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A Evolução de um Pianismo Eclético: Gilberto Mendes e o Uso da Citação Musical MÁRcIa BEZERRA 1. Introdução o nome de Gilberto Mendes (n. 1922) tomou-se público nos anos 60, período em que ele esteve ligado ao Grupo Música Nova. Naquela época, a produção do compositor refletiria o seu engajamento com um projeto de renovação da linguagem musical; a Sua interação com os poe- tas concretos o consagraria (ainda que de modo pouco ortodoxo) como um dos expoentes da literatura para conjuntos corais deste século. Na década de 80, Gilberto Mendes surpreendeu' tanto seus defensores quantos seus críticos mais contundentes ao abandonar o experimentalismo radical, voltando sua atenção para a música instrumental. Sem dúvida, naquela altura todos desconheciam sua capacidade para "escrever música", no sentido mais convencional do termo. A recente redescoberta das obras de juventude do compositor (can- ções e peças para piano, na sua maioria) tem-nos permitido compreen- der de maneira mais precisa sua trajetória criativa e, ao mesmo tempo, reavaliar sua contribuição para a música contemporânea. Após os reci- tais de José Eduardo Martins no XXVII Festival Música Nova (1991), a defesa de duas teses universitárias e o surgimento de diversas gravações nos últimos anos, a obra pianística de Gilberto Mendes deixou de ser considerada como um item secundário e tem sido estudada como parte fundamental da sua produção. Este artigo analisa duas das principais peças para piano do com- positor santista: o Allegro da Sonatina Mozartiana (1951) e Vento Noroeste (1982). A seleção de obras de fases tão distintas tem como

Mendes Marcio Bezerra

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  • A Evoluo de um Pianismo Ecltico:Gilberto Mendes e o Uso da Citao Musical

    MRcIa BEZERRA

    1. Introduo

    o nome de Gilberto Mendes (n. 1922) tomou-se pblico nos anos60, perodo em que ele esteve ligado ao Grupo Msica Nova. Naquelapoca, a produo do compositor refletiria o seu engajamento com umprojeto de renovao da linguagem musical; a Sua interao com os poe-tas concretos o consagraria (ainda que de modo pouco ortodoxo) comoum dos expoentes da literatura para conjuntos corais deste sculo. Nadcada de 80, Gilberto Mendes surpreendeu' tanto seus defensores quantosseus crticos mais contundentes ao abandonar o experimentalismo radical,voltando sua ateno para a msica instrumental. Sem dvida, naquelaaltura todos desconheciam sua capacidade para "escrever msica", nosentido mais convencional do termo.

    A recente redescoberta das obras de juventude do compositor (can-es e peas para piano, na sua maioria) tem-nos permitido compreen-der de maneira mais precisa sua trajetria criativa e, ao mesmo tempo,reavaliar sua contribuio para a msica contempornea. Aps os reci-tais de Jos Eduardo Martins no XXVII Festival Msica Nova (1991), adefesa de duas teses universitrias e o surgimento de diversas gravaesnos ltimos anos, a obra pianstica de Gilberto Mendes deixou de serconsiderada como um item secundrio e tem sido estudada como partefundamental da sua produo.

    Este artigo analisa duas das principais peas para piano do com-positor santista: o Allegro da Sonatina Mozartiana (1951) e VentoNoroeste (1982). A seleo de obras de fases to distintas tem como

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    principal meta distinguir procedimentos composicionais recorrentes- os quais so responsveis pela definio de um estilo pessoal -,alm de traar o amadurecimento na manipulao de uma tcnica quedistingue particularmente o compositor: a citao musical.

    Em parte, as anlises das referidas peas foram previamente apre-sentadas em minha tese doutoral A Unique Brazilian Composer: AStudy ofthe Music ofGilberto Mendes Through SeZected Piano Pieces(University of Arizona, 1998). Na concluso deste artigo, proponhouma confrontao indita entre as duas obras, com o intuito de apro-fundar a discusso sobre a evoluo tcnica e esttica do repertriopianstico do Gilberto Mendes, inserindo-o no contexto mais amploda sua criao musical.

