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Nova Economia_Belo Horizonte_22 (2)_203-233_maio-agosto de 2012 Metalistas x papelistas: origens teóricas e antecedentes do debate entre monetaristas e desenvolvimentistas Pedro Cezar Dutra Fonseca Universidade Federal do Rio Grande do Sul Maria de Lourdes Rollemberg Mollo Universidade de Brasília Resumo O artigo analisa o debate entre metalismo e papelismo, ocorrido no Brasil, na segunda metade do século XIX, e defende que esta úl- tima foi uma das correntes que contribuíram para a gênese do desenvolvimentismo. Para tanto, retoma as controvérsias monetárias da Inglaterra, desde o início daquele século, e nelas identifica as origens teóricas do debate brasileiro, com destaque especial à questão referente à neutralidade ou não da moeda. A seguir, mostra como esse foi adaptado às peculiaridades da economia brasileira, com ênfase à opção dos papelistas pelo crescimen- to, rompendo com a ortodoxia da época. A influência no desenvolvimentismo nascente é trabalhada empiricamente por meio de ma- nifestações assumidas por Getúlio Vargas, já que esse foi o personagem central do Estado desenvolvimentista, que marcou a experiên- cia histórica brasileira após 1930. Palavras-chave economia brasileira, pensamento econômico latino- americano, desenvolvimento econômico, bulionismo, controvérsias monetárias. Classificação JEL B10, E42, N16, N26 Abstract e paper analyzes the debate between metallism and “paper moneyism” which took place in Brazil in the second half of the 19th century and advocates that the latter was one of the currents that contributed to the genesis of developmentalism. In order to do so, it reviews the monetary controversies in England since the beginning of that century. Based on them, it identifies the theoretical origins of the Brazilian debate, highlighting the issue that refers to the neutrality or non- neutrality of money. Next, it shows how this question was adapted to the peculiarities of the Brazilian economy, emphasizing the “paper moneyists’”option for growth, departing from the orthodoxy of that time. e influence upon the fledgling developmentalism is empirically studied based on the speeches of Getulio Vargas, since he was the central character of the developmentalist State that was central to the Brazilian post-1930 historical experience. Keywords Brazilian economy, Latin- American economic thought, economic development, bullionism, monetary controversies. JEL Classification B10, E42, N16, N26

Metalistas X Papelistas

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Origens teóricas e antecedentes do debate entre monetaristas e desenvolvimentistas.

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    Metalistas x papelistas: origens tericas e antecedentes do debate entre monetaristas e desenvolvimentistas

    Pedro Cezar Dutra FonsecaUniversidade Federal do Rio Grande do Sul

    Maria de Lourdes Rollemberg MolloUniversidade de Braslia

    ResumoO artigo analisa o debate entre metalismo e papelismo, ocorrido no Brasil, na segunda metade do sculo XIX, e defende que esta l-tima foi uma das correntes que contriburam para a gnese do desenvolvimentismo. Para tanto, retoma as controvrsias monetrias da Inglaterra, desde o incio daquele sculo, e nelas identifica as origens tericas do debate brasileiro, com destaque especial questo referente neutralidade ou no da moeda. A seguir, mostra como esse foi adaptado s peculiaridades da economia brasileira, com nfase opo dos papelistas pelo crescimen-to, rompendo com a ortodoxia da poca. A influncia no desenvolvimentismo nascente trabalhada empiricamente por meio de ma-nifestaes assumidas por Getlio Vargas, j que esse foi o personagem central do Estado desenvolvimentista, que marcou a experin-cia histrica brasileira aps 1930.

    Palavras-chaveeconomia brasileira, pensamento econmico latino-americano, desenvolvimento econmico, bulionismo, controvrsias monetrias.

    Classificao JEL B10, E42,

    N16, N26

    AbstractThe paper analyzes the debate between metallism and paper moneyism which took place in Brazil in the second half of the 19th century and advocates that the latter was one of the currents that contributed to the genesis of developmentalism. In order to do so, it reviews the monetary controversies in England since the beginning of that century. Based on them, it identifies the theoretical origins of the Brazilian debate, highlighting the issue that refers to the neutrality or non-neutrality of money. Next, it shows how this question was adapted to the peculiarities of the Brazilian economy, emphasizing the paper moneyistsoption for growth, departing from the orthodoxy of that time. The influence upon the fledgling developmentalism is empirically studied based on the speeches of Getulio Vargas, since he was the central character of the developmentalist State that was central to the Brazilian post-1930 historical experience.

    Keywords

    Brazilian economy, Latin-American economic thought, economic development, bullionism, monetary controversies.

    JEL Classification B10, E42, N16, N26

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    1_ IntroduoAs controvrsias entre economistas acom-panham a histria do pensamento econ-mico desde seu nascedouro. Alguns argu-mentos tendem a ser repetir no tempo, por serem decorrentes de supostos teri-cos ou postulados bsicos de cada teoria. Aprende-se sempre, porm, revisitando suas origens, posto que alguns argu-mentos passam a ser mais bem aprecia-dos com a distncia do tempo e tambm porque os condicionantes histricos da predominncia de algumas teorias sobre outras podem ser mais bem percebidos.

    Neste artigo, analisaremos anti-gas controvrsias sobre economia e polti-ca monetria na Inglaterra do sculo XIX, de forma a melhor entender seu refle-xo no Brasil da poca e, subsidiariamen-te, tirar concluses sobre as razes mone-trias do desenvolvimentismo. Para isso, descreveremos, no primeiro item do ar-tigo, as controvrsias entre bulionistas e antibulionistas e entre a Currency School e a Banking School, destacando seus prin-cipais argumentos e concluses, em par-ticular no que se refere ao debate sobre a neutralidade ou no neutralidade da mo-eda. Em seguida, no segundo item, ana-lisaremos o reflexo desse debate no Brasil, acompanhando as discusses entre meta-listas e papelistas. Destacaremos, ento, a posio de cada um dos grupos e a anlise

    dos problemas que o padro-ouro apre-sentava para o andamento da economia brasileira, como forma de explicitao da no neutralidade da moeda. Assim fa-zendo, buscaremos justificar, no tercei-ro item, a origem papelista do desenvol-vimentismo. Ao final, apresentamos um sumrio das principais concluses.

    2_ As controvrsias monetrias da Inglaterra no sculo XIX

    O sculo XIX conheceu duas controvr-sias monetrias famosas na Inglaterra: dos bulionistas X antibulionistas e da Currency School X Banking School. Do lado ortodoxo da primeira controvrsia, o dos bulionistas, encontrava-se Ricardo, como seu representante mais proemi-nente, inspirando com seus argumentos alguns representantes ortodoxos da Cur-rency School, anos mais tarde. Tambm podemos citar Wheatley e Thornton, este ltimo mais moderado (OBrien, 2004), como representantes dos bulio-nistas. No polo heterodoxo, entre os antibulionistas, poderemos citar, por exemplo, Bosanquet, Torrens e Boase.

    Quanto aos representantes da controvrsia entre a Currency School e a Banking School, temos agora, no polo mais ortodoxo da primeira, personagens como Torrens, antigo antibulionista, o

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    que mostra certa ortodoxizao das dis-cusses, o que reforaremos ao longo da anlise adiante. Alm de Torrens, desta-ca-se o nome de Lord Overstone. Tooke (1840), que o representante mais pro-eminente da Banking School, podendo-se citar tambm como participante da Banking School o nome de Fullarton.

    A primeira controvrsia ocorreu entre 1797 e 1825. A grande preocupa-o dos bulionistas era com o controle da oferta monetria como instrumento para controle de preos, defensores que eram da Teoria Quantitativa da Moeda (TQM). Segundo eles, o prmio sobre o bullion (ouro em espcie), em relao ao valor do ouro cunhado (mint price) era sinal de excesso de emisso de notas ban-crias (OBrien, 2004). Esse argumento, alm de lhes valer o ttulo de bulionis-tas, fazia-os crer que a inflao era fruto de excesso de emisso. Esse poderia ser constatado por sintomas como a queda da paridade do pas emissor e a depre-ciao do papel moeda relativamente ao bullion. Dizia Ricardo (1951, p. 63) a es-se respeito:

    evidente, ento, que a depreciao do meio circulante a consequncia necessria da sua redundncia; e que no estado comum da moeda nacional a depreciao neutralizada pela ex-portao de metais preciosos.1

    Tratava-se, pois, de um proble-ma causado pela administrao mone-tria por parte do Banco da Inglaterra, que emitia em excesso o papel-moeda ou papel-crdito (Dean, 1980),2 Cabia, portanto, controlar a emisso de notas bancrias, para o que se poderia contar, por exemplo, com as operaes de mer-cado externo. Por meio do mecanismo chamado Price Specie Flow, menciona-do por Harris, no sculo XVIII, e depois por Hume e Cantillon, era possvel espe-rar que o pas emissor, tendo preos mais elevados, e sob condies de conversibili-dade-ouro, fosse levado a importar mais. Isso levaria a vazamentos de ouro, dre-nando o excesso de moeda e garantin-do no apenas o equilbrio do balano de pagamentos, mas tambm a distribui-o equilibrada dos metais preciosos en-tre os pases. Esse era, portanto, o argu-mento usado para justificar os dficits de balano de pagamentos observados no perodo, atribudos suspenso da con-versibilidade da moeda, que vigorou en-tre 1797 e 1821, apesar da vigncia for-mal do padro-ouro.

