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  UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE ARTES E COMUNICAÇÃO PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS E LINGÜÍSTICA MESTRADO EM TEORIA DA LITERATURA FERNANDO DE MENDONÇA A MODERNIDADE EM DIÁLOGO: o fluir das artes em Água Viva RECIFE 2009

MENDONÇA, Fernando de. a Modernidade Em Diálogo - o Fluir Das Artes Em Água Viva

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Tese de Mestrado da Universidade Federal de Pernambuco, na área de literatura e cinema. Clarice Lispector e a modernidade em sua obra Água viva.

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE ARTES E COMUNICAO

    PS-GRADUAO EM LETRAS E LINGSTICA MESTRADO EM TEORIA DA LITERATURA

    FERNANDO DE MENDONA

    A MODERNIDADE EM DILOGO: o fluir das artes em gua Viva

    RECIFE 2009

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    FERNANDO DE MENDONA

    A MODERNIDADE EM DILOGO: o fluir das artes em gua Viva

    Dissertao de Mestrado apresentada no Programa de Ps-Graduao em Letras e Lingustica da UFPE, com linha de pesquisa em Intersemiose, para obteno do grau de Mestre em Teoria da Literatura.

    Orientadora: Prof Dr MARIA DO CARMO NINO

    RECIFE 2009

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    Mendona, Fernando de

    A modernidade em dilogo: o fluir das artes em gua Viva / Fernando de Mendona Recife: O Autor, 2009.

    137 folhas: il., fig.

    Dissertao (mestrado) Universidade Federal de Pernambuco. CAC. Letras/Teoria da Literatura, 2009.

    Inclui bibliografia. 1. Literatura comparada. 2. Semitica e as artes. 3.

    Lispector, Clarice (1920-1977). 4. Arte moderna sc. XX. 5. Msica sc. XX. 6. Schoenberg, Arnold (1874-1951). 7. Pintura. 8. Arte abstrata. 9. Pollock, Jackson (1912-1956). 10. Cinema. 11. Resnais, Alain (1922- (cineasta). 12. Robbe-Grillet, Alain (1922-2008)- (roteirista). I. Ttulo. 82.091 CDU (2.ed.) UFPE

    809 CDD (21.ed.) CAC2010-01

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    In Memorian prof Maria da Piedade de S, que descansou seus dias no meio de minha jornada,

    mas enxergou o resultado deste trabalho muito alm de meus olhos revelando ser este percurso apenas um abrir de porta, em espera pelo futuro. Em mim, como o prprio livro gua Viva, Piedade jamais encontrar um fim...

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    AGRADECIMENTOS

    Ao meu amado Deus, razo maior de minha existncia, por ter me permitido

    chegar at aqui, dando-me esse sonho to lindo, hoje realizado. Em cada porta

    aberta, desde o incio do curso, a Sua mo foi presente, fiel, concedendo-me a fora

    e a disposio para enfrentar todos os obstculos. Sem o Senhor eu no teria

    conseguido. Por mais que digam que os mritos so meus, Paizinho, eu sei muito

    bem quem Tu s em minha vida e o que fazes por mim. Obrigado por seu amor.

    minha me, Elisama (Temo), e minha av, Nomia, razes que Deus

    tambm me deu para motivar a vida. Por aguentarem essa correria intelectual, que

    eu sei, difcil de ser entendida, por isso agradeo tanto. Essa vitria tambm de

    vocs! E vou avisando: a jornada ainda no acabou! Amo vocs!

    Universidade Federal de Pernambuco, especialmente ao Programa de Ps-

    Graduao em Letras e Lingustica e todo o quadro de funcionrios que o compem,

    desde a Coordenadora Prof ngela Dionsio, como o corpo docente, passando

    pelos queridos Jozaas e Diva, e incluindo todos os bolsistas sempre to atenciosos,

    seja no prprio Departamento, no Laboratrio ou na Sala de Leitura, onde tambm

    lembro o carinho da bibliotecria Paula e seus excelentes auxiliares.

    CAPES, pelo apoio financeiro concedido no decorrer do curso, o qual me

    permitiu dedicar-me exclusivamente a essa pesquisa e conclu-la em tempo hbil.

    Prof Maria do Carmo Nino, que muito mais do que uma Orientadora, foi a

    amiga que acreditou e compartilhou toda a minha paixo nesse percurso. Voc

    bno em minha vida! O aviso tambm fica pra voc: isso s o comeo...

    Prof Ermelinda Ferreira, pelas imprescindveis recomendaes durante a

    Pr-Banca, mas principalmente por toda a paixo pela arte e ensino. s contagiante!

    Ao Prof Fbio Andrade, que acompanhou a fecundao dessa pesquisa, h 5

    anos atrs. Quem imaginava que eu chegaria aqui?

    Prof Ceclia Nazar, da UFMG, pela excepcional ateno e contribuio ao

    domnio musical de minha pesquisa. Suas correes foram fundamentais!

    A todos os demais que me acompanharam nesses ltimos meses: familiares

    e parentes, amigos do Mestrado, amigos da Graduao, da Igreja, do Dissenso,

    vizinhos do Alfa, amigos distantes e prximos, reais e virtuais, e claro, minha

    turma querida... Nheeem!

    Amo vocs!!! Deus nos abenoe!

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    No, nunca fui moderna. Clarice Lispector

    gua Viva

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    RESUMO

    Constatar o dilogo entre as artes como uma prtica corrente na Modernidade foi o ponto de partida para a abordagem deste trabalho a respeito de gua Viva (1973), livro de Clarice Lispector que alm de exacerbar o peculiar estilo da escritora, representa por sua linguagem os principais interesses artsticos manifestados durante o sculo XX. Na identificao de recursos que servem como ponto de contato entre o objeto literrio e outras linguagens artsticas, foram encontradas caractersticas que aproximam gua Viva do imaginrio de outras formas de expresso, a saber: msica, pintura e cinema. O dilogo, baseado numa postura intersemitica de anlise, estabelece-se na msica, com a obra do compositor Arnold Schoenberg, atravs dos princpios do Dodecafonismo; na pintura, pela obra de Jackson Pollock, atravs do conceito da Action Painting conquistado em sua fase Expressionista Abstrata; e no cinema, com o filme O Ano Passado em Marienbad (Alain Resnais & Alain Robbe-Grillet, 1961), pela aliana firmada com o estilo do Novo Romance Francs. A partir de uma perspectiva esttica comum a esse corpus, busca-se averiguar como a introspeco e a subjetividade modernas se revelam por meio de recursos formais caractersticos de cada linguagem.

    Palavras-Chave: Clarice Lispector; gua Viva; Intersemiose; Modernidade; Sculo XX.

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    ABSTRACT

    To acknowledge the dialogue between the arts as a current practice in Modernity was the starting point for the approach of the present study about gua Viva (1973), a novel by Clarice Lispector which not only exacerbates the authors peculiar style but also represents through its language the main artistic interests manifested during the XX century. By identifying the resources that serve as a contact point between the literary object and other artistic languages we found features that draw gua Viva close to the imaginary of other forms of expression such as music, painting and cinema. The dialogue based on an intersemiotic analytical approach is established in music with the work of composer Arnold Schoenberg and the principles of Dodecafonism; in painting with the work of Jackson Pollock and the Action Painting, technique achieved in his abstract expressionistic phase; and in the cinema with the film LAnne Dernire a Marienbad (Alain Resnais & Alain Robbe-Grillet, 1961) and the alliance with the style of the French Nouveau Roman. From an aesthetic perspective common to this corpus, we seek to evaluate how the modern introspection and subjectivity are revealed by the formal resources of each artistic language.

    Keywords: Clarice Lispector; gua Viva; Intersemiosis; Modernity; XX century.

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    SUMRIO

    INTRODUO (No um recado de idias...)...................................................................................8

    1. gua Viva... Sons... Silncios... Schoenberg....................................................16

    1.1. A Musicalidade dos sentidos.......................................................................18

    1.2. Ecos Dodecafnicos.....................................................................................26

    2. gua Viva... Cores... Gestos... Pollock..............................................................57

    2.1. Literatura em Ao........................................................................................59

    2.2. Figurando o Inominvel................................................................................71

    3. gua Viva... Imagens... Palavras... Marienbad..................................................87

    3.1. O Pensamento Cinematogrfico..................................................................89

    3.2. Espelhos de Si e do Eu...............................................................................100

    CONSIDERAES FINAIS (O que te escrevo continua...)...............................................................................129

    REFERNCIAS........................................................................................................132

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    INTRODUO (No um recado de idias...)

    No um recado de idias que te transmito e sim uma instintiva volpia daquilo que est escondido na natureza e que adivinho.

    E esta uma festa de palavras. Escrevo em signos que so mais um gesto que voz.

    /.../ Tenho uma voz. /.../ Deixo-me acontecer. gua Viva, Clarice Lispector1

    A marcante impresso de introspectividade, presente nos pensamentos e nas

    representaes desenvolvidas no sculo XX, na maneira como esse momento

    histrico configurou a Modernidade, imprime um estilo muito particular em todas as

    formas de criao artstica realizadas pelo homem, permitindo e sobressaindo em

    diversas obras uma tnica que prima pelo subjetivo, ainda no esgotada na

    avaliao e anlise praticadas pelos que refletem a arte. O que pode ser percebido,

    nas criaes mais representativas desse perodo, uma dialtica entre a

    experimentao e o mtodo sistemtico, pois, tudo que aparenta existir como

    arbitrrio e intuitivo concretizado com a plena conscincia das finalidades e dos

    efeitos provocados.

    Autora de uma obra toda caracterizada com o que h de notavelmente

    moderno em literatura, Clarice Lispector (1920-1977) assina um texto paradigmtico

    no que concerne a essa voz subjetiva e pessoal, o aclamado gua Viva (1973).

    Surgida quase um sculo aps os primeiros experimentos modernos europeus (anos

    de 1880), a empreitada que Clarice desbrava nesse livro consegue sintetizar os

    principais elementos definidores da arte moderna, alcanando, com esse exemplo,

    uma inquestionvel ruptura aos principais recursos e padres utilizados dentro da

    prosa literria, tanto no domnio formal (principal interesse aos modernos) quanto no

    de contedo, tornando esta obra um romance de sntese no processo narracional

    da autora (MARTINS, 1988, p. 21).

    A tnue trama da obra impulsionada pelos pensamentos de uma

    protagonista que resolve escrever ao amante no momento em que decide pintar um

    1 Todas as transcries de gua Viva apresentadas no decorrer deste trabalho referem-se primeira edio do

    livro, publicada em 1973, pela editora ArteNova.

