre ontologia e formas de vida ndash

tomadas no sentido muito compreensivo que Bergson outorga a essa expressatildeo ndash mas

183

Se Bergson natildeo cessa de retornar ao primitivo parece fazecirc-lo em um sentido tambeacutem metafiacutesico que

SITBON-PEILLON (2002 p 194) considerou ldquoLe primitif serait [] la meacutetaphore du philosophe qui

lsquodeacutebarrasseacute de lrsquoacquisrsquo jetterait un lsquoregard naiumlfrsquo lsquoen soi et autour de soirsquo et ainsi arracheacute au symbolisme

tenterait de faire retour ver cet archaiumlsme qui est le fond de toute penseacuteerdquo Isso poreacutem na medida em que

ldquoLa philosophie de Bergson incarnerait [] la persistance du primitif dans la conscience et dans la penseacutee

rationellerdquo (Idem loc cit) Sobre as relaccedilotildees de aproximaccedilatildeo e distacircncia desta tese bergsoniana com La

penseacutee sauvage de Claude Leacutevi-Strauss (1962) Cf (KECK 2002 p 205-209)

209

essas formas de vida sendo biologicamente constituiacutedas implicam jaacute suas transcriccedilotildees

poliacuteticas referentes aos modos de existecircncia dos indiviacuteduos em funccedilatildeo da sociedades e dos

grupos aos quais pertencem e agraves formas de vida e de organizaccedilatildeo contempladas no interior

dos ciacuterculos concecircntricos de obrigaccedilotildees (entre os humanos os ciacuterculos da famiacutelia paacutetria

humanidade) que essas formas de vida genuinamente poliacuteticas compreendem Sob essa luz

de todo nova no bergsonismo e genuiacutena em Les Deux Sources a dualidade do aberto e do

fechado responde metafisicamente agraves exigecircncias de um problema praacutetico e poliacutetico184

ndash

ou nesse sentido inteiramente novo que se dissimula sob a obra bergsoniana ndash a um

problema originalmente biopoliacutetico ldquoComo abrir o fechadordquo eacute uma questatildeo que

perpassaraacute natildeo apenas a atualidade do momento histoacuterico que a Europa de Bergson

atravessava ndash a da indecidibilidade e dos umbrais de uma Europa que de um lado

impulsionava a mecacircnica e inventava os direitos humanos manifestando uma potente

tendecircncia agrave abertura e de outro captura o maquinismo nos aparelhos e estrateacutegias da

guerra agrave qual tendia e que nos tempos de Les Deux Sources comeccedilava a se insinuar185

A questatildeo permanece atual a toda sociedade humana na medida em que a

cristalizaccedilatildeo de tradiccedilotildees costumes e formas de vida revela uma tendecircncia ao fechamento

e agrave obrigaccedilatildeo moral sonambuacutelica que imita o automatismo do instinto186

nenhuma

transformaccedilatildeo pode efetuar-se sem abrir o fechado sem encontrar do ponto de vista das

formas de vida poliacutetica os pontos de ruptura das formas de vida biologicamente

construiacutedas para as sociedades humanas Se o primitivo natildeo deixava de ser como uma

memoacuteria social original e natural agrave estrutura espiritual que a vida montou nos homens

mesmo a mais civilizada Europa dos anos trinta poderia como de fato pocircde tender ao

fechamento agrave guerra e agrave hierarquia Isso natildeo eacute menos possiacutevel ainda hoje e natildeo eacute menos

possiacutevel em sociedades em transiccedilatildeo cujo problema essencial parece colocar-se do mesmo

modo como parecia colocar-se para Bergson ldquocomo abrir o fechadordquo Eis o que permite

que a transiccedilatildeo na qual a humanidade permanece por sua proacutepria estrutura natural ndash sua

existecircncia bioloacutegica e poliacutetica define-se antes de tudo por uma potecircncia biopoliacutetica de

184

ldquoEacute pois toda a filosofia de Bergson que se explica assim retrospectivamente em uma perspectiva

indissociavelmente praacutetica metafiacutesica e moral que liga nossa vida e toda vida em seus respectivos duplosrdquo

(WORMS 2011 p 368) ainda ldquo[] tudo se passa como se depois de ter oposto o fechado e o aberto por si

mesmos e como limites absolutos pudeacutessemos nos servir deles para nos orientarmos nos problemas

propriamente humanos e histoacutericos []rdquo (WORMS 2011 p 364) 185

ldquoDans Les Deux Sources [] Bergson part drsquoune contradiction anthropologique heacuteriteacutee de lrsquohistoire

politique celle de lrsquoirrationaliteacute des comportaments humains des croyences religieuses mais aussi et peut-

ecirctre surtout de la guerrerdquo (KECK 2002 p 214) 186

ldquoLrsquoactualiteacute pour aujourdrsquohui des Deux Sources est alors indissociable de certaines actualisations []

[] les problegravemes historiques deacutecrits pour Bergson (machinisme guerre civilisation aphrodisiaque) sont

enconre les nocirctres []rdquo (AMALRIC 2012 p 295)

210

variar ou cristalizar-se nelas ndash encontre no aberto uma tarefa eacutetica cosmopolita trata-se

natildeo apenas de abrir o fechado mas de combater o fechamento e de combatecirc-lo a fim de

perseverar no aberto Eacute possiacutevel pressentir de imediato que tudo isso deve receber

transcriccedilotildees poliacuteticas A moralidade do aberto agrave qual corresponde uma atitude subjetiva

proacutepria ndash a da alma aberta e no limite a do miacutestico que o propaga incendiariamente aos

indiviacuteduos falando-lhes em profundidade rompendo a casca parasitaacuteria do eu social e

evocando a liberdade radical e ontoloacutegica que os constitui como progecircneres da duraccedilatildeo ndash

fornece um criteacuterio eacutetico que dispensa toda transcendecircncia187

Tal liberdade natildeo se explica

mais pela razatildeo pelo sujeito e por seus criteacuterios dissociados da vida mas o aberto

constitui-se a partir dela Sua eacutetica funda-se no proacuteprio contato com a vida e com a emoccedilatildeo

criadora que dela procede opondo-se a toda exclusatildeo e a todo limite ela engendra uma

eacutetica amorosa que engloba o Todo responde a um apelo que conduz agrave paz e desfaz-se da

pressatildeo que tende agrave guerra188

Diante de tudo isso busquemos esboccedilar globalmente a resposta que o bergsonismo

oferece agrave questatildeo ldquoComo abrir o fechadordquo Essa questatildeo ndash que parece encaminhar-nos

subitamente na direccedilatildeo praacutetica de uma filosofia poliacutetica ndash tambeacutem poderia ser enunciada

em ldquoComo o estaacutetico se torna dinacircmicordquo ldquoComo o atual se virtualizardquo ou ainda

segundo uma transcriccedilatildeo propriamente biopoliacutetica ldquoComo lanccedilar uma forma de vida a um

devirrdquo Em uma nota redigida em resposta agrave obra que Loisy consagrara a Les Deux

Sources Bergson (2002 p 134) precisara a centralidade da questatildeo da abertura do fechado

em relaccedilatildeo agrave filosofia poliacutetica que desenvolveraacute no uacuteltimo capiacutetulo de seu livro suas

ldquoRemarques Finalesrdquo ldquo[] le moyen de reacuteforme essentiel selon moi nrsquoest pas [] la

lsquoscience psychiquersquo ni lsquolrsquoattent du heacuterosrsquo mais une certaine ouverture do clos une certaine

direction imprimeacutee au vouloir pour neutraliser lrsquohomme fondamentalrdquo Eis o gesto decisivo

187

ldquo[] a distinccedilatildeo entre o fechado e o aberto continua atraveacutes desse livro e para aleacutem dele a valer por si

mesma e a fornecer um criteacuterio uacuteltimo de orientaccedilatildeo a uma humanidade que renuncia a todo criteacuterio

transcendente mas que sente ou que sabe que permanecem criteacuterios morais imanentes a sua vidardquo (WORMS

2011 p 369) 188

Worms (2011 p 327) critica a leitura que Simone Weil (1990) devotou ao criteacuterio moral bergsoniano em

Lrsquoenracinement Seu argumento eacute o de que natildeo basta agrave moral do aberto o contato com a vitalidade e o

aumento de forccedila que se definam pela exclusatildeo e pela guerra A miacutestica em sentido bergsoniano soacute eacute

completa quando confundindo-se com um amor universal que natildeo comporta qualquer exclusatildeo define-se

pela abertura sem precedentes inclui o Todo e apela agrave paz A mesma criacutetica valeria para outro autor Luis

Quintanilla (1953) que em Bergsonismo y politica critica a moral bergsoniana pelas mesmas razotildees que

Weil embora geralmente o faccedila a partir da leitura de Georges Sorel e natildeo das obras de Bergson mesmas O

proacuteprio Bergson (2001 p 1240332) diraacute nesse sentido que ldquosi lrsquoon se tient au mysticisme vrai on le jugera

incompatible avec lrsquoimperialismerdquo

211

e subversivo que atravessa a obra bergsoniana a partir das sucessivas articulaccedilotildees entre

fechado e aberto (AMALRIC 2012 p 270)

Eacute nesse sentido que o aberto natildeo deixa de ser um ponto de vista que permite agrave

filosofia pensar o real para aleacutem dos modelos de clausura das sociedades fechadas

(AMALRIC 2012 p 276) Mas como o fechado deveacutem aberto Em uma palavra por

meio de uma atitude ndash que eacute ao mesmo tempo uma posiccedilatildeo subjetiva e uma accedilatildeo livre em

profundidade ndash de abertura do fechado Se Bergson insiste tatildeo intensamente sobre as

personalidades individuais excepcionais sobre os indiviacuteduos miacutesticos que tocando o eacutelan

vital em um ponto ou descobrindo-o sob o simbolismo de sua apariccedilatildeo natildeo eacute para atrelar

o devir das formas de relaccedilatildeo intersubjetiva ao heroiacutesmo que redundaria facilmente em um

culto da individualidade A questatildeo do devir das formas de vida ndash naquilo que elas

engendram de mais profundamente bioloacutegico e poliacutetico as tendecircncias de sociabilidade

forjadas pela natureza ndash encontra nas individualidades excepcionais a prova concreta

experimentada da possibilidade de abrir o fechado Moralistas artistas ou miacutesticos essas

individualidades excepcionais e de gecircnio natildeo satildeo o que carrega por si a humanidade para

aleacutem dela mesma satildeo a prova viva e histoacuterica de que eacute possiacutevel fazecirc-lo e de que se eles o

puderam foi por adotarem uma atitude aberta que eacute ao mesmo tempo um modo e

subjetivaccedilatildeo e uma accedilatildeo ndash ou em uma soacute palavra a efetuaccedilatildeo de um potencial de variaccedilatildeo

biopoliacutetica que conduz a humanidade para aleacutem de si mesma

Nesse plano tudo se passa como se a existecircncia de alguns super-homens que se

recolocaram no sentido do eacutelan fosse a prova histoacuterica da possibilidade que a humanidade

experimenta a todo momento ao redor de si como os virtuais imanentes agrave proacutepria condiccedilatildeo

humana que permitiriam ultrapassaacute-la A expressatildeo tatildeo ceacutelebre quanto equiacutevoca que se

encontra nas uacuteltimas linhas de Les Deux Sources pela qual Bergson concebe a humanidade

como ldquoune machine de faire des dieuxrdquo natildeo possuiraacute outro sentido senatildeo o de sintetizar

em uma foacutermula que combina a mecacircnica que pode nos liberar da necessidade ao destino

miacutestico ldquodivinordquo ou sobre-humano que nos reserva como continuaccedilotildees do eacutelan o destino

biopoliacutetico da humanidade Fazecirc-lo no entanto ndash Bergson o diz ndash implica uma escolha

entre viver apenas ou esforccedilar-se por realizar a funccedilatildeo essencial do universo Tal esforccedilo

condensa no homem a tendecircncia profundamente vital agrave abertura de uma alma que se abre

atitude subjetiva e efetuaccedilatildeo ativa como nos grandes esquemas da liberdade nos quadros

analiacuteticos do Essai subjetivaccedilatildeo e accedilatildeo se confundem ao infinito supondo a duraccedilatildeo como

memoacuteria elementar da mudanccedila e abertura ontoloacutegica ao porvir

212

Assim como a natureza definia formas de vida tendentes ao fechado fazendo

sistema organizando-se e a girando sobre si mesmas na mesma medida em que essa

tendecircncia ao fechamento parece implicar uma determinaccedilatildeo bio-ontoloacutegica de toda

individualidade (SITBON-PEILLON 2002 p 184) ela soacute se processa de um ponto de

vista dinacircmico supondo o aberto ndash o que deixa entrever uma abertura possiacutevel Assim

como a religiatildeo primitiva e natural permanece no homem e determina a partir da estrutura

geral de seu espiacuterito as formas de organizaccedilatildeo sociais tambeacutem a abertura permanece

contemporacircnea do fechamento capaz de abrir-se segundo comprova a experiecircncia pelo

menos na miacutestica Sabe-se que natildeo se passa de um termo a outro por alargamento

sucessivo aberto e fechado aparecem em primeiro momento como dois termos que

comportam uma irredutiacutevel diferenccedila de natureza da mesma forma natildeo se passa do amor

agrave famiacutelia ou agrave paacutetria ao amor ao Todo e agrave humanidade por via de intensificaccedilatildeo uma vez

que uma diferenccedila de natureza e natildeo de grau os perpassa (BERGSON 2001 p

1202284)

Todavia um outro tipo de passagem se faz possiacutevel e as experiecircncias miacutesticas

indicam precisamente o caminho que se deve percorrer Aqueacutem do misticismo vimos que

Bergson descreve ateacute mesmo uma alma de transiccedilatildeo como que ldquoentreabertardquo ao dinacircmico

signo de que uma franja indecisa virtual de instinto e intuiccedilatildeo natildeo cessa de aureolar a

inteligecircncia Satildeo precisamente essas franjas indecisas rodeadas por nuvens de virtuais que

encaminham agrave proacutepria vida elas entreabrem no homem o prolongamento de sua forma de

vida aparentemente imoacutevel na corrente evolutiva da qual essa forma procede189

Eacute como Todo virtual que o eacutelan se insinua no homem mostrando-se capaz de

produzir em sua forma de vida toda sorte de devires e de rupturas Cedendo agrave sua

reimpulsatildeo o homem salta para fora da natureza torna-se no dizer de Bergson ldquodivinordquo ndash

na medida em que se torna sobre-humano ndash mas ao mesmo tempo natildeo sai completamente

da natureza por isso Bergson afirma que essas individualidades ao tomarem contato com

o princiacutepio de todas as formas de vida constituem como indiviacuteduos ldquoune nouvelle

espegravecerdquo Seu salto para fora da natureza seria em termos espinosanos uma procura pelo

fora da natureza naturada ndash o que soacute pode definir-se como o reencontro em tudo divino

com a natureza naturante afinal ldquo[] crsquoest pour revenir agrave la Nature naturante que nous

nous deacutetachons de la Nature natureacuteerdquo (BERGSON 2001 p 102456)

189

ldquolsquoAffrangissementrsquo qui est affranchissement de lrsquoeacutelan vital par quoi lrsquoeacutevolution au lieu de srsquoimmobiliser

dans les formes de vie collective que les instincts et les tendences organiques de lrsquohomme primitif instituegraverent

dans le temps voisins de ses origines fut capable par un veacuteritable changement drsquoaboutir aux socieacuteteacutes

actuellesrdquo (SITBON-PEILLON 2002 p 187)

213

Eacute no misto do puro e do impuro do aberto e do fechado do devir e da forma que o

homem encontra uma saiacuteda para a liberdade (SITBON-PEILLON 2002 p 187) e a

liberdade em Bergson natildeo eacute mais que a transcriccedilatildeo em um modo de subjetivaccedilatildeo e afetivo

da criaccedilatildeo e do imprevisto ontoloacutegicos Uma ontologia profunda que se confunde com as

potecircncias virtuais do eacutelan atravessa pelas formas de vida depositando-se ao mesmo tempo

em que fratura a mateacuteria As franjas indecisas de inteligecircncia instinto e intuiccedilatildeo presentes

na estrutura geral do espiacuterito humano satildeo fixadas intensificadas e tornadas completas em

accedilatildeo pelos miacutesticos Eacute nesse sentido que viacuteamos o miacutestico ser tomado por Bergson a

despeito de toda crenccedila ecircxtase visatildeo estados moacuterbidos e anormais puramente acidentais

Importa considerar o misticismo completo como aquele que retira do impulso vital a

energia da accedilatildeo e do novo que o miacutestico estaacute prestes a lanccedilar no mundo Uma vez

completo no misticismo natildeo haacute apenas gozo e contemplaccedilatildeo mas transformaccedilatildeo da

alegria do gozo miacutestico ndash que se desembaraccedila dos falsos-problemas por meio de um

simbolismo que deixa transparecer em seu fundo intensivo o proacuteprio eacutelan e suas potecircncias

ndash em alegria da accedilatildeo (WORMS 2011 p 332) Enriquecendo a metafiacutesica com a

experiecircncia e com o contato com o eacutelan ao fazer do proacuteprio corpo o lugar do encontro com

uma potecircncia inumana posto que sobre-humana (SITBON-PEILLON 2002 p 188) os

miacutesticos pensam como homens de accedilatildeo e agem como homens de pensamento Assim como

o primitivo ndash que nos conduz ao fechamento ndash o miacutestico que encaminha ao aberto eacute

tambeacutem uma tendecircncia do espiacuterito190

uma direccedilatildeo da proacutepria realidade em que um

homem com a atitude e o esforccedilo apropriados pode efetuar-se

Pode-se pressentir como a questatildeo a que nos dedicamos longamente ateacute aqui ndash

ldquoComo abrir o fechadordquo ndash deve receber uma transcriccedilatildeo poliacutetica e sofrer uma distensatildeo

praacutetica no uacuteltimo capiacutetulo de Les Deux Sources a ponto de implicar no limite toda uma

filosofia poliacutetica do aberto Com efeito se o misto impuro eacute uma condiccedilatildeo que faz da

atitude e do esforccedilo de abertura seus correlatos na liberdade no interior da filosofia

poliacutetica bergsoniana mecacircnica e miacutestica se unem agrave emoccedilatildeo criadora para converter o

problema da instauraccedilatildeo do aberto na questatildeo ldquoComo perseverar no abertordquo Sem duacutevida

as Remarques Finales desta muacuteltipla obra bergsoniana tensiona ao maacuteximo os conceitos

metafiacutesicos a fim de transcrevecirc-los sob uma rubrica poliacutetica Natildeo eacute por acaso portanto que

agrave guerra e ao maquinismo capturado pelos aparelhos de Estado ver-se-aacute insinuar-se em

Bergson natildeo apenas o problema da direccedilatildeo miacutestica da teacutecnica mas o da direccedilatildeo miacutestica no

190

A propoacutesito ldquoToute reacutealiteacute est donc tendancerdquo escrevera Bergson (2001 p 1420211) ldquosi lrsquoon convient

drsquoappeler tendance un changement de direction agrave lrsquoeacutetat naissantrdquo

214

sentido das proacuteprias formas de organizaccedilatildeo poliacutetico-sociais que encontram na democracia e

nos direitos humanos dois modos coextensivos de manter aberto aquilo que a natureza

tende a fechar Eis o que devemos interrogar agrave luz desse novo campo problemaacutetico que se

define de um lado pela transcriccedilatildeo da intuiccedilatildeo metafiacutesica enriquecida pela experiecircncia

miacutestica e por outro a partir do contato miacutestico com o princiacutepio inumano que impulsiona a

vida mais aleacutem de si mesma e reconduz a natureza naturada agrave natureza naturante da qual

proveacutem

sect 3 PERSEVERAR NO ABERTO

TRANSICcedilAtildeO DEMOCRACIA E DIREITOS HUMANOS

A questatildeo ldquoComo perseverar no abertordquo precisa ser desenvolvida em trecircs direccedilotildees

coextensivas A primeira compreendida como etapa demonstrativa visa a esclarecer de

que maneira Bergson desenvolve a relaccedilatildeo entre mecacircnica e miacutestica nas Remarques

Finales de Les Deux Sources Trata-se de compreender os perigos sociais como a guerra

na era industrial a que a tendecircncia ao fechamento estaria em vias de levar a Europa no

momento da escritura da obra de Bergson mas tambeacutem de perceber em que sentido uma

moralidade aberta encontra na luta contra o fechamento sua distensatildeo poliacutetica mais proacutepria

e ainda como a democracia e os direitos humanos permitem avanccedilar na luta genuinamente

biopoliacutetica contra o fechamento em direccedilatildeo agrave perseveraccedilatildeo no aberto

Em uma segunda direccedilatildeo seria preciso enfrentar uma questatildeo na qual jaacute

resvalamos mas cujo epicentro permaneceu intocado Bergson afirma sucessivamente

propriedades quase incendiaacuterias do aberto como se ele se comunicasse por contaminaccedilatildeo

imediata de alma em alma Trata-se de perscrutar como isso eacute possiacutevel como o aberto se

comunica de alma em alma Sem isso restaria difiacutecil colocar nossa uacuteltima questatildeo e

uacuteltima direccedilatildeo de desenvolvimento que visa a relacionar o aberto e a transiccedilatildeo agraves questotildees

da democracia e dos direitos humanos

No extremo desse ponto seraacute possiacutevel interrogar as relaccedilotildees entre memoacuteria e

transiccedilatildeo no bergsonismo agrave luz do conceito de aberto da aspiraccedilatildeo moral e do devir que

elas realmente implicam atingindo finalmente apoacutes esse longo poreacutem imprescindiacutevel

plexo de demonstraccedilotildees o epicentro conceitual que nos conduz a apresentar a partir do

bergsonismo a inextrincaacutevel relaccedilatildeo entre memoacuteria e transiccedilatildeo que se encontra pressuposta

na Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo desde sua rubrica ontoloacutegica e a um soacute tempo poliacutetica

ou como preferimos biopoliacutetica

215

Todas essas perguntas ligam-se naturalmente agrave questatildeo precedente agrave qual

oferecemos uma resposta na uacuteltima seccedilatildeo ldquoComo abrir o fechadordquo Por essa razatildeo os

uacuteltimos desenvolvimentos que desaacuteguam na relaccedilatildeo entre mecacircnica e miacutestica no perigo da

guerra e na constante ameaccedila de fechamento a que podem estar ainda hoje submetidas as

democracias ocidentais como no tempo de Bergson191

natildeo poderatildeo deixar de ser seguidos

em suas articulaccedilotildees proacuteprias

Sigamos as grandes linhas de articulaccedilatildeo contidas no uacuteltimo capiacutetulo de Les Deux

Sources de la Morale et de la Religion Jaacute nas primeiras palavras do capiacutetulo vemos

Bergson (2001 p 1201283) remontar aos iacutendices biopoliacuteticos que atravessaram toda a sua

obra e esfumaram-se no caminho em um misto ldquoUn des reacutesultats de notre analyse a eacuteteacute de

distinguer profondeacutement dans le domaine social le clos de lrsquoouvertrdquo Satildeo precisamente

tais iacutendices ndash que chamamos biopoliacuteticos na medida em que possuem raiacutezes

compreensivamente bioloacutegicas192

ndash que permitem redesenhar as feiccedilotildees geneacutericas das

sociedades caracterizadas pelo fechamento ou pela abertura

As sociedades fechadas seratildeo definidas pela exclusatildeo como princiacutepio que forja a

coesatildeo do grupo e origina a necessidade de defender-se contra o outro o outsider e o

inimigo Sociedades estereotipadas e instintuais diferem das sociedades humanas pela

presenccedila da inteligecircncia nestas uacuteltimas e pelo potencial de variaccedilatildeo dos modos de relaccedilatildeo

intersubjetiva que podem produzir Elas contudo natildeo sentem menos a pressatildeo natural em

direccedilatildeo agrave sociabilidade originaacuteria no fundo de si ao mesmo tempo em que somos livres

para variar modos de existecircncia em comum o todo da obrigaccedilatildeo pesa sobre nossos atos

com toda a pressatildeo da natureza que exige uma forma de sociabilidade Saiacuteda das matildeos da

natureza ela natildeo passa de uma sociedade fechada que conserva no entanto em seu

interior um ponto de ruptura a partir do qual poderaacute abrir-se Enquanto isso natildeo ocorre o

todo da obrigaccedilatildeo e uma religiatildeo estaacutetica compensaratildeo os riscos egoiacutestas depressores e

dissolventes que a inteligecircncia importa em relaccedilatildeo aos indiviacuteduos e agraves sociedades humanas

que eles comporatildeo ndash ambas natildeo deixam de ser porque capazes de ressoarem em alguma

191

A esse respeito Worms (2011 p 368-369) ressaltou a atualidade da moralidade aberta bergsoniana bem

como uma seacuterie de outros autores buscaram atualizar a filosofia poliacutetica bergsoniana em funccedilatildeo do aberto O

resultado encontra-se reunido no quinto volume dos Annales bergsoniennes (Bergson et la politique de

Jauregraves agrave aujourdrsquohui) organizado por Worms (2012) do qual nos aproveitaremos para desenvolver algumas

reflexotildees sobre a filosofia poliacutetica proacutepria ao bergsonismo 192

Embora natildeo pretenda levar longe demais a analogia ndash uma vez que o homem e os himenoacutepteros

aproximam-se por estar no extremo das linhas de evoluccedilatildeo mas ainda assim ocupam extremos de linhas

diferentes e divergentes ndash Bergson afirma que ldquoLrsquohomme eacutetait fait pour elle [la socieacuteteacute] comme la fourmi

pour la fourmiliegravererdquo (BERGSON 2001 p 1201283)

216

medida com a inteligecircncia constitutivas de uma sociedade de tipo fechado (BERGSON

2001 p 1202284)

Da sociedade fechada agrave aberta percorre-se uma diferenccedila de natureza natildeo de grau

ldquoLa socieacuteteacute ouverte est celle qui embracerait en principe lrsquohumaniteacute entiegravererdquo ela possui

uma vocaccedilatildeo cosmopolita ndash e uma vez que sua energia adveacutem da proacutepria vida procede

por criaccedilotildees divergentes mais ou menos profundas em relaccedilatildeo ao homem que logo se

fecham e cristalizam em formas tradiccedilotildees costumes ou em instituiccedilotildees Assim que o

aberto faz uma volta sobre si fecha-se em um ciacuterculo a aspiraccedilatildeo enclausura-se em

pressatildeo torna-se obrigaccedilatildeo do todo e o ponto de fusatildeo passa a fundar Cada

transformaccedilatildeo de direccedilotildees insuspeitas e jamais predeterminadas exige um esforccedilo criador

proacuteprio e desenvolve-se em uma direccedilatildeo absolutamente singular e imprevisiacutevel como se a

mutaccedilatildeo de uma forma revelasse certa transparecircncia do devir em geral a que as formas

servem de instrumentos ou ensejos Os obstaacuteculos ou formas natildeo passam de ocasiotildees para

um devir que tem as mesmas caracteriacutesticas da duraccedilatildeo e do virtual uma transformaccedilatildeo

qualitativa e imprevisiacutevel (BERGSON 2001 p 1202-1203284-285) Nenhuma ideia

preexistiraacute a esse devir mas iraacute operar sua criaccedilatildeo imprevisiacutevel contemporaneamente a ele

Se o impulso vital a exigecircncia de criaccedilatildeo parece ceder diante do fechamento ou do

ciacuterculo da espeacutecie ateacute que outra oportunidade se apresente ele seraacute continuado e gestado

por meio de individualidades excepcionais193

Aberto e fechado dinacircmico e estaacutetico

podem entatildeo coexistir sob a forma de um misto No registro da moral Bergson entrevecirc a

coexistecircncia entre uma moral estaacutetica que se fixou nos costumes ideias e instituiccedilotildees cuja

forccedila reduz-se em uacuteltima anaacutelise agrave natural necessidade da vida em comum e de outro lado

uma moral dinacircmica ldquoqui est eacutelan et qui se rattache agrave la vie en geacuteneacuteral creacuteatrice de la

nature qui a creacutee lrsquoexigence socialerdquo (BERGSON 2001 p 1204286) Coexistem pois

pressatildeo e aspiraccedilatildeo como o infraintelectual a inteligecircncia ndash a procurar razotildees onde haacute

apenas niacuteveis mais ou menos intensos de vida ndash e o supraintelectual

A tese da persistecircncia do natural segundo a qual ldquoo primitivo natildeo deixa de serrdquo

nem mesmo sob as camadas mais recentes de cultura natildeo consiste em nada aleacutem de

afirmar a coexistecircncia de tendecircncias virtuais ao fechamento e agrave abertura O primitivo natildeo

193

ldquo[] de mecircme que lrsquoaspiration morale nouvelle ne prend corps qursquoen empruntant agrave la socieacuteteacute close sa

forme naturelle qui est lrsquoobligation ainsi la religion dynamique ne se propage que par des images et de

symboles que fournit la fonction fabulatricerdquo (BERGSON 2001 p 1203285) Assim o fechamento natildeo

consiste em uma tendecircncia natural negativa mas em um modo de comunicar claramente sob a forma de

pressatildeo ou siacutembolos uma aquisiccedilatildeo moral inteiramente construiacuteda no aberto e no dinacircmico O erro

consistiria natildeo apenas em atribuir uma funccedilatildeo unicamente negativa ao fechado mas em tentar explicar o

aberto por intermeacutedio do fechado

217

tem outro significado profundo senatildeo a dessa coexistecircncia de tendecircncias que atesta ter

havido uma sociedade fundamental e fechada saiacuteda das matildeos da natureza (BERGSON

