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Universidade Federal de Minas Gerais Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas MEXENDO NO VESPEIRO”: LEGITIMAÇÃO DOS CICLOS DE ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA DE GÊNERO ATRAVÉS DO GRUPO OPERATIVO Simone Francisca de Oliveira Belo Horizonte 2010

Mexendo No Vespeiro - Dissertação

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Dissertação: gênero, violência contra mulher, grupo operativo, psicologia social, Simone Francisca de Oliveira.

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Page 1: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

Universidade Federal de Minas Gerais

Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas

“MEXENDO NO VESPEIRO”: LEGITIMAÇÃO DOS CICLOS DE ENFRENTAMENTO À

VIOLÊNCIA DE GÊNERO ATRAVÉS DO GRUPO OPERATIVO

Simone Francisca de Oliveira

Belo Horizonte

2010

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SIMONE FRANCISCA DE OLIVEIRA

“MEXENDO NO VESPEIRO”: LEGITIMAÇÃO DOS CICLOS DE ENFRENTAMENTO À

VIOLÊNCIA DE GÊNERO ATRAVÉS DO GRUPO OPERATIVO

Dissertação de mestrado apresentada ao

Programa de Pós-Graduação em Psicologia da

Universidade Federal de Minas Gerais como

requisito parcial à obtenção do título de Mestre

em Psicologia.

Área de concentração: Psicologia Social Linha

de pesquisa: Cultura, Modernidade e

Subjetividade.

Orientador: Profº Dr. Adriano Roberto Afonso

do Nascimento

Co-Orientadora: Profª Drª Sandra Maria da Mata

Azerêdo

Belo Horizonte

Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG

2010

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150 Oliveira, Simone Francisca de

O48m „Mexendo no vespeiro‟ [manuscrito] : legitimação dos ciclos de enfrentamento

2010 à violência de gênero através do grupo operativo / Simone Francisca de Oliveira.

- 2010.

219 f.

Orientador: Adriano Roberto Afonso do Nascimento

Co-Orientadora: Sandra Maria da Mata Azerêdo

Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Minas Gerais,

Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas.

.

1. Psicologia - Teses. 2. Violência contra a mulher – Teses. 3. Relações de

gênero – Teses.4. Teoria feminista – Teses. I. Nascimento, Adriano Roberto Afonso.

II. Azerêdo, Sandra. III. Universidade Federal de Minas Gerais. Faculdade de

Filosofia e Ciências Humanas. IV. Título

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A Natália,

o nome mais doce,

o amor da minha vida.

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AGRADECIMENTOS

Primeiramente a Deus, meu amparo e meu refúgio, por sua misericórdia e providência me

guiando em todos os momentos e colocando em minha vida as pessoas a quem desejo

agradecer:

Minha mãe que cuida de mim desde sempre, de tudo que sou e de tudo que tenho com suas

mãos tão fortes e que me ensinou a ser honesta, trabalhadora, esforçada, incansável.

Meu pai por sua disponibilidade comigo e com a Natália e por ter me ensinado que tudo tem

conserto. As palavras são substituídas por lágrimas...

Minha filha Natália, a luz do meu caminho, a alegria dos meus dias, meu anjo, minha rainha.

Minha irmã Daniela, pelo carinho comigo e com a Natália e minha avó Francisca, primeira

mulher que admirei e que me ensinou o valor da família e da maternidade.

Minha orientadora Sandra Azeredo a quem não me canso de agradecer por tudo que me

ensinou nestes onze anos de convivência. Sua honestidade, integridade, coerência, e entrega

em tudo que faz são exemplos para mim. Sempre serei grata por ter tido a oportunidade de

conhecê-la. Algumas pessoas mudam as nossas vidas de forma definitiva e ela é uma delas.

Sem ela esta dissertação não existiria.

Meu orientador Adriano Nascimento que me acolheu, me respeitou, me esperou, me

organizou, me ajudou a manter o foco e conseguiu o feito de barrar a minha ansiedade

(poucos fizeram isso). Obrigada por sua acolhida serena mesmo nos momentos mais tensos e

pela atenção e leitura cuidadosa. Espero que este trabalho seja apenas o início de nossa

parceria.

Todas as mulheres a quem escutei no Espaço Bem-Me-Quero, principalmente, aquelas que

aceitaram o convite de participar do Grupo. Obrigada pela confiança e carinho e por darem ao

meu trabalho um gosto de esperança e dignidade. Meu respeito e gratidão por terem

compartilhado comigo suas trajetórias.

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A toda equipe do Espaço Bem-Me-Quero, da Coordenadoria Especial de Mulheres e da

Secretaria de Direitos e Cidadania, em especial a Célia, Gláucia e José de Souza, por me

acolherem e permitirem que eu coloque em prática meus projetos. Fazer parte desta equipe é

um presente para mim.

A toda a equipe do Programa Municipal de DST/AIDS de Contagem, em especial a Luciene e

a Sâmia que me apoiaram na decisão de ir para o Espaço Bem-Me-Quero.

As minhas queridas estagiárias Andréia, Kenia e Rafaela que me ajudaram e aprenderam

junto comigo. Espero ter acrescentado algo em suas trajetórias. Saibam que vocês

conquistaram uma amiga. Desejo continuar aprendendo com vocês...

Aos colegas e professores do Mestrado, especialmente aos que compartilharam comigo as

disciplinas “Gêneros, diferenças e processos de singularização” e “Cultura e processos de

subjetivação” e ao Profº Miguel Mahfoud, foi um prazer aprender com vocês durante aquelas

tardes.

A todos que fizeram parte das equipes de pesquisa coordenada pela profª Sandra Azeredo,

meus irmãos e irmãs de gênero, especialmente à Camila, Fernanda, Glauber, Patrício, Patrícia,

Cíntia, Alessandra, Alane, Janaína e Margarita. Um carinho especial para Liliane, Fernanda e

Kenia que me auxiliaram nas transcrições das sessões e em especial à Marcela (que apesar da

gravidez e da qualificação) cedeu algumas horas para esta tarefa.

Ao Beto, Maria, Cristiano, Bruno, Adriana, Pedro, Matheus, Wagner, Antônio, Micheline,

Augusto, Alessandra, Walter, Elaine, Baltazar, Gleison, Daniela, Izabel, Antonio e em

especial a Carmen, pela acolhida a mim e a minha filha. A disponibilidade de vocês não tem

preço.

A minha companheira de todas as manhãs Marta, meus primeiros incentivadores Marcos e

Christiane, Rebeca, César, João, Ana Vitória, Mariza, Vanderli, Bernardo, Artur, Dirlen,

Valéria, Flávio, Anderson, Jeane e Cristina por todos esses anos dividindo a vida comigo.

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“Quem não se movimenta não sente as cadeias que o prendem”

Rosa Luxemburgo

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RESUMO

Este trabalho teve como objetivo investigar o processo de enfrentamento à violência de

gênero em um Grupo Operativo com mulheres sobreviventes à violência de gênero. O Grupo

realiza-se no Centro de Referência a Mulher em Situação de Violência da Prefeitura de

Contagem/MG. Os objetivos específicos do trabalho foram: a) a construção/reconstrução dos

sentidos da violência para as participantes do Grupo, e como isto poderia possibilitar a

elaboração coletiva de estratégias para o fim do Ciclo de Violência; b) como a participação no

Grupo atuou para o questionamento da matriz hegemônica de gênero e para a transformação

das relações de gênero na vida das participantes e; c) as práticas institucionais e as trajetórias

das participantes na Rede de Enfrentamento à Violência de Contagem/MG. Quatro sessões

realizadas entre julho e agosto de 2009 com 14 mulheres foram analisadas considerando-se a

teoria do Grupo Operativo e a teoria Feminista. Os resultados indicam a possibilidade de

elaboração de estratégias visando o fim do Ciclo da Violência, a apropriação das propostas

institucionais da Rede de Enfrentamento à Violência, a legitimação dos ciclos de

enfrentamento à violência e a re-significação das relações de gênero nas vidas das

participantes.

Palavras-chaves: Grupo operativo; violência de gênero; teoria feminista.

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ABSTRACT

This work proposes to study the process of confronting gender violence in an Operative

Group composed of women who are survivors of gender violence. The group meets at the

Reference Center for Women confronting Violence in Contagem/MG. The specific objectives

of the work were: a) the construction/reconstruction of the meanings of violence and how the

new meanings would allow the group to elaborate strategies to end the Violence Cycle; b)

how participation in the group worked to question the gender hegemonic matrix and to change

gender relations in the lives of women participating in the Group; e c) the institutional

practices and the women‟s trajectories in the Network to Confront Violence in

Contagem/MG. Four group sections that took place between July and August, 2009, with

fourteen women were described and analysed according to concepts belonging to the theory

of Operative Group and to Feminist theory. The results point to the women‟s possibility of

elaborating strategies aiming at ending the Violence Cycle, their appropriation of institutional

proposal of the Network to Confront Violence, their legitimating the cycles of confronting

violence and their re-signification of gender relations through their participation in the group.

Key-words: Operative group; gender violence; feminist theory.

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SUMÁRIO

1. REVISÃO DA LITERATURA..........................................................................................14

1.1 A Rede de Enfrentamento à Violência................................................................................14

1.2 Historicizando e subvertendo conceitos..............................................................................19

1.3 Violência.............................................................................................................................40

1.4 Grupo Operativo.................................................................................................................64

1.4.1 Definição de Grupo Operativo.........................................................................................70

1.4.2 Tarefa...............................................................................................................................72

1.4.3 Aprendizagem-Comunicação...........................................................................................75

1.4.4 Esquema Conceitual Referencial Operativo – ECRO......................................................77

1.4.5 Assunção e adjudicação de papéis...................................................................................78

1.4.6 O modelo do Cone Invertido - Vetores de Avaliação dos processos Grupais.................80

1.4.7 Funções da Equipe de Coordenação................................................................................83

1.4.8 Utilizações do Grupo Operativo......................................................................................84

2 OBJETIVOS.........................................................................................................................89

2.1 Objetivo Geral.....................................................................................................................89

2.2Objetivos Específicos...........................................................................................................89

3 MÉTODO.............................................................................................................................90

3.1 Campo da pesquisa.............................................................................................................90

3.2 Objeto de estudo..................................................................................................................90

3.3 Sujeitos da pesquisa............................................................................................................91

3.4 Procedimento de Coleta de Dados......................................................................................91

3.5 Análise dos dados................................................................................................................92

4 RESULTADOS.....................................................................................................................94

4.1 Um pouco da nossa história................................................................................................94

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4.2 Sessão 01- 22 de julho de 2009- “Cala a boca, minha senhora”.........................................99

4.3 Sessão 02- 12 de agosto de 2009-“Dá para aguentar mais um pouco”.............................121

4.4 Sessão 03- 19 de agosto de 2009-“Olha o tanto de coisa que eu fiz...”............................138

4.5 Sessão 04-26 de agosto de 2009-“Se você esta frequentando um grupo, você confia no

grupo”......................................................................................................................................155

5 DISCUSSÃO.......................................................................................................................167

5.1 O Muro / A cartilha / O spa...............................................................................................168

5.2 Ciclo de Violência/ Ciclo de Enfrentamento à Violência.................................................177

5.3 Estratégias de publicização/Estratégias privadas..............................................................181

5.4 Trajetórias de sobreviventes pela Rede de Enfrentamento à Violência de

Contagem/MG.........................................................................................................................189

5.5 Considerações sobre a aplicação da teoria e técnica do Grupo Operativo com

sobreviventes à violência de gênero........................................................................................201

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................209

REFERÊNCIAS....................................................................................................................211

ANEXOS

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LISTA DE FIGURAS

Figura 01: Ciclo de enfrentamento à violência.................................................................63

Figura 02: Cone invertido.......................................................................................................82

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14

1 REVISÃO DE LITERATURA

1.1 A REDE DE ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA DE GÊNERO

Durante a graduação participei como bolsista de iniciação científica, da equipe de pesquisa

coordenada pela Professora Drª Sandra Azerêdo nos projetos “O significado da violência de

gênero: comparação e contraste entre perspectivas de homens e mulheres que participam das

cenas de violência” (1999/2000) e “A Representação social da violência de gênero e a

emergência de demandas sociais entre mulheres” (2000/2001). Além disso, realizei o estágio

curricular coordenado pela Profª Sandra Azerêdo na Delegacia de Mulheres de Belo

Horizonte durante um ano. Com estas experiências entrei em contato com a teoria feminista,

com as sobreviventes à violência de gênero e com um conceito que marcaria meu olhar e

minha prática para sempre: gênero - apresentado por Joan Scott como uma categoria útil para

análise e como uma “encrenca” por Judith Butler. Entre a leitura didática da primeira autora

até o conhecimento da escrita subversiva de Butler se passaram onze anos nos quais me

debruço respeitosamente sobre este conceito. É com ele que caminho nesta dissertação de

Mestrado e na minha prática profissional.

Encrencada pelo conceito que me guia neste trabalho (gênero) começo com o problema de

sua definição. Analogamente, como definir meu objeto de estudo: violência contra as

mulheres, violência de gênero, violência doméstica? Por que é tão difícil definir este

fenômeno e por que é tão difícil definir e utilizar o conceito gênero fora da Academia? A

violência de gênero seria uma conseqüência das relações desiguais entre os sexos construídas

culturalmente ou esta própria desigualdade seria uma forma de violência? O próprio

movimento feminista teve em suas várias épocas diferentes definições sobre quem

representava e contra qual adversário lutava. Minha aposta é que a forma de definir o

fenômeno guia o agir, a delimitação do problema e possíveis soluções a ele relacionadas. Não

que seja este meu objeto de estudo direto, mas a escolha teórica que faço de como definir

gênero e violência diz da forma que eu conduzirei meu trabalho de pesquisa.

O debate sobre o direito a não violência como parte dos direitos humanos das mulheres é alvo

de convenções e instrumentos internacionais que atribuem deveres aos estados signatários. A

Declaração de Viena foi o primeiro instrumento internacional a trazer a expressão direitos

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humanos das mulheres como direitos inalienáveis e parte integrante e indivisível dos direitos

humanos universais. Também neste documento reafirma-se a erradicação das discriminações

de gênero como um dos objetivos prioritários da comunidade internacional. Reconhece a

Declaração de Viena que

a violência contra a mulher infringe os direitos humanos de metade da humanidade e

se realiza geralmente na esfera privada, muitas vezes, doméstica (...) Cabe, portanto,

ao estado e às sociedades em geral, lutar por sua eliminação, no espaço público, no

local de trabalho, nas práticas tradicionais e no âmbito da família. (...) A

Conferência Mundial sobre Direitos Humanos salienta particularmente a

importância de se trabalhar no sentido da eliminação de todas as formas de violência

contra as mulheres na vida pública e privada. (...) A Conferência Mundial sobre

Direitos Humanos apela à Assembléia Geral para que adote o projeto de declaração

sobre a violência contra a mulher e inste os Estados a combaterem a violência contra

a mulher, em conformidade com as disposições da declaração (DECLARAÇÃO DE

VIENA, 1993).

O Brasil assumiu o compromisso perante o sistema global e regional de proteção dos direitos

humanos de coibir todas as formas de violência contra a mulher e adotar políticas destinadas a

prevenir, punir e erradicar a violência de gênero. Entre estas políticas foi criada a Secretaria

Especial de Políticas para as Mulheres (SPM) que assessora direta e imediatamente a

Presidência da República na formulação, coordenação e articulação de políticas para as

mulheres.

Em consonância com a política internacional e nacional, o Estado de Minas Gerais

implementou em 2007 a Coordenadoria Estadual de Políticas Públicas para Mulheres. De

acordo com as indicações do Plano Nacional de Políticas para Mulheres da Secretaria

Especial de Políticas para as Mulheres (2006) de que sejam instituídas redes de atendimento

às mulheres em situação de violência, foi implementada a Rede de Enfrentamento à Violência

contra a Mulher do Estado de Minas Gerais, composta pelas seguintes instituições: Secretaria

Especial de Políticas para Mulheres da Presidência da República (apoio), Secretaria de Estado

de Desenvolvimento Social/MG-SEDESE (apoio), Coordenadoria Especial de Políticas

Públicas para Mulheres do Estado de Minas Gerais, Conselho Estadual da Mulher/MG-CEM,

Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais, Promotoria de Justiça de Defesa dos Direitos

da Mulher do Ministério Público de Minas Gerais, Delegacias Especializadas de Crimes

contra a Mulher de Belo Horizonte e Contagem, Consórcio Regional de Promoção da

Cidadania “Mulheres das Gerais”, Coordenadoria Especial de Políticas para Mulheres de

Contagem-CEPOM, Coordenadoria Especial de Políticas Públicas para Mulheres-CEPAM,

Page 17: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

16

Coordenadoria Municipal dos Direitos da Mulher de Belo Horizonte e de Lagoa Santa-

COMDIM, Centro de Referência de Atendimento à Mulher em Situação de Violência de

Contagem-Espaço Bem-Me-Quero, Bemvinda-Centro de Apoio à Mulher de Belo Horizonte,

Centro Risoleta Neves de Atendimento-CERNA, Conselho Estadual da Mulher de Minas

Gerais, Instituto Albam, Superintendência de Políticas Publicas para Mulheres de Sabará,

Secretaria Municipal de Ação Social da Prefeitura Municipal de Nova Lima, Casa Abrigo

Sempre Viva e Polícia Militar de Minas Gerais.

A cidade de Contagem/MG, por sua vez, criou a Coordenadoria Especial de Políticas para

Mulheres (CEPOM/PMC) através do Projeto de Lei Municipal nº 006 de 06/09/2005 com o

objetivo de elaborar, coordenar e executar políticas que assegurem o atendimento das

necessidades específicas da mulher e colaborem no combate às diferentes formas de

discriminação de gênero no município. Entre os programas desenvolvidos pela

Coordenadoria está o Espaço Bem-Me-Quero, que se dedica ao atendimento às mulheres em

situação de violência. O Espaço foi inaugurado no dia 08 de março de 2007, em consonância

com a Norma Técnica de Padronização dos Centros de Referência de Atendimento à Mulher,

da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM) do Governo Federal.

Nesse estudo a articulação em rede entre os poderes federal, estadual e municipal para o

enfrentamento à violência contra a mulher é entendida como um conjunto de saberes e de

estratégias de poder que atua sobre determinada ideologia vigente no Brasil atual em relação à

violência de gênero. Toda esta articulação política vem responder à urgência que as feministas

apontam, principalmente a partir da década de 1980, no Brasil, da necessidade de uma

resposta do poder público para a violência contra as mulheres.

Considero que o dispositivo de enfrentamento à violência de gênero da forma como se

apresenta atualmente incita a penalização e criminalização da violência doméstica em

contraposição a sua privatização, coloca as instituições públicas como instrumentos

privilegiados na promoção do enfrentamento à violência de gênero, busca desnaturalizar,

desindividualizar e desprivatizar a violência ao apostar na produção de políticas públicas

como reposta social para o problema, referencia-se pelo respeito aos direitos humanos das

mulheres e é, ainda, produtor de subjetividades delimitadas para as mulheres, reservando para

estas o lugar de sujeito de direito. Este dispositivo vem ao encontro da necessidade de

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17

instaurar uma nova racionalidade sobre a violência contra a mulher.

A legislação produzida mundial e nacionalmente nos últimos quinze anos, por exemplo, é um

dispositivo de poder muito importante na localização do fenômeno violência de gênero, pois

os sistemas jurídicos de poder produzem os sujeitos que subsequentemente passam a

representar. As noções jurídicas de poder parecem regular a vida política em temos

puramente negativos – isto é, por meio de limitação, proibição, regulamentação,

controle e mesmo “proteção” dos indivíduos relacionados àquela estrutura política.

(...) Porém, em virtude de a elas estarem condicionados, os sujeitos regulados por

tais estruturas são formados, definidos e reproduzidos de acordo com as exigências

delas. (...) Os sujeitos jurídicos são invariavelmente produzidos por via de práticas

de exclusão que não “aparecem” uma vez estabelecida a estrutura jurídica da

política. (...) O poder jurídico “produz” inevitavelmente o que alega meramente

representar; conseqüentemente, a política tem que se preocupar com essa função

dual do poder: jurídica e produtiva (BUTLER, 2003, p.18-19).

Da mesma forma, amparado no sistema jurídico, o discurso dos propositores das políticas

públicas e dos responsáveis pelos atendimentos nas instituições da Rede de Enfrentamento à

Violência “produz” o sujeito que diz “representar”, “defender”, “atender” e “encaminhar”.

No Brasil, a principal contribuição para as mulheres vítimas de violência silenciosa e

silenciada em seus lares foi o questionamento sobre o mundo privado e a família. As mulheres

do feminismo incentivaram a denúncia e exigiram do Estado uma solução política para a

violência ocorrida no âmbito privado. Nesse sentido, principalmente a partir da década de 80,

o movimento feminista teve várias conquistas, como a criação das Delegacias Especializadas

de Crimes contra a Mulher (DECCM) e a punição de alguns homens que assassinaram suas

esposas em nome da honra. Neste momento a violência era nomeada como violência contra

as mulheres. Era o início de um diálogo entre o movimento feminista e o Estado, importante

aspecto para a localização da construção do dispositivo de enfrentamento à violência como

está delimitado hoje (RAGO, 1996; e 2003; SILVEIRA, 2006).

Neste capítulo de “Revisão da Literatura” apresentarei no tópico “Historicizando e

subvertendo conceitos” uma discussão sobre os conceitos de sexo/gênero buscando

demonstrar como estes vocábulos assumem diferenciados sentidos de acordo com o momento

histórico e os interesses de quem os utilizam. Apresentarei, assim, a apropriação de algumas

teóricas feministas destes vocábulos e problematizarei sobre algumas possíveis consequências

desta multiplicidade de emprego destes conceitos. Também discutirei sobre a representação

Page 19: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

18

do movimento feminista na sociedade, a partir da adoção do objeto mulheres como seu objeto

de interesse e a problemática de se adotar esta proposta abrangente, mas invisibilizadora de

diferenças. Apresentarei também as propostas de Scott (1999) e Butler (2003) de

historicização e subversão destes conceitos como a proposta guia desta dissertação.

No tópico “Violência”, a partir da discussão de Almeida (2007) sobre a dificuldade de

definição e delimitação do fenômeno da violência de gênero problematizarei a adoção dos

conceitos: violência contra mulher, violência doméstica, violência familiar e violência de

gênero. Defenderei neste trabalho a subversão desta última apresentação propondo a sua

definição a partir de seu adjetivo (gênero) como uma forma de dar visibilidade à construção

discursiva deste conceito como um indicativo de violência. Por fim, apresentarei como

proposta para a análise das trajetórias das sobreviventes à violência de gênero, o emprego do

desenho do Ciclo de Violência. Aliada a isto, como uma forma de contribuir com a discussão,

apresentarei o processo de enfrentamento à violência através do desenho do Ciclo de

Enfrentamento à Violência buscando demonstrar como as estratégias de enfrentamento

adotadas pelas sobreviventes podem ser (des)legitimadas, bem como as consequências disto

para o processo de enfrentamento à violência.

No tópico “Grupos Operativos” realizarei uma revisão da proposta de Pichon-Rivière (1994)

sobre os Grupos Operativos atentando para os aspectos teóricos e ideológicos defendidos pelo

autor para além da delimitação da técnica como simples dinâmica grupal. Também

apresentarei uma discussão sobre a utilização desta técnica como método de coleta de dados, a

confluência dos papéis de coordenadora e pesquisadora e os impactos positivos desta na

condução metodológica de uma pesquisa. Também serão apresentadas as possibilidades de

utilização da técnica com públicos, objetivos e áreas de estudo variados. Por fim, realizarei

uma discussão sobre a utilização desta técnica com o público de mulheres sobreviventes à

violência de gênero.

Para contextualizar o Grupo que aceitou participar desta pesquisa comigo apresentarei no

capítulo “Resultados”, no tópico “Um pouco da nossa história”, a trajetória do Grupo (desde

a sua primeira sessão) apresentando os momentos mais marcantes no processo de legitimação

desta proposta e de suas participantes.

Page 20: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

19

1.2 HISTORICIZANDO E SUBVERTENDO CONCEITOS

Os que se propõem a codificar os sentidos das palavras lutam por uma causa

perdida, porque as palavras, como as idéias e as coisas que elas significam, têm uma

história. Nem os professores da Oxford nem a academia Francesa foram

inteiramente capazes de controlar a maré, de captar e fixar sentidos livres do jogo da

invenção e da imaginação humana (SCOTT, 1991, p. 1).

A luta de décadas de escritores(as) feministas que se debruçaram sobre as palavras sexo e

gênero, buscando a cada período histórico apropriar-se deles e dar-lhes sentidos que

correspondessem à melhor forma de apresentar e solucionar a questão da desigualdade entre

homens e mulheres construiu uma história para estas palavras. A análise dessa história é

importante por reafirmar a impossibilidade do entendimento de qualquer conceito sem a

contextualização histórica e política do mesmo. As palavras não são inocentemente

empregadas ou assumem seus significados naturalmente, mas sim são investidas de

significados a partir dos interesses dos que buscam capturar seus sentidos. Por mais que se

observe como esta luta é incessante e fugidia no decorrer da história, ela continua, inclusive

aqui...

Partindo da apresentação do significado das palavras sexo e gênero no Novo Dicionário

Aurélio (1999) iniciarei a discussão sobre as utilizações nada inocentes destas palavras.

Sexo: sm. 1. Conformação particular que distingue o macho da fêmea, nos animais e

vegetais, atribuindo-lhes um papel determinado na geração. 2. O conjunto dos que

são do mesmo sexo. 3. Sensualidade, volúpia, lubricidade; sexualidade. 4. Bras. Os

órgãos genitais externos. O belo sexo: as mulheres, o sexo amável, o sexo frágil. O

sexo devoto: As beatas. O sexo forte: Os homens.

Gênero: sm. 1. Antrop. A forma culturalmente elaborada que a diferença sexual

toma em cada sociedade e que se manifesta nos papéis e status atribuídos a cada

sexo e constitutivos da identidade sexual de cada sexo. 2. E. Ling. Categoria

gramatical (q.v) que dispõe os nomes de uma língua em classes (como feminino,

masculino, neutro, animado, inanimado) de acordo com: (a) referência pronominal

(a casa/ela, o menino/ele), (b) a concordância com os modificadores (a menina

bonita, o gato gordo), (c) a presença de determinados afixos um dos predicáveis. 3.

Log. Um dos predicáveis (q.v): característica (s) que uma coisa tem em comum com

a outra e que lhe(s) determina(m) a essência, quando acrescida da diferença.

Nestes significados apresentados para a palavra sexo destacamos quatro aspectos: a

fundamentação na biologia, a apresentação a partir do binarismo macho/fêmea, sua função de

aglutinador de iguais e sua utilização em expressões figurativas.

Page 21: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

20

Por sua vez, o vocábulo gênero é apresentado através de sua fundamentação cultural e pela

diferenciação de acordo com o sexo e com a sociedade. Observamos também para esta

palavra a manutenção do binarismo feminino/masculino e do seu entendimento como

aglutinador de iguais, porém, em contraposição ao diferente.

Iniciando uma discussão sobre a forma culturalmente assumida pelo sexo (gênero)

observamos que os adjetivos frágil, belo e devoto são utilizados para o sexo feminino e o

adjetivo forte para o sexo masculino. O aparecimento destas expressões figurativas em um

dicionário diz da sua inteligibilidade e aceitação na linguagem do dia a dia de determinada

sociedade. Utilizarei desses exemplos e definições do dicionário para abordar alguns aspectos

da história dessas palavras e da forma como me aproprio delas nesse trabalho.

Segundo Scott (1991), a apresentação da palavra gênero como uma maneira de referir-se à

organização social da relação entre os sexos foi apropriada pelas feministas interessadas:

em denunciar a distinção social e não biológica dos sexos na sociedade;

no aspecto relacional das definições normativas de feminilidade;

na pesquisa sobre as mulheres como uma forma de mudança dos paradigmas das disciplinas

e como uma reavaliação crítica de premissas e critérios científicos e

na inclusão no debate científico e histórico dos aspectos pessoal, subjetivo, político e

público.

Para esse último fim, algumas feministas agregaram o estudo do gênero aos de classe

(amplamente discutidos pelos marxistas) e de raça (também em processo de assimilação

política pelos movimentos sociais). A análise das relações entre os sexos a partir desta tríade

é, ainda hoje, um desafio para os/as estudiosos/as do gênero.

Para além destes desafios e interesses, outros se agregam à história da discussão sobre o uso

do gênero/sexo como base política do feminismo. Neste trabalho irei me deter sobre alguns

destes riscos/desafios, quais sejam:

Page 22: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

21

a denúncia sobre a construção social da diferença entre os sexos deixar de fora o aspecto

culturalmente construído do uso de palavras como sexo, corpo e natureza e de manter-se fiel

ao binarismo masculino/feminino;

a pesquisa e a luta feminista basear-se em um mito representacional das mulheres

denunciado pelas feministas negras e lésbicas;

o anseio de dar visibilidade política e científica ao feminismo esbarrar, algumas vezes, em

estudos meramente descritivos ancorados em categorias como, por exemplo, experiência e

identidade, ou nos cânones científicos sem a proposição de mudanças.Para esta empreitada

dialogarei, principalmente, com as teóricas feministas Joan Scott, Donna Haraway, Sandra

Azerêdo e Judith Butler.

Em seu texto “Gênero: uma categoria útil para análise histórica”, originalmente publicado

em 1989, Scott alertava para a estratégia característica dos estudos feministas dos anos 80 de

substituição da categoria mulheres por gênero, propondo as duas palavras como sinônimas.

Esta estratégia visava dar legitimidade acadêmica e científica para os estudos sobre as

mulheres em busca de uma objetividade e erudição sem o risco de filiação ao discurso do

feminismo.

Para além desta estratégia, a utilização de gênero como substituto de mulheres refere-se ao

gênero como “um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas

entre os sexos” (SCOTT, 1991, p.14). Apesar da importância da denúncia da construção

social sobre o corpo das mulheres e dos homens, esta não pautava como questão o porquê ou

o como essas relações se constituíam, funcionavam e, por conseguinte, como poderiam ser

modificadas. Faltava aos estudos descritivos uma apropriação da discussão sobre os aspectos

político, histórico e as relações de poder no processo de definição dos conceitos sexo e

gênero. Scott (1991) alerta que sem este posicionamento dificilmente produzir-se-iam

propostas de mudanças, seja dos cânones da ciência ou dos paradigmas da história existente.

Até esse momento histórico, falar de mulheres/gênero era falar de um assunto secundário.

Como proposta para este dilema as historiadoras feministas utilizaram-se basicamente de

quatro proposições teóricas: o conceito do patriarcado, as teorias marxistas e as teorias da

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22

escola do pós-estruturalismo francês e da escola anglo-americana das relações de objeto. Cada

um destes diálogos carregou consigo as limitações de uma apropriação teórica e serão

apresentados como contrapontos para a proposta de conceitualização neste trabalho.

Primeiramente apresentarei o conceito do patriarcado (SAFFIOTI, 2004) que pode ser

definido como uma tentativa feminista de explicação sobre as relações entre os sexos baseada

na exploração do corpo e da capacidade de reprodução das mulheres. As teóricas feministas

interessavam-se, assim, em denunciar a submissão das mulheres aos homens. A partir deste

entendimento, homens e mulheres estavam em lados opostos, estas no privado e aqueles no

público. A manutenção dessa dicotomia era sustentada pelo patriarcado que “representa um

estrutura de poder baseada tanto na ideologia quanto na violência” (SAFFIOTI, 2004, p.58).

Com este conceito, buscava-se trazer ao debate sobre as relações entre homens e mulheres:

a noção de que o privado é político;

a diferença dos direitos sexuais entre os homens e mulheres na sociedade capitalista e

falocêntrica e

a existência de um tipo hierárquico de relação vislumbrado em todos os espaços da

sociedade (SAFFIOTI, 2004).

As divergências sobre a validade e a continuidade da utilização do conceito de patriarcado e a

discussão sobre a substituição ou utilização conjunta com o conceito de gênero ocupa as

defensoras do patriarcado e as feministas contrárias a este posicionamento. Entre as

defensoras da continuidade do uso do conceito de patriarcado, Saffioti (2004) argumenta que

as feministas devem adotar a noção de patriarcado como ponto fundamental de discussão para

o fenômeno da dominação das mulheres pelos homens. Esta autora aponta que

não se trata de abolir o uso do conceito de gênero, mas de eliminar sua utilização

exclusiva. Gênero é um conceito por demais palatável, porque é excessivamente

geral, a-histórico, apolítico e pretensamente neutro. Exatamente em função de sua

generalidade excessiva, apresenta grande grau de extensão, mas baixo nível de

compreensão. O patriarcado, ou ordem patriarcal de gênero, só se aplica a uma fase

histórica, não tendo a pretensão da generalidade nem da neutralidade, e deixando

propositalmente explícito o vetor da dominação-exploração. Perde-se em extensão,

porém, se ganha em compreensão. Entra-se no reino da História. Trata-se, pois, da

falocracia, do androcentrismo, da primazia do masculino. É, por conseguinte, um

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conceito de ordem política (SAFFIOTI, 2004, p. 139).

Saffioti (2004) define gênero como “um conjunto de normas modeladoras dos seres humanos

em homens e em mulheres, normas estas expressas nas relações entre as duas categorias

sociais, ressalta(ndo)-se a necessidade de ampliar este conceito para as relações homem-

homem e mulher-mulher” (SAFFIOTI, 2004, p. 70).

Desta forma denuncia-se a subjugação dos corpos masculinos e femininos às normas culturais

modeladoras, onde o corpo e seu sexo são compreendidos como bases biológicas para este

tipo de normalização.

Saffioti (2004) também apresenta o alerta de Pateman para a teoria feminista sobre o perigo

de abandonar o uso do patriarcado de forma definitiva, pois isto representaria a “perda do

único conceito que se refere especificamente à sujeição da mulher, e que singulariza a forma

de direito político que todos os homens exercem pelo fato de serem homens” (PATTEMAN

apud SAFFIOTI, 2004, p.55).

As críticas a esta interpretação patriarcal se referem a sua pretensa universalidade, seu caráter

reducionista e a não relação ou utilização deste conceito para a explicação de outras

desigualdades sociais (SCOTT, 1991; BUTLER, 2003).

Esta discussão permite observar um dos muitos exemplos de luta pela busca de codificação de

sentidos. Através do percurso do feminismo vale a pena observar esta tentativa de se segurar

uma definição/explicação como única e definitiva, mas o que se percebe é como facilmente

ela escorre pelos nossos dedos como areia. Para além, cabe sempre se deter sobre os interesses

na escolha da utilização dos conceitos.

As feministas marxistas, por sua vez, buscaram guiar-se por uma abordagem histórica,

limitada, porém, pela busca de uma origem/explicação para o gênero. Apesar da rejeição do

essencialismo biológico como determinante para a divisão sexual do trabalho e da aceitação

do fato de que a subordinação das mulheres era anterior à subordinação ao capitalismo,

observa-se nesta abordagem uma constante utilização da causalidade econômica como origem

das desigualdades/diferenças entre os sexos. Aqui os dois sistemas (capitalista e de gênero)

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eram vistos como separados, mas agindo reciprocamente na produção das estruturas sócio-

econômicas/históricas e de dominação masculina na sociedade. O patriarcado, por sai vez, era

entendido como um sistema separado, mas em interação com o capitalismo. Desta forma,

observamos que as teóricas feministas marxistas avançaram na discussão sobre o biológico

como justificativa das desigualdades, mas atrelaram a origem às desigualdades econômicas.

Observamos assim, que no afã de solucionar a charada da origem, os(as) marxistas

apresentaram uma das consequências das desigualdades como explicação causal e

determinista.

Assim, Scott (1991) conclui que nestas abordagens gênero não assume um estatuto próprio de

análise, seja por ser visto como subproduto das estruturas econômicas, ou por ser visto como

subproduto das estruturas corporais, físicas e culturais.

Apesar das críticas às abordagens patriarcais e marxistas muitos questionamentos podem ser

formulados. Inquestionavelmente, a divisão da sociedade capitalista em classes é um assunto

afim à discussão sobre as desigualdades sociais entre homens e mulheres, porém, o desafio

esta na discussão destas pautas entre si e com outras. Esta dificuldade fica (in)visível, por

exemplo, quando a estas pautas de discussão agregam-se o preconceito racial e/ou a

desigualdade entre as raças. Poucas são as discussões que realmente conseguem integrar estas

três pautas sociais não como afins, nem como justapostas, mas como expressões de poder que

atuam sobre os corpos (de homens e mulheres) de forma reiterada e constitutiva. Da mesma

forma que uma visão dicotômica da realidade pode ser questionada, uma tricotomia também

não serve como base para análise. Ou seja, o estudo da diferença e das desigualdades deve-se

pautar na tríade gênero/classe/raça para não correr o risco de fragmentar o que se deseja

visualizar/resolver/representar (SCOOT, 1991).

Este aspecto está diretamente ligado a outro tema muito caro para o feminismo: sua

representação na sociedade. Afinal que movimento político é este? Quem ele representa?

Como ele representa? Quais são suas estratégias? Como ele luta? Contra o quê e contra quem

é essa luta? Quais são seus aliados?

Para Butler, “embora afirmar a existência de um patriarcado universal não tenha mais a

credibilidade ostentada no passado, a noção de uma concepção genericamente compartilhada

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de 'mulheres', corolário dessa perspectiva, tem se mostrado muito mais difícil de superar”

(BUTLER, 2003, p.21).

Assim, a categoria mulher e a escolha de sua utilização remetem ao dilema do feminismo

sobre a existência de uma essencialidade das mulheres que as uniria e tornaria possível a

representabilidade e defesa de todas através de um projeto político unívoco. No decorrer da

história do feminismo observamos que, a cada bandeira empunhada na defesa dos direitos de

umas eram deixadas para trás os interesses de outras. A noção de uma identidade comum que

abrangeria todas as mulheres e todos os seus direitos foi questionada. De quais mulheres se

está falando? Contra qual violência se está lutando? Quais direitos estão sendo defendidos?

A permanência da concepção genericamente compartilhada do uso de mulheres demonstra a

força desta construção discursiva que, ao buscar este conjunto universal, produz uma

categoria de mulheres essencializada, passível de representação, deixando fora do discurso

parte do coletivo que diz representar. O perigo deste tipo de definição para o objeto do

feminismo está em vir acompanhada “freqüentemente da idéia de que a opressão das mulheres

possui uma forma singular, discernível na estrutura universal ou hegemônica da dominação

patriarcal ou masculina” (BUTLER, 2003, p.20).

A mudança na utilização, sentido e definição de uma palavra como mulher e, por conseguinte,

em sua representatividade e aceitabilidade não se dá a não ser por meio de disputas, lutas de

poder. As palavras e seus significados não se constituem em um vácuo ou em interações

inocentes, imparciais e objetivas entre os sujeitos. Assim, ao se utilizar o conceito mulheres

deve-se perguntar a que (quais) mulher(es) se está(ão) referindo, qual(is) estão sendo

representada(s) e qual(is) estão sendo posicionadas fora deste discurso.

A defesa da categoria mulheres como composta de um número infinito de possíveis

definições e localizações do que seja uma mulher em contraposição a uma conceituação

essencializadora da categoria mulher influencia definitivamente a agenda de movimentos

sociais como, por exemplo, o feminismo. Este tipo de posicionamento permite uma

representação localizada na busca e definição de direitos. A conclusão é que a utilização do

termo mulheres como a denotação de uma identidade unívoca é uma falácia com

consequências para sua representatividade. Em relação a esta “ficção representacional e

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fundacional” Butler assim se posiciona:

É minha sugestão que as supostas universalidade e unidade do sujeito do feminismo

são de fato minadas pelas restrições do discurso representacional em que funcionam.

Com efeito, a insistência prematura num sujeito estável do feminismo,

compreendido como uma categoria una das mulheres, gera, inevitavelmente,

múltiplas recusas a aceitar essa categoria. Esses domínios de exclusão revelam as

consequências coercitivas e reguladoras dessa construção, mesmo quando a

construção é elaborada com propósitos emancipatórios (BUTLER, 2003, p.21-22)

Butler não questiona a legitimidade do movimento feminista, mas a pretensão universalisante

de um feminismo que se perde em busca de representatividade. Para ela,

a crítica feminista tem de explorar as afirmações totalizantes da economia

significante masculinista, mas também deve permanecer autocrítica em relação aos

gestos totalizantes do feminismo. O esforço de identificar o inimigo como singular

em sua forma é um discurso invertido que mimetiza acriticamente a estratégia do

opressor, em vez de oferecer um conjunto diferente de termos. O fato de a tática

poder funcionar igualmente em diferentes contextos feministas e antifeministas

sugere que o gesto colonizador não é primária ou irredutivelmente masculinista. Ele

pode operar para levar a cabo outras relações de subordinação hetero-sexista, racial

e de classe, para citar apenas algumas (BUTLER, 2003, p.33-34).

A partir desta discussão adotarei o recorte realizado na categoria mulheres vinculado ao

entendimento de Denise Riley, citada por Cláudia Lima Costa (2002, p.72), sobre o “sujeito”

do feminismo. Para aquela autora a categoria mulheres é

histórica e discursivamente construída, sempre em relação a outras categorias que

também se modificam; “mulheres” são uma coletividade volátil na qual os seres

femininos podem estar posicionados de formas bastante diferentes, de modo que não

se pode confiar na aparente continuidade do sujeito “mulheres”; “mulheres” como

coletividade é uma categoria sincrônica e diacronicamente errante, enquanto que, a

nível individual, “ser mulher” também é algo inconstante, que não consegue

oferecer base ontológica. Ainda assim, deve ser destacado que essa instabilidade da

categoria é o sine qua non do feminismo, que de outra forma se perderia por um

objeto, ficando despojado de lutas, e em resumo, sem muita vida (RILEY apud

COSTA, 2002, p.71).

A discussão sobre a representatividade da categoria mulheres como sujeito do movimento do

feminismo coloca em questão as próprias noções de sujeito e identidade. Situar e fixar

mulheres como um conceito único, fechado e acabado em sua construção apresenta o

feminismo como um movimento de uma massa de sujeitos colocados como iguais. Este é o

erro sedutor das propostas essencialistas e binaristas que apresentam os dois conjuntos

homens e mulheres como dois grupos que se digladiam apenas por não respeitarem as

diferenças entre si. Este discurso produz formas de enfrentamento às questões das

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desigualdades e da violência que apontam para soluções frágeis por não se perguntarem sobre

como os sujeitos são posicionados na relação e por qual discurso. Partindo de um tipo de

interpretação discursiva apaziguadora e respeitadora das diferenças binárias, por exemplo,

defende-se que caso reinasse o diálogo entre as diferenças/partes/sexos atingir-se-ia o fim das

desigualdades. Assim, não se questiona como cada uma das partes da discussão detém o

poder, sobre quais discursos pautam esta discussão (religioso/jurídico/científico/feminista) e

sobre como estes discursos perpassam e constituem todo o processo de discussão e os sujeitos

participantes.

Esta visualização das relações entre os sexos fundamenta-se na fixação da oposição binária e

antagônica entre masculino-feminino como a única relação possível e como um aspecto

permanente da condição humana. As desavenças se dariam invariavelmente entre os dois

sexos/gênero vistos como uma construção universal, antagônica, fundante do ser humano e

imutável. Este é um dos aspectos que Scott (1991) questiona na apropriação das teorias

psicanalíticas pelas feministas. O que a autora observa é que, apesar de se perceber o processo

da construção da identidade de gênero como um processo e de não se negar a instabilidade

desta identidade, as teorias de base psicanalítica tendem à universalização das categorias, sua

binarização e a reificação do antagonismo subjetivo entre homens e mulheres. O antagonismo

sexual como aspecto inevitável e fundante da aquisição da identidade sexual perpetua e

justifica proposições essencialistas e únicas para a apresentação de homens e mulheres na

sociedade. Desta forma, Scott (1991) demonstra como facilmente a apropriação destas bases

teóricas pode levar algumas feministas a reforçarem justamente a essencialização do feminino

na sociedade.

O primeiro problema que esse tipo de empréstimo coloca é o deslizamento que

acontece frequentemente na atribuição da causalidade: a argumentação começa com

afirmações do tipo “a experiência das mulheres levam-nas a fazer escolhas morais

que dependem dos contextos e das relações”, para chegar à: “as mulheres pensam e

escolhem esse caminho porque elas são mulheres”. Encontramos implicadas nessa

abordagem a noção a-histórica, se não essencialista, de mulheres. (...) Insistindo

sempre sobre as diferenças fixadas (...), as feministas reforçam o tipo de pensamento

que elas queriam combater. Apesar do fato de que elas insistem na reavaliação da

categoria do “feminino” (...) elas não tratam da oposição binária em si mesma

(SCOTT, 1991, p.12).

Em relação à teoria das relações objetais, Scott (1991) critica a limitação do conceito gênero à

esfera da família e à experiência doméstica. Com este recorte esta teoria perde de vista os

aspectos históricos e políticos da representação da sociedade sobre a construção de gênero,

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não se perguntando sobre como “os sistemas de significados, isto é, as maneiras que as

sociedades representam o gênero, o utilizam para articular regras de relações sociais ou para

construir o sentido da experiência” (SCOTT, 1991, p.10).

A partir destas críticas, Scott (1991) defende que é necessário ao feminismo teorizar sobre sua

prática, utilizar-se do gênero como uma categoria para a análise e historicizar os conceitos

denunciando a apresentação e utilização de algumas categorias analíticas como reificadas e

transcendentes. Assim, ela conclama que

Precisamos de uma historicização e de uma desconstrução autênticas dos termos da

diferença sexual. Temos que ficar mais atentas às distinções entre nosso vocabulário

de análise e o material que queremos analisar. Temos que encontrar os meios

(mesmo que imperfeitos) de submeter, sem parar, as nossas categorias à crítica,

nossas análises à autocrítica. (...) Temos que examinar atentamente os nossos

métodos de análise, clarificar as nossas hipóteses operativas e explicar como

pensamos que a mudança se dá. Em lugar de procurar as origens únicas, temos que

conceber processos tão ligados entre si que não poderiam ser separados (...). Temos

que nos perguntar mais frequentemente como as coisas aconteceram para descobrir

porque elas aconteceram (SCOTT, 1991, p.13-14).

Fazendo coro a este convite Butler proclama que “rir de categorias sérias é indispensável para

o feminismo. Sem dúvida, o feminismo continua a exigir formas próprias de seriedade”

(BUTLER, 2003, p.8).

Desta forma, estudar a busca do movimento feminista por construir uma resposta teórica

diferente das apresentadas para as desigualdades permanentes entre mulheres e homens a

partir da história das várias utilizações da palavra gênero é historicizar o conceito, atentar-se

para seu aspecto discursivo, político, não evidente. Este mesmo exercício é proposto para o

estudo de conceitos como sexo, experiência, raça, mulheres e quaisquer outras categorias

normalmente tidas como auto-evidentes.

De outro lado, teorias e práticas que se apóiam exclusivamente na visibilidade da experiência

da diferença como forma de denúncia das desigualdades perdem de vista o aspecto histórico e

político desta discussão. Scott (1999) questiona a autoridade da categoria experiência como

auto-evidente e origem do conhecimento. A partir deste posicionamento, a experiência

individual é o alicerce das explicações em um jogo de reprodução dos sistemas ideológicos

estabelecidos impedindo um exame crítico das “categorias de representação

(homossexual/heterossexual/homem/mulher, negro/branco como identidades fixas e

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imutáveis), suas premissas sobre as quais as categorias significam e como elas operam suas

noções de sujeitos, origem e causa” (SCOTT, 1999, p.26,27).

Podemos acrescentar aos questionamentos acima a tomada destas categorias representacionais

como essências definidoras e fundantes dos sujeitos anteriores ao discurso e à política. A

partir deste ponto de vista, ter a experiência de ser negra, mulher, homossexual ou de

apresentar-se com determinada identidade em determinado momento (e todas as outras formas

imagináveis de combinação destes conceitos) seria a base para a explicação e universalização

de identidades e histórias destes grupos. A essência destes representantes grupais seria a

explicação para os fenômenos que os atingem bem como a solução para os mesmos. Assim os

fenômenos relacionados a estas experiências seriam reflexos de uma experiência essencial do

ser (mulher, negro, pobre ou homossexual) e não produtos da política discursiva de

determinado período histórico sobre estas experiências (SCOTT, 1999). O que se nega com

isto é o caráter relacional e histórico destas experiências/conceitos posicionado o “ser” como

independe e anterior às relações/interseções históricas e políticas. Com esta tentativa de

explicação essencializam-se e cristalizam-se conceitos. Para evitar apenas a reprodução da

história de identidades essencializadas, devem-se desmascarar os vestígios de dominação

política, cultural e discursiva sobre as mulheres e suas experiências. Assim, para historicizar

essas experiências partir-se-ia do questionamento do que conta como experiência e quem

determina isso. Assim, não deveríamos basear nossas produções na História, mas “refletir

criticamente sobre a história escrita e sobre o que escrevemos sobre ela (...), sobre os

processos discursivos pelos quais identidades são atribuídas, resistidas ou abraçadas, e quais

processos são ignorados” (SCOTT, 1999, p.37- 40-41).

Historicizar conceitos é não apresentá-los como “a origem de nossas explicações, mas como

aquilo que buscamos explicar, aquilo sobre o qual se produz conhecimento. (...) É tratar as

categorias de análise como contextuais, contestáveis e contingentes (...) e suas histórias como

contestáveis e contraditórias” (SCOTT, 1999, p.27- 46-47).

Essa forma de interpretação remete ao que Foucault, reformulando Nietzsche, chamou de

genealogia. Esta forma de interpretação e registro da história permeia os escritos de algumas

teóricas feministas na discussão sobre o que significa a singularidade das mulheres no mundo

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capitalista, falocêntrico e racista e na (des)construção de conceitos transformando-os “em seus

próprios conceitos em sua luta” (AZERÊDO, 2007, p.87).

Assim, em contraposição à busca das origens das categorias fundacionais do

sexo/gênero/corpo algumas feministas propõem uma análise crítica destas categorias como

efeitos de uma formação específica de poder. Butler (2003) propõe a subversão e o

deslocamento destas noções naturalizadas e reificadas através de uma genealogia da ontologia

do gênero. Para este fim, ela busca compreender “a produção discursiva da plausibilidade da

relação binária dos sexos” sugerindo “que certas configurações sociais culturais do gênero

assumem o lugar do 'real' e consolidam e incrementam sua hegemonia por meio de uma

autonaturalização apta e bem-sucedida” (BUTLER, 2003, p.58). A crítica genealógica

recusa-se a buscar as origens do gênero, a verdade íntima do desejo feminino, uma

identidade sexual genuína ou autêntica que a repressão impede de ver; em vez disso,

ela investiga as apostas políticas, designando como origem e causa categorias de

identidade que, na verdade, são efeitos de instituições, práticas e discursos cujos

pontos de origem são múltiplos e difusos. A tarefa dessa investigação é centrar-se e

descentrar-se nessas instituições definidoras: o falocentrismo e a heterossexualidade

compulsória. (...) Ela toma como foco o gênero e a análise relacional por ele

sugerida precisamente porque o “feminino” já não parece mais uma noção estável,

sendo seu significado tão problemático e errático quanto o de “mulher”, e porque

ambos os termos ganham seu significado problemático apenas como termos

relacionais (BUTLER, 2003, p.9, grifos meus).

Scott (1991), por sua vez, apresenta sua definição de gênero a partir da conexão entre duas

proposições. Assim, o gênero seria para esta autora,

um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas

entre os sexos implicando em quatro elementos relacionados entre si: (...) símbolos

culturalmente disponíveis que evocam representações múltiplas, (...) conceitos

normativos que colocam em evidência interpretações do sentido dos símbolos que

tentam limitar e conter as suas possibilidades metafóricas, (...) a identidade subjetiva

e uma forma primeira de significar as relações de poder ou um campo primeiro no

seio do qual ou por meio do qual, o poder é articulado (SCOTT, 1991, p.14-16).

As apresentações da definição de gênero, a partir de relações de poder, remetem ao

entendimento desta autora de que se faz necessário “substituir a noção de que o poder social é

unificado, coerente e centralizado por alguma coisa próxima do conceito foucaultiano de

poder, entendido como constelações dispersas de relações desiguais constituídas pelo discurso

nos „campos de forças‟” (SCOTT, 1991, p.14).

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A discussão conjunta sobre poder em Foucault e o processo de construção da(s)

definição(ões) dos conceitos de gênero e sexo é frutífera e nos auxilia para que consigamos

evitar as ciladas acima demonstradas. Foucault já nos alertava que se o poder é permitido é

por ele nos dar certa liberdade, sua aceitabilidade se dá justamente por fazer crer que possui

somente uma parte negativa (interditora). “O poder, como puro limite traçado à liberdade,

pelo menos em nossa sociedade, é a forma geral de sua aceitabilidade" (FOUCAULT, 1977,

p.83). Assim, seríamos livres ao obedecer, ou seja, temos o direito à liberdade se não nos

opormos ao caráter negativo e proibitivo do poder. Porém, o caráter mais pernicioso do poder

é o positivo, ou seja, a produção de posições, sujeitos, direitos, discursos, vidas através de

suas indicações. Não são sem consequências que se produzem regras, leis, penas, castigos. Ao

se produzir as normas, também, se produzem os lugares a serem ocupados pelos sujeitos a

quem elas se destinam. O caráter positivo do poder legitima a violência, por exemplo, ao

construir discursivamente quem é forte e quem é fraco, quem será punido ao desrespeitar a

Lei, quem tem o poder de punir, qual tipo de pena será aplicado e a própria construção

discursiva legitimadora do infrator. No caso da violência de gênero, homem e mulher são

produtos da relação de poder positiva e negativa do discurso sobre seus corpos e direitos. A

mulher, por exemplo, transita pelos lugares produzidos pelos dispositivos de poder, ora como

vítima e fraca; ora como responsável pela violência por não ter respondido às expectativas de

seu marido como mulher; ora como a cidadã que deve buscar seus direitos em uma instituição

que foi criada pelo poder estatal para defendê-la. Esta mesma instituição, porém, não hesita

em recomeçar o ciclo de violência posicionado-as discursivamente como passivas ou

responsáveis pela violência. A mulher e o homem dançam em um jogo de poder onde seus

corpos são ocupados por discursos que constituem assim sua subjetividade e seu lugar na

sociedade.

Desta forma, seja a partir de seu aspecto negativo (proibitivo e regulador) ou positivo

(generativo), o poder é entendido por Foucault como algo que não se dá ou se retira de

alguém nem como algo que está além de um ato de vontade individual baseada na liberdade

dos sujeitos. Assim sendo, por não ser possível destruí-lo ou negá-lo o que se pode fazer é

deslocá-lo através dos fossos e fissuras do discurso hegemônico. Acredito que se por um lado

temos a força das normas que tornam inteligíveis os corpos (e os discursos sobre eles) por

outro temos a possibilidade de sua rearticulação, a partir do questionamento da hegemonia

discursiva, “produzindo possibilidades de 'sujeitos' que não apenas ultrapassa os limites da

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inteligibilidade cultural como efetivamente expandem as fronteiras do que é de fato

culturalmente inteligível” (BUTLER, 2003, p.54). Neste processo construtivo/desconstrutivo

verdades são desmanteladas e outras são iniciadas com o objetivo de produzir novas

categorias que possibilitem identidades de gênero subversivas.

Na caça aos fossos e fissuras do discurso hegemônico e heteronormativo faço eco às

perguntas de Butler (2003):

Podemos referir-nos a um “dado” sexo ou um “dado” gênero, sem primeiro

investigar como são dados o sexo e/ou gênero e por que meios? E o que é afinal o

sexo? Como deve a crítica feminista avaliar os discursos científicos que alegam

estabelecer tais “fatos” para nós? Teria o sexo uma história? Possuiria cada sexo

uma história ou histórias diferentes? Haveria uma história de como se estabeleceu a

dualidade do sexo, uma genealogia capaz de expor as opções binárias como uma

construção variável? Seriam os fatos ostensivamente naturais do sexo produzidos

discursivamente por vários discursos científicos a serviço de outros interesses

políticos e sociais? (BUTLER, 2003, p.25).

Podemos, a partir de pequenas modificações, aplicar esta lista de perguntas aos conceitos de

raça, sexualidade e corpo. As pistas para as respostas a estas questões nos remetem à

discussão sobre a metafísica da presença e a vinculação da materialidade do corpo com a

performatividade do gênero (BUTLER,2003).

Uma forma de iniciar o exercício (sem a pretensão de decifrá-lo totalmente) de resposta às

questões acima é justamente questionar a forma binária como sexo e gênero são apresentados

e como a descontinuidade entre sexo e gênero desconstrói a unidade do sujeito.

Concebida originalmente para questionar a formulação de que a biologia era o destino, a

distinção entre sexo e gênero fundamentou-se na estruturação dicotômica/naturalizante e

binarista (natureza/cultura, homem/mulher, feminino/masculino), onde sexo era originado na

natureza e gênero uma ação da cultura sobre o sexo biológico. O feminismo (em alguns

momentos históricos) propôs

uma forma de dar suporte e elucidar a distinção sexo/gênero adotando a suposição

de haver um feminino natural ou biológico, subsequentemente transformado numa

“mulher” socialmente subordinada, com a consequência que o “sexo” está para a

natureza ou a “matéria-prima” assim como o gênero está para a cultura ou o

“fabricado”. (...) nesta visão, o “sexo” vem antes da lei, no sentido de ser cultural e

politicamente indeterminado, constituindo-se, por assim dizer, na “matéria-prima”

cultural que só começa a gerar significações por meio de e após sua sujeição às

regras de parentesco (BUTLER, 2003, p.65-66).

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Neste afã foram apresentadas definições para gênero sem um questionamento sobre o aspecto

dicotomizante e artificial da naturalização e binarização do sexo. Bruschini et al (1998), por

exemplo, definem gênero como o “princípio que transforma as diferenças biológicas entre os

sexos em desigualdades sociais, estruturando a sociedade sobre a assimetria das relações entre

homens e mulheres”. Em seu trabalho sobre mulher e violência, Heilborn (1996) define

gênero como

ambiciona(ndo)...distinguir entre o isomorfismo sexual da espécie humana e a

caracterização de masculino e feminino que acompanham nas culturas a presença de

dois sexos na natureza. Este raciocínio apóia-se na idéia de que há machos e fêmeas

na espécie humana, mas a qualidade de ser homem e mulher é condição realizada

pela cultura (HEILBORN, 1996, p.96).

Assim, gênero é apresentado, na maioria das vezes, como uma construção social, histórica e

relacional. Em contraposição, sexo seria o natural dos corpos, biológico, binário e imutável.

Desta forma, a diferença sexual entre homens e mulheres apresenta a sua materialidade em

corpos aprisionados a um discurso onde ter nascido com determinado sexo predetermina toda

a vida social, cultural e relacional do ente biológico. Aqui natureza e cultura são postas em

balanças diferentes e cada uma carrega para seu prato outro conceito: para o lado da natureza

o sexo e para o lado da cultura o gênero. Butler coloca entre aspas o conceito de natureza e,

por conseguinte, o conceito de sexo. Ela afirma que ao ver a natureza como “o prato da

balança do sexo” deixamos de “compreender não apenas que a natureza tem uma história (e

não meramente uma história social), mas, também, que o sexo está posicionado de forma

ambígua em relação àquele conceito e à sua história” (BUTLER, 2007, p.157).

Butler (2003) subverte a normalização binária de sexo e gênero afirmando que

mesmo que os sexos pareçam não problematicamente binários em sua morfologia e

constituição (ao que será questionado), não há razão para supor que os gêneros

também devam permanecer em número de dois. (...) quando o status construído do

gênero é teorizado como radicalmente independente do sexo, o próprio gênero se

torna um artifício flutuante, com a consequência de que homem e masculino podem,

com igual facilidade, significar tanto um corpo feminino como um masculino, e

mulher e feminino, tanto um corpo masculino como um feminino (BUTLER, 2003,

p.24).

Levando em consideração o caráter produtor do discurso, Butler (2003) defende que

sexo não apenas funciona como uma norma, mas é parte de uma prática regulatória

que produz os corpos que governa, isto é, toda força regulatória manifesta-se como

Page 35: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

34

uma espécie de poder produtivo, o poder de produzir, demarcar, fazer, circular,

diferenciar- os corpos que ela controla. Assim, o “sexo” é um ideal regulatório cuja

materialização é imposta: esta materialização ocorre (ou deixa de ocorrer) através

de certas práticas altamente reguladas. Em outras palavras o “sexo” é um construto

ideal que é forçosamente materializado através do tempo. Ele não é um simples fato

ou a condição estática de um corpo, mas um processo pelo qual as normas

regulatórias materializam o “sexo” e produzem essa materialização através de uma

reiteração forçada destas normas (Butler, 2007, 153- 154).

O sexo passa então a ser definido como uma construção histórica, social e discursiva, assim

como é gênero. Desta forma, a idéia de um corpo sexuado como um espaço em branco

produto da natureza e escrito pelas linhas do discurso da cultura não é mais adotada ingênua

e acriticamente. Estes questionamentos põem em suspeição as definições apresentadas para

gênero e sexo por algumas feministas.

Esta forma de apresentar sexo (à qual faço coro) compreende sexo como uma categoria

normativa que seria desde sempre gênero. Seguindo Butler percebemos como a aparente

solução encontrada pelo feminismo com a separação de sexo e gênero em dois campos

representativos, por um lado da natureza e por outro da cultura fragilizou ainda mais a noção

de um sujeito unívoco para o feminismo. Se a proposta era não mais ter como destino último

para o corpo da mulher a biologia, por outro lado tomou-se a cultura como o ponto de

ancoragem das apresentações possíveis/permitidas para este corpo. Sem questionar-se a

manutenção do sexo como natural binário (masculino e feminino), como sustentar que gênero

poderia seguir outras formas de apresentação? Apenas mudou-se o endereço da fixidez sobre

a apresentação da mulher nas relações. Assim, agora a mulher se tornava vítima de um gênero

que seguia uma linha de conduta aparentemente unívoca ditada pela cultura para cada um dos

sexos. Esta aparente solução, que se tornou mais uma malha de fixidez, ganha nova roupagem

quando se questiona seu próprio fundamento, o sexo. Assim, uma proposta feminista que não

se guia por estes questionamentos estaria reiterando o lugar da mulher no biológico, a

impossibilidade de mudança sobre o lugar dos corpos na cultura e perdendo de vista as inter-

relações de força que perpassam os corpos femininos na sociedade. Assim, com a manutenção

do binarismo “a 'especificidade' do feminino é mais uma vez totalmente descontextualizada,

analítica e politicamente separada da constituição de classe, raça, etnia e outros eixos de

relações de poder, os quais tanto constituem a 'identidade' como tornam equívoca a noção

singular de identidade” (BUTLER, 2003, p.21).

Page 36: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

35

Na genealogia do gênero apresentada por Butler subverte-se a linha de raciocínio que analisa

sexo e gênero separadamente. A definição de gênero é reconstruída a partir da (des)

construção de sexo. Resumindo esta genealogia de gênero e sexo,

se o sexo é ele próprio uma categoria tomada em seu gênero, não faz sentido definir

gênero como a interpretação cultural do sexo. O gênero não deve ser meramente

concebido como a inscrição cultural de significado num sexo previamente dado

(uma concepção jurídica): tem de designar também o aparato mesmo de produção

mediante o qual os próprios sexos são estabelecidos. Resulta daí que o gênero não

está para a cultura como o sexo para a natureza; ele também é o meio

discursivo/cultural pelo qual “a natureza sexuada” ou “um sexo natural” é

produzido e estabelecido como “pré-discursivo” anterior à cultura, uma superfície

politicamente neutra sobre a qual age a cultura. (...) Na conjuntura atual, já está

claro que colocar a dualidade do sexo num domínio pré-discursivo é uma das

maneiras pelas quais a estabilidade interna e a estrutura binária do sexo são

eficazmente assegurada (BUTLER, 2003, p.25).

Desta forma, se o sexo não é o substrato sobre o qual o gênero ocorre caberia então uma

genealogia do corpo visto ser ele o último reduto de materialidade onde aparentemente

ocorrem o sexo e o gênero? Assim mais um conceito deve ser compreendido a partir de sua

construção discursiva: corpo. Se o sexo se apresenta em um corpo pré-dado pela natureza

devemos também realizar sobre ele o mesmo tipo de questionamento? Qual a história deste

corpo? Como se dá sua construção? Seria o corpo um ente realmente pré-discursivo e anterior

à Lei? A cada nova sabatina sobre conceitos apresentados como fundantes e como

inquestionáveis em sua origem, denuncia-se mais a construção discursiva com todas as

implicações históricas, políticas e sociais que isto acarreta. Assim, realizarei a discussão sobre

o corpo e sua materialidade vinculada à discussão anterior sobre a normatização do sexo.

Desta forma sexo/gênero/corpo se materializam a partir das normas regulatórias e não o

contrário, ou seja, não se parte de um corpo/sexo/gênero dado para o qual são ditadas regras,

mas são, justamente, neste processo reiterado de regulação que se configuram suas

materialidades.

Nesse sentido, o que constitui a fixidez do corpo, seus contornos, seus

movimentos, será plenamente material, mas a materialidade será repensada

como efeito do poder, como o efeito mais produtivo do poder. E não há como

compreender gênero como um construto cultural que é imposto sobre a

superfície da matéria, compreendida seja como “o corpo” seja como seu sexo

dado. Ao invés disso, uma vez que o próprio “sexo” seja compreendido em

sua normatividade, a materialidade do corpo não pode ser pensada

separadamente da materialização daquela norma regulatória. Sexo é, pois,

não simplesmente aquilo que alguém tem ou uma descrição estática daquilo

que alguém é: ele é uma das normas pelas quais o “alguém” simplesmente se

torna viável, é aquilo que qualifica um corpo para a vida no interior do

domínio da inteligibilidade cultural (BUTLER, 2003, p.154-155).

Page 37: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

36

Como consequência desta normalização sobre os corpos a partir de uma matriz excludente,

(apresentada por Butler como heterossexual) 1o processo de identificação com um sexo se dá

através de normas que proíbem ou possibilitam determinadas formas de identificação. Este

processo ocorre a partir da abjeção do que não é possibilitado ou proibido. Em outros termos,

o abjeto é o que existe e precisa ser negado para que o sujeito se circunscreva como tal no

processo de assumir um sexo. Neste jogo de espelhamento é pela negação do que não pode

ser que se certifica sobre o que é permitido. “Neste sentido, pois, o sujeito é constituído

através da força da exclusão e da abjeção, uma força que produz um exterior constitutivo

relativamente ao sujeito, um exterior abjeto que está, afinal, 'dentro' do sujeito, como seu

próprio repúdio fundante” (BUTLER, 2007, p.155-156). Esse modelo

discursivo/epistemológico hegemônico da inteligibilidade do gênero produz/

legitima/materializa o corpo humano como inteligível e também os corpos daqueles a quem se

nega o caráter de humano.

A partir desta discussão nega-se a metafísica do sujeito volitivo e anterior ao discurso e à Lei,

lançando questionamentos à própria gramática que se estrutura a partir do sujeito seguido de

um predicado (e nunca o inverso). Butler sugere que é preciso

uma certa desconfiança relativamente à gramática para conceber o tema sob uma luz

diferente. Pois se o gênero é construído, ele não é necessariamente construído por

um “eu” ou por um “nós” que se coloca “antes” daquela construção em qualquer

sentido espacial ou temporal de “antes” (BUTLER, 2007, p.160).

A partir deste deslocamento, gênero é apresentado como performativamente produzido e

imposto, não no sentido de uma atuação teatral nem no formato de um poder substancializado,

mas na medida de que sua construção se dá a partir da reiteração de um conjunto de normas e

práticas reguladoras da coerência de gênero prescritas pela matriz heterossexual excludente

hegemônica (BUTLER, 2003).

Em outras palavras, a norma do sexo assume o controle na medida em que ela é

citada como tal norma, mas ela também deriva seu poder através das citações que

1 Butler assim explica o termo matriz heterossexual: “Uso o termo matriz heterossexual ao longo de todo o texto

para designar a grade de inteligibilidade cultural por meio do qual os corpos, gêneros e desejos são naturalizados.

Busquei minha referência na noção de Monique Wittig de 'contrato heterossexual' e em menor medida, naquela

de Adrienne Rich de 'heterossexualidade compulsória' para caracterizar o modelo discursivo/epistemológico

hegemônico da inteligibilidade do gênero, o qual presume que, para os corpos serem coerentes e fazerem sentido

(masculino expressa macho, feminino expressa fêmea), é necessário haver um sexo estável, expresso por um

gênero, que é definido oposicional e hierarquicamente por meio da prática compulsória da heterossexualidade”

(BUTLER, 2003, p.216).

Page 38: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

37

ela impõe. (...) O processo dessa sedimentação - ou daquilo que poderíamos chamar

materialização- será uma espécie de citacionalidade, a aquisição do ser através da

citação do poder, uma citação que estabelece uma cumplicidade originária com o

poder na formação do “eu” (BUTLER, 2007, p.167-170).

Posicionando-se sobre as variações de conceituação para estes termos, Azerêdo (2007)

apresenta definições para gênero/sexo e feminino/masculino que vão ao encontro da

discussão apresentada acima:

Gênero/sexo: Gênero é um verbo no gerúndio, produzindo seres sexuados

performaticamente, através de normas constantemente reiteradas. A dicotomia que

separa gênero como sendo meramente cultural apoiado no sexo, meramente

biológico, é um erro, pois apenas substitui uma determinação por outra, perdendo o

elemento performático de produção de sujeitos generificados. Feminino/masculino:

divisão sexual apoiada na reprodução biológica, que se refere às dicotomias

produzidas pela cultura, especialmente através da educação, tais como

passividade/atividade, sensibilidade/agressividade. Refere-se também à fêmea e ao

macho dentro de homens e mulheres, numa tensão permanente, que não pode ser

resolvida, apesar de tentativas permanentes da sociedade de resolvê-las

(AZERÊDO, 2.007, p.118).

Ao posicionar a definição destes construtos conjuntamente como gênero/sexo e

feminino/masculino abandona-se a dicotomia e se dá visibilidade à tensão própria da

produção discursiva. Ousando pensar uma definição para gênero coaduno com a definição de

gênero como verbo. Segundo o Dicionário Aurélio (1999) verbo é “uma classe gramatical que

tipicamente indica ação e que pode, ou constituir sozinha um predicado, ou determinar o

número de elementos que este conterá”. Esta definição de verbo diz de características do

gênero como construção discursiva. Primeiramente, gênero indica ação no gerúndio.

Geralmente, os verbos no gerúndio remetem a um processo e a uma ação acontecendo no

agora. O caráter discursivo da construção do gênero nos remete a esta plasticidade do agora,

do não fixo. Não se pretende fixar gênero em uma definição ou em duas: masculino,

feminino. O verbo também pode sozinho constituir predicados, ou seja, determinar o que o

sujeito da oração fará ou o número de elementos a que este fará referência. Gênero, em suma,

é processo, é um acontecer, não um acontecido, é um estar constituindo-se pelos períodos

históricos. Gênero deve ser compreendido nesta tensão de estar no gerúndio e em movimento.

Assim, gênero não pode ser preso ao aspecto nomeador, definidor, produtor de verdades,

corpos, sujeitos. Teorizar sobre gênero como verbo é considerar seu caráter plástico,

performático. A adoção dos atributos do gênero como performativos e não como expressivos

remete à discussão sobre a própria identidade de gênero e sua fixidez.

Page 39: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

38

Se os atributos e atos do gênero, as várias maneiras como o corpo mostra ou produz

sua significação cultural, são performativos, então não há identidade preexistente

pela qual um ato ou atributo possa ser medido; não haveria atos de gênero

verdadeiros ou falsos, reais ou distorcidos, e a postulação de uma identidade de

gênero verdadeira se revelaria uma ficção reguladora. O fato de a realidade do

gênero ser criada mediante performances sociais contínuas significa que as próprias

noções de sexo essencial e de masculinidade ou feminilidades verdadeiras ou

permanentes também são constituídas, como parte da estratégia que oculta o caráter

performativo do gênero e as possibilidades performativas de proliferação das

configurações de gênero fora das estruturas restritivas da dominação masculinista e

da heterossexualidade compulsória (BUTLER, 2003, p.201).

A proposta é, assim, a subversão (Butler) e a historicização (Scott) destas categorias/conceitos

(sexo/gênero/corpo/raça/natureza/mulheres) tratando-os como categorias contextuais,

contestáveis e contingentes. Visto desta forma, gênero pode ser uma forma de questionar o

biológico como destino único e a partir disto, a violência contra a mulher estaria justamente

em compactuar na fixidez de gênero através de seu caráter determinador de predicados

reiterados discursivamente. A subversão aponta para os possíveis rearranjos discursivos

vislumbrados a partir dos fossos e fissuras do discurso hegemônico e heteronormativo. Assim,

a partir da desconstrução do conceito sexo, Butler propõe uma crise potencialmente produtiva

que abarca consigo outros construtos como gênero/corpo e raça. Nas palavras da autora,

Como construção discursiva sexo é ao mesmo tempo produzido e desestabilizado

no curso dessa reiteração. Como um efeito sedimentado de uma prática reiterativa,

ou ritual, o sexo adquire seu efeito naturalizado e, contudo, é também, em virtude

dessa reiteração, que fossos e fissuras são abertos, fossos e fissuras que podem ser

vistos como as instabilidades constitutivas dessas construções, como aquilo que

escapa ou excede a norma, como aquilo que não pode ser totalmente definido ou

fixado pelo trabalho repetitivo daquela norma. Essa instabilidade é a possibilidade

desconstitutiva no próprio processo de repetição, o poder que desfaz os próprios

efeitos pelos quais o “sexo” é estabilizado, a possibilidade de colocar a

consolidação das normas do “sexo” em uma crise potencialmente produtiva

(BUTLER, 2003, p.163- 164).

Cabe aqui o início do desfiar de um rosário de questionamentos e reflexões sobre a(s)

possível(is) consequência(s) da desconstrução do binarismo sexo/gênero para o discurso

feminista de enfrentamento à violência de gênero. Pode-se pautar que a violência estaria na

apresentação fixa, binária e hierárquica de sexo/gênero e nas conseqüências disso nas relações

produzidas e justificadas por este discurso? Qual seria a melhor forma de definir essa

violência? Valeria à pena situar a violência especificamente nos corpos das mulheres e dos

homens? Pelo menos, devemos pensar que enquanto os corpos são domesticados

discursivamente de determinadas maneiras excludentes e exclusivistas, acredito que localizar

a violência a partir deles amplia e problematiza a discussão. Deixo isto como uma

provocação...

Page 40: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

39

A partir do exposto sobre os questionamentos sobre as modificações discursivas (sobre

corpo/sexo/gênero) durante o percurso histórico do feminismo uma pergunta desponta: como

se posicionar frente a apresentações tão diversas e divergentes sobre estes conceitos para os

fins que o próprio movimento se propõe?

A aposta de Butler é em um feminismo que, ciente da não possibilidade de utilização da

noção de gênero como premissa básica da política feminista, advogue a favor de um

feminismo que busque “contestar as próprias reificações do gênero e da identidade, isto é,

uma aposta feminista que tome a construção variável da identidade como um pré-requisito

metodológico e normativo, senão como um objeto político” (BUTLER, 2003, p.23) e que

tomando como instrumento uma genealogia feminista de categorias tidas como auto-evidentes

(mulheres/corpo/gênero/sujeito/identidade/raça/classe/sexo) cientifiquem-se das

conseqüências coercitivas e reguladoras dessas construções mesmo quando

utilizadas/elaboradas com outros propósitos.

Buscando evitar a cilada de me perder na busca de um objeto de estudo que não se define ou

que recebe uma definição tão ampla a ponto de ser acusado de não representar ninguém, adoto

o privilégio da perspectiva parcial, defendido por Donna Haraway (1995). Esta autora

questiona a objetividade defendida pela Ciência e apresenta seu texto como um “argumento a

favor do conhecimento situado e corporificado e contra várias formas de postulados de

conhecimento não localizáveis e, portanto, irresponsáveis. Irresponsável significa incapaz de

ser chamado a prestar contas” (HARAWAY, 1995, p.22). A meu ver, seria uma

irresponsabilidade, portanto, estudar um fenômeno como a violência contra as mulheres, sem

antes posicionar sobre quais são as mulheres sobre quem estou falando, como entendo este

coletivo, como defino a violência e contra qual tipo de violência pretendo dedicar meu estudo.

Algumas vertentes da teoria feminista questionam as bases do cientificismo refém da cultura

machista que o construiu, sustenta e reproduz de forma nada ingênua. As teóricas feministas

questionam a ciência com sua busca pela objetividade e imparcialidade e suas doutrinas

separatórias: com a separação do pesquisador de seu objeto de estudo, da emoção da razão, do

meio interno do meio externo. “A objetividade feminista trata da localização limitada e do

conhecimento localizado, não da transcendência e da divisão entre sujeito e objeto. Desse

modo podemos nos tornar responsáveis pelo que aprendemos a ver” (HARAWAY, 1995,

Page 41: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

40

p.21).

Aliado ao saber localizado está o posicionar-se do pesquisador como prática chave, base do

conhecimento organizado. Resumidamente, podemos afirmar que a questão da ciência para o

feminismo diz respeito à objetividade como racionalidade posicionada. Por isso, a

necessidade que sinto de apresentar cada conceito escolhido entre os tantos delimitados, para

dizer de onde falo como e de quem falo nesta dissertação. Adoto a parcialidade como

apresentada por Haraway.

Não perseguimos a parcialidade em si mesma, mas pelas possibilidades de conexões

e aberturas inesperadas que o conhecimento situado oferece. O único modo de

encontrar uma visão mais ampla é estando em algum lugar em particular. A questão

da ciência para o feminismo diz respeito à objetividade como racionalidade

posicionada (HARAWAY, 1995, p.33).

Sobre a pretensão de ao se ocupar o lugar de pesquisadora estar habilitada a falar por outras

mulheres não cientistas ou de dar visibilidade às suas experiências cabe apresentar a definição

do papel do intelectual de Foucault em sua conversa com Deleuze. Para Foucault o papel do

intelectual não seria

mais o de se colocar “um pouco na frente ou um pouco de lado” para dizer a muda

verdade de todos; é antes o de lutar contra as formas de poder exatamente onde ele

é, ao mesmo tempo, o objeto e o instrumento: na ordem do saber, da “verdade”, da

“consciência”, do discurso. É por isso que a teoria não expressará, não traduzirá,

não aplicará uma prática. Ela é uma prática. Mas local e regional: (...) não

totalizadora. Luta contra o poder, luta para fazê-lo aparecer e feri-lo onde ele é mais

invisível e mais insidioso (FOUCAULT, 1979, p.71).

1.3 VIOLÊNCIA

Nesta dissertação trabalho com a noção de que o processo de definição/nomeação de um

fenômeno está diretamente ligado aos caminhos que poderão ser trilhados na tentativa de

compreendê-lo, diagnosticá-lo, apresentá-lo a seus pares e, quando necessário, construir

estratégias para enfrentá-lo. A partir disto, apresentarei algumas contribuições sobre este

processo no que se refere ao fenômeno da violência de gênero. Almeida (2007), ciente da

importância e atualidade da discussão sobre a variedade de posicionamentos sobre a

violência de gênero, chama-a de "violência mal-dita”.

Page 42: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

41

Essa violência que insiste em entrar no debate acadêmico depois de ter deixado

inúmeras, diversificadas e profundas marcas em mulheres, em escala global, ainda

não foi nominada apropriadamente. Maldita ela é para todas/os que a

experimentaram e para todas/os que tentaram enfrentá-la e mediá-la. Mal-dita ela é

para todas/os que tentam estudá-la (ALMEIDA, 2007, p.23).

A maldição deste fenômeno faz com que ele receba diferenciadas definições: violência

contra a mulher, violência intrafamiliar, violência doméstica e/ou violência de gênero. Neste

estudo, interessam as consequências dos posicionamentos políticos, teóricos e práticos no

enfrentamento do fenômeno a partir da definição escolhida. Desta forma, sustentamos que a

forma de definir este tipo de violência pode servir para naturalizar, dicotomizar,

essencializar, escamotear, simplificar, obscurecer e/ou dificultar seu enfrentamento.

Iniciarei esta discussão pela conceituação: violência contra a mulher forma comumente

encontrada de referência ao fenômeno, inclusive em materiais produzidos pelos dispositivos

da rede de enfrentamento da violência contra as mulheres nacionais e internacionais:

Declaração de Viena (1993) 2, Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a

Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará) (1994), Declaração sobre a

Eliminação da Violência contra a Mulher (1993), no I e II Plano Nacional de Políticas para as

Mulheres (2004/2008) e na Lei 11340 (2006).