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    quadro. Em seu discurso, ela se vale de conceitos e terminologias advindos de

    outras artes alm da literatura, configurando um vocabulrio e um universo

    intimamente ligados ao artstico. Ao invocar as funcionalidades de cada expresso

    (literatura, pintura, msica, cinema, etc.), a narradora transmite uma inteno de

    lapidao da linguagem, da palavra, como se por meio dela e, somente nela, j

    fosse possvel o que seria supostamente especfico para cada suporte. Em gua

    Viva um desaguar dos sentidos. Nele, no a dependncia a uma imitao de algo,

    mas, sim, uma explorao do Logos enquanto potencialidade sensorial (sonora e

    imagtica) que d a ver/ouvir/sentir o interno do texto e de sua linguagem em

    direo ao catrtico. Centrar os eixos temticos, assim como os significados

    possveis, convergindo-os pelo tratamento do Logos o meio que gua Viva dispe

    para configurar valor narrativa moderna.

    Objetivando analisar a introspeco modernista, quando particularmente

    apresentada pela experimentao formal da linguagem, e, apoiando-nos no

    imaginrio interartstico desenvolvido com nfase por Clarice Lispector, identificamos

    em gua Viva uma sntese, uma representao significativa do pensamento

    moderno em Arte. As possibilidades de dilogo com outras artes surgem a partir do

    interesse escritural clariceano, configurando-se assim como possibilidades de leitura

    da obra em si. Atravs disso, propomos o levantamento de um trip intersemitico,

    constitudo por trs relaes em contato direto com gua Viva, cada uma atuando

    em expresses artsticas distintas, com msica, pintura e cinema. A seguir,

    discriminamos cada uma delas:

    1) Relao com a Msica:

    So inmeros os momentos em gua Viva que a narradora se apropria de

    conceitos aparentemente significantes apenas dentro do discurso musical (adgio,

    allegro, ria), incluindo as inmeras referncias a gneros especficos e seu

    processo de criao/execuo (jazz, msica de cmara). Em todos eles, fica

    evidente que a luta da personagem para com seu prprio texto, desenvolvendo e

    ultrapassando as convenes do logos, restituindo-lhe a soberania atravs

    justamente da experincia intersemitica.

    Foi a partir da constatao terica, incluindo aquilo que pode ser percebido

    atravs da simples audio musical, que encontramos o nome do compositor

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    austraco, Arnold Schoenberg (1874-1951), como o mais adequado para ecoar a

    sensibilidade intersensorial presente no livro de Clarice. As ousadias formais do

    compositor e suas intenes, diante do que executa e experimenta na linguagem

    musical, marcadas por uma interminvel elaborao em busca do novo,

    assemelham-se intimamente com o labor textual da autora, alm de expressarem

    com suas tcnicas vrios dos anseios apresentados pela personagem central.

    As curiosas relaes que o texto de Clarice traa com caractersticas do

    domnio sonoro-musical, podem, com essa referncia, alcanar uma elucidao de

    maior impacto, haja vista o grande nmero de elementos presentes na prpria

    escrita da autora que remetem s tcnicas de criao e, principalmente,

    intencionalidade do dodecafonismo, experincia musical desenvolvida a partir do

    atonalismo livre por Schoenberg entre 1920 e 1936, j apontada por Olga de S

    como um paralelo de gua Viva; suas palavras, atestam num comentrio especfico

    a este livro: Uma escritura sem figura (o objeto), sem enredo. Um trao existencial,

    uma escritura do sonho, um balbucio subterrneo que se coagula em palavras

    soltas, deslizantes, num ritmo de msica dodecafnica. (S, 2004, p. 232).

    No discutem-se aqui, dentro de um contexto metodolgico, meras aluses,

    mas, analogias musicais, no sentido definido por H. A. Basilius (apud OLIVEIRA,

    2002, p. 17): referncias a obras ou gneros musicais que conservam, na criao

    literria, o complexo conativo-afetivo prprio da composio mencionada.

    A caracterstica dodecafnica que mais nos interessa, inicialmente, reside na

    quebra com os princpios harmnicos e meldicos, presentes na msica ocidental

    dos ltimos sculos. O conceito de dissonncia, propositalmente no resolvido em

    Schoenberg, existe, no como um simples ato de rebeldia tradio, mas, como

    uma continuidade, por trabalhar sobre os princpios bsicos da mesma. Todo o

    desenvolvimento de seus impulsos meldicos e harmnicos, pautados

    intencionalmente na subverso dos padres, foi determinado por regras internas de

    elaborao que s podem ser compreendidas se analisadas luz da teoria musical

    da composio. A rigor e previamente, esclarecemos que o dodecafonismo

    necessita de doze sons definidos para que se inicie uma composio. Diante da

    seqncia (srie) determinante citada j no h espao para notas livres; todas

    esto condicionadas umas s outras, acima da harmonia, da melodia, ou do ritmo,

    coexistindo a todo o momento, sem possibilidade de reverso.

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    Assim, apesar da aparncia de informalidade criativa, num universo

    rigorosamente estabelecido, em padres e em totalidade de obra, que se baseia a

    desconstruo dodecafnica. Exatamente como na escrita de Clarice, onde so

    necessrios todos os recursos sintagmticos utilizados para uma adequada

    apreenso de sentido. Nossa aproximao de gua Viva com o pensamento

    schoenbergiano observa o uso que ambos fazem dos elementos musicais em sua

    negao, ou melhor, numa problematizao que anseia pelo inverso das coisas.

    Dessa forma, as analogias feitas entre essas obras contribuiro para desvendar a

    escrita da autora, impregnada do que contrrio aos padres narrativos

    convencionais da prosa, assim como, perscrutar o esprito modernista, igualmente

    preocupado em subverter os interesses formais da tradio na representao do

    mundo contemporneo.

    2) Relao com a Pintura:

    O primeiro ponto de contato entre gua Viva e as artes plsticas salta aos

    olhos pela ocupao da narradora: uma pintora. Dos aspectos visuais mais diretos

    s intenes estticas, caractersticas da Modernidade, so quase incontveis os

    momentos no livro que nos permitem levantar o norte-americano Jackson Pollock

    (1912-1956) como o nome mais evidente a entrar em dilogo com a obra de Clarice,

    em estreita convergncia de pensamentos e realizaes. Tal relao, foi aqui

    impulsionada pela significativa contribuio encontrada no artigo de Amaury Leal

    (1998), autor que j havia apontado as semelhanas entre o texto de Clarice e a

    obra de Pollock, dentro de uma interseco plena no modo do fazer artstico, no

    mais calcado em conceitos preestabelecidos, mas que se sedimentam, sobretudo,

    no momento de elaborao do texto literrio ou do quadro (p. 53-55).

    Em diversas passagens de seu texto, Clarice escreve como se estivesse

    diante de um quadro de Pollock, recriando o estilo e imprimindo pela palavra escrita

    os prprios movimentos do pintor (apesar de no cit-lo diretamente). A

    convergncia das formas finais, em ambas as obras, deve ser observada no que

    cada um intencionou fazer, em quais aparentes objetivos, texto e telas insistiram em

    se concentrar; e se possvel discernir ambies artsticas afins, dentro do contexto

    exterior a eles (geral), tambm no so poucos os elementos em dilogo no interior

    de cada um (particular).

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    A fase urea de produo do pintor abriga as telas realizadas entre 1947 e

    1951, perodo de experimentaes, responsvel pela criao do termo que

    nominaria a vanguarda do Expressionismo Abstrato por parte de Harold

    Rosenberg, entre 1951-52, assim como da expresso Action Painting (pintura em

    ao), atribuda a Pollock pela maneira como ele pintava suas telas (destaque para

    a utilizao do Dripping). A Action Painting est to fortemente vinculada ao

    fazendo da tela que se torna difcil compreend-la sem ter em mente o momento

    criativo do pintor, o instante de vida em que ele se debruou e registrou na matria

    da tela a ao de seu corpo, o envolvimento de si prprio com a criao, a um ponto

    em que se tornam indissociveis. Isso, porque a obra representante do

    Expressionismo Abstrato acumula valor no s de objeto finalizado, mas de

    acontecimento em andamento, como se na visualizao da mesma estivesse

    disposta no somente uma representao do, e, pelo autor, mas, ele, nela se

    apresentasse.

    No por acaso que Clarice se debrua sobre uma prosa abstrata para o

    desenvolvimento de seu livro. Ela, Pollock e muitos outros artistas, entenderam que

    o discurso pautado pelo abstrato seria o mais apropriado para responder s

    necessidades do homem nesse momento de sua histria. Muito mais do que negar

    uma forma concreta de representao, os meios dispostos nas telas e no texto em

    questo, revelam-se importantes em si mesmos, com significados independentes de

    identificao, seno aquela que sua mera presena insinua. A subjetividade do autor

    dilui-se na subjetividade do prprio objeto artstico. Evidencia-se assim o dilogo

    entre os autores, atravs da (re)criao que objetiva capturar o movimento da ao,

    o instante, que independe da noo convencional de tempo para ambicionar a

    permanncia de um estado presente. E nesse tempo fragmentado, mais uma marca

    da Modernidade.

    3) Relao com o Cinema:

    no mnimo espantoso que a faceta cinematogrfica oferecida por gua Viva

    seja habitualmente relegada a um segundo plano de anlise, ou mesmo esquecida

    por muitos, principalmente se considerarmos nesse gancho artstico utilizado pelo

    livro, um dos mais importantes meios para desvendar o misterioso universo a

    criado. verdade; so poucos os momentos em que Clarice dirige-se diretamente

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    ao discurso cinematogrfico, mas, em vrias passagens de sua obra, percebemos a

    presena da imagem em movimento como um dos elementos da escritura. Por tudo

    isso, propomos um relacionamento do imaginrio de Clarice com um exemplo prtico

    advindo da prpria arte cinematogrfica.

    Quebra dos valores narrativos, impossibilidade de um resumo eficaz; a mente

    humana como ambientao, numa constante aparncia de sonho; forte uso de

    repeties e monlogos interiores; fragmentao do mundo e do pensamento;

    multiplicao dos nveis da realidade atravs do recurso especular; todas estas, so

    apenas algumas das caractersticas que permitem uma relao direta entre gua

    Viva e o filme O Ano Passado em Marienbad, de Alain Resnais (1961), ambas as

    obras voltadas para o que pode ser considerada a construo de uma arquitetura da

    memria. Com roteiro de Alain Robbe-Grillet (1922-2008), um dos principais

    expoentes do Novo Romance Francs (Nouveau Roman), o filme em questo

    tambm lembrado na histria do cinema, como uma experincia limite que alia os

    recursos visuais e sonoros, numa busca que no objetiva uma simples

    representao narrativa, mas uma sensao de onrico, de quase abstrao formal.

    Nossa aproximao entre as obras, valendo-se da interao que a prpria escrita

    clariceana nutre com a escola literria francesa, encontra no estilo compartilhado por

    Marienbad a melhor maneira de problematizar a imagem e a palavra, no interesse

    cinematogrfico, dentro de um suporte literrio.