2001 p 1206289)194

Por outro lado a tese da persistecircncia do natural permite infirmar e

criticar ateacute mesmo duramente a tese filosoacutefica natildeo demonstrada da transmissibilidade dos

caracteres adquiridos que explorada insistentemente em LrsquoEacutevolution Creacuteatrice natildeo

precisa ser revisitada aqui

Tudo indica que a sociedade natural seria constituiacuteda como um pequeno grupo no

entanto na mesma medida em que a natureza forjara inicialmente uma sociedade pequena

possibilitou tambeacutem que elas crescessem na medida em que engendrou a guerra e com ela

a possibilidade de associaccedilatildeo entre pequenos grupos que visavam a defender-se Embora

essas uniotildees sejam por si mesmas pouco duraacuteveis a guerra e a conquista encontram-se na

base dos impeacuterios como a experiecircncia histoacuterica de anexaccedilotildees territoriais e escravizaccedilatildeo de

populaccedilotildees para explorar seu trabalho teria demonstrado (BERGSON 2001 p 1210293-

294) No entanto ainda que se conceda certa aparecircncia de liberdade agraves populaccedilotildees

subjugadas logo a inteligecircncia passa a agir e faz sentir seus efeitos dissolventes As

grandes naccedilotildees modernas soacute poderiam ter-se construiacutedo nesse sentido ao neutralizarem

por meio do patriotismo ndash princiacutepio que se erige do fundo das proacuteprias comunidades

elementares dissolventes ndash a tendecircncia agrave desagregaccedilatildeo (BERGSON 2001 p 1210294)

virtude que ultrapassa o apego antigo agraves comunidades na medida em que pode tingir-se de

misticismo e de religiosidade195

A sociedade natural compreendida como um grupo

completo capaz de defender-se de outros grupos eacute marcada estruturalmente pela

inteligecircncia e pela liberdade que soacute podem ser contidas no seio da tendecircncia agrave

sociabilidade por outros artifiacutecios natildeo menos naturais a hierarquia e a disciplina haacute os

que mandam e os que obedecem ndash eis o dimorfismo de natureza psiacutequica que natildeo implica

duas categorias irredutiacuteveis (senhores e servos) Em verdade ambas as tendecircncias fazem

parte de noacutes integram nossa estrutura psiacutequica embora em geral a tendecircncia de obedecer

se manifeste mais constantemente que a de mandar ndash os tempos de revoluccedilatildeo o

demonstrariam melhor que qualquer outro exemplo196

Natildeo somos servos ou senhores por

194

ldquo[] la nature est indestructiblerdquo (BERGSON 2001 p 1206289) ldquo[] les dispositions de lrsquoespegravece

subsistent immuables au fond de chacun de nousrdquo (BERGSON 2001 p 1207291) isto eacute ldquolrsquoancien eacutetat

drsquoacircme subsiste dissimuleacute sous des habitudes sans lesquelles il nrsquoy aurait pas de civilisationrdquo (Idem ibidem

p 1209203) 195

ldquoIl fallait un sentiment aussi eacuteleveacute imitateur de lrsquoeacutetat mystique pour avoir raison drsquoun sentiment aussi

profond que lrsquoeacutegoiumlsme de la triburdquo (BERGSON 2001 p 1211295) 196

ldquoCrsquoest de quoi nous avons la vision nette en temps de reacutevolution Des citoyens modestes humbles et

oacutebeissants jusqursquoalors se reacuteveillent un matin avec la preacutetention drsquoecirctre des conducteurs drsquohommesrdquo

(BERGSON 2001 p 1212296-297)

218

natureza mas carregamos dentro de noacutes os iacutendices biopoliacuteticos que correspondem a esse

dimorfismo governamental na medida em que a vida social estaacute compreendida no plano da

estrutura da espeacutecie Eacute como se houvesse no mais submisso dos cidadatildeos um chefe

adormecido O que estaria na origem do engano quanto agrave separaccedilatildeo dos homens em classes

de mandantes ou de submissos natildeo passaria de um efeito cultural pelo qual por meios

historicamente muito heterogecircneos cultivou-se a naturalizaccedilatildeo da superioridade de estirpe

da classe governante Eis como se naturaliza o dimorfismo social do homem que estaacute

contido como tendecircncia inteiramente em cada indiviacuteduo da espeacutecie

Tudo se passa como se no interior dessa breve histoacuteria natural das formas humanas

de governamentalidade Bergson engendrasse uma fenomenologia da revoluccedilatildeo para

explicar o advento da democracia O instinto resiste a obrigaccedilatildeo via de regra perpetua-se

no seio do comum e no entanto a proacutepria classe dominante pode ou por uma

incapacidade evidente ou por abusos gritantes fazecirc-lo ceder na direccedilatildeo de um sentimento

de justiccedila capaz de dissipar a ilusatildeo segundo a qual a classe politicamente dirigente era

vista como naturalmente superior Toda a distacircncia entre senhores e suacuteditos esmaece Uma

vez que as classes superiores inspiram um respeito natural e quase religioso nas demais

compreende-se por que a humanidade soacute tenha chegado muito tarde agrave democracia

Concebecirc-la segundo Bergson implica um esforccedilo no sentido contraacuterio ao da natureza ela

seria a uacutenica forma de organizaccedilatildeo poliacutetica que para aleacutem de toda histoacuteria das lutas contra

a desigualdade transcende as condiccedilotildees da sociedade fechada e atribui ao homem direitos

inviolaacuteveis que para manterem-se inviolados exigem de todos fidelidade ao dever

Como a miacutestica a democracia eacute um salto para fora da natureza mas natildeo de toda a

natureza a democracia eacute a forma de organizaccedilatildeo poliacutetica que na medida em que atribui a

todos direitos iguais faz de todo homem legislador universal e suacutedito proclama e

reconcilia a igualdade e a liberdade eleva a fraternidade a genuiacutena condiccedilatildeo poliacutetica Uma

vez que a fraternidade torne-se essencial Bergson natildeo hesita em ir mais longe Para aleacutem

de descobrir ressonacircncias puritanas na Declaraccedilatildeo de Direitos do Homem ndash provenientes

da Declaraccedilatildeo Americana de Independecircncia ndash ele afirma que ldquola deacutemocratie est drsquoessence

eacutevangeliquerdquo que ldquoelle a pour moteur lrsquoamourrdquo (BERGSON 2001 p 1213300) Haveria

pois sob a superfiacutecie das foacutermulas democraacuteticas signos que evocam sua origem religiosa

dinacircmica Mesmo porque seria impossiacutevel definir a democracia senatildeo em termos vagos

tudo nela eacute questatildeo de permitir perseverar no aberto de deixar o futuro aberto a todo

progresso ldquonotamment agrave la creacuteation de conditions nouvelles ougrave deviendront possibles des

219

formes de liberteacute et drsquoeacutegaliteacute aujourdrsquohui irreacutealisablesrdquo (BERGSON 2001 p 1213300-

301)

Ama et fac quod vis eacute a essecircncia da democracia Esta direccedilatildeo quase sempre

introduzida no mundo pela forma do protesto permitiu conceber o advento dos direitos

humanos como desafios lanccedilados a abusos a fim de liquidar com o intoleraacutevel Toda a

fenomenologia da revolta que Bergson esboccedila nessas paacuteginas encontraraacute em uma

assertiva de Egravemile Faguet um ponto miacutestico de aprofundamento Faguet teria escrito que a

Revoluccedilatildeo Francesa natildeo fora feita em prol da liberdade e da igualdade mas porque se

morria de fome Bergson assente mas pergunta ldquopourquoi crsquoest agrave partir drsquoun certain

moment qursquoon nrsquoa plus voulu lsquocrever de faimrsquordquo Algo se passou da ordem de um devir das

formas de vida Na medida em que as intenccedilotildees com que uma ideia eacute lanccedilada continuam a

imantaacute-la por um longo tempo eacute preciso lembrar que toda foacutermula democraacutetica origina-se

da revoluccedilatildeo exprime um desejo revolucionaacuterio formula o que deve ser a fim de liquidar

o que eacute ndash e nesse sentido implica um trabalho praacutetico a um soacute tempo negativo e positivo

A ele corresponde o que Bergson diz ser um estado de alma democraacutetico que descreve um

esforccedilo no sentido inverso da natureza

A natureza inclina toda sociedade que se constitui agrave guerra forma grupos por

segregaccedilatildeo e exclusatildeo manteacutem-nos coesos organizados hierarquizados sob a autoridade

absoluta do chefe tudo isso segundo Bergson (2001 p 1216302) significa guerra A

inteligecircncia fabricadora com que a natureza dotou o homem tambeacutem o predispocircs agrave guerra

na medida em que permitiu que nascesse nele o sentimento de propriedade ligado aos

instrumentos que fabrica aos lugares que frequenta aos alimentos de que se nutre aos

escravos que possui etc Eis o que faz da propriedade uma tendecircncia natural que conduz agrave

guerra persiste no homem um instinto guerreiro que preparado para a violecircncia encontra

no fundo de si mesmo uma euforia que logo seraacute aplacada pelo sofrimento mas que natildeo

deixa de constituir uma forma de encorajamento e de reaccedilatildeo defensiva contra o medo197

Sob o ponto de vista do instinto guerreiro haacute guerras ldquonaturaisrdquo

Bergson natildeo cessa de auscultar nessas paacuteginas os diversos modos pelos quais a

Europa do poacutes-Primeira Guerra ndash olvidada muito rapidamente dos dilaceramentos recentes

ndash reencontrava esse instinto guerreiro e uma tendecircncia ao fechamento sem precedentes

Decerto o instinto guerreiro de que Bergson fala natildeo pode ser encontrado em estado puro

na medida em que a inteligecircncia interfere com ele projeta sobre esse instinto motivos

197

ldquo[] lrsquoorigine de la guerre est la proprieacuteteacute individuelle ou collective et comme lrsquohumaniteacute est predestineacutee

agrave la proprieacuteteacute par sa estructure la guerre est naturellerdquo (BERGSON 2001 p 1217303)

220

racionais que tendem a desaparecer na medida em que as guerras se tornem mais crueacuteis

Sob esse comeacutercio entre a guerra e a inteligecircncia e mais especificamente sob a relaccedilatildeo

entre a guerra e a industriosidade humana ndash que natildeo devemos esquecer fora forjada desde

a origem por uma inteligecircncia fabricadora ndash insinua-se o problema da teacutecnica envolvido

pelos perigos do fechamento198

Eacute preciso compreender as razotildees que levam Bergson agrave questatildeo da teacutecnica elas natildeo

estatildeo menos ligadas agraves formas de vida poliacutetica e agrave vida em geral que todas as demais

questotildees Com efeito no poacutertico da anaacutelise desse problema Bergson (2001 p 1220306)

chegaraacute a declarar que tendo esclarecido as origens da moral e da religiatildeo tendo obtido

algumas conclusotildees natildeo precisaria ir adiante199

No entanto a distensatildeo praacutetica e poliacutetica

que conduzia seu aparato conceitual metafiacutesico ndash sobretudo as noccedilotildees de aberto e fechado

ndash ao limite de genuiacutenos iacutendices biopoliacuteticos copresentes agraves sociedades humanas pareceratildeo

exigir um passo aleacutem200

Mais precisamente o que o impulsiona eacute perceber que as

tendecircncias da sociedade fechada parecem persistir na sociedade que se abre na medida em

que todas elas (obediecircncia fixismo hierarquia disciplina autoridade propriedade)

convergem primitivamente no instinto de guerra eacute preciso investigar se esse instinto pode

ser ativado ou inibido e de que maneira poderia secirc-lo

Sociedades como as europeias contemporacircneas agrave escritura de Les Deux Sources ndash

que aliaacutes parecem natildeo ter perdido nada de sua atualidade ndash satildeo aquelas que implicam em

mais alto grau certa dependecircncia entre os modos de vida e de existecircncia e o

198

ldquoLa derniegravere guerre avec celles qursquoon entrevoit pour lrsquoavenir si par malheur nous devons avoir encore des

guerres est lieacutee au caractegravere industriel de notre civilisationrdquo (BERGSON 2001 p 1220307) 199

ldquoNous pourrions en rester lagraverdquo (BERGSON 2001 p 1220306) 200

Seria impossiacutevel natildeo enxergar por exemplo em um longo paraacutegrafo em que Bergson pesquisa a

superpopulaccedilatildeo a divisatildeo do trabalho a circulaccedilatildeo dos produtos e a distribuiccedilatildeo de recursos e mateacuterias-

primas industriais ndash e toda a exigecircncia de regulamentaccedilatildeo que poderia ser estabelecida por organismos

internacionais ndash como causas possiacuteveis da ativaccedilatildeo do instinto de guerra os iacutendices daquilo que algumas

deacutecadas mais tarde Foucault chamaria de ldquobiopoliacutetica das populaccedilotildeesrdquo ou de ldquobiopoderrdquo poder sobre a vida

Bergson entrevecirc a necessidade de uma racionalizaccedilatildeo da produccedilatildeo do homem pelo homem atraveacutes de

regulaccedilotildees juriacutedico-administrativas e internacionais ndash em tudo coalescentes com a ideia foucaultiana de uma

ldquobiopoliacutetica das populaccedilotildeesrdquo fabricadora em que eacute o vital das populaccedilotildees que estaacute em jogo Para reter dessa

passagem apenas o essencial para demonstrar em que outro sentido o destino da filosofia bergsoniana natildeo

escapa a certa biopoliacutetica ldquo[] le scheacutema que nous venons de tracer marque suffisament les causes

essentielles accroisement de population perte de deacuteboucheacutes privation de combustible et de matiegraveres

premiegraveres Eliminer ces causes ou en atteacutenuer lrsquoeffet voilagrave la tacircche drsquoun organisme international qui vise agrave

lrsquoabolition de la guerre [] ce qui est certain crsquoest que lrsquoEurope est superpeupleacutee que le monde le sera

bientocirct et que si lrsquoon ne lsquorationalisersquo pas la production de lrsquohomme lui-mecircme comme on commence agrave le faire

pour son travail on aura la guerre [] Vous nrsquoeacuteviterez pas la reacuteglementation (vilain mot mais qui dit bien ce

qursquoil veut dire en ce qursquoil met impeacuterativement des rallonges agrave reacutegle et agrave regraveglement) Que sera-ce quand

viendront des problegravemes presque aussi graves celui de la reacutepartition de matiegraveres premiegraveres celuis de la plus

ou moins libre circulation des produits plus geacuteneacuteralement celui de faire droit agrave des exigences antagonistes

preacutesenteacutees de part et drsquoautre comme vitales Crsquoest un errreur dangereuse que de croire qursquoun organisme

international obtiendra la paix deacutefinitive sans intervenir drsquoautoriteacute dans la leacutegislation des divers pays et

peut-ecirctre mecircme dans leur administrationrdquo (BERGSON 2001 p 1221-1222308-309)

221

desenvolvimento industrial Eis o que definira sociedades afrodisiacuteacas sociedades de

prazer e gozo imoacuteveis tatildeo apaacuteticas quanto narcoacuteticas201

e que seriam talvez ainda hoje as

nossas ndash sociedades portanto provavelmente muito distantes do misticismo

ldquoincontestablement agrave lrsquoorigine des grandes transformations moralesrdquo (BERGSON 2001 p

1223310) as quais natildeo se tornaratildeo possiacuteveis senatildeo por um esforccedilo apropriado no sentido

do eacutelan vital a que corresponde tambeacutem um desejo profundo de fazecirc-lo202

Todavia

mesmo com relaccedilatildeo agraves sociedades afrodisiacuteacas natildeo haacute jamais um pessimismo bergsoniano

mas a insinuaccedilatildeo do aberto ldquoseraacute que a humanidade jaacute natildeo estaraacute suprida dos meios de

modificar-serdquo ou ldquotalvez esteja ela mais perto do que nunca do alvo que ela mesma

supotildeerdquo

Se Bergson recusa todo fatalismo em histoacuteria eacute na medida em que natildeo enxerga nela

um simples movimento pendular mas uma espiral ndash que implica a memoacuteria que impede

repeticcedilotildees puras ou nuas Jamais haacute simples alternacircncias de fluxo e refluxo na histoacuteria

nunca haacute um movimento pendular simples mas o desenvolvimento de tendecircncias segundo

a lei da dicotomia e a lei do duplo frenesi (BERGSON 2001 p 1227316) Sob a histoacuteria

soccedilobra o fundo do vital as lutas histoacutericas natildeo seriam senatildeo os signos superficiais e

expressivos de uma evoluccedilatildeo de tendecircncias mais profunda que em todos os aspectos

assemelha-se agraves tendecircncias de linhas de desenvolvimento da proacutepria vida Haacute portanto

uma coextensatildeo entre o movimento vital dos fluxos e suas transcriccedilotildees histoacutericas A

essecircncia de uma tendecircncia vital ndash afirmara o Bergson (2001 p 581102) de LrsquoEacutevolution

Creacuteatrice ndash eacute desenvolver-se em forma de feixe Na medida em que se desenvolve cresce

e cria as linhas divergentes segundo as quais um impulso original se dividiraacute203

O que

Bergson nomeia lei de dicotomia e lei de duplo frenesi tende a explicar esse movimento

global pelo qual uma tendecircncia se atualiza trata-se da dinacircmica de atualizaccedilatildeo de um

virtual propriamente dito ndash estejamos no campo da ontologia e da vida ou no da forma de

vida poliacutetica e da histoacuteria Com efeito em um caso estaremos no domiacutenio do imprevisiacutevel

no outro no da liberdade De todo modo imprevisto e liberdade constituem

essencialmente o mesmo embora determinem atualizaccedilotildees em niacuteveis diferentes que

coexistem entre si Definamos portanto as duas direccedilotildees em que uma atualizaccedilatildeo se

processa em geral A lei de dicotomia pode definir-se como a que provoca uma atualizaccedilatildeo

201

Bergson vai ainda mais longe ao afirmar que ldquoToute notre civilisation est aphrodisiaquerdquo (BERGSON

2001 p 1232322) 202

ldquoLrsquohumaniteacute ne se modifiera que si elle veut se modifierrdquo (BERGSON 2001 p 1223311) 203

Do ponto de vista de suas linhas divergentes criadas nas quais se reparte o eacutelan inicial ldquo[] une tendence

est la pousseacutee drsquoune multipliciteacute indistinctrdquo (BERGSON 2001 p 1225313)

222

por dissociaccedilatildeo ndash portanto por diferenccedila ndash do que originalmente constituiacutea uma tendecircncia

simples multiplicidade virtual e indistinta Por sua vez a lei de duplo frenesi consiste na

exigecircncia imanente a cada uma das tendecircncias criadas segundo a lei de dicotomia em

continuar-se indefinidamente exigir sua atualizaccedilatildeo ateacute o limite de uma tendecircncia criada

como linha divergente pela lei de dicotomia Bergson (2001 p 1227316) diz que cada

uma das tendecircncias exige ser realizada ateacute o seu limite mas pondera que talvez natildeo

houvesse esse extremo Encontrado esse limite virtual tendo chegado ao fundo de uma das

tendecircncias com toda a memoacuteria adquirida que isso implica voltar-nos-iacuteamos agrave atualizaccedilatildeo

da tendecircncia desprezada ndash e que permanecera agrave espera e agrave espreita ndash ateacute seu fundo204

Assim como uma inteligecircncia sobre-humana natildeo pode prever o devir histoacuterico

Bergson teraacute razatildeo em hesitar sobre a proximidade da humanidade a uma transformaccedilatildeo

miacutestica da moral A descriccedilatildeo do movimento de atualizaccedilatildeo de um impulso virtual

indiviso seu crescimento e dissociaccedilatildeo diferencial em tendecircncias autocircnomas a atualizaccedilatildeo

ateacute o fundo de uma enquanto a outra espera e espreita teria sido necessaacuteria para

compreender a questatildeo da teacutecnica e sua relaccedilatildeo com a miacutestica no acircmbito das sociedades

afrodisiacuteacas Como nunca a humanidade em geral parece buscar o luxo e o conforto por

meio da ciecircncia e das invenccedilotildees da teacutecnica responde a necessidades antigas na medida em

que cria novas que aceleram a insatisfaccedilatildeo das multidotildees Se a vida material dos homens

amplia-se significativamente entre os seacuteculos XV e XVI superando todo ideal asceacutetico que

constituiacutea a atmosfera da era medieval e fora diluiacutedo no comum dos homens eacute porque a

isso correspondem as evoluccedilotildees particulares de duas tendecircncias divergentes (BERGSON

2001 p 1230319) como se houvesse um progresso por oscilaccedilatildeo que potencialmente nos

conduziria a um retorno agrave vida simples ndash embora Bergson natildeo cesse de tratar disso como

algo aberto ao futuro e agrave sua imprevisatildeo Assim como o pensamento socraacutetico teria sido a

origem da vida cirenaica de prazeres e da vida ciacutenica de desprendimento violento

estendendo-se mais tarde no epicurismo e no estoicismo seria possiacutevel entrever uma

origem e um impulso comuns agrave sociedade afrodisiacuteaca e agrave vida simples Eacute no interior do

proacuteprio epicurismo ndash que popularmente consistiu natildeo raro na busca desenfreada de

prazeres ndash que Bergson encontra um Epicuro que desenvolveraacute o prazer supremo no

sentido da desnecessidade de prazeres205

Eacute nessas condiccedilotildees que um retorno agrave

204

ldquo[] quand on ne pourra plus avancer on reviendra avec tout lrsquoacquis se lancer dans la direction

neacutegligeacutee ou abandoneacuteerdquo (BERGSON 2001 p 1228316) 205

Esse coup drsquoœil sobre a histoacuteria das ideias resulta em que ldquo[] les deux principes sont au fond de lrsquoideacutee

qursquoon srsquoest toujours faite du bonheurrdquo (BERGSON 2001 p 1230319)

223

simplicidade natildeo seria certo por um lado mas tampouco teria algo de improvaacutevel afinal

ldquoune freacuteneacutesie apelle la freacuteneacutesie antagonisterdquo (BERGSON 2001 p 1233323)

Na medida em que pelo avanccedilo da ciecircncia superam-se necessidades antigas e

criam-se necessidades novas encontramos satisfaccedilotildees de luxo em invenccedilotildees mecacircnicas ndash a

proliferaccedilatildeo dos automoacuteveis como um luxo ostentatoacuterio o provaria suficientemente

(BERGSON 2001 p 1234324) Necessidades artificiais impulsionam ainda mais o

maquinismo embora a invenccedilatildeo mecacircnica persista um dom natural Seu progresso foi

limitado sempre pela mateacuteria e pela energia de que se aproveitava (esforccedilo muscular forccedila

do vento ou da aacutegua a energia acumulada por milhotildees de anos da hulha ou do petroacuteleo)

os saltos da teacutecnica habituaram-se a vencer distacircncias cada vez maiores na medida em que

a ciecircncia moderna integrou-se a ela e embora ciecircncia e teacutecnica possam distinguir-se

O que Bergson reprova agrave teacutecnica e ao espiacuterito de invenccedilatildeo eacute que natildeo tenham se

dirigido comumente aos interesses da humanidade inventando necessidades artificiais e

supeacuterfluas sem cessar natildeo asseguraram a satisfaccedilatildeo de necessidades mais elementares e

ainda que alterassem profundamente as relaccedilotildees capital-trabalho natildeo significaram aos

operaacuterios maior tempo de descanso e de liberdade206

Tais problemas poderiam poreacutem ser

corrigidos na medida em que a humanidade se esforccedilasse na direccedilatildeo de uma vida simples

racionalizasse a utilizaccedilatildeo do maquinismo orientada por certo misticismo e por certa ascese

(BERGSON 2001 p 1238329) A humanidade natildeo poderaacute fazecirc-lo contudo premida pela

fome e pela miseacuteria Se a miacutestica apela agrave mecacircnica eacute na medida em que para superar a

mateacuteria o homem precisa forccedilaacute-la encontrar nela um consistente ponto de apoio

(BERGSON 2001 p 1238329) Desde os instrumentos mais simples agraves maacutequinas mais

complexas e potentes que extraem seu potencial de accedilatildeo de uma energia acumulada por

milhotildees de anos todos prolongam o corpo e a inteligecircncia fabricadora com a qual a

natureza dotou o homem a teacutecnica e a mecacircnica o desenvolvem em um corpo aumentado a

exigir uma alma agrave sua altura ndash eis porque de certo ponto de vista tambeacutem a mecacircnica

parece convidar agrave miacutestica agrave constituiccedilatildeo de um suplemento de alma e a uma transformaccedilatildeo

moral capazes de preencher a distacircncia entre corpos totipotentes e as diminutas almas

humanas

206

ldquoDrsquoune maniegravere geacuteneacuteral lrsquoindustrie ne srsquoest pas assez soucieacutee de la plus ou moins grande importance des

besoins agrave satisfaire Volontiers elle suivait la mode fabriquant sans autre penseacutee que de vendrerdquo (BERGSON

2001 p 1236326) ldquo[] nous lui reprocherons [le machinisme] drsquoen avoir trop encourageacute drsquoartificiels

drsquoavoir pousseacute au luxe drsquoavoir favoriseacute les villes au deacutetriment des campagnes enfin drsquoavoir eacutelargi la distance

et transformeacute les rapports entre le patron et lrsquoouvrier entre le capital et le travailrdquo (BERGSON 2001 p

1236-1237327)

224

Mecacircnica e miacutestica natildeo seriam nesse sentido tendecircncias divergentes sujeitas agraves

leis de dicotomia e frenesi Direccedilotildees antagocircnicas originadas em um mesmo impulso

original de uma comunidade de eacutelan207

Eacute a miacutestica que permanece agrave espera e agrave espreita ndash

modo do virtual ndash enquanto nossa civilizaccedilatildeo leva a mecacircnica a seu limite e pareceraacute natildeo

parar de desenvolvecirc-lo senatildeo no limiar da cataacutestrofe Eis o que resulta da lei de dicotomia e

de duplo frenesi ldquo[] lrsquoaction en marche creacutee sa propre route creacutee pour une forte part les

conditions ougrave elle srsquoaccomplira et deacutefie ainsi le calcul On poussera donc de plus en plus

loin on ne srsquoarrecirctera bien souvent que devant lrsquoimminence drsquoune catastropherdquo

(BERGSON 2001 p 1227315) A descriccedilatildeo bergsoniana cada vez mais atual na medida

em que a mecacircnica parece conduzir-nos ainda hoje aos umbrais de uma cataacutestrofe

ambiental eacute o que estaacute a exigir uma profunda transformaccedilatildeo espiritual e moral capaz de

reunir os desiacutegnios da mecacircnica aos da miacutestica e por essa via reuni-los agrave proacutepria vida

A invenccedilatildeo coloca agrave disposiccedilatildeo do homem energias e potenciais de accedilatildeo

insuspeitados Restaria esforccedilar-se em relaccedilatildeo ao espiacuterito na direccedilatildeo da miacutestica tanto

quanto nossa civilizaccedilatildeo esforccedilou-se para dominar a mateacuteria Eis a procura pelo ldquode forardquo

capaz de fazer o homem emancipar-se da forma de vida que lhe fora atribuiacuteda pela

evoluccedilatildeo da vida assim livrar-se-aacute da proacutepria necessidade de ser uma espeacutecie Em relaccedilatildeo

a esse apelo que penetra miacutestica e devir liberaccedilatildeo e vida simples a humanidade soacute poderaacute

responder por si mesma nos termos de sua proacutepria liberdade que eacute tambeacutem a ressonacircncia

e a sobrevivecircncia do imprevisiacutevel ontoloacutegico que a constitui como tal208

A transiccedilatildeo da

alma que se abre que se prepara para cavalgar o corcel negro do devir implica o aberto

No entanto trata-se de saber como o aberto pode comunicar-se de alma a alma em que

consiste seu caraacuteter incendiaacuterio

Antes de nos encaminharmos definitivamente agraves derradeiras consideraccedilotildees da

presente seccedilatildeo antes mesmo de tornarmos evidente a relaccedilatildeo entre a transiccedilatildeo e a memoacuteria

que se insinua sem cessar sob os problemas de abrir o fechado de combater o fechamento

207

ldquoLes origines de cette meacutecanique sont peut-ecirctre plus mystiques qursquoon ne le croirait elle ne retrouvera sa

direction vraie elle ne rendra des services proportionneacutes agrave sa puissance que si lrsquohumaniteacute qursquoelle a courbeacutee

encore davantage vers la terre arrive par elle agrave se redresser et agrave regarder le cielrdquo (BERGSON 2001 p

1239331) 208

Tais satildeo as uacuteltimas linhas de Les Deux Sources em que Bergson evoca a liberdade mas tambeacutem o

potencial transespeciacutefico e biopoliacutetico da humanidade que retoma contato com o eacutelan vital (essa ldquomaacutequina de

fabricar deusesrdquo) e assumir a atitude espiritual correspondente ldquoA elle [lrsquohumaniteacute] de voir drsquoabord si elle

veut continuer agrave vivre A elle de se demander ensuite si elle veut vivre seulement ou fournir en autre lrsquoeffort

neacutecessaire pour que srsquoaccomplisse jusque sur notre planegravete reacutefractaire la fonction essentielle de lrsquounivers

qui est une machine agrave faire des dieuxrdquo (BERGSON 2001 p 1245338)