Na Convenção de Belém do Pará (1994), a violência contra a mulher é assim apresentada:

“Para os efeitos desta Convenção deve-se entender por violência contra a mulher qualquer

2 Art. 22 “A Conferência Mundial sobre Direitos Humanos solicita a todos os Governos que tomem todas as

medidas adequadas, em conformidade com suas obrigações internacionais e levando em devida conta seus

respectivos sistemas jurídicos, para fazer frente à intolerância e formas análogas de violência baseadas em

posturas religiosas ou crenças, inclusive práticas de discriminação contra as mulheres e a profanação de locais

religiosos, reconhecendo que todos os indivíduos têm direito à liberdade de pensamento, de consciência, de

expressão e de religião. A Conferência convida também todos os Estados a aplicarem, na prática, as disposições

da Declaração sobre a Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e Discriminação Racial Baseadas em

Religião ou Crenças. (...) Art.38. A Conferência Mundial sobre Direitos Humanos enfatiza particularmente a

importância de se trabalhar no sentido de eliminar todas as formas de violência contra as mulheres na vida

pública e privada, de eliminar todas as formas de assédio sexual, exploração e tráfico de mulheres, de eliminar

preconceitos sexuais na administração da justiça e erradicar quaisquer conflitos que possam surgir entre os

direitos da mulher e as conseqüências nocivas de determinadas práticas tradicionais ou costumeiras, do

preconceito cultural e do extremismo religioso. A Conferência Mundial sobre Direitos Humanos apela à

Assembléia Geral para que adote o projeto de declaração sobre a violência contra a mulher e insta os Estados a

combaterem a violência contra a mulher em conformidade com as disposições da declaração. As violações dos

direitos humanos da mulher em situações de conflito armado são violações de princípios fundamentais dos

instrumentos internacionais de direitos humanos e do direito humanitário. Todas as violações desse tipo,

incluindo particularmente assassinatos, estupros sistemáticos, escravidão sexual e gravidez forçada, exigem uma

resposta particularmente eficaz. (Grifos meus). (DECLARAÇÃO DE VIENA, 1993)

Page 43: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

42

ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou

psicológico à mulher, tanto no âmbito público como no privado”. Nesta definição, a

ocorrência da violência é baseada no entendimento de gênero como o arcabouço cultural que

diferencia a socialização dos sexos. No artigo oitavo desta Convenção utiliza-se gênero como

sinônimo ou substituindo a noção de sexo biológico binário.

Aos Estados-partes convém adotar, de forma progressiva, medidas específicas,

inclusive programas para: (...) modificar os padrões sócio-culturais de conduta de

homens e mulheres, incluindo a construção de programas de educação formais e

não-formais apropriados a todo nível do processo educativo, para contrabalançar

preconceitos e costumes e todo outro tipo de práticas que se baseiem na premissa da

inferioridade ou superioridade de qualquer dos gêneros ou nos papéis estereotipados

para o homem e a mulher ou legitimam ou exarcebam a violência contra a mulher

(CONVENÇÃO INTERAMERICANA PARA PREVENIR, PUNIR E

ERRADICAR AVIOLÊNCIA CONTRA A MULHER, 2004).

Percebe-se na definição e na proposta apresentadas nesta Convenção a noção da violência

contra a mulher como um fenômeno de base sócio-cultural que ocorre através da

socialização, educação e acesso a direitos de forma diferenciada entre homens e mulheres. O

mesmo se percebe na Convenção de Viena, onde se aborda a violência contra as mulheres

que se baseia em crenças religiosas, por exemplo. O alvo da violência nos documentos

resultantes das duas Convenções é a categoria mulher, o sujeito que pratica a violência não é

nomeado, mas, neste tipo de dispositivo legal, a omissão do Estado é identificada. Ao

nomear propostas de ação para os Governos signatários destas Convenções, elas localizam o

enfrentamento à violência como uma obrigação do Estado, levando a discussão para a esfera

pública. Estes são aspectos interessantes para o debate que vão ao encontro da proposta desta

pesquisa que sustenta o enfrentamento a esta violência a partir de um viés político/

público/social.

No Brasil, em julho de 2004, a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres promoveu,

em Brasília, a I Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres. Nesta Conferência foi

elaborado o “Plano Nacional de Políticas para as Mulheres”, criado para orientar as políticas

desenvolvidas pelo Governo Federal e nortear as realizações municipais e estaduais referentes

às políticas públicas para as mulheres. No capítulo quatro/parte II-“Enfrentamento à violência

contra as mulheres” do referido documento são apresentados como objetivos: a redução dos

índices de violência contra as mulheres, a garantia do cumprimento dos instrumentos e

acordos internacionais, a revisão da legislação brasileira de enfrentamento à violência contra

Page 44: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

43

as mulheres, a implantação de uma política Nacional de Enfrentamento à Violência contra a

Mulher, além da garantia de atendimento integral, humanizado e de qualidade às mulheres em

situação de violência. Observam-se alguns aspectos interessantes em relação à definição do

objeto a ser enfrentado. Utiliza-se tanto a expressão violência de gênero quanto violência

contra a mulher, sendo mais frequente a apresentação da última.

Homens e mulheres, em razão da especificidade de gênero, são atingidos pela

violência de forma diferenciada (...). A violência contra a mulher acontece no

mundo inteiro e atinge mulheres de todas as idades, classes sociais, raças, etnias e

orientação sexual. Qualquer que seja o tipo, física, sexual, psicológica, ou

patrimonial, a violência está vinculada ao poder e à desigualdade das relações de

gênero, onde impera o domínio dos homens, e está ligada também à ideologia

dominante que lhe dá sustentação. São muitas as formas de violência contra a

mulher: desigualdades salariais; assédio sexual; uso do corpo como objeto;

agressões sexuais; assédio moral, tráfico nacional e internacional de mulheres e

meninas (SECRETARIA ESPECIAL DE POLÍTICAS PARA AS MULHERES,

2004, p.73).

Como nos outros documentos reconhece-se que a violência contra a mulher é sustentada por

questões culturais e ideológicas. Esta definição é mais abrangente por reconhecer que os

homens também são alvos de violência em decorrência das desigualdades das relações de

gênero, e também por nomeá-los como detentores do poder que os legitima a praticar a

violência contra a mulher, sustentada por esta mesma ideologia. Esta apresentação do

fenômeno é mais próxima do que ocorre na realidade e, de certa forma, retira a mulher do

lugar de vítima ao optar por levar a discussão para as desigualdades nas relações de gênero

que atingem de forma diferenciada aos homens e mulheres. Também considero muito

oportuna a apresentação das desigualdades salariais e o uso do corpo como objeto como

formas de violência contra a mulher, ampliando o debate. Este aspecto vai ao encontro da

compreensão da violência neste estudo, que se encontra muito além das formas elencadas

como: a violência física, sexual e psicológica. Este documento também acrescenta a esta

discussão outras formas de discriminação/violência (raça, etnia, orientação sexual) apostando

em ações que não separem estes eixos de discussão, mas os assumam como interatuantes.

Desta forma a Política Nacional para as Mulheres visa construir a igualdade e

eqüidade de gênero, considerando todas as diversidades – raça e etnia, gerações,

orientação sexual e deficiências. As mulheres são plurais, e as políticas propostas

devem levar em consideração as diferenças existentes entre elas. Para concretizar

estes princípios, o Estado e as esferas de governo federal, estadual e municipal

deverão seguir as seguintes diretrizes: Reconhecer a violência de gênero, raça e etnia

como violência estrutural e histórica que expressa a opressão das mulheres e precisa

ser tratada como questão de segurança, justiça e saúde pública (SECRETARIA

ESPECIAL DE POLÍTICAS PARA AS MULHERES, 2004, p.31).

Page 45: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

44

Desta forma, a violência contra a mulher /de gênero é apresentada como uma consequência

das desigualdades de gênero e todas as políticas e Linhas de Ação do Plano são elaboradas

visando o enfrentamento às desigualdades de gênero, raça e etnia, a promoção da igualdade de

gênero e a busca da equidade de gênero (SECRETARIA ESPECIAL DE POLÍTICAS PARA

AS MULHERES, 2004). A discussão sobre a violência contra a mulher é realizada a partir da

constatação de uma desigualdade de gênero (raça, etnia, orientação sexual) e da meta de

elaboração de ações que promovam a igualdade de gênero. Destacam-se entre as ações

propostas o oferecimento de capacitações e qualificações de: agentes públicos em gênero, raça

e direitos humanos e de profissionais das áreas de segurança pública, saúde, educação e

assistência psicossocial na temática da violência de gênero, através da inserção de uma

disciplina, na matriz curricular das Academias de Polícia, que discuta a desigualdade de

gênero e suas conseqüências para mulheres e homens. Além disto, apresentam-se propostas

para incentivar a incorporação do enfoque de gênero na execução de Políticas e Programas do

Ministério da Saúde e para implantar projetos pilotos de um modelo de atenção à saúde

mental das mulheres na perspectiva de gênero também são incentivadas: a promoção de ações

no processo educacional para a eqüidade de gênero, raça, etnia e orientação sexual e o

combate aos estereótipos de gênero, raça e etnia na cultura e na comunicação.

Pelo exposto acima, percebe-se que a definição do objeto de ação define a elaboração das

ações para enfrentá-lo. Por isso, a importância da delimitação adequada do problema alvo.

Quando se debruça sobre a problemática da violência contra a mulher com o intuito de

elaboração de Políticas Públicas faz diferença se a esta discussão se agrega à perspectiva de

gênero, raça e orientação sexual, por exemplo. Desta forma, a definição do fenômeno se dá

como violência contra a mulher, compreendida a partir das desigualdades de gênero. Gênero

sendo apreendido novamente como categoria transversal, analítica e de base sócio-cultural.

Em agosto de 2.007, foi elaborado o II Plano Nacional de Políticas para Mulheres a partir da

discussão realizada entre 2.700 delegadas representantes de todo o país. Diferente do

documento anterior, este foi apresentado não mais como um plano para mulheres: “É um

Plano de Governo. Este não é um Plano que traz benefícios só para as mulheres. É um Plano

que beneficia toda a sociedade” (SECRETARIA ESPECIAL DE POLÍTICAS PARA AS

MULHERES, 2008, p. 07). Esta apresentação, além da reafirmar a importância da categoria

mulher como sujeito das políticas públicas, amplia a discussão, compromisso e consequências

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45

das ações de enfrentamento deste tipo de violência para toda a sociedade. É um caminhar para

a reafirmação do entendimento desta problemática não como privada e relacional, mas como

histórica, política e social. O subitem IV do II Plano tem o título “Enfrentamento a todas as

formas de violência contra a mulher” e o mote “Uma vida sem violência é um direito das

mulheres. A violência contra as mulheres realimenta a violência geral na sociedade”. Esta

visão do fenômeno leva em consideração as variadas consequências para a sociedade deste

tipo de violência, demonstrando que esta discussão/ações não se baseia na busca de

privilégios para as mulheres, mas na adoção de propostas equânimes para a sociedade. A

compreensão da dinâmica da violência como cíclica e retroalimentadora leva à adoção de

ações e objetivos de caráter preventivo/educativo e articulado com outras pautas. Desta forma,

neste Plano delimitam-se como objetivos específicos, entre outros:

II. Desconstruir estereótipos e representações de gênero, além de mitos e

preconceitos em relação à violência contra a mulher; III. Promover uma mudança

cultural a partir da disseminação de atitudes igualitárias e valores éticos de irrestrito

respeito às diversidades e de valorização da paz; IV. Garantir e proteger os direitos

das mulheres em situação de violência, considerando as questões étnico-raciais,

geracionais, de orientação sexual, de deficiência e de inserção social, econômica e

regional; (...) VI. Assegurar atendimento especializado às mulheres do campo e da

floresta em situação de violência (SECRETARIA ESPECIAL DE POLÍTICAS

PARA AS MULHERES, 2008, p.17)

Como prioridade, o II Plano delimita ações de enfrentamento da violência de gênero pelas

vias institucional, jurídica e pública.

Ampliar e aperfeiçoar a Rede de Atendimento às mulheres em situação de violência;

Garantir a implementação da Lei Maria da Penha e demais normas jurídicas

nacionais e internacionais; Promover ações de prevenção a todas as formas de

violência contra as mulheres nos espaços público e privado; Garantir o

enfrentamento da violência contra a mulher, jovem e meninas vítimas do tráfico e da

exploração sexual e que exercem a atividade da prostituição; Promover os direitos

humanos das mulheres encarceradas (SECRETARIA ESPECIAL DE POLÍTICAS

PARA AS MULHERES, 2008, p.18)

A priorização destes três eixos (institucional, jurídico e público) é a base das Políticas

Públicas de Enfrentamento á Violência contra a Mulher guiadas atualmente pelos documentos

do Governo Brasileiro.

Para além, também se destacam a adoção da nomeação de grupos de mulheres alvos das

políticas e o princípio da igualdade e respeito à diversidade na elaboração das políticas

públicas de enfrentamento à violência. A nomeação das “mulheres do campo e da floresta, das

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46

encarceradas, das vítimas do tráfico e da exploração sexual e das que exercem a prostituição,

das idosas, das jovens, das lésbicas, das negras e das que vivem em comunidades

tradicionais” (SECRETARIA ESPECIAL DE POLÍTICAS PARA AS MULHERES, 2008)

como público alvo no referido documento aponta para a importância e/ou necessidade de

localizar as mulheres na homogeneidade da categoria. Pois, no jogo de abjeção e

invisibilidade social, estas mulheres poderiam estar invisibilizadas pelas “outras” “da cidade

grande”, não “putas”, “livres”, não “encarceradas”, “brancas”, “heterossexuais” e “urbanas”.

Entendo esta redefinição de objetivos e prioridades apresentadas no II Plano como mostra da

apropriação crescente das delegadas e da Secretaria Especial de Políticas para Mulheres das

discussões dos movimentos sociais, como o feminismo, sobre a negação de uma postura

essencializadora da categoria mulheres como guia da agenda de construção de políticas

públicas.

Por fim, a discussão é pautada no direito à diversidade mantendo-se o foco sobre o

enfrentamento às desigualdades de gênero interligadas às de raça, etnia e orientação sexual,

sendo a violência contra a mulher uma de suas expressões. Observa-se, também, uma atenção

acrescida à temática geracional, de renda, ambiental e de segurança alimentar neste

documento, ampliando, oportunamente, o debate sobre as desigualdades de gênero. Assim,

percebem-se as propostas dos dois Planos como abrangentes e ao encontro de ações sobre as

várias formas de manifestação da desigualdade de gênero em nosso país.

Pelo exposto acima, a violência contra a mulher é compreendida como uma expressão das

desigualdades estruturais de nossa sociedade (gênero/raça/etnia/orientação sexual)

interligadas. Considero esta uma abordagem possível e interessante, principalmente, por

agregar à discussão da violência de gênero outras pautas que, muitas vezes, são tomadas como

à parte desta discussão. O desafio de interligá-las, apresentado nestes documentos, é um guia

interessante, tanto para ações públicas como para discussões teóricas sobre o assunto. A

importância desta forma de apresentar o fenômeno se dá pela possibilidade de proposição de

políticas de enfrentamento pautadas por esta complexidade do fenômeno, ou pela mal-dição

desta violência, como diria Suely Almeida (2007). Considero que mesmo que efetivamente

não se atinja êxito na implementação destas ações públicas governamentais, pelo menos, se

inaugurou uma discussão da temática no âmbito governamental localizada e parcial.

Page 48: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

47

Assim, percebe-se que a adoção do conceito violência contra a mulher se adotada sem uma

discussão concomitante, por exemplo, sobre as desigualdades de gênero/raça/etnia/orientação

sexual, guia-se por uma cristalização da categoria mulheres que polariza a discussão entre

vítimas/mulheres e agressores/homens, enviesando o enfrentamento do fenômeno.

Assim, sobre a adoção da definição violência contra a mulher, Almeida aponta como pontos

problemáticos o fato dela “enfatiza(r) o alvo contra o qual a violência é dirigida. É uma

violência que não tem sujeito, só objeto; acentua o lugar da vítima, além de sugerir a

unilateralidade do ato. Não se inscreve, portanto, em um contexto relacional”

(ALMEIDA,2007,p. 23). Azerêdo, por sua vez, a define como uma violência que “inclui

mulheres de qualquer faixa etária na posição de vitimadas, exclui homens em qualquer

circunstância. Além disso, existem certos tipos de agressão, tipificados como crime, que só

podem ser perpetrados por homens e contra mulheres (o estupro, por exemplo)”

(AZERÊDO, 2007, p.120). Para Pougy (2007), com a adoção da definição do fenômeno

como violência contra a mulher

focaliza um episódio com limitadas possibilidades de despatologizar seus

protagonistas, ao reduzir uma relação social conflituosa a querelas entre vítima e

agressor, assim como ao despolitizar o seu enfrentamento. (...) Compreender

relações de poder entre desiguais como característica patológica dos protagonistas é

limitado e simplório e contribui para a manutenção da „guerra dos gêneros‟, isto é,

“uma guerra de identidades sexuais, lutando por seus interesses‟ (POUGY, 2007,

p.73-74).

Considero muito oportuna a colocação de que a escolha desta terminologia leva a uma

despolitização e patologização do fenômeno dando à discussão um viés individual e

patologizante.

Analisando estas colocações sobre a violência contra a mulher, observamos ser esta uma

forma de conceituação que focaliza a categoria mulher como alvo da violência, não se

ocupando em delimitar quem pratica a violência, dando um enfoque vitimista para o

fenômeno. Recebe como ponto favorável para sua utilização o fato de ser “a única a ressaltar

de forma inequívoca a vítima preferencial de determinadas modalidades de violência”

(ALMEIDA, 2007, p.24). Outro fator a ser questionado sobre a adoção desta definição do

fenômeno é que, apesar de se referir à violência contra as mulheres de todas as faixas etárias,

vale a pena problematizar que as políticas de garantia de direitos das mulheres menores de

dezoito anos e de idade igual ou maior que sessenta anos são abrangidas, respectivamente,

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48

pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, Conselhos Tutelares e Varas da Infância e da

Juventude e pela Defensoria dos Idosos, respaldada pelo Estatuto do Idoso. Ressalta-se que

não há nenhuma restrição na Lei Maria da Penha e/ou nas normas de funcionamento dos

Centros de Referência sobre o atendimento a estas clientelas e que, inclusive, as Delegacias

Especializadas em Crimes Contra a Mulher assumiram para si também a clientela das

idosas/os. Porém, na prática, estas faixas etárias são reencaminhadas para outros dispositivos,

no intuito de receberem um atendimento mais especializado. Desta forma, pode-se concluir

que a violência contra as mulheres recebe resposta dos dispositivos de poder governamentais

através de recortes de faixa etária. Assim, reafirma-se a impossibilidade discursiva de se

adotar a categoria mulher como alvo de pesquisas, análises e políticas públicas sem antes

delimitar a qual “grupo de mulheres” se faz referência. Considero que não ocorre um erro

nestes casos, mas uma imprecisão que gera, na prática, situações de revitimização

institucional, burocracia nos encaminhamentos da Rede e incompreensão por parte das

mulheres reencaminhadas.

Outras duas conceituações muito utilizadas são a de violência doméstica e a de violência

familiar, inclusive apresentada como objetos de coibição da Lei 11340, de 07 de agosto de

2006, conhecida como Lei Maria da Penha. A adoção da definição do fenômeno como

violência doméstica/familiar cumpre o papel de dessacralizar o espaço familiar/doméstico e

remete à discussão do mote feminista o privado é público que afirma que “a esfera privada

não é isenta de regulação pelo poder público. Ao contrário, não há uma cisão entre as esferas

pública e privada, o que pode ser valorado positivamente na perspectiva de se assegurar

direitos” (ALMEIDA, 2007, p.25) Contrapondo-se ao jogo de invisibilidade deste fenômeno

(devido a sua localização e a relação afetiva entre seus participantes), o movimento feminista

e os estudos de família denuncia sua ocorrência reiterada apesar de todo movimento de

publicização do fenômeno.

A violência doméstica chega à cena pública basicamente por dois caminhos: pela via

do feminismo e pela via dos estudos de família. Uns e outros se utilizam de

evidências empíricas para mostrar que a casa é um espaço de conflitos, de tensões e

de negociações permanentemente repostas, não sendo apenas um lugar de

construção das identidades, espaço de referência e refúgio. Se a casa atende às

necessidades básicas dos indivíduos, também é campo de lutas declaradas. Os novos

movimentos sociais - em especial, o feminismo - conseguiram incorporar a violência

doméstica como tema ou sub-tema da violência, e no caso em questão, da violência

de gênero - afirmação esta que pode ser parcialmente contestada. O que me chama a

atenção é o fato de se ter tornado um debate público, incorporada sua dimensão

Page 50: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

49

pública, e ampliada a compreensão do que compõe o “lugar da violência” nas redes

sociais (SMIGAY, 2000, p.47-48).

Assim, mais uma vez, ressalta-se a importância dos movimentos de publicização da violência

de gênero contra as mulheres que ocorre no ambiente doméstico. Este parece ser um ponto

de acordo entre várias abordagens teóricas e políticas públicas de enfrentamento a este tipo

de violência. Como exemplos, podem-se citar as várias campanhas de órgãos públicos e de

ONGs incitando a mulher (e a sociedade) a procurar ajuda e denunciar a ocorrência desta

violência.

Almeida reafirma que a definição de violência doméstica pauta-se justamente por “uma

noção espacializada que designa o que é próprio à esfera privada - dimensão da vida social

que vem sendo historicamente contraposta ao público, ao político. Enfatiza uma esfera da

vida, independentemente do sujeito, do objeto ou vetor da ação” (ALMEIDA, 2007, p. 23).

Mais uma vez, a autora aponta que esta conceituação não se preocupa em definir as partes

envolvidas na situação, como no caso da violência contra a mulher.

Apresentando outros aspectos e participantes deste tipo de violência, Azerêdo (2007) amplia

o conceito problematizando que na violência doméstica,

os envolvidos vivem, parcial ou integralmente, no mesmo domicílio, cujo espaço pode ser

real ou simbólico. Não ocorre apenas, e necessariamente, entre parentes, alcançando

também agregados e empregadas domésticas abusadas e assediadas sexualmente por seus

patrões, por exemplo. Esta modalidade inclui ainda a violência perpetrada por mulheres

que, embora ínfima quando praticadas contra homens, é significativa quando os vitimados

(as) são crianças e adolescentes (AZERÊDO, 2007, p.120).

A definição de Saffioti para a violência doméstica coaduna com a de Azerêdo. A autora vai

além, chamando a atenção para o fato de que

estabelecido o domínio de um território, o chefe, via de regra um homem, passa a

reinar quase incondicionalmente sobre seus demais ocupantes. O processo de

territorialização do domínio não é puramente geográfico, mas também simbólico

(...). Assim, um elemento humano pertencente àquele território pode sofrer

violência, ainda que não se encontre nele instalado. Uma mulher que, para fugir de

maus-tratos, se muda da casa de seu marido pode ser perseguida por ele até a

consumação do femicídio (SAFFIOTI, 2004, p.71-72).

Chama a atenção, nas duas últimas definições, a afirmação de que o espaço da ocorrência

desta violência não se circunscreve ao geográfico, mas também ao aspecto simbólico,

demonstrando que a delimitação no âmbito doméstico é no mínimo, incompleta e/ou

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50

insuficiente. Esta discussão é importante para que se possam abarcar no debate sobre o

enfrentamento a este fenômeno, cenas de violência que ocorrem além dos muros do lar e das

ligações familiares, seguindo a mesma dinâmica da violência ocorrida no âmbito doméstico e

no seio familiar. Como exemplos têm-se os casos de femicídio contra namoradas, ex-esposas

após o divórcio, onde apesar do fim do vínculo afetivo ou da não coabitação a violência

ocorre, nos mesmos moldes da violência doméstica.

A conceituação de violência familiar/intrafamiliar é também muito utilizada e de interesse

para a área da saúde, pois, nestes casos, todos os membros da família sob esta situação de

violência constituem sua clientela de forma direta e rotineira. Também nas definições

apresentadas abaixo se reafirma o aspecto de ocorrência deste tipo de violência para além do

geográfico /familiar.

Violência intrafamiliar aproxima-se bastante da categoria anterior, ressaltando,

entretanto, mais do que o espaço, a produção e a reprodução endógena da violência.

É uma modalidade de violência que se processa por dentro da família. O Ministério

da Saúde assim define a violência intrafamiliar (...) toda ação ou omissão que

prejudique o bem-estar, a integridade física, psicológica ou a liberdade e o direito ao

pleno desenvolvimento de outro membro da família, incluindo pessoas que passam

a assumir função parental, ainda que sem laços de consangüinidade, e em relação

de poder à outra (...) não se refere apenas ao espaço físico onde a violência ocorre,

mas também às relações em que se constrói e efetua. Distingue esta violência da

doméstica porque esta inclui outros membros do grupo, sem função parental, que

convivam no espaço doméstico (ALMEIDA, 2007, p.24, grifo meu).

A definição de Azerêdo (2007) não apresenta muitas diferenças, mas chama a atenção para

um tipo específico de violência familiar o incesto.

Violência familiar apresenta grande sobreposição com a violência doméstica e

também não se restringe ao espaço do lar. Os envolvidos, no entanto, são

exclusivamente membros da mesma família-nuclear ou extensa. Categoria

importante ao estudo do abuso incestuoso, por exemplo, pois, nas situações em que

o agressor é um parente, o trauma costuma ser bastante diferenciado (AZERÊDO,

2007, p.120, grifo meu).

A partir das definições apresentadas acima se percebe que cada teórica, partindo de um

princípio, acrescenta um tópico à discussão, demonstrando como há uma miríade de

tentativas de delimitação deste fenômeno. Aliado a isto, o que ocorre, algumas vezes, é um

uso indiscriminado e impreciso dos conceitos como sinônimos. A violência doméstica, por

exemplo, é muitas vezes entendida ou apresentada como violência familiar ou intrafamiliar.

Para além, também ocorre a substituição da expressão violência contra a mulher por uma

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51

destas outras duas. Estas substituições devem ser problematizadas, principalmente, na

elaboração de documentos de políticas públicas, na eleição de objetos para pesquisas, escrita

de artigos e elaboração de ações de enfrentamento a estes fenômenos, pois cada um tem suas

especificidades que não devem ser escamoteadas sob o risco de se produzir materiais que

devido à amplitude correm o risco de não atingir seus objetivos. Concordo com as colocações

de Araújo (2005) e Smigay (2000) sobre o assunto. Smigay (2000) alerta para “um

alargamento do campo que não facilita em nada a comunicação" (SMIGAY, 2000, p.48) e

Araújo (2005) aponta que ao se substituir, por exemplo, violência doméstica por violência

familiar,

homens e mulheres ocupam, indistintamente, a posição de suposta igualdade e

desconsidera-se toda uma tradição sócio-histórica de subjugação da mulher, na qual

a violência é utilizada como um instrumento de controle eficaz. Assim, ao utilizar

expressões aparentemente neutras, corre-se o riso de a vitimização da mulher ser

considerada circunstancial e não uma política efetivamente instituída (ARAÚJO,

2005, p. 63).

Na delimitação do objeto da Lei Maria da Penha, por exemplo, utiliza-se das definições

apresentadas acima de forma muito peculiar. Esta Lei tem como objeto jurídico a coibição da

violência doméstica e familiar contra a mulher, definindo estes fenômenos sociais como

crimes. No quinto capítulo desta Lei é apresentada a definição do crime que ela objetiva

coibir e, no capítulo sétimo, a tipificação das formas de ocorrência destas violências. Estes

dois artigos são de grande importância para o processo de enfrentamento à violência por

apresentarem uma delimitação o mais clara possível para este fenômeno, envolto em tantas

(in) definições.

Art. 5º Para os efeitos desta Lei configura violência doméstica e familiar contra a

mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão,

sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial: I - no âmbito

da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de

pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas; II -

no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos

que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou

por vontade expressa; III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor

conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.

Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de

orientação sexual.

(...) Art. 7º São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras: I

- a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou

saúde corporal; II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que

lhe cause dano emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e

perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações,

comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento,

Page 53: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

52

humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz,

insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou

qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à

autodeterminação; III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a

constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada,

mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar

ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer

método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite

ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos; IV - a violência

patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração,

destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos

pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a

satisfazer suas necessidades; V - a violência moral, entendida como qualquer

conduta que configure calúnia, difamação ou injúria (BRASIL. Lei Nº 11340, de 07

de agosto de 2006).

Estes dois artigos são importantes por serem guias na delimitação do público alvo/crime a

quem a Lei se destina. A importância do artigo sétimo se dá por apresentar as várias formas

de ocorrência do fenômeno, justificando o registro de queixas em unidades policiais contra a

violência psicológica, moral ou patrimonial, indiferente da concomitância de ocorrência entre

estas e com a violência física. Esta é considerada uma das inovações desta Lei, pela

possibilidade de legitimação das queixas sobre estas formas de violências anteriormente

subvalorizadas pela Lei e pelas autoridades policiais e diluídas em outras legislações,

dificultando sua coibição. Outro ganho que merece destaque é a inclusão da orientação

sexual nesta pauta, determinando que a coibição e ocorrência deste tipo de violência

independem da orientação sexual da mulher.

Porém, esta escolha abre brechas na prática da aplicação da Lei, no que se refere ao

entendimento sobre o público alvo e a caracterização do ambiente de ocorrência da violência

e dos participantes das cenas pelos dispositivos de enfrentamento elencados na Lei Maria da

Penha (autoridades policiais, do poder judiciário e da área social, de saúde, educação,

trabalho e habitação). Na prática, a leitura do que inclui/seja o doméstico, o familiar e as

mulheres é bem particular. Comumente violência doméstica é aquela que ocorre dentro no lar

entre marido e mulher, sem alcançar os outros agregados ou familiares, como tios, primos e

irmãos, por exemplo. No caso das adolescentes, entende-se este público-alvo como da

competência dos Conselhos Tutelares, mesmo em casos de violência de ex-namorados, por

exemplo, gerando dupla caracterização do crime, o que só torna mais morosa a apuração do

ocorrido. Outro exemplo, problematizado na definição de Azerêdo (2007), é o das

empregadas domésticas. Nestes casos, poderíamos ter como um dos avanços desta Lei, a

Page 54: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

53

possibilidade de amparo das empregadas domésticas violentadas no ambiente doméstico por

seus/suas empregadores/as, mas, na prática, a caracterização desta violência como doméstica

é desqualificada justamente por causa do entendimento do que seja doméstico e familiar

(dentro de casa e entre pessoas da mesma família, prioritariamente marido e mulher). Nestes

casos, algumas vezes os próprios dispositivos encaminham ex-namoradas, ex-companheiras,

adolescentes ou empregadas violentadas para Delegacias comuns. No caso da mulher como a

violentadora no ambiente doméstico, principalmente, em relação aos filhos (mas também em

relação aos próprios companheiros), vale apresentar um ponto de problematização de

Welzer-Lang apresentado por Heleieth Saffioti.

a violência doméstica é masculina, sendo exercida pela mulher por delegação do chefe do

grupo familiar. Como ela é o primeiro modo de regulação das relações sociais entre os

sexos, é desde criança que se experimenta a dominação-exploração do patriarca, seja

diretamente, seja usando a mulher adulta (...). Nos termos de Welzer-Lang “a violência

doméstica tem um gênero: o masculino, qualquer que seja o sexo físico do/da dominante”

Desta sorte, a mulher é violenta no exercício da função patriarcal ou viriarcal (SAFFIOTI,

2004, p.73-74).

A partir desta colocação pode-se problematizar o poder positivo (produtivo) do discurso

patriarcal que (re)posiciona a categoria mulheres no lugar de subjugadas mesmo quando

estas têm comportamentos violentos e/ou cometem crimes (e são julgadas) abrindo a

discussão sobre a participação das mulheres na disputa de poder no ambiente doméstico. Esta

é uma forma de visualizar esta violência sustentada na existência inquestionável de uma Lei

do Patriarcado, onde a mulher ocupa, nas relações de gênero, a posição de dominada. O

apontamento de Saffioti fica como provocação para se observar que este tipo de violência

pode ser compreendido a partir de várias abordagens que, se divergentes sobre nomenclatura,

coincidem, na apresentação das mulheres como as vitimizadas preferenciais.

Ainda em relação à Lei Maria da Penha, vale ressaltar que nela também se baseia a

ocorrência da violência nas desigualdades de gênero, como nos documentos discutidos

anteriormente. Assim, reafirma-se o consenso do discurso do dispositivo de enfrentamento a

esta violência a partir da judicialização e publicização e da proposição de ações. A

delimitação pelas expressões violência contra a mulher e violência doméstica desta forma se

consolidou como objeto de pauta política e permitiu a ampliação, publicização e discussão de

seu enfrentamento.

Page 55: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

54

Outra nomeação bastante recorrente é violência de gênero como uma forma de apontar

diretamente o foco da violência para a estruturação da sociedade a partir das desigualdades

de gênero.

Almeida (2007), por exemplo, considera ser esta a melhor definição para o fenômeno, apesar

de não negar que

seu uso deixa intocados os fundamentos da dominação patriarcal, contribuindo para

o desaparecimento da análise das relações de poder entre os sexos em proveito da

neutralidade discussão sobre as relações de poder entre os sexos em proveito de uma

neutralidade quanto aos mecanismos de opressão (Louis, 2000) Pode-se também

argumentar que, em razão da sua suposta neutralidade, é mais facilmente assimilável

no meio acadêmico. (...) A utilização da categoria violência de gênero, também

marcada pela incompletude, apresenta o risco adicional de ter um caráter tão

abrangente que, sendo aplicável a uma multiplicidade de fenômenos e de

discriminações, deixe escapar a as particularidades das relações de exploração e

dominação que se exercem nas relações íntimas. O seu risco é de transbordamento,

não de limitação. Não obstante, permite entender a violência no quadro das

desigualdades de gênero (ALMEIDA, 2007, p.25-27)

Assim, a autora apresenta sua aposta na delimitação da causa ou na veia de análise do

fenômeno da violência de gênero nas desigualdades de gênero que seriam fundadas e

fecundadas a partir da matriz hegemônica de gênero definida como

concepções dominantes de feminilidade e masculinidade, que vão se configurando a

partir de disputas simbólicas e materiais, processadas, dentre outros espaços, nas

instituições cuja funcionalidade no processo de reprodução social é inconteste

marcadamente, a família, a escola, a igreja, os meios de comunicação e

materializadas, ainda, nas relações de trabalho, no quadro político-partidário, nas

relações sindicais e na divisão sexual do trabalho operada nas diversas esferas da

visa social, inclusive nas distintas organizações da sociedade civil. É nesses espaços

e práticas que vão se produzindo, reatualizando e naturalizando hierarquias,

mecanismos de subordinação, o acesso desigual às fontes de poder e aos bens

materiais e simbólicos. (ALMEIDA, 2007, p.27-28).

Observa-se que, para Almeida, o desenho do gênero está em sua construção social e a

violência de gênero estaria diretamente vinculada à desigualdade fundante deste processo

construtivo e constitutivo que se dá através do trabalho constante das instituições sociais,

como a família, para sua reiteração e perpetuação. Percebe-se, portanto, que a violência de

gênero seria um dos resultados/consequências de ações pautadas na matriz hegemônica de

gênero.

Outra forma de abordagem do processo de definição/nomeação do fenômeno da violência de

gênero está diretamente ligada aos caminhos trilhados por algumas feministas na tentativa de

Page 56: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

55

compreender sexo/gênero como conceitos não estáveis e não pré-discursivos como

explicitado no capítulo anterior. Quais as consequências da desconstrução destes conceitos

para a construção do conceito de violência de gênero como compreendido neste trabalho?

Partindo da proposta de Butler (2003) de subversão da separação sexo/gênero sugerimos que

se subverta a construção do conceito violência de gênero definindo-o por seu adjetivo (de

gênero). Por este caminho, a própria construção discursiva dos conceitos de sexo/gênero já

seria indicativo da violência. Em outras palavras, a violência de gênero encontra sua veia de

interpretação no questionamento da matriz heteronormativa que delimita os sexos como dois e

constitui a inteligibilidade do humano passando necessariamente por uma destas duas

categorias (feminino e masculino) limitando a possibilidade de escolha ou de aceitação de

novos arranjos e o gênero como uma mera interpretação cultural destes sexos, sem que se

discuta o próprio processo discursivo pelo qual estes conceitos são reiterados pelas práticas

reguladoras. Assim, a aposta a partir desta visão é que a violência se dá, justamente, na e pela

fixidez dos conceitos sexo/gênero construídos e reiterados pela matriz de inteligibilidade

heteronormativa que os funda como estanques. A contribuição de Butler para a discussão

sobre os conceitos está em nos alertar para o caráter produtor do discurso de “corpos que

pesam” e “corpos que não pesam” discursivamente (BUTLER, 2007). Assim, a forma de

apresentação do fenômeno violência de gênero se deve à própria construção e reiteração da

categoria gênero, visto que é a partir da necessidade de clivagem da matriz heteronormativa

de separar, qualificar, predicar e hierarquizar os corpos que se justifica a violência de gênero.

Desta forma, a violência contra os corpos das mulheres se dá pela delimitação de fronteiras

discursivas (e práticas) que não podem ser atravessadas ou questionadas sob pena de

punição/violência/morte. Esta produção discursiva sobre os corpos é a base que justifica todas

as formas objetivas de violência que se tenta delimitar e coibir através das Legislações e

Políticas Públicas. A dificuldade em subverter esta ordem torna compreensíveis os insucessos

de tantas propostas de enfrentamento à violência de gênero. É como atacar apenas a primeira

fileira de soldados inimigos, sem que se busque vencer o quartel general. As discussões que

se ocupam apenas da violência contra a mulher, da violência ocorrida no ambiente doméstico

e/ou de ocorrências violentas entre familiares invisibiliza a matriz heteronormativa que

sustenta e produz justificativas para a permanência da violência de gênero.

Page 57: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

56

A subversão produzida pela escrita de Butler deve nos guiar no sentido de instituir

discursivamente um novo domínio para a discussão de temas como a violência de gênero. Ao

colocar entre aspas os conceitos mais caros para o feminismo, Butler redefine esta luta, seus

soldados e seus inimigos. Butler (2003) aposta na subversão de conceitos

como um esforço de refletir a possibilidade de subverter e deslocar as noções

naturalizadas e reificadas do gênero que dão suporte à hegemonia masculina e ao

poder heterosssexista, para criar problemas de gênero não por estratégias que

representem um além utópico, mas da mobilização, da confusão subversiva e da

proliferação precisamente daquelas categorias constitutivas que buscam manter o

gênero em seu lugar, a posar como ilusões fundadoras da identidade

(BUTLER,2003, p. 60).

A fixidez das identidades de gênero e dos papéis sociais de gênero que se mantêm a custa de

muita violência física, psicológica, moral, sexual e patrimonial pode ser comparada a um

Muro constantemente reforçado para que não sejam visibilizadas suas rachaduras e ou

deslizes. A compreensão de sexo/gênero como resultado da reiteração performativa permite,

por outro lado, a possibilidade de que os fossos e fissuras do Muro escamoteados durante o

processo constante de reiteração e justificação discursiva das práticas reguladoras da

coerência do gênero sejam visibilizados.

Assim, ao escolher definir o fenômeno como violência de gênero, em contraposição à

utilização da definição de violência contra a mulher ou violência doméstica, busca negar o

posicionamento da mulher no lugar de vítima que a adoção destas outras definições reitera e

reatualiza e a invisibilidade da matriz heteronormativa nesta discussão que institui e sustenta a

contraposição das categorias homem/mulher e todas as outras categorias dicotômicas, binárias

e naturalizantes que sustentam esta inteligibilidade como negro/branco, rico/pobre,

heterossexual/homossexual. Não negamos a dificuldade de levar este tipo de discurso para o

campo da prática institucional/pública/política, mas também não o consideramos utópico, pois

assim estaríamos reiterando justamente o que procuramos desconstruir.

Neste propósito, interessa-nos o estudo realizado por Mariza Corrêa (1983) sobre “processos

judiciais resultantes de homicídios entre casais, legal ou consensualmente estabelecidos, que

ocorreram em Campinas nas décadas de 50 e 60” (CORRÊA, 1983, p.11) e a dissertação de

Camila de Souza Menezes que analisa o processo de constituição do atendimento na

Delegacia Especializada de Crimes Contra a Mulher de Belo Horizonte, defendida em 2008.

Page 58: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

57

Estes dois estudos separados por vinte e cinco anos, com linhas teóricas diferentes, são

consensuais em um aspecto: na apresentação da forma como os “crimes de gênero” são

“atendidos”, “construídos”, “recontados” e “deslegitimados” pelo aparato do judiciário (no

primeiro caso) e pelo aparato policial (no segundo caso) segundo as normas da matriz

heteronormativa. Interessa-nos esta constatação por demonstrar como o processo de

enfrentamento institucional e público da violência de gênero é perpassado pelo discurso que

sustenta justamente o fenômeno que busca coibir, o que pode ser observado também nas falas

das participantes do Grupo.

Corrêa (1983) demonstra como os processos dos chamados “crimes de paixão” são

transformados em fábulas pelos “manipuladores técnicos”: advogados de defesa e acusação,

delegados e juízes. Menezes (2008) busca a partir do “trabalho real” em contraposição ao

“trabalho prescrito” dos agentes da Delegacia, observar como a interpretação realizada por

eles da trama relatada pelas mulheres é o que guia o entendimento e os encaminhamentos da

queixa-crime apresentada. Assim, apesar de um processo de homicídio obedecer a etapas

formalmente prescritas e do trabalho dos policiais civis também seguir um protocolo legal,

estes estudos buscam demonstrar que “a interpretação que é feita (dos atos/autos) está sempre

sujeita às possibilidades discursivas disponíveis, segundo critérios de maior ou menor

visibilidade ocasionados por relações de poder” (MENEZES, 2008, p.32). E também que todo

o caminho percorrido por um processo (da instauração do inquérito até seu julgamento pelo

júri) é marcado por uma liberdade/manipulação dos “manipuladores técnicos” através de uma

série de estratégias empregadas em contraposição às normas escritas técnicas. Como

apresentado por Corrêa (1983)

Os atores jurídicos têm plena consciência da manipulação que realizam todo o

tempo, como veremos. Um promotor, esgotada sua argumentação jurídica, onde

tentava mostrar que o processo segue apenas as linhas predeterminadas, diz afinal:

“claro, por último existem sempre três versões: a sua, a minha e a verdadeira”

(CORRÊA, 1983, p.41).

Não que a busca da verdade seja o objetivo único dos processos ou dos inquéritos policiais,

mas, cientes desta manipulação cabe perguntar quais são as bases que sustentam este

“processo paralelo” e quais os impactos disto para o enfrentamento à violência de gênero.

Corrêa (1983) sustenta que “os atos são transformados em autos, quer dizer, remontados a

partir de um esquema de „crenças‟, „valores‟, „normas‟, ou „usos‟ do grupo que encaminha o

Page 59: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

58

caso para julgamento e que finalmente decide sobre ele” (CORRÊA, 1983, p.79). Na

apresentação detalhada por ela de vários processos de homicídio e tentativas de homicídio

percebe-se este esquema agindo segundo o sexo do autor do crime, os motivos para o crime e

os argumentos utilizados na defesa e na acusação dos envolvidos. Em seu estudo ela apresenta

como as penas aplicadas são variáveis segundo o sexo do autor do crime e que e os motivos

utilizados para justificar os crimes também são diferenciados.

As penas recebidas pelas mulheres são mais leves e a elas é também atribuído um

número maior de absolvições (...). Se olharmos a argumentação utilizada em sua

defesa veremos que há uma clara preferência pela “legítima defesa” como

justificativa de seus atos. Essa escolha de um argumento que expressa reação a uma

agressão anterior traduz a estratégia básica de defesa dessas acusadas, a sua

apresentação como vítimas, não apenas no momento do crime, mas ao longo de suas

vidas em comum com os homens que foram suas vítimas afinal (CORRÊA, 1983,

p.243).

Enquanto para os homens a “legítima defesa da honra” ou o crime “sob violenta emoção”

eram as justificativas para atenuar as penas ou absolvê-los, entre os motivos de justificativa

para os atos criminosos eram apresentados a infidelidade da esposa (comprovada ou suspeita),

o abandono do casamento por parte da esposa, muitas vezes após uma agressão mútua entre o

casal. Inclusive, ocorre uma escala de penalização entre os crimes e os motivos de sua

ocorrência. Desta forma, os argumentos eram utilizados de forma diferenciada, sendo que

para os casos onde a relação existia há menos tempo ou não havia união civil comprovada

entendia-se que o marido tinha menos obrigações para com a relação, menos motivos de

cobrança das ações de sua companheira e, portanto, de agredi-la. Nestes casos os maridos

recebiam penas mais altas por se entender que eles tinham mais direitos e, também mais

deveres sobre suas companheiras. Nos casos onde o marido não exercia a função de provedor

e onde se apresentava a mulher como „honesta‟, „trabalhadora‟ ou „sustentada pelos

familiares‟ agregava-se culpa/pena ao caso por não ter o marido cumprido com suas

obrigações, sendo o inverso também observado, pois nos casos, onde os companheiros,

independente do tipo de união, conseguiam apresentar provas contra a conduta das mulheres

as penas eram diminuídas. Percebe-se que, realmente, existia, um esquema muito bem

articulado guiando toda argumentação sobre o processo e o destino penal do acusado/acusada.

Este esquema é normatizado no Código Civil “que enumera as razões pelas quais se autoriza

uma ação de desquite no seu artigo 317: adultério; tentativa de morte; sevícia ou injúria grave;

abandono do lar conjugal durante dois anos consecutivos” (CORRÊA, 1983, p.90) O que se

observava então era o aceite de

Page 60: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

59

um modelo de casamento como ponto de referência para a discussão do

relacionamento homem-mulher, (onde) os julgadores aceitam também a identidade

social de cada um deles, suposta nesse modelo: o homem como figura ativa e a

mulher como sua subordinada, como figura passiva. A relação do homem com o

trabalho como expressa na lei, é significativa: ela pode dispor de seus frutos como

“bens reservados” enquanto ao marido cabe utilizá-los para cumprir com uma

obrigação assumida ao casar-se, a manutenção da família. Como veremos na análise

dos casos masculinos e femininos, a quebra da lei será aceita como justificativa e os

acusados serão absolvidos apenas quando se adequarem perfeitamente a essas

identidades básicas, seus companheiros tendo sido apresentados como desviantes

delas (CORRÊA, 1983, p.90,91).

Assim podemos dizer pelas análises apresentadas que as bases utilizadas para guiar a

argumentação manipulativa dos defensores/acusadores estavam calcadas nas normas da

matriz heteronormativa onde os comportamentos/posicionamentos delituosos eram punidos,

mas sob o peso do crime de se desviar da matriz. Estes processos e julgamentos paralelos

trazem consequências para o enfrentamento à violência de gênero justamente por reiterar as

bases que sustentam e justificam os “crimes de gênero” 3.

No caso do estudo realizado por Corrêa (1983) temos a oportunidade de observar a

manipulação de casos que foram levados a júri. O estudo realizado por Menezes (2008) tem

seu mérito por permitir que se observe nos dias atuais todo este processo paralelo realizado

antes mesmo da instauração do inquérito policial. Ela apresenta como as queixas-crimes são

abortadas antes mesmo de serem transformadas em inquéritos policiais. Este abortamento

realizado diariamente nas Delegacias Especializadas de Crimes contra as Mulheres e

denunciado pelas mulheres é tema constante tanto do debate teórico quanto das entrevistas de

acolhimento realizadas nos serviços da Rede de Enfrentamento. As conseqüências para o

enfrentamento à violência de gênero são devastadoras justamente por barrar todo o processo

investigativo e punitivo da violência. O que é importante no trabalho de Menezes (2008) é a

análise de como isto ocorre durante todo o atendimento realizado na Delegacia. Para isto, a

autora acompanhou casais atendidos na Delegacia observando como era realizado o trabalho

dos agentes policias desde a recepção até a escuta pelo escrivão. Ela constatou várias

manipulações, liberdades e estratégias interferindo no trabalho prescrito dos agentes. Em um

dos casos analisados, por exemplo, ela apresenta como mesmo

3Para estudo recente sobre os “crimes de gênero” consultar “Assassinatos de Mulheres: um estudo sobre a

alegação, ainda aceita, da legítima defesa da honra nos julgamentos em Minas Geris do ano de 2000 a 2008”,

RAMOS, 2010.

Page 61: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

60

permanece(ndo) os estereótipos de gênero, é nítida a diferença no atendimento pelo

fato de Alice ser uma pessoa branca, de classe média e tendo vindo com dois

advogados, que sabiam instruí-la a respeito de seus direitos e da Lei Maria da Penha.

Houve diferença no tratamento: tanto a delegada quanto as escrivãs ouviram mais a

vítima. (...) Ao final dos procedimentos, pediu-se que Alice lesse e assinasse cada

documento, explicando-se parte por parte e mostrando como seria o

encaminhamento do caso a partir de sua saída da delegacia. Tudo isso mostra que o

preconceito de gênero, que nega direitos às mulheres, está intimamente relacionado

ao preconceito de classe e raça (MENEZES, 2008, p.132)

Este caso é apresentado como exemplo por ter sido realizado um atendimento mais próximo

do trabalho prescrito para o atendimento na Delegacia. Mas mesmo neste atendimento fica

perceptível como há um esquema de crenças, valores, normas e/ou usos que guia a

interpretação dos casos pelos agentes policiais. Entre estas crenças uma merece destaque: a de

que as mulheres retiram a queixa no futuro norteando o atendimento de forma que se

desestimule a representação do crime. Isto também ocorreu no caso de Alice, apesar de todo

esforço em bem atendê-la.

Nesse caso, a decisão de que Alice não representaria criminalmente contra Augusto

partiu da própria delegada, que instruiu a agente e escrivã como fazer o

procedimento, apenas explicando-o ao advogado e posteriormente a Alice. Esta

tentou em vão, argumentar que havia sido vítima de injúria e humilhação, mas, ao

que a delegada lhe aconselhou não se preocupar com isso, a mensagem de

banalização do seu sofrimento se tornou clara para Alice, que responde: “vocês

devem ver isso aqui todo dia, né?”. Além disso, há uma naturalização da violência

na fala da delegada ao entender a ameaça como sendo “natural da separação” e uma

generalização da violência ao associar a agressividade do marido, que

“provavelmente” seja uma pessoa pacata, a um momento de “exaltação”. Através

dessa naturalização e generalização, ela não percebe a especificidade de gênero que

a própria Alice assinala (MENEZES, 2008, p.132).

Como apresentado por Corrêa (1983) não há uma iniciativa por parte dos “manipuladores

técnicos” de negar suas ações sobre os vários aspectos dos processos/momentos de um

atendimento. Na entrevista com a delegada, realizada após o atendimento, ela mostra como

sua manipulação do processo fica apagada através da produção de um “interesse da vítima”

(MENEZES, 2008, p.132).

Para finalizar a análise deste caso e demonstrar como a interpretação e julgamento dos casos

ocorrem neste primeiro atendimento transcrevemos as falas das escrivãs comentando sobre o

caso após a saída da mulher.

Escrivã: encheção de lingüiça. O juiz não vai deferir nada.

Agente: não vai deferir.

Camila: Vocês acham que o juiz não vai deferir as medidas protetivas?

Page 62: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

61

Escrivã: sabe, porque tá enchendo lingüiça mesmo é falta do que fazer...

Agente: agora você já imaginou, ela manda pro juiz e o juiz (não dá para entender

porque elas começam a rir)

Escrivã: aqui (lê na oitiva as falas de Augusto que Alice considerou como injúria):

“você é uma pobre coitada, cresceu na favela, eu não tenho a índole que você tem”.

Aonde que tá (o crime)? Me fala! Me fala!Porque cê não estudou? Cê tá aqui

fazendo o quê? (MENEZES, 2008, p.126).

Estes fragmentos de um atendimento realizado na Delegacia servem para demonstrar como o

julgamento paralelo dos casos atua no enfrentamento institucional e público da violência de

gênero, no mínimo, enviesando o andamento dos processos legais. Concordo com Menezes

(2008) quando ela afirma, parafraseando Butler, “que a generalização feita a partir da

constatação (de que algumas mulheres retiram as queixas) produz os próprios efeitos que diz

apenas nomear ou descrever” (MENEZES, 2008, p.135).

A partir desta discussão sobre como as mulheres em situação de violência são posicionadas

durante suas trajetórias pela Rede de Enfrentamento adotamos a noção de sobrevivente

apresentada por Almeida (1998) em contraposição à de vitima por entender que “ela confere

uma dimensão mais afirmativa a categorias subalternizadas, indicando não se tratar de uma

categoria passiva, mas inscrita em condições de vida e em relações de força altamente

desfavoráveis” (ALMEIDA, 1998, p.10). A definição de sobrevivente apresentada por Almeida

(1998) será empregada nesta pesquisa. Para esta autora,

no contexto da violência doméstica, sobrevivente designa o sujeito que foi capaz de

reunir forças para lutar contra intensas e multidimensionais condições de opressão,

expressas, diretamente, através das relações de gênero processadas em contextos

familiares (em sua dimensão crônica) e, indiretamente, por meio de

constrangimentos e limites institucionais, gerados e impostos a partir de um campo

de forças determinado (em sua dimensão extensiva) (ALMEIDA, 1998, p. 10).

A adoção deste termo, embora considerado extremista por alguns, se dá pela aposta na

conversão do posicionamento da mulher fundado em uma construção discursiva queixosa,

individual e vitimizadora pela valorização e legitimação da agência desta mulher que, apesar

das pressões e opressões, busca se posicionar de forma ativa em defesa de seus direitos e de

sua vida.

Desta maneira, queremos sublinhar como as formas para se buscar dar visibilidade à

experiência das mulheres em situação de violência de gênero através dos discursos das

instituições da Rede de Enfrentamento à Violência podem servir para tornar mais coerente e

Page 63: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

62

eficiente o processo de enfrentamento à violência. Consideramos que podemos a partir das

definições adotadas para este público entender as propostas teóricas e as políticas públicas

para a erradicação da violência, como também analisar criticamente as identidades que são

reiteradas através deste processo de definição.

Para além, apresentaremos a trajetória das mulheres à violência de gênero pela Rede de

Enfrentamento à Violência através da imagem de um Ciclo de Enfrentamento à Violência.

Com isto pretendemos demonstrar como as queixas-crimes/palavras das sobreviventes à

violência podem seguir um processo de (des)legitimação antes mesmo que a mulher adote,

por exemplo, a estratégia de publicização de instauração de um inquérito policial. Na verdade

este ciclo não ocorre apenas em relação a agentes institucionais, mas também por parte de

familiares, pessoas próximas às mulheres e por seu companheiro.

O primeiro momento do ciclo se caracteriza pelo que chamamos de publicização. Este

movimento da sobrevivente se caracteriza pela busca de apoio, ajuda, consolo, cumplicidade

em qualquer pessoa ou instituição fora da relação com o marido, incluindo familiares, filhos,

vizinhos, amigos, padres, policiais, Centros de Referência ou qualquer outro sujeito percebido

pela sobrevivente como um possível apoio no enfrentamento à violência.

Porém, em alguns casos, quando a sobrevivente decide publicizar a situação de violência, não

é incomum um primeiro momento de descrença, desvalorização ou deslegitimação da sua

fala, sendo seu inverso a legitimação de seu posicionamento por parte de qualquer um dos

sujeitos procurados por ela. Chamo este momento de (des)legitimação, ciente de que podem

ocorrer os dois movimentos frente ao posicionamento de enfrentamento da sobrevivente.

Considero que qualquer forma de deslegitimação do movimento de enfrentamento à violência

de gênero dificulta o processo por reiterar a violência contra a mulher e/ou desmotivá-la a

enfrentar a situação violenta. Podendo levar ao terceiro momento de (des)legitimização do

enfrentamento à violência levando à manutenção da situação de violência por ter a mulher

sido desacreditada em sua queixa-crime/solicitação de ajuda. O sentimento de apatia e

descrença é muito comum e pode dificultar a continuidade da trajetória de enfrentamento à

violência a partir de estratégias de publicização. O ciclo pode recomeçar imediatamente com

adoção de uma nova estratégia de publicização ou pode ficar paralisado e inoperante por

algum tempo.

Page 64: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

63

Figura 01: Ciclo de enfrentamento à violência

Considero importante a visualização da trajetória destas sobreviventes como um ciclo para

que se possa dar visibilidade a como uma ação institucional ou individual frente à violência

de gênero pode ser decisiva para que se consiga quebrar o ciclo de violência na vida de uma

sobrevivente. Considero que esta proposta de visualização também possa ser adotada em

outras situações de violência como contra crianças e adolescentes e também para os vários

atendimentos oferecidos, principalmente por serviços públicos.

Aliado a isto, utilizo a descrição do fenômeno da violência a partir do modelo de ciclo de

(Des)

legitimação

(Des)

legitimação do

enfrentamento

à violência

Publicização

Page 65: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

64

violência. O Manual “Violência Intrafamiliar – orientações para a prática em serviço”,

produzido pelo Ministério da Saúde, em 2002, apresenta a descrição do ciclo de violência em

três fases. A primeira fase caracteriza-se pelo aumento da tensão com pequenos, mas

freqüentes, incidentes de violência. A mulher acredita que ainda tem algum controle sobre o

comportamento do agressor e essa aparente aceitação estimula o agressor a não se controlar.

A segunda fase é caracterizada pelo episódio agudo da violência. São freqüentes nesta fase

sintomas como ansiedade, raiva, terror e medo. A fase três é a do apaziguamento, a lua-de-

mel, quando o agressor sabe que agiu inadequadamente e tenta fazer as pazes e a mulher

agredida, em contrapartida, precisa acreditar que não sofrerá mais violência. Esta fase “dura o

tempo em que novamente se iniciam as cenas de violência. Novamente um crescendo se

instaura, único momento em que a intervenção externa pode ser recebida como eventual

quebra do ciclo/ou círculo” (SMIGAY, 2001, p.15). Outro modelo de descrição para a

dinâmica da violência de gênero é o do espiral “que sugere que a violência funciona em um

crescendo, com períodos de relativa estagnação, mas a virulência é ascendente” (SMIGAY,

2001, p.15).

Aposto na descrição da violência e da trajetória de enfrentamento à violência como um ciclo

por isto possibilitar entender a dinâmica da violência e de seu enfrentamento descrita pelas

mulheres possibilitando antever e buscar formas de quebrar estes ciclos de forma eficiente. A

noção de ciclo também permite desmistificar e questionar construções discursivas

heteronormativas sobre o posicionamento das mulheres nas relações violentas e na trajetória

de enfrentamento à violência apresentando uma nova racionalidade para a descrição da

violência, desmistificando os lugares de vítima passivas utilizados para definir as mulheres.

Partindo desta discussão, é fundamental investigar o modo como às sobreviventes que buscam

as instituições da Rede de Enfrentamento à Violência se posicionam e são posicionadas frente

à questão da violência de gênero e, por conseqüência, como este jogo de poder interfere no

enfrentamento à violência de gênero na vida das sobreviventes.

1.4 GRUPOS OPERATIVOS

Enrique Pichon-Rivière, psiquiatra e psicanalista argentino de origem suíça, contribuiu para a

teorização sobre grupos elaborando a teoria e técnica grupal chamada Grupo Operativo. O

interesse de Pichon-Rivière pelos fenômenos grupais teve início com uma situação vivenciada

Page 66: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

65

em sua prática como psiquiatra encarregado do Servicio de Adolescentes del Hospital

Neuropsiquiátrico de Hombres da cidade de Buenos Aires (PICHON-RIVIÈRE, 1994 ,p.130).

Devido a uma greve do setor de enfermagem deste Hospital em 1946, ele teve a iniciativa de

colocar os seus pacientes menos comprometidos no papel de cuidadores dos mais

comprometidos. Com esta prática ele observou que ambos os subgrupos apresentaram

significativas melhoras em seus quadros clínicos. A conclusão foi que a ruptura do papel

estereotipado de quem cuida (setor de enfermagem) aliada ao novo processo de comunicação

possibilitado por esta prática foram os fatores referenciais para o processo de evolução dos

enfermos nesta situação.

Em consonância com suas contribuições teóricas, Pichon-Rivière construiu uma carreira

aliando prática e teoria, ensino e aprendizagem. Em 1953, fundou a Escuela de Psiquiatría

Social para a formação de pós-graduação de psicoterapeutas com a proposta de apontar

respostas às necessidades emergentes do contexto social. Em 1955, articulado a esta escola,

fundou o Instituto Argentino de Estudios Sociales, IADES. Este instituto desenvolveu

numerosas experiências de trabalho institucional e comunitário, além de cursos de

coordenação de grupos. Estas experiências levaram ao desenho de um novo Esquema

Conceitual Referencial Operativo-ECRO onde os operadores grupais atuariam em espaços de

participação que possibilitariam o esclarecimento dos sujeitos acerca de suas necessidades,

através da visualização e resolução de obstáculos, favorecidos pelo processo de aprendizagem

e comunicação no grupo. A partir destas experiências, em1967, Pichon-Riviére renomeou a

Escuela de Psiquiatria Social, que passou a ser chamada de Escuela de Psicologia Social.4

Em 1958, já como diretor do Instituto Argentino de Estudios Sociales (IADES), Pichon-

Rivière propôs a “Experiência Rosário”, definida por ele como o ponto de partida de suas

investigações sobre os grupos operativos. A proposta de Pichon-Rivière era reunir grupos

interdisciplinares (compostos por alunos e professores de diferentes áreas da referida

instituição, artistas, autodidatas, esportistas e público em geral) com a tarefa de discussão e

construção de uma didática interdisciplinar para o Instituto. Para o início dos trabalhos foram

colados cartazes convites nas proximidades do Instituto, dando publicidade às reuniões. Na

primeira reunião, Pichon-Rivière, como coordenador do grupo, apresentou a proposta da

experiência à platéia. Desde o início desta experiência o papel do coordenador estava focado

4 Disponível em: < http://www.psicologiasocial.esc.edu.ar/nueva. Php?Id=historia>. Acesso em: 12 de julho de

2009.

Page 67: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

66

em orientar e favorecer a comunicação intragrupal. Além disto, foi adotado um observador

com a função de registrar os acontecimentos no grupo. Após o primeiro encontro para a

explanação da tarefa do grupo, os outros encontros do grupo heterogêneo focalizaram a

resolução da tarefa. Nos intervalos entre estes encontros dos grupos, o coordenador e o

observador discutiam os encontros já ocorridos buscando uma maior compreensão da

dinâmica do grupo. Além disto, também foram realizadas reuniões de grupos homogêneos

que se debruçaram sobre novas tarefas de acordo com especificidades de seus grupos. Por

exemplo, foram criados grupos de alunos portenhos estudantes de Rosário e grupos com a

tarefa de operar frente a problemas da comunidade rosariana. Entre as reuniões dos grupos

homogêneos e heterogêneos Pichon-Rivière realizou outra explanação para os participantes da

experiência. A sua conclusão, neste momento, foi que agora estas pessoas não mais se

organizavam como platéia, mas como um grupo (PICHON-RIVIÈRE, 1994, p.88-90).

Ao definir a metodologia que utilizou na “Experiência de Rosário” Pichon-Rivière delimita

suas escolhas pela atuação em comunidades através de grupos reunidos em laboratórios

sociais. Este posicionamento de Pichon-Rivière aponta para a sua crença nos grupos como

meio de atuação visando à modificação dos indivíduos e do meio em que vivem. Percebe-se,

novamente, o investimento de Pichon-Rivière em uma psicologia social atuante, resolutiva,

que alia ação e pesquisa.

Em Rosário, empregou-se como estratégia a criação de uma situação de laboratório

social; como tática, a grupal, e como técnica, a de grupos de comunicação, discussão

e tarefa. (...) O laboratório social é constituído pela reunião, em uma mesma equipe

de trabalho, de pessoas interessadas em trazer para a comunidade que as rodeia certo

número de modificações de atitudes, sobre a base de um estudo detalhado da

situação e por meio de um programa de ação racionalmente concebido. (...) Na

organização do laboratório (social) a ação e a investigação são inseparáveis.

(PICHON-RIVIÈRE, 1994, p. 91)

A metodologia utilizada em Rosário tem como base teórica as contribuições de Kurt Lewin

sobre a Dinâmica de Grupo, os “laboratórios sociais”, a noção de campo e de situação e

alguns princípios topológicos da aprendizagem5. Aliam-se a essas referências parâmetros

5Kurt Lewin é conhecido psicólogo que se dedicou ao estudo dos pequenos grupos e seus fenômenos. Suas

pesquisas enfatizaram o estudo do comportamento humano em seu contexto físico e social total. A característica

notável da psicologia social de Lewin é a dinâmica de grupo, de conceitos relativos ao comportamento individual

e grupal. Assim como o indivíduo e o seu ambiente compõem um campo psicológico, assim também o grupo e o

seu ambiente compõem um campo social. Os comportamentos sociais ocorrem no interior de entidades sociais

simultaneamente existentes como subgrupos, membros de grupos, barreiras e canais de comunicação, e delas

resultam. Assim, o comportamento do grupo é uma função do campo total existente em qualquer momento dado.

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67

psicanalíticos, sobretudo, os aportes de Melanie Klein6. Segundo Osório, em Melanie Klein,

Pichon-Rivière buscou a “compreensão da inércia em relação às mudanças (...) e na Dinâmica

de Grupo, ele encontrou uma forma de operacionalizar sua abordagem grupal através dos

„laboratórios sociais‟ (...) que criariam o clima propício para a indagação ativa a que se

propunham os grupos operativos” (OSÓRIO, 2003, p.30). Ainda em concordância com as

idéias de Kurt Lewin e Klein, Pichon-Rivière coaduna com o princípio sobre a formulação de

uma teoria segundo “a qual toda investigação vai acompanhada de uma operação, ou seja, não

há investigação „pura‟, „inócua‟” (PICHON-RIVIÈRE, 1994, p.105). A relação entre teoria e

prática, para Pichon-Rivière, ocorre através de movimento em uma espiral dialética,

característico da práxis.

Além destas influências basilares, Pichon-Rivière também se baseou nas idéias de Ruesch7

sobre a relação entre os estilos comunicacionais e as estruturas patológicas e nas idéias da

escola de Palo Alto8 para desenvolver a sua teoria sobre comunicação, que é um conceito

chave em seu entendimento da possibilidade de atuação do grupo operativo. Para o

Lewin também fez pesquisas sobre o comportamento em várias situações sociais (...). Além disso, Lewin

acentuou a importância da pesquisa de ação social e o estudo de problemas sociais relevantes voltados para a

introdução de mudanças (SCHULTZ e SCHULTZ, 2002).

6Psicanalista inglesa que foi “o principal expoente do pensamento da segunda geração psicanalítica mundial.

Deu origem a uma das grandes correntes do freudismo, o kleinismo. (...) Transformou totalmente a doutrina

freudiana clássica e criou não só a psicanálise de crianças, mas também uma nova técnica de tratamento e de

análise de didática, o que fizera dela uma chefe de escola. Sua obra, composta de cerca de cinqüenta artigos e de

um livro, A psicanálise de crianças, foi traduzida em quinze línguas e reunida em quatro volumes. O Kleinismo é

considerado uma escola comparável ao lacanismo que alia um saber clínico a uma teoria (ROUDINESCO e

PLON, 1998).

7Médico suíço, Jurgen Ruesch trabalhou com Bateson, em 1949, na Clínica neuropsiquiátrica Langley Porter, de

São Francisco. Em 1951, participou da publicação do livro “Communication. The Social Matrix of Psychiatry”.

Neste livro, os autores sustentam que a comunicação é o "único modelo científico a reagrupar os aspectos

fisiológicos, intrapessoais, interpessoais e culturais em um mesmo sistema. De tal modo que a comunicação

constitui a matriz na qual se moldam todas as atividades humanas". Os aportes da cibernética conduziram os

autores a insistir sobre o fato de que a análise de um sistema - como é o sistema comunicacional - não pode ser

pensada a não ser na circularidade dos diversos elementos que o constituem e que, entre si, interagem. Assim

sendo, a epistemologia não existe sem a informação; a informação não existe sem a comunicação; a

comunicação não existe sem aprendizagem; a informação e a comunicação não existem sem uma codificação e

uma avaliação das informações, e assim por diante (SAMAIN, 2004).

8Escola de Palo Alto “Nome por que ficou conhecido um núcleo de investigação científica, nas áreas da

psicoterapia e psiquiatria, fundada em 1959, em Palo Alto, na Califórnia, oriundo do Mental Research Institute.

Teve como base principal uma equipe de investigadores do início da década de 50 do século XX, liderada por

Gregory Bateson. O seu principal objetivo era a compreensão dos fenômenos de auto-regulação em qualquer

forma de vida, que, por sua vez, tendo como base o pressuposto da similitude formal que acreditavam existir no

funcionamento de todos os seres vivos, conduziria a uma melhor compreensão dos processos da psique humana.

Neste âmbito, a pesquisa e o estudo de parâmetros formais da comunicação entre os seres vivos, por exemplo,

revestia-se de grande importância, envolvendo o trabalho conjunto de psiquiatras e psicoterapeutas. A associação

da Escola de Palo Alto ao Mental Research Institute nunca se revestiu de caráter oficial, uma vez que o grupo

nunca formou uma estrutura organizada e, por isso, ficou também conhecido como Invisible College (Colégio

Invisível) (ESCOLA DE PALO ALTO, 2003).

Page 69: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

68

desenvolvimento de sua teorização sobre os papéis desempenhados pelos participantes de um

grupo operativo, Pichon-Rivière utilizou-se dos conceitos de papel e “outro generalizado”, de

George Mead. Para explicar a relação do sujeito com o outro, parte-se do entendimento de que

existem os papéis prescritos e os assumidos e que, na medida em que estes coincidem, é que

seria possível ao sujeito reconhecer a si e ao outro, atingindo sua operatividade máxima. Na

interação do self com o outro generalizado estrutura-se o mim (papel operativo diferenciado)

presente nos diferentes momentos da operação da tarefa (PICHON-RIVIÈRE, 1994). Para a

construção de um esquema de avaliação grupal a influência da sociometria de Moreno9 está

presente na utilização do vetor tele, a ser descrito na seção sobre os vetores de avaliação nos

grupos operativos.

Após o momento inicial de sua teorização Pichon-Riviére aliou à psicanálise o materialismo

dialético “numa tentativa de transformar o grupo operativo num instrumento capaz de revelar

os conteúdos ideológicos subjacentes às tarefas de todos os grupos” (BAREMBLITT, 1994,

p.184). Seguindo esta linha, Pichon-Rivière faz uma crítica à noção de instinto de Freud

considerando mais adequado o uso da noção de necessidade como entendida por Marx. Para

ele, a noção de necessidade expressaria melhor a determinação da estrutura social sobre o

indivíduo e sobre suas necessidades que seriam sociais e não naturais. Para esta linha teórica o

ser humano seria um ser de necessidades que só se satisfariam através das relações sociais que

o determinariam (BAREMBLITT, 1994, p.182). Esta imagem do homem como um ser de

necessidades sociais a serem satisfeitas através das relações sociais aliada à noção de sujeito

ativo, atuante, produtor e produto da relação dialética com o meio diz do campo de atuação da

psicologia social na teoria pichoniana e da escolha do grupo como objeto privilegiado de

intervenção.

9Jacob Levy Moreno (1889-1974) psiquiatra judaico romeno, conhecido como o pai do Teatro Espontâneo,

Psicoterapia de Grupo, Psicodrama e Sociodrama e Sociometria. A Revolução Criadora moreniana propõe o

rompimento com os padrões de comportamento, valores e formas estereotipadas de participação na vida social,

que acarretam a automatização do homem (conservas culturais). (...) A possibilidade de modificar uma dada

situação implica em criar, e a criatividade é indissociável da espontaneidade (esta permite que o potencial

criativo se atualize e se manifeste). Segundo Moreno, a criança aos poucos, com o desenvolvimento de um fator

inato, chamado Tele, vai distinguindo objetos e pessoas, sem distorcer seus aspectos essenciais; assim Tele é a

capacidade de perceber de forma objetiva o que ocorre nas situações e o que se passa entre as pessoas. Toda ação

pressupõe relação, factual ou simbólica (relação com pessoas reais ou imaginárias, que têm sua presença

representada). Toda relação pressupõe formas de comunicação. O fator Tele influi decisivamente sobre a

comunicação, pois só nos comunicamos a partir do que podemos perceber. Para Moreno, Tele é também uma

“percepção interna mútua entre dois indivíduos”. A empatia é a captação, pela sensibilidade dos sentimentos e

emoções de alguém ou contidas, de alguma forma, em um objeto. Um dos objetivos do Psicodrama, do

Sociodrama e da Psicoterapia de Grupo é descobrir, aprimorar e utilizar os meios que facilitem o predomínio das

relações télicas sobre relações transferenciais (VASCONCELOS, 2006).

Page 70: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

69

O sujeito não é só um sujeito relacionado, é um sujeito produzido em uma práxis.

Nele não há nada que não seja a resultante da interação entre indivíduo, grupos e

classe. Se essa relação é o objeto da psicologia social, seu campo operacional

privilegiado é o grupo, que permite a investigação do interjogo entre o psicossocial

(grupo interno) e o sócio-dinâmico (grupo externo), através da observação das

formas de interação, dos mecanismos de adjudicação e assunção de papéis

(PICHON-RIVIÈRE, 1994, p.174).

A psicologia social pichoniana pode ser definida como a ciência do homem no campo da

práxis, a ciência das interações voltadas para uma mudança social planificada, uma ciência

operativa, instrumental, voltada para uma crítica da vida cotidiana, através da abordagem do

homem em situação. A objetividade desta ciência fundada na práxis se daria através da crítica

e autocrítica possibilitadas pela prática, com a teoria sendo corrigida por meio de mecanismos

de retificação e ratificação em uma espiral dialética (PICHON-RIVIÈRE, 1994, p.121).

Pichon-Rivière também foi professor e preocupou-se em propor uma didática para a

psicologia social conforme ele a definia. Para ele, a psicologia social seria uma disciplina

interdisciplinar, grupal, instrumental e operacional. Pichon-Rivière entendia a didática como

uma estratégia composta por duas tarefas: a informativa e a formativa, ou seja, ela não

objetivava apenas a transmissão de conhecimentos, mas também o desenvolvimento e

modificação de atitudes. A aprendizagem na teoria pichoniana

está sustentada em uma didática que a caracteriza como a apropriação instrumental

da realidade, para modificá-la. A noção de aprendizagem se vincula intimamente

com o critério de adaptação ativa à realidade (...), que se entende como uma relação

dialética mutuamente modificante e enriquecedora entre sujeito e meio. Aprender é

realizar uma leitura da realidade, leitura coerente, e não aceitação acrítica de normas

e valores. Ao contrário buscamos uma leitura que implique capacidade de avaliação

e criatividade (transformação do real) (PICHON-RIVIÈRE, 1994, p.177).

Merece destaque na definição de aprendizagem pichoniana a reafirmação da práxis como

meio de atuação e posicionamento frente à realidade e o constante apontamento para a

mudança (individual e da sociedade) como objetivos últimos desta teorização em psicologia

social.

Guiada pelo instigante convite da teoria pichoniana apresentarei, a seguir, uma revisão sobre

os elementos definidores desta teoria como: grupo operativo, tarefa, ensino-aprendizagem,

comunicação, esquema conceitual referencial operativo-ECRO, assunção e adjudicação de

papéis, modelo do cone invertido, os vetores de avaliação dos processos grupais e as funções

da equipe de coordenação neste enfoque grupal. Por fim, apresentarei as possibilidades de

Page 71: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

70

utilização do Grupo Operativo em geral e discutirei a utilização com o público alvo mulheres

sobreviventes à violência de gênero.

1.4.1 DEFINIÇÃO DE GRUPO OPERATIVO

Enrique Pichon-Rivière definia grupo operativo como “um conjunto de pessoas reunidas por

constantes de tempo e espaço, articuladas por sua mútua representação interna, que se

propõem, implícita ou explicitamente, uma tarefa que constitui sua finalidade” (PICHON-

RIVIÈRE, 1994, p.157). Apesar desta definição clássica de Pichon-Rivière sobre o que seja

um Grupo Operativo a plasticidade de sua obra e as várias formas de apropriação de seu

trabalho tornam necessária uma discussão sobre este tema. Assim, apresentarei a seguir

algumas outras formas de definição de outros autores (não muito diferentes da original) e uma

discussão sobre a melhor forma de definição de um Grupo Operativo. A discussão sobre esse

assunto se baseia no questionamento sobre uma definição para o que seja um Grupo

Operativo: uma teoria, uma ideologia ou uma técnica. Por fim, apresentarei como este termo

será entendido neste trabalho.

Participando desta discussão Baremblitt (1994) declara que para a melhor construção de uma

definição do que seja um grupo operativo é necessária a explicação dos diferentes aspectos

que o constituem. Esta colocação pode ser interpretada como o entendimento do Grupo

Operativo como um corpo teórico que sustenta uma prática. Para esta discussão ele traz a

definição de Bauleo10

Chamamos grupo operativo a todo grupo no qual a explicitação da tarefa e a

participação através dela permite não só sua compreensão, mas também sua

execução (...). O grupo pode ser visualizado em dois planos: o da temática, extensão

de temas que constituirão a armação da tarefa; e o da dinâmica, no qual a

interrelação evidenciará o sentir que se mobiliza em dita temática (BAULEO apud

BAREMBLITT, 1994, p.184-185).

Nesta definição é reafirmado o aspecto principal desempenhado pela tarefa e aponta-se para

os dois planos que perpassam o Grupo Operativo: o da temática e o da dinâmica. Esta

10Armando Bauleo, falecido em 2008, é um dos mais conhecidos psicanalistas argentinos, discípulo de Pichon e

de Bleger. Bauleo era um médico psiquiatra que fazia sua formação na Associação Psicanalítica Argentina e era

membro do Partido Comunista como Bleger e trabalhava com ele na Faculdade de Filosofia e Letras, no curso de

Psicologia. (...) Além disso, teve uma participação muito importante na experiência de comunidade terapêutica

desenvolvida, em fins de 1968, num serviço do Hospital Alejandro Korn de Melchor Romero, o asilo

psiquiátrico próximo a La Plata (VEZZETTI, 2009).

Page 72: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

71

colocação é muito importante, pois a proposta de utilização e interpretação do Grupo

Operativo sempre se dá articulando os vários aspectos da situação. Pichon-Rivière preocupou-

se em questionar em sua teoria as posições dilemáticas e dicotômicas, optando sempre por

uma relação dialética. Assim, ele apresentou: a tarefa como composta por aspectos implícitos

e explícitos e a importância da associação entre o agir, o pensar e o sentir em sua realização.

Para além, ele postulou a análise do grupo não apenas a partir da execução da tarefa, mas

também da análise da dinâmica grupal a partir da interrelação entre os membros, a tarefa e a

coordenação do grupo.

Segundo Fernandes (2003), “para Pichon, o Grupo Operativo é um instrumento de trabalho e

também um método de investigação, mas cumpre uma função terapêutica, o que originou

diversas confusões” (FERNANDES, 2003, p.199). A discussão a que se referem estes autores

pode ser percebida pelas várias formas como o Grupo Operativo pode ser apropriado na

prática segundo o objetivo e o enfoque de determinado aspecto da teoria priorizado por cada

coordenador. A meu ver, desde que não se desqualifiquem ou se neguem os princípios gerais

de organização e entendimento da dinâmica grupal na teoria pichoniana (que serão discutidos

durante todo este capítulo) esta plasticidade na utilização e definição do que seja um Grupo

Operativo é coerente com a proposta de Pichon-Rivière. Assim a discussão do que seja um

grupo operativo conduz ao entendimento de que ele seria uma teoria, uma ideologia do

processo grupal, uma técnica, um método de investigação com uma função terapêutica. A

confusão talvez ocorra quando se tenta dicotomizar a proposta utilizando-a como apenas um

destes aspectos ou através de uma hipertrofia de apenas um aspecto em desconsideração dos

outros. A meu ver, apropriar-se do Grupo Operativo, por exemplo, como apenas uma técnica

sem se valer de sua ideologia seria uma escolha empobrecida.

Apresentarei a seguir duas definições que se diferenciam principalmente por definir o Grupo

Operativo como uma ideologia. Apesar de aparentemente elas focarem o Grupo Operativo em

seu caráter ideológico se destacam por apontarem para a importância do posicionamento do

coordenador.

Assim, Portarrieu e Tubert-Oklander (1986) aprofundam a discussão do que seja um Grupo

Operativo partindo de uma negação do Grupo como uma simples técnica para uma conclusão

mais ampla.

Page 73: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

72

O grupo operativo não é um termo utilizável para se referir a uma técnica específica

de coordenação de grupos, nem a um tipo determinado de grupo, em função de seu

objetivo, como poderia ser “grupo terapêutico”, “grupo de aprendizagem”, mas se

refere a uma forma de pensar e operar em grupos que pode se aplicar à coordenação

de diversos tipos de grupos (PORTARRIEU; TUBERT-OKLANDER, 1986, p.135-

136).

Esta negação, a meu ver, é importante por atentar para o perigo de se apropriar da proposta do

Grupo Operativo como apenas uma técnica de coordenação de grupos sem se atentar para seu

aporte teórico e ideológico. Novamente, eles reafirmam na definição abaixo o entendimento

do Grupo Operativo como algo para além de uma técnica.