    2. Sonatina Mozartiana

    A Sonatina Mozartiana constitui o primeiro ensaio de GilbertoMendes na grande forma e o seu movimento inicial, Allegro, podeser considerado como o ponto culminante da fase de formao do com-positor. Caracterizada pelo autodidatismo e por uma certa solidoartstica - j que as peas desse perodo permaneceriam inditas pormuitas dcadas -, podemos observar nesta fase uma aderncia super-ficial esttica nacionalista, motivada, sobretudo, por razes ideol-gicas, J no que concerne aos aspectos tcnicos, as obras desse perodoprenunciam a originalidade dos processos composicionais de Gilber-to Mendes, graas, sobretudo, ao uso da citao musical.

    Combinando elementos nacionalistas dentro de um esquema for-mal que segue risca o Allegro da Sonata em D Maior, K.545, deMozart, o primeiro movimento da Sonatina Mozartiana uma par-dia bem-humorada, onde cada passo dado pelo compositor austraco seguido. O primeiro tema do movimento tem desenho meldico bas-tante similar ao do modelo original; apenas o baixo de Alberti subs-titudo por um acompanhamento sincopado que, combinado com ocarter modal da melodia, confere obra um certo clima brasileiro(exemplos 1 e 2).

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    Exemplo 1. Wolfgang Amadeus Mozart - Sonata em D Maior, K.545: 10 tema(compassos 1-4).

    AlIegroir

    ( ~ - --- -(J- - ~ - :~ I ..

    1\ - - .- - .--'!""'1 - .-( ! o.,-J .. .. . .. ... .. -.J - ..

    Exemplo 2. Gilberto Mendes - Sonatina Mozartiana: 10 tema (compassos 1-4).

    AlIegro

    (1\ - .tl ~ I

    P dolce

    1\ - -( --tl : .' -r ..~A ponte para o segundo tema recebe tratamento similar, mas na

    Sonatina as escalas so escritas para as duas mos, em intervalo de sextasparalelas. Estas, ao invs de conduzirem diretamente cadncia, tomamum curioso desvio em ritmo de tango brasileiro (exemplos 3 e 4).

    Exemplo 3. Wolfgang Amadeus Mozart - Sonata em D Maior, K.545: ponte parao 2" tema (compassos 5-6).

    #-

    -~

    ... -

    ....

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    Exemplo 4. Gilberto Mendes - Sonatina Mozartiana: ponte para o 2 tema (compas-sos 11-14).

    fi ,~-----........ - ......,

    ItJ --- - L.!' '-----"-

    ---- ... ~fi ---- - /_# ~{tJ ~ . . ."-J~A figurao que introduz o segundo tema temperada com as tpicas

    sncopes (exemplos 5 e 6). Este novo tema recebe tratamento similar aodo primeiro - acompanhamento sincopado e melodia com inflexo modal(exemplos 7 e 8 na pgina seguinte).

    Exemplo 5. Wolfgang Amadeus Mozart - Sonata em D Maior, K.545: introduoao 2 tema (compasso 13).

    Exemplo 6. Gilberto Mendes - Sonatina Mozartiana: introduo ao 2 terna (compas-sos 22-23).

  • Revista Msica, So Paulo, v. 9 e 10, pp. 165-181, 1998-1999 169

    Exemplo 7. Wolfgang Amadeus Mozart - Sonata em D Maior, K.545: 2 tema(compassos 14-15).

    ~ ---o --------r- r- . ..~.. ..( A

    t.J

    Exemplo 8. Gilberto Mendes - Sonatina Mozartiana: 2 tema (compassos 26-29).

    o paralelismo com o modelo mozartiano tem continuao no de-senvolvimento, onde a seqncia em mos alternadas tambm reproduzida, uma vez mais com as caractersticas sncopes (exemplos 9e 10).

    Exemplo 9. Wolfgang Amadeus Mozart - Sonata em D Maior, K.545: seqncia(compassos 36-38).

    " ~JI.-~:f!:..tt-. .. f!1I-.

    \ ~ ~

    (., .- -- ~:

    ~ .., . ... ..,; .. r~

  • 170 Revista Msica, So Paulo, v. 9 elO, pp. 165-181, 1998-1999

    Exemplo 10. Gilberto Mendes: Sonatina Mozartiana: seqncia (compassos 58-61).