225

ou de perseverar no aberto ndash questotildees que nos encaminhavam inegavelmente a suas

transcriccedilotildees poliacuteticas no plano da democracia e dos direitos humanos ndash seria necessaacuterio

realizar um breve e derradeiro desvio a fim de compreender dinamicamente como o aberto

se comunica de uma alma a outra Com efeito pudemos compreender de maneira

esquemaacutetica as consequecircncias genuinamente praacuteticas que se dissimulam sob questotildees

aparentemente metafiacutesicas (abrir o fechado combater o fechamento perseverar no aberto)

Trata-se entatildeo de retrabalhar em detalhe alguns pontos-chave para compreender o caraacuteter

incendiaacuterio do aberto que se encontram expostos de maneira muito difusa na obra de

Bergson Esse curto desvio seraacute importante para compreender em que sentido natildeo haacute

transiccedilatildeo sem memoacuteria ndash e assumiremos aqui uma dupla articulaccedilatildeo entre os niacuteveis

psicoloacutegico e poliacutetico em que uma transiccedilatildeo se produz o que por si soacute auxiliaraacute a

esclarecer em que sentido o aberto pode ser tomado como o destino metafiacutesico de que as

transiccedilotildees poliacuteticas satildeo signo

Eacute em funccedilatildeo de uma teoria de emoccedilatildeo e de certa comunidade afetiva em

profundidade ndash que conviria chamar comunidade de eus profundos ndash que aspiraccedilatildeo

propulsatildeo e abertura satildeo mobilizados em funccedilatildeo de uma transformaccedilatildeo No entanto por

mais que seja possiacutevel pressentir sob toda abertura do estaacutetico em dinacircmico uma

comunidade de eus profundos que reemerge agrave superfiacutecie definidora das relaccedilotildees sociais

solidificadas pelo haacutebito e pelo todo da obrigaccedilatildeo propaga-se incendiariamente resfria-se

e volta a consolidar-se fechando-se sobre si mesma natildeo podemos nos brindar de antematildeo

com o que devemos demonstrar Uma comunidade de eus profundos soacute seraacute atingida no

extremo desse desvio e ao passo em que possamos esboccedilaacute-la entre as condiccedilotildees de

possibilidade da efetuaccedilatildeo de uma transformaccedilatildeo ou de uma transiccedilatildeo poliacutetica Eacute a esse noacute

problemaacutetico que as questotildees ldquocomo o aberto se comunica de alma em almardquo e ldquoem que

consiste a dinacircmica de sua propagaccedilatildeo incendiaacuteriardquo tendem a nos conduzir As

propriedades incendiaacuterias do aberto seriam muito mais do que uma bela imagem se

puderem ser explicadas dinamicamente em profundidade ligadas a uma teoria da emoccedilatildeo

criadora e a uma imitaccedilatildeo inventiva

Frisemos algo sobre o que jaacute insistimos longamente em outro momento mas que

recebeu em Les Deux Sources sua uacuteltima e definitiva distensatildeo praacutetica e poliacutetica Embora

desejemos conduzir a anaacutelise a partir do entrecruzamento entre dois niacuteveis da duraccedilatildeo ndash os

niacuteveis psicoloacutegico e poliacutetico-social ndash talvez natildeo seja demasiado ter em mente que o que

assegura essa coexistecircncia de niacuteveis eacute uma outra mais profunda e virtual e que

corresponde agrave proacutepria ontologia virtual da qual esses niacuteveis procedem Nesse sentido em

226

qualquer niacutevel em que o tomemos o que reabre o fechado o que racha o ciacuterculo descrito

pelo aparentemente natural e infinito tourner sur place que define uma forma de vida e os

coacutedigos sonambuacutelicos da moralidade estaacutetica satildeo algo como uma contraefetuaccedilatildeo virtual

que soacute se apreende em uma retomada de contato da forma com o eacutelan que eacute a condiccedilatildeo de

seu vir a ser tanto sob o ponto de vista do atual quanto do virtual O que eacute o aberto senatildeo

uma ruptura ou uma fenda na natureza naturada pela qual a duraccedilatildeo essencialmente

naturante natildeo cessa de forccedilar passagem O que Bergson define como ldquoa aberturardquo senatildeo o

conjunto de condiccedilotildees ndash entre as quais uma comunicaccedilatildeo do aberto de alma em alma ndash

pela qual eacute o devir como multiplicidade heterogecircnea e qualitativa que se comunica de

cima a baixo da ontologia agraves formas de vida do imprevisto agrave liberdade da evoluccedilatildeo das

espeacutecies ao salto inumano e sobre-humano de que o anthropos prova ser capaz na

experiecircncia miacutestica da memoacuteria elementar e ontoloacutegica que registra a passagem contiacutenua

da duraccedilatildeo agrave sua transfiguraccedilatildeo em memoacuteria psicoloacutegica e lembranccedila-imagem que torna

possiacutevel remuer la cendre do aberto A coalescecircncia entre o ontoloacutegico e os niacuteveis

psiacutequico poliacutetico-social ou histoacuterico que resta demonstrada em seus uacuteltimos termos

apenas agora ao cabo de Les Deux Sources ndash livro no interior do qual eacute uma atualizaccedilatildeo

em niacutevel do mesmo movimento que se passa em cada um desses niacuteveis na medida em que

ele eacute remissiacutevel em uacuteltima anaacutelise ao monismo poderoso e diferencial do eacutelan ndash jaacute seria

suficiente para termos presente que a origem com a qual o miacutestico toma contato designa

uma profunda forma de memoacuteria que se confunde com a integral da vida e de seus virtuais

A miacutestica designa a possibilidade de retomar o contato com essa memoacuteria cosmoloacutegica ndash

natildeo apenas bioloacutegica mas tambeacutem inorgacircnica e vital ndash e que persiste na forma de vida

humana Eis o que explica toda a centralidade da miacutestica como campo de provas no uacuteltimo

livro de jure de Bergson Essa tendecircncia que sobrevive no homem ao menos como virtual

ndash agrave espera e agrave espreita ndash soacute deseja que chegue a sua vez para que ela possa ser levada a

seu proacuteprio desespero conceitual para que tenha lugar seu desenvolvimento no sentido

mais radical para que sua linha de ruptura possa ser efetuada e conduzida a seu proacuteprio

frenesi

A fim de explicar como ela pode por um lado adormecer por duraccedilotildees muito

longas e por outro ser suscitada em duraccedilotildees muito curtas seria preciso entrever sua

relaccedilatildeo com uma teoria da emoccedilatildeo e da imitaccedilatildeo ndash nas quais tocamos apenas com as

pontas dos dedos ateacute aqui ndash em funccedilatildeo precisamente de uma espeacutecie de fenomenologia da

revoluccedilatildeo que encontraacutevamos nas Remarques Finales da obra de Bergson Nem mesmo os

mais contemporacircneos comentadores de Bergson ndash e que tentam reatualizar hoje o

227

bergsonismo como filosofia poliacutetica ndash levaram-na tatildeo longe O desafio que Bergson lanccedila

ao final do livro em tudo correlato aos devires democraacuteticos que o aberto inspirou mostra-

se paulatinamente ser algo da ordem de um desejo profundo e autecircntico virtual e

indomaacutevel puro ato de liberdade que eacute o representante psicoloacutegico de uma emoccedilatildeo

criadora de atmosfera incendiaacuteria Como explicar que certo dia homens outrora

obedientes e submissos decidam insurgir-se porque passar fome jaacute natildeo eacute mais toleraacutevel

Como natildeo enxergar nessa questatildeo a gecircnese dos proacuteprios direitos humanos como fruto do

desejo e de uma emoccedilatildeo criadora coletiva que se tornou necessaacuterio explicar ndash uma vez que

as lutas natildeo satildeo senatildeo os signos mais superficiais dessa clareira obscura e profunda que eacute o

aberto Se os direitos humanos como quisera Bergson se introduzem no mundo pela via

do protesto o desejo e a emoccedilatildeo satildeo seus precursores sombrios Cinzas que ainda fazem

rescender o perfume do aberto eles envolvem natildeo apenas um potencial emancipatoacuterio

contra a dominaccedilatildeo e a opressatildeo mas satildeo o iacutendice atual dos virtuais que sob eles

encontram-se agrave espreita agrave espera de variar formas de vida Por meio deles ou por meios

totalmente outros eacute contra o fechamento que se luta sem cessar contra a solidificaccedilatildeo da

desigualdade em haacutebito e da liberdade em coacutedigo moral

Contudo o que explicaraacute que se combata o fechamento do aberto sem cessar

Retornemos a uma distinccedilatildeo essencial entre o aberto e o fechado que se faz atravessar por

uma diferenccedila de natureza ndash e natildeo de grau Em virtude dessa diferenccedila Bergson recusava

vigorosamente a possibilidade de passar do fechado ao aberto pela via do alargamento

progressivo o amor ao Todo e a alma aberta jamais resultariam da extrapolaccedilatildeo do amor agrave

famiacutelia ou agrave paacutetria de que satildeo com efeito naturalmente capazes as almas fechadas209

Vimos a propoacutesito que todo esse contexto definia a questatildeo metafiacutesica e ao mesmo tempo

praacutetica e poliacutetica que segundo o proacuteprio Bergson constituiacutea o cerne problemaacutetico de Les

Deux Sources ndash ldquocomo abrir o fechadordquo ldquocomo reabrir o fechadordquo Sob essa questatildeo ndash

Worms bem o percebera ndash encontra-se muito mais do que uma simples questatildeo moral ou

poliacutetica destacada da ontologia210

pelo contraacuterio ela implica a ontologia bergsoniana

209

Pelo contraacuterio Antoine Janvier (2012 p 217-218) afirmaraacute que o processo de produzir difundir e

comunicar emoccedilatildeo recebe em Les Deux Sources o nome de amor mas pela vida inteira pelo Todo como a

descriccedilatildeo bergsoniana da alma aberta o provaria Cf nesse aspecto (BERGSON 2001 p 1006-100734) 210

ldquo[] o fechamento e a abertura natildeo satildeo apenas as dimensotildees morais da relaccedilatildeo da humanidade consigo

mesma mas tambeacutem as dimensotildees metafiacutesicas do homem com a vida com seu princiacutepio primeiro e com o

universo em seu conjuntordquo (WORMS 2011 p 367) ou ainda ao falar do que se encontra envolvido nos

problemas verdadeiros que Les Deux Sources desvela Worms diraacute que naquele livro ldquo[] encontraremos

natildeo apenas a gecircnese positiva da moral teoacuterica mas tambeacutem e sobretudo uma nova soluccedilatildeo para o problema

cosmoloacutegico para o problema da criaccedilatildeo que renova todo o pensamento de Bergsonrdquo (Idem ibidem p

347) Antoine Janvier (2012 p 210 e p 222) seguindo a inspiraccedilatildeo de Le Bergsonisme de Deleuze natildeo

deixa de considerar esta obra de Bergson como um desdobramento da ontologia da duraccedilatildeo em sentido

228

mesma o Todo virtual que se confunde com o eacutelan causa profunda do vir a ser do real em

sua integralidade

De outro lado sabemos o que permite no seio da forma de vida humana no

especiacutefico ciacuterculo antropoloacutegico que o aberto possa passar Se por um lado a natureza e o

instinto impotildeem o fechado e a vida social a inteligecircncia tambeacutem se introduz na estrutura

em geral do espiacuterito humano e com ela uma potecircncia de hesitaccedilatildeo que corresponde a uma

atualizaccedilatildeo de niacutevel psicoloacutegico da proacutepria imprevisibilidade ontoloacutegica da duraccedilatildeo

mesma enquanto diferenccedila consigo mesma ndash algo a que chamamos liberdade Nessa

abertura demasiado estreita em que ela se insere todo tipo de jogo se torna possiacutevel a partir

da tensatildeo constitutiva de nossa liberdade entre inteligecircncia e sociedade (DELEUZE 1966

p 112) Natildeo sem razatildeo o todo da obrigaccedilatildeo seraacute explicado pelo instinto virtual como

resistecircncia agrave resistecircncia porque o dado fundamental da inteligecircncia eacute o de resistir ao

fechamento que a natureza impotildee (BERGSON 2001 p 99113) Haacute uma indisciplina

natural nas crianccedilas porque a inteligecircncia abandonada a si mesma eacute fabricadora e

inventiva a variaccedilatildeo eacute o princiacutepio superior (supraintelectual) que natildeo cessa de ressoar nela

em um niacutevel apenas intelectual pragmaacutetico corporal atento ao presente e agraves exigecircncias da

utilidade e da vida A inteligecircncia e a invenccedilatildeo poreacutem natildeo satildeo nunca deixadas a si

mesmas ndash haacute sempre um instinto virtual que as vigia que reequilibra suas tendecircncias que

previne contra seus perigos e confabula para o social

Por outro lado ainda que o instinto virtual no homem pressione a inteligecircncia

tomando seu lugar instaura um intervalo entre accedilatildeo e reaccedilatildeo intervalo que Deleuze afirma

ser intracerebral Precisamente esse intervalo torna possiacutevel uma variaccedilatildeo de haacutebitos no

jogo entre inteligecircncia e sociedade ndash entre tendecircncias ao egoiacutesmo ao proveito individual e

pressatildeo exercida pelo todo da obrigaccedilatildeo ndash e indica dessa forma o sentido em que a

liberdade poderaacute alargar-se (JANVIER 2012 p 209) Tudo se passa como se essa

hesitaccedilatildeo duracional que a inteligecircncia implica encaminhasse ao aberto Precisamente essa

liberdade intervalar eacute o que explica certo privileacutegio do homem em relaccedilatildeo agraves demais

formas de vida do ponto de vista da evoluccedilatildeo ele seria o uacutenico capaz de encontrar no

ciacuterculo antropoloacutegico a condiccedilatildeo de ruptura e superaccedilatildeo de sua proacutepria forma de vida ndash eis

o que tornaria o homem em nossos termos o animal biopoliacutetico por excelecircncia definido

por sua potecircncia de variaccedilatildeo e invenccedilatildeo de formas de vida Natildeo por acaso Deleuze

(ibidem loc cit) diraacute que eacute toda a memoacuteria e toda a liberdade que se infiltram por esse

poliacutetico No mesmo sentido por fim ldquoLrsquoamour est [] le nom de la dureacutee saisi agrave son niveau le plus profonde

le plus fondamental []rdquo (AMALRIC 2012 p 274)

229

intervalo e se tornam atualizaacuteveis instaurando o privileacutegio da abertura no homem

indicaratildeo a sociedade aberta como limite ideal capaz de albergar por princiacutepio a

humanidade inteira e ir mais aleacutem ndash exprimir-se como amor ao Todo (BERGSON 2001 p

1202284 e ainda p 1006-100734) significado profundo da democracia

O aberto eacute o iacutendice dos devires de uma humanidade poacutes-humana na medida em que

se daacute conta de sua natureza transespeciacutefica O que a alma aberta encontraraacute no interior de si

eacute apenas a reiteraccedilatildeo do gesto constituinte da proacutepria vida assim tornava-se possiacutevel

definir a atitude miacutestica antes de tudo como uma tomada de contato e como coincidecircncia

parcial do miacutestico com a proacutepria vida (BERGSON 2001 p 1162233) Eacute portanto no

sentido do eacutelan e por extensatildeo da proacutepria ontologia virtual da qual sai o cosmos que as

almas as formas de vida e de existecircncia em comum se abrem Por essas razotildees a alma

aberta natildeo eacute um dado puro e simples da natureza sempre e jaacute atualizado mas o resultado

de um esforccedilo que desenvolve uma virtualidade copresente agrave inteligecircncia e ao instinto em

certo sentido (JANVIER 2012 p 214-215) No interior da forma de vida os virtuais de

uma alma aberta encontram-se nesse sentido prefigurados na direccedilatildeo da abertura que a

inteligecircncia indica a inteligecircncia e a variaccedilatildeo de haacutebitos que a inteligecircncia implica ao

resistir agrave pressatildeo de uma moralidade fechada satildeo indiciaacuterios de uma direccedilatildeo a seguir mas

natildeo atualizam por si mesmas nenhuma linha que dela proceda em potencial Essa linha

consiste em uma espeacutecie de apelo do virtual ldquoappel agrave la coappartenance originaire agrave lrsquoeacutelan

vitalrdquo (ZANFI 2012 p 231) ao qual respondem as individualidades excepcionais e

intuitivas dos grandes homens morais dos artistas mas tambeacutem dos miacutesticos

Se pudemos reencontrar brevemente o aberto como virtual do proacuteprio homem

essa abertura que assim se insinua constitui apenas uma das condiccedilotildees de uma

transformaccedilatildeo qualquer Eis o que nos daacute ao mesmo tempo a chave do vitalismo virtual

com que Bergson dissipa os falsos-problemas e as ilusotildees metafiacutesicas para retomar um

contato com o real211

Todo um novo esforccedilo deve constituir-se no sentido de esclarecer

sua dinacircmica que nos indica precisamente o lugar de uma teoria das emoccedilotildees e da

imitaccedilatildeo involuntaacuteria e inventiva ndash esta profundamente influenciada por Gabriel Tarde

(AMALRIC 2012 p 284)212

Perguntar-se sobre a dinacircmica segundo a qual uma

211

ldquo[] penser toutes choses en termes de dureacutee et de mouvement crsquoest-agrave-dire comme des produits de lrsquoeacutelan

vitalrdquo (JANVIER 2012 p 203) 212

A audaacutecia da cosmologia bergsoniana e de sua filosofia do devir eacute nesse sentido muito proacutexima daquela

de Gabriel Tarde para quem ldquoexistir eacute diferirrdquo A afirmaccedilatildeo que constitui a cosmologia de Tarde eacute lapidar

natildeo apenas por exprimir a precedecircncia da diferenccedila ou sua natureza infinitesimal mas por forrar o real com

a diferenccedila e submeter a proacutepria identidade a ela A aproximaccedilatildeo entre as cosmologias de Tarde e Bergson eacute

nesse particular notaacutevel ldquoExistir eacute diferir na verdade a diferenccedila eacute em um certo sentido o lado substancial

230

transformaccedilatildeo dos haacutebitos sociais dos coacutedigos morais ou das formas de organizaccedilatildeo

poliacutetica se produz eacute finalmente interrogar ldquocomo efetuar o abertordquo Eacute apenas nesse passo

que uma teoria da emoccedilatildeo criadora receberaacute em Les Deux Sources um estatuto especial

(DELEUZE 1966 p 116)

A resposta de Bergson a essa questatildeo eacute bastante clara A alma aberta natildeo estaacute

jamais dada como atual pela natureza o que a natureza assegurou foi a sociabilidade por

meio de um instinto virtual e a variabilidade dos haacutebitos em virtude da inteligecircncia Saltar

para fora da natureza naturada para fora do adquirido ldquoexige toujours un effortrdquo

(BERGSON 2001 p 100735) Sua forma de transcrever nossa questatildeo ldquocomo efetuar o

abertordquo eacute perguntar-se ldquoDrsquoougrave vient que les hommes qui en ont donneacute lrsquoexemple ont trouveacute

drsquoautres hommes pour les suivre Et quelle est la force qui fait pendant ici la pression

socialrdquo (Idem ibidem p 1007-100835) Sua resposta embora concisa natildeo seraacute menos

clara ldquoNous nrsquoavons pas le choix En dehors de lrsquoinstinct et de lrsquohabitude il nrsquoy a drsquoaction

direct sur le vouloir que celle de la sensibiliteacute La propulsion exerceacutee par le sentiment peut

drsquoailleurs ressembler de pregraves agrave lrsquoobligationrdquo (Idem ibidem p 100835)

Eis o ponto em que uma afetividade ndash cujos termos ainda estatildeo por definir ndash

encontra seu lugar no interior da filosofia moral e poliacutetica bergsoniana Aleacutem do instinto e

do haacutebito apenas a sensibilidade poderaacute interferir com o querer e eacute precisamente essa

accedilatildeo direta da sensibilidade sobre o querer que Bergson chamaraacute emoccedilatildeo (JANVIER

2012 p 215) Contudo natildeo seraacute esta uma emoccedilatildeo qualquer sua accedilatildeo direta sobre o querer

eacute algo que natildeo se confunde com a accedilatildeo do instinto ou do haacutebito ndash formulado pela

inteligecircncia mas fixado pelo instinto ndash sobre o querer A emoccedilatildeo estaacute para aleacutem disso

constitui o fora do instinto e do haacutebito consiste na libertaccedilatildeo do homem em relaccedilatildeo a todo

adquirido que natildeo a precede de modo nenhum Bergson (2001 p 101140) afirmaraacute pelo

contraacuterio que eacute sempre uma emoccedilatildeo nova o que estaacute na origem das grandes criaccedilotildees da

arte da ciecircncia ou da civilizaccedilatildeo Trata-se portanto natildeo de uma emoccedilatildeo que se segue de

uma representaccedilatildeo ou de uma ideia ndash ela jamais se definiraacute pois como intelectual ou

das coisas o que elas tem ao mesmo tempo de mais proacuteprio e de mais comum [] a identidade eacute apenas um

miacutenimo e portanto apenas uma espeacutecie e uma espeacutecie infinitamente rara de diferenccedila assim como o

repouso eacute apenas um caso do movimento e o ciacuterculo uma variedade singular da elipserdquo (TARDE 2007 p

98) Toda a cosmologia bergsoniana parece ser a prova dessa maacutexima afinal Bergson realiza um vai e vem

constante entre o espiacuterito e o mundo material perguntando se a incessante mudanccedila que experimentamos por

dentro nosso sentimento de duraccedilatildeo poderia aplicar-se agravequilo que existe em geral Testemunhando essa

proximidade entre Tarde e Bergson satildeo as proacuteprias foacutermulas cosmoloacutegicas que chegam a se tocar por

caminhos muito distintos ldquo[] pour un ecirctre conscient exister consiste agrave changer changer agrave se mucircrir se

mucircrir agrave se creacuteer indeacutefiniment soi-mecircme En dirait-on autant de lrsquoexistence en geacuteneacuteralrdquo (BERGSON 2001 p

50007)

231

infraintelectual ndash mas de uma emoccedilatildeo que eacute um estimulante do pensamento e da

invenccedilatildeo213

Trata-se de uma emoccedilatildeo que responde agrave questatildeo que Deleuze se colocava em

Diffeacuterence et Reacutepeacutetition ldquocomo engendrar pensar no pensamentordquo Deleuze encontraraacute no

teatro de Antonin Artaud uma foacutermula muito geral que natildeo deixa de transpirar certo

bergsonismo ldquoeacute preciso accediloitar nosso proacuteprio inatismordquo Artaud ndash como todo artista de

gecircnio ndash natildeo deixava de saltar tambeacutem ele agrave sua maneira e como conveacutem para fora da

natureza naturada para fora do inatismo que significaraacute para Bergson todo o adquirido

instinto virtual e inteligecircncia atenccedilatildeo agrave vida e imobilidade do pensamento

Em Bergson eacute a emoccedilatildeo criadora que accediloita nosso inatismo engendra o pensar no

pensamento e nos permite saltar para fora do constituiacutedo e do adquirido naturais ndash o

miacutestico eacute esse artista nada suicida que executa ldquoo salto vitalrdquo Natildeo sendo consecutiva nem

a uma ideia nem a uma sensaccedilatildeo tampouco a uma representaccedilatildeo a emoccedilatildeo seraacute geradora

de ideias e de pensamento definindo-se menos por elas e mais como ldquoun eacutebranlement

affectif de lrsquoacircme [] un soulegravevement des profondeursrdquo (BERGSON 2001 p 101140) A

emoccedilatildeo criadora eacute portanto duplamente irredutiacutevel ela natildeo se reduz nem agraves excitaccedilotildees

fiacutesicas superficiais ou agraves sensaccedilotildees que se produzem em um corpo nem agraves ideias e

representaccedilotildees que gera como suas expressotildees Nesse sentido Bergson (2001 p 101241)

poderaacute definir a emoccedilatildeo criadora como emoccedilatildeo supraintelectual querendo significar com

isso natildeo uma superioridade de valor mas uma anterioridade no tempo como a que se

encontra presente na relaccedilatildeo entre aquilo que engendra e aquilo que eacute engendrado O apelo

bergsoniano eacute pois o de natildeo confundir produto e produzir a emoccedilatildeo criadora

supraintelectual definida como sensibilidade profunda eacute o que engendra na medida em

que essa vibraccedilatildeo da integral da alma ldquocrsquoest bien lrsquoimprevisible mecircme qui nous saisitrdquo

(JANVIER 2012 p 215) Natildeo casualmente denotando ainda uma vez a correlaccedilatildeo entre

os devires em sentido ontoloacutegico e nos demais registros (sociais morais ou poliacuteticos por

exemplo) Yala Kisukidi realizaraacute uma releitura do estatuto do fechado e do aberto em

funccedilatildeo da teoria das multiplicidades presentes no Essai sur les donneacutees immediates de la

conscience e natildeo hesitaraacute em vincular ao fechado as multiplicidades de tipo quantitativo e

ao aberto a multiplicidade qualitativa heterogecircnea e contiacutenua que corresponde no Ensaio

agrave proacutepria duraccedilatildeo214

213

ldquo[] lrsquoinvention quoique drsquoordre intelectuel peut avoir de la sensibiliteacute pour substancerdquo (BERGSON

2001 p 101140) 214

ldquoLe clos est le reacutegne du multiple en un sens quantitatif Multipliciteacute des parties qui forment les diffeacuterents

groupes humains Chaque groupe se recconnagraveit comme Un en tant qursquoil est identique agrave lui-mecircme ndash toute

identiteacute supposant lrsquoexclusion et la deacutefense contre lrsquoeacutetranger [] Contre cette multipliciteacute particularisante

232

Assim como os atos de liberdade em profundidade tais como aparecem no Essai

satildeo raros e excepcionais a emoccedilatildeo criadora natildeo deixa de ser uma forma de afetividade

excepcional que se traduz em forccedilas de aspiraccedilatildeo (JANVIER 2012 p 216) No entanto

seriam eles atos exclusivamente individuais prerrogativas dos grandes homens morais das

individualidades excepcionais dos homens de gecircnio e dos miacutesticos Eis a questatildeo que

parece insinuar sub-repticiamente o problema da comunicaccedilatildeo do aberto entre as almas

Aleacutem de jaacute sabermos que o aberto natildeo constitui um dado natural atualizado dois

outros argumentos seratildeo suficientes para respondermos negativamente a essa questatildeo O

primeiro deles reside na circunstacircncia de a alma aberta tal como caracterizada por

Bergson depender com efeito de um esforccedilo individual mas implicar uma postura

transitiva (AMALRIC 2012 p 282) Isso se provaria ateacute mesmo metafoacuterica e

imageticamente Se Bergson insiste nas propriedades incendiaacuterias segundo as quais o

aberto se transmite a atitude vital dos iniciadores dos indiviacuteduos excepcionais constitui

apenas um foco inicial Seu destino eacute tornar-se forccedila de aspiraccedilatildeo em virtude de sua

capacidade imanente de propagar-se de tornar-se coletiva Ao responder por que as

individualidades excepcionais tecircm imitadores Bergson (2001 p 1003-100430-31) diraacute

que ldquoleur existence est un appelrdquo ndash chamado em tudo diverso da pressatildeo quase-meloacutedico

na medida em que implica uma moral integralmente diferente de uma emoccedilatildeo superior

nova e irredutiacutevel Estar na presenccedila de uma personalidade moral eacute encontrar-se por isso

mesmo na presenccedila de uma clareira aberta a fogo

No entanto em algumas passagens difusas mas decisivas veremos que a

necessidade de estar em presenccedila de uma grande personalidade moral relativiza-se

paulatinamente Em primeiro lugar porque haacute ldquo[des] heacuteros obscurs de la vie moralerdquo

(BERGSON 2001 p 47) Pouco a pouco ao lado do exemplo das grandes personalidades

morais de homens excepcionais e de grandes iniciadores encontraremos existecircncias natildeo

menos exemplares e miacutesticas muito proacuteximas de noacutes ndash mas tambeacutem individualidades

distantes podem inflamar-nos certa aspiraccedilatildeo215

Com isso Bergson quer dizer que de

algum modo eacute possiacutevel sentir no mais profundo de noacutes um eco ou uma ressonacircncia do

aberto ndash mas isso tambeacutem implica que o aberto esteja como seu eco ao alcance de todos

Em segundo lugar veremos que estar em presenccedila de uma grande personalidade

moral relativiza-se definitivamente tambeacutem em um sentido que nos permitiraacute encontrar

lrsquoouvert comme assomption drsquoune humaniteacute divine se deacutefinit selon une multipliciteacute qualitative [] elle est

dans le cadre de la philosophie morale de Bergson un effet de creacuteationrdquo (KISUKIDI 2012 p 250) 215

ldquoCe pouvait ecirctre un parent un ami que nous eacutevoquions ainsi par la penseacutee Mais ce pouvait aussi bien ecirctre

un homme que nous nrsquoavions jamais rencontreacute []rdquo (BERGSON 2001 p 100430)