Os grupos operativos não são uma técnica, mas uma ideologia, no sentido de um

marco referencial teórico valorativo que organiza a percepção, o pensamento, e a

ação do coordenador de grupos. Desta forma, a única definição opositora ao grupo

operativo seria a posição do coordenador como definidor do saber. (...) Como

conseqüência, a interrogação sobre a conveniência ou não de abordar uma tarefa

grupal determinada com a modalidade de grupo operativo ou outra não é problema

empírico, mas sim ideológico. É uma questão de qual tipo de processo de

desenvolvimento humano que se considera desejável, que depende da concepção de

mundo e dos valores de cada coordenador, assim como dos membros do grupo. E

esta é a razão pelas quais muitas discussões sobre grupos operativos se transformam

em verdadeiros “diálogos de surdos” toda vez que os interlocutores partem de

pressupostos filosóficos prévios diferentes e incompatíveis (PORTARRIEU;

TUBERT-OKLANDER, 1986, p.139-140).

De acordo com a discussão acima entendo o Grupo Operativo e procuro utilizá-lo em minha

prática e neste trabalho de pesquisa como uma técnica e meio de investigação apoiados em

uma teoria fundada em uma concepção ideológica do ser humano como em constante

interação dialética com o meio com as transformações se dando concomitantemente nas duas

vias. Para mim, a melhor definição de Grupo Operativo seria aquela que conseguiria

apresentar todas as possibilidades de sua utilização com a fluidez de um movimento dialético.

1.4.2 TAREFA

A existência de uma tarefa a ser desempenhada pelo Grupo Operativo é o aspecto central em

sua organização. Assim, para o entendimento do conceito Grupo Operativo faz-se necessário

compreender a noção de tarefa apresentada por Pichon-Rivière. A noção de tarefa é composta

por três momentos: a pré-tarefa, a tarefa e o projeto. “Estes momentos se apresentam em uma

sucessão evolutiva, e sua aparição e interjogo constante podem situar-se diante de cada

situação ou tarefa que envolva modificações do sujeito” (PICHON-RIVIÈRE, 1994, p.19).

Page 74: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

73

Assim, de forma geral, o grupo operativo tem como marco definidor o desempenho de uma

tarefa que funciona como um

organizador dos processos de pensamento, comunicação e ação que se dão em e

entre os membros do grupo. (...) A tarefa leva a uma nova rede de comunicações,

possibilitando a mudança e a conseqüente aprendizagem. (...) A referida tarefa

(possui dois aspectos): o externo, ou seja, o trabalho produtivo, cuja realização

constitui a razão de ser do grupo, e o interno, que consiste na totalidade das

operações que devem realizar os membros do grupo de maneira conjunta para

constituir, manter e desenvolver o grupo como equipe de trabalho. A tarefa interna

exige que os membros realizem uma permanente indagação das operações que se

realizam no seio do grupo em função da existência da tarefa externa

(PORTARRIEU; TUBERT-OKLANDER, 1986, p.136- 137).

A partir desta definição destacam-se dois aspectos da tarefa que delimitam a centralidade

deste conceito para o entendimento do grupo operativo: a composição da tarefa em dois

registros e a tarefa como o meio para se atingir o objetivo principal do grupo, a mudança.

Desta forma, a tarefa é compreendida como um para além da simples execução automática de

pautas ditadas por um coordenador para um fim imediato e único. A atuação do coordenador

pautando-se nos dois registros da tarefa é o grande diferencial de uma atuação não

dicotômica, ou seja, que não entende o sujeito (razão e emoção), o objetivo do grupo

(mudança individual e coletiva) e a tarefa (externa e interna) a partir de partes que o

compõem. A proposta de Pichon-Rivière é a superação destas antinomias a favor de uma

visão dialética.

Assim, a tarefa é o fio condutor do Grupo Operativo onde o foco de atuação é a quebra das

condutas estereotipadas e a aprendizagem de novas pautas através deste movimento dialético

entre os membros do grupo e a tarefa proposta. Neste contexto a aprendizagem é entendida

como todo processo de apropriação, manipulação e adaptação à realidade. Sendo que esta

adaptação não compreenderia a passividade do sujeito frente ao meio, mas, uma atuação ativa

onde à reestruturação do sujeito corresponde uma reestruturação do meio. “Seria esquemático,

resumir sob a noção de tarefa, tudo o que implica modificação em dupla direção a partir do

sujeito e para o sujeito (...) uma noção que englobe, ao examinar o sujeito, sua relação com os

outros e com a situação” (PICHON-RIVIÈRE, 1994, p.21). Novamente, é a partir dos trilhos

de um movimento dialético que podemos visualizar a dinamicidade do processo grupal.

Para entender os medos e dificuldades dos sujeitos frente às situações de mudança Pichon-

Rivière utilizou-se da teorização de Melanie Klein sobre ansiedade básica. A teoria kleiniana

Page 75: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

74

demonstra que o sujeito pode reagir a partir de duas ansiedades básicas frente às exigências do

meio: a ansiedade depressiva e a ansiedade paranóide. Pichon-Rivière entendeu que em um

grupo a ansiedade depressiva apareceria como uma defesa frente ao medo da perda de

estruturas já conhecidas e a ansiedade paranóide como um medo frente ao novo. A resistência

à mudança seria desta forma interpretada como a união destas duas formas de ansiedade que

atuariam de forma cooperativa sobre o fazer grupal. O diferencial para a interpretação destas

ansiedades no grupo seria a localização de seu acontecimento e de sua superação no fazer

grupal. O processo de esclarecimento destas pautas seguiria o movimento de uma

interpretação no sentido de tornar o implícito (destes posicionamentos) explícito (durante o

fazer grupal). Neste contexto grupal, as interpretações se dirigiriam ao conteúdo atual do fazer

grupal em relação à tarefa, privilegiando como foco a relação do grupo com a tarefa

(desvencilhando-o da relação do sujeito com o coordenador/terapeuta). Assim,

a tarefa é possibilitada através de um trabalho compartilhado de esclarecimento

grupal. Este esclarecimento implica a análise, no “aqui e agora” da situação grupal,

dos fenômenos de interação, dos processos de adjudicação e assunção de papéis, das

formas da comunicação, em relação com as fantasias que geram essas formas de

interação, os vínculos entre os integrantes, os modelos internos que orientam a ação

(grupo interno) e os objetivos e tarefa prescrita do grupo (PICHON-RIVIÈRE, 1994,

p.178).

O momento do processo grupal onde se situam as técnicas defensivas e onde se trabalha a

elaboração da resistência à mudança caracteriza a pré-tarefa. Na pré-tarefa, como uma

resposta à tensão criada pelos medos, ocorre no grupo uma impostura frente à tarefa, ou seja,

ele se posiciona através de condutas parcializadas, dissociadas, semicondutas, maneiras de

não entrar na tarefa. Exemplos destas condutas podem ser observados particularmente no tipo

de manejo do tempo (constante protelação, atrasos, faltas) e também através de um

obsoletismo dinâmico, ou seja, movimentos que aparentam uma ação, mas que na realidade

são realizados para impedir qualquer transformação, (“façamos de tudo para que nada

mude”). Neste momento o grupo se posiciona através de um jogo de dissociação do pensar,

atuar e sentir, postergando o enfrentamento as ansiedades frente às mudanças. Enquanto não

ocorre no grupo este movimento, o processo de aprendizagem fica paralisado e as ansiedades

não interpretadas se intensificam. A resistência à mudança apresenta-se no grupo em termos

de dificuldade na comunicação e na aprendizagem. Assim, a rigidez no pensar e no fazer

grupal constitui o ponto principal de atuação (PICHON-RIVIÈRE, 1994).

Page 76: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

75

Considero que a melhor forma de visualização da relação entre a tarefa e a pré-tarefa é de

uma espiral em constante movimento dialético. “Na passagem da pré-tarefa para a tarefa, o

sujeito efetua um salto, ou seja, a acumulação quantitativa prévia de insight realiza um salto

qualitativo durante o qual o sujeito se personifica e estabelece uma relação com o outro

diferenciado” (PICHON-RIVIÈRE, 1994, p.21).

A tarefa pode ser compreendida também através de seus quatro momentos da função

operativa: estratégia, técnica, tática e logística. Onde se compreende a logística como o

momento da observação do campo inimigo (a resistência à mudança), a estratégia, o

planejamento de longo alcance, a tática, a forma com que se emprega o plano na

prática e a técnica os diferentes recursos ou instrumentos, e as formas como são

utilizados para se operar no campo.Esses quatro passos podem ser sucessivos ou

simultâneos; se a tarefa sair mal pode se averiguar em qual deles existiu dificuldade (BERSTEIN,1986,p.118).

A partir deste caráter operativo da execução da tarefa percebe-se a atuação ativa e criativa dos

membros do grupo a partir dos vários elementos em jogo no aqui agora do grupo em relação à

tarefa. Entramos, assim, então, na idéia de projeto ou produto “que seriam aquelas estratégias

e táticas para produzir uma mudança que, por sua vez, voltariam a modificar o sujeito com o

qual o processo se põe outra vez em marcha” (BAREMBLITT, 1994, p.190). O projeto

emerge, assim, como um planejamento para o futuro e uma forma de superação da perda com

o fim do grupo e/ou com a resolução da tarefa. O projeto também pode ser considerado um

aspecto positivo da pertença dos membros ao grupo, quando o fizer torna-se do grupo e não

de cada membro em separado.

1.4.3 APRENDIZAGEM-COMUNICAÇÃO

Para entender o processo de mudança e resistência à mudança na teoria pichoniana dois

conceitos se entrelaçam: a unidade ensino-aprendizagem e a comunicação. Pode-se dizer,

inclusive, que na teoria pichoniana aprender é sinônimo de mudança. Assim, frente a todo

processo de mudança são despertadas ansiedades sobre as quais se trabalha visando à

elaboração da tarefa. A resistência à mudança/aprendizagem, em um Grupo Operativo,

apresenta-se através de dificuldades na aprendizagem e na comunicação e de pautas

estereotipadas no agir e no pensar frente à tarefa.

Page 77: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

76

A superação da resistência à mudança ocorre através de uma adaptação ativa à realidade

proposta por Pichon-Rivière como “um conceito dialético no sentido de que o sujeito, ao

transformar-se, modifica o meio, e ao modificar o meio, modifica-se a si mesmo” (PICHON-

RIVIÈRE, 1994, p.48-177).

Assim, a mudança na teoria pichoniana é uma modificação operativa que se dá através da

aprendizagem da realidade que toma forma através de novas pautas, sendo o seu oposto a

reprodução de estereotipias. Deste modo, formar-se em grupo consiste em aprender a

aprender ou aprender a pensar, entendendo-se por aprender a aprender/pensar como “a

redefinição dos modelos de aprendizagem nos quais fomos configurados como sujeitos

cognoscentes, modelos passivos, receptivos, individualistas, competitivos, teoricistas e

autoritários” (QUIROGA, 1991, p.25). Aprender a aprender/pensar através da técnica de

Pichon-Rivière implica na

transformação de um pensamento linear, lógico-formal num pensamento dialético

que visualize as contradições no interior dos fenômenos e as múltipla interconexões

do real. Tenciona-se então uma passagem da dependência à autonomia, da

passividade à ação protagonista, da rivalidade à cooperação (QUIROGA, 1991,

p.25).

O resultado mais importante desse processo é que o sujeito se transforme em agente de

mudança. Assim, a focalização na aprendizagem como um processo ativo, dialético e

transformador faz da teoria pichoniana uma proposta de atuação revolucionária do status quo.

Aprender, portanto, vem a ser uma nova leitura da realidade e apropriação ativa da

mesma, no aqui, agora e comigo. Não estando somente no discurso, mas nas ações

mais ordinárias do cotidiano. (...) onde o sujeito deixa de ser espectador e passa a ser

o protagonista de sua história e da de seu grupo. Parte da informação apropria-se

dela e transforma-a em gestos. Deixa de ser aluno que recebe passivamente

conservas de saber e passa a ser aprendiz que, ao fazer, vai aprendendo (ABDUCH,

1999).

A aprendizagem é compreendida como uma apropriação e modificação da realidade através

de uma relação dialética onde aprender e ensinar sempre opera dentro de um mesmo marco de

trabalho, como uma unidade onde o indagar, questionar, investigar é a mola propulsora nas

relações entre o par aluno-professor, os membros de um grupo ou entre estes e seu

coordenador. Somente assim sendo entendida esta estrutura assume seu caráter operativo e

uma vigência que determinam a forma e função instrumental de uma estrutura dinâmica. A

aposta é no re-descobrir, no re-aprender e no re-ensinar através da constante realimentação

Page 78: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

77

das informações em um processo espiral ascendente, não linear ou cumulativo (PICHON-

RIVIÈRE, 1994). Através das idas e vindas do movimento dialético da unidade ensino-

aprendizagem é que “vão ocorrendo os ajustes e correções de conceitos, preconceitos, tabus,

fantasias inconscientes, idéias preconcebidas e estereotipadas (...) desenvolvendo uma atitude

plástica e criativa (...) aberta e investigatória” (ABDUCH, 1999). Assim, observamos como os

conceitos de aprendizagem/ensino e mudança são conectados e como o processo grupal pode

ser o contexto disparador para a mudança. A meu ver este caráter dinâmico do processo de

aprendizagem em um grupo é um dos aspectos mais sedutores desta proposta teórica.

Partindo deste entendimento da dinâmica da aprendizagem/mudança em um grupo operativo,

o coordenador tem como ferramenta os processos comunicacionais entre os membros do

grupo. Assim, uma de suas tarefas essenciais consiste em trabalhar no sentido de possibilitar

uma comunicação com aberturas dialéticas sucessivas, ou seja, uma comunicação que se

apresente através de um círculo aberto e benéfico e não se paute em círculos viciosos,

fechados e dicotômicos. Esquematicamente pode-se dizer que a comunicação em um Grupo

Operativo deve ser ativa, ou seja, criadora. Nesta teoria, “a comunicação é o trilho da

aprendizagem e vive-versa (...) e os processos de aprendizagem e comunicação formam uma

unidade e são interdependentes” (PICHON-RIVIÈRE, 1994, p.45,95). Assim, a comunicação

é um dos pontos focais de um grupo operativo por ser instrumento de possibilidade da

realização da tarefa. A comunicação é assim avaliada como um dos vetores de avaliação de

um Grupo Operativo. Discutiremos mais detalhadamente, este vetor na seção específica sobre

o tema.

1.4.4. ESQUEMA CONCEITUAL REFERENCIAL OPERATIVO – ECRO

Pichon-Rivière defendia que o que possibilitava uma comunicação operativa11 em um grupo

seria a elaboração de um esquema referencial comum entre seus membros. Para ele, “o

esquema referencial é o conjunto de conhecimentos, de atitudes, que cada um de nós tem em

sua mente e com o qual trabalha na relação com o mundo e consigo mesmo” (PICHON-

11Além desta articulação entre os conceitos de comunicação/aprendizagem é fundamental explicar que Pichon-Rivière

apresenta toda sua produção teórica sobre os Grupos Operativos e a didática do ensino da psiquiatria e da psicologia social

como um ECRO. (PICHON-RIVIÈRE, 1994, p.98)

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78

RIVIÈRE, 1994, p.61). Em um grupo a comunicação se daria na medida em que as

mensagens pudessem ser decodificadas por uma afinidade ou coincidência dos esquemas

entre emissor e receptor. Em um Grupo Operativo cada membro se apresenta com um

esquema referencial próprio definido como um “conjunto de experiências, conhecimentos e

afetos com os quais o indivíduo pensa e age que adquire unidade através do trabalho em

grupo” (PICHON-RIVIÈRE, 1994, p.90). O compartilhamento destes esquemas permitiria o

incremento da comunicação grupal entre os membros do grupo e, assim, através da

comunicação seria possível a construção de um ECRO representante do grupo no aqui-agora

da realização da tarefa. Desta forma, cada vez mais ocorreria entre os membros do grupo a

experiência de uma comunicação livre de ruídos e voltada para os objetivos grupais. Assim,

o grupo deve configurar um ECRO de caráter dialético, onde as principais

contradições que se referem ao campo de trabalho devem ser resolvidas durante a

própria tarefa do grupo. Todo ato de conhecimento enriquece o ECRO, que se

realimenta e se mantém flexível ou plástico (não estereotipado). Este aspecto é

observado através de processos de ratificação de condutas ou de retificação de

atitudes estereotipadas (ou distorcidas), mantidas em vigência como guardiãs de

determinadas ideologias ou instituições (PICHON-RIVIÈRE, 1994, p.94)

Este processo de construção de um ECRO grupal implicaria em “um processo de

aprendizagem ao obrigar aos integrantes do grupo uma análise semântica e sistêmica, partindo

sempre das formas vulgares (cotidianas) do conhecimento” (PICHON-RIVIÉRE, 1994,

p.103). Este seria o material de trabalho que os membros trariam ao grupo para atingir seus

objetivos.

1.4.5 ASSUNÇÃO E ADJUDICAÇÃO DE PAPÉIS

Para Pichon-Rivière a estrutura e função de um grupo estão dadas pelo interjogo de

mecanismos de assunção e a adjudicação de papéis, sendo estes representantes de “modelos

de condutas correspondentes à posição dos indivíduos nessa rede de interações ligados às

suas próprias expectativas e às dos demais membros do grupo” (PICHON-RIVIÈRE, 1994,

p.124).

No início do interjogo de papéis entre os membros do grupo, momento característico da pré-

tarefa, os papéis tendem a ser fixos e estereotipados, até que se configure a situação da tarefa

onde os papéis passam a ser funcionais, intercambiáveis e operativos entre os membros da

forma mais eficaz para cada momento da tarefa. Este processo fluido de assunção de papéis é

Page 80: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

79

um aspecto característico de passagem da pré-tarefa para a tarefa. Entre os papéis

desempenhados pelos membros de um grupo operativo merece destaque o de porta-voz. Este

membro do grupo é aquele que num determinado momento diz ou faz algo que denuncia o

aspecto latente do grupo. Diz-se que ao enunciar o porta-voz denuncia. Isto significa que o

porta-voz diz de algo que vive como próprio, mas que “subliminarmente, percebe algo que

acontece no grupo e pode expressá-lo, porque, devido à sua história pessoal encontra-se mais

perto que os demais da referida cena. Ele denuncia no acontecer grupal, as fantasias,

ansiedades e necessidades do grupo” (BERSNTEIN, 1986, p.111-112). Percebe-se assim a

importância do porta-voz para a execução da tarefa. Ao enunciar sua ansiedade como eco da

ansiedade grupal torna-se possível no grupo a emergência das fantasias grupais e das

dificuldades na execução da tarefa. O aspecto individual da história do porta-voz (bem como

de todos os outros membros) caracteriza a verticalidade do grupo. O que deste enunciado no

grupo assume o caráter de compartilhado pelos outros membros constitui a horizontalidade

do grupo. Estes dois vetores se entrelaçam no falar grupal. O porta-voz, em sua fala,

apresenta a síntese no aqui e no agora do grupo com a tarefa. A interpretação do coordenador

se dá sobre estas duas dimensões (horizontal e vertical). Ao assinalar os aspectos individuais

e motivacionais do porta-voz, sua interpretação desoculta o acontecer implícito grupal. Outro

importante papel desempenhado no Grupo Operativo é o de líder. Um membro assume este

papel quando são depositados sobre eles os aspectos bons do grupo. Assim, ele ocupa o lugar

de um líder funcional do grupo em relação ao fazer grupal. Por suas falas e posicionamentos

ele tem no grupo um lugar organizador e de amparo para os outros membros. A relação do

coordenador com este líder deve ser de respeito e abertura, cabendo a ele perceber estes

líderes funcionais como uma produção positiva do grupo. Para mim, o líder é a expressão

criativa do grupo e sinal de sua responsabilidade para com a tarefa grupal. Também é comum

que sobre um dos membros do grupo sejam depositados o aspecto negativo em relação à

tarefa, bem como os medos em relação à mudança. Através de um acordo tácito destina-se ao

bode expiatório o lugar de depósito das ansiedades e fantasias grupais negativas. Ao

coordenador cabe perceber através da fala destes membros como o grupo está lidando com as

ansiedades dificultadoras da tarefa. Assim, a análise deste membro funciona como um bom

termômetro para o grupo. Entre o papel do líder e o do bode-expiatório existe uma ligação,

visto que, através da existência de um, o outro é preservado em um processo de dissociação

ou splitting necessário ao grupo em sua tarefa de discriminação. Por fim, o sabotador seria o

membro que em determinado momento do fazer grupal é o depositário da liderança

Page 81: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

80

dificultadora na execução da tarefa. Pode-se ver o sabotador como o membro representante

dos estereótipos grupais. Assim, “em um grupo sadio, verdadeiramente operativo e aberto à

comunicação, em pleno processo de aprendizagem social, em relação dialética com o meio,

os papéis são desempenhados de acordo com as leis da complementaridade” (PICHON-

RIVIÈRE, 1994, p.53). Por outro lado, quando o jogo de assunção de papéis ocorre de forma

suplementar, o grupo é invadido por competições que tiram o foco da tarefa.

1.4.6 O MODELO DO CONE INVERTIDO – VETORES DE AVALIAÇÃO DOS

PROCESSOS GRUPAIS

Aliada à interpretação do interjogo de papéis entre os membros do grupo, Pichon-Rivière

registrou, a partir de suas observações das situações grupais, “um conjunto de processos

relacionados entre si, que permitem, por sua reiteração, considerá-los como fenômenos

universais de todo grupo, em sua estrutura e dinâmica.” (PICHON-RIVIÈRE, 1994, p.43).

Partindo desta constatação ele elaborou um esquema gráfico para representar a dinâmica entre

o explícito e o implícito presente na dinâmica dos processos grupais, conhecido como cone

invertido. Na base do cone localizam-se os conteúdos explícitos, manifestos pela fala do

porta-voz. Ele é mais largo podendo abranger justamente toda a produção visível e audível do

grupo. É o substrato de trabalho do coordenador. No vértice do cone, mais estreito, estão

presentes os conteúdos implícitos, ou as situações básicas, os universais.12A espiral

perpassando o cone representa o movimento dialético de indagação e esclarecimento que vai

do conteúdo explícito ao conteúdo implícito. Este processo de tornar explícito o implícito é a

descrição da interpretação do coordenador do material trazido pelo grupo pela boca do porta-

voz. A interpretação neste esquema do cone invertido segue o movimento existente-

interpretação-emergente. Sendo o emergente o que confirme ou afaste a exatidão da

interpretação. Todo esse movimento visa à produção de novos emergentes que permitam ao

grupo progredir em sua tarefa. O critério para avaliar a correção de uma hipótese

interpretativa é o de operatividade, ou seja, aparição de um novo emergente que permita

superar no grupo a estereotipia e conquistar novos modos de se comunicar e aprender.

12Os universais seriam os medos básicos de perda e de ataque, o medo da mudança e a resistência à mudança,

um sentimento básico de insegurança, os processos de aprendizagem e de comunicação, as fantasias básicas de

doença, tratamento e de cura (PICHON-RIVIÈRE, 1994, p.44,45).

Page 82: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

81

Na figura a seguir, elaborada por Medeiros e Ribeiro (1999), pode-se observar a

representação dos conteúdos manifestos e latentes bem como dos vetores a serem analisados

representados como: pertenência (pertença), afiliação, pertinência, cooperação,

comunicação, aprendizagem e tele. Estes vetores são úteis ao coordenador para que se possa

avaliar o processo em que o conjunto de membros do grupo vai se tornando um Grupo

Operativo através da forma como eles estariam agindo em relação à tarefa. 13

A pertença, a afiliação, a cooperação e a pertinência são vetores guias para avaliar a relação

dos membros com o grupo e com a tarefa. A filiação de um membro ao grupo se dá pelo

coeficiente de sua vinculação ao grupo. É o primeiro momento onde o sujeito aceita pertencer

a determinado grupo constituído para tarefa. A pertença já seria um segundo momento,

quando a tarefa passa a não ser vista mais como do grupo, mas do sujeito, é o assumir a tarefa

do grupo como sua com todas as conseqüências desta escolha. Na dinâmica grupal, ela pode

ser medida em relação à presença no grupo, à pontualidade e às intervenções. A cooperação

de um grupo diz da relação de cada membro para com os outros objetivando a execução da

tarefa. Em uma boa imagem de Baremblitt (1994), a cooperação “se vê na justiça dos passes,

na exatidão das jogadas gerais” (BAREMBLITT, 1994, p.196).

A pertinência, por sua vez, refere-se à relação do membro do grupo com a tarefa, ser

pertinente em um grupo diz da coerência com a tarefa grupal. Ela é possibilitada pela pré-

existência dos outros três vetores descritos acima. O sabotador seria avaliado negativamente

nesse vetor. Um grupo ainda em pré-tarefa estaria com um grau baixo de pertinência em

relação à tarefa. Da mesma forma, podemos dizer que o líder e o porta-voz seriam membros

avaliados positivamente nos vetores afiliação e pertença. Ao compartilhar sua história

individual o porta-voz está demonstrando um grau de confiança no grupo, possível para um

sujeito que se sente pertencente/ afiliado a esse mesmo grupo. Por sua vez o vetor

aprendizagem está estreitamente ligado ao vetor comunicação e a avaliação deles se dá de

forma articulada. A aprendizagem relaciona-se também com o critério de adaptação ativa à

13

A partir desta colocação surge a pergunta sobre a qual grupo Pichon-Rivière estaria se referindo (ao número

dos membros empíricos que constituem o grupo ou a toda a grupalidade (família, classe social, fantasmas

grupais) da qual o grupo é expressão). Segundo Baremblitt, a insistência de Pichon-Rivière “sobre os problemas

sobre a ideologia e sua expressão na vida cotidiana nos faz pensar a favor desta segunda hipótese”

(BAREMBLITT, 1994, p. 195). Segundo este autor, Pichon-Rivière insistia na colocação de que “a avaliação

que surge destes vetores é sempre grupal, já que a avaliação individual só poderia ser explicada em função de

toda a dinâmica grupal que a determina” (BAREMBLITT, 1994, p.195).

Page 83: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

82

realidade e com a capacidade do grupo e de cada um de seus membros de desenvolver

condutas alternativas diante dos obstáculos, ou seja, aprendizagem como a quebra de

estereotipias.

Figura 02: Cone invertido: representando os conteúdos manifestos e latentes e os vetores

A comunicação é um vetor de extrema importância para a avaliação de um grupo. A forma

como a comunicação se apresenta em um grupo é um reflexo claro de todos os outros vetores

e da forma como os membros do grupo se relacionam. Um grupo em fase de pré-tarefa, por

exemplo, apresentaria uma comunicação constantemente dilemática, entrecortada por

ambiguidades. À medida que a comunicação no grupo é facilitada pelo coordenador,

voltando-se para a realização da tarefa, aprendizagem e mudança dos membros do grupo, ela

tende a assumir o aspecto de uma espiral dialética, onde a cada resposta, surge um novo

questionamento. A comunicação em grupo que se perde em repetições e em situações

dilemáticas torna-se estagnada impedindo o grupo de levar a execução da tarefa a termo.

As dificuldades na comunicação e na aprendizagem na teoria pichoniana estariam vinculadas

à fixação em uma fase libidinal anterior mal sucedida. Assim, a resistência à mudança no

fazer grupal levaria o indivíduo a repetir atitudes desta fase que assim impossibilitariam sua

continuação da tarefa. A repetição seria provocada, então, por dificuldades de aprendizagem e

na comunicação que impossibilitam a elaboração de estratégias adequadas ao desempenho da

tarefa.

Page 84: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

83

O vetor tele é uma das contribuições da sociometria de Moreno para a teoria pichoniana. O

vetor tele pode ser entendido como o termômetro do clima afetivo do grupo. Desta forma,

está claramente relacionada com a boa execução da tarefa. É mais provável que um grupo

consiga operar estando sob um bom clima afetivo do que em um clima de desarmonia ou

disputa.

A avaliação destes vetores não é um objetivo em si para o coordenador. Para mim, este

instrumento de avaliação é mais um elemento guia para o coordenador na execução de seu

papel. A partir de constantes momentos de avaliação destes vetores o coordenador poderá

entender em que momento os membros do grupo estão. Este processo de avaliação da

interação grupal seria como a leitura de um mapa para o coordenador que parte com o grupo

da pré-tarefa para constituir um projeto grupal.

1.4.7 FUNÇÕES DA EQUIPE DE COORDENAÇÃO

Para Baremblitt (1994) a intervenção de um coordenador de Grupo Operativo se limita a

sinalizar as dificuldades que impedem ao grupo de realizar a tarefa. Para isto ele dispõe “de

um ECRO a partir do qual tentará decifrar essas dificuldades e (...) irá propondo ao grupo

hipóteses que lhe permitam tomar-se a si mesmo como objeto de estudo e ir revelando as

dificuldades que aparecem na comunicação e na aprendizagem” (BAREMBLITT, 1994,

p.200). Por outro lado, este autor alerta que não cabe ao coordenador “responder às questões,

mas (para) ajudar o grupo a formular aquelas que permitirão o enfrentamento dos medos

básicos. Seu instrumento é a sinalização das situações manifestas e a interpretação da

causalidade subjacente” (BAREMBLITT, 1994, p.200).

A equipe de coordenação de um Grupo Operativo é composta pelo coordenador e por um

observador. A existência do observador é um diferencial desta proposta de coordenação

grupal. A sua função é basicamente se ocupar da observação silenciosa e da anotação de todo

material expresso de forma verbal e não verbal pelo grupo em todos os diferentes momentos

grupais. A sua presença funciona como uma tela de projeção por sua característica silenciosa.

Pode também ser utilizado pelo coordenador em momentos limites onde a comunicação

estereotipada e dilemática ameacem o grupo. O material coletado pelo observador sobre cada

Page 85: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

84

sessão auxilia a equipe de coordenação a conseguir uma maior compreensão do grupo entre

as sessões (PICHON-RIVIÈRE, 1994; BAREMBLITT, 1994).

Uma das regras de ouro desta coordenação é não assumir uma função que possa ser realizada

por outro membro do grupo. O coordenador é visto como co-pensor por pensar junto com o

grupo a relação dos membros entre si e com a tarefa. O coordenador guia-se pelo respeito

pelos membros do grupo, mas sem colocar-se como igual. Ele é como um juiz de futebol

sempre atento aos passes entre os jogadores, mas sem participar diretamente do jogo. A sua

linguagem baseia-se na metalinguagem e na interpretação, servindo-se desta para a pontuação

do texto da discussão livre entre os membros do grupo, dando-lhe sentido e promovendo

mudança. Assim, facilitar a comunicação entre os membros do grupo, evitando posições

conflituosas e dicotômicas, é o foco de atuação do coordenador para que cada

membro/jogador possa contribuir para o bom andamento do grupo/jogo.

1.4.8 UTILIZAÇÕES DO GRUPO OPERATIVO

Sobre estes pilares conceituais a proposta de trabalho com Grupos Operativos foi amplamente

difundida fora da Argentina e, coerentemente com o proposto por Pichon-Rivière, adotada

com os mais variados públicos e objetivos. Em um relato de experiência sobre a utilização da

técnica do Grupo Operativo, no final da década de 60, Pichon-Rivière (1994) diz que naquela

época “as técnicas operativas são utilizadas não só na formação de psicólogos, mas também

na criação publicitária, no trabalho institucional, na formação de líderes, no estudo da direção

e interpretação teatral” (PICHON-RIVIÈRE, 1994, p.130).

Abduch (1999) também afirma que os grupos operativos podem ser utilizados nos mais

“diversos contextos com adolescentes, familiares, grupo de terceira idade, grupos de

trabalhos, grupos de egressos, de pais, teatrais, esportivos, drogadictos desde que seus

integrantes estejam centrados na tarefa” (1999). Luchese (2007), por sua vez, defende o uso

do Grupo Operativo na assistência da enfermagem, no ensino e na pesquisa como uma

técnica de coleta de dados em pesquisas qualitativas.

Page 86: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

85

No contexto brasileiro, as áreas da saúde e da educação têm recorrido eventualmente a essa

proposta de trabalho com grupos. Na área da saúde, encontramos, por exemplo, trabalhos

sobre a utilização desta técnica com os seguintes grupos:

-adolescentes na discussão sobre as sexualidades (PROFESSIORI, 2004);

-portadores HIV/AIDS (GUIMARÃES, 2005);

-gestantes adolescentes (ELIAS, 2003);

-diabéticos com caráter educativo (SANTOS, 2007);

-equipes de profissionais de Programa da Saúde da Família/ PSF (MATUMOTO et. al. 2005),

-com equipes de instituição pública de saúde (HUR; OLIVEIRA; KODA, 2008);

-com pacientes psiquiátricos em:- CAPS (MARRUTTI, G. A e col, 2008); hospital geral

como grupo terapêutico (MOREIRA; CIPPA; ZUARDI, 2002) e em enfermarias

(HUMEREZ, D.C e col, 2000);

-homens que fazem sexo com homens na prevenção do HIV (COLOSIO e col, 2007);

-tabagista como suporte psicológico no tratamento do tabagismo (KREISCHE, 2005);

mulheres portadoras de patologias ginecológicas e mastectomizadas (SILVA, 2009) e

pacientes internados em comunidades terapêuticas (FERNANDES, 2003).

Na educação o grupo operativo tem sido utilizado, por exemplo, com professores/as:

-com Síndrome de Burnout (BOCK; SARRIERA, 2006);

-de escolas para portadores de necessidades especiais (DAL FORNO, 2006);

Como metodologia de ensino na:

-Psicologia Social (AZERÊDO; SANTANA, 1998, AZERÊDO; 1999);

-Enfermagem (LUCHESE; BARROS, 2002);

Como método de pesquisa no estudo do processo de colaboração, reflexão e aprendizagem

entre professores em formação inicial e uma formadora de professores iniciantes (ARAÚJO,

2004).

A partir desta amostra da produção brasileira sobre a utilização do Grupo Operativo pode-se

perceber sua aplicabilidade com variados públicos-alvo e com vários objetivos diferenciados,

o que coaduna com a proposta de Pichon-Rivière. O Grupo Operativo utilizado na Educação

Page 87: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

86

como uma didática de ensino e como método de coleta de dados em pesquisas qualitativas

demonstra uma convergência com a discussão de Pichon-Rivière sobre o processo de

aprendizagem-ensino, sobre a relação entre aluno-professor/professor-supervisor e

pesquisadores-participantes de pesquisa. Neste contexto, qualquer um destes pares é

compreendido com uma unidade de trabalho não dicotômica onde razão, ação e sentimento

não são dissociados. Estes trabalhos, cada um com seu mérito, são exemplos de práxis, onde a

pesquisa e ação se relacionam para a construção do conhecimento.

A utilização do grupo operativo na área da Saúde, especialmente na Enfermagem segundo os

trabalhos relatados, vale-se da possibilidade de em um grupo deste tipo voltar-se para um

tema/tarefa e sobre ele operar, ensinar a pensar, construir estratégias. A utilização do grupo

como reflexivo, de aprendizagem ou terapêutico é coerente com a proposição de Pichon-

Rivière de que aprender é sempre terapêutico. Como resultados positivos relatados de

utilização do Grupo Operativo com estes objetivos destacam-se a melhora significativa: no

vínculo entre os participantes, na resolutividade do grupo sobre a tarefa, na utilização do

grupo como local de expressão de sentimentos e de idéias e de construção de propostas para o

futuro. Acredito que quando se consegue apropriar do caráter educativo do Grupo Operativo

indo além do repasse de informações é que esta técnica é mais bem aplicada. O risco de se

resumir o grupo a um ambiente de repasse de informações pelo coordenador deve ser uma

preocupação constante. O grande diferencial desta proposta de atendimento em grupo é

justamente a não dissociação dos aspectos afetivos, comportamentais e cognitivos. Assim,

para mim, o mérito da opção por esta técnica se vincula a capacidade de se conseguir a

apropriação da dinâmica como um conjunto ensino-aprendizagem-mudança. Como afirma

Pichon-Rivière (1994) “as técnicas de grupo operativo sejam quais forem seus objetivos

propostos tem como finalidade que seus integrantes aprendam a pensar em uma co-

participação do objeto de conhecimento, entendendo-se que pensamento e conhecimento não

são fatos individuais, mas produções sociais” (PICHON-RIVIÈRE, 1994, p.179). Entendo

que esta visão mais ampla da técnica é que imprime um caráter revolucionário e emocionante

no fazer grupal.

Vale ressaltar a opção da escolha do Grupo Operativo como método de coleta de dados em

pesquisas qualitativas. Segundo Luchese e Barros (2007), esta utilização do grupo operativo

vem se desvelando “como uma técnica que vai além da coleta de dados, visto que,

Page 88: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

87

proporciona trocas vivenciais entre os sujeitos pesquisados, possibilitando a revisitação e

reflexão do cotidiano, exteriorização de sentimentos latentes, apropriação e reconstrução da

realidade” (LUCHESE; BARROS, 2007, p.797).

Assim, percebe-se que a escolha por este método diz de uma compreensão do processo de

coleta de dados, da relação entre pesquisador e objeto de pesquisa e do próprio desenho do

processo de pesquisar. Em uma pesquisa com este viés a própria coleta de dados já é um

momento de intervenção na realidade e de construção/reconstrução do objeto/objetivos do

estudo. A dinamicidade e a plasticidade na delimitação das funções do pesquisador são um

diferencial, pois ele pode ser o coordenador ou o observador do Grupo Operativo de seu

estudo, ou utilizar-se de um grupo já constituído. Assim, ocorre uma ampliação das

responsabilidades do pesquisador que além de se preocupar com os aspectos metodológicos

de sua pesquisa pode se guiar pelos recursos de um coordenador de Grupo Operativo. Esta

escolha metodológica aponta para um posicionamento do pesquisador como participante ativo

no par pesquisador-sujeito da pesquisa. Para mim, a preocupação de apreensão da realidade a

partir da dinâmica entre pares complementares é um dos aspectos mais significativos da

teoria pichoniana que contribui com dinamicidade para o entendimento dos fenômenos. Por

fim, devemos admitir que apesar de encontrarmos relatos de utilização de técnicas grupais

com mulheres em situação de violência (tanto como método de pesquisa ou como esquema

terapêutico), a minoria, se baseava na teoria e técnica do Grupo Operativo. Como exemplos

desta utilização com este público foram encontrados relatos de sua aplicação como método de

pesquisa na Delegacia Especializada de Crimes contra as Mulheres de Belo Horizonte

(AZERÊDO, 2001, 2004, 2007) e como esquema terapêutico no Centro de Referência de

Atendimento a Mulheres em Situação de Violência de Contagem/MG (PMC)-Espaço Bem-

Me- Quero (OLIVEIRA, 2008; AZERÊDO, 2001).

Neste trabalho, observa-se a utilização do Grupo Operativo como método de coleta de dados

aliada ao suporte terapêutico para mulheres sobreviventes à violência de gênero. Considero

que esta forma de utilização pode ser profícua tanto por dar mais dinamicidade ao desenho da

pesquisa como pela possibilidade de que as sobreviventes à violência de gênero possam se

debruçar sobre sua situação a partir de um enfoque grupal. Acredito que o enfrentamento a

esta problemática como uma tarefa a ser realizada em grupo potencializa os processos de

mudança nos Ciclos de Enfrentamento à Violência iniciados pelas sobreviventes que aceitam

Page 89: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

88

o convite de participar do Grupo. A acolhida, a possibilidade de aprendizagem e de

negociação de estratégias e sentidos para a violência sofrida e seu enfrentamento seriam

aspectos a serem apontados como diferenciadores e reforçadores neste processo.

Page 90: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

89

2 OBJETIVOS

2.1 Objetivo Geral

Investigar o processo de enfrentamento à violência de gênero em um Grupo Operativo

com mulheres sobreviventes à violência de gênero.

2.2 Objetivos Específicos

Descrever e analisar a construção/reconstrução dos sentidos da violência para as

mulheres sobreviventes à violência de gênero, observando o processo de negociação

deste sentido durante a sua participação em grupos operativos;

Descrever e analisar se e como os sentidos da violência de gênero podem possibilitar a

construção coletiva de estratégias para o fim do ciclo de violência;

Investigar se e como a participação no grupo atua para o questionamento da matriz

hegemônica de gênero e para a transformação das relações de gênero na vida das

mulheres;

Descrever e analisar as práticas institucionais, a partir dos relatos das mulheres em

suas trajetórias de sobreviventes à violência de gênero, realizadas na Rede de

Enfrentamento à Violência de Contagem/MG.

Page 91: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

90

3 MÉTODO

Os dados não são coletados, mas produzidos

(Tim May).

A prática é um conjunto de revezamentos de uma teoria a outra

e a teoria um revezamento de uma prática à outra. Nenhuma

teoria pode se desenvolver sem encontrar uma espécie de muro

e é preciso a prática para atravessar o muro (Gilles Deleuze).

A fim de compreender o processo de enfrentamento à violência de gênero por mulheres

sobreviventes deste tipo de violência a partir da participação em um Grupo Operativo adotei

uma metodologia voltada, principalmente, para a apreensão do conteúdo das sessões grupais.

A análise ocorreu a partir de várias leituras do material guiadas pelos temas/objetivos do

projeto, mas também pelo interesse na própria dinâmica possibilitada pelo atendimento em

grupo.

3.1 Campo da pesquisa

A instituição escolhida para a realização desta pesquisa foi o Centro de Referência de

Atendimento à Mulher em Situação de Violência de Contagem/MG (PMC), Espaço Bem-Me-

Quero. Este serviço tem como público alvo mulheres em situação de violência doméstica,

residentes na cidade de Contagem/MG, encaminhadas por outras instituições públicas pertencentes

ou não à Rede de Enfrentamento à Violência ou que procuram o serviço espontaneamente. O

Espaço Bem-Me-Quero oferece atendimento interdisciplinar através de uma equipe composta por

psicóloga, advogada e assistente social com o objetivo último de promoção da ruptura da situação

de violência. O atendimento psicológico é oferecido na modalidade individual ou em grupo,

segundo o interesse das mulheres e a percepção da necessidade pela equipe técnica. A definição da

forma de atendimento é discutida entre a mulher e a psicóloga, respeitando sempre os interesses da

mulher e os objetivos da instituição.

3.2 Objeto de estudo

O objeto de estudo desta pesquisa é o Grupo de Psicologia ofertado pela instituição que foi

implantado por mim em março de 2008 e que ainda vem sendo realizado. As sessões são realizadas

Page 92: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

91

uma vez por semana com uma duração média de uma hora e trinta minutos e com a participação de,

aproximadamente, seis mulheres em cada sessão. A coordenação das sessões é sempre realizada por

mim e por uma estagiária de Psicologia, cumprindo o papel de observadora, seguindo a metodologia

dos grupos operativos desenvolvida por Enrique Pichon-Rivière.

3.3 Sujeitos da pesquisa

Participaram desta pesquisa quatorze mulheres que frequentaram as sessões do Grupo de Psicologia

do Espaço Bem-Me-Quero durante o período em que se realizou a pesquisa (julho/agosto de 2009).

Optou-se por apresentar as informações relativas às participantes da pesquisa através da

elaboração de três tabelas intituladas: 1- Dados sócio-econômicos das mulheres sobreviventes à

violência de gênero (ANEXO 01), 2 - Trajetória afetiva das mulheres sobreviventes à violência de

gênero (ANEXO 02) e 3 - Trajetória das mulheres sobreviventes à violência de gênero na Rede de

Enfrentamento à Violênica de Contagem/MG (ANEXO 03).

3.4 Procedimento de coleta de dados

Com o objetivo de registrar a história do Grupo e facilitar a condução e análise pela equipe de

coordenação, algumas sessões do Grupo foram gravadas. Dentre estas sessões, foram selecionadas

cinco para material de análise desta pesquisa. As sessões selecionadas se destacaram no conjunto

das gravações pela riquaeza de dados referentes aos objetivos desta pesquisa e pela possibilidade de

observação da dinâmica das sessões do Grupo. Para a utilização destas sessões como material de

pesquisa foi solicitada permissão à Coordenadoria Especial de Políticas para Mulheres

(CEPOM/PMC) e à Secretaria de Direitos e Cidadania/PMC (ANEXO 04), órgãos aos quais o

Espaço Bem- Me-Quero está vinculado. Ressaltamos ainda que este projeto foi aprovado pelo

Comitê de Ética da Universidade Federal de Minas Gerais sob o número 314/09 e que todos

os procedimentos éticos foram respeitados sendo os nomes das participantes alterados para se

manter a segurança e privacidade das mesmas. Além disso, todas as participantes das referidas

sessões foram contactas para permitir a utilização do material, tendo sifo assinado por cada uma o

Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (ANEXO 05).

Page 93: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

92

3.5 Análise dos dados

O processo de análise iniciou-se pela escolha das sessões a serem utilizadas nesta pesquisa.

Este processo foi importante por permitir uma escuta da produção do Grupo guiada pelos

objetivos desta pesquisa. Esta escuta foi interessante por possibilitar que eu me escutasse

como coordenadora do Grupo, pois, neste caso, meus posicionamentos também seriam

analisados. Esta, no mínimo, minha dupla vinculação também era mais um aspecto a ser

analisado, guiado pelas referências teóricas desta pesquisa (feminista/grupo operativo). Foi

selecionada uma sequência de sete sessões, sendo que, dentre estas, duas não foram

analisadas. A primeira (sessão de 29 de julho de 2009) por ter sido uma sessão de exibição de

filme e a outra (sessão de 05 de agosto de 2009) devido à baixa qualidade da gravação do som

e à ausência da observadora. É interessante, porém, observar que a forma como esta análise

foi desenhada, guiada pelo processo do próprio Grupo, faz com que a dinâmica destas sessões

também seja referência para a análise (a constante referência ao filme nas sessões utilizadas e

a alteração da dinâmica de coordenação pela ausência da observadora). Desta forma, no

desenho desta análise interessa todos os processos que envolvem as sessões do Grupo, tanto

institucionais quanto da história do Grupo e das participantes neste serviço e na instituição.

Assim, as sessões são localizadas nestas trajetórias e isto é um ponto muito importante da

análise por possibilitar que o conhecimento produzido não assuma o aspecto de um recorte,

mas, na medida do possível, procure apresentar as interconexões presentes no Grupo.

As sessões selecionadas foram transcritas na íntegra e após este primeiro momento foi

realizada nova leitura do material juntamente com a escuta das gravações, buscando-se

registrar silêncios, sobreposições de falas, tom das vozes e interrupções internas e externas

das sessões. Este primeiro momento foi importante por permitir uma escuta voltada para a

busca da relação entre a fala e a percepção da expressão de sentimentos pelas participantes e a

percepção da tele do Grupo.

Optou-se, nesse trabalho, por uma variação da análise de conteúdo clássica (FRANCO, 2003;

VALA, 2003), privilegiando-se, mais do que a frequencia, a co-ocorrência dos elementos de

interesse (temas e vetores) em um mesmo segmento da sessão.

Page 94: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

93

Assim, nova leitura foi realizada buscando-se perceber os temas recorrentes discutidos nas

sessões bem como a sequência seguida neste processo, indiferente dos objetivos da pesquisa.

Eles foram apontados junto das partes referentes da transcrição da sessão inteira, a partir de

um quadro simplificado com apenas duas linhas de análise: uma relacionando partes da

transcrição a conteúdos teóricos e outra elencando temas variados e comentários variados

sobre a sessão (ANEXO 06). O interesse neste processo mais amplo é perceber a dinâmica de

apresentação de temas pelas participantes e pela coordenadora. Este aspecto é interessante por

possibilitar elencar os temas discutidos pelas participantes para, depois, contrastá-los com os

objetivos da pesquisa.

Continuando o processo de análise, foi elaborado um segundo quadro com eixos construídos a

partir de conteúdos/temas pré-selecionados a partir do primeiro quadro e da leitura das

sessões. A partir destes conteúdos foram criadas as linhas: estratégias, sentimentos, Grupo

fala, comunicação, converge x diverge, com trechos exemplificando os conteúdos. Para além

dos temas diretamente relacionados aos objetivos da pesquisa (estratégias e comunicação) se

construiu um eixo complementar com os sentimentos apresentados pelas mulheres, o que

possibilitou relacioná-los a temas que os desencadearam e aos eixos intitulados

“convergência” e “divergência”. Esses eixos de análise possibilitaram a visualização do

processo de negociação de sentidos entre as participantes, segundo os objetivos da pesquisa,

bem como a tele do Grupo (ANEXO 07).

A partir da visualização dos quadros construídos para todas as sessões, foi elaborado um

relato de cada sessão orientado pelas percepções possibilitadas durante todo o processo de

construção dos quadros e das sucessivas leituras/escutas das sessões. A intenção destes relatos

é apresentar uma narrativa das sessões a partir dos objetivos propostos. Assim, além do seu

aspecto descritivo estas narrativas já são produtos da análise dos dados. Os dados foram

organizados, a partir dos objetivos da pesquisa, privilegiando uma apresentação que pudesse

facilitar a compreensão dos resultados e o acompanhamento da discussão.

Page 95: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

94

4 RESULTADOS

4.1 UM POUCO DA NOSSA HISTÓRIA

A história deste Grupo começa com uma adaptação forçada de tema e com uma grande

aposta emocional na proposta de se discutir a temática do enfrentamento à violência de

gênero em grupo. Enfim, como uma grande surpresa...

O primeiro encontro (que não era encontro) aconteceu em um evento para a comemoração do

Mês de Março de 2008 acordado pelo Espaço Bem-Me-Quero com o Programa Municipal de

DST/AIDS da Prefeitura de Contagem/PMC (onde eu trabalhava anteriormente). Foi

sugerido que se realizasse uma oficina sobre sexualidade focalizando a prevenção as

DST/AIDS com mulheres atendidas pelo Espaço Bem-Me-Quero. A dinâmica deste encontro

foi construída e desenvolvida por mim e por Sâmia Grasinoli Alves (psicóloga do Programa).

Apresentamos como proposta de tarefa a construção, em grupo, de cartazes sobre a

sexualidade feminina utilizando-se de palavras chaves apresentadas por nós (como tesão,

AIDS, amor, sexo, carinho, entre outras) e de recortes de revistas. As mulheres rapidamente

começaram a produzir, mas qual não foi a surpresa quando começaram a falar. Elas falaram

da violência vivida em casa, dos sonhos de amor romântico não correspondido, da descrença

e desilusão com o casamento e também da vontade e esperança de que seus casamentos

seguissem os caminhos sonhados anteriormente; sutilmente falaram de sexo e nada sobre as

DST/AIDS. Ou seja, nossa proposta foi desconstruída e reconstruída por elas. As palavras

sugeridas por nós foram utilizadas para falar do que era emergencial para elas; uma vida

onde a violência disputava espaço com os sonhos de um casamento feliz. Quando a primeira

mulher falou: “Sexo tem tanto tempo que eu não faço isto... Nem lembro...” Sâmia me

cutucou e falou “Não tinha nada a ver realmente a gente vir falar disto, temos que ouvir o

que elas querem...” E aí deixamos fluir e foi muito produtivo e emocionante. Ao final do

encontro, percebendo a animação e o entrosamento entre as mulheres, eu decidi propor um

grupo semanal no Espaço Bem- Me- Quero para que pudéssemos continuar discutindo as

questões iniciadas naquele encontro. Elas concordaram com a idéia imediatamente. Ao lado

da disputa entre a violência e o amor havia a necessidade de se falar sobre esta situação e de

ser ouvida e acolhida. Assim começou o nosso Grupo no dia 10 de março de 2008, com o

aceite de onze mulheres. Após este primeiro encontro outras mulheres foram convidadas e

Page 96: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

95

um grande número reafirmou o aceite inicial. A importância deste aceite se deve a forma

como foi pensado o enquadre para este Grupo: aberto e de livre participação, ou seja, sem

obrigatoriedade de presença ou com número de sessões pré-determinado para participação.

As mulheres convidadas, primeiramente, passam por um momento de acolhida e

encaminhamento realizado pela equipe técnica da instituição (atualmente eu e/ou a advogada).

Conforme o interesse da mulher e/ou a percepção da necessidade pelas técnicas, a mulher é

encaminhada para um atendimento psicológico individual realizado por mim. O convite para o

Grupo ocorre nestes primeiros atendimentos psicológicos sendo sempre oferecida à mulher a

oportunidade de escolher entre a continuidade do atendimento psicológico individual ou pela

proposta em grupo. Neste momento eu apresento a dinâmica, horários e o objetivo do Grupo de

partilha de experiência e de construção coletiva de estratégias para a situação de violência. Deixo

claro que é um momento de trocas onde, por mais que a situação de uma participante seja

aparentemente sem saída e ela se mostre muito fragilizada, ainda assim, ela pode contribuir. É

interessante frisar a apresentação deste momento como um convite diferenciado de um simples

encaminhamento, pois, faço questão de assegurar que caso ela não se adapte à dinâmica poderá

receber o atendimento psicológico individual comigo. Até o momento, nenhuma mulher que

compareceu ao Grupo escolheu retornar ao atendimento individual, salvo exceção, por causa de

horário de trabalho ou de escola dos filhos. Desta forma, todas as mulheres que permanecem no

Grupo o fazem por opção e pelo aceite da proposta.

Como uma grande vitória deste Grupo, nunca foi marcada uma sessão onde não comparecesse

nenhuma mulher. A única exceção foi quando meu pai faleceu e não foi possível avisá-las.

Algumas das mulheres que compareceram, após receber a notícia foram para a praça próxima

ao Espaço e ficaram conversando por um bom tempo, indo depois ao centro comercial da

cidade juntas. As mulheres que tomaram esta iniciativa são algumas das que participam há

mais tempo no Grupo. Com o passar das sessões e com a chegada de novas mulheres no

Grupo ficou aparente esta distinção tanto para elas quanto para mim. Elas começaram a se

nomear como “veteranas” (Camila, Graça e Cíntia). Na dinâmica grupal este posicionamento

é legitimado por mim quando me refiro a elas como “exemplos” não de mulheres que

resolveram definitivamente a situação de violência, mas como mulheres que estavam

nitidamente percebendo mudanças em si e em seus ciclos de violência, apesar das muitas

dificuldades financeiras, familiares, institucionais, jurídicas, afetivas e emocionais. Elas, por

Page 97: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

96

sua vez, apontam este processo de mudança como consequência direta da acolhida minha e da

instituição e da participação no Grupo.

Desde as primeiras sessões do Grupo, (quando eu ainda estava no início da pós-graduação)

informava constantemente às participantes que, além de psicóloga do Espaço Bem-Me-

Quero, eu estudava na UFMG e que minha pesquisa era sobre como a participação naquele

Grupo às auxiliava no enfrentamento à violência. Ainda hoje, sempre que tenho a

oportunidade de apresentar a proposta do Grupo em seminários ou na pós-graduação

compartilho com elas a receptividade da proposta e divido com elas a responsabilidade e a

vitória por estarmos escrevendo esta nova história para o enfrentamento à violência na cidade

de Contagem. Quando decidi começar a gravar as sessões para poder avaliar o meu trabalho

de coordenadora e também para começar a deixar registrada a história do Grupo também não

houve nenhuma objeção. Inclusive, recentemente uma das mulheres atendidas, percebendo a

minha dificuldade semanal para registrar os dados e conseguir um gravador digital para

gravar as sessões disse que iria me dar um agora que tinha conseguido um emprego. Em

nenhum momento houve vergonha, crítica, dúvida ou negação de participar do Grupo ao

saberem deste, no mínimo, duplo vínculo do Grupo.

Um dos diferenciais oportunizados pela participação no Grupo é um acompanhamento mais

próximo da equipe técnica do Espaço Bem-Me-Quero de toda a trajetória destas mulheres

pelas instituições da Rede de Enfrentamento, ocorrendo se necessário, novos

encaminhamentos e intervenções da instituição. Assim, este Grupo não é fechado em si

mesmo, ele é ponte de diálogo dentro e fora da instituição. Na mesma linha de atuação,

percebendo a grande demanda por parte das mulheres do Grupo paro o setor jurídico, a

advogada do Espaço propôs um Grupo Jurídico (ocorreram quatro sessões até o momento) de

“tira-dúvidas” e discussão da Lei Maria da Penha. Esta proposta é interessante por

potencializar as discussões sobre o enfrentamento à violência de gênero com informações de

cunho jurídico.

Outro aspecto interessante na trajetória das participantes do Grupo é a possibilidade de

participação de eventos e cursos externos. Algumas mulheres do Grupo realizaram cursos

profissionalizantes através de Convênio firmado entre a Coordenadoria Especial de Políticas

para as Mulheres de Contagem (PMC) e a Secretaria de Desenvolvimento Social (PMC).

Page 98: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

97

Outras participantes, devido às peculiaridades de suas histórias, já deram entrevistas para TV,

rádio e televisão e uma delas aceitou participar como único sujeito de uma pesquisa de

graduação sobre história de vida de mulheres em situação de violência. É importante ressaltar

que qualquer proposta ou convite ao Grupo ou às participantes só é posto em prática se elas

concordarem. Em dezembro de 2008, por exemplo, o Grupo foi convidado a participar de um

evento do Programa Municipal de DST/AIDS em comemoração ao dia 01 de dezembro – Dia

Mundial de Luta contra a AIDS. A data, porém, coincidiu com o dia de sessão grupal e elas

preferiram não participar para não ficar uma semana sem se encontrarem, sendo esta decisão

foi acatada. Em dezembro de 2009, por sua vez, o convite foi feito novamente e o evento não

coincidiu com o dia da sessão. Assim, desta vez quatro mulheres compareceram como

representantes do Grupo. Da mesma forma, uma das participantes que já tinha dado uma

entrevista para uma revista foi novamente convidada pela gerência do Espaço Bem-Me-Quero

para uma nova entrevista. A princípio ela concordou e depois ligou desmarcando, o que foi

acatado sem questionamentos. Em conversa posterior ela me disse como fez bem para ela

dizer não naquele momento, pois na verdade, ela não queria expor sua história novamente e

“ter que ler que a história de sua vida era aquilo”. Desta forma, procuramos sempre respeitar

o direito ao sigilo e privacidade das mulheres.

Um evento marcante ocorreu em março de 2009 quando o Grupo foi, pela primeira vez,

convidado para o tradicional “Café da manhã com a Prefeita” em comemoração ao dia 08 de

março/Dia Internacional das Mulheres. Para esta ocasião, como há muito desejado por elas,

foram confeccionadas pela Coordenadoria Especial de Políticas para Mulheres

(CEPOM/PMC) camisas especiais (ANEXO 08) para este dia. Antes disto, elas sempre se

remetiam ao desejo de ter esta marca do Grupo para mostrar fora do Espaço. Pensaram até em

pagar pela confecção das camisas, mas, como é um serviço oferecido pela Prefeitura, a sua

publicidade tem que ser aprovada pela equipe de Comunicação Social da Prefeitura. Na

camisa ficou escrito “Grupo de Mulheres” com as logomarcas da Prefeitura logo abaixo. O

Grupo ainda não tem “um nome”, mas pode-se dizer que já tem uma localização política e

histórica na cidade e na instituição Assim, compareceram a este evento político de grande

porte como representantes do Espaço Bem-Quero e do Grupo 12 mulheres. Uma delas,

inclusive, entregou uma carta nas mãos da Prefeita agradecendo o atendimento recebido no

Grupo e no Espaço e falando do seu desejo de conseguir um emprego. Em novembro de 2009,

como mais uma forma de compartilhar informações sobre o enfrentamento à violência de

Page 99: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

98

gênero, o Grupo foi convidado para participar do “IV Seminário da Rede de Enfrentamento à

Violência”, a ser realizado em Contagem. Quatro mulheres se inscreveram e tiveram a

oportunidade de se inteirar da discussão realizada por outros atores sociais e instituições sobre

o enfrentamento da violência.

Para além destes eventos externos, também são marcantes as sessões de fechamento de

semestre para as quais são convidadas todas as mulheres que frequentaram o Grupo durante o

semestre. Esta é uma forma de revê-las, obter notícias e reafirmar o convite inicial para

participarem do Grupo. É um momento festivo e de reflexão onde, geralmente, fazemos uma

avaliação do andamento do Grupo e delas neste processo, tiramos fotos e são utilizados meios

alternativos como mensagens e slides para auxiliar as discussões. Nos encontros de final de

ano de 2008 e 2009 foi realizado um amigo oculto, por sugestão das participantes, onde nos

organizamos de forma que todas trouxessem de casa um brinde e um lanche para ser

compartilhado. Considero que a possibilidade de reencontrar as outras participantes e de

(re)pensar a trajetória grupal e individual do último semestre importante para a história do

Grupo e das participantes neste processo reafirmando a responsabilidade delas com a proposta

e nossa com as trajetórias de cada uma.

Continuando a história, em 10 de março de 2010, foi comemorado o segundo aniversário do

Grupo com a participação de 22 mulheres. Este evento foi incluído na programação oficial do

mês de março da prefeitura de Contagem. Nesta ocasião também ocorreu o lançamento do

“Programa de Formação em Gênero” pela CEPOM/PMC que tem como objetivo oferecer

capacitação na temática de gênero para as mulheres atendidas pelo Espaço Bem-Me-Quero.

Novamente fomos convidadas para comparecer ao “Café da Manhã com a Prefeita” no dia 12

de março de 2010, onde, desta vez, o Grupo foi formalmente apresentado para a Prefeita

como um conjunto de mulheres organizado e atuante do Espaço Bem-Me-Quero.

Compreendo estes momentos como passos para a visibilidade e legitimidade política e

institucional da proposta do Grupo e da trajetória de suas participantes. Vale também destacar

a seleção de duas participantes para o Projeto “Mulheres da Paz”, iniciativa do Programa

Nacional de Segurança Pública com Cidadania (PRONASCI) do Governo Federal com a

Prefeitura Municipal de Contagem (PMC), através do qual elas estão realizando um curso de

formação de 150 horas que as capacitará a discutir em suas comunidades o enfrentamento à

violência.

Page 100: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

99

Por fim, a partir do contato iniciado por mim com a Voglia Produções Ltda para a solicitação

de uma cópia do filme “Dias e noites” para exibição no Grupo e a, posterior leitura dos

produtores sobre a proposta do Grupo e os relatos de mudanças nas trajetórias de suas

participantes, foi realizado um convite para as mulheres do Grupo participarem da gravação

do documentário “Silêncio das inocentes”14. Cíntia e Camila foram escolhidas pela produção

do filme, entre as participantes indicadas por mim, devido às peculiaridades de suas histórias.

A gravação ocorreu no dia 27 de abril de 2010 e foi um momento muito emocionante para

elas e toda a equipe do Espaço Bem-Me-Quero. A proposta inicial do diretor é utilizar destes

depoimentos no final do documentário como um contraponto às outras histórias de ciclos de

violência colhidas em outros pontos do Brasil, por ele ter percebido na história de Cíntia e

Camila um posicionamento diferenciado frente à violência.

Desta forma, as mulheres participantes do Grupo são um ponto de referência para a

instituição, pois, diferente de outras mulheres que não retornam para atendimentos agendados,

estas mantêm um contato muito próximo com o Espaço. Algumas o chamam de “minha casa”

e a gerente, recentemente, se referiu a elas como “a alegria do Espaço.” Em qualquer evento

externo elas são sempre lembradas, recebendo prontamente os convites. Estes são indícios de

como estar filiada a este Grupo as posiciona de forma diferenciada na apropriação da proposta

da instituição, da própria Rede de Enfrentamento e de suas trajetórias de sobreviventes à

violência de gênero. Este é um pouco da nossa história até agora... E ela continua sendo

escrita a cada semana com a presença e aceite de cada nova mulher. Iniciaremos, nesse

momento, as narrativas sobre as sessões analisadas para esta dissertação15

.

Sessão nº 01-

Sessão do Grupo nº 59

Data: 22 de julho de 2009

Duração: 1 hora e 46 minutos

Participantes: Rosa, Janaína, Fernanda, Elis, Cíntia, Camila, Marília, Sâmia, Nina.

Coordenação do Grupo: Simone (coordenadora) e Rafaela (observadora)

“Cala boca, minha senhora!” (Janaína)

14 Para maiores informações: <http://www.cinemadobrasil.org.br/produtora.php?id_produtora=90>. Acesso em

15 de maio de 2010. 15

No anexo 11 apresentarei uma transcrição na íntegra da sessão do dia 19 de agosto de 2010.

Page 101: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

100

Esta sessão foi tensa e longa devido aos assuntos trazidos pelas mulheres para discussão.

Ressaltou-se, nos assuntos discutidos, a denúncia sobre o atendimento oferecido pelos

agentes da Polícia Militar aos casos de violência de gênero e o posicionamento institucional

do Espaço Bem- Me-Quero frente a esta problemática.

Na abertura desta sessão, a coordenadora propôs ao grupo, uma sessão de fechamento

semestral (conforme o costume do grupo) para o próximo encontro. Informou que não tiraria

férias (o que muito alegrou as participantes, pois assim o grupo não seria interrompido), mas

que ainda assim considerava interessante esta proposta de um a sessão diferenciada. Caso elas

concordassem, seria apresentado o filme “O Divã”, também foi discutida a possibilidade de

que o grupo se reunisse à tarde (o grupo sempre se reúne no período da manhã). Estas

propostas foram apresentadas para que elas avaliassem e houve concordância de todas as

participantes sobre a alteração do horário, a exibição do filme e a realização de um lanche no

final da sessão. Enquanto se negociavam as propostas Elis chegou procurando um lugar para

sentar-se.

Mulher16

: Puxa uma cadeira ali. Ali é o ligar da Nina.

Elis: Ué tem lugar? É sentou no lugar da Elis (bochicho).

Camila: Porque eu sou veterana e eu tenho que mandar mais no babado.

Cíntia: eu estou no meu lugar de veterana.

Elis: Vou sentar ali.

Camila: Pode sentar aqui, eu estava brincando.

Elis: Não aqui mesmo, aqui mesmo. (Elis fala e senta).

Cíntia e Camila são algumas das mulheres que participam do grupo a mais tempo, bem como

Graça, que não compareceu nesta sessão, mas foi citada e lembrada pela coordenadora e por

outra participante: “Cíntia (fala baixo): eu falei com a Graça que eu ia puxar a orelha dela

que ela não chegou até agora. Simone: ela deve estar chegando...”. A diferenciação entre as

participantes, segundo o tempo de participação no grupo, declarada por Camila e reafirmada

por Cíntia, foi neutralizado pela coordenadora que afirmou não haver um lugar

predeterminado para as participantes.

O momento de abertura, além da apresentação da proposta da sessão, também comporta um

momento de apresentação das participantes e da proposta do grupo (quando ocorre de

16

Em alguns trechos das sessões não foi possível identificar de qual participante era a voz. Nestas situações, em

toda a dissertação, mantive a fala com a indicação mulher para demarcar que se tratava de uma fala de

participante não identificada.

Page 102: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

101

algumas mulheres não se conhecerem ou quando comparecem pela primeira vez). Nesta

sessão havia uma mulher nesta condição: Sâmia (que veio a convite de Nina). Geralmente, a

coordenadora solicita a alguma das mulheres que estão a mais tempo no grupo que

apresentem a proposta do grupo e, se necessário, complementa com alguma informação.

Sâmia, muito tímida, após se apresentar se espantou com a idéia de que o grupo era para

mulheres em situação de violência. Nina, então, fez um paralelo para ela sobre a situação

vivida pelas duas como uma forma de definir o que seria uma situação de violência. Este

excerto representa bem a dinamicidade da comunicação no grupo, bem como a capacidade

das participantes de acolhida.

Simone: Mas é só para entender, porque aqui as pessoas que vêm, geralmente, é

porque estão passando por uma situação de violência, você tem alguma situação

assim na sua vida?

Sâmia: Um pouquinho

Simone: Fala do pouquinho

Camila: Fala um pouco do pouquinho... Sâmia: Você não tinha me falado disso não. (Voltando-se assustada para Nina)

Nina: por que a violência...

Elis: eu posso explicar um pouquinho porque ela mora lá no bairro

Cíntia: O que fala aqui permanece aqui é igual... Aqui você pode ficar tranqüila,

Camila: aqui é igual à confissão de igreja.

Elis: esse negócio de bairro é meio chatinho mesmo. Ela mora lá no meu bairro.

Nina: O tipo de violência que ela esta falando Sâmia, é igual, porque igual o D. me

bate?

Sâmia: Não.

Nina: o que ele faz comigo é o que o G. faz com você.

Elis: isso é violência psicológica.

Simone: Uma das coisas que a gente vai trabalhar aqui é justamente o que é

violência, violência não e só violência física, mas você vai pegar o ritmo da coisa...

Após a abertura, os assuntos a serem discutidos são trazidos pelas mulheres de acordo com os

últimos acontecimentos em seus ciclos de violência. Também ocorre das mulheres que estão

comparecendo pela primeira vez, apresentarem o motivo porque estão no grupo bem como

suas trajetórias afetivas e de violência até o momento. Indiferente de qual seja a dinâmica do

desencadeamento da discussão, a comunicação caracteriza-se por relatos, em sua maioria, das

cenas de violência e da trajetória de atendimento pela Rede de Enfrentamento à Violência. O

relato de Cíntia, por exemplo, inicia-se pelo momento em que seu ex-companheiro recebe a

intimação para a primeira audiência de separação, divisão de bens, guarda e pensão dos filhos.

Ela relata que apenas por saber que seu ex-marido recebeu a intimação ficou doente e que seu

filho e sua mãe ficaram amedrontados. Ela ressalta que vem recebendo apoio, mas que nem

por isso, a situação de violência terminou.

Page 103: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

102

Cíntia: Simone, eu tô com o pé atrás (Mulher concorda: tem que ficar) eu to

andando, olhando, comecei a vigiar, mas eu não quero ficar paranóica. Simone, a

minha imunidade já abaixou, já tive que correr e ver a médica, tava com a bexiga

doendo com infecção, já comecei a fazer exame, mas, sabe, eu estou conseguindo

apoio de ambos os lados, assim sabe...

Simone: Quem tá te apoiando?

Cíntia: As meninas estão me apoiando, a Graça me liga sempre, uma colega lá, uma

amiga, a família começou de novo...

Camila ri e fala: eu não to conseguindo nem me apoiar...

Cíntia: mas só de te ver já é bom demais... Minha família tá assim, minha mãe já

começou daquele jeito se eu fosse você, da pensão eu ia adiando um pouquinho. Aí

eu falei assim: chega mãe (mulheres do grupo falam junto com ela concordando com

a sua postura) ela tá com medo, por que o cara começou tipo assim, ele não tá

acuando, ele tá falando coisa, assim (...).

Cíntia: aí sabe essa pessoa que eu te falei que eu conheci, eu conheci mesmo (risos).

Camila: aí deu serviço completo.

Cíntia: ele está me dando um apoio danado e tudo me liga tal, a gente sai junto. (...)

Simone: Mas eu quero saber assim, para a questão da violência é importante saber,

você acha que ele está...

Cíntia: Preparando alguma coisa para mim.

Simone: sua mãe também acha sua mãe sempre acha?

Cíntia: Minha mãe acha.

Simone: Mas quem pediu esta audiência, isso que eu quero sabe você ficou um ano

separada, você não tinha entrado com processo porque sua mãe falou para não

entrar, foi isso?

Cíntia: por causa de ameaça contra meus irmãos e agora...

Simone: Agora de novo ele está fazendo a mesma coisa?

Cíntia: Agora ele está com o psicológico em cima do meu filho, para o meu filho

contar para mim.

Simone: e o que o seu filho acha?

Cíntia: Meu filho está desesperado, morrendo de vergonha: mãe aonde você vai e,

depois. Porque o pai tá preparando alguma coisa, cuidado, cuidado. Está com medo

de alguma coisa, mas eu procuro evitar que o menino converse sobre isso porque

graças a Deus estou conseguindo uma clínica a partir de agosto para psicólogo para

os dois né. Então assim vai ser bom, mas o menino fica desesperado, outro dia na

escola ele falou: mãe não vai, não vai porque o pai vai estar lá, não vai, mas aí eu

teimei e fui e não vi ele. Assim, mas, Simone eu não tenho medo dele...

Continuando a apresentação dos últimos acontecimentos nos ciclos de violência, Camila

relata sobre seu andamento processual e a ocorrência de uma nova cena de violência. Faz

parte da dinâmica do andamento do grupo, uma participante iniciar sua fala a partir do que a

outra contou sobre seu caso, comparando, exemplificando, complementando e, mais

raramente, contradizendo a outra. Camila diz que conseguiu sair da casa do namorado atual

(definida por ela como uma situação de “prisão domiciliar”). Como no caso do ex-

companheiro de Cíntia, a reação foi de raiva após a iniciativa dela de encerrar a relação. No

caso do andamento processual contra seu ex-companheiro, ele se ausentou do trabalho para

não receber a intimação e com isso dificultar o andamento do processo. Validando a

colocação de Camila sobe os comportamentos de seus ex-companheiros Rosa arremata: “Eles

Page 104: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

103

fazem tudo com a gente não tem jeito, né.”. Após o arremate de Rosa, Camila17

anuncia o

porquê de ter vindo àquela sessão:

Camila: Bem, gente, eu vim hoje para protestar!

Simone: protesta Camila.

Camila: O Espaço Bem-Me-Quero me deixou decepcionada com ele.

Simone: O que foi?

Camila: Eu vim aqui buscar forças e apoio porque foi feita a maior das violências

violenta de todas, que junta psicológica, familiar etc, etc, etc, todos os tipos de

violência foi feito comigo né. O pai do meu filho armou a situação para estar me

incriminando, falando que eu invadi a casa dele, quebrei a casa dele, dois policiais

civis que não se identificaram me levaram presa, eu fiquei uma noite no CERESP

algemada, fizeram tortura psicológica.

Mulher: Nossa. Há pouco tempo agora?

Camila: há duas semanas.

Mulher: que isso!

Camila: todo tipo de violência, fiquei dentro do camburão algemada, igual

assaltante, eu sofri todos os tipos de violência. Eu tô doida, eu tô doida, (ri) e eu

cheguei aqui procurando um apoio e simplesmente o advogado do Espaço Bem-Me-

Quero disse para eu ligar para o 0800.

Ela disse que foi bem atendida pela advogada e pela gerente do Espaço Bem-Me-Quero que,

por sua vez a encaminhou ao “advogado” dos Direitos Humanos. Segundo ela, este a indicou

o Disque Denúncia dos Direitos Humanos, (o 0800) como uma forma de solucionar a

situação. Eu afirmei para ela que no Espaço Bem-Me-Quero não existia nenhum funcionário

do sexo masculino e ela também não sabia dizer o nome de quem havia conversado com ela.

Quando consegui definir quem era a pessoa, expliquei que ele não era servidor do Espaço

Bem-Me-Quero, mas sim da Secretaria de Direitos e Cidadania18

à qual o Espaço Bem-Me-

Quero é vinculado institucionalmente. Indiferente disto e da ressalva feita por ela sobre o

“excelente tratamento” recebido de mim, da advogada e da gerente do Espaço Bem-Me-

Quero e da acolhida pelas mulheres do Grupo ela continuou questionando o posicionamento

institucional do Espaço-Bem-Me-Quero.

Simone: Mas o que você esperava?

17 Esta mulher move uma ação de reconhecimento de paternidade contra seu ex-companheiro. Na sessão

anterior, ela havia nos relatado, entre lágrimas, que sofrera a maior de todas as violências, pois fora detida por

desacato à autoridade após ter se recusado a assinar uma intimação sem antes conversar com seu advogado. Ela

foi algemada e levada de camburão ao CERESP de Contagem (local destinado a presos do sexo masculino após

o julgamento) onde permaneceu detida por uma noite. A intimação se referia a uma denúncia por parte de seu

ex-companheiro de invasão de propriedade. Após discussão no Grupo, a encaminhei para receber orientações

jurídicas da advogada do Espaço Bem-Me-Quero. As mulheres do Grupo, muito sensibilizadas com o sofrimento

e fragilidade demonstrados por Camila, concordaram com esta proposta e também com a estratégia apresentada

por ela de denúncia contra o Estado por abuso de autoridade.

18 Temporariamente, esta Secretaria funcionou na mesma casa onde se localiza o Espaço Bem-Me-Quero, por

questões administrativas da Prefeitura (o que pode ter levado a mulher a se confundir).

Page 105: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

104

Camila: Eu esperava qualquer tipo de apoio de menos esse, porque eu tenho o

telefone, se eu não liguei ainda é porque eu queria que o Espaço Bem-Me-Quero

fizesse a diferença na situação porque foi uma situação de violência extrema.

Simone: Mas o que seria a diferença você tem que falar Camila.

Camila: Que seja pelo menos chamar o jornal para estar fazendo esse tipo de

cobertura, eu já iria me sentir saciada entendeu, eu acho assim é a Lu. (Advogada)

sempre foi muito bacana, você sempre foi muito bacana...

Simone: O que a Lu falou?

Camila: Não, a Lu fez de tudo para me ajudar, ela disse que os recursos humanos vai

te dar um apoio.

Simone: Direitos humanos...

Camila: Direitos humanos vai te dar um apoio, e eu queria esse apoio, porque sou eu

sozinha contra o sistema e eu queria que o Espaço Bem-Me-Quero mostrasse a cara

dele, porque eu tô aqui há mais de um ano e eu queria que o Espaço-Bem-Me-Quero

mostrasse que não é demagogia isso aqui, é uma coisa que realmente faz a diferença,

mesmo que seja chamar um jornal e publicar o que aconteceu comigo, porque eu

não cometi o crime.

Simone: Porque tem que ver qual é o limite do poder do Espaço Bem-Me-Quero,

qual o limite da instituição.

Camila: pois é, mas olha só...

Simone: Eu estou entendendo o que você falou, mas você pensou em outra

alternativa, sem ser essa do jornal, você pensou em mais alguma coisa?

Camila: Outra alternativa seria entrar com uma ação de abuso de poder então...

Simone: Aí tem outra situação, mas eu não te encaminhei para nenhum dessas

situações...

Camila: Tudo bem.

Simone: mas a gente pode encaminhar você para outro local...

Camila: mas aí já que não pode acontecer isso, pelo menos o Espaço Bem-Me-

Quero mostrar: nó essa pessoa tal tá sendo assistida aqui com a gente, e pelo menos

chamar um jornal, porque foi uma injustiça que fizeram comigo. Eu sou uma mãe de

família entendeu, forjaram a situação, eu fui presa, algemada igual a uma marginal,

fui agredida porque até poucos dias atrás meu corpo estava todo roxo, porque os

caras me violentaram, me apertaram, enforcaram lá, puxaram meu cabelo e não deu

em nada,

Simone: mas você não fez uma queixa?

Camila: eu fui presa, fui presa...

Camila apresenta-se pequena frente ao sistema que a violentou e entende que o Espaço Bem-

Me-Quero seria um local onde poderia ser apoiada e fortalecida no enfrentamento à violência

policial.

As participantes do grupo escutaram Camila atentas, com exclamações durante os momentos

percebidos como de maior violência. A coordenadora buscou com suas pontuações

compreender o caso, o posicionamento da mulher, do ex-companheiro e da Polícia no

episódio, bem como incentivar a mulher a construir estratégias para a situação.

A cena de violência policial e os encaminhamentos posteriores apresentados por Camila

causaram impacto nas participantes. A partir do exposto do ocorrido com Camila, Fernanda,

Janaína, Nina e Cíntia relataram suas experiências de enfrentamento à violência focalizando e

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105

denunciando a participação (violenta) policial. Fernanda “pega um gancho” na história de

Camila e pergunta se no seu caso poderia ocorrer o mesmo que com Camila, já que ela saiu

de casa e ainda não estar decretada oficialmente a partilha de bens, a pensão e a guarda dos

filhos menores. Ela se emociona ao relatar como está sobrevivendo sem os bens materiais

construídos durante o casamento, a presença diária dos filhos e com a continuidade da

violência por parte de seu ex-companheiro.

Fernanda: Só pegando um gancho com a história dela (de Camila), igual o meu caso,

eu saí de casa todo mundo fala: você saiu da sua casa. Mas não é que eu saí da

minha casa. Eu saí da minha casa porque eu fui agredida psicologicamente,

moralmente e fisicamente e o meu filho também, mas mesmo com tudo isso eu sai

com o resultado da separação de corpos. A juíza então, como se diz, disse que eu

podia abandonar o meu lar porque eu estava na lei que eu estava sendo agredida

então ele não foi não pronunciou então como diz

Simone: tem alguma audiência marcada?

Fernanda: Ela marcou agora no dia 11 de agosto. Nesse meio tempo, igual, vocês já

sabem, eu estou morando em um barracão de um quarto com um banheiro.

Mulher: seus filhos estão com você?