    Os bulionistas moderados, co-mo Thornton, chamavam a ateno pa-ra outras razes para o prmio do bullion (OBrien, 2004), como era o caso de uma demanda extraordinria do metal, ou um balano de pagamentos desfavorvel

    1 A traduo dos textos em ingls foi feita livremente, razo pela qual, em nota de p de pgina, constam as citaes originais em ingls como a que se segue. It is evident, then, that a depreciation of the circulating medium is the necessary consequence of its redundancy; and that in the common state of the national currency this depreciation is counteracted by the exportation of the precious metal.2 Quanto ao papel monetrio dos country banks, esse era visto como podendo ser controlado pelo Banco da Inglaterra.

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    por motivos independentes de emisso exagerada, exigindo mais pagamentos em bullion. Era tambm o caso da velo-cidade de circulao da moeda variando em funo do estado de confiana. Nes-ses casos, no seria adequada uma con-trao monetria.

    Essa era uma posio moderada com relao a Ricardo, que afirmava, ao contrrio, a esse respeito:

    No tenho conhecimentos de causas ou-tras que no o excesso ou o desejo de confiana nas emisses de papis (que, estou certo, no existem atualmente), que poderiam produzir tais efeitos que ns estamos testemunhando h muito tempo (Ricardo, 1952, cf. Viner, 1937).3

    Para os antibulionistas, como Tor-rens, ao contrrio, o aumento dos pre-os no se devia a excesso de emisso ou de inconversibilidade da moeda, mas a outras causas, como a variao da velo-cidade de circulao dessa, em funo de expectativas de depreciao do papel-moeda. Seus argumentos baseavam-se tambm na chamada Reals Bills Doctrine, segundo a qual as notas eram emitidas como pagamento de letras de cmbio que se baseavam ou eram lastreadas em bens reais, no havendo, portanto, ex-cesso de emisso. Temiam, assim, uma contrao monetria, porque percebiam que, se houvesse queda da velocidade de

    circulao por expectativa de aprecia-o monetria, a contrao poderia ser maior do que a esperada, com efeitos ca-tastrficos sobre a economia real.

    Para Torrens (OBrien, 2004), a oferta extra de moeda levaria a aumento da renda, e, enquanto houvesse desem-prego a ser ocupado, surgiriam econo-mias de escala na produo que compen-sariam o impacto inicial sobre os preos. Observe-se, j aqui implcito, da parte dos antibulionistas, o argumento de no neutralidade da moeda.

    O argumento dos crticos antibu-lionistas no apenas explicita a dificul-dade implicada no controle da dinmi-ca monetria (moeda endgena), mas o seu temor deixa clara a percepo dos impactos monetrios sobre a economia real, ou seja, a no neutralidade da mo-eda. Essa no neutralidade era afirma-da quando, mesmo concebendo o cres-cimento dos preos, viam os preos dos produtos crescendo antes daqueles dos fatores de produo, ou da renda no-minal antes dos preos, ou ainda o au-mento dos gastos antes do aumento dos preos. Tal entendimento permitia que justificassem aumento do emprego e da produo, impedindo que os aumentos do nvel geral de preos fossem propor-cionais aos aumentos de moeda ou cr-dito, conforme a TQM.

    3 I am not aware of any causes but excess, or a want of confidence in the issues of the paper (which I am sure does not now exist), which could produce such effects as we have for a considerable time witnessed.

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    Quanto aos dficits do balano de pagamentos, os antibulionistas no consideravam que decorriam da incon-versibilidade da moeda ou do excesso de emisso, mas atribuam-nos a pesa-das remessas militares do perodo, assim como a crescimento das importaes pa-ra compensar quebras de safras, razes que requeriam o envio de bullion, justifi-cando seu prmio. Ou seja, o prmio do bullion ou as trocas internacionais, sob suspenso da conversibilidade, como era o caso na maior parte do perodo des-sa controvrsia, no dependiam de fato-res internos, mas externos. Dizia Boase, por exemplo,

    a taxa de cmbio governada pelas operaes do balano de pagamentos e (excetuadas grandes convulses polti-cas) por nenhum outro princpio (Viner, 1937, nota 59, captulo III).4

    Assim, neste debate temos, de um lado, os bulionistas, que pregavam a vol-ta da conversibilidade-ouro da moeda como regra monetria para controle de emisso e preos, e, de outro, os antibu-lionistas, os quais temiam esse tipo de controle porque inibia o crescimento e a acumulao do capital.

    No se trata de priorizar de forma absoluta, no primeiro caso, o controle de preos e, no segundo, o crescimento econmico, mas em relao ao espera-

    do pelos argumentos da TQM. Ou seja, no caso dos bulionistas, a neutralida-de da moeda que os faz no esperar im-pacto duradouro da moeda ou do crdito sobre a produo real, levando-os a prio-rizar o controle de preos. Como sabi-do, para Ricardo (1951), o crdito mera transferncia de poupana de poupado-res para investidores, no implicando es-tmulo lquido para a produo.

    No caso dos antibulionistas, o im-pacto sobre o emprego e a produo te-mido, porque percebem a no neutrali-dade da moeda, e esse impacto sobre a produo faz com que, na igualdade de trocas, no se possa esperar crescimento proporcional dos preos. Mais que isso, se a moeda no neutra, possvel espe-rar, pela equao de trocas, at algum im-pacto deflacionrio.

    Durante os anos em que durou a controvrsia entre bulionistas e anti-bulionistas, na maior parte do perodo (1797 e 1821), a conversibilidade-ouro esteve suspensa, e at 1814 houve infla-o. Em 1810, iniciou-se uma depresso e depois um perodo longo de deflao, agravada com a volta da conversibilida-de. Nesse perodo, os bulionistas perdem terreno e vrios deles se colocam contra o padro-ouro.

    De fato, enquanto os bulionis-tas como Ricardo continuavam insistin-

    4 The rate of exchange is governed by the balance of payment operations, and (great political convulsions apart) by no other principle whatever

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    do nas teses anteriores, preocupando-se sobretudo com a estabilidade de preos, os impactos negativos dos limites impos-tos expanso monetria sobre a produ-o real passam a aparecer nos argumen-tos dos antibulionistas. Ricardo atribua a deflao de preos a erros do Banco da Inglaterra. Os antibulionistas, porm, desenvolviam argumentos mostrando que a deflao tinha efeitos adversos so-bre o volume de riqueza e produo. Ob-serve-se aqui que a queda da produo ocorre como resposta queda dos preos. Assim, mesmo se os preos se alteram, no chegam a se alterar proporcional-mente ao excesso de emisso, na equao de trocas, porque afetam tambm a pro-duo real.

    Thomas Attwood, representante de grupo de pensadores ainda mais hete-rodoxo que os antibulionistas,5 dizia, por exemplo, que a queda de preos

    primeiro de um artigo e depois de ou-tro, sem correspondente queda nas d-vidas e obrigaes, tem o efeito de des-truir toda confiana na propriedade, e todos os estmulos para sua produo, ou para qualquer forma de emprego de trabalhadores (1817, p. 78-78, cf. Viner, 1937, IV. 2).6, 7

    Outros argumentos atentam tam-bm para os impactos reais negativos que

    a moeda tem no perodo, negando a neutralidade dela. o caso, por exemplo, quando consideram a contrao mone-tria injurious (Viner, 1937, IV. 23), porque a rigidez de custos impede algu-mas produes de reduzir logo os preos. Tambm usam o argumento de poupan-a forada para explicar o impacto posi-tivo de uma expanso monetria. Mes-mo que os preos subam, restringem consumo, aumentando a poupana, e o aumento de moeda retido por empres-rios os leva a investir mais, aumentando a produo.

    Para Ricardo, porm, esse argu-mento no era pertinente, uma vez que, para ele,

    crdito [], o meio que transferi-do alternadamente de um para outro, para usar o capital efetivamente exis-tente; ele no cria capital; ele determi-na somente por quem o capital pode

    5 Thomas Attwood pertencia chamada Birmingham School, cujos principais trabalhos, conforme Schumpeter (1994), apareceram entre 1815 e 1828, ou seja, entre as controvrsias bulionistas x antibulionistas e Currency School x Banking School.6 First upon one article and then upon another, without any correspondent fall taking place

    upon debts and obligatons, it has the effect of destroying all confidence in property, and all inducements to its production, or to the employment of laborers in any way.7 As referncias a Viner (1937) vm seguidas do captulo e do pargrafo, uma vez que o livro foi obtido na internet e acha-se assim dividido.

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    ser utilizado (Lords Comitee, Report, 1819, p. 192-93, cf. Viner, 1937, IV. 40).8

    Conclua dizendo que no acreditava em nenhum estmulo produo resul-tante do uso do que chamava de capi-tal fictcio.

    Na segunda controvrsia, ocorri-da entre 1825 e 1875, observa-se, logo de incio, uma modificao com relao primeira. Tanto o lado mais ortodoxo da Currency School quanto o lado mais he-terodoxo da Banking School assumem a conversibilidade-ouro como a regra ne-cessria, o que muito provavelmente se deve ao temor da inflao que vigorou durante a maior parte do perodo ante-rior s discusses, sendo o ponto de di-vergncia a necessidade de controles de curto prazo, alm do oferecido a longo prazo pela conversibilidade-ouro. Nesse sentido, observa-se uma ortodoxizao da discusso, conforme mencionado.