233

uma transcriccedilatildeo mais psicoloacutegica do que ontoloacutegica da memoacuteria Natildeo eacute de todo preciso

estar ou ter estado na presenccedila dos grandes homens de bem porque essa presenccedila pode ser

evocada a cada instante pela memoacuteria e pela histoacuteria na medida em que elas envolvem um

ponto de vista interno agrave sua accedilatildeo Os heroacuteis obscuros da vida moral ndash adormecidos talvez

no mais profundo de noacutes mesmos (AMALRIC 2012 p 283) ndash poderatildeo manifestar sua

personalidade em noacutes a todo momento bastaraacute ldquoque nous [les] eacutevoquions ainsi par la

penseacuteerdquo que apreendamos a abertura de uma existecircncia da qual nunca fomos

contemporacircneos de uma vida que nos foi simplesmente contada (BERGSON 2001 p

100430) Nesses dois sentidos ndash o das personalidades insuspeitadamente muito proacuteximas e

o das individualidades muito distantes ndash o aberto tal como manifestado nas vidas desses

heroacuteis obscuros que natildeo cessam de enviar-nos seus apelos eacute a exemplo de sua moral

irredutiacutevel ao individual (AMALRIC 2012 p 282)

Eis o apelo que natildeo cessa de procurar um eco no coletivo como em cada um de

noacutes se o aberto se propaga de maneira incendiaacuteria eacute porque deve haver algo como uma

difusatildeo e comunicaccedilatildeo entre as almas que apenas a imitaccedilatildeo e a ressonacircncia explicariam

O que essas personalidades excepcionais saiacutedas no entanto do mais comum de noacutes

mesmos suscitam eacute uma forccedila de aspiraccedilatildeo capaz de ecoar em cada um de noacutes Em seus

atos encontramos como que um modelo da accedilatildeo que natildeo implica um caminho de todo

dado e simplesmente a trilhar mas permite a uma personalidade entrever no mais

profundo de si a projeccedilatildeo da abertura singular que uma personalidade excepcional se

tornara para ela Por mais que a imite a singularidade irredutiacutevel da personalidade ndash feita

de duraccedilatildeo ndash inibe o idecircntico A propagaccedilatildeo do aberto daacute-se sem duacutevida por imitaccedilatildeo e

mediada por almas individuais transitivas do aberto contudo a imitaccedilatildeo pela qual o aberto

se propaga e se transmite de alma em alma natildeo se reduz a uma mimeacutetica superficial Esse eacute

o sentido da figura do eco ou da ressonacircncia ndash se a emoccedilatildeo criadora eacute uma vibraccedilatildeo da

alma um seu eacutebranlement ecoaacute-la ou ressoar com ela significa vibrar-junto percuti-la no

mais profundo de noacutes mesmos ao mesmo tempo em que ela ganha a tonalidade e a

coloraccedilatildeo singulares e irredutiacuteveis da alma na qual encontrou eco

Por essa razatildeo David Amalric (2012 p 283) natildeo apenas associaraacute a propagaccedilatildeo do

aberto entre as almas agrave inspiraccedilatildeo que o conceito de imitaccedilatildeo inventiva recebe das obras de

Gabriel Tarde mas afirmaraacute tratar-se em Bergson de uma teoria da propagaccedilatildeo imitativa

Por um lado ela daraacute ao fenocircmeno da imitaccedilatildeo e da proacutepria emoccedilatildeo criadora uma

dimensatildeo afetiva ndash como um entusiasmo incendiaacuterio (BERGSON 2001 p 102659) ndash e a

um soacute tempo coletiva por outro a imitaccedilatildeo seraacute um processo que ocorre em profundidade

234

que implica como consequecircncia da proacutepria natureza criativa e profundamente duracional

de toda personalidade um coeficiente de reinvenccedilatildeo e de reapropriaccedilatildeo dessa tensatildeo que se

manifesta originalmente como a abertura dos atos e das almas das individualidades

excepcionais Finalmente eacute como se tudo se tornasse uma experiecircncia coletiva de

libertaccedilatildeo em que a consciecircncia e a representaccedilatildeo satildeo no limite inteiramente

desnecessaacuterias agrave imitaccedilatildeo que como em Tarde seraacute inventiva e involuntaacuteria (AMALRIC

2012 p 284) Assim poderemos enxergar finalmente o fenocircmeno do aberto inserido no

tecido afetivo da sociedade recondicionando parcialmente as formas do viver-junto

Bastaraacute a emoccedilatildeo criadora bastaraacute ter respirado sua atmosfera e ter penetrado uma

emoccedilatildeo para agir de acordo com ela (BERGSON 2001 p 101545) Ela natildeo eacute o efeito da

representaccedilatildeo mas geradora de ideias Ela natildeo introduz sentimentos em noacutes mas introduz-

nos no interior de emoccedilotildees verdadeiramente impessoais como o que fazem as sublimes

canccedilotildees de amor ldquoTelle musique sublime exprime lrsquoamour Ce nrsquoest pourtant lrsquoamour de

personne Une autre musique sera un autre amour Il y aura deux atmosphegraveres de sentiment

distinctes deux parfums diffeacuterents et dans le deux cas lrsquoamour sera qualifieacute par son

essence non par son objetrdquo (BERGSON 2001 p 1191-1192270)216

Eis a sociedade que se abre a que se encontra a meio caminho entre o fechado e o

aberto seu limite ideal Sabemos no entanto que o incecircndio natildeo duraraacute para sempre Logo

ele se apagaraacute e as formas de vida que o eacutelan fundia em uma potecircncia superior que se

confundia com os virtuais e com seu proacuteprio devir voltaratildeo a solidificar-se e a tocar-se

pelas bordas superficialmente como se a vida se fechasse em uma forma de memoacuteria atual

e esquecidiccedila de si mesma As vibraccedilotildees pareceratildeo ter cessado as personalidades

gloriosas desaparecido o fechado pareceraacute ter recoberto integralmente o aberto ldquoCes

deux morales juxtaposeacutees semblent maintenant nrsquoen plus faire qursquoune la premiegravere ayant

precircteacute agrave la seconde un peu de ce qursquoelle a drsquoimpeacuteratif et ayant drsquoailleurs reccedilu de celle-ci en

eacutechange une signification moins eacutetroitement social et plus largement humainerdquo

(BERGSON 2001 p 1016-101747) Tudo se converte entatildeo em estrateacutegias para

combater o fechamento Em responder ldquoO que resta quando nenhum outro devir parece

possiacutevelrdquo Se nos perguntaacutevamos ldquoComo perseverar no abertordquo colocado do ponto de

216

Bergson (2001 p 100836) diraacute ainda sobre a impessoalidade da emoccedilatildeo musical que nos introduz em

emoccedilotildees como signo do Todo ldquoQue la musique exprime la joie la tristesse la pitieacute la sympathie nous

sommes agrave chaque instant ce qursquoelle exprime Non seulement nous mais beaucoup drsquoautres mais tous les

autres aussi Quand la musique pleure crsquoest lrsquohumaniteacute crsquoest la nature entiegravere qui pleure avec elle A vrai

dire elle nrsquointroduit pas ces sentiments en nous elle nous introduit plutocirct en eux comme des passants qursquoon

pousserait dans une danse Ainsi procegravedent les initiateurs en morale La vie a pour eux des reacutessonances de

sentiments insoupccedilonneacutees comme en pourrait donner une symphonie nouvelle ils nous font entrer avec eux

dans cette musique pour que nous la traduisons en mouvementrdquo

235

vista da sociedade que acabou de fechar-se sobre si mesma esse problema transfigura a

questatildeo inicial ldquoComo reabrir o fechadordquo Eis os termos em que o combate contra o

fechamento se transcreve

Eacute a questatildeo do devir em sentido a um soacute tempo ontoloacutegico e biopoliacutetico

cosmoloacutegico e moral que nos coloca no epicentro das relaccedilotildees entre memoacuteria e transiccedilatildeo

Respondendo a ela de uma maneira muito lacocircnica e talvez por isso mesmo infinitamente

pregnante Bergson parece fundir todos os niacuteveis embaralhar todos os registros em uma

foacutermula de todo decisiva ldquoremuons la cendre nous trouverons des parties encore chaudes

et finalement jaillira lrsquoeacutetincelle le feu pourra se rallumer et srsquoil se rallume il gagnera de

proche en procherdquo (BERGSON 2001 p 101747) Poreacutem o que se encontra em jogo

nessa foacutermula Natildeo se trata de estender um pouco mais aleacutem o gozo de suas imagens

iacutegneas do aberto O que o combate contra o fechamento solicita eacute de um lado perseverar

no aberto de outro reabrir o fechado Esse combate natildeo poderia ser mais poliacutetico e vital

Ele natildeo cessa de se dissimular sob as imagens explosivas e incendiaacuterias de que Bergson

(2001 p 825-82614-15) dotou natildeo apenas o aberto mas a proacutepria liberdade e a vida em

LrsquoEacutenergie Spirituelle217

Eacute preciso procurar o tecido de sentido do qual essas imagens natildeo

satildeo senatildeo um signo do aberto da mesma forma como o remexer das cinzas natildeo deve ser

senatildeo o indiacutecio do incendiaacuterio

Prestemos atenccedilatildeo sobretudo a esta foacutermula bergsoniana lacocircnica e magistral agrave

qual David Amalric (2012 p 284-287) dedicou belas paacuteginas Remuons la cendre

Sabemos que as experiecircncias de abertura satildeo sempre efecircmeras sempre ameaccediladas pelo

fechamento ndash lembremo-nos que Bergson natildeo se cansava de dizer que o instinto vigia

Sabemos que ldquo[] apregraves chacune [des expeacuteriences qui tendent vers la socieacuteteacute ouverte] se

referme le cercle momentaneacutement ouverterdquo (BERGSON 2001 p 100532) Parte da

aspiraccedilatildeo social torna-se pressatildeo e a obrigaccedilatildeo termina por recobrir o todo O verbo

remuer conjugado sob a forma imperativa na foacutermula bergsoniana indica ao mesmo

tempo um gesto e um convite agrave accedilatildeo segundo David Amalric (2012 p 285) como se nos

dissesse ldquomecircme lorsque lrsquoouvert a eacuteteacute entiegraverement recouvert par le clos lorsqursquoil nrsquoy a

guegravere plus de personnaliteacutes exceptionelles pour les susciter agrave nouveau il est encore

possible de faire quelque choserdquo218

O que Amalric natildeo nota ndash ao menos natildeo

217

Eacute nesse sentido que Deleuze diraacute que para Bergson ldquoLa liberteacute a preacutecisement ce sens physique lsquofaire

deacutetonerrsquo un explosif lrsquoutiliser pour des mouvements de plus en plus puissantsrdquo (DELEUZE 1966 p 113) 218

Bergson afirma ainda que ldquoLe souvenir de ce qursquoelles [les acircmes mystiques] ont eacuteteacute de ce qursquoelles ont

fait srsquoest deacuteposeacute dans la meacutemoire de lrsquohumaniteacute Chacun de nous peut les revivifier []rdquo (BERGSON 2001

p 104685)

236

expressamente ndash eacute que a escolha do verbo remuer natildeo eacute acidental Com efeito remuer eacute

sinocircnimo de bouger mouvoir deacuteplacer transmite a ideia de movimento de deslocamento

de mudanccedila de lugar e portanto de um gesto que na forma imperativa flexionada na

primeira pessoa do plural faz-se coextensiva de um convite agrave accedilatildeo Assim ldquoremuonsrdquo no

contexto da foacutermula bergsoniana pode ser traduzido sem prejuiacutezo de sentido por

ldquomovamosrdquo ldquoremexamosrdquo ldquodesloquemosrdquo ldquotroquemos de lugarrdquo a cinza o que restou do

aberto No entanto remuer possui em francecircs um emprego figurado muito particular

equivalente a ldquoprovoquer de lrsquoeacutemotionrdquo ldquoemocionar-serdquo Um escritor atento agrave etimologia

como Bergson demonstrou mais de uma vez estar consciente de que ldquomouvoirrdquo e

ldquosrsquoeacutemouvoirrdquo mover e emocionar-se possuem a mesma raiz etimoloacutegica David

Lapoujade (2010 p 73) em uma passagem talvez insoacutelita ndash porque relacionada agrave intuiccedilatildeo

e agrave simpatia ndash natildeo deixou de observar essa proximidade ldquoConnaicirctre pour Bergson crsquoest

toujours entrer dans un mouvement comme on srsquoeacutemeut drsquoune meacutelodie ou comme on entre

dans une danserdquo Contudo se conhecer eacute entrar em um movimento da mesma forma como

uma melodia nos moveemociona ou como entramos em uma danccedila eacute porque ldquoIl y a

quelque chose de plus profond que notre intelligence plus profond mecircme que notre vie

affective ou eacutemotionelle crsquoest le rythme particulier de dureacutee par lequel nous entrons en

relation avec drsquoautres reacutealiteacutesrdquo (Idem ibidem loc cit) - entatildeo jaacute natildeo haveria onde nos

fechar nessa aberta claridade

Remuer la cendre eacute com efeito um princiacutepio de agitaccedilatildeo e movimento um

turbilhonamento e um convite agrave accedilatildeo mas mais profundamente um convite coletivo a

fazer rescender o perfume do tempo Se a cinza eacute o que resta quando nenhum outro devir

parece possiacutevel quando o aberto parece fechar-se e solidificar-se em haacutebito e coacutedigo

moral trata-se de remexer a cinza ndash que natildeo eacute senatildeo a memoacuteria dos atos dos miacutesticos das

grandes personalidades morais como dos heroacuteis obscuros dos iniciadores e artistas de

gecircnio ndash para revivificaacute-la (BERGSON 2001 p 101747 p 104685) A memoacuteria eacute tudo o

que resta quando nenhum outro devir parece possiacutevel ela estaacute por isso mesmo fora do

possiacutevel constitui uma potecircncia virtual memoacuteria do jamais vivido memoacuteria para o futuro

(LAPOUJADE 2010 p 21-22) Fundamento do tempo a memoacuteria nos lembra de que

mesmo a evocaccedilatildeo e a miacutemesis de uma existecircncia miacutestica que jamais conhecemos que

jamais vivemos em nossa proacutepria vida que nunca foi agida e portanto define-se pela

espera e pela espreita que satildeo modos do virtual natildeo apenas estaacute ao alcance de nossa

experiecircncia mas jamais implicaraacute uma repeticcedilatildeo pura e sim uma reapropriaccedilatildeo e uma

imitaccedilatildeo inventivas Toda rememoraccedilatildeo como toda memoacuteria ontoloacutegica e elementar

237

implica o Todo virtual que eacute o fundamento do tempo e que reabre o devir o devir e o

virtual satildeo o que passa por contrabando no menor contiacutenuo de tempo dedicado agrave

reminiscecircncia Como em Matiegravere et meacutemoire eacute a duraccedilatildeo inteira que se atualiza em cada

niacutevel de memoacuteria

Contudo um uacuteltimo problema que nos levaraacute a responder de uma vez por todas agrave

questatildeo de como o aberto se comunica de alma em alma e ainda nos ofereceraacute a antevisatildeo

do que ateacute agora sem a definir chamamos de comunidade de eus profundos Todo esse

problema resume-se em responder ldquoComo o aberto encontra-se ao alcance de nossa

experiecircncia e ao menos de direito da experiecircncia de todosrdquo Eacute nesse ponto que veremos

uma ontologia do virtual que se insinuava como causa profunda da evoluccedilatildeo e das formas

de vida reabrir-se em cosmologia infiltrar-se definitivamente nas formas que engendra

Caterina Zanfi afirma que por meio da dualidade entre aberto e fechado Bergson

introduz em Les Deux Sources uma forma de sociabilidade que natildeo se constitui como

desdobramento do haacutebito e das convenccedilotildees utilitaacuterias mas sim um novo tipo de

sociabilidade ldquoqui puise dans une source plus profonde racine de la coappartenence et de

la solidariteacute des ecirctres fondement plus profond de la intersubjectiviteacuterdquo (ZANFI 2012 p

231) Essa nova forma de sociabilidade esboccedila-se em uma passagem senatildeo prematura de

todo insoacutelita em que Bergson deduz da incomensurabilidade da personalidade do eu

profundo para com todos os demais mas tambeacutem de sua irredutibilidade agraves figuras sociais

do eu superficial a potecircncia de um equiliacutebrio social superior Sabemos que o eu superficial

ndash progenitura do espaccedilo do soacutelido e da inteligecircncia natural ndash eacute desde o Essai a parcela

socializada de noacutes mesmos mas tambeacutem a mais inautecircntica e submissa Ao questionar o

indiviacuteduo em sociedade eacute o indiviacuteduo integral em que o superficial coexiste com o

profundo que o constitui como uniatildeo coesa No entanto se o eu superficial explica a

obrigaccedilatildeo e a moral fechada natildeo explicaraacute a liberdade ou a alma que se abre Por essa

razatildeo Bergson (2001 p 98607) pergunta prefigurando esse novo tipo de sociabilidade

em profundidade de que falou Caterine Zanfi ldquoSrsquoinstaller dans cette partie socialiseacutee de

lui-mecircme est-ce pour notre moi le seul moyen de srsquoattacher agrave quelque chose de solide

Ce le serait si nous ne pouvions autrement nous soustraire agrave une vie drsquoimpulsion de

caprice et de regretrdquo Insinua-se portanto uma outra forma de solidez e solidariedade

social que natildeo a superficial ldquo[] au plus profond de nous-mecircmesrdquo Bergson continua ldquosi

nous savons le chercher nous deacutecouvrirons peut-ecirctre un eacutequilibre drsquoun autre genre plus

deacutesirable encore que lrsquoeacutequilibre superficielrdquo

238

Estariacuteamos diante pois de dois tipos de equiliacutebrio a que correspondem dois tipos

de sociabilidade um superficial outro profundo De acordo com a imagem das plantas

aquaacuteticas que Bergson evoca eacute possiacutevel encontrar estabilidade e solidez em ambos os

sentidos na superfiacutecie a reuniatildeo das folhas permite que umas apoiem-se nas outras mas eacute

em profundidade que cada uma encontra-se firmemente enraizada a um solo comum Haacute

sem duacutevida uma sociedade superficial pela qual cada um manteacutem-se unido aos demais em

razatildeo da pressatildeo exercida por um conjunto impessoal de comandos morais que

correspondem agrave sociedade fechada O novo sentido de nossa vida social que Bergson

introduz pela imagem das plantas aquaacuteticas que se enraiacutezam em um solo comum constitui

esse novo sentido o que chamamos de comunidade de eus profundos na qual ldquo[] dans

lrsquoenracinement dans la vie commun agrave tous les individus on trouve la source meacutetaphysique

de la socialiteacuterdquo (ZANFI 2012 p 231)

Que Bergson se limite agrave imagem das plantas aquaacuteticas enraizadas a um solo comum

da mesma forma como indiviacuteduos estatildeo em profundidade enraizados ao mesmo eacutelan que

eacute a fonte de toda sociabilidade e invenccedilatildeo poliacutetica natildeo se trata de uma metaacutefora inerme e

sem maiores consequecircncias Ela atesta a correlaccedilatildeo entre o ontoloacutegico e todos os demais

niacuteveis de produccedilatildeo da vida de suas formas e de seus acontecimentos materiais ou

espirituais sobre a qual natildeo cessamos de insistir Natildeo casualmente Caterina Zanfi adverte

que a forccedila de uma transformaccedilatildeo manifesta-se sobretudo no indiviacuteduo mas ela eacute

transitiva e tende a tornar-se aspiraccedilatildeo chamado de heroacuteis obscuros da moral na medida

em que ldquofait appel agrave la coappartenence originaire de lrsquoeacutelan vital qui justifie lrsquoaccessibiliteacute

ideacutealement universal agrave ce renouvellement mecircmerdquo (ZANFI 2012 p 231-232) Com efeito

ideacutealement significa aqui de direito Eacute a dimensatildeo profunda da duraccedilatildeo a consistecircncia

virtual de uma memoacuteria elementar que faz o tempo passar que constituiacutea a condiccedilatildeo da

simultaneidade de fluxos atuais e que nesse plano eacute a condiccedilatildeo virtual da comunicaccedilatildeo

em profundidade da emoccedilatildeo criadora de sua propagaccedilatildeo incendiaacuteria e independente tanto

do instinto quanto do haacutebito das ideias como das representaccedilotildees Eis o que o acordo entre

os miacutesticos ndash que testemunham pontos de partida e chegada comuns ndash mas tambeacutem a

dimensatildeo de uma consciecircncia preacute-individual e preacute-subjetiva que garantia a simultaneidade

de fluxos atuais asseguram (ZANFI 2012 p 232 BERGSON 2001 p 1184261)

Eacute certo que Deleuze (1966 p 115-117) havia localizado a emoccedilatildeo criadora

bergsoniana em um intervalo intercerebral resultante dos jogos de invenccedilatildeo entre a

inteligecircncia e a sociedade e que a hesitaccedilatildeo da inteligecircncia natildeo seria senatildeo a imitaccedilatildeo

singularizante de uma hesitaccedilatildeo superior da duraccedilatildeo nas coisas A liberdade entatildeo soacute eacute

239

dada como resistecircncia A pressatildeo e o todo da obrigaccedilatildeo como resistecircncia agraves resistecircncias

satildeo infinitamente desdobradas nesse jogo Tudo se passa como se nesse intervalo viesse

atualizar-se em certos niacuteveis psicoloacutegicos mas tambeacutem sociais e poliacuteticos ndash que coexistem

com o Todo virtual do qual dependem ndash uma imensa memoacuteria cosmoloacutegica

Encontrariacuteamos desse modo a forma de solidariedade e o solo mais proacuteprio no qual estaacute

enraizada uma comunidade de eus profundos que encontra no aberto seu limite de direito

Bergson por sua vez apresenta prefiguraccedilotildees de que uma comunicaccedilatildeo incendiaacuteria

instala-se em profundidade e eacute ao mesmo tempo a fonte original de toda transformaccedilatildeo

social e poliacutetica Ela eacute a fonte ontoloacutegica de toda fenomenologia da revoluccedilatildeo espeacutecie de

uacuteltima resposta para aleacutem da qual nada haacute a procurar (JANVIER 2012 p 221) para

justificar uma mudanccedila na reparticcedilatildeo de nossos desejos que por ser um prolongamento da

proacutepria vida eacute indeterminada e imperceptiacutevel A arte e a miacutestica colocam-nos cada uma agrave

sua maneira no interior de uma emoccedilatildeo permitem perceber que a emoccedilatildeo criadora

estabelece-se constitui certa atmosfera instala-se em uma comunidade de eus profundos e

propaga-se de alma em alma como o aberto Assim a criaccedilatildeo artiacutestica que inicialmente

choca pode terminar por alterar o proacuteprio gosto do puacuteblico A obra expressatildeo da criaccedilatildeo ndash

ao mesmo tempo forccedila e mateacuteria ndash pode operar essa transformaccedilatildeo na medida em que ela

imprime um eacutelan que o artista comunicou que se confunde com aquele do artista que

permanece invisiacutevel e presente nele (BERGSON 2001 p 103875) O miacutestico instaura

essa mesma comunicaccedilatildeo em profundidade Ocorre agraves personalidades miacutesticas o mesmo

que sucede aos artistas de gecircnio que produzem obras que nos ultrapassam (Idem ibidem p

1157226)

Nada aleacutem de uma comunidade de eus profundos que se compotildee com a atmosfera

de uma emoccedilatildeo criadora que comunica o aberto de alma em alma como um entusiasmo

incendiaacuterio de uma verdadeira comunidade espiritual amorosa e ilimitada pode explicar

que homens ateacute outro dia humildes e submissos tenham resolvido repentinamente natildeo

mais querer morrer de fome criar direitos que exprimem um amor tatildeo universal aos

homens quanto a emoccedilatildeo criadora que ambienta a comunidade de eus profundos que natildeo

se confunde em nenhum grau com uma famiacutelia um grupo social ou uma paacutetria mas

testemunha um universalismo imanente ao Todo vital O aberto o devir e a ruptura que os

periacuteodos revolucionaacuterios datildeo a ver satildeo apenas o desdobramento no niacutevel poliacutetico de uma

criaccedilatildeo ontologicamente mais profunda que natildeo cessa de se produzir no universo Sua

moral realiza-se no caminho inverso ao da natureza em tudo contraposto ao fechado a

moral aberta eacute incompatiacutevel com a segregaccedilatildeo a hierarquia a disciplina e a guerra Em

240

tudo imanente agrave proacutepria vida a moralidade e as almas abertas compreendem o Todo o

virtual A democracia os direitos humanos o universalismo eacutetico e a paz tornam-se formas

de perseverar no aberto de combater o fechamento em seu proacuteprio terreno ndash embora

incessantemente ameaccediladas por ele Nesse extremo virtual ao qual tendem a intuiccedilatildeo

miacutestica e a comunidade de eus profundos poreacutem jaacute natildeo encontraremos nada semelhante

ao homem A comunidade de eus profundos consiste nos virtuais jamais vividos por nossos

eus superficiais mas coexistentes com eles Profundamente pessoais os virtuais do eacutelan

testemunham a um soacute tempo a presenccedila do impessoal em noacutes do advento de uma

humanidade divina do super-homem que o artista toca pelas bordas e que o miacutestico jaacute

pode ser inteiramente ndash espeacutecie que superou o homem que se compotildee de uma soacute

singularidade centelha obscura do aberto incecircndio no tecido cerrado e gris das formas de

vida

Na medida em que esclarecemos esse novo tipo de sociabilidade a comunidade de

eus profundos como substrato afetivo-espiritual inconsciente ou como fonte transicional

torna-se necessaacuterio compreender os termos praacuteticos e poliacuteticos em que ela se desdobra

Embora permaneccedilamos atentos agrave correlaccedilatildeo entre uma ontologia do virtual e seus

desdobramentos em uma filosofia poliacutetica os temas da transiccedilatildeo e do aberto ndash como os

papeis que a democracia e os direitos humanos assumiratildeo na filosofia poliacutetica bergsoniana

ndash revelaratildeo ao cabo o uacuteltimo niacutevel em que a memoacuteria constitui condiccedilatildeo necessaacuteria agrave

transiccedilatildeo poliacutetica em sentido institucional e social Em profundidade nos niacuteveis mais

puramente ontoloacutegicos vimos a memoacuteria confundir-se ao infinito com um virtual que eacute o

proacuteprio tecido sobre o qual os atuais se bordam isolamos uma memoacuteria elementar e

ontoloacutegica que constituiacutea o fundamento do passar do tempo que registrando os fluxos

duracionais sem cessar rompia o ciacuterculo do presente no qual o atual encontrava-se

enodado e o empurrava no sentido do devir O que temos ateacute aqui eacute uma coleccedilatildeo de

diversos niacuteveis ou de diversos fluxos coexistentes graccedilas ao virtual do qual procedem

desse movimento universal que coincide com o da proacutepria vitalidade inorgacircnica do eacutelan de

seus virtuais da potecircncia diferencial de sua multiplicidade heterogecircnea

Nesse quadro vimos a proacutepria liberdade surgir como o representante psicoloacutegico ou

poliacutetico-social de um operador mais profundo ndash o imprevisto ontoloacutegico que a duraccedilatildeo

implica Toda transformaccedilatildeo social coletiva natildeo deriva como pudemos perceber de outra

fonte A figura impessoal e preacute-individual do miacutestico constitui sua prova implicando uma

moralidade de aspiraccedilatildeo e supraintelectual eacute a proacutepria forma de vida da espeacutecie a natureza

241

naturada que o miacutestico supera isso contudo natildeo eacute possiacutevel senatildeo a partir do contato com

o eacutelan vital com o precursor sombrio do devir que sob a forma do amor universal e de

uma emoccedilatildeo criadora que se transmite de alma em alma que faz seus apelos ao mais

profundo de noacutes mesmos e natildeo cessa de procurar por ressonacircncias eacute uma forma de afeto

do proacuteprio tempo

Eacute pelo proacuteprio tempo que uma forma de vida se deixa afetar em profundidade para

entrar em um devir O mesmo vale para qualquer transformaccedilatildeo social para toda transiccedilatildeo

No entanto resta explicar como a democracia e os direitos humanos podem constituir no

bergsonismo formas de perseverar duravelmente no aberto Seria preciso encontrar o

limite da questatildeo ldquocomo perseverar no abertordquo ldquocomo combater o fechamentordquo

interrogando aquilo que eacute mais proacuteprio da Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo a transcriccedilatildeo dos

problemas do aberto em dispositivos concretos e em estruturas institucionais Eis o que nos

coloca diante de um aparente paradoxo procurar modos duraacuteveis de perseverar no aberto

natildeo implicaria coagulaacute-lo em uma forma fazecirc-lo fechar-se sobre si No limite natildeo

estariacuteamos combatendo o fechamento com mais fechamento Satildeo precisamente essas

questotildees que exigem descer aos desdobramentos praacuteticos e poliacuteticos da metafiacutesica vital e

virtual de Bergson Tais desdobramentos revelaratildeo natildeo apenas a relaccedilatildeo entre uma moral

universal imanente e concreta com a democracia e os direitos humanos mas a centralidade

destes uacuteltimos para a produccedilatildeo de transformaccedilatildeo social Ao mesmo tempo seraacute possiacutevel

compreender de que maneira a memoacuteria das violaccedilotildees de direitos humanos as narraccedilotildees da

violecircncia ndash em niacuteveis social e institucional ndash podem encontrar-se no coraccedilatildeo dos devires

sem os quais nenhuma transiccedilatildeo se produz Eacute no sentido desse desdobramento derradeiro e

limiar que devemos conduzir nossa investigaccedilatildeo

Caso se compreenda a exemplo de Bergson a ldquosociedade que se abrerdquo como a

realidade da maior parte das sociedades compostas de um misto de tendecircncias ao

fechamento e agrave abertura seraacute possiacutevel revelar que uma questatildeo praacutetica e poliacutetica se destaca

na anaacutelise da sociedade fechada e se relaciona com a subsistecircncia de uma tensatildeo natural ao

fechamento ldquo[] puisque les tendences de la socieacuteteacute close nous ont paru subsister

indeacuteracinables dans la socieacuteteacute qui srsquoouvre puisque tous ces instincts de discipline

convergeaient primitivement vers lrsquoinstinct de guerre nous devons nous demander dans

quelle mesure lrsquoinstinct originel pourra ecirctre reacuteprimeacute ou tourneacutee []rdquo (BERGSON 2001 p