Fernanda: meus filhos estão comigo, dormindo na mesma cama e tem dia que eu

faltei aqui porque eu não pude vir mesmo (começa a chorar) porque ele dá 50 reais,

mas... Acabou o gás, fiquei 30 dias no escuro que a fiação não funcionava. Aquela

menina a Graça (participante do grupo) ela viu, ela não está aqui hoje no grupo, ela

comprou duas peças de doze reais para me ajudar. E esse homem chegou dentro da

minha casa parou o carro foi entrando e eu atendendo e falou assim: eu não vou por

um centavo aqui, sua vagabunda, perto da cliente, sua vagabunda porque você tem

homem aqui para sustentar, porque tinha uma mulher com o marido dela lá

comprando (...). Porque eu estava dentro de casa e ele foi dentro da minha casa

ainda.

Simone: Porque que ele foi lá?

Fernanda: Ele foi lá para me infernizar. Aí ele gritou assim eu vou trocar a fechadura

da casa e aí eu falei assim: a casa é minha e eu entro na casa na hora que eu quiser,

porque eu não saí, eu não abandonei casa, eu saí por motivo de violência e de

agressão e eu posso entrar lá. Mas é igual o caso da Camila.

Simone: se bobear você vai tentar entrar lá e vai sair presa.

Mulheres comentam juntas um pouco.

Fernanda: Eu estou esperando o oficial de justiça entrar lá dentro comigo, mas eu

posso entrar lá sabe por que eu saí com o documento que o juiz determinou e ele não

quer que eu vá lá ao sacolão porque o que o que ele quer é me humilhar, me pisar

não quer me dar nada. Eu não tive nem aquela reação de chamar que eu já fui tão

violentada depender de Polícia que ela não chegava e não resolvia nada. Ele falou

que não ia resolver. O policial uma vez que eu chamei falou não chama não que

você vai é tomar chá de cadeira que eu falei com ele e ele não me ouvia.

Simone: ele falou que não ia fazer nada?A própria Polícia...

Fernanda: A pergunta que eu vou te fazer agora se eu fizer, mas porque eu não saio

do meu barraco que eu tô pagando do meu bolso porque eu quero ir com o oficial da

justiça depois da primeira audiência, mas não interessa se eu quisesse entrar lá hoje

e ele trocar a fechadura, a casa é minha, ele poderia? Simplesmente...

A reação das mulheres à pergunta de Fernanda foi de grande alvoroço. A percepção de que

apesar de Fernanda ter feito tudo de acordo com o determinado em juízo e ainda assim, estar

sendo violentada pelo ex-companheiro as revolta. A família dela, neste contexto, não apóia a

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sua decisão de separar-se alegando que ela “tinha saído de casa por que queria”, “que estava

era inventando estas violências” e “coitado do marido dela que estava lá trabalhando”.

Como estratégia para sair desta situação ela se afastou de seus familiares e pediu para eles não

falarem mais com ela sobre o assunto. Cíntia, frente ao relato, reafirma que ela fez certo ao

sair de casa e que não deveria voltar apesar da opinião da família dela. No caso de Fernanda,

a morosidade da justiça tem levado a repetidas cenas de violência e a dificuldades financeiras.

Uma das consequências imediatas da estratégia de sair de casa para a mulher e seus filhos,

geralmente, é a dificuldade financeira durante o processo de negociação de direitos (como a

pensão e a divisão de bens) durante o período de separação. Os filhos adolescentes dela,

acostumados com uma condição financeira tranquila, não estão conseguindo se adaptar a

morar com ela durante este período de escassez de recursos. A cada ida e vinda dos filhos

entre as casas dos pais repetem-se cenas de violência. Este exemplo de dificuldade financeira

enfrentada durante o período de separação é temido e apontado como um dos motivos para o

adiamento do fim do relacionamento violento. Janaína resume esta situação assim:

Janaína: Deixa eu te falar Simone, sabe por que eu tô te falando isso, Simone,

porque não tenho para onde ir.

Simone: eu concordo.

Janaína: Ele paga aluguel, ele é tão mentiroso, porque ele pagava trezentos e trinta e

eu fui olhar é trezentos e setenta e seis reais,

Simone: Mas é obrigação dele, Janaína

Janaína: eu tenho medo de ficar com ele, tenho medo de ficar com ele dentro de

casa, mas eu não tenho como quem diz quem paga o aluguel, então ele grita: você

não tem para onde ir, você não tem dinheiro para pagar aluguel, você não tem onde

morar.

Frente ao sofrimento demonstrado por Fernanda, Nina também se solidariza e aponta outro

aspecto compartilhado pelas participantes frente a esta situação: a vulnerabilidade afetiva e

emocional.

Nina: eu só vou fazer uma colocaçãozinha. O que mais me incomoda, não sei se é

por causa do que eu tô sentindo pelo que eu tô passando, na historia dela a gente vê

no olho dela, cada vez que igual no caso dela parece que o que ela fala é o que eu tô

sentindo. (Mulher do grupo concorda) porque a dor que ela tá sentindo gente não se

resume a ele pagar duzentos reais e pôr no bolso dela mensais não. (Mulheres

concordam) Olha a situação dela, ela foi casada com ele vinte anos, tem filho com

ele e hoje não pode entrar na própria casa.

Camila complementa a constatação da complexidade da situação ao questionar a qual

instituição as mulheres sobreviventes à violência de gênero podem recorrer.

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107

Camila: Eu não posso entrar na minha própria casa que é totalmente independente

dele, por medo, porque ele me deixou acuada, tem duas semanas que eu tô fora da

minha casa.

Nina: Aí você chama a Polícia, igual o caso dela aqui (referindo-se a Camila).

Participantes do grupo falam juntas comentando a situação de dificuldade frente à

violência.

Camila: Eu vou chamar quem?

Nina reafirma que o motivo da separação de um casal não deve ser questionado, pois se a

separação foi efetivada algo deve ter ocorrido. Ela explica como está a situação com seu

marido atualmente e que apesar de sempre deixar claro que ainda gosta dele percebeu como

está insustentável a manutenção da relação nos moldes antigos. Ela apresenta que ambos

continuam desempenhando seus papéis dentro do casamento, mas que a violência não teve

fim.

Nina: Se coloca no meu lugar, imagina você tá aqui pagando o aluguel, colocando

comida dentro de casa, carne, verdura porque isso ele não deixar faltar nada, aí ele

fala assim: é porque tudo que eu faço é pouco. Não é tudo que você faz é pouco não,

mas se coloca no meu lugar, você fazendo isso tudo porque eu tô aqui, eu tô fazendo

isso tudo, cuidando das meninas, cuidando de você, lavando e cozinhando.

Mulher: é

Nina: e vendo que você tá fazendo, aí eu viro para você em plena quarta-feira eu

falo assim: Você fica com as meninas hoje porque eu tô indo dormir com meu

namorado tá, se coloca no meu lugar. E nessa altura do campeonato ele virou para

mim e falou assim: Se você não tivesse saído de casa se você tivesse aguentado um

pouco ia tá tudo do jeito que tava.

Mulher: aguentando traição

Nina: Aí eu falei com ele assim: Mas estava bom do jeito que tava? Aí ele falou

assim, não, não estava bom, pois é eu tive a oportunidade e a coragem de fazer o que

você não tava tendo coragem de fazer aí ele virou para mim e falou assim... E é o

que vai acontecer com ela se ela for lá e chamar a Polícia porque é isso que

acontece. Ela saiu de casa porque ela foi atrás de macho, porque foi isso que ele

falou comigo, você saiu de casa porque foi correr atrás de homem, entendeu?

Fernanda afirma que também tentou manter uma relação amigável e que apesar de continuar

desempenhando o papel de mãe/mulher/companheira adequadamente a violência não teve

fim.

Fernanda: mas eu tentei no meu relacionamento na separação de corpos nós

tentamos, porque a gente tem um comércio junto, eu tentei trabalhar com você, ser

sua amiga, mas isso aí não dá o direito de ir à casa da minha mãe, pegar minha bolsa

assim, pegar meu celular e começar a me chamar de vagabunda, tudo é vagabunda,

tudo é piranha, e outra coisa eu fiquei vinte anos casada com você e nunca fiquei

com outro homem, nunca sequer olhei para outro homem... Aquela coisa que você

está falando: eu te servi vinte anos... Porque as coisas estão ficando difícil lá, ele não

dá nada para dentro de casa e a gente está sofrendo para honrar os compromissos e

um arroz. (chorando muito)... quando seu pai falar que eu sou vagabunda, meu filho,

aí você fala com ele assim: minha mãe tá passando, cozinhando. Eu cuido da casa e

ainda vendo meus artesanatos, mas igual uma mulher que esta casada que ainda não

esta separada o papel de uma mulher não é este? Lavar, passar, cozinhar, cuidar do

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marido, da mulher o papel e esse e do homem é ajudar ela ficar em casa, a minha

parte eu to fazendo e ele não esta fazendo a parte dele e me chama de vagabunda. Lá

onde eu to agora o pessoal já viu. Igual eu te falei eu limpo a rua onde eu to

morando... e ele fala assim você não vai ter nada essa casa é minha, eu não vou te

dar nada não vou te dar carro, você vai comer o pão que o diabo amassou. Vai

arrumar um homem para cuidar de você.

Cíntia, por sua vez, relata sua história de como resolveu estudar e passar por cima de todas as

dificuldades e traições do ex-marido na escola onde estudavam juntos. Frente ao incentivo

dela para que ele começasse a estudar ele reagiu com traição e violência.

Cíntia: quando ele me viu que eu formei a oitava série, ele voltou a estudar aí eu

carreguei as folhas dele, quinhentas folhas no braço de um bairro para o outro aí fiz

a matrícula dele (...) não demorou um mês ele tava com uma mulher para lá e para

cá, amiga da escola que ia à minha casa, mas só que eu não via, aí começaram a

falar comigo, você é tão bonita e seu marido com aquela ridícula e eu também não

via, aí eu procurava também não ver. Mas aí resumindo essa historia, ele pegou e

começou a sair mesmo com essa mulher aí eu vi e pedi a separação.

Como outra estratégia (para além do institucional/policial/judicial) frente ao ciclo de

violência, Fernanda apresenta uma estratégia chave: posicionamento.

Fernanda: Eu tô aqui porque não é meu dia de comprar, porque eu me posicionei.

Simone: palavra mágica eu me posicionei

Fernanda: Eu me posicionei. Porque eu tenho que ficar lutando,trabalhando,

pegando meu artesanato e vendendo deixando de fazer meu cabelo, arrumar minha

unha para dar pra menino. Aí a minha menina tá assim: porque eles me amam, mas

ontem eles estavam no shopping com o pai e ele vem entrar na minha casa e me

chamar de vagabunda.

Camila: e quando eles não falam, eles fazem a gente se sentir uma vagabunda. O

homem não tem contato comigo mais entendeu Fernanda: sabe por que eu cheguei

aqui hoje porque eu cheguei aqui me posicionando, agora eu faço a listinha, vai lá, e

o seu pai falar que não vai comprar aí vocês infernizam a vida dele lá que ele é pai e

que... E sabe o que mais? Eu decidi ser feliz porque eu sou nova ainda, eu vou

trabalhar, a fazer minha aula de dança, em vez de ficar pegando dinheiro e

comprando óleo, arroz.

Mulher: É.

Fernanda: Eu vejo minha mãe feliz casada de novo, minha irmã separou agora tá

gostando de outro, é um tal de gatinho na minha cabeça porque que eu tenho porque

que eu tenho que ficar sozinha? (Este comentário causa rebuliço e falas nas

participantes) porque eu tenho que ser guerreira, eu tenho que me assumir como uma

mulher nova, uma mulher guerreira, mas que ainda tem vida pela frente.

As participantes assim relataram como a estratégia de manter a relação não foi bem sucedida e

quais as decisões tomadas frente a isto: Nina resolveu sair de casa, Fernanda saiu de casa e

aguarda o andamento processual para ter seus direitos garantidos e continua trabalhando

muito e Cíntia resolveu continuar estudando, mas se separar definitivamente. Janaína, que

estava em silêncio até este momento, resume a história:

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Janaína: É o que eu tô falando para vocês aqui, homem só muda de nome e endereço

continua tudo pilantra,

Mulher: É.

Janaína: sem vergonha, não respeita a mulher que lava, passa, cozinha e cuida dos

filhos deles não, eles só querem aproveitar de vocês, eles ficam com as outras na rua

e quando chega em casa quer porque quer que você se entregue para ele, assim que

o lá de casa é.Falas de mulheres concordando com Janaína sobre sua opinião sobre

os homens.

A coordenadora faz um apanhado do que as participantes apresentam de suas trajetórias

individuais e sugere a discussão do enfrentamento coletivo/social da violência de gênero.

Simone: Pelo que vocês estão contando, vou pegar o gancho com a Camila sobre o

que vocês estavam comentando, eu não esqueci não, semana passada eu perguntei

justamente isso né, como é que toda situação, quer dizer, seja amante, seja traída,

seja trabalhadora, não trabalhadora, seja quem trabalha todo dia, seja quem nunca

trabalhou, a situação é igual você falou ,é de marginalização, não respeito de

direitos. Eu acho que eu posso falar isso porque é isso que vocês estão me contando,

quem não concordar pode, vocês concordam, querem completar?(...) tem sido criado

instituições como o Espaço Bem-Me-Quero para tentar ajudar a enfrentar essa

situação, aí eu comecei falando da Polícia que eu já tenho observado que eu já até

falei numa sessão atrás que teve uma reunião aqui que inclusive eu falei com a

psicóloga da Polícia Militar: eu tenho três depoimentos gravados para passar de

instituição para instituição, porque enquanto não está escrito, não está gravado, não

chega né? Aí é de uma instituição com uma instituição, não sou eu como psicóloga

qualquer, é o Espaço Bem-Me- Quero com a Polícia Militar. Igual vocês falam, eu

gosto quando a Camila fala isso porque não pode ser só demagogia, agora também

tem aquela coisa: como construir essa rede contra a violência que é o trabalho que a

gente tenta fazer?

Frente ao questionamento da coordenação, Janaína relata a situação de violência ocorrida em

sua casa na semana anterior e a forma como os policias atenderam ao seu chamado telefônico

pelo número 190. Neste trecho extenso é interessante observar o posicionamento da mulher,

do companheiro e dos policiais, a dinâmica entre os três agentes sociais e a forma como foi

conduzida a ocorrência da violência de gênero contra uma mulher pelos agentes da Polícia

Militar.

Janaína: os policiais não estavam respeitando ninguém, eles tiveram na minha casa

semana passada (...) eu peguei aquele endereço que você (Simone) me deu e eu

liguei, e eu toda vida ligava e nunca vinha, e como eu liguei nesse endereço eles

apareceram, mas vieram sabe o que é, com licença da palavra, um bando de animal,

um bando de cavalo, eles não têm disciplina eles não têm educação para entrar na

casa da gente eles desacata tanto você como o homem que está bêbado que está te

desafiando você ta te maltratando dentro de casa.

Simone: mas o que foi que te incomodou na postura dele, além dele mexer com a

sua neta? O que você acha que ele fez de errado como é que ele devia ter agido?

Janaína: em vez de ele chegar e conversar com ele na boa: chamou ele lá na cama e

pediu: Ô dona eu posso entrar, pode, eu não vou fazer nada com ele, eu só vou

conversar com ele. Ele tem condições de conversar? Eu falei: tem. Numa boa.... Ele

falou: Conversar comigo por quê? Eu não fiz nada.

Page 111: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

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Simone: eles nunca fazem nada.

Janaína: não agredi, não fiz nada, não roubei, não desacatei ninguém.... Eu trabalhei

trinta e cinco anos, toda vida eu trabalhei nunca fui vagabundo, não sou vagabundo,

não sou maconheiro, não sou drogado, não mexo com droga, não sou ladrão, não sou

marginal, isso é que vocês deviam de tá correndo atrás, de castigar, eu não.

Simone: Porque que eles encostaram a mão nele? Tem que ter um motivo.

Janaína: Ele pegou e falou assim, sabe por causa de que, porque desacatou ele

Simone: Ah! Tinha que ter um motivo.

Camila: mas aí quando desacata e ele fala que você desacatou também.

Janaína: aí eu na hora que o Policial chegou ele passou a mão nos óculos e no

cigarro e foi lá para a sala e o isqueiro, e o que ele fez, pôs o cigarro na boca e o

policial falou com ele: Ô moço, por favor, não faça isso não, não desacata a

autoridade não, tô pedindo, não fuma não, vamos conversar, depois você... Eu vou

acender porque eu tô dentro da minha casa e o senhor está invadindo a minha

propriedade, vocês estão invadindo a minha casa eu falei assim, na hora que ele

falou assim o cara só pegou e passou a mão no cigarro e tá na boca dele, o policial, o

magrelinho pegou e deu um tapão na boca dele.... (Janaína falou com o marido) tem

que respeitar a autoridade sim, estando você errado ou não você tem que respeitar,

porque eles acham que são mais porque eles são formados para isso eles mandam

onde eles tão, eles mandam, até em mulher. Eles vêm me mandando calar a minha

boca, sendo que eu os chamei para me proteger eles mandam calar minha boca e me

desacatam dentro da minha casa também, entendeu.... Aí ele pegou ele pelo pescoço

e só isso que ele falou, pegou ele pelo pescoço, arregalou o olho dele e levou para

viatura e algemou-o e levou para a viatura e aí ele falou assim, e você cala essa

boca. Aí ele falou assim: tá vendo Janaína o que você fez comigo.

Simone: Agora a culpa ainda é sua.

Mulher: concorda com a colocação de Simone

Janaína: e falou assim para mim: Escuta aqui a senhora caça jeito de arrumar alguém

para tomar conta dessas crianças e vai ao vizinho e leva os meninos lá na minha

vizinha que é crente, levou os meninos lá, minha filha enquanto eu tô doida caçando

a identidade, dentro do levar os meninos num lugar agora. Desse jeito: vai agora.

Camila e Fernanda entram na conversa relatando suas histórias apresentando a semelhança do

ocorrido com elas, em um exemplo de convergências de relatos sobre o posicionamento de

agentes policias/demais cidadãos frente a ocorrências de violência de gênero contra a mulher,

especialmente as que envolvem agressões entre marido e mulher.

Camila: não pensaram com quem meu filho ia ficar me pegaram pelo cabelo e me

tocaram no carro e o menino de um ano e nove meses ia ficar com quem?

Simone: é.

Fernanda: Simone o dia que e meu marido me agrediu eu tinha ido comer cachorro

quente e aí eu cheguei eu tava com minha colega, cheguei à casa da minha colega e

aí ele me agrediu eu tava chorando pegou meu celular.... começou me ameaçar você

vai morar comigo na minha casa e isso não está certo que você está bêbado, no meio

da rua, você me solta, eu fiquei muito tempo sem sair de casa eu resolvi sair hoje eu

não sei por que você tá aqui e você tá me seguindo e eu vou gritar socorro eu gritei

socorro e o menino que tava no cachorro quente que tava comigo não chamou, não

fez nada aí eu peguei minhas coisas e saí correndo assim e ele veio atrás de mim

com o carro na Abílio Machado.Na Abílio Machado tinha um rapaz sentado assim

que parece que já tinha bebido todas, aí chegou e falou assim: negócio é o seguinte:

solta a moça eu não sei o que está acontecendo não, mas eu tô vendo que você está

agredindo ela. Eu falei assim: moço tudo que eu quero fazer é ligar para Polícia e

esse homem não quer deixar e eu queria ligar para a Polícia para o 190 e ele não

quer deixar. E ele me segurava assim pegou meu celular e quebrou, o menino viu ele

quebrando o celular e tava todo tonto veio até a mim sabe e já que não tem nada que

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você não deve nada, o que tem ela chamar a Polícia?Porque ela não pode chamar a

Polícia? E eu tava com o celular e ele quebrou meu celular que não funcionava e eu

queria ver se tinha um segurança de um motel lá para eu poder pegar o celular e

ligar, ele não deixou não só que foi o seguinte. Quando eu tentei chamar a Polícia,

ele tinha chamado a ambulância para me prender, ele queria me prender... só sei

dizer que quando a ambulância chegou... Esse menino ligou, aí chegou a ambulância

e falou assim, você tem irmã, tem irmã vai embora porque o problema não é você o

problema é ele, está transtornado. A ambulância conseguiu detectar que o problema

de loucura não era eu, nós estamos em processo de separação, ele me agrediu, tenho

testemunha o pessoal lá, depôs e tudo aí ele falou assim: então você vai para casa da

sua mãe, casa de irmã quem tá com algum problema é ele e eu não posso fazer nada

que o problema é de separação e foi embora. Quando eu fui embora ele veio atrás de

mim de novo e aí eu consegui chamar a Polícia que esse menino que foi embora e

chamou a Polícia para mim. Sabe que aconteceu com a Polícia? A Polícia chegou e

em vez de chegar e conversar comigo que era a agredida, fui agredida e fui a vítima

e que liguei para a Polícia chegar, ele ficou conversando com ele lá

Simone: é isso que eu não agüento.

Fernanda: e na hora que eu cheguei a Policia falou comigo, olhar a minha bolsa...

vai senhora cala a boca que eu tô vendo que a senhora ta alcoolizada. Eu não tava

alcoolizada, eu tava nervosa porque eu tinha sido agredida,

Camila: ele tinha perguntado se eu tinha ficado doida, eles me arrancaram da porta

da minha casa, me tiraram dos braços do meu filho

Fernanda: você entendeu? Eu tinha sido agredida, tava chorando, vem cá eu estou

chorando eu fui agredida, esse homem aí, ele ficou olhando com aquela cara de

cínico para mim, ele bebeu muito mais cerveja do que eu e ainda está dirigindo que

é contra a lei e eu não tenho nada tá aqui minha certidão de bons antecedentes e tudo

e agora o senhor vem me mandar calar a boca, e vocês vêm falar comigo para eu

deixar isso para lá e aí ele falou que não ia levar a gente para a delegacia porque ia

ser só chá de cadeira. Que não vai acontecer nada para ele. Eu fiquei assim, eu fiquei

tão

Camila: pois é eu fiquei com tanto chá de cadeira que eu fui parar no CERESP, eu

tomei tanto chá de cadeira ele falou assim isso não dá em nada. Eu fiquei tão

revoltada e aí eu peguei e dá vontade de processar por... Eu nem peguei a farda da

Polícia, eu me senti um lixo, sabe quando você tá precisando da Lei ali na hora e ela

não acontece, mas eu fiquei assim, a não ser o menino que me ajudou sabe eu me

senti assim, sabe ...

No caso de Fernanda é interessante observar os diferentes posicionamentos entre os

indivíduos que foram testemunhas da cena, dos agentes policiais e dos agentes da ambulância

e os sentimentos de Fernanda frente a toda violência.

Continuando o relato de Janaína, ela descreve a forma como foi o processo de decisão sobre a

necessidade e forma de se registrar a ocorrência por parte dos Policias. Vale observar a

recorrência do “chá de cadeira” e da chamada “Cala a boca, minha senhora!”, o tratamento

dispensado à mulher autora da queixa e a apuração do suposto crime ocorrido.

Janaína: na hora que eles estavam descendo, olha o que o abençoado falou para ele,

nunca mais, nunca mais nunca mais, falou para mim assim: olha o que ele falou para

mim, olha o que ele falou para mim: Oh dona, deixou ele lá na viatura com o

magrelinho, o motorista e me imprensou lá na porta da delegacia e falou assim para

mim: O dona, também não perguntou o meu nome não, o dona a Senhora cala essa

boca porque eu estou aqui para ajudar a senhora e tô com dó da senhora, se a

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senhora tá achando ruim eu vou levar vocês dois lá para a furtos e roubos. Eu falei.

Simone: o que tem uma coisa a ver com a outra?

Mulher: é dureza, né.

Janaína: Se for para você me levar para a Furtos e Roubos, você não me tirava lá de

casa não, porque ele pode me bater me matar.

Simone: Aí também não né, Janaína.

Janaína: mas sabe por que eu falei para ele sabe por que eu falei para ele tomar

atitude de homem porque lá vocês não vão tomar chá de cadeira não, lá vocês vão

tomar o que vocês merecem, falou assim para mim, falou assim para mim. Então eu

falei: eu mereço o que? Eu não mereço nada. (Camila comenta) eu vim pedir uma

ajuda e agora vocês vêm me agredir nessa situação, eu não tô te agredindo eu não tô

te respondendo, na hora que ele falou assim que ia me levar para a Furtos e Roubos

eu falei assim: você não vai me levar não.... lá na delegacia com ele mesmo eles não

conversou nada, não falou nada, só comigo, só comigo, ele devia ter chegado igual o

delegado, vocês dois vão conversar com o delegado, falou que nós dois ia conversar

com o Delegado. Nem o Delegado chegou perto de nós, sabe como que eu fui

conversar com o Delegado, que eu passei perto depois que esse Policial me marcou,

me pirraçou, me condenou fazendo ficha lá e eu pedindo: Oh senhor faça com que

esse policial resolve os problemas dessa ficha que eu não fiz nada ele não fez nada e

essa ficha tá tão cumprida que nunca tem fim.... soltou ele sabe por causa de que?

Porque depois que este policial atrevido fez a ficha para mim, para ele lá perguntou

se ele me agrediu que aconteceu eu falei assim moço eu já te falei lá em casa que ele

me agride com palavras, só fica bebendo 24 horas por dia, não dá assistência para os

meninos.

Simone: ele te escutou?

Janaína: então aí eu conversei com ele lá em casa e tive que repetir tudo de novo e

ele algemado lá no canto e sentindo dor porque eles apertam sem dó.

O desfecho desta ocorrência segue a mesma linha de ação da abordagem realizada na casa de

Janaína. Vale a pena observar/analisar a escolha dela de permanecer com o marido como uma

das consequências do tratamento recebido por ela e pela condução dos agentes policiais da

queixa-crime. O episódio onde Janaína pede carona a um taxista após sair da Delegacia é um

exemplo muito forte da vulnerabilidade das mulheres em nossa sociedade. O relato desta

mulher desde o momento que acionou a Polícia para dar queixa da violência até a finalização

da cena com a ida para casa a pé, de madrugada, é um retrato da forma como a violência de

gênero é tratada pelos órgãos policiais.

Janaína: O que ele falou para mim, Janaína pede para eles afrouxar essa algema isso

aqui que eu não to aguentando de tanta dor não.

Simone: e o que você falou?

Janaína: eu com educação.

Simone: você escutou o que ela falou? Fala para ela,

Elis. Eu deixava, eu não sabia nem o que ele falava o deixava lá um dia dois dias,

três dias.

Falas das mulheres discutindo a postura de Janaína e a proposta de Elis.

Janaína: Mas sabe por causa de que eu falei isso? (falas) Me deixa só explicar para

vocês eu estava fazendo a ficha e estava preocupada porque eu não sabia se ouvia

ele me gritando lá e se eu ouvia.

Simone: o policial tinha que ter ido lá calar a boca dele não era você.

Janaína: O policial pedindo os dados lá aí de repente quando fizeram a ficha eles

pegaram e me pôs lá de chá de cadeira lá fora no banco, pôs ele lá dentro lá com os

outros caras que estava lá dentro sentado lá e tirou a algema dele e deixou ele lá e

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falou que eu ia conversar com o advogado e delegado nem nada, na hora que eu, na

hora que eu passei que eu fui perguntar o policial para ele me salvar, me responder,

o abençoada do Delegado falou assim: o dona, arreda daqui, fui tratada que nem

cachorro, sai fora daqui, racha o fora daqui, eu falei assim: Ô moço eu to só

querendo perguntar por que se ele pegou a identidade dele porque da outra vez ele

não pegou a identidade dele. Aí ele pegou e simplesmente falou comigo assim o

soldado: Oh dona vem cá, vem cá, dona vem cá eu estou indo, a senhora quer ir

comigo pegar seus filhos na casa da vizinha lá? Eu falei não moço, eu não vou não,

sabe por causa de que? Porque eu sabia que eles iam ele deixar tomar chá de cadeira

e ele ia vir de lá para cá a pé, sozinho e depois ele ia chegar e me ameaçar em casa

ele ia vir e ia ficar mais furioso aí que ele ia me arrebentar, ia me arregaçar.

Simone: Aí você voltou com ele juntinho com ele?

Janaína: juntinho com ele não, eu vim sozinha na frente, simplesmente e ele atrás

sem conversar comigo, eu sozinha e Deus.... Aí eu perguntei para um taxista se ele

pegava cartão ele simplesmente respondeu para mim, o dona eu não pego cartão

não, eu estava para o lado de lá do Bairro Amazonas, quando eu chego perto do

Pronto Socorro parou um taxista um descarado danado e por isso que eu falo que

homem não vale nada, e peguei e falei assim: O moço será que dá para você me

levar na Bernardo Monteiro porque tá tão longe e eu não tô mais aguentando andar,

o senhor recebe cartão? Ele só falou assim para mim, entra aí, não é só eu não, meu

marido vem aí atrás.

Simone: ela ia pagar o táxi para ele ainda.

Mulheres comentam e riem olha só para você ver. Ela tinha que deixar ele lá se virar

para ele ver. (Muitas falam juntas).

Camila: olha só que coisa linda...

Janaína: Sabe o que ele falou, sabe o que ele falou que não consegui entender.

Camila: ninguém consegue entender mesmo não.

Janaína: o que ele me falou foi que eu sozinha ele podia me levar porque ajudar

(falam juntas). Ele podia me levar, mas quando eu falei que o homem estava lá atrás

ele (falam juntas) ele falou comigo eu não poso te levar não. Porque que a gente

sozinha duas horas e tanta da manhã e ele podia me ajudar. Simone, ele não ia me

ajudar não, Simone, ele ia rodar comigo e fazer sacanagem comigo. Mais falas.

Mulher comenta: ela ficou com medo de assalto de madrugada Outra mulher

comenta: você devia ter deixado ele vir a pé pela ponte.

Simone: escuta agora.

Janaína: Na hora que ele abriu a porta para eu entrar sozinha eu fiquei com medo

porque muito caso acontece que mulher pega e eles somem com ela (falam juntas).

O alvoroço causado pelo relato de Janaína só foi aumentando à medida que ela contava o caso

dos taxistas e demonstrava sua preocupação com o companheiro e seu temor de ser

novamente violentada, neste caso o taxista. As mulheres concordaram com o perigo de se

pegar uma carona sozinha de madrugada, mas não concordaram com a necessidade de Janaína

de levar o marido consigo e de se preocupar com ele após as recorridas cenas de violência

entre eles. Assim, este trecho de seu relato abriu uma série de questionamentos sobre o seu

posicionamento em relação ao companheiro.

Camila: Mas Janaína, você vai me desculpar filha, mas você não podia ter dó dele

não, ele violentou (mulheres do grupo falam juntas) Ele não fez nada?

Janaína: não é ter dó não. Eu não tava, não é ter dó (...)

Nina: ele pode te bater te espancar, te rebentar e você sentir a dor, agora por a

algema nele e tirar o cigarro da boca do bonitão, a dor doeu mais em você do que os

tapas que deu nele.

Janaína: Não foi porque doeu não sabe o que ele fez comigo o policial perguntou ele

Page 115: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

114

assim, você tem o costume de bater em mulher, ele me bate desde os 19 anos.

Nina: pois é.

Janaína: ele negou, nunca encostei a mão nela não.

Nina: pois é. (falas de todas as mulheres reagindo ao posicionamento de Janaína)

Janaína: se eu fosse encostar a mão nela...

Nina: você tinha que dizer bate sim senhor....

Cíntia: A gente tem que começar a crescer, isso aconteceu, mas só que o que

acontece com você é pior do que o Policial chegar e agredir ele, eu sei que foi na sua

frente eu sei que doeu pra caramba, mas pelo amor de Deus (mulheres falam juntas

comentando sem parar)

Janaína: Deixa eu falar Dona.

Cíntia: eu sei, eu entendi tudo que a senhora falou eles fizeram desrespeito com você

(Mais falas juntas) Mulher comenta: Eles tinham que ter falado com ele, com ele.

Cíntia: mas porque você foi lá e falou com o cara não desacata o policial não. Deixa

ele fazer o que quiser.

Mulheres concordam: É

Simone: e até parece que ele ia te obedecer né, Janaína. (Mulheres continuam

falando juntas)

Camila: Ó gente ó, para todas, a gente fica com dó de homem. É para todas. A gente

fica com dó de homem, achando que a gente, às vezes, está passando dos limites.

Quando ele quer fazer terror com a gente eles fazem completo.

Mulher: É eu passei.

Camila: Pelo amor de Deus, o cara entregou minha cabeça sabendo que eu tinha

filho de um ano e nove meses lá, filho dele e ele nem ligou, ele foi e lá perguntou o

porteiro se foi serviço completo.

O sentimento das mulheres em relação aos companheiros violentos é um tema delicado e

recorrente. Neste trecho o que chamou a atenção foi a convergência das participantes sobre a

inadequação do posicionamento de Janaína. Pode-se dizer que o grupo foi convergente em

uma posição divergente. Percebe-se pela ansiedade e quantidade de falas e opiniões sobre o

tema um indicativo do impacto deste assunto, bem como um interesse em ajudar a outra

participante. O sentimento de dó do companheiro durante o processo de enfrentamento à

violência não é considerado coerente pelas participantes do grupo. Espera-se que a mulher

consiga fazer uma retrospectiva e sinta-se legitimada em seu posicionamento de

enfrentamento à violência.

Após esta longa e tensa sequência de relatos de cenas de violência e tentativas frustradas de

acionamento da Polícia, a coordenadora busca incentivar as participantes, de uma forma mais

amena, a pensarem sobre como deveria ser a abordagem deste tipo de violência pelos agentes

da Polícia.

Simone: Nesse caso seu, vamos fazer de conta que a gente tem a varinha mágica

daquela menina que estava aqui no grupo passado, o que você acha que deveria ser

feito? Vamos pensar, como deveria ser então que a Polícia,vamos ensinar a Polícia a

trabalhar, como se fosse assim, você foi violentada como mulher como é que deveria

ter acontecido?

Page 116: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

115

Janaína: Não, Simone sabe o que eu acho assim, que a Polícia deveria ter um pouco

mais de educação, mais seriedade porque a gente tá precisando da ajuda deles então

eles têm que ajudar mesmo, mas ter um pouquinho de educação, pelo menos para

tratar, conversar com a gente, e não é assim chegando igual ela falou lá....

Camila: Eu queria assim que o meu ex-companheiro na época recebesse um

corretivo,

Simone: Corretivo é o que? Tem que falar.

Camila: eu queria que a Polícia.

Simone: Para mim corretivo é isso aí que a Janaína falou.

Camila: Tá. Mas quando eu estive presa, o tempo todo você tinha que assinar, você

foi agredido? Eles fizeram alguma coisa com vocês?

Simone: você fez o que? Você falou não?

Camila: lógico que não, eu fui agredida, eu estava cheia de marca, só que é o

seguinte, aqui dentro desta instituição você foi agredida? O que queria naquele

momento era que fizesse justiça, aqui na lei no Brasil hoje, se você ficar dentro de

uma sala fechada é uma forma de fazer justiça, pela lei.

Simone: É ficar preso?

Camila: ficar preso, então o que acontece, quando eu chamei a Polícia para o K. eles

conduzissem ele até o local lá e depois eles se entendessem com ele, meu filho não

precisaria estar assistindo um horror, o que eu fico revoltada com a policia.

Comentários das mulheres quando percebem as cenas de violência.

Camila: Eles pegam o cara no meio da rua, você tá no ponto de ônibus, você tá na

fila, eles cortam o cara, ele não estão querendo saber quem está em volta porque

todo mundo.

Mulher concorda: eu também acho.

Camila: fica horrorizado. Então o que a Janaína queria? Eu acho que isso

funcionaria para a Janaína, a Janaína já está vivendo o terror tem muitos anos, se

eles chegassem lá e conduzissem o marido dela e falassem: Ô Senhora fica tranquila

se a senhora quiser chamar o advogado para ele nós vamos conduzir ele até tal lugar.

Simone: você queria isso Janaína?

Camila: sem violência.

Mulher: que não o algemasse...

Simone: mas algemado ele tinha que ser porque ele estava sendo preso, ou que

tivesse levado ele para Polícia, mas sem dar soco, para conversar (falam juntas). Não

estou falando que tinha que prender ele, mas sem dar soco que você considerou uma

coisa errada. E tivessem encaminhado ele para o camburão e conversassem com ele

lá na delegacia, o que você acharia dessa historia?

Janaína: Não, eu acharia assim.

Simone: ou você acha que tinha que conversar com ele lá na sua casa mesmo?

Janaína: do dia que fizeram isso com ele, deveriam ter feito assim, então levasse,

igual ele falou: A senhora vai ter que ir com ele, tudo bem eu vou, mas o que vocês

vão fazer com ele, ele só pegou e falou assim para mim, rodou com nós a João César

inteira pelo amor de Deus,

Simone: Mas o que você queria?

Janaína: Eu queria que eles fizessem com ele assim, levasse ele lá na delegacia e

com ele mesmo eles não conversaram nada, não falou nada, só comigo, só comigo,

ele devia ter chegado igual o Delegado, você dois vão conversar com o delegado e o

delegado nem chegou perto de nós.

Camila também questiona o posicionamento da Polícia e apresenta sugestões de como

poderiam ter agido os agentes policiais que a prenderam:

Camila: não foi a Polícia que fez a violência comigo, foi o pai do meu filho. Eu

passei mais de 24 horas presa. Ele iniciou a violência combinando com os Policiais

só para fazer medo, mas se a Polícia fosse realmente uma instituição séria.

Simone: isto eu concordo.

Camila: o que eles teriam feito, não eu não quero assinar a intimação, não. Tudo

Page 117: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

116

bem nós vamos fazer uma certidão ela tá sabendo o dia e a hora, mas não precisa

assinar, Passe bem senhora e vai embora. E eu estaria sabendo o dia e a hora, porque

eu não sou obrigada assinar, e ainda tenho o direito de consultar meu advogado

porque eu posso ou não estar assinando, senão não existia essa profissão de

advogado. Então eles não me permitiram que meu advogado soubesse do fato e nem

permitiram que eu não assinasse, me prenderam como se eu fosse uma marginal, o

meu filho ficou exposto, sem ninguém sem aparato nenhum.

Ainda sobre o assunto Fernanda sugere:

Fernanda: porque, por exemplo, você aciona o 190 e você tem que ficar porque você

foi agredida e tem filho para criar, tem casa, tem tudo e não ir lá para tomar chá de

cadeira. Lá eles vão passar o sabão nele e lá ele tem o direito de visita e vai chegar e

conversar: eu não vou tirar (a queixa) que você merece estar aí. Até mesmo porque

se ele sair depois ele não vai mais fazer isso com ela porque se não ela vai chamar

de novo e ele vai tomar outro chá de cadeira de novo. O que está errado no sistema é

que, às vezes, você que não é criminoso acaba pagando o crime, porque só de ver

aquelas crianças com aquela cara de sofrimento com o cara lá algemado...

Poder-se-ia resumir as sugestões das mulheres como uma ação policial que não fosse violenta

nem com ela nem com seu parceiro e que, principalmente, fosse realizada a oitiva do parceiro

pelo Delegado e que ele, pelo menos escutasse uma advertência das autoridades policiais

sobre seu comportamento violento/criminoso.

A esta altura da discussão (uma hora e trinta minutos de sessão) o tempo do grupo estava

acabando e era importante que a coordenadora, pelo menos esboçasse um fechamento para

aquela sessão onde foram debatidos assuntos tão delicados e difíceis. Ela concorda com as

colocações das participantes sobre a ineficácia institucional de enfrentamento à violência e

reafirma que compreende os variados sentimentos das participantes durante toda a trajetória

de enfrentamento à violência. Desculpa-se com as participantes que desejavam contar

alguma coisa, mas que não foi possível e reafirma que concorda com a colocação de Camila

no que se refere à negativa de um de um serviço pautado pela demagogia.

Simone: mas aqui só para fechar, isso tudo, esse momento de revolta é um momento

necessário, é importante. Eu acho que a fala da Camila muito séria, se for para fazer

uma demagogia. (Mulher do grupo comenta) eu também estou fora, eu como

profissional e como ser humano, só que eu não sou a instituição, apesar de estar

reapresentando ela.

Camila: eu sei separar isso muito bem.

Simone: Até para mim é complicado, porque ao mesmo tempo eu sou mulher

também, sou a psicóloga de vocês, mas ao mesmo tempo sou funcionária da

Prefeitura de Contagem, ao mesmo tempo eu também tenho meus superiores...

Page 118: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

117

A exposição da confluência de lugares ocupados pela coordenadora e seu posicionamento

frente a eles se deu no sentido de incitar as participantes a perceberem que a proposta do

grupo é pensar junto sobre todo o processo de enfrentamento à violência. A tentativa da

coordenadora de produzir uma demanda grupal frente à violência fica como um desafio ao

grupo e à coordenadora que, neste momento, se coloca como uma mulher na mesma posição

de vulnerabilidade das mulheres participantes do grupo e de toda sociedade.

Simone: como sugestão eu posso passar para frente (o caso), para o grupo, para cada

uma de vocês, as alternativas, as formas que vocês acham que as instituições

poderiam ajudar. Ela falou no jornal, é uma hipótese, mas têm outras, vamos listar,

entendeu. Eu não posso garantir, não sei o que vocês vão pensar...

Susana: já é um momento, né?

Simone: igual ela falou, tomar providências, às vezes, é ter uma idéia... (...) eu vou

pensar muito no que a Camila falou, do que a Janaína falou, espero que vocês

pensem junto comigo, porque a gente trabalha no grupo é para isso, para a gente

pensar junto né e o que eu falo sempre, igual eu falei aquela vez da traição que a

Nina trouxe que a Elis trouxe é nesse momento elas estão vivendo isso, mas isso não

quer dizer que a gente não possa viver ou a gente não pode ter vivido e essa situação

que a Camila tá vivendo e que a Janaína viveu também, infelizmente, a gente não

pode prometer. Então não é um caso da Janaína e da Camila é um caso das mulheres

nesta situação, agora o que eu acho é que vai ser interessante que eu quero que seja

feito é que com o tempo assim pode ser que é, explicar para vocês novamente o que

o Espaço Bem-Me-Quero é novamente. Essa rede que existe é uma rede falha, em

construção é uma rede que não tem nem cinco anos de existência, quer dizer, em

Contagem já tem três anos em BH ela tem muitos anos. E temos que deixar bem

claro que o que aconteceu com a Camila foi em BH, no caso da Janaína foi de

Contagem.

Camila: Eu tava em Betim, fui para Contagem depois me transferiram para BH.

Simone: Três cidades, então, pior ainda, porque a Polícia de uma cidade conta para a

Polícia de outra cidade. Uma vai passando para a outra e se passou foi porque todo

mundo estava concordando.

Camila novamente demonstra sua insatisfação com o andamento de seu caso e com o

posicionamento do Espaço Bem-Me-Quero.

Camila: Porque no momento da violência, eu citei o Espaço Bem-Me-Quero, gente

eu não estou desamparada, eu tenho um lugar que eu posso estar pedindo recurso e

eles vão olhar por mim, então quando eu cheguei e ele olhou para mim, liga para

esse telefone aqui, liga para a corregedoria é o que posso fazer para você, numa boa

Simone, se eu tivesse um pouquinho menos de educação eu mandava ele tomar no

(...) porque esse telefone eu conheço ele também.

Simone: Mas ligar para corregedoria você não acha que seria uma boa também?

Camila: Ô Simone, eu sou uma areia no meio de um deserto, uma areia no meio do

deserto, se eu estiver amparada por uma instituição, não será mais uma areia.

Simone: Mas a Corregedoria, só para entender, a corregedoria aceita, é o local para

reclamação do cidadão.

Camila: Exato, mas era isso que eu queria dizer, mas a violência contra a mulher.

Simone: é muito maior.

Camila: no Espaço Bem-Me-Quero trata de que? De pessoas que sofreram violência

então o que eu queria me sentir amparada, uma instituição que eu poderia falar

Page 119: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

118

assim, não, eu estou nesta instituição, eles sabem do meu problema, eu já estou com

eles há um ano e três meses e aconteceu isso, o Espaço Bem- Me-Quero entrasse

para me dar um apoio entendeu.

Mulher do grupo: para te fortalecer.

Camila: para me fortalecer. (Falas das mulheres comentando e concordando)...

Cíntia: Fala pra gente Simone, elas estão passando por isso, eu to vendo a Camila

aqui, eu estou me vendo na Camila, Deus queria me livrar, pelo amor de Deus.

Mulher: eu também.

Camila: Mas o que gostaria do Espaço Bem-Me-Quero Simone, eu acho que é

possível. É possível o Espaço Bem Me Quero fazer, entendeu, é ele sair do que ele

tá daquela plaquinha ali fora, dos profissionais gente boa que vocês são e ir para o

mundo, crescer, entendeu,

Mulher: é.

Mulher: fazer a diferença (as outras concordam)

Camila: quando uma mulher chegar agredida e ela chegar e falar olha eu tô no

Espaço (muitas falas altas).

Janaína: igual àqueles programas que vai que tem reclamação para você ver, igual

tem lá, todo mundo para apoiar então todo mundo para apoiar, tem um advogado

que conversa com todo mundo naquela hora, então a gente precisa é de um grupo

assim para ajudar a gente a resolver esse tipo de problema, porque a Polícia não

resolve, o advogado vai enrolando, enrolando você e não resolve.

Pelas colocações de Janaína e Camila e a concordância das mulheres do grupo pode-se

perceber a necessidade premente de apoio institucional por parte das mulheres sobreviventes

à violência de gênero. O Espaço Bem-Me-Quero apesar de ser reconhecido com a função de

orientação e encaminhamento, mas não suficiente frente às demandas das mulheres em suas

trajetórias de enfrentamento à violência de gênero. Se a partir dos relatos de Janaína e

Fernanda pode-se questionar o posicionamento da Polícia Militar, Camila questiona o Espaço

Bem-Me-Quero. Ela apresenta o embate entre as duas instituições na Rede de

Enfrentamento. A partir de sua fala percebe-se que o Espaço é posicionado pelas mulheres na

Rede como lugar de legitimização e apoio, inclusive frente às ações policias e de outras

instituições. O desabafo de Camila é emblemático. Ela, ao mesmo tempo, diferencia e desafia

o poder do Espaço Bem-Me-Quero na Rede de Enfrentamento à Violência. As participantes

de certa forma entenderam e concordaram com Camila sobre a importância e necessidade de

uma instituição forte para apoiá-las no enfrentamento à violência, inclusive, contra outras

instituições da Rede. Este desafio é forte e a situação de desamparo as apavora.

Camila encerra a discussão reafirmando o desafio ao Espaço Bem-Me-Quero de se posicionar

na Rede de Enfrentamento à Violência no sentido de se legitimar e de ter visibilidade na

Rede, conseguindo, desta forma, um tratamento adequado para as mulheres atendidas por ele.

Camila: Igual aquele negócio da profissão das mulheres que sofrem violência,

ótimo, mas não e só isso que nós precisamos, nós precisamos ter um aparato porque

na hora que a gente sofrer a violência e nós temos que ter consciência, a Polícia não

Page 120: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

119

tem preparação, então se a Polícia souber que existe um espaço que tá olhando pela

gente, mesmo que seja um pouco pela janela, que esteja olhando de verdade sem

demagogia aí eles vão pensar: pô se eu fizer violência com esta dona aqui amanhã

eles estão metendo o ferro de novo, porque elas têm uma instituição que é

verdadeira.

Mulher do grupo concorda

Camila: e que olha pelo direito dela mesmo, não é um advogado para ficar na porta

de cadeia soltando mulheres, mas que façam a diferença mesmo entendeu, o que eu

queria não era que o Espaço arrumasse um advogado não.

Simone: até porque você tem um advogado

Camila: que o Espaço montasse junto comigo, olha ela tem um ano e três meses que

a gente tá acompanhando ela e ela sofreu uma violência sim e o Espaço está

querendo...

Simone: como se fosse confirmar o que você disse?

Camila: Não, não é confirmar, que o Espaço falasse assim, olha ela está com a gente

aqui entendeu e nós estamos com ela então, eu sou uma areinha no meio do deserto

com o Espaço Bem Me Quero seria muito mais entendeu? E o Espaço Bem-Me-

Quero começaria a fazer a diferença quando a gente ligasse para o 180, o 190 e a

mulher falasse assim: Olha, eu tô no Espaço Bem-Me- Quero. E aí peraí, eu vou

começar a tratá-la com uma diferença, porque ela não está desamparada.

Por fim, Camila reafirma a sua aposta na proposta do grupo e do Espaço como um lugar

diferenciado e desafia-os a fazerem a diferença.

Camila: Eu insisto nesse grupo há um ano e três meses.

Simone: eu concordo. Camila: porque eu acredito que ele vai sair do papel, por isso

que eu acredito, eu tô insistindo há um ano e três meses porque as pessoas ficam

assim você vai para o grupo de louco, pensem o que vocês quiserem, porque eu

quero sim, que aqui cresça (comentários) e que seja um local que as mulheres

possam sentir amparadas não só para ter apoio psicológico, mas para a mulher

conseguir sair daquela violência, por que a violência doméstica porque quando é ela

e a Polícia, vem a Polícia e a gente desiste da Polícia...

Sessão do Grupo nº 60

Data: 29 de julho de 2009

Exibição do filme: “Dias e Noites”

Duração: 2 horas e 45 minutos

Participantes: Nina, Cíntia, Graça, Marília, Kenia, Janaína, Rosa, Susana, Clarice, Fabíola,

Elis, Júlia, Amelina.

Coordenação do Grupo: Simone (coordenadora) e Rafaela (observadora)

“Você deixou de ser mulher, você quis ser gente” (Clotilde, filme “Dias e Noites”).

Nesta sessão foi exibido o filme “Dias e Noites”, em cópia original, ofertada pela produtora

Nora Carús da Voglia Produções Ltda. “Dias e Noites” é uma adaptação para o cinema do

romance “Clô Dias e Noites” do escritor Sérgio Jockyman, publicado em 1982, baseado em

Page 121: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

120

fatos reais. O filme conta a trajetória de quase três décadas de Clô. Ela se casou, segundo os

interesses de seu pai, com um homem violento, possessivo e machista. A violência no

casamento ficou mais acirrada com a primeira gravidez, quando o companheiro esperava um

menino, mas nasceu uma menina. Após descobrir as traições do marido, Clô decide sair de

casa e aí se inicia sua trajetória de sobrevivente à violência de gênero, em uma época (1960)

em que o divórcio, as Delegacias de Mulheres e as leis de proteção contra a violência contra a

mulher não existiam. O filme é o retrato de uma época, com cenas magistrais como a da

primeira noite de Clô com seu marido e a cena dela com sua neta no final do filme. Um filme

recomendado para todos e todas.

Antes da apresentação do filme a coordenadora entregou uma folha para que as participantes

registrassem observações relacionando o filme com suas vidas e trajetórias na Rede de

Enfrentamento. Esta folha poderia ser entregue posteriormente. Algumas participantes

entregaram no mesmo dia, outras na sessão posterior e algumas não entregaram. Rosa disse

que não conseguiu fazer o solicitado porque “a vida dela lembrava tanto a da mulher do filme

que ela começou a chorar”. Após o filme, ocorreu um breve momento de discussão e

apresentação de impressões. A observadora realizou as anotações do momento da discussão

que não foi gravada. Janaína imediatamente começou a chorar e disse: “A violência é assim

mesmo, passa de geração para geração”. Seguindo o mote do filme a coordenadora distribuiu

um texto sobre o caso da adolescente Eloá Cristina Pimentel (morta pelo ex-namorado

Lindenberg Fernandes Alves, em outubro de 2008) que apresentava a discussão sobre a

importância de se dizer não. Ocorreu grande identificação das mulheres com a personagem do

filme, com apropriação de suas falas e, também foi possível problematizar a perspectiva

histórica da violência de gênero no Brasil, a partir da trajetória de Clô. O filme ofereceu desta

forma, subsídios para a realização da tarefa grupal. Após este momento de discussão foi

realizado um lanche coletivo. Durante a sessão do filme o Espaço Bem-Me-Quero ofertou

pipoca e refrigerante para as participantes.

Sessão do Grupo nº 61

Data: 05 de agosto de 2009

Duração: 01 hora e 45 minutos

Participantes: Nina, Samia, Fabíola, Elisa, Cíntia, Kenia, Rosa, Susana, Elis.

Coordenação do Grupo: Simone (coordenadora)

Page 122: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

121

Esta sessão não pôde ser utilizada para esta pesquisa porque a observadora não compareceu e

a gravação ficou tumultuada por causa do excesso de falas sobrepostas. As nove participantes

estavam eufóricas. A coordenadora fez as anotações da sessão e pontuou a dificuldade para o

registro para as participantes.

Sessão nº 02

Sessão do Grupo nº 62

Data: 12 de agosto de 2009

Duração: 01 hora e 35 minutos

Participantes: Camila e Fabíola

Coordenação do Grupo: Simone (coordenadora) e Rafaela (observadora)

“Dá para aguentar mais um pouco...” (Fabíola).

Na abertura desta sessão a coordenadora deu as boas vindas a Camila que não compareceu às

duas últimas sessões. A coordenadora discutiu com ela os motivos de sua ausência e os

sentimentos que ficaram após a sessão onde ela apresentou seu protesto sobre o

posicionamento do Espaço Bem-Me-Quero sobre o seu caso (sessão dia 22 de julho de

2009).

Simone: Mais e a Dona Camila como vai?

Camila: Estou bem graças a Deus.

Simone: Tava magoada, né?

Camila: Eu tava, já passou.

Simone: Tava falando com a Célia (gerente do Espaço Bem-Me-Quero) hoje de

manhã deixa a raiva dela passar.

Camila: É eu fiquei chateada, mas é mais por causa do meu problema.

Simone: E qual o balanço que você faz? Isto é importante para mim.

Camila: Não, eu acho que a gente tem expectativa demais, às vezes nem é do jeito

que a gente quer as coisas.

Simone: Você acha que tinha que ser ou não.

Camila: Eu acho que eu merecia uma atenção mais especial, sabe?

Simone: Só você ou qualquer mulher?

Camila: Eu acho que qualquer pessoa. Quando eu falo aqui por eu acreditar no

grupo. Eu acho, não, eu pensei que isso ia ser uma situação que o Espaço Bem-Me-

Quero ia crescer com isso, a entidade aqui. É uma situação de violência extrema.

Mas, talvez eu tenha muita expectativa, acima das possibilidades.

Simone: eu pensei muito.... essa historia não acabou não, pelo menos pra mim ainda

não acabou e pra Célia também não acabou. A gente estava conversando justamente

essa história, o que aconteceu com você e todos os encaminhamentos que foram

dados e as coisas que foram feitas? Essa história não parou aí. Está acontecendo

aqui, é até bom que vocês dão sua opinião, uma reunião uma vez por mês, uma

reunião nova de Contagem, para uma rede nova de Contagem, aí estão vindo duas

psicólogas da Polícia Militar de Contagem. Então eu comentei por alto, mas por alto

Page 123: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

122

mesmo os encaminhamentos que foram feitos. Mas eu acho que tem coisa que tem

que ser ouvida. Não adianta eu falar: Ah, tem uma mulher que eu atendo, entendeu...

Camila: Não. E se assim, se precisar do meu depoimento eu venho, não pela minha

situação,

Simone: Eu sei, eu sei...

Camila: por que quantas mulheres ainda vão fazer um pedido de DNA pro cara que

tem influência? Quantas mulheres vão ser retalhadas como eu fui, entendeu, por não

ter tanto recurso...

Após este momento necessário de acolhida de Camila, ela atualiza o grupo sobre os últimos

ocorridos em seu ciclo. Ela relata que o pai de seu filho a procurou para ameaçar e tentar

desestimular sua decisão de levar o processo de reconhecimento de paternidade adiante. Além

disso, pela primeira vez, ela se referiu a uma cena de violência do passado, onde ele a havia

influenciado para que ela interrompesse uma gravidez através de um aborto (que ela, por fim,

realizou). Para ela, esta situação se comparava com o que estava ocorrendo agora, onde

novamente ele tenta de todas as maneiras dissuadi-la de sua iniciativa de processá-lo.

Fabíola19

que até agora ficou mais na escuta, reage na defesa dos direitos de Camila e de seu

filho, indiferente da opinião do pai.

Coincidentemente, sem ter assistido o filme, Camila diz “inclusive eu até estou me sentindo

superior, agora eu acho que eu cheguei ao auge da terapia, por isso que eu estou feliz e vim

aqui pra contar pra vocês que eu consegui dizer não. (Risos).” O motivo de sua felicidade era

que ela tinha conseguido sair da relação com seu atual namorado (também seu advogado).

Camila: ele aproveitou dessa situação (da prisão) para me intimidar. Ele estava me

escravizando, ele me levou pra casa dele eu tava servindo de tudo.

Fabíola: Socorro.

Camila: de carpinteira, de faxineira, de bombeira hidráulica

Fabíola: Seu advogado, seu advogado?

Camila: de bombeira hidráulica de pintora, eu estava num lelê danado e ele ficava

assim.

Fabíola: você chegou a ficar com esse homem?

Camila: Eu estava que nem mulher dele, eu estava servindo ele literalmente.

Fabíola: ah, tava

Simone: igual no filme mesmo.

Camila: Um mês e meio que tava morando com ele, ele não deixava nem eu vir na

casa da minha mãe. Inclusive, das duas vezes que eu não vim, é por que eu estava na

19 Fabíola é uma das mulheres assistida há mais tempo pelo setor de psicologia do Espaço Bem-Me-Quero. Ela

iniciou seus atendimentos individualmente em 2007, primeiramente, com a estagiária Andréia Carvalho e depois

com a coordenadora. Assim ela está em atendimento desde antes da entrada da coordenadora na instituição e da

formação do grupo. Fabíola, inclusive, participou da primeira sessão do grupo e veio mantendo regularidade no

grupo desde então. Ela só se ausentou após ter iniciado um trabalho formal com carga horária de 08 horas

diárias. Ainda assim, ela agendou alguns atendimentos individuais e participou de algumas sessões do grupo. Na

última sessão (não analisada nesta pesquisa) antes de iniciar seu trabalho formal, ela se despediu chorando e fez

um apelo emocionante às mulheres presentes para que não permitissem que a violência continuasse.

Page 124: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

123

casa dele e ele literalmente me prendeu. (Fabíola: nossa que situação) na casa dele

para eu não vir na terapia porque ele achava que aqui era um risco para ele, que aqui

eu me fortalecia.

Fabíola: Mas você conseguiu se libertar dele?

Camila: consegui. Eu fugi dele eu vou para a minha casa eu vou retomar a minha

vida, aí toda hora ele me falava assim: porque eu cobro mais de três mil reais pra

tirar alguém da prisão...

Simone: Com dinheiro.

Fabíola: com ameaça.

Camila: Porque você tem mais é que me servir porque eu não cobrei para te tirar da

prisão. Aí eu falei não e não, aí eu fugi dele aí ele foi atrás de mim. (...) Igual a

minha irmã falou a gente tirava o dinheiro de onde fosse, mas você não tem que ser

escrava de homem não. Eu estava sendo escrava dele.

Simone: até a sua irmã falou...

Camila: a minha irmã que foi atrás com ele pra me tirar da prisão. A gente pagava o

preço que fosse você não tem que se sujeitar a isso, Camila. Você já se sujeitou 12

anos com outro cara. Já apanhou do C. (outro ex-namorado), o que mais você está

querendo da vida?

Neste trecho é interessante notar como a situação vivida por Camila com o namorado revolta

não só a ela, mas também à sua irmã e à Fabíola. A percepção de que a irmã estava iniciando

um novo ciclo de violência fez com que ela questionasse Camila sobre seu posicionamento

frente a toda aquela história. A aparente troca de serviços na qual a relação se baseava

incomodou Fabíola por seu evidente caráter opressor e violento.

Após este relato inicial de Camila, a coordenadora retomou a sessão anterior à qual Fabíola

compareceu apresentando uma série de questionamentos (como é de seu costume). A

sugestão da coordenadora é que se aproveite esta sessão para focalizar a discussão nas

questões que ficaram abertas nos últimos encontros. O fato de Camila e Fabíola participarem

do grupo praticamente desde seu começo possibilita a elas apresentarem uma análise do

processo grupal/terapêutico e do posicionamento das outras participantes neste.

Fabíola: Eu percebo que elas ficam muito perdidas, muito focadas no que o marido

falou, como que o marido tratou, fica assim relatando o que elas vivenciaram em

casa... Eu não tô aqui pra me expor para vocês não... Eu prefiro assim, às vezes, a

gente até responde de certa forma assim... Eu prefiro questionar: porque que eu tô

permitindo isso? O que eu tô fazendo, o que acontece, até onde eu estou agüentando,

mas buscando resposta do questionamento do conflito, do questionamento interno.

Simone: você perguntou por que, a pergunta que você faz há muito tempo, mas a

gente tem que dar um entre aspas desconto porque essas que você fala, elas estão

contando mesmo o caso, elas estão na fase de passar a história. Um dia até a Camila

falou isso: eu não quero contar mais a história. Acho que tem uma hora que é isso

mesmo você vai contando a história... (Camila e Fabíola concordam) Você e a

Camila já faz um ano que vocês estão aqui, eu não quero mais contar a historia. Eu

acho que uma hora a gente vai contando mesmo, a terapia, a história... A gente vai

conversando...

Fabíola: é um processo... É um momento

Simone: é só para a gente entender isso, para a gente entender isso. Tem um

momento que talvez seja necessário (Fabíola vai concordando com esta fala).

Page 125: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

124

Fabíola: Até para desabafar...

Simone: Mas é preciso essas perguntas que você faz para dar uma mexida nas outras

também porque se não...

Camila completa minha frase: só fica contando história...

Fabíola: só fica contando história... Se ficar contando não sai do lugar, né?

Camila: Por exemplo, eu vou dar exemplo das pessoas que estão comigo no grupo

que eu observei, a Graça é uma pessoa que já quase não conta mais nada dela, mas

ela já está bem avançada.

Fabíola: refletindo já...

Camila: A Cíntia toda vez que ela vem no nosso encontro ela conta a mesma

historia, a mesma história...

Simone: Como é que é? Pra quem?

Camila: e eu percebi que ela está um pouco perdida. ... Inclusive no dia do processo

dela ela ligou junto com a Graça e eu tive que vir aqui correndo, levei-a na casa dela

para buscar, entrar com os negócios lá do fórum.

Simone: como é que foi o negócio? Você ligou para quem?

Camila: elas ligaram para mim, a Cíntia e a Graça no dia do processo.

Simone: Para que?

Camila: Para contar. Aí eu falei espera que eu estou chegando aí. Aí eu saí correndo

de Betim. Só que ela estava precisando ir lá a casa dela buscar os documentos dela

pra no mesmo dia ela entrar no Fórum para poder receber a pensão alimentícia. Eu

fiquei super feliz de ter ajudado porque realmente ela estava tão perdida, chorando...

Este trecho da sessão reafirma a percepção da participação no grupo de forma diferenciada

entre as participantes do grupo “veteranas” e “novatas” como nomeadas por Camila e Cíntia

na sessão discutida anteriormente. Também se percebe que o processo grupal/terapêutico é

composto por momentos: contar a história, desabafar, questionar (se). É interessante que elas

tenham chegado a esta conclusão como um indicativo justamente de que elas próprias estejam

passando por este processo. Fabíola questiona-se sobre seu posicionamento no processo de

enfrentamento à violência: “até onde eu estou permitindo?”. Esta sua provocação perpassará

toda a sessão e servirá para problematizar mais uma linha do emaranhado da violência: a

própria mulher sobrevivente à violência de gênero. Se na sessão analisada anteriormente o

foco dos questionamentos foi o posicionamento das instituições, nesta perceber-se-á uma

focalização sobre a mulher, seus sentimentos, sua relação consigo, seu parceiro e as

instituições. É como uma outra perspectiva para o mesmo emaranhado problematizado a

partir do posicionamento da mulher.

Para exemplificar o processo das participantes no grupo Camila relata o ocorrido no dia da

audiência da separação de Cíntia. Segundo ela, Cíntia estava “perdida” e chorando muito,

pois se sentira desacreditada. Esta cena será analisada na próxima sessão. Por enquanto cabe

chamar atenção para o fato de Cíntia ter se reportado a Camila e Graça (que a acompanhou à

audiência) neste momento decisivo de sua trajetória de enfrentamento à violência. Uma

estratégia construída e conquistada a partir da participação no grupo e da amizade cultivada

Page 126: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

125

entre elas.

O caso de Cíntia foi apropriado por Fabíola que o utiliza para exemplificar a situação de

descrédito da palavra da mulher. A recorrência desta percepção nas sessões aponta para um nó

a ser desatado no emaranhado da violência de gênero. Camila, como porta-voz do grupo, faz o

movimento de interpretação deste fato individual como um fato social. Esta provocação

converge com a discussão realizada na sessão anterior sobre o lugar da mulher como “areia”

frente ao Muro das instituições.

Fabíola: É por que quanto eles fazem isso com a gente. Eu já passei uma situação

semelhante, a gente fica assim, como é que fala vulnerável diante das autoridades,

das outras pessoas e agora o que ela vai, a gente fica com medo. Será que ela vai

acreditar nele ou em mim, será que... Passa pela cabeça da gente será que ela está

achando que eu menti que eu estou com jogo também. Você fica insegura sobre o

julgamento da outra pessoa.

Camila: Sabe por que eu acho que a gente tira estas conclusões?

Fabíola: ele fala com tanta certeza, com tanta veemência, que chega...

Simone: Ate confundir vocês...

Fabíola: É.

Camila: Eu acho que isso aí já esta na nossa cultura. A gente já é tão marginalizada

desde que a gente nasce, a mulher em si, que a gente acha que tudo que acontece a

gente já pensa: eles vão pensar mal de mim.

Simone e Fabíola concordam reflexivas: é

Camila: Igual uma coisa da gente uma coisa que está entranhada na gente,

entranhada na nossa cultura, a mulher não vale nada.

Fabíola: É...

Simone: Igual eu falei em outra sessão, por que não sei se você lembra: qualquer

frase que eles falam qualquer mulher, todas que aqui já passaram, qualquer frase

deixa você em suspenso...

Fabíola: é.

Simone: Igual aquele exemplo eu chamei para ir a tal lugar e ele não quis ir. Por que

tipo assim, ele fala não vou por que não vou e pronto. A mulher, não, porque igual à

Cíntia falou não vou por causa disso, você justifica. Não vou porque eu estou

gripada, etc, etc...

Fabíola: É.

Simone: é como se a sua palavra tivesse que ter, porque tudo que você fala tem que

ter uma explicação, uma justificativa

Fabíola: é mesmo.

Camila: Eu voltei lá atrás, eu tenho voltado muito na minha, lá no início, então a

gente é muito regrada desde sempre. Você não pode andar de “pererequinha” de fora

por que para menina isso é feio. (Fabíola concordando) então a gente é podada desde

sempre. O menino quando coloca o peruzinho pra fora, igual o meu filho de dois

anos esta com essa mania de tirar para fora e ficar expondo todo mundo acha bonito.

Fabíola: é.

Camila: A menina todo mundo já começa desde nova.

Fabíola: regrando...

Camila: Fica na tua. Não desce a calcinha pra você fazer xixi naquele cantinho, não

por que é feio. Tanto que quando a gente cresce...

Fabíola: A gente não pode nem abrir as pernas. (Fabíola e Simone concordam se

mexendo e fechando as pernas).

Este trecho exemplifica o sentido da violência de gênero compartilhado por este grupo: um

Page 127: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

126

fenômeno de base cultural/social que ocorre para além do âmbito doméstico, familiar,

conjugal e afetivo. A partir desta construção do grupo sobre o sentido da violência de gênero

a coordenadora provoca as participantes incluindo na discussão assuntos/situações-problema.

Desde o início desta sessão ela disse que iria “aproveitar da experiência destas veteranas”

para justamente, problematizar assuntos como este.

Simone: Aí fica aquela coisa, tem aquele fato que é uma coisa que a gente pode

pensar também. Então quem está aqui há mais tempo já conseguiu concluir, e vai

lembrando-se da vida quando era mais nova, no primeiro momento você conta sua

história, depois você vai tendo insights, a gente já conversou isto. Até quando a

mulher conta quando eu casei com 18 anos, e eu era virgem, aquelas coisa que a

gente escuta aqui. Primeiro ela conta, nem sempre quando a pessoa conta vem com o

insight junto: nossa é porque a sociedade tipo... Mas, não é todo mundo. Mas aí é

que eu acho que funciona nesse sentido porque aí uma escuta a outra, mas cada uma

no seu tempo. Mas aí iguais vocês duas, eu queria aprofundar mais isso. Aí tudo

bem, a sociedade é assim e daí? Como é que vocês acham que esse momento aqui,

as instituições ajudam, ou atrapalham? Porque aí é que é o negócio, a gente já sabe

como a sociedade é...

Camila: Por isso que eu cobrei do Espaço Bem-Me-Quero.

Simone: tudo bem. Eu entendi.

Camila: atitude porque eu imaginei que o Espaço Bem-Me-Quero estaria à frente

desse tipo de preconceito.

Frente ao questionamento da coordenadora Camila mantém seu tom de denúncia e desafio

em relação ao Espaço Bem-Me-Quero, instigando a instituição a se posicionar de forma

diferenciada, para além do preconceito percebido pelas mulheres do grupo em sua trajetória

pela Rede de Enfrentamento à Violência. Ela continua seu relato reafirmando a postura

violenta, omissa, e persuasiva do pai de seu filho durante todo tempo. Ele disse a ela “você só

foi presa por sua culpa, você está passando por tudo isso por sua culpa, se você não tivesse

entrado na justiça, eu não teria me afastado de você e a criança continuaria contando

comigo”.

Fabíola responde a pergunta da coordenadora apresentando suas reflexões sobre o assunto

através de mais questionamentos sobre seu posicionamento frente às situações conflituosas

em sua vida, incluindo a relação violenta com seu companheiro.

Fabíola: Eu fiz uma pergunta para mim mesma e agora eu estou com raiva de mim

mesma porque quando eu consegui assim chegar ao ponto assim (ela vem com um

caso para responder) de decidir, você sabe a minha história o conflito separa não

separa, vai não vai, vem não vem, aquela coisa. Quando eu chequei meu limite final,

estava insuportável o relacionamento e tudo, agora, há uns 15 dias atrás, eu tomei

uma decisão na minha vida, eu vou chutar o pau da barraca, eu estava decidida, eu ia

fazer isto numa questão de enforcamento (Simone concordando) porque eu já não

agüentava mais vivenciar o que eu estava vivenciando. Eu não estava feliz na escola

Page 128: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

127

(onde ela trabalha). Aí eu pedi pra ele fazer a renda do negócio (eles têm um

negócio juntos) aí ele bateu quando eu vi estava gerando quatro vezes mais do que

eu ganho. O que eu estou fazendo nessa escola? O que eu tô fazendo? Por que eu tô

agüentando tudo isso, a troco de que? Eu vou retomar o meu trabalho. O meu

questionamento é porque eu me deixo nas mãos das pessoas?

Simone: Está é uma boa pergunta.

Fabíola: porque eu estou sempre me deixando, eu sempre me deixo, deixo na mão de

uma amiga, de uma irmã, vizinha, de um marido. Se eu arrumar um amante eu vou

me deixar também. Agora eu estou começando a acordar para isso, eu não estou

deixando mais, eu estou me vigiando mais, eu não tô deixando na mão de ninguém

Agora o que eu tenho que fazer eu vou lá e faço, o que eu tenho que perguntar eu

vou lá e pergunto eu não tô deixando, eu tô começando a me alertar para isso. Mas

por muitos anos eu deixei e isso me levou a muito sofrimento, muitas angústias.

Camila: Teve um encontro nosso aqui que eu falei que é igual ao encontro do AA.

Simone: um dia de cada vez.

Camila: um dia de cada vez. Por que eu tenho o mesmo problema de você de estar

na mão de alguém, né Simone, todo encontro eu falo, ou é na mão do meu cunhado,

que não quis me demitir, eu fui demitida. Eu fiz valer a minha opinião ou vocês me

demitem ou eu vou levar vocês na justiça.

Simone: está certa.

Camila: Eu tô conseguindo seguir um dia de cada vez. (risos) O outro homem lá (o

namorado advogado) eu botei ele pra correr: eu não quero você porque se ele não

me quisesse a opinião dele ia valer. Igual o outro (o pai do filho dela) não me quis

mais arrumou outra namorada e foi embora... E nesses doze anos eu tentei sair fora

dele várias vezes e eu não consegui mesmo tendo outro relacionamento ele sempre

fazia valer a opinião dele e eu sempre voltava pra ele.

Fabíola: tá vendo

Camila: ele saiu fora e esse cara que me atormentava (o advogado), você tem que

ficar comigo, você tem que ficar comigo, vai ter festa de família da minha irmã você

tem que ir, uma inhaca danada. E ele ficou um chato aborrecido no outro dia e eu

tava lá igual um fantoche,

Fabíola: se deixando levar...

Camila: e eu continuei vivendo tudo aquilo e me perguntando

Simone: você não estava gostando dele.

Camila: eu não estava gostando dele porque eu estava vivendo a mesma situação

que eu vivi com o pai do meu filho. Tudo contra a minha vontade.

Simone: é.

Este trecho da sessão é rico em informações sobre vários aspectos da dinâmica do grupo (a

coordenadora como uma espécie de diário das histórias do grupo, a apropriação de Camila do

questionamento de Fabíola sobre seu posicionamento frente aos outros e o espelhamento de

Fabíola no caso de Camila), a apresentação de estratégias pelas participantes (questionar-se,

viver um dia de cada vez e posicionar-se) e a exemplificação das possíveis dificuldades

vividas ao se tentar encerrar um relacionamento violento/conflituoso. Vale à pena observar a

construção de mais um par antagônico de sentido para a situação de violência: fantoche X

posicionar-se.

A dinâmica da relação violenta e de sujeição que estava ocorrendo no novo relacionamento de

Camila é exemplificada em uma cena onde se reafirma a disputa pelo poder de dominar a

relação e subjugar o outro. Neste caso, a diferença de classe entre eles é denunciada e

Page 129: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

128

demarcada de forma irônica pelo namorado de Camila.

Camila: Tanto é que a gota d'água foi no dia que a gente foi no supermercado, eu

fazendo compras e ele começa a tirar as coisas do carrinho. Ai eu falei: parou, eu to

fazendo compra, não tira nada do carrinho, não.(risos) Mas eu é que to pagando.

Não interessa você me mandou fazer compra não tira nada do carrinho. Aí na hora

de pagar começou: isso é luxinho de pobre.

Simone: Ai meu Deus!

Camila: Então da próxima vez que eu fizer compra eu vou comprar luxo de rico, eu

sei fazer compra de rico também. Eu não sei fazer só compra de pobre não. Aí ele

falou: A próxima vez quem vai fazer compras sou eu. E eu pensei comigo: Da

próxima vez, não vai ter próxima vez.

A partir do relato desta cena a coordenadora inicia uma discussão sobre a disputa do poder

nas relações violentas. Neste caso, desenhou-se uma cena de disputa a partir do poder

financeiro e aquisitivo diferenciado entre Camila e o namorado. No caso do namorado de

Camila, ele tem condições financeiras estáveis que lhe permitem pagar a conta das compras,

mas ele quer deixar claro seu posicionamento de mando na relação: eu escolho, eu mando, eu

pago, o poder é meu. Camila pode até acompanhá-lo, mas no final, a última palavra/escolha é

dele.

A coordenadora recorda outras cenas relatadas por Fabíola de momentos do cotidiano como o

de pagar as contas de água, luz e telefone se tornavam tensos e disparadores de violência entre

ela e o marido. Percebe-se, a partir destes exemplos, que as situações simples do dia a dia

tornam-se disputas sobre o poder de mando e sujeição do outro na relação. Ele que vai dar o

dinheiro? Quem vai pagar? Porque eu é que vou? Estes são exemplos do momento de tensão

do ciclo. Alguns casais realizam uma negociação e o ciclo encerra-se, em outros casos o “eu é

que mando” vira um “soco”, ou seja, ocorre a violência física. Camila relata que saiu da

relação justamente por ter percebido que estava em um ciclo de violência com constantes

momentos de tensão/disputa de poder e que havia uma grande chance de que neste

relacionamento o ciclo se fechasse com cenas de violência. Esta foi uma mudança ativa por

parte de Camila que tem uma trajetória afetiva de ciclos de violência crônica

A partir da referência da discussão iniciada sobre poder /violência Fabíola relata que ela é

violenta com seu companheiro e como se sente “um lixo” com isto. Camila diz que já chegou

a esse ponto também. Nos dois casos, a violência era uma forma de mandar no outro e de

fazer valer a opinião a qualquer custo.

Page 130: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

129

Convergindo com este sentido da violência Camila pergunta:

Camila: Vem uma pergunta que não cala.

Simone: Aí vem a Camila.

Camila: todos. Eu tive de vários ângulos esta experiência como administrar isto para

não chegar à violência?

Simone: como assim administrar?

Camila: Porque eu tive esta experiência em todos os meus relacionamentos Essa

disputa é constante, só que eu tenho uma personalidade muito forte. Eu quero valer

minha opinião de qualquer jeito. Então, acaba gerando conflito. Será que seria

interessante eu ser igual minha mãe com meu pai?

Simone: Mas você está pegando extremo, passividade total, a gente já conversou

isso.

Fabíola: é.

Simone: O que você acha Fabíola?

Fabíola: tem que ter um pouco de estrutura. Nem mais nem menos, nem ser tão

submissa, ser menos submissa, é, não ser submissa. Não ser submissa. Estar sempre

se respeitando, mas eu agora tô olhando meu querer: é bom pra mim? Eu estou

gostando? Então está bom. Mas se arrumar aí eu dou o grito eu não aceito.

Camila: Porque a gente vai ter que chegar naquele ritmo.

Simone: qual é o ritmo?

Camila: porque a maioria das mulheres que trabalham a vida inteira, têm uma

profissão, são elas e o filho.

Simone: por que só tem essa solução?

Camila: Simone, os homens tá entranhado na cultura deles que eles têm que colocar

a mulher debaixo da sola do sapato deles.

Simone: Você não acha que não tem nenhum homem que não é assim?

Camila: eu acho que só na geração, não é nem na geração do meu filho. Fabíola: não tem nenhum que vai salvar.

Camila: eu acho que nem a geração do meu filho vai conseguir fazer isso, Simone.

Todo relacionamento que eu tive, eu tive homens assim de diferentes

personalidades.

Simone: eu vou falar com você igual o textinho que eu li, em todos os

relacionamentos quem era a única pessoa que estava lá.

Camila: Pois é Por que será que eu vejo todas as mulheres falando a mesma coisa...

Simone: a questão é assim mesmo.

Camila: vizinha, irmã, tudo. A minha irmã para ter um relacionamento estável com o

marido dela, mas tudo é ele que dita.

Os questionamentos e conclusões de Camila são compreensíveis, mas não definitivos. A

coordenadora questiona Fabíola sobre as colocações de Camila e, é interessante sua resposta,

refletindo sobre até quando uma mulher “poderia” ser submissa em uma relação. Por fim ela

conclui que não se deve ser submissa definitivamente e reafirma o posicionamento como

estratégia adequada. A coordenadora retoma, assim, a questão do posicionamento da mulher

na situação de violência. Camila, por sua vez, agrega à discussão o caráter geracional e

cultural da violência. Percebe-se neste trecho a dinâmica da negociação do sentido da

violência no grupo.

Page 131: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

130

Continuando Fabíola diz que se ressente consigo por ter mais uma vez perdido a coragem e

as forças. Após ser questionada pela coordenadora se o alcoolismo do companheiro era a

única desculpa para separar-se ela apresenta outra sequência de situações que a levaram a

repensar sua decisão.

Fabíola: O meu questionamento foi esse, Simone, por que eu agüentei esta situação

tanto tempo, para que? Estava fácil, agora eu vejo com clareza. Era só eu dar um

basta não querer e porque eu não consegui?

Simone: dar um basta quer dizer o que?

Fabíola: quando eu cheguei nessa situação de tomar coragem vou pedir para sair da

escola, vou entrar com o processo de separação e vou retomar o meu negócio. Eu ia

fazer estas três atitudes. Eu vou chutar o pau da barraca e não quero nem saber. Aí

quando eu chego lá na escola começou a me desarmar porque duas semanas antes

ele parou de beber, começou a ficar mais em casa, aí ficou aquela calmaria, sem

brigas, aí eu comecei a perder as forças... (...)

Simone: mas deve ter outra justificativa para não ter separado.

Fabíola: é feliz eu não estou não. Mas eu estou nessa...

Simone: fala com ela Camila.

Fabíola: Aí, agora, eu sempre tenho uma desculpa.

Simone: ela tem uma sequência de desculpa

Fabíola: eu tenho uma sequência de desculpas e no final das contas eu nem sei o que

eu fiz mais. Aí os meus meninos estão tudo encaminhado profissionalmente. A

minha filha tem o emprego dela lá na firma grande o meu menino iniciou o curso

dele no SENAI aí a empresa contratou e tal aí o caçula de 16 anos veio até aqui foi

encaminhado para o estágio. E aí gente e agora?

Camila: e agora está tudo bom que coisa chata. (Risos)

Fabíola: ele parou de beber, financeiramente eu estou ótima, estou até viajando. Aí

tá tudo bem. (Camila ri)

Simone: aí está tudo bem

Fabíola: está tudo bem entre aspas. Aí que começa a confusão eu vou mexer em uma

coisa que está aparentemente arrumada.