    Se optamos por estabelecer a relao com o cinema tomando apenas um

    filme por corpus, e no um movimento, ou, a Obra de um autor especfico, como nas

    relaes anteriores, isso se justifica na devida proporo em que assim como gua

    Viva para com a literatura, Marienbad tambm se erige numa criao sem

    paralelos dentro do cinema. At mesmo na carreira de Resnais ou Robbe-Grillet no

    encontramos semelhante intento ou resultado formal equivalente. Com isso,

    arriscamos dizer que a base desta relao seja o ponto culminante da pesquisa

    proposta, pois, aps o dilogo da literatura com a msica e a pintura (numa

    sucesso que termina por abranger cronologicamente o sc. XX), o encontro final

    com o discurso cinematogrfico proporcionar uma reflexo no apenas sobre o

    perodo moderno, mas pautada na trajetria da necessidade artstica humana

    atravs da multiplicidade de suportes de expresso.

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    Levantar o Estado da Arte a respeito da obra de Clarice Lispector , sem

    dvida, um enorme trabalho. Isso, porque em pouco mais de meio sculo, a fortuna

    crtica sobre a escritora tem se proliferado em incontveis estudos, a partir dos mais

    diversos pontos de vista e intenes cientficas. Porm, inegvel que seu livro

    gua Viva (1973) seja um dos menos revisados pelos leitores clariceanos, sendo

    possvel afirmar que nele ainda existe um vazio crtico desafiador.

    Deve ainda ser mencionado como primeiro responsvel pela inspirao da

    presente pesquisa, o trabalho de Danilo Lbo (1999), que, ao identificar gua Viva

    como uma obra de arte total [...] fundamentada no trip literatura pintura msica

    (p. 125), permitiu um leque de abordagens mltiplas a ser completado pela relao

    com o cinema. A recorrncia a artes no-narrativas, conduzida pela autora no

    decorrer do livro, apresenta-se em coerente questionamento, ocupado pela habitual

    desconstruo formal presente na arte moderna. Com isso, a necessidade de uma

    comparao prtica dessa obra com outras artes, analisando no apenas os

    aspectos tericos da Modernidade, como a inteno de Clarice na escrita desse

    indecifrvel objeto, mostrou-se imperativa e urgente para o desenvolvimento da

    crtica clariceana atualmente praticada. O dilogo de gua Viva com as

    composies de Schoenberg e as pinturas de Pollock vem, inicialmente, concretizar

    este estudo, desaguando na relao com o cinema, sob uma motivao maior.

    Entre as abordagens que gua Viva j recebeu, podem ser encontrados

    alguns breves comentrios que o relacionam de perto com exemplos em pintura e

    msica, por serem formas frequentemente mencionadas na escritura. Porm, so

    raros (para no dizer inexistentes) os estudos que apresentam uma ligao entre

    gua Viva e a arte cinematogrfica; algo curioso, pois deve se considerar que, pela

    ordem narrativa, o cinema a arte habitualmente trabalhada quando em relao

    com a literatura. Constatar a carncia dessa abordagem e levantar as semelhanas

    entre gua Viva e O Ano Passado em Marienbad, permite-nos localizar, nessa

    relao especfica, uma contribuio indita para uma leitura da obra de Clarice.

    Diante disso, trabalharemos o corpus institudo a partir da seguinte linha de

    ao: a definio de pontos de ligao, em cada uma das trs relaes, ser

    aplicada, tanto individualmente como em conjunto, identificando os elementos que

    concorrem para a construo da linguagem e conseqente desconstruo

    narrativa/formal, para que todos os objetos possam ser confrontados entre si e seus

    pontos de dilogo sejam discriminados e analisados; tais procedimentos permitiro

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    constatar o desenvolvimento da subjetividade moderna e sua relao com a

    tradio, verificando como se d a permanncia do elemento mtico nesse novo

    universo esttico, contribuindo, enfim, com uma compreenso do esprito modernista

    (sc. XX) e uma reflexo do ato criativo em arte, atravs da anlise intersemitica.

    Importa salientar que a perspectiva intersemitica aqui adotada, longe de

    pretender limitar seus objetos em conceitos rigorosos, busca, antes de tudo,

    experimentar o livro de Clarice com uma postura flexvel, verdadeiramente pedida

    pelo texto. Se nos dedicamos a esse tipo de leitura (intersemitico) porque

    ouvimos o pedido do prprio livro e, como ele, no podemos nos render ao

    desenvolvimento de um mero recado de idias. O estabelecimento dos dilogos,

    voltado para o que Philippe Chardin (2004) elenca, numa temtica comparatista,

    como estado de crena numa poca e sociedade concretas e presena ou

    ausncia de consideraes formais, ser desenvolvido buscando interesses

    comuns; poca, s sociedades e s formas Modernas.

    Assim posto, a contribuio desta pesquisa rea da Intersemiose, sob os

    princpios da perspectiva interartstica, preencher parte do que ainda no foi

    observado nos objetos de estudo, valorizando tal tipo de abordagem como um

    importante recurso para a compreenso e o desenvolvimento crtico de uma obra. O

    estudo aqui iniciado levar no apenas ao que toca a especificidade de cada arte

    estudada, ou de cada autor, ou, obra selecionada; muito mais, iluminar questes

    que refletem uma poca, uma sociedade; questes ainda longe de serem

    encerradas, pois, acima de tudo, questes que tocam o humano.

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    1 gua Viva... Sons... Silncios... Schoenberg

    Os registros legados desde a Antiguidade esclarecem que nossa concepo

    de sociedade ocidental baseia-se em alguns elementos comuns a todo o percurso

    da histria humana. Fatores que se destacam na formao do homem do ocidente,

    como a iniciativa poltica, a reflexo filosfica, a f religiosa, a manifestao artstica,

    entre tantos outros, tambm marcam presena em todo e qualquer contexto

    organizado pela vida racional. Com isso, bastante curioso observar como uma

    prtica especfica, inserida atualmente quase apenas ao domnio da inquietao

    artstica, j participou de tantos contextos de dilogo. Referimo-nos, exatamente, ao

    lugar da msica.

    J no perodo dos pr-socrticos, a prtica musical era realizada em unidade

    com os jogos esportivos, os rituais espirituais e os questionamentos polticos e

    filosficos ento disseminados e, no por acaso, toda a herana do fundamento

    terico da msica ocidental se alicera na msica grega antiga, onde o lugar da

    msica incidia diretamente na vida cotidiana da sociedade, refletindo muito daquele

    contexto e influenciando ativamente o desenvolvimento histrico ento praticado.

    Compreender tais prerrogativas revela-se essencial para esclarecermos um perodo

    muito mais prximo de ns e que, talvez por essa pouca distncia, ainda se

    apresente muito nublado.

    O homem moderno, ao enfrentar a natural imposio das transformaes

    histricas em sua maneira de viver e se organizar socialmente, tambm se valeu,

    desde o princpio, da expresso artstica para a formao de sua nova conscincia e

    posio diante do mundo e das coisas. Nesse sentido, e em prosseguimento

    indisfarvel aos modelos da Antiguidade, a msica tambm veio encontrar lugar

    privilegiado de atuao, gerando o que podem ser considerados os primeiros

    questionamentos definitivamente modernos dentro de um discurso orientado pela

    comunicao esttica.

    Diversos tericos da Modernidade observaram nos conflitos que a msica, a

    partir do tradicional conceito de tonalidade, fez vigorar na abertura do sculo XX (em

    franco desenvolvimento desde o sculo anterior), um ponto de partida para todo o

    empreendimento moderno de reflexo e expresso. Na obra Fundamentos

    Racionais e Sociolgicos da Msica, publicada originalmente em 1921, o socilogo

    Max Weber o primeiro a apontar a msica daquele perodo como um padro de

  • 17

    racionalizao a ser seguido no campo das artes, determinando os experimentos

    sonoro-musicais ento iniciados como portadores de uma ontologia formal

    agregadora do nascente esprito moderno. Ao levantar esse percurso terico

    oferecido por Weber, o professor Vladimir Safatle constata:

    A msica teria imposto, s outras artes, uma noo de modernidade e de racionalizao do material vinculada autonomizao da forma e de suas expectativas construtivas. Autonomia que teria se afirmado contra qualquer afinidade mimtica com processos e elementos extra-musicais. (SAFATLE, 2007, p. 80)

    A autonomia da msica. No queremos nos limitar aqui a uma filiao

    involuntria da corrente absolutista2 que polariza a atividade musical como uma

    linguagem autnoma a qualquer contedo exterior. Pelo contrrio, quando nos

    valemos das palavras do professor Vladimir, apoiamo-nos principalmente nessa

    conscincia da msica quando, na relao com as outras artes, seja a de apenas

    dialogar ou mesmo influenciar (termo que nos parece mais adequado do que impor)

    o projeto artstico da Modernidade. Esse projeto, como veremos no decorrer de toda

    a pesquisa, no se orientar por uma negao ao externo, ao alm da forma, mas

    ir encontrar nessa mesma forma a possibilidade de uma problematizao do que

    interior obra e seu criador, ambos sob a imposio de um contexto exterior.

    sabido que desde a Antiguidade, e especialmente em Aristteles, h uma

    associao cosmolgica na atividade musical e, com o decorrer dos tempos, essa

    ligao, apesar de atenuada, no deixou de se desenvolver sob uma perspectiva

    ainda metafsica, tambm relacionada interioridade humana. Rousseau e

    Nietzsche, para ficarmos apenas em nomes mais evidentes, se debruaram sobre o

    elemento musical compreendendo na exterioridade do som um dos contatos mais

    ntimos e reveladores da subjetividade humana, e aqui tocamos de fato no

    questionamento central pesquisado: a introspeco modernista e os aspectos

    formais das linguagens artsticas desse perodo. Analisar o impulso proporcionado

    pela msica do sculo XX nos parece, assim, a melhor maneira de trilhar os

    primeiros passos do Modernismo, investigando a complexidade formal dos

    interesses musicais luz de nosso objeto primeiro: o livro gua Viva.

    2 Corrente esttico-filosfica oposta vertente referencialista da msica, que por sua vez relacionava o

    significado musical a contedos no-musicais. Desenvolveu-se no debate entre os formalistas e os

    expressionistas musicais. Sobre o conceito absolutista indicamos, de Leonard Meyer, Emotion and Meaning in

    Music (1956).