    De fato, a Currency School vai pre-gar controles quantitativos de curto pra-zo, procurando fazer com que o sistema misto funcionasse como puramente me-tlico. Para isso, propunha, em primei-ro lugar, o Currency Principle, segundo o qual a quantidade de moeda em circula-o s poderia crescer quando houvesse entrada de ouro lquida no pas, e cairia quando houvesse sada de ouro.

    De forma complementar, a Palm-er Rule requeria que o sistema bancrio mantivesse o mesmo volume de ttulo em reservas, de forma a garantir que a emisso de notas bancrias fosse lastre-ada em reservas de ouro em espcie. Fi-nalmente, a lei bancria de 1844, que formalizou a transformao do Banco da Inglaterra em autoridade monetria, re-conheceu a necessidade de centralizar o controle monetrio separando os depar-tamentos de emisso e bancrio.

    O principal objetivo de todas es-sas medidas era o de impedir flutuaes do nvel de negcios resultantes de mu-danas do nvel de preos no curto pra-zo. Havia a percepo, por parte dos seus defensores, de que a mera conversibilida-de-ouro levava certo tempo para corrigir problemas relativos ao excesso de emis-so, e era preciso impedir que duran-te esse tempo houvesse flutuaes. Di-zia a esse respeito Overstone (citado por OBrien, 2004, p. 184), que:

    Existe um antigo provrbio oriental que diz que voc pode interromper com uma agulha uma fonte que, se continu-ar a correr, vai varrer cidades inteiras no seu curso. Uma contrao rpida e em tempo hbil, a partir de uma pri-meira indicao de excesso na circula-o, a aplicao da agulha na fonte; convulso comercial e runa em conse-

    8 Credit [...], is the means which is alternately transferred from one to another, to make use of capital actually existing; it does not create capital; it determines only by whom that capital should be employed [].

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    qncia do atraso so a corrente varren-do as cidades inteiras no seu curso.9

    A Palmer Rule foi objeto de crti-cas dos prprios partidrios da Curren-cy School. A crtica relacionava-se com o fato de que, para manter a ideia do Cur-rency Principle, era preciso garantir no apenas que os ttulos permanecessem constantes, mas que os depsitos tam-bm no variassem. Esse tipo de crtica abriu uma discusso importante sobre os substitutos da moeda e a diferena de ve-locidade de circulao desses impondo dificuldades para o controle monetrio por parte do Banco da Inglaterra, discus-ses importantes no debate sobre a endo-geneidade ou a exogeneidade da moeda.

    A Banking School chamava a aten-o que os depsitos e as letras de cmbio tambm fossem moedas, ou substitutos dela, e afetavam os preos. O controle de um tipo de moeda sem o controle do ou-tro levava fuga do controle pela substi-tuio entre eles. Mesmo, portanto, com a separao dos departamentos de emis-

    so e bancrio, poderia haver variao de depsitos e letras bancrias no pr-prio departamento bancrio, fugindo do controle do departamento de emis-so. Percebiam, assim, j nessa poca, a influncia das inovaes financeiras pa-ra fazer variar endogenamente a quanti-dade de meios de circulao. Alm dis-so, levavam em conta a possibilidade de entesouramento ou desentesouramento, tornando o controle da quantidade de moeda invivel.10

    Os participantes da Banking Scho-ol no apresentavam sugestes de con-trole porque consideravam, como ban-queiros, que os bancos, por estarem prximos demanda que refletia o rit-mo de negcios, eram os melhores con-troladores. Mais que isso, acreditavam na real bills doctrine, ou, como tambm chamada, na lei do refluxo, pela qual os emprstimos concedidos, uma vez salda-dos, retornam ao sistema bancrio, no havendo, por isso, excesso de moeda. Fi-nalmente, diziam que, mesmo se hou-

    9 There is an old Eastern proverb which says, you may stop with a bodkin a fountain, which if suffered to flow will sweep away whole cities in its course. An early and timely contraction, upon the very first indication of excess in the

    circulation, is the application of the bodkin to the fountain; commercial convulsion and ruin in consequence of delay, is the stream sweeping away whole cities in its course.10 Desde a controvrsia entre bulionistas e antibulionistas,

    j se punha a questo das dificuldades para o controle monetrio. Sayers (1960), por exemplo, chama a ateno que Thornton, bulionista moderado, no seu Paper Credit, de 1802, d mostras de que os countries banks eram

    substancialmente governados pelo Banco da Inglaterra, mas o relatrio do Bullion Comittee de 1810, do qual participou, reconhece os limites de tal controle.

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    vesse aumento de preos, no poderiam se desviar muito do nvel de preos in-ternacional, em funo da perda de ouro com a conversibilidade estabelecida.

    De novo a heterodoxia, agora re-presentada pela Banking School, temia tais controles mais estritos, alegando que seriam inviveis e indesejveis, dando mostras, neste segundo caso, da percep-o da no neutralidade da moeda. Por um lado, viam a quantidade de moeda dependendo do nvel de preos, e no o inverso. Por outro, essa quantidade de-pendia do ritmo de negcios, uma vez que esse afetava a demanda de crdito aos bancos que, ento, apenas a acomo-davam. Esses fatores levavam percep-o da moeda como endgena, justifi-cando a dificuldade para o seu controle. Alm disso, nessas circunstncias, a con-trao monetria poderia frear o ritmo de negcios, explicitando sua no neutra-lidade e a indesejabilidade do dito con-trole. Sustentavam, pois, que era preciso distinguir desequilbrios de curto prazo relacionados ao ritmo de negcios que exigiam uma poltica de crdito flexvel para no abalar a confiana, e controles de longo prazo para evitar o escoamen-to de ouro (Dean, 1980).

    Alm de considerar o controle mo-netrio difcil, ou invivel, essa escola no via necessidade desse e apoiava sua argu-

    mentao na j mencionada lei do reflu-xo. Como bons banqueiros, justificavam o controle exercido pelos prprios bancos, competindo entre si, como o mais ade-quado, por eles estarem mais prximos dos negcios, percebendo-lhes o ritmo e, ento, a necessidade de crdito. Um even-tual excesso de notas seria ainda conver-tido em letras de cmbio e/ou troca de-las por ouro para exportao, e, portanto, drenado. Propunham, assim, que o con-trole ltimo fosse feito pela conversibi-lidade-ouro, considerando as flutuaes nesse meio tempo normais, decorrentes do ritmo de negcios (banking principle).

    A Banking School condenava os controles de curto prazo, no apenas por consider-los inviveis, como vimos, mas porque os considerava indesejveis. Por um lado, poderiam aumentar as flu-tuaes. Quanto ao controle por meio da taxa de desconto, os oponentes do pa-dro metlico puro consideravam custo-so porque, em situao de aumento des-sa taxa e restrio ao crdito, podia se ter queda de crescimento. Dizia Tooke, ex-poente mximo da Banking School, que

    [...] o efeito no intercmbio de um au-mento da taxa de juros seria o de indu-zir os capitalistas estrangeiros a se abster de retirar seus fundos do nosso pas, na mesma magnitude que o fariam em ou-tras circunstncias, e isso operaria, ao

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    mesmo tempo, diminuindo o estmulo dos capitalistas do nosso pas para inves-tir em ttulos estrangeiros, para poder fazer investimentos nas aes e parti-cipaes britnicas [i.e., domsticas]. Isso teria tambm como conseqncia restringir o crdito de comerciantes nes-se pas por meio de adiantamentos em carregamentos externos e teria o efeito de causar uma grande proporo de im-portaes para o pas realizadas com ca-pital estrangeiro (Tooke, 1840, p. 369, cf. Viner, 1937, captulo V, nota 167).11.

    Apesar de essa citao dar margem interpretao segundo a qual poderia haver impacto de mudanas na dinmica monetria sobre a economia real, ou se-ja, sobre a no neutralidade da moeda, a posio de Tooke e da Banking School, a esse respeito, parece ser mais enftica na endogeneidade da moeda do que na sua no neutralidade. Essa parece ser a razo para a percepo de Schumpeter de pou-ca divergncia entre os pensamentos da Currency School, em particular, de Lord

    Overstone, e de Tooke, como represen-tante da Banking School, no que se refe-re aos ciclos de negcios. Lord Oversto-ne, conforme Schumpeter (1954, p. 745), explicitamente estabeleceu que no a poltica dos bancos que produz ondas de crescimento.12 Ao contrrio, para ele a moeda e o crdito desestabilizavam a economia em funo do seu impacto in-flacionrio. Tooke, por sua vez, tambm segundo Schumpeter (1954, p. 746),

    minimizou o papel da taxa de juros no ciclo; ele no pensou que a contrao de crdito era o fator mais importante causando o declnio.13, 14

    Schwartz (1989, p. 47), entretan-to, menciona que tanto a Currency School quanto a Banking School atribuam os ci-clos econmicos a causas reais. Chama a ateno, porm, que Torrens, apesar de membro da Currency School, atribua os ciclos de negcios a aes do Banco da Inglaterra, parecendo com isso recu-perar seu passado antibulionista, e os re-

    11 [...] the effect upon the exchanges of a rise in the rate of interest would be that of inducing foreign capitalists to abstain from calling for their funds from this country, to the same extent as they otherwise might do, and it would operate at the same time in diminishing

    the inducements to capitalists in this country to invest in foreign securities, in order to make investments in British stocks or shares. It would likewise operate in restraining credits from the merchants in this country by advances on shipments outwards, and it

    would have the effect of causing a larger proportion of the importations into this country to be carried on upon foreign capital. 12 Explicitly stated that it is not the policy of banks which produces upswings.