Camila: você vai mexer no vespeiro. Vai mexer na colméia.

Simone: a pergunta é: está bom para você se estiver bom para você.

Fabíola: eu vou mexer nos meninos eles não têm estrutura para isso.

Simone: É sempre a mesma história toda mulher fala isso, a gente já conversou isso

aqui, toda mulher, não tem como fugir. Os filhos sempre sofrem com isso, mesmo

casados, depois que tiver neto, isso não tem jeito, aí não adianta projetar, ficar

imaginando...

Fabíola: eu vou arrumar outra confusão.

Camila: eu sei lá eu acho é que você esta adiando o sofrimento, lógico que é uma

idéia extremista, é a mesma coisa assim deu falar: eu tenho câncer e falar ah o

câncer não tá doendo, não. ... Não vou tirar ele agora, não.

Fabíola: dá para agüentar mais um pouco.

A “decisão” de aguentar mais um pouco uma relação violenta, seja por meio de quais forem

as estratégias ou desculpas, retrata um aspecto recorrente no processo de enfrentamento à

violência de gênero. O ciclo se cronifica e toma ares de um câncer que aparenta não ter cura,

mas tratamento. A imagem escolhida por Camila consegue representar bem a cronicidade que

a relação de gênero adquire em algumas relações, bem como a dificuldade para as mulheres

de se tratar. Tanto a conclusão de Fabíola como a imagem apresentada por Camila

Page 132: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

131

representam quão dramático pode ser o processo de negociação das mulheres dentro de um

ciclo de violência de gênero.

Simone: É eu acho que a pergunta é essa aí: toda mulher resumindo é isso aí dá pra

agüentar mais um pouco. No final da história a negociação é assim: eu agüento mais

um pouquinho? O mais triste nisso tudo é que, lógico que tem gente que fala

claramente fica mais um pouquinho, as suas mães geralmente falam com vocês.

Igual a mãe da Nina que falou com ela agüenta só mais quatro anos até pagar o (seu

marido) acabar de pagar o carro do seu pai. Mas o pior é quando vocês falam com

vocês: dá para eu sofrer só mais uns três anos. Dá para eu sofrer só mais um ano.

Camila: igual a minha mãe ela sofreu só mais um pouquinho.

Fabíola: mas a minha vida é assim, sempre foi assim

Simone: sempre foi assim?

Fabíola é porque eu vou aguentar vai ser deste jeito, agora eu estou negociando

comigo mesma olha até onde vai a minha loucura. Ah, eu vou aguentar porque eu

vou ter um amante lá, ah eu vou agüentar porque eu vou viajar vou sempre viajando,

vou dando meus pulinhos e vou agüentando assim...

Camila: mas aqui, imagina que isso seja um câncer e que um dia ele vai te doer que

vai te levar para o buraco. Eu tô te falando com extremismo porque eu acho que é

isso mesmo por que a minha mãe foi agüentando mais um pouquinho, por que eu

sou uma mulher pacífica os meus filhos precisam alimentar, os meus filhos precisam

estudar e no final o meu pai morreu e se nós não estivéssemos correndo atrás igual

nós estamos ia ser pior. Ele deixou tudo de bom pra amante dele, amante que virou

esposa. Atualmente, ele deixou tudo para a amante dele e minha mãe se ela bobear

perde até a parte dela nessa casa dela. Ele deixou 150 mil pra mulher e pra filha que

ele tem com ela. (...) é um sofrimento...

Fabíola: é uma pressão maior ainda.

Fabíola apresenta uma série de estratégias que seguem a linha de manutenção da relação

violenta apesar da insatisfação com o companheiro como viajar ou ter um amante. Estas

estratégias, porém não vão ao encontro do questionamento da relação violenta, podem ser

percebidas como paliativos para que se “aguentar mais um pouco” a relação. O exemplo da

mãe de Camila que viveu esta situação por toda a vida confirma a perenidade que o ciclo pode

assumir caso não se adotem estratégias de enfrentamento à violência. Assim, este processo de

negociação entre “perdas e ganhos”, no caso de Fabíola e de outras participantes do grupo, se

resume a mais perdas que ganhos.

Fabíola: ganhos e perdas. De todo jeito são mais perdas. Se você perguntar: eu estou

sempre perdendo.

Simone. Aí que está o problema.

Fabíola: porque emocionalmente é uma perda enorme.

Simone: Então, aí que eu acho que é preocupante.

Camila: eu também negocio...

Fabíola: porque por mais que me vire de um jeito ou de outro que eu negocie de um

jeito ou de outro Eu tenho um avanço assim na minha personalidade, no meu jeito de

ver as coisas, mas eu tô sempre perdendo.

Simone: a sua sensação é que você está sempre perdendo?

Fabíola: é sempre. Perdas emocionais, conflitos, são sempre conflitos,

questionamentos, questionamentos, questionamentos. Isso tá me saturando.

Page 133: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

132

Simone: Mas, satura mesmo. Camila concorda também.

Fabíola: e o pior, agora que está acontecendo é que eu tô sentindo raiva de mim. E

eu vou me machucar mais. Eu do jeito que tô, eu vou fazer coisas que vão me

machucar porque eu tô com raiva de mim.

Simone: Isso é uma verdade.

Fabíola: e agora?

Fabíola como sempre apresenta questionamentos totalmente coerentes, mas para os quais não

construímos respostas ainda. Camila, novamente se apropria das definições de Fabíola para

explicar sua situação e apresenta como está negociando consigo mesma atualmente.

Camila: tem 15 dias que eu tô negociando comigo mesma. Colocando tudo na

balança, tudo na balança mesmo. Entendeu? Eu tenho os toques que a Simone me

passou não ficaram perdidos no meu chip, estão sempre lá. A minha vida não está

tão ruim assim, pra eu poder me sujeitar a tanta humilhação, meu filho, tá, o meu

filho tá aqui, na casa do cara, rindo, ele falou que ia assumir o menino, ta comprando

fralda pra ele? Mas eu já tenho minha casa, está lá fechada.

Simone: isso é interessante porque quando a Camila entrou aqui a desculpa dela era

que ela não tinha casa. Agora ela tem a casa, a casa é dela, no nome dela....

Fabíola: e como é que eu saio desse emaranhado?

Simone: do mesmo jeito que você entrou, sozinha (risos).

Utilizando-se do exemplo da estratégia de Fabíola de negociar consigo mesma a coordenadora

busca demonstrar como a mulher tem um papel decisivo no processo de enfrentamento à

violência e Camila reafirma a importância dos toques do Grupo para a elaboração de

estratégias.

Segue-se uma discussão onde Camila reafirma sua decisão de ter se separado do namorado e

sobre os sentimentos que o companheiro de Fabíola lhe desperta. Camila conclui que apesar

de tudo a melhor relação que teve foi com K (outro ex-namorado), pois ela conseguia manejá-

lo melhor. A coordenadora põe em questão a maneira de Camila definir a melhor forma de se

relacionar. Manejar, não seria nestes casos uma forma de mandar, impor, tirar proveito? A

coordenadora pontua a diferença entre relações baseadas no manejo e na negociação e

reafirma o risco da relação acabar se resumindo a um processo de “perdas e ganhos” tanto no

aspecto afetivo como financeiro, principalmente durante um processo de separação.

Fabíola, por sua vez, questiona-se sobre a “confusão” de sentimentos que seu casamento se

tornou, que sentimento afinal ela tem pelo parceiro e ele por ela. Ele fica a adulando e

implorando atenção. Ela por sua vez, mesmo após ele parar de beber sente vontade de bater

nele e, às vezes, tem relações sexuais satisfatórias.

Page 134: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

133

Fabíola: Tem horas que eu gosto. Tem hora que eu o acho bonito, eu to te falando,

eu tô tentando. Ah, eu não vou ter coragem de por ele pra fora. Tem hora que eu

tenho vontade. Mas tem hora que eu volto atrás. Que confusão é essa?

Camila diz que o que sente por K. é posse, pois não consegue saber que ele está com outra e

que fica com ele porque ele é bom com seu filho. Mas por fim, ela não sabe definir muito bem

o que ele representa para ela. Atualmente eles estão se encontrando, segundo ela, mais por

causa da criança. A partir desta reaproximação de Camila de seu ex-namorado que também

fora violento com ela, a coordenadora pontua o risco e instabilidade desta situação, visto ter

ocorrido violência nesta relação recentemente.

Simone: Mas, não deixa de... O problema de não falar do C. é por que daqui a pouco

você está. Ele chamou a policia para você também. Acho que tem esse problema,

você esquece muito rápido

Camila: eu não esqueci nada. Tanto é que eu

Simone: Há uns 20 dias atrás estava um inferno, agora acabou tá tudo ótimo. Foi

quando mesmo? Há uns três meses?

Camila: foi em fevereiro (após uma discussão onde houve violência física por parte

dele).

A dúvida sobre os sentimentos que levam à manutenção destas relações violentas e a própria

instabilidade do relacionamento são indicativos dos momentos do ciclo de violência através

do qual as relações violentas se organizam. A coordenadora, a partir do exposto pelas

mulheres, problematiza como esse movimento cíclico, geralmente, é percebido por quem está

fora da relação, inclusive, por (alguns) agentes das instituições da Rede de Enfrentamento à

Violência.

Fabíola: Aí Simone isso cai naquele vai e volta. Me dá raiva que eu lembro o que ele

me fez, aí me dá raiva e vontade de: aí me vem a vontade de separar, eu não vou

perdoar o que ele me fez. Ai eu tenho raiva de mim mesmo por ta perdoando de ta

com ele mais assim, de uma forma mais ampla, satisfatória, mais demorada, com

mais toque, aí eu fico com raiva de mim mesmo, por ta aceitando isso. Ai tem hora

que eu acho: então ta, vou perdoar, eu acho que eu estou perdoando,é melhor para

mim mesma... Mas não to perdoando nada. ...

Simone: o que as pessoas falam das mulheres que apanham? As pessoas que eu falo

inclusive Polícia, vocês vão entender o que eu falei. O que as pessoas não

conseguem entender é isso: como é que vocês esquecem tão rápido? Como é que

vocês, porque Polícia não faz representação? Isso é uma questão séria, não estou

dizendo que é certo ou errado. Porque você vai à Delegacia de Mulheres e eles têm

preguiça de fazer a representação, porque eles sabem que daqui a 15 dias, eles

pensam que daqui a 15 dias, a experiência deles diz que daqui a 15 dias ele vai parar

de beber e ela vai desistir do negócio. Isso é tão sério, que isto trava todo mecanismo

de repressão à violência contra a mulher. Eles partem do pressuposto. Ele chamou a

Polícia em fevereiro para você (Camila), mas agora já passou mesmo então deixa. E

se você tivesse feito representação do C. e agora?

Camila: Eu iria até o final.

Page 135: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

134

Simone: Ia até o final com ele morando na sua casa?

Camila: Não, ele não está morando na minha casa. Eu fico com ele, eu fiz a

ocorrência dele

Fabíola: Por que isso acontece?Porque ela se permite?

Simone: A minha pergunta também é essa, é a pergunta de todas as políticas...

Fabíola: Por que a gente não aguenta, é piedade, ele falar manso com a gente, ouvir

uma voz, um elogio, pedido de perdão, uma súplica?

Camila: é comodismo?

Novamente Fabíola pergunta indignada por que a mulher se permite ser violentada, porque

ela agüenta mais um pouquinho. A mulher nesse emaranhado é o corpo violentado e é

também o sujeito incompreendido e julgado por si e pelos outros. Ao focalizar a mulher

sobrevivente à violência nesta análise tenta-se vislumbrar como ela posiciona-se e é

posicionada na sociedade. O tom acusatório é recorrente. Cabe refletir sobre o por quê?

Fabíola: é angustiante demais porque os vizinhos presenciam brigas.

Simone: Ela briga ontem aí chega sábado ela está com o cara.

Fabíola: de mãos dadas. (...)

Camila: a lei séria, Simone.

Fabíola: Ah! Lá, ela é sem vergonha. Um dia ela chama a Polícia pro cara e no outro

dia está de beijo e abraço, mas é angustiante demais para nós. Chama a Polícia para

ele, mas está mostrando socialmente que esta junto com ele.

Camila: mas aí qual que á a minha idéia

Fabíola: é vergonhoso, já teve momentos que eu falei com ele não pega na minha

mão não. Eu não conseguia sair de casa, estava todo mundo vendo que eu estava

junto com ele, que a gente estava morando junto, mas eu não queria que ele pegasse

minha mão em público.

Camila: Sabe como eu acho que podia solucionar isto, Simone? As leis são feitas

para regrar as pessoas, certo. Quando chega ao nível da pessoa procurar a justiça, é

porque está querendo que pare alguma coisa. Então, eu acho assim, a Lei Maria da

Penha, a Delegacia das Mulheres é muito bacana nesse ponto, mas tem que valer que

quando a mulher vai à Delegacia fazer a denúncia ela quer que aquilo pare, ela não

quer separar, mas ela quer que o cara tenha medo de violentá-la, eu acho que é nesse

nível, muitas mulheres...

Considero que este trecho é interessante por três motivos. Primeiro, pelo uso do pronome nós

por Fabíola, o que desindividualiza a sensação de “constrangimento” que ela sente de

permanecer na situação de violência e, segundo, por Camila apontar uma estratégia de

publicização para a situação, bem como de conseguir demonstrar o caráter social/coletivo do

fenômeno. Em terceiro, por iniciar uma discussão que se refere ao que espera uma mulher ao

procurar a Delegacia de Mulheres. A noção de que ao procurar a publicização pela denúncia

da violência ocorrida vincula-se o desejo de separação do casal é questionada. Frente a isso a

coordenadora questiona sobre os objetivos e soluções esperadas pelas mulheres ao se dirigir a

uma instituição policial e qual o papel a ser desempenhado por elas.

Page 136: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

135

Simone: você acha que a pergunta é medo, você acha que tem que sentir medo? Será

que o cara tem que sentir é medo, então?

Camila: Sim porque quando você tá a fim de comprar aquele carrão e você não

chega lá na concessionária e pega o carrão à força. Você sabe que vai responder

processo, que você vai ser preso, que é crime. Se a Lei Maria da Penha e se a Polícia

Civil estivessem realmente fazendo a Lei Maria da Penha valer, ele, o cara, na hora

que ele levantasse a mão pra meter a mão na cara da mulher ia pensar: eu vou ser

preso. E parava com aquilo. Agora, o que tá acontecendo: o cara tá ficando sem

vergonha. Eu meti a mão na “oreia” da minha mulher, ela foi fazer uma denúncia

que não deu nada pra mim. É a mesma coisa do povo do tráfico, a Polícia também tá

fazendo tráfico. Pra que eu vou deixar de fazer tráfico? Tá aumentando o tráfico.

Fabíola: é verdade esta explicação faz sentido

Camila: Às vezes a mulher quer ir à Delegacia não é para separar

Fabíola: existem muitas leis que não se exerce.

Simone: aí eu vou fazer o advogado do diabo, sabe o que a Polícia fala? Que não faz

porque você não quer. E o que eu falei. Aí que entra o nó. Tem a lei, mas a gente

fala com ela se ela quer prender o cara, ela chora. ... Mas, aí ele vai apanhar, não

bate nele não. ... Eles falam: ela é sem vergonha mesmo, eu tô querendo prender o

marido dela e ela.

Fabíola concorda: é verdade.

Camila: a lei deveria ter uma ressalva. Crime inafiançável, a partir do momento que

você.

Simone: mas a lei já tem você só pode tirar o seu processo na frente do juiz 20

Camila: então, essa lei esta igual àquelas leis lá do Senado que só fica no papel. Por

que a mulher, eles já sabem, ela vai e volta, vai e volta, por quê? Ela não é safada

não, ela tem uma vida inteira em volta daquele senhor que espancou ela e que neste

momento ela quer que pare tudo, não é que ela é safada. Ela quer que a violência

pare que ele tenha medo de fazer uma segunda vez, talvez ela não queira separar. A

Polícia não tem que ficar: Oh, eu vou prender ele aqui, mas você tem que separar

dele. Está errado! A mulher tem o direito de fazer a escolha dela: eu quero ficar com

esse cara, mas eu quero que ele pare de me bater. Eu quero que ele tenha medo de

me bater e ir pra cadeia. De verdade, mesmo contra a vontade dela. Então, eu acho

que na hora que isso realmente... Igual eu fiz duas denúncias contra o K. Eu acho

que se da primeira vez ele tivesse levado uma coça e dormido uma noite na cadeia,

eu te garanto que na segunda vez ele não teria feito isso comigo.

Simone: você acha que a solução é a Polícia bater no cara?

Camila: Não, eu acho que a solução é a Polícia fazer valer a lei. É crime bater em

mulher, então ela chega lá.

Simone: É uma pergunta que eu faço e que eu gostaria que vocês pensassem

comigo: as mulheres acham que é crime bater em mulher?

A discussão que se seguiu à provocação de Camila sobre o papel das Delegacias de Mulheres

e da Lei Maria da Penha no enfrentamento à violência levou ao questionamento sobre a

legitimação da violência de gênero no âmbito doméstico e familiar como um crime. Quando

questionadas sobre a legitimidade da definição da violência doméstica como crime as

participantes do grupo divergiram em sua opinião.

20 “Art. 16. Nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a

renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da

denúncia e ouvido o Ministério Público” (BRASIL, Lei nº 11.340).

Page 137: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

136

Camila: Eu acho que sim. Eu...

Fabíola: eu entendo que não porque eu no meu momento de raiva eu agredi ele

muito, meu marido, ele já saiu com marca de mordida feia de um lado e de outro,

eu já te falei, eu agredi de deixar hematoma ele poderia ter me denunciado. Mas na

hora a minha intenção não era de cometer um crime.

Simone: você não queria matar.

Fabíola: é.

Camila: você acha que quando você chega à cadeia e pergunta pro traficante: se ele

queria causar tanto estrago na vida dos caras que compravam a droga na mão dele?

Ele vai falar que não, eu estava querendo ganhar meu pão. Ele também não tinha

intenção de viciar o cara a, mas como que tem para ele, o que tem é vender a droga

dele ele não está muito interessado se o cara vai morrer de droga não. Eu me

arrependi. Igual a menina que ficou presa comigo lá no dia, assaltando os outros

com estilete perto do Carrefour. Porque você fez isto? Eu não queria fazer isto não.

Simone: então porque ela fez?

Camila: eu acho que é a mesma coisa com a agressão física. Eu não queria bater não.

Então por que você bateu? Ah foi um momento de raiva minha. É crime sim, na hora

que você está num momento seu de raiva, stop eu não posso fazer isso que é crime.

Fabíola: eu quase fiz um crime lá em caca, eu te falei...

Camila: porque você não vai pegar o revólver e dar um tiro no peito do cara?

Fabíola: eu bati nele com minha sandália de salto, deu um galo, imagina se acontece:

ele pode cair bater a cabeça e morrer, acontece.

Camila: seria um crime inafiançável você vai pegar no mínimo 15 anos. (...) Eu acho

que é crime. Eu acho que as pessoas têm que ficar apreensivas de falar assim: eu não

posso fazer isto porque vai me dar problema sério.

Simone: se ela não consegue parar por ela mesma ela vai ter que parar pela justiça.

... Então, pra gente pensar junto, o cara tinha que ter o mesmo pensamento. Bati na

minha mulher uma vez, mas agora tem uma lei. Tem até um cara (marido de uma

mulher atendida) que falou com os filhos em vocês eu posso bater, mas na sua mãe

não porque tem uma lei.Pode ser que funcione, a lei é pra isso...

Camila: lógico que vai ter situação que o cara não vai respeitar e vai preso, mas se a

maioria respeitar, valeu.

A percepção de que a violência entre os companheiros ocorre por motivações diferentes de

outros tipos de violência e/ou o estreito laço afetivo entre os participantes das cenas violentas

deturpa a caracterização da violência como crime inclusive para as próprias mulheres e

principalmente, quando elas também agridem os companheiros. O que Camila questiona é o

fato de instituições como a Polícia Civil e o Sistema Judiciário também sofrerem desta

„miopia‟.

Camila: eu acho que a Polícia deve partir do princípio de que a mulher teve coragem

de ir lá denunciar. A mulher só tem coragem de ir lá denunciar, por que o negócio

passou dos limites. Eu te garanto que no primeiro tapa na cara ela não denuncia,

Fabíola: isso é mesmo...

Camila: no segundo ela não denuncia, no terceiro murro na cara ela pensa duas

vezes, no quarto murro junto com o tapa na cara, ela vai lá e denuncia....

Fabíola: é como um pedido de socorro desesperadamente é igual quando eu vim

aqui... Ela tirou a queixa, então ela deveria responder por isso também. Você tirou a

queixa então você vai responder junto com seu marido. Por que nós não somos

palhaços pra ficar ouvindo você tirar e colocar, acho que você deveria responder

junto com o homem.

Simone: É uma idéia.

Page 138: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

137

Fabíola: é uma idéia ou quem sabe não estar mudando, tipo ao invés de tratar só as

mulheres, tratar com os homens? Na hora de colocar assim: você tem que... Você

tem que sair daqui sabendo, uma vez denunciado, que agora é crime, independente...

Camila: a inspetora ou sei lá o que ela é, ela falou comigo você está fazendo esta

denúncia aqui, mas depois não pode retirar não se você retirar você também vai

responder por isso. Eu falei: eu tenho consciência disso. Até chegar a este ponto que

a gente diz que se sente acuada quando eles viram para a gente e falam você tem

certeza disso. Eu acho que não deveria ter essa pergunta não.

Simone: essa pergunta é horrível. Mas eu estou fazendo estas perguntas é para

entender como é que está esse jogo. Eu faço essas perguntas, Fabíola é para entender

essa disputa entre as instituições, agora virou a Polícia contra as mulheres?

Fabíola: é mesmo.

Simone: as Delegacias contra as mulheres, as mulheres contra a Delegacia? Daqui a

pouco as mulheres contra o Bem-Me-Quero, antes de acontecer eu vou embora...

Camila: não, o Espaço não.

Simone: ninguém esta a cima de tudo, não. O Espaço Bem-Me-Quero é só mais uma

instituição com essas perguntas, porque pergunta é que faz a gente pensar mesmo,

Fabíola.

Camila: eu acho Simone que a divulgação é muito importante.

Simone: mas como fazer a divulgação?

Camila: Por exemplo, no meu caso (retomando) que foi uma violência extrema, eu

acho que o Espaço Bem- Me-Quero tinha que ter o advogado, mas eu acho que o

Espaço Bem-Me-Quero divulgar: uma pessoa que estava no Espaço já fazendo o

acompanhamento há mais de um ano sofreu uma violência dessas. Isso pra mim já

seria, já me sentiria muito feliz, o Espaço Bem-Me-Quero olhou por mim.

Em resposta à discussão sobre as dificuldades institucionais e individuas no enfrentamento à

violência as mulheres apresentam algumas estratégias interessantes, principalmente, por

incluírem o homem na discussão e por apostarem na forma de atendimento dos casos de

violência como um aspecto a ser incentivado. Para exemplificar a importância deste último

aspecto, a coordenadora apresenta o exemplo (conhecido) de um policial civil que estava

indicando para as mulheres que procuravam a DECCM a Igreja como uma solução para

solucionar os conflitos. Fabíola é pontual ao interpretar o perigo de indicações como estas.

Fabíola: aí ajuda a gente mais a perdoar, vai pra igreja, ora, ora, ora. Deus vai dar

um jeito no seu problema. Quer dizer a gente fica naquela.

Simone: eu estou dando o exemplo nesse sentido.

Fabíola: aí você vai ficando...

Percebe-se desta forma como é decisivo o tipo de encaminhamento dado a uma denúncia de

violência. Continuando, Camila reafirma sua opinião sobre a responsabilização da mulher

sobre a sua denúncia e Fabíola aponta para outro aspecto importante do atendimento o repasse

das informações necessárias para a mulher no momento de apresentação de uma queixa.

Camila: porque é uma coisa conflituosa, quanto mais falar mais vai piorar. Então

vão fazer a lei, a mulher procurou você tem que ter consciência que você vai assinar

um termo que se você retirar vai responder junto com o homem. A mulher que

chegar lá vai dizer eu me prontifico a responder junto com ele se eu retirar a queixa.

Page 139: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

138

Acabou não tem que ficar: a senhora tem certeza? Isso é uma pergunta idiota. A

pergunta mais idiota que pode existir na face da Terra. Se eu fui à Polícia, a última

pessoa que eu queria chamar a Polícia é para o homem que eu amo. Se eu chamei é

por que ele está passando do limite, entendeu? Não tem que me perguntar se tenho

certeza não.

Fabíola: não tem que me perguntar, não.

Camila: é uma pergunta imbecil (risos). Aí você fica naquele jogo vulnerável, será

que eu...

Simone: vulnerável frente às autoridades, frente aos outros?

Fabíola: é quer dizer eu tenho certeza, quer dizer que não era para eu fazer isso?

Você fica confusa

Camila: essa é a pergunta mais idiota.

Fabíola:não era para eu fazer isto então não, pois a autoridade está me questionando.

Simone: eu concordo

Fabíola: eu acho que não devia ter questionamento da autoridade. Deveria informar

à mulher o que vai acontecer com esse homem que ela denunciou, seja marido, o

agressor, o que vai acontecer, a partir daquele momento que ela denunciou. Porque

às vezes, passa na cabeça da gente assim, que nunca, que é leigo que vai para a

cadeia, que vai ser estuprado, que vai ser isso, vai ser aquilo, às vezes não é assim,

né. Aí a gente fica com dó, com medo...

No trecho acima as mulheres conseguiram apresentar como o momento que se segue à

decisão da mulher de apresentar queixa de uma violência em uma Delegacia é muito delicado

e como perguntas como: “Você tem certeza?” feitas rotineiramente nestes serviços atuam no

sentido de vulnerabilizar a mulher e inicia um ciclo de violência institucional. Fabíola resume

assim a situação:

Fabíola: é uma humilhação. (...) são duas violências que a mulher sofre, quando

chega à autoridade outra agressão. Está sofrendo a violência lá na casa e quando

chega na frente das autoridades é outra violência.

A sessão foi muito produtiva (a despeito do número de participantes) tanto pelos temas

discutidos como pelos questionamentos que as participantes realizaram sobre suas trajetórias

de sobreviventes à violência de gênero tanto pelo viés de superação individual como pela

crítica aos posicionamentos institucionais.

Sessão nº 03

Sessão do Grupo nº 63

Data: 19 de agosto de 2009

Duração: 01 hora e 35 minutos

Participantes: Camila, Elis, Clarice, Graça, Nina, Susana

Coordenação do Grupo: Simone (coordenadora) e Rafaela (observadora)

“Olha o tanto de coisa que eu fiz...” (Elis)

Page 140: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

139

Na abertura desta sessão, a coordenadora contou que na última sessão compareceram Camila

e Fabíola e que esta tinha sido muito produtiva. Camila estava presente nesta sessão e

confirmou a colocação da coordenadora. Fabíola, apesar de ausente nesta sessão e em

algumas anteriores, é conhecida de algumas participantes.

Nina iniciou dizendo que queria justificar sua falta na sessão passada, apesar de não serem

solicitadas justificativas desta ordem. Depois de Nina as outras participantes que não

compareceram também se justificaram. Nina e Clarice contaram que estavam doentes e que

ficaram internadas (elas relacionaram as doenças com a situação de violência reafirmando o

impacto da violência na saúde das mulheres) e Elis disse que estava viajando (ela já havia me

informadoem um atendimento individual que iria viajar como uma estratégia para “se afastar

da situação da violência”. Susana não teve um motivo específico para não comparecer, mas

disse que estava tudo bem com sua saúde.

Nesta sessão dois movimentos se destacam: o relato de processos de adaptações ativas por

parte das participantes e o movimento da coordenadora de elencar e avaliar com as

participantes a eficácia de algumas estratégias de enfrentamento à violência adotadas por elas.

Para além, no final da sessão, ocorre uma discussão sobre a diferença da apropriação dos

corpos das mulheres e dos homens na sociedade.

Susana relata sua iniciativa de colocar a faixa anunciando que sua casa está à venda. Esta

estratégia foi muito comemorada, pois em sessões anteriores, ela dizia de sua dificuldade de

tomar uma iniciativa para que sua casa fosse vendida mesmo após este acordo ter sido

realizado em sua audiência de conciliação.

Susana: coloquei a faixa (Fala abafada pelas outras)

Simone: vende-se urgente... A gente tinha conversado que você ia...

Susana: Ia tomar a iniciativa e ia colocar a casa pra vender.

Simone: a questão é essa: a iniciativa. Muito bem! Aplausos, palmas para ela.

Mulheres aplaudem e exclamam: Muito bem! Parabéns! Evolução GSM. (Em

referência a uma expressão utilizada em um comercial de carros se referindo a uma

grande potência).

Simone: com seu nome?

Susana: ...na faixa.

Simone: (...) pra quem não sabia nem por onde começar.

Susana está no período de separação, já foi realizada a primeira audiência de conciliação

onde foi acordada divisão de bens mas ainda não foi assinada a separação, assim ela e o “ex-

Page 141: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

140

marido” continuam morando na mesma casa. Este período de convivência forçada traz

consigo uma série de dúvidas e de sentimentos que tornam a espera pelo andamento do

processo judicial tensa. Uma série de estratégias foi construída por Susana para este período.

A experiência de Graça com este tipo de situação possibilita que ela ajude Susana.

Simone: e alguém já te ligou? Como é que tá? Susana: de vez em quando aparece

alguém lá pra olhar.

Simone: como é que é? Você já colocou pra vender? Mas ele continua lá? Qual dia é

seu dia mesmo? Que dia você vai lá ao juiz?

Susana dia 03 de setembro e deixa eu te falar, ele tem que ir também?

Simone: mas chegou carta pra ele?

Susana: é isso que eu não sei.

Graça: costuma chegar para você primeiro.

Susana: porque dia 03 está perto.

Graça: a minha chegou uma semana, primeiro.

Simone: não, tem que chegar. Depois que nem o caso dela (Graça) se não chegar

você vai lá e fala, porque depois perde uma audiência, se ele não for depois perde

(Mulheres concordam com a colocação)

Susana: então como é que eu tenho que fazer?

Simone: dá um tempinho... (Mulheres concordam).

Graça: calma recebe uma semana antes... (Mulheres concordam).

Susana relata a cena familiar que a fez tomar a iniciativa de vender a casa. Neste relato chama

atenção a diferença entre o posicionamento do filho e da filha no período de separação, as

estratégias adotadas e sua definição de violência.

Susana: sabe por que agora eu resolvi vender, eu tive iniciativa mesmo, porque teve

um belo dia lá, que chegou meu filho com ele. Lindo né, adoro ver o pai com o filho

junto, é a melhor coisa que tem. Aí chegaram do futebol, chegaram com a camisa do

Cruzeiro. E é difícil eu ficar até tarde fazendo alguma coisa, eu peguei umas coisas

na escolinha e levei lá pra casa pra fazer, aí geralmente onze horas eu tô dormindo

há muito tempo, porque eu faço de tudo pra não encontrar com ele, sabe, eu vou pro

meu quarto assistir televisão e lá eu durmo. Aí chegaram alegres e tal e eu tô lá

quietinha, continuei fazendo minhas coisas. Eles ficam rindo e eu não tenho graça

mais de ficar rindo mais perto dele. Eles estavam rindo do povo feio, gorda com os

peitos na barriga e não sei o que e falou da Célia minha colega. Aí ele falou dela e

minha menina já falou comigo: “mãe, tudo que o pai falar para te ofender, você fica

calada”. Mas tem hora que a gente não agüenta, não.

Mulher concorda: é.

Susana: Aí na hora que ele falou da minha amiga me atingiu. Aí eu falei com ele

“não fala da Célia não”. Aí o meu menino, riu.... No caso aí, igual tô te falando, foi

aonde meu menino falou “oh mãe, mas a senhora corta o barato da gente. A gente

chegou tudo feliz e alegre, não sei o quê”. Aí eu peguei e fiquei calada. E é a

segunda vez que me chama a atenção perto dele. Aí ele ficou assim “mãe não me

ignora não, fala comigo, olha pra mim, tá dando uma de coitadinha”. E já é a

segunda vez que ele faz isso, me xingar perto dele. Quer dizer por que ele não

manda o pai deles ficar calado, na hora que ele falou da minha amiga? Então o que

eu pensei? Falei com minha menina, se eu continuar do jeito que eu estou aqui, eu tô

com sessenta, setenta anos, fazendo as coisas, aguentando humilhação, tolerando,

ouvindo desaforo ainda.

Apesar das estratégias privadas adotadas por Susana para evitar contato e conversas com o

Page 142: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

141

“ex-companheiro”, o fato de estarem na mesma casa possibilita que cenas como estas ocorram

repetidamente. Neste caso, Susana se sentiu violentada tanto pela colocação em relação à

amiga (que se estende a todas as mulheres gordas), pela falta de apoio do filho, mas

principalmente, pela certeza de que caso não tomasse uma iniciativa a violência permaneceria.

A discussão que se seguiu ao relato de Susana ilustra a cristalização da identidade da

mulher/mãe através da imagem da Cartilha.

Susana: meu filho é rapaz, tem 21 anos, porque homem defende o pai, eles não

enxergam igual domingo, estava lá com a namorada. Fiz uma lasanha beleza pra

eles. Minha menina também estava com o namorado. Tinha uma sobremesa bacana,

mas eles não vêem isso, sabe o que eles enxergam principalmente rapaz, sabe o quê

eles enxergam? Eles enxergam que o pai está dentro da casa, que o papai assiste

jogo.

Simone: o pai é legal.

Susana: não é? O pai é legal. (Mulheres concordam). Porque é assim Simone?

Simone: é. Porque é assim Camila?

Camila: por causa da cartilha... Você lembra da cartilha. (muitos comentários das

mulheres juntos)

Simone: você não está fazendo nada além da sua obrigação e o pai está fazendo uma

coisa...

Camila: uma dádiva divina... o pai se deu ao trabalho de ir ao jogo comigo...

O que chama a atenção é a discrepância de exigências por parte dos filhos do desempenho do

papel de mãe e do de pai. O par antagônico formado aqui é mãe fortaleza e pai doente levando

a um acréscimo de exigências no papel de Susana que também tem que se preocupar com o

cuidado da saúde do marido.

Susana: sabe o que é que é, é porque ele tem reumatismo (o “ex-marido”), não

consegue abrir uma garrafa de café, eu é que carregava ele, eu dava banho nele...

Camila: mas é por isso.

Elis: mas eles têm que tratar ele bem então...

Simone: meu pai é doente e a minha mãe é gente boa...

Camila: minha mãe é uma fortaleza, então pra ela fazer essas obrigações é fichinha,

agora meu pai tem reumatismo, é todo fudido e vai assistir ao jogo do Cruzeiro

comigo.

Clarice ri.

Camila: Ele é o máximo. (Mulheres concordam).

A conclusão de Susana é que sair de casa é a melhor solução, além disso, ela pretende mudar

de cidade após a separação e a divisão de bens serem concluídas. Uma de suas grandes

preocupações é com os filhos (já adultos) durante e após o processo de separação. Ela relata

que há uma diferença muito nítida entre o posicionamento dos filhos. O filho homem apóia o

pai, mas não deseja ficar longe dos cuidados maternos e a filha mulher “prefere” se ausentar

Page 143: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

142

da discussão, mas apóia a mãe em suas estratégias privadas, em um posicionamento passivo

frente à violência. Susana diz sentir ódio e vontade de chorar por causa do posicionamento do

filho homem. Elis apresenta sua situação divergente da de Susana, diz que em sua casa é

diferente, pois o seu filho homem a apóia e nem conversa com o pai por causa da situação dele

com a mãe. É interessante esta colocação de Elis sobre sue filho homem para demonstrar

como não é, isoladamente, o fato de ser homem ou mulher que define as opiniões dos filhos.

Susana e Elis continuam comparando suas situações e Susana diz que talvez o que acontece

agora seja porque seus filhos não ficaram sabendo da traição de seu marido com sua irmã que

ocorreu quando eles eram muito pequenos. Elis diz que os filhos dela sempre souberam das

inúmeras traições do pai, inclusive com uma de suas primas.

A coordenadora, a partir destas discussões, conclui com as participantes que o apoio da

família é um diferencial, confirmando a importância do apoio da família (principalmente dos

filhos) à mulher sobrevivente à violência de gênero.

Simone: só pra gente entender. Quer dizer que faz diferença, igual você falou que

sua família te apoiar, igual suas filhas, isso faz diferença na hora de tomar as

decisões. É isso que a gente tem que saber. Faz diferença?

Elis: muito, nossa, você me viu aqui nos primeiros dias como é que eu estava. Hoje

não, porque os meninos mesmo falam “mãezinha, a senhora não merece não,

homem que trái, homem que fica aprontando, a senhora não tem que aguentar isso

do paizinho”.

Juntamente com o apoio familiar as mulheres apresentaram o atendimento psicológico, o

apoio institucional do Espaço Bem-Me-Quero e a importância de um apoio espiritual através

de alguma religião como estratégias frente à violência. Estas foram elencadas uma após a

outra, permeadas por relatos de mudanças nos posicionamentos no ciclo de violência.

Simone: mas aqui só para continuar... Além da família, todo mundo já falou um

pouco da família. A família, os filhos, mãe, pai, é importante esse apoio. Além desse

apoio o que mais vocês conseguem pensar que ajudou vocês, de alguma forma. Não

é que resolveu o problema, mas pelo menos dá uma empurrada pra frente, que deu

uma ajudada, além da família.

Clarice: o atendimento psicológico é muito importante, porque se a gente não tivesse

um (risos) não tem jeito, igual a mim, eu tava perdida assim de tudo, entendeu? E

agora eu cheguei do hospital, ele tinha tomado conta do quarto todo, tava dormindo

na cama de casal.

Graça concorda com Clarice:

Graça: a terapia ajuda muito. A última vez que minha mãe teve aqui eu tava muito

deprimida.

Simone: você até chorou...

Page 144: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

143

Graça: eu deprimi muito. E agora ela teve aqui de novo, sabe.

Simone: toda vez que a sua mãe vem dá uma balançada.

Graça: só que dessa vez eu vou fazer diferente. Eu contei minha história pra ela,

porque “a benção” (o marido) tá achando que eu quero voltar pra ele, porque eu não

to falando em separar mais....

Simone: Mas o que foi que a sua mãe te falou?

Graça: Aí eu contei essa história pra mãe e falei o seguinte, escuta aqui ele não tem

nada a ver com a minha vida mesmo, não tem nada a ver com o sentimento dele

mesmo. Eu não sei o que vai acontecer comigo, se ele arrumar outra pessoa, eu não

tenho nada a ver e eu não vou dizer pra vocês que eu não arrumo.

Camila: aí já mudou.

Simone: que você falou?

Camila: você já mudou.

Graça: eu falei assim eu não vou dizer que eu não arrumo outra pessoa e eu não sei o

que vai acontecer, mas se eu tiver que arrumar.

Camila imitando Graça: depois de separada, eu não quero arrumar ninguém, eu

quero ficar sozinha...

Graça: Mas aí minha mãe não falou nada. Mas Graça, ficar sozinha é muito ruim.

Mulheres comentam juntas.

Simone: a sua mãe era contra você ter alguém a questão é toda essa,

terminantemente contra...

Graça: ela não aceita, eu ter outra pessoa, porque é pecado eu arrumar outra pessoa.

Simone: mas você estava falando da terapia e que mais?

Graça: eu acho assim porque eu venho enfrentando ela. (silêncio do grupo). Outra

coisa eu aprendi também, as pedras que as pessoas jogam na gente, é com elas que

vou construir meu castelo. (Silêncio do grupo)

Susana: É isso aí.

Susana apresenta o apoio espiritual como outra força no processo de enfrentamento à

violência e também confirma a validade da participação no grupo.

Elis: porque essa semana eu estou ouvindo muito o Padre Marcelo, que fala sobre

traição essa semana ele falou. (As mulheres se interessam pelo assunto e se voltam

para ela).

Simone: O que o Padre Marcelo fala sobre isso?

Elis: não, ele faz as orações, as pessoas mandam, escreve pra ele, falando que foi

traído, contam casos e tem casos que é pior que o meu, tem gente que cai na

bebedeira, tem gente que cai no vício da droga por causa de separação.

Susana: é

Elis: Então, tem cada caso, sabe. Tem gente que muitas vezes não pede ajuda de

ninguém e ajuda é muito importante.

Graça: é muito importante.

Todas concordam.

Elis: aqui, nossa, mas a D. e a M. pularam de alegria. Ontem mesmo a M. ligou

“mãezinha a senhora ta indo amanhã?” (na sessão do grupo). Falei “tô, tô indo”. Lá

em São Paulo eu estava lembrando de vocês eu tava nesse horário na Igreja da Sé.

Simone: bom que você não se esqueceu de nós.

Elis: Eu estava na igreja da sé nessa hora, a Igreja da Sé é muito linda, lá em SP, e

eu tava na hora fazendo minhas orações e lembrei-me de vocês aqui. Então, isso

ajuda.

Simone: então você acha que a igreja ajuda?

Elis: ajuda muito, muito. Se a gente não tiver Deus menina, independente de sua

religião. Porque eu sou católica, mas a igreja católica,

Susana: tem que procurar né?

Elis: tem. Se a gente não tiver Deus...

Page 145: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

144

Susana declara que, no seu caso, o Espaço Bem-Me- Quero fez a diferença.

Susana: eu, por exemplo, não tenho família aqui. Minhas irmãs, minha mãe tudo lá

em Sete Lagoas. Então o que me ajudou mesmo foi aqui, o Bem- Me- Quero. Mas

mesmo assim a D. minha colega, que trabalha lá na escolinha que me indicou.

Convergindo com o tema desenvolvido na sessão, Camila relata que também agiu diferente

em seu ciclo no último fim de semana. Apesar de ter saído com C. ela diz que pelo menos,

conseguiu parar a sequência do ciclo, não permitindo que após uma cena de violência ele

retornasse com ela para sua casa. Chamam atenção neste relato: as estratégias que Camila

adotou, sua iniciativa e percepção do movimento do ciclo durante os acontecimentos e a

discordância, por parte das outras participantes, de alguns comportamentos de Camila.

Camila conta que ela e K. foram a uma festa familiar e que, percebendo o aumento da tensão

entre eles, se posicionou alertando-o para que ele não continuasse com insinuações sobre ela.

Em sessões anteriores, Camila apresentou uma longa lista de cenas de violência por parte de

K. em festas familiares/rua, quando ele bebia. Nestes episódios, muitas vezes, ela também era

agressiva com ele. Assim, temendo por uma nova situação de violência em público, ela

decidiu ir embora da festa e ele a acompanhou em seu carro. Durante o trajeto a situação ficou

mais tensa com. K. continuando as provocações, xingando-a e falando palavrões. Camila

tentou novamente negociar para que ele parasse e ele manteve o comportamento. A partir

disto, ela pediu para ele sair do carro e recebeu nova negativa por parte de K. Por fim, ela

decidiu procurar um policial para que a ajudasse a retirar K. do carro. A reação de K. foi de

intimidá-la dizendo que “se bobear você é que vai presa, já tem a ficha suja” (referindo-se à

prisão irregular de Camila).

Camila: Aí ele foi me enfezando, me enfezando, começou a me xingar, falar

palavrão. Aí eu disse: desce do carro, parei o carro e falei desce do carro. Eu não

vou descer não. Eu falei: dane-se, desce do carro, pega um ônibus e some da minha

reta. Aí ele: eu não vou não. Então eu vou parar uma viatura e vou pedir eles pra te

convidar pra sair do carro porque na minha casa você não pisa hoje. “Você não é

mulher pra fazer isso...”. (Susana comenta: Nossa). Aí volta aquela ladainha. Aí eu

rodei Betim inteiro, quase duas horas, procurando uma viatura

Clarice: Ai.

Camila: e nada de viatura, nenhuma viatura.

Simone: Camila que hora que você vai parar?

Clarice: o seu mau é esse, você falar, você tem que fazer calada.

Camila Aí eu falei K. desce do carro, o meu filho esta dormindo eu preciso levar ele

para tomar banho. Eu não desço, eu não fiz nada com você, me xingou toda, falou

palavrão comigo...

Clarice: eles nunca fazem nada

Page 146: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

145

Camila: eu não fiz nada. Aí eu fui, parei lá na Delegacia de Mulheres. Aí tinha uma

viatura lá, um cara lá...

Clarice: uma hora da manhã?

Camila: Não, eu fiquei quase duas horas, eu saí da casa da minha prima era seis e

meia e fiquei rodando quase até dez horas da noite. Esse ciclo todo até dez horas da

noite.

Susana exclama: quatro horas atrás da Polícia!

Camila: e o outro me xingando, falando palavrão, pelo menos eu consegui não levar

ele pra minha casa.

Simone: qual o custo benefício disso Camila?

Camila: o custo benefício foi que eu consegui não levar ele para minha casa.

Simone: isso eu concordo, mas porque ir com ele para a festa?

Camila: foi isso que minha mãe falou comigo...

Simone: o ciclo Camila, tem que ser antes dele começar...

Camila: não é, mas aí...

Simone: não, eu estou concordando com o que você fez.

Camila: ... é que eu não levei ele para a minha casa, porque se ele fosse pra minha

casa, a gente ia discutir, nós dois ia se atracar um com o outro. (Mulheres comentam

muito).

Simone: aí eu concordo, concordo plenamente.

Camila: aí eu fui pedir os policiais para tirar ele do carro.

Simone: eles foram legaizinhos.

Camila: eles foram: Ai meu Deus do céu, hoje é hoje.

Simone: ele falou isso?

Camila: ai meu Deus, porque tinha outro casal brigando, porque a menina não queria

(risos) acho que ele tava com ciúme dela e ela tava lá na Delegacia pra falar pra ele

não ter ciúme dela. (Mulheres exclamam). Aí eu cheguei lá (Mulheres falam.). Oh

meu amigo, o senhor está alcoolizado, vai pra casa descansar, amanhã vocês

conversam. Aí ele, baixinho, eu não fiz nada com ela, (risos) ela não quer que eu

vou pra casa dela. (Risos de Clarice). Aí eu olhei assim pra eles, fiz assim pra eles.

Aí eles: não, desce do carro, por favor, e vai embora pra sua casa.

O que se problematiza em cenas como esta é a postura do Policial Civil frente a uma situação

de violência entre um casal e, ao mesmo tempo, a dificuldade da mulher para fazer valer sua

decisão sem esta ajuda externa. Estes são os nós que as mulheres sobreviventes à violência de

gênero têm que desatar rotineiramente.

Quando questionadas sobre este relato de Camila as participantes divergem de alguns

comportamentos de Camila: como o de sair com um “ex-companheiro” e de antecipar para ele

suas estratégias. Camila é questionada (como na sessão anterior) sobre o sentimento que a

leva a permanecer nesta relação violenta. Ela afirma não ser amor, talvez posse. As mulheres

também discordam deste motivo para sustentar uma relação. Elis, por sua vez, fala

abertamente ainda ser apaixonada por seu “ex-companheiro” e diz que está mudando, se

acostumando a ficar sem ele, a não esperá-lo chegar depois do serviço. Ela conclui que o que

ela tem é costume depois de trinta e nove anos de relacionamento.

Elis, Clarice, Susana e Graça continuam a discussão sobre a relação no período de separação

Page 147: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

146

falando sobre manutenção de algumas atividades domésticas neste momento. Elas dizem que

continuam exercendo-as e que os “ex-companheiros”, assim, continuam desfrutando das

comodidades do casamento, como a elaboração do almoço e jantar. A necessidade da

manutenção do status quo doméstico (indiferente das ocorrências de violência e das

ocupações extras fora do lar das mulheres) faz com que os membros da família reajam

imediatamente no sentido de que tudo permaneça como antes, inclusive a mulher.

Clarice: agora eu não faço comida, não faço janta, não faço almoço, eu estou liberta!

Susana: eu faço comida lá em casa só por causa da marmita da minha menina.

Clarice: eu? Nem marmita de menina, (Mulheres falam juntas) se quiser ela faz...

Elis: eu no meio de semana eu faço. Agora marmita eu mando pra ele também,

porque eu tenho que fazer comida pra menina de 15 anos que vai pra aula. Aí como

ela já vai pra aula, eu pego e arrumo a marmita e falo deixa lá pro seu pai.

Em mais uma situação percebe-se que as sobreviventes adotam estratégias diferentes durante

o processo de enfrentamento à violência e que o confronto de opiniões no grupo ocorre

naturalmente, em um processo positivo para a dinâmica do Grupo Operativo.

Graça solicita a palavra para fazer uma pergunta. O assunto é, novamente, a relação dos pais

com os filhos, como apresentado por Susana, no início da sessão.

Graça: Simone me deixa só fazer uma perguntinha, porque que o filho, igual, por

exemplo, o meu fez 12 anos, tudo ele vem falar comigo, se é pedir dinheiro ele vem

falar comigo. Às vezes saiu e fez compra, oh mãe você compra tal coisa assim. Meu

pai comprou o negócio que eu estava querendo aqui à tarde. Meu filho pergunta o

seu pai. Porque ele vem a mim?

Simone: você sabe o porquê, tá careca de saber. (risos)

Graça: tudo sou eu, sabe, até uma coisinha que ele queria comprar e estava junto do

pai dele. Oh mãe, meu pai comprou aquilo pra mim, que eu pedi? Você tem que

perguntar pro seu pai.

Simone: você tem que ensinar ele a perguntar. O porquê você já sabe.

Graça: mas tudo é pra mim, tudo que ele quer é comigo, ele não fala nada com o pai

dele.

Simone: mas ele foi criado assim, agora vai mudar depois de doze anos num plim?

Graça: eu que o criei assim?

Simone: eu não fui. Foi você Camila?

Camila: a primeira vez que você veio no grupo você virou e falou assim: Eu que

tenho que tomar a frente de tudo, eu indico tudo. Até a rua que ele entra que ele sai

com o carro.

Simone: quem o pai do...

Camila: é. Ele aprendeu.

Graça: que ele é dependente. (muitos comentários das mulheres).

Simone: então, o importante é que ainda está em tempo.

Graça: se o pai fica com o dinheiro, porque que tem que pedir dinheiro à mãe, não

sou eu não? (Mulheres falam do assunto baixinho).

Susana: é minha filha, mas tudo é a mãe.

Simone: mas criou o filho assim.

Susana: é a mãe que criou com aquele jeitinho assim

Page 148: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

147

Simone: pergunta para o seu pai, pergunta para o seu pai tem que mandar perguntar,

ainda mais que já tem doze anos, ele já pode realmente perguntar.

Clarice também segue esta linha de ação. Mesmo em seu caso onde o filho nunca conviveu

com o pai, ela considera que seja importante o posicionamento da mãe no sentido de

apresentar ao filho seus direitos e também se preocupa com o impacto da violência sobre seu

filho, tema reiteradamente discutido e que desperta o interesse de todas.

Clarice: mas assim o de 12 ele fica revoltado e ele responde.

Susana: sempre tem um né?

Clarice: e ele responde, ele não agüenta, ele fala: mãe que canalha! Tá aqui dentro

de casa, tá comendo, tá bebendo e ainda fica enchendo o raio do saco.

Susana: é dureza né?

Clarice: Entendeu? Aí eu falo meu filho, deixa pra lá, sabe. Foi ele que foi pro

hospital comigo, esse de 12 anos.

Simone: esse de 12 anos é o cara.

Clarice: ele que me levou pro hospital, ficou comigo lá até sair a vaga da internação.

Simone: ele tem 12 anos, ele é criança, ele não é adulto (...). Clarice e Susana

concordam comigo

Clarice: 12 anos, ele não teve, eu falo que ele não teve infância. Isso assim é o que

mais me entristece, porque eu queria que... (Susana concorda sempre com ela).

Susana: por uma parte é boa por outra já é ruim.

Clarice: ele não teve infância, ele sofre porque o pai dele não dá a mínima, não dá

atenção, não leva ele pra passear, entendeu? Então, ele sofre dia dos pais agora, ele

chegou pra mim e falou assim: pois é né mãe, eu não tenho nem um pai pra poder

dar presente.... Aí outro dia eu peguei e falei com ele assim, qualquer dia nós vamos

à Praça do Povo e nós vamos chegar e falar assim: atenção J. H., o pai dele é dono

da imobiliária, você está em falta com seu filho (risos). Aí ele falou assim oh mãe eu

posso fazer isso? Claro meu filho, você tem todo o direito de fazer isso, ele não é

seu pai? Uai!

Susana: agora mudando de assunto eu não acredito que existe amor entre homem e

mulher não.

Simone: essa desiludiu de tudo, desiludiu total. (Clarice ri).

Elis: eu acho também, eu acho também. O meu...

Susana: é costume.

Susana: amor é Deus, pai, mãe e os filhos.

Elis: mais é mãe. (...)

Susana: sabe aquele Antônio Roberto, sábado mesmo ele estava falando, do pedaço

da laranja, como é que é alma gêmea...

Clarice: não existe isso não. (Muitas falas juntas)

Simone: o quê o Antônio Roberto fala?

Graça: Mas o Antônio Roberto fala que mulher faz sexo porque quer carinho...

É interessante que a partir da discussão sobre a relação com os filhos Susana queira retornar

ao assunto sobre os sentimentos da mulher na relação. Em uma espécie de conclusão, ela

apresenta uma sequência de pensamento que afirma o amor das mães aos filhos como

verdadeiro em contraposição ao amor de pai, a partir do desempenho diferenciado destes

papéis.

Page 149: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

148

A dinamicidade e acolhida do grupo é evidenciada no trecho seguinte da sessão em que a

coordenadora e as participantes se voltam para Nina que (sempre é muito participativa)

estava calada e com uma expressão muito triste. Também é muito interessante a imagem que

Camila utiliza para definir a situação da mulher quando está se sentindo “mau” –“mangue”.

Simone: Nina você não quer falar porque está triste, está doente, está de mal da

gente, o quê que foi?

Nina: tô morta. (...)

Graça: A gente tem recaída, é normal. Tem que desabafar, para mostrar que tá

lutando.

Elis: você lembra aquele dia que eu vi você aqui de manha, aquele dia eu estava mal

né?

Simone: antes de viajar né,

Elis: é antes de eu ir para a casa das minhas filhas.

Simone: não, tá mal é normal.

Camila É o primeiro passo pra gente sair da nossa, do nosso, como é que fala? Como

é que chama aquele negócio do... (Simone: lá vem ela com as idéias) do nosso

mangue! Mangue não é um local cheio de lama, cheio de tudo?

Susana: é que atola... Vai atolando.

Simone: qual é o primeiro passo Camila?

Camila: É a gente não sentir dó da gente mesmo.

Susana: isso mesmo!

Camila: o textinho da vítima é claro com relação a isso. A gente não sentir dó,

quando a gente se sentir fraca, a gente tem que ressurgir das cinzas. Opa! Eu sou a

mulher maravilha.

Clarice: rainha maravilha!

Retomando a sequência de apresentação e avaliação de estratégias, Elis reafirma a validade de

busca de apoio espiritual, através de um padre para conversar, ela também indica a

participação em cursos profissionalizantes. Graça concorda com Elis e diz como está fazendo

bem para ela a participação em reuniões de movimentos sociais e políticos. Elas relatam como

a adoção destas estratégias tem ajudado-as no período de separação.

Elis: eu fico sábado o dia inteiro lá no curso. É sábado de manhã, começa oito e vai

até quatro horas da tarde.

Susana: oh, que bom! Faz falta, né...

Graça: eu tô pegando o ônibus e tô adorando. (Falam juntas)

Simone: você tá gostando de fazer?

Graça: ah, eu tô gostando, amo. É uma maneira de sair da rotina sabe. É muito bom,

sabe? É um ambiente muito bom, sabe.

Elis: o que?

Simone: ela está participando de todo o movimento político de Contagem.

Graça: mas é muito bom, muito bom. Eu fiz parte da Conferência Municipal de

Assistência Social, nós ficamos um dia todo no SENAI, no SESC/SENAI, tava

ótimo viu!

Camila: você se achou?

Graça: eu acho bom, aquela mulher que ficava muito ali, embora isso esteja

incomodando demais.

Simone: é claro.

Graça: meu filho até falou, mas, eu não estou importando muito com isso não. Eu

estou fazendo uma coisa que eu gosto eu realmente.

Page 150: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

149

Simone: Como é que seu filho falou com você?

Graça: ah mãe, agora não estou tendo mãe mais não...

Camila: é porque eu fui acostumada

Simone: é porque está assustando porque é uma coisa diferente...

Graça: enquanto, como se diz, eu não estiver trabalhando fora e puder fazer uma

coisa útil, eu estou fazendo, eu gostei disso...

Mulher: deve ser porque ele está acostumado a chegar a casa e achar a mãe lá em

casa.

Clarice: ele quer a mamãe em casa. (falam juntas concordando)

Simone: fazendo lasanha.

Camila: lasanha boa.

Simone: salada de frutas.

Graça tenta continuar explicando que seu filho queria sair para um local e ela para outro, mas

começa uma série de comentários que a interrompem. Elis diz no meio do tumulto “tudo que

mulher faz está errado mesmo, homem nunca está errado”. Susana “pega um gancho” neste

comentário e apresenta o exemplo de um personagem da novela das oito que após ser traído é

aconselhado pelo amigo a fazer o mesmo, reafirmando as diferenças de posicionamentos e

lugares para homens e mulheres na sociedade.

A coordenadora faz um resumo sobre o que foi apresentado até agora pelas participantes

Simone: mas eu não tô entendendo, quando vocês fazem essas coisas assim. Vocês

falaram da família, falaram do atendimento psicológico, aí eu posso juntar aqui, por

exemplo, quando vocês estão assistindo uma novela, quando vocês estão assistindo

um filme, quando estão lendo um livro, e quando vocês estão em um movimento,

participando de uma coisa coletiva, fez um curso e tal. Isso também ajuda. Eu quero

entender isso.

Graça: ah, ajuda. É muito mais gostoso fazer o que você gosta.

Elis: Ficar dentro de casa não dá. Quem tá com problema assim igual eu passei, tô

falando pra Nina para ela arrumar uma coisa pra fazer. A Nina está precisando fazer

alguma coisa.

Graça: que nem eu!

Elis: a Nina não tá fazendo nada.

Camila: o provérbio diz mente vazia ocupação pro diabo.

Susana: e não é verdade?

Nina resolve participar da discussão apresentando a idéia de oferecimento de cursos

ministrados pelas próprias participantes do grupo. Ela, inclusive, se oferece para ensinar

Photo Shop e lembra que a Prefeitura tem um Projeto de Inclusão Digital, que poderia

oferecer cursos de informática para as mulheres do Espaço Bem- Me-Quero. Ela fala da

importância da profissionalização para as mulheres sobreviventes à violência como uma

forma de enfrentar as dificuldades financeiras que são apontadas por muitas participantes

como o motivo para permanecerem por mais tempo no ciclo de violência. Ela cita como

exemplo a personagem do filme “Dias e Noites” que dependia financeiramente dos

Page 151: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

150

companheiros. Esta proposta foi bem acolhida pelas participantes. Graça que já esta há mais

tempo no grupo lembra que já foi apresentado um projeto de oferecimento de cursos pela

própria instituição. A coordenadora confirma a existência da proposta e diz que já foi criado

um projeto para ser implementado em 2010. Ela também endossa a proposta de Nina e

reafirma a importância de que as mulheres tragam idéias como estas para o grupo.

Continuando Nina desabafa o motivo de seu silêncio e faz também uma provocação sobre a

eficiência do caráter terapêutico do Grupo. Frente a isto, as outras participantes divergem e

apontam para a eficiência da participação no grupo juntamente com a adoção de várias outras

estratégias. A coordenadora concorda com as mulheres sobre a importância de participação no

grupo como mais uma estratégia a ser adotada.

Nina: meu ex está me aporrinhando tanto, que eu tô preferindo nem falar pra não

chorar mais. Então, se a gente ficar falando aqui batendo toda quarta-feira na mesma

tecla, (Susana concorda) toda quarta eu saio daqui ou chorando ou rindo

Camila: mas isso faz parte, eu e ela, tem um ano que nós estamos aqui. Um ano e...

Graça: tem mais. Eu entrei em maio (fazem as contas)

Nina: mas tem mais coisas né...

Simone: é aquela coisa, a terapia é uma das coisas, eu tenho muito claro na minha

cabeça e eu acho que vocês também têm a terapia não é a única coisa que você faz

pra melhorar. (Nina: com certeza.) A terapia é mais uma coisa.

Elis: olha o tanto de coisa que eu fiz.

Simone: é viajar, é sair, é encontrar com a família, a terapia é mais uma coisa...

Clarice: cada santo com o seu dia, porque não adianta nada você não chorar aqui e

chegar em casa você desabar.

Graça: eu acho importante, o que a Simone fala, dá vontade de falar, fala, dá

vontade de chorar, chora, desabafa. Isso é muito importante, se não você fica

segurando e isso fica te fazendo mal. Se você sente que a fase de chorar passou,

então vamos para a outra fase.

Nina: exatamente.

Camila apresenta mais uma imagem para ilustrar esta fase de melhoras e recaídas do processo

terapêutico - “convalescença” e apresenta o Grupo como um lugar indicado para vivenciar a

convalescença e se recuperar dos impactos do ciclo. Esta é uma imagem interessante por

reforçar o apoio e acolhida às sobreviventes à violência de gênero em sua trajetória de

enfrentamento à violência e também como indicativo de apropriação da proposta do Grupo

pelas participantes.

Camila: ah, eu penso assim a gente tem que dar tempo pra gente. É igual quando a

gente está num momento de convalescença (risos), você tem aquele momento que

você tem que dar tempo pro seu organismo se recuperar, entendeu? (Mulher

concorda) Então é a mesma coisa quando a gente sofre uma desilusão muito forte,

eu acho que o nosso organismo fica debilitado, então eu acho que a gente tem que

dar tempo pra gente mesmo... Quando você tá sentindo aquela fadiga, aquele

Page 152: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

151

cansaço, aquele mal-estar, aquela falta, aquela vontade de que um caminhão passe

em cima de você e acaba com tudo. Aí você fala assim, gente vou parar um pouco e

vou deixar meu organismo recuperar, pra daí a pouco eu consegui ressurgir das

cinzas e dar a volta por cima. Então, se a gente ficar afobada, eu já tive muito isso de

ficar afobada, gente eu tenho que parar de chorar, eu tenho que parar de chorar, eu

tenho que parar de chorar, entendeu? (Risos) Eu tenho, eu aprendi a dar tempo pra

mim mesmo, hoje eu não choro mais, hoje eu até me divirto. E olha que a minha

vida tá uma loucura, mas eu não tô mais deixando meu organismo sofrer tanto igual

eu deixava, porque eu dei um tempo pra ele respirar e chegar nesse nível. Não tô

curada não, mas tô aprendendo a manejar mais pra não ficar sobrecarregada...

Simone: então eu acho que é por aí mesmo, sabe Nina, chorar, não tem jeito de não

chorar, a gente chora mesmo (...) não existe um horário pra chorar...

Clarice: cada um tem as suas coisas, né? Ela preferia que o marido tivesse e eu tô

doida pro meu sair. (Risos de Susana).

Elis: eu queria que se o meu não tivesse problema eu queria que o meu ficasse

também sabe, eu acho que o casamento, sabe, que o casamento está dando muito

problema desde o mês passado.

A acolhida de trajetórias diferenciadas da maioria, como a de Nina e Elis, que relatam

continuarem apaixonadas por seus companheiros e não desejarem a separação ou a saída deles

de casa é muito importante para a heterogeneidade no grupo, potencializadora da

operatividade grupal. Nina e Elis não mudaram seus objetivos ou sentimentos, mas estão se

apropriando da discussão sobre o enfrentamento à violência e de seus direitos.

Elis, por exemplo, após décadas de traições e violência chamou a Polícia para o companheiro

após uma cena de violência. O chamado não foi atendido, mas, neste caso, a novidade da

estratégia fez efeito, o companheiro fugiu e ficou com medo. Ela relata que os vizinhos e

alguns familiares a pressionaram por causa desta atitude, mas ela se manteve firme (pelo

menos com ele) não relatando que após ele ter fugido a Polícia não havia comparecido e

reafirmando que realmente ela não o queria em casa da forma que estava. Ela conta que

chorou e ficou nervosa depois disto tudo, mas há de se valorizar sua iniciativa.

A coordenadora retomou com as participantes a importância da participação no grupo devido

seu caráter terapêutico e também pela proposta de aprender a pensar coletivamente. As

participantes concordam com a coordenadora e começam a dar exemplos de como mulheres

de suas famílias sofreram impactos em sua saúde física e psíquica por causa de anos de

violência de gênero. Susana relata que sua mãe está com Mal de Parkinson e Graça conta a

história de sua avó que foi diagnosticada com depressão crônica. As mulheres concordam

com esta linha de raciocínio e apresentam outros impactos possíveis como stress, câncer,

crises de ansiedade. Susana chega a uma conclusão interessante que leva à discussão sobre

como são reiterados os avisos contra os riscos de uma possível separação apesar e/ou por

Page 153: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

152

causa de violência.

Susana: o que minha mãe passou, eu tô fazendo de tudo pra não passar, você

entendeu? Eu já tenho exemplo na minha família gente, pra quê que eu vou fazer.

Minha mãe até hoje fala: faz por onde conviver. (O grupo explode em comentários).

Simone: essa frase mata né...

Susana: ela acha um horror eu estar separando, (mais falas) minha vó ta lá com

depressão...

Elis: eu não achei ninguém que falasse isso comigo, era eu mesma que tava boba.

Simone: você não acha ninguém não, você mesmo falou.

Elis: é, ninguém, é isso mesmo. Deixa de ser boba!Larga esse homem, já te traiu.

Todo mundo, não teve essa pessoa, é família, é família dele, também, até a minha

sogra.

Simone: então pronto.

Elis: você não é a primeira mulher separada, você não vai ser nem a primeira e nem

a última.

Clarice: eu achei alguém pra falar comigo, faz por onde.

Simone: quem falou com você?

Clarice: a irmã dele.

A partir desta discussão, Graça conta um caso de sua avó tentando mostrar como o fato dela

ser conservadora a tinha levado a um quadro de depressão crônica. Graça diz que sua avó

estava revoltada com seu avô, pois ele não estava a respeitando mais, pois, quando ele foi dar

banho nela, tirou o short e tomou banho junto com ela. A avó dela nunca tinha visto o marido

nu até aquela data. Após o assombro das participantes e da coordenadora teve início uma

interessante discussão sobre o corpo da mulher e do homem na sociedade através dos tempos.

Para a discussão sobre a violência sobre os corpos das mulheres as participantes e a

coordenadora utilizaram-se, novamente, de exemplos retirados dos meios de comunicação

(filmes, revistas, novelas) e também da arte em geral (esculturas). Camila inicia a discussão

apresentando o exemplo dos filmes pornográficos da década de setenta onde apenas os órgãos

genitais das mulheres apareciam e o corpo dos homens não era exposto totalmente. Ela

interpreta esta diferença na exposição dos corpos como um reflexo da disparidade de poder

entre homens e mulheres.

Camila: até pouco tempo os filmes mostravam só a parte de mulheres, a parte do

homem não mostrava não.

Simone: como é que é o negócio?

Camila: antigamente, nos anos 70, os filmes pornográficos não mostravam o

homem, só a mulher...

Elis: só mostrava atrás.

Camila: o homem só mostrava a perna e a bunda...

Simone: gente vamos pensar!

Camila: eu acho que é isso que eu discuto aqui o tempo inteiro...

Clarice: como é que é?

Camila: o homem está acima do bem e do mau.

Page 154: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

153

Confirmando esta diferença da apropriação dos corpos masculinos/femininos pela mídia

Graça dá o exemplo da novela Pantanal (década de 80) que causou alvoroço porque teve uma

cena onde apareceu o perfil de um homem nu pulando no rio. Ela relata que sua mãe a proibiu

de assistir esta novela desde esse dia. Camila reflete que deve ser por isso que as esculturas de

corpos masculinos nus de Michelangelo devem ter feito tanto sucesso, pela sua coragem na

exposição do sexo masculino. Como exemplo de uma produção mais atual e onde o corpo

masculino é exposto sem estar em uma cena de sexo e sem causar grande alvoroço midiático,

a coordenadora apresenta o exemplo de um filme romântico de 2005, “Ressaca de Amor”.

Neste filme, o ator principal é filmado em nu frontal nos primeiros dez minutos do filme com

a repetição da cena no final do filme. O mote do filme é a superação por este personagem do

término de um namoro após uma traição da namorada, ou seja, neste filme o papel de

abandonado/traído/deprimido é o de um homem heterossexual. A partir deste exemplo, a

coordenadora, questiona se estaria ocorrendo uma mudança na forma de expor os corpos

masculinos e no papel dos personagens masculinos atualmente. O grupo concorda que apesar

de algumas mudanças, ainda causa impacto a aparição do corpo nu masculino e que ainda são

poucas as criações artísticas que subvertem os papéis masculinos/femininos nas relações

afetivo-sexuais. Camila, novamente, faz a ligação deste tema com a discussão sobre a

violência e Nina complementa a sequência interpretando este fenômeno como atingindo a

todas as mulheres.

Camila: agora trazendo, transferindo aquilo tudo aqui pra nossa vida cotidiana, eu

acho que é por isso que nós mulheres sofremos tanto, porque eu acho que detalhes

tão sórdidos quanto este é que fazem a diferença, porque que nos sentimos tão

reprimidas sabe. Porque nós nos cobramos tanto quando a gente falha alguma

coisa...

Nina: às vezes a gente também se sente tão usada.

Camila: exatamente, então eu acho assim que esse estatuto que nós saímos fora, que

nós estamos comentando aqui. (Mulheres concordando). Eu acho que se a gente

transferir para a nossa vida cotidiana, nós sofremos muito com esse tipo de coisa.

Simone: igual você falou aí, tenta puxar mais um pouquinho Camila, o que tem a ver

lá o homem estar pelado, com a mulher aparecer com o

Camila: eu acho que...

Simone: o que pode ser usado

Nina: por mais que a gente não saia numa Playboy da vida, a playboy ainda tá

bonitinha, por mais que a gente não sai em filme pornográfico ou numa revista de

baixo calão, indiferentemente disso, a gente não deixa de ser mulher. A gente passa

na rua, se voe vê, eu estava até comentando com meu namorado uma vez, que se

você vira pra um cara, homem tem muito medo de mulher, não sei se vocês assim já

viram alguma cena de filme ou alguma coisa assim, mas na vida cotidiana mesmo,

se uma mulher pára na rua e de olho no cara fala “nossa, você é um tesão de cara!”...

Camila: nossa, quebrou ele. (risos e falas)

Page 155: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

154

Continuando, Nina exemplifica como os corpos de homens e mulheres são abordados

publicamente apontando para um aspecto geracional de transmissão sobre os códigos de

conduta de homens e mulheres e sobre a vulnerabilidade das mulheres nessas situações.

Nina: ...o homem tem medo.

Simone: porque é uma coisa que não...

Nina: agora a mulher passa na rua e o cara fica assim: nossa gostosa! E a gente

passa, a gente anda e fica: ai meu Deus o quê que eu faço...

Camila: ridículo. (Falas e risos).

Nina: a gente acha que ele está com os documentos pra fora pra te estuprar ou você

pensa assim, eu saí aqui fora o cara nossa que delícia Ai pelo menos alguém me viu.

(Falas e risos).

Graça: e quando um pivete fala: “oh gostosa”. Um pivete, que tem o que? Quatorze

ou doze anos, pelo amor de Deus, não tem nada mais chato. O pivete quer usar a

gente, tá com cheiro de fralda ainda.

Nina concorda e dá um exemplo de uma cena que aconteceu com ela.

Nina: o menino de oito anos, ele falou com a minha filha, eu lá em casa de

shortinho, faxinando a casa, ele falou “nossa, sua mãe é uma puta gostosa!”. Mas o

menino não sabe nem o que muitas vezes está falando. (falas altas). Mas o vô dele

fala o pai dele fala, o vizinho fala. (Mulheres concordam)

Camila: eu tenho que falar igual meu pai meu tio, meu avô.

Nina: a mulher acaba se sentindo usada por isso, porque querendo ou não, não é o

nosso corpo que está sendo exposto lá, mas aquilo ali não deixa de ser a gente e eles

sabem disso.

Camila: pois é, então essa situação eu acho que a violência o tempo inteiro...

As conclusões apresentadas por Camila e Nina definindo os relatos e a exposição dos corpos

femininos como violência é incisiva. A discussão continua apresentando mais exemplos de

como homens e mulheres se apropriam e tem seus corpos apropriados de forma diferenciada

pela sociedade. Nina comenta que as mulheres não ficam conversando sobre formatos ou o

tamanho de seus órgãos genitais enquanto para os homens isto é um tema recorrente. Segundo

ela “a gente nem ousa se preocupar com isso.” Clarice se lembra de uma propaganda de

esmalte que foi retirada do outdoor, após causar muitos comentários do público, por

apresentar uma mulher com a mão na vagina. Nina comenta sobre uma amiga que “dá

cantada em homens” e que nesses casos, os homens não gostam. Clarice diz que quando

“beliscou a bunda de um homem” ele não gostou e “virou e fez uma cara feia para ela”. A

profusão de exemplos é um indicativo de como este assunto tem ressonância na vida das

mulheres.

No encerramento desta sessão a coordenadora apresentou a discussão a reportagem exibida no

Fantástico do último domingo sobre um estudo onde se calculou quantas vezes um homem

Page 156: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

155

olha para mulheres e vice versa e qual o tempo que um homem gasta em toda sua vida

olhando para o corpo de mulheres e o inverso. A conclusão da pesquisa era que os homens

gastavam em torno de um ano de sua vida nesta situação e as mulheres bem menos e que

enquanto um homem olhava para dez mulheres por dia uma mulher olhava para seis. Qual

seria então a solução para este impasse de exposição?

Simone: Ou vai ter igualdade, então a mulher tem tanto direito de fazer isso ou

nenhum dos dois deve fazer isso. Vamos lá, só pra tentar pensar...

Graça: eu acho que tinha que ter igualdade.

Nina: eu acho que nenhum dos dois.

Simone: nenhum dos dois devia fazer igualdade? O quê que você acha?

Clarice: ah, sei lá. Tem que ter igualdade sim.

Camila: eu acho que eu não sou a melhor pessoa para dar essa opinião. Tá tão

entranhado na nossa cultura. Eu tentei ser uma pessoa diferente e eu paguei um

preço muito caro por isso. (Muitas falas). Eu acho que isso está longe, nem na

criação do meu filho vai fazer isso.

Clarice: o que a gente aprendeu é que a mulher é mais frágil que o homem.

Camila: ditaram um dia que a mulher tinha que ser mais frágil que o homem, porque

as mulheres hoje são pai e mãe de família e dão conta muito bem, obrigada. Então

nós não somos tão frágeis.

Clarice: a gente é mais inteligente.

Graça: o homem é mais forte que a mulher mesmo.

Camila: nós somos nós temos menos massa muscular pra dá porrada, isso aí é um

fato.

Susana: os homens a maioria das mulheres hoje trabalham, nenhuma das mulheres

quer ficar em casa. Então tem que ter muito respeito um com outro, porque mulher

hoje não agüenta.

Elis: eles estão casando hoje, porque igual a minhas filhas uma é bióloga, outra

administradora. A namorada do meu menino faz Engenharia e elas falam: Eh

mãezinha! Coitado dele que fizer isto aqui. E tudo que têm lá elas que ajudaram a

comprar. (Mulheres falam juntas: tem que respeitar.)

Clarice: eles hoje já namoram pensando em dividir a conta. (Todas concordam).

Graça fala tem que ter igualdade.

Camila: igual quando eles pensaram a religião e inventou que a mulher saiu da

costela de Adão já ferrou o resto. Mas porque Deus não deu o trabalho de fazer a

nossa matéria igual a do homem.

Clarice: porque tinha que ser dependente, mas eles é que são dependentes...

Elis: igual depois que casa...

Susana: eles vão ter que ajudar a mulher...

A sessão se encerra com estas perguntas em suspenso.

Sessão nº 04

Sessão do Grupo nº 64

Data: 26 de agosto de 2009

Duração: 1 hora e 20 minutos

Participantes: Kenia, Nina, Susana, Camila e Cíntia.

Coordenação do Grupo: Simone (coordenadora) e Rafaela (observadora)

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“Se você está frequentando um grupo você confia no grupo” (Cíntia)

Na abertura desta sessão, antes mesmo que a coordenadora se sentasse, Nina aproveita-se de

uma brincadeira sobre filhos para falar de sua impressão sobre a coordenadora, demonstrando

curiosidade. A coordenadora, por sua vez, responde às perguntas de Nina e se posiciona como

uma “mulher separada” que “chora como qualquer outra”.

Simone: Hoje estamos sem luz, a luz acabou.

Camila: Da a luz Simone.

Simone: Não to podendo. Já dei a luz uma vez. Não to querendo dar de novo, não. Já

tenho uma luz lá em casa.

Nina: Eu achava que você era solteira. Você é solteira?

Simone: Não sou separada.

Nina: Agora eu entendi essa revolta. (Risos de todas).

Simone: eu vou te contar da minha revolta.

Nina: é que eu vi você mostrando o pezinho da sua filha, semana passada eu estava

arrasada. Eu não acredito a Simone tem filho e é casada e fica escutando a gente

falar essas coisas. (Susana ri concordando). Ela deve chegar a casa e pegar o rolo de

macarrão e bater no marido. Fiquei o tempo todo assim. Agora eu entendi. Você luta

por sua própria causa.

Simone: Sou mulher também, eu não deixei de ser mulher não, uai. Vou resumir,

vou matar a sua curiosidade. Na verdade é importante falar essas coisas. Na verdade

eu estudo este assunto desde que estava na faculdade. Eu casei em 1998? 2000, não

sei, é tão importante que eu até esqueci. (risos) Mas, eu estudo este assunto desde

que eu estou na faculdade, desde o terceiro período, desde noventa e nove que eu

estudo. E eu tive filho em 2002, então muito antes eu já estudava. Ai eu casei e não

deu certo. Mas, esse assunto de violência contra a mulher eu estudo desde sempre

por que é um assunto que eu gosto mesmo, e o casamento não deu certo, mas não

quer dizer que uma coisa está vinculada a outra.

Nina: E não deu certo por quê?

Simone: Aí, já é uma pergunta muito difícil.

Nina: ou a psicóloga não pode falar para a paciente. (Risos concordando).

Simone: o importante é que não foi questão de violência, o meu caso não tinha

violência física. (Burburinho).

Nina: Não deu por que não deu.

Simone: é igual eu falo, essa questão, por isso que eu entendo, namoro acaba,

casamento acaba, Nina você chora?

Simone: é claro todo mundo chora, não tem como não chorar.

Nina: não pode é ficar neurótica.

Simone: Toda mulher vem aqui e fala, mas eu estou chorando e eu digo estranho

seria se você não chorasse...

Susana pega um gancho na fala da coordenadora e apresenta o caso de sua irmã que foi traída

e se separou, mas não está demonstrando tristeza, pelo contrário ela tem um relacionamento

feliz com outra pessoa. Susana conclui que a irmã tem sorte porque para ela está difícil, pois,

“esse negócio de separação desestrutura, separa a família”.

Page 158: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

157

Nina diz que depende, pois considera que com filhos pequenos é mais difícil. Susana

discorda, para ela, com filho pequeno é mais fácil, porque quanto menos contato mais fácil

para o filho se adaptar à separação (como no caso de Camila). A divergência sobre o assunto,

na verdade, se resume na convergência sobre a preocupação das mulheres/mães com seus

filhos (as) durante o período de separação. Nina conta como suas filhas estão reagindo à

separação de forma diferenciada: a filha de onze anos diz “mãe desencana” e que não vai ser

boba como a mãe: “Eu não vou correr atrás de homem. Eu não corro atrás de homem como a

minha mãe. Eles é que vão correr atrás de mim. Minha mãe é uma idiota que fica ligando

para o meu pai.” A filha menor de nove anos diz que “não vai se casar” e disse que queria

conversar com a psicóloga da mãe.

Nina: A L. já me pediu: Oh mãe, você sabe a sua psicóloga, a Simone. Você fala

com a sua psicóloga que eu quero ir lá conversar com ela. (Susana: Oh meu deus!)

Nina: foi ontem à noite chorando. Por que minha filha? Pode ser amanhã, mãe? Não,

tem que conversar com a Simone, primeiro pra marcar um horário.

Simone: eu não atendo criança senão eu choro.

Nina: O dia que você vê ela você ver ela você vai chorar. Tem que ver por que ela

quer falar com você. Por que eu tô muito estranha, mãe pode ter mil pessoas perto de

mim, eu tô dentro da sala, no recreio

Simone: ela tem que conversar com o pai dela.