1220307) O que estaacute no coraccedilatildeo da filosofia poliacutetica bergsoniana aparece entatildeo muito

claramente trata-se de encontrar na moral de aspiraccedilatildeo que o aberto implica e para a qual

empurra as almas que se abrem uma possibilidade de superar a forma de sociabilidade

242

produzida de acordo com a natureza e com o instinto virtual que vigia as variaccedilotildees da

inteligecircncia De seu ponto de vista mais concreto e praacutetico trata-se de transformar a ordem

social das organizaccedilotildees humanas na medida em que elas satildeo atravessadas por um misto de

tendecircncias ao aberto e ao fechado (KISUKIDI 2012 p 246) A tendecircncia ao fechamento

aprisiona o homem no interior das formas de sociabilidade superficiais em formas de

organizaccedilatildeo e em modos de vida jaacute adquiridos de outro lado a tendecircncia agrave abertura renova

as alianccedilas entre homem e virtual e quebrando o ciacuterculo antropoloacutegico no interior do qual

a natureza o concebeu permite-lhe reencontrar sua destinaccedilatildeo metafiacutesica ao mesmo tempo

em que coloca em jogo suas formas de vida seus modos de existecircncia e relaccedilatildeo social

Na medida em que o aberto impulsiona o homem para aleacutem de si mesmo seraacute na

direccedilatildeo do eacutelan do qual procede ndash contraefetuaccedilatildeo virtual ndash mas tambeacutem na direccedilatildeo do

Todo por meio de processos de atualizaccedilatildeo que criam as linhas nas quais essa nova

tomada de contato com o eacutelan vital iraacute dividir-se e atualizar-se ateacute certo limite A alma que

se abre em direccedilatildeo ao Todo diz Bergson vai mesmo muito longe Natildeo se confunde com

uma alma fechada que ama sua famiacutelia sua paacutetria os grupos sociais aos quais pertence ou

afirma cumprir as foacutermulas vazias superficialmente universais a alma que se abre goza de

um amor que se estende a toda a humanidade a toda a natureza aos virtuais inorgacircnicos da

proacutepria vida (BERGSON 2001 p 1006-100734) Sob o aberto pulsa uma eacutetica

universalista em profundidade capaz de explicar a correlaccedilatildeo entre as transformaccedilotildees

sociais e a consolidaccedilatildeo da democracia e dos direitos humanos

Contudo prestemos atenccedilatildeo a essa alma que se abre por um momento e vejamos

se natildeo encontramos nela a atitude miacutestica que exprime a continuidade do eacutelan vital da qual

ela mas tambeacutem toda a espeacutecie humana procede finalmente Tanto o indiviacuteduo como a

espeacutecie humana representam interrupccedilotildees momentacircneas do eacutelan criador sua parada diante

de um obstaacuteculo A centralidade da figura do miacutestico explica-se em virtude do que sua

experiecircncia demonstra finalmente ndash a possibilidade da abertura da conversatildeo do estaacutetico

em dinacircmico da dissoluccedilatildeo da forma em energia da reabertura do que parecia fechado Se

mais aleacutem Bergson poderaacute convidar agrave accedilatildeo aqueles que experimentam um tempo de

fechamento praticamente absoluto dizendo ldquoRemuons la cendrerdquo exaltando os heroacuteis

obscuros da moral ou as narrativas de vidas de homens memoraacuteveis que jamais

conhecemos eacute porque recuperamos as existecircncias miacutesticas naquilo que elas tem de

poderosamente impessoal no ponto em que uma vida se confunde com um modo de

subjetivaccedilatildeo em ato com a efetuaccedilatildeo de um prolongamento do eacutelan vital com o qual

tomou contato Essa superaccedilatildeo de si ndash de que todo indiviacuteduo eacute capaz no limite ao menos

243

de jure ndash soacute eacute possiacutevel como acesso a uma comunidade de eus profundos capaz de

conceber uma outra forma de relaccedilatildeo social que jaacute natildeo se confunde com nenhum niacutevel

comunitaacuterio superficial (famiacutelia paacutetria foacutermulas universalistas abstratas e descarnadas

tampouco impeacuterio territoacuterio classe social ou gecircnero) Ao lado dos laccedilos profundos que

nos remetem a um eacutelan comum agrave metafiacutesica da criaccedilatildeo da qual todos tomamos parte em

profundidade haacute sempre o modo de subjetivaccedilatildeo que constitui um universal na sua

diferenccedila e uma diferenccedila em seu universal Eacute nesse sentido que Yala Kisukidi (2012 p

247) afirmaraacute que eacute o miacutestico como sujeito sem identidade que permitiraacute natildeo apenas uma

teoria do impessoal mas a refundaccedilatildeo do universalismo moral bergsoniano de acordo com

uma metafiacutesica da criaccedilatildeo O miacutestico eacute portanto a figura paradigmaacutetica do sujeito sem

identidade ndash que natildeo designa nada aleacutem do eu profundo em continuidade com o real

compreendido como criaccedilatildeo de imprevisiacutevel novidade (KIDUSIKI 2012 p 248)219

Com efeito eacute preciso compreender de um lado que o universalismo bergsoniano

natildeo estaacute jamais dado natildeo eacute desde sempre atual Assim como a abertura de uma alma o

universalismo exige o esforccedilo de uma criaccedilatildeo de si por si mesmo de uma abertura de si ao

impessoal que designa jaacute o Todo com seus virtuais O que estaacute dado pela natureza o que

eacute sempre jaacute atual eacute a pulsatildeo de fechamento e o haacutebito de contrair haacutebitos a autoridade a

hierarquia e o fixismo a guerra e as formas cerradas de sociabilidade que natildeo cessam de

vigiar as variaccedilotildees virtuais em que o tecido social se engaja e entreteacutem Seu fundamento

tampouco seraacute racional e esclarecido na medida em que ele pulsa do proacuteprio eacutelan vital a

razatildeo constitui apenas uma faculdade na qual as tendecircncias inteligentes depuseram o eacutelan

assim como natildeo pode explicaacute-lo natildeo pode explicar um universalismo que encontra nele

seu enraizamento imanente e profundamente ontoloacutegico

O universalismo moral bergsoniano dependeraacute desse modo integralmente de uma

metafiacutesica da criaccedilatildeo contudo sabemos que a criaccedilatildeo implica pelo menos duas metades

uma atual e outra virtual A criaccedilatildeo em ato a pura exigecircncia de criaccedilatildeo que se confunde

com o proacuteprio eacutelan vital encontra-se sem duacutevida no registro do virtual aquilo que eacute

criado segundo sua proacutepria linha divergente que parte do virtual e cria a si mesma em

seus proacuteprios termos designa uma expressatildeo dessa energia criadora (KISUKIDI 2012 p

248-249) De modo anaacutelogo Deleuze (1966 p 117-118) teraacute descoberto na emoccedilatildeo

criadora trecircs sentidos da criaccedilatildeo 1) enquanto ela exprime a criaccedilatildeo em sua totalidade 2)

219

ldquoLe mystique appelle au deacutepassament des deacuteterminations de lrsquoespegravece []rdquo (KISUKIDI 2012 p 249) ou

ainda ldquo[] lrsquoespegravece humaine est traverseacutee par lrsquouniteacute drsquoun courant qui lrsquoappelle agrave se deacutepasser en se recreacuteantrdquo

(Idem ibidem p 251)

244

enquanto ela cria a obra na qual se exprime 3) enquanto ela comunica essa variabilidade

inventiva de alma em alma o que implica descobrir sob a criaccedilatildeo uma espeacutecie de

memoacuteria coacutesmica capaz a cada vez de encarnar-se em emoccedilatildeo e de comunicar ndash e de

sempre tornar a comunicar ndash o eacutelan Assim como a memoacuteria pura servia-se do jogo

intervalar entre excitaccedilatildeo e reaccedilatildeo para insinuar-se em lembranccedilas-imagens a memoacuteria

coacutesmica do eacutelan serve-se do jogo intervalar entre pressatildeo e resistecircncia para romper o

ciacuterculo social que prende o indiviacuteduo a determinadas formas de vida220

A memoacuteria eacute pois

em cada um dos niacuteveis em que se atualiza integralmente sempre profundamente vital

Assim se o que Yala Kusikidi chamou de ldquouma refundaccedilatildeo da moral universalrdquo no interior

da filosofia poliacutetica de Bergson soacute pode ocorrer em funccedilatildeo de uma metafiacutesica da criaccedilatildeo ndash

mesmo porque o universalismo jamais eacute um a priori natildeo se encontra jamais natural ou

biologicamente dado ndash seraacute forccediloso reconhecer que o universalismo soacute pode consistir em

um efeito de criaccedilatildeo221

Poreacutem em que sentido deve-se compreender esse universalismo ligado ao

paradigma subjetivo nomaacutedico que eacute o miacutestico Que ele natildeo seja a priori e racional mas o

efeito afetivo de uma criaccedilatildeo jaacute pode fazer-nos entrevecirc-lo como concreto e imanente agrave

vida Assim como a figura nocircmade do miacutestico efetua em sua proacutepria existecircncia um

universalismo que eacute o efeito de uma criaccedilatildeo ndash que dissolvendo sua identidade individual e

de grupo descortina a comunidade de eus profundos que ele jaacute integra e que natildeo se

ressente de nenhum dos limites impostos pelo fechamento (impeacuterio paacutetria classe famiacutelia

ou gecircnero) ndash poderia haver em um niacutevel coletivo um universalismo concreto e imanente

agrave proacutepria vida como efeito de uma criaccedilatildeo e de uma emoccedilatildeo coletivas que encontram na

comunidade de eus profundos o solo comum impessoal no qual um novo tipo de

sociabilidade e de equiliacutebrio superiores poderiam ser encontrados Nesse ponto a

dissoluccedilatildeo das identidades individual e de grupo assinala a coincidecircncia entre o impessoal

e o universal

No entanto seria ainda o caso de perguntar se essa moral universal concreta e

imanente que encontra no impessoal o traccedilado dos destinos metafiacutesicos da proacutepria

humanidade consegue verdadeiramente desprender-se das contingecircncias em que parece

originar-se Em outras palavras como o misticismo cristatildeo ndash que Bergson como vimos

220

ldquoEt qursquoest-ce que crsquoest que cette eacutemotion creacuteatrice sinon preacuteciseacutement une Meacutemoire cosmique qui

actualise agrave la fois tous les niveaux qui libegravere lrsquohomme du plan qui lui est propre pour en faire un creacuteateur

adeacutequat agrave toute le mouvement de la creacuteationrdquo (DELEUZE 1966 p 117) 221

ldquoLrsquouniversel nrsquoest jamais donneacute mais est toujours le produit drsquoun effet de creacuteationrdquo (KISUKIDI 2012 p

250)

245

reputa ser o misticismo completo ndash eacute mais miacutestico que cristatildeo mais impessoal e universal

que contingencial Metodologicamente Bergson soacute se aproxima do misticismo cristatildeo

para reputaacute-lo a experiecircncia miacutestica completa por excelecircncia na medida em que ele possa

dissociar-se dos conteuacutedos de crenccedila proacuteprios ao catolicismo A miacutestica eacute uma experiecircncia

de retomada de contato com o eacutelan vital e natildeo haacute nenhum conteuacutedo de crenccedila a procurar

para aleacutem disso pois eacute a experiecircncia suprema universal (ao alcance de todos de jure) que

promove a coincidecircncia parcial de nossa vida com algo que nos excede em potecircncia ndash

chamemo-lo Deus ou eacutelan vital Nesse aspecto haacute uma distinccedilatildeo bastante precisa que

permite ao bergsonismo utilizar-se das experiecircncias miacutesticas cristatildes independentemente da

mateacuteria religiosa contingente e particular sobre a qual ela parece aplicar-se (KISUKIDI

2012 p 253) Que certa experiecircncia miacutestica seja aparentemente cristatilde estabeleccedila-se no

sentido do cristianismo de seus textos e conteuacutedos de crenccedila a impessoalidade e o

nomadismo miacutesticos provariam sem cessar o seu poder de passar-se do particular do

contingente e dos seus siacutembolos atingindo no contato com o eacutelan uma universalidade

puramente concreta e imanente agrave proacutepria vida Para Bergson evangeacutelico quer dizer em

profundidade universal assim como divino quer dizer virtual e vital Outra interpretaccedilatildeo

tornar-se-ia aporeacutetica na medida em que o misticismo soacute toca o eacutelan porque contraefetua

sua proacutepria forma contingencial o dado atualmente como efeito de um esforccedilo e de uma

criaccedilatildeo em profundidade Atingimos portanto no misticismo a diferenccedila profunda

inteiramente indiferente agraves diferenccedilas superficiais Nesse contexto de nenhum outro modo

impessoal e universal poderiam confundir-se ao infinito de nenhuma outra maneira o

particular superficial (identidades grupos) poderia ser absorvido no Todo universal que o

virtual designa

Disso decorre como Yala Kisukidi (2012 p 254) bem percebe que natildeo haja um

modelo abstrato nem mesmo o derivado de uma faculdade reacutegia de humanidade no

universalismo bergsoniano Uma vez que o destino metafiacutesico imanente do homem seja

precisamente o super-homem natildeo haveraacute nenhum humanismo intraespeciacutefico definidor do

amor ao Todo Definir uma humanidade por outro termo senatildeo o indefinido e talvez vago

aberto seria recair em construccedilotildees antropoloacutegicas artificiais tendentes precisamente agravequilo

que o aberto desejava conjurar na natureza (a exclusatildeo a dominaccedilatildeo a guerra)

Se pudemos revelar um quadro eacutetico do qual o aberto participa no sentido de um

universalismo concreto e imanente agrave proacutepria criaccedilatildeo trata-se de diagnosticar de que

maneira o aberto pode ser transcrito em termos praacuteticos e poliacuteticos investigando de que

forma a democracia e os direitos humanos encontram aiacute sua inserccedilatildeo O espaccedilo poliacutetico das

246

sociedades concretas natildeo eacute integralmente fechado ou aberto estes satildeo limites puros ideais

ou metafiacutesicos designam antes tendecircncias que efetuaccedilotildees nuas de tal modo que o espaccedilo

poliacutetico seraacute definido mais em funccedilatildeo do misto das duas tendecircncias que de apenas uma

delas Se sociedades concretas estatildeo mais proacuteximas portanto de sociedades que se abrem

do que de sociedades pura e simplesmente fechadas ou abertas ndash limites ideais aos quais as

formas de relaccedilotildees coletivas satildeo incessantemente puxadas

Todo devir democraacutetico seraacute explicado nesses termos a partir de um duplo

registro a comunidade de eus profundos por um lado e por outro uma emancipaccedilatildeo da

natureza O que constitui a condiccedilatildeo de possibilidade de uma accedilatildeo poliacutetica que visa agrave

transformaccedilatildeo social em geral agravequilo que chamamos de transiccedilatildeo ndash a emoccedilatildeo criadora que

ecoa na comunidade de eus profundos e reabre o que permanecera ateacute entatildeo fechado ndash

vem unir-se a uma tendecircncia de emancipaccedilatildeo da natureza que soacute pode efetuar-se na medida

em que o homem resiste a ela em que o profundo resiste a perseverar no social e no

superficial que o define222

Bergson natildeo deixou de entrever desde o iniacutecio de Les Deux

Sources que a emancipaccedilatildeo humana em relaccedilatildeo agrave natureza naturada e agraves formas de

existecircncia e de sociabilidade que ela implica Se Bergson (2001 p 98607) pudera dizer

que o indiviacuteduo pertence tanto agrave sociedade como a si mesmo fora para mostrar a

coexistecircncia diferencial entre dois ritmos um que define as ilusotildees de um sujeito fixo que

se resolve na camada mais superficial de uma identidade forjada em funccedilatildeo e por forccedila das

convenccedilotildees sociais outro que define a verdade sombria de um sujeito integralmente

constituiacutedo pelos tempos da memoacuteria e do devir e que como tal toma parte na

comunidade universal de eus profundos como uma comunidade que vem Pertencendo a si

mesmo em profundidade o indiviacuteduo torna-se o portador do novo anunciador da ruptura e

precursor das emergecircncias do profundo que contraefetua e dissolve o superficial

ldquoLrsquoindividu qui fait partie de la socieacuteteacute peut infleacutechir et mecircme briser une neacutecessiteacute qui

imite celle-lagrave [de lrsquoorganisme]rdquo (BERGSON 2001 p 98507) Que o eu bergsoniano

esteja sujeito a um duplo regime o do si e o do social pontos em que ele eacute ora vitalidade

inorgacircnica selvagem ora organizaccedilatildeo sob uma forma cortecircs e sociaacutevel eacute apenas a tensatildeo e

a resistecircncia do profundo em relaccedilatildeo ao superficial que explicaraacute a passagem do superficial

222

A comunidade de eus profundos que emerge de uma divisatildeo do sujeito jaacute presente no Essai eacute pressentida

por Yala Kisukidi (2012 p 258) como o que integra a proacutepria condiccedilatildeo de possibilidade de uma accedilatildeo poliacutetica

visando agrave transiccedilatildeo ldquoEn effet la condition de possibiliteacute drsquoune action politique visant la transformation de

lrsquoorganisation sociale et une certaine forme drsquoeacutemacipation de la nature srsquoarticule autour drsquoune theacuteorie de la

division du sujet reprenant la division entre le moi social et le moi profond deacutevelopeacutee dans lrsquoEssai sur les

donneacutees immeacutediates de la consciencerdquo

247

ao profundo ldquoCrsquoest cette reacutesistance qui se meut en action et rend possible lrsquoouverture des

socieacuteteacutesrdquo (KISUKIDI 2012 p 259)

Por essa razatildeo insistimos tatildeo longamente nos conceitos de emoccedilatildeo imitaccedilatildeo e

criaccedilatildeo como essencialmente ligados agrave possibilidade de um trabalho coletivo de resistecircncia

agrave natureza naturada Sua dimensatildeo coletiva explica-se ontologicamente A comunidade de

eus profundos natildeo eacute apenas o ponto em que o impessoal se confunde com o universal mas

aquele em que esses dois termos coincidem em profundidade ndash ontologicamente ndash com o

comum que jaacute estaacute para aleacutem de todo grupo coletivo concreto Se a miacutestica eacute uma

experiecircncia que estaacute virtualmente ao alcance de todos ndash o que implica que ela natildeo esteja

dada nem seja atual ndash eacute porque ela desenha um territoacuterio ilimitado transfronteiriccedilo e

cosmopolita em que o impessoal o universal e o comum se confundem ao infinito

Procuremos no entanto compreender a correlaccedilatildeo entre democracia e resistecircncia

que recebe em Bergson uma importacircncia vital A democracia seria sob todos os aspectos

vista como um efeito de criaccedilatildeo originado da resistecircncia coletiva em ceder agraves normas

sociais que a natureza envolve baseadas na exclusatildeo na propriedade individual e coletiva

na guerra no dimorfismo do homem social nas fabulaccedilotildees que legitimam a dominaccedilatildeo de

grupos sociais ou chefes baseadas em raccedila estirpe etc (BERGSON 2001 p 1213-

1214298-299 e p 1036-103773-74 e AMALRIC 2012 p 290) Bergson caracterizou

ademais o todo da obrigaccedilatildeo como ldquoresistecircncia agraves resistecircnciasrdquo precisamente em virtude

da tensatildeo que o jogo entre a liberdade dos eus profundos e as exigecircncias de uma

sociabilidade superficial parecem gerar a todo momento O que define o espaccedilo

democraacutetico eacute portanto a tensatildeo entre as tendecircncias agrave abertura e ao fechamento que criam

certa resistecircncia agrave natureza e agrave fixidez da forma de vida que ela engendrou como parada do

eacutelan criador Tudo se passa como se houvesse uma atitude correspondente a essa

resistecircncia mais original e mais profunda voltada contra o instinto virtual que organiza o

haacutebito contra o haacutebito de contrair haacutebitos e que combate a feiccedilatildeo conservadora do rapport

intersubjetivo nas sociedades humanas saiacutedas das matildeos da natureza haveria um estado de

alma democraacutetico capaz de resistir a essas tendecircncias de fechamento (KISUKIDI 2012 p

260)

Sabemos que o aberto como o universalismo concreto e imanente ao Todo vital ou

mesmo a democracia natildeo satildeo jamais dados atuais mas efeitos de uma criaccedilatildeo isso

permitiraacute caracterizar a poliacutetica precisamente como uma accedilatildeo coletiva de abertura do

fechado que corresponde em todos os seus pontos agrave liberaccedilatildeo das determinaccedilotildees naturais

das fabulaccedilotildees que naturalizam as articulaccedilotildees de dominaccedilatildeo social e poliacutetica mas tambeacutem

248

alteram profundamente as instituiccedilotildees de maneira a efetuar o aberto em algum niacutevel e

encontrar nessas proacuteprias instituiccedilotildees sua realizaccedilatildeo (AMALRIC 2012 p 279) Que toda

abertura natildeo cesse de estar ameaccedilada por um refechamento que as tendecircncias mais

elementares agraves sociedades naturais permaneccedilam indefinidamente ligadas aos corpos sociais

que se abrem na direccedilatildeo do universal imanente a democracia e os direitos humanos

apareceratildeo como possibilidades de concretizar o aberto e passar de uma justiccedila estaacutetica a

uma justiccedila dinacircmica instalada na duraccedilatildeo As instituiccedilotildees passam a ter um papel de

resistecircncia de terceiro niacutevel na medida em que asseguram que sociedades inteiras

perseverem no aberto de maneira duraacutevel Na medida em que o aberto seja

institucionalizado ele passa a ser efetuado sob a forma de uma estrutura juriacutedico-poliacutetica

que a um soacute tempo assegura a durabilidade do aberto e recusa seu fechamento

(AMALRIC 2012 p 288)

Poreacutem como democracia e direitos humanos podem relacionar-se com o aberto

Na medida em que constituem suas efetuaccedilotildees ou atualizaccedilotildees no campo poliacutetico Natildeo haacute

democracia tampouco atenuaccedilatildeo do dimorfismo social caracteriacutestico das sociedades saiacutedas

das matildeos da natureza sem que o proacuteprio regime poliacutetico democraacutetico garanta a todos os

indiviacuteduos direitos iguais Eacute precisamente esta relaccedilatildeo em sentido forte que Bergson (2001

p 1214299) enuncia em um contiacutenuo ldquoDe toutes le conceptions politiques [la

deacutemocratie] crsquoest en effet la plus eacuteloigneacutee de la nature la seule qui transcende en intention

au moins les conditions de la lsquosocieacuteteacute closersquo Elle attribue agrave lrsquohomme des droits

inviolablesrdquo A continuidade fundamental entre democracia e direitos humanos atesta que

sua gecircnese reciacuteproca natildeo apenas eacute capaz de reconciliar liberdade e igualdade declarar o

povo como soberano engendrar o corpo de cidadatildeos ao mesmo tempo como legislador e

suacutedito atenuar o dimorfismo social que a natureza impocircs mas tambeacutem realiza atraveacutes dos

direitos humanos concebidos na estrutura poliacutetica democraacutetica a fraternidade como valor

essencial produzindo-se tambeacutem ela no interior de uma atmosfera afetiva e criadora que

Bergson afirma ser de essecircncia ldquoevangeacutelicardquo ldquola fraterniteacute est lrsquoessentiel ce qui

permettrait de dire que la deacutemocratie est drsquoessence eacutevangeacutelique et qursquoelle a pour moteur

lrsquoamourrdquo (BERGSON 2001 p 1215300)

Com isso Bergson insiste sobre o caraacuteter eminentemente religioso da democracia ndash

o que se provaria tambeacutem pela influecircncia do puritanismo nas grandes declaraccedilotildees de

direitos do final do seacuteculo XVIII (BERGSON 2001 p 1215300) No entanto eacute preciso

compreender o que Bergson estaacute a dizer quando se refere ao caraacuteter religioso das foacutermulas

democraacuteticas ou quando afirma a essecircncia evangeacutelica da democracia Por um lado

249

acabamos de notar que o que forja todo devir democraacutetico mas tambeacutem os direitos

humanos nascidos ndash como diz o proacuteprio Bergson ndash do protesto como desafio lanccedilado no

mundo supotildee um ensejo depende de um trabalho poliacutetico coletivo em profundidade e

contra as tendecircncias naturais de fechamento Se a democracia compreendida como regime

poliacutetico que possui a intenccedilatildeo de superar as determinaccedilotildees da sociedade fechada tem um

caraacuteter religioso este natildeo poderia ser equivalente ao das religiotildees estaacuteticas de seus ritos e

tradiccedilotildees canocircnicos mas unicamente o das religiotildees dinacircmicas que encontram no

misticismo completo ndash do ponto de vista histoacuterico acidentalmente cristatildeo ndash a condiccedilatildeo

profundamente metafiacutesica de seu vir a ser Se a essecircncia da democracia pode afirmar-se

evangeacutelica eacute como vimos em virtude do universalismo concreto que ela cria e implica

dos direitos devidos agrave humanidade em geral como expressatildeo da fraternidade que dissolve

os limites territoriais entre as naccedilotildees e conciliando igualdade e liberdade avanccedila um passo

em direccedilatildeo a um amor que se confunde com o da alma aberta que se dirige ao Todo Por

isso a foacutermula democraacutetica eacute Ama et fac quod vis Por essa razatildeo liberdade igualdade e

fraternidade encontram nas sociedades natildeo democraacuteticas fechadas suas caracteriacutesticas

contraditoacuterias autoridade hierarquia fixidez ndash natildeo casualmente caracteriacutesticas presentes

nas descriccedilotildees comuns a todas as sociedades que se encontram ainda hoje sob regimes

autoritaacuterios ou ditatoriais ou que teriam saiacutedo dele em um passado histoacuterico relativamente

recente

Haacute poreacutem nas sociedades fechadas que assim se abrem que satildeo tambeacutem as

sociedades que combatem o fechamento a fim de conquistar o direito a ter direitos em uma

dimensatildeo universal uma espeacutecie de pulsatildeo transicional ndash profundamente dinacircmica

inteiramente miacutestica ndash que coincide com a resistecircncia mais profunda e original que

descobriacuteamos como impulso poliacutetico que faz reemergir uma comunidade de eus profundos

capaz de por meio das instituiccedilotildees engendrar estruturas democraacuteticas duraacuteveis no interior

de cuja abertura perseveram Eacute nesse sentido o de uma religiatildeo dinacircmica ou o de um

misticismo profundo que natildeo dependem de nenhum conteuacutedo acidental de crenccedilas que a

democracia e os direitos humanos poderiam possuir uma essecircncia evangeacutelica Eacute na medida

em que se combate o fechamento se resiste agrave persistecircncia do natural e das tendecircncias ao

fechamento que se podem instituir estruturas poliacutetico-juriacutedicas capazes de tornar duraacutevel o

aberto e o universal concreto e imanente ndash ao qual corresponde uma eacutetica da abertura que

jamais deixou de ser atual (WORMS 2011 p 368-369 AMALRIC 2012 p 295) ndash como

efeito de criaccedilotildees A essecircncia da democracia eacute evangeacutelica finalmente em um uacuteltimo

sentido que o amor e a fraternidade universais provariam sem dificuldades Na medida em

250

que a democracia eacute realizaccedilatildeo de uma resistecircncia em profundidade agrave persistecircncia dos

traccedilos das sociedades naturais suas instituiccedilotildees juriacutedico-poliacuteticas e suas estruturas efetuam

o aberto e permitem perseverar nele constituem os signos histoacutericos indiciaacuterios de um

ldquoavenir [qui] doit rester ouvert agrave tous les progregraves notamment agrave la creacuteation de conditions

nouvelles ougrave deviendront possibles des formes de liberteacute et drsquoeacutegaliteacute aujourdrsquohui

irreacutealisables peut-ecirctre inconcevablesrdquo (BERGSON 2001 p 1215300-301) A estrutura e

a instituiccedilatildeo democraacuteticas jaacute natildeo representam um refechamento do aberto mas sua

consolidaccedilatildeo e ateacute mesmo certa ruptura momentacircnea com a atmosfera incendiaacuteria e com

o estado de alma iacutegneo que as criou (AMALRIC 2012 p 289) estas cessam de transmitir-

se maciccedilamente por propagaccedilatildeo em profundidade e passam a prolongar o aberto na

construccedilatildeo de formas poliacuteticas e juriacutedicas aberturas institucionais para novos modos de

existecircncia individuais e em comum novas formas de vida poliacutetica e social Com efeito

toda alteraccedilatildeo que a retomada de contato com o eacutelan vital com a comunidade de eus

profundos efetua eacute parcial pois o aberto constitui um limite ideal o destino metafiacutesico da

humanidade em sua luta infinita contra o fechamento Poreacutem se as novas instituiccedilotildees que

consolidam o aberto na universalidade concreta criada pela profunda resistecircncia que

originou a democracia e os direitos humanos ndash e mais aleacutem persiste em perseverar no

coraccedilatildeo do aberto ndash eacute porque ldquolrsquointention avec laquelle une ideacutee a eacuteteacute lanceacutee y reste

invisiblement adheacuterente comme agrave la flegraveche sa direction Les formules deacutemocratiques

ennonceacutees drsquoabord dans une penseacutee de protestation se sont ressenties de leur originerdquo