    13 nfase no original.14 Minimized the role of interest in the cycle; he did not think that the contraction of credit was the most important factor in causing the downturn.

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    presentantes da Banking School imputa-vam tambm a fatores monetrios tanto a origem quanto a dimenso dos ciclos de negcios.

    O pensamento mais efetivamente heterodoxo, ao longo de todo o perodo em que duraram as duas controvrsias, tanto entre a Currency School e a Banking School, quanto entre bulionistas e anti-bulionistas, era o de Thomas Attwood, da Birmingham School. Os adeptos desta escola se mostraram contrrios ao auto-matismo do padro-ouro, por considerar que trazia consequncias danosas para o crescimento e o emprego. Dizia Attwood (1817, p. 95, cf. Viner, 1937, IV.0), que o guinu foi feito para o homem e no o homem para o guinu,15 mostrando co-mo as impulses monetrias poderiam levar ao pleno emprego. Mais explicita-mente ainda, dizia que

    sempre que [] o dinheiro de um pas seja suficiente para colocar todo traba-lhador em ao, no sistema e comrcio mais apropriados aos seus hbitos e pode-res, os benefcios de uma circulao au-mentada podem ser ampliados (p. 68).16

    Mas entendia que, a partir desse ponto, qualquer estmulo adicional seria vo (nugatory) e injurioso ou prejudi-cial (injurous) (Viner, 1937, citando Attwood, cap. IV, nota 118). Da a posi-

    o contrria da escola ao padro-ouro e, mais ainda, reforma bancria que trans-formava o sistema misto em metlico.

    Conforme destaca Dean (1980, p. 83), a dominao ortodoxa e dos seus princpios s durou tanto na Inglater-ra do sculo XIX em funo da posio hegemnica dela, que lhe conferia con-fortveis supervits. Assim, limitaes automticas sobre a poltica de crdito interno s raramente foram muito exigi-das. Tal no o caso do Brasil, como ve-remos no prximo item, que enfrentava, como outros pases menos desenvolvidos, problemas e sacrifcios relacionados s exigncias de reservas durante o padro-ouro. Os problemas enfrentados pelo pa-s vo explicitar, de outra maneira, a no neutralidade da moeda. Da a absoro pelos desenvolvimentistas das teses crti-cas dos heterodoxos, chamados no Brasil de papelistas, ideias que analisaremos no prximo item.

    Antes, contudo, e para finalizar as ideias discutidas no sculo XIX, preciso destacar uma observao crtica anli-se realizada por Schumpeter (1954) sobre a posio de Marx a respeito dessas con-trovrsias. Apesar de trabalhar com a te-oria do valortrabalho, como Ricardo, e de considerar que, na esfera internacio-nal, a moeda teria sempre que ser o ou-ro, como explicita no Livro I de O Ca-

    15 The guinea was made for man, and not man for the guinea.16 Whenever [...] the money of a country is sufficient to call every laborer into action, upon the system and trade best suited to his habits and his powers, the benefits of an increased circulation can go no farther.

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    pital, Marx possui uma posio sobre a moeda e o crdito muito distante da dos bulionistas, em particular quando se tra-ta, como o caso neste artigo, de per-ceber os efeitos da moeda e do crdito sobre a economia real, potencializando a acumulao de capital. Assim, parece-nos que no cabe, como faz Schumpeter, associ-lo aos bulionistas.

    Nesse sentido Marx mostrou-se at particularmente crtico das ideias monetrias da Currency School, em par-ticular no que se refere aos controles de curto prazo por eles propostos. A es-se respeito, diz Marx (1974, p. 635) que [...] nas provncias, a suspenso a lei ban-cria teve o efeito de medida salvadora, mostrando, assim, que percebia o carter contracionista e discutvel das restries da lei bancria de 1844. Alis, mais de uma vez colocou-se a esse respeito do la-do da Banking School, embora discordas-se das definies de capital de Tooke e de que os bancos eram os melhores contro-ladores do meio circulante.

    Mais que isso, h referncias expl-citas de Marx (1971, p. 642-643) Bir-mingham School, mostrando exatamente o lado perigoso das medidas de conten-o monetria. Diz ele a esse respeito:

    Ouamos agora um banqueiro particu-lar, Twell, desde 1801 scio de Spooner,

    Attwoods & Co. Entre todas as teste-munhas perante a Comisso Bancria (B. C. ) de 1857, a nica que penetra na situao real do pas e v a crise aproximar-se [...]

    Declara ele: 4488: Quais foram a seu ver, os resultados da lei de 1844? Se lhe respondesse como banqueiro, diria que foram magnficos, pois proporcio-naram colheitas abundantes aos ban-queiros e aos capitalistas [financeiros] de toda a espcie. Mas, foram muito ruins para o homem de negcios hon-rado e ativo, que precisa de taxa est-vel de desconto para transacionar com segurana. [...] A lei tornou o emprs-timo de dinheiro negcio altamente lucrativo.

    4490: Pequenos negociantes e comer-ciantes respeitveis que no tm gran-de capital [...] muito os aperta a lei [...] O nico meio que tenho para saber dis-so a massa surpreendente de aceites que vejo no serem pagos. Esses aceites correspondem a quantias pequenas [...], e muitos deles no s pagos, retornan-do sem resgate em todas as circunscri-es do pas [...].

    Constata-se, desta forma, que, mes-mo quando discorda de Tooke, Marx o faz de modo ainda mais heterodoxo. De-fende, por exemplo, que a circulao de bilhetes

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    independente no s da vontade do Banco da Inglaterra, mas tambm do nvel do encaixe em ouro guardado nas casas-fortes do Banco e que garante a conversibilidade desses bilhetes (Marx, 1971, p. 603).

    Com isso, refora ainda mais o papel da demanda ou do ciclo de negcios como fator de presso do aumento da oferta de emprstimos (Mollo, 1994), e nega, com isso, que os bancos pudessem ser os melhores controladores, como afirmava a Banking School.

    3_ Metalistas e papelistas no BrasilQuanto ao debate no Brasil, sua singu-laridade deve-se, em primeiro lugar, ao fato de se circunscrever ao contexto de uma economia fundamentalmente agro-exportadora. Todavia, assume tambm carter peculiar por centrar-se na dis-cusso sobre o modus faciendi da poltica econmica, em suas prioridades e ope-racionalizao, ao incorporar novo foco ao debate econmico, tradicionalmente centrado na antiga polaridade entre libe-ralismo e intervencionismo. Enquanto essa se centrava nas razes sobre se o Estado poderia ou no intervir na econo-mia, recorrendo a argumentos doutrin-rios ou axiolgicos, coerentes com a for-mao jurdica dos bacharis e homens

    cultos da poca, a contenda entre pape-listas e metalistas rompia em algo pri-meira vista mais simples, mas responsvel por profundas consequncias na opera-cionalizao da poltica econmica e no manejo de seus instrumentos. Passava-se a enfatizar, em um tom mais pragmtico, j que visava utilizao imediata, quais deveriam ser os objetivos de curto prazo da poltica econmica e a melhor com-binao de instrumentos e meios para viabiliz-los.

    A discusso entre papelistas e me-talistas tinha como epicentro a conver-sibilidade da moeda, algo essencial em uma economia voltada agroexportao, como a brasileira, no perodo das ltimas dcadas do Imprio s primeiras dcadas da Repblica. Remetia, por conseguinte, s polticas monetria e cambial, bem co-mo relao entre ambas. Os metalistas defendiam ferrenhamente o padro-ouro e a conversibilidade da moeda; para tanto, encontravam respaldo na teoria econmi-ca convencional e na poltica do pas he-gemnico, a Gr-Bretanha. J os papelis-tas, ante a ausncia de um corpo terico de mesma envergadura para defender o desapego ao que consideravam amarras s polticas monetrias e cambiais, recor-riam razo prtica: a experincia, e no uma teoria, demonstrava qual o melhor caminho a seguir. Devia-se isso em parte

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    s dificuldades de manter o padro-ouro e plena conversibilidade no pas. Como afirma Prado (2003, p. 97):

    A tentativa contnua de estabelecer uma moeda conversvel, sustentada em uma firme reserva de ouro, em uma so-ciedade perifrica e pouco monetizada no era apenas impossvel de ser obtida, mas reduzia enormemente as oportuni-dades de investimento produtivo.

    As crticas conversibilidade eram comuns nos crculos produtores, seja da lavoura, inclusive escravista, seja no se-tor urbano, como o do comrcio e o da indstria. Na ausncia de estudos emp-ricos mais conclusivos para delinear que segmentos sociais defendiam uma e ou-tra corrente, de se supor que os ren-tistas, tendencialmente mais temerosos com a inflao, deveriam alinhar-se aos metalistas. Entre estes ltimos devem-se citar Francisco Belizrio, Torres Homem e Joaquim Murtinho, ministro da Fazen-da de Campos Sales (1898-1902).