Nina: eu venho aqui pra casa tá você e o J., eu vou para a casa do meu pai,tem gente

lá, tá lá a minha vó com meu pai,.mas eu não sei, eu olho pra todo lado e tô me

sentindo sozinha é como se eu tivesse sozinha no mundo é como se eu não tivesse

ninguém. Aí eu quero ir lá pra conversar com a psicóloga porque eu acho que eu tô

com algum problema. Tô com uma dor na minha barriga. Ela só fica reclamando

dessa dor na barriga.

Este relato da filha de Nina é um exemplo do impacto nos filhos de situações de violência de

gênero entre os companheiros. Apesar de não saber se expressar ela sente que alguma coisa

está acontecendo com ela. Mesmo que sua reação seja diferente da irmã, percebe-se que

ambas estão reagindo à tensão no período de separação de seus pais. A coordenadora afirma

que uma das grandes consequências da violência de gênero entre companheiros é justamente

este tipo de exposição dos filhos, o que pode ser considerado um tipo de violência psicológica

contra a criança por parte dos pais. Para elas, o ideal seria prevenir, evitando a recorrência

destas situações na frente dos(as) filhos(as).

Kenia concorda com a coordenadora e diz que está preocupada com seu filho por que o pai

dele a ameaça na frente da criança e Nina diz que saiu de casa porque as filhas assistiam o pai

saindo de casa para se encontrar com a amante e ficavam chorando quando a mãe chorava e

também passavam mal. Percebe-se como o impacto sobre os filhos é um sinal que empodera

Page 159: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

158

as mulheres a tomarem iniciativas para enfrentar a situação de violência. Kenia fala muito

nervosa que “por isso que eu quero conversar com o advogado para ver se tem como entrar

com um processo na justiça. Minha única defesa é entrar na justiça contra esse homem. Pra

poder esse homem não me ameaçar mais, pra esse homem não poder mais”.

Kenia relata que novamente seu ex-companheiro foi à casa de sua mãe e ameaçou novamente.

O caso de Kenia é muito delicado, pois seu ex-companheiro é muito violento e inclusive, já

jogou uma bomba na casa da mãe dela e de um de seus ex-namorados. Ele, inclusive, está em

liberdade provisória por causa de um processo de agressão com bombas. Ele teme a Polícia

por causa de sua situação na Justiça, mas não para de ameaçar e perseguir Kenia. Kenia está

desesperada. Devido à gravidade de seu caso o grupo já tinha conversado sobre a hipótese de

ser necessário um encaminhamento para solicitação de Medidas Protetivas.

Simone: Mas, o que ele fez daquele dia até hoje? Ele fez alguma coisa nova?

Kenia: Fez. Ameaçou-me de novo. Ai eu liguei pra Polícia.

Simone: ele foi à casa da sua mãe?

Kenia: foi na casa da minha mãe. Aí eu liguei para a Polícia ele voltou achando que

eu não tinha chamado a Polícia para ele não. Aí a Polícia parou lá na porta. Aí ele

quis correr. Ai a Polícia pegou ele. (...)

Susana: ele correr foi pior. Aí que a policia viu.

Kenia: Aí a Polícia pegou ele e nós descemos lá pra baixo. Aí chegou lá no

Delegado e ele falou a Kenia é doida. Ela é doida toda hora ela registra um BO

contra mim, até já registrou um BO contra mim na Delegacia de Mulher

(ironizando). Simone: ele te ameaça de morte?

Kenia: de morte, de morte, foi dia18 de agosto de 2009. Simone: vai lá conversar

com a L. (advogada do Espaço Bem-Me-Quero) ela chega 10 horas, bate na porta.

Kenia: eu preciso entra na justiça contra esse homem, eu preciso entra na justiça

contra esse homem.

Simone: mas você vai deixar ele ficar preso. Até que deixar eu acho que você deixa.

Mas, você acha que ele vai ser preso?

Kenia: Nem que seja pra ele me dá uma indenização.

Camila: isso aí já foi uma evolução GSM.

Kenia: Por que se ele arrancar do bolso, na hora que for me ameaçar de novo vai

pensar, eu vou ter que ser preso ou vou ter que pagar ela. Ou então, ele pega e me

mata logo de uma vez.

Simone: essa hipótese não existe.

Camila: matar não pode. Simone: mas o que ele faz?

Kenia: eu sofro tanta pressão, tanta pressão (com muita ênfase). Simone: eu sei.

Kenia: eu prefiro morrer a viver desse jeito.

Simone: você não vai morrer.

Camila: você prefere viver, você prefere me ver toda quarta-feira do que morrer.

Susana: você tem que pensar em você e no seu filho. Ele que se dane. Dá um jeito

que vai começar a resolver...

O desespero de Kenia é condizente com a reiteração da violência por parte de seu ex-

companheiro. Ela saiu da casa onde eles moravam e foi morar com os pais, mas, mesmo

assim, não ficou à salva, pois ele utiliza a desculpa de ver o filho para continuar vendo Kenia

Page 160: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

159

e a perseguindo. Em uma das brigas, inclusive, ele pegou o filho e fugiu com ele de carro,

além disto, inclusive, ela parou de estudar e trabalhar na rua como vendedora por que ele a

ficava perseguindo nas ruas. As participantes do Grupo sabendo de sua história se solidarizam

e tentam animá-la apesar da preocupação e do medo de que algo aconteça com ela. Apesar de

toda esta situação o pai dela ainda a aconselha a reatar a relação.

Kenia: Meu pai falou assim é Kenia se eu fosse você eu voltava pro L.. Então

porque você não pega o D. e vai morar com ele. (teatral). Se você fosse mulher

(risos)... No outro dia ele falou Kenia eu quero ver se você é mulher, mulher mesmo,

pega o seu menino e vai e volta para o L. (Risos) Aí eu falei: eu quero ver se você é

homem. Homem mesmo pega o D. e vai morar com ele.(risos). Homem que é

homem volta para o L. também pai. (Risos). Porque ele tá querendo que eu volte pro

L. com medo dele jogar uma bomba lá em casa. Você esta achando que eu sou isso

aí, (o pai dela fala). Não é você ta achando que eu sou objeto que você me manda e

desmanda? De jeito nenhum, de jeito nenhum. Eu prefiro continuar aqui a vida

inteira a voltar pra lá, entendeu. (...) Do primeiro tapa que ele me deu na cara,

entendeu, ele vai me dar é muito tapa na cara ainda...

A coordenadora diz para Kenia procurar a advogada do Espaço Bem-Me-Quero para que

sejam feitos os encaminhamentos necessários para a solicitação das Medidas Protetivas. Antes

de ela sair, Camila pede para que ela fique para escutar uma novidade.

Camila: ontem a promotora mandou uma intimação para eu ir lá prestar

esclarecimentos sobre como eu fui atendida na Delegacia de Mulheres.

Simone: mas de onde saiu isso, mas por quê?

Camila: saiu do Fórum, da declaração que eu fiz. Eu recebi ontem uma carta da

Promotoria Pública pedindo pra eu ir lá prestar um esclarecimento.

Simone: mas de qual caso?

Camila: daquele caso do K do dia vinte de fevereiro ainda.

Simone: mas qual o objetivo?

Camila: abrir um inquérito. Eles queriam que eu fosse lá prestar esclarecimento da

forma que eu fui atendida na Delegacia de Mulheres.

Camila entrega para Simone o documento com seu depoimento na Promotoria onde ela afirma

que apesar de ter assinado termo de ciência sobre solicitação de Medida Protetiva ela não

havia sido informada sobre a solicitação. Nesta declaração ela ainda afirma que, atualmente,

não mais se encontra em situação de violência e que não se faz necessária a aplicação da

Medida. A coordenadora concorda com Camila sobre a importância de sua declaração por ela

substanciar as denúncias de várias mulheres do grupo sobre as irregularidades no atendimento

na Delegacia das Mulheres.

Camila: Pois é, eu falei que eu vou meter o cacete, eu não quero nem saber, eu vou

mostrar para aquela Delegacia que não é assim que se trata o ser humano. Eu falei

que o cara me atendeu com o maior sarcasmo, eu me senti novamente violentada.

Page 161: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

160

Por que eu fui lá fazer denúncia de um crime que foi cometido contra mim e o cara

começou a perguntar se era isso mesmo que eu queria.

Camila diz que apesar de não necessitar neste momento da aplicação de uma Medida

Protetiva, ela não abriu mão da averiguação do crime cometido.

Camila: Eu falei: eu não vou abrir mão da averiguação, eu quero que o inquérito

continue. No final tá lá, ela tá uma pluminha. Na hora meu coração doeu, mas eu

não tenho que ouvir meu coração porque meu coração já me traiu. Senta que lá vem

história. Para nós mulheres, foi um ganho muito grande porque a promotoria me

ouviu..... O que eles querem saber é se teve a medida protetiva. Eu falei que não

porque aqui está escrito que o rapaz só falou que a Delegada só olha casos extremos.

Este posicionamento de Camila na Promotoria é importante por ser uma estratégia visando

conseguir quebrar o ciclo de vulnerabilidade/violência com seu companheiro e também com a

instituição Delegacia de Mulheres. A sua conclusão sobre o ganho deste acontecimento para

as mulheres é uma confirmação da denúncia de uma situação que ocorreu com ela e que faz

eco com o que outras sobreviventes já relataram.

Camila: aí eu perguntei pro assistente da promotora assim: será que depois que ele

me matasse seria um caso extremo? Ela falou não, com certeza que não. Pois é,

então, hoje ele tá tranquilo numa boa, mas na época, o inspetor falou que a Delegada

só estava atendendo caso extremo. Para mim era um caso extremo e eu acho que tá

fazendo uma sindicância. Todas: tomara.

Camila: Deixa eu falar, deixa eu falar, eu meti o cacete. Eu não fui bem atendida, me

senti violentada novamente. Por que eu já tinha sofrido uma violência, cheguei lá e

fui violentada pelo inspetor porque ele me tratou com o maior sarcasmo.

Cíntia concorda com a colocação de Camila:

Cíntia: Eles olham para você... Você nunca esteve lá Simone, tomara que nunca

esteja, mas é como se você que é culpada pelo que o cara fez. Só faltou apontar o

dedo.

Susana: porque tem mulher que igual a Lei Maria da Penha tem uma mulher que já

colocou fogo três vezes no carro do marido dela, que ela ameaça o marido, aí eles

falam por que a Maria da Penha não olha isso? (Todas falam juntas).

A constatação de que a palavra da mulher é desacreditada surge em mais esta situação. A

própria Lei Maria da Penha é apropriada como um mecanismo de desvalorização da palavra

da mulher, como se a Lei fosse, apenas mais uma forma de dar crédito ao que não merece

atenção. Assim, está em jogo a credibilidade das queixas-crimes das mulheres através de um

mecanismo que busca desarticular a Lei como legítima.

Page 162: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

161

Camila ciente deste ciclo de deslegitimação assume que ao ser questionada “se ela tinha

certeza se era aquilo mesmo que ela queria” titubeou.

Camila: Na hora que a mulher perguntou se era para o inquérito contra ele continuar,

meu coração doeu, mas eu não vou ouvir meu coração. Por que ele já bateu em duas

irmãs dele, ele já me bateu 800 mil vezes e agora, meu coração vai doer? Não, eu

quero que ele pague pelo crime que ele cometeu. Agora ele tá morrendo de medo

porque agora vai ter o inquérito policial mesmo. E eu frisei que quero que continue.

Não por que ele tá bonzinho agora, por que ele vai, ele uma vez debochou comigo:

cadê sua Maria da Penha? (Mulher comenta: eles debocham mesmo). Eu vou

mostrar pra ele que a Maria da Penha tá começando a funcionar.

Após o relato de Camila, Cíntia pede a palavra para contar sobre o que ocorreu com ela em

sua Audiência de Conciliação e a coordenadora diz que também quer saber o que ocorreu com

ela, mas Nina tomou a palavra para contar que estava muito revoltada, que tinha saído de casa

e que acreditava que desta vez era para sempre e que estava precisando extravasar (xingar,

agredir o companheiro, quebrar seu carro). A partir deste comentário de Nina as mulheres

comentam rindo de seu posicionamento e a coordenadora questiona se esta forma de agir vai

fazer com que ela atinja seu objetivo de trazê-lo de volta para ela. Camila e Cíntia a

aconselham.

Cíntia: eu também ficava assim no início querendo que ele batesse o carro com a

mulher dentro, mas quando eu descobri que ele bateu o carro.

Nina: eu quero que ele tenha prejuízo.

Camila: vou te dar um conselho que eu já dei para ela há mais tempo: neutraliza.

Você não tem que sentir nem amor, nem ódio por ele, você não tem que sentir nada.

Retornando ao caso de Cíntia, ela diz como se sentiu no dia da audiência de Conciliação de

seu processo de separação.

Cíntia: Eu falei com a Camila eu me senti desamparada para caramba. Eu cheguei lá

a Graça foi comigo graças a Deus. Eles olharam para mim e eu falei que o cara me

agredia, ele falou: Cíntia eu nunca agredi você. Minhas lágrimas desceram de raiva.

(Cíntia chora ao contar).

Simone: Mas, você desmentiu pelo menos?

Cíntia chorando: Eu me senti desamparada por você igual a Camila se sentiu

naquele dia.

Simone: mas como é que eu ia, eu não posso estar lá com você.

Cíntia: mas relatório alguma coisa...

Simone. Simone: eles não acreditaram em você?

Cíntia: ela olhou para mim e falou assim: ele te agrediu? Mas, não tem nada aqui?

(Choro). Mas eu falei: eu frequento o Grupo ali. Isso as lágrimas desciam.

Simone: mas qual o sentimento que você tinha?

Cíntia: a mulher (a conciliadora) debochou de mim, as lágrimas desciam, mas eu

nunca fiz nada com você, com aquela cara. Eu me lembrei da Camila àquela hora eu

estou me sentindo a Camila e a gente tinha falado para, não ser igual à Camila.

Simone a gente tem que tomar uma atitude para não acontecer comigo. E aconteceu

Page 163: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

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comigo, eu nunca mais ia pisar aqui. Eu até falei com a Graça. A gente confia nisso

aqui. A gente se sente amparada aqui, porque no dia que ela sonhou que isso aqui (o

grupo) ia acabar eu até, sou boba assim mesmo:

Simone: mas você acha que um relatório com meu nome ou com...

Cíntia: com seu nome não, mas, a gente confia nisso aqui, né Camila. A gente quer

chegar lá e se sentir segura. Eu fui maltratada a vida inteira na hora que aquele

homem olhou para mim e falou Cíntia eu nunca agredi você.

Simone: você não sentiu força para falar pra ele: é claro que você me agrediu.

Cíntia: eu falei Simone só que a minha lágrima descia.

Simone: chorar não tem problema.

Cíntia: gente eu estou desamparada.

Nina: ela não tinha uma prova escrita para mostrar.

Cíntia: eu passei por uma bobona que falei que era agredida, como não tinha provas,

como é que eu ia?

Simone: você não tinha nenhum boletim contra ele?

Cíntia: eu tenho um processo contra ele e também tinha uma coisa daqui, mas não é

mais a C. a defensora que está tomando conta do meu caso, uma tal de...

Camila: Eu falei com ela só de você já estar no Nudem já é uma prova que você

sofreu violência.

Cíntia: quando ele virou para mim com aquela cara e perguntou: eu te agredi? Deu

vontade de falar eu vou te agredir agora. Ele me agrediu, para eu estar há um ano e

pouco morta a minha filha que...

Simone: você respondeu isto para ela?

Cíntia: tanto que a minha filha não quer ver ele. Eu preciso tomar uma medida pra

minha filha não ver ele. Ele falou ela tá jogando minha filha contra mim, aquela

coisa que te dá ódio, a minha filha de quinze anos, ela está pondo contra mim.

Amanhã é dia dos pais você tem que, com aquele jeito cínico.

Simone: quem falou isto foi a juíza?

Cìntia: foi aquela conselheira lá, nem sei o que ela é.

Susana: a Drª. C. (Defensora do Nudem) que era para estar lá.

A inclusão deste relato também é interessante por focalizar outro momento institucional da

trajetória da mulher sobrevivente à violência de gênero na Rede de Enfrentamento à

Violência: a Audiência de Separação. Um momento, geralmente, posterior ao de registro de

ocorrências ou de representações de queixas-crimes policiais. Este relato também reafirma

discussões realizadas em outras sessões como: o sentimento de desamparo da mulher em uma

situação de confronto jurídico frente ao companheiro e às autoridades; a negação dos

companheiros sobre as acusações de suas ex-companheiras; o impacto da violência sobre os

filhos do casal, a deslegitimação sobre as colocações das mulheres por parte dos agentes da

Rede e a confiança no Grupo. O que particulariza este caso são a denúncia da insuficiência de

recursos humanos da instituição (Defensoria/Poder Judiciário) e a cobrança direta ao papel da

coordenadora do Grupo.

Simone: sabe qual é o problema? Eu entendo perfeitamente. O que você sentiu eu

entendo, entendo a Camila, eu dei razão, para ela. Eu passei o caso e eu posso até

rever isso, eu escrever lá: está em atendimento no Espaço Bem-Me-Quro, foi isso

que eu escrevi no caso da Graça. Eu também tenho os meus limites.

Cíntia: eu entendo Simone.

Camila: isso Simone que você escreveu já faz...

Simone: faz para vocês porque para o juiz, o juiz... Eu posso até fazer por vocês...

Page 164: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

163

Cíntia: então quando ele começou a falar lá eu sou um homem trabalhador, eu nunca

encostei a mão em você, fala para ela. Simone: e por que você não falou?

Cíntia: eu não tenho nada para falar com ele não eu falei então tá, com a mulher, lá.

Então tá, a partir de hoje eu vou passar férias na casa da minha mãe com dois filhos

por que o casamento é uma beleza. Elas olharam para mim e fez assim e depois

olhou para ele e fez assim, menina, aí as minhas lágrimas desciam.

Simone: mas isso atrapalhou você? Cíntia: não atrapalhou porque ele aceitou que eu

assinasse o nome de solteira, a separação porque ele sabe que fui eu que entrei, eu

fiquei com a guarda dos meninos, estipulei horário e tudo, ele aceitou só que do jeito

que ele queria pagar o negócio eu não aceitei. Ele queria pagar cinqüenta por cento

do salário mínimo. Eu não aceitei.

Percebe-se que a negociação do processo foi favorável às solicitações de Cíntia, inclusive, em

relação ao pagamento por parte do ex-companheiro das dívidas que restaram da época do

casamento, em nome de Cíntia. Porém, a sensação de descrédito e de necessidade de

legitimação a sensibilizaram. Frente a isto, ela e as participantes do Grupo solicitam e

reafirmam a importância de um documento escrito pela coordenadora do grupo. Ela, por sua

vez, pontua que compreende o desamparo sentido nestas situações pelas participantes, mas

questiona a validade jurídica deste documento para o andamento dos processos.

Cíntia: aí ele falou um monte de bosta, inventou um monte de história e aí ela falou

para ele e eu sou calada, virada de lado para ele, nem para o animal eu olhei igual eu

falei com ela: eu não tenho que conversar com esse senhor. A minha conversa é com

as duas. Aí eu peguei e, nossa, Simone ele é nojento!

Simone: agora seja honesta, você acha que o meu papel ia fazer ele parar de ser

nojento?

Cíntia: não.

Simone: o que eu posso fazer, com os meus limites eu faço, mas todo o meu trabalho

é para vocês aparecerem, não é a Simone que tem que aparecer, ou o Espaço...

Cíntia: mas não é isso que a gente queria.

Simone: eu entendi e eu concordo com você, mas nessa hora eu me preocupo porque

nessa hora poderia ter lá o papel, mas eu acho que para dar peso depende de quem

lesse e que escrevesse...

Cíntia: pro homem dá peso.

Simone: que homem?

Cíntia: pro meu ex dá peso.

Simone: ele não ia saber o que escrevi.

Cíntia: mas se ela lesse.

Simone: é eu vou pensar nisso.

Cíntia: ele ia ficar com medo, vocês não entendem o meu ex tem medo da Maria da

Penha, ele morre de medo do que eu vou fazer na Delegacia das Mulheres. Ele tem

medo. Então assim. Esse papel daria a ele, oh! Se eu for mexer com ela eu tenho que

ter cuidado.

Simone: por que você simplesmente não podia ter falado, todos os casos que você

me conta você não podia ter contado lá?

Cíntia: eu falei. Simone: eu sei que é difícil, mas o que vocês têm que entender é que

a palavra de vocês também tem valor.

Assim, a participação em um grupo onde a palavra é o foco de atuação, traz uma nova

possibilidade de se posicionar e ser posicionada na Rede e Enfrentamento à Violência.

Camila, inclusive, já fez esta colocação em sessão anterior.

Page 165: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

164

Cíntia: Mas, se você está frequentando um grupo você confia no grupo.

Simone: eu concordo.

Cíntia: e esse grupo não vai servir de peso não é pra ele, é pra gente aqui dentro. Por

que a gente fica tão sozinha, tão solitária, que este grupo é uma família da gente e a

gente fica mal, entendeu, (mais choro). Nessa hora, que eu fui maltratada igual eu

fui. (choro) a minha família, se não fosse a Graça ir lá.

Camila: É bem humilhante mesmo.

Simone: deve ser.

Cíntia: por mais prevenida que eu fui, na hora você não consegue, entendeu, mas se

elas falassem assim... Eu falar assim, eu estou freqüentando o grupo aqui, onde era a

antiga Delegacia de mulheres, o Bem-Me-Quero. Eu tenho provas que ele me

agrediu... Eu falei pra ela: meus filhos estão mal. Eu tô procurando psicólogos pro

meus filhos e eu tô passando pela psicóloga lá do grupo do Bem-Me-Quero, não sei

se vocês conhecem não to nem aí.

Simone: mas tem que falar assim mesmo porque elas não conhecem, exatamente.

Cíntia: aqui atrás, eu tenho provas disso que eu freqüento lá, meus meninos estão

precisando passar por psicólogo, tudo por causa desse senhor.

Simone: eu acho que você respondeu muito bem. Chorar não tem nada a ver, não.

Chorar é normal.

Cíntia: mas Simone, eu me senti sozinha.

Simone: eu acho assim que é um desamparo normal.

Cíntia: por mais que você prepara.

As participantes do Grupo concordam com a colocação de Cíntia e se espelham em seu

posicionamento no episódio relatado por ela demonstrando como causa impacto negativo

cenas de deslegitimação como as relatadas por Camila e Cíntia.

Susana: eu tô chorando à toa...

Nina: mas o que dá mais medo é ter que passar por isso...

Cíntia conta o desenrolar de seu processo de enfrentamento à violência e de garantia dos seus

direitos e de seus filhos. No dia e horário acordado, em juízo, para o pagamento da primeira

pensão ele não compareceu. Quando o filho conseguiu falar com ele, o pai disse que tinha

esquecido. Mas como diz Cíntia o “show não pode parar” e no final da noite ele compareceu

na casa dela acompanhado por policiais militares alegando que ela estava se negando a

receber a pensão para prejudicá-lo. O que chama a atenção neste caso é a utilização do aparato

policial por Cíntia e pelo seu companheiro e o posicionamento dos policiais na situação.

Cíntia: boa noite senhores. É que ele está acusando a senhora de não querer receber

a pensão e que a senhora está querendo acusar ele. Aí eu fui e falei para ele: precisa

de dois seguranças para pagar metade do salário? (Falas minhas e delas). Mas você

não acha que ele está bem atrasado não porque o Juiz estipulou seis horas. Aí o

policial foi e olhou e parou e ficou olhando para ele e que a senhora tinha que abrir

uma conta, mas eu não abri porque esse senhor sujou o meu nome e nisto aí a gente

tá mexendo para não precisar que ele venha até a minha porta. Aí o policial ficou lá

do lado. Aí eu perguntei o que eu tenho que assinar aí ele começou a conversar

bosta. Aí eu virei para ele e falei assim: nossa moço até no final você é barraqueiro.

E eu quero pedir os senhores para vigiar a minha porta, pelo menos passar de vez em

quando porque esse senhor não para de passar na minha porta. Eu quero medida para

Page 166: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

165

ele parar de passar aqui, para ele me deixar em paz. Era para ele chegar com esse

dinheiro aqui até seis e meia e era para estar dentro do horário. Eu estava tomando

banho que eu sou uma trabalhadora, eu sou honesta.

Simone: aí respondeu bem.

Cíntia: e ele está incomodando todo mundo aqui da rua, aí o policial olhou pra todo

lado e aí o Policial falou você nunca mais passar aqui nessa porta e eu quero isso

mesmo. Eu falei muito obrigada e boa noite e entrei pra dentro aí a minha irmã bateu

palmas.

A coordenadora elogia pelo posicionamento. Susana concorda, mas reafirma que todo esse

show intimida.

Simone: viu como você sabe falar bem.

Susana: ela soube falar na casa dela, mas na hora eu tenho medo de falar bobagem

também. Isto intimida.

Encerrando a discussão do caso de Cíntia, a coordenadora ressalta outras formas de legitimar

processos como os de Cíntia, além da participação no Grupo.

Simone: Eu entendo, eu não estava lá na hora, mas eu não creio que ela duvidou da

sua palavra. Eu sei que você se sentiu ruim porque justiça quer prova. Cíntia: ela

queria prova e a justiça quer prova nisso aí e eu não tinha... Simone: mas aí tem uma

coisa. Camila: tem o NUDEM. Simone: mas ela já estava no Nudem, você já é do

Nudem a questão toda é a seguinte: eu vou te falar uma coisa, eu sei que você não

gosta que eu fale isso, mas a Camila já te falou uma vez e eu vou falar porque já foi

dito. Como é que prova a violência? Boletim de ocorrência. A prova que você foi

violentada, no final da história não vai atrapalhar a sua vida, mas...

Cíntia: eu fiz errado.

Simone: O Grupo seria pra quê? Pra provar que você está em tratamento. O que é

muito bom para você é igual a Graça está em tratamento e tal. Eu vou repensar essa

questão de como apresentar a participação de vocês no Grupo para o NUDEM.

Com a aproximação do fim da sessão Cíntia retoma sua discussão sobre a importância do

Grupo.

Cíntia: eu queria que você entendesse.

Simone: estou tentando.

Cíntia: a gente não quer que chegue lá e fale que a gente é do Bem- Me-Quero, é

foda e manda e tal. A gente quer o seguinte: eu passei por uma fase muito difícil,

complicadíssima, difícil e o grupo me ajudou. A gente quer que fale que o grupo

ajuda, o grupo ampara, a gente quer, por exemplo, que o Juiz saiba que a gente tem

quem ampare. A gente não quer mostrar, não quer gritar, se puder fazer isso ótimo,

porque tem muita mulher aqui fora que eu estou vendo que está passando por isso. O

que a gente quer é sentir segura, eu fui tratada ali agora eu tô melhor. Vê como eu

estava uma porcaria antes, mas ali eu levantei, ali é uma família. É isso que a gente

quer. A gente não quer que vá uma prova, pode ir por escrito que lá é bom. Mas a

gente quer que o Grupo aqui, eu ajudo, não é só uma pessoa, é muita gente,

entendeu.

Camila: deixa eu ver se eu consigo explicar o que a Cíntia esta querendo dizer.

Simone: traduz.

Camila: é o seguinte: lá fora está escrito assim Espaço Bem-Me-Quero, espaço das

mulheres com violência doméstica, então a princípio, se o primeiro ato que você fez

foi procurar o Espaço Bem-Me-Quero é porque você sofreu uma violência

Page 167: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

166

doméstica, aí no caso, é igual eu falei, é de grão em grão que o Espaço Bem-Me-

Quero vai mostrar o seu poder. Então se você tivesse alguma coisa falando que você

procurou o Espaço Bem-Me-Quero a princípio, o primeiro ato, a primeira vez, então

seria o seguinte você foi por quê? Por que você sofreu uma violência doméstica,

você não foi lá... (elas falam juntas concordando).

A princípio, o que se pode compreender da colocação de Camila e Cíntia é que elas querem

tanto o atendimento em grupo quanto o Espaço seja legitimado junto às outras instituições da

Rede. Em complemento, elas seriam legitimadas juntamente com a instituição que as acolheu.

Para além, Cíntia faz questão de frisar como fez bem para ela e outras a participação no

Grupo.

Cíntia: porque eu cheguei aqui doente regaçada e...

Camila: eu estou dizendo que seria o primeiro ato.

Simone: então, você queria mais uma prova além do Boletim de Ocorrência, mais

uma prova que você passou por outra instituição e que você vai dar continuidade,

que você quis sair daquele ciclo.

Cíntia: que existe que fosse uma declaração... O que a gente quer Simone, o que a

gente quer sentir, meu Deus do céu, eu fui amparada ali. Do jeito que eu cheguei

aqui. Eu quero que o juiz saiba que eu aprendi a me cuidar. Puxa eu cheguei aqui

regaçada e aí eu encontrei as meninas. Eu aprendi a me respeitar, a controlar meus

sentimentos. Eu consegui me controlar, me respeitar. Nina: eu sou sua fã. Camila:

mas é o caso só de você estar no Nudem igual ontem eu estive lá... Cíntia: mas isso

tem uma força violenta, mas eles não falaram isso perto dele, tinha que falar? Então

me explica.

Simone: agora o Juiz eu concordo e até fico muito feliz que vocês queiram que o

Grupo apareça na Justiça. Então nós vamos fazer isto.

Camila: isso é bom, isso é muito importante.

Cíntia: gente! Essa mulher tá regaçada (Susana ri) Eu falo besteira mesmo. Eu

cheguei aqui a ponto de matar e morrer e tudo, estava mal mesmo, essa mulher veio

regaçada lá de trás, mas agora tá aqui inteira, tem uma coisa por trás. E o que é?

Camila: uma coisa boa, uma coisa ótima.

Assim, a sessão se encera com uma sensação de alento para o Grupo.

Page 168: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

167

5 DISCUSSÃO

Através da análise dos relatos das sobreviventes à violência de gênero (participantes do

Grupo que aceitou participar desta pesquisa) de suas trajetórias pelas instituições da Rede de

Enfrentamento à Violência da cidade Contagem/MG pôde-se observar:

a malha discursiva que legitima (ou não) as denúncias de violência de gênero e, por

conseguinte, a efetividade do enfrentamento a esta violência por parte das sobreviventes e das

instituições;

o jogo de poder que legitima a fala e os posicionamentos destas sobreviventes a partir das

críticas ao atendimento recebido e

a apresentação diferenciada pelas sobreviventes das instituições de acordo com o

posicionamento adotado por estas no acolhimento das denúncias de violência.

Por fim, através deste recorte na história deste Grupo, pôde-se analisar :

o papel e posicionamento da coordenadora/observadora, tema muito importante tanto na

teoria feminista como na pichoniana;

a matriz hegemônica de gênero (cunhada por nós como Cartilha/Muro) através dos muitos

questionamentos sobre sua manutenção e legitimidade;

as dificuldades para a transformação das relações de gênero na vida das sobreviventes;

como o processo de enfrentamento à violência de gênero pode-se dar em um grupo operativo

com a tarefa de construir estratégias coletivas para o fim do ciclo da violência e

como o processo de atendimento em grupo pode ou não influenciar a (re)construção de

sentidos da violência e de estratégias para seu enfrentamento.

Page 169: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

168

Vale ressaltar que nesta pesquisa não se tem como objetivo buscar a gênese da violência de

gênero a partir da análise de casos individuais. O esforço de análise se volta para como o

Grupo deste estudo se desenvolve como um serviço ofertado por determinada instituição

situada em determinada Rede de Enfrentamento à Violência e, o mais importante, como a

participação neste serviço efetiva e diretamente contribui para o enfrentamento à violência de

gênero.

5.1 O MURO / A CARTILHA/ O SPA

“Chega mãe!” (Cíntia)

Para a análise dos relatos grupais sobre a violência de gênero ocorrida e sobre a trajetória de

enfrentamento a este tipo de violência destaquei para além dos posicionamentos dos homens e

das mulheres o de seus filhos, suas famílias e dos representantes que falam pelas instituições.

Considero que estes posicionamentos podem denunciar a malha discursiva hegemônica que se

tenta escamotear, mas que ecoa nas falas, posicionamentos, decisões e sentimentos dos

homens e das mulheres em situação de violência. Sustento que a reiteração e continuidade do

ciclo, bem como a decisão de sair dele e as dificuldades em colocar em prática esta decisão

devem ser analisadas à luz deste amplo espectro social.

A escolha de utilizar o termo sobrevivente (ALMEIDA, 1998) para definir a mulher no ciclo

de violência objetivou dar visibilidade à carga opressiva deste processo de (re)posicionamento

que margeia todo o enfrentamento à violência de gênero por parte das sobreviventes. O

desabafo de Kenia (sessão de 26 de agosto de 2009) ao dizer que “É tanta pressão, tanta

pressão que prefiro morrer!” dá a dimensão da situação em que estas sobreviventes se

encontram. O relato de Cíntia sobre as reações de sua família (principalmente mãe e filhos) às

suas decisões visando encerrar o ciclo de violência e a defender seus direitos civis e os de

seus filhos (sessão de 22 de julho de 2009) ilustra como algumas instituições como a família,

juntamente com os ex-companheiros, se posicionam contra o enfrentamento à violência.

Apesar da firme decisão de dissolução do casamento, de ter saído da casa própria onde residia

com o companheiro, de não estar recebendo pensão para os filhos e de estar desempregada e

participando ativamente do Grupo, Cíntia demorou meses para se decidir a dar entrada ao

processo de separação, divisão de bens e guarda e pensão dos filhos. A mãe de Cíntia temia

Page 170: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

169

pela reação do ex-companheiro da filha em relação a seus outros filhos e, apesar das

dificuldades financeiras e do abalo emocional de Cíntia, ela sempre lhe recomendava esperar

mais um pouco. Cíntia teve que ir contra a mãe para abrir o processo. Ela relata emocionada

que através da participação no Grupo conseguiu “vencer” o ciclo de violência com o ex-

companheiro e também com a mãe.

Em um esforço de nomear e dar visualização a esta força opressora utilizamos no Grupo o

termo Muro. Esta definição foi construída para denunciar as frases e posicionamentos que

refletiam a barreira invisível, mas real com a qual as sobreviventes se defrontavam quando

questionavam a situação de violência vivida ou a posição da mulher em nossa sociedade. Ela

diz da angústia, da dúvida, das perguntas sem respostas, das expressões consagradas pelo dito

popular, das posturas institucionalizadas, dos momentos de descrédito frente às falas das

mulheres. Com a apresentação recorrente destas situações durante as sessões do Grupo

começamos a nomear este conjunto de situações como o Muro. Era uma imagem em

construção, com exemplos inúmeros, fortalecidos pela repetição, difícil de circunscrever em

definições, mas convergente para o Grupo. Sempre que apareciam estes tijolos que

constituíam este Muro, eu os pontuava até que em uma determinada sessão propus para as

participantes que desenhássemos este Muro (ANEXO 09). Elas aceitaram e começamos a nos

lembrar dos tijolos que conhecíamos por já terem aparecido no Grupo. Sem que eu tivesse que

explicar muita coisa, rapidamente elas começaram a elencar uma série de sentenças. Foi um

momento divertido, mas também angustiante. Fabíola contou os tijolos e, chorando,

perguntou como fazer com tantos impedimentos para a mulher na sociedade. Enquanto

ouvíamos estas sentenças (ditas por mães, familiares, policiais, juízes, padres e outras

mulheres) compreendemos que não se tratavam simplesmente de opiniões individuais.

Entendemos estes tijolos como elementos constitutivos deste Muro que ninguém vê ou sabe

dizer quem criou, mas que deixam marcas na trajetória destas mulheres. Para exemplificar a

força desta imagem, uma mulher que não havia participado da sessão de desenho do Muro

assim resumiu sua situação: “eu vejo como um muro. E eu queria ter umas ferramentas para

derrubar este muro. Com minhas mãos eu não consigo... queria ter umas ferramentas...” 21

Esta colocação validou a imagem do Muro como objeto de expressão do Grupo para se referir

ao posicionamento da mulher pela sociedade e às suas dificuldades no enfrentamento à

violência de gênero. A partir daquela colocação pontuei se ela compreendia as instituições da

21 Este relato não faz parte das sessões selecionadas para análise nesta pesquisa, mas, por sua vinculação com a

discussão foi incluído.

Page 171: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

170

Rede de Enfrentamento à Violência como possíveis ferramentas frente a este “Muro”. A

pergunta ficou no ar, como proposta para reflexão para todas, inclusive para mim.

Nesta dissertação, este Muro é compreendido como a representação da matriz

heteronormativa (BUTLER, 2003) que sustenta a manutenção da binarização do sexo e da

apresentação estanque do conceito de gênero. Desta forma, nos interessa como a partir da

matriz heteronormativa homem e mulher são situados(as) em lugares que atribuem

posicionamentos/comportamentos que almejam atingir a todos, a despeito dos desviantes. Nas

falas de Fernanda, Janaína, Cíntia e Nina ao se referirem (sessão de 22 de julho de 2009) aos

impactos emocionais da violência e da inobservância de seus direitos como “mulher que

cumpre suas obrigações” observa-se nitidamente a delimitação das mulheres e dos homens

segundo o Muro. Fernanda (na mesma sessão) explicita: “Lavar, passar, cozinhar, cuidar do

marido, da mulher o papel é esse. E do homem é ajudar ela a ficar em casa, a minha parte eu

tô fazendo e ele não está fazendo a parte dele e ainda me chama de vagabunda”. Há

referências aqui à vinculação da execução dos papéis de gênero determinados segundo a

matriz heteronormativa e da divisão das mulheres entre “trabalhadoras” e “vagabundas”, que

também pode ser lida como a divisão entre as “santas” e as “putas”, as “honestas” e as

“desonestas”. Para além, também se pôde observar a vinculação do desempenho adequado

dos papéis ao direito de não ser violentada, de ter um atendimento diferenciado durante o

ciclo de enfrentamento à violência e ao processo de punição aos agressores, como

demonstrando por Corrêa (1983). Ainda nesta mesma sessão, Cíntia, para animar Nina a se

posicionar, diz: “Levanta a cabeça, mulher! Você é mulher honesta!” Percebe-se como é

insidiosa a presença do Muro no próprio discurso das participantes do Grupo. Questionar e

denunciar a legitimidade desta lógica binarista, dicotômica e perpetradora da violência é

tarefa necessária. Esta sequência da sessão aponta para a convergência do posicionamento das

participantes sobre o assunto e é indicativo dos vetores de cooperação e pertinência grupal.

A partir da mesma lógica, interessa observar como são instituídos dispositivos de

enfrentamento à violência a partir de um discurso coibidor e punitivo, mas sustentado, em

muitos momentos, nesta mesma matriz. A situação, no mínimo, dualizada das mulheres neste

discurso, ora com direitos, mas como vítimas e ora como responsáveis pela iniciativa de

barrar o ciclo de violência, mas desacreditadas e deslegitimadas durante a trajetória de

enfrentamento à violência, é um aspecto constantemente questionado pelas participantes do

Page 172: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

171

Grupo. O processo de reiteração das normas heteronormativas atua contrariamente ao

movimento de enfrentamento à violência desmobilizando e/ou desvirtuando as estratégias

construídas pelas mulheres e pelas instituições. Como em um jogo de contrários, a cada

estratégia contra a violência outras perpetuadoras são reiteradas no sentido da manutenção do

status quo. Considero que este processo possibilita a reiteração da violência de gênero em

nossa sociedade dificultando o processo de enfrentamento a este fenômeno tanto individual

como institucionalmente. Por isso, ela deve ser o alvo de reflexões e críticas como caminho

possibilitador de elaboração de estratégias eficazes para coibir a violência de gênero. Percebe-

se este processo, por exemplo, na discrepância entre os posicionamentos dos familiares e

conhecidos das participantes frente às suas decisões de enfrentamento à violência e o

encontrado pelas mulheres do Grupo durante as sessões. Segundo o relato das participantes a

postura frequente às suas iniciativas de enfrentamento à violência é de aparente falta de apoio

no primeiro caso, em contraponto à aceitação, acolhida e disposição de ajudar das outras

participantes do Grupo. Por isso, quando Cíntia conseguiu dizer não à sua mãe depois de,

praticamente um ano, sem tomar a iniciativa de pedir a separação e a pensão para seus filhos,

houve um regozijo das mulheres durante seu relato (expresso pelo estouro de comentários

quando ela disse “chega mãe”). O mesmo ocorrendo, com o posicionamento de Kenia frente

ao conselho do pai para que ela fosse novamente morar com o ex-companheiro (sessão de 26

de agosto de 2009).

Outro aspecto do Muro que ficou flagrante nos relatos das mulheres foi a situação financeira

como um dos artifícios apropriados na relação violenta para sujeitar as mulheres à

manutenção da relação e/ou à subserviência. Assim, deve-se considerar que a questão da

classe/renda perpassa o enfrentamento ao ciclo da violência agregando à discussão estas

categorias. Como pode se observar na tabela “01 Dados sócio-econômicos das mulheres

sobreviventes à violência de gênero” (ANEXO 01) a maioria das mulheres não tem renda própria,

sendo que as que têm trabalho não têm registro em carteira ou não recebem uma quantia que

permita abarcar todos os gastos familiares. Algumas, inclusive, no momento da pesquisa, não

tinham moradia própria ou tinham as casas ocupadas pelos ex-parceiros. Devido a isto

compreende-se a preocupação e a importância dada à celeridade dos processos de separação,

guarda e pensão dos filhos por parte das mulheres participantes do Grupo, como Camila,

Cíntia, Fernanda e Susana e à própria dificuldade de se manterem financeiramente após uma

eventual separação, como confidenciado por Janaína (sessão de 22 de julho de 2009). Nos

Page 173: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

172

relatos há uma convergência sobre a repetição de casos onde os processos se transformam em

disputas financeiras entre ex-companheiros, indiferente dos interesses dos filhos (no caso de

pensão alimentícia, guarda e reconhecimento de paternidade) e da ex-companheira (nos casos

de separação e divisão de bens).

Também é interessante analisar como independente do posicionamento profissional das

mulheres durante a união a ameaça baseada na situação financeira encontra eco antes e após

a separação. O que pode ser visualizado na recorrência de exemplos sobre este assunto no

Muro (colecionados durante os dois anos do Grupo): “Se você for embora vai passar fome”.

“Se você for embora eu não vou te dar nada” “Pode ir embora, mas a casa é minha”. No

caso de Janaína, que nunca trabalhou fora de casa durante o casamento, não ter renda/casa

própria ou qualificação profissional poderia justificar sua insegurança em separar-se. No caso

de Fernanda, ela foi atuante na administração do comércio familiar e tem bens que, quando

forem divididos, permitirão que ela sobreviva. Porém, nem o fato de ela ter recorrido à

Justiça (através de um advogado particular) para a garantia de seus direitos civis e nem a sua

trajetória profissional durante o casamento impediram que ela sofresse violência ( e que esta

continuasse mesmo após sua saída do lar) e passasse dificuldades financeiras durante o

período de separação. Ainda sobre esta situação têm-se a descrição do motivo do fim de um

namoro de Camila (sessão de 12 de agosto de 2009) onde ela descreve um episódio ocorrido

no supermercado onde seu ex-namorado faz questão de demonstrar o seu poder na relação a

partir de seu poder aquisitivo impedindo-a de comprar o que ela tinha escolhido visto ser ele

o responsável pelo pagamento da conta.

Nos relatos das participantes do Grupo percebe-se que, de forma geral, a família, os filhos e a

sociedade se ressentem das mudanças que envolvem a performatividade de gênero, definida

de acordo com a matriz heteronormativa do papel de mulher/mãe/do lar. A subversão desta

trilogia envolve ir contra normas escamoteadas e reiteradas no sentido da manutenção do

status quo. Quando uma mulher, por algum motivo, se esquiva da manutenção do perfil

performático determinado socialmente, a família se ressente rapidamente. Para dar

visibilidade e denunciar de forma bem humorada a manutenção da organização e harmonia de

uma zona de conforto doméstica voltada para os homens e mantida através da execução

obrigatória dos afazeres domésticos pelas mulheres, nomeamos esta situação de spa. O spa

pode ser definido como uma ilustração da manutenção da subserviência servil doméstica que

é imposta às mulheres em benefício do conforto e bem estar dos homens (como discutido na

Page 174: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

173

sessão de 26 de agosto de 2009 sobre o caso de Elis). Vinculada a esta imagem dá-se a

discussão sobre o motivo pelo qual uma mulher que está no período de separação tem que

continuar exercendo as atividades domésticas de cuidado de seu ex-companheiro. Nesta

pesquisa, a partir das discussões no Grupo, compreendemos por período de separação o

período em que as sobreviventes deixando ou não de conviver na mesma casa com os ex-

companheiros, permanecem no ciclo de violência por pendências jurídicas, como guarda e

pensão de filhos, separação de corpos, divórcio e divisão de bens. A tensão referente a este

tema é recorrentemente denunciada, causando grande alvoroço nas participantes durante as

sessões grupais. Outro debate muito presente é sobre os cuidados com os filhos e os impactos

da situação de violência sobre eles, o que também aponta para a necessidade de manutenção

do lugar da mulher como mãe/cuidadora do lar. Considero que estes são temas importantes

para que se compreenda a dinâmica da manutenção da violência de gênero e que o fato de eles

serem sempre retornados se dá porque a partir deles se podem analisar as dificuldades das

sobreviventes em enfrentar a violência de gênero.

No perfil performático de gênero para o sexo feminino ditado pela matriz heteronormativa a

importância da maternidade, do casamento e do amor romântico (preferencialmente único e

fiel) é decisiva. Apesar de se poder considerar que a sociedade vem se sensibilizando com a

questão do enfrentamento à violência doméstica e familiar (o que se percebe na legislação e

na instalação de instituições voltadas para esta problemática) e com a discussão sobre as

performances dos papéis sexuais não se pode dizer que estas discussões estejam

emparelhadas. Geralmente, a mulher sobrevivente à violência de gênero é reforçada em seu

processo de enfrentamento ao ciclo de violência, desde que não subverta as normas de

heteronormatividade, maternidade, fidelidade e romantismo, o que em parte facilita o

entendimento da ambivalência de sentimentos e posicionamentos não só da mulher, mas da

sociedade (instituições) no processo de enfrentamento à violência. Parece que a regra é assim:

mude, mas sem mudar muito, subverta, mas não tudo. Considero que colocar em pauta o

enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a mulher sem se atentar para a

constituição da subjetividade feminina através deste processo normativo e performático é

reforçar a invisibilidade do Muro que o sombreia.

Assim, além da imagem do Muro utilizamos no Grupo o termo Cartilha para nos referir a

este conjunto de ensinamentos sobre a trilogia casamento/filho/afazeres do lar e afins, ou

Page 175: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

174

seja, sobre o que é ser e como ser mulher em nossa sociedade. A partir da escuta das histórias

afetivas (ANEXO 02), familiares e de trajetória de sobreviventes à violência de gênero

conseguimos em grupo perceber certa constância em algumas colocações e em alguns

princípios norteadores do lugar das mulheres na sociedade. Como a figura do Muro foi e está

sendo delimitada durante o processo grupal, a imagem da Cartilha também segue este

caminho. Ela é como um livrinho invisível que é recitado às mulheres desde seu nascimento,

delimitando seu lugar na família durante a infância, a melhor forma de comportar-se durante

a infância e adolescência, principalmente, em relação aos meninos e segue apresentando as

regras do namoro, do noivado e do matrimônio e maternidade. No Grupo, as próprias

participantes apontam a presença da Cartilha quando escutam a história das outras. “Eu me

casei virgem”, “ele foi meu primeiro em tudo”, “meu pai falou que eu não ia casar porque

não sabia fazer bolo”, “Lá em casa tinha que namorar um ano, noivar seis meses e casar”,

“eu nunca o traí”, “eu casei para ser para sempre”, “eu o esperava com a casa limpa e com

um jarrinho de flores em cima da geladeira que ele nunca percebia” frases seguidas,

geralmente, de um estranhamento, pois, apesar de terem seguido a “Cartilha” direitinho, a

violência ocorria/ocorre no casamento. Era como se a boa execução das regras não tivesse

garantido os sucessos do matrimônio e delas como mulheres. Uma mulher chegou a afirmar:

“Eu fiz tudo direitinho, mas não deu certo” 22

. Desta forma, no Grupo, estas colocações não

são utilizadas para afirmar o lugar de vítimas, mas para denunciar os efeitos da matriz

heteronormativa. Como exemplo, esta imagem foi evocada para responder à pergunta de

Susana (sessão de 19 de agosto de 2009) sobre o porquê do comportamento diferenciado do

filho entre ela e o pai apesar de ela ser muito solícita com ele.

Susana: é rapaz, tem 21 anos, porque homem defende o pai. Eles não vêem igual

domingo, tava lá com a namorada. Fiz uma lasanha beleza pra eles. Minha menina

também tava com o namorado. Tinha uma sobremesa bacana, mas eles não vêem

isso, sabe o que eles enxergam principalmente rapaz, sabe o quê que eles enxergam?

Eles enxergam que o pai está dentro da casa, que o papai assiste ao jogo.

Simone: o pai é legal.

Susana: não é? O pai é legal. (Mulheres concordam) A mãe?

Susana: Porque que é assim Simone?

Simone: porque é assim Camila?

Camila: por causa da cartilha... Você lembra-se da cartilha? (Falas)

Simone: você não ta fazendo nada além da sua obrigação e o pai tá fazendo uma

coisa.

Camila: uma dádiva divina.

22 Este relato não faz parte das sessões selecionadas para análise nesta pesquisa, mas, por sua vinculação com a

discussão foi incluído.

Page 176: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

175

Nesta linha de raciocínio, pode-se compreender a recorrência da desculpa, repetida à

exaustão pelas sobreviventes de não tomarem iniciativas ou adiarem a decisão de encerrar o

ciclo por causa dos filhos. Os impactos físicos, psicológicos, sociais e afetivos de cenas de

violência familiar sobre o desenvolvimento de crianças são relatados diariamente pelas

próprias mulheres. Mas ao lado deste sofrimento fica a incumbência da manutenção do

equilíbrio familiar e do casamento em prol dos filhos. Este não é um assunto simples de se

tratar, mas nossa aposta nesse Grupo é que esta situação perdura a partir da mesma dinâmica

social que localiza a mulher na execução das obrigações domésticas. O papel performático da

mulher na sociedade diz da necessidade da manutenção de seu lugar de mãe, que se

necessário for, se sacrificará pelos filhos, até mesmo com a vida. Considero estes mitos como

sombras do Muro que praticamente aprisionam as sobreviventes na situação de violência de

gênero. A subversão desta lógica é dificultada diariamente a partir da reiteração das normas

que posicionam a categoria mulheres em nossa sociedade. Até certo ponto, compreende-se

que as mulheres questionem a manutenção obrigatória do casamento, porém, questionar as

obrigações materno/domésticas, ainda é um tabu. O peso de ser a responsável pela edificação

do lar é grande e mais forte e eficiente justamente porque naturalizado. Concluo assim, que a

naturalização dos papéis da mulher como mãe e cuidadora oferecem bases para a manutenção

do ciclo de violência. Para além, frente à constante preocupação (fundada) das mulheres

sobre os impactos da violência sobre seus filhos, procuramos problematizar os

posicionamentos que se guiam pelas normas performáticas dos papéis de mãe e pai, não

como uma solução definitiva ou ingênua para o problema, mas como mais uma ferramenta

para encontrar/produzir fissuras no Muro. Assim, apesar de não ser possível, em todos os

casos, a subversão dos papéis performáticos de pai e mãe definidos socialmente, considero

interessante apresentar aos filhos a possibilidade de outras formas de relação

maternal/paternal e entre os casais. Como, por exemplo, em relação a toda a discussão aberta

por Graça (sessão de 26 de agosto de 2009) sobre porque o filho somente se dirigia a ela para

pedir os bens materiais. Procuramos também alertar para a realidade dos impactos na vida de

qualquer pessoa que permaneça em um ciclo de violência, especialmente crianças e

adolescentes (como na sessão do dia 26 de agosto de 2009, em relação à discussão sobre as

filhas de Nina e sobre o filho de Kenia). Desta forma, discutir o enfrentamento à violência de

gênero sem problematizar as sombras do Muro pode levar à proposição de estratégias

parciais e ineficazes.

Page 177: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

176

Da mesma forma, percebemos a dificuldade, entre as participantes do Grupo, em adotar

estratégias de mudança e questionamento desses aspectos performativos devido às contra-

respostas rápidas e às vezes violentas por parte dos parceiros e de outros da sociedade. Elas

relatam que se vêem questionadas em seu papel de mãe/mulher, sendo apontado que elas

estão “perdendo” seu lugar “abandonando suas obrigações de mãe e de mulher”. 23

Geralmente, este ataque/violência psicológica/moral é eficiente, pois, busca ferir justamente

a identidade da mulher e seu status social. Se o lugar da mulher se delineia a partir das

normas da matriz heteronormativa a acusação de não adequação a esta tem grande peso.

Talvez, isto possa explicar o mecanismo da violência psicológica e moral que tanto aflige as

mulheres do Grupo, como percebemos pela indignação no relato de Fernanda (sessão de 22

de julho de 2009) ao ser acusada por todos ter “saído de casa” e chamada de “vagabunda” o

mesmo acontecendo com Nina.

Por fim, as participantes do Grupo utilizam como exemplos para dar visibilidade ao discurso

da matriz hegemônica os variados meios de comunicação (programas de TV, rádio, filmes,

comerciais e novelas) e a instituição Igreja. Em relação aos meios de comunicação eles são

discutidos a partir da denúncia de como o lugar da mulher e do homem é diferenciado na

sociedade (situação muito bem apresentada durante a discussão sobre a diferença de

apropriação dos corpos masculinos e femininos na sessão de 19 de agosto de 2009). Neste

contexto, os meios de comunicação poderiam ser compreendidos no processo reiterativo

performático como os canais que fazem ecoar a normatização na sociedade. Esta discussão, a

partir do entendimento desta função dos meios de comunicação por parte das mulheres, pode

se considerada outra forma/ferramenta para questionar, denunciar e desnaturalizar a matriz

hegemônica.

O discurso da Igreja, por sua vez, é utilizado como apoio espiritual (sessão de 19 de agosto

de 2009) e como um conjunto de preceitos sobre o casamento e o lugar da mulher na

sociedade: casar-se apenas uma vez e/ou não ter outro relacionamento caso venha a separar-

se ou ficar viúva (sessão de 19 de agosto de 2009). No processo de enfrentamento à violência

frente às sombras do Muro, elas não negam a importância do apoio espiritual, mas

questionam os preceitos que atuam para a manutenção de relações conflituosas e violentas.

Assim, percebe-se que a dinâmica grupal permite questionar preceitos e, ao mesmo tempo,

23 Este relato não faz parte das sessões selecionadas para análise nesta pesquisa, mas, por sua vinculação com a

discussão foi incluído.

Page 178: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

177

apropriar-se do que pode auxiliar no enfrentamento à violência. Este aspecto é indicativo da

pertinência e criatividade grupal na negociação dos sentidos da violência e na elaboração de

estratégias de enfrentamento.

Pelo exposto, observa-se que a participação no Grupo possibilita um campo aberto para que

as participantes discutam e questionem as normas da matriz heteronormativa e, a partir disto,

durante o processo de participação no Grupo, busquem atuar sobre o ciclo de violência através

de mudanças em suas relações familiares / afetivas. Também considero que a construção

coletiva de imagens/figuras (Muro, Cartilha e SPA) para dar visibilidade e denunciar as

normas da matriz é um importante resultado possibilitado pela dinâmica grupal por

instrumentalizar a discussão a partir da criação de um ECRO grupal potencializador de

mudanças.

5.2 CICLO DE VIOLÊNCIA / CICLO DE ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA

“A mulher acaba se sentindo usada por isso, porque, querendo ou não, não

é o nosso corpo que está sendo exposto lá, mas aquilo ali não deixa de ser a

gente e eles sabem disso” (Nina).

“Eu cheguei aqui a ponto de matar e morrer e tudo, estava mau mesmo, essa mulher veio

aqui regaçada lá de trás, mas agora esta aqui inteira, tem uma coisa por trás. E o que é?

Uma coisa boa, uma coisa ótima. Eu quero que o juiz saiba que eu aprendi a me cuidar”

(Cíntia).

A partir dos relatos das participantes desta pesquisa sobre os episódios de violência interessa-

nos analisar os sentidos da violência para as mulheres compreendendo que há uma relação

entre estes e o processo de subjetivação destas mulheres e seus posicionamentos nos ciclos de

violência e nos ciclos de enfrentamento à violência de gênero. Para isto, adotamos a definição

de sentido, também apresentada por Azerêdo (2007), segundo Vigotsky (1999), que diferencia

sentido de significado, seguindo Paulhan.

O sentido de uma palavra é a soma de todos os eventos psicológicos que a palavra

desperta em nossa consciência. É um todo complexo, fluido e dinâmico, que tem

várias zonas de estabilidade desigual. O significado é apenas uma das zonas de

sentido, a mais estável e precisa. Uma palavra adquire o seu sentido no contexto em

que surge; em contextos diferentes altera o seu sentido. O significado permanece

estável ao longo de todas as alterações de sentido. (...) Esse enriquecimento das

Page 179: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

178

palavras que o sentido lhes confere a partir do contexto é a lei fundamental da

dinâmica do significado das palavras (VIGOTSKY, 1999, p.181).

A partir deste entendimento buscaremos discutir, segundo as proposições apresentadas sobre a

matriz heteronormativa (BUTLER, 2003) como o sentido da violência é negociado/alterado a

partir da participação no Grupo e como este novo contexto pode influenciar no sentido da

violência e de seu enfrentamento pelas participantes do Grupo.

Para analisarmos o processo de subjetivação destas mulheres posicionamo-as como

sobreviventes à violência de gênero em contraponto ao posicionamento de vitimização

(ALMEIDA, 1998). Aliaremos a isto a compreensão da violência a partir do ciclo de

violência e de seu enfrentamento através do ciclo de enfrentamento à violência (apresentados

no capítulo “Violência”) elaborado por mim em um esforço de compreensão dos efeitos da

trajetória de enfrentamento à violência sobre a subjetividade destas mulheres. Sustento que a

experiência da violência analisada a partir destes ciclos e da participação no Grupo permitirá

desnaturalizar posicionamentos e conceitos e oferecer subsídios para a elaboração de

estratégias de enfrentamento à violência potencializadoras de processos de subjetivação

menos violentos. No que se refere aos relatos das participantes desta pesquisa são recorrentes

as situações de descrédito/deslegitimação em suas trajetórias. O que leva à pergunta: como

defender/reivindicar direitos de uma clientela desacreditada socialmente, constituída a partir

de reiteradas experiências deslegitimadoras?

Nas trajetórias cíclicas de violência cada fase tem influências sobre a subjetividade da mulher

e sobre o sentido que a violência pode assumir para ela. Um período que merece atenção para

que se possam compreender as dificuldades de enfrentamento à violência é a lua-de-mel,

característica após um momento de violência e que geralmente desarma as mulheres. Apesar

de as mulheres do Grupo geralmente estarem em um estado constante de tensão, com raros

ou cada vez mais curtos momentos de lua de mel, é interessante o impacto deste período em

seus relatos. Para exemplificar podemos citar o relato de Fabíola (sessão de 12 de agosto de

2009) sobre como ficou sem reação quando, após um período de tensão (onde ela havia

tomado várias decisões), se instalou a lua de mel em sua relação.

Fabíola: O meu questionamento foi esse, Simone: por que eu aguentei esta situação

tanto tempo, para quê? Estava fácil, agora eu vejo com clareza. Era só eu dar um

basta e não querer. Por que eu não consegui?

Simone: dar um basta quer dizer o que?

Page 180: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

179

Fabíola: quando eu cheguei nessa situação de tomar coragem vou pedir para sair da

escola vou entrar com o processo de separação e vou retomar o meu jornal. Eu ia

fazer estas três atitudes eu vou chutar o pé da barraca e não quero nem saber. Aí

quando eu chego lá na escola começou a me desarmar porque duas semanas antes

ele parou de beber, começou a ficar mais em casa, aí ficou aquela calmaria, sem

brigas, aí eu comecei a perder as forças...

Simone: Mas ele começou a beber de novo ou parou até agora?

Fabíola: ele parou. Aí eu comecei a perder as forças porque antes eu tinha um

motivo.

Percebe-se como é difícil sustentar as decisões frente à família, aos filhos, à sociedade e a si

mesma quando ocorre uma mudança (aparente ou temporária?) no comportamento do

companheiro. Desta forma, a questão da manutenção da decisão é muito importante. Decidir

é apenas um ponto inicial, manter as decisões é o nó da situação. Um dos momentos que, às

vezes, que pode colocar em xeque as decisões das sobreviventes é o da lua-de-mel. Nestes

casos uma intervenção somente poderia ser favorável para o fim de um ciclo se sustentada

por uma decisão por parte dos dois de enfrentar a violência como responsabilidade conjunta e

como uma situação que exige mudanças e adaptações de ambos. Uma lua-de-mel que se

sustenta em aspectos como o medo da perda da relação ou de incomodar o outro, não

desarticula os mecanismos de ocorrência de uma nova cena de violência. As consequências

deste período aparente de tranquilidade são marcantes. Em seu relato (sessão de 12 de agosto

de 2009) Fabíola descreve como se sentiu:

Simone: mas deve ter outra justificativa para não ter separado.

Fabíola: é feliz eu não estou não. Mas eu estou nessa. Aí, agora, eu sempre tenho

uma desculpa.

Simone: ela tem uma sequência de desculpa

Fabíola: eu tenho uma sequência de desculpas e no final das contas eu nem sei o que

eu fiz mais. Aí os meus meninos esta tudo encaminhado profissionalmente. A minha

filha tem o emprego dela lá na firma grande o meu menino iniciou o curso dele no

SENAI aí a empresa contratou e tal aí o caçula de 16 anos foi encaminhado para o

estágio esta trabalhando. E aí gente e agora?

Camila: e agora ta tudo bom que coisa chata. (Risos)

Fabíola: ele parou de beber, financeiramente eu to ótima estou até viajando. Aí ta

tudo bem. Camila: risos

Simone: aí ta tudo bem

Fabíola: ta tudo bem entre aspas. Aí que começa a confusão eu vou mexer em uma

coisa que esta aparentemente arrumada.

No relato da sessão do dia 12 de agosto de 2009, Camila compara a situação vivida por

Fabíola a um câncer, alertando que, por mais que ela quisesse negar sua existência, ela teria

que iniciar o tratamento mais cedo ou mais tarde. Continuando, Fabíola conclui que nesta

história o que acontece é que ela sempre está perdendo e que a reação imediata foi a de ter

sentido raiva de si mesma por não ter conseguido colocar, novamente, em prática suas

decisões. Percebe-se como é impactante o período de lua-de-mel e como a sobrevivente é

Page 181: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

180

posicionada e se posiciona como a responsável única pelo sucesso ou fracasso da trajetória de

enfrentamento à violência. Considero que as sugestões de estratégias de enfrentamento que

não se atentem para esta discussão podem correr o risco de (re)posicionar a sobrevivente

como a única responsável pelos seus fracassos e dificuldades podendo iniciar um episódio de

deslegitimação do ciclo de enfrentamento à violência.

É interessante também observar no relato de Fabíola a utilização dos termos desculpas e

entre aspas para descrever sua situação. No Grupo chamamos de desculpas as explicações ou

situações que são apresentadas ou citadas como motivos para a “opção” de se manter a

relação violenta após a decisão de encerrá-la ou apesar do desejo de fazê-lo, são desculpas

das participantes para si, para as outras, para a coordenadora, para a sociedade e a família

denunciadas durante o processo grupal. Espelhar estas falas como desculpas é sinalizar para a

mulher que ela está criando subterfúgios para voltar atrás em suas decisões, sejam quais

forem. Esses “subterfúgios” são analisados a partir da perspectiva das sombras do Muro e são

apontados para que elas possam percebê-los e enfrentá-los, evitando a naturalização e

banalização do processo de “desculpar-se/culpar-se” por não conseguir sair do ciclo.

Camila é uma participante do Grupo que se apropriou do sentido da violência como um ciclo.

Ela consegue perceber claramente todo o processo tanto no seu caso como no de outras

participantes. Talvez este aspecto tenha siso possibilitado por sua permanência ativa no grupo,

um diferencial que pode ter permitido a ela, apesar da dificuldade em encerrar os ciclos, agir

nos momentos de tensão e lua-de-mel de forma diferenciada, conseguindo diminuir e espaçar

os momentos de violência (sessão de 12 de agosto de 2009). Como motivo para o fim de sua

relação com o último ex-namorado, ela apresentou o fato de ter percebido a tensão constante

na relação e ter previsto um possível episódio de violência.

Como apresentado nos exemplos acima, as sobreviventes podem iniciar o ciclo de

enfrentamento à violência a partir de um ato de publicização ou de cunho privado durante o

período de tensão ou imediatamente após um episódio agudo de violência. Sustento que estes

podem ser os momentos mais propícios para a efetivação destas estratégias dependendo da

forma como este acontecimento for recebido e encaminhado. Desta forma, sustento que

estratégias formuladas após um período de violência e tensão poderiam surtir mais efeito

desde que legitimadas pelos interlocutores(as) procurados(as) pelas sobreviventes à violência

de gênero. Os impactos sobre o ciclo de enfrentamento à violência a partir da deslegitimação

Page 182: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

181

de uma estratégia de publicização são enormes e, por consequência atuam sobre o sentido da

violência para aquela sobrevivente e sobre suas futuras iniciativas de encerrar o ciclo. Assim,

sustento que o processo de (des)legitimação das estratégias formuladas pelas mulheres atua

sobre a subjetivação e o sentido da violência de forma direta, ou seja, culpabilizando-as e

mantendo a prescrição de posicionamentos baseados na matriz heteronormativa.

Nesse sentido, a proposta é realizar a análise do processo de enfrentamento à violência de

gênero a partir dos diferentes momentos dos ciclos de violência e de enfrentamento à

violência, considerando que, desta forma, seria possível desnaturalizar e redimensionar as

responsabilidades entre as sobreviventes à violência de gênero e seus interlocutores(as). De

outra forma, se atuaria, justamente, na manutenção de posicionamentos dicotomizantes, onde

de um lado estão as mulheres e do outro todos os seus interlocutores(as) institucionais e ou

familiares, como exemplificado por Janaína em seu desabafo na sessão dia 22 de julho de

2009. Após a atuação da Polícia Militar no seu caso, ela concluiu: “Nunca mais! Nunca

Mais!”, se referindo à sua decisão de não chamar a Polícia novamente caso ocorresse outro

episódio de violência com seu marido. O saldo de sua estratégia de publicização foi revolta,

humilhação, descrédito na instituição policial, acusação e culpa pela iniciativa.

5.3 ESTRATÉGIAS DE PUBLICIZAÇÃO / ESTRATÉGIAS PRIVADAS

“Olha o tanto de coisa que eu fiz” (Elis).

Nesta pesquisa compreendo as estratégias apresentadas pelas sobreviventes à violência de

gênero, durante a participação no Grupo, como de publicização ou privadas. Por estratégias

de publicização compreendemos aquelas apresentadas pelas sobreviventes à violência de

gênero que remetem à busca de ajuda e ou apoio em recursos externos à relação violenta com

o objetivo de encerrar o ciclo de violência. Por recursos externos compreendemos as

instituições da Rede de Enfrentamento e demais instituições públicas e privadas bem como o

círculo de convivência externa à relação violenta como familiares, amigos, conhecidos e

empregadores (em todos os casos tanto da parte da mulher como de seu companheiro). Por

estratégias privadas entendemos as com foco de atuação na relação da mulher consigo e com

o companheiro, resguardando a relação violenta da exposição pública. A partir das várias

estratégias apresentadas pelas participantes do Grupo percebemos que não há estratégias mais

Page 183: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

182

ou menos eficientes por si mesmas. Até porque para a análise da eficácia das proposições das

estratégias devem ser levadas em consideração as especificidades da relação violenta como o

relato de ameaça de morte, transtornos psiquiátricos, uso e abuso de drogas, porte de armas,

tentativa de homicídio, não apoio familiar à separação. O que se pode concluir a partir dos

relatos, é que quando a participante consegue utilizar-se de uma combinação dos dois tipos de

estratégias há maior chance de manutenção de períodos sem violência e/ou um maior

espaçamento entre os momentos do ciclo. Pelos relatos, observa-se que a decisão isolada de

adotar uma estratégia de publicização sem a adoção de estratégias privadas esvazia

rapidamente o impacto da publicização. Por sua vez, também se conclui pela análise dos

relatos, que a manutenção de uma estratégia privada isolada não garante que outras cenas de

violência não ocorrerão. Pode-se perceber isto nas situações onde, dificilmente, uma mulher

resolve denunciar um ato de violência no primeiro episódio, optando por estratégias privadas,

ou nos casos, onde até no período da separação há a manutenção de cenas de violência (como

nos casos de Cíntia-sessão de 26 de agosto de 2009/Fernanda-sessão de 22 de agosto de

2009). A sequência de decisões e estratégias adotadas, por exemplo, por Camila em sua

trajetória de sobrevivente à violência de gênero demonstra como pode ser difícil barrar um

ciclo, principalmente em casos como o dela, onde eles são rápidos podendo ocorrer a

sequência dos três momentos em horas (como apresentado no relato do ciclo de violência

durante um almoço familiar sessão de 19 de agosto de 2009). Neste exemplo, observa-se

como no decorrer de um ciclo que se desenvoleu, aproximadamente em três horas, ela foi

decidindo mudar de estratégias. Primeiramente ela optou pelas estratégias privadas (de sair

do ambiente da festa familiar ao perceber que um momento de tensão se iniciava, para não

expor a si e ao companheiro a uma cena de violência em público). Ao sair da festa, no trajeto

para casa, ela negocia com o companheiro, solicitando-lhe que parasse as acusações e as

injúrias e saísse de seu carro. Até este momento, se percebe que Camila optou por manejar

e/ou negociar a situação adotando estratégias privadas evitando o confronto com o

companheiro e a publicização da violência. Como estas estratégias privadas não surtiram

efeito, ela decidiu publicizar a situação de violência, mudando as estratégias e pedindo auxílio

a um terceiro (Polícia Militar) para auxiliá-la a retirar o companheiro do carro. As estratégias

de deslegitimação, descrédito e ameaças por parte do companheiro de Camila são

características do que dificulta o ciclo de enfrentamento e prolonga os momentos de tensão do

ciclo de violência.

Page 184: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

183

O processo de negociação destas estratégias durante o aqui-agora grupal ocorre vinculado ao

sentido da violência sustentado pelo ECRO grupal e a partir da apresentação das estratégias

durante as sessões grupais. Assim as estratégias relatadas podem ser divididas entre as

colocadas em prática e as que são construídas pela coordenação e pelas outras participantes

durante o relato de alguns casos de violência. Entre as já colocadas em prática é interessante

observar que sua apresentação ocorre vinculada a relatos de avanços ou retrocessos em um

ciclo de enfrentamento, o que permite que seja realizada uma avaliação coletiva das

estratégias e de suas consequências. A percepção de que estratégias adotadas estão dando

início a um processo de mudança na relação violenta é valorizada pelas participantes do

Grupo e pela coordenação. Geralmente observa-se que os relatos de adaptação ativa se

referem à adoção de estratégias que as auxiliaram a atuar sobre os pontos percebidos como

mais difíceis de superar durante o ciclo de enfrentamento. As dificuldades apresentadas se

referem aos aspectos familiares, sentimentais, afetivos, financeiros, sociais e relativos ao

próprio companheiro. A oportunidade de avaliar com outras mulheres na mesma situação as

suas decisões e estratégias é um dos aspectos diferenciadores possibilitados pela dinâmica

grupal. Observamos que isto potencializa o processo de tomada de decisões das mulheres,

auxilia nos momentos de deslegitimação do processo, enriquece o processo de construção de

outras estratégias e o ECRO grupal, incentiva às outras participantes a tomarem ou manterem

decisões e estratégias e legitima o ciclo de enfrentamento à violência. Além disto, a partir

dos relatos das situações de violência são elaboradas sugestões para a quebra do ciclo de

violência por parte das outras participantes juntamente com a coordenação. Este processo se

baseia no ECRO grupal, nas estratégias já analisadas para casos similares, na capacidade

criativa do Grupo, sendo a tarefa grupal, justamente, aprender a pensar no Grupo a partir da

problemática grupal utilizando-se dos esquemas referenciais de cada participante e do Grupo.

(PICHON-RIVIÈRE, 1994). A dinâmica de um Grupo Operativo incita à criatividade no

pensar com o abandono de estereotipias no fazer e no criar. Utilizar-se desta proposta no

processo de enfrentamento à violência é o desafio do Grupo analisado nesta pesquisa.

Compreendemos que as participantes, na verdade, deverão decidir sozinhas se e como

encerrarão seus ciclos de violência, mas podendo utilizar-se do aprendizado no Grupo para

este propósito. O aspecto criativo definidor da metodologia do Grupo Operativo reafirma a

proposta de elaboração e utilização de estratégias variadas como forma de enfrentar a

violência e o lugar de destaque da participação no Grupo como uma estratégia de

publicização que as apóia neste processo de (re)criar e (re)avaliar suas trajetórias. Assim,

Page 185: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

184

neste Grupo a tarefa é realizada a partir do processo de negociação das estratégias permitindo

que o Grupo adquira legitimidade e eficiência para as participantes. Durante o processo de

negociação das estratégias percebem-se estes movimentos a partir da convergência e

divergência entre as participantes sobre os posicionamentos adotados pelas participantes,

seus parceiros e outros durante o relato de estratégias privadas e em relação ao

posicionamento de terceiros no caso de estratégias de publicização durante o ciclo de

enfrentamento à violência. Em um Grupo Operativo, estes momentos de

divergência/convergência podem ser compreendidos pela heterogeneidade nos esquemas

referencias de cada participante, sendo este aspecto apontado por Pichon-Rivière (1994)

como importante para a dinâmica grupal por potencializar a realização da tarefa.

A partir dos relatos analisados temos vários exemplos deste tensionamento necessário para a

negociação. Na sessão de 22 de julho de 2009 observamos como a partir do questionamento

de Camila sobre o atendimento recebido no Espaço Bem-Me-Quero inicia-se uma sequência

de questionamentos sobre a estratégia de publicização de buscar auxílio da Polícia

Militar/Civil. Este movimento grupal foi muito interessante, pois se as participantes não

convergiram com a colocação de Camila sobre o posicionamento do Espaço Bem-Me-Quero,

elas apresentaram relatos que convergiram com a denúncia de Camila sobre a deslegitimação

em suas trajetórias de sobreviventes à violência de gênero. Pode-se observar que as

participantes se utilizaram das colocações de Camila para apresentar situações convergentes

em suas próprias trajetórias (como realizado por Fernanda e Janaína na referida sessão).

Assim, apesar do protesto de Camila ter se dirigido ao Espaço Bem-Me-Quero, a discussão

voltou-se para o desrespeito aos direitos das sobreviventes à violência de gênero por seus

companheiros e pela Polícia Militar, bem como para a dificuldade de ser aceita e

compreendida pelos familiares durante o período de separação. No caso do relato de Janaína

sobre a adoção da estratégia de publicização (chamar a Polícia Militar) é possível perceber o

movimento de apropriação dos relatos pelas participantes durante a discussão sobre os

posicionamentos dos agentes policiais, dela e de seu companheiro. As participantes

convergiram sobre a importância da adoção da estratégia de publicização, da inadequação do

comportamento dos agentes policiais e do companheiro de Janaína, mas divergiram do

posicionamento de Janaína em todo este episódio violento.

Page 186: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

185

Por este conjunto de relatos é possível concluir a convergência da importância de apoio à

mulher que busca sair do ciclo de violência a partir da adoção de estratégias de publicização,

visto que sobre este aspecto não ocorreu divergência por parte das participantes. Mesmo no

caso de Elis (sessão de 19 de agosto de 2009) onde a Polícia não compareceu após o

chamado, não se questionou a estratégia, mas sim a atuação policial. O que se percebe então é

que é necessário problematizar qual apoio cabe a cada instituição de acordo com suas funções

na Rede de Enfrentamento à Violência e as formas como elas encaminham as solicitações das

sobreviventes à violência de gênero. Este aspecto também está presente no relato de Cíntia

sobre a atuação dos funcionários da Audiência de Conciliação (sessão do dia 26 de agosto de

2009).

No caso de Camila, ela tenta demonstrar como sua situação particular de deslegitimação

durante a trajetória de enfrentamento à violência poderia ser utilizada como uma denúncia

visando à mudança deste fenômeno social. O deslocamento entre o eu e o nós aparece nas

estratégias apresentadas por ela (sessão de 12 de agosto de 2009); receber uma atenção

especial da instituição e apresentar seu depoimento para auxiliar no enfrentamento à violência

na sociedade reafirma a apropriação do sentido da violência de gênero como fenômeno a ser

enfrentado no coletivo, através da publicização. Observa-se, assim, a convergência entre o

ECRO grupal e o posicionamento ativo de Camila.

No caso de Cíntia, ela apresenta como estratégia para se contrapor à deslegitimação em seu

ciclo de enfrentamento à violência a visibilidade do Grupo como local privilegiado na Rede

de Enfrentamento à Violência. Esta colocação delimita o Grupo como legitimador das

trajetórias destas sobreviventes na Rede de Enfrentamento, o que justifica a solicitação de

Cíntia de que uma declaração de sua participação no Grupo faria diferença no posicionamento

de seu ex-companheiro e das servidoras na Audiência de Conciliação. Esta solicitação já foi

apresentada por outras participantes do Grupo, o que reafirma o local privilegiado do Grupo

como legitimador na trajetória destas sobreviventes à violência de gênero.

Para além, as participantes do Grupo apresentam como estratégias de publicização o

atendimento psicológico (sessão dia 19 de agosto de 2009) e a aplicação da Lei Maria da

Penha. Para tentar minimizar posicionamentos institucionais violentos, elas apresentam como

estratégia a aplicação de processos criminais contra os policiais/profissionais que atuarem de

Page 187: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

186

forma violenta/deslegitimadora (sessão do dia 12 de agosto de 2009). Desta forma, sem

supervalorizar o saber psicológico (e o atendimento em grupo) vale observar a reiteração da

importância da escuta recebida. As participantes do grupo, inclusive, propõem este tipo de

atendimento aos homens agressores e que seu oferecimento seja ampliado, inclusive para

dentro das instituições policiais, sugerindo a contratação de profissionais “psi” para estas

instituições (sessão do dia 12 de agosto de 2009).

Vale ainda destacar a afirmação das participantes da importância da adoção de estratégias de

publicização da violência para além da busca de auxílio institucional. Pelos relatos percebe-se

a influência (positiva e negativa) do apoio da família, de amigos e conhecidos para a tomada e

manutenção das decisões durante a trajetória de enfentamento à violência (sessões dias 22 de

agosto de 2009, 12 de agosto de 2009 ,19 de agosto de 2009 e 26 de agosto de 2009). Entre os

relatos sobre o apoio de amigas chama a atenção a estratégia de Cíntia de ir acompanhada por

Graça à Audiência de Conciliação e o apoio recebido por elas de Camila neste dia tumultuado

(sessões dias 19 e 26 de agosto de 2009). Também é interessante observar o apoio que

Fernanda recebeu de Graça (sessão dia 22 de julho de 2009), comprando roupas dela para

ajudá-la financeiramente. Para além, o próprio convite de Elis a Nina para participar do Grupo

e desta para Sâmia (sessão dia 22 de julho de 2009) podem ser analisados nesta linha de

raciocínio como também indicativos do Grupo como um local reconhecido pelas participantes

como legítimo no processo de enfrentamento à violência.

Entre as estratégias privadas destaca-se a adotada por Fabíola (sessão dia 12 de agosto de

2009) de “negociar consigo” mesma, bem como a de Fernanda de “se posicionar” (sessão do

dia 22 de julho de 2009). Podemos considerar estas atitudes como estratégias privadas de

enfrentamento à violência por serem empregadas a partir do entendimento da mulher de que

assim ela pode barrar ou coibir novas cenas de violência. Negociar consigo é uma estratégia

por possibilitar que a mulher não atue no impulso, mas analisando e refletindo sobre a relação

e as circunstâncias e tomando decisões a partir da reflexão sobre a situação de seu ciclo de

violência. A aposta no posicionamento também é interessante visto que assim a mulher se

justifica em sua trajetória por si mesma e a partir de suas decisões. Consideramos ser esta, na

verdade, uma estratégia muito importante e necessária durante o processo de enfrentamento à

violência, pois, como ocorreu no caso de Janaína (sessão de 22 de julho de 2009), a adoção de

uma estratégia de publicização pode ser esvaziada se a sobrevivente não se posiciona

Page 188: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

187

legitimando sua decisão frente às tentativas de deslegitimação de terceiros. A pergunta para

qualquer estratégia apresentada é: ela diminuiu de alguma forma o sofrimento e a violência na

relação? Este é um medidor passível e coerente com a tarefa do grupo. Como resume uma

participante em sessão não analisada nesta pesquisa: “Essa estratégia que eu inventei agora,

está me deixando melhor? Está ótimo. Se não está, eu vou mudar de estratégia”. Esse

exercício de verificação é facilitado e compartilhado no Grupo com outras sobreviventes à

violência de gênero legitimando todo o processo.