  • 18

    1.1 A Musicalidade dos Sentidos

    bom que o pensamento, quando adota a msica como objeto, preste ateno na literatura. O enigma desta ltima no ,

    sem dvida, alheio ao paradoxo musical (...) Jean-Franois Lyotard

    O dilogo entre msica e literatura j dono de um histrico com incontveis

    precedentes. Tanto uma como outra arte j afetou ou se deixou afetar pela prxima,

    enriquecendo a histria das artes com questionamentos que sempre visaram a

    ultrapassar os limites de uma linguagem nica. O sculo XX participa nesse contexto

    com valiosos exemplos oriundos do domnio musical pois, como vimos, essa foi uma

    expresso paradigmtica para o universo artstico a envolvido. Com isso, nos

    propomos a observar a utilizao que a escrita de Clarice Lispector faz da linguagem

    musical, remetendo, comparando e percebendo a msica numa continuidade

    incessante dentro de gua Viva, instaurando, atravs do dilogo entre as artes, um

    dilogo entre os sentidos, fazendo ecoar a voz da prpria autora, que declara: Bem

    sei que o que escrevo apenas um tom. (p. 33)

    A respeito da msica e dos sentidos, debruamo-nos inicialmente nas

    significativas reflexes de um pensador do sculo XVIII que podem nos auxiliar aqui:

    o violonista, compositor e filsofo, Michel-Paul-Guy de Chabanon (1730-1792).

    Numa meticulosa abordagem de sua obra, Lvi-Strauss aborda os principais pontos

    convenientes ao estudo da msica e dos sons desenvolvidos pelo filsofo.

    Espantamo-nos com ele: Por que a poesia, a pintura e a escultura tm de

    apresentar imagens fiis, e a msica, infiis? Mas, se a msica no imitao da

    natureza, o que ento? (apud LVI-STRAUSS, 1997, p. 73) A eterna polmica em

    torno do debate Mimese X Realidade no objeto de arte encontra aqui a afirmao

    de que a msica no atua para imitar os efeitos percebidos pelos sentidos, at

    porque, segundo esse raciocnio, ela nem exprimiria sentimentos, mas apenas a

    formalidade dos sons. O que o questionamento de Chabanon vem suscitar, alm de

    um evidente pendor ao absolutismo musical, uma falsa questo, ou antes, uma

    questo retrica, que conclui: como a viso e o olfato, o ouvido tem gozos

    imediatos, e, por isso, a msica agrada independentemente de qualquer imitao.

    Na referncia ao gozo, ao prazer, uma ntima associao ao que pode ser

  • 19

    vivenciado pelos sentidos de um corpo, de algum que se atm ao objeto musical e

    somente nele permanece.

    Ainda em Chabanon, a filosofia da arte encontra como misso mais elevada

    fazer com que cada sentido isoladamente perceba aquilo que os outros sentidos lhe

    transmitem. o esprito quem, situado entre os sentidos, compara e combina as

    sensaes, percebendo as relaes invariantes, no sendo necessrio buscar um

    contedo para tais relaes, j que elas so formas. Nessa unidade dos sentidos,

    possibilitada a partir de um dilogo de reaes, desaguamos justamente em gua

    Viva, obra que institui o flerte interartstico como principal recurso para efetuar sua

    intencionalidade, valendo-se, para isso, de uma defesa central da narradora ao que

    pode ser considerada uma intersensorialidade do corpo.

    Apresentamos agora quatro dos principais momentos de gua Viva em que

    Clarice proclama a integrao dos sentidos atravs do domnio musical dentro de

    seu texto. Exp-los conjuntamente facilitar a anlise posterior e servir, desde j,

    para comprovar a faceta musical como um dos objetivos centrais do livro,

    proclamados desde sua primeira pgina.

    1) No se compreende msica: ouve-se. Ouve-me ento com teu corpo

    inteiro. (p. 11)

    2) Vejo que nunca te disse como escuto msica apio de leve a mo na

    eletrola e a mo vibra espraiando ondas pelo corpo todo: assim ouo a

    eletricidade da vibrao, substrato ltimo no domnio da realidade, e o

    mundo treme nas minhas mos. (p. 12)

    3) As mos tambm olham. (p. 92)

    4) um som elevadssimo e sem frisos. [...] a nota mais alta e feliz que

    uma vibrao poderia dar. Nenhum homem da terra poderia ouvi-lo sem

    enlouquecer e comear a sorrir para sempre. (p. 110)

    A leitura desses fragmentos suficiente para perceber a maneira como

    Clarice lida com a apreenso dos sentidos em seu texto, e melhor, como o elemento

    sonoro-musical admirado, por conduzir ao catrtico e dar a possibilidade de ter o

    mundo nas mos. A comunicao dos sentidos requerida pela personagem-

    narradora invoca o corpo a uma postura ativa diante desse mundo, diante das coisas

    que se apresentam e entram em contato com os sentidos; assim, importa que nos

    debrucemos mais atentamente aos trechos transcritos para que no escapem as

    ressonncias possveis e imediatas.

  • 20

    Desde o incio, fica claro que a compreenso racional das palavras no o

    intento da autora. Valer-se da msica e jogar com a idia de abstrao inerente ao

    objeto musical, associada com nfase a partir do Romantismo, assumir o objetivo

    sensvel de seu texto como motivao maior. A ausncia de um suporte concreto e

    palpvel na expresso musical o que leva Clarice a discorrer sobre o

    funcionamento da apreenso do corpo, particularmente seu, quando do contato

    musical, e solicitar de seu leitor uma postura semelhante de entrega e unidade

    sensrio-corporal. Presentificar seu corpo ofertado audio (p. 11) no nega por

    completo o desejo de uma compreenso por parte do ouvinte, pois essas aes

    (ouvir e compreender) estariam essencialmente interligadas, encontrando na

    desconfiana cientfico-racional da Modernidade um fator de esclarecimento para

    essa situao provocada pelo texto.

    Os fragmentos que abordam diretamente a atividade dos sentidos (p. 12 e

    92), por sua vez, explicitam a interao do corpo com a msica e consigo prprio.

    Ela ouve com as mos. Suas mos enxergam. No restando outra sada para a

    percepo do que atravessar-lhe a carne e as sensaes conseqentes de um

    toque. Aceitar tal necessidade concordar com a hiptese emprico-psicolgica dos

    que defendem as artes como extenses dos sentidos, no tempo e no espao, o que

    justifica seu encontro na percepo humana. Ora, nada mais evidente aqui do que a

    importncia de se trabalhar uma viso fenomenolgica do mundo. Nesse sentido,

    somos auxiliados por toda a filosofia de Merleau-Ponty, que considera a obra de arte

    como um campo privilegiado do sensvel, lugar onde ele pode ser refletido em

    plenitude. Ao assumirmos como verdade a idia de uma camada originria do sentir

    anterior diviso dos sentidos (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 306), encontramos em

    gua Viva uma expresso prtica dessa espcie de pr-estesia, onde a percepo

    humana ultrapassa os limites dos sentidos especficos e unitrios, conjugando as

    reaes do corpo rumo a um significado que pulsa exatamente no objeto de arte, no

    texto que organiza as palavras no como um mero agrupamento de signos a serem

    interpretados, mas como se cada palavra fosse membro de um corpo indivisvel. No

    corpo escritural clariceano a pluralidade de sentidos e de valores artsticos o que

    d forma e (re)forma a disposio sempre inventiva das palavras em jogo. Nesse

    corpo e somente nele, um acesso imediato ao catrtico.

    A presena em gua Viva da nota mais alta e feliz (p. 110) o catrtico

    remete-nos ao gozo imediato de Chabanon, agora possibilitado pela iminente

  • 21

    organizao das palavras. E, quando Clarice recorre ao suporte musical, o faz com

    uma f que no duvida do poder existente at mesmo na nota mais isolada, pois

    para que essa nota se perceba ser preciso sentir muito alm da audio,

    exacerbando todos os limites que a percepo humana aparenta ter. A explorao

    sinestsica dos signos abarca, ento, suas possibilidades sonoras e imagticas,

    num constante direcionamento de linguagem que extrapola a sintaxe cannica,

    como podemos visualizar em todo o conjunto da obra da autora. Relembramos com

    isso, que em nenhum momento gua Viva se afasta da necessidade intersemitica

    existente em sua linguagem, j que a fuso de sentidos se concretiza paralelamente

    conexo entre as artes, fundamentada na estrutura de todo o livro.

    Justamente pela percepo somos conduzidos a um pensador que se

    aprofundou substancialmente na anlise da memria: Henri Bergson (1859-1941).

    Considervel parte de sua obra filosfica debrua-se sobre o processo da memria

    humana desde a conceituao de preceitos bsicos como lembrana, percepo,

    memria, imagem, todos em direo a uma sensvel reflexo sobre o corpo e o

    esprito humanos, a alma e a matria. Em sua fundamental obra Matria e Memria

    (2006), temos uma primeira indicao necessidade de se educar os sentidos para

    a percepo do mundo, e por meio dela (a educao) atingir a finalidade de

    harmonizar os sentidos entre si, restabelecendo em seus dados uma continuidade

    que foi rompida pela prpria descontinuidade das necessidades do corpo, enfim

    reconstruindo aproximadamente a totalidade do objeto material.

    A prosa de Clarice Lispector nos parece, sob esse ponto de partida, lidar com

    uma educao diferenciada dos sentidos ou, ao menos, realizada com maior

    intensidade. A autora insiste em evocar um corpo que ignore a descontinuidade

    natural mencionada por Bergson, coordenando suas sensaes no apenas para

    apreender o que a exterioridade das coisas tem a lhe oferecer, mas sendo-lhe

    possvel perceber a particularidade de seus estados internos a partir delas. A ao e

    a reao do corpo afirmando-se a cada frase, em todo desejo expresso pelo que

    ultrapassa a normalidade do mundo. Mas at mesmo nessa normalidade, a

    presena do que transcende.

    Na dinmica dos sentidos exercitada por Clarice encontramos um pertinente

    exemplo para todo o processo de criao e estabelecimento da memria

    delimitado/ampliado por Bergson. Os sentidos que se confrontam e completam,

    influindo em tudo que percebem e, por sua vez, sendo tambm influenciados,

  • 22

    relacionam-se direta e inquestionavelmente com o conceito de corpo como centro

    de ao, definido pelo autor (BERGSON, 2006, p. 162). O embate entre o corpo e a

    matria efetua-se numa troca de impresses que se transformam em movimento

    contnuo, em permanente estado de devir, exatamente como vemos no corpo

    clariceano, sempre em vias de formao. Transitar os sentidos entre si uma forma

    de apreender o tempo, contornar as lembranas e comprovar que pela intromisso

    da memria no estado presente de percepo nosso corpo nunca cessa de existir

    como uma entidade dinmica de significados e sensaes. por isso que Clarice

    nos convoca a uma nova utilizao dos sentidos.