    Schumpeter (1954, p. 407), ao ar-rolar os segmentos sociais alinhados a uma e a outra corrente no contexto in-gls, ensaia uma interpretao:

    Os polticos eram razoveis os arau-tos dos interesses agrrios foram o nico grupo que, como tal, chegou a pontos absurdos neste sentido [culpar a con-

    versibilidade como responsvel pelas depresses]. Todavia, os banqueiros, os financistas e os economistas inspirados pelos pontos de vista dos banqueiros e financistas, especialmente aqueles que se puseram na defensiva devido a sua defesa prvia do Bullion Report, em sua maioria, no tinham dvida, ape-sar daquilo, que a raiz de todo mal era a moeda e nada mais [...].

    Essa posio, porm, precisa ser relativizada, luz da controvrsia men-cionada na seo anterior entre a Cur-rency e a Banking School. Como vimos, a Banking School, apesar de ter amplo trnsito entre os banqueiros, defendia a conversibilidade-ouro da moeda, mas te-mia regras que, controlando a quantida-de de moeda, pusessem em risco o ritmo dos negcios.

    O mesmo parece ocorrer no Brasil, conforme relato de Muller (2004, p. 32):

    A histria dos bancos no Rio de Janeiro durante o Imprio reflete as oscilaes do desejo do governo Imperial de deter o monoplio das emisses e manter o padro-ouro e dos bancos particulares que, via de regra, preferiam a plura-lidade emissora e menos rigidez em relao ao lastro metlico.

    J Neuhaus (1975, p. 29), tendo em vista o Brasil no perodo em que o debate flo-resceu, pondera:

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    A ortodoxia era tipicamente defendida por grupos urbanos assalariados (in-cluindo funcionrios pblicos, profis-sionais liberais, intelectuais, etc.) e por comerciantes importadores. Grandes consumidores ou negociadores de ar-tigos importados, eles defendiam, na-turalmente, a revalorizao cambial. Em sua maioria recebiam salrios re-lativamente fixos em termos nominais e que se ajustavam gradativamente s mudanas do ndice de preos.

    Ao se investigar com mais acuida-de o pensamento dos papelistas, podem-se detectar pelo menos dois grupos se-melhante aos meios-termos apontados por Schumpeter no contexto ingls. O primeiro, mais moderado, no negava a conversibilidade como regra, mas ad-vogava seja seu relaxamento (como nas crises ou nas safras, para possibilitar au-mento do meio circulante e estmulo aos negcios), seja uma ancoragem ao ouro mais flexvel, como uma porcen-tagem de lastro que poderia ser alterada dentro de certos limites. Entre eles, po-dem-se citar Souza Franco (ministro na dcada de 1850), o baro de Mau, os viscondes de Cruzeiro e de Ouro Preto, Joo Alfredo e o conselheiro Laffayette. J o segundo grupo, o qual tudo sugere congregar menor nmero de adeptos, in-clui homens de perfil mais radical, como

    Rui Barbosa, que, em alguns momentos, chegaram a negar e a entender como per-niciosa qualquer regra de conversibilida-de e a defender a pluralidade de bancos emissores e plena liberdade de atuao para que esses pudessem contra-arrestar os ciclos dos negcios.

    Cabe notar que esses principais re-presentantes do papelismo, assim como os do metalismo, com quem mantm a controvrsia, apareceram no Brasil, na se-gunda metade do sculo XIX , portan-to, com certa defasagem temporal com relao ao debate ingls, o qual, confor-me mencionado, aflorara j com fora no incio desse sculo (1797-1825). Todavia, razovel supor que os tenha inspira-do, dada a hegemonia britnica poca no s econmica, mas tambm intelec-tual, principalmente em matrias atinen-tes economia e finanas. Alm disso, por ocasio do incio do debate brasilei-ro, j havia se iniciado a controvrsia en-tre a Currency School e a Banking School (1825-1975), que, como vimos, apresen-tava alguma continuidade de ideias e di-vergncias entre ortodoxos e heterodo-xos, que tambm devem ter inspirado o debate brasileiro.

    Retomando as linhas principais do debate: para os metalistas, a priorida-de da poltica econmica era a estabili-dade e a poltica cambial e, por con-

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    seguinte, a definio da taxa de cmbio tornava-se varivel prioritria. Defenso-res do padro ouro estabeleciam a relao entre poltica monetria e balano de pa-gamentos: metais preciosos ingressariam naturalmente no pas se a economia fos-se saudvel, e qualquer oferta de moeda sem lastro causaria inflao.

    Observe-se aqui que, tal com para os bulionistas ingleses, os problemas ti-nham causa interna, o descontrole mo-netrio, que precisaria ser contido pe-la regra constituda pelo padro-ouro. A poltica monetria deveria ser subordina-da, ento, poltica cambial, porque es-ta ltima imporia a disciplina monetria necessria para o controle dos preos. A liberalizao dos mercados, tal como pa-ra os bulionistas e a Currency School, ga-rantiria o ajuste do nvel de divisas e a igualdade dos preos internos e externos.

    Via de regra, os metalistas apoia-vam-se nos grandes mestres da economia clssica, como Smith, Ricardo e Say. A taxa de juros era entendida como fen-meno real, la Ricardo, dependente da taxa de lucro. Maior oferta de moeda no alterava o nvel de atividade; como afir-mava Francisco Belizrio (Franco, 1983, p. 104), querer prevenir as crises atra-vs da queda da taxa de juros resultante de maior oferta de moeda era um equ-voco, pois consistia em confundir moe-

    da com capital ao esperar-se que o au-mento do estoque da primeira iria tornar o capital mais barato, abundante e ao alcance de todos. Sendo a poltica mo-netria ineficaz, restava aumentar as con-dies de competitividade real do setor exportador, garantir as regras de finan-as sadias e manter uma taxa de cmbio realista para que a economia prosperasse.

    J a preocupao maior dos pape-listas, dos mais moderados aos mais radi-cais, era com o nvel de atividade econ-mica. Sua pergunta mais frequente, qual o nvel de oferta monetria mais condi-zente com o nimo dos negcios, consis-tia verdadeira heresia para os metalistas. Mau, um de seus primeiros defenso-res, defendia o que se convencionou de-nominar requisito da elasticidade: a oferta de moeda deveria ser flexvel ou elstica a ponto de no interferir negati-vamente nas atividades produtivas. Me-nos tericos e mais pragmticos, apre-sentavam-se como coerentes com o bom senso: simplesmente o governo deveria ajudar, e no prejudicar a economia.

    Segundo Franco (1983, p. 56), es-sas ideias, principalmente a partir da d-cada de 1880, eram

    antes considerada(s) uma expresso dos interesses do comrcio, do que uma posio legitimada pela autoridade de uma doutrina.

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    No se pode esquecer de que os prin-cipais argumentos em favor do meta-lismo e dos principais esteios de sua poltica econmica padro ouro, livre cambismo e vantagens comparativas no comrcio internacional estavam conso-lidadas no pensamento clssico e possu-am elaborao terica muito mais pro-funda e sofisticada, pelo menos desde Ricardo embora fossem inegveis as dificuldades prticas para implement-las, fato que variava de pas para pas. Por isso Mau, em O meio circulante do Bra-sil, de 1878, em posio semelhante de alguns membros da Escola Histrica Alem, chegou a duvidar da universali-dade das leis econmicas, ao ponderar:

    [...] antes que uma teoria consiga fir-mar-se na slida base da cincia, tem de pr prova as suas concluses, que devem ser invariveis em todos os pa-ses e em qualquer ocasio.

    A seguir, explicita a crtica orto-doxia tendo por base as diferentes forma-es histricas dos pases argumento que surpreende tanto por certa colora-o nacionalista (caracterstica que fa-r parte da retrica desenvolvimentis-ta, como se mostrar adiante) como por praticamente coincidir, em sua tese cen-tral, com princpio caro ao pensamento desenvolvimentista do sculo XX, verbia

    gratia, o dos economistas cepalinos, co-mo Prebisch e Celso Furtado.

    E, na verdade, cumpre estar preveni-do contra certas idias apregoadas com dogmtica severidade por parte de doutrinrios inflexveis, as quais nem sempre so aplicveis a pases onde as causas que determinam certos fenme-nos so diversas, e, portanto, o regime aconselhado como salvador de altos in-teresses, para uns daria em resultado fi-carem estes seriamente comprometidos em outros, se o bom senso nacional no repelisse o presente grego, que os cha-mados mestres da cincia lhe querem impor (Mau, 1998, p. 282-283; grifos do autor).

    A pesquisa emprica sobre alguns dos mais destacados participantes do de-bate brasileiro permite detectar algo que no foge ao padro verificado internacio-nalmente: era frequente o aparecimen-to de defensores do afrouxamento das regras, em nome do pragmatismo, con-quanto no propusessem romper com o paradigma mais amplo. Gremaud (1997) argumenta na mesma direo, embo-ra com foco na prtica efetiva da polti-ca econmica, ao apontar fenmeno que se poderia considerar semelhante aos meios-termos de Schumpeter, e os asso-cia a possibilidades variadas de combina-es institucionais no mbito de um mes-mo regime cambial, as quais possibilitam

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    nuanas relativas diante dos impactos de-correntes das oscilaes externas:

    As opes regime cambial fixo x flex-vel, ou padro monetrio conversvel x inconversvel, apesar de se constiturem na dicotomia bsica nas controvrsias monetrias brasileiras do perodo e de evidenciarem as questes relevan-tes dentro de uma economia no au-trquica, escondem a possibilidade de formas intermedirias de gesto das questes monetrias e cambiais e, espe-cialmente, a ampla gama de mecanis-mos institucionais disponveis dentro dos prprios extremos da dicotomia (Gremaud, 1997, p. 5).