    Precedendo a recapitulao, Mendes insere uma inesperada citaoda Inveno em L Menor, BWV 784, de Bach (exemplos 11 e 12). Nacoda, uma figurao sincopada repetida diversas vezes, concluindo omovimento em clima de bom humor (exemplo 13).

    Exemplo l l . Johann Sebastian Bach =Inveno em L Maior, BWV 784 (compas-sos 1-2).

    Exemplo 12. Gilberto Mendes - Sonatina Mozartiana: ponte para a recapitulao(compassos 90-93).

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    Exemplo 13. Gilberto Mendes - Sonatina Mozartiana: coda (compassos 150-153) .

    -- ...--::---------" ~ ~(tJ .. .. .. ..

    mf

    ( ::J. .

    ~:J. .

    ~

    Apesar de se constituir claramente em "ensaio de estudante", esteprimeiro movimento da Sonatina j apresenta diversas caractersticascomuns s da maturidade de Gilberto Mendes. Entre elas, a prefernciapor linhas meldicas ascendentes, a presena de passagens repetitivasno-direcionais e o uso da citao musical como ferramenta fundamen-tal do processo criativo. Este ltimo elemento, por ser o responsvelpelo carter singular da obra do compositor, merece ser analisado maisdetalhadamente.

    O primeiro experimento de Gilberto Mendes com citao musicalocorreu em 1947, na Cano da Rssia (Pequeno lbum para Crian-as). Nesta miniatura para piano, que tem como modelo o Preldio Op.28 n" 6 de Chopin, j podemos observar uma caracterstica comum scitaes em obras posteriores: as peas escolhidas como modelo perten-cem, em sua grande maioria, ao repertrio do instrumento para o qual anova obra est sendo escrita. Tambm tpico o fato de que, mesmo nascitaes visualmente mais exatas, a fonte original pouco audvel, jque s a textura e a estrutura rtmica originais so reproduzidas, rece-bendo as alturas sempre alteraes substanciais 1.

    Inicialmente, este uso de "modelos" em algumas obras tinha umarazo prtica: o repertrio bsico constitua o nico guia a ser usado

    1. Como podemos observar, o uso do termo citao pouco apropriado no caso damsica de Gilberto Mendes. O prprio compositor j me expressou a sua prefernciapor paronomsia, que tampouco expresso completamente oportuna. Pardia, no sen-tido utilizado pela msica da renascena, seria a nomenclatura que mais se aproximaria;porm, devido s outras conotaes que apresenta, descarto-a em favor de citao, em-bora consciente de suas limitaes.

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    pelo jovem autodidata nas suas incurses criativas. Muito provavelmente,ele ignorava o ineditismo e a originalidade desta maneira de escrever.Na verdade, no seu isolamento artstico, Gilberto Mendes estava forjan-do as bases de uma linguagem musical prpria, completamente alheia squerelas ideolgicas entre nacionalistas e cosmopolitistas, to caracte-rsticas daquele perodo. As reaes no tardariam a se manifestar.

    Apesar de a Sonatina Mozartiana ter permanecido indita at a suaredescoberta pelo pianista e musiclogo Jos Eduardo Martins (a quemfoi tardiamente dedicada) nos anos oitenta, o compositor tentou divulg-Ia no pequeno crculo de msicos - ligados em sua maioria ao PartidoComunista - ao qual tinha acesso. Uma das poucas pessoas a examinara Sonatina (alm de algumas das Peas para Piano) na poca da suacomposio foi a pianista Anna Stella Schic, que, segundo o compositor:"desaprovou solenemente (ela era comunista, por essa poca) o meudecadentismo cosmopolita; sa de sua casa com a sensao de ter sidoreprovado com nota zero'". O motivo para tal condenao de fcilcompreenso: os procedimetnos tcnicos pouco convencionais, oecletismo das fontes de inspirao e, principalmente, o uso exageradode sncopes em diversas passagens, conferem Sonatina Mozartianauma qualidade irnica, que a transforma no s em uma pardia deMozart, mas do nacionalismo brasileiro em geral. A pianista parece tercaptado nesta ironia um sintoma da falta de afinidade musical do com-positor com a esttica nacionalista, da qual, de fato, desligar-se-ia eleem breve.