    A pesquisadora e professora Jacineide Travassos Cousseiro, ao desenvolver

    uma significativa dissertao a respeito de gua Viva, manteve como um dos

    principais objetivos analisar a intersemiose na natureza interna da obra, ou seja, a

    utilizao feita por Clarice Lispector do universo de outros suportes artsticos que

    no a literatura, na maneira como sua linguagem se influenciou a si prpria. A

    respeito da msica, ela afirma:

    A msica para a narradora-pintora, ao modo da teoria das esferas pitagricas, ensinamento sobre o movimento do cosmos, sobre a ordenao do mundo. Da o anseio de apreend-la atravs do corpo, das mos, temos o sentido tctil do abstrato-musical, do incorpreo. uma tentativa de capturar e concretizar o som, de oferec-lo uma visualidade corporal [...]. (COUSSEIRO, 1998, p. 117, grifo nosso)

    Interessante a aplicao dos termos que sugerem na apreenso da msica

    pela personagem uma percepo dialtica de conhecimento. Parece mesmo irnico

    que se precise do corpo inteiro em seus sentidos para captar a arte mais

    reconhecidamente marcada pelo incorpreo, pela ausncia de forma materialmente

    concreta. O pendor de Clarice em se expressar com o que aparenta inexprimvel

    condiz com a negao mimtica que Chabanon levantou para a arte dos sons. O

    gozo imediato desejado pelo corpo que ouve o texto clariceano s pode ser

    alcanado com a transcendncia do corpreo, e tal alcance s poder se

    concretizar na presena da escritura, pois a o texto literrio d-se sempre em um

    dilogo com outros cdigos, opera-se em um espao intersensorial sinestsico,

    onde a palavra escrita acorda os sentidos e dimensiona possibilidades artsticas

    vrias. (COUSSEIRO, 1998, p. 71)

    atravs da dimenso mencionada (intersensorial sinestsica) que somos

    alertados para a importncia de se avaliar gua Viva a partir de uma perspectiva

    intersemitica. A intensidade sinestsica contida no livro remete-nos justamente a

  • 23

    essa sinestesia de artes que ele proclama como fundamento escritural. muito

    importante salientar que a proposta intersemitica a contida, em nenhum momento

    lida com a hiptese de uma unidade artstica indissolvel, pois mesmo o conceito de

    unidade deve ser utilizado com cautela. A mltipla abordagem das manifestaes

    artsticas se d, aqui, num respeito individualidade de cada expresso, onde o

    todo final valer-se- de uma noo de mltiplo que no descarta as peculiaridades

    das partes.

    O encontro entre as artes a partir da msica, analisado com nfase pela

    musicista Yara Borges Caznok, uma prtica que acompanha toda a histria da

    arte. Como sua obra Msica: entre o audvel e o visvel (2008) indica desde o ttulo,

    a escritura musical lida com peculiaridades que transcendem o sentido humano

    auditivo3 apontando para a hiptese de uma criao sonoro-visual originariamente

    fundida. Ainda em seu estudo encontramos duas consideraes sobre a percepo

    sinestsica que nos interessam para prosseguir, inclusive, na discusso sobre o

    contato entre as artes. A respeito da comunicao dos sentidos, ela afirma: no

    simplesmente uma associao, uma interpenetrao, uma troca, e dessa forma

    que a percepo se abre coisa. (CAZNOK, 2008, p. 133); ela parte do

    diferenciado evento ou registro sensorial para, depois, uni-los e fundi-los em uma

    sntese. (idem, p. 224).

    Evidentemente, toda a iniciativa de Caznok tambm se debrua numa

    abordagem fenomenolgica das artes, o que nos motiva a lembrar mais uma vez os

    pensamentos do filsofo com relao ao objeto esttico. Um dos fundamentos da

    Fenomenologia do Esprito atribuir ao sujeito sensvel uma potncia que co-nasce

    em um certo meio de existncia ou se sincroniza com ele. (MERLEAU-PONTY,

    1999, p. 285) Tal potncia desencadeada quando o sujeito se depara com o

    evento, aquilo que se manifesta entre o olho e a coisa, entre o ser e o mundo,

    interligando-os e injetando-lhes (em ambos) novas possibilidades de significado.

    Ora, a sincronia entre ser e mundo assemelha-se igualmente sincronia entre os

    sentidos e entre os discursos semiticos da esttica, pois o evento encontra na

    obra de arte uma das maiores possibilidades de vir a ser, fazendo da obra um lugar

    potencial para o acontecimento do sujeito enquanto ser sensvel. Tal raciocnio o

    3 O conceito de imagens sonoras (BERGSON, 2006), aqui pertinente de ser lembrado, ser trabalhado

    posteriormente, no terceiro captulo deste trabalho.

  • 24

    que nos permite identificar gua Viva como um evento mpar voltado para o homem

    moderno, pois, dentro dele, assim como no sujeito que lhe apreende, tambm co-

    existem valores de percepo do mundo, preceitos de uma subjetividade que no

    tem por funo fechar o ser em si, mas coloc-lo e revel-lo dentro desse mesmo

    espao.

    Nossa anlise reveste-se, com isso, de maior responsabilidade, pois a

    discusso intersemitica de gua Viva, no mais apenas no interior do texto como o

    pretendeu a pesquisadora anteriormente citada, mas em contato direto e ativo com

    outra linguagem semitica, como a msica a partir de um exemplo prtico para

    essa relao caracteriza-se como uma iluminao de parte do que abrangeu o

    mundo moderno, de sua posio histrica e da manifestao do homem em seu

    meio.

    Contudo, antes que a anlise pretendida seja realmente iniciada, convm

    estabelecermos as linhas bsicas de pesquisa aqui adotadas, pois alm de a prtica

    metodolgica envolvida na relao entre literatura e msica no ser muito difundida

    no meio da crtica literria, importante que se esclaream, desde j, as intenes

    reais da presente pesquisa.

    Em sua obra Literatura e Msica, Solange Ribeiro de Oliveira (2002)

    apresenta uma metodologia do estudo melopotico proposta por Steven Paul Scher,

    autor que cunhou o termo melopotica para estudos dedicados iluminao

    recproca entre literatura e msica (do grego mlos/canto + potica). Ao delinear as

    tipologias dessa relao intersemitica, Scher distinguiu trs tipos de estudos,

    classificados de acordo com a natureza do objeto4. As trs principais formas de se

    abordar um estudo melopotico so: msica e literatura, literatura na msica e

    msica na literatura. Por ser a abordagem aqui utilizada, ater-nos-emos apenas ao

    ltimo tpico.

    Tambm denominada (nesse caso pela prpria OLIVEIRA) como estudo

    msico-literrio, essa modalidade a de maior interesse para a literatura. Entre os

    vrios objetos de anlise utilizados na perspectiva levantada, destacamos a msica

    nas palavras, as recriaes literrias com efeitos musicais e a estruturao de textos

    literrios sugestiva de tcnicas de composio musical, justamente por serem

    elementos que fazem parte de nossa pesquisa. Tal abordagem investiga questes

    4 Detalhamento da estrutura nas obras Interrelations of Literature (1982) e Music and Text (1992). A proposta

    desses estudos foi apontada originalmente por Calvin Brown em Music and Literature (1948).

  • 25

    de mbito literrio pelo vis da msica e pode receber contribuies de outras

    disciplinas do conhecimento, como a esttica, que investiga a dimenso filosfica do

    fenmeno artstico.

    Seguindo princpios semelhantes, Luiz Piva (1990) trabalha com duas formas

    de influncia nas relaes entre literatura e msica: a influncia horizontal, onde se

    observam referncias a instrumentos musicais, formas, harmonias; e a influncia

    vertical, que analisa a utilizao de tcnicas e modos de estruturao de uma arte

    em outra, por isso de ordem mais profunda e real. Identificamos na ltima maiores

    possibilidades de auxlio analtico.

    Dentro da abordagem metodolgica apresentada por Oliveira, Jean-Louis

    Cupers ainda distingue quatro linhas de pesquisa especficas que podem contribuir

    no foco analisado. A que nos diz respeito aquela que define o estudo como de tipo

    histrico, tcnico ou esttico, investigando afinidades analgicas e paralelas ou

    divergncias estruturais entre artistas e obras diversas. As possibilidades

    intersemiticas a estabelecidas, no que concerne ao intrnseco desse tipo de

    relao, so valorizadas pela autora:

    Uma esttica intersemitica, que inclui a melopotica, ao sublinhar diferenas e semelhanas, contribui para a investigao da natureza especfica de cada arte e do fenmeno esttico em geral, alm de representar uma resposta para as incertezas e rupturas da arte contempornea. (OLIVEIRA, 2002, p. 11, grifo nosso)

    Com isso, o que importa esclarecer que no pretendemos trabalhar a

    hiptese de uma traduo, mas sim de uma relao intersemitica, pois nenhuma

    das obras presentes no corpus faz meno direta ou indireta prxima. Essa

    explicao vale, inclusive, para as relaes com as outras artes alm da msica.

    Nosso profundo interesse pela estrutura intersemitica de gua Viva corresponde

    proporcionalmente ao que constatamos com as ltimas palavras de Oliveira,

    acreditando que com esse livro Clarice Lispector arrisca uma resposta ao homem

    moderno e seu mundo.

  • 26

    1.2 Ecos Dodecafnicos

    A arte [...] no mera expresso da natureza exterior,

    mas tambm da interior. Arnold Schoenberg

    gua Viva, ao mencionar enfaticamente aspectos do domnio musical,

    permite-se usufruir de diversos elementos dessa linguagem, valendo-se de seu

    vocabulrio, sua lgica, referenciando gneros, tcnicas e obras oriundas da arte

    dos sons. Encontramos no texto a citao direta a dois importantes compositores:

    Mozart (p. 18) e Stravinski (p. 71). A meno ao primeiro deles, muito breve e

    objetiva (Quero a iseno de Mozart.), parece-nos indicar apenas um lugar comum

    do imaginrio musical erudito, sem pretender maiores vinculaes de significado

    entre o texto e o artista citado. J a referncia ao outro, mais complexa, pois

    indicada pelo ttulo de uma de suas obras (Ouvi o Pssaro de Fogo e afoguei-me

    inteira.), surge como carregada de um direcionamento particular ao nome de Igor

    Stravinski (1882-1971), compositor moderno reconhecido por vincular um

    considervel grau de experimentao formal em suas prestigiosas criaes.

    O bal Pssaro de Fogo (1910), uma das primeiras obras do compositor,

    ainda est distante da dissonncia e do ritmo assimtrico que ele alcanaria, por

    exemplo, em Sagrao da Primavera (1913), mas apenas sua meno j nos parece

    suficiente para apontar as intenes de Clarice em se reportar ao dissonante, ao que

    remete a uma desconstruo de linguagem. Nenhum outro nome seria mesmo mais

    indicado para nos conduzir ao compositor escolhido para a anlise intersemitica

    entre gua Viva e a msica que buscamos: Arnold Schoenberg. Esses dois autores,

    cada um a sua maneira e estilo so os mais importantes nomes da msica moderna

    do incio do sculo XX, tambm chamada msica nova.