    Para os papelistas, a ateno maior da poltica econmica deveria estar na taxa de juros, e no na taxa de cmbio. Embora ainda no houvesse um corpo terico slido que embasasse suas teses, no h dvida de que essas eram insti-gantes e se aproximam, em alguns aspec-tos, do futuro keynesianismo, alm de no possurem grau de sofisticao me-nor do que as dos metalistas. A taxa de juros refletia o estado de nimo da eco-nomia e era um fenmeno estritamen-te monetrio, determinada por oferta e demanda de moeda. No haveria rela-o entre as variaes da poltica mone-tria e o cmbio, e argumentava-se que a velocidade de circulao da moeda em

    um pas como o Brasil era baixa, em ra-zo de ser um pas agrcola, de significa-tiva extenso territorial e alta propenso a entesourar.

    O crescimento tornava-se a vari-vel central da economia e, para isso, a po-ltica cambial, ao contrrio do proposto pelos metalistas, deveria subordinar-se poltica monetria, e esta s necessidades impostas pela produo. Nesse sentido, assim se manifestou o conselheiro Afon-so Celso em 1879: A circulao fiduci-ria no influi, nesta praa, para a queda do cmbio (Barbosa, 2005, p. 96). E La-fayette, em sesso do Senado de 26 de ju-nho de 1888:

    No o papel-moeda que diminui o preo [do cmbio], o ouro que sobe, como mercadoria rara no Brasil. Se h, portanto, s raridade do ouro, no procede o argumento da depreciao da moeda (p. 98).

    E, finalmente, vale transcrever o tom enftico de Rui Barbosa:

    No a circulao monetria que nos h de firmar o cmbio alto; , pelo contrrio, a estabilidade no cmbio ao par, efeito da prosperidade econmi-ca da nao, que nos h de permitir a circulao conversvel. Os metalistas invertem os termos do problema, e por isso as suas criaes no passam de cas-

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    telo de cartas. Os saldos a favor do pas, nas liquidaes internacionais, geram o cmbio favorvel; o cmbio duradoura-mente favorvel determina a circulao metlica. Ns, ao revs, queremos, pela circulao metlica artificialmente pre-parada, fazer o cmbio, apoiando-a em saldos transitrios promovidos por emprstimos externos. uma pretenso puerilssima (Barbosa, 2005, p. 59).

    Observe-se aqui que h claramen-te nesses argumentos a ideia [melhor: a defesa do uso] de uso aconselhvel da poltica monetria para impulsionar a atividade econmica, em vez de prioriza-rem a disciplina monetria para controle de preos. Assim, a conversibilidade era vista como uma medida artificial, pre-judicial ao nimo dos negcios; o cm-bio alto no deveria ser buscado por uma conversibilidade artificial, mas pela pros-peridade da nao. Da decorria que as dificuldades do balano de pagamentos no deveriam ser enfrentadas com me-didas restritivas, mas com mais cresci-mento. Esse argumento tornar-se- mais tarde uma das teses centrais do desenvol-vimentismo e da heterodoxia terica.

    Essa posio flexvel dos papelistas foi praticada por Rui Barbosa nos primei-ros anos da Repblica. A tentativa de re-solver as crises via emisso monetria fora implementada em outras conjunturas do

    Imprio, como, em seu final, na reforma monetria de 1888. Mas com Rui a medi-da foi levada s ltimas consequncias ao permitir o direito de emisso aos bancos privados, claramente se entendendo que o estoque monetrio que deveria se ade-quar s necessidades da produo, ou se-ja, s necessidades domsticas da deman-da por transaes.

    Dessa concepo, decorria a ques-to j mencionada: como saber qual o n-vel de estoque monetrio desejvel para manter o crescimento da economia? Da-do que a inflao no era vista como a nica consequncia monetria, e, por is-so, no era o problema principal, a res-posta era: acompanhando-se o nvel de investimento, j que esse dependia da ta-xa de juros e era o melhor sintoma do nimo da economia. Por isso, defendia Rui Barbosa que era a taxa de juros, e no a taxa de cmbio, a varivel-chave da economia, e que aquela deveria ser ma-nipulada sem as amarras do padro-ou-ro, para fomentar a circulao de rique-za. E completa:

    O barmetro das exageraes do meio circulante no a taxa de cmbio, que pode oscilar sob a ao de outras influ-ncias: a taxa de juros. Baixa o juro quando superabunda a moeda corren-te; sobe quando ela enrarece (Barbosa, 2005, p. 150).

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    Metalistas x papelistas: origens tericas e antecedentes do debate entre monetaristas e desenvolvimentistas

    O papelismo, desta forma, repre-sentou uma precoce heterodoxia ao rede-finir quem era o co e quem era a cauda, para lembrar a metfora dos keynesianos da dcada de 1930,17 e, com isso, priori-zar o investimento sobre a poupana, a taxa de juros sobre a taxa de cmbio e o crescimento sobre a estabilidade.

    4_ A origem papelista do desenvolvimentismo e a no neutralidade da moeda

    Vimos, na primeira parte deste traba-lho, que as controvrsias monetrias do sculo XIX, na Inglaterra, centram-se sobre questes ligadas aceitao ou no da TQM. Esta teoria, sabemos, implica alguns pressupostos que, uma vez acei-tos, levam a resultados, do ponto de vista terico, que conduzem necessariamente a prescries distintas.

    Partindo da equao de trocas MV= Py, mera igualdade contbil, so-bre a qual todos concordam inicialmen-te (Aftalion; Poncet, 1984), so os argu-mentos de exogeneidade e neutralidade da moeda que garantem a aceitao da TQM. Isso porque o suposto de ente-souramento irracional que permite fa-lar de velocidade de circulao constante, estvel ou previsvel, e o suposto de ple-no emprego dos fatores de produo que

    no pode ser afetado de forma duradou-ra por impulses monetrias (aumento de moeda ou crdito) que garante o au-mento proporcional do nvel de preos respondendo a elas.

    A prioridade ao controle dos pre-os decorre da aceitao da TQM, as-sim como a percepo de que qualquer efeito sobre a produo real no mxi-mo transitrio, e, enquanto isso, o cres-cimento do nvel geral de preos leva a distores nos preos relativos, devendo ser evitado. Mais que isso, qualquer res-trio ao crescimento dos meios de cir-culao ou do crdito no vista como muito problemtica, justamente porque a moeda concebida como neutra a cur-to ou a longo prazos.18

    17 A metfora refere-se relao de causalidade entre poupana de investimento, lembrando que, para Keynes, o investimento que impulsiona a poupana, por meio de sua determinao no nvel de renda, contrariando a lgica clssica que enfatizava o papel da poupana para haver investimento. Segundo Meade: A revoluo intelectual de Keynes consistiu no deslocamento do pensamento dos economistas,

    normalmente em termos de um modelo de realidade no qual um co chamado poupana maneia sua cauda chamada investimento, para os termos de modelo, no qual um co chamado investimento maneia sua cauda chamada poupana (in: Keynes, 1977, p. 54; grifos do autor).18 Para uma discusso da questo neutralidade da moeda entre a ortodoxia e a heterodoxia monetrias, ver Mollo (2004).

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    , ao contrrio, a percepo da no neutralidade da moeda com o de-corrente impacto que a moeda pode ter sobre a produo real, por meio de eco-nomias de escala ou do crescimento de preos antes dos custos ou ainda das ren-das antes dos preos, podendo levar a au-mentos de produo e emprego que permite os antibulionistas defenderem que o nvel geral de preos no cresa proporcionalmente quantidade de mo-eda. Assim, a prioridade deixa de ser o controle de preos e passa a ser o cresci-mento do emprego, passvel de ser esti-mulado por impulses monetrias. jus-tamente a percepo da no neutralidade da moeda, na prtica, com os efeitos ca-tastrficos observados quando da reto-mada da conversibilidade da moeda, que ensejou vrios bulionistas a reverem su-as ideias, ou perderem o entusiasmo pe-la volta ao regime metlico (Viner, 1937).

    Esse tipo de preocupao que justifica a relao entre os papelistas e os desenvolvimentistas, no caso do Brasil. Como o nome diz por si mesmo, a prio-ridade era o crescimento, que se mostra-ra comprometido, no Brasil, em dife-rentes momentos, pelo padro-ouro. O padro-ouro reduzia as oportunidades de investimento, conforme menciona-do na referncia anterior a Caio Prado Jr. Furtado (1977), que analisa as dificul-

    dades impostas pelo padro-ouro para o equilbrio do balano de pagamentos. Segundo ele, uma economia exportado-ra de produtos primrios sofre com a queda maior e mais duradoura nos pre-os de suas exportaes em comparao com sua demanda de importaes, oca-sionando uma perda nas relaes de in-tercmbio, a qual se acentua, no mesmo contexto, com a reduo da entrada de capitais. Assim, o sistema de padro-ou-ro no traria o benefcio do ajuste au-tomtico propalado por seus defensores:

    Em tais condies, fcil prever as imensas reservas metlicas que exigi-ria o pleno funcionamento do padro-ouro numa economia como a do apo-geu do caf no Brasil. medida que a economia escravista-exportadora era substituda por um novo sistema, com base no trabalho assalariado, tornava-se mais difcil o funcionamento do padro-ouro (Furtado, 1977, p. 159).