    3. Vento Noroeste

    Ao contrrio da Sonatina Mozartiana, Vento Noroeste foi com-posta quando Gilberto Mendes j havia adquirido notoriedade no ce-nrio musical internacional. No Brasil, seu nome ainda estava ligados vanguardas mais radicais e ao experimentalismo de composiescomo Cidade (1964), Vai e Vem (1969) e Santos Football Music(1969). Vento Noroeste - pea tpica da fase atual do compositor, ca-

    2. Gilberto Mendes, Uma Odissia Musical: dos Mares do Sul Elegncia PoplArt Dco, So Paulo, Editora da Universidade de So Paulo e Editora Giordano, 1994,p.53.

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    racterizada pelo retomo msica instrumental - foi sua primeira obrapara piano aps um hiato de vinte anos (a pea anterior foi Msicapara Piano n 1 de 1962).

    At o presente, Vento Noroeste o mais complexo exemplar dorepertrio pianstico de Gilberto Mendes. Nesta obra, dedicada aopianista Caio Pagano, o compositor utiliza, de maneira brilhante,muitos dos elementos presentes em peas de fases anteriores, princi-palmente o uso de passagens repetitivas (denotando, agora, influn-cia do minimalismo), preferncia por temas meldicos ascendentes euso persistente de citaes musicais. Em Vento Noroeste, os fragmen-tos utilizados pelo compositor so tirados do repertrio pianstico ro-mntico, particularmente dos Estudos e Preldios de Chopin. Embo-ra haja um grande nmero de citaes, elas so integradas obraatravs do uso de agregados de doze tons, distribudos dentro dumaestrutura formal bem delineada.

    Entre os principais motivos de Vento Noroeste, dois so baseadosem citaes (motivos I e I1I). Ambos so derivados de peas de Chopin:o primeiro, do Estudo Op. 25 n 6 (exemplos 14 e 15), enquanto o se-gundo baseado no Estudo Op. 25 n? 1 (exemplos 16 e 17).

    Exemplo 14. Frdric Chopin - Estudo Op. 25 n 6 (compassos 1-3).

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    Exemplo 15. Gilberto Mendes - Vento Noroeste: motivo I (pgina 2)3

    sottovoce

    (fi -tJ

    (;: I I ... :- I~ * ~

    Exemplo 16. Frdric Chopin - Estudo Op. 25 n 1 (compassos 1-2).

    Allegro sostenutoJ=!().I

    p

    Exemplo 17. Gilberto Mendes - Vento Noroeste: motivo III (pgina 11).

    sostenuto,':00 r::::~-',-3,

    (tJmp

    (_n

    ~ LUL.:::3- L.3......J1'W.

    ~J u..J1'W.

    3. Na falta de compassos, indicamos O nmero das pginas dos exemplos musicaisde Vento Noroeste (aqui apresentada na verso revisada de 1984).

  • (A JI I! 1..1 1 1 1 ..J

    .J r ! r J 1 ~ J(

    .. ,.. .- ..- .-:.~ r'

    ~L-3-=:J- t.:::"3'::::T-'

    ~. ==-==- ==-==--

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    Alguns dos motivos secundrios tambm so baseados em peas deChopin, mais especificamente nos Preldios Op. 28 nOS8 e 5 (exemplos18 a 21).

    Exemplo 18. Frdric Chopin - Preldio Op. 28 n 8 (compasso 1).

    Molto agitato

    Exemplo 19; Gilberto Mendes - Vento Noroeste: motivo secundrio (pgina 11).

    molto agitato __ ------------------ __-- -~,JAP ~ ,.~~ .

    ~~i~0 ~Id!3 rL..:.::3----J ~~. *~. *~. '*

    Exemplo 20. Frdric Chopin - Preldio Op. 28 n" 5 (compassos 1-4).

    Allegro molto --- JI

    "J *~ *::::J7 * '---' #.~ ..

    (~ ~ e: e: e:

    :

    ~*~.

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    Exemplo 21. Gilberto Mendes - Vento Noroeste: motivo secundrio (pgina 14).

    parte dos elementos tomados do romantismo, Gilberto Mendestambm utiliza procedimentos impressionistas, tais como o uso de har-monia quartal e escala de tons inteiros (como no material meldico doprimeiro motivo, ex. 15) e, mais obviamente, em uma citao dos Jar-dins sous ia pluie de Debussy (exemplos 22 e 23).