(BERGSON 2001 p 1216301) Assim a democracia e os direitos humanos definem-se

como o que manteacutem aberto de tal forma que as condiccedilotildees estruturais sociopoliacuteticas

duraacuteveis da invenccedilatildeo de formas de vida e modos de existecircncia em comum se confundam

no limite com o combate que o proacuteprio homem trava contra o fechamento A democracia

eacute pois mais do que um evento na histoacuteria da abertura (AMALRIC 2012 p 293) ou uma

estrutural formal de manutenccedilatildeo do aberto ela constitui um apelo praacutetico a que resistamos

ao fechamento e o combatamos desde o seu interior levando a tendecircncia que o aberto

constitui ao seu proacuteprio limite

251

sect 4 RETORNAR AO CONCRETO

MEMOacuteRIA E JUSTICcedilA DE TRANSICcedilAtildeO

ldquo[] ne perdez pas le concret revenez-y constamentrdquo

(DELEUZE In MARTIN 1993 p 09)

Ateacute aqui apanhamos e transcrevemos a questatildeo que a memoacuteria e a efetuaccedilatildeo da

transiccedilatildeo envolvem nos planos pragmaacutetico e empiacuterico em uma densa malha de conceitos e

demonstraccedilotildees retomadas fio por fio no corpo da ontologia da memoacuteria de Henri Bergson

Nesse sentido a passagem da sociedade fechada agrave sociedade aberta torna-se a forma

expressiva por intermeacutedio da qual o bergsonismo propotildee agrave sua maneira e em seu proacuteprio

campo o problema por excelecircncia da Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo O fato de esta poder

fundar-se em uma memoacuteria para o porvir constituiu o leitmotiv de toda enquete que

conduzimos ateacute este ponto mobilizados pelo impulso de elucidar as relaccedilotildees entre

memoacuteria e transiccedilatildeo

Essa procura exige poreacutem um uacuteltimo e decisivo passo que em tudo busca

reencontrar radicalmente o espiacuterito especulativo que se confunde com o empirismo

superior de Bergson Se retomarmos as linhas de argumentaccedilatildeo de Bergson em todas as

suas obras do Essai a Deux Sources encontraremos sempre a efetuaccedilatildeo de passagens de

um concreto a outro mediada por uma potente invenccedilatildeo conceitual o fato da liberdade a

gecircnese do espaccedilo e do sensiacutevel a partir do virtual a gecircnese da vida em suas muacuteltiplas

formas as transiccedilotildees sociais e morais etc223

Desse modo natildeo apenas o presente estudo

demanda que interroguemos as distensotildees radicalmente praacuteticas e poliacuteticas da passagem do

fechado ao aberto como o proacuteprio meacutetodo filosoacutefico bergsoniano ndash que natildeo cessa de

mediar conceitualmente a passagem entre dois concretos ndash o exigiria224

A passagem de uma sociedade fechada a uma sociedade aberta ndash que aqui se

confunde com a transiccedilatildeo efetiva que pode ser mediada pelos instrumentos praacuteticos

poliacuteticos e juriacutedico-institucionais da Justiccedila de Transiccedilatildeo ndash implica uma transiccedilatildeo de um

concreto a outro Com efeito abertura e fechamento descrevem apenas tendecircncias forccedilas e

223

ldquoTudo se passa como se a intuiccedilatildeo inicial pelo problema que levanta abrisse e delimitasse um horizonte

para uma investigaccedilatildeo empiacuterica a uacutenica capaz de lhe responder assim como ela eacute a uacutenica capaz de esclarececirc-

lo [] [] como se a lsquocomposiccedilatildeo de um livrorsquo fosse em Bergson o esforccedilo mediador entre a intuiccedilatildeo

imediata e seu desdobramento efetivo portanto o verdadeiro ato esteacutetico ou criativo proacuteprio de sua filosofia

[]rdquo afirma Freacutedeacuteric Worms (2010 p 24-25) sobre o meacutetodo que atravessa os livros de Bergson 224

Mesmo porque segundo Worms (2010 p 25-26) cada livro de Bergson pode ser lido ldquono cruzamento de

dois problemas o problema intuitivo que o inscreve no movimento da obra mas tambeacutem o problema

empiacuterico pelo qual ele reuacutene os saberes de seu tempordquo

252

virtualidades que espreitam o atual pensados como tais natildeo configuram mais que um

limite ideal de direito o que tambeacutem significa virtual225

Todavia quando se trata de

sociedades e formas de vida em comum que efetuam a transiccedilatildeo do fechado para o aberto

encontramos a encarnaccedilatildeo das tendecircncias da aspiraccedilatildeo arrastando atraacutes de si resfriadas e

decantadas formas de vida e de sensibilidade Eis o que natildeo cessa de apelar a um

complemento de concretude capaz de restabelecer com ainda mais clareza o nexo entre

uma ontologia da memoacuteria e sua poliacutetica

Nesses termos faccedilamos com que a contribuiccedilatildeo bergsoniana que propomos agrave

Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo possa retornar ao campo empiacuterico e real do qual esta

procede Se Paul Gready (2011 p 02) pocircde afirmar a natureza subteorizada da teoria da

Justiccedila de Transiccedilatildeo talvez fosse o caso de questionar se tal caracteriacutestica natildeo decorre

com mais razatildeo do esteio praacutetico e empiacuterico do qual ela decalca seus conceitos do que de

uma insuficiecircncia teoacuterica deliberada de seus responsaacuteveis Em outras palavras eacute porque

todo problema relativo agrave Justiccedila de Transiccedilatildeo define-se pela mesma questatildeo metodoloacutegica

bergsoniana ndash ldquocomo passar de um concreto a outro atraveacutes de mediaccedilotildees conceituais e

imageacuteticasrdquo ndash que esta teoria em constituiccedilatildeo mereceria encontrar em uma filosofia como

a de Bergson uma iluminaccedilatildeo metodicamente estruturada para suas principais questotildees ndash

ainda que elas se deem privilegiadamente em alguns niacuteveis como o poliacutetico social e

institucional e menos claramente em outros Dentre as principais questotildees que podem ser

formuladas a partir da Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo compreende-se naturalmente o

problema dos arcanos dos potenciais transformativos atribuiacutedos agrave memoacuteria objeto da

presente investigaccedilatildeo Propusemos elucidaacute-lo a partir de uma compreensatildeo ontoloacutegica da

memoacuteria segundo a qual esta jamais poderia reduzir-se a uma lembranccedila-imagem

individual ou a uma representaccedilatildeo social descarnada ndash memoacuteria como representaccedilatildeo de um

objeto ausente acepccedilatildeo negativa que subtrai a memoacuteria ao seu solo de realidade e agrave qual

parecem render-se diversos teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo (Capiacutetulos 2 e 3) Nesse

sentido natildeo cessamos de afirmar seja pelas insinuaccedilotildees teoacutericas inconclusas dos teoacutericos

da Justiccedila de Transiccedilatildeo seja pela mediaccedilatildeo da ontologia da duraccedilatildeo de Bergson a

memoacuteria como ldquouma regiatildeo do existenterdquo

225

ldquo[] une socieacuteteacute mystique qui engloberait lrsquohumaniteacute entiegravere et qui marcherait animeacute drsquoune volonteacute

commune agrave la creacuteation sans cesse renouveleacutee drsquoune humaniteacute plus complegravete ne se reacutealisera evidemment pas

plus dans lrsquoavenir que nrsquoont existeacute dans le passeacute des socieacuteteacutes humaines agrave fonctionnement organique

comparables agrave des socieacuteteacutes animales Lrsquoaspiration pure est une limite ideacuteale comme lrsquoobligation nuerdquo

(BERGSON 2001 p 104685)

253

A fim de mediar conceitualmente a passagem entre esses dois concretos ndash entre um

regime poliacutetico nacionalista hierarquizado fixo autoritaacuterio ditatorial e violador de

direitos humanos (fechado) e um regime poliacutetico plural e democraacutetico mais livre e igual na

medida em que se incumbe da proteccedilatildeo e da tutela concreta e universal dos direitos

humanos (aberto) ndash perguntemos qual o lugar que a memoacuteria ocupa no acircmbito de uma

transiccedilatildeo concreta

Trata-se sem duacutevida de um lugar de centralidade tal como regularmente

outorgado pelos teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo mas a ele vem agregar-se uma nova e

insuspeitada dimensatildeo Se a memoacuteria deve assumir na dinacircmica das pulsotildees transicionais

coletivas um lugar de centralidade seraacute de um ponto de vista bergsoniano que em

profundidade atesta a correlaccedilatildeo entre o ontoloacutegico e todos os demais niacuteveis que natildeo

passam de atualizaccedilotildees ou encarnaccedilotildees suas em estados de coisas ndash entre eles o registro do

poliacutetico-social que interessa sobretudo agrave Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo e a seu conceito

canocircnico de memoacuteria Por um lado natildeo cessamos de insistir nessa correlaccedilatildeo por outro a

centralidade da memoacuteria como uma condiccedilatildeo da transiccedilatildeo pode ser justificada em cada um

dos niacuteveis em que sua ontologia eacute atualizada

O contato com o princiacutepio mais original que o miacutestico produz natildeo deixa de ser o

contato com uma memoacuteria cosmoloacutegica o novo imponderaacutevel que um ato de liberdade

exprime junto com a integral de uma personalidade que se subjetiva por meio dele natildeo

deixa tampouco de ser uma atualizaccedilatildeo do imprevisto ontoloacutegico do Todo virtual que

assegura seu devir em um niacutevel psicoloacutegico (WORMS 2010 p 83-97)226

Caberia poreacutem retornar agraves perguntas simples e pragmaacuteticas e interrogar que

resposta o bergsonismo oferece agrave pergunta ldquopor que narrar o passadordquo Como a memoacuteria

envolvida por uma fabulaccedilatildeo pode constituir de uma vez por todas uma condiccedilatildeo para

efetuar a transiccedilatildeo para reabrir o que encontramos fechado para atualizar o aberto em uma

forma de organizaccedilatildeo poliacutetico-social duraacutevel e democraacutetica baseada na inviolabilidade dos

226

Em breves poreacutem consistentes traccedilos Henri Gouhier (1999 p 82) define o homem do ponto de vista da

Eacutevolution Creacuteatrice a partir de uma tripla determinaccedilatildeo 1) Retomando o tema aristoteacutelico Bergson descreve

o homem como um animal inteligente 2) A inteligecircncia por sua vez ao mesmo tempo em que define o

ciacuterculo bioloacutegico da espeacutecie humana conteacutem os potenciais ou os virtuais por meio dos quais o homem poderaacute

ir aleacutem de si mesmo 3) Eacute na linha de desenvolvimento do homem no ponto em que a inteligecircncia torna suas

accedilotildees cada vez mais explosivas indeterminadas e livres ndash pois marcadas pela criaccedilatildeo imprevisiacutevel de formas

que redundam no homo faber ndash que o homem eacute o esteio de uma antropologia criadora Forma fraturada em

direccedilatildeo ao aberto ateacute mesmo a personalidade seraacute definida em funccedilatildeo da totalidade do passado e de um

efeito de criaccedilatildeo Por isso Bergson (1972 p 1064-1065) define a pessoa como ldquoUn mouvement en avant

continuel qui ramasse la totaliteacute du passeacute et creacutee le futur telle est la nature de la personnerdquo Cf ainda nesse

uacuteltimo sentido os comentaacuterio de Henri Gouhier (1989 p 98-99) acerca do conceito movente e dinacircmico de

pessoa e personalidade em Bergson

254

direitos humanos assim como em um universalismo concreto e em uacuteltima anaacutelise

imanente agrave proacutepria vida ao Todo Essas questotildees permitem-nos descrever agrave luz de todo o

desenvolvimento conceitual que as precedeu o lugar da memoacuteria e das narrativas da

violecircncia como condiccedilatildeo das transiccedilotildees

Assumamos o ponto de vista da memoacuteria e da transiccedilatildeo tal como geralmente

recebem suas transcriccedilotildees sociais coletivas ou superficiais na Teoria da Justiccedila de

Transiccedilatildeo encontraremos memoacuterias-lembranccedila testemunhos memoacuterias coletivas

exerciacutecios puacuteblicos institucionais poliacuteticos e sociais de rememoraccedilatildeo do passado

construccedilatildeo de memoriais e narrativas sobre a violecircncia e a violaccedilatildeo de direitos humanos

Conviria perguntar como justificar uma ontologia da memoacuteria nesse plano a um soacute tempo

simboacutelico e pragmaacutetico

Agrave luz de tudo o que vimos o esforccedilo227

de narrar a violecircncia consiste em uma

alternativa para retomar o contato com memoacuterias mais profundas inconscientes e

metaindividuais trata-se de apropriar-se da fabulaccedilatildeo em sentido poliacutetico a fim de

compreender o fechamento como resultado das investidas sociais no sentido da aniquilaccedilatildeo

do proacuteprio homem Da fabulaccedilatildeo nasce um sem-nuacutemero de funccedilotildees da memoacuteria nas

transiccedilotildees Todas essas funccedilotildees poderiam ser resumidas em uma expressatildeo largamente

aceita segundo a qual ldquolembramos para natildeo repetirrdquo ldquonarramos para que jamais aconteccedilardquo

Sua aparente fragilidade e vagueza natildeo devem enganar-nos ndash natildeo se trata de uma imagem

se pudermos ligaacute-la ao sentido poliacutetico e transicional das fabulaccedilotildees e enunciaccedilotildees

coletivas da memoacuteria Desde Auschwitz e natildeo sem razatildeo natildeo cessamos de ligar as

narrativas de destruiccedilatildeo do homem e da violaccedilatildeo dos seus direitos ao plus jamais ccedila

adorniano Eacute possiacutevel recordar e narrar da mesma forma como fabulamos naturalmente o

fazemos a fim de manter a feacute em um futuro social desejado evitar a depressatildeo e o

desencorajamento Assim como no seio da religiatildeo estaacutetica a fabulaccedilatildeo cumpria as funccedilotildees

de manter o indiviacuteduo apegado agrave vida narrar a violecircncia que o passado conheceu e que

pode perpetuar-se ainda hoje eacute um modo simboacutelico semi-intelectual e linguageiro de

remuer la cendre Simetricamente como a fabulaccedilatildeo em sentido religioso coincidia com

uma intromissatildeo do instinto virtual no acircmbito da inteligecircncia a fabulaccedilatildeo em sentido

poliacutetico pode consistir em uma intromissatildeo da intuiccedilatildeo miacutestica ndash que natildeo deixa de ser um

sentido virtual da vida ndash no plano intelectual As narrativas da violecircncia constituem desse

227

Talvez conviesse recordar que para Bergson o esforccedilo voluntaacuterio eacute aquele que coincide com a totalidade

indivisiacutevel de uma personalidade que Bergson (1972 p 845) definia em termos tatildeo ontoloacutegicos como

psicoloacutegicos como ldquoune certaine continuiteacute drsquoeacutecoulementrdquo Cf ainda (GOUHIER 1989 p 87-90)

255

modo o representante simboacutelico de uma efervescecircncia mais profunda As lutas natildeo satildeo

senatildeo o signo indiciaacuterio e sobretudo acidental de uma pulsatildeo transformadora mais

profunda Por isso aquilo em que as narrativas e a produccedilatildeo de simboacutelico consistem eacute no

iacutendice do incendiaacuterio que se revivifica sob as cinzas com que o fechado descoloriu o real

Ela implica jaacute uma accedilatildeo que pode consistir em um chamado Nada disso poreacutem

estabelece-se por causalidade mas por invenccedilatildeo uma memoacuteria poliacutetica nunca eacute apenas a

recuperaccedilatildeo de uma verdade ideada do passado mas compreende ndash pelo menos

virtualmente ndash uma evocaccedilatildeo miacutestica das personalidades excepcionais e um chamado agrave

accedilatildeo Eacute tambeacutem nesse sentido que o misticismo bergsoniano jaacute natildeo se reduz agrave

contemplaccedilatildeo dos antigos ndash os miacutesticos satildeo antes de mais nada homens de accedilatildeo Nessa

medida todo simboacutelico e toda narraccedilatildeo da violecircncia dissimula sob seus signos uma

verdade ontoloacutegica mais profunda eacute uma memoacuteria ontoloacutegica virtual e potente ndash como

uma memoacuteria que jamais foi presente uma memoacuteria para o devir cujo correlato subjetivo eacute

plural e nomaacutedico (comunidade de eus profundos) ndash que se dissimula sob a superfiacutecie atual

e luminosa dos signos do passado recuperado

Se pudemos apreender algo de decisivamente positivo no vitalismo bergsoniano eacute

que o que morre satildeo os indiviacuteduos natildeo o eacutelan jamais a vida em geral O que eacute

incessantemente destruiacutedo e fechado sobre si eacute um equiliacutebrio superficial que corresponde

agraves dimensotildees mais aparentes e atuais de uma comunidade poliacutetica O que resta quando tudo

parece fechado eacute uma forma de exercer a memoacuteria em profundidade ndash remuer la cendre e

fazer rescender o perfume do tempo permanecer agrave espera e agrave espreita ndash praticar esses dois

modos que definem o virtual suscitar os devires operar os acontecimentos a fim de

reingressar no seio de uma emoccedilatildeo criadora que deixando de ser atual jamais deixou de

ser ndash ponto de vista de uma memoacuteria que jamais foi presente memoacuteria para o futuro As

narrativas da violecircncia da destruiccedilatildeo do homem ndash que como a vida da qual procede ldquoeacute

um indestrutiacutevel que no entanto pode ser destruiacutedordquo como anos mais tarde diraacute Maurice

Blanchot (2007 p 80) ndash indicam precisamente o ponto em que tudo o que resta eacute uma

obscura comunidade de eus profundos e a chance de um novo contato coletivo com o eacutelan

criador capaz de superar o fechamento e de assegurar sob todos os aspectos e pelo menos

de direito a potecircncia de reabrir o fechado de resistir a ele de forjar uma democracia

duraacutevel no interior de cujo universalismo ndash efeito de criaccedilatildeo ndash o aberto possa insinuar-se e

prolongar-se como invenccedilatildeo de novas formas de vida e de existecircncia em comum Eacute junto a

uma comunidade de eus profundos que natildeo cessa de combater e de resistir ao fechamento

256

que se poderaacute procurar um equiliacutebrio superior de ordem completamente diversa daquele

equiliacutebrio social superficial que o fechado impotildee

Demos um derradeiro passo adiante efetuemos a passagem de um concreto a outro

Com efeito eacute comum que se escrevam teses cujo termo se encontre em um horizonte de

futuriccedilatildeo que natildeo passam de uma suspensatildeo irrealizaacutevel imobilizada pela miragem do

possiacutevel Guardemo-nos de imobilizar-nos nesses limiares indecisos Demonstremos por

meio de um exemplo concreto que as condiccedilotildees para a efetuaccedilatildeo da transiccedilatildeo mesmo no

caso brasileiro se natildeo se encontram inteiramente dadas do ponto de vista do atual

encontram-se virtualmente depositadas em uma memoacuteria ontoloacutegico-poliacutetica que com

certa sensibilidade seria possiacutevel pressentir desde logo Natildeo se trata de interrogar a ordem

do possiacutevel mas de estimar a emergecircncia de uma nova partilha e de uma nova ordem dos

afetos que parece estar em obra

Muitos exemplos poderiam ser ofertados a esse tiacutetulo desde accedilotildees de meacutedia e longa

duraccedilatildeo do Estado brasileiro como a atuaccedilatildeo das Comissotildees e Caravanas da Anistia a

poliacutetica reparatoacuteria aos perseguidos poliacuteticos as comissotildees de mortos e desaparecidos com

atuaccedilatildeo em diversos niacuteveis governamentais bem como em niacutevel federal a instauraccedilatildeo da

Comissatildeo Nacional da Verdade bem como de comissotildees estaduais a construccedilatildeo de

memoriais da ditadura em espaccedilos que antes acolhiam instituiccedilotildees policiais e

administrativas responsaacuteveis pela repressatildeo pela tortura e pelo desaparecimento

sistemaacutetico de perseguidos poliacuteticos ou como as iniciativas de judicializaccedilatildeo nacional e

internacional das questotildees relacionadas agrave Justiccedila de Transiccedilatildeo no Brasil Seria desejaacutevel

no entanto fugir a esses lugares-comuns a fim de procurar aquilo que eacute comum a todos

esses lugares a partir de um retorno empiacuterico sobre a proacutepria Teoria da Justiccedila de

Transiccedilatildeo

Com efeito seus teoacutericos reconhecem comumente os espaccedilos institucionais e

aparelhos de Estado como espaccedilos privilegiados em que se inscreve a Justiccedila de Transiccedilatildeo

como um direito-entre Embora fortemente relacionadas ao Estado Jon Elster (2006 p

114) e Ruti Teitel (2000 p 80) afirmam que as praacuteticas transicionais tambeacutem podem

operar-se na interface ou nas margens dos aparelhos de Estado entre suas instituiccedilotildees e

os dinamismos poliacutetico-sociais concretos228

Tanto Estados entidades supranacionais

228

Ruti Teitel tambeacutem o enuncia de dois pontos de vista o do papel da sociedade civil na recoleccedilatildeo social

das memoacuterias e o da importacircncia da articulaccedilatildeo entre accedilotildees individuais e sociedade civil ldquoWhen political

impetus for an official investigation was lacking the construction of collective memory and the investigation

257

corporaccedilotildees privadas e ateacute mesmo indiviacuteduos podem com efeito protagonizar praacuteticas de

Justiccedila de Transiccedilatildeo Seria um erro comparaacutevel apenas ao de reduzir a realidade da

memoacuteria agrave memoacuteria psicoloacutegica individual ou agrave representaccedilatildeo o de supor que as medidas

de Justiccedila de Transiccedilatildeo devam permanecer encerradas nas tramas burocraacuteticas ndash embora

por forccedila da circunstacircncia de os Estados serem muito comumente os violadores de

direitos humanos por excelecircncia as reformas reestruturaccedilotildees e purgas devem ter por

finalidade produzir uma sensiacutevel alteraccedilatildeo de seus aparelhos

Se as observaccedilotildees empiacutericas de Elster e de Teitel estiverem corretas encontramos

nelas algo mais que uma margem a linha de fuga que nos conduz a um foco potencial de

efetuaccedilatildeo das transiccedilotildees poliacuteticas ndash foco este que deve ser procurado em um ldquomais aleacutemrdquo

do Estado Embora o Estado e seus aparatos possam ser o objeto e por vezes os motores

pragmaacuteticos e institucionais aparentemente privilegiados das transiccedilotildees em contextos de

fluxo poliacutetico a gecircnese das transiccedilotildees natildeo se localiza forccedilosa ou exclusivamente no

interior do Estado assim como o movimento natildeo pode ser explicado de maneira causal

pelo estado de repouso Seria o caso de inverter a formulaccedilatildeo de Teitel e Elster nas

transiccedilotildees o ldquomais aleacutemrdquo do Estado natildeo se encontra nas margens mas se confunde com o

princiacutepio geneacutetico que impulsiona a efetivaccedilatildeo das transiccedilotildees reais reinstaurando as

margens dos aparelhos de Estado e suas instituiccedilotildees que se refecham sobre aquela Se

Teitel e Elster afirmam sua relativa marginalidade isso se deve a uma visatildeo retrospectiva

que confunde produzir e produto gecircnese e estrutura dinacircmico e estaacutetico e que permite

absorver inteligentemente os primeiros nos segundos

Reaproximando-nos do caso brasileiro basta recordar que as forccedilas motrizes da

reabertura poliacutetica e da redemocratizaccedilatildeo ndash embora tenha se tratado de uma abertura

intensamente controlada pelo Estado e mediada por suas instituiccedilotildees legais e

administrativas ndash localiza-se com maior vigor nos corpos de movimentos sociais que

impulsionaram tais mudanccedilas desde o movimento da Anistia ateacute a mobilizaccedilatildeo nacional

pelas Diretas Jaacute (ANSARA 2009 p 150-153 MARTINS 2010 p 145-170) Nesses

casos o duradouro controle do Estado brasileiro iniciado pelo governo Geisel exerceu-se

sobre uma pulsatildeo democratizante coletiva e ficou conhecido como ldquoabertura lenta gradual

e segurardquo Seus efeitos imediatos foram a gecircnese de uma Lei de Anistia violadora de

Direitos Humanos ndash como reconhecido pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no

and documentation of past repression were taken up by the civil societyrsquos nongovernmental organizations

[]rdquo (TEITEL 2000 p 80) adiante Teitel (2000 p 152) prossegue ldquoThough liberal intuitions emphasize

the significance of individual action the predicate for change to a civil society as suggested in the ancient

account is not simply an individual matter but involves a relation between individual and collectiverdquo

258

julgamento do Caso Gomes Lund e outros vs Brasil (Caso Araguaia) ndash e resultaram em

uma democratizaccedilatildeo vertical (TORELLY 2012 p 210-217)

Para aleacutem da atuaccedilatildeo do Estado seria conveniente recordar a luta dos familiares

dos desaparecidos poliacuteticos que iniciada durante a ditadura militar estende-se ateacute hoje

com contribuiccedilotildees inestimaacuteveis de seus protagonistas ao restabelecimento da memoacuteria

poliacutetica do periacuteodo ditatorial no Brasil (TELES 2009 p 151-176) Suas contribuiccedilotildees que

penetram nas instituiccedilotildees apenas mais recentemente com as Comissotildees e Caravanas da

Anistia mas tambeacutem com a tomada de depoimentos e testemunhos no acircmbito de

Comissotildees da Verdade satildeo emblemaacuteticas de uma narraccedilatildeo que procura ndash a teor de toda

literatura memorialista produzida no periacuteodo ndash ldquonatildeo deixar que tudo se perca se evaporerdquo

(FORTES 2012 p 93) Eis a definiccedilatildeo de uma pulsatildeo ou de uma vis memorialista que

por vezes faz com que testemunho e literatura memorial confundam-se ao infinito229

Embora respeitaacuteveis autores brasileiros da Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo

considerem que as questotildees poliacuteticas envolvidas na anistia e na transiccedilatildeo democraacutetica

brasileira natildeo teriam gerado nada aleacutem de uma mobilizaccedilatildeo popular de baixa intensidade

(ABRAtildeO TORELLY 2011 p 238-239) um fenocircmeno novo parece emergir com forccedila

singular Ele consiste no ingresso repentino de muitas pautas poliacuteticas relacionadas agrave

Justiccedila de Transiccedilatildeo no Brasil como questotildees relevantes e unificadoras para movimentos

sociais cujos atores satildeo os jovens O Levante Popular da Juventude eacute nesse aspecto uma

experiecircncia de todo exemplar embora natildeo dedique sua atenccedilatildeo exclusivamente agraves questotildees

da Justiccedila de Transiccedilatildeo ndash e eacute precisamente isso o que constitui o iacutendice de um potencial de

abertura desse movimento230

229

Eacute nesse sentido que Salinas assumindo o tom do sujeito que procura no iacutentimo da proacutepria experiecircncia a

razatildeo para escrever as memoacuterias que sejam capazes de transmiti-la inteiramente afirma em um tom

confessional e ao mesmo tempo irocircnico ldquo[]se escrevo ndash as memoacuterias ndash eacute para dar a mim mesmo

conceder-me em benefiacutecio proacuteprio uma lsquoANISTIA AMPLA GERAL E IRRESTRITArsquo jaacute que ningueacutem me

concederdquo (FORTES 2012 p 93) Enquanto a confissatildeo de ter de buscar uma justificativa para narrar suas

memoacuterias remete ao sujeito que luta contra a desapariccedilatildeo da memoacuteria declarada sua completa absorccedilatildeo na

iteraccedilatildeo de pesadelos e deliacuterios a ironia de ldquoconceder-se uma anistia ampla geral e irrestritardquo que ningueacutem

lhe concede assinala o ponto de inserccedilatildeo do sujeito na lei e nas instituiccedilotildees de grande escala Eis a criacutetica que

permite entrever que o fundamento da lei eacute essencialmente irocircnico a denunciar precisamente o fato de que os

responsaacuteveis pela repressatildeo concederam-se a si mesmos ndash como Salinas gostaria de fazer pela via da escritura

ndash sua anistia e seu perdatildeo Em tudo ldquoContra a ficccedilatildeo do Gecircnio Maligno oficial se impotildee o minucioso relato

histoacuterico []rdquo (FORTES 2012 p 42) 230

Outro exemplo iniciativa da juventude eacute o Coletivo Quem grupo anocircnimo sem vinculaccedilatildeo partidaacuteria que

sequer se define como movimento mas como projeto que inspirado pela arte do artista plaacutestico Cildo

Meireles visa a ldquoResgatar atualizar e reconfigurar manifestaccedilotildees artiacutesticas de resistecircncia agrave ditadurardquo O

grupo notabilizou-se por carimbar a partir de 2010 perguntas incocircmodas em ceacutedulas de Real como ldquoQuem

torturou Dilma Rousseff rdquo ldquoQuem torturou Frei Tito rdquo e ldquoQuem matou Alexandre Vannucchi Leme rdquo Ao

contraacuterio do Levante Popular da Juventude o foco de suas intervenccedilotildees simboacutelicas e artiacutesticas satildeo as

questotildees relativas agrave transiccedilatildeo brasileira no que converge com algumas pautas do Levante Popular da