    Para mostrar a influncia do pape-lismo no desenvolvimentismo brasileiro, tomaremos como caso a trajetria de Var-gas j que este foi o personagem central do Estado desenvolvimentista, que mar-cou a experincia histrica brasileira aps 1930. Em adio, como nosso propsito resgatar as origens dessa influncia, nossa opo metodolgica consistiu em recuar s dcadas anteriores a esse ano para recu-

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    perar a referida gnese. No caso de Vargas, essa diz respeito transio entre uma ide-ologia marcadamente influenciada pelo positivismo de Comte para, gradualmen-te, ao que mais tarde se chamou desen-volvimentismo o qual, para a Bielscho-wsky (1988, p. 7), pode ser definido como a ideologia de transformao da socieda-de assentada em um projeto econmi-co voltado industrializao como via de superao da pobreza e do subdesenvol-vimento da Amrica Latina, sob o enten-dimento de que esta no adviria pela es-pontaneidade das foras de mercado, ou seja, seria indispensvel atuao do es-tado como indutor, agente planejador do desenvolvimento e/ou investidor direto.

    Na mesma direo, Fonseca (2004, p. 226) defendeu que, enquanto a defi-nio de desenvolvimentismo varie entre autores, h um ncleo duro para o qual h convergncia entre eles, e que apon-ta para uma poltica econmica marcada pela defesa: (a) do nacionalismo, embo-ra este deva ser entendido num sentido muito amplo, que vai desde a simples re-trica ufanista conservadora at propos-tas radicais de rompimento unilateral com o capital estrangeiro); (b) da indus-trializao; e (c) do intervencionismo pr-crescimento, este entendido como a adoo de polticas monetrias, cam-biais e fiscais para acelerar o crescimento

    econmico. A influncia aqui abordada diz respeito, portanto, a esta ltima, pos-to que justamente nossa hiptese que o intervencionismo pr-crescimento, no caso brasileiro, tem suas origens nas te-ses papelistas.

    Para se avaliar a importncia do papelismo e do significado de sua he-terodoxia, ao desviar-se do pensamen-to ento dominante, deve-se lembrar o ambiente intelectual no qual as mesmas afloraram: da ltima metade do sculo XIX s primeiras dcadas do sculo XX, com a inexistncia de cursos de Econo-mia, essa era uma disciplina das faculda-des de Direito. Nessas, a polaridade do debate era entre os jusnaturalistas, de um lado, e os positivistas, de outro. Os primeiros, consonantes com a doutrina do liberalismo clssico, do direito natu-ral e do contratualismo poltico herdado de Locke; em temas econmicos, defen-diam o direito de propriedade como na-tural (inclusive o da propriedade de es-cravos, no Imprio), o laissez-faire e as regras de finanas sadias equilbrio fiscal e do balano de pagamentos, bem como o padro-ouro.

    J os positivistas seguiam certos conselhos de Comte sobre a melhor for-ma de administrar o Estado. Pretenden-do desapegar-se dos dogmas liberais em favor de princpios cientficos, como

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    bom positivista, Comte admitia a inter-veno do Estado quando houvesse ne-cessidade social, mas na prtica essa era limitada por entender que o Estado, co-mo crebro da sociedade, em uma ana-logia com biologia, deveria dar exemplo sociedade: as regras do bom governante eram as mesmas da economia domstica, ou seja, manter oramento equilibrado, ser parcimonioso e evitar o endividamen-to. Assim, acabavam aceitando, ainda que sob argumentao diferente, as mes-mas regras ortodoxas dos jusnaturalistas para a conduo da poltica econmica (Fonseca, 2008).

    A formao intelectual de Vargas deu-se nesse contexto. Perfilhou-se ao po-sitivismo ento ideologia oficial do Par-tido Republicano Rio-Grandense (PRR), cujo maior terico fora Jlio de Casti-lhos. Todavia, desde cedo, mostrou certo ecletismo ao mesclar as regras comtianas com ideias poca mais arrojadas, a suge-rir certo desapego ortodoxia positivista. Um dos primeiros discursos seus remon-ta ainda poca de estudante, em 1906, quando saudou o recm-eleito presiden-te Afonso Pena, que visitava o Rio Gran-de do Sul, em nome dos acadmicos de Direito, do qual h o registro:

    Quantas causas de estagnao pesam sobre um pas novo, exaurido pela captao e pelo fisco, sopeando o livre

    desenvolvimento das atividades indus-triais! Amarga resultante para quem se v coato a comprar, manufaturados no estrangeiro, os gneros da prpria matria-prima que exporta (Correio do Povo, 16/8/1906, p. 1).

    A anlise do discurso ressalta, j primeira vista, que esse se assenta em vrias antinomias, as quais possuem o inegvel efeito discursivo de demarcar campo e polarizar o debate: estagnao/desenvolvimento; manufaturas indus-triais/matrias-primas agrrias; nacio-nal/estrangeiro; e pas novo agrrio/pa-ses exportadores de produtos industriais. Ora, parece inegvel a semelhana en-tre essas ideias e as do futuro desenvol-vimentismo, mesmo na sua forma mais acabada, consubstanciada nas teses cepa-linas das dcadas de 1950 e 1960: uma diviso internacional do trabalho perver-sa aos pases perifricos, especializados na exportao de produtos primrios, os quais tendencialmente perdiam nas rela-es de intercmbio com os pases indus-triais dos centros hegemnicos.

    De forma embrionria, j temos os trs elementos do ncleo duro an-tes mencionado: o af de falar em nome da nao, a sugerir um interesse nacio-nal; a defesa da industrializao como alternativa; e, finalmente, o apelo ao pre-sidente da Repblica que tomasse me-

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    didas para a reverso do quadro, ou se-ja, subjaz manifestao o entendimento de que caberia responsabilidade ao Esta-do na reverso do quadro e na constru-o de outra opo para o pas. Essa pro-posio sugere um tipo de interveno estatal alm da admitida pelo positivis-mo, uma vez que no se trata apenas de intervir para enfrentar um problema so-cial emergente, mas aponta para uma no-o de prxis uma ao consciente, ra-cional, voltada a um objetivo desejado de maior envergadura (e que mais tar-de a tradio desenvolvimentista latino-americana consagrou nas teses cepalinas como transformao estrutural). En-quanto o positivismo apregoava o pro-gresso dentro da ordem, agora se suge-ria a necessidade de uma nova ordem para se chegar ao progresso, ou seja, ao desenvolvimento.

    Da mesma forma, quando depu-tado estadual, em 1919, ao responder s crticas de outro deputado, Gaspar Sal-danha, para quem o governo gacho era excessivamente interventor e prejudicial s atividades da pecuria e das charquea-das, contrariando a especializao natu-ral decorrente das vantagens comparati-vas, Vargas argumentou:

    [...] permita-me dizer que V. Exa. est filiado velha teoria econmica do

    laissez-faire, teoria essa que pretende atribuir unicamente iniciativa par-ticular o desenvolvimento econmico industrial de qualquer pas, deixando de lado a teoria da nacionalizao des-ses servios por parte da administrao pblica, amplamente justificada pelas lies da experincia, no levando V. Exa., em linha de conta, que nos pases novos, como o nosso, onde a iniciativa escassa e os capites ainda no toma-ram o incremento preciso, a interven-o do governo em tais servios uma necessidade real (Annais da Assemblea ..., 1919, p. 124-127).

    Prosseguindo, Vargas argumen-tou que na Europa a interveno esta-tal, aambarcando a atividade particu-lar, monopolizando servios, etc. deu os melhores, os mais surpreendentes resul-tados. Para Saldanha, entretanto, tal in-tervencionismo ocorrera em carter ex-cepcional, em um contexto de guerra, o que permitiu Vargas contra-argumentar:

    Tanto no assim que aps a termi-nao da guerra, os poderes pblicos continuaram intervindo na atividade privada, mantendo-se esses servios com o intuito de restringir a excessiva ganncia dos particulares. E uma pro-va de eficcia e oportunidade dessas in-tervenes est na tendncia, quase ge-neralizada na Europa, do operariado para a nacionalizao das indstrias.

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    em face desta situao que S. Exa. vem colocar-se como defensor nesta As-semblia dos interesses dos grandes pro-prietrios de terras (Annais da Assemblea ..., 1919, p. 146-147).

    Nota-se, mais uma vez, ainda an-tes de 1930, que j aparece nos pronun-ciamentos de Vargas uma argumentao at ento s defendida pelo grupo pape-lista: deveria o Estado intervir na econo-mia para ampliar a produo. Observa-se mais claramente nessas ideias a defesa da interveno estatal para garantir cres-cimento como o objetivo prioritrio, e menos a defesa de polticas monetrias propriamente ditas.

    Mas o papel do crdito e da polti-ca monetria para estimular a produo aparece quando Vargas afirma, em 1927 a j com o emprego do termo desenvol-vimento, embora ainda em coexistncia com o progresso de inspirao comtiana:

    um conceito vulgar que se impe como um aforismo. Todo o desenvolvi-mento econmico deve ter por objetivo tornar a riqueza abundante pelo tra-balho e ensinar o homem a usar essa ri-queza pela cultura. Mas, se o dinheiro metlico a medida dos valores, ele, no conceito corrente dos economistas, pela escassez de seu volume e pelas dificulda-des de sua condio fsica, j no satis-faz exigncia do progresso econmico.