Outro aspecto importante a ser problematizado em relação à violência de gênero é o

posicionamento institucional/individual adotado: enfrentar, negociar ou manejar. Camila

conclui (na sessão de 12 de agosto de 2009) que de todos os relacionamentos violentos aos

quais sobreviveu o que ela conseguiu melhor se posicionar foi justamente naquele onde

conseguiu manejar a situação. Cabe analisar os posicionamentos adotados a partir destas

propostas. No caso da Rede, ela se propõe a enfrentar a violência, um posicionamento

pretensamente ativo de confrontas as situações de violência. Sobre os posicionamentos de

negociar e manejar é preciso considerar que quando uma mulher negocia com seus parceiros,

com as instituições da Rede e com a sociedade estratégias para o fim da violência, nestes

casos, elas são as interlocutoras posicionadas ora como vítimas ora como sujeitos

responsáveis pelo fim da violência, mas sempre frente a outros interlocutores(as) que detêm,

na maioria dos casos, o poder (escamoteado ou legitimado) de definição sobre as decisões das

sobreviventes. Porém para que se ocorra uma negociação com legitimidade democrática parte-

se do pressuposto de igualdade de direitos e deveres entre os interlocutores(as). Mas segundo

Butler (2003)

a própria noção de “diálogo” é culturalmente específica e historicamente delimitada,

e mesmo que uma das partes esteja certa de que a conversação está ocorrendo, a

outra pode estar certa de que não. Em primeiro lugar, devemos questionar as

relações de poder que condicionam e limitam as possibilidades dialógicas

(BUTLER, 2003, p.35).

Consideramos que este questionamento deve ser guia para análise de qualquer proposta de

enfrentamento à violência de gênero visto ser esta violência sustentada justamente na

desigualdade de gênero/sexo. O que ocorre nestas condições, caso não se atente para esta

desigualdade fundante, é uma negociação entre interlocutores(as) legitimados(as) em posições

diferenciadas de poder a partir das normas mantenedoras da matriz heteronormativa. Desta

forma, apesar da ocorrência de um „diálogo‟, há uma diferença normativa de antemão que

Page 189: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

188

influencia/define o “poder de barganha” e os ganhos/mudanças que se pode atingir. A

proposta de „manejar‟ uma relação violenta também aposta em uma manipulação deste poder

legitimador onde a mulher, não podendo alterar definitivamente os acontecimentos,

administra-os da melhor forma possível, segundo o que lhe é possibilitado/permitido. Assim,

manejar uma relação de violência seria como tentar sobreviver enquanto se administram as

variáveis internas da situação. A pergunta é: através do manejo e da negociação as mulheres

sobreviventes conseguem sair do ciclo de violência? Estar em uma relação de manejo e de

negociação possibilita alternativas para a violência? É possível uma negociação e um manejo

que legitimem a mulher em sua posição de enfrentamento à violência? O que se observa é que

quando uma mulher decide encerrar uma relação violenta inicia-se um processo de

negociação onde as perdas e os ganhos gravitam, geralmente, entre o afetivo e o financeiro. A

hipótese de que se percam em ambos os aspectos (com o fim da relação afetiva e com a não

garantia dos direitos civis) bloqueia/retarda a decisão de muitas mulheres de sair de uma

relação violenta, como é apresentado por todas as participantes desta pesquisa em maior ou

menor grau. Tal fato indica, assim, que se deve problematizar a partir de qual proposta estão

sendo guiadas a elaboração e a aplicação das estratégias institucional/individual para não se

incorrer no risco de apenas manejar ou negociar a violência de gênero.

Podemos concluir que o processo de negociação das estratégias no Grupo reafirma o sentido

da violência como cultural e social e seu enfrentamento balizado principalmente por

estratégias de publicização. Mesmo nos casos onde se afirma a importância do processo

terapêutico para as mulheres e seus companheiros remete-se a responsabilidade por estes

atendimentos às políticas públicas através de suas instituições. Cabe perguntar se a

reivindicação de Camila (repetida exaustivamente) de que a Lei Maria da Penha seja

cumprida, aliada à possibilidade de atendimento psicológico para as mulheres sobreviventes à

violência de gênero seria suficiente para o enfrentamento à violência. E ainda, se estes

mecanismos já estão legitimados na Rede de Enfrentamento, por que ela ainda emperra?

Estariam as instituições e a sociedade se posicionando de forma a enfrentar a violência ou de

forma a negociar para que ela permaneça com outra roupagem? É possível problematizar o

enfrentamento à violência de gênero sem questionar as normas que o sustentam?

Page 190: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

189

5.4 TRAJETÓRIAS DE SOBREVIVENTES PELA REDE DE ENFRENTAMENTO À

VIOLÊNCIA DE CONTAGEM/MG

“A senhora tem certeza? Essa pergunta não deveria existir” (Camila).

Nesta pesquisa, enfoco o processo de enfrentamento à violência de gênero a partir de um

processo de negociação entre as sobreviventes a este tipo violência e as instituições da Rede

de Enfrentamento e outros terceiros posicionados entre elas e seus (ex)companheiros

violentos. A escolha de apresentar este processo de garantia de direitos como parte de uma

negociação visa dar visibilidade às dificuldades institucionais e pessoais das sobreviventes na

efetivação e legitimação de seus direitos, tanto na tramitação de processos civis como na

aplicação da Lei Maria da Penha. Junto a isto se pode problematizar o lugar no imaginário

social das instituições que fazem parte da Rede de Enfrentamento à Violência em

contraposição à missão institucional das mesmas focalizando a Polícia Militar (190) / Policia

Civil (DECCM) e o Centro de Referência (Espaço Bem-Me-Quero), portas de entrada

comuns da Rede.

Neste contexto, é interessante analisar a estratégia de publicização indicada às participantes

do Grupo (Camila, Cíntia, Elis, Janaína, Kenia, Fernanda) pelas instituições da Rede de

Enfrentamento de intervenção da Polícia Militar (PM) nos episódios agudos de violência,

geralmente através de uma ligação para o 190. Sustentamos que a recorrência da adoção

desta estratégia se deve à missão destinada à PM na manutenção da segurança pública.

Assim, a partir da implementação da proposta de atendimento em Rede, a PM foi

incorporada como uma das portas de entrada tanto pela sua visibilidade pública como por sua

missão institucional. Desta forma, a análise da efetividade desta estratégia de publicização é

muito importante, por serem, geralmente, os agentes da PM os primeiros a entrar em contato

com a situação de violência com seus encaminhamentos e posicionamentos, assumindo, por

isso, importante papel na (des) legitimação do processo de enfrentamento iniciado pela

sobrevivente.

Pelos relatos (Janaína, Fernanda e Camila - sessão dia 22 de julho de 2009 e Elis - sessão de

19 de agosto de 2009) observa-se que, após a dificuldade inicial de se decidir por adotar a

estratégia de publicização de acionar a Polícia Militar (PM), a trajetória da sobrevivente à

Page 191: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

190

violência de gênero desenvolve-se numa sequência de momentos decisivos para a

(des)legitimação ciclo de enfrentamento à violência, quais sejam:

a espera com a dúvida de que o chamado será atendido:

Neste momento, é recorrente o relato sobre chamadas telefônicas deslegitimadas, por

exemplo, quando os(as) atendentes informam que não é possível o atendimento por falta de

agentes ou de viaturas ou por não considerarem este tipo de violência da competência da PM.

Em outras situações, após acionada, demora-se muitas horas para que uma viatura compareça

ao local do crime, o que possibilita que o homem possa fugir e se desqualifique o flagrante.

Na pior das hipóteses, os agentes policiais não comparecem, como relatado por Elis e Janaína

nas sessões de 22 de julho de 2009 e 19 de agosto de 2009.

a chegada dos policiais no local da ocorrência da violência e a apresentação da queixa

pelo indivíduo que acionou a Polícia Militar:

Neste momento, o processo de deslegitimação pode ocorrer através: da afirmativa de que o

ocorrido não é da alçada policial, da negação de atenção e escuta à ofendida, da tentativa de

justificar o ocorrido a partir de sentidos diferentes para a violência e com a proposição de um

enfrentamento não criminal. O caso de Janaína (sessão de 22 de julho de 2009) é exemplar

para se demonstrar como este momento pode se guiar por sentidos/posicionamentos que

divergem/dificultam o processo de enfrentamento à violência.

a decisão (da mulher /dos Policiais Militares) de levar ao conhecimento da Delegacia

o fato e de se registrar um Boletim de Ocorrência (BO):

Aqui é mais nítida a negociação de direitos como um processo de deslegitimação do

enfrentamento à violência, pois, ao se negar, omitir ou desqualificar o ocorrido como

justificando a elaboração de BO deslegitima-se e desqualifica-se a violência ocorrida como

um ato a ser apresentado à instituição policial para investigação. O que acontece, muitas

vezes, é a substituição deste registro por orientações ou sugestões que nem sempre se guiam

pela missão institucional da Polícia Militar. Outro fato muito comum é o registro de BO sem a

explicação para a sobrevivente e seu companheiro do que ele representa, suas consequências e

os passos posteriores para que se dê início a um processo investigativo.

Page 192: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

191

a decisão sobre a realização da representação do crime de violência doméstica e

familiar contra a mulher, segundo as indicações da Lei Maria da Penha:

Nos casos em que as sobreviventes são encaminhadas ou conduzidas para as DECCM

responsáveis pelo prosseguimento do processo de investigação do ocorrido, o processo de

deslegitimação pode ocorrer através: da omissão por parte dos agentes policias das

informações sobre a Lei Maria da Penha, a negativa do registro da representação para a

instauração do processo criminal e/ou solicitação das Medidas Protetivas e/ou do

oferecimento de alternativas que se guiem por sentidos da violência e de seu enfrentamento

diferentes dos determinados pela Lei e pela missão institucional da Polícia Civil. Como nos

exemplos relatados e criticados na sessão do dia 12 de agosto de 2009 por Camila e por

Janaína.

Em cada um destes momentos percebe-se como o processo é permeado pela tomada de

decisões que se baseiam: na legislação, na função dos policiais e nas especificidades do

ocorrido e nos posicionamentos dos policiais, da mulher e do companheiro atravessados pelo

sentido que a violência e seu enfrentamento assumem para cada um destes participantes do

episódio de publicização da violência. Desta forma, se por um lado têm-se que se seguir os

parâmetros legais para a situação, nota-se como ocorre paralelamente um pré-julgamento da

queixa-crime segundo estes sentidos /posicionamentos diferentes. As consequências deste

julgamento paralelo para o enfrentamento à violência podem ser observadas a partir do relato

de Janaína (sessão dia 22 de julho de 2009) onde a ação da Polícia Militar foi focalizada na

punição do desacato de autoridade de seu marido e pelo tratamento recebido durante todo o

processo a levando à decisão de nunca mais acionar a Polícia. Este impacto negativo também

ficou para Fernanda, pois no seu caso, a atenção foi dada ao relato de seu ex-marido e não

dela que foi quem acionou a Polícia. Assim, Fernanda, Camila e Janaína reclamam porque

nestas ações policiais não foram questionadas as ações violentas (criminosas) de seus

companheiros e sim as delas. Como Camila disse, o que elas desejavam era simplesmente que

“fosse feita a Lei”. (sessão de 22 de julho de 2009).

Vale ressaltar que a estrutura policial no Brasil é organizada a partir de duas divisões: a

ostensiva (Polícia Militar) e a investigativa (Polícia Civil), informação que não é de

conhecimento da população. Assim, aos agentes da Polícia Militar cabe apurar todas as

Page 193: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

192

ocorrências feitas e à Polícia Civil, nos casos analisados, representada pela Delegacia

Especializada em Crimes contra a Mulher, cabe, após o encaminhamento da Polícia Militar, a

condução do processo investigativo. Esta parte da trajetória na Rede é um nó onde se perdem

muitos casos, pois, a mulher, por desconhecer o funcionamento da Polícia, acredita que só por

ter acionado a Polícia Militar já se configurou uma ação criminal-investigativo-punitiva. O

que ocorre é que devido às dificuldades administrativas (como número de efetivos) trabalha-

se a partir de uma escala de prioridades e emergências (como explicitado por agentes destas

instituições às próprias mulheres, conforme denunciado por Camila na sessão do dia 19 de

agosto de 2009). A abertura de inquéritos policiais ocorre de forma desproporcional ao

registro de Boletins de Ocorrência, entre outros motivos, devido às falhas no processo

policial, por ausência da explicação da necessidade da representação para a ofendida e

também por medo desta em tomar a atitude de criminalizar o ato de seu companheiro. A partir

dos relatos pode-se problematizar qual a efetividade para o enfrentamento à violência de

gênero da estratégia de publicização isolada de se acionar o “190”, visto que, sem a

efetivação de uma representação do crime, impossibilita-se a instauração de um processo

investigativo/ punitivo. Este processo deslegitimador desta estratégia de publicização pode

levar ao abortamento do Ciclo de Enfrentamento à Violência pelas vias jurídico-policiais

deslegitimando-a. Podendo ocorrer também o questionamento da aplicabilidade da Lei Maria

da Penha e da eficiência dos órgãos policias (civis e militares) na atuação sobre este tipo de

crime. 24

Nos casos analisados, a ação da Polícia Militar serviu como um paliativo, um genérico de

uma ação legal. Observa-se que os efeitos sobre o ciclo da violência, quando ocorrem, são

colaterais, como: vergonha dos vizinhos, medo de que se chame de novo a Polícia,

desconforto de ser retirado de casa e de ter que levar o famoso chá de cadeira. Desta forma, a

violência de gênero no âmbito doméstico não é enfrentada/punida como um crime, apesar de

ser assim objetivada na Lei Maria da Penha. Este enquadre descaracteriza o crime,

deslegitima as ações da mulher, desqualifica a ação policial e legitima a ação do parceiro que

continua certo de sua não punição apesar das tentativas de enfrentamento à violência por parte

da sobrevivente. Sustento que este posicionamento do aparato policial é um complicador para

24Artigo 12º: “Em todos os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, feito o registro da

ocorrência, deverá a autoridade policial adotar, de imediato, os seguintes procedimentos, sem prejuízo daqueles

previstos no Código de Processo Penal: I- ouvir a ofendida, lavrar a ocorrência e tomar a representação a termo,

se apresentada; II - colher todas as provas que servirem para o esclarecimento do fato e de suas circunstâncias;

(...) V- ouvir o agressor e as testemunhas” (BRASIL, Lei 11340).

Page 194: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

193

a efetividade do enfrentamento à violência de gênero, especialmente no ambiente doméstico.

A sobrevivente, por sua vez, já definida como “pequena” frente a este Muro sente-se com

“medo”, “envergonhada”, “revoltada”, “tratada como um lixo”, “um cachorro” (sessão de 22

de julho de 2010 e em outras sessões não analisadas nesta pesquisa).

Em contraposição, percebe-se nos relatos de Janaína, Camila e Fernanda (sessão 22 de julho

de 2010) que o Espaço Bem-Me-Quero é posicionado como uma instituição diferenciada na

Rede, tanto em relação às suas funções como ao atendimento prestado. Desta forma, as

participantes do Grupo reconhecem a função de orientação e encaminhamento do Centro de

Referência, que, segundo elas, é prestado adequadamente transmitindo confiança e

acolhimento. Mesmo quando ocorreu o questionamento apresentado por Camila sobre o

posicionamento do Espaço em seu caso(sessão de 22 de julho de 2010) o Grupo utilizou-se

deste fato para apresentar sugestões de novos posicionamentos para o Espaço desempenhar

sua missão institucional. Para além, também se articulou esta discussão a uma linha de

questionamentos sobre o atendimento da PM. As discussões se dirigiram à inadequação dos

atendimentos prestados à luz das discussões grupais sobre as trajetórias de sobreviventes das

participantes e sobre as missões institucionais segundo a Lei Maria da Penha. Estes fatos

indicam a pertinência do assunto, a cooperação entre as participantes e a criatividade ao

debater este tema tão importante para a compreensão do ciclo de enfrentamento à violência

na Rede de Enfrentamento à Violência de Contagem/MG. Sustentamos que a ocorrência

desta discussão a partir de colocações de uma participante do Grupo é um indicativo também

da apropriação destas sobreviventes de seus direitos como usuárias destes serviços e da

legislação que os sustentam. Desta forma, o sentido de desrespeito e de descumprimento das

ações institucionais (especialmente as policiais) foi negociado pelas participantes no grupo

legitimando este local como um local privilegiado para a (re)construção do sentido do

enfrentamento à violência pelas sobreviventes à violência de gênero.

Sobre o protesto de Camila sobre o posicionamento do Espaço Bem-Me-Quero, percebe-se

que ela não o realizou por causa do atendimento interno institucional, mas sim pelo

posicionamento em relação à violência policial ocorrida. Desta forma, pode-se compreender

seu protesto localizando-o como uma incitação a um embate entre as duas instituições da

Rede de Enfrentamento. Ela reafirma o Espaço como local de legitimização e apoio às

sobreviventes, inclusive frente às ações policiais. Camila, ao mesmo tempo, diferenciou e

desafiou o lugar e o poder do Espaço Bem-Me-Quero na Rede e em relação à Polícia. Por

Page 195: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

194

outro lado, percebe-se que ela se sentiu des/legitimada pelo Espaço, demonstrando como a

análise das trajetórias destas sobreviventes é complexa exigindo o conhecimento da Rede e a

atenção às discrepâncias entre as missões e as práticas institucionais.

Assim, a partir do protesto de Camila e das sugestões das demais participantes sobre o

assunto (sessão de 22 de julho de 2009), pode-se discutir o lugar que o Espaço Bem-Me-

Quero ocupa no imaginário destas mulheres em contraposição à sua missão institucional na

Rede de Enfrentamento. Podemos entender que Camila esperava que o Espaço Bem-Me-

Quero se posicionasse a seu favor contra a Polícia (que também faz parte da Rede de

Enfrentamento) e seu companheiro. Esta imagem do Espaço Bem-Me-Quero como um local

diferenciado e de apoio incondicional e poder é recorrente nas colocações das mulheres para

diferenciar o Espaço do serviço de outras instituições da Rede. Assim, ao não ser

correspondida pelo Centro a partir deste papel imaginário, ela descreve o tratamento recebido

como traumático. Este aspecto imaginário agregado às instituições da Rede é fácil de ser

compreendido, principalmente se tratando de uma clientela que tem sofrido com

descomposturas e descréditos pelas instituições por onde transitam, especialmente, a policial.

A própria necessidade de criação de Centros de Referência para acolhimento e

encaminhamento das sobreviventes à de violência diz da dificuldade de interligação entre as

instituições de enfrentamento à violência e do desconhecimento por parte da população

destes serviços. Inquestionavelmente, a existência deste serviço em uma Rede é um ganho

para as sobreviventes, mas também aponta para a necessidade de os atendimentos das outras

instituições da Rede se guiarem sempre pelo acolhimento à sobrevivente à violência de

gênero realizando todo o atendimento pautado pelo respeito a seus direitos e escolhas.

Pode-se dizer assim que o diferenciador dos Centros de Referência esteja justamente em sua

proposta e posicionamento inicial de acolhida e encaminhamento tornando-o um local

estratégico entre as instituições da Rede. Na dinâmica do ciclo de enfrentamento à violência

os Centros estão no meio do caminho entre as três estratégias de publicização mais temidas

pelas mulheres: a denúncia de seus companheiros às instituições policiais, o pedido formal de

separação no Núcleo de Defesa da Mulher (NUDEM) e o encaminhamento para uma Casa

Abrigo nos casos de risco de morte. Dessa forma os Centros de Referência posicionam-se (e

são posicionados) na Rede como um local intermediário na trajetória das sobreviventes como

explicitado por Silveira (2006):

Page 196: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

195

não podemos afirmar que já exista um lugar simbólico social para este tipo de

serviço, ao contrário do que ocorre com as delegacias. (...) Entretanto as demandas

das mulheres que buscam os centros são bastante específicas. Elas se caracterizam

pela indefinição quanto ao melhor caminho para romper a relação violenta (...). Isto

sugere que estes equipamentos ofereçam uma possibilidade alternativa de resolução

do conflito violento. (...) Um importante diferencial é que o processo de

ambiguidade é acolhido e enfrentado, enquanto um plano de saída da dinâmica

violenta pode ser desenhado. A aposta é no desejo da mulher, seja ele qual for e no

tempo que for possível e necessário. A ênfase é “no processo” de superação da

relação violenta (SILVEIRA, 2006, p.64).

A acolhida dos momentos de ambiguidade e dúvida é um dos aspectos delicados na trajetória

das sobreviventes porque diz do direito a autodeterminação da mulher sobre sua vida e suas

decisões. Em todos os casos ela tem o direito à escolha, inclusive, de permanecer em uma

situação crônica de violência (mesmo após ter acionado uma instituição da Rede) ou de não

concordar em levar até o final os encaminhamentos recebidos. Nos casos em que a equipe

técnica de um Centro de Referência, por exemplo, detecta que a mulher se encontra em risco

iminente de morte a orientação é que se faça o encaminhamento para a Casa Abrigo e para o

registro de uma denúncia formal na Delegacia de Mulheres. Muitas sobreviventes não

concordam com estas alternativas e têm seu direito de discordar garantido. Nestes casos, para

resguardar a equipe e a instituição e também responsabilizar as sobreviventes por suas

decisões, a equipe solicita que elas assinem um termo de responsabilidade afirmando sua

escolha em não adotar as medidas propostas. A orientação é que as instituições construam

com as sobreviventes os encaminhamentos para os seus casos e que respeitem suas decisões

mesmo que estas sejam diferentes das apontadas pelas equipes técnicas. Sustento que uma

negociação que ocorre baseada no respeito às escolhas das sobreviventes permite que se

evitem episódios de violência de gênero institucional e a elaboração de estratégias a partir da

(re)afirmação de lugares de poder diferenciados entre as(os) interlocutores(as). Assim, a

possibilidade de eficácia de uma estratégia está diretamente vinculada à observância deste

jogo de poder.

A partir disto é possível analisar o protesto de Camila e sua dificuldade em aceitar que ao

Espaço Bem-Me-Quero cabe, apenas, acolher e encaminhar seu caso. O seu protesto é

compreendido a partir de sua necessidade de legitimação frente à violência policial ocorrida.

Fica a pergunta se caberia ao Centro de Referência outro posicionamento/ encaminhamento e

a qual instituição se encaminharia um caso como este. Acredito que estas perguntas devem

servir como guias nas discussões da Rede sobre sua organização e efetividade. Casos como

estes colocam em xeque as propostas de enfrentamento à violência por posicionarem como

Page 197: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

196

violentadoras/deslegitimadoras as instituições dedicadas ao enfrentamento à violência.

Quando uma mulher tem medo de ser violentada, inclusive, pelas instituições, há de se

repensar a missão e a proposta de organização das instituições da Rede. Desta forma, os

desafios e questionamentos das participantes do Grupo estendem-se a todas as instituições que

compõem a Rede. Na minha perspectiva, muito do que ocorre nestes episódios de

deslegitimação é devido ao desconhecimento da missão de cada serviço por parte das

mulheres e também por parte das instituições componentes da Rede. Frente às consequências

deste desconhecimento indica-se o investimento, por exemplo, em formas de divulgação deste

esquema de enfrentamento para toda a população e na adoção de atendimentos institucionais

pautados pela informação em todas as instituições às sobreviventes e aos seus companheiros

(sessão de 12 de agosto de 2009). A divulgação desta questão serviria ainda para levar ao

público a discussão do fenômeno da violência de gênero como um problema de segurança

pública. As denúncias apresentadas pelas participantes do Grupo devem servir como

indicativos de pontos de reflexão para as instituições da Rede e para toda a sociedade.

A partir do processo de negociação sobre suas trajetórias de sobreviventes pela Rede de

Enfrentamento à Violência de Contagem/MG as participantes também debatem sobre as

dificuldades durante o período de separação no que se refere à garantia de seus direitos civis

e de seus filhos e sobre a atuação do NUDEM e do Sistema Judiciário e apresentam como

contraponto de legitimação a dinâmica do Grupo. Como um exemplo temos o caso de Cíntia

que relatou sobre sua ansiedade/ medo e de seus familiares (sessão de 22 de julho de 2009)

após sua decisão de dar entrada nos processos de separação, divisão de bens, guarda e pensão

dos filhos pode ser interpretada. Esta situação pode ser interpretada como um misto do medo

da reação de seu ex-companheiro e do desconhecimento sobre o andamento dos processos na

Justiça. Ao mesmo tempo ela fica ansiosa pela perspectiva da aproximação da audiência e

percebe-se que ela não compreende o que significa este momento e não sabe o que é esperado

nesta audiência. Esta ansiedade é recorrente nas participantes do Grupo tanto para as que já

deram entrada aos processos como para as que não se decidiram ainda. Apesar de

compreenderem a importância e necessidade desta estratégia de publicização, elas temem as

consequências desta medida, ou seja, apesar de adotarem a intervenção jurídica, elas não se

sentem seguras de sua eficiência. Este aspecto contraditório serve para problematizar o

sentido do Sistema Judiciário na Rede de Enfrentamento à Violência. Sustentamos que esta

situação pode ocorrer entre outros motivos pelo longo período que transcorre entre a abertura

Page 198: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

197

de um processo civil/criminal e seu efetivo julgamento. A morosidade característica destes

processos não condiz com a celeridade dos ciclos de violência. Além disso, percebe-se pelos

relatos das participantes do Grupo, que, como no caso dos atendimentos pelos agentes

policiais, também não são oferecidas pelos agentes dos setores responsáveis pelo andamento

processual todas as informações necessárias sobre direitos( e possíveis dificuldades) durante o

andamento dos processos. Isto pode ser constatado, por exemplo, durante os relatos de Susana

(sessão dia 22 de julho de 2009), que estava preocupada com o não recebimento da carta

confirmando o agendamento de sua audiência, de Fernanda (sessão 22 de julho de 2009), que

esperava a presença de um oficial de justiça para acompanhá-la à sua casa para a retirada de

seus pertences e de Cíntia (sessão dia 26 de agosto de 2009), que não sabia que ocorria uma

Audiência de Conciliação antes da Audiência na presença do Juiz e que na Conciliação ela

não seria acompanhada pela Defensora responsável por seu caso. A partir disto, vale a pena

refletir sobre a continuidade dos ciclos de violência apesar da decisão da sobrevivente de sair

da relação violenta com a adoção de estratégias judiciais.

O desabafo de Cíntia (sessão de 26 de agosto de 2009) sobre o atendimento recebido durante

a Audiência de Conciliação de seus processos é exemplar para que se perceba o processo de

deslegitimação do ciclo de enfrentamento à violência. Ela afirma que se sentiu desamparada

por estar desacompanhada da defensora e desacreditada em suas colocações e decisões tanto

por seu ex-companheiro como pelas responsáveis pela conciliação. Percebe-se pelo seu relato

que ela teve que constantemente reafirmar a situação de violência em sua relação e defender

seus direitos e os de seus filhos. É interessante também observar que ela não foi informada

sobre como seria realizada esta audiência e seus objetivos, levando-a temer pela garantia de

seus interesses. Desta forma é compreensível o caráter ansiogênico e angustiante que este

momento da trajetória de sobrevivente pela Rede Enfrentamento assume. Novamente, ela se

encontra frente a frente com seu companheiro em uma situação onde tem que se legitimar,

defender, acusar e garantir seus direitos. Devido à dinâmica própria de uma conciliação, os

terceiros que se posicionam entre o casal não atuam na defesa de nenhum dos

interlocutores(as), o que reafirma o posicionamento duplo da mulher como vítima e ao mesmo

tempo responsável por sua defesa. Levando-se em consideração que o interlocutor(a) da

sobrevivente nestes casos é prioritariamente seu ex-companheiro violento, depreende-se como

este esquema a princípio proposto a partir da estratégia de publicização judicial visando à

saída do ciclo de violência, pode funcionar como mais um dos momentos do mesmo

Page 199: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

198

(tensão/violência). Novamente, vale questionar aqui as bases sobre as quais são

implementados os mecanismos institucionais para que não se adotem propostas que não têm

como objetivo enfrentar os ciclos de violência, mas manejá-los ou manipulá-los a despeito

dos interesses das sobreviventes à violência de gênero. Percebe-se como o processo de

deslegitimação no ciclo de enfrentamento à violência sustenta-se na manutenção de diálogos

ou negociações que escamoteiam “as relações de poder que condicionam e limitam essas

possibilidades dialógicas” (BUTLER, 2003, p.35). Vale a pena questionar a possibilidade e a

efetividade de uma negociação em um processo civil onde há a concomitância de situações de

violência de gênero no âmbito doméstico/familiar. Esta proposta pode, inclusive, deslegitimar

toda a trajetória da sobrevivente e a participação das instituições judiciais na Rede. Uma

Audiência de Conciliação regida por agentes não atentos para este jogo de poder pode resultar

em violência institucional, descrédito da instituição e da proposta, banalização da situação de

violência e, por fim, em perdas de direitos por parte das sobreviventes.

O caso de Cíntia também permite que se analise a inserção de outra instituição na Rede de

Enfrentamento à Violência de Contagem/MG: o Núcleo de Defesa dos Direitos das Mulheres

da Defensoria Pública (NUDEM). A criação deste mecanismo é mais um das inovações

apresentadas pela Lei Maria da Penha, bem como a possibilidade de criação de Juizados de

Violência Doméstica e Familiar (artigo 34, inciso III e artigo, 14). Percebe-se que estes

mecanismos do judiciário propostos como resposta às inúmeras denúncias de dificuldades

enfrentadas pelas sobreviventes à violência de gênero que adotam estratégias de publicização

jurídicas. Esta linha de raciocínio sustentou primeiramente a criação das DECCM, a

implantação da “Central de Atendimento à Mulher-180”, dos Centros de Referência, da

aprovação da Lei Maria da Penha e da própria necessidade de delimitação de medidas

protetivas nesta lei. É interessante analisar a criação de novos mecanismos legislativos e

institucionais para o enfrentamento à violência como um avanço no interesse de se publicizar

e coibir as ocorrências violentas, mas também como um alerta para a atuação dos mecanismos

já existentes. A formação de uma Rede eficaz não está vinculada somente à quantidade de

serviços oferecidos e à extensão da Rede, mas à execução adequada das atividades de acordo

com as missões institucionais. Acredito que a necessidade de criação de instituições

específicas para esta problemática dentro dos Poderes Judiciários, Legislativos e Executivos

aponta por um lado para a relevância do fenômeno, mas também para a dificuldade destes

Poderes em simplesmente inserir em suas agendas a discussão a partir do já instituído. Assim,

Page 200: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

199

não se nega a importância destes novos rearranjos e mecanismos, mas se questiona sobre

quais bases eles estão sendo planejados e se objetivam, em última instância, o questionamento

das normas sociais que sustentam a violência. Partindo-se da premissa de que os próprios

“manipuladores técnicos” (CORRÊA, 1983) do direito são produtores e reprodutores de certa

concepção de justiça reforçadora de valores culturais vinculados à matriz heteronormativa,

considera-se importante denunciar que os vestígios da Cartilha aparecem insistentemente em

vários episódios de defesa/reivindicação de direitos. Nesse sentido, a análise destas trajetórias

pode oferecer alguns indicativos da dinâmica de reiteração das normas heteronormativas que

sustentam a permanência da violência de gênero.

Frente à constatação de descrédito relatada por Cíntia, Camila aponta que o fato dela estar

sendo acompanhada pelo NUDEM (sessão de 26 de agosto de 2009) já era uma prova de sua

situação de violência. Apesar da colocação de Camila ser coerente, Cíntia relata que isto não

foi dito durante a Audiência e que ela foi questionada sobre sua situação, apesar de seu

processo estar vinculado ao NUDEM. O que se percebe é que coube à Cíntia legitimar suas

ações quando resolveu quebrar o ciclo de violência. O relato da ocorrência da violência e a

decisão de enfrentá-la não são suficientes para as instituições legitimarem o posicionamento

da sobrevivente. Esta situação pode trazer como consequências para o processo de

enfrentamento à violência indícios de descrédito da Lei, das instituições e da própria

caracterização da violência como crime.

Frente ao questionamento insistente sobre sua situação de violência e às negativas de seu ex-

companheiro sobre o fato Cíntia apresenta como prova a sua participação no Grupo do Espaço

Bem-Me-Quero (sessão de 26 de agosto de 2009). A sua linha de raciocínio se guia pela

busca de legitimação de sua fala através de um mecanismo apontado por ela como eficiente.

Aparentemente esta sua colocação também não surtiu o efeito desejado, restando a

confirmação de seu desamparo. O fato de Cíntia citar a sua participação no Grupo em um

momento de deslegitimação é indicativo de sua pertença e também confirmação da

legitimidade desta proposta para ela. Da mesma forma, considero o fato de Cíntia ter se

reportado a Graça e Camila, quando se sentiu fragilizada uma estratégia de publicização

possibilitada pela pertença ao Grupo, pela confiança e pelo laço de amizade, entre estas

“veteranas”.

Page 201: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

200

As colocações de Cíntia sobre as mudanças vivenciadas com a participação no Grupo são

contundentes e ela quer que este movimento também seja legitimado. Assim, a análise de suas

declarações sobre a eficiência do Grupo aponta tanto para a legitimação de sua trajetória

individual como para o Grupo como mecanismo diferenciado. Estas colocações de Cíntia

coadunam com as de Camila sobre o seu desejo de que o Espaço Bem-Me-Quero fizesse a

diferença frente à violência e à deslegitimação dos agentes policiais em seu caso (sessão de 22

de julho de 2009). Ela também, frente ao episódio de deslegitimação, se reportou a sua

vinculação ao Espaço Bem-Me-Quero, buscando ter sua trajetória legitimada. Como apontado

por ela, compreendo que estas sobreviventes não reivindicam que o Espaço ou o Grupo

confirmem suas falas, mais do que isso, esperam que o processo de legitimação iniciado

nestes mecanismos seja reconhecido, valorizado e confirmado pelas outras instituições da

Rede. Percebe-se que o Grupo é visto como um local diferenciado, como um mecanismo que,

através de sua dinâmica, possibilita às sobreviventes a publicização e desindividuação da

violência de gênero, bem como o questionamento dos mecanismos institucionais de seu

enfrentamento. Vale a pena perguntar em qual outra instância poderiam as sobreviventes

trazer à tona as dificuldades enfrentadas em suas trajetórias de sobreviventes à violência de

gênero. Onde elas poderiam publicizar suas reclamações sobre o atendimento oferecido pela

Polícia Militar/Civil, o Espaço Bem-Me-Quero e outras instituições como as do Poder

Judiciário? Vale questionar o posicionamento destas instituições como “tijolos” ou

“ferramentas” frente ao Muro. Também é interessante pensar a qual nós Cíntia se refere

quando apela para que algo seja feito? Nós quem? As participantes do Grupo, a Rede, o Poder

Público, a psicóloga, a Psicologia, a Justiça? Quem deveria ser o responsável por publicizar

um caso como o de Camila? O Centro de Referência? A mulher violentada? O grupo? A

psicóloga? A Polícia Civil? Seria inadequado o encaminhamento para um serviço Disque

0800? E se sim, por quê? A denúncia anônima é a única forma segura de publicizar o

ocorrido? Seria infundado o medo de Camila de denunciar? A existência de tantas perguntas

aponta para a necessidade de se continuar refletindo sobre a organização da Rede de

Enfrentamento e sobre o sentido que a violência assume para os agentes das instituições de

enfrentamento à violência. Sustento que se não nos debruçarmos sobre esta questão todo

aparato de enfrentamento poderá ser apenas mais um paliativo frente a este fenômeno.

Page 202: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

201

5.5 CONSIDERAÇÕES SOBRE A APLICAÇÃO DA TEORIA E TÉCNICA DO GRUPO

OPERATIVO COM SOBREVIVENTES À VIOLÊNCIA DE GÊNERO

O Grupo que permitiu o uso das gravações utilizadas nesse trabalho tem como proposta

utilizar-se da teoria e técnica do Grupo Operativo no processo de enfrentamento à violência

de gênero. Apesar deste Grupo não seguir alguns dos aspectos apresentados como

característicos da abordagem pichoniana ( o número de participantes por sessão, o fato de ser

aberto e de não ter definido o número de sessões) isso não descaracteriza a sua definição a

partir desta construção teórica e nem impossibilita a obtenção de resultados e da dinâmica

grupal.

O Grupo em questão define-se como aberto, contínuo e de participação voluntária, o que

facilita a “escrita” de uma história em movimento que, apesar de curta, consolida-se a cada

semestre. Este aspecto é importante para a coesão grupal, entre outros aspectos, por permitir

que o Grupo (re)conheça-se e (re)consolide-se pela visualização e (re)confirmação de sua

proposta no fio da história, potencializando a afiliação e a pertença das participantes. Um

grupo com a percepção de um passado, um presente e um futuro, está vivo, pulsando em um

movimento criativo, aberto, dialético, afetivo, com memórias e saudades. Desta forma,

acredito que a abertura deste Grupo constitui sua força e que este tipo de proposta adequa-se

às peculiaridades de um grupo para mulheres sobreviventes à violência de gênero devido às

inúmeras dificuldades e necessidades apresentadas por esta clientela, destacando-se: a

dificuldade financeira, a necessidade de sigilo sobre a participação nas reuniões e a própria

dificuldade da sobrevivente em lidar com esta nova forma de enfrentamento ao ciclo da

violência. Muitas participantes relatam que não comparecem ao Grupo semanalmente ou que

se ausentaram por um tempo porque não têm dinheiro para pagar o transporte. Outras relatam

as peripécias domésticas para esconder de seus companheiros, filhos e outros familiares a

participação no Grupo. Umas chegam atrasadas, outras têm que sair mais cedo, outras trazem

os filhos (que ficam na brinquedoteca da instituição), outras faltam porque não conseguiram

alguém para cuidar dos filhos. Desta forma, o enquadre grupal baseia-se na participação

espontânea, não determinada por números de sessões ou regulada por faltas. As faltas são

sentidas, mas não interpretadas como indicativo de ausência de afiliação ou pertença.

Justamente por causa das dificuldades relatadas acima, cada nova participação é valorizada.

O convite feito é para um grupo que se encontra toda semana em determinado horário. Neste

Page 203: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

202

convite é frisada a constância das sessões do grupo e não a regularidade ou obrigatoriedade

da presença ou permanência. A constância e a regularidade do Grupo possibilitam a algumas

participantes se ausentarem por meses e depois comparecerem sem nenhum constrangimento

e, o mais interessante, desta forma pertencer ao grupo e terem suas histórias constantemente

citadas pelas outras. Entendo isto como uma apropriação da história da “participante ausente”

pelo Grupo. A certeza da acolhida, do sigilo e da compreensão das dificuldades permite a

continuidade de um grupo operativo aberto. A não fixação de um número de sessões ou de

temas pré-definidos para cada encontro também são estratégias da coordenação que aposta na

participação ativa e responsável de cada mulher, bem como na proposta de desenvolvimento

da tarefa grupal a partir da criatividade e realidade das participantes.

Por sua vez, os critérios que vinculam este Grupo à proposta pichoniana seriam

principalmente: o fato dele se guiar nitidamente por uma tarefa, o entendimento da formação e

do papel da coordenação, o interesse pela mudança no social como objetivo vinculado a todo

processo, o estudo e aprendizagem da psicologia social baseado em uma práxis e o

entendimento do Grupo como local terapêutico e de aprendizagem. Este conjunto de

propostas-guia baseadas na teoria pichoniana sobre o processo grupal e sobre a psicologia

social sustenta este trabalho e esta pesquisa. Desta forma, este Grupo se apresenta em

processo, em interação, vivo, pulsante, revoltado, solidário, feminista, parodiando Baremblitt,

“de vanguarda”, em suma, coerente com as idéias pichonianas.

Pelos resultados apresentados, pôde-se concluir que a proposta delimitada mostrou-se

coerente, apresentando resultados positivos como:

* A excelência na realização da tarefa de elaboração de estratégias de enfrentamento à

violência, o que é um indicativo da criatividade e da cooperação adotadas pelo Grupo durante

a execução da tarefa;

* A avaliação positiva do vetor cooperação delimitada através da dinamicidade na forma e no

conteúdo de apresentação dos assuntos e exemplos pelas participantes e no interjogo de

assunção de papéis entre elas;

Page 204: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

203

* A pertinência e criatividade na produção de temas para discussão como: o atendimento das

instituições da Rede de Enfrentamento, os sentidos da violência, o questionamento das

normas sociais que sustentam e justificam a violência, os impactos e consequências da

violência sobre as sobreviventes e seus familiares, especialmente, os filhos e sua abertura para

a elaboração de projeto grupal;

* A permanência de uma tele positiva durante todas as sessões analisadas, indiferente de

momentos de divergência de opiniões;

* Um coeficiente positivo de pertença e afiliação como demonstrado em inúmeras

declarações sobre a importância da participação no Grupo em suas trajetórias, o interesse em

continuar vinculada ao Grupo e na auto nomeação de veteranas por algumas participantes.

*Vários indicativos de aprendizagem percebidos através dos relatos de mudanças/adaptações

ativas possibilitadas por uma comunicação entre as participantes guiada por processos de

negociação de sentidos durante as sessões analisadas em uma espiral dialética, produzindo

um ECRO grupal que almeja a elaboração de um projeto grupal.

Na dinâmica de um Grupo Operativo, a delimitação da tarefa e o convite para a participação

são importantes para que o sujeito convidado sinta-se motivado para conhecer e filiar-se ao

grupo. No Grupo analisado nesta pesquisa esta apresentação é, geralmente, realizada pelas

próprias participantes quando, por exemplo, tem-se uma participante comparecendo ao

Grupo pela primeira vez, cabendo à coordenadora apenas complementar as informações. Para

além, é possível à coordenadora, analisar pela forma de apresentação do Grupo, sua tarefa e o

motivo de afiliação ao Grupo o entendimento das participantes sobre o contrato grupal, o

sentido da violência e o funcionamento do Grupo. No trecho abaixo, percebe-se este

movimento, frente à dificuldade de Sâmia de se apresentar/filiar-se ao Grupo em sua

primeira participação. Neste caso a coordenadora solicitou que Cíntia contasse como foi sua

entrada no Grupo para facilitar a comunicação entre Samia e o Grupo. Neste trecho, é

possível perceber o processo de pertença e filiação de Cíntia ao Grupo, bem como um

indicativo do vetor cooperação (sessão de 22 de julho de 2009).

Cíntia: Tem um ano que eu to aqui em agosto, né criatura, olha só para você ver.

Custei para ficar.

Simone: Custou para ficar por quê?

Page 205: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

204

Cíntia: Na primeira vez que eu vim eu falei: eu não volto mais.

Simone: Conta para ela como foi a sua primeira vez.

Cíntia: Eu vim aqui olhei para cara dela (Camila), olhei para cara da Graça, da

Simone e falei nossa. Minha irmã tava lá fora. Ó eu tava de um jeito que minha irmã

tinha que me trazer, eu estava separada tinha um mês, né Simone, do meu marido,

casada há 14 anos, ai eu peguei e falei que não volto mais naquilo ali. Senti tão mal

aqui dentro e agora eu empolgo feito doida. Eu falei com ela que eu fiquei assim na

quarta feira: Ah meu Deus as meninas estão reunindo e eu não posso, fiquei

desesperada, e eu estava doida para vir.

A participação de algumas mulheres há mais tempo e de forma mais frequente no Grupo

(como no caso de Cíntia) permite que elas sejam testemunhas da história do Grupo e de seu

funcionamento. Este aspecto é valorizado pela coordenadora que se utiliza da experiência e

posicionamentos destas participantes para auxiliar às outras em seu processo de afiliação e

pertença ao Grupo em um jogo guiado pela tarefa grupal. Este jogo é apresentado por Pichon-

Rivière (1994) como estruturante de qualquer grupo e delimitado pela assunção e

adjudicação de papéis entre os integrantes. Espera-se que neste jogo, bem como na

comunicação do grupo, evite-se a adoção de estereotipias e dicotomias guiando-se o processo

pela complementaridade, funcionalidade e operatividade. No Grupo analisado pôde-se

perceber que este jogo de poder foi jogado a favor da execução da tarefa, mesmo nos

momentos onde: uma participante pediu a palavra ou interrompeu divergindo ou concordando

com as colocações ou quando a coordenadora solicitou a opinião de determinada participante

ou discordou abertamente de uma colocação. Todo o movimento guiou-se pelo objetivo de

executar a tarefa e dinamização da comunicação. Sustenta-se, assim, que este jogo de poder,

em vez de ser negado ou escamoteado, deve ser jogado a favor da tarefa e do Grupo e não de

uma pessoa. Considero que esse jogo pode ser útil para a dinâmica grupal quando auxilia na

execução da tarefa e não recomendado se produzir colocações de autoridade ou ruídos na

comunicação. Ao coordenador cabe a “tarefa essencial de dinamizar, resolvendo discussões

frontais que ocasionam o fechamento do sistema” (PICHON-RIVIÈRE, 1994, p.92) ou ruídos

na comunicação entre as participantes.

No caso do papel de porta-voz aponta-se para a capacidade de denunciar no aqui-agora-

comigo do acontecer grupal as fantasias, medos e ansiedades presentes no Grupo. Este papel

foi assumido, várias vezes, por Camila e também por Cíntia, Fernanda, Elis, Susana, Fernanda

e Janaína durante as sessões analisadas para esta pesquisa, permitindo-se que se perceba a

rotatividade esperada para este papel. O fato de Graça ter sido citada, mesmo ausente (sessões

de 22 de julho de 2009 e 26 de agosto de 2009), é indicativo de sua pertença e cooperação

Page 206: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

205

com o fazer grupal, permitindo que ela assumisse o papel de líder grupal através de seu

posicionamento ativo e solidário. Este aspecto de complementaridade na assunção e

adjudicação dos papéis também foi percebido na dinâmica da comunicação do Grupo, onde a

cada relato somava-se um exemplo que ia ao encontro do assunto discutido sempre guiado

pela tarefa. Este aspecto aponta para a pertinência e cooperação grupal favorecendo a

execução da tarefa e a elaboração do ECRO grupal. Da mesma forma, as interpretações da

coordenadora são realizadas em dois tempos, primeiramente “começa-se interpretando o

porta-voz (...), no ato seguinte, assinala-se que o explicitado é também um problema grupal,

produto da interação dos membros do grupo entre si e com o coordenador” (PICHON-

RIVIÈRE, 1994, p.105). Este aspecto da técnica do Grupo Operativo a torna muito adequada

para a aplicação com sobreviventes à violência de gênero, onde, pela história individual de

cada participante, a assunção do papel de porta-voz é facilitada. Ao mesmo tempo, a partir do

entendimento compartilhado da base social da violência e da constatação das dificuldades

compartilhadas de encerrar seus ciclos de violência, a técnica pode instigar à discussão e à

procura pela resolução das dificuldades criadas e manifestas no campo grupal. A partir dos

relatos individuais e das interpretações buscou-se extrair os aspectos que auxiliem a

desindividualizar os casos, gerando um processo de espelhamento e questionamento grupal

sobre a experiência das sobreviventes na sociedade e em suas trajetórias de enfrentamento à

violência. Considero que a apropriação deste aspecto ocorre a cada sessão do Grupo e a cada

participação individual.

Para além, neste Grupo o processo de enfrentamento se guiou pelo respeito ao direito da

sobrevivente de decidir sobre como agir, marcando esta experiência como legitimadora das

trajetórias individuais. A negociação para elaboração de estratégias no Grupo tem como

espelho as opiniões das outras participantes e da coordenação, mas se guia primeiramente

pelo respeito ao processo de cada participante. O respeito aos papéis desempenhados e ao

processo de cada participante é o guia que cria uma tele favorável à mudança. Aprender a

negociar, a pensar, a construir estratégias coletivamente, a ter opiniões e confrontá-las, e a

respeitar as decisões do outro são tarefas de quem se encontra em um Grupo que se pretende

Operativo. Acredito assim que a aprendizagem possibilitada pelo tipo de comunicação

adotada em um grupo operativo auxilia as sobreviventes em suas trajetórias de enfrentamento

à violência de gênero. Além disso, o fato da dinâmica do grupo se guiar pela imagem de uma

espiral permite que se compreenda que, nas idas e vindas do processo, as resistências e

estereotipias estejam sendo alteradas/destruídas, legitimando as trajetórias e

Page 207: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

206

(des)naturalizando as críticas às dificuldades neste processo. Da mesma forma, o percurso de

negociação, apresentação e avaliação coletiva das estratégias permite que o Grupo se

configure como operativo e atinja seu objetivo último de produzir mudanças em suas

participantes e na sociedade.

Vale ressaltar, porém, que, como apresentado por Giffoni (1991),

operar significa uma intervenção na realidade e, neste caso, uma intervenção no

contexto grupal, com a clara intenção de provocar mudança, de promover

modificações. Modificação na forma de trabalhar grupalmente e modificações nas

próprias pessoas que estão imersas nesse contexto grupal. Operar é, portanto,

intervir tendo em vista a transformação. Só que este processo, e vocês estão sentindo

isso na própria pele, leva tempo. Não é possível de imediato, de pronto, um grupo

tornar-se operativo, conseguir operar no verdadeiro sentido da palavra. Leva tempo

porque implica num processo de redefinição das necessidades individuais em

necessidades grupais, comuns ao grupo. É necessário, então, que o grupo possa

reconhecer o caráter social das necessidades presentes nele (GIFFONI, 1991, p.64).

A partir do apresentado acima, consideramos que o Grupo analisado está em processo de

operatividade, ou seja, em sua curta história ele produziu intervenções:

na proposta de atendimento:

da instituição ao qual está vinculado e da Rede de Enfrentamento à Violência como lugar de

legitimação das trajetórias de suas participantes;

nos ciclos de enfrentamento à violência de suas participantes:

a partir do questionamento da normas da matriz heteronormativa levando à transformação das

relações de gênero em suas relações sociais, afetivas e familiares e também através da

aproporpriação crítica por parte de suas participantes das propostas das intituições da Rede de

Enfrentamento à Violência de Contagem/MG e da legislação pertinente à problemática;

em sua própria dinâmica grupal:

a partir da apropriação da proposta de elaboração, avaliação e aplicação de estratégias

negociadas no Grupo e na proposta de elaboração de um projeto grupal de intervenção na

problemática da violência tanto no nível individual como no nível institucional/social/cultural.

Page 208: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

207

Apesar disto estamos cientes de que este processo de intervenção é inicial e, coerente com a

proposta a que se filia, contínuo, tanto na vida das participantes como na proposta de

Enfrentamento à Violência a partir de uma Rede de instituições. O desafio lançado pelas

participantes, tanto às instituições da Rede como ao Grupo, vai ao encontro de uma

organização que se baseia na legitimação do trabalho das instituições entre si e,

principalmente, na legitimação das trajetórias das sobreviventes à violência de gênero por

toda a Rede conforme suas decisões e de acordo com as especificidades de seus casos.

Iniciando um círculo virtuoso, o desafio proposto a elas, a partir da participação do Grupo, é

que a legitimação dos mecanismos e das estratégias se sustente a partir de seus

posicionamentos como sobreviventes ao ciclo de violência e ao ciclo de enfrentamento à

violência. Como apontado por mim à Cíntia na sessão do dia 26 de agosto de 2009:

Simone: por que você simplesmente não podia ter falado, todos os casos que você

me conta você não podia ter contado lá?

Cíntia: eu falei.

Simone: eu sei que é difícil, mas o que vocês têm que entender é que a palavra de

vocês também tem valor.

Cíntia: Mas, se você esta frequentando um grupo, você confia no grupo.

Simone: eu concordo.

Podemos completar esta linha de raciocínio indicando que se a proposta do Grupo delimita-se

como diferenciada daquela indicada em outros momentos nas trajetórias destas sobreviventes,

a própria manutenção da dinâmica grupal só é possível pela aposta e pertença destas

sobreviventes. Assim, sustento que o grande trunfo da técnica do Grupo Operativo está,

justamente, neste movimento dialético onde cada membro do Grupo, através de trocas

comunicacionais aprende a aprender, a pensar e a mudar, ao mesmo tempo em que ensina o

Grupo. Desta forma, o ciclo virtuoso anunciado pelas participantes do Grupo, a partir de suas

mudanças, é fruto desta proposta de atendimento que:

possibilita a legitimação de trajetórias individuais de ciclos de enfrentamento à

violência a partir do questionamento das normas que sustentam a violência;

oportuniza que se aprenda um posicionamento que evite comportamentos e discursos

estereotipados e dicotomizantes e

instiga à apropriação crítica não só das instituições da Rede de Enfrentamento e das

Page 209: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

208

legislações pertinentes, mas das próprias trajetórias para garantir o direito a uma vida

sem violência.

Citando Rosa Luxemburgo, considero que “quem não se movimenta não sente as cadeias que

o prendem”. Se fosse necessário resumir a dinâmica deste Grupo, seria através de um convite

a estas sobreviventes: frente a todas as pressões e opressões, convido-as a continuarem a se

movimentar...

Como coordenadora de um Grupo com este objetivo, certamente não me sentiria confortável

se não me guiasse por uma proposta de ciência feminista; pela reafirmação do entendimento

da psicologia social (objeto e didática) nas teses pichonianas, pela convicção na práxis como

método e pelo desejo de fazer de meu trabalho um instrumento de mudança social e

contribuição teórico/científica. Trilho, desde a graduação, uma trajetória onde objetividade

remete a posicionamento e não há como não me posicionar como psicóloga, servidora

pública, pesquisadora, feminista, mãe e mulher antes, durante e depois desta pesquisa e

durante as sessões do Grupo. O posicionamento, para mim, é uma proposta teórica, mas

também um desafio pessoal.

Page 210: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

209

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta dissertação é resultado dos últimos dois anos e dois meses de histórias que se

entrelaçaram de uma forma que não se faz possível (ou necessário) saber o que levou a quê ou

quem possibilitou o quê para quem. Elas foram escritas em um processo cheio de desafios,

idas e vindas, lágrimas, risos, derrotas, vitórias, surpresas e descobertas. Nesta dissertação

está presente a história do Grupo; a história de cada sobrevivente que aceitou dele participar e

a minha. Todo o processo de escrita, todas as escolhas, todas as leituras tinham como objetivo

contribuir não só para a discussão acadêmica sobre a violência de gênero, mas para as

sobreviventes desta violência que cotidianamente buscam solucionar este problema em suas

vidas. Não imaginava quais seriam os desdobramentos da proposta para o atendimento em

Grupo das sobreviventes atendidas por mim no Espaço. Se cada novo convite era guiado por

uma aposta na possibilidade de mudança no ciclo de violência de cada sobrevivente e pela

reafirmação da proposta de atendimento em Grupo como dinâmica privilegiada, a cada final

de sessão seguiam-se momentos de incerteza sobre a continuidade das participações na

próxima sessão e, mais importante, da pertença de cada uma das participantes naquele Grupo.

Percebo agora que este processo de reafirmação e de legitimação não se dirigia apenas ao

Grupo, mas à trajetória de cada sobrevivente e a minha como profissional, pesquisadora e

mulher.

As mudanças comemoradas e os retrocessos apresentados com tristeza por cada participante

uniam-se aos avanços e retrocessos nas horas de estudo e escrita desta dissertação, que eu

confidenciava a elas. A cada semestre finalizado a proposta do Grupo se consolidava

institucionalmente e ia sendo apropriada, por isso, a euforia a cada convite para participação

em eventos externos.

Cada avanço na espiral dessas histórias aliava-se aos questionamentos propostos para esta

dissertação. Assim, os resultados aqui apresentados foram delineados a partir de alguns

aspectos que se sobressaíram neste processo quais sejam: o relato das participantes de

mudanças nos seus Ciclos de Enfrentamento à Violência; a rapidez com que isto ocorria,

principalmente, nos casos onde a participação era mais frequente; a afirmação contundente da

participação no Grupo como elemento desencadeador para as mudanças e a coerência das

críticas sobre o atendimento recebido em outros serviços/instituições da Rede de

Page 211: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

210

Enfrentamento e os posicionamentos contrários às decisões de encerrar o ciclo de violência.

Estes aspectos observados apontavam para a participação no Grupo como local diferenciado

na Rede de Enfrentamento à Violência, entre outros motivos, pelo meu acolhimento (como

coordenadora do Grupo) e das participantes das várias estratégias adotadas para o

enfrentamento à violência e pela possibilidade de rever no Grupo a colocação em prática das

estratégias elaboradas pelo Grupo. Desta forma, elas eram legitimadas em suas trajetórias de

sobreviventes à violência de gênero pela ternura no convite, a alegria na acolhida e a

reiteração do desejo de mudança. Estes eram aspectos legitimadores e potencializadores das

mudanças, de caráter simples, mas aparentemente não encontrados em outras instituições ou

em outros interlocutores(as).

A estes indicativos une-se a denúncia dos processos deslegitimadores das trajetórias das

sobreviventes à violência escamoteados nos discursos culpabilizadores, vitimizadores,

essencializadores e naturalizadores sustentados pelas normas da matriz heteronormativa que

guiam a ação/omissão de agentes das instituições da Rede de Enfrentamento e de outros(as)

interlocutores(as) da sociedade. Para contribuir na denúncia deste processo delineei o Ciclo de

Enfrentamento à Violência como uma forma de dar visibilidade a este processo repetidamente

apresentado pelas sobreviventes em suas trajetórias. A minha aposta é no diferencial

legitimador do atendimento a partir da proposta do Grupo Operativo (que pode ser replicado

em qualquer outro episódio do Ciclo de Enfrentamento à Violência) aliado à discussão sobre

as normas que sustentam a violência de gênero em nossa sociedade.

Para além destas histórias contadas, devo meu reconhecimento à possibilidade de escuta de

outras tantas histórias de sobreviventes (que atendi ou ouvi de terceiros) que devido às

peculiaridades, pressões e opressões de suas trajetórias não participaram do Grupo. Em

especial, à memória de Maria Islaine de Morais e de Eloá Cristina Pimentel, que tiveram seus

assassinatos transmitidos em cadeia nacional, colocando em xeque as políticas públicas de

enfrentamento à violência e a atuação de suas instituições.

Por fim, ser ao mesmo tempo mulher, profissional de uma instituição pública da Rede de

Enfrentamento e pesquisadora feminista poderia dificultar minha trajetória, mas, prefiro me

posicionar não negando esta rede de identificações em que me situo apossando-se disto como

um diferenciador que legitima a mim e ao meu trabalho.

Page 212: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

211

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Page 220: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

ANEXO 01

Dados sócio-econômicos das mulheres sobreviventes à violência de gênero

Nome Idade Cor Escolaridade Ocupação atual Trabalho Renda própria Moradia

Camila 30 negra ensino médio completo desempregada** não tem não própria

Cíntia 37 parda ensino médio completo trabalha assalariada não cedida *

Clarice 40 parda ensino médio incompleto pensionista não tem sim própria

Elis 55 branca ensino fundamental incompleto dona de casa não tem não própria

Fernanda 38 parda ensino médio completo trabalha por conta própria sim cedida*

Fabíola 43 branca ensino médio completo trabalha por conta própria sim própria

Graça 36 parda ensino médio completo trabalha por conta própria sim própria

Janaína 52 parda ensino fundamental incompleto dona de casa não tem não aluguel

Kenia 19 branca ensino fundamental incompleto trabalha por conta própria sim cedida

Marília 46 branca ensino médio incompleto trabalha por conta própria sim própria

Nina 33 parda ensino médio completo desempregada** não tem não aluguel*

Rosa 44 negra ensino fundamental incompleto trabalha por conta própria sim própria

Sâmia* 23 branca ensino médio incompleto desempregada** não tem não aluguel

Susana 49 branca ensino médio completo trabalha assalariada sim própria

*Cíntia, Flávia e Nina têm casa própria ocupada neste momento pelos ex-companheiros **São consideradas desempregadas as mulheres que já foram assalariadas ou tiveram renda própria

Page 221: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

ANEXO 02

Trajetória afetiva das mulheres sobreviventes à violência de gênero

Nome Estado civil

Tempo de convivência

Tipo de violência sofrida

Vive com

parceiro

Outros Relaciona-

mentos

Relato de violência no novo relacionamento Idade filhos

Camila união estável 7 anos

física,psicológica, moral, institucional não sim sim

01 ano(não é filho do agressor)

Cíntia separada* 17 anos física,moral,sexual, psicológica,patrimonial não não não cabe 15,11 anos

Clarice separada* psicológica, moral, sim sim sim 11 e 19(não são filhos do agressor)

Elis casada 32 anos física, moral, psicológica sim não não cabe 27,25,24 anos

Fernanda separada* 20 anos física,psicológica, moral, patrimonial não não não cabe 16,14 anos

Fabíola casada 20 anos psicológica, moral sim não não cabe 19,16,14 anos

Graça separada* 13 anos moral,psicológica, sexual sim não não cabe

11, 19(não é filho do agressor)

Janaína casada 31 anos física, psicológica, sexual, patrimonial sim não não cabe 28,22 anos

Kenia união estável 06 meses física, psicológica não sim não 01 ano

Marília separada* 18 anos psicológica, moral, física sim não não cabe 12,09 anos

Nina casada 12 anos moral, patrimonial, psicológica não sim não 11,09 anos

Rosa casada 26 anos física, psicológica, moral sim não não cabe 26,23,05 anos

Sâmia solteira 04 anos moral, psicológica não não não cabe 01 ano

Susana separada* 27 anos psicológica não não não cabe 25,21 anos

* entende-se por separada nestes casos as mulheres que durante o período da pesquisa e participação no grupo estavam com processos de separação na justiça

Page 222: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

ANEXO 03

Trajetória das mulheres sobreviventes à violência de gênero na Rede de Enfrentamento à Violênica de Contagem/MG.

Nome Setor de encaminhamento Encaminhados realizados Acionou Processo de separação

Tempo de Grupo

Camila Espontânea Nudem/ 4 vezes Polícia Militar e Delegacia de Mulheres Não cabe

1 ano e dois meses*

Conselho Tutelar Decretada medidas protetivas

Posto de Saúde- Saúde Mental

Promotoria de Justiça

Secretaria de Direitos e Cidadania

Comissão Direitos Humanos ALMG

Delegacia de Mulheres

Cíntia Cras-Casa da Família Nudem Polícia Militar Sim-nudem 01 ano e 1 mês*

Clarice Espontânea Defensoria Pública Polícia Militar Sim-nudem 15 dias** *

Elis Espontânea Projeto Mulheres da Paz Polícia Militar Não 01 mês * **

Fernanda Cras-Casa da Família Delegacia de Mulheres Polícia Militar Sim/advogado particular 2 meses

Fabíola Espontânea Nudem Não Não 1 ano e 4 meses* **

Graça Espontânea Projeto Mulheres da Paz Delegacia de Mulheres Sim-nudem 01 ano e 2 meses *

Janaína Unidade Básica de Saúde Nudem/Delegacia de Mulheres Polícia Militar Não 2 meses

Kenia Nudem Delegacia de Mulheres/Promotoria Polícia Militar/Delegacia de Mulheres Não cabe 15 dias**

Decretada medidas protetivas

Marília Espontânea não Polícia Militar Sim-Puc/Contagem 15 dias**

Nina Convite de Elis Nudem Não Não 15 dias* **

Rosa Conselho Tutelar Delegacia de Mulheres/Nudem-2vezes Não Não cabe 1 mês

Sâmia Convite de Nina Não Não Não cabe 15 dias**

Susana Convite de amiga Nudem Não Sim-Nudem 4 meses*

* mulher continua participando do grupo **primeira participação no grupo aconteceu durante a pesquisa

Page 223: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

ANEXO 04

Page 224: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

ANEXO 05

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

Prezada Senhora,

Você esta sendo convidada para participar da pesquisa “O grupo operativo como

dispositivo de enfrentamento à violência de gênero” que tem como objetivo principal

investigar o processo de enfrentamento à violência de gênero no dispositivo grupo operativo.

Esta pesquisa tem como pesquisador responsável o Prof. Dr. Adriano Roberto Afonso do

Nascimento e como pesquisadora auxiliar a psicóloga Simone Francisca de Oliveira. Esta

pesquisa se realizará no Espaço Bem-Me-Quero tendo como instituição responsável por sua

execução a Universidade Federal de Minas Gerais através do Departamento de Pós-

Graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas.

De forma mais específica, pretendemos analisar a construção/reconstrução dos

sentidos da violência para mulheres sobreviventes de violência de gênero atendidas em grupos

operativos; analisar se e como os sentidos da violência de gênero podem possibilitar a

construção coletiva de estratégias para o fim do ciclo de violência; investigar se e como a

participação no grupo atua para o questionamento dos papéis de homem e mulher e para a

transformação das relações de gênero na vida das mulheres e, por fim, descrever e analisar as

práticas institucionais realizadas pela Rede de Enfrentamento à Violência de Contagem/MG.

Tais informações podem ser úteis para subsidiar futuros projetos de pesquisa e de intervenção

e políticas públicas de enfrentamento à violência de gênero. Assim, gostaríamos de convidá-la

a participar de um total de oito sessões de grupo operativo onde conversaremos sobre temas

relacionados ao enfrentamento à violência de gênero e realizaremos a gravação das mesmas

(após sua autorização por escrito). O tempo médio de duração das sessões está previsto para 2

horas. A participação na pesquisa e a gravação das sessões não oferecerão à senhora riscos

físicos ou psicológicos adicionais aos já previstos para a participação no grupo. Todavia, caso

a Senhora sinta-se em risco devido à participação na pesquisa e/ou no grupo ou deseje retirar-

se da pesquisa a qualquer momento será lhe oferecida, segundo seu interesse, a continuidade

do atendimento psicológico individual pela equipe de psicologia do Espaço Bem-Me-Quero.

Está garantido o seu anonimato e os esclarecimentos que se fizerem necessários sobre a

metodologia utilizada antes e durante a pesquisa. Esta lhe garantida também a liberdade sem

restrições de se recusar a participar, ou retirar seu consentimento, em qualquer fase da

pesquisa, sem que disso resultem quaisquer tipos de conseqüências para a senhora. As

informações obtidas nessas sessões serão utilizadas exclusivamente para fins de pesquisa e

Page 225: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

elaboração de projetos de intervenção psicossocial vinculados ao Departamento de

Psicologia/FAFICH/UFMG. Todas as informações geradas nessas sessões (gravações,

formulários e transcrições) ficarão armazenadas no Departamento de

Psicologia/FAFICH/UFMG por um período mínimo de 02 anos, sob inteira responsabilidade

do professor responsável por essa pesquisa Prof. Dr. Adriano Roberto Afonso do Nascimento.

Informamos também que a sua participação tem caráter voluntário e não resultará em

qualquer tipo de remuneração para a senhora.

Contatos: a) Prof. Adriano R. A. do Nascimento, Departamento de

Psicologia/FAFICH/UFMG, Avenida Antônio Carlos, 6627 – Faculdade de Filosofia e

Ciências Humanas - 4º andar, Universidade Federal de Minas Gerais, Campus Pampulha-Belo

Horizonte, MG -31270-901. Tel.: (31) 3409-6278. b) COEP - Comitê de Ética em Pesquisa -

Avenida Antônio Carlos, 6627 - Unidade Administrativa II - 2º andar, Universidade Federal

de Minas Gerais, Campus Pampulha-Belo Horizonte, MG -31270-901. Tel.: (31) 3409-4592

/3409-6278. c) Simone Francisca de Oliveira – Espaço Bem-Me-Quero - Rua. José Carlos

Camargos, 218, Bairro Centro – Contagem – 32140-600 - Tel.: (31) 33527543/ 33528091.

Eu, _______________________________________________ (nome da participante),

RG _______________ , Órgão Emissor _________, declaro ter COMPREENDIDO as

informações prestadas neste Termo, DECIDO participar das sessões do grupo operativo

propostas e AUTORIZO a utilização das informações dela decorrentes no Projeto de Pesquisa

intitulado “O grupo operativo como dispositivo de enfrentamento à violência de gênero”.

Estando de acordo, assinam o presente Termo de Consentimento em 02 (duas) vias.

-

------------------------------------------------------------

Participante

---------------------------------------------------------------

Pesquisador Auxiliar

---------------------------------------------------------------

Pesquisador responsável

Belo Horizonte, de de 2009

Page 226: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

ANEXO 06

Primeiro tratamento das transcrições (exemplos)

Grupo Operativo Transcrição Temas Comentários

Inicio do grupo

coordenadora

retoma grupo

anterior

Líder/transferência

Assunto do grupo

de hoje

Pertença

Simone: Gente bom dia, bom dia.

Começou. Semana passada veio

eu, a Camila e a Fabíola. Foi tudo

de bom, né Camila?

Camila: foi tudo de bom!

Simone: A gente discutiu muita

coisa importante e vamos

continuar aí.

M: A Fabíola é quem?

S: a Fabíola, uma de cabelo preto,

branquinha, de cabelo lisinho, que

vem desde o início.

M: que esta trabalhando...

S: uma branca, bonitinha. E ai?

N: vou justificar minha falta, eu

fiquei doente

S: doente? E aí? O quê que você

arrumou minha filha?

N nunca tive não, mas agora to

tendo de tudo.

S: tudo aparecendo...

E: é a imunidade que ta baixa

sabe.

M1: nunca tive nada, não, mas.

Su: A tristeza né, Simone , faz a

imunidade abaixar.

Cla: Eu também fiquei internada,

não te ligaram não? Parta falar...

FALAS

S: ficou internada também, nossa

senhora!

N: O remédio não tava

combatendo tive que tomar direto

na veia (...)

S: me ligaram? Quem? De onde?

Não.

Cla: Eu tive gripe suína...

S: porque você vai internar

também?

MUITAS FALAS PARALELAS.

S: socorro, mas ta bem?

Melhorou?

M: Mas to com o corpo assim...

Su: Lá na escola que eu trabalho

todo dia falta uma...

C: Normal...

S: meio fraco ainda. Ai gente para

Impacto na saúde

Camila

interlocutora

do grupo com

a coordenação

Apesar da

grande

rotatividade

no grupo as

participantes

sempre estão

na memória

afetiva e

temática do

grupo.

Page 227: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

Fim da introdução

Estratégia

de ficar doente.

RISADAS E FALAS

S: é a primeira vez na minha vida

que eu to com medo de uma

doença.

Cla: eu passei mal no meio da rua.

Lá em casa eu tava assim tossindo,

mas sabe aquela tosse alérgica? Aí

quando eu cheguei na rua que eu

fui levar o resultado da minha

menina, aí eu comecei (tosse)...

S: ficou sem ar...

FALAS

S: você também ta tossindo?(para

E.)

FALAS E RISADAS

S: você viajou? Você foi viajar?

E: fui pra São Paulo

S: com quem você foi?

M: Com a minha irmã, fiquei lá

uns três dias. Primeiro fiquei na

casa da minha menina, depois...

Fiquei lá uns seis dias não, fiquei

quatro.

S: ai que bom! E você dona Su.,

onde você tava, trabalhando?

Su o que? Quarta-feira passada?

S: é, todo mundo justificou. Agora

você justifica também.

(Risos e falas)

Su: eu arrumei um rolo danado

esses dias.

S: mas você ta bem né? Ta

saudável? Dormindo bem...---------

-------------------

FALAS

Su: coloquei a faixa (Fala abafada

pelas outras)

S:vende-se urgente... fala abafada

por N e E. que estão conversando

alto entre si sobre a morte de um

vizinho.

S: vamos fazer o seguinte...eu já as

separei (referindo a Cintia e

Graça.) vou separar vocês duas

(...) senão eu não escuto nada.

FALAS

S: Nina e Elis e todo mundo,

vamos concentrar porque senão

depois eu não consigo nem ajudar

Iniciativas

Retomando a ultima

sessão

Os assuntos

surgem

conforme o

que elas

trazem em

alguns grupos

eu inicio a

conversa com

alguém

porque foi

solicitado ou

pela

ansiedade

aparente. Ou

porque foi

onde acabou o

assunto na

ultima semana

Sempre há

uma certa

ansiedade de

algumas para

ter a fala.

Page 228: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

Aprendizagem

Líder

Técnica

Comunicação

coordenação

Cooperação

e a gravação também fica péssima.

A gente tinha conversado que você

ia...

Su: Ia tomar a iniciativa e ia

colocar a casa pra vender.

S: a questão é essa: a iniciativa.

Muito bem, aplausos, palmas para

ela.

PALMAS/Muito

bem!Parabéns!Evolução GSM.

S: com seu nome?

Su: ...na faixa.

S: (...) pra quem não sabia nem por

onde começar (...)

Su: aí depois que eu falei que eu

ia, já tinha colocado a faixa (...) ele

nunca pegou na enxada, tava

capinando uns capinzinhos lá no

passeio lá fora. A cerca elétrica

fica lá pendurada, que nem trem de

elétrica tem mais, fica lá

pendurada, falou que vai consertar

a cerca elétrica. Aí eu vi o

orçamento de cimento, areia,

dizendo que vai aumentar o muro

(...)

M: mas para que ele esta fazendo

tudo isto?

S: pra valorizar mais...

M: para valer mais...

Su: não que eu não quero fazer

nada lá. Quando eu queria, ele

nunca fez nada. Agora que eu não

quero mais nada mesmo, eu não

quero que faz nada lá na casa, vai

vender do jeito que ela ta.

S: se ele fizer pelo menos aumenta

o valor.

Su: isso é desaforo. Quando ele

quer fazer as coisas é que ele faz.

Quantas vezes eu quis fazer as

coisas, ele nunca fez.

S: e alguém já te ligou? Como é

que ta?

Su: de vez em quando aparece

alguém lá pra olhar.

S: como é que é? Você já colocou

pra vender? Mas ele continua lá?

Desavenças de

postura com marido/o

antes e o agora deles

Data da audiência

defensoria

Sugestão do

grupo

colocada em

prática após

evento do

ciclo da

violência

Page 229: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

Episódio de

violência

Estratégia

Qual dia é seu dia mesmo? Que

dia você vai lá no juiz?

Su dia 03 de setembro e deixa eu

te falar, ele tem que ir também?

S: mas chegou carta pra ele?

Su: é isso que eu não sei.

Graça: costuma chegar para você

primeiro.

Su: porque dia 03 esta perto.

Graça: a minha chegou uma

semana, primeiro.

S: não, tem que chegar. Depois

que nem o caso dela (Graça) se

não chegar você vai lá e fala,

porque depois perde uma, se ele

não for depois perde (...)

Mulheres concordam....

Su: então como é que eu tenho que

fazer?

S: dá um tempinho... Mulheres

concordam...

G: calma recebe uma semana

antes... Mulheres concordam...

S: (...) se você ver assim que três

dias, dois dias antes, não chegou,

aí... Mulheres concordam

Su: sabe por que agora eu resolvi

vender, eu tive iniciativa mesmo,

porque teve um belo dia lá, que

chegou meu filho com ele. Lindo

né, adoro ver o pai com o filho

junto, é a melhor coisa que tem. Aí

chegaram do futebol, chegaram

com a camisa do cruzeiro. E é

difícil eu ficar até tarde fazendo

alguma coisa, aí geralmente onze

horas eu to dormindo há muito

tempo, porque eu faço de tudo pra

não encontrar com ele, sabe, eu

vou pro meu quarto assistir

televisão e lá eu durmo. Aí

chegaram alegres e tal e eu to lá

quietinha, continuei fazendo

minhas coisas. Eles ficam rindo eu

não tenho graça mais de ficar

rindo mais perto dele.

Caso da mulher

anterior como

exemplo

Page 230: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

ANEXO 07

Eixos de análise

Conteúdos Estratégias Sentimentos Grupo fala Comunicação Converg

e

Diverge Exemplos

Justificativa de

faltas=pertenç

a e filiação

Impactos da

violência na

saúde

Iniciativa/apre

ndizagem/ada

ptação ativa/

Cooperação

Cena/corpo da

mulher/gênero

/violência

Colocar a

casa à

venda

Fazer tudo

para não

encontrar

com ele

em casa

Tristeza

Ódio, mas

não vou

chorar

Demonstra

ndo

interesse

na saúde

das outras/

Empatia

Quando a

mulher

reage na

hora da

violência,

Espelhament

o nos

exemplos das

outras

Relato de

iniciativa

Relato de

cena de

violência

Cooperação/

X

X

x

A tristeza faz a imunidade da

gente baixar.

Su: coloquei a faixa (Fala

abafada pelas outras)

S:vende-se urgente... A gente

tinha conversado que você ia...

Su: Ia tomar a iniciativa e ia

colocar a casa pra vender.

S: a questão é essa: a iniciativa.

Muito bem, aplausos, palmas

para ela. (PALMAS) Muito

bem!Parabéns!Evolução GSM.

S: com seu nome?

Su: ...na faixa. S: (...) pra quem

não sabia nem por onde

começar.

Su: sabe por que agora eu resolvi

vender, eu tive iniciativa mesmo,

porque teve um belo dia lá, que

Page 231: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

Ficar

calada na

hora da

agressão

Não ficar

na mesma

casa após

a

separação

Mudar de

cidade

após a

separação

quando

percebe

que a

mulher

esta

agindo

segundo a

”cartilha”,

em relação

à posição

da mulher

na cena de

violência

Criatividade

do grupo -

Cartilha

chegou meu filho com ele. Lindo

né, adoro ver o pai com o filho

junto, é a melhor coisa que tem.

Aí chegaram do futebol,

chegaram com a camisa do

cruzeiro. E é difícil eu ficar até

tarde fazendo alguma coisa, eu

peguei umas coisas na escolinha

e levei lá pra casa pra fazer, aí

geralmente onze horas eu to

dormindo há muito tempo,

porque eu faço de tudo pra não

encontrar com ele, sabe, eu vou

pro meu quarto assistir televisão

e lá eu durmo. Aí chegaram

alegres e tal e eu to lá quietinha,

continuei fazendo minhas coisas.

Eles ficam rindo eu não tenho

graça mais de ficar rindo mais

perto dele. Aí ele lá na cozinha

colocando a janta dele, eu não

sei que assunto surgiu, que ele

tava rindo do buteco, do Peixe

Vivo (Bar de Contagem), que

aparece cada trem horroroso lá

na porta. Tem muita gente

bacana que vai. Eles estavam

rindo do povo feio que vai gorda

com os peitos na barriga e não

sei o que e falou da Célia minha

colega, ela toda vida é mãe, é

irmã, é tudo pra mim. Eu morei

Page 232: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

Definição de

violência/

Traição/lugar

da mulher na

sociedade/

filho na cena

de violência

Falar

palavrão

20 anos no Novo Riacho e ela

me ajudou muito quando meus

meninos eram pequenininhos.

Aí ele falou dela, e minha

menina já falou comigo “mãe,

tudo que pai falar para te

ofender, você fica calada”. Mas

tem hora que a gente não

agüenta, não. (Mulher

concorda). Aí na hora que ele

falou da Célia me atingi, aí eu

falei com ele “não fala da Célia

não”. Aí o Gabriel, meu menino,

riu. (...) Su: você entendeu?

Então quê que eu pensei?

Juliana! Falei com minha

menina, J. se eu continuar do

jeito que eu to aqui, eu to com

60, 70 anos, fazendo as coisas,

aguentando

humilhação,tolerando, ouvindo

desaforo ainda.

Page 233: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

ANEXO 08

Camisa confeccionada para a comemoração do mês de março de 2009

Page 234: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

ANEXO 09

O MURO

Page 235: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

ANEXO 10

Parecer do Comitê de Ética em Pesquisa/UFMG

Page 236: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

ANEXO 11

Apresentarei esta sessão na íntegra objetivando que a dinâmica de funcionamento do Grupo

que aceitou participar desta pesquisa possa ser visualizada com seus momentos intensos,

comentários, risos e interrupções. Poder-se-á, também perceber o desencadeamento de temas

discutidos pelas participantes, as intervenções da coordenadora bem como os momentos em

que não foi possível definir qual participante falou. Sabemos que não se consegue, apesar da

busca pelo cuidado com a fidelidade na transcrição, transmitir os sentimentos, as interações

visuais entre as participantes e destas com a coordenação e a comunicação por gestos, mas

consideramos que através de uma leitura de um material como este se pode perceber o clima

de um grupo, bem como as trocas comunicacionais se organizaram, a assunção e adjudicação

de papéis e o processo de negociação de sentidos na dinâmica deste Grupo em seu aqui-agora

grupal de acordo com sua tarefa e suas especificidades. Não pretendemos apresentar esta

sessão como um modelo de intervenção com grupos para mulheres sobreviventes à violência

de gênero, mas como uma contribuição para as várias formas como a psicologia social com

suas ferramentas pode atuar a favor do enfrentamento à violência de gênero. Esperamos assim

contribuir par a discussão sobre os processos de legitimação das estratégias adotadas pelas

mulheres sobreviventes à violência de gênero a partir das trocas com suas pares de suas

dificuldades, interesses e posicionamentos. Cada Grupo traz em si as suas questões e sua

forma de buscar repostas. Parafraseando Antoine de Saint-Exupéry, “na vida, não existem

soluções. Existem forças em marcha: é preciso criá-las e, então, a elas seguem-se as

soluções”. Consideramos que o setting grupal possa ser um local privilegiado para colocar em

marcha essas forças.