259

Os integrantes do Levante Popular da Juventude definem-se como ldquouma

organizaccedilatildeo de jovens militantes voltada para a luta de massas em busca da transformaccedilatildeo

da sociedaderdquo231

Trata-se de uma iniciativa que busca articular a juventude brasileira

atuante nos movimentos sociais em niacuteveis nacional regional e local Suas lutas atravessam

temas tatildeo plurais (BRITO e FERREIRA 2011 p 11) como a construccedilatildeo de uma

democracia popular distribuiccedilatildeo de renda sustentabilidade ambiental lutas contra o

machismo a homofobia a lesbofobia a transfobia e o racismo a democratizaccedilatildeo da

educaccedilatildeo em todos os niacuteveis bem como o acesso universal ao transporte puacuteblico gratuito e

de qualidade a efetivaccedilatildeo dos direitos agrave cultura e ao lazer na contracorrente de sua

mercantilizaccedilatildeo a luta contra a precarizaccedilatildeo do trabalho e pela extensatildeo das garantias e

direitos sociais reconhecidos aos trabalhadores urbanos e rurais o combate ao

individualismo e agrave estagnaccedilatildeo ndash valores do capital ndash e ldquoa praacutetica permanente

de solidariedade com todos os povos que sofrem e lutamrdquo232

Criado em meados de 2005 a partir de uma Consulta Popular ndash agrupamento de

diversos movimentos sociais ligados ao Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra

(RUSKOWSKI 2012 p 30) ndash a forma de apariccedilatildeo puacuteblica de maior intensidade do

Levante Popular da Juventude deu-se apenas em 2012 com as praacuteticas de ldquoesculachosrdquo

(CARTA MAIOR 2012) De composiccedilatildeo heterogecircnea compreendendo integrantes de

diversas origens econocircmicas sociais e culturais (SILVA e RUSKOWSKI 2010 p 32) o

Levante Popular da Juventude notabilizou-se pela praacutetica de esculachos inspirados nos

escrachos argentinos e chilenos ndash atos de execraccedilatildeo puacuteblica realizados diante das

residecircncias de torturadores em diversas capitais brasileiras

Longe de ser uma organizaccedilatildeo em sentido proacuteprio que nasce de certa

intencionalidade com visatildeo prospectiva e estrateacutegica de atuaccedilatildeo o Levante teria surgido

de ldquoum sentimento uma percepccedilatildeo de que era necessaacuterio construir um espaccedilo de

organizaccedilatildeo da juventuderdquo233

Ganhando corpo o movimento passa a estabelecer seus

eixos de accedilatildeo a partir do tripeacute ldquoorganizaccedilatildeo formaccedilatildeo e lutardquo enriquecendo-se com a

Juventude que passamos a analisar mais minuciosamente adiante Sobre o Coletivo Quem cf

lthttpquemtorturouwordpresscoma-propostagt Acesso em 15mai2013 231

Cf lthttplevanteorgbrgt Acesso em 15mai2013 232

Cf lthttplevanteorgbrCartaCompromissoLevantePopulardaJuventudehtmgt Acesso em 15mai2013 233

ldquoNatildeo tinha uma visatildeo estrateacutegica uma leitura da conjuntura muito profunda que diria que ndash lsquoNatildeo

precisamos ter uma organizaccedilatildeo com tal e tal caraacuteter e talrsquo Natildeo tinha muito isso Tinha um sentimento uma

percepccedilatildeo de que era necessaacuterio construir um espaccedilo de organizaccedilatildeo da juventude e aiacute se tirou o Francisco

pra fazer isso e tal E eacute por isso que o Levante nunca teve um modelo organizativo muito bem definido

Sempre foi meio gelatinoso assimrdquo Fala de Luiacutes integrante do Levante entrevistado por (SILVA e

RUSKOWSKI 2010 p 32)

260

transmissatildeo da experiecircncia de participantes de outros movimentos sociais como o

Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra o Movimento dos Atingidos por Barragens o

Movimento dos Pequenos Agricultores o Movimento dos Trabalhadores Desempregados

etc Os encontros estaduais mais que simples reuniotildees deliberativas propulsionam-se a

partir da hibridizaccedilatildeo cultural que reuacutene sob a mesma rubrica a capoeira e o hip hop ldquoa

miacutestica e a noiterdquo (SILVA e RUSKOWSKI 2010 p 34)234

ao mesmo tempo em que

constituem lugares para formaccedilatildeo poliacutetica definiccedilatildeo dos rumos do movimento e discussatildeo

de accedilotildees e praacuteticas de lutas Tudo concorre para a integraccedilatildeo dos jovens em novas e plurais

chaves de leitura da realidade social no interior da qual estatildeo inseridos mas mais aleacutem

para que possam apropriar-se de estrateacutegias compreensivas e praacuteticas que lhes permitem

acreditar na possibilidade de reabrir o fechado alterar suas condiccedilotildees de vida e os modos

de existecircncia no contexto poliacutetico e social de que fazem parte

Agrave luz de tudo isso o Levante Popular da Juventude constitui um movimento social

exemplar para pensar a correlaccedilatildeo entre uma memoacuteria ontoloacutegica transcrita em diversos e

heterogecircneos niacuteveis e a produccedilatildeo de uma transiccedilatildeo real em um campo concreto Sua

exemplaridade decorre de trecircs fatores que devemos considerar na medida em que permitem

reatar o aparato conceitual de Bergson agraves dimensotildees mais concretas da efetuaccedilatildeo da Justiccedila

de Transiccedilatildeo Nesse sentido consideremos as accedilotildees poliacuteticas do Levante mais diretamente

relacionadas com as questotildees envolvidas pela Justiccedila de Transiccedilatildeo

Geralmente os jovens do Levante reuacutenem-se em datas ou eventos significativos

como o aniversaacuterio do Golpe Militar de 1964 ndash comemorado sem pudores por alguns

setores militares ndash ou as reuniotildees das Comissotildees da Verdade em diversos niacuteveis

federativos Suas accedilotildees poliacuteticas consideradas por muitos desrespeitosas ou borderlines

da praacutetica de vandalismo estatildeo diretamente ligadas a manifestaccedilotildees de execraccedilatildeo puacuteblica

de torturadores de alteraccedilatildeo do nome de vias puacuteblicas ndash que porventura tenham o nome

de colaboradores do regime autoritaacuterio ou de agentes da repressatildeo poliacutetica ndash pichaccedilotildees

proacuteximas agraves residecircncias de torturadores com a inscriccedilatildeo ldquoaqui mora um torturadorrdquo

manifestaccedilotildees puacuteblicas a fim de incitar o Estado brasileiro a cumprir a sentenccedila da Corte

Interamericana de Direitos Humanos no caso Gomes Lund (caso Araguaia) defesas

puacuteblicas da instauraccedilatildeo da Comissatildeo Nacional da Verdade entoaccedilatildeo de canccedilotildees de

protesto e resistecircncia que evocam a memoacuteria da resistecircncia agrave ditadura chamamento em voz

alta ndash seguido de um uniacutessono ldquopresenterdquo ndash dos nomes dos companheiros tombados na

234

Cf ainda (RUSKOWSKI 2012 p 33) para maior detalhamento sobre o sentido das praacuteticas culturais no

Levante Popular da Juventude

261

luta como forma de prestar-lhes homenagem poacutestuma teatros puacuteblicos que recordam a

memoacuteria das prisotildees torturas e desapariccedilotildees etc Do ponto de vista estrateacutegico alguns

integrantes do movimento afirmam que tal praacutexis constitui uma tentativa de renovar as

praacuteticas de lutas de massas e de fazecirc-lo articulando a juventude (CARTA MAIOR 2012)

Poreacutem o que mais chama a atenccedilatildeo eacute o engajamento massivo de jovens que pouco

ou nada viveram do periacuteodo da repressatildeo poliacutetica no Brasil Se o Estado e suas

instituiccedilotildees possuem obrigaccedilotildees internacionais a cumprir ao redor do tema se os

familiares de perseguidos e desaparecidos poliacuteticos carregam ainda feridas abertas dos

tempos de repressatildeo seria preciso indagar o que leva jovens a engajarem-se politicamente

em questotildees que poderiam parecer-lhes integralmente anacrocircnicas Eis a questatildeo que se

coloca em termos socioloacutegicos e poliacuteticos na medida em que remete agrave discussatildeo das

formas de vida e de sociabilidade coletivas como compreender que jovens com seus vinte

ou trinta anos de idade que pouco ou sequer viveram a intensidade real da repressatildeo

possam unir-se aos mais velhos agrave espessura fantasmaacutetica dos mortos e dos desaparecidos

De que modo podem fazer de sua praacutexis o testemunho concreto da partilha em

profundidade do significado da democracia e dos direitos humanos como um compromisso

poliacutetico aberto e transgeracional Como esses jovens encontram sentido no levantar-se

Como explicar essa partilha miacutestica que pouco a pouco penetra o seio social em camadas

insuspeitaacuteveis entre aqueles que natildeo viveram Para compreendecirc-lo retornemos agrave

fenomenologia da revoluccedilatildeo de Les Deux Sources Ali Bergson lembrava a afirmaccedilatildeo de

Eacutemile Faguet que dizia que a Revoluccedilatildeo Francesa havia acontecido natildeo pela igualdade e

pela liberdade mas por que se morria de fome E por que pergunta-se Bergson de repente

decidiu-se que jaacute natildeo era mais aceitaacutevel morrer-se de fome Seria o caso de perguntar por

que jovens de vinte e poucos anos levantaram-se de repente Por que enfim em

determinado momento desejaram trocar os afetos da ordem por uma outra ordem dos

afetos

Eis a faceta concreta de uma memoacuteria ontoloacutegica em Bergson o devir e o aberto

advecircm da deposiccedilatildeo inconsciente e infinitesimal dos eventos na memoacuteria do espiacuterito que eacute

tambeacutem o virtual a memoacuteria em profundidade O miacutestico que Bergson define como o

grande homem de accedilatildeo mas tambeacutem o artista e o moralista ndash aqueles que produzem

alteraccedilotildees de valores que instauram pelo exemplo uma abertura na moralidade social ndash

satildeo individuaccedilotildees coextensivas a uma operaccedilatildeo ontoloacutegica de uma memoacuteria mais

profunda

262

Por essa razatildeo eacute enganoso pensar o devir do ponto de vista exclusivamente

individual Natildeo eacute o devir que eacute produzido por indiviacuteduos satildeo os indiviacuteduos que prolongam

o devir cuja potecircncia em Bergson confunde-se com a de Deus ndash nada aleacutem de ldquoum

esforccedilo criadorrdquo que natildeo se encontra fora deste mundo mas entranhado nele seu motor

inaparente sempre sujeito aos dinamismos do acaso De algum modo reencontramos aqui

o eacutelan vital que natildeo se confunde com a vida orgacircnica mas com a sombria operaccedilatildeo do

tempo universal em sua multiplicidade de fluxos coexistentes no seio de uma memoacuteria-ser

Nesse sentido o miacutestico mero instrumento do Deus bergsoniano eacute a prova viva de que o

devir penetra em profundidade as singularidades impessoais e as inventa Natildeo haacute sujeitos

fixos apenas ilusotildees superficiais em profundidade opera-se o acuacutemulo infinito das

experiecircncias e afetos na memoacuteria dessas individuaccedilotildees Eis a personalidade bergsoniana

atravessada pelo eacutelan vital

Se os jovens hoje se levantam se trocam os afetos da ordem por uma outra ordem

dos afetos eacute porque de algum modo houve um encantamento riacutetmico de seus eus em

profundidade e o daqueles que os precederam na luta pela transfiguraccedilatildeo do real Poreacutem

para que essas almas que se abrem possam efetuar o aberto eacute preciso contraefetuar o

fechado saltar para o exterior dos coacutedigos sociais da ficccedilatildeo do indiviacuteduo e do ciacuterculo teso

da proacutepria espeacutecie das tendecircncias sociais e intelectuais naturais ao homem Por essa razatildeo

talvez tudo o que faccedilam pareccedila tatildeo liminar dos coacutedigos sociais agraves almas fechadas sobre si

e sobre o ciacuterculo da obrigaccedilatildeo social Isso poreacutem natildeo passa de um jogo perspectivo entre

duas formas de sociabilidade ldquoDe um lado a nova intensidade e a euforia inesperadas De

outro o mundo das obrigaccedilotildees e do reloacutegio De um lado a dimensatildeo ignorada pela caretice

geral estado de graccedila alegre durarrdquo escreve Salinas (FORTES 2012 p 95) Um

movimento social pode mover-se e emocionar-se (srsquoeacutemouvoir) como uma comunidade de

eus profundos Almas que se abrem seus agentes e lutas encarnam a distensatildeo praacutetica e

empiacuterica de uma outra forma de equiliacutebrio social em profundidade Do ponto de vista da

ontologia da memoacuteria que as sustenta suas accedilotildees poliacuteticas e praacuteticas culturais jaacute natildeo satildeo

meros representantes de conteuacutedos ausentes ou figuraccedilotildees imaginaacuterias mas um modo de

fabulaccedilatildeo coletiva que pode engendrar na noite praacuteticas miacutesticas que fazem pressentir a

promessa de abertura social e poliacutetica da transfiguraccedilatildeo que natildeo pode cadaverizar-se na

utopia no deliacuterio ou no sonho

O aberto como tendecircncia ou limite ideal tem por destino encarnar-se em uma accedilatildeo

mas sempre no seio de uma certa atmosfer que rescende emoccedilotildees profundas e que a

prepara e prenuncia Assim a evocaccedilatildeo dos nomes dos companheiros tomados na luta

263

perseguidos mortos e desaparecidos natildeo eacute o retrato calado das paredes de honra dos

edifiacutecios burocraacuteticos mas a memoacuteria viva de um uacutenico nome que pode conter um desejo

inteiro Sua evocaccedilatildeo coletiva metaforiza nada mais do que o retorno e a rebeliatildeo de

memoacuterias profundas inconscientes de desejos selvagens incompreensiacuteveis de uma

memoacuteria para um porvir jamais vivido (LAPOUJADE 2010 p 15) mas cuja presenccedila

irresistiacutevel eacute evocada e aspirada pelo nome que conteacutem um desejo inteiro

Os teatros puacuteblicos natildeo satildeo um exerciacutecio de representaccedilatildeo em que a prisatildeo a

tortura ou a morte satildeo encenadas ndash satildeo uma forma de conspirar com as potecircncias virtuais

de uma memoacuteria inconsciente e inaparente modo de inventar uma atmosfera e um campo

de sentido que impulsione a accedilatildeo inspirada em atos exemplares assim como as sinfonias

de Beethoven introduziam Bergson em uma emoccedilatildeo criadora fazendo sentir o fundo

ontoloacutegico da natureza naturante sob sua melodia acidental os teatros de crueldade com

jovens seminus enfiados em paus-de-arara satildeo representaccedilotildees que respondem a um apelo

supraintelectual trata-se de uma maneira natildeo-especulativa de produzir uma rebeliatildeo das

memoacuterias vivas subterracircneas e sujeitadas Tais teatros valem mais pela emoccedilatildeo na qual

nos inserem que pelos conteuacutedos de verdade que expressam a uma inteligecircncia

Uma comunidade de eus profundos estaacute sempre mais perto da memoacuteria ontoloacutegica

que os sobreviventes que sempre colocam suas questotildees em termos de reminiscecircncia

linguagem e conteuacutedo vivido ldquo[] como evocar com exatidatildeo o primeiro ato do pesadelo

que a consciecircncia tem dificuldade de reviver e se esforccedila por manter recalcado fora de seu

acircmbitordquo (FORTES 2012 p 42) pergunta-se Salinas em suas memoacuterias ndash questatildeo que o

sobrevivente endereccedila-se ao sentir a pulsatildeo memorial que o atravessa sem saber por onde

comeccedilar Afinal comeccedilar por que sonho que deliacuterio que pesadelo se tudo se confunde

com os fantasmas dessa memoacuteria que foi inscrita clastreana ou kafkianamente no corpo

ldquo[] dor que continua doendo ateacute hoje e que vai acabar por me matarrdquo ldquobem presente no

meu corpo ferida aberta latejando na memoacuteriardquo

Uma comunidade de eus profundos jamais se coloca a questatildeo do sobrevivente ou

da testemunha porque natildeo pode fazecirc-lo Sua potecircncia especiacutefica eacute a de afastar a

inteligecircncia que parece irrealizar a inscriccedilatildeo da tortura na superfiacutecie dos corpos e deixar-

se invadir por esse ldquofluxo tatildeo sonhado que de repente arrebentardquo (FORTES 2012 p 97)

Os cantos de protesto os hinos os cartazes e frases pichadas nos muros formam corpos

mais ou menos materiais rasuram a ficccedilatildeo oficial e as injunccedilotildees de esquecimento e podem

ser ainda a maneira inteligente e linguageira de combater o fechado as transcriccedilotildees

simboacutelicas e culturais de uma memoacuteria que existe como um fluxo de emoccedilatildeo incoerciacutevel

264

cujo afeto inconsciente a um soacute tempo colmata a lacuna que liga o passado ao futuro e

prepara para a accedilatildeo Ao reveacutes do testemunho ldquoque vale pelo que neles faltardquo (AGAMBEN

2008 p 43) essas representaccedilotildees geradas por uma emoccedilatildeo criadora profunda valem pelo

aberto que as excede e que elas podem auxiliar a comunicar de alma em alma por

incandescecircncia ou por contaminaccedilatildeo

O Levante Popular da Juventude eacute ainda exemplar de uma ontologia da memoacuteria

em sentidos radicalmente mais praacuteticos Suas praacuteticas simboacutelicas e sua miacutestica natildeo

exaurem sua conexatildeo com dimensotildees mais concretas da efetuaccedilatildeo da transiccedilatildeo Se a

Justiccedila de Transiccedilatildeo eacute voltada primariamente agrave transformaccedilatildeo das instituiccedilotildees do Estado

um movimento popular como o Levante Popular da Juventude exerce a funccedilatildeo de

catalisador dos grandes temas e problemas oriundos de uma transiccedilatildeo incompleta no

interior da opiniatildeo puacuteblica Sua praacutexis tende a produzir emergecircncias simboacutelicas que

interpelam as almas fechadas colaborando para colocar sob nova luz ou reatualizar

questotildees que boa parte da sociedade brasileira considera anacrocircnicas ou de segunda ordem

ignorando que os problemas nacionais de primeira ordem podem encontrar justamente ali

no aparente anacronismo da transiccedilatildeo inconclusa sua estrutura fundamental Assim os

gestos poliacuteticos do Levante natildeo apenas anunciam mas tendem a engendrar e a produzir a

intensificaccedilatildeo do movimento poliacutetico acerca da transiccedilatildeo brasileira ndash se suas lutas natildeo

realizam o aberto a que aspiram ao menos tendem a contraefetuar o fechado a alterar e

dinamizar relaccedilotildees de forccedilas por muito tempo bloqueadas politicamente no Brasil Sua

praacutexis seja a da accedilatildeo simboacutelica ou a da accedilatildeo poliacutetica eacute uma forma de remuer la cendre

define-se pela insistecircncia pela espera e pela espreita ndash modos ontoloacutegicos de uma memoacuteria

virtual que jamais deixou de ser

Na medida em que se reconhecem os potenciais efetivos de movimentos sociais

como propulsores das alteraccedilotildees pragmaacuteticas e institucionais como catalisadores da

opiniatildeo puacuteblica para a atualidade do tema o Levante Popular da Juventude constitui um

exemplar de accedilotildees transicionais que engendram uma forma de Justiccedila de Transiccedilatildeo que

nem fica confinada aos aparelhos de Estado nem eacute simples ou completamente refrataacuteria a

eles Se pudemos caracterizar a Justiccedila de Transiccedilatildeo como um direito-entre o Levante

Popular da Juventude eacute um exemplar de movimento social-entre ao menos em dois

sentidos Em primeiro lugar como vimos tudo se passa como se ele pudesse tocar as

instituiccedilotildees e impulsionaacute-las agrave efetuaccedilatildeo das accedilotildees de Justiccedila de Transiccedilatildeo Exemplar da

justiccedila em sentido absoluto em Bergson que jaacute natildeo evoca ideias de relaccedilatildeo medida ou

proporccedilatildeo a ideia de justiccedila de movimentos sociais que baseiam sua praacutexis na defesa dos

265

direitos humanos ndash a exemplo do Levante Popular da Juventude ndash resolve-se em uma

afirmaccedilatildeo pura e simples de um direito inviolaacutevel da incomensurabilidade da pessoa e de

seus valores (BERGSON 2001 p 103571 ainda LEFEBVRE 2013 Chap 7)

Em um segundo sentido radicalmente praacutetico e poliacutetico o Levante Popular da

Juventude apresenta-se como um movimento social-entre na medida em que sua praacutexis de

luta tem por efeito imediato trazer agrave luz os compromissos inaceitaacuteveis de uma democracia

em que a transiccedilatildeo eacute ainda hoje um processo poliacutetico inconcluso com aquilo que ldquoresta

da ditadurardquo Sua praacutexis revela tais compromissos toda vez que eacute combatida como praacutetica

antidemocraacutetica criminosa ou desprovida de sentido pelas instituiccedilotildees e pela miacutedia Eacute

impossiacutevel natildeo recordar que em 31 de marccedilo de 2012 em um contexto de intensa reaccedilatildeo

dos segmentos militares contra a possibilidade de instituiccedilatildeo da Comissatildeo Nacional da

Verdade uma manifestaccedilatildeo organizada pelo Levante que contava com o apoio e a

participaccedilatildeo de partidos poliacuteticos de esquerda e de familiares de mortos e desaparecidos e

que execrava militares que chegavam ao Clube Militar do Rio de Janeiro para participar de

uma comemoraccedilatildeo pela ldquorevoluccedilatildeo de 64rdquo foi violentamente reprimida pela tropa de

Choque da Poliacutecia Militar do Estado do Rio de Janeiro que utilizou bombas de efeito

moral gaacutes de pimenta e armas natildeo-letais ndash como natildeo seriam elas a nova roupagem legal da

antiga tortura dos departamentos de investigaccedilatildeo ndash para dispersar a multidatildeo A cobertura

da miacutedia nacional desastrosa defendia inconfessadamente a repressatildeo dos manifestantes

pela razatildeo de os ativistas poliacuteticos terem provocado uma ldquoconfusatildeo naquilo que era para

ser apenas uma comemoraccedilatildeordquo (O GLOBO 2012) As razotildees da festa por certo nada

tinham de questionaacuteveis

A praacutexis do Levante relativa agraves questotildees da Justiccedila de Transiccedilatildeo eacute de modo geral

reprimida ora pela via do real ndash os embates com a poliacutecia ndash ora pela via do simboacutelico ndash a

desqualificaccedilatildeo de suas accedilotildees pelas miacutedias de massa que natildeo cessam de tentar controlar as

margens criacuteticas da opiniatildeo puacuteblica Eis o que revela alguns dos sentidos imediatamente

praacuteticos e poliacuteticos em que a transiccedilatildeo precisa ainda efetuar-se no Brasil tanto do ponto

de vista da democratizaccedilatildeo das instituiccedilotildees do Estado quanto da democratizaccedilatildeo da

informaccedilatildeo e da possibilidade efetiva de desbloqueio da discussatildeo poliacutetica no espaccedilo

puacuteblico Em cada um desses sentidos ndash tanto o de suas accedilotildees poliacuteticas quanto o de suas

formas de relacionar-se com as instituiccedilotildees ou de debater-se contra elas ndash o Levante

Popular da Juventude atualiza uma ontologia poliacutetica da memoacuteria em que a memoacuteria

constitui o fundo virtual de toda praacutetica poliacutetica ostensiva Nas reuniotildees ou manifestaccedilotildees

o Todo vibra em uma mesma intensidade da presenccedila natildeo raro inconsciente mas sensiacutevel

266

da memoacuteria em comum ponto de ressonacircncia afetivo para criando uma abertura no

superficial superar nossas formas de vida atuais (ciacuterculos sociais individuais inerentes agrave

espeacutecie) e saltar na ontologia devolver ao virtual da memoacuteria o que ela tem de afeto real

de energia eficaz e de profunda liberdade de uma comunidade que inagente e virtual jaacute

estaacute uma comunidade de eus profundos

Com efeito nada disso estaacute dado supotildee ao contraacuterio um esforccedilo e uma

sensibilidade especiais na medida em que todo devir implica um modo de afeto do tempo

pelo qual o tempo afeta a noacutes mesmos e o proacuteprio conjunto do real Eacute preciso algo como

um salto ontoloacutegico uma descida agrave profundidade uma funccedilatildeo de ruptura que com efeito

comeccedila pela redescoberta da memoacuteria das individualidades excepcionais pela partilha da

emoccedilatildeo criadora que persiste como brasa viva sob as cinzas das foacutermulas soacutelidas vaacutecuas e

resfriadas

O que as narrativas da violecircncia da violaccedilatildeo de direitos humanos e da destruiccedilatildeo

do homem permitem eacute precisamente um contato com essa massa indefiniacutevel de utopias que

natildeo satildeo senatildeo afetos elididos talvez jamais vividos por noacutes mesmos e cujo acesso atesta a

reemergecircncia de uma comunidade de eus profundos que se confunde agora com a proacutepria

vitalidade inorgacircnica com a qual se pode combater o fechamento Esse contato

inteiramente miacutestico pode ser involuntaacuterio inconsciente e erraacutetico devido a uma atmosfera

emotiva incendiaacuteria mas tambeacutem pode ser suscitado e revivificado por contiacutenuos esforccedilos

e labores da reminiscecircncia

Como sopros que buscam reavivar uma pequena incandescecircncia sob as cinzas as

narrativas da violecircncia podem pelo simboacutelico pela linguagem ou pela inteligecircncia dar

acesso agravequilo que engendrou todos os seus signos uma emoccedilatildeo criadora profunda que

pode ser revivificada uma exigecircncia de criaccedilatildeo capaz de reabrir o fechado de produzir

uma pulsatildeo transicional coletiva de recolocar a totalidade das estruturas poliacutetico-juriacutedicas

e das formas decantadas de laccedilo social sob a clareira do porvir que se insinua no aberto

Eis no sentido mais social e mais superficial a funccedilatildeo das memoacuterias-lembranccedila das

memoacuterias-signo das narrativas coletivas que ela pode engendrar e que tambeacutem podem

encontrar na arte um ponto de apoio e de fabulaccedilatildeo em comum235

tais produtos poreacutem

natildeo seratildeo mais do que o representante superficial social simboacutelico e inteligiacutevel de uma

235

ldquoA utopia natildeo eacute um bom conceito haacute antes uma lsquofabulaccedilatildeorsquo comum ao povo e agrave arte Seria preciso

retomar a noccedilatildeo bergsoniana de fabulaccedilatildeo para dar-lhe um sentido poliacuteticordquo (DELEUZE 2008 p 215)

267

emoccedilatildeo mais profunda que os engendra e que pode ser sempre recuperada e reavivada sob

as cinzas do fechamento

Essas questotildees sendo simples natildeo mereceratildeo uma resposta menos sutil Tomemos

ldquomemoacuteriardquo e ldquotransiccedilatildeordquo em qualquer sentido como nos aprouver e nos veremos forccedilados

a afirmar que a memoacuteria eacute condiccedilatildeo da transiccedilatildeo em cada um dos niacuteveis em que a

apreendamos ndash pois eacute a totalidade da memoacuteria e da duraccedilatildeo que se atualiza em cada um

desses niacuteveis coexistentes entre si Isso equivale a dizer que natildeo haacute transiccedilatildeo sem memoacuteria

na mesma medida em que natildeo haacute memoacuteria sem transiccedilatildeo ndash a ontologia da duraccedilatildeo natildeo

cessa de implicaacute-las ao infinito ndash uma no tempo do devir outra no registro do passado que

o fundamenta e abrindo-o o torna possiacutevel

No interior da Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo a centralidade aparente desse

argumento tatildeo simples contrasta com a dificuldade de conduzi-lo a seu proacuteprio limite

conceitual ndash o que procuramos realizar a partir do bergsonismo e da renovada atualidade

das traduccedilotildees poliacuteticas que ele tem recebido nos uacuteltimos anos Todo exerciacutecio social

poliacutetico e puacuteblico de memoacuteria deveraacute encontrar daqui por diante sua fundamentaccedilatildeo no

aberto e nos devires que apenas a memoacuteria pode liberar Eacute apenas mediatamente que a

memoacuteria satisfaz funccedilotildees cognitivas ou praacuteticas ndash como as de compreender o presente em

funccedilatildeo do passado reformar as instituiccedilotildees purgar violadores de direitos humanos dos

aparatos de Estado etc Essas natildeo passam de transcriccedilotildees intelectuais praacuteticas e poliacuteticas ndash

essenciais sem duacutevida agraves transiccedilotildees como agrave vida em comum ndash de uma necessidade

ontoloacutegica virtual e mais profunda que conviria pressentir

Na medida em que a memoacuteria funda o devir e o abre em uma regiatildeo do atual natildeo

haacute memoacuteria que natildeo se defina em funccedilatildeo da potecircncia que ela encerra para o porvir por

essa razatildeo natildeo deve haver transiccedilatildeo que natildeo se defina em funccedilatildeo do aberto ndash e bem assim

da democracia e dos direitos humanos que o aberto supotildee como suas efetuaccedilotildees estruturais

ndash como natildeo deveraacute haver transiccedilatildeo que natildeo se defina em funccedilatildeo da liberdade e da

memoacuteria ndash em cada um dos seus niacuteveis de coexistecircncia ndash que uma atualizaccedilatildeo poliacutetica do

aberto envolve como uma nuvem de virtuais potentes o bastante para rachar qualquer

cristal de tempo

268

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Toda pesquisa estabelece-se em desafio ao lacunar e ao problemaacutetico Eis o

horizonte de sentido que melhor definiria os esforccedilos que envidamos a fim de contribuir

com a Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo contemporacircnea ndash campo de elaboraccedilatildeo teoacuterica

relativamente recente e por isso mesmo portador de uma undertheorized nature que lhe eacute

constitutiva Nessas linhas esse campo teoacuterico foi interrogado a partir de uma perspectiva

que julgamos ser essencial e definidora da integral de seus horizontes conceituais o

questionamento aberto e radical do sentido da transiccedilatildeo a partir de uma relaccedilatildeo constante

identificada entre seus modernos teoacutericos entre memoacuteria e efetuaccedilatildeo da transiccedilatildeo