    Exemplo 22. Claude Debussy - Jardins sous Ia pluie (compassos 1-2).

    Net et Vir

    ~,. .. ~ ~.,. ~ !:#!f.

    ( :Fbdd :::::bd ::""! d :::~::::: ::: :::bJ ::::::bd~i::== ::::

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    Exemplo 23. Gilberto Mendes - Vento Noroeste: motivo secundrio (pgina 17).-

    '""'1lfi ....-I ~ . . . I ~. ~pp

    II III ,. IH,. 1#,4I :

    '.1M. '.1M. '.1M.

  • Revista Msica, So Paulo, v. 9 e 10, pp. 165-181. 1998-1999 177

    Conforme mencionado acima, a principal ferramenta para aintegrao dessas vrias citaes na obra o uso do agregado de dozetons. A maioria dos motivos conectada atravs de agregados co-muns, conferindo pea um senso de continuidade. H trinta e novegrupos de agregados em Vento Noroeste, sendo a exposio de mui-tos deles pontuada por pausas. Alm disso, os agregados no sconectam motivos aparentemente dspares, mas tambm funcionamcomo elementos estruturadores da pea. Assim, Vento Noroeste podeser dividido em trs sees que formam um padro de expanso, ondeo primeiro bloco contm seis agregados, o segundo contm catorze eo terceiro bloco contm dezenove agregados.

    Aps anlise detalhada dos motivos presentes nestes trs blocos,chega-se concluso de que a pea est dividida em um esquemaABA' , com alguns procedimentos tpicos da forma sonata. Por exem-plo, h motivos da seo A que so recapitulados (ainda que em or-dem inversa) na seo A'. Na seo B podemos encontrar trechos ondedeterminados motivos secundrios so desenvolvidos. Obviamente, ouso que o compositor faz desse esquema formal bastante livre, nohavendo inteno de reproduzir os padres clssicos de estruturao.

    H dois motivos principais na parte inicial de Vento Noroeste:aps uma curta introduo, o primeiro (I) - baseado, como vimos, emum Estudo de Chopin (exemplos 4 e 15) - exposto e gradualmentetransformado, tornando-se uma figura de acompanhamento qual sosuperpostos acordes. Nesta nova verso, o motivo fragmentado einterpolado com dois motivos secundrios, que se constituem de ma-terial original. O segundo motivo principal (II) tampouco se baseiaem citao e suas caractersticas meldicas fazem-no soar como umtema propriamente dito. A passagem tem um centro tonal claro (Lmenor) e um carter repetitivo pronunciado: o tema se faz ouvir pornove vezes, sendo expandido nas repeties (exemplo 24 na paginaseguinte).

  • 178 Revista Msica, So Paulo, v. 9 e 10, pp. 165-181, 1998-1999

    Exemplo 24. Gilberto Mendes - Vento Noroeste: motivo II aps expanso gradual(pgina 6).

    alempa ral/.

    ~ di~. im. acce/er. dim.~. ~.~.~.

    Aps O que poderia ser considerado uma codetta (ex. 25), a seo Binicia-se com a apresentao de um novo motivo (III), tambm baseadoem Estudo de Chopin (exs. 16 e 17). Este motivo tem uma importnciaestrutural considervel, j que abre e fecha a parte intermediria da pea.

    Exemplo 25. Gilberto Mendes - Vento Noroeste: codetta (pginas 6-7).

    Bm-------- , I

    bbQ-g SS) "00, _.-(: ~ fi. 3 3 3 3( "

    I..

    tJ f~ffRfrallent . a tempo

    (.t4:.

    'SM. rallent. #~. r-I 1 1 1 r-I 1 1 13 ~.3 ;;;

    Como foi dito, esta seo apresenta procedimentos com carter dedesenvolvimento, j que alguns motivos da seo A so apresentadosexpandidos, enquanto outros aparecem em verso fragmentada. No blo-co final de Vento Noroeste (A'), a recorrncia dos motivos da primeiraseo constitui um claro indcio de recapitulao. Nesta, os motivos I eII so apresentados em sua forma expandida com a ordem de aparioinvertida. Uma espcie de coda comea com a repetio literal da intro-duo, seguida de mais um enunciado dos dois motivos (I e II) da seoA. Desta vez, as teras do primeiro motivo (I) so ouvidas em semitons

  • Revista Msica, So Paulo, v. 9 e 10, pp. 165-181, 1998-1999 179

    (ao invs dos tons inteiros iniciais), enquanto o segundo motivo (lI)reaparece comprimido, com o glissando levando ltima apario dasteras (I), concluindo a pea de maneira serena.