    Temos conscincia de que, aqui, o questionamento por que Schoenberg e

    no Stravinski? deve ganhar espao, e isso muito pertinente, afinal, se o ltimo

    quem efetivamente aparece citado no texto de Clarice, nada mais evidente que

    fosse ele o objeto a ser trabalhado numa comparao de linguagens e significados.

    Por isso, a necessidade de elucidar o caminho escolhido urge em se cumprir desde

    j, possibilitando-nos esboar uma mnima apresentao do artista que ser, daqui

    em diante, nosso objeto central de estudo para o dilogo com gua Viva.

  • 27

    Ao falarmos de Arnold Schoenberg (1874-1951), compositor austraco que

    fundou o mtodo5 do dodecafonismo, ningum melhor a ser lembrado em suas

    reflexes do que o filsofo Adorno. Respeitvel pensador das artes e manifestaes

    culturais surgidas no sculo XX, Adorno dedicou um considervel perodo (anos 30 e

    40) de sua vida e obra aprofundando-se especialmente nas motivaes filosficas

    da arte musical, interesse que permaneceria como objeto de destaque por toda sua

    vida e produo. Um de seus mais importantes trabalhos nessa rea, intitulado

    Filosofia da Nova Msica (1941), interessa-se justamente em relacionar a obra de

    Schoenberg e Stravinski, localizando as semelhanas e divergncias neles, para

    assim, compreender o novo patamar que a msica alcanou atravs de suas

    experincias. Parece-nos obrigatria a transcrio de suas palavras, nesse estudo e

    em outro momento de seus pensamentos, a respeito da comparao levantada, para

    que uma reflexo sobre a pergunta inicial seja possvel:

    [...] fez-se ressaltar com razo, por parte da escola de Schoenberg, o fato de que o conceito de ritmo adotado em geral demasiado abstratamente ainda restrito no prprio Stravinski. A verdade que nele a articulao rtmica como tal se apresenta livre, mas somente custa de todas as outras aquisies da organizao rtmica. No somente falta a flexibilidade expressiva e subjetiva do tempo musical, que Stravinski sempre tornou rgida a partir do Sacre, como tambm faltam todas as relaes rtmicas com a construo, com a combinao da composio interna e com o ritmo geral de toda a forma. O ritmo acentuado, mas separado do contedo musical. (ADORNO, 2004, p. 122)

    Em Schoenberg, a objetivao do impulso subjetivo tornou-se crucial. Ele pode ter aprendido com Brahms o trabalho de variao de temas e motivos, mas a polifonia, graas qual a objetivao do subjetivo adquire em Schoenberg um aspecto incisivo, pertence inteiramente a ele, literalmente a lembrana de algo enterrado h duzentos anos. (ADORNO, 1998, p. 154, grifo nosso)

    Se muitos acreditam esses compositores como adeptos de uma mesma

    enunciao formal, pela proximidade cronolgica e objetivos equivalentes no trato

    com a msica e sua desconstruo do clssico, Adorno vem esclarecer que a

    estilstica em cada um no s desenvolve-se por princpios diferentes como alcana

    resultados de nveis distintos (deixando clara sua preferncia). Destacamos o

    pendor subjetivo schoenbergiano nas palavras do filsofo justamente para

    posicionar a temtica do indivduo na Modernidade como uma preocupao tambm

    5 H uma grande discusso a respeito da melhor nomenclatura aplicvel ao Dodecafonismo. Termos como

    tcnica ou sistema so adotados e rejeitados pelos mais diversos tericos, com os devidos fundamentos de suas opinies. Escolhemos aqui o termo mtodo a partir deste que tem sido considerado um tratado dodecafnico, Apoteose de Schoenberg (MENEZES, 2002); o autor aponta tal definio como a mais pertinente ao interesse dodecafnico, principalmente sob a perspectiva conceitual de John Cage (1958), onde mtodo o caminho de nota para nota, atravessado pelos sons e os silncios da composio.

  • 28

    da msica e de seus expoentes. na expresso sonora e em sua potencialidade

    formal que um nome como Schoenberg encontrar sua maneira de refletir e externar

    essa interioridade do esprito.

    Quando Adorno se detm na fixao da subjetividade dentro da obra de arte,

    faz-nos perceber que a obra subsiste nesses tempos modernos como meio de

    conciliao entre o homem e o mundo, entre o sujeito e o real. Uma perspectiva

    como a de Schoenberg, assumidamente formalista, no se vale de tal ttulo

    ignorando a expectativa subjetiva que a representao esttica nutre para com seu

    criador e apreciador. Pelo contrrio, tambm aclamado como msico do expressivo,

    Schoenberg prope um projeto para a msica que apreenda nessa mesma forma o

    ncleo de uma dimenso notoriamente interna ao ser, que assuma e invoque uma

    posio crtica perante a individualidade do ouvinte.

    Visando a uma contextualizao histrica mais especfica do perodo que

    estamos trabalhando, dispomos a seguir uma sntese cronolgica da obra de

    Schoenberg com seus principais momentos criativos, colhida nos escritos de seu

    discpulo, Anton Webern (1984), que auxiliar no desenvolvimento a ser analisado

    posteriormente:

    At 1908 referncias tonais;

    1908 Trs peas para piano, primeiras peas atonais;

    1920 primeiro uso consistente do princpio serialista;

    1920-1936 fase serial ou dodecafnica;

    1922 primeira obra escrita segundo o mtodo de composio com doze sons;

    1923 Valsa, emprego sistemtico do princpio serial;

    A partir de 1936 diversidade estilstica e ocasionais retornos composio tonal;

    Continuando nas consideraes de Adorno sobre o compositor e a nova

    postura criativa que ele imps no princpio do sculo XX ao pensamento musical,

    encontramos no ensaio do professor Vladimir Safatle (2007, p. 83-85) a constatao

    de que o olhar adorniano sobre a obra de Schoenberg se preocupa em reconhecer,

    como aspecto verdadeiramente novo para os padres, uma mudana de funo da

    expresso musical. Tal compreenso no pequena, principalmente se

    considerarmos que grande parte dos admiradores de Schoenberg lhe percebe como

  • 29

    novidade apenas a ausncia, ou melhor, a problematizao do sistema tonal6. A

    idia de esgotamento desse modus operandi da msica (sistema tonal), enfatizada

    por Schoenberg em paralelo a um esgotamento do sistema de representaes at

    ento utilizado para a exteriorizao dos afetos, daquilo que a msica sempre teve

    por funo apresentar do humano. O homem moderno, dotado de novos interesses

    e necessidades internas, no poderia mais ser refletido a partir da mesma premissa

    ou, pelo menos, da mesma forma como essa premissa j servia h sculos. O

    professor arremata:

    Procurar uma forma capaz de ser a transposio direta da idia musical na dimenso do que aparece, idia que procura realizar exigncias expressivas que no se reconhecem na gramtica dos sentimentos reificada pelo tonalismo, o que leva Schoenberg ao dodecafonismo. (SAFATLE, 2007, p. 85, grifo nosso)

    possvel perceber, pela preocupao que o compositor tem com o sistema

    tonal, que em nenhum momento se intenciona um distanciamento ao que a msica

    objetivou por toda sua histria, ou seja, com aquilo que se considera tradio7; muito

    antes, o que Schoenberg prope justamente um intensificar da aparncia musical

    a partir de elementos internos, legando ao aparente o poder de revigorar a

    naturalizao do antigo sistema. Com o estabelecimento da srie dodecafnica, a

    idia musical (conceito que aprofundaremos mais adiante) se far notar no prprio

    processo de construo da composio, como se a estrutura interna da obra

    rompesse a superfcie das formas sonoro-tonais para se impor como objeto primeiro

    ao ouvinte. Essa a resposta que ele acreditava melhor frente ao esgotamento das

    representaes, e que vem esclarecer suas prprias palavras quando da publicao

    de Problemas da Harmonia (1934), onde declarou: o material musical rico de

    possibilidades infinitas [...] toda nova possibilidade exige um novo tratamento, pois

    implica novos problemas, ou ao menos exige uma soluo nova de problemas

    antigos. (apud MENEZES, 2002, p. 94).

    A partir das consideraes at aqui realizadas, que visaram a uma breve

    iniciao ao nome e fora da obra de Schoenberg, acreditamos j ser possvel

    6 Apesar de recorrente entre a crtica e o pblico, o conceito de atonalidade sempre foi muito discutido.

    Schoenberg, por exemplo, era contrrio a ele, pois tal nomenclatura designaria, em sua opinio, a idia de privao de som. Ele sempre preferiu a expresso tonalidade suspensa ou pantonalidade. Stravinski, igualmente contrrio, valorizava mais o que entendia por antitonalidade.

    7 No artigo Das Werk Arnold Schoenberg (1931), o compositor esclarece os parmetros de sua tradio pessoal,

    citando mestres que influenciaram suas experincias e o que ele apreendeu da obra de cada um; so eles: Bach, Mozart, Beethoven, Wagner e Brahms, alm de Schubert, Mahler, Strauss e Reger.

  • 30

    traar os primeiros paralelos entre o universo criativo do compositor e a textualidade

    de gua Viva. O impulso subjetivo, em ambos, manifesta-se exatamente de acordo

    com o ltimo aspecto citado do projeto schoenbergiano, por isso o interesse em

    retornar quilo que Clarice Lispector proporcionou com sua obra. Assim como a

    msica dodecafnica depositou na aparncia da forma sonora a essncia de suas

    estruturas e valores internos de composio, gua Viva tambm vem explorar

    atravs de rebuscados procedimentos de escrita os mais complexos fundamentos

    da criao potica, expondo a eloqncia da tradio literria a uma inevitvel

    fragilidade representacional, em consonncia ao pensamento e situao humana

    contextualizados por aquele sculo.

    Um primeiro aspecto capaz de aproximar Clarice e Schoenberg, anterior ao

    mtodo musical j mencionado, pois at dentro dele contido, consiste na

    apropriao de um gnero musical que se revela como fundamento na obra de

    ambos os autores: a Msica de Cmara. Ren Leibowitz (1981) enfatiza a

    importncia no uso que Schoenberg faz desse tipo musical, desde seus primeiros

    anos de aprendizado at suas mais complexas obras. Enquanto a maior parte dos

    jovens compositores se deslumbra facilmente com as potncias opersticas ou

    sinfnicas da tradio musical, Schoenberg se destacou pela precoce maturidade ao

    saber evoluir modesta e progressivamente seus exerccios de composio atravs

    de situaes elementares comumente presentes na execuo da Msica de

    Cmara. Mesmo ao servir-se de arranjos orquestrais, com ampla diversidade

    instrumental, Schoenberg sempre permaneceu fiel ao esprito da Msica de Cmara,

    conferindo vozes prprias e individuais ao tecido polifnico, impedindo, assim, os

    efeitos frequentemente atribudos ao som orquestral de simplesmente esconder as

    fraquezas da composio, pois sob a nova perspectiva, a orquestra se valoriza por

    clarificar o pensamento musical. Mesmo suas obras de influncia mais wagneriana

    (Sinfonias de Cmara, Friede auf Erden, Segundo Quarteto) nunca se afastaram

    dessa sensibilidade intimista peculiar ao tratamento da Msica de Cmara. Isso o

    que permite identificar, no desenvolvimento de cada uma, descobertas que

    subsistem precisamente no domnio da pura sonoridade.