Tratou-se pois natildeo apenas de penetrar o territoacuterio movediccedilo variaacutevel e por isso

nem sempre seguro de um campo conceitual e semacircntico em franca e permanente

elaboraccedilatildeo foi preciso engendraacute-lo em seus proacuteprios termos e em seus aspectos

definidores mais gerais Por essa razatildeo foi necessaacuterio que o constituiacutessemos a partir de sua

articulaccedilatildeo geneacutetica com o Direito Internacional dos Direitos Humanos

Nessa oportunidade pocircde-se identificar uma reciacuteproca constitutividade entre o

Direito Internacional dos Direitos Humanos e a Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo que se

definiria em pelo menos dois sentidos (1) Do ponto de vista normativo segundo o qual o

Direito Internacional dos Direitos Humanos determina um quadro deocircntico universal

flexiacutevel delimitando as grandes estruturas geralmente reconhecidas como objetivos

inerentes agrave Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo justiccedila reparaccedilatildeo reformas institucionais e

purgas direito agrave memoacuteria e agrave verdade (2) Do ponto de vista de sua gecircnese histoacuterica

reciacuteproca as experiecircncias transicionais internacionais ndash especialmente do poacutes-Segunda

Guerra ndash constituiacuteram elementos determinantes natildeo apenas da superaccedilatildeo do referencial

estatalista da proteccedilatildeo e promoccedilatildeo dos direitos humanos tais experiecircncias transicionais ndash

que se confundem historicamente com os tribunais de Nuremberg e Toacutequio no acerto de

contas poacutes-Segunda Guerra ndash foram precursoras do estabelecimento de uma base

normativa internacional de promoccedilatildeo e proteccedilatildeo dos direitos humanos ao mesmo tempo

em que constituiacuteam em si mesmas concretizaccedilotildees praacuteticas das primeiras iniciativas

internacionalistas no campo da Justiccedila de Transiccedilatildeo

A determinaccedilatildeo da gecircnese reciacuteproca entre o Direito Internacional dos Direitos

Humanos e a Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo ndash que muito antes de formar um corpo teoacuterico

no qual veio a resultar deve seu nascimento agraves praacuteticas empiacutericas e tateantes de tribunais

269

internacionais e domeacutesticos ndash conduziu-nos a qualificaacute-la a partir dos signos caracteriacutesticos

inerentes aos proacuteprios direitos humanos os paradoxos e os duplos que atravessam por suas

praacuteticas imanentes e gramaacuteticas de resistecircncia democraacutetica Marcada por esses signos a

Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo podia entatildeo ainda nos quadros de uma norma internacional

de transiccedilatildeo delimitada por seus teoacutericos ostentar a qualidade liminar de um direito-entre

regimes enfocando-se seu marco teoacuterico de um ponto de vista predominantemente

estrutural de modo a privilegiar o papel dessa doutrina na delimitaccedilatildeo das transformaccedilotildees

institucionais que devem ser promovidas em contextos de fluxo poliacutetico Nesse terreno

permitimo-nos uma breve incursatildeo em um tema que natildeo constituindo nosso objeto

primordial tem recebido uma atenccedilatildeo cada vez mais intensa dos pesquisadores das

Ciecircncias Poliacuteticas Sociais e Juriacutedicas o caso brasileiro de transiccedilatildeo Com efeito esse

pequeno desvio nos servia para demonstrar concretamente a qualidade liminar dos direitos

de transiccedilatildeo quando compreendidos como processos de longa duraccedilatildeo ainda para colocar

agrave prova as premissas segundo as quais uma norma global internacional sustenta as

operaccedilotildees transicionais em relaccedilatildeo ao desafio por elas lanccedilado agrave continuidade de praacuteticas

instituiccedilotildees e modos de vida e de pensamento forjados sob um regime antidemocraacutetico e

autoritaacuterio

Apenas na medida em que o campo teoacuterico da Justiccedila de Transiccedilatildeo pocircde ser

delimitado em suas linhas mais gerais e imediatamente pragmaacuteticas foi possiacutevel produzir a

excisatildeo temaacutetica ndash e a um soacute tempo problemaacutetica ndash que constituiu o leitmotiv da presente

tese A fim de definir o horizonte de aparecimento da relaccedilatildeo entre memoacuteria e transiccedilatildeo

era necessaacuterio atravessar trecircs etapas demonstrativas (1) prolongar a linha geneacutetica que

atestava a constitutividade reciacuteproca entre o Direito Internacional dos Direitos Humanos e

a Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo derivando o perfil normativo miacutenimo dos direitos agrave

memoacuteria e agrave verdade bem como sua aparente correlaccedilatildeo em face dos objetivos

institucionais transicionais (justiccedila reparaccedilatildeo reformas purgas etc) isso permitiu

entrever ainda de um ponto de vista meramente pragmaacutetico a relaccedilatildeo proacutexima entre o

binocircmio memoacuteria-verdade e a implementaccedilatildeo dos objetivos inerentes agraves transiccedilotildees

democraacuteticas (Capiacutetulo 3 sect 1) (2) determinar de que modo a Teoria da Justiccedila de

Transiccedilatildeo apropriou-se do conceito de memoacuteria nesse sentido foi possiacutevel delimitar os

contornos do conceito de memoacuteria no campo teoacuterico transicional a partir de dois limites

analiacuteticos Trata-se de um conceito de memoacuteria limitado ora a suas funccedilotildees cognitivo-

pragmaacuteticas ora confinado no interior de uma ontologia de tipo negativo que converte a

memoacuteria em representaccedilatildeo do ausente negando-a como regiatildeo do existente (Capiacutetulo 3 sect

270

2) e (3) a partir da constante relaccedilatildeo entre memoacuteria e transiccedilatildeo verificada na literatura da

Justiccedila de Transiccedilatildeo demonstrou-se que natildeo apenas a memoacuteria aparece como conceito

central agraves transiccedilotildees mas que a ela se atribuem potenciais transformativos ou

transcicionais Ao mesmo tempo uma lacuna teoacuterica foi verificada nesse particular jamais

ficava claro como os teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo puderam atribuir potenciais

transicionais agrave memoacuteria Eis aliaacutes a circunstacircncia que justifica a relativa extensatildeo deste

trabalho quando o problema que desafia a pesquisa eacute lacunar significa que ele natildeo estaacute

previamente dado mas precisa ser estabelecido em relaccedilatildeo com o campo de saberes no

qual encontra seu horizonte de emergecircncia Ao mesmo tempo em que a Teoria da Justiccedila

de Transiccedilatildeo elide a interrogaccedilatildeo ldquocomo a memoacuteria pode ser condiccedilatildeo agraves transiccedilotildeesrdquo ou

ldquoem que sentido a memoacuteria pode conter potenciais transicionais transformativosrdquo ela

mesma prenuncia o sentido de sua evoluccedilatildeo teoacuterica em relaccedilatildeo ao conceito de memoacuteria Jaacute

natildeo se trata mais de pensar uma memoacuteria coletiva ou nacional fixa construiacuteda como mera

representaccedilatildeo partilhada constitutiva de identidades de grupo nem mesmo de ceder agraves

tentaccedilotildees de reduzir a memoacuteria agraves lembranccedilas individuais e psicoloacutegicas diante das

recentes descobertas da neurociecircncia acerca dos processos dinacircmicos em que a aquisiccedilatildeo

de memoacuteria e sua evocaccedilatildeo estatildeo implicadas (Capiacutetulo 3 sect 3)

Os objetivos de nossa investigaccedilatildeo ganham sua coloraccedilatildeo a partir de uma questatildeo

que natildeo foi posta ndash mas parece estar em vias de secirc-lo ndash pelos teoacutericos da Justiccedila de

Transiccedilatildeo como conceituar a memoacuteria de um ponto de vista dinacircmico que natildeo a faccedila

retornar aos limites da memoacuteria meramente individual Como explicar ndash epicentro

problemaacutetico de nossa tese ndash os potenciais transformativos da memoacuteria uma vez que ela

natildeo passaria de um conceito tendencialmente representativo e fixista na Teoria da Justiccedila

de Transiccedilatildeo

A fim de responder a essas questotildees nossa hipoacutetese principal eacute a de que seria

necessaacuterio estabelecer uma integraccedilatildeo das diversas camadas de memoacuteria descritas pelos

teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo sob a epiacutegrafe de um conceito de memoacuteria mais

compreensivo alicerccedilado sobre uma ontologia positiva Assim abandonamos o ponto de

vista estaacutetico e estrutural que caracterizava o olhar da Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo sobre

o problema em proveito de uma perspectiva dinacircmica na qual se pudesse apreender a

gecircnese dos potenciais transformativos da memoacuteria integrando os conceitos heterogecircneos

de memoacuteria ao conceito bergsoniano de memoacuteria A essa elaboraccedilatildeo dedicamos todo o

plexo conceitual articulado a partir da filosofia de Henri Bergson sem descurar da

271

literatura secundaacuteria que se dedicou modernamente a esclarecer pontos esfumados no

interior do bergsonismo (Partes II e III)

No interior de sua ontologia virtual buscamos demonstrar progressivamente a

consistecircncia real do passado evitando confundir ser e ser-presente (Capiacutetulo 4) atingimos

a elaboraccedilatildeo de um conceito de memoacuteria elementar dinacircmica duracional e impessoal ndash

liberada dos imperativos individuais ndash demonstrando o sentido de afirmaacute-la como

fundamento do tempo (Capiacutetulo 5) Assim procuramos demonstrar de que maneira o

conceito bergsoniano de memoacuteria poderia constituir uma resposta possiacutevel ao apelo por

uma memoacuteria dinacircmica e ao mesmo tempo natildeo meramente psicoloacutegica ou individual

que proveacutem da Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo Nesse sentido era inerente agrave demonstraccedilatildeo

do conceito refazer um longo percurso pelo qual Bergson chega agrave siacutentese de dois registros

ontoloacutegicos diversos ndash o atual e o virtual ndash iniciando-o pela demonstraccedilatildeo do sentido e da

realidade do tempo (Capiacutetulo 4 sect 2) bem como da realidade do passado (Capiacutetulo 4 sect 3)

de forma que se pudesse apresentar o gesto bergsoniano de imanecircncia em toda a sua

extensatildeo a duraccedilatildeo como um tempo de coexistecircncia entre registros ontoloacutegicos

pertencentes a uma mesma estrutura de realidade (Capiacutetulo 5 sectsect 1 e 2)

Tudo isso foi necessaacuterio para demonstrar de que forma Bergson estabelece a

imprescindibilidade da memoacuteria agrave transiccedilatildeo real236

ndash compreendida nesse ponto como

transiccedilatildeo ontoloacutegica como diferenccedila e como variaccedilatildeo nos registros do virtual e do atual

Em outras palavras era preciso demonstrar detalhadamente de que maneira uma memoacuteria

ontoloacutegica elementar e impessoal constitui a condiccedilatildeo para abrir o tempo presente o

registro do atual ao devir (Capiacutetulo 5 sect 3) Chegaacutevamos assim ao nuacutecleo ontoloacutegico no

qual todas as outras camadas de memoacuteria vecircm envolver-se

Eacute apenas na medida em que estabelecemos um fundo ontoloacutegico no qual memoacuteria

presente e devir (transiccedilatildeo) encontram-se rearticulados de acordo com uma temporalidade

de coexistecircncias ndash assegurada em uacuteltima anaacutelise por uma memoacuteria virtual elementar e

impessoal que funda a coexistecircncia de todos os fluxos bem como lhes doa seus diferentes

niacuteveis de realidade ndash que poderiacuteamos retornar progressivamente ao campo de interesse

mais imediato das doutrinas transicionais

Les Deux Sources de la Morale et de la Religion eacute o campo privilegiado em que

Bergson reencontraraacute sob novas determinaccedilotildees problemaacuteticas morais sociais e poliacuteticas

236

Interrogaccedilatildeo como vimos muito cara aos teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo ndash embora jamais detalhada em

sua dinacircmica constituinte ndash na medida em que as praacuteticas transicionais natildeo satildeo meramente formais mas

alteram a ordem do real

272

o eacutelan vital ndash potecircncia criadora que coincide como vimos com a duraccedilatildeo e a vida

consistente em uma gigantesca memoacuteria cosmoloacutegica virtual e vital Eis a fonte

bergsoniana da evoluccedilatildeo das formas de vida entre as quais encontramos os elementos

instituais adormecidos a inteligecircncia e as vagas franjas de intuiccedilatildeo que permitem

determinar a forma de vida inerente agrave espeacutecie humana

Eacute em funccedilatildeo dessa forma de vida definida por seus delineamentos bioloacutegicos que

Bergson explicaraacute as tendecircncias de fechamento que rondam o social a partir do vital eacute

tambeacutem a partir de uma pequena fenda no ciacuterculo da espeacutecie ndash as franjas de intuiccedilatildeo ndash que

se poderaacute constituir o aberto natildeo apenas como o sentido da superaccedilatildeo do proacuteprio homem

em seus horizontes antropoloacutegicos especiacuteficos e bioloacutegicos mas engendrar outras formas

de vida e de sociabilidade poliacutetica na contracorrente das tendecircncias naturais ao

fechamento agrave guerra e agrave inteligecircncia

A memoacuteria no sentido ontoloacutegico ou do proacuteprio eacutelan vital natildeo cessa de ser

evocada como o esteio de todo potencial transformativo A um soacute tempo ontoloacutegica e

virtual dinacircmica e natildeo-psicoloacutegica ela eacute a fonte originaacuteria que faz passar um pouco de

tempo indeterminaccedilatildeo e liberdade pelo interior das formas de vida que como o proacuteprio

advento da evoluccedilatildeo provaria natildeo estatildeo dadas todas de uma vez nem de uma vez por

todas Ontologicamente fora do possiacutevel ndash que natildeo passa de um olhar retrospectivo e

impotente sobre o jaacute realizado ndash a memoacuteria se define como memoacuteria que nunca foi

presente isto eacute memoacuteria para o futuro memoacuteria para o devir potecircncia ontoloacutegica

transicional Dela originam-se a transiccedilatildeo real e o movimento eacute artificial imaginaacute-los sem

referecircncia agrave temporalidade real Em uacuteltima anaacutelise suas virtualidades sustentam a integral

da realidade e a coexistecircncia dos fluxos atuais Eis o ponto em que o aspecto ontoloacutegico da

memoacuteria ao reabrir a potecircncia dos devires daacute a ver seu conteuacutedo imediatamente poliacutetico ndash

se por poliacutetica compreendermos as potecircncias de variaccedilatildeo das formas de vida em comum

modos de pensamento e sensibilidade

A memoacuteria eacute profundamente poliacutetica porque eacute tudo o que resta quando o atual

parece obturar o possiacutevel Quando as incandescecircncias do aberto parecem esfriar e fundir-se

novamente a um estado fechando-se sobre si mesmas ndash quando nenhuma alma parece

abrir-se na direccedilatildeo profunda do vital ndash resta apenas remexer as cinzas da memoacuteria das

personalidades excepcionais procurando fazer rescender o perfume do tempo O gesto

distraiacutedo ndash mas nem por isso inerme ou metafoacuterico ndash indica a potecircncia de ressonacircncia de

uma intuiccedilatildeo que jaacute natildeo eacute atual e que definindo-se por sua virtualidade pode reabrir o

porvir a multidotildees inteiras Eis o que provava certa fenomenologia bergsoniana da

273

revoluccedilatildeo que se perguntava ldquopor que decidimos certo dia que jaacute natildeo era mais toleraacutevel

morrer de fomerdquo

Se a alma aberta nunca estaacute dada de antematildeo pela natureza mas implica um esforccedilo

em um sentido determinado uma sociabilidade em profundidade (que chamamos

comunidade de eus profundos) e uma teoria da emoccedilatildeo criadora auxiliaram-nos a explicar

como o incendiaacuterio se propaga de alma em alma como uma intuiccedilatildeo miacutestica se comunica

em profundidade racha a superfiacutecie verminal dos eus sociais e coloca em xeque suas

formas de vida individuais e intersubjetivas (Capiacutetulo 6 sect 2 e sect 3)

O miacutestico eacute a prova atleacutetica de um contato possiacutevel com a vida em profundidade

Independente de todo conteuacutedo contingencial de crenccedila ele eacute definido como subjetividade

impessoal e nomaacutedica na medida em que toma contato com o princiacutepio criador e pode

fundar uma moralidade universal e concreta do aberto (Capiacutetulo 6 sect 3) O miacutestico resulta

como vimos (Capiacutetulo 6 sect 2) de duas linhas que se entrecruzam um salto inumano para

fora da espeacutecie (e do ciacuterculo antropoloacutegico que tende agrave inteligecircncia ao fechado agrave guerra e

agrave sociabilidade superficial) e uma comunidade de eus profundos ndash atmosfera em que uma

emoccedilatildeo criadora se expande e difunde com um potencial incendiaacuterio inconsciente e

virtual O miacutestico eacute portador de um amor ao Todo incapaz de conter-se nos ciacuterculos

preacutevios (amor agrave famiacutelia ao grupo agrave paacutetria) Esse amor absoluto que supera mesmo a

humanidade eacute o destino potencial encerrado pelo advento da democracia e dos direitos

humanos esse amor eacute o que estaacute sempre em jogo nas formas poliacuteticas

Se a democracia e os direitos humanos tendem ao aberto agrave construccedilatildeo de uma

moralidade concreta antinatural antagonista do fechado (Capiacutetulo 6 sect 1) eacute porque satildeo

frutos desses saltos miacutesticos inumanos (ou super-humanos) para fora das constriccedilotildees

bioloacutegicas definidas pelo ciacuterculo da espeacutecie Instituiccedilotildees democraacuteticas constituiratildeo nesse

sentido garantias que ao contraacuterio de representarem um refechamento do aberto fazem

permanecer aberto e fundam uma moral concreta universal (Capiacutetulo 6 sect 3) Do ponto de

vista do bergsonismo insistimos que estas seriam as metas de toda mutaccedilatildeo estrutural ou

institucional promovida por transiccedilotildees democraacuteticas abrir o fechado combater o

fechamento e perseverar no aberto isto eacute fornecer condiccedilotildees estruturais para potenciar as

formas de vida auxiliando que se precipitem no aberto Ama et fac quod vis

A relaccedilatildeo ontoloacutegica entre memoacuteria e devir assegura como demonstramos ao longo

da argumentaccedilatildeo (Partes II e III) todos os demais niacuteveis em que memoacuteria e transiccedilatildeo

podem ser apreendidos pela Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo ndash mesmo os niacuteveis mais

simboacutelicos ou pragmaacuteticos mesmo os conceitos mais psicoloacutegicos ou representativos

274

Nessa medida a memoacuteria tal como eacute conceituada pelo bergsonismo natildeo apenas condiz

com um conceito dinacircmico (registro contiacutenuo e incessante do fluir duracional) e natildeo-

individual ou psicoloacutegico mas integra outras transcriccedilotildees possiacuteveis no acircmbito do conceito

de memoacuteria como seus representantes de niacutevel psicoloacutegico simboacutelico ou pragmaacutetico No

limite as memoacuterias-lembranccedila individuais natildeo passam de um representante de niacutevel

psicoloacutegico e individual de uma memoacuteria virtual impessoal ontoloacutegica e mais profunda a

memoacuteria coletiva tomada em sentido dinacircmico soacute aparece como representaccedilatildeo da

identidade de grupos na medida em que seja apreendida da perspectiva de seu fechamento

ndash e bem o sabemos que o amor agrave paacutetria agrave comunidade ou agrave famiacutelia nada mais satildeo do que

representantes dessa tendecircncia natural ao fechamento social que Bergson combateu

Por essa razatildeo por mais heterogecircneos pragmaacuteticos ou cognitivos que sejam os

contornos do conceito de memoacuteria no campo teoacuterico da Justiccedila de Transiccedilatildeo o problema

que as transiccedilotildees poliacuteticas interpelam a partir da memoacuteria eacute sempre ldquocomo efetuar o

abertordquo Ainda que as narrativas e fabulaccedilotildees introduzam ndash por comodidade ou convenccedilatildeo

ndash um magical switch pelo qual o redentor sublima o traacutegico pudemos compreender em

profundidade que toda forma de exerciacutecio da memoacuteria em qualquer niacutevel ndash embora nem

sempre suficiente para explicar a dinacircmica de seus potenciais transicionais ndash constitui um

gesto potencial pelo qual remexendo as cinzas do passado poderemos colocar novamente

sob o influxo do aberto as formas de vida e pensamento individuais sociais e poliacuteticos na

contracorrente de sua estagnaccedilatildeo em uma eacutetica da violecircncia e da repeticcedilatildeo obsedante de

um passado antidemocraacutetico que resultam de seu abandono agraves pulsotildees naturais de

fechamento e de guerra Eis em que sentido a memoacuteria ndash ponto de fissura pelo qual o

aberto e a proacutepria duraccedilatildeo se infiltram ndash longe de assegurar pura e simplesmente a natildeo-

repeticcedilatildeo torna-se a sua condiccedilatildeo ontoloacutegica imprescindiacutevel

Se devecircssemos resumir tudo em uma palavra a memoacuteria eacute tudo o que resta quando

o possiacutevel jaacute natildeo socorre com suas miragens o que um presente tem de intoleraacutevel Todo

potencial poliacutetico encerrado pela fabulaccedilatildeo da memoacuteria em todo e qualquer niacutevel reside

nessa virtugrave obscura agrave inteligecircncia mas capaz de abrir o fechado de combatecirc-lo na

experiecircncia concreta e de perseverar no aberto Se natildeo haacute transiccedilatildeo sem memoacuteria eacute porque

eacute de seu impulso ontoloacutegico e vital em termos muito compreensivos que procede toda

transiccedilatildeo genuiacutena eacute de seu fundo virtual e ao mesmo tempo real que suas linhas de

efetuaccedilatildeo procedem e que derivam outros devires A insistecircncia da memoacuteria no real

equivale em tudo agrave persistecircncia sombria inaparente e selvagem das potecircncias inorgacircnicas

de uma vida

275

REFEREcircNCIAS

A) Documentos citados sobre Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo e Direito Internacional

dos Direitos Humanos

ABRAtildeO Paulo A lei de anistia no Brasil as alternativas para a verdade e a justiccedila

Acervo v 24 n 1 janjun 2011 Rio de Janeiro 2011 p 119-138

_____ PAYNE Leigh A TORELLY Marcelo D Anistia na era da responsabilizaccedilatildeo o

Brasil em perspectiva internacional e comparada Comissatildeo de Anistia Ministeacuterio da

Justiccedila Brasiacutelia 2011

_____ _____ _____ A anistia na era da responsabilizaccedilatildeo contexto global comparativo

e introduccedilatildeo ao caso brasileiro In ABRAtildeO Paulo PAYNE Leigh A TORELLY

Marcelo D Anistia na era da responsabilizaccedilatildeo o Brasil em perspectiva internacional e

comparada Comissatildeo de Anistia Ministeacuterio da Justiccedila Brasiacutelia 2011 p 18-31

_____ TORELLY Marcelo D As dimensotildees da Justiccedila de Transiccedilatildeo no Brasil a eficaacutecia

da Lei de Anistia e as alternativas para a verdade e a justiccedila In _____ PAYNE Leigh A

TORELLY Marcelo D Anistia na era da responsabilizaccedilatildeo o Brasil em perspectiva

internacional e comparada Comissatildeo de Anistia Ministeacuterio da Justiccedila Brasiacutelia 2011 p

212-248

_____ GENRO Tarso Os direitos da transiccedilatildeo e a democracia no Brasil estudos sobre

justiccedila de transiccedilatildeo e teoria da democracia Coleccedilatildeo Justiccedila e Democracia v 1 Belo

Horizonte Editora Foacuterum 2012

ABrsquoSAacuteBER Tales Brasil a ausecircncia significante poliacutetica (uma comunicaccedilatildeo) In

SAFATLE Vladimir TELES Edson (Orgs) O que resta da ditadura a exceccedilatildeo

brasileira Satildeo Paulo Boitempo 2010 p 187-202

ALMEIDA Guilherme Assis de Direitos Humanos e natildeo-violecircncia Satildeo Paulo Atlas

2001

_____ A Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos de 1948 matriz do Direito

Internacional dos Direitos Humanos In ALMEIDA Guilherme Assis de PERRONE-

MOYSEacuteS Claacuteudia (Orgs) Direito internacional dos direitos humanos Satildeo Paulo Atlas

2002 p 13-23

_____ PERRONE-MOYSEacuteS Claacuteudia (Orgs) Direito internacional dos direitos

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AMBOS Kai The legal framework of transitional justice a systematic study with a

special focus on the role of the ICC In AMBOS et al (eds) Building a future of peace

and justice studies on transitional justice peace and development Berlin Heidelberg

Springer-Verlag 2009 p 19-103

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2009

ANISTIA INTERNACIONAL Informe 2010 o estado dos direitos humanos no mundo

New York 2010

_____ Informe 2011 o estado dos direitos humanos no mundo New York 2011

_____ Informe 2012 o estado dos direitos humanos no mundo New York 2012

_____ Informe 2013 o estado dos direitos humanos no mundo New York 2013

ARANTES Paulo Eduardo 1964 o ano que natildeo terminou In SAFATLE Vladimir

TELES Edson (Orgs) O que resta da ditadura a exceccedilatildeo brasileira Satildeo Paulo

Boitempo 2010 p 205-236

AVELAR Idelber Alegorias da derrota A ficccedilatildeo poacutes-ditatorial e o trabalho do luto na

Ameacuterica Latina Traduccedilatildeo de Saulo Gouveia Belo Horizonte Editora da UFMG 2003

BARSALOU Judy BAXTER Elizabeth The urge to remember the role of memorials in

social reconstruction and transitional justice United States Institute of Peace Stabilization

and Reconstruction Series No 5 January 2007 Disponiacutevel em lt

httpwwwusiporgfilesresourcessrs5pdfgt Acesso em 31mai2013

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Paris Presses Universitaires de France 2012

_____ Bergson ou os dois sentidos da vida Traduccedilatildeo de Aristoteles Angheben Predebon

Satildeo Paulo FAPUNIFESP 2011

_____ Ce qui est vital dans LrsquoEacutevolution Creacuteatrice In WORMS Freacutedeacuteric FAGTO-

LARGEAULT Anne (Egraveds) Annales bergsoniennes IV LrsquoEacutevolution creacuteatrice 1907-2007

eacutepistemologie et meacutetaphysique Paris Presses Universitaires de lsquoFrance 2009 p 641-652

_____ Introduction agrave Matiegravere et Meacutemoire de Bergson Suivie drsquoune bregraveve introduction

aux autres livres de Bergson Paris Presses Universitaires de France 1997

_____ Preacutesentation In _____ (Eacuted) Annales bergsoniennes V Bergson et la politique de

Jauregraves agrave aujourdrsquohui Paris Presses Universitaires de France 2012 p 29-34

ZANFI Caterine Le sujet en socieacuteteacute chez Bergson du moi superficiel agrave la socieacuteteacute

ouverte In WORMS Freacutedeacuteric (Eacuted) Annales bergsoniennes V Bergson et la politique de

Jauregraves agrave aujourdrsquohui Paris Presses Universitaires de France 2012 p 223-243

C) Textos citados publicados em jornais perioacutedicos e sites

BRUNO Caacutessio GOacuteES Bruno Comemoraccedilatildeo de militares termina em pancadaria no

centro do Rio Rio de Janeiro 29032012 Disponiacutevel em

lthttpogloboglobocompaiscomemoracao-de-militares-termina-em-pancadaria-no-

centro-do-rio-4446158ixzz1qXWTOUrNgt Acesso em 15mai2013

COLETIVO QUEM Quem torturou Disponiacutevel em

lthttpquemtorturouwordpresscomgt Acesso em 15032013

EFE Paiacuteses da ONU recomendam fim da Poliacutecia Militar no Brasil Jornal Folha de Satildeo

Paulo 30 mai 2012 Cotidiano Disponiacutevel em

lthttpwww1folhauolcombrcotidiano1097828-paises-da-onu-recomendam-fim-da-

policia-militar-no-brasilshtmlgt Acesso em 13 mai 2013

LEVANTE POPULAR DA JUVENTUDE Levante popular da juventude Disponiacutevel em

lt httpwwwlevanteorgbrgt Acesso em 15032013

WEISSHEIMER Marco Aureacutelio Levante Popular da Juventude quer renovar praacuteticas da

esquerda Carta Maior Satildeo Paulo 22102012 Disponiacutevel em

lthttpwwwcartamaiorcombrtemplatesmateriaMostrarcfmmateria_id=21117gt

Acesso em 15mai2013

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