    Conforme mencionamos, Vento Noroeste foi composta em um pero-do que representa o retorno de Gilberto Mendes msica instrumental eo seu gradual afastamento da vanguarda mais radical, tpica das obrascorais. As reaes a esta guinada estilstica no estariam isentas do ca-rter polmico, j habitual na biografia do compositor.

    Enio Squeff traduziria esta surpresa ao comentar a primeira audiode uma pea do mesmo perodo, o Concerto para Piano e Orquestra(1981): "Desconfio em princpio desta nova composio de GilbertoMendes; ela me agradou demais a uma primeira audio'". Esta reaos se justifica pelo desconhecimento, na poca, das obras instrumentaisdos anos de formao do compositor. Aps um estudo mais aprofundado,podemos constatar como as obras da maturidade so fruto da evoluode uma linguagem prpria, que foi urdida j a partir dos seus primeirosensaios criativos.

    Concluso

    Ao compararmos o Allegro da Sonatina Mozartiana - composto emum perodo de formao tcnica e esttica - com Vento Noroeste - damaturidade de Gilberto Mendes -, damo-nos conta do avano obtidopelo compositor na consolidao de seu estilo mpar. Ao esquema for-mal convencional da Sonatina (resultado da emulao consciente demodelo mozartiano), contrape-se a originalidade do tratamento dado forma sonata em Vento Noroeste. O uso de blocos repetitivos tambmdemonstra uma significativa evoluo (comparar os exemplos 13 e 24).No entanto, ao considerar a manipulao da citao musical que pode-mos apreciar plenamente a maturidade aIcanada pelo compositor.

    Enquanto na Sonatina Mendes utiliza um s modelo (com exceoda pequena "intromisso" da Inveno de Bach [exemplo 12]), em Ven-to Noroeste tem-se uma verdadeira enciclopdia de figuraes romnti-cas e impressionistas. Alm disso, a profuso de informaes colhidas

    4. Mendes. Uma Odissia Musical, p. 192.

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    de fontes secundrias no se restringe, nesta ltima obra, s texturas efiguraes rtmicas. H tambm o uso de determinadas escalas (casodos tons inteiros presentes no motivo I) e intervalos (uso de harmoniasquartais) que, combinados com os gestos colhidos do pianismo romnti-co, do pea uma simultaneidade de significados bastante complexa.Considerando-se esta abundncia de elementos tomados de obras con-sagradas do repertrio pianstico, o fato de Vento Noroeste no soar comoum pot-pourri s pode ser atribudo ao domnio tcnico atingido pelocompositor.

    Embora Gilberto Mendes tenha iniciado o uso da citao musicalpor razes prticas (as peas consagradas do repertrio serviram, comovimos, de guia ao jovem autodidata), os experimentos continuados comesta tcnica atravs de diferentes perodos criativos propiciaram-lhe aevoluo de uma linguagem sem precedentes na msica brasileira. EmVento Noroeste, o compositor vai alm da pardia bem-humorada daSonatina; nesta fase de maturidade artstica, o uso de citaes tem umefeito quase metalingstico, a pea para piano parece "discutir" o pr-prio repertrio do instrumento.

    Vista como o pice de um processo de experimentao que comeaem seus anos de formao, Vento Noroeste, ao mesclar estticas aparen-temente opostas, no se encaixa nos cnones tcnicos e estticos quetm norteado a produo musical brasileira neste sculo. Este carterverdadeiramente revolucionrio da obra de Gilberto Mendes tem, infe-lizmente, passado desapercebido pela maioria dos crticos e estudiosos.O respeito invulgar que o compositor tem demonstrado s criaes mu-sicais de todos os tempos refletido de maneira direta na sua produopianstica, saturada de expressividade e procedimentos singulares. Atentativa de reconciliao do presente e do passado, atravs doquestionamento e manipulao da dialtica criao/apropriao, colocaa produo instrumental de Gilberto Mendes em lugar parte no cen-rio musical contemporneo.

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