    Sobre o conceito de Msica de Cmara, encontramos no Dicionrio GROVE

    (1994, p. 251), a seguinte definio:

    Msica executada por pequeno conjunto e destinada a auditrio relativamente pouco numeroso, o que lhe confere um carter de intimidade que a distingue da msica de solo, orquestral ou coral [...] A principal forma

  • 31

    de msica de cmara o quarteto de cordas, seguido de vrias combinaes para cordas, instrumentos de sopro e piano.

    Selecionamos esse tipo de msica como um primeiro elo entre as intenes

    de Schoenberg e Clarice Lispector porque a prpria escritora no nos deixa outra

    alternativa seno encarar sua escrita em gua Viva como uma prtica de cmara.

    Ao mencionar essa forma de execuo musical, Clarice sabia muito bem as

    implicaes que trazia para a forma de seu universo textual, j que tal recorrncia

    ecoa sobremaneira a constituio do livro em si. Importa observarmos mais

    atentamente os principais momentos de gua Viva em que ela deixa isso evidente:

    1) De vez em quando te darei uma leve histria ria meldica e cantbile para

    quebrar este meu quarteto de cordas: um trecho figurativo para abrir uma

    clareira na minha nutridora selva. (p. 39)

    2) Que msica belssima ouo no profundo de mim. feita de traos

    geomtricos se entrecruzando no ar. msica de cmara. Msica de cmara

    sem melodia. modo de expressar o silncio. O que te escrevo de

    cmara. (p. 56, grifo nosso)

    3) Meu amadurecimento de um tema j seria uma ria cantbile outra pessoa

    que faa ento outra msica a msica do amadurecimento do meu quarteto.

    Este antes do amadurecimento. [...] Quase no existe carne nesse meu

    quarteto. Pena que a palavra nervos esteja ligada a vibraes dolorosas,

    seno seria um quarteto de nervos. Cordas escuras que, tocadas, no falam

    sobre outras coisas, no mudam de assunto so em si e de si, entregam-

    se iguais como so, sem mentira nem fantasia. (p. 97)

    O destaque na segunda citao atesta plenamente a associao direta entre

    o conceito musical que levantamos e a escritura clariceana, pois a relao

    instituda pela prpria autora. Ora, a Msica de Cmara faz parte mesmo da

    essncia de gua Viva, j que uma das condies desse texto ser de cmara. A

    conscincia conceitual de Clarice na utilizao do termo se afirma todas as vezes

    em que ela cita a formao do quarteto, como vimos, a principal forma de executar

    esse tipo de msica. Ouvi-la no profundo de mim, alm de concordar com o carter

    de intimidade evocado pela msica, age diretamente sobre o texto conferindo-lhe

    uma significao cada vez mais interiorizada, representativa daquilo que interno

    tanto ao narrador/autor como ao prprio recurso escritural encadeado pelas

    palavras. Palavras que pedem para serem ouvidas em cmara.

  • 32

    no incio da jornada que ela promete a leve histria (primeira citao),

    promessa que ser cumprida apenas parcialmente, pois a descoberta de que uma

    histria pode corromper sua voz permear todo o decorrer do livro, deixando a

    narradora numa permanente hesitao sobre o se entregar ou no a um enredo. A

    ltima citao mostra exatamente isso. Ao falar de pouca carne no quarteto j

    sabemos que o quarteto a prpria obra gua Viva , Clarice est se referindo a

    pouca histria, a pouca trama que encarna seu livro. A idia de uma carnalidade

    escritural reveladora principalmente com a continuidade do texto, pois, a, a

    superfcie da carne precisar ser penetrada at que se alcancem os nervos, j que

    so eles os correlatos das palavras, das frases que se esticam por toda a obra numa

    tenso contnua que nunca se deixa suspender. Ainda que gua Viva no seja

    identificado por Clarice com a entranha da carne (o nervo), pois esta uma parte

    muito sensvel e dolorosa, ele deve sim, ser encarado como uma vibrao, uma

    espcie de suspenso da prpria experincia ficcional literria. Como se um silncio

    a houvesse. Um vibrato oscilante, inaudvel, que expe na superfcie do texto aquilo

    que lhe mais particular, ntimo.

    O modo de expressar o silncio abordado por Clarice termina indo de

    encontro diretamente ao projeto musical adotado pela Modernidade no sculo XX,

    pois a partir de Schoenberg esse interesse movimentou consciente ou

    inconscientemente uma larga variedade de compositores, todos eles (Berg, Webern,

    Boulez, Cage, entre outros) devedores das conquistas que nosso compositor logrou.

    A prpria definio de Dodecafonismo, analisada mais adiante, varia numa

    compreenso entre o que pode ser chamado de srie de doze sons e srie de

    doze intervalos, pois o intervalo musical (a pausa e a permanncia sonora devida

    a uma durao) um dos elementos mais responsveis pela distribuio dos sons de

    forma que eles no se repitam. Da mesma forma, os recursos sintagmticos

    utilizados por Clarice em seu texto, responsveis pelos contornos do intervalo

    literrio, desde a pontuao, flexo verbal, passando pela quebra nas oraes e

    pargrafos, rompem com a prtica literria convencional distribuindo as palavras de

    forma que elas no repitam algo experimentado anteriormente em literatura. O

    silncio das palavras em Clarice ultrapassa o sensvel desinteresse narrativo do livro

    (a falta de carne) atingindo o mago da configurao escritural com um

    estranhamento que se percebe corrente em toda a obra da escritora, mas aqui ainda

    mais evidente, pois nico e em unidade com os objetivos de sua criao.

  • 33

    Estranhamento que produz silncio. Silncio que perpassa tudo que ela produziu

    anteriormente, para aqui, enfim, se fazer ouvir8.

    No por acaso que ela afirma repetidamente estar gerando uma ria

    cantbile por todo o livro (a tentativa do enredo). Se nos lembrarmos de que a ria

    constitui, na maior parte das composies musicais, um canto que representa parte

    de um todo maior, iluminamos gua Viva da melhor maneira como ele pode ser lido:

    uma parte que significativamente vem representar o todo maior da obra clariceana,

    concentrando em si tudo que pode, reconhecidamente, ser atribudo como

    caracterstico da autora, seu estilo inconfundvel, sua voz, que do incio ao fim se

    eleva como um vibrato na literatura brasileira, ainda mais, na literatura moderna.

    Numa entrevista, Clarice exps sua percepo da afinidade entre a escrita e a

    msica, pertinente de ser lembrada aqui:

    As palavras que me impedem de dizer a verdade. Simplesmente no h palavras. O que no sei dizer mais importante do que o que eu digo. Acho que o som da msica imprescindvel para o ser humano e que o uso da palavra falada e escrita so como a msica, duas coisas das mais altas que nos elevam do reino dos macacos, do reino animal, e mineral e vegetal tambm. Sim, mas a sorte s vezes. Sempre quis atingir atravs da palavra alguma coisa que fosse ao mesmo tempo sem moeda e que fosse e transmitisse tranqilidade ou simplesmente a verdade mais profunda existente no ser humano e nas coisas. Cada vez mais eu escrevo com menos palavras. Meu livro melhor acontecer quando eu de todo no escrever. Eu tenho uma falta de assunto essencial. (apud BORELLI, 1981, p. 84-85)

    No h dvida de que gua Viva pode ser considerado o livro em que ela

    chegou mais perto de cumprir esse desejo confesso, pois o resultado da escritura,

    atravessado de ponta a ponta pela expresso do silncio, no deixa de emanar uma

    aparncia de no escrito. As incurses dentro do domnio musical encontradas no

    livro refletem primeiramente as convices da autora, que semelhana do

    pensamento aristotlico, atribuem ao efeito musical harmnico uma profunda relao

    com a alma humana, capaz de desloc-la de seu nvel terrestre e obrigatoriamente

    material.

    por isso que, para a transmisso da tranqilidade desejada, Clarice investe

    sua linguagem na direo de um estranhamento que no compactua simplesmente

    com um vocabulrio rebuscado ou uma pesquisa estilstica hermtica; ao contrrio,

    8 A aplicao do termo estranhamento, corrente na crtica sobre Clarice Lispector, tambm encontra lugar em

    nossa pesquisa. Conhecido desde a retrica clssica, foi retomado com vigor justamente no sc. XX, atravs dos formalistas russos. Segundo Vitor Erlich, o estranhamento (priem ostrannenija) consiste em introduzir alteraes no signo convencional, at que ele se torne polissmico, aumentando assim sua carga informacional. Representa um desvio da norma, uma ruptura com o significado, uma expanso do significante.

  • 34

    uma das marcas mais reconhecidas de seu texto a primazia por um efeito

    impressionante de naturalidade na linguagem, como se a diferena clariceana

    flusse tranquilamente no ato de criao. No por acaso, tambm exatamente isso

    que acompanhamos na criatividade de Arnold Schoenberg, e que Leibowitz (1981)

    deixa bem claro ao descrever a notvel facilidade com que o compositor multiplicava

    suas obras em to rpido tempo. Ora, o prprio compositor renegava o jargo de

    que sua msica fosse somente para intelectuais, de que a apreenso sonora se

    desse apenas dentro de parmetros racionais de recepo. Consciente da

    impopularidade de sua msica (pelos menos nos anos iniciais), ele mesmo registrar

    posteriormente9 a necessidade de se encarar inclusive as composies

    dodecafnicas com uma sensibilidade voltada para o emocional, pois como suas

    palavras afirmam, a compreenso musical est ligada no apenas ao interesse

    intelectual, mas satisfao das emoes. Talvez, por isso, ele nunca tenha se

    afastado, nem em sua maturidade autoral, das influncias que a Msica de Cmara

    oferecia para enriquecer seu experimentalismo com a simplicidade devida.

    Nunca, por mais que o projeto dodecafnico aparentasse uma ruptura total

    com os padres musicais clssicos, em nenhum momento Schoenberg trabalha com

    a inexistncia de harmonia, a dimenso vertical gerada pela simultaneidade de sons,

    at porque sem ela o prprio objeto da msica impossvel de se concretizar. O

    controle da harmonia na produo do compositor est sempre implcito,

    sedimentando toda a idia da nova e inusitada construo meldica. To inusitada

    como a obra de Clarice; Inusitada, no entanto, apenas no sentido imagtico e

    semntico, no na sintaxe. (SANTANA, 1975, p. 207) E mais: A linguagem de

    Clarice Lispector no nada obscura. Obscura a experincia do que ela trata.

    (NUNES, 1976, p. 111) As palavras utilizadas pela autora, assim como os doze tons

    selecionados por Schoenberg, no diferem daquelas de que todos os escritores e

    msicos se valem. O que lhes confere o inusitado resultado das obras pois toda a

    crtica unnime em reconhecer essa caracterstica como uma constante nos dois

    artistas ultrapassa a constituio dessas matrias-primas para concentrar-se na

    manipulao delas, na maneira como se dar sua organizao, seu encadeamento.

    9 Form in the arts, and especially in music, aims primarily at comprehensibility. The relaxation which a

    satisfied listener experiences when he can follow an idea, its development, and the reasons for such development is closely related, psychologically speaking to a feeling of beauty. Thus, artistic value demands comprehensibility, not only for intellectual, but also for emotion satisfaction. He asserts that composition with twelve tones has no other aim than comprehensibility. (apud CRANOR, 2007, p. 25)

  • 35

    O levantamento de tais consideraes, originado pela adoo da Msica de

    Cmara como um parmetro comum, abre-se para o domnio do dodecafonismo

    muito naturalmente, pois, como visto, j no tem sido possvel prosseguir a anlise

    sem recorrer ao mtodo que se ergue como nosso interesse principal no

    pensamento de Schoenberg. Urge uma conceituao mais precisa do mtodo

    dodecafnico, pois se at aqui ele tem sido mencionado algumas vezes, a partir da

    relao proposta com gua Viva, ser ele agora o principal ponto de contato entre

    os dois autores. Temos em Adorno, um excelente ponto de partida analtico:

    No se deve entender a tcnica dodecafnica como uma tcnica de composio, como por exemplo, a do impressionismo. Todas as tentativas de utiliz-la desta maneira conduzem ao absurdo. Pode-se melhor compar-la com a disposio das cores sobre a paleta do pintor do que com um verdadeiro procedimento pictrico. A ao de compor s comea, na verdade, quando a disposio dos doze sons est pronta. Por isso a composio neste caso no mais fcil e sim mais difcil. Exige, quer se trate de um tempo singular ou de toda uma obra em mais tempos que cada composio derive de uma figura fundamental ou srie. Entende-se por isto uma determinada ordenao dos doze sons disponveis no sistema temperado, como por exemplo, d sustenido, l, si, sol, l bemol, f sustenido, si bemol, r, mi, mi bemol, d, f que a srie da primeira composio dodecafnica publicada por Schoenberg. Em toda a composio cada som est determinado por esta srie; j no existem notas livres, e somente em casos limitados e bastante elementares, que se apresentaram nos primrdios da tcnica dodecafnica, esta srie se expe em toda uma obra sem variaes. (ADORNO, 2004, p. 55, grifo nosso)

    Um limite. Ao mesmo tempo em que o dodecafonismo ilumina um novo

    horizonte para os parmetros musicais, subvertendo as expectativas de criao at

    ento utilizadas, em nenhum momento ele sinaliza trabalhar sem a necessidade de

    um parmetro ou limitao formal. Como podemos perceber j em sua definio, a

    idia de um limite criativo acompanha toda a estrutura dodecafnica como um

    elemento ontolgico de sua prpria forma. A sntese de procedimentos apontada por

    Adorno equilibra-se sobre um tnue contato entre a liberdade e o rigor, pois ao

    mesmo tempo em que esse mtodo participa de um projeto reconhecidamente

    notado por ultrapassar as fronteiras formais da composio, ele lida com novos

    limites a serem obedecidos, ainda dentro de uma concepo esttica formal, mas j

    em outra ordem de interesses, visto que esse limite consiste como objetivo e mtodo

    de criao agora almejado.

    A organizao das composies de Schoenberg jamais tolerou qualquer

    gratuidade ou ornamento, como ele preferia dizer. As dissonncias e a proeminente

    polifonia sempre se do dentro de uma rigorosa lgica que s aparentaria

  • 36

    despreocupao formal em ouvidos despreparados. Por isso, natural o senso de

    estranhamento causado pela audio de sua obra. O rebuscamento meldico que

    praticamente nos impede de sequer assobiar qualquer composio dodecafnica,

    pois toda ela permeada por uma sensao de imprevisibilidade, nos parece

    intrinsecamente ligado ao que experimentamos na estranha prosa que Clarice

    desenvolve em gua Viva, impossvel de ser narrada ou resumida por terceiros.

    Por mais que encontremos profundas semelhanas entre esse livro e o

    restante da produo da autora, ou vislumbremos algumas recorrncias estilsticas

    na prosa contempornea de outros escritores, gua Viva permanece revestido por

    uma espcie de aura criativa associada impresso de plena liberdade literria

    (em continuidade ao que vinha sendo desenvolvido pela literatura moderna mundial).

    Porm, absolutamente nada pode ser apontado nessa obra, apesar da constante

    sensao de improviso, como algo no planejado ou arbitrrio, pois o prprio texto

    indica a necessria presena de um limite para sua elaborao: Quero a

    experincia de uma falta de construo. Embora este meu texto seja todo

    atravessado de ponta a ponta por um frgil fio condutor qual? O mergulho na

    matria da palavra? o da paixo? Fio luxurioso, sopro que aquece o decorrer das

    slabas. (LISPECTOR, p. 31-2)

    Se o fio condutor de gua Viva pode ser encontrado na matria da palavra,

    essa uma resposta que no teremos, pois nem interesse do mistrio clariceano

    oferecer repostas; mas somente a abertura existente na indagao feita suficiente

    para confirmar a importncia que a palavra, enquanto matria-prima escritural,

    adquire dentro desse contexto, onde pela palavra a personagem se liberta e ao

    mesmo tempo se restringe a uma expresso que a limita. Qualquer dilogo iniciado

    com outras artes s poder se efetuar dentro do domnio semntico da palavra

    escrita, sendo esse um dos limites mais sensveis que o texto transmite, e que nos

    reporta realidade da expresso musical. Assumir que cada nota de um tema

    meldico reflete vagamente o tema inteiro (BERGSON, 2006, p. 136), mxima

    perfeitamente aplicada para o raciocnio dodecafnico, reitera nossa associao

    com gua Viva, pois, a, cada palavra parece refletir o texto inteiro, assim como as

    demais artes mencionadas.

    A presena do fio luxurioso, elemento limitador de Clarice, tambm chamado

    de sopro que aquece o decorrer das slabas (interessante notar como at o limite a

    se revela exuberantemente potico), pede que um parntese seja aberto para se

  • 37

    escutar o que Lyotard discutiu em sua anlise do sopro (souffle). Segundo ele, o

    sopro um vento vazio que passa e no passa, atravessando pela sua existncia

    todos os obstculos que geram o audvel. Declara: O sopro atonal. [...] A msica

    no pode fazer com que se oua o sopro, no pode imit-lo, pois nada de audvel

    pode se parecer com ele. (LYOTARD, 1996, p. 202) Assim, curioso que a

    liberdade criativa de Clarice seja guiada justamente por um sopro. Mais uma vez

    encontramos no somente um questionamento s convenes da tonalidade

    musical, mas tambm um forte interesse pelo silncio, por aquilo que ouvido para

    alm do sentido auditivo. Se a msica no pode imitar o sopro, tambm no

    pertence literatura a capacidade de imitar o que Clarice realiza em gua Viva.

    Os impulsos meldicos em Schoenberg, igualmente no mais includos na

    ordem musical do audvel, mas sim no complexo estrutural das composies,

    ganham espao acentuando uma coerncia interna composio, conhecendo uma

    nova possibilidade de sntese formal atravs da dialtica entre a disciplina e a

    liberdade, e fazendo com que o uso da polifonia10 ultrapasse o domnio dos sons no

    dodecafonismo, para instaurar o primado da subjetividade, tambm inimitvel.

    Se retomarmos o trecho j citado onde Clarice escreve: Cordas escuras que,

    tocadas, no falam sobre outras coisas, no mudam de assunto so em si e

    de si, entregam-se iguais como so, sem mentira nem fantasia. (p. 97, grifo nosso);

    nele encontraremos os mesmos princpios que norteiam o mtodo de Schoenberg. O

    apoio intersemitico que a palavra clariceana vai buscar na msica encontra na

    expresso desse compositor um exemplo prtico de aplicao ao que consta no

    texto. Assim como Clarice recusa-se a mudar de assunto, pois ele nem representa

    uma hiptese para a continuidade de sua escrita, a srie dodecafnica no lida com

    opes que estejam fora da mesma, da origem em si. A conseqente circularidade

    desse princpio o que termina por abrir as obras em questo a indagaes que no

    objetivam nada alm da linguagem, pois toda possibilidade de um alm no poder

    mais habitar um lugar que no seja a prpria linguagem.

    Um dos desenhos feitos por Schoenberg para ilustrar didaticamente essas

    noes do princpio serial, trabalhando as possibilidades de variao a partir da srie

    de origem, pode, em muito, contribuir no assunto que discutimos:

    10

    Tcnica tradicional de composio, formada lentamente numa evoluo de vrios sculos a partir da melodia gregoriana, que une duas ou mais vozes (vocais ou instrumentais) dentro de uma linha meldica e rtmica com princpio dinmico individualizado.

  • 38

    Figura 1 (LEIBOWITZ, 1981, p. 98)

    a partir da srie fundamental de doze sons que a composio dodecafnica

    deriva todos os seus elementos, oriundos dos motivos, variaes e transposies

    dessa srie original11. Nenhum desses sons pode se elevar acima dos outros onze,

    nenhum pode ser repetido mais vezes que qualquer outro, pois somente assim o

    tonalismo ser desconstrudo para que uma nova expresso se concretize. Os

    significados formais abstrados da ilustrao acima, toda esta constituda por

    quadrantes simetricamente elaborados, fazem reflexo ao que percebemos em gua

    Viva. Por mais que Clarice institua uma perspectiva escritural interartstica, nunca

    seu texto consegue fugir dos limites impostos pela palavra e dos resultados que ela

    implica. As notas de uma composio serial intercalam-se dentro de uma s partitura

    da mesma forma que as palavras de gua Viva se relacionam, em constante e

    repetida auto-referncia; e essa recorrncia se d, pelo menos, em dois nveis: num

    nvel estilstico propriamente dito, pela utilizao de anforas e no nvel simblico,

    reempregando as mesmas imagens convertidas em motivos recorrentes.

    (SANTANA, 1975, p. 205)

    Todos os nveis de uma narrativa (sintagmtico e paradigmtico) so assim

    colocados por Clarice em permanente estado de alerta. No h signo ou vocbulo

    que no tenha seu momento de especial ateno dentro de gua Viv