.

Sessão nº 03

Sessão do Grupo nº 63

Data: 19 de agosto de 2009

Duração: 01 hora e 35 minutos

Participantes: Camila, Elis, Clarice, Graça, Nina, Susana

Coordenação do Grupo: Simone (coordenadora) e Rafaela (observadora)

Simone: Gente bom dia, bom dia! Começou. Semana passada veio eu, a Camila e a Fabíola:

Foi tudo de bom, né Camila?

Page 237: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

Camila: foi tudo de bom!

Simone: A gente discutiu muita coisa importante e vamos continuar por aí.

Mulher: A Fabíola é quem?

Simone: a Fabíola é uma de cabelo preto, branquinha, de cabelo lisinho, que vem desde o

início.

Mulher: uma que esta trabalhando...

Simone: uma branca, bonitinha. E ai?

Nina: vou justificar minha falta, eu fiquei doente

Simone: doente? E aí? O quê que você arrumou minha filha?

Nina: nunca tive não, mas agora to tendo de tudo.

Simone: tudo aparecendo...

Nina: é a imunidade que tá baixa sabe. Nunca tive nada, não, mas.

Susana: A tristeza né, Simone, faz a imunidade abaixar.

Clarice: Eu também fiquei internada, não te ligaram para falar?(Falas)

Simone: ficou internada também, nossa senhora!

Nina: O remédio não tava combatendo tive que tomar direto na veia.

Simone: me ligaram? Quem? De onde? Não.

Clarice: Eu tive gripe suína...

Simone: porque você vai internar também?(Muitos comentários). Socorro, mas tá bem?

Melhorou?

Clarice: Mas tô com o corpo assim...

Susana: Lá na escola que eu trabalho todo dia falta uma...

Clarice: Normal...

Simone: meio fraco ainda. Ai gente para de ficar doente. (Risadas e comentários).

Simone: é a primeira vez na minha vida que eu to com medo de uma doença.

Clarice: eu passei mal no meio da rua. Lá em casa eu tava assim tossindo, mas sabe aquela

tosse alérgica? Aí quando eu cheguei na rua que eu fui levar o resultado da minha menina, aí

eu comecei (Tosse)...

Simone: ficou sem ar... (Falas).

Simone: você também ta tossindo?(pergunta para Elis). (Falas e risadas).

Simone: você viajou? Você foi viajar?

Elis: fui pra São Paulo

Simone: com quem você foi?

Page 238: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

Elis: Com a minha irmã, fiquei lá uns três dias. Primeiro fiquei na casa da minha menina,

depois... Fiquei lá uns seis dias não, fiquei quatro.

Simone: ai que bom! E você Dona Susana, onde você tava, trabalhando?

Susana: o que? Quarta-feira passada?

Simone: é, todo mundo justificou. Agora você justifica também. (Risos e falas).

Susan: eu arrumei um rolo danado esses dias.

Simone: mas você ta bem né? Tá saudável? Dormindo bem... (Falas).

Susana: coloquei a faixa (Fala abafada pelas outras)

Simone: vende-se urgente... (Fala abafada por Nina e Elis que estão conversando alto entre si

sobre a morte de um vizinho) Vamos fazer o seguinte. Eu já as separei (referindo-se a Cíntia e

Graça) vou separar vocês duas, senão eu não escuto nada. Nina e Elis e todo mundo, vamos

concentrar porque senão depois eu não consigo nem ajudar e a gravação também fica péssima.

A gente tinha conversado que você ia...

Susana: Ia tomar a iniciativa e ia colocar a casa pra vender.

Simone: a questão é essa: a iniciativa. Muito bem, aplausos, palmas para ela. (Palmas/Muito

bem! Parabéns! Evolução GSM).

Simone: com seu nome?

Susana: na faixa.

Simone: pra quem não sabia nem por onde começar.

Susana: aí depois que eu falei que eu ia, já tinha colocado a faixa. Ele nunca pegou na enxada,

tava capinando uns capinzinhos lá no passeio lá fora. A cerca elétrica fica lá pendurada, que

nem trem de elétrica tem mais, fica lá pendurada, falou que vai consertar a cerca elétrica. Aí

eu vi o orçamento de cimento, areia, dizendo que vai aumentar o muro...

Elis: mas para que ele esta fazendo tudo isto?

Simone: pra valorizar mais...

Camila: para valer mais...

Susana: não que eu não quero fazer nada lá. Quando eu queria, ele nunca fez nada. Agora que

eu não quero mais nada mesmo, eu não quero que faz nada lá na casa, vai vender do jeito que

ela tá.

Simone: se ele fizer pelo menos aumenta o valor.

Susana: isso é desaforo. Quando ele quer fazer as coisas é que ele faz. Quantas vezes eu quis

fazer as coisas, ele nunca fez.

Simone: e alguém já te ligou? Como é que tá?

Page 239: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

Susana: de vez em quando aparece alguém lá pra olhar.

Simone: como é que é? Você já colocou pra vender? Mas ele continua lá? Qual dia é seu dia

mesmo? Que dia você vai lá no juiz?

Susana: dia 03 de setembro e deixa eu te falar, ele tem que ir também?

Simone: mas chegou carta pra ele?

Susana: é isso que eu não sei.

Graça: costuma chegar para você primeiro.

Susana: porque dia 03 está perto.

Graça: a minha chegou uma semana, primeiro.

Simone: não, tem que chegar. Depois que nem o caso dela (Graça) se não chegar você vai lá e

fala, porque depois perde uma, se ele não for depois perde uma audiência. (Mulheres

concordam).

Susana: então como é que eu tenho que fazer?

Simone: dá um tempinho. (Mulheres concordam).

Graça: calma!Recebe uma semana antes. (Mulheres concordam).

Simone: se você ver assim que três dias, dois dias antes, não chegou, aí.(Mulheres

concordam).

Susana: sabe por que agora eu resolvi vender, eu tive iniciativa mesmo, porque teve um belo

dia lá, que chegou meu filho com ele. Lindo né, adoro ver o pai com o filho junto, é a melhor

coisa que tem. Aí chegaram do futebol, chegaram com a camisa do Cruzeiro. E é difícil eu

ficar até tarde fazendo alguma coisa, eu peguei umas coisas da escolinha e levei lá pra casa

pra fazer, aí geralmente onze horas eu tô dormindo há muito tempo, porque eu faço de tudo

pra não encontrar com ele, sabe, eu vou pro meu quarto assistir televisão e lá eu durmo. Aí

chegaram alegres e tal e eu tô lá quietinha, continuei fazendo minhas coisas. Eles ficam rindo

e eu não tenho graça mais de ficar rindo mais perto dele. Aí ele lá na cozinha colocando a

janta dele, eu não sei que assunto surgiu, que ele tava rindo do Buteco, do Peixe Vivo (Bar de

Contagem), que aparece cada trem horroroso lá na porta. Tem muita gente bacana que vai.

Eles tavam rindo do povo feio que vai gorda com os peitos na barriga e não sei o que e falou

da C. minha colega, ela toda vida é mãe, é irmã, é tudo pra mim. Eu morei vinte anos no Novo

Riacho e ela me ajudou muito quando meus meninos eram pequenininhos. Aí ele falou dela, e

minha menina já falou comigo: “mãe, tudo que pai falar para te ofender, você fica calada”.

Mas tem hora que a gente não agüenta, não. (Mulher concorda) Aí na hora que ele falou da C.

me atingiu, aí eu falei com ele “não fala da C. não”. Aí o G., meu menino, riu. Ela já te olhou

Page 240: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

muito G. Quantas vezes ela ficou vigiando vocês, cuidando de vocês, quando eu quebrei

minha perna, ela fazia tudo lá em casa. Ela já me ajudou demais.

Simone: mas porque você ficou tão brava assim, porque falou que ela é feia?

Susana: no caso aí, igual tô te falando, foi onde meu menino falou “oh mãe, mas a senhora

corta o barato da gente. A gente chegou tudo feliz e alegre, não sei o quê”. Aí eu peguei e

fiquei calada. E é a segunda vez que me chama a atenção perto dele.

Simone: seu menino?

Susana: meu menino. “Aí ele ficou assim “mãe não me ignora não, fala comigo, olha pra

mim, dando uma de coitadinha”. E já é a segunda vez que ele faz isso.

Simone: ele.

Susana: meu menino, me xinga perto dele. Quer dizer por que eles não mandaram o pai deles

ficar calado, na hora que ele falou da Célia.

Simone: entendi, entendi

Susana: cê entendeu? Então quê que eu pensei? J. falei com minha menina, J. se eu continuar

do jeito que eu to aqui, eu tô com sessenta, setenta anos, fazendo as coisas, aguentando

humilhação,tolerando, ouvindo desaforo ainda.

Elis: que idade ele tem ele não é rapaz?

Susana: é rapaz, tem 21 anos, porque homem defende o pai, eles não olham igual domingo

tava lá com a namorada eu fiz uma lasanha beleza pra eles. Minha menina também tava com o

namorado. Tinha uma sobremesa bacana, mas eles não vêem isso, sabe o que eles enxergam,

principalmente rapaz, sabe o quê que eles enxerga? Eles enxergam que o pai esta dentro da

casa, que o papai assiste jogo...

Simone: o pai é legal.

Susana: não é? O pai é legal. (Mulheres concordam) A mãe? Porque que é assim Simone?

Simone: é. Porque é assim Camila?

Camila: por causa da cartilha... Você lembra da cartilha.(Falas).

Simone: você não tá fazendo nada além da sua obrigação e o pai ta fazendo uma coisa...

Camila: uma dádiva divina

Simone: o pai foi no...

Camila: o pai se deu ao trabalho de ir ao jogo comigo...

Susana: é por isso qua agora eu tomei a iniciativa, não quero mais ficar na casa...

Elis: morar junto não dá certo...

Simone: e o quê que seus filhos falaram da faixa?

Page 241: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

Susana: não eles não falam nada, a Juliana, minha moça já concorda mesmo. Meu rapaz teve

uma hora que falou que não queria ficar longe de mim, eu falei do jeito que está aqui não vai

dá. (Alguém pergunta para onde ele vai).

Susana: Eu vou para Sete Lagoas e eles vão ficar aqui com o pai deles

Camila: fala com ele: Nossa filho, você se vende por tão pouco (risos) qualquer atenção que

seu pai te dá você já fica todo abobado..

Simone: não fez nada só foi lá jogar bola.

Susana: é, pois é. (Mulheres concordando).

Camila: você se vende por tão pouco

Susana: tem que corrigir, já é a segunda vez que acontece.

Elis: mas não deixa não.

Susana: eu morro de ódio, eu não vou chorar ultimamente eu tô chorando à toa, porque você

ver um filho defendendo... Minha moça, minha mocinha vai pra cama e não fica nem a favor

dele nem a favor de mim...

Graça: melhor assim né?

Susana: agora ele não, ele faz questão (Mulheres concordando) e eu tenho a maior coisa com

ele, o maior carinho...

Elis: você tem só dois?

Susana: é.

Elis: lá em casa já é o contrário é povo que gosta de mim, é isso que tá me dando força,

porque eu não sinto mais amor não...

Susana: sabe o que é que é, é porque ele tem reumatismo, não consegue abrir uma garrafa de

café, eu é que carregava ele, eu dava banho nele...

Camila: mas é por isso.

Elis: mas eles têm que tratar ele bem então...

Simone: meu pai é doente e a minha mãe é gente boa...

Camila: minha mãe é uma fortaleza, então pra ela fazer essas obrigações é fichinha, agora

meu pai tem reumatismo, é todo fudido e vai assistir ao jogo do Cruzeiro comigo.

Clarice ri.

Camila: Ele é o máximo. (Mulheres concordam).

Simone: só pra gente entender. Quer dizer que faz diferença, igual você falou que sua família

te apoiar, igual suas filhas, isso faz diferença na hora de tomar as decisões. É isso que a gente

tem que saber. Faz diferença?

Page 242: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

Elis: muito, nossa, você me viu aqui nos primeiros dias como é que eu estava. Hoje não,

porque os meninos mesmo falam “mãezinha, a senhora não merece não, homem que te traiu,

homem que fica aprontando, a senhora não tem que aguentar isso do paizinho”. Então...

Simone: o tempo todo eles estão te apoiando?

Elis: o tempo todo, o G. nem conversando com o pai dele esta. (Susana faz um comentário

sobre casais).

Simone: mas o marido dela também não fez violência física, o marido da Elis nunca bateu

nela não.

Susana: é, né...

Elis: assim quando ele arrumava uma mulher e eu ficava falando demais. Porque tem que

falar que é santa, não pode falar da mulher não, tinha que falar que era santinha, tá indo

encontrar com a santinha, com a santa. E falava aqueles nomes que a gente fala mesmo

(Susana concorda) porque a língua é chicote do corpo, até que foi aquele dia, você sabe,a

gente fala uns palavrões, que agora não to falando mais, tô super tranquila, aí ele chegava

“para com isso, para”. Aí ele me socava mesmo, se eu não parasse, ele socava mesmo, você

lembra aquele dia (Simone lembra: é ele te machucou). Aí um dia eu peguei e falei vem para

você ver aí eu fui e dei parte dele... Tá lembrando...

Susana: eu acho que sei lá em casa tivesse tido isso quando eu peguei ele com minha irmã,

meu filho era pequeno, tinha um aninho, então eles não sabem o que é isso, se ele estivesse

agora na idade que eles estão...

Susana: mas eles sabem dessa história? (Susana concorda e Elis a corta).

Elis: ele ficou com a minha cunhada com a mulher do meu irmão, depois não sei com quem,

não sei com quem. Mas meus meninos toda vida viram essa batalha, viram o que eu passei.

Toda vida eu tive conforto, graças a Deus, nunca me faltou nada, nada, nada, nada, nem

passeio, nem coisa de comer, nada dentro de casa, então eu, dependente demais dele, quando

eu pensava em sair, sempre tinha uma coisa, sempre tinha uma coisa.

Susana: sempre aparece uma coisa.

Elis: Quando agora, que meus filhos estão casados, que eu só tô com um rapaz dentro de casa

eu pensei. Ano passado ele teve no CTI, ele é doente também, ele ficou vinte e um dias no

CTI. Nessa época ele tava com mulher. A mulher chegou a ligar pra lá e eu que atendi ao

telefone, então eu pensava ele esta doente agora ele vai melhorar. (Camila. ri). Mas e agora

ele não esta com a prima.

Clarice comenta e Simone concorda: Ele é atrevido.

Page 243: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

Elis: Mas agora mãezinha se você ficar com o paizinho você não tem vergonha na cara.

Simone: mas aqui só para continuar... Além da família, todo mundo já falou um pouco da

família. A família, os filhos, mãe, pai, é importante esse apoio. Além desse apoio o que mais

vocês conseguem pensar que ajudou vocês, de alguma forma. Não é que resolveu o problema,

mas pelo menos dá uma empurrada pra frente, que deu uma ajudada, além da família.

Clarice: o atendimento psicológico é muito importante, porque se a gente não tivesse um

(risos) não tem jeito, igual a mim, eu tava perdida assim de tudo, entendeu? E agora eu

cheguei do hospital, ele tinha tomado conta do quarto todo, tava dormindo na cama de casal.

E ele nem foi me visitar.

Simone: nem pra falar assim se tá viva ou tá morta?

Clarice: e o povo perguntou como é que eu estava e ele falou assim “não sei e não quero

saber” e diz que ama.

Simone: é te ama muito.

Susana: imagine se não amasse. (Risos).

Clarice: aí eu cheguei em casa, aí eu peguei e falei assim “eu quero meu quarto”. “Vamos

ficar nós dois no quarto”. “Não, eu quero meu quarto”. Aí ele pegou e falou assim ”eu não

vou sair, não vou tirar minhas coisas”. “Você não vai tirar, eu tiro”. Eu tô nem aí, tirei tudo,

joguei tudo lá pro lado, e peguei e falei assim, fora daqui você não entra mais.

Graça: você o tirou do quarto?

Clarice: tirei. Eu tava dormindo na rede com meu menino. (Susana ri). (Mulheres comentam).

Graça: Eu dormi cinco meses no chão.

Elis: eu não saio da minha cama não. Minha cama é sagrada.

Clarice: Foi isso que ele falou. Saí você eu não quero separar você é que quer. (Falas).

Camila: eles caem no azeite quente e fica fritando, (irônica) coitadinho...

Graça (concorda com Clarice): a terapia ajuda muito. A última vez que minha mãe teve aqui

eu tava muito deprimida.

Simone: você até chorou...

Graça: eu deprimi muito. E agora ela teve aqui de novo, sabe.

Simone: toda vez que a sua mãe vem dá uma balançada.

Graça: só que dessa vez eu vou fazer diferente. Eu contei minha história pra ela, porque “a

benção” (o marido) tá achando que eu quero voltar pra ele, porque eu não to falando em

separar mais...

Simone: Mas o que foi que a sua mãe te falou?

Page 244: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

Graça: Aí eu contei essa história pra mãe e falei o seguinte, escuta aqui ele não tem nada a ver

com a minha vida mesmo, não tem nada a ver com o sentimento dele mesmo. Eu não sei o

que vai acontecer comigo, se ele arrumar outra pessoa, eu não tenho nada a ver e eu não vou

dizer pra vocês que eu não arrumo.

Camila: aí já mudou.

Simone: que você falou?

Camila: você já mudou.

Graça: eu falei assim eu não vou dizer que eu não arrumo outra pessoa e eu não sei o que vai

acontecer, mas se eu tiver que arrumar.

Camila imitando Graça: depois de separada, eu não quero arrumar ninguém, eu quero ficar

sozinha...

Graça: Mas aí minha mãe não falou nada. Mas Graça, ficar sozinha é muito ruim.

Mulheres comentam juntas.

Simone: a sua mãe era contra você ter alguém a questão é toda essa, terminantemente contra...

Graça: ela não aceita, eu ter outra pessoa, porque é pecado eu arrumar outra pessoa.

Simone: mas você estava falando da terapia e que mais?

Graça: eu acho assim porque eu venho enfrentando ela. (Silêncio do grupo). Outra coisa eu

aprendi também, as pedras que as pessoas jogam na gente, é com elas que vou construir meu

castelo. (Silêncio do grupo)

Susana: É isso aí. Camila (imita som de violino e as mulheres riem). Graça tenta falar: porque

a minha mãe mesmo...

Elis: porque essa semana eu estou ouvindo muito o Padre Marcelo, que fala sobre traição essa

semana ele falou. (As mulheres se interessam pelo assunto e se voltam para ela).

Simone: O que o Padre Marcelo fala sobre isso?

Elis: não, ele faz as orações, as pessoas mandam, escreve pra ele, falando que foi traído,

contam casos e tem casos que é pior que o meu, tem gente que cai na bebedeira, tem gente

que cai no vício da droga por causa de separação.

Susana: é

Elis: Então, tem cada caso, sabe. Tem gente que muitas vezes não pede ajuda de ninguém e

ajuda é muito importante.

Graça: é muito importante.

Todas concordam.

Page 245: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

Elis: aqui, nossa, mas a D. e a M. pularam de alegria. Ontem mesmo a M. ligou “mãezinha a

senhora ta indo amanhã?” (na sessão do grupo). Falei “tô, tô indo”. Lá em São Paulo eu

estava lembrando de vocês eu tava nesse horário na Igreja da Sé.

Simone: bom que você não se esqueceu de nós.

Elis: Eu estava na igreja da sé nessa hora, a Igreja da Sé é muito linda, lá em SP, e eu tava na

hora fazendo minhas orações e lembrei-me de vocês aqui. Então, isso ajuda.

Simone: então você acha que a igreja ajuda?

Elis: ajuda muito, muito. Se a gente não tiver Deus menina, independente de sua religião.

Porque eu sou católica, mas a igreja católica,

Susana: tem que procurar né?

Elis: tem. Se a gente não tiver Deus...

Susana: eu, por exemplo, não tenho família aqui. Minhas irmãs, minha mãe tudo lá em Sete

Lagoas. Então o que me ajudou mesmo foi aqui, o Bem- Me- Quero. Mas mesmo assim a D.

minha colega, que trabalha lá na escolinha que me indicou.

Simone: qual que é?

Susana: ela separou.

Simone: ela é amiga de uma amiga sua, é isso?

Susana: é, a Z. agora que ela ta vendendo a casa, porque a família dele não tava querendo ele.

Camila: esse final de semana eu fiz uma coisa diferente.

Simone: o que você fez de diferente? Vamos lá.

Camila: o meu ciclo como sempre, às vezes vai mais rápido, às vezes vai mais devagar, mas

tá sempre rodando, né. Eu fui numa festa na casa, numa reuniãozinha na casa de uma prima

minha em Lagoa Santa e levei o K. Aí chegou lá e ele (imita um som de bebida), turbinou né!

Simone: qual é a novidade? Nenhuma até agora.

Camila: turbinou né! Aí começou a falar, a olhar pro R., pois é, e se ele fosse meu filho como

é que seria? Eu falei “oh, K. a partir do momento que você concordou em ficar comigo

sabendo que o R. não é seu filho, você não tem que ficar voltando nisso o tempo inteiro não...

Simone: principalmente na frente do Renan, né?

Camila: porque pro R. você é o pai dele, independente de qualquer coisa. Agora se você ficar

o tempo todo voltando nisso, você ta jogando sujo até com o menino mesmo, porque pro

menino você é e pronto e acabou. Aí ele ta. Aí a minha prima ouvindo, eu comentei com outra

prima minha isso e ela foi e contou pra irmã. E a irmã dela bebe todas e pergunta: “e o

Page 246: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

negócio do DNA Camila?”. (Susana ri). Aí eu peguei minhas coisas e fui embora, né, pra não

dá confusão...

Graça: você foi pra sua casa

Camila: não, aí ele também foi. K. vamos embora porque eu porque eu to achando que eu tô

com gripe suína...(Risos). (Simone: tudo agora é gripe suína).Tô passando mal, não to legal,

porque que eu falei que tava com gripe suína todo mundo Camila tiau (Risos) aí pegou, eu fui

embora, aí dentro do carro ele começou. Primeiro começou a implicar com o jeito que eu tava

dirigindo (imita ele falando bêbado) aí foi indo até chegar na...

Simone: que preguiça, meu deus do céu.

Camila: até chegar na 383, aí começou: “porque você Camila não tá pensando no que minha

família vai pensar de mim quando todo mundo descobrir que o R. não é meu filho, vai todo

mundo cair de pau em cima de mim”. Eu não tô nem aí pra sua família, sua família não gosta

de mim e eu não gosto deles, e cada um no seu quadrado. Por favor, me deixa dirigir em paz

até chegar em casa. Camila: Aí ele foi me enfezando, me enfezando, começou a me xingar,

falar palavrão. Aí eu disse: desce do carro, parei o carro e falei desce do carro. Eu não vou

descer não. Eu falei: dane-se, desce do carro, pega um ônibus e some da minha reta. Aí ele: eu

não vou não. Então eu vou parar uma viatura e vou pedir eles pra te convidar pra sair do carro

porque na minha casa você não pisa hoje. “Você não é mulher pra fazer isso...”. (Susana

comenta: Nossa). Aí volta aquela ladainha. Aí eu rodei Betim inteiro, quase duas horas,

procurando uma viatura

Clarice: Ai.

Camila: e nada de viatura, nenhuma viatura.

Simone: Camila que hora que você vai parar?

Clarice: o seu mal é esse, você falar, você tem que fazer calada.

Camila Aí eu falei K. desce do carro, o meu filho esta dormindo eu preciso levar ele para

tomar banho. Eu não desço, eu não fiz nada com você, me xingou toda, falou palavrão

comigo...

Clarice: eles nunca fazem nada

Camila: eu não fiz nada. Aí eu fui, parei lá na Delegacia de Mulheres. Aí tinha uma viatura lá,

um cara lá...

Clarice: uma hora da manhã?

Camila: Não, eu fiquei quase duas horas, eu saí da casa da minha prima era seis e meia e

fiquei rodando quase até dez horas da noite. Esse ciclo todo até dez horas da noite.

Page 247: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

Susana exclama: quatro horas atrás da Polícia!

Camila: e o outro me xingando, falando palavrão, pelo menos eu consegui não levar ele pra

minha casa.

Simone: qual o custo benefício disso Camila?

Camila: o custo benefício foi que eu consegui não levar ele para minha casa.

Simone: isso eu concordo, mas porque ir com ele para a festa?

Camila: foi isso que minha mãe falou comigo...

Simone: o ciclo Camila, tem que ser antes dele começar...

Camila: não é, mas aí...

Simone: não, eu estou concordando com o que você fez.

Camila: ... é que eu não levei ele para a minha casa, porque se ele fosse pra minha casa, a

gente ia discutir, nós dois ia se atracar um com o outro. (Mulheres comentam muito).

Simone: aí eu concordo, concordo plenamente.

Camila: aí eu fui pedir os policiais para tirar ele do carro.

Simone: eles foram legaizinhos.

Camila: eles foram: Ai meu Deus do céu, hoje é hoje.

Simone: ele falou isso?

Camila: ai meu Deus, porque tinha outro casal brigando, porque a menina não queria (Risos)

acho que ele tava com ciúme dela e ela tava lá na Delegacia pra falar pra ele não ter ciúme

dela. (Mulheres exclamam). Aí eu cheguei lá (Mulheres falam.). Oh meu amigo, o senhor está

alcoolizado, vai pra casa descansar, amanhã vocês conversam. Aí ele, baixinho, eu não fiz

nada com ela, (Risos) ela não quer que eu vá pra casa dela. (Risos de Clarice). Aí eu olhei

assim pra eles, fiz assim pra eles. Aí eles: não, desce do carro, por favor, e vai embora pra sua

casa. (Risos)

Camila: ali embaixo você pega o ônibus pra Belo Horizonte. (risos)

Clarice: daqui a pouco ele ia falar quem sou eu?

Camila: ... Sacanagem, pô, eu sou um cara trabalhador. (Falas).

Camila: aí eu consegui fazer uma coisa diferente

Simone: se fosse você acha que a polícia ia fazer alguma coisa. A questão é essa.

Camila: não ele falou assim você já tem ficha na polícia? Vai parar na delegacia ali, que se

bobear você é que vai

Simone: ele falou isso com vc?

Page 248: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

Camila: ele falou que não fez nada comigo, antes da gente chegar à delegacia. Você tem ficha

na polícia? Se eu falei oh K, por favor, fica calado, aí chegou lá o cara convidou ele para ir

embora, ele foi embora e eu fui embora com meu filho dormir.

Simone: e no outro dia?

Camila: não teve outro dia até agora.

Graça: isso foi que dia?

Camila: isso aí foi sábado. E aí eu consegui fazer uma coisa diferente porque outras vezes eu

levava ele pra minha casa, a discussão se estendia a madrugada inteira.

Simone: o ciclo acabou, parou no meio, não precisava ter começado; depois que começou

conseguiu parar.

Camila: é, mas eu consegui, é igual a situação lá do abençoado lá, que queria me escravizar,

igual do filme, todo mundo assistiu o filme na quarta-feira?

Elis: não, não assisti não

Simone: só ela que não assistiu. Mas todo mundo assistiu.

Camila: que tinha o advogado que queria

Simone: o advogado dela é a mesma coisa. (Falas)

Camila: aí o meu aconteceu também que ele queria que eu ficasse no lelê.

Elis: que isso!

Camila: com a desculpa de que tá olhando a minha causa, eu voltei e falei não quero, parou,

eu não quero, eu não quero mesmo.

Graça: você pegou seus papéis com ele?

Simone: você foi à Defensoria?

Camila: eu não fui porque aquele dia que eu cheguei lá, eles falaram que já tinha encerrado o

expediente.

Simone: era tarde...

Camila: é.

Simone: lá é de uma às quatro.

Graça: você pegou os papeis com ele então?

Camila: Os papéis ficam comigo, ele só fica com uma cópia, os originais ficam todos comigo.

Simone: mas o que você tá achando de ir à Defensoria?

Camila: eu vou. Porque minha irmã me demitiu esses dias, então eu tava mexendo com

FGTS, essas coisas, por isso que eu não fui lá ainda.

Page 249: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

Simone: mas vamos usar o exemplo da Camila. O que vocês acham desse exemplo da

Camila? Não a Camila, mas a situação? (Pequeno silencio)

Clarice: o que? Eu não sei do caso dela.

Simone: não indiferente do caso dela. Ela saiu com uma pessoa que ela já tinha terminado, aí

ela voltou pra ele e...

Clarice: ah, eles já tinham terminado?

Simone: é esse que ela tá contando...

Graça: mas a Camila já evoluiu bastante

Clarice: ah, não saí com quem terminou, que isso? (Risos de Susana e. falas). É a mesma

coisa de voltar no cemitério e pegar o caixão de volta, minha filha. Eu não faço isso não.

Camila: a minha dificuldade...

Susana: ainda bebe e ainda tem o vício de beber, eca!

Clarice: Tá doida...

Simone: o que você falou?

Graça: mas a maconha é difícil de largar ela, gente. Tem a recaída.

Simone: tem a recaída, mas toda semana não precisa também não.

Camila: eu tenho uma dificuldade em lidar com relacionamentos. (Todas falando juntas).

Graça: é tem uma dificuldade. (Falas).

Simone: mas é por isso que você tá aqui, né.

Clarice: eu amo muito, mas a hora que eu desamo também.

Camila: desamo!

Simone: mas você ama o K? Na sua cabeça qual o sentimento, aquela posse já abri mão dela

aquela ali não cola mais não, chega. (Risos fortes).

Camila: deixa eu ver...

Simone: aquela ali não ta colando mais não você sabe Camila, a questão não é essa.

Camila: oh Simone, numa boa eu não sei qual é o tipo de sentimento que eu tenho por ele não.

Simone: então não é amor. Você não é apaixonada por ele, perdidamente...

Camila: não...

Clarice: não é solidão não?

Camila: numa boa eu já tentei falar que eu tenho posse, eu queria controlar ele, eu tinha a

necessidade de controlar a vida dele (Clarice: gente que horror!) mas eu não sei qual que é a

nossa, não.

Simone: mas não é amor então?

Page 250: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

Camila: eu creio que não.

Simone: do jeito que você costuma amar, você não se apaixonou por ele?

Camila: não, porque ele me incomoda. É uma pessoa que me incomoda o tempo todo.

Simone: tem uma mulher que eu tô atendendo individualmente, que ela não pode vir aqui no

Grupo por causa de outras coisas e é uma pergunta que eu fiz que não é só pra ela, é pra todo

mundo: que sentimento que você tem? Aí ela disse que é amor, no caso dela que é amor, mas

não tem violência, não tem nada. Mas aí eu perguntei: tudo bem, você pode amar a pessoa,

nenhum problema, eu amo a pessoa. Mas aí eu pergunto para quê você precisa amar uma

pessoa que te incomoda, que bebe, a família não gosta de você, não é o pai de seu filho, já

chamou a polícia pra você...

Clarice: que te xinga...

Simone: que te xinga, que te “tetete-tatata”, que é a pergunta pra você Camila, entendeu? Tipo

assim, ele é ele, ele bebe, ele é ele, entendeu?

Camila: não, ele não abre mão da vida dele.

Simone: ele ta certíssimo, ele ta certíssimo, ele não tem que abrir mão da vida dele mesmo

não.

Elis: igual meu filho falou comigo, mãezinha deixa o paizinho pra lá, ele ta com mulher, deixa

ele viver a vida dele para lá a senhora já separou, a senhora tem que esquecer, mesmo que a

senhora gosta dele, a gente sabe que a senhora gosta, a senhora não tem que aceitar não, deixa

o pai viver a vida dele pra lá, porque mesmo que não tem intenção de separar porque você

esta gostando dele, ele pode até voltar um dia e quando ele voltar o cavalo dele, ele já caiu do

cavalo, entendeu? Costuma muitos separar com a idade que ele tá e com o tempo voltar, então

a senhora não tem nem que querer, mesmo que a senhora gosta do paizinho, a senhora tem

que esquecer ele, porque acontece o que? Ele, você não tem que gostar da pessoa que, você

não tem que continuar amando uma pessoa que faz isso com a senhora, que tá com outra

mulher, (Susana concorda) não têm que pensar nele mais não.

Susana: você gosta dele?

Elis: gosto. 36 anos de casado, três anos de namoro.

Susana: isso é costume. Acho que amor é só de pai e mãe.

Elis: só tive ele, só tive ele. (Falas juntas) Mas eu to conseguindo me acostumar sabe, antes

quando dava cinco horas, na hora que eu sabia que ele ia fechar a banca e ia embora meu

coração ficava fechado, começava a chorar, de manhã. Agora não, sabe, mesmo que ele não ta

Page 251: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

indo lá em casa dá sete, dá sete e pouco e ele tá indo direto para a casa da mulher que de vez

em quando ele ia ao banheiro agora ele não ta indo lá mais.

Simone: a do banheiro é ótima, tem que contar, ele ia lá fazer cocô, eu não dou conta disso

(Risos fortes de todas)

Mulher exclama: como é que é?

Elis: deixa eu explicar...

Simone: é demais pra mim, tem homem que passa no boteco

Elis: não, não é boteco não.

Simone: tô dando um exemplo, tô dando um exemplo. Não tô falando que ele faz isso não.

Porque ele trabalha na banca e na banca não tem banheiro...

Elis: e eu moro perto.

Simone: como a casa e muito perto. O SPA é 100 %.

Camila: Meu pai!

Elis: porque um dia... (Mulheres riem e falam). Simone comenta com Camila: Camila não

adianta.

Elis: porque toda vez que ele entrava lá a gente discutia, não tinha uma vez que ele não

entrava lá que a gente não brigava

Simone: claro!

Elis: agora parou de ir também. Oh, beleza! Tô tranquila, entendeu? Simone concorda.

Clarice: agora eu não faço comida, não faço janta, não faço almoço, eu estou liberta!

Susana: eu faço comida lá em casa só por causa da marmita da minha menina.

Clarice: eu? Nem marmita de menina, (Mulheres falam juntas) se quiser ela faz...

Elis: eu no meio de semana eu faço. Agora marmita eu mando pra ele também, porque eu

tenho que fazer comida pra menina de quinze anos que vai pra aula. Aí como ela já vai pra

aula, eu pego e arrumo a marmita e falo deixa lá pro seu pai.

Clarice: mas ele tenta me provocar assim, (Elis: fala junto não dá para entender).

Clarice: mas sabe como esta hoje? Ele sai do quarto dele e aí do meu quarto dá pra ouvir ele

descendo a escada, ele para em frente o meu quarto...

Simone: ele mudou pra onde você queria que ele mudasse?

Clarice: mudou para o quarto em frente.

Simone: que casa grande né? Tem vários quartos. (Falas). Um hotel cinco estrelas.

Clarice: ele foi pro quarto dos meninos e os meninos vieram pro meu quarto, e aí só a minha

menina que tá no quarto dela. Então o quê que acontece? O jeito agora de ele me provocar é o

Page 252: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

seguinte: ele sai do quarto em frente, aí ele para e fala: Deus, você está vendo que isso é uma

injustiça e eu quero que o Senhor cobre por isso. Eu saí do meu quarto sem eu querer, Senhor.

(Mulheres exclamam).

Simone: você consegue escutar isso e ficar na sua? (Mais comentários).

Clarice: não, aí me sobe aquele calor e eu finjo que eu não tô escutando. O dia que eu

cheguei, ele fez questão de falar assim: tá vendo o que aconteceu com você? Você quase

morreu... Você quase morreu foi por causa disso, é porque você está me fazendo sofrer.

Camila: fala com ele assim para ele virar profeta no meio da rua.

Susana: quantos anos têm os seus meninos?

Clarice: meus meninos, um tem vinte, a menina tem vinte e um, o outro tem dezenove e o

outro tem doze.

Susana: tá tudo grande.

Clarice: mas assim o de doze ele fica revoltado e ele responde.

Susana: sempre tem um né?

Clarice: ele responde, ele não aguenta, ele fala: mãe que canalha! Tá aqui dentro de casa, tá

comendo, tá bebendo e ainda fica enchendo o raio do saco...

Susana: é dureza né?

Clarice: Entendeu? Aí eu falo meu filho, deixa pra lá, sabe. Foi ele que foi pro hospital

comigo, esse de doze anos.

Simone: esse de doze anos é o cara.

Clarice: ele que me levou pro hospital, ficou comigo lá até sair a vaga da internação.

Simone: ele tem doze anos, ele é criança, ele não é adulto. (Clarice e Susana concordam).

Clarice: doze anos, ele não teve, eu falo que ele não teve infância. Isso assim é o que mais me

entristece, porque eu queria que... (Susana concorda sempre com ela).

Susana: por uma parte é boa por outra já é ruim.

Clarice: ele não teve infância, ele sofre porque o pai dele não dá a mínima, não dá atenção,

não leva ele pra passear, entendeu? Então, ele sofre. No dia dos pais agora, ele chegou pra

mim e falou assim: pois é né mãe, eu não tenho nem um pai pra poder dar presente, aí eu: eu

sou seu pai e sua mãe, então pode vir aqui que eu sou seu pai e sua mãe. Aí ele falou assim:

oh mãe nem bigode você tem. (Risos)

Simone: pai sem bigode pronto.

Clarice: ele queria um pai de bigode.

Camila: é bom vc estar me falando disso

Page 253: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

Simone: imagina o seu filho (de Camila) daqui doze anos te falando: é mãe nem pai eu não

tenho para...

Camila: Mas ele não vai ter mesmo

Simone: mas nós já falamos disso...

Clarice: aí outro dia eu peguei e falei com ele assim qualquer dia nós vamos na Praça do Povo

e nós vamos chegar e falar assim: atenção J. H., o pai dele dono da imobiliária, você está em

falta com seu filho (Risos). Aí ele falou assim: oh mãe eu posso fazer isso? Claro meu filho,

você tem todo o direito de fazer isso, ele não é seu pai? Uai!

Simone: é por que faz falta, a gente teve altas discussões aqui, é assim, a gente usou o seu

caso (Camila) porque ele tá pequeno ainda, mas é lógico que você vai escutar, mas você falou

que você tá aqui pra isso não acontecer.

Camila: é.

Susana: agora mudando de assunto eu não acredito que existe amor entre homem e mulher

não.

Simone: essa desiludiu de tudo, desiludiu total. (Clarice ri).

Elis: eu acho também. Eu acho também. O meu...

Susana: é costume. (Falas)

Susana: amor é Deus, pai, mãe e os filhos.

Elis: mais é mãe.

Clarice: o meu não é amor, o meu é resto de loucura.

Susana: pois é.

Clarice: porque ele falou que não pode fazer sexo com ninguém que não seja comigo. (Falas

altas).

Susana: sabe aquele Antonio Roberto, sábado mesmo ele estava falando, do pedaço da

laranja, como é que é alma gêmea. (Clarice: não existe isso não de... falam juntas).

Simone: o quê que o Antonio Roberto fala?

Graça: Mas o Antonio Roberto fala que mulher faz sexo porque quer carinho...

Simone: gente, por favor, escuta o padre Marcelo, mas não escuta o Antonio Roberto

Graça: eu gosto dele.

Clarice: aquele Antonio Roberto é um charlatão. (Todas falam muito alto opinando).

Graça: então deixa eu te perguntar uma coisa.

Simone: Se você for comprar um livro de auto- ajuda compra de outra pessoa, não dele.

Clarice: ele é um charlatão. Tudo aconteceu com ele, ele passou por tudo. (Risos e falas)

Page 254: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

Camila: não tenho paciência, não. Até corto... (fazendo gestos de cortar o pulso).

Susana: o que?

Camila: os pulsos. (Falas altas).

Clarice: sabe, por quê? Ele falou que todo mundo é um perdedor. (Risos). Eu não sou

perdedora, não

Simone: ele falou isso?

Clarice: falou.

Simone: desse jeito? (Falas confusas).

Elis: ele quis dizer que uma mulher, todo mundo perde (Muito confuso)

Clarice: não, não.

Elis: porque todo mundo sente atração, no princípio sente aquela atração e aí vai e casa.

Susana: é.

Elis: e aí vai se acostumando por que aí vêm os filhos.

Su: vem

Elis: porque se fosse assim não existiria traição, se fosse amor de verdade. (Susana concorda

com todas as colocações de Elis.). Um ia cuidar do outro,

Simone: não ia ter violência. (Elas falam alto).

Simone: não ia ter sangue. Eu te amo tanto que eu vou até te matar. (Elas falam muito alto

concordando).

Elis: eu acho que é atração,depois quando a pessoa casa gosta, gosta depois a pessoa morre e

fala eu não vou ter outro. Aí passa um ano não esta casando outra vez, esta gostando de outro

está feliz. É atração.

Graça: mas no começo a pessoa fala que...

Susana: não existe amor não.

Simone: deixa a Nina falar. Você está falando muito hoje viu Nina.

Susana: é, tá.

Graça: Simone deixa eu só fazer uma perguntinha, porque que o filho, igual por exemplo o

meu, fez doze anos, tudo ele vem falar comigo, se é pedir dinheiro ele vem falar comigo?

Simone: F. T. você já ta grandinho.

Graça: mas por quê? Tudo por quê? Ás vezes saiu e fez compra: oh mãe você compra tal

coisa assim? Meu pai comprou o negócio que eu estava querendo aqui à tarde? F. T. pergunta

o seu pai. Porque ele vem a mim?

Simone: você sabe por quê.

Page 255: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

Graça: tudo sou eu, sabe, até uma coisinha que ele queria comprar e tava junto do pai dele: oh

mãe, meu pai comprou aquilo pra mim, que eu pedi? Você tem que perguntar pro seu pai.

Simone: você tem que ensinar ele a perguntar. O porquê você já sabe.

Graça: mas tudo é pra mim, tudo que ele quer é comigo, ele não fala nada com o pai dele.

Simone: mas ele foi criado assim, agora vai mudar depois de doze anos num plim?

Graça: eu que criei ele assim?

Simone: eu não fui. Foi você Camila?

Camila: a primeira vez que você veio no grupo você virou e falou assim: eu que tenho que

tomar a frente de tudo, eu indico tudo, até a rua que ele entra que ele sai com o carro.

Simone: quem o pai do...

Camila: é. E ele aprendeu...

Graça: que ele é dependente... (Falas).

Simone: então, o importante é que ainda tá em tempo.

Graça: se o pai fica com o dinheiro, porque que tem que pedir dinheiro a mãe? Não sou eu

não? (Mulheres falam do assunto baixinho).

Susana: é minha filha, mas tudo é a mãe.

Simone: mas criou o filho assim...

Susana: é a mãe que criou com aquele jeitinho assim. (Falam juntas).

Simone: pergunta para o seu pai, pergunta para o seu pai. Tem que mandar perguntar, ainda

mais que já tem doze anos, ele já pode realmente perguntar. (Falas baixinho).

Simone: Nina você não quer falar porque está triste, está doente, está de mal da gente, o quê

que foi?

Nina: tô morta.

Graça: A gente tem recaída, é normal. Tem que desabafar, para mostrar que tá lutando.

Elis: você lembra aquele dia que eu vi você aqui de manha, aquele dia eu estava mal né?

Simone: antes de viajar né,

Elis: é antes de eu ir para a casa das minhas filhas.

Simone: não, tá mal é normal.

Camila É o primeiro passo pra gente sair da nossa, do nosso, como é que fala? Como é que

chama aquele negócio do... (Simone: lá vem ela com as idéias) nosso mangue! Mangue não é

um local cheio de lama, cheio de tudo?

Susana: é que atola... Vai atolando.

Simone: qual é o primeiro passo Camila?

Page 256: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

Camila: É a gente não sentir dó da gente mesmo.

Susana: isso mesmo!

Camila: o textinho da vítima é claro com relação a isso. A gente não sentir dó, quando a gente

se sentir fraca, a gente tem que ressurgir das cinzas. Opa! Eu sou a mulher maravilha.

Clarice: rainha maravilha!

Eliz: até no padre eu fui, conversar com o padre da igreja ali, que eu tava tão mal, tão mal,

sabe?

Simone: tava mal quer dizer o que? Tava sentindo dó de você? O que você tava sentindo?

Elis: tava assim sabe, com dó de mim. Tava murcha, depois de tanto tempo, de tantas

batalhas, trinta e tantos anos, quase quarenta anos com o cara e o cara não ta nem aí...

Simone: tava com uma dozinha danada de você.

Elis: é. (Risos). Aí eu peguei e fui lá no Padre e ele me deu uma força. Ele é muito bom pra

conversar com a gente, sabe aquele do...

Camila: eles mudaram o Padre dali que ele estava dando muito prejuízo para a Igreja. (Risos e

falas).

Simone: o que ele falou? Vamos ver. O que ele falou?

Elis: ele falou que não era pra eu ficar, porque que eu tava sofrendo? Porque que eu tava

chorando? Se eu não fiz nada de errado, se quem fez errado foi ele? (Mulher concorda). Você

não tem que chorar quem tem que chorar é ele. Não tem que ficar triste não, tem que pensar

na vida. Ele simplesmente ficou gostando da prima dele lá e tal e me largou, foi embora.

Deixa ir, deixa ir... Um dia... (Falas). Igual todo mundo fala ele tá se achando, ele tá se

achando, na hora que ele cair do cavalo, aí ele vai ver, aí é você que não deve aceitar,

entendeu? Se você aceitar também... Então ele falou também não tem que ficar...

Simone: então o Padre falou mais ou menos o que a gente fala aqui, mais ou menos igual?

Elis: é

Graça: é. Segue sua vida.

Simone: vai lá Camila. (Elis continua).

Elis: é. Vai viver sua vida, não fica chorando não, sabe? E eu só de falar para o Padre eu tava

chorando, depois sai de lá até... Comecei meu curso pra cuidar de idosos, sábado, fica o dia

inteiro...

Susana: aí. (Falas concordando).

Graça: eu também tudo quando é reunião...

Page 257: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

Elis: eu fico sábado o dia inteiro lá no curso. É sábado de manhã, começa oito e vai até quatro

horas da tarde.

Susana: oh, que bom! Faz falta, né...

Graça: eu tô pegando o ônibus e tô adorando. (Falam juntas)

Simone: você tá gostando de fazer?

Graça: ah, eu tô gostando, amo. É uma maneira de sair da rotina sabe. É muito bom, sabe? É

um ambiente muito bom, sabe.

Elis: o que?

Simone: ela está participando de todo o movimento político de Contagem.

Graça: mas é muito bom, muito bom. Eu fiz parte da Conferência Municipal de Assistência

Social, nós ficamos um dia todo no SENAI, no SESC/SENAI, tava ótimo viu!

Camila: você se achou?

Graça: eu acho bom, aquela mulher que ficava muito ali, embora isso esteja incomodando

demais.

Simone: é claro.

Graça: meu filho até falou, mas, eu não estou importando muito com isso não. Eu estou

fazendo uma coisa que eu gosto eu realmente.

Simone: Como é que seu filho falou com você?

Graça: ah mãe, agora não estou tendo mãe mais não...

Camila: é porque eu fui acostumada

Simone: é porque está assustando porque é uma coisa diferente...

Graça: enquanto, como se diz, eu não estiver trabalhando fora e puder fazer uma coisa útil, eu

estou fazendo, eu gostei disso...

Mulher: deve ser porque ele está acostumado a chegar a casa e achar a mãe lá em casa.

Clarice: ele quer a mamãe em casa. (Falam juntas concordando).

Simone: fazendo lasanha.

Camila: lasanha boa.

Simone: salada de frutas. (Falas).

Graça: ele pegou o carro de um colega dele e queria ir pro clube. (Elis: mulher é boba demais,

mulher é a coisa mais burra que tem). Um frio e tudo. Eu falei B. (Graça tem a fala

entrecortada por Eliz e Susana).

Elis: tudo que mulher faz tá errado, homem nunca tá errado.

Page 258: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

Susana: você tá assistindo aquela novela Caminhos das Índias, você não assisti não? Você

assisti?

Camila: qual?

Susana: Aquela menina que, daquele careca lá. Você viu o conselho que o cara deu pra ele lá

no hospital. Não faz isso não, sai, pega a moça bonita e tudo.

Simone: como é que é? Ele saiu com a mulher, deu errado?

Susana: a esposa dele traiu ele.

Simone: ah, ela traiu ele.

Susana: aí na hora que chegou no escritório, aquela briga, aquela confusão,

Graça: que ela contou pra ele, que tinha traído ele.

Susana: é. Aí o marido dela ficou ameaçando. Aí o quê que aconteceu? Chegou o outro cara

lá, eu assisto novela, mas não sei o nome de ninguém, e falou não fica assim não, vai arrumar

outra mulher.

Graça: aquilo é safado.

Susana: então pra homem é normal.

Elis: aquele homem é safado pra danar, né.

Susana: eu assisto aquela novela e não assisto sabe?

Elis: eu assisto filme, de noite, tranquila...

Clarice: eu não assisto novela não sabe por que eu acompanho novela quando chega no último

capítulo eu não consigo acompanhar.

Simone: mas eu não tô entendendo, quando vocês fazem essas coisas assim. Vocês falaram da

família, falaram do atendimento psicológico, aí eu posso juntar aqui, por exemplo, quando

vocês estão assistindo uma novela, quando vocês estão assistindo um filme, quando estão

lendo um livro, e quando vocês estão em um movimento, participando de uma coisa coletiva,

fez um curso e tal. Isso também ajuda. Eu quero entender isso.

Graça: ah, ajuda. É muito mais gostoso fazer o que você gosta.

Elis: Ficar dentro de casa não dá. Quem tá com problema assim igual eu passei, tô falando pra

Nina para ela arrumar uma coisa pra fazer. A Nina está precisando fazer alguma coisa.

Graça: que nem eu!

Elis: a Nina não tá fazendo nada.

Camila: o provérbio diz mente vazia ocupação pro diabo.

Susana: e não é verdade? (Falam juntas do mesmo assunto).

Elis: quando a gente tá assim nem a casa a gente quer arrumar Simone, impressionante.

Page 259: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

(Muitas falas). Elis repete: nem a casa a gente quer arrumar. Clarice: quando eu tô assim...

Simone conversa com Nina baixo.

Nina: eu dei o jeito que eu tinha que dar. (Falas).

Graça: igual no ônibus quando a gente sai, mas é uma brincadeira gostosa, aquilo ali levanta

sua alto estima, tudo saudável, tudo gente...

Susana: nada daquelas cabeças fracas. (Falas).

Graça: aí quando são dez nove horas eu ligo pro meu menino vir me buscar.

Nina: oh Simone, eu ia te falar, já que você quer que eu fale, desde aquela outra quarta-feira...

Simone: fala

Nina: já que você quer que eu fale, eu vou mudar de assunto... (Todas as mulheres e Simone:

fala, é bom falar mesmo.)

Nina: naquela outra quarta-feira eu ia te falar, geralmente igual como a gente viu no filme,

você viu lá que a mulher nunca tinha trabalhado fora, nunca tinha feito nada. Geralmente

acontece isso com a maioria, que eu tenho percebido a maioria às vezes não tem uma

qualificação nem nada. (Mulheres concordam). A gente podia aproveitar o Espaço aqui. Eu

não sei se pode, pra gente também aprender a dividir isso, o que uma sabe fazer dividir com a

outra, porque às vezes a gente. Sei lá a gente monta alguma coisa de artesanato...

Simone: vai ter...

Graça: que legal!

Simone: vai ter, já fizeram até o papel. Mas vão ter várias oficinas, creio que o ano que vem

ainda, mas vão ter várias oficinas internas pra ensinar mesmo...

Graça: porque quando eu entrei aqui tem um ano e eu não fui chamada...

Elis: você viu „O Divã‟? (Pergunta para Nina e começa a conversa paralela com ela baixinho).

Simone: agora vai ter. Na verdade, porque esses cursos é uma falha da Rede. Cada curso é

patrocinado por uma situação, por uma Secretaria, tem a...

Graça: por empresa também.

Simone: empresa não dá curso de graça. Agora vai ser patrocinado pelo Espaço Bem-Me-

Quero, pelo projeto deles. Tem até uma mulher que trabalha aqui comigo que se ofereceu pra

dar aula de dança pra vocês...

Graça: de forró? Nossa eu tô querendo fazer. Eu nunca dancei forró. (Falas).

Nina: por exemplo, eu faço Photo Shop, sabe? Que faz com máquina digital, aquela que a

gente vai lá no Extra (supermercado) revelar as fotos e eles colocam as fotos na moldurinha e

tem das princesas, convite de aniversário, sabe? Eu sei fazer isso, eu não fiz nenhum curso, eu

Page 260: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

aprendi sozinha, aprendi mexendo na Internet, mas é uma coisa que eu gosto de fazer e que eu

gostaria de ensinar pra quem quisesse aprender.

Graça: você trabalha com isso

Nina: então eu gosto muito disso, gosto de tirar fotos, gosto de fazer...

Simone: Photo Shop?

Nina: é. Então eu tenho interesse de ensinar pra quem quiser aprender. Então, às vezes, você

sabe fazer alguma coisa que eu não sei... (Mulher: boa idéia). mas que de repente ia me gerar

uma renda ou uma distração, então eu achava legal a gente compartilhar.

Simone: tirando as coisas que dependem do Espaço, a gente pode fazer coisas por conta

própria, qualquer ideia que é bem vinda, aceita, a gente pode por pra frente, não tem essa

coisa de ter que esperar o Espaço tomar a iniciativa. Isso é até uma das idéias do grupo.

Graça: é uma boa idéia.

Simone: porque um grupo existe, é pra gente ter idéias novas, porque se for pra gente ficar

sempre na mesmice daqui a pouco a gente, igual ela falou vira...

Nina: porque a Prefeitura trabalha com a inclusão digital, então se tem se tem uma forma de

dar um curso de Informática e ao mesmo tempo a Prefeitura abrindo espaço, às vezes, pra

gente estar até trabalhando de contrato em algum órgão, eu acho que...

Simone: todas as idéias têm que ser ditas, colocadas pra fora, vai que é possível, infelizmente

nem tudo dá de primeira, mas entre a gente eu acho possível, de repente em outras

instituições... (Mulheres concordam). Mas acho importante, que assim temos outras

ocupações, digamos assim além das ocupações...

Nina: tem muita gente boa, que tem vontade de vir, ajudar voluntariamente falando, igual

professor de Dança, professor de Inglês, sempre tem alguém que tem vontade de ajudar. Eu

acho também que é porque eu tô tão morta, que eu acho... (Risos).

Graça: mas isso vai passar. É questão de tempo.

Nina: meu ex está me aporrinhando tanto, que eu tô preferindo nem falar pra não chorar mais.

Então, se a gente ficar falando aqui batendo toda quarta-feira na mesma tecla, (Susana

concorda) toda quarta eu saio daqui ou chorando ou rindo

Camila: mas isso faz parte, eu e ela, tem um ano que nós estamos aqui. Um ano e...

Graça: tem mais. Eu entrei em maio (fazem as contas)

Nina: mas tem mais coisas né...

Simone: é aquela coisa, a terapia é uma das coisas, eu tenho muito claro na minha cabeça e eu

acho que vocês também têm a terapia não é a única coisa que você faz pra melhorar. (Nina:

Page 261: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

com certeza.) A terapia é mais uma coisa.

Elis: olha o tanto de coisa que eu fiz.

Simone: é viajar, é sair, é encontrar com a família, a terapia é mais uma coisa...

Clarice: cada santo com o seu dia, porque não adianta nada você não chorar aqui e chegar em

casa você desabar.

Graça: eu acho importante, o que a Simone fala, dá vontade de falar, fala, dá vontade de

chorar, chora, desabafa. Isso é muito importante, se não você fica segurando e isso fica te

fazendo mal. Se você sente que a fase de chorar passou, então vamos para a outra fase.

Nina: exatamente.

Simone: porque chorar é um momento, a gente sabe que chorar não vai adiantar, mas...

Camila: ah, eu penso assim a gente tem que dar tempo pra gente. É igual quando a gente está

num momento de convalescença (risos), você tem aquele momento que você tem que dar

tempo pro seu organismo se recuperar, entendeu? (Mulher concorda) Então é a mesma coisa

quando a gente sofre uma desilusão muito forte, eu acho que o nosso organismo fica

debilitado, então eu acho que a gente tem que dar tempo pra gente mesmo... Quando você tá

sentindo aquela fadiga, aquele cansaço, aquele mal-estar, aquela falta, aquela vontade de que

um caminhão passe em cima de você e acaba com tudo. Aí você fala assim: gente eu vou

parar um pouco e vou deixar meu organismo recuperar, pra daí a pouco eu consegui ressurgir

das cinzas e dar a volta por cima. Então, se a gente ficar afobada, eu já tive muito isso de ficar

afobada, gente eu tenho que parar de chorar, eu tenho que parar de chorar, eu tenho que parar

de chorar, entendeu? (Risos) Eu tenho, eu aprendi a dar tempo pra mim mesmo, hoje eu não

choro mais, hoje eu até me divirto. E olha que a minha vida tá uma loucura, mas eu não tô

mais deixando meu organismo sofrer tanto igual eu deixava, porque eu dei um tempo pra ele

respirar e chegar nesse nível. Não tô curada não, mas tô aprendendo a manejar mais pra não

ficar sobrecarregada...

Simone: então eu acho que é por aí mesmo, sabe Nina, chorar, não tem jeito de não chorar, a

gente chora mesmo, não existe um horário pra chorar...

Clarice: cada um tem as suas coisas, né? Ela preferia que o marido tivesse e eu tô doida pro

meu sair. (Risos de Susana).

Elis: eu queria que se o meu não tivesse problema eu queria que o meu ficasse também sabe,

eu acho que o casamento, sabe que o casamento está dando muito problema desde o mês

passado.

Simone: ele já te traiu quantas vezes mesmo?

Page 262: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

Elis: várias vezes, mas assim poderia ter durado. (Clarice fala junto). É mãezinha ele já tá

acostumado é capaz de pai voltar e a senhora aceitar ele de volta e depois ele fazer a mesma

coisa. Aí agora Graças a Deus saiu, ele nunca tinha saído, nunca...

Susana: ele que quis sair da casa? Não, né?

Elis: uai, teve que sair porque o negócio ficou pesado para ele. Encontrando com a prima dele.

(Falas). Ele ficava no quarto do lado e ligando pra mulher e ligando pra mulher. Aí um dia

meu rapaz falou, um dia cismou né: “para, para com safadeza, minha mãe não merece isso

não”. (Muitos comentários).

Graça: porque homem tem que respeitar mais é homem?

Elis: meu rapaz tem vinte e três anos e as meninas começou também né? As casadas

começaram também a gelar ele, falando com ele e depois também um dia ele tava no telefone

com mulher.

Simone: porque ele não quer?

Elis: não quer não. Aí um dia ele pegou e tava no telefone lá, eu peguei e fui falar com ele pra

parar com aquela safadeza lá que parece que ele tinha telefonado pra mulher ou recebeu

telefone dela. Aí ele eu já desliguei, já desliguei, tava no quarto, porque ele fica só sentado no

quarto. Aí eu peguei e fiz assim pra ele (levantou a mão), sabe. (Simone: você bateu nele?) Aí

ele pegou e me deu um soco. Me deu um soco, eu peguei e chamei a Polícia, chamei mesmo

sabe, depois eu falei, eu passei aperto com um pessoal lá, falei que eu não chamei não, mas

chamei só que a Polícia não foi...

Simone: agora ele tá morrendo de medo. (Comentários).

Elis: mas ele correu na hora. Ele fugiu minha filha.

Camila: ainda bem que ele correu porque se não ele ia ficar safado. (Falas).

Elis: a menina falou com ele de Polícia você tem medo né? Mas ele não quer largar não

Susana: ele não quer largar não mesmo para que?

Elis: não quer não

Susana: ele quer a empregada dele, vai almoçar, não é? Chega tá tudo arrumadinho, limpinho,

comidinha, tem jantinha novinha...

Clarice: eu já parei por aí, minha tentativa é...

Elis: aí sabe o quê que ele falou? Que eu pus ele pra fora, que agora ele não vai voltar mais

não, que eu não quero, mas ele tem que parar com essa safadeza de ficar ligando para mulher

ele pode até ficar lá no quarto.

Simone: ele lava a roupa dele? (Perguntando para Clarice).

Page 263: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

Clarice: ele lava

Elis: Aí ele ficou lá reclamando lá com os vizinhos. Aí eu falei assim, ele falou que não vai

voltar mais não porque ela já me expulsou de casa, já cismou comigo, que os meninos não me

querem mais. Aí eu falei ninguém tá querendo mesmo não, pode ficar quietinho onde você tá

Mas depois eu chorei também, fiquei nervosa.

Simone: mas pode chorar depois. (Falas).

Susana: eu não sei como eu consigo que eu não pulei em cima dele ainda.

Simone: mas aqui só pra gente retomar o que a Nina falou, que eu acho que a gente tem que

tomar cuidado. E outra coisa que eu quero explicar também que eu acho meio complicado.

Aqui lógico que é uma terapia, claro que é terapia, é um grupo terapêutico e tal. Mas o fato de

ser um grupo do jeito que eu, do jeito que eu me proponho a apresentar não é simplesmente

terapia, a proposta, eu sempre penso, é o que? Aprender a criar formas de sair da situação de

violência. Então é terapia, lógico, mas tem um caráter, digamos assim, de aprendizagem,

também é pra aprender. Então assim, tudo isso que a gente fala; tudo que a gente conta; que a

gente repete, que a Camila: falava que repete. (Camila: tem que dar um tempo para o

organismo). Às vezes tem que repetir aquela história porque tem aquela coisa assim, que nem

Freud falou, se você não, tipo assim, esquece, mas tá aqui o inconsciente o tempo todo

trabalhando. Então se você não trabalha, trabalha terapeuticamente, você não fala do assunto,

você não chora, não atua sobre aquilo, vem o sintoma. Aí o quê que vem? Vem infecção, tem

gente que dá gripe, tem gente que da diabetes.

Susana: minha mãe tá lá com Parkinson...

Elis: o câncer né? Essas coisas de estresse...

Susana: o médico fala que o Parkinson é nervo, ansiedade, que ela sofreu calada, sozinha,

sabe? Ali ela ficou tipo que é um nervo que explode, estoura na cabeça e descontrola a pessoa.

Simone: e fora os sintomas psicológicos também vem a depressão, vem a ansiedade. O que é

a depressão? O que é ansiedade? A gente não consegue resolver...

Susana: o que minha mãe passou, eu tô fazendo de tudo pra não passar, você entendeu? Eu já

tenho exemplo na minha família gente, pra quê que eu vou fazer. Minha mãe até hoje fala: faz

por onde conviver. (O grupo explode em comentários).

Simone: essa frase mata né...

Susana: ela acha um horror eu estar separando, (Mais falas). minha vó ta lá com depressão...

Elis: eu não achei ninguém que falasse isso comigo, era eu mesma que tava boba.

Simone: você não acha ninguém não, você mesmo falou.

Page 264: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

Elis: é, ninguém, é isso mesmo. Deixa de ser boba!Larga esse homem, já te traiu. Todo

mundo, não teve essa pessoa, é família, é família dele, também, até a minha sogra.

Simone: então pronto.

Elis: você não é a primeira mulher separada, você não vai ser nem a primeira e nem a última.

Clarice: eu achei alguém pra falar comigo, faz por onde.

Simone: quem falou com você?

Clarice: a irmã dele.

Camila: leva para você. (Risos e falas).

Graça: oh Simone, agora tem uma coisa, a minha, eu cuido um pouquinho da minha avó. Tem

que dá muita atenção, mas depressão pode ir anos. Eu tenho que cuidar um pouquinho da

minha vida, tô mais feliz, mas ela não ta aguentando, ela tá falando, a minha ausência ela tá

para morrer. Ela mandou dar recado que ela não tá conformando coma a sua ausência. Gente,

eu tenho muita coisa pra fazer, ainda mais agora que eu mexo com política. Ei a minha vó aí

eu falei: crucifica- me rindo (Falas e risos).

Simone: essa foi boa falou igual à Elis (outra participante) crucifica-me, crucifica-me.

Graça: Eu tô vivendo a minha vida, né tia. Mas ela tá com depressão, mas a minha vó é muito

fechada, muito conservadora. Outro dia ela falou uma coisa, minha tia me contou, me deu

uma vontade de rir, até minha tia deu vontade de rir. O quê que ela falou pra mim gente? Eu

não ri na hora não, mas me deu uma vontade tão grande. Imagina depois que a gente já ta aí

velha, assim tudo, problema de saúde, o pessoal não respeita mais a gente, vê o que

aconteceu. Porque o meu avô dá banho nela, mas pra me dá banho e ele tava de bermuda e

molhou e eu tava terminando de enxugar e ele tirou a bermuda perto de mim e tomou banho

junto comigo. (Simone: não era o marido dela não?). Graça: Ele não me respeitou. Eu nunca

tinha visto ele nu.

Mulher: mas ele era o pai dela?

Graça: Não é o marido dela é o meu vô e minha vó. O meu vô dando banho na minha vó.

(Susana: ri).

Camila: ai meu Deus do céu. (Risos).

Graça: ela viu pela primeira vez, ele não respeitou ela. Quando a gente fazia as coisas, a gente

fazia as coisas no escuro. (Falas e risos).

Simone: coitada da sua vó!

Graça: ela é muito conservadora, por isso que ela ta com depressão. Ela não aceita uma

brincadeira, uma piada. Ela não gosta de...

Page 265: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

Simone: mas nem com o marido dela é demais. (Falas).

Graça: porque ele vê a perereca dela todo dia dando banho nela.

Mulher: oh dó!

Simone: mas uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa.

Graça: porque ele não respeitou ela, sabe, tirou a roupa junto com ela.

Camila: até pouco tempo os filmes mostravam só a parte de mulheres, a parte do homem não

mostrava não.

Simone: como é que é o negócio?

Camila: antigamente, nos anos setenta, os filmes pornográficos não mostravam o homem, só a

mulher...

Elis: só mostrava atrás.

Camila: o homem só mostrava a perna e a bunda...

Simone: gente vamos pensar!

Camila: eu acho que é isso que eu discuto aqui o tempo inteiro...

Clarice: como é que é?

Camila: o homem está acima do bem e do mau.

Simone: exatamente.

Clarice: eu fiquei pensando naquela novela de época que na hora do ato...

Camila: eu vi um filme dos anos setenta, aquela mulherada... (Risos).

Simone: aparece ela pelada e o homem não.

Camila: ela, em baixo e tudo, e o homem só assim na lateral dele, só no movimento. Eu fiquei

gente, mas por que...

Simone: pornográfico, dos anos setenta.

Camila: anos setenta, mas é só a perna e um pedacinho da bunda.

Clarice: é o marido usa um macacão bem coladinho, até lá em baixo...

Simone: só com um fecho. Na verdade o corpo do homem é ou era não sei se é ainda, mais

resguardado, é mais respeitado.

Clarice: eu fico me perguntando assim nessas novelas de época, como é que eles fazem o

negócio, por que...

Simone: é igual a vô dela tá falando aí, ninguém vê ninguém não...

Clarice: no escuro.

Simone: no escuro. (Falas).

Elis: minha tia fala que ela nunca conheceu o corpo do marido dela também não.

Page 266: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

Simone: nunca viu no claro.

Elis: nunca viu, nunca viu.

Clarice: nossa coitada!

Camila: agora eu to entendendo porque aquelas obras fazem tanto sucesso.

Simone: pior que ela é do século...

Clarice: que obras?

Camila: as obras de Michelangelo que ele ousou mostrar o dito cujo dos homens, nas obras

dele.

Simone: isso foi há séculos.

Clarice: exatamente.

Simone: contar um caso interessante. Eu acho que eu contei que eu fui ver um filme normal,

de comédia, romance, bobeira. Coloquei lá e tô com aminha filha sentada no sofá. Nesse dia

até eu senti um impacto do corpo do homem. A gente tem que pensar nisso. Aí o filme inteiro

era assim comum, romance, não tinha nada de sexo. Aí nos cinco primeiros minutos do filme,

o cara aparece nu, o ator, um novo agora, nu, totalmente nu e a minha filha assim, porque ela

não tá acostumada, lógico, a menina tem sete anos, é pequena. Mas eu achei graça, porque era

um filme que não era de sexo, não tinha nada a ver e tal. Aí eu fiquei: o que eu falo com ela

agora? Porque eu sei que ela já tinha visto, mas foi um momento assim, a primeira vez que ela

viu mesmo.

Clarice: nossa

Simone: eu pensei acabou, né? Aí não passa nem três minutos de novo o mesmo homem.

(Mulheres exclamam: que filme é esse? Oito horas da noite).

Camila: tá me quebrando esse filme

Simone: aí eu falei: minha filha, por favor, para o seu quarto aí ela foi. Mas depois eu

conversei com ela e tal. (Risos).

Clarice: sete anos, não tem uma cartilha não? O menininho pelado...

Simone: não, ela tá muito pequena acabou de fazer sete.

Simone: ela sabe o que o menino tem, mas ali era o do homem adulto. (Mulheres concordam

com falas e risos).

Camila: é igual quando eu tinha quatorze anos que eu disse não acredito que isto tudo entra na

mulher! (Muitos risos). Quando eu vi pela primeira vez um ao vivo e a cores. Eu não acredito.

Simone: o filme chama “Uma ressaca de amor”. Aí eu vi que tinha na TV a cabo né e aí eu

pensei o filme me quebrou mesmo. Aí passou uns dias e repetiu o filme, o final do filme de

Page 267: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

novo, o filme é muito ruim. A minha filha comigo e aí passa a mesma coisa. (Mulheres

exclamam).

Simone: porque o filme era assim, não tem nada a ver. Aí ela falou assim: aquele filme de

novo mãe?(Risos).

Simone: o mesmo ator, o mesmo homem, o mesmo tudo.

Graça: era o mesmo filme?

Simone: era, porque repete né? A TV a cabo repete. Aí eu vejo as datas. (Falas). O mesmo

homem pelado. É necessário que a criança veja algum dia, mas causa um impacto, causa um

impacto quando um homem tá nu, não é comum você ver nem em filme...

Clarice: até ele de costas causa um impacto.

Simone: ontem eu vi um, aí só, só a parte de cima, porque eu acho que o corpo da mulher é

uma coisa, o corpo da mulher é objeto mesmo, pra por lá e vender.

Camila: nós nos acostumamos com isso, com o corpo da mulher exposto. (Mulheres

concordam). E o corpo do homem mais reservado, né?

Simone: eu acho que tá mudando assim igual, por exemplo, esse filme é novo, esse filme que

eu tô falando é recente, é de dois mil e oito, agora.

Mulher: é, hoje em dia já assim, mas agora, eu entendi...

Simone: mas o filme é o seguinte é o cara que entra em depressão profunda assim de não sair

da cama, de ficar deitado o dia todo porque a namorada largou ele. Aí a história vai rolando,

rolando, rolando, assim nada a ver, porque o problema de televisão é esse, não tem nada a ver

a história e aparece o homem pelado.

Nina: ele ficou tão deprimido que ele não vestia nem roupa. (Risos).

Graça: sabe aquela novela „Pantanal‟? Que ele foi pular na água nu? Portanto ela era dez e

meia da noite por quê? Porque o homem foi pular na água nu e aí apareceu o pinto dele.

Nossa, aquela novela minha mãe não deixava eu assistir aquela novela de jeito nenhum.

Camila: eu sempre perguntava o que aquelas obras do Michelangelo fazia tanto sucesso

Simone: que novela

Graça: Pantanal.

Camila: agora trazendo, transferindo aquilo tudo aqui pra nossa vida cotidiana, eu acho que é

por isso que nós mulheres sofremos tanto, porque eu acho que detalhes tão sórdidos quanto

este é que fazem a diferença, porque que nos sentimos tão reprimidas sabe. Porque nós nos

cobramos tanto quando a gente falha alguma coisa...

Nina: às vezes a gente também se sente tão usada.

Page 268: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

Camila: exatamente, então eu acho assim que esse estatuto que nós saímos fora, que nós

estamos comentando aqui. (Mulheres concordando). Eu acho que se a gente transferir para a

nossa vida cotidiana, nós sofremos muito com esse tipo de coisa.

Simone: igual você falou aí, tenta puxar mais um pouquinho Camila, o que tem a ver lá o

homem estar pelado, com a mulher aparecer com o...

Camila: eu acho que...

Elis: igual à criação de filho mesmo, se você tem duas filhas, dois filhos, vão supor, se as

meninas suas são sem juízo, se são dois traficantes, às vezes o pai fala assim, seu filho, você

que não soube cuidar, agora se é um doutor: ah meu filho é um doutor, minha filha é uma

doutora...

Camila: é tudo muito prático pra eles.

Elis: muito, então eu sempre reparo isso. Então o filho teve um problema nunca que fala que é

meu filho, agora se é um doutor: meu filho é isso, meu filho é aquilo, isso é normal. (Risos e

falas altas).

Nina: por mais que a gente não saia numa Playboy da vida, a Playboy ainda tá bonitinha, por

mais que a gente não sai em filme pornográfico ou numa revista de baixo calão,

indiferentemente disso, a gente não deixa de ser mulher. A gente passa na rua, se voe vê, eu

estava até comentando com meu namorado uma vez, que se você vira pra um cara, homem

tem muito medo de mulher, não sei se vocês assim já viram alguma cena de filme ou alguma

coisa assim, mas na vida cotidiana mesmo, se uma mulher pára na rua e de olho no cara fala

“nossa, você é um tesão de cara!”...

Camila: nossa, quebrou ele. (risos e falas)

Nina: tem uma amiga minha, ela dá de cima assim, ela dá de cima na base da zueira. Sábado,

eu saí com ela assim, na base da zueira, ela falou assim, vamos zoar, eu assim, eu que sou

mulher, meu rosto fica queimando, com a bochecha vermelha e ela “nossa, que não sei o

que... (Risos).

Nina: ...o homem tem medo.

Simone: porque é uma coisa que não...

Nina: agora a mulher passa na rua e o cara fica assim: nossa gostosa! E a gente passa, a gente

anda e fica: ai meu Deus o quê que eu faço...

Camila: ridículo. (Falas e risos).

Nina: a gente acha que ele está com os documentos pra fora pra te estuprar ou você pensa

assim, eu saí aqui fora o cara nossa que delícia Ai pelo menos alguém me viu. (Falas e risos).

Page 269: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

Graça: e quando um pivete fala: “oh gostosa”. Um pivete, que tem o que? Quatorze ou doze

anos, pelo amor de Deus, não tem nada mais chato. O pivete quer usar a gente, tá com cheiro

de fralda ainda.

Nina: a minha filha tem 1onze anos e toda vez que tem um negócio na escola dela (...)

Clarice: Ele já entrou na fila...

Susana: é.

Nina: ela falou comigo, mãe amanha tem reunião, eu falo tá filha, aqui você não vai com

aquela roupa não. Porque menina?Ah não mãe, depois meus colegas, aquele dia que você me

levou na escola, meus colegas falaram sua mãe é uma puta de uma gostosa.

Susana: olha! (Risos).

Nina: o menino de oito anos, ele falou com a minha filha, eu lá em casa de shortinho,

faxinando a casa, ele falou “nossa, sua mãe é uma puta gostosa!”. Mas o menino não sabe

nem o que muitas vezes está falando. (falas altas). Mas o vô dele fala o pai dele fala, o vizinho

fala. (Mulheres concordam)

Camila: eu tenho que falar igual meu pai meu tio, meu avô.

Nina: a mulher acaba se sentindo usada por isso, porque querendo ou não, não é o nosso corpo

que está sendo exposto lá, mas aquilo ali não deixa de ser a gente e eles sabem disso.

Camila: pois é, então essa situação eu acho que a violência o tempo inteiro...

Nina: o cara fala assim “nossa”, não, a mulher que eu falo, tipo senta eu e ela: no menina eu

acho minha vagina grande ou pequena, ou aberta ou fechada.

Susana: é. (Risos).

Camila: conversa que eu tive com colega, com vizinha assim ninguém quis aprofundar.

Nina: é agora homem preocupa se é grosso, se é fino, se é reto, se é rosa, entendeu? (Susana

concorda o tempo todo: Porque a gente nem ousa se preocupar com isso).

Camila: e quando a gente entra nesse tipo de assunto, a mulherada toda se esquiva. Ninguém

entra.

Simone: por quê? Por quê?

Camila: ah eu acho que, primeiro...

Simone: Que corpo é esse? Eu concordo com o que você falou muito bem. Não deixa de ser a

gente aquela mulher que ta lá na Playboy, aquela que ta lá na baixo calão também (Falas).

Camila: o que ela contou aqui do filho dela falando do peito caído no meio da barriga. Uma

pessoa que tem livre arbítrio de vestir o que quiser desde que não saia dos padrões da

Page 270: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

sociedade. Então, porque ela é tão ridicularizada? Então a gente sofre violência o tempo

inteiro gente. Por isso que a gente é tão cobrada e tão reprimida.

Clarice: você viu uma propaganda de esmalte que uma modelo foi fazer, ela tava nua, aí

colocou a mão na vagina. (Risos) e tirou a foto. A censura mandou tirar o outdoor.

Camila: eu nem cheguei a ver.

Simone: também não vi.

Clarice: você não viu? Isso foi comentado demais.

Simone: por quê?

Clarice: não, porque acharam que... (Falas). ela colocou a mão na vagina. Ela tava nua com o

esmalte, a unha feita, aí ela sentou e colocou a mão lá, tampou, colocou a mão no peito e

tampou e não pode, foi censurado.

Simone: porque tava muito lá embaixo, se tivesse aqui em cima podia. (Risos).

Nina: eu não tenho coragem de fazer isso, mas quem tiver, eu tenho vergonha.

Camila: eu já fiz isso, eu parei o carro para o cara

Nina: o homem falta pouco entrar embaixo de uma mesa de vergonha, mulher não pode fazer

isso não. Mas é engraçado.

Clarice: Eu já fui a pagode e belisquei bunda de um cara e ele viu que fui eu. (Risos).Ele

olhou pra minha cara e fechou a cara.(Risos).

Nina: ele te acha uma vadia, mulher que faz isso é uma vadia.

Clarice: eu não sou uma vadia. (Falas).

Simone: passa por ai. Passou no fantástico (Mulheres: eu vi.) quantas vezes que...

Mulher: ah eu vi também, quantas vezes

Simone: quantas vezes, quantas mulheres o homem olha e quantas mulheres olham um

homem por dia. O homem olha em torno de não sei quantas

Graça: dez mulheres. (Simone: deu no Fantástico). Eu sei que o homem ao todo da vida dele

fica um ano olhando para mulher.

Graça: o homem olha dez mulheres e a mulher olha seis homens.

Simone: só pra acabar, porque tá acabando o horário vamos tentar. Hoje foi discutido o que?

Resumo da história. O que foi discutido? Ou vai ter igualdade, então a mulher tem tanto

direito de fazer isso ou nenhum dos dois deve fazer isso. Vamos lá, só pra tentar...

Simone: Ou vai ter igualdade, então a mulher tem tanto direito de fazer isso ou nenhum dos

dois deve fazer isso. Vamos lá, só pra tentar pensar...

Graça: eu acho que tinha que ter igualdade.

Page 271: Mexendo No Vespeiro - Dissertação

Nina: eu acho que nenhum dos dois.

Simone: nenhum dos dois devia fazer igualdade? O quê que você acha?

Clarice: ah, sei lá. Tem que ter igualdade sim.

Camila: eu acho que eu não sou a melhor pessoa para dar essa opinião. Tá tão entranhado na

nossa cultura. Eu tentei ser uma pessoa diferente e eu paguei um preço muito caro por isso.

(Muitas falas). Eu acho que isso está longe, nem na criação do meu filho vai fazer isso.

Clarice: o que a gente aprendeu é que a mulher é mais frágil que o homem.

Camila: ditaram um dia que a mulher tinha que ser mais frágil que o homem, porque as

mulheres hoje são pai e mãe de família e dão conta muito bem, obrigada. Então nós não

somos tão frágeis.

Clarice: a gente é mais inteligente.

Graça: o homem é mais forte que a mulher mesmo.

Camila: nós somos nós temos menos massa muscular pra dá porrada, isso aí é um fato.

Susana: os homens a maioria das mulheres hoje trabalham, nenhuma das mulheres quer ficar

em casa. Então tem que ter muito respeito um com outro, porque mulher hoje não agüenta.

Elis: eles estão casando hoje, porque igual a minhas filhas uma é bióloga, outra

administradora. A namorada do meu menino faz Engenharia e elas falam: Eh mãezinha!

Coitado dele que fizer isto aqui. E tudo que têm lá elas que ajudaram a comprar. (Mulheres

falam juntas: tem que respeitar).

Clarice: eles hoje já namoram pensando em dividir a conta. (Todas concordam).

Graça: tem que ter igualdade.

Camila: igual quando eles pensaram a religião e inventou que a mulher saiu da costela de

Adão já ferrou o resto. Mas porque Deus não deu o trabalho de fazer a nossa matéria igual a

do homem.

Clarice: porque tinha que ser dependente, mas eles é que são dependentes...

Elis: igual depois que casa...

Susana: eles vão ter que ajudar a mulher...

Simone: aqui até semana que vem são onze e quinze.

Clarice: já?