    [...] Como imposio da prpria neces-sidade, surgiu um elemento imaterial destinado a atingir os limites da flexi-bilidade, que o crdito. Ele se expressa por um estado de confiana e segurana econmica. [...] A relao mercantil, diz um financista moderno, criou a operao sem dinheiro pela simples pro-messa de pagamento, que, por sua vez, se converte em riqueza, estimulando o trabalho e se transmutando em novos valores (Correio do Povo, 3/12/1927, p. 2).

    Na dcada de 1950, Vargas, expli-cita isso ainda mais, recorrendo a argu-mento monetrio tpico do papelismo, dizendo:

    Se estabelecermos um cotejo entre os v-rios aumentos da moeda em circulao e o custo de vida, veremos que no h proporo alguma. A relao entre os dois fenmenos no bsica [...]. Pare-ce lgico que a soluo para o problema no restringir crditos e sim aumen-tar a nossa produo e riqueza (Vargas, 1950, p. 229).

    A negao Teoria Quantitativa da Moeda aqui direta, o que justifica a meno crtica ao custo de vida, infla-o, como razo para controlar a quanti-dade de moeda ou disciplinar o governo restringindo seu poder monetrio. Por outro lado, admite claramente o papel estimulador do crdito na economia, em vez de ver a moeda como neutra.

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    O discurso no desprezava a esta-bilidade ou as regras de finanas sadias, porque, como a frase anterior explicita, a inflao no era vista como necessria consequncia da quantidade de moeda. Mas o epicentro da ao estatal deveria ser incrementar as atividades produtivas. Afastava-se, assim, tanto dos princpios doutrinrios do liberalismo como do po-sitivismo, ou pelo menos, com relao a este ltimo, relaxava enormemente o es-copo das possibilidades de interveno, ao afrouxar suas regras mais ortodoxas, como a crtica aos emprstimos e ao en-dividamento. Esse outro exemplo de re-lao com os papelistas e com os antibu-lionistas e a Banking School, que, longe de ver o crdito como mera transfern-cia de rendas de poupadores para investi-dores, como defendido pelos bulionistas, em particular por Ricardo, apreendem sua importncia para impulsionar o ci-clo de negcios.

    No que se refere ao papel do mer-cado, aponta-se o laissez-faire como uma doutrina ultrapassada, incompatvel com a realidade dos pases novos (eufemis-mo para menos desenvolvidos ou, co-mo se dir mais tarde, subdesenvolvi-dos). Surpreende, por sua precocidade, a associao entre grandes propriet-rios de terra com liberalismo, a qual in-tegrar mais tarde o imaginrio desenvol-

    vimentista e reformista latino-americano, cuja ideologia responsabilizava o latifn-dio e o imperialismo como as foras re-trgradas contrrias ao desenvolvimen-to nacional.

    Pode-se interpretar nesse discur-so: (a) uma crtica ao padro-ouro, j que a moeda metlica j no mais compatvel com as exigncias do cres-cimento econmico; (b) caberia ao go-verno estimular a produo, ou tornar a riqueza abundante; (c) o crdito para estimular a produo deveria ser inclu-do como um dos itens da agenda estatal, superando o dogma contrrio ao endivi-damento para dar exemplo sociedade.

    Em certa interpretao, o crdito tal como a aparece lembra a construo de Schumpeter: um instrumento para romper o fluxo circular simples e alavan-car novas atividades produtivas, explici-tando a no neutralidade da moeda: a promessa de pagamento no futuro rom-pia com as amarras do presente, limitan-tes do crescimento, uma vez que liberava a emisso de moeda do lastro ouro. Mais uma vez, cabe lembrar a semelhana des-sas ideias com as do grupo papelista, ni-co at ento que as defendiam.

    No ano seguinte, ao assumir a Presidncia do Rio Grande do Sul, essas foram prtica com a criao, pelo De-creto n 4.079, de 22 de junho de 1928,

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    do Banco do Estado do Rio Grande do Sul. O banco estatal deveria diferenciar-se, ter uma organizao mais ampla de um banco de Estado, j que sua finali-dade seria fazer a defesa de nossa pro-duo, constituindo um propulsor da ri-queza e do progresso (Correio do Povo, 26/4/1928, p. 9). Pela proposta do gover-no, o banco deveria contar com uma car-teira hipotecria e uma carteira econmi-ca. carteira hipotecria caberia, entre outras incumbncias, conceder emprs-timos aos produtores em prazo de at 30 anos, tendo como garantia suas proprie-dades, alm de financiamentos de cur-to prazo de capital de giro, de armazena-mento e venda da produo. J carteira econmica caberia realizar emprstimos sobre warrants e sobre notas promiss-rias para agricultores, pecuaristas e mu-nicpios, alm do prprio Estado.

    Mais incisiva, ainda, a passagem seguinte em que o estmulo produo industrial e agrcola por parte do Estado , em uma metfora, comparado a uma marcha (o que supe disciplina, plane-jamento e, talvez, autoritarismo) rumo a uma finalidade civilizadora, dando a entender que a Histria deveria seguir um rumo desejvel, o qual no adviria espontaneamente, ou em decorrncia das foras de mercado, mas deveria ser construdo pela ao concreta dos ho-

    mens agentes no por iniciativa indivi-dual, mas por meio da instituio Estado.

    preciso amparar a produo, estimu-lar a indstria, desenvolver a circula-o de riqueza, disseminar a instruo, cuidar do saneamento pblico rural e urbano, facilitar a explorao de terras, desenvolver a agricultura, melhorar a pecuria, desbravar o caminho para a marcha do Rio Grande do Sul, no sen-tido de sua finalidade civilizadora (Rio Grande do Sul, 1928, p. 8).

    Destarte, pode-se assinalar, final-mente, que a influncia do papelismo nas origens do desenvolvimentismo, co-mo aqui defendemos, assenta-se no fato de que os argumentos centrais de ambos apresentam semelhanas que dificilmen-te podem ser entendidas como fortuitas ou decorrncia do acaso, hiptese que a pesquisa emprica em fontes nos sugere indubitavelmente respaldar. Todavia, de-ve-se tambm registrar que no papelismo a interveno da poltica econmica pa-ra o fomento das atividades produtivas vinculava-se principalmente aos ciclos ou s safras e entressafras de uma economia agrria. Essa concepo ajudou a abrir as portas para o desenvolvimentismo, mas esse o amplia e lhe d nova dimenso. Neste ltimo, a finalidade civilizadora aponta para um rumo, concebe a hist-ria como um fazer em carter progressi-

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    vo: o desenvolvimento, concebido como projeto a ser construdo em longo prazo, e que gradualmente vai se associar a valo-res com forte apelo poltico, como sobe-rania nacional, superao do atraso e igualdade social, incorporados ideolo-gia desenvolvimentista.

    Portanto essa posio, assim como a percepo dos impactos positivos que a moeda e o crdito poderiam ter para al-canar o desenvolvimento, teve no pape-lismo uma de suas fontes mais fecundas em seu nascedouro, mas foi ao amalga-mar-se com a defesa de um projeto na-cional de industrializao que tornou possvel sua superao: o velho papelis-mo do final do sculo XIX gradualmente desapareceria a partir de 1930, cedendo espao ao fenmeno histrico conheci-do como desenvolvimentismo marca da economia brasileira do sculo XX, que, embora com menor expresso em razo da hegemonia das teses liberais e neolibe-rais das ltimas dcadas, resiste e perdura at os dias atuais.

    5_ ConclusoDescrevemos, neste artigo, as origens tericas que o desenvolvimentismo teve no papelismo. Tal como neste ltimo, o desenvolvimentismo, como o nome indica, prioriza o crescimento econ-

    mico ou o desenvolvimento. Para isso, percebe que a economia no pode ficar merc de automatismos de uma regra monetria, como o padro-ouro, nem do funcionamento livre do mercado, que poderiam frear o ritmo de negcios, requerendo papel ativo do Estado por meio de polticas especficas.

    Alm disso, a ligao dos desen-volvimentistas com o papelismo se mos-tra particularmente importante quanto percepo da influncia da moeda so-bre a economia real, negando a neutrali-dade da moeda, cara aos ortodoxos parti-drios da Teoria Quantitativa da Moeda. No caso do papelismo, isso se explicita na recusa em manter o padro-ouro e na importncia atribuda poltica mo-netria interna, enquanto no desenvol-vimentismo isso aparece na percepo de que o crdito pode e deve ser usado como ferramenta de estmulo ao cresci-mento da produo.

    Tanto num caso quanto no ou-tro, as duas vertentes de pensamento brasileiro tm origem no lado heterodo-xo das controvrsias monetrias do scu-lo XIX, em particular nos antibulionistas, mas tambm na Banking School e na Bir-mingham School. Todavia, o debate bra-sileiro tomou conotaes prprias, ao adaptar-se a uma economia ainda pre-dominantemente agroexportadora. E,

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    no caso do papelismo, contribuiu para a formao, em suas origens, da corren-te que representou a expresso da hete-rodoxia latino-americana ao trazer para objeto de estudo a historicidade do sub-desenvolvimento e propor um conjun-to de transformaes para super-lo: o desenvolvimentismo.

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    Artigo recebido em abril de 2011; aprovado em agosto de